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Manuel Hipólito Almeida dos Santos A Abolição das Prisões Contributos para Acabar com uma Crueldade Edição do Autor 2020 Introdução Este livro é constituído por artigos e estudos provenientes de diversas fontes, publicados nos últimos 15 anos, retratando a realidade prisional, com especial ênfase sobre a situação em Portugal, retrato este que se pretende sustentador duma dinâmica para a abolição das prisões, como instituições desumanas, assustadoras, anacrónicas, medievais, medonhas e violentas. “A Abolição das Prisões” traduz o sentir do autor face à realidade do sistema prisional, constatada pelos mais de 40 anos que tem dedicado à sua observação, quer como dirigente e activista da Amnistia Internacional, quer como com a sua acção de voluntário no interior das prisões e da sua ligação à O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos da Sociedade de S. Vicente de Paulo. A vivência dentro das prisões é geradora de sentimentos de frustração, desânimo e revolta, tendo em conta estarmos em presença de situações cruéis, desumanas e degradantes, sem que se vislumbre sentido útil na finalidade da sua existência, quer para os reclusos, quer para quem lá trabalha, quer para as vítimas, quer para a sociedade em geral. As prisões são fonte de conflitos sociais e familiares, envolvendo reclusos e funcionários prisionais. As prisões não ressocializam nem promovem a paz social. Somente alimentam o desejo de vingança dalgumas vítimas e dalguma opinião pública, não tendo efeito relevante no ressarcimento dos danos dos crimes nem na prevenção da prática de atos anti-sociais. Além de que promovem o sensacionalismo primitivista que alimenta certos órgãos de comunicação social. A convicção de que essa desumanidade, provocadora de penas e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, proibidas por tratados e convenções internacionais, não pode continuar a existir nem é passível de correcção, aliada à ineficácia e fracasso do modelo penitenciário existente no mundo ocidental há pouco mais de 200 anos, não tem outro caminho que não seja a sua abolição. Tal constatação é reforçada pelo contributo retirado das bases filosóficas das maiores religiões professadas no mundo, que assentam nos pilares do perdão e da misericórdia e não na vingança, tendo em conta a imperfeição do ser humano e a sua condição de potencial pecador. A alternativa passa pela assunção da prevenção da prática de atos anti-sociais como a via exclusiva e prioritária a implementar, complementada com o novo modelo de justiça preventiva que tem vindo a ser instaurado em vários países (o foco deve ser o ato cometido - a sua reparação e prevenção - e não a punição do infractor), deixando de se aplicar penas de privação da liberdade. Deve-se ter em conta que a esmagadora maioria dos casos que conduzem a penas de privação da liberdade têm como origem a problemática das drogas, problemática esta que tem de ser vista como problema social e não criminal, devendo ser regulada como acontece com o jogo, o tabaco e o álcool. A segunda causa que está na base das penas de privação da liberdade são os atos praticados por pessoas inimputáveis, sendo esta questão um problema de saúde pública que as prisões não resolvem. Depois destas duas grandes causas, restam situações pontuais, ainda que graves, cuja origem é de natureza social e patológica, de cuja responsabilidade a família e a comunidade não são alheias, passíveis de prevenção baseada numa grande dinâmica de informação, esclarecimento e educação, sendo a justiça preventiva, não privativa da liberdade, a via para estas situações. A confirmação da desumanidade vivida nos sistemas prisionais tem sido confirmada por várias entidades. Desde os relatórios das Comissões das Nações Unidas e do Conselho da Europa relacionadas com a tortura, até ao último relatório da Provedoria de Justiça de Portugal (Mecanismo Nacional para a Prevenção da Tortura), muitas são as desumanidades que deles se extraem. A própria Assembleia da República de Portugal, ao atribuir o Prémio Direitos Humanos 2018 à Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, de que o autor deste livro é presidente desde há vários anos, confirmou tal constatação ao consignar, na fundamentação do galardão que lhe foi atribuído, que tal distinção se deveu à sua contribuição para a humanização do sistema prisional. Os artigos e estudos apresentados neste livro, de diversos autores, estão ordenados, em termos gerais, cronologicamente e representam uma ínfima parte do que tem sido trazido a público nos anos mais recentes. Procurou-se, sempre que possível, respeitar os tipos de letra, formatação e apresentação do texto original. Também, é possível que iguais argumentos e exposições apareçam em vários textos. É tempo de começarmos a trilhar o caminho visando a abolição das prisões. Setembro de 2020 Prisões. Que esperança? Há 20 anos Emídio Santana, vulto destacado do pensamento português do século XX e um dos que mais pugnou, além do mais, pelo respeito pela dignidade humana, deixou-nos um testemunho onde descreve a crueldade, a ineficácia e a desumanidade do aparelho de justiça em geral e do sistema prisional em particular, publicado pela Assírio e Alvim com o título “Onde o homem acaba e a maldição começa”. No prefácio a este livro começa por dizer-nos Emídio Santana: “As prisões, lugares de expiação penal, absolutamente confinadas no seu espaço de reclusão e de exclusão, à margem da sociedade e no seu segredo, reservam-se no seu silêncio e isolamento como o instituto «da dor, sofrimento e expiação». São uns constantes aglomerados de gente em forçado convívio e fechado na sua adversidade, como lugares de maldição que apenas degradam mas não redimem, nem reabilitam, um submundo agreste envolvido no silêncio e na proscrição, um inferno próximo de todos nós, que estigmatiza e não suscita compaixão. …………………………….. Neste meio confinado de todas as horas, de todos os dramas de cada um, fermentam também, naturalmente, os sedimentos dos desejos, das vontades e das necessidade reprimidas como do desespero em busca de qualquer satisfação e que se manifestam ou afloram de várias maneiras. Será sempre o homem com os ímpetos vitais como serão também os seus próprios dramas que sofreram ou estão vivendo, como ainda o que o próprio cárcere exacerba no seu isolamento e amargura porque é somente o lugar de punição que o amaldiçoa para sempre. ………………………………………. Hoje as cadeias regurgitam de encarcerados como é do domínio público e pelos conflitos que têm ocorrido. Pode-se assim avaliar o que será o drama no interior das cadeias quando o sistema funciona arbitrariamente na presunção de ser a defesa da sociedade. ………………………………………………..” Isto era assim em meados do século passado (Michel Foucault, no seu livro “Vigiar e Punir”, diz-nos que nos últimos dois séculos o sistema de justiça tem mantido características de desumanidade de forma permanente). Neste início do século XXI teremos um panorama muito diferente? Infelizmente a resposta não pode ser positiva. Vejamos porquê, num retrato da situação das prisões na actualidade (Os dados estatísticos referem-se a finais de 2006 e início de 2007). Nos últimos tempos a população prisional em Portugal tem oscilado à volta dos 13.500 reclusos, sendo dos países europeus um dos que têm maior taxa de reclusão (cerca de 130 reclusos por 100.000 habitantes). Para esta população prisional estão directamente afectos cerca de 6.500 funcionários públicos, dos quais 4.600 guardas prisionais. Do total de reclusos 15% eram estrangeiros e as mulheres eram 7% do total de reclusos. A taxa de reincidência era superior a 50%, sendo de cerca de 80% o total de reclusos que cumpria penas superiores a 3 anos. Mais de 50% dos reclusos não tinha ocupação aquando da prisão e 45% eram portadores de doenças na altura do início do cumprimento da pena. A maioria dos crimes (55% nos homens e 80% nas mulheres) estão ligados à droga. Mais de 50% eram toxicodependentes e a maioria continuou a consumir droga no interior das prisões.Cerca de 70% dos reclusos não tem qualquer ocupação e 45% padece de algum tipo de doença. Os gastos com os serviços de saúde nas prisões são de cerca de 30 milhões de euros anuais e só em medicamentos são gastos mais de 5 milhões de euros por ano, na maioria em psicotrópicos (60% do pessoal médico e paramédico têm vínculo precário). Há cerca de 100 crianças a morarem com as mães nas prisões e um elevado número de crianças, que vivem em liberdade com familiares ou tutores, vão passar o fim de semana com as mães às prisões. A maioria dos reclusos que trabalham nas prisões exercem a actividade de faxinas, com salários inferiores a € 1,00 por hora, praticando as cantinas das prisões preços superiores aos verificados no exterior (nalguns casos superiores em 40%) em artigos necessários aos reclusos. As habilitações literárias dos reclusos variam entre 10% de analfabetos, 40% com o 1º ciclo do ensino básico, 40% com o 2º e 3º ciclos e 10% com formação de ensino secundário e superior. Para este universo existiam em Portugal 52 prisões, nas instâncias judiciais e fiscais portuguesas estavam pendentes cerca de dois milhões de processos e quase 200.000 portugueses encontravam-se afectos a organizações de segurança e justiça. E como é a vida no interior das prisões? Vejamos o retrato que nos deixou Emídio Santana: “O condenado que entra numa penitenciária é como uma mercadoria que se arrecada num armazém. Toma o registo e um número que lhe é posto como uma etiqueta permanente, que substitui todas as designações anteriores que usava até aí, e é arrecadado na sua cela. Tem um período de adaptação e de silêncio durante o qual, acidentalmente, começa a ver outras mercadorias semelhantes e então, pouco a pouco, vai entrando no abismo dos malditos, dos ex- homens, com os seus conflitos e farrapos de tragédia, mas também e de algum modo, com a vida que continua exigindo os seus direitos, a dor e a comédia como o traquejo para sobreviver. …………………………………… O dia a dia é sempre monótono e desgastante com o seu quotidiano de farsa e de tragédia, de loucura e rebeldia.” E qual é o retrato que nos é dado por responsáveis actuais pelo sistema de justiça? O Ministro da Justiça, Dr. Alberto Costa, declarou que o sistema penitenciário clássico falhou nos seus propósitos. O Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Dr. António Clunny, expressou que o actual sistema de justiça está fora deste tempo e deste modelo de sociedade. O Dr. Germano Marques da Silva, professor de Direito Penal, manifestou a sua opinião de que a experiência dos últimos 200 anos tem sido um fracasso e que as prisões não reinserem mas, por vezes, fomentam a própria criminalidade, custando, além disso, muito dinheiro. O Dr. Diogo Lacerda Machado, ex-Secretário de Estado da Justiça, constatou que 75% das decisões dos tribunais são de forma e não de fundo, sendo que nos últimos 30 anos a população prisional e os meios financeiros para a justiça triplicaram, ao passo que o número de processos aumentou vinte vezes (cada processo concluído custa, em média, cerca de € 12.500 ao Estado). O Orçamento Geral de Estado para 2007 consigna para o Ministério da Justiça o valor de €1.191.399.758,00 e deste total está afecto aos Serviços de Investigação, Prisionais e de Reinserção o valor de € 334.669.998,00. A esta dimensão poder-se-ia acrescentar muitas outras vertentes. Por exemplo, o número de voluntários autorizados a exercerem a sua missão humanitária no interior das prisões ultrapassa o milhar de pessoas, pertencentes a mais de sessenta instituições, nomeadamente religiosas. Como pessoa pertencendo a este grupo de visitadores posso constatar que, no meu contacto com reclusos e reclusas, vejo um horizonte muito sombrio no caso de não se produzir uma mudança radical no actual sistema social, de justiça e penitenciário. Dos testemunhos que vou tendo nas visitas semanais que faço às prisões, raros são os casos de perspectiva positiva perante o futuro dos reclusos. O mais frequente é a continuação da delinquência como horizonte. Um recluso, a cumprir a sua 3ª sentença de cinco anos por furto (já tinha cumprido duas sentenças anteriores por crimes semelhantes), relatou-me o que se passou à chegada a casa na última vez em que saiu em liberdade: “Cheguei a casa, sem qualquer ajuda do Instituto de Reinserção Social, e a minha mãe disse-me logo: Rapaz, vê lá se arranjas emprego porque somos pobres e não temos condições para te sustentar muito tempo sem ganhares dinheiro. No dia seguinte tentei algumas fábricas mas nada consegui porque ao dizer que tinha estado preso logo me diziam que não precisavam de pessoal. Cheguei a casa e não tinha resposta para a minha mãe. No dia seguinte passou-se o mesmo. Ao 3º dia fui roubar e cheguei a casa com dinheiro. Continuei assim até voltar a ser preso. Agora, quando voltar a ser libertado não tenho dúvidas que vou retornar ao mesmo: roubar. ” Um outro ex-recluso confessou que “é quase impossível resistir à tentação de regressar à vida do crime, que possibilita altos rendimentos e o acesso ás coisas boas, quando a alternativa é um emprego pago com o salário mínimo.” Mas o contacto com os reclusos mostra-nos que o ser humano continua a existir, desde que a oportunidade certa seja possível, e que essa humanidade se expressa com valores muito altos. Há casos de reclusas que, sendo mães, guardam todos os géneros alimentícios que podem das suas refeições nas prisões (fruta, doces, bolachas) para enviarem para os seus filhos que, muitas vezes, ficam ao cuidado dos vizinhos ou de outros familiares. Infelizmente, quer as condições no interior das prisões, quer a sensibilidade da comunidade para com os presidiários, não ajudam a reabilitação e a prevenção de reincidência. O Padre Georgino Rocha, professor da Universidade Católica, constata que enquanto a situação no interior das prisões estiver como está, não nos encontramos em vivência cristã (Mais de 90% dos portugueses assumem-se como cristãos). Por outro lado, o Provedor de Justiça, no seu relatório sobre as prisões, diz que não é possível aspirar a qualquer tratamento de mínima qualidade no combate à reincidência. Além de tudo isto, é muito elevado o número de casais que se divorciam com a reclusão de um dos seus membros, dificultando a recuperação do recluso. Por outro lado, não é difícil adivinhar como se processa um divórcio com um dos cônjuges preso e a sua limitada capacidade de intervenção na partilha de bens e regulação do poder paternal. Tudo se processa através do advogado que o visita esporadicamente, a quem o preso não pode pagar pois, normalmente, o outro cônjuge não lhe permite o acesso aos meios que eram do casal. Em muitos casos, o recluso fica sem família e sem meios. Há perspectiva de uma modificação significativa? Com a propensão do Estado em diminuir o seu papel como interveniente na definição dum quadro social assente numa perspectiva humanista (o modelo repressivo é aquele que, actualmente, mais conquista a maioria dos cidadãos) – dois milhões de portugueses vivem em situação de pobreza e nos primeiros 4 anos deste século XXI a Europa dos 15 (a Europa rica) gerou mais um milhão de pobres em cada ano a acrescentar às dezenas de milhões já existentes – importa encontrar resposta para a questão levantada por Frei Bento Domingues: “ A quem aproveita o desenvolvimento? Como é possível deixar uns afundados na miséria e outros no luxo?” O arrepiar do caminho que nos está a levar para um beco sem saída, que não reinsere os delinquentes nem assegura a reparação às vítimas (estas são duplamente vítimas – do crime que as afectou e deste sistema de justiça), tem de passar pela prioridade à diminuição da conflituosidade, ao invés do que se está a passar em que a prioridade é dada aos meios repressivos. A sucessiva dotação de mais meios para a repressão – mais tribunais, mais juízes, mais oficiais de justiça, mais prisões, mais guardas prisionais, mais polícias, mais esquadras, mais multas e mais pesadas, etc… - não tem tidoresultados. Se este reforço de meios fosse dedicado a uma política assumida de diminuição da conflituosidade na sociedade os resultados seriam muito melhores em todos os sentidos. A aposta na repressão nunca, ao longo da história, foi o caminho para uma sociedade melhor. Mesmo na actualidade, nos países em que o sistema penal é mais repressivo (China, Rússia, Estados Unidos da América) é onde se verifica maior taxa de criminalidade e de reclusão. Logo, o modelo repressivo não é dissuasor da prática criminosa, quase parecendo provar-se o contrário: quando maior é a repressão maior é a taxa de criminalidade. Acresce que a imagem do Estado perante os cidadãos deixou de ser influenciadora de comportamentos ditos civilizados. A forma de funcionamento dos diferentes órgãos de soberania e dos partidos políticos com acusações de todo o tipo em guerrilha permanente, o envolvimento de altos responsáveis em acções censuráveis do ponto de vista criminal e ético, o desmantelamento acelerado do “Estado Social” com a colocação de faixas enormes de pessoas em situação desprotegida (25% dos jovens dos países que integram a Organização Internacional de Trabalho vivem com menos de dois euros por dia), enfim, o apagar da figura do Estado como pessoa de bem, não são exemplos propiciadores duma tendência para a diminuição da criminalidade. A desumanidade que conduz à insegurança, à delinquência e à criminalidade não está só nos criminosos que vão parar às prisões. Está, também, em quem tem a responsabilidade de conduzir as estruturas da sociedade com observância dos direitos universalmente consagrados, a que estão obrigados por força da ratificação dos instrumentos legais aprovados, mas que, ao arrepio desses valores, colocam os interesses pessoais e dos lobbies que os sustentam acima do respeito pelos direitos dos cidadãos a quem deviam servir. E a situação não é pior porque a marginalidade social crescente que não encontra resposta nas estruturas do Estado vai sendo atenuada por organizações de voluntários (Cerca de 80% das políticas de apoio social em Portugal são executadas por organizações ligadas à Igreja Católica). Além disso, a maioria que se encontra fora das margens é, normalmente, sustentáculo para o status quo. Etiene de la Boetie, filósofo francês do século XVI, dá-nos um exemplo claro deste comportamento no seu livro Discurso sobre a Servidão Voluntária: “ É espantoso como o povo se deixa levar pelas cócegas. Os teatros, os jogos, as farsas, os espectáculos, as feras exóticas, as medalhas, os quadros e outras bugigangas eram para os povos antigos engodos de servidão, preço da liberdade, instrumentos de tirania. Deste meio, desta prática, destes engodos se serviam os tiranos para manterem os súbditos sob o jugo. ……. Os tiranos ofereciam o quarto de trigo, o sesteiro de vinho e o sestércio. ……. Nem o mais esclarecido de todos eles trocaria a malga da sopa pela liberdade da república de Platão. ……. O povo sempre assim foi.” Ouçamos ainda Nietzsche: Ai! Onde se praticam mais loucuras do que entre os misericordiosos? E haverá no mundo maior causa de sofrimento do que as loucuras dos misericordiosos? Pobres dos que amam, se não sabem dominar a sua própria piedade. O diabo falou- me assim um dia: “Deus também tem o seu inferno; é o seu amor pelos homens”. E recentemente ouvi-lhe dizer estas palavras “ Deus morreu; foi a sua piedade pelos homens que o matou”. Assim falava Zaratustra. Tem sido a incapacidade humana de perspectivar um outro caminho para o tratamento da delinquência que faz com que cheguemos ao século XXI com os mesmos problemas do passado. Michel Foucault, em Vigiar e Punir, constata: “Vamos admitir que a lei se destine a definir infracções, que o aparelho penal tenha como função julgá-las e que a prisão seja o instrumento da repressão; temos então que passar um atestado de fracasso. Ou antes – pois para estabelecê-la em termos históricos seria preciso poder medir a incidência da penalidade de detenção no nível global da criminalidade - temos que nos admirar de que há 150 anos a proclamação do fracasso da prisão se acompanhe sempre da sua manutenção. A única alternativa realmente apontada foi a deportação que a Inglaterra abandonara desde o começo do século XIX e que a França retomou sob o Segundo Império, mas antes como uma forma ao mesmo tempo rigorosa e longínqua de encarceramento.” O caminho para a prevenção e tratamento dos conflitos tem de passar por uma mudança profunda das políticas que estão a ser seguidas. O modelo repressivo não defende os interesses das vítimas, não repara os danos do crime, não dissuade da prática de novos crimes nem reinsere os ex-reclusos numa sociedade em que os valores do perdão, da misericórdia, da paz e da concórdia estão submergidos. A prática da cordialidade tem de se sobrepor à da agressividade, não devendo ser delegada na repressão a solução para a conflituosidade. Tem de ser incrementada a obrigação moral de combate à solidão, à marginalidade, aos maus tratos e ao abandono (… mas as crianças Senhor? Porque lhes dais tanta dor? Porque padecem assim?). Deve ser separado o erro e a infracção (corrigindo e perdoando, com recurso aos tribunais arbitrais e à justiça restaurativa, por exemplo) da patologia e da anormalidade (que são tratadas noutras instâncias que não nas prisões). Deve ser fomentada a relação fraterna com os outros rejeitando o ódio, a vingança e a indiferença. Tem de ser aumentada a cultura humanista, relevando os sentidos da honra, da vergonha, do exemplo e da boa-fé. Muitas centenas de pessoas com ligações às prisões (funcionários, visitadores, religiosos, etc…), vão tentando, junto dos reclusos e das suas famílias, que se inverta o caminho para a queda no precipício, que não haja mais vítimas, que não haja sofrimento em consequência de actos censuráveis e desnecessários. Mas o êxito destas acções está comprometido pela evolução social actual. Com os níveis de desemprego e de trabalho precário, com o aumento de pessoas em situação de pobreza, com o agravar da iliteracia, o caminho para a prática de actos anti-sociais está facilitado. Ainda recentemente, numa conferência internacional “Por um desenvolvimento global e solidário – um compromisso de cidadania”, promovida pela Comissão Nacional de Justiça e Paz, se concluiu: “Há cerca de vinte anos que existem no País programas mais ou menos compreensivos de luta contra a pobreza, integrados nos programas correspondentes de âmbito europeu. Muito se aprendeu e se fez no decurso deste tempo. Ocorre, no entanto, perguntar a razão por que, não obstante esse esforço rodeado de grandes expectativas, persistem situações como as seguintes: - A taxa de pobreza no País tem-se mantido quase constante, à volta dos 20%, taxa que corresponde a cerca de 2 milhões de portugueses; - Durante o período 1995-2000 passaram pela pobreza (em pelo menos um ano), 47% das famílias portugueses, dentre as quais 72% foram pobres durante 2 ou mais anos; - 40% dos representantes desses agregados familiares eram pessoas empregadas por conta doutrem ou por conta própria e a percentagem dos reformados era superior a 30%; - É anormalmente elevada, no contexto europeu, a transmissão geracional da pobreza.” Obviamente que isto tem reflexo nos comportamentos anti-sociais, nomeadamente na delinquência e, por consequência, no caminho para a prisão. Não é por acaso que a população prisional em Portugal se situa num dos níveis percentuais mais elevados da União Europeia. A Amnistia Internacional, no seu relatório anual de 2007, denuncia: De acordo com a Direcção Geral dos Serviços Prisionais, em Maio de 2006, 70% das cadeias tinham a lotação acima das suas capacidades inicialmente previstas, (…) tinham mais do dobro do número previsto de prisioneiros. A sobrelotação diminuiu os recursos disponíveis para cada recluso e agravou as deficientes condições de higiene e a transmissão de doenças infecciosas. Das 91 mortes de reclusos durante 2006, 74 foram devido a doença, 14 foram causadas por suicídioe três foram registadas como homicídio. Em Junho o Ministro Alberto Costa anunciou os planos do governo para encerrar 22 cadeias e alargar outras, aumentando a capacidade total de 12.000 para 14.500 pessoas. Como se está a ver o objectivo não é diminuir o número de reclusos mas sim aumentar a lotação das prisões. É espantoso que numa sociedade que se reclama humanista vejamos as medidas governamentais apostarem no acréscimo dos meios repressivos, enquanto se assiste a um proclamar de ausência de condições económicas para melhorar as condições sociais que levariam à diminuição da delinquência e, por conseguinte, à diminuição do número de presos, com as consequências nas relações de cidadania e na diminuição das rupturas dos laços familiares. É urgente arrepiar caminho. Enquanto assim não for corremos o risco de se poder aplicar às prisões a imagem que Dante nos dá do Inferno na Divina Comédia: Vós que entrais, abandonai toda a esperança! Não podemos aceitar passivamente, em nome dos direitos humanos universalmente consagrados, que se mantenham fundadas suspeitas da continuidade da imagem deixada por Emídio Santana: “É afinal o submundo dos ex-homens, dos malditos e dos proscritos, o lugar onde o homem acaba e a maldição começa com o seu quotidiano e onde todos os problemas humanos se enxergam e se colhem numa infernal cultura ou nos pormenores de várias tragédias humanas arquivadas nos registos judiciais que, quando vistos em separado, se tornam nítidos e explícitos.” Prisões. Que esperança? Manuel Hipólito Almeida dos Santos Presidente da O.V.A.R., Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos – Porto Sociedade de São Vicente de Paulo Rua de Santa Catarina 769 – Porto Janeiro de 2007 NEM EU TE CONDENO… Texto (Jo 8, 1-11) Antes do nascer do sol, estava Ele outra vez no Templo. Todo o povo vinha até ele e, sentando-se, os ensinava. Os escribas e os fariseus trazem então, uma mulher surpreendida em adultério e, colocando-a no meio dizem-lhe: “Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante delito de adultério. Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres. Tu, pois, que dizes?” Eles assim diziam para pô-l’O à prova, a fim de terem matéria para acusá-l’O. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia no chão com o dedo. Como persistissem em interrogá-l’O, ergueu-se e disse-lhes: “Quem de entre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe a primeira pedra!” Inclinando-se de novo, escrevia no chão. Eles, porém, ouvindo isso, saíram um após outro, a começar pelos mais velhos. Ele ficou sozinho e a mulher permanecia lá, no meio. Então, erguendo-se, Jesus disse-lhe: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou? Disse ela: “Ninguém, Senhor”. Disse então, Jesus: “Nem eu te condeno. Vai, e de agora em diante não peques mais”. «Nem eu te condeno», disse Jesus à mulher surpreendida em adultério. Este magnífico episódio transporta-nos ao coração da mensagem de Jesus, o Filho que não julga ninguém e que põem em casa mesmo a Lei (cf. 7,19.23.24.51; 8,15.17) e que por essa atitude será julgado. Os capítulos 7 e 8 do evangelho de S. João são dominados pela controvérsia entre os fariseus e os escribas e Jesus acerca da sua autoridade e origem. Daí que o verdadeiro acusado, neste relato de 8, 1-11, não seja a mulher, mas Jesus; quem está verdadeiramente em causa é Jesus e não a mulher de quem não sabemos mais nada senão que era adúltera. Para os fariseus e os escribas ela teria apenas um papel secundário em todo o enredo, na sua concepção ela seria apenas o isco que iria proporcionar um motivo para condenar Jesus. Mas Jesus fez questão de a trazer para o centro da narrativa. O final que estava a ser preparado para a mulher começa a ser igualmente preparado para Ele; se ela deveria ser apedrejada pelo seu pecado de adultério, no final tentarão apedrejá-lo pelo seu pecado de blasfémia. A narração que acabamos de escutar diz, bem e claramente, aquilo que já conhecemos de mais característico da relação de Jesus com os pecadores. Ele é amigo de publicanos e pecadores (“veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizeis: “Eis aí um glutão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores” Lc 7,34). Foi acusado de blasfémia porque perdoa os pecadores (“Quem é este que diz blasfémias? Não é só Deus que pode perdoar os pecados? Lc 5, 21), acolhe uma pecadora e mostra ao fariseu Simão que o importante não é ser justo, mas amar sempre; e amará mais àquele que mais lhe será perdoado (cf. Lc 7,47). Dado que somos pecadores, o nosso pecado não é para esconder, mas para descobrir como lugar de perdão e conhecimento mais profundo de si mesmo e de Deus. Neste relato evangélico emerge o conflito central da vida de Jesus: Ele está entre os defensores da Lei, que justamente denunciavam o mal, e Aquele que dá a Lei, o Pai, que necessariamente perdoa. O perdão dos pecadores, fundamental na Bíblia, encontra em Jesus a sua expressão mais plena. Normalmente pensamos que Deus nos perdoa porque estamos arrependidos, mas na realidade nós podemos arrepender-nos porque Deus nos perdoa sempre. Ele não se volta para nós porque nós nos voltamos para Ele, mas Ele vive voltado para nós, daí que podemos voltar-nos para Ele, porque temos sempre um interlocutor. Este relato evangélico faz-nos entrar, de modo simples e imediato, no mistério de um Deus que amou tanto o mundo até dar o seu Filho unigénito, pois aquele que tem sede, vá até Ele e obtenha a água viva. Esta água, purificadora e vivificante, prometida em Ez 47,1ss, é o seu amor, que se manifesta plenamente no perdão. «Colocando-a no meio». A lei, com os seus direitos e deveres, ordena que se ponha no centro da atenção o mal, que se denuncie e se puna. Na realidade, já no princípio, Deus tinha colocado no centro do jardim a árvore da vida, e não o pecado do qual derivou a transgressão e a morte (cf. Gen 2, 9.17). Foi o inimigo, o acusador, a colocá-lo ao centro (cf. Gen 3,3). Mas a Cruz de Jesus recoloca no seu lugar a árvore da vida, fecunda em todos os tempos e capaz de curar todas as feridas e males. (cf. Ap 22, 2). A pecadora, colocada pelos escribas e fariseus num cerco de morte, verá no final investir-se essa morte nos seus acusadores e permanecerá no meio, só com Jesus, que lhe abrirá de novo o horizonte da liberdade, do amor e da vida. «Inclinando-se, escrevia no chão com o dedo». O facto é relevante, pois num texto tão curto aparece duas vezes. Procuremos o seu significado. Um primeiro que é evidente: Jesus não afronta nem provoca a multidão, desafiando-os de peito aberto. Ter-se-iam enfurecido ainda mais. Pelo contrário torna-se como ausente e inclina-se sobre si mesmo, como numa pausa reflexiva, para não se deixar tomar pela violência colectiva. Rios de tinta já correram sobre aquilo que Jesus terá escrito no chão. Não nos vamos deter demasiado nessa especulação: uns apontam a possibilidade de Jesus, como era costume romano, ter escrito, primeiro para si a sentença antes de a pronunciar; outros apontam a possibilidade de Jesus ter escrito os pecados dos acusadores; outros ainda defendem que se trata apenas de uma pausa narrativa… Mais do que nos prendermos no texto que terá escrito, fixemo-nos antes no gesto de «escrever no chão». Escrever é um acto ao qual alguém recorre para comunicar alguma coisa a quem lê. Na tradição Bíblica, toda a Escritura é comunicação de Deus ao Homem; a Aliança do Sinai foi ditada a Moisés por Deus e escrita em tábuas de pedra (Dt 9, 10). E é curioso que Jesus não escreve na areia ou na terra, mas sobre pedra do ladrilho, já que a cena decorre no templo. Toda Escritura é a auto comunicação de um Deus amante da vida, que não despreza nenhuma das suas criaturas; um Deus que tem compaixão de todos e não olha para os pecados, mas sim para pecador. Se a Escritura denuncia o pecado, não é para condenar os pecadores: a intenção de quem escreve é salvar. A Lei é oferecida para a vida não para a morte, para a conversão e não para a dispersão, para o perdão e não para a condenação. «Ele ficou sozinho e a mulher permanecialá, no meio». A mulher tinha sido colocada no meio dos escribas e fariseus que a condenaram, mas agora permanece só com Jesus, no meio da desafiadora misericórdia de Deus. Onde abundou o pecado superabundou a graça (cf. Rom 5, 20). Diz-nos Sto. Agostinho: “só restam as duas: a miséria e a misericórdia”. No final, tudo o que resta nos homens é o encontro da sua própria miséria com a misericórdia de Deus. «Ninguém te condenou? Nem eu te condeno». Não ficou ninguém que a possa condenar. Um apenas ficou: o único justo, que a justifica! Estabelece-se entre os dois a Nova Aliança, já não escrita sobre a pedra, mas no coração (“Dias virão – oráculo do Senhor – em que selarei com a casa de Israel uma aliança nova. Não como a aliança que selei com os seus pais. Eu porei a minha lei no seu seio e a escreverei no seu coração. Jer 31, 31-33). Ó pobre mulher, os outros não te podem condenar, ainda que o desejassem, porque são injustos. Mas nem Eu, que sou justo, te condeno, porque Eu não vim para condenar; eu vim para salvar, para dar vida nova. O juízo do Pai nunca é condenação do pecador, mas retirá-lo do pecado. Por isso denuncia o pecado e perdoa o pecador. O amor que a pecadora recebe no perdão, a «justifica»: torna-a justa. Eu torno-me justo na medida em que experimento o amor de um justo que não condena. E quando o experimento, então posso amar como sou amado. Pois este amor é o pleno cumprimento da Lei (Rom 13, 10b). A meditação do Evangelho levou S. Vicente de Paulo a centrar a sua Fé e a sua vida em Jesus Cristo e é em seu nome que ele vai ao encontro dos pobres. Mas ao servir os pobres, através do pobre e por detrás do seu rosto, encontra a imagem viva de Jesus Cristo: “…virai a medalha e vereis, à luz da fé, que o Filho de Deus, que quis ser pobre, nos é apresentado na pessoa destes pobres” (XI, 32 – XI, 725). E em outra altura dizia às Filhas da Caridade: “… Ó minhas filhas, como isto é verdade! Vós vereis Jesus Cristo na pessoa dos pobres. E isso é tão verdade como nós estarmos aqui. Uma irmã irá dez vezes por dia ver os doentes, e dez vezes por dia encontrará Deus … Ides ver os pobres forçados às cadeias, lá encontrareis Deus; servi essas criancinhas, porque nelas encontrareis Deus”. (IX, 252 – IX, 246) O.V.A.R. Casa Ozanam 27 de Janeiro de 2007 Pe. Fernando Soares, CM. As prisões e o voluntariado dos vicentinos “……Estive na prisão e vieste ver-me…… Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos foi a Mim mesmo que fizestes.” (Mt 25, 36-40) As prisões têm por objectivo, no nosso ordenamento jurídico- constitucional, a protecção dos bens jurídicos e a reinserção dos delinquentes. Mas será que estes objectivos estão a ser conseguidos? Infelizmente a resposta não pode ser positiva. Vejamos porquê, num retrato da situação das prisões na actualidade (Os dados estatísticos referem-se a finais de 2006 e início de 2007). Nos últimos tempos a população prisional em Portugal tem oscilado à volta dos 13.500 reclusos, sendo dos países europeus um dos que tem maior taxa de reclusão (cerca de 130 reclusos por 100.00 habitantes). Para esta população prisional estão directamente afectos cerca de 6.500 funcionários públicos, dos quais 4.600 guardas prisionais. Do total de reclusos 15% eram estrangeiros e as mulheres eram 7% do total de reclusos. A taxa de reincidência era superior a 50%, sendo de cerca de 80% o total de reclusos que cumpria penas superiores a 3 anos. Mais de 50% dos reclusos não tinha ocupação aquando da prisão e 45% eram portadores de doenças na altura do início do cumprimento da pena. A maioria dos crimes (55% nos homens e 80% nas mulheres) estão ligados à droga. Mais de 50% eram toxicodependentes e a maioria continuou a consumir droga no interior das prisões. Cerca de 70% dos reclusos não tem qualquer ocupação e 45% padecia de algum tipo de doença. Os gastos com os serviços de saúde nas prisões são de cerca de 30 milhões de euros anuais e só em medicamentos são gastos mais de 5 milhões de euros por ano, na maioria em psicotrópicos (60% do pessoal médico e paramédico têm vínculo precário). Há cerca de 100 crianças a morarem com as mães nas prisões e um elevado número de crianças, que vivem em liberdade com familiares ou tutores, vão passar o fim de semana com as mães às prisões. A maioria dos reclusos que trabalham nas prisões exercem a actividade de faxinas, com salários inferiores a € 1,00 por hora, praticando as cantinas das prisões preços superiores aos verificados no exterior (nalguns casos superiores em 40%) em artigos necessários aos reclusos. As habilitações literárias dos reclusos variam entre 10% de analfabetos, 40% com o 1º ciclo do ensino básico, 40% com o 2º e 3º ciclos e 10% com formação de ensino secundário e superior. Para este universo existiam em Portugal 52 prisões, nas instâncias judiciais e fiscais portuguesas estavam pendentes cerca de dois milhões de processos e quase 200.000 portugueses encontravam-se afectos a organizações de segurança e justiça. E qual é o retrato que nos é dado por responsáveis pelo sistema de justiça? O Ministro da Justiça, Dr. Alberto Costa, declarou que o sistema penitenciário clássico falhou nos seus propósitos. O Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Dr. António Clunny, expressou que o actual sistema de justiça está fora deste tempo e deste modelo de sociedade. O Dr. Germano Marques da Silva, professor de Direito Penal, manifestou a sua opinião de que a experiência dos últimos 200 anos tem sido um fracasso e que as prisões não reinserem mas, por vezes, fomentam a própria criminalidade, custando, além disso, muito dinheiro. O Padre Georgino Rocha, professor da Universidade Católica, deixa-nos o seguinte retrato: “Enquanto a situação nas prisões estiver como está não nos encontramos em vivência cristã.” É neste quadro que o trabalho vicentino se desenvolve. A imensidão do que há para fazer é bem patente. Em apoio ao trabalho dos capelães prisionais, a ajuda espiritual aos reclusos tem de ser intensificada. Temos de aumentar o trabalho em evitar rupturas familiares provocadas pela reclusão e apoiar a reinserção do recluso após o cumprimento da pena. Temos de ter bem presente a mensagem do Papa Bento XVI para a Quaresma de 2006 cheia de fervor vicentino: “É intolerável a indiferença perante a pobreza e a miséria” Há perspectiva de uma modificação significativa? Com a propensão do Estado em diminuir o seu papel como interveniente na definição dum quadro social assente numa perspectiva humanista (o modelo repressivo é aquele que, actualmente, mais conquista a maioria dos cidadãos) – dois milhões de portugueses vivem em situação de pobreza e nos primeiros 4 anos deste século XXI a Europa dos 15 (a Europa rica) gerou mais um milhão de pobres em cada ano a acrescentar às dezenas de milhões já existentes – importa encontrar resposta para a questão levantada por Frei Bento Domingues:” A quem aproveita o desenvolvimento? Como é possível deixar uns afundados na miséria a outros no luxo?” O arrepiar do caminho que nos está a levar para um beco sem saída, que não reinsere os delinquentes nem assegura a reparação às vítimas (estas são duplamente vítimas – do crime que as afectou e deste sistema de justiça), tem de passar pela prioridade à diminuição da conflituosidade, ao invés do que se tem passado em que a prioridade foi dada aos meios repressivos. A sucessiva dotação de mais meios para a repressão – mais tribunais, mais juízes, mais oficiais de justiça, mais prisões, mais guardas prisionais, mais polícias, mais esquadras, mais multas e mais pesadas, etc… - não tem tido resultados. Se este reforço de meios fosse dedicado a uma política assumida de diminuição da conflituosidade na sociedade os resultados seriam muito melhores em todos os sentidos. A aposta na repressão nunca, ao longo da história, foi o caminho para uma sociedade melhor. Mesmo na actualidade, nos países em que o sistema penal é mais repressivo (China, Rússia, Estados Unidos da América) é onde se verifica maiortaxa de criminalidade e de reclusão. Logo, o modelo repressivo não é dissuasor da prática criminosa, quase parecendo provar-se o contrário; quando maior é a repressão maior é a taxa de criminalidade. Temos de colocar a fraternidade como elemento central da nossa relação para com os outros. Os vicentinos vão continuar o seu trabalho de ajuda aos reclusos e reclusas, para que não haja mais crimes nem mais vítimas, e continuarão a ter bem presente a exclamação de Frédéric Ozanam: “Não pode haver dores inconsoláveis nem alegrias exclusivas”. Ou por outras palavras: Por pouco que se tenha deve chegar sempre para ajudar os outros. Manuel Almeida dos Santos Junho 2007 CRIMINALIDADE: POSSO ENTRAR? Mas as notícias são por demais evidentes, para sabermos que o crime anda por aí, em todo o lado, a incomodar meio mundo...ou o mundo todo. Cada qual dá a sua opinião sobre o modo como resolver esta ingente questão, que parece não abrandar; abrimos o jornal e, as primeiras quatro ou cinco notícias, são de assaltos, com fotos a ilustrar; as televisões fazem o mesmo, e parece que o mundo e as suas novidades se ficam por aqui! Eu acredito que o outro lado do mundo também existe: o harmonioso, o arrumado, o trabalhador, o respeitador; por aqui também se movimentam pessoas, sabemos até que a maior parte. Por favor...digam também isto! Quero entrar na lista dos que apresentam “soluções”. Sei que não resulta a opinião de “um polícia para cada cidadão”; também sei que pôr um privado em cada esquina, não resolve; nem uma câmara de filmar; nem o “chip” em cada punho, nem a ameaça de muitos anos de prisão efectiva; nem sequer o risco que o sequestrador corre ao fazer alguns reféns. ...Então...não há soluções? Elas não são um acto de magia, nem se encontram por aí em qualquer loja de ocasião ou nos armazéns onde nos habituámos e comprar de tudo. Trata-se de lidar com pessoas! E pessoas que têm, muitas vezes, marcas de histórias incontáveis; e não precisamos de ser especialistas em psicanálise para perceber razões e fundamentos para tantas coisas que vão acontecendo e que vão incomodando; os primeiros sofredores destes erros, e das suas causas são, a maior parte das vezes, quem os comete! Nem sempre e nem toda a gente assim pensa, e é muito fácil atirar uma pedra ao lobo mau que roubou a galinha para o seu pequeno-almoço. Mais policiamento? Maior vigilância? Mais meios de controlo a indivíduos e grupos? Mais grades nas nossas janelas? Mais alarmes nas nossas entradas?...Mas o mundo não pode transformar-se numa enorme cadeia, onde todos somos prisioneiros ou onde todos nos vigiamos uns aos outros e de todos desconfiamos...Que mundo?! Assim, ninguém lá quererá viver! ...Então...não há soluções? Eu entro neste cortejo de opiniões, se me derem licença, e dou a minha, que nem vale mais do que nenhuma outra... Técnicos destes assuntos de criminalidade, dizem que algumas das explicações serão os baixos salários, o desemprego, as dependências, as exigências do nível social imposto pela propaganda... e muitas outras, que tentam explicar ou mesmo justificar; não discordo. Vamos ensinar que é preciso ter mais respeito pela vida humana? – Não matar. Vamos ensinar outra vez que é preciso respeitar o bem alheio? – Não furtar. Vamos reaprender a respeitar os conselhos sábios dos mais velhos? - Honrar pai e mãe. Vamos dizer que temos de viver com o nosso essencial? – Não cobiçar as coisas alheias. Toda a gente anda preocupada – e o caso é para isso. – Mas... falemos de PREVENÇÃO! E prevenir o crime não é armadilhar avenidas e ruas, prédios e bairros com vigilância de vinte e quatro horas. A verdadeira e eficaz prevenção tem de ser feita na cabeça e no coração de cada pessoa. Por isso, eu entendo que é preciso ir também – e mais – com o coração, com o diálogo, com a criação de campos de proximidade – sem dispensar todos os outros meios. Está garantido, por quem sabe, que o aumento da criminalidade não vai além dos 10%: mas 10% de crescimento é demais: porque é de crescimento! E vai crescer até quanto e até quando? Neste cortejo de opiniões, junto as minhas; sou cidadão e também vejo à minha volta e percebo que há outras forças para mobilizar. Por exemplo: imagino que em muitos dos Bairros ditos “sociais”, onde algumas coisas destas têm acontecido, haverá Instituições de Solidariedade Social, Centros Sociais, Comunidades Religiosas, Centro Cívicos, etc. Todas estas verdadeiras forças sociais terão de ser chamadas e maximamente apoiadas para uma intervenção de real trabalho de prevenção; estou certo de que, com os seus saberes e com o seu coração, muito se pode e deve fazer neste campo. ...Então...não há soluções? Para as doenças bravas que por aí estão, a ciência, sem descurar as tentativas de cura e de tratamento, está a fazer um enorme esforço na área da prevenção. E isso estuda-se e obriga a recursos humanos e financeiros grandes. Talvez, se todas as Instituições de Voluntários, sem complexos, fossem chamadas e apoiadas a valer, se fizesse um mais eficaz e complementar trabalho de prevenção. Também na PREVENÇÃO da criminalidade, eu acredito que a maior força é a do AMOR, isto é, a força de corações desarmados! Aveiro, 30 de Agosto de 2008 P. João Gonçalves (Pastoral Prisional) Um grama de esperança, Um grama de vida Pus a droga na balança Para saber o seu peso; Não quero entrar nesta dança, Porque sem dar por ela vim preso. Não basta dizer que deixas Há que no peito senti-lo; Não basta dizer não às gramas, Também tens que saber dizer não ao Kilo. Não tenho por isso preço, O troco é de permuta; Se eu aqui tenho sucesso É porque existe muito sofrimento e luta Porventura a cadeia me ajudou, Mas com o passar do tempo a vida escureceu; E a justiça neste impasse me deixou, E por fim a vontade de viver morreu Hoje nos cabelos brancos vejo a morte, Talvez a solução do meu descanso; Memórias do passado nem alcanço, Quando morrer suponho que alguém se importe. Continua a haver presos de primeira E presos de segunda E a nossa liberdade Está na mão de quem nos afunda Viva a liberdade Não deveria haver discriminação Luto pela igualdade Mas sozinho não encontro solução. João Maia Recluso no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo - Junho 2009 Nossa descoberta Tendo-me sido solicitada a participação na revista “Escalada”, cá estou dando o meu pequeno contributo. Desde já permitam-me dizer… Obrigado, obrigado por existirem com a vossa presença que tem contribuído para que nós, reclusos, possamos suavizar a nossa passagem por estas casas… Também nos ajudam a modificar a nossa maneira de pensar o mundo e a nós mesmos. Porque cada pessoa mede-se pela diferença e pela liberdade de escolha. É realmente muito complicado que ao longo da nossa vida tenhamos que escolher e seleccionar os amigos, a profissão, os prazeres, isto porque essas escolhas implicam “sim” e “não” e a nossa aceitação pela sociedade depende da inteligência das nossas opções e se as nossas opções não forem bem aceites a sociedade castiga-nos com prisão. Talvez ainda pior que prisão seja viver em liberdade física com prisão do nosso eu a opções mal feitas, o que implica: - não ter amigos - não ter profissão, não ter trabalho - não ter prazeres, mas sim dor Tudo isto exige imenso de nós, uma vez que temos de alterar a nossa personalidade, os nossos gostos e, eventualmente, até as pessoas que nos rodeiam. Para minimizar esses dramas temos que em primeiro lugar aprender a despertar a nossa capacidade de “NOS AMAR”. A nossa vida futura terá que passar pela recusa de tudo aquilo que nos pode prejudicar. Jamais nos envolvermos com situações/pessoas proibitivas, mundos que a sociedade castiga: - crime, droga, álcool, etc. Não devemos permitir que nada nem ninguém perturbem o caminho de descoberta de nós próprios, porque só o tempo, a razoabilidade, a aprendizagem e a calma leva a essa descoberta. Após esse tempo, podemos até descobrir em nós valores exactamente opostos aqueles que tivemos no passado: Tolerância,simpatia, participação social, defesa dos mais necessitados… Não podemos deixar o trabalho da NOSSA DESCOBERTA nem para pessoas do nosso passado nem permitir que alguém nos trave ou controle a nossa personalidade no futuro. Viver também é doloroso, porque é exigente. As contrariedades são diárias mas a nossa postura deverá ser de: Eu vou ultrapassar, porque eu mereço mais Devemos colocar sempre os nossos interesses a um nível bem alto, lutando diariamente para lá chegar, não através de situações que a sociedade castiga, mas com o nosso próprio esforço, ou seja: CALMA, EQUILÍBRIO, BOM SENSO, BONS AMIGOS, FAMÍLIA Até Breve José Sampaio Recluso na Unidade Livre de Drogas, Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo Julho 2009 A razão de ser para estar na O.V.A.R. Corria o ano de 1999. Dum outro país, Equador, veio um pedido urgente, através de uma amiga da Amnistia Internacional, para ajudar uma jovem mãe que se encontrava detida no Estabelecimento Prisional de Custóias por posse de documento de identidade falso e que precisava de ajuda humanitária. Através de uma guarda prisional amiga consegui autorização para visitar essa reclusa e o caso despertou em mim o interesse de me integrar num voluntariado de ajuda às pessoas presas, tais foram as desumanidades que presenciei. A situação prisional já não me era indiferente pois aquando do exercício de funções dirigentes na Amnistia Internacional tinha sido tocado para essa realidade, além de desde jovem me impressionar essa instituição medieval que a sociedade faz o possível para não conhecer e, até, tentar justificar a sua existência. Sempre entendi que a prisão não promove o ressarcimento dos danos provocados às vítimas (só satisfaz o espírito de vingança – sentimento gerador de infelicidade em quem o possui), não promove a reinserção social da maioria dos reclusos, provocando danos profundos nas famílias dos envolvidos, não tendo efeito dissuasório na prevenção de novos crimes (além de serem estruturas que custam muito dinheiro ao erário público). Diligenciei então junto de pessoas conhecidas para saber a melhor forma de exercer esse tipo de voluntariado. Foi passando o tempo sem eu ver, por desconhecimento, uma organização credível para tal propósito até que, em 2004, em contacto com o meu companheiro rotário Luís Nunes, de S.Mamede de Infesta, membro duma conferência vicentina, que me tinha convidado para uma palestra sobre direitos humanos no seu clube rotário, indicou-me aos dirigentes de então da O.V.A.R., nomeadamente ao Sr. Leonel da Conceição. Por este fui contactado para estar presente numa reunião da O.V.A.R. em Janeiro de 2005, escolhendo começar a minha acção como visitador na prisão de Paços de Ferreira, já que os visitadores desta prisão estavam com algumas dificuldades de meio de transporte para aos Sábados fazerem a sua visita semanal. Iniciei então o processo de obtenção do cartão de acesso que permite a entrada no Estabelecimento Prisional e comecei as visitas semanais, passando, também, a ser visitador dos estabelecimentos prisionais de Custóias e de S. Cruz do Bispo, sendo, actualmente, visitador mais frequente do E.P. de Santa Cruz do Bispo. E cá estou na O.V.A.R. com a consciência de estar a exercer uma acção que a ninguém prejudica e que, eventualmente, pode ser útil a alguém. Mas o maior beneficiário tenho sido eu com a enorme experiência de humanidade que este tipo de voluntariado me tem proporcionado. Fico com a responsabilidade de fazer passar para a sociedade esta riqueza humana que estou a adquirir. 27 de Novembro de 2009 Manuel Hipólito Almeida dos Santos DIVAGAÇÕES Sinto-me honrado por uma vez mais poder dar o meu contributo à revista “Escalada”. A minha dívida de gratidão para com os vicentinos será para todo o sempre visto serem uns amigos que através da sua presença muito têm contribuído para atenuar a nossa passagem por estas “casas”. Cada um de nós, enquanto reclusos, carregamos a chave da nossa liberdade … Todos a procuramos, não interessa se temos 18, 40 ou 80 anos, não interessa se nascemos ricos ou pobres, inteligentes ou burros. O passado é um teatro de sombras e o caminho certo não é o que nos prende ao que já não existe, mas o que nos deixa avançar ainda que cheio de obstáculos. Procuramos e sentimos a necessidade de, em complemento aos nossos maiores sonhos e desejos, realizarmo-nos pessoalmente pois é um facto que a necessidade da realização pessoal é uma das maiores verdades universais… . O futuro por sua vez é um mistério impossível de adivinhar (estamos de acordo!), porque é sempre condicionado pelo presente, como um dominó que não se pode construir ao contrário e, posto isto, precisamos de imaginar o futuro para poder viver o presente. Não somos donos do tempo nem de nenhuma verdade, a não ser daquilo que pensamos. Mas o que sentimos está cá dentro, por vezes só nós o vemos… e mesmo que nos expliquemos com todas as palavras do mundo nunca saberemos ao certo se nos explicamos bem e, caso o tenhamos feito, se entendem o que nós dissemos exactamente de forma como o quisemos dizer. Por isso, por vezes, também ficamos calados e esperamos que o tempo resolva os enigmas mais complexos, ou mais simples, da nossa existência… Quando se deseja algo tem-se sempre tempo para aguardar pela sua realização. Eu poderei dizer que desejo a liberdade. Se ela não vem ter comigo eu espero. O verbo esperar torna-se tão imperativo como o verbo respirar e aprende-se a respirar na espera, a viver nela, afeiçoando-nos a um sonho como se fosse a verdade. A vida como que se transforma numa estação de comboios e o vento anuncia-nos a chegada antes do alcance do olhar. A espera ensina-nos a ver o futuro, a desejá-lo, a organizar tudo para que ele seja possível. E, se calhar, é por tudo isso que já aprendi a esperar, confiando à vida tudo o que não sei ou não posso escolher… É mais fácil sonhar do que perder a esperança e, para quem vive a sonhar, é muito fácil viver. Olho para o futuro e sonho com ele. Diante dos meus olhos desenha-se uma casa fora destes muros, fora de uma cela fria e húmida, um jardim onde se respira liberdade. Até Breve - José Sampaio – U.L.D. Recluso no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo - Janeiro 2010 CORAGEM OU TALVEZ NÃO Não tenho orgulho no que fiz, mas o que sou resulta também do que sofri/sofro e fiz sofrer durante esses anos de desvario. Na minha opinião, que vale o que vale, ou seja muito pouco, coragem não é contar a minha história, coragem é enfrentar o dia a dia neste País, coragem é acordar todos os dias e enfrentar as dificuldades do dia a dia sem recorrer a substâncias químicas que toldem os sentidos. Coragem é fazer planos para o futuro, sabendo de antemão que teremos sempre governos mais preocupados com o seu próprio umbigo do que em melhorar as condições de vida dos seus cidadãos. Veja-se como funciona a justiça, que não funciona. Assim, deixem-me que seja eu a dar-vos os parabéns pela coragem que têm em enfrentar a vida, em acreditar que vale a pena, em sonhar, em amar, enfim, simplesmente parabéns. Por outro lado, devo também esclarecer uma coisa. A minha reabilitação não foi nenhum acto heróico, não, nada disso, apenas faço aquilo que entendo ser o melhor para mim, para os que me são queridos e para todos. Também não esperem que venha aqui procurar bodes expiatórios ou razões difusas para o meu consumo. Não, eu fui drogado porque naquele momento eu e as minhas circunstâncias não me permitiram escolher aquilo que hoje entendo ser o caminho certo. Não sou nem nunca fui nem quero ser o coitadinho. Eu sou o único responsável pelo que aconteceu, para o bem e para o mal. Também não sou doente, não. Eu apenas experimentei e gostei (muito) de algo que não devia ter experimentado. Não fui enganado, sempre estive consciente dos riscos que corria e nunca me deram droga, sempre tive que a comprar. Portanto, a culpa foi toda minha. Mas hoje o Sol voltou à minha vida… Por isso, como dizia um actor da nossa praça “façamo favor de serem felizes”, sem drogas. José Sampaio Recluso no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo U.L.D. – Março 2010 Homilia de D. Carlos Azevedo Celebração de encerramento da XXVI Semana da Pastoral Social 1. “Ao ver isto”, o fariseu da narração evangélica fica impressionado. O que vê? O pecado social da mulher que ousa lavar os pés a Jesus com lágrimas, servir-se dos cabelos como toalha e ungi-los com perfume. O fariseu vê isto e pensa consigo, melhor: pensa a contar só consigo, fica no simplista debate interno, centrado no seu preconceito, metido na sua mentalidade de exclusão. E Jesus apanha-o exactamente no olhar e pergunta: “Vês esta mulher?”. É que o fariseu está a ver-se a si, nas suas ideias, nos seus clichés e não vê livremente a realidade. Era preciso olhar de novo e então dar-se conta de toda a verdade, reconhecer o contraste entre os gestos de ternura da mulher e a falta de hospitalidade manifestada por ele, reveladora de certo desprezo para com Jesus, apesar de o ter convidado para sua casa, talvez mais por si do que pelo profeta de Nazaré. “Ao ver isto”, a interrogação faz-se geral: “Quem é este?”. Donde vem a raiz de um perdão provocante. Dar-se até perdoar inquieta e suscita questões. Quem é que se deixa amar assim, porque portador de um amor infinito? É este o estilo de Jesus, revelador do amor de Deus. Supera os males do mundo, perdoa os pecados, entrega-se verdadeiramente, permitindo as ousadias da mulher pecadora, capaz de lavar os pés ao pobre Jesus, mal recebido pelo importante fariseu. Superar o pecado, seja dos drogados ou dos banqueiros, só acontece por um encontro que aproxime do dom, chegue à delicadeza do perdão, converta o interior e transforme a posse em dádiva. A profunda mudança de estilo de vida implicará compromisso comunitário e revolução na mentalidade dos gestores e dos agentes políticos. Como afirma o texto paulino de hoje, não abraçamos a fé em vão (1 Cor 15) e todo o processo da vivência da caridade cristã decorre do mistério pascal de Jesus. Requer morrer para si, desapego de visões limitadas para abrir-se à novidade do renascer, de ressuscitar na inovação das atitudes. É por graça de Deus que somos discípulos na lógica da gratuidade e trabalhamos, por graça de Deus, neste campo, pertencendo a comunidades cristãs, sob inspiração de diversos carismas, integrados em instituições com orientações específicas. Por graça de Deus, somos chamados a viver, a seguir o estilo profético de Jesus, exigente nas atitudes, pautadas pelo puro dom, pela beleza da entrega. 2. Ao longo destes três dias vimos isto, olhamos para a condição pecadora da sociedade. “Ao ver isto” sentimo-nos todos responsáveis. O pecado é inicialmente de pessoas concretas, mas plasma-se em relações, situações e organizações negadoras da pessoa e contrárias ao plano de Deus. Somos solidários no mal moral ou no pecado. Pode parecer estranha a expressão “solidariedade no mal”, mas é poderosamente verdadeira. Os meus pecados são de todos e prejudicam a todos. Os dos outros são meus e prejudicam-me. O pecado do mundo é uma grande ferida do corpo total que sangra em todos. Todo o corpo social é afectado pelo assédio da maldade, sem respeito pelo bem comum, insensível aos pobres. A grande contaminação do individualismo e do domínio sobre os outros atinge- nos. Este pecado social fere sobretudo os pobres e excluídos, chegando a destrui-los como pessoas. Aliás, a gravidade do pecado pessoal pode medir-se pela intensidade dos seus vínculos com o pecado social. Romper, por isso, com o “pecado do mundo” (Jo 1,29; 15,18), lutar contra o mal é caminho de conversão. Fomos educados no pecado de não “ver isto”. Taparam os pobres com as vitórias dos ricos. A sede de triunfo particular envenenou o ambiente, debilitou em muitos corações o serviço humilde dos outros. A humanidade aspira ansiosamente por libertar-se desta lógica escravizadora, também presente no mercado: “quem nos liberta desta força que leva à morte?” (Rom 7), deste modelo de desenvolvimento que nos sequestra o futuro? Seria trágico, se Jesus não tivesse transformado a solidariedade na desgraça em solidariedade universal na graça. Aceitemos o convite para sair do círculo da solidariedade do pecado, para entrar na solidariedade da salvação de Jesus. A causa de Jesus, a salvação da humanidade e do universo, passa por enfrentarmos a injustiça e a pobreza. O perdão misericordioso com que Jesus enfrenta o pecado das pessoas, não nos fecha os olhos para ver o domínio de perspectivas negativas, para sentir e vibrar com os desastres que essas visões provocam. A lógica do amor impele-nos a actuar. A força do Espírito, presente na Palavra escutada, faz-nos fermento de um futuro novo. Não podemos continuar a juntar-nos à lógica farisaica. Não podemos inibir-nos. Resta opor-nos, com energia sempre refeita, ao pecado do mundo, na sociedade portuguesa e em cada um de nós, para construir a solidariedade da graça, o dar-se de verdade. Desejamos multiplicar gestos de amor porque somos muito amados, muito perdoados. É maravilhoso ver como lágrimas de conversão podem ser refrescantes para os pés de construtores de uma sociedade segundo o coração de Deus. Teremos de apressar os passos para socorrer tantos aflitos. Teremos de inovar caminhos pastorais para, muito coesos, ir ao encontro de soluções justas e dignas. O amor recriador de Deus acende-nos a esperança. Fátima, 16 de Setembro de 2010 D. Carlos Moreira Azevedo - Presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social O Natal do outro lado da liberdade Estamos dentro de uma Prisão. Nas cadeias há pessoas… e são gente: têm família, têm coração, sentimentos, sonhos; pessoas que têm uma consciência que também fala; há lá dentro mulheres que são Mães, homens que são Pais, rapazes e moças que têm cá fora o namorado ou o noivo, separados pelas grades de ferro, bem feitas, para não poderem ser derrubadas nem ultrapassadas... As cadeias são casas onde habitam pessoas: como nós; iguais a toda a gente; que foram crianças que brincaram felizes na sua infância; que tiveram um colo e riram e choraram ao lado de pessoas que amaram; foram crianças que sonharam outra coisa para o seu futuro; sobre elas pairaram desejos e ambições das Mães, que sempre sonham as mais belas realizações para seus filhos; crianças que correram para as prendas em dia de Natal! Nas Prisões estão pessoas que também acreditaram que as presentes de Natal vinham de um amigo, mais ou menos desconhecido; receberam presentes, envolvidos na fantasia que estas coisas sempre comportam, na “magia” que o Natal oferece. Dentro da Cadeia, como fora dela, estão recordações e saudades, que nem sempre deixam livres de emoções quem delas guarda memórias e recorda, com um peso muito especial, quando se está onde circunstâncias forçam uma estadia não sonhada, nem desejada, nem programada. Como é o Natal de um Recluso? Para poupar dores e evitar emoções, não vai falar sobre isso um Preso… Falo eu, que nem sei imaginar o que seja uma daquelas situações; direi, certamente, coisas sem jeito, que espero não ofendam os meus amigos Reclusos, espalhados por tantos dos Estabelecimentos Prisionais do nosso País. Mas para haver confronto sobre um Natal na Prisão, eu terei de saber o que é um Natal fora da Prisão! E eu não sei muito bem… Então, se dissermos que o Natal, deste lado da liberdade, é festa da Família, dos presentes, das compras, do frenesim e das corridas à loja, que é a iluminação da rua e da avenida, a festa do convívio, o tempo da viagem para a terra, o dia da roupa nova… então o Natal do Preso tem pouco disso. Mas se o Natal for tempo de encontro, de silêncio, de diálogo, de oração; se for um Natal de Fé e de profundas e duradouras emoções, então um Natal assim pode existir em toda a parte e em todo o lugar; também numa Cadeia. Se o Natal fosse a ocasião preparada para ser vivido na Paz criada, carregado de gestos de verdadeira fraternidade, por momentos de renovada e fresca fraternidade, pela autêntica partilha de vidae de bens, pelo esforço de ultrapassar escravaturas e egoísmos tentadores; um Natal de liberdade e de libertação, que ajudasse a recriar no mundo o sentido da serenidade, da esperança, da concórdia, da fraternidade, da paz… este seria o Natal que todos queremos e verdadeiramente sonhamos; este é o Natal que se deseja sempre, ano após ano; e que assim vivido e preparado, nunca perderia a sua força, a sua frescura, a sua novidade… Este Natal também tem espaço nas Cadeias! É possível também numa Prisão! Um recluso é uma pessoa que vive, com particular sofrimento, a solidão de horas, dias, e anos. Aliviar este peso, é tarefa de Assistentes espirituais e religiosos, é tarefa de Colaboradores e de Voluntários que, quanto possível, reforçam nestes dias. No Natal redobramos os presentes, as presenças, as festas, as celebrações, os contactos com as famílias… tudo e o muito que o coração sugira e as circunstâncias permitam. É muito interessante entrar nas nossas Cadeias em tempo de Natal! Não faltam os enfeites, as luzes, os presépios; em salas e gabinetes há motivos natalícios! E também não faltam aqueles doces que só têm sabor nesta quadra: o bolo-rei, as rabanadas… porque há gente deste lado da liberdade que pensa e dedica muito do seu tempo, dos seus bens e, sobretudo, do seu coração, para que a aproximação da reclusão esteja cada vez mais perto da Liberdade. Com as mãos dadas, o sofrimento é aliviado, e o Natal adquire o seu mais verdadeiro significado: porque é Natal, quando as pessoas estão mais perto e se ajudam em laços de Esperança e de Fraternidade. Nas Prisões, também há Natal! Pe. João Gonçalves – 2010 Prisões: Faltam alternativas para reabilitar os reclusos D. Carlos Azevedo mostra-se preocupado com a ausência de «soluções operacionais», que tornem possível a reinserção dos presos na sociedade O presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social mostrou-se hoje preocupado com a falta de soluções que favoreçam a reinserção dos reclusos na sociedade, aquela que é uma das principais metas traçadas pela Pastoral Penitenciária. “Não se encontram formas operacionais de o realizar e ainda aparece a prisão como quase a única forma de reabilitação das pessoas” lamenta D. Carlos Azevedo, em declarações à ECCLESIA. No dia em que caiu o pano sobre o 7.º Encontro Nacional da Pastoral Penitenciária, sob o tema “Prisões – Um desafio à sociedade”, o bispo auxiliar de Lisboa recorda que nem sempre “o tempo de privação de liberdade” serve para “a pessoa sair melhor do que lá entrou”. Na opinião do prelado, falta sobretudo “uma renovação do sistema”, e também uma mudança de mentalidade, na forma como se encara o recluso. “Nós temos muita dificuldade em tentar perceber o outro. É o dom do entendimento, um dom do Espírito Santo, ser capaz de me pôr na pele do outro” sublinha D. Carlos Azevedo, lembrando que muitos dos presos não tiveram grandes oportunidades, a nível de educação, de família, de condições económicas e sociais. Para o presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social, “promover a justiça e a liberdade deve ser uma tarefa de todos na Igreja”, não só indo visitar os presos mas numa “atitude muito mais transversal”. “Tem de ser algo que diz respeito a todos, ao sistema urbano, educativo, judicial, encontrar novas alternativas à punição da liberdade” reforça. Mais do que remediar, a prioridade da Igreja deverá estar na “prevenção”, procurando também estar mais próxima daqueles que, todos os dias, acompanham de perto a situação dos presos. “São pessoas que vivem no dia a dia as aflições das pessoas que estão presas, porque as visitam, escutam os seus dramas, tentam encontrar trabalho quando eles saem, e por vezes sentem-se um pouco impotentes” explica o prelado. Devido a estas dificuldades e à necessidade de uma orientação por parte da Igreja, os responsáveis pela Pastoral Penitenciária aproveitaram este Encontro Nacional para solicitar à Comissão Episcopal da Pastoral Social uma nota pastoral sobre esta temática. JCP - Ecclesia – 09/02/2011 Sonhar ou Sobreviver? Sempre fui sonhador e é isso que me mantém vivo e capaz de traçar metas e objectivos de vida. Quando era pequeno o meu sonho era ser actor, cantor, enfim artista. Mas o sistema e o rumo que a minha vida tomou obrigaram-me a escolher: sonhar ou sobreviver? Sempre andei por bairros e becos e isso proporcionou-me uma via fácil para alcançar os meus objectivos, desaguando no crime. Por vezes acho que era um dinheiro amaldiçoado, porque quanto mais ganhava mais gastava, e não escapei à lei dos homens: 10 anos e 9 meses de cadeia. E penso: o que farei quando sair daqui? O que farei se me faltar o dinheiro para o dia a dia? Pois é. Podia estar com falinhas mansas e dizer que não voltarei para o crime outra vez mas, acima de tudo, tenho de ser realista. Se me faltar algo vou buscá-lo, custe o que custar, nem que para isso tenha de traficar, roubar, etc…. Mesmo sabendo que o meu destino certo é voltar a cair neste buraco que é a cadeia. Sinto, neste momento, um turbilhão de sentimentos e vontade de ser alguém, sem que para isso tenha de ser criminoso mas, ao mesmo tempo, prevalece a vontade de ser mais e mais…sentir-me realizado, sem problemas financeiros, mesmo que o método não seja o mais ortodoxo. Ouço todos os dias tangas da reinserção social. Onde ela está? Até sinto medo do que me espera no futuro, em liberdade, porque vivemos numa sociedade hipócrita que se recusa a dar uma segunda oportunidade a quem errou. Mas também confesso: será que eu quero essa oportunidade? Mesmo que eu mude será que a sociedade em que vivemos alguma vez irá mudar? Duvido. Por ter um cadastro mais sujo do que aquilo que sai do esgoto, a dita sociedade irá confiar em mim? Irá acreditar em mim? Não me parece. Então, se a sociedade não acredita em mim expliquem-me o porquê de eu acreditar e confiar nela? Cometi crimes, estou a pagar bem caro por eles. Será que 10 anos e 9 meses atrás das grades vai mudar o meu pensamento? É isto que chamam a preparação para a reinserção na sociedade? Entrei um simples bandido e quando sair saio mestrado e doutorado nesta escola do crime que é a cadeia. Fui bem educado (apesar de filho de pai ausente) mas se não o fosse nada seria diferente. Eu e a minha irmã tivemos a mesma educação. Ela constituiu família e esquivou-se do crime. Eu fui o oposto. Porquê? No bairro em cada dois filhos que uma mãe dá à luz um é para as ruas o adoptarem. Se me perguntarem se quero mudar respondo com toda a certeza que sim. Mas para isso tenho muito que aprender, porque a verdade nua e crua é que eu sei que a outra via é uma burrice e uma estupidez, que a rua é uma selva e será nela que essa outra via me vai levar a habitar. Mas antes de para ela ir deixarei o meu nome escrito nem que seja pelas piores razões. Ficará para a eternidade, para que futuramente novas gerações possam perceber a minha realidade. Por muitos não sou percebido, por muitos sou referência, tenho consciência de que até posso estar errado e por isto digo a quem me ler: Não faças o que eu fiz e por vezes não me dês ouvidos porque se não vais acabar por ser mais um preso destroçado. Eu sou um criminoso com poucas perspectivas no futuro (ambicionaria uma vida sem problemas financeiros). Ainda por cima a obrigarem-me a prestar contas com o Estado no final do mês e vê-los (os poderosos) com boas roupas e bons carros à pala do pobre português. Não papo disso. Se banqueiros e políticos roubam milhões, sendo eles que deviam dar o exemplo, porque não o posso eu fazer também? Eles são mais ladrões do que quando eu saio à rua de arma na mão. Acabo este desabafo com duas questões: Vale a pena sonhar? Acho que sim. Sonhar é viver. Mas pergunto: Sonhar ou sobreviver? É a questão que espero um dia vir a saber a resposta. Quero conhecer o paraíso pois já conheço o inferno. Será que algum dia verei Jesus? Não sei. Mas já vi o diabo vestido de fato e gravata. Recluso devidamente identificadopelo presidente da O.V.A.R. Unidade Livre de Drogas – Estabelecimento Prisional de Santa Cruz de Bispo – Nov. 2011 Uma visão dos idosos abandonados a partir duma prisão Hoje vi uma notícia na televisão que me não foi indiferente, tanto pela crueldade como pela ingratidão: são abandonados centenas de idosos nos hospitais portugueses. Como é possível tal acto de cobardia, desprezo, ingratidão e desrespeito por aqueles que nos deram a vida, que nos ampararam quando éramos crianças, por aqueles que são uma referência para nós? Como podem os filhos abandonarem os seus pais? Não percebo a cabeça dessas pessoas e, por vezes, são essas pessoas as primeiras a julgarem o meu passado… Para quem abandona os seus idosos, ou está a pensar fazê-lo, peço que se lembrem que foram esses mesmos idosos que nos deram amor, que estiveram presentes quando mais ninguém estava para vos apoiar, que vos transmitiu valores e ensinamentos que vos são úteis todos os dias. E vocês não se apercebem que essa aprendizagem veio das pessoas que estão a abandonar em hospitais e lares de 3ª idade? Velho, para mim, é sinónimo de sabedoria! Mesmo sendo analfabetos muitos deles, no que toca à escrita e à leitura, são as pessoas mais sábias no que diz respeito à vida. São eles os melhores conselheiros, são eles os mais carinhosos e nunca se esqueçam que são eles, e só eles, que vos conhecem melhor que ninguém. Para quem ler o que escrevo peço que valorizem os vossos idosos e amem-nos como eles vos amam, lembrando-se que hoje são eles mas amanhã serão vocês. Faz-me bastante confusão quando todos os dias sou julgado por esta sociedade. O abandono de crianças é crime. O abandono de idosos não é crime? Pelos vistos não… e quando falam do abandono dos idosos vejo pessoas na televisão a quererem desculpar quem o faz. Dizem que a doença é um dos maiores factores desse abandono. Doença? Quer dizer, eles têm culpa de estarem doentes? E outrora, quando os filhos desses idosos ficaram doentes eles por acaso abandonaram-nos? Não, estiveram lá sempre ao lado dos seus filhos, na doença, na tristeza e em tudo. Aqui quero deixar a minha admiração por todos os idosos do mundo. Vocês são sábios, vocês são carinhosos para os vossos filhos, vocês são pessoas que terão a minha ajuda para tudo o que estiver ao meu alcance e para todos digo: Vocês são grandes, vocês são pioneiros, vocês são referência para mim! E sempre terão o meu respeito. Tenho pena que alguma parte da sociedade portuguesa não pense assim. André Rodrigues – Recluso no E, P. de S.C. do Bispo – Unidade Livre de Drogas Poemas da Prisão UMA ÁRVORE Na solidão da árvore novos mundos são gerados. A solidão era absoluta naqueles seus belos longos, galhos: eram picos rochosos, da alma, semicobertos, com por um pelo de manto de nave. Somente de tempos em tempos algumas aves examinavam a sua brancura desde os céus, buscando descobrir nela o rastro de alguma presa. Aqueles que, do vale, olhavam para os picos brancos e tão solitários: a alma que seguia seu rosto para os céus, nem de longe suspeitavam o frio que havia naquelas alturas. Aqueles, que do vale, olhavam picos brancos, eram os espíritos, as almas das árvores das regadas, das colinas algumas, almas fluidas e ramosas que discorriam entre margens de verdura, e outras, almas cobertas de verduras. Lá do alto da árvore, tudo era silêncio e solitário (ÁRVORE). Paulo Joaquim Silva Leite Ala – B 269 Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira Silêncios de quem gostamos, ausências de quem esperamos… Ontem não sabia que os muros das prisões são tão altos vistos do lado de dentro, deste lado daqui. São incomensuravelmente altos e (quase) intransponíveis. Só o salto do pensamento os derruba com a força das memórias e os sonhos do futuro. Hoje sei. Aprendi, numa página do livro da vida, a exacta medida da altura desses muros, pintados de branco por fora e de negro, de muitos negros de cores doridas, tingidas de cores sofridas, por dentro. Mas hoje também sei que existem muros ainda mais altos. São muros de muitas pedras de silêncios unidas por ausências Silêncios de quem gostamos, ausências de quem esperamos… Os muros das prisões conseguem-se saltar de um só salto feito de vontade impulsionada na soma de todos os sonhos e de muitos amanhãs que chegarão. Os muros de silêncios argamassados de ausências só se derrubam se os outros também quiserem, mesmo que o nosso querer muito queira. Aqui, onde o tempo tem outra medida, no meio de todos os sons que nos envolvem, continuamos a ouvir silêncios de quem gostamos, ausências de quem esperamos… Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, 31/01/2012 Recluso devidamente identificado pela O.V.A.R. Vicente de Paulo, Ozanam e a Questão do Juízo Final: “…Quando foi que estive na cadeia e foste visitar-me?” “Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; Porque tive fome e destes-me de comer; tive sede e destes-me de beber; era peregrino e hospedastes- me; estava nu e vestistes-me; adoeci e visitastes-me; estive na prisão e fostes visitar-me. Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome e te demos de comer? Ou com sede e te demos de beber? E quando te vimos peregrino e te hospedamos? Ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos visitar-te? E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que todas as vezes que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes.” Mateus 25:34-40 Já em 1618, S. Vicente de Paulo tinha visitado as obscuras prisões da Conciergerie onde estavam encerrados, em condições desumanas, centenas de condenados. (…). Era um espectáculo desolador nunca visto até então.(…) Os condenados viviam num verdadeiro inferno, blasfemavam contra Deus, amaldiçoavam a vida e gritavam sem esperança de serem atendidos. (…). Não podendo acabar com esta forma de escravatura, S. Vivente de Paulo desenvolveu uma série de iniciativas no intuito de melhorar as condições de vida destes homens. (…). - Excerto do livro “ Vicente de Paulo – Pai dos Pobres – Edições Paulinas – 2006” Também Frederic Ozanam escreveu importantes artigos sobre as questões sociais e, num desses artigos, dirigindo-se às pessoas de bem e às causas da miséria proclama: “Esmagastes a revolta. Resta-vos um inimigo que não conheceis suficientemente e do qual não quereis que se vos fale: A miséria!” Se vivesse hoje Ozanam continuaria o mesmo discurso, integrando os locais onde a miséria fala muito alto: as prisões! É com esta herança que há quarenta e quatro anos os vicentinos da O.V.A.R. do Conselho Central do Porto da SSVP têm vindo a enriquecer o seu património afectivo e de conhecimento humano, de valores profundos, no seu contacto com os reclusos e suas famílias, nos estabelecimentos prisionais da diocese do Porto (Custóias, Paços de Ferreira, Santa Cruz do Bispo e Vale do Sousa), tentando transportar para dentro das prisões a mensagem cristã de fraternidade e para quem a ajuda, baseada numa cultura de esperança, pode representar um apoio de fortalecimento espiritual importante. E digo que os vicentinos se enriquecem porque o que recebem desse conhecimento do ser humano e das suas circunstâncias é muito mais do que aquilo que dão. E como é que isto acontece? É que não nos podemos esquecer que dentro das prisões estão pessoas. Pessoas como todas as outras, com defeitos mas também com qualidades (e tenho visto reclusos e reclusas com mais qualidades do que têm pessoas que nunca foram presas), pessoas possuidoras de afectos, pessoas com famílias que as querem bem, pessoas que em fases da vida trilharam caminhos que as levaram à prisão. De todas as pessoas que tenho conhecido dentro da prisão, algumas a cumprirem penas pesadas por crimes graves, ainda não conheci nenhum caso em que colocando-me nas circunstâncias em que o crime foi cometido pudesse ter feito melhordo que agir como o recluso agiu. As circunstâncias e as suas condicionantes têm um peso que nos impede juízos implacáveis e definitivos. Continuamos na reflexão sempre inacabada entre o determinismo e o livre arbítrio. Isto não retira visibilidade às consequências, por vezes dramáticas, para as vítimas dos crimes que levam os perpetradores à prisão. Sempre que tomo conhecimento de violência criminosa fico perturbado com o grau de selvajaria de que as pessoas são capazes, assim como do sofrimento infligido às vítimas e suas famílias, interrogando-me do porquê da insuficiência duma cultura humanista na sociedade que, ao privilegiar a economia e a tecnologia, transforma as pessoas em seres produtores, descartáveis, com graves carências de ética e cidadania. As vítimas merecem uma profunda solidariedade da sociedade, enquanto a preocupação na ajuda aos reclusos centra-se no perdão para os seus erros, na contribuição para a sua reinserção, na redução da conflituosidade social e na criação de condições que evitem a reincidência na prática de actos socialmente censuráveis. A vida dentro da prisão tem requintes de crueldade, de desumanidade, de tortura e de degradação do ser humano. Este retrato tem vindo a ser mostrado ao longo dos anos por várias pessoas e entidades, algumas delas representando órgãos do poder político e judicial, mas, infelizmente, os alertas pouco êxito têm tido no tratamento e prevenção dos comportamentos anti-sociais. Nos últimos anos continuamos a assistir a um nível de aumento da população prisional sem paralelo na história recente, sendo que, registando-se em 15 de Abril último o valor de 14.020 reclusos, encontramo-nos no nível dos valores máximos alguma vez registados, originando problemas de sobrelotação das prisões (a lotação máxima é de 12.077 reclusos) com as consequências inerentes na degradação das condições de vida no interior das prisões como a falta de trabalho, diminuição do espaço vital, inferior qualidade da alimentação, aumento de conflituosidade, diminuição da segurança, etc… (não incluindo os condenados que cumprem penas de prisão por dias livres e prisão domiciliária – só nos últimos 10 anos estes tipos de penas aplicaram-se a mais de 5.000 pessoas). Por outro lado, não tem havido progressos na reinserção social dos reclusos, notando-se até uma diminuição da intervenção das estruturas oficiais da reinserção social e do seu volume de recursos humanos (a integração da Direcção Geral da Reinserção Social na Direcção Geral dos Serviços Prisionais ainda não deu frutos conhecidos), a que não serão alheias as restrições orçamentais conhecidas e a falta de empenhamento político necessário. Isto reflecte-se na limitação das vias de reingresso dos reclusos na sociedade, proporcionando o prosseguimento dos caminhos que levam à transgressão e à prática de actos anti-sociais, com o consequente retorno à prisão. As limitações existentes à formação dos reclusos e o acesso destes a esses meios de formação e informação provocam dificuldades à melhoria da sua qualificação, agravando o inêxito observado na reinserção social. O facto dos reclusos não terem acesso à Internet e às tecnologias de informação e comunicação, além de poderem ser lesivas dos direitos dos reclusos, consignados nos referenciais jurídicos internacionais aplicáveis a todas as pessoas que se encontram em situação de detenção ou prisão, dificulta a sua defesa, o acompanhamento da evolução da sociedade e a sua formação educativa. Neste caso não será difícil imaginar a dificuldade dos reclusos prosseguirem estudos, reflectida nas baixas percentagens de aproveitamento escolar nas acções de ensino nas prisões (mais de 60% dos reclusos só têm o 6º ano ou menos de escolaridade). A simples enunciação dalguns aspectos da vida dentro dos muros das prisões, deve ser sempre relativizada face à gigantesca dimensão dos problemas quotidianos. A despersonalização dos reclusos pode começar pela apreensão dos seus documentos de identificação e acabar num mundo retratado por Kafka no seu livro “O Processo”. Recentemente verificou-se um agravamento das condições básicas necessárias a um mínimo de dignidade de vida para um ser humano. Desde a falta de produtos higiénicos (dentífricos, sabonetes, papel higiénico, etc…) que o Estado está obrigado legalmente a proporcionar, à quase inexistência de material escolar, à redução e/ou suspensão de apoio financeiro para aquisição de próteses dentárias, auditivas ou oculares, às restrições ao fornecimento de medicamentos receitados pelos médicos das prisões, ao abaixamento da qualidade da comida fornecida (Há concursos de fornecimento da comida às prisões, de empresas com fins lucrativos, com valores de diárias para 4 refeições – pequeno almoço, almoço, jantar e reforço nocturno – por valores inferiores a € 4,00 diários), ao aumento das restrições de artigos que podem ser oferecidos aos reclusos (por exemplo, já só é possível oferecer a cada recluso 1 Kg de alimentos por semana), às limitações dos contactos telefónicos, até à sobrelotação das celas (em 31 de Dezembro de 2012 trinta e um dos quarenta e nove estabelecimentos prisionais albergavam reclusos em número superior á sua lotação e esta realidade continua a agravar-se), à inexistência na prática de apoio jurídico indispensável para quem se encontra a cumprir pena, aos comportamentos arbitrários de alguns funcionários e guardas prisionais lesivos dos direitos dos reclusos, à falta de lavatórios em locais como cantinas, ao pouco rigor e transparência na gestão do dinheiro dos reclusos à guarda dos estabelecimentos prisionais (não rendendo qualquer juro aos reclusos após anos em poder dos estabelecimentos prisionais), à ausência de trabalho e ao trabalho sem remuneração, às limitações à vontade espontânea de celebrar cultos religiosos, etc…etc…etc…, são alguns dos muitos problemas que enfrentam quem se encontra dentro duma prisão. Com tudo isto fácil é imaginar o clima conflituoso que se vive dentro das prisões. Tal é retratado nos relatórios anuais dos estabelecimentos prisionais, onde são tipificadas infracções como atitudes nocivas com os companheiros, posse ou tráfico de dinheiro ou de objectos não consentidos, inobservância de ordens, linguagem injuriosa (insultos, ofensas ou difamação), ameaças, agressões e atitudes ofensivas para com os funcionários, detenção posse e introdução de estupefacientes, etc…, o que determina sanções disciplinares que incluem em número elevado o internamento em cela disciplinar. Por outro lado, constata-se um número elevado de recusas na concessão de saídas jurisdicionais, incluindo “precárias”, por parte do Tribunal de Execução de Penas, o que ao impedir o usufruto de algum tempo de liberdade provoca desânimo, desconforto e irritação nos reclusos. Também aqui se pode alegar que estas restrições podem estar em conflito com os normativos jurídicos internacionais (só as Nações Unidas aprovaram 22 normativos aplicáveis aos reclusos e às prisões) e, até, com o próprio Código de Execução de Penas. A situação do campo da saúde não é das mais recomendáveis. Quando nalguns estabelecimentos prisionais os reclusos têm, em média, mais de duas consultas médicas por mês e mais de trinta actos de enfermagem mensais, tem de se concluir que algo não está nada bem. Os números elevados de VIH/sida e hepatite B e C são disto reflexo. O recente relatório do Comité contra a Tortura do Conselho da Europa que detectou muitos destes problemas é apenas uma amostra da realidade. Neste sector específico das prisões, Portugal tem indicadores que se afastam daqueles que são conhecidos na União Europeia. Por exemplo, ainda há poucos anos o Alto Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa chamava a atenção para o tempo demasiado longo que os reclusos portugueses cumprem de pena relativamente aos outros países da U.E. Em Portugal o tempo médio de cumprimento de pena era de 26 meses, enquanto a média da U.E. era de 8 meses. Este factor tem de ser tido em conta quando se ouve com frequênciaclamar por penas mais pesadas, sem se ter em conta se tal tem algum efeito na prevenção da criminalidade, na reinserção do recluso, no ressarcimento dos danos provocados às vítimas ou na protecção geral dos bens jurídicos da sociedade. Em termos mais profundos, é cada vez maior o sentimento dos especialistas internacionais sobre a ineficácia do actual modelo do sistema prisional, que tem tido, também em Portugal, acolhimento em muitas pessoas profundamente conhecedoras da realidade das prisões. A visão não muito longínqua de Michel Foucault é cada vez mais patente nos deficientes resultados que este modelo tem para mostrar. Aliás, esta ineficácia do modelo prisional é comprovada pelos estudos dos peritos internacionais que se debruçam sobre esta matéria. Em todo o mundo existiam em 2011 mais de 10,75 milhões de pessoas presas e em detenção, sendo a maioria nos Estados Unidos da América ( 2,29 milhões) e na China (estima-se em 1,6 milhões em prisões e mais de 600.000 em centros de detenção), o que representam os valores mais altos desde sempre. Portugal detém um valor de 130 reclusos por 100.000 habitantes, enquanto Espanha detém 159, a Grécia 102, a Alemanha 85, a Dinamarca, Noruega, Suiça e Suécia entre 70 e 80, o Brasil 253, o Japão 58, tendo estes valores vindo a crescer nos últimos anos. O crescimento da população prisional tem-se verificado sem que tal aumento tenha tido correspondência nos recursos humanos das prisões (técnicos e guardas prisionais) o que degrada a qualidade de prestação de trabalho destes profissionais, sendo frequentes as situações de conflito, prepotência, negligência, desrespeito, maus tratos e inobservância dos direitos dos reclusos. Este estado de coisas tem, inclusivamente, sido denunciado por estruturas representativas dos trabalhadores das prisões mas os resultados não têm sido de molde a alterar o quadro descrito. Como exemplo, o total de equipas de reinserção social diminuiu, nos últimos 10 anos, de 98 para 52 equipas em todo o país. Aliás, o recurso a trabalhadores com contratos precários para funções com um nível elevado de exigência, como são alguns dos quadros técnicos, faz antever um agravamento da situação. O actual estado da situação prisional em Portugal tem, ainda, fortes implicações no seio das famílias. A reclusão, com a privação da contribuição dos reclusos para a estabilidade afectiva e económica das famílias, vem agravar a situação destas, com as consequências imagináveis na qualidade de vida dos seus membros e a afectação que tal provoca, nomeadamente, nas crianças e no seu rendimento escolar. Os dramas que testemunhamos na situação de muitas famílias deixam- nos sempre chocados impedindo a habituação que seria de esperar com a passagem dos anos a confrontarmo-nos com estas situações. A constatação da quebra significativa dos laços familiares com as situações de prisão dum dos seus membros é uma chaga à qual não podemos ser insensíveis, até porque é um factor de agravamento da situação social da sociedade. A situação das crianças que passam os primeiros anos de vida na prisão, acompanhando as mães no cumprimento de penas, é chocante, desumana e violenta. Com taxas de reincidência superiores a 50% não podemos deixar de pensar nas prisões como instituições fomentadoras da perpetuação da criminalidade. Além de que a análise do perfil dos novos reclusos tem mostrado uma ligação forte ao passado de reclusão de familiares próximos, situando-se, também, em mais de 50% a percentagem de reclusos cujos descendentes vão parar à prisão. A não se fazer uma modificação profunda no actual estado de coisas poderemos dizer que o povoamento das prisões está garantido, o que é dramático, estarrecedor, desumano e sinónimo da falência da sociedade enquanto entidade civilizada. Os responsáveis políticos do mundo (civis, militares e religiosos) têm de ser sensibilizados para a necessidade duma alteração profunda e urgente do modelo de sociedade que aceita estas prisões, deixando de fomentar políticas em que as pessoas são seres para o tecido produtivo e implementando uma verdadeira cultura humanista baseada em pilares de ética e cidadania. Frei Bento Domingues, na sua rubrica semanal do jornal Público deixou-nos a sua visão do momento actual, a partir da Ode Marítima de Álvaro de Campos: “Alain Badiou considera a Ode Marítima um dos maiores poemas do século XX. No entanto, para este filósofo, é impossível – e contudo real, que povos notoriamente orgulhosos da liberdade individual, da privacidade, dos direitos do cidadão e do homem, da singularidade e dos particularismos, se tenham transformado em pouquíssimo tempo numa massa de ovelhas, controlados, vigiados, espiados, monitorizados em toda a sua actividade através de uma tecnologia invasiva e lesiva da discrição e da delicadeza, tratados como malfeitores e terroristas potenciais, enlatados em meios de transporte semelhantes a carne de animal, frustrados, presos e misturados com a má educação generalizada, vexados pelo software que não prevê excepções, obrigados a uma vida programada nos mínimos detalhes e que elimina qualquer experiência do poético, que não deixa espaço para a meditação e para a elaboração da experiência, submersos por um cúmulo de idiotice e por uma publicidade asfixiante.” Esta inspiração na Ode Marítima faz-nos relembrar um dos seus trechos: “As viagens, os viajantes - tantas espécies deles! Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente! Tanto destino diverso que se pode dar à vida, À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma! Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente. A fraternidade afinal não é uma ideia revolucionária. É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo, E passa a achar graça ao que tem que tolerar, E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou! Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses. Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes! A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano. Pobre gente! pobre gente toda a gente!” Um outro poeta, Dante Alighieri, na Divina Comédia, retrata o Vestíbulo do Inferno numa imagem que nos deve fazer reflectir. “O "Vestíbulo do Inferno" ou "Ante-Inferno" é onde estão os mortos que não podem ir para o céu nem para o inferno. O céu e inferno são estados onde uma escolha é permanentemente recompensada (de forma positiva ou negativa), devendo também existir um estado para quem optou pela negação da escolha, uma vez que recusar a escolha é escolher a indecisão. O Vestíbulo do Inferno é a morada dos indecisos e dos covardes que passaram a vida em cima do muro. Eles nunca quiseram assumir compromissos e tomar decisões firmes, por acharem que assim não se teriam de maçar a fazer alguma coisa. No Vestíbulo do Inferno os covardes são condenados a correr em filas atrás de uma bandeira, picados por vespas e moscões”. No retrato do Inferno, Dante coloca-lhe um aviso na porta de entrada “Ó Vós que entrais abandonai toda a esperança”. Temos de impedir que tal aviso se possa aplicar aos reclusos quando entram nos estabelecimentos prisionais. Temos de assumir compromissos transportando a mensagem cristã de amor, perdão e http://pt.wikipedia.org/wiki/Inferno http://pt.wikipedia.org/wiki/Covardia misericórdia para dentro das prisões, sob pena de irmos parar ao Vestíbulo do Inferno. Temos de acabar com estas prisões que são instituições de cariz medieval ainda sobreviventes. O que aqui fica dito pouco traz de novo às preocupações que temos vindo a manifestar desde há já muito tempo. Muito do que aqui está tem constado das Jornadas de Reflexão que a O.V.A.R. tem promovido desde há alguns anos, não se tendo modificado, bem pelo contrário, qualquer pilar estrutural do sistema prisional. Esperamos com a nossaação dar alguns contributos para a melhoria da paz social, tendo em conta as orientações da Doutrina Social da Igreja e a mensagem cristã do perdão, da misericórdia e da caridade, assim como o legado de S. Vicente de Paulo e Frederico Ozanam de ajuda fraterna aos mais necessitados e fragilizados. A inexistência duma pastoral penitenciária em muitas dioceses portuguesas, nas quais se inclui a Diocese do Porto, é uma grande dificuldade, pelo que teremos de continuar a sensibilizar as autoridades eclesiásticas para a sua criação. Não nos podemos esquecer que Jesus Cristo foi preso, torturado e crucificado, por, alegadamente, ter desafiado as leis do seu tempo e ter colocado em causa padrões de comportamento interiorizados na sociedade. Sejamos dignos do seu exemplo não esquecendo que, no pai-nosso, pedimos ao Senhor “…perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido…”. Será que a comunidade, mesmo dos que se reclamam católicos, tem interiorizado este compromisso de perdão para com os reclusos que se encontram nas prisões? Aos responsáveis pelos destinos do mundo, a todos que têm a responsabilidade pela existência das prisões e das situações propiciadoras da prática de actos anti-sociais, deveremos fazer-lhes presente o pedido de Jesus Cristo na cruz “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem”. Maia, 28 de Abril de 2013 Manuel Hipólito Almeida dos Santos O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos – Conselho Central do Porto - SSVP "Não pode haver dores inconsoláveis nem alegrias exclusivas" - Frederic Ozanam Dedicatória à minha avó Se vires um mar vermelho, ajoelha-te que é sagrado, são lágrimas dos meus olhos, que por ti tenho chorado. Se algum dia te ofendi te quero pedir perdão pelas palavras mal pensadas que me saem do coração. Sou culpado, eu já sei pois estou arrependido, imagino-me sem ti; Meu Deus que será de mim, não suporto a ideia de te perder. Se olhares as estrelas, lembra-te sempre de mim, porque em cada uma delas, há um beijo para ti. Eu queria ser água, quando corre lentamente, para te dizer baixinho Que por ti terei imenso carinho. Sou culpado eu já sei e estou arrependido Facto esse que não suportaria Se te perdesse um dia. Se o carinho por si acaba-se, jamais me iria perdoar, mas o que é mais grave é Eu deixar de contigo sonhar. Minha querida avó… António Araújo Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo Outubro de 2014 ABOLIÇÃO DAS PRISÕES: UMA REALIDADE POSSÍVEL? novembro 26, 2014 – A.P. Dores “Damiens fora condenado a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris, levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; na dita carroça, na Praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que está atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e o corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.” O relato acima, apresentado por Foucault em “Vigiar e Punir”, demonstra como era feito o ritual do suplício. O suplício era o método usado para punir os criminosos e restabelecer o poder do soberano, marcando simbolicamente o poder no corpo do condenado. Tal sistema de punição não existe mais, ou, ao menos nos lugares onde existia, foi substituído pelo cárcere. Na Criminologia contemporânea e na crítica do sistema penal, existem duas vertentes principais: o abolicionismo e o minimalismo. Longe de constituírem “caixinhas fechadas”, essas duas vertentes possuem vários nuances teóricos. Surgem a partir da década de 70, fruto de um amplo leque de desconstruções teóricas e práticas. Enquanto o minimalismo busca a máxima contração do sistema penal e alternativas a ele, os abolicionistas entendem que não basta desconstruir apenas o sistema penal, mas a própria cultura punitivista, caso contrário o cárcere seria substituído por outro sistema tão nocivo quanto ele, tal como o suplício deu lugar ao cárcere (dando sobrevida, portanto, à lógica punitiva). Minimalismos e abolicionismos não constituem oposições, mas abordagens com propostas comuns, pois o minimalismo “como meio” tem como horizonte a abolição do sistema penal. O minimalismo que se opõe ao abolicionismo é apenas o minimalismo “como fim em si mesmo”. Apesar do exemplo utilizado do desaparecimento do suplício, que abre brecha para imaginarmos a abolição da prisão, o abolicionismo gera muitas dúvidas, ceticismos e críticas. A crítica mais comum é que o abolicionismo seria “ingênuo” e “idealista”, caindo em um academicismo. Engana-se quem acha que a defesa do sistema penal é feita somente por conservadores de direita. Há quem pense que o problema não seja o cárcere em si, sendo possível usar o sistema penal contra os opressores. Essa é uma visão que alguns criminólogos marxistas possuem. Não quero aqui entrar em todas as visões do Estado que o marxismo adota, mas existe aquela — e que me parece hegemónica — que vê o Estado como um instrumento a ser apropriado pelo proletariado. Portanto, a ideia de usar o sistema penal contra os opressores acaba sendo uma adaptação criminológica da ideia de “ditadura do proletariado”, isto é, um período transitório em que o proletariado toma conta do poder estatal e o usa para suprimir a burguesia e a exploração capitalista. Por isso a visão de alguns que, mesmo o sistema penal oprimindo os marginalizados, seria possível usá-lo contra os próprios opressores. Assim, surgem críticas, tanto à direita quanto à esquerda, sobre o abolicionismo ser “utópico” e “academicista”. A acusação de academicismo seria verdadeira se o abolicionismo não se baseasse em inúmeras pesquisas empíricas, com efeitos verificáveis em diversos sistemas penais do mundo inteiro. Viu- se que o sistema penal é seletivo, já que toda a sociedade comete crimes enquanto apenas uma minoria é punida, composta maioritariamente pelos mais vulneráveis. O sistema não cumpre suas funções de proteção e segurança, além de aumentar a reincidência e violência. Na totalidade de crimes cometidos, a maioria sequer chega ao conhecimento do sistema, constituindo a cifra negra da criminalidade. A cifra dourada, isto é, os crimes de colarinho branco, raramente são punidos, porque aqueles que detém os melhores recursos (financeiros, conhecimento jurídico e advogados) conseguem brechas no sistema. Entre outras diversas críticas, viu-se que todos esses problemas não fazem parte de uma questão temporária, que poderia ser solucionada por meio do aumento da eficácia do sistema penal. Todas essas falhas são estruturais, fazem parte da natureza do sistema. Isso fez com que diversos autores chegassem à seguinte conclusão: o sistema penal não tem solução, devendo ser abolido. O mais curioso disso tudo é que os principais expoentes do abolicionismo, como Louk Hulsman, Nils Christie e Thomas Mathiesen, vivem nos países com as ditas prisões mais “humanas” do mundo, e nem por isso deixaram de ver problemas insuperáveis no sistema penal. Imagine se o suplício existisse até hoje, e as pessoas defendessem a sua reforma: “O problema não é o suplício, mas sim de reformar e humanizar o suplício!” “O suplício é usado pelas elites, mas quem sabe um dia o ‘poder popular’ não poderá supliciar o rei?” “Esses abolicionistas supliciais são muito academicistas e utópicos. Não é possível uma sociedade sem suplícios…” É por isso que a abolição da prisão não é proveniente do academicismo, já que a análise empírica e factual não faz parte de um idealismo ingénuo. As defesas do uso “popular” do Direito Penal não conseguem enxergar que acabam por legitimar uma violência que cai maioritariamente sobre ascamadas mais populares. A estratégia de “tomada do Estado”, para fazer a “ditadura do proletariado”, por mais revolucionária que pareça ser, se trata do mais puro reformismo. Reformismo que legitima um sistema que favorece as classes mais abastadas. É demasiadamente conveniente condenar um bode- expiatório que praticou crimes financeiros, para então relegitimar o sistema vigente como “eficaz”, e continuar punindo outros mil pobres. Idealistas são aqueles que pensam ser possível remediar o irremediável. Como diz a criminóloga Vera Malaguti (que, por sinal, é marxista): é impressionante como que a esquerda esqueceu a tese marxista de fim do Estado. A “esquerda punitiva” serve aos pobres ou à relegitimação de tudo que está aí? Nunca se precisou tanto de uma esquerda libertária, que tenha autocrítica e veja os limites das propostas que estão aí desde sempre. Existe toda uma literatura sobre justiça restaurativa, que substitui a ideia de “crime” por “conflitos humanos”, e que poderia ser aplicada na realidade, mas que, infelizmente, é muito ignorada, inclusive por aqueles que se julgam progressistas. (…) A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? thomas mathiesen* Thomas Mathiesen Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre. Thomas Mathiesen (Oslo, 5 de outubro de 1933), de origem norueguesa, é um dos maiores sociólogos da atualidade. Estudou sociologia na Universidade de Wisconsin (1955) e se graduou em artes na Universidade de Oslo[1] (1958), onde também fez seu doutorado em 1965 e na qual é professor de Sociologia desde 1972. (…) . Tendência de expansão do sistema carcerário Mathiesen destaca o fenómeno de crescimento dos estabelecimentos de reclusão. Segundo ele, países da Europa Central, assim como os Estados Unidos, estão à frente do grande crescimento das populações carcerárias, gerando preocupações com a superlotação do cárcere[14] . A tendência de crescimento do cárcere nos países ocidentais é notória e adquire maior importância se considerada dentro de um contexto mais amplo, analisando-se quatro características que, a partir da década de 1970, culminaram no maior destaque ao estudo do sistema prisional. Primeiramente, os esforços realizados em países ocidentais, a fim de se alterar o curso do desenvolvimento dos sistemas carcerários, durante a década de 1970 e a primeira parte da década 1980, foram superados rápida e facilmente por outras forças. Apesar de ter ocorrido uma pequena diminuição das taxas de encarceramento nos anos 70, com a adoção de medidas alternativas pelos ministros liberais, estas logo foram superadas com a queda dos mesmos. Em segundo lugar, Mathiesen aponta que o crescimento ocorrido nessa época é parte de uma tendência a longo prazo, refletindo-se na atualidade. A seguir, analisa que, em vários países, o crescimento proporcionou uma degradação considerável na qualidade de vida https://pt.wikipedia.org/wiki/Oslo https://pt.wikipedia.org/wiki/5_de_outubro https://pt.wikipedia.org/wiki/1933 https://pt.wikipedia.org/wiki/Universidade_de_Wisconsin https://pt.wikipedia.org/wiki/Universidade_de_Oslo https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen dentro do cárcere, gerando condições degradantes para os presos. Por fim, o crescimento da população carcerária foi seguido de importantes programas de construção de sistemas carcerários [15] . Surgem nos Estados Unidos, junto à busca gananciosa por bens de capitais, as prisões privadas, cujo programa de construção foi dito como “o maior que já foi mapeado”. Tendo em vista esse crescimento, as tendências estatísticas, as condições de vida e os novos programas de construção de cárceres, nota-se que existe um denominador comum entre os sistemas carcerários ocidentais, de modo que a ênfase deve ser dada à inversão do papel do cárcere à medida em que sua importância, como mecanismo de sanção, aumenta. Nesse sentido, Mathiesen aponta duas causas principais para o aumento do número de prisões: houve uma mudança no padrão de criminalização, expandindo-se as condutas consideradas delitivas, além de um aumento geral no nível de punição [17] . A título de exemplo: o "War on Drugs" norte-americano foi um programa que acelerou ainda mais o encarceramento em massa no país, a partir do endurecimento de leis e do aumento de penas, tal como a punição da venda de 650 gramas de heroína ou cocaína com prisão perpétua, sem liberdade condicional, mesmo se o réu fosse primário.[18] (…) Fracasso do cárcere Mathiesen afirma que os argumentos usados em favor do cárcere são generalizados, no sentido de que não se limitam exclusivamente à questão do sistema prisional, mas são, em grande medida, ligados aos propósitos do castigo administrado pelo Estado. Ele, então, confronta essas argumentações, a fim de demonstrar as falácias contidas nessas afirmações. [21] Os propósitos do castigo são divididos tradicionalmente em dois grupos principais: defesa social e retribuição. Segundo a teoria da defesa social, o castigo não tem valor em si mesmo, sendo apenas um meio para proteger a sociedade contra o delito; ele só tem valor em relação ao fim social, seja este a prevenção individual (prevenção de novos atos delitivos por parte do indivíduo que é efetivamente https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen castigado) ou a prevenção geral (prevenção de atos delitivos por parte de indivíduos ainda não castigados). A teoria da defesa social pode variar acerca de certas nuances, porém tem como finalidade comum a proteção da sociedade contra o delito[22] . Já de acordo com a teoria da retribuição [23] , o propósito do castigo é, antes de tudo, satisfazer os clamores por justiça, de modo que a eficácia em termos de prevenção é secundária. A questão que paira sobre a teoria da retribuição reside sobre quais atos devem ser punidos, e quão severo deve ser o castigo, a fim de que a justiça seja satisfeita. A teoria da retribuição se divide em dois subgrupos: por um lado, estabelece a proporcionalidade entre delito e castigo; por outro, estabelece a culpa moral, segundo a qual o castigo pode ser considerado como reflexo de um princípio moral, postulando que o indivíduo deve enfrentar o destino que merece. Mathiesen demonstra que ambas as teorias de justificação do cárcere são equivocadas ou, no mínimo, insuficientes para sustentar sua existência. Em sua argumentação, ele analisa a teoria da retribuição baseada na justiça e, dentro das teorias de defesa social, a prevenção geral, a reabilitação, a interdição (coletiva e individual) e a dissuasão. Prevenção Individual (reabilitação) Aplicada aos presos [24] , Mathiesen não considera a reabilitação como uma reparação ao dano causado, tampouco a restauração de um estado anterior. Entende-se a reabilitação como a superação de um erro ou de uma falha de caráter, de modo a possibilitar a reinserção do delinquente na sociedade. No entanto, ele será sempre considerado inteiramente responsável pelo dano que causou. A partir dessas premissas, os defensores do cárcere como forma de reabilitação não levam em conta o delito como fator condicionado a um contexto de complexas forças sociais que têm influência sobre o indivíduo, mas consideram-no como o exclusivo culpado por sua conduta. Assim, diferentemente de um processo de restauração de figuras políticas ou prédios históricos, que ocorre por meio da ação de uma autoridade [25] , o sucesso ou fracasso do processo de reabilitação de um preso é atribuído ao mesmo, sendo ele responsável pela https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesenhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen desgraça causada, bem como por seu retorno à "vida social normal" [26] . (…) A ideologia do cárcere (…) Todas as teorias para a fundamentação do cárcere não são capazes de defender sua existência, de modo que tal instituição se mantém e se expande por se tratar de uma ideologia: consiste em uma crença da sociedade de modo geral que confere sentido e legitimidade ao sistema prisional. Essa ideologia é fundada em dois elementos principais, um de apoio e outro negativo [51] . (…) Os componentes da negação, segundo os quais não houve fracasso do cárcere, estão adstrito a três diversos âmbitos. O primeiro consiste na vasta gama de meios de comunicação – âmbito externo-, nos quais se produz constantemente o não reconhecimento da ineficácia das prisões [53] . Em verdade, a mídia reconhece o cárcere como uma solução paradigmática ao aumento do número de delitos na sociedade, principalmente após o advento da televisão, que trouxe consigo uma forma inovadora de noticiar, exigindo uma análise sociológica específica. A grande questão sobre a influência da televisão relaciona-se ao local que ela ocupa no espaço público, a partir de uma lógica de comunicação. Para Mathiesen, as mudanças trazidas com a chegada da televisão, após a Segunda Guerra Mundial, foram tão intensas que ajudaram a criar uma sociedade inteiramente nova. Sendo assim, em alguns aspectos, ela teria um caráter quase religioso. De acordo com o pesquisador britânico James Curran [54] , a televisão funciona de maneira similar à igreja na Idade Média: ela une grupos diferentes entre si a partir de valores coletivos, como o consumismo e o nacionalismo. Certos tipos de notícias sobre crimes são veiculadas em detrimento de outras, em razão de interesses alheios ao telespectador. Para que essa seleção não gerasse uma visão distorcida sobre diversos aspectos da https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=James_Curran&action=edit&redlink=1 https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen criminalidade, haja vista que os maiores meios de comunicação sofrem influências externas, a população deveria ter um amplo acesso ao conhecimento e à informação, o que não acontece,[55] . Embora, portanto, ainda existam análises críticas pertinentes, elas perdem espaço para um meio de comunicação que valoriza a imagem e o entretenimento do espectador. No âmbito interno em relação ao componente de negação da ideologia do cárcere encontram-se as instituições voltadas à prevenção do delito (polícia, tribunais e agentes do cárcere), em que, ainda que haja ciência de no mínimo uma falha parcial deste sistema, vigora a aparência: seus agentes aparentam defender que o cárcere é um êxito a fim de conferir sentido ao seu trabalho. Há ainda um terceiro âmbito, o central, formado por grupos profissionais consiste nos administradores, no sentido mais amplo da palavra, do sistema de controle criminal. Nesses grupos prevalece o desentendimento, ignorando-se a ineficácia do cárcere e seus profundos problemas [56] . A abolição do sistema carcerário Levando-se em conta o fracasso do sistema carcerário, deve-se reduzir progressivamente seu papel até sua extinção, por meio do combate ao seu caráter ideológico arraigado. Trata-se de um processo complexo, uma vez que, por se tratar de ideologia, o ônus da prova recai sobre os indivíduos que desafiam sua validade. Mathiesen aponta que a iniciativa contra o sistema prisional deve partir dos setores de esquerda, dotados dos componentes ideológicos de solidariedade e compensação para desafiar a legitimidade conferida o cárcere [57] . No contexto presente, o cárcere parece imutável e permanente, mas há mudanças drásticas no decorrer da história de sistemas repressivos aparentemente sólidos – por períodos curtos e prolongados- que apontam para a possibilidade de sua extinção. Primeiramente, nota-se a extinção à caça às bruxas. Em um período de quatro anos, todo um sistema penal, aparentemente sólido e duradouro, com seus muitos juízes a administradores desintegrou-se e desapareceu por completo na Espanha. A caça às bruxas na Espanha terminou em 1614, cem anos antes de sua abolição em outras regiões, por meio do tribunal local, “La Suprema” [58] . Um exemplo mais recente consiste na abolição da https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen escravidão moderna, que se mantinha muito estável até sofrer um colapso. (…) Proposta para a abolição A partir de uma ideologia de esquerda, Mathiesen elenca dois planos de atuação essenciais para não apenas reduzir, mas extinguir as prisões: legislativo e de preparação política. O plano legislativo depende concretamente da situação do país em seu contexto legal/penal. Nesse plano, é preciso ampliar o espectro de delitos não encarceráveis (despenalização) e circunscrever o objetivo do direito penal (descriminalização), de modo a encontrar soluções civis em detrimento das penais. Nesse sentido, é fundamental a busca pela redução de penas máximas, pelo aumento de medidas de liberdade antecipada e por programas de fechamento de cárceres [63] . A alteração legislativa pode ter efeitos indesejáveis, mas é um caminho necessário para a extinção do cárcere. Tal processo, por se protrair no tempo, deve ocorrer previamente à efetiva implementação de soluções alternativas ao cárcere. Em segundo lugar, é necessária a preparação política. Deve-se fornecer os meios para que a comunidade em geral entenda e aceite as mudanças na legislação a fim de que estas sejam efetivas e duradouras. Assim, é importante implantar o tema na comunidade, expandindo-se além de grupos profissionais já engajados acerca do mesmo. Para combater essa ideologia é preciso um trabalho contra- funcional [64] , destinando recursos a campanhas de informação sobre as funções purgatória, consumista de poder, distratora e simbólica do cárcere (vide tópico Ideologia do Cárcere). Trata-se de uma tarefa árdua, uma vez que é preciso contrariar as atitudes existentes e confirmadas pelos meios de comunicação. Para tal, é importante associar comunicações interpessoais à mídia, em escolas, locais de trabalho e outros ambientes coletivos [65] . Nesse sentido, o objetivo do trabalho contra-funcional é tornar a situação dos presos visível a todos, fomentando a efetiva compreensão dos detentos. Em corroboração ao trabalho contra-funcional implementar-se-á, ainda, o trabalho de contra-negação [66] , voltado à contenção dos mecanismos de negação (central, externo e interno) (vide https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mathiesen tópico Ideologia do Cárcere). Para tal, é imprescindível denunciar o fracasso do cárcere e sua negação - revelando a falácia de todos os mecanismos de defesa social e de justiça. Nesse contexto, é imprescindível uma vinculação dos trabalhos contra- funcional e contra-negação, de modo a possibilitar a construção de uma ideologia esquerda, estabelecendo-se a solidariedade e a compensação por meio daquela. Por conseguinte, simultaneamente com a negação da ideologia carcerária será possível abrir caminho para a fixação de sua ideologia antagónica. (…) PS quer rendimento mínimo para ex-reclusos António Pedro SantosROSA RAMOS - 21/05/2015 09:00:00 – jornal i Costa defende que os presos devem passar o menor tempo possível nas celas e defende salários justos nas cadeias. As prisões e o tratamento dos reclusos nas cadeias merecem preocupação especial no projecto de programa do governo do PS. No documento conhecido ontem, António Costa propõe um conjunto alargado de medidas para melhorar a vida dos presos, as condições nas prisões e a reintegração na sociedade. “Nos primeiros tempos de liberdade”, prometem os socialistas, os ex- reclusos terão direito ao apoio de “casas de saída”, acesso ao rendimento social de inserção e ajuda na procura de trabalho. Será, aliás, criada uma bolsa de emprego para antigos presos, “reforçando os apoios sociais para a reintegração na vida activa”. Nas cadeias haverá melhorias nas condições de higiene e segurança – que devem ser “compatíveis com a dignidade humana” – e o tempo de permanência diária dos reclusos nas celas ou nas camaratas deverá ser reduzido, com os presos a ocuparem o tempo com “actividades multidisciplinares”. Para isso, o programa promete investir na formação profissional dos reclusos e no trabalho prisional – que, defende o PS, deve ser remunerado de forma “justa”. Para garantir emprego a todos os reclusos, o empreendedorismo nas zonas económicas penitenciárias deverá ser estimulado, de maneira a “aumentar a oferta de trabalho em meio prisional”. E será criado um “Regime dos Contratos Individuais de Formação, Reinserção e Trabalho em Meio Prisional” para incentivar os reclusos a aderirem a planos individuais que “incluam o trabalho e a formação profissional”. http://ionline.pt/autor/rosa-ramos As famílias dos reclusos também não são esquecidas no programa eleitoral. Terão direito, promete António Costa, a “adequados níveis de informação e de apoio social”. Outra das propostas passa por introduzir um novo conceito de pena de prisão: cumprida em casa, “com vigilância electrónica e possibilidade de saída para trabalhar”. Os socialistas comprometem--se ainda a traçar um plano, a dez anos, no sentido de “racionalizar e modernizar” a rede de cadeias, reajustando ao mesmo tempo a oferta de centros educativos. Uma das prioridades nesta área será, aliás, combater a sobrelotação das prisões – ainda que não seja explicado como. No campo da prevenção da reincidência no crime, o programa prevê a criação de um “Conselho da comunidade” em cada prisão – um órgão de ligação com as comunidades locais e as empresas em que terão assento as câmaras, as empresas, as instituições locais e os próprios reclusos. Por um mundo sem cárcere: Projeto de Deus e compromisso de cristãs e cristãos. Padre Valdir João Silveira Coordenador Nacional da Pastoral Carcerária - Brasil “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano de graça do Senhor.” (Lucas 4, 18-19) A Bíblia narra o Projeto de Deus. Neste projeto, Deus é o aliado dos que são marginalizados e marginalizadas pelo sistema injusto. Ele entra na história com novo caminho: promover a liberdade e a vida para todos. Todavia, este projeto está sempre em conflito com o projeto das nações que alicerçam sua riqueza e seu poder sobre a escravidão e a morte do povo. A luta para manter o Projeto de Deus vivo, dentro da história, é o ponto de honra do povo de Deus. A Bíblia narra a história de libertação: libertação da escravidão, libertação de um povo – povo de Israel; libertação do pecado; libertação do cativeiro, da prisão. Vamos agora falar de um Deus que vem para junto das pessoas, entra na história da humanidade para libertá-la. Libertar e salvar, na Bíblia, são palavras sinónimas. A Bíblia é a Historia de um Povo que Deus liberta de todas as Prisões, como foi dito na Campanha da Fraternidade de 1997, (que teve o tema “A Fraternidade e os Encarcerados”, com o lema “Cristo Liberta de todas as prisões”). O texto bíblico é repleto de passagens que fundamentam a contrariedade do Projeto de Deus com a situação cativa do povo. No livro do Êxodo, capítulo 3, 7-10, estão registrados os acontecimentos da libertação do povo de Israel no Egito e seu desenvolvimento como nação e, acima de tudo, como comunidade: “E disse o Senhor: Tenho visto atentamente a aflição do meu povo, que está no Egipto, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus opressores, porque conheci as suas dores. Portanto desci para livrá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela terra, a uma terra boa e larga, a uma terra que mana leite e mel; ao lugar dos cananeus, dos heteus, dos amorreus, dos perizeus, dos heveus e dos jebuseus. E agora, eis que o clamor dos filhos de Israel é vindo a mim, e também tenho visto a opressão com que os egípcios os oprimem. Vem agora, pois, e eu te enviarei a Faraó para que tires o meu povo, os filhos de Israel, do Egipto”. Deus Viu, Ouviu, Conheceu e Desceu para Libertar o povo prisioneiro, escravo no Egipto. Ele envia Moisés para tirar, libertar, o seu povo da escravidão. Assim inicia a história da luta de Deus para libertar e salvar o Povo aflito que clama por libertação. O Papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, no número 187, nos alerta e convoca, com doçura e com firmeza de Pai, todo o Povo de Deus a agir como instrumento de Deus pela Libertação, e censura quem fica surdo a este clamor: “Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam integrar-se plenamente na sociedade; isto supõe estarem docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo. Basta percorrer as Escrituras para descobrir como o Pai bom quer ouvir o clamor dos pobres: “Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egipto, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de os libertar (…). E agora, vai; Eu te envio...” (Ex 3,7-8.10). E Ele mostra-se solícito com as suas necessidades: “Os filhos de Israel clamaram, então, ao Senhor, e o Senhor enviou-lhes um salvador” (Jz 3,15). Ficar surdo a este clamor, quando somos os instrumentos de Deus para ouvir o pobre, coloca- nos fora da vontade do Pai e do seu projeto, porque esse pobre “clamaria ao Senhor contra ti, e aquilo tornar-se-ia para ti um pecado” (Dt 15,9). E a falta de solidariedade, nas suas necessidades, influi diretamente sobre a nossa relação com Deus: “Se te amaldiçoa na amargura da sua alma, Aquele que o criou ouvirá a sua oração” (Sir 4,6). Dentre tantas passagens do Antigo Testamento que falam sobre a libertação, quero recordar algumas como a do profeta Isaías, que foi considerado o profeta messiânico, visto que estava totalmente incumbido de anunciar a ideia de que seu povo seria uma nação abençoada. Ou seja, Isaías proclamava o Messias que Deus enviaria e que traria a paz, a justiça e a cura espiritual para o mundo e a salvação de suas vidas por toda a eternidade. Diz ele: ”Tu vês muitas coisas, mas não as observas; ainda que tens os ouvidos abertos, nada ouves. Foi do agrado do Senhor, por amor da sua própria justiça, engrandecer a lei e fazê-la gloriosa. Não obstante, é um povo roubado e saqueado: todos estão enlaçados em cavernas e escondidos em cárceres; são postos como presa, e ninguém há que os livre; por despojo, e ninguém diz Restitui” (Isaías 42, 20-22). O Profeta Isaías viveu entre os anos de 765 e 681 antes de Jesus Cristo, e parece que ainda é muito atual nos dias de hoje. Retomemos o que ele falou: “escondidos em cárceres; são postos como presa, e ninguém há que os livre; por despojo, e ninguém diz Restitui”. Ele clama para tirar o povo dos cárceres; não deixar ninguém lá. Pois é um local de pessoas pobres, espoliadas e saqueadas dos seus bens, e censura quem não age contra esta realidade, quem permite que estas pessoas fiquem presas: “Tu vês muitas coisas, mas não as observas; ainda que tens osouvidos abertos, nada ouves!”. Outra passagem deste profeta, que Jesus depois vai tomar como o seu plano de vida neste mundo (Lc 4, 16-19), está em Isaías 61, 1: “O Senhor Deus me deu o seu Espírito, pois ele me escolheu para levar boas notícias aos pobres. Ele me enviou para animar os aflitos, para anunciar a libertação aos escravos e a liberdade para os que estão na prisão”. Marca-me muito, também em Isaías, como uma fala dirigida aos/às agentes de Pastoral Carcerária, convidando cada um e cada uma para o trabalho junto às pessoas presas, o capítulo 42, versículos 6 e 7: “Eu, Yahweh, te convoquei em justiça; tomei-te pela mão e guardei-te; Eu te estabeleci mediador da Aliança com o povo e Luz para as nações; a fim de abrir os olhos dos cegos, para tirar da prisão os presos e do cárcere os que habitam em trevas”. Ou seja: Missão do profeta; Missão de Jesus Cristo e Missão dos/as discípulos/as e seguidores/as de Jesus Cristo; Missão dos/as agentes de Pastoral Carcerária1. 1 É recorrente entre os profetas a denúncia das realidades de opressão e o anúncio da liberdade, da vida e de um mundo sem correntes. Lembremos do profeta Naum (1, 13), quando afirma que Javé disse “Mas agora quebrarei o jugo que pesava sobre ti, e romperei as tuas cadeias”. “O sonho de Deus, o mundo sem prisões”, também está fundamentado em mais uma passagem do Antigo Testamento, agora em outro livro do Pentateuco, o Levítico: “E santificareis o ano qüinquagésimo, e apregoareis liberdade na terra a todos os seus habitantes; ano de jubileu será para vós; pois tornareis, cada um à sua possessão, e cada um à sua família” (Lv 25, 10). Pregoar a liberdade na terra a todos os seus habitantes, não seria também compromisso de todos nós, em especial, dos que melhor conhecem a realidade dos que se encontram atrás das grades? Nos Salmos não é diferente. O salmista ressalta a dor do preso e o pedido da liberdade: “para ouvir o gemido dos presos, para libertar os sentenciados à morte” (Salmo 102(101), 21). No Salmo 69 lemos: “Bendito seja o Senhor Deus de Israel, porque a seu povo visitou e libertou!”. Na nota de roda pé da Bíblia, edição Pastoral, há um comentário que atualiza este versículo: “Quando o pobre e o fraco são libertados, também os outros se alegram e se encorajam, descobrindo que Deus está aliado com eles. Essa é a maior glória para Deus”. O “Mundo sem cárceres” no Novo Testamento Iniciamos pelo Evangelho de Lucas pois ali se encontra o programa e o projeto de vida de Jesus Cristo. No capítulo 4 temos a belíssima síntese da missão de Jesus Cristo: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano de graça do Senhor.” O que me chama muito a atenção é que num texto tão resumido, tão sintetizado, as palavras libertação e presos estão no centro do programa do trabalho de Jesus Cristo. Algumas outras passagens do Novo Testamento que podem nos ajudar em nosso aprofundamento Bíblico na luta contra o encarceramento em massa e por um mundo sem prisões, são as seguintes: - 2Corintios 3,17: “Ora, o Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito do Senhor aí há liberdade”. - Gálatas 5,1.13: “Para a liberdade Cristo nos libertou; permanecei, pois, firmes e não vos dobreis novamente a um jogo de escravidão”. - Gálatas 4,13: “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade”. Agora, se lutar pelo fim dos cárceres é uma utopia que devemos deixar de lado, então devemos também deixar de lado o anúncio da Palavra de Deus e a defesa da vida, de uma vida digna, conforme disse Jesus: “eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Jesus veio e anunciou o Reino do Pai, o Reino de Deus. Anunciou e viveu até o extremo, dando a vida pelo projeto do Reino. Ele resumiu toda a Lei e a ação dos Profetas em um único mandamento: “Amar a Deus e ao Próximo como a si mesmo” (Mt 22, 36-38). E também deixou bem claro como deve ser o nosso relacionamento com os pequeninos, entre eles os presos. Disse ele em Mateus 25, 40: “O que fizeres a um dos pequeninos foi a mim que o fizestes”. O desafio de um mundo para que todos tenham vida, e vida em abundância, desejado por Jesus, passa necessariamente pelo fim do encarceramento, pois todos sabem que presídio é local de aniquilamento da pessoa, de destruição e de negação dos valores humanos, cristãos e de cidadania. Aceitar o Sistema Prisional, que é um Sistema de Morte e de destruição é se colocar contra aquilo que a Bíblia prega e que Jesus ensinou. Eu não consigo servir a Cristo e aceitar o mundo de exclusão, de violência, de vingança e de punição que é o mundo encarcerado. Eu não consigo servir a dois senhores: a Jesus Cristo e ao Sistema Penal, a este sistema que tortura, muitas vezes até a morte, que é um sistema de punição, de vingança e de ódio. A “Agenda Nacional pelo Desencarceramento” (http://carceraria.org.br/agenda-nacional-pelo- desencarceramento.html), que apresenta dez diretrizes que se articulam e se complementam entre si, visa justamente traçar um caminho para a efetivação de uma sociedade liberta de prisões e de grades. Quando alguém me diz que concorda com as dez propostas desta “Agenda”, esta pessoa está totalmente afinada com a nossa luta pelo fim do cárcere; com o objetivo maior de “Um mundo sem cárceres”. Mas ainda restará para algumas pessoas, com certeza, a seguinte dúvida: até que estas propostas da “Agenda” sejam executadas, como agir, hoje, com os classificados como “criminosos”? Aí entra outro desafio. O judiciário que temos, que é considerado a solução para os conflitos e para a violência em nosso país, tem mostrado um triste e doloroso resultado. As prisões no Brasil, como todos podem constatar no último relatório do Ministério da Justiça, lançado no mês de junho de 2015, amontoam aproximadamente 607.000 mil pessoas presas. Contando com os presos em prisão domiciliar, temos um total de 700.231 aprisionadas. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos (2,2 milhões) e da China (1,6 milhão). Enquanto que a média mundial de encarceramento é de 144 presos para cada 100 mil habitantes, no Brasil o número sobe para 300. Entre janeiro de 1992 e junho de 2013, enquanto a população geral cresceu 36%, o número de pessoas presas aumentou 403,5%. Ao mesmo tempo que aumentou as prisões, disparou o número de homicídios no Brasil. Como observa o “Mapa da Violência 2015 – Mortes Matadas por Armas de Fogo”, do governo federal, se no período compreendido entre os anos de 1980 e 2012 a população teve um crescimento em torno de 61%, as mortes matadas por arma de fogo cresceram 387%, mas entre os jovens esse percentual foi superior a 460%. Entre os jovens de 15 a 29 anos, esse crescimento foi ainda maior: passou de 4.415 vítimas em 1980, para 24.882 em 2012: 463,6% de aumento nos 33 anos decorridos entre as datas. Estes são os dados. Estes são os fatos em números. Esta é a atual realidade do Sistema de Justiça e Prisional do País. Nós, cristãos/ãs e http://carceraria.org.br/agenda-nacional-pelo- agentes de Pastoral Carcerária, não podemos compactuar com esta realidade. Isto é uma ofensa a Deus e um clamor aos céus! Ao mesmo tempo, outra pauta central da Pastoral Carcerária é a Justiça Restaurativa. Esta outra perspectiva de resolução de conflitos, em contraposição ao sistema penal, já vem sendo aplicada em vários países do mundo e tendo como resultado a queda da violência e o fechamento de presídios. Veja os dados dos países que estão fechando unidades prisionais e onde está havendo uma grande queda no número dos presos, como por exemplo a Holanda e a Suécia (na Holanda foram fechadas 11 cadeias. Na Suécia, 4). Países como a Nova Zelândia, o Canadá, a Austrália, o Reino Unido, a Colômbia, a Espanha, a África do Sul, a Argentina, o Chile e o Japão adotam a Justiça Restaurativa, todos nesta busca de redução da criminalidade e do sistema carcerário.Em maio deste ano participei, em Washington (EUA), de um encontro chamado “Dias Ecuménicos de Advocacia”, que teve como tema “Quebrando as cadeias: Encarceramento em Massa e Sistemas de Exploração”. Lá estavam reunidas mais de 1.000 pessoas de todos os continentes do mundo, representantes de 53 igrejas e denominações religiosas diferentes. O objetivo ali era um só: lutar por um mundo sem cárcere. O único representante de Pastoral Carcerária presente era eu. Isso me fez refletir: no Brasil, a luta contra o encarceramento em massa e por um mundo sem prisões ainda é muito tímida e pequena. Pode-se concluir, então, que em nosso país o que vigora é um contra- testemunho da caminhada do Povo de Deus, do Projeto do Reino e da Vida de Jesus que estão reveladas na Sagrada Escritura? No início desta conversa citei o Papa Francisco. Eu gostaria de encerrar lembrando de outra orientação que ele dá para todos nós, da mesma Exortação Apostólica: “A missão no coração do povo não é uma parte da minha vida, ou um ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice ou um momento entre tantos outros da minha vida. É algo que não posso arrancar do meu ser, se não me quero destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar...”. (Evangelii Gaudium, 273) Vamos firmes na fé, nesta missão que nos foi confiada por Deus, rezando e lutando, mulheres e homens juntos e em comunhão, por um mundo sem prisões! Agosto 2015 Momentos duma visita a uma prisão É sábado, 17 de outubro. Às nove horas passo o portão do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos, após o que se segue a travessia do pórtico de detecção de metais antes de me embrenhar nos múltiplos espaços desta prisão (antiga colónia penal). Sou voluntário e cumpro mais uma das minhas visitas semanais. Ao sábado de manhã a primeira acção é a participação com os reclusos, na missa celebrada na capela da prisão. (Utilizo o termo “recluso” quando me refiro à pessoa em abstracto e utilizo o termo “companheiro” quando me refiro à pessoa na sua individualidade.) É sempre um momento emocionante pelo contacto, em ambiente de comunhão fraterna, com seres humanos que a comunidade afastou do seu convívio e que mostram sentimentos de fé e profundidade espiritual que não seriam de esperar em quem tem a conotação de criminoso e de perigo público. E nem os muitos anos que levo nesta missão me retiram a sensibilidade para a apreciação do comportamento religioso daqueles que considero como irmãos. É tocante a sinceridade com que rezam o pai-nosso (…perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido…). Hoje estão presentes na missa vinte e cinco companheiros, do regime comum e da clínica psiquiátrica, dos mais de 500 que estão aqui presos. Um em cadeira de rodas, outro amparado por colegas, uns com evidentes transtornos psíquicos, outros cientes da injustiça de estarem presos, acusados de crimes desde os mais leves até aos mais hediondos, todos irmanados na mesma esperança no alívio vindo do Além. Antes de iniciada a missa há que preparar o espaço e disso se encarregam duas voluntárias e alguns reclusos. Elas varrem o chão e colocam nas jarras as flores que trouxeram. Eles preparam o altar e abrem o missal nas leituras do dia, assim como distribuem os cadernos com os cânticos que vão ser entoados. É distribuído um folheto com a mensagem dominical, elaborado pelo capelão prisional, P. João Matias, que permite o acompanhamento dessas leituras do dia. Na reflexão constante do folheto de hoje, a partir da leitura do evangelho segundo S.Marcos (10,35-45), o P. Matias ressalta a noção de quem são os maiores: “É maior quem serve mais. A grandeza não vem pois nem do dinheiro, nem dos cargos elevados, nem dos títulos académicos, nem de talentos de garantida cotação social. Vem, simplesmente, do grau de amor com que procuramos ser úteis e servir. Grandes são aqueles Pais que arranjam sempre tempo para estar com seus filhos, para os escutar e responder às suas infinitas perguntas, para brincar com eles e, junto deles, descobrirem de novo a vida. Grandes são aquelas Mães que enchem o lar de calor e de alegria; mulheres que não têm preço, pois sabem dar a seus filhos o que eles mais precisam para enfrentarem confiadamente a vida. Grandes são os Casais que vão amadurecendo o seu amor dia a dia, aprendendo a ceder, cuidando generosamente da felicidade do outro, perdoando-se mutuamente nos mil atritos da vida. Grandes são aquelas pessoas, jovens e adultos, que nas nossas comunidades mantém de pé e com vida os serviços, a ajuda fraterna. Aqueles jovens e adultos que dão vida a clubes, associações, movimentos e sindicatos, por onde passa o convívio são, a cultura, a solidariedade, a luta pela justiça e pelo progresso, gente anónima sem a qual este mundo seria mais pobre, mais triste, mais cínico. Mais agreste e desumano.” Este apelo à grandeza calou fundo em muito dos presentes. E não deixou de trazer a lembrança da ausência da visita de muitos pais, irmãos, cônjuges, filhos e amigos, no apoio a quem se encontra na situação deprimente de internado na prisão. A participação dos reclusos, quando lhes é dada a oportunidade de serem ouvidos, revela-se de grande qualidade e mostra a desumanidade em que estão colocados no ambiente prisional. Tal qualidade voltou a evidenciar-se quando visitei a seguir a ULD (Unidade Livre de Drogas) e estive a falar com um grupo de companheiros lá internado. Dramas, carências e necessidades são mais que muitas. Desde o pouco, ou quase nulo, apoio psicológico, falta de assistência jurídica, indefinição do seu futuro e atropelos ao direito à dignidade, tornam a vida dum recluso em sub-humana. Falamos dos seus casos, das alegrias e tristezas da vida, dos factos relevantes acontecidos e do que se pode fazer para melhorar a sua condição e das suas famílias. E não posso referir aspetos pessoais mais concretos para não lesar o direito à privacidade nem prejudicar aqueles que já estão profundamente lesados. É que as retaliações são moeda corrente nas prisões. Saio da ULD com mais um pedido: a bola de futsal utilizada no recreio, que a O.V.A.R.(obra vicentina a que pertenço) tinha oferecido, rebentou e pediram-me se eu a poderia mandar consertar. Não a pude trazer pois torna-se necessária a autorização da pessoa responsável e, como é sábado, não estava presente no estabelecimento prisional. Na próxima visita espero já espero poder corresponder ao solicitado. No caminho para a prisão passo num quiosque e compro os jornais do dia, de acordo com as preferências dos companheiros com quem me vou encontrar. Para uns o Jornal de Notícias, para outros o Jogo, para outros, ainda, o Le Monde Diplomatique, o Público ou o Expresso. É que há reclusos com diversos níveis de gosto e instrução. As voluntárias também são portadoras de revistas. Hoje, um companheiro pediu-me um dicionário de Português-Inglês pois quer aprofundar o conhecimento nesta língua (na próxima visita ser-lhe-á entregue). Em quase todas as visitas levo livros escolares que me são oferecidos por amigos ligados ao sistema educativo (Bem hajam!), no sentido de estimular o prosseguimento dos estudos. No dia de hoje dois factos tornaram mais saliente a minha visita. Um deles relacionou-se com um pedido que há quinze dias tinha feito a um companheiro para registar as refeições que lhe foram fornecidas durante duas semanas. Pois, mal ele me viu veio ter comigo e entregou-me um rol de folhas com as ementas desse período, com apreciações qualitativas e quantitativas, comprovando a debilidade da alimentação. Não tenho razão de queixa do respeito que os reclusos têm tido para comigo sobre os compromissos que assumem. Mas sensibilizou-me o cuidado e o rigor com que o meu pedido foi satisfeito. Não digo o nome do companheiro, pelas razões atrás expostas, mas redobrarei a minha dedicação por ele. Fiquei com mais elementos para aminha luta contra este sistema de punição. No outro caso, ocorreu uma situação que me deixou profundamente entristecido. Um companheiro tinha-me pedido para falar com o seu advogado (defensor oficioso) no sentido de o sensibilizar para dar maior atenção à sua situação jurídica, no sentido de desencadear o processo de liberdade condicional que, na sua opinião, já lhe deveria ter sido concedida. Hoje levava o resultado do contacto que mantive com o advogado. Este prometeu-me que iria proceder em conformidade, apesar de alegar que não poderia deslocar-se à prisão para falar com o recluso, pois o tempo que esta deslocação exigiria não é suficientemente compensado monetariamente. Quando pedi para chamarem o companheiro foi-me dito que se encontrava internado em cela de isolamento, já que ontem se tinha tentado suicidar. Fiquei desolado! Eu, que pensava ir dar-lhe uma notícia que o animasse, fui confrontado com mais uma queda. Coragem companheiro! Vou continuar a apoiar-te. Saí ao fim da manhã do estabelecimento prisional, com um sentimento misto de amargura e de querer perseverante. Há muitos anos que, de forma semelhante, saio das visitas às prisões. Move-me a reflexão de Emídio Santana sobre as prisões, deixada no seu livro “Onde o homem acaba e a maldição começa”. No prefácio a este livro começa por dizer-nos Emídio Santana: “…É afinal o submundo dos ex-homens, dos malditos e dos proscritos, o lugar onde o homem acaba e a maldição começa com o seu quotidiano e onde todos os problemas humanos se enxergam e se colhem, numa infernal cultura ou nos pormenores de várias tragédias humanas arquivadas nos registos judiciais que, quando vistos em separado, se tornam nítidos e explícitos.” Dou conforto a esse sentimento assimilando a exortação de Frederic Ozanam; “Não pode haver dores inconsoláveis nem alegrias exclusivas”. Continuarei, sem juízos pré-concebidos sobre as faltas dos outros (o que eu tenho é de pedir perdão pelas faltas que cometo), a partilhar as minhas alegrias e a levar o consolo a quem dele precisa. Por pouco que se tenha deve chegar sempre para ajudar os outros. Manuel Hipólito Almeida dos Santos Outubro 2015 Por um mundo sem prisões “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano de graça do Senhor.” (Lucas 4, 18-19) A Pastoral Carcerária do Brasil, coordenada pelo P. Valdir Silva, divulgou uma tomada de posição exigindo “um mundo sem cárceres”. A seguir encontram-se alguns excertos dessa tomada de posição, cujo texto completo poderá ser encontrado em: http://carceraria.org.br/agenda-nacional-pelo-desencarceramento.html ………………………………………………………………………… …………………………………………………… “A Bíblia narra o Projeto de Deus. Neste projeto, Deus é o aliado dos que são marginalizados e marginalizadas pelo sistema injusto. Ele entra na história com novo caminho: promover a liberdade e a vida para todos. Todavia, este projeto está sempre em conflito com o projeto das nações que alicerçam sua riqueza e seu poder sobre a escravidão e a morte do povo. A luta para manter o Projeto de Deus vivo, dentro da história, é o ponto de honra do povo de Deus. A Bíblia narra a história de libertação: libertação da escravidão, libertação de um povo – povo de Israel; libertação do pecado; libertação do cativeiro, da prisão. Vamos agora falar de um Deus que vem para junto das pessoas, entra na história da humanidade para libertá-la. Libertar e salvar, na Bíblia, são palavras sinónimas. A Bíblia é a Historia de um Povo que Deus liberta de todas as Prisões.” …………………………………………………………………………………… ………………………………………… “O Profeta Isaías viveu entre os anos de 765 e 681 antes de Jesus Cristo, e parece que ainda é muito atual nos dias de hoje. Retomemos o que ele disse: “escondidos em cárceres; são postos como presa, e ninguém há que os livre; por despojo, e ninguém diz Restitui”. Ele clama para tirar o povo dos cárceres; não deixar ninguém lá. Pois é um local de pessoas pobres, espoliadas e saqueadas dos seus bens, e censura quem não age contra esta realidade, quem permite que estas pessoas fiquem presas: “Tu vês muitas coisas, mas não as observas; ainda que tenhas os ouvidos abertos, nada ouves!”. …” E ainda em Isaías 61, 1: “O Senhor Deus me deu o seu Espírito, pois ele me escolheu para levar boas notícias aos pobres. Ele me enviou para animar os aflitos, para anunciar a libertação aos escravos e a liberdade para os que estão na prisão”. ………………………………………………………………………… …………………………………………………… “O sonho de Deus, o mundo sem prisões”, também está fundamentado em mais uma passagem do Antigo Testamento, no livro do Pentateuco, o Levítico: “E santificareis o ano quinquagésimo, e apregoareis liberdade na terra a todos os seus habitantes; ano de jubileu será para vós; pois tornareis, cada um à sua possessão, e cada um à sua família” (Lv 25, 10). Apregoar a liberdade na terra a todos os seus habitantes, não seria também compromisso de todos nós, em especial, dos que melhor conhecem a realidade dos que se encontram atrás das grades? …………………………………………………………………………………… ………………………………………… “O desafio de um mundo para que todos tenham vida, e vida em abundância, desejado por Jesus, passa necessariamente pelo fim do encarceramento, pois todos sabem que a prisão é local de aniquilamento da pessoa, de destruição e de negação dos valores humanos, cristãos e de cidadania. Aceitar o Sistema Prisional, que é um Sistema de Morte e de destruição é colocar-se contra aquilo que a Bíblia prega e que Jesus ensinou. Eu não consigo servir a Cristo e aceitar o mundo de exclusão, de violência, de vingança e de punição que é o mundo encarcerado. Eu não consigo servir a dois senhores: a Jesus Cristo e ao Sistema Penal, a este sistema que tortura, muitas vezes até a morte, que é um sistema de punição, de vingança e de ódio.” Nesta tomada de posição P.Valdir cita o Papa Francisco: “O Papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, no número 187, alerta e convoca, com doçura e com firmeza de Pai, todo o Povo de Deus a agir como instrumento de Deus pela Libertação, e censura quem fica surdo a este clamor:”……………………………………………. “A missão no coração do povo não é uma parte da minha vida, ou um ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice ou um momento entre tantos outros da minha vida. É algo que não posso arrancar do meu ser, se não me quero destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar...”. (Evangelii Gaudium, 273) ………………………………………………………………………… ……………………………………………………”Vamos firmes na fé, nesta missão que nos foi confiada por Deus, rezando e lutando, mulheres e homens juntos e em comunhão, por um mundo sem prisões!” Manuel Hipólito Almeida dos Santos O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos - S.S.V.P. – Porto Novembro de 2015 Exmos.Senhores Deputados da Assembleia da República Excelentíssimos Senhores Deputados da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República Completa-se, este ano, o prazo de doze anos previsto como tempo máximo para superar os problemas detetados e constantes do relatório do programa de reforma do sistema prisional, elaborado pela Comissão de Estudo e Debate da Reforma do Sistema Prisional presidida pelo Prof. Freitas do Amaral. Infelizmente, os indicadores sobre as prisões portuguesas continuam muito abaixo da média europeia, que era a meta indicada nesse relatório. O número de óbitos continua a duplicar a média europeia, o tempo médio de cumprimento de pena efectiva aumentou para o triplo de média europeia, a sobrelotação, apesar de esticadas as instalações, continua em alta. À alegada quebra da criminalidade corresponde uma subida do número de presos. A alimentação não melhorou (piorou!) e a restrição á entradade alimentos do exterior coincidiu com queixas contra a fome, tratadas com castigos arbitrários contra quem reclama. Os serviços de saúde continuam deficientes e a higiene piorou com a falta de produtos de primeira necessidade. Alterou-se o enquadramento criminal do consumo de drogas. Os doentes com tratamentos mais caros continuam a ver ignoradas as prescrições médicas adequadas. Diminuiu o número de pessoas em prisão preventiva mas os critérios para a sua utilização continuam a ser incompreensíveis e injustos. A reinserção social ganhou destaque no nome da direcção geral mas o orçamento para essa finalidade, que nunca esteve a funcionar devidamente, diminuiu. As penas de privação de liberdade para menores de 21 anos continuam a verificar-se ao arrepio do proposto no relatório de há 12 anos. A utilização do trabalho dos presos como trabalho escravo é uma afronta e uma desumanidade. A impossibilidade do direito à própria defesa viola o direito internacional de que Portugal é Estado-Parte. A violência e a arbitrariedade como forma de gestão quotidiana das prisões nunca foi posta em causa (pelo contrário: foi institucionalizada em referência às práticas americanas da prisão de Monsanto). As universidades e os estudiosos continuam sem condições para saber o que se passa dentro das prisões, de que a ausência da publicação, desde 2010, do relatório de actividades da DGRSP e dos relatórios dos estabelecimentos prisionais é um exemplo. As inspeções continuam a não mostrar resultados palpáveis. O alheamento dos partidos políticos e do próprio Ministério da Justiça sobre o que se passa nas prisões apanha os responsáveis de surpresa sobre as perversidades como as que os jornalistas relataram recentemente, apesar das declarações do Governo em funções e da próxima visita do Comité contra a Tortura do Conselho da Europa. Faz quase vinte anos que Vossas Excelências decidiram acabar com a política de amnistias sucessivas, que compensavam a tendência para o encarceramento em massa. Esgotado o prazo que o Estado deu a si próprio para humanizar o sistema de cumprimento de penas, não havendo ocorrido mudanças suficientes para que a descrição do que se passa hoje seja diferente daquilo que foi considerado intolerável então, tendo em conta as recomendações do Papa Francisco elogiado por muitos de Vossas Excelências, dada a tensão duramente acumulada nas prisões portuguesas, em pessoas, profissionais, detidos e condenados, subordinados a ordens do Estado, julgamos ser oportuno encetar um processo de amnistia acompanhado de uma avaliação do que correu mal para que a democracia não tenha sabido tratar os seus presos com a dignidade que a ditadura não podia reconhecer. Mais do que um novo ciclo político, Portugal precisa dum novo ciclo histórico. Como Sua Excelência o Senhor Presidente da República tem salientado, a moral dos portugueses será decisiva para enfrentar os tempos ainda mais difíceis que nos esperam. Ao olhar para as prisões, ao atender a como se tratam os prisioneiros, vê-se a solidariedade dum povo, a sua civilidade, terá dito Dostoievski. Uma amnistia não muda o fundamental, mas pode dar um sinal de partida que, desta vez, não seja em falso. Carta de teor semelhante foi enviada a Sua Excelência o Senhor Presidente da República. Com as nossas cordiais saudações Em 02 de Abril de 2016 Manuel Hipólito Almeida dos Santos – Presidente da O.V.A.R. - Obra Vicentina da Auxílio aos Reclusos António Pedro Dores - ACED REPUGNÂNCIA PERANTE O SECURITARISMO 23/06/2016 ANTÓNIO DORES A violência provoca repugnância aos seres humanos civilizados (Elias 1990). Mas nem toda a violência causa repugnância do mesmo modo. Nos textos sociológicos pode detetar-se repugnância face à violência avulsa e alheamento complacente pela violência organizada institucionalmente (Dores 2014). Nos textos jornalísticos, as referências à violência partem do princípio de que é evidente o que seja a violência e que ela é natural em situações sociais com perfil desqualificado (Dores 2013). As descrições jornalísticas dos crimes, seguindo de perto as versões policiais, resumem a sua pesquisa à determinação do culpado. Exploram as emoções profundas que tal indicação provoca nos leitores. Para os fidelizar e não perder, os jornalistas do crime têm a necessidade e o cuidado de jamais identificar o culpado com o perfil social do leitor. Assegura assim a criação de um espaço-tempo de indignação contra desconhecidos relativamente inócuo, pelo menos no imediato. Desconhecidos, cujos perfis morais podem representar defeitos de personalidade atribuíveis a pessoas conhecidas mas, ao mesmo tempo, localizadas suficientemente longe, em termos sociais, para permitir a escolha do leitor: descartar o assunto ou levá-lo à consideração dos amigos ou familiares que se comportam como os criminosos expostos nos jornais. O jornalismo do crime tem uma função social de uniformizar alguma moral cívica e dar conteúdo socialmente discriminatório a distinções culturais (Bourdieu 1979). Desse reforço de práticas discriminatórias a teoria social também não escapa (Dores 2016). Claro, ambas as disciplinas são apenas pontas de icebergs de práticas e sentimentos sociais profundamente arreigados na vida social. Icebergs que cabe à sociologia e a outras ciências sociais e a ciências de saúde e disciplinas doutrinárias descobrir. Fazê-lo requer mútua colaboração, em vez de encobrimento cognitivo das realidades profundas por detrás dos http://sociologia.hypotheses.org/347 http://sociologia.hypotheses.org/author/sociologia crimes, a pretexto de darem prioridade a sentimentos corporativos e a práticas de diferenciação disciplinar estanque. Os juristas tratam das garantias do processo criminal e param a sua actividade à porta das prisões, onde os presos são tratados de acordo com os preceitos administrativistas como coisas. Os assistentes sociais e psicólogos e outro pessoal de saúde ocorre às prisões para manter vivos e sem sintomas de doenças os presos doentes do encarceramento. Mesmo quando os relatórios de saúde são perentórios a assinalar graves riscos de saúde causados pelo isolamento penitenciário, as razões de segurança – sejam elas quais forem – prevalecem dentro das prisões. As mortes não são evitadas: são escamoteadas, assim como as respectivas causas (Pontes & Dores 2015). Entre a sociedade, que se representa a si mesma como pacificada – como explicou Max Weber ao referir o monopólio da violência imposto pelos estados-nação –, e o estado que deveria tratar todos por igual, como o mesmo autor descreveu a burocracia, há um mundo de terror, o inferno na Terra (Zimbardo 2007). As prisões escondem e mostram a perversidade humana, expurgando-a magicamente da sociedade, assim purificada, através do poder de estado, assim sacrificado a manchar as suas mãos de sangue sacrificial. É certo que o direito criminal conhece melhor que outras disciplinas essa predisposição humana para encontrar bodes expiatórios e trazê-los para o exercício sacrificial. As polícias e as prisões têm, é certo, a função meritória de subtrair à sociedade os seus alvos sacrificiais. Porém, convenhamos, se poderá ser essa função que dá legitimidade ao sistema criminal-penal não é essa a sua função mais frequente. Mais frequentemente, como dizem os juristas envolvidos no sistema, ocupa- se de bagatelas penais e deixa a caça grossa escapar impune. Como é público e notório. Menos frequentemente, em democracia, o sistema criminal-penal é usado para fins políticos. Os maus usos não denigrem os bons usos. Mas estes últimos não evitam os primeiros. É aqui que entra o espírito abolicionista: os instrumentos à disposição das sociedades e das instituições para minimizar as más práticas e valorizar as boas práticas, no caso das prisões, são notoriamente ineficazes. O reconhecimento geral dos riscos de tortura nas prisões e nos quartéis, inscrito em tratados internacionais de direitos humanos, sobretudo influentes e reforçados na Europa, não têm sido capazes de prevenir nem a tortura, nem os maustratos, nem os tratamentos degradantes, de presos e profissionais, cujos estados de saúde não enganam: viver na prisão está associado a aumento do risco de contrair doenças graves de boca, do foro mental, doenças infecto-contagiosas, de adição, doença da institucionalização, etc. Se as prisões são escolas do crime, são caríssimas (cerca de três salários mínimos por cada preso, em Portugal), preocupação para a saúde pública, incapazes de prevenir os crimes, criadoras ou reforço de situação de alienação social, encargo para a sociedade quando recebe os que cumpriram a pena e estão a necessitar de cuidados especiais para organizarem a vida normal, que muitas vezes são mal sucedidos, porque é que existem as prisões? Existem para conter os criminosos. Alguns criminosos. Por exemplo, não servem para conter os criminosos de colarinho branco (Jakobs & Meliá 2003). Como dizem os liberais, deve ser uma instância de último recurso. A pergunta que se pode fazer é, então porque há tanta gente na prisão, tanta gente que não representa perigo social? Por que razão se aumentou tanto o risco de condenar inocentes, em vez de seguir estritamente a regra de in dubio pro reo? A dialética entre o que se determina, em doutrina, e o que se pratica nas instituições, a diferença entre o direito nos livros e o direito nos tribunais e nas prisões decorre, na prática, sob a tutela de processos históricos complexos e contraditórios. No caso dos países ocidentais (os países da Europa de Leste têm outra história), nos anos setenta perfilaram-se duas atitudes perante os sistemas penais: a) o abolicionismo já descrito acima; b) o proibicionismo, a guerra global das drogas, construído após a experiência da Lei Seca nos EUA e da manipulação política e corrupção sobre os negócios que tal lei permitiu nas cidades norte-americanas que a adoptaram (Woodiwiss 1988). Já neste século, a guerra contra o terrorismo aprofundou a guerra contra as drogas, com episódios abjectos como Guantanamo, Abu Grahib, as prisões secretas da CIA. Confirma-se: o securitarismo ganhou em todas as frentes o seu debate político com o abolicionismo, atitude inversa no campo da segurança. O securitarismo imagina que as forças de segurança do estado servem para assegurar segurança à sociedade. Para tornar realista esta asserção, as policiais são organizadas de modo a assumirem posições de defesa de certas classes sociais, certos bairros residenciais, certas etnias, certos grupos de idade, e tomarem posições de ataque contra outras classes sociais, bairros populares estigmatizados para o efeito, jovens que ocupam as ruas ou espaços que se querem privatizar. Desse modo, em muitas sociedades europeias tem sido possível naturalizar a presença da polícia segundo estas normas e silenciar a comunicação social sobre a disparidade social de critérios de actuação das forças de segurança. Este é pensamento e sentimento dominante: quem é atacado pela polícia é por que alguma coisa terá feito. Ou, em contraponto, a polícia representa o racismo social dos grupos sociais mais bem instalados e, por isso, não vale a pena opor-se-lhes nem legalmente nem pela força, pois as represálias serão fulminantes. Algozes, vítimas e cúmplices, todos estão de acordo de que é este o nosso modo de vida com o qual temos que viver. Mas isso não foi sempre assim. As revoluções de cultura da juventude nos anos sessenta e setenta criaram comunidades livres, à procura de novas formas de organizar a vida social, nomeadamente procurando noutras culturas estranhas, através também das suas drogas estranhas ao álcool e ao tabaco típicos do ocidente, como do sexo e da música. Comunidades que falharam, como alterativas ao individualismo que se radicalizou desde então. Comunidades perseguidas politicamente de modo a que recuem e deixem de ser um espectro do realismo que pode representar uma transformação profunda o modo de vida social dominante. O discurso único associado ao neo-liberalismo é também, como disse Sarkozy no acto de tomada de posse do seu último mandato como presidente do estado francês, um desejo de fim das sequelas do Maio de 68, das ideias de poder viver em igualdade. Durante as últimas quatro décadas, manifestamente, o abolicionismo deixou de ser um pensamento que representa a possibilidade razoável de manter um estado de espírito adequado e o proibicionismo ganhou todos o espaço disponível. Nem o presidente Obama conseguiu cumprir uma promessa eleitoral simples reiterada para o seu segundo mandato: fechar a prisão ilegal que os EUA mantêm em solo cubano: Guantanamo. O espírito abolicionista imaginou o vento do destino favorável. Qual lebre, foi ultrapassada pelo cágado proibicionista. A quem ninguém se atreve a interpelar a fealdade. Não pegou a ideia de curar, cuidar, humanizar, responsabilizar sem culpabilizar, libertar dos ciclos viciosos aqueles que lá caiam, em vez de os remeter para novos ciclos viciosos como castigo, esperando que a mágica da reabilitação social ocorra, como os ermitas esperam pela santificação. Apesar do lema, faça amor não a guerra, com o fim da guerra do Vietnam o que vingou foi a vingança contra os oprimidos que ganharam a guerra: os vietnamitas e os norte-americanos anti-belicistas. Numa expressão que se tornou famosa: tolerância zero. Para dar poder à polícia houve que a animar com tarefas para cumprir todos os dias: tarefas repressivas. Estímulos oficiais à promoção e propagação do espírito vingativo. Referências: Bourdieu, P., 1979. La Distinction, Paris: Minuit. Dores, A.P., 2013. A análise jornalística torna irreconhecível a densidade da vida. Revista Angolana de Sociologia, (11), pp.35–50. Available at: http://hdl.handle.net/10071/6782; http://ras.revues.org/320. Dores, A.P., 2016. A discriminação contida na teoria social. O Comuneiro, (23). Dores, A.P., 2014. Violence in society. Pensamiento Americano, 7(13), pp.144–162. Available at: http://www.coruniamericana.edu.co/publicaciones/ojs/index.php/pensa mientoamericano/article/view/237. Elias, N., 1990. O Processo Civilizacional (Vol I e II) 1a edição ., Lisboa: D. Quixote. Jakobs, G. & Meliá, M.C., 2003. Derecho Penal del Enemigo, Madrid: Cuadernos Civitas. Pontes, N. & Dores, A.P., 2015. Improving Prison Conditions by Strengthening Infectious Disease Monitoring – Mapping report Portugal, Lisboa. Available at: http://home.iscte- iul.pt/~apad/PrisoesEuropa/observatorio/PROJINFECTIOUSDISEAS E/PrisonProjectReport_Portugal.pdf. Woodiwiss, M., 1988. Crime, Crusades and Corruption – Prohibitions in the United States, 1900-1987, London: Piter Publisher. Zimbardo, P., 2007. The Lucifer Effect: understanding how good people turn evil, NY: Random House. Panorama da Realidade Prisional Há 10 anos a O.V.A.R. iniciou a realização de Jornadas de Reflexão sobre o sistema prisional, encontrando-nos na sua 4ª edição, em tempo de Jubileu da Misericórdia. Neste espaço de tempo muito se disse sobre o sistema prisional, muitas declarações de intenções se ouviram de responsáveis políticos e muitos trabalhos académicos foram publicados (em 2004 tinha sido divulgado o relatório da Comissão de Estudo e Debate da Reforma do Sistema Prisional, presidida pelo Prof. Freitas do Amaral). Em todas estas intervenções ressaltou a evidência do fracasso do modelo em que está assente o sistema prisional em Portugal, sustentando-se a ineficácia e a desumanidade que o caracteriza. Passados estes dez anos o que encontramos de diferente relativamente à realidade de então? Temos maior população prisional, com o seguinte quadro no final do 1º semestre deste ano: O total de reclusos era de 14.250 (a lotação máxima é de 12.600), sendo 94% homens e 6% mulheres (os estrangeiros são 15%), representando a faixa etária dos 30 aos 40 anos 30% do total (Havia 210 reclusos com idades entre os 16 e os 20 anos e 5% têm mais de 60 anos), com 16% do total de reclusos em prisão preventiva, estando 75% das penas entre os 3 anos e os 25 anos de prisão (Havia 312 reclusos com penas indeterminadas ou medidas de segurança). O tipo de crimes estavadistribuído entre: Contra as pessoas (homicídios, ofensas à integridade física, etc.): 25%; Contra os valores e interesses da vida em sociedade (incêndio, associação criminosa, condução perigosa, etc.): 10%; Contra o património (roubo, furto, burla, etc.): 27%; Estupefacientes (tráfico, consumo, etc.): 19%; Contra o Estado (desobediência, corrupção, etc.): 6%; Outros (fiscais, condução sem carta, etc.): 13%. Há menos trabalho nas prisões, apesar de mal pago, assemelhando-se à escravatura. Piorou a alimentação (tendo-se alargado a privatização do fornecimento das refeições nas prisões – o valor diário para alimentação, por recluso, é de cerca de € 4,00 para as quatro refeições diárias fornecidas por empresas com fins lucrativos). Continua a haver muitos reclusos sem possibilidade de estudar, sendo que 58% têm o 6º ano ou menos de escolaridade. Aumentaram as restrições ao fornecimento de bens aos reclusos (incluindo alimentação). Houve uma degradação do apoio psicológico e de reinserção, com o crescendo de recurso a psicólogos com vínculo precário e em número manifestamente insuficiente. Continua a fragilidade do apoio judiciário. Houve um reforço do securitarismo, apesar da insuficiência de recursos humanos nos estabelecimentos prisionais. Persiste-se nas penas mais longas da União Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é o triplo da U.E.), incluindo a prática de penas sucessivas e de medidas de segurança que leva à permanência de reclusos nas prisões por períodos que ultrapassam os 25 anos. Continuou a retenção indevida do dinheiro dos reclusos. Insiste-se na impossibilidade do direito à própria defesa violando o direito internacional de que Portugal é Estado-Parte; Etc, etc, etc… . Como aspeto positivo evidente assinale-se o desaparecimento do balde higiénico, existência sintomática do medievalismo deste modelo de sistema prisional. Há cerca de dois anos escrevi um artigo, reflectindo sobre esta matéria, de que respigo: A consideração de poder ser a liberdade um valor absoluto tem merecido, recentemente, dentro e fora da Igreja Católica, reflexões que apontam neste sentido. Desde os Papas Francisco e Bento XVI ao Pe. Tolentino Mendonça, com muitos outros pelo meio, tem-se vindo a acentuar um crescendo na sua abordagem. E como poderemos alargar a reflexão com a inclusão das prisões como instituições perigosas para a afirmação deste valor? Certamente que esta discussão trará as objecções semelhantes às verificadas quando se discutiu o direito à vida como valor absoluto, mas a pena de morte já foi abolida na maioria dos países do mundo e o próprio catecismo da Igreja Católica retirou a sua admissibilidade nos finais do século passado. No I Congresso Ibérico da Pastoral Penitenciária a questão da liberdade como valor absoluto esteve subjacente em muitas intervenções. Um dos temas dos painéis foi “Um outro sistema penal é possível”. Não era uma pergunta. Era uma afirmação! E esta afirmação comprometeu o congresso. Temos de construir um outro sistema já que o actual é desumano, violento, injusto, não cristão. Todos conhecemos a passagem dos evangelhos sobre a mulher adúltera e o desafio de Jesus: "Quem de vós estiver sem pecado que atire a 1ª pedra". Numa outra passagem dos evangelhos Jesus também nos diz que devemos perdoar não 1,2,3,4,5,6,7 vezes mas sim 70 x 7. Temos de perdoar sempre. Os ensinamentos de Jesus permitiram a construção de dois importantes pilares do cristianismo: O perdão e a misericórdia. No Pai nosso dizemos: Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. E como disse D. Mário Toso na conferência de abertura do congresso “Não há justiça verdadeira sem perdão”. Na audiência pública do passado dia 11 de Setembro o Papa Francisco enfatizou que “julgar e condenar o irmão que peca é errado, pois não estamos acima dele, mas temos o dever de recuperá-lo à dignidade e acompanhá-lo no seu caminho”. Assim sendo temos de ter a ousadia de abolir as palavras castigos e penas com o reconhecimento da imperfeição do ser humano e reconhecer a sua incapacidade para não cometer erros, independentemente da consideração que nos merecem às vítimas dos atos anti-sociais e da reparação dos danos que lhes foram provocados. Ninguém pode ser indiferente perante a injustiça mas a lei penal sem compaixão não é uma lei justa. Os cristãos não podem olhar para os presos como criminosos, nem os capelães e visitadores podem ser passivos para com o clima repressivo nos estabelecimentos prisionais. Temos de acrescentar mais pilares à justiça cristã, de que o exemplo da justiça restaurativa é um importante suporte (O foco da justiça é o acto e a sua reparação e não quem o comete). Temos de assentar na necessidade de afastamento da vingança como factor de punição. Como disse D. António Francisco dos Santos, na homilia da entrada na Sé do Porto em 6 de Abril de 2014: “Nos Evangelhos, os discípulos de Jesus aparecem como homens fortes, corajosos, trabalhadores, mas no seu íntimo sobressai uma grande ternura, que não é virtude dos fracos, antes pelo contrário denota fortaleza de ânimo e capacidade de solicitude e de compaixão. Não devemos ter medo da bondade". Também, D. Joaquim Mendes, na I Peregrinação da Pastoral Penitenciária, disse “…é muito importante ajudar a despertar a sociedade para a realidade das prisões. São pessoas anónimas que estão privadas da liberdade, mas não da sua dignidade”. Neste sentido, temos de promover a reconciliação e não a vingança. Condenar o pecado e não o pecador. Afirmar a liberdade e não a reclusão. Promover a correcção e não o castigo. Privilegiar a prevenção e não a repressão. O P. Valdir, da Pastoral Carcerária do Brasil, numa intervenção proferida no I Congresso Ibérico da Pastoral Penitenciária, exortou-nos: “temos de deixar de ser coniventes com as prisões como instituições do pecado”. E D. António Marto também nos disse que as prisões são factores de dessocialização e desestruturação do ser humano. E, ainda, D. Ramon Calatrava demonstrou-nos que as penas de privação da liberdade produziram mais danos do que os crimes cometidos por aqueles que cumpriram essas penas. Muitas personalidades relevantes têm, nos últimos anos, tomado posição sobre os múltiplos aspectos negativos das prisões, tendo o filósofo Michel Foucault destacado, no seu livro Vigiar e Punir, que nos últimos dois séculos o sistema de justiça tem mantido características de desumanidade de forma permanente. Então, uma outra visão torna-se necessária. Será que teremos de continuar a pensar em penas e castigos? E porque não um código de valores? E porque não começar com a reclamação ao poder político do nosso país duma amnistia significativa que leve o perdão e a misericórdia às prisões? A honra, a vergonha e o dever do exemplo são valores que devem ser exaltados. Temos de ser honrados com os compromissos que assumimos. Temos de ter vergonha de proclamar boas intenções sem as levar à prática. Temos de dar o exemplo. Este sistema penal não tem obstado a que as prisões sejam instituições violentas, opressoras e violadoras dos direitos humanos. Situações no interior das prisões como tráfico de drogas e bens, homossexualidade forçada, violações, roubos, chantagens sobre as famílias, autoritarismo, prepotência, penas longas e injustas, etc…, têm necessariamente de provocar a alteração deste sistema penal. Este sistema continua a ser autista perante a condenação reiterada pelas Nações Unidas de que Portugal continua a negar aos seus cidadãos o direito à auto-defesa, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal negação. As prisões são cada vez mais instituições opacas de que um exemplo é o facto dos relatórios anuais dos estabelecimentos prisionais terem deixado de serem publicados desde 2010. O actual sistema de justiça é frio, desumano e tecnocrático, menorizando e desconsiderando os reclusos, ignorando que na sua frente estão pessoas e não autómatos. As insuficiências, arbitrariedades, incompetência e desleixo das estruturas e pessoas que suportam o sistema,não respeitando os direitos dos reclusos legalmente reconhecidos, têm de ser corrigidas. A destruição das famílias provocada pelas prisões não pode continuar. Algumas intervenções proferidas no congresso pareceram-me colocar como necessária a modificação do recluso enquanto pessoa, o que me parece desumano e não conforme com os direitos humanos universalmente consagrados. O que me parece que temos de fazer é reconhecer a todos os seres humanos o direito a que a sua personalidade seja defendida e respeitada, exortando-os e possibilitando-lhes as condições para a não reincidência na prática de actos anti-sociais mas não a sua modificação enquanto pessoa. Não foi isto que Jesus Cristo fez com a mulher adúltera? Temos de nos empenhar na construção dum outro sistema, humano, belo, solidário, fraterno, cristão. Temos de derrubar as prisões como a última instituição medieval que subsiste neste início do século XXI. Na sua visita às Filipinas, o Papa Francisco mais uma vez mostrou a necessidade da humanização dos tempos que vivemos. Emocionei-me com o abraço que o Papa deu a uma menina filipina de 12 anos, Glyzelle Palomar, que viveu na rua até ser recolhida por uma ONG. Na sua intervenção ela, chorando compulsivamente, tinha perguntado a Francisco: “Há muitas crianças abandonadas pelos próprios pais, muitas vítimas de muitas coisas terríveis como as drogas e a prostituição. Porque é que Deus permite estas coisas, já que as crianças não têm culpa? Porque vem tão pouca gente ajudar?*”O Papa deixou o discurso que trazia preparado e improvisou: “Ela hoje fez a única pergunta que não tem resposta, e como não lhe chegavam as palavras teve de fazê-la com as lágrimas. […] Quando nos perguntarem porque sofrem as crianças (…) que a nossa resposta seja o silêncio e as palavras que nascem das lágrimas. […] Ao mundo de hoje faz-lhe falta chorar, choram os marginalizados, choram os que são deixados de lado, choram os desprezados, mas aqueles que temos uma vida mais ou menos sem necessidade não sabemos chorar. […] Certas realidades da vida só se vêem com os olhos lavados pelas lágrimas”. Isto exige uma limpeza geral dos olhos, da mente, do coração, das palavras e das acções”. Talvez seja preciso, como disse Francisco, começar por “aprender a chorar!” A chorar pelo modo como tratamos seres humanos nas prisões. As prisões são instituições retrógradas, arcaicas, medonhas, medievais e violentas. Não reinserem e são desumanas na punição. Têm-se mostrado ineficazes na reincidência e na prevenção dos atos anti- sociais. A população prisional tem crescido de forma constante em Portugal e no Mundo, demonstrando a ineficácia deste sistema de justiça punitiva. As estruturas de direitos humanos das Nações Unidas têm recomendado a substituição da via punitiva pelas vias da reabilitação e justiça restaurativa. As prisões constituem uma violenta agressão ao exercício da liberdade e à consideração desta como valor absoluto. Quem defende a liberdade não pode admitir a coexistência de prisões numa sociedade civilizada. Esta situação continua a persistir já que se nota um autismo da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (através dos seus relatórios de actividades), quer de algumas ONGs. Infelizmente, o trabalho destas ONGs não tem levado a mudanças significativas, assistindo-se, inclusivamente, ao apagamento dalgumas delas por inclusão no aparelho e funcionamento de Órgãos do Estado, num colaboracionismo reprovável cujos resultados se traduzem na manutenção da desumanidade do sistema prisional. Por outro lado, o passo positivo dado há já muitos anos, de descriminalização do consumo de drogas, não foi acompanhado duma nova filosofia para esta problemática das drogas e sua comercialização, continuando-se uma política de combate que se tem revelado infrutífera ao invés de encarar a realidade, enquadrando-a legalmente (vejam-se os exemplos já conhecidos do tabaco e do álcool). Chegados ao Outono de 2016, não resta outra alternativa que não seja a continuação do combate a este sistema, desajustado dos valores civilizacionais construídos na segunda metade do século XX. É gritante a necessidade de descongestionamento das prisões portuguesas e de diminuição da duração das penas. A alteração do código penal e a aprovação duma amnistia são atos urgentes que só a ausência de coragem política impede de concretizar. Também, é necessária a ajuda duma pastoral penitenciária diocesana que envolva os cristãos. Na sua recente visita à Polónia, o Papa Francisco esteve nos campos de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau, e comentou que a crueldade praticada pelo regime nazi na primeira metade do século XX ainda hoje se mantém, nas situações como o encarceramento massivo. Disse o Papa: “Recordar dores de 70 anos atrás: quanta dor, quanta crueldade! Mas é possível que nós, homens criados à semelhança de Deus, sejamos capazes de fazer estas coisas? As coisas foram feitas… Eu não gostaria de vos deixar amargurados, mas devo dizer a verdade. A crueldade não acabou em Auschwitz, em Birkenau. Também hoje, hoje!... Hoje existem homens e mulheres em prisões superlotadas: vivem – perdoem-me – como animais! Hoje existe esta crueldade”, enfatizou o Pontífice. Esta intervenção do Papa foi objecto duma notícia no site do Pastoral Carcerária do Brasil que a titulou:” As prisões são uma Auschwitz do nosso tempo”. Não queiramos deixar para os vindouros a desculpa de que não sabíamos. Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar, como proclamou Sofia de Melo Breyner Andresen. As prisões são uma Auschwitz do nosso tempo. Porto, 17 de Outubro de 2016 -. Manuel Hipólito Almeida dos Santos - Presidente da O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos IV Jornadas de Reflexão “A Prisão e as suas Consequências. Como Ajudar?” IV Jornadas de Reflexão “A Prisão e as suas Consequências. Como Ajudar?” Porto, 17/10/2016 Conclusões “…Ao mundo de hoje faz-lhe falta chorar, choram os marginalizados, choram os que são deixados de lado, choram os desprezados, mas aqueles que temos uma vida mais ou menos sem necessidade não sabemos chorar. […] Certas realidades da vida só se vêem com os olhos lavados pelas lágrimas”. Isto exige uma limpeza geral dos olhos, da mente, do coração, das palavras e das acções…” - Papa Francisco na visita às Filipinas em 2015. Talvez seja preciso, como disse o Papa Francisco, começar por “aprender a chorar!” A chorar pelo modo como tratamos seres humanos nas prisões. Após o decurso das IV Jornadas de Reflexão “A Prisão e as suas Consequências. Como Ajudar?”, promovidas pela O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, quer do teor das comunicações apresentadas pelos conferencistas, quer das intervenções dos participantes, podem tirar-se as seguintes conclusões: - O sistema prisional encontra-se desfasado do nível civilizacional deste início de século, tendo em conta o carácter desumano, cruel, degradante, não cristão, com que se apresenta, desrespeitando os referenciais jurídicos e humanistas, pelo que a sua abolição é um objectivo a ter em conta; - A sobrelotação, as deficientes condições de alimentação, apoio judiciário e psicológico, as penas longas e excessivas, o autoritarismo e a violência no interior das prisões, a dificuldade no prosseguimento de estudos, a deficiente política de reinserção social, a escravatura na utilização do trabalho dos reclusos, a impossibilidade do direito à auto- defesa consignada no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, são factores que exigem uma resposta rápida dos órgãos do Estado que superintendem nas prisões; - A aprovação duma amnistia pela Assembleia da República é um ato urgente, reduzindo a duração das penas para a média da União Europeia, o que minimizará alguns dos aspectos mais graves que se vivem no interior das prisões, além de ser um contributo para a reinserção social que tanto carecemos, traduzindo-se num gesto concreto de perdão emisericórdia; - É imperiosa a dotação dos recursos humanos e materiais necessários nos estabelecimentos prisionais, com recurso a técnicos com vínculo permanente que permitam um trabalho de maior qualidade e continuidade; - A revisão do Código Penal deve ser feita com urgência, aproximando-nos dos modelos mais avançados na substituição das medidas punitivas pelas restaurativas, incluindo a cessação das penas sucessivas e das medidas de segurança em meio prisional, além da alteração da moldura penal que permita uma diminuição drástica do tempo médio de cumprimento de pena; - O reforço da assistência espiritual e religiosa é um aspeto a considerar pelas autoridades da Igreja, nomeadamente com a implementação de pastorais penitenciárias diocesanas; - Exige-se uma maior humanização e dignificação do sistema prisional, assim como uma prática efectiva da reinserção social; - Os reclusos, apesar de terem perdido a liberdade, continuam a ter o direito à dignidade. Porto 17 de Outubro de 2016 A IGREJA DIZ NÃO À PRISÃO, DESTAQUES › 03/08/2016 PASTORAL CARCERÁRIA - BRASIL Em visita à Polônia, por conta da Jornada Mundial da Juventude, em Cracóvia, no final de julho, o Papa Francisco esteve nos campos de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau, e comentou que a crueldade praticada pelo regime nazista na primeira metade do século XX ainda hoje se mantém, nas situações como o encarceramento massivo. “Recordar dores de 70 anos atrás: quanta dor, quanta crueldade! Mas é possível que nós, homens criados à semelhança de Deus, sejamos capazes de fazer estas coisas? As coisas foram feitas… Eu não gostaria de vos deixar amargurados, mas devo dizer a verdade. A crueldade não acabou em Auschwitz, em Birkenau: também hoje. Hoje! Hoje se tortura as pessoas; tantos prisioneiros são torturados, para fazê-los falar….É terrível! Hoje existem homens e mulheres em prisões superlotadas: vivem – perdoem-me – como animais! Hoje existe esta crueldade”, enfatizou o Pontífice, pedindo orações pelas atuais vítimas de tortura. “Rezemos por tantos homens e mulheres que hoje são torturados em tantos países do mundo; para os encarcerados que estão todos empilhados ali como se fossem animais. É um pouco triste aquilo que vos digo, mas é a realidade! Mas é também a realidade que Jesus carregou sobre si, todas estas coisas. Também o nosso pecado”. Entrevistado pela rádio Vaticano para comentar as declarações do Papa Francisco, o Padre Gianfranco Graziola, vice-coordenador nacional da Pastoral Carcerária, comentou que as prisões brasileiras assemelham- se aos campos de concentração e extermínio. http://carceraria.org.br/canal/a-igreja-diz-nao-a-prisao http://carceraria.org.br/canal/destaques “O cárcere é uma tortura constante e contínua – no trato, na questão de comida, na questão de saúde, na questão também do ambiente. O próprio ambiente carcerário é fundamentalmente uma Auschwitz do nosso tempo. O tempo fez o Papa meditar isso. Ele também conhece a realidade brasileira, sabe das informações que a Pastoral lhe mandou várias vezes, mas penso que conhece outras realidades de prisão. Ele sabe realmente o que é a realidade prisional”, comentou o Padre Gianfranco. Para o vice-coordenador nacional da Pastoral Carcerária, o princípio cristão de “condenar o pecado, mas ter misericórdia do pecador” deve ser sempre considerado. “Nós da Pastoral Carcerária não compactuamos com o que o preso e a presa fez em um determinado momento da vida. Nós olhamos com um olhar de misericórdia para a pessoa. Nós queremos resgatar a pessoa. E para que possa ser resgatada, são necessárias condições humanas. A prisão é produto da nossa sociedade. O sistema é altamente desumano, opressor, altamente brutal”, detalhou o Padre Gianfranco. O sacerdote enfatizou que não há outro caminho a ser pensado a não ser o desencarceramento. “Nós temos um alto percentual aqui no Brasil de presos provisórios e a maior parte deles, depois, são liberados. A cadeia é um instrumento de brutalidade. Defendemos o desencarceramento. E outro processo possível de desencarceramento hoje é a democratização da justiça, que chama a justiça restaurativa. A justiça não é mais vertical, é horizontal. É uma justiça que restaura relações, é uma justiça que responsabiliza não uma ou outra pessoa, mas responsabiliza quem cometeu o crime, faz sentir que o crime cometido tem efeito e tem causa, mas tem também consequências, de modo que possa percorrer e encontrar juntos, e como comunidade, caminhos novos para uma comunidade nova”, finalizou. Crise do Sistema Prisional abre Espaço para o Debate Sobre o Abolicionismo Penal 12.06.2017 Por Igor Carvalho - Pastoral Carcerária – Brasil “Quando um sistema não consegue enfrentar manifestações de dissenso e, ao mesmo tempo, é incapaz de lidar com suas causas, surgem na cena, nestes períodos da história, não só figuras e soluções ilusórias, mas também os ‘realistas’ da rejeição repressiva” - (István Mészáros) Quando 59 presos morreram carbonizados, decapitados e esquartejados no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, o País despertou para a crise do sistema penitenciário. Apesar da insistência de parte da mídia e do poder público em centrar fogo na “guerra entre as facções”, especialistas reafirmaram que a preocupação deve ser com a estrutura do sistema penal, já que a lógica punitivista segue apinhando as celas de pessoas que são torturadas noite e dia pelo Estado, garantidor da manutenção da precariedade das penitenciárias. O Brasil alcançou, em 2016, a quarta posição entre os países que possuem a maior população carcerária no mundo. Ao todo, 622 mil brasileiros estão encarcerados. Destes, 61,6% são negros e 75% só estudaram até o ensino fundamental. Os dados foram divulgados em abril do ano passado pelo Ministério da Justiça e Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) e hoje, certamente, esse contingente é ainda maior. De 2002 até 2016, a população carcerária brasileira cresceu 267,32%. O Brasil chegou, portanto, ao espantoso número de 306 pessoas presas para cada 100 mil habitantes, o dobro da média mundial, de 144 detentos para cada 100 mil habitantes. Em entrevista ao site Conjur, em novembro de 2015, o ministro aposentado da Suprema Corte da Argentina, Eugenio Raúl Zaffaroni, um dos mais fieis opositores do punitivismo no mundo, explica de que forma e porque tal prática é aderida: “(O punitivismo) tem um pouco de terrorismo mediático e corresponde a um modelo de sociedade. Se quisermos ter uma sociedade 30% incluída e 70% excluída, precisamos punir mais, para conter os 70% que ficam de fora. Se nós pensarmos em uma sociedade mais ou menos inclusiva, com Estado de bem-estar social, outro grau de punitivismo é aplicado”, explica Zaffaroni. No Brasil, a política de encarceramento massivo dialoga com a teoria exposta por Zaffaroni. “Nós encarceramos para garantir o controle social. Estão presos os negros, os jovens e os pobres. Estes, que estão excluídos dos privilégios e que podem reivindicar sua dignidade, até então negada pelo Estado”, explica Vera Malaguti, professora de criminologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e Secretária Executiva do Instituto Carioca de Criminologia (ICC). A sanha por encarceramento no Brasil para controle dos resistentes vem dos tempos de colonização, especialmente durante o período regencial, entre 1831 e 1840, quando o então imperador D. Pedro I abdicou do trono para que seu filho, D. Pedro II, assumisse o poder. A década de vacância era o tempo necessário para que o herdeiro alcançasse a maioridade. Durante o período de nove anos, houve instabilidade e revoltas populares. Escravos se organizaram para lutar pela liberdade. A fim de controlar os levantes dos insatisfeitos, os colonizadores portugueses encomendaram uma prisão, a primeira do Brasil, a Casa de Correção da Corte, que só foi inaugurada em 1850. A prisão é considerada uma das “obras mais úteis e necessárias ao País pela influência do sistema penitenciário sobreos hábitos e a moral dos presos”, dizia o decreto que determinou a construção da Casa, construída por escravos e que serviu para encarcerar escravos. “A colonização brasileira era um empreendimento que perseguia os povos originários e depois os negros que por aqui foram escravizados. O colonizador, para controlar a revolta desses povos, sempre quis puni-los e torturá-los, para garantir que não o incomodasse”, explica a professora Vera Malaguti. Mais adiante, conta a professora, já no final do período da ditadura militar, começa a política de “Guerra às Drogas” no Brasil. “Copiamos o mesmo modelo americano. Neste momento, vai entrar em cena um personagem importante que é a mídia. Ela vai colaborar com o punitivismo ao criar um modelo de inimigo a ser combatido: o negro, jovem e morador de favela. Esse é o sujeito que a sociedade, educada pela rádio e a TV, irá exigir que seja enclausurado pelo Estado. Até hoje, os programas policiais, de Wagner Montes a (José Luis) Datena, cumprem esse papel social”, contextualiza. Dados do Infopen mostram que 28% da população carcerária brasileira está presa por crime de tráfico de drogas. Os demais delitos da lista são: roubo (25%), furto (13%) e homicídio (10%). “Lá atrás, nós dizimamos os índios porque eles eram animalizados. Depois, exterminamos os negros porque eles não tinham alma. Hoje, consideramos que fomos estúpidos por isso. O mundo moderno assim entende”, analisa padre Valdir João Silveira, há 27 anos membro da Pastoral Carcerária e atual coordenador nacional da entidade. “Hoje, seguimos massacrando negros e jovens porque eles cometem crimes ligados ao tráfico de drogas. Nós os enfiamos em caixa de ferro e os abandonamos à própria sorte. As futuras gerações irão nos classificar como ‘pessoas cruéis’, nunca entenderão como fomos tão estúpidos”, finaliza o religioso. Sistema penal e o capitalismo Se a lógica do encarceramento se dá pela exclusão de um espectro da sociedade, os mais pobres, como define Zaffaroni, o que vai justificar o encarceramento desse setor é o caráter classista do Código Penal, explica o defensor público e doutor em criminologia pela Universidade de São Paulo (USP), Bruno Shimizu. “Pensemos: uma pessoa passou um cheque sem fundo ou cortou uma árvore, o que essas condutas têm em comum? O fato de que, em algum momento da história, um legislador tipificou essas condutas como crime. Porém, condutas como demissão em massa não é crime. Será que isso não é lesivo à sociedade? Muito mais do que derrubar uma árvore. Mas, por uma postura política, essa conduta não foi criminalizada. Isso acontece porque quem está no pretenso papel de ‘criminoso’ é o patrão”, afirma Shimizu, que mantém o exercício de comparação para desenvolver sua tese. Segundo ele, “nós temos, no Código Penal, dois crimes bastante parecidos, que são a redução do trabalho à condição análoga a de escravos e extorsão mediante sequestro. Em ambos os crimes, você restringe a liberdade de alguém para conseguir um lucro ilícito. Sequestrar uma pessoa com fim de receber qualquer tipo de vantagem é, no mínimo, doze anos de prisão, em regime fechado. Manter um trabalhador escravizado pode gerar uma pena de dois até oito anos e ela pode cumprir em liberdade caso o réu seja primário, mas na maioria das vezes é convertido em cestas básicas. Quem sequestra é o menino do morro, quem escraviza é o patrão. A disparidade de tratamento entre ricos e pobres no Código Penal é gritante”. Ainda sobre o caráter classista do Código Penal, a professora Vera Malaguti faz uma ponderação: “O Direito Penal iluminista, que surgiu no começo do século 18, nasceu realmente para tutelar a propriedade e garantir que os bens dos mais ricos fossem protegidos daqueles que estavam alijados da sociedade. Porém, ele ajuda a limitar o punitivismo. Antes disso, uma pessoa poderia passar a vida inteira presa por roubar comida. Mas sua função principal era conter os resistentes”, explica. Alijar os mais pobres da sociedade não é uma finalidade em si deste sistema; é no interior do próprio capitalismo que conseguimos encontrar as razões para que tenhamos cada vez mais prisões e presos. “Do ponto de vista económico, é vantajoso esse discurso (punitivista), pois valoriza o mercado que atua no ramo de segurança, desde os diretos, que constroem presídios, até as empresas que ganham indiretamente com o discurso de medo, como as que oferecem segurança privada. É um mercado milionário”, alerta Shimizu. Na mesma linha do defensor, a professora Vera Malaguti lembra que a guerra contra o terrorismo e às drogas coopera com a lógica penal. “A indústria do controle do crime fatura muito dinheiro com o punitivismo. Empresas da indústria bélica americana tiveram suas ações valorizadas com a vitória do Trump e seu discurso de punição aos imigrantes e muçulmanos. O capitalismo precisa do punitivismo”, sentencia. Porém, para além dos muros penitenciários, há a opinião pública. Segundo Shimizu, “o punitivismo se retroalimenta; quanto mais você prende, maior é a sensação de insegurança e o desejo por mais prisões. Quanto menos você prende, menor é o desejo por punitivismo. O capitalismo se justifica através de discursos alienantes, com fórmulas fáceis que são captadas pela população”. Vera Malaguti complementa, lembrando que a aceitação pública tem suporte da “mídia comprometida com o capital”. Abolicionismo penal Partindo da ideia de que “o crime é um rótulo colocado por ação dos gestores da moral e do Direito”, Shimizu explica que a privação da liberdade de uma pessoa não significa ressocialização. “Você tratar todos os fatos a partir da pena de prisão, que é a pena que faz com que o direito penal seja penal, você está dando uma resposta irracional a conflitos que são diversos entre si. Então, o processo penal não resolve o problema. Quando uma pessoa furta um danone no supermercado, ela pode estar com fome. Você não resolve esse conflito prendendo essa pessoa”, afirma. Lembrando o conceituado criminólogo e abolicionista holandês Louk Hulsman, Vera Malaguti analisa o ambiente do cárcere. “Prisão é uma máquina de fazer sofrer, não ressocializa ninguém. Os propósitos da prisão nunca foram cumpridos em momento algum na história. Nenhum estudo aponta para isso, pelo contrário.” Com a experiência de quem visita os presídios brasileiros e mantém contato com as pessoas presas há mais de vinte anos, padre Valdir crítica a pena de privação de liberdade como solução para “conflitos sociais.” “A prisão é um lugar de castigo e tortura que não ressocializa ninguém. As pessoas morrem lá dentro. Com o tempo, qualquer um de nós poderia enlouquecer dentro de uma cela, lutando para sobreviver em um sistema opressor, que assassina o espírito e o corpo. Se você não tem uma educação libertadora, você gera opressores”, afirma o padre, apontando para um caminho que, segundo ele, é possível. “Somente o abolicionismo penal pode nos salvar. Deus é libertador e nos pede para que sejamos libertadores. Não podemos ir na contramão de seus ensinamentos e aprisionar ao invés de libertar.” Falar em abolicionismo penal no quarto País que mais encarcera no mundo e que acolhe bordões como “bandido bom é bandido morto” é fazer morada no contrassenso. Porém, se à primeira vista o conceito parece “absurdo” ou “utópico”, é “preciso desmistificá-lo”, argumenta Shimizu. “Em primeiro lugar, é preciso dizer que as teorias abolicionistas não têm como mote a eliminação total da retribuição negativa como resposta do ato delinquente. O que estas defendem é que a sanção restritiva de liberdade (prisão) não atinge seus supostos objetivos ressocializadores, funcionando de modo seletivo a serviço das classes que possuem domínio do poder político e económico. Por isso, procuram elucubrar uma melhor maneira de lidar com a delinquência, presente em todas as formas de convivência humana”. Vera ensaia um meio termo, mas “sem qualquer vínculo com o punitivismo, pois está comprovado que prender não ressocializa”. “É preciso ter um horizonte abolicionista e uma estratégia garantista.O abolicionismo não significa abrir todas as prisões do País. Podemos buscar alternativas, como soltar os presos provisórios, estudar penas em liberdade para as pessoas que cometeram crimes sem uso de violência e até modificar a legislação sobre drogas no Brasil.” O abolicionismo, em linhas gerais, também pede uma ressignificação dos conceitos de “crime” e “criminoso”, justamente por se entender que os valores atuais são regidos por quem detém o poder e a caneta. Shimizu explica: “no caso da sonegação fiscal, não há presos por sonegação e não existe pressão social para que se aumente a pena ou que se puna severamente essas pessoas, porque o entendimento é de que é melhor para a sociedade que essas pessoas devolvam o dinheiro aos cofres públicos do que sejam presas. Mas se um menino roubar um tênis, vai ser preso e pode ser condenado por isso”, exemplifica o defensor, apontando o caráter distinto que explica as dicotomias provocadas pelo sistema penal. Peça importante desse tabuleiro, os juízes passam incólumes aos olhos da opinião pública e seguem respondendo à demanda popular por mais prisões. Porém, para os especialistas na matéria, são responsáveis diretos pela propagação do punitivismo e pela precariedade das prisões brasileiras. “Uma das medidas que poderíamos utilizar para reduzir a população carcerária seriam as audiências de custódia. Porém, temos um judiciário de marajás, arrogante e que pouco se importa com o povo brasileiro. Juízes e o Ministério Público são arrogantes, só pensam pela perspectiva do encarceramento”, afirma Vera Malaguti. “Nós não temos um mecanismo de cotas na magistratura que garanta um espaço mais plural e democrático. É quase impossível, raro mesmo, um juiz negro. A grande maioria dos juízes penais não conhece uma prisão, nunca visitaram uma”, aponta Shimizu, para quem o “espanto” demonstrado pelos juízes diante da crise do sistema penitenciário brasileiro é “curioso”. Quem controla a entrada e saída de pessoas no sistema penitenciário e quem estipula as penas são os juízes. Se o Poder Judiciário não é o único responsável pelo caos no nosso sistema penitenciário, é o grande protagonista, acredita. “Gratidão” Queria, Dar-te todo o tempo feliz E do tempo feliz Fazer canções novas Ternas e doces Que te chegassem ao coração Para poder dizer-te O quanto, Quanto é enorme a gratidão, Então, Também, Roubaria estrelas ao céu azul, Dava-te o mar calmo da vida Se tudo isso pudesse Então, Sim, Seria eu. Queria pintar na amargura do meu caminho A doçura do teu olhar Mas sendo pobre Não tenho telas nem pinceis Para em traços sinceros de mar calmo Desenhar na areia da tua praia Um sorriso acolhedor Para que nunca mais tivesses frio. Queria, Não precisando falar Saber escrever silêncios, Assim, Entenderias o quanto te estou a amar E nas folhas húmidas que caem dos meus olhos Perceberias Que até chegar o último pôr-do-sol Por ti, Vou sempre orar, Vou sempre te agradecer. Constantino Oliveira - Recluso do E.P. de Santa Cruz do Bispo AS PRISÕES E A LIBERDADE COMO VALOR ABSOLUTO “A liberdade concreta supõe que esteja garantido ao indivíduo o direito de se desenvolver, enquanto tal, num mundo cuja razão de ser seja para ele evidente e, portanto, sensata.” Joël Wilfert – La liberté – (O Estado: Realidade Efectiva da Liberdade) Vivendo um tempo em que a liberdade é posta à prova frequentemente, devemos ter em conta esta reflexão do filósofo contemporâneo Joël Wilfert que coloca a sensatez do meio como uma das condições necessárias para o exercício da liberdade. Assim sendo, importa analisar se neste início do século XXI se verifica a existência de sensatez na aceitação de instituições criadas para decidirem e executarem penas e medidas privativas da liberdade. Para o número 64 de “A Ideia” (Março de 2008), escrevi um artigo intitulado “Prisões: Que esperança?” onde desenvolvi o meu entendimento sobre a realidade de então. Passados estes anos importa actualizar esta problemática, nomeadamente no atropelo ao valor da liberdade. A consideração de poder ser a liberdade um valor absoluto tem vindo a merecer reflexões que apontam neste sentido, acentuando-se um crescendo na sua abordagem. E como poderemos alargar a reflexão com a inclusão das instituições onde se cumprem medidas privativas da liberdade, de que as prisões são um exemplo, como instituições perigosas para a afirmação desse valor? Certamente que esta discussão trará as objecções semelhantes às verificadas quando se discutiu o direito à vida como valor absoluto, mas em 2017 a pena de morte já foi abolida na maioria dos países do mundo e o próprio catecismo da Igreja Católica retirou a sua admissibilidade nos finais do século passado. Muitas personalidades relevantes têm, nos últimos anos, tomado posição sobre os múltiplos aspectos negativos das prisões, desde o filósofo Michel Foucault e outros filósofos até muitos conferencistas presentes em variadas intervenções públicas. Relembremos algumas das frases mais significativas. - Habrá que tener la valentia de denunciar la injusticia social como la primera y más grave delincuencia, geradora de otras muchas delincuencias (…) – Conferência Episcopal de Espanha – Padre José Sesma León - A cadeia é um lugar injusto. (….) Parte de um tipo de Estado que, com ela, busca fins de repressão e submissão (…) A cadeia tal como a conhecemos não foi inventada para curar ou reabilitar (…) - P. António Correia – Capelão do Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira - O sistema penitenciário clássico falhou os seus propósitos - Ex- Ministro da Justiça - Dr. Alberto Costa - A experiência dos últimos 200 anos tem sido um fracasso. (…) A prisão não reinsere; por vezes fomenta a própria criminalidade. - Dr. Germano Marques da Silva - Professor de Direito Penal - Todo o ser humano é maior que o seu erro! (…) Mais policiamento? Maior vigilância? Mais meios de controle de indivíduos e grupos? Mais grades nas nossas janelas? Mais alarmes nas nossas entradas? Mas o mundo não pode transformar-se numa enorme cadeia onde todos nos vigiamos uns aos outros e de todos desconfiamos.., Que mundo?! Assim, ninguém lá quererá viver! - Padre João Gonçalves – Coordenador Nacional da Pastoral Penitenciária de Portugal - As nossas prisões não cumprem as condições mínimas relativamente à alimentação, saúde, higiene, privacidade e liberdade religiosa. - Comissão Nacional Justiça e Paz - O actual sistema de justiça está fora deste tempo e deste modelo de sociedade - Ex-Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público Dr. António Clunny “O condenado que entra numa penitenciária é como uma mercadoria que se arrecada num armazém e, pouco a pouco, vai entrando no abismo dos malditos, dos ex-homens, com os seus conflitos e farrapos de tragédia (…) - “Onde o homem acaba e a maldição começa” - Emídio Santana (…) nos últimos dois séculos o sistema de justiça tem mantido características de desumanidade de forma permanente. - “Vigiar e Punir” – Michel Foucault O sistema penal vigente não tem obstado a que as prisões sejam instituições violentas, opressoras e violadoras dos direitos humanos. Situações no interior das prisões como tráfico de drogas e bens, homossexualidade, violações, roubos, chantagens sobre as famílias, autoritarismo, prepotência, penas longas e injustas, retenção indevida de bens, etc…, têm necessariamente de provocar a alteração deste sistema penal, reforçando a consideração da liberdade como valor absoluto. Este sistema continua a ser autista perante a condenação reiterada pelas Nações Unidas de que Portugal continua a negar aos seus cidadãos o direito à autodefesa, consignado no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal negação. As prisões são cada vez mais instituições opacas de que um exemplo é o facto dos relatórios anuais de cada estabelecimento prisional terem deixado de serem publicados desde 2010, sendo a opacidade inimiga da liberdade. Os dadosconhecidos já nos dão uma ideia da dimensão aterradora duma política punitiva que se tem vindo a agravar, estando ausente qualquer dinâmica de prevenção no sentido duma sociedade mais humana, pacífica e fraterna. Vejamos alguns dados sobre Portugal, relativos a 31 de Dezembro de 2016. Durante esse ano cerca de 600.000 processos de inquérito foram registados e movimentados nos serviços do Ministério Público dos Tribunais Judiciais, tendo sido julgados cerca de 150.000. Temos sobrepopulação prisional, com o total de reclusos de 13.779 (a lotação máxima é de 12.600), sendo 94% homens e 6% mulheres (os estrangeiros são 15%), representando a faixa etária dos 30 aos 40 anos 30% do total (havia 191 reclusos com idades entre os 16 e os 20 anos e 5% têm mais de 60 anos), com 16% do total de reclusos em prisão preventiva, sendo 75% das penas aplicadas superiores a 3 anos (havia 310 reclusos com penas indeterminadas ou medidas de segurança). O tipo de crimes estava distribuído entre: Contra as pessoas (homicídios, ofensas à integridade física, etc.): 25%; Contra os valores e interesses da vida em sociedade (incêndio, associação criminosa, condução perigosa, etc.): 10%; Contra o património (roubo, furto, burla, etc.): 28%; Estupefacientes (tráfico, consumo, etc.): 19%; Contra o Estado (desobediência, corrupção, etc.): 6%; Outros (fiscais, condução sem carta, etc.): 12%; (Deve-se ter em conta que muitos dos crimes contra as pessoas e contra o património destinam-se a obter meios para a problemática das drogas, pelo que os estupefacientes têm o peso mais relevante no condicionamento para a prática de crimes). O número de mortes por suicídio representou, em 2015, cerca de 30% do total de mortes nas prisões. A Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens divulgou, no seu relatório apresentado em 2016, que foram acompanhadas, durante o ano de 2015, nas CPCJs, mais de 73.000 crianças e jovens. Dos jovens internados nos Centros Educativos 95% sofrem de patologias psiquiátricas, com uma taxa de reincidência superior a 50% (o tratamento psiquiátrico nos Centros Educativos é de grande debilidade). Em 2016, as equipas de reinserção social da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) executaram um total de 54.600 pedidos de relatórios e audições na área penal. Em 31 de Dezembro de 2016, a DGRSP apoiava a execução de um total de 31.269 penas e medidas na comunidade, na área penal. No âmbito do apoio à execução de penas e medidas, foram registados, entre Janeiro e Dezembro de 2016, um total de 41.852 novos pedidos, 39.763 dos quais no âmbito penal. Em 2016, a DGRSP recebeu das entidades judiciais, relativamente à atividade de assessoria técnica à tomada de decisão e penas e medidas de execução na comunidade (Suspensão Provisória do Processo, Trabalho a Favor da Comunidade, Suspensão da Execução da Pena de Prisão, Liberdade Condicional, Medidas de Segurança relativas a Inimputáveis e outras), um total de 110.151 pedidos, dos quais, 101.861 no âmbito penal e 8.290 no âmbito tutelar educativo. Quanto ao tipo de atividade, 68.299 pedidos respeitaram a relatórios e audições e 41.852 pedidos à execução de penas e medidas na comunidade. Em 2016, foram recebidos 1.203 novos pedidos de apoio à execução de penas e medidas fiscalizadas por vigilância electrónica (Medida de Coacção de Obrigação de Permanência na Habitação com Vigilância Eletrónica (VE), Pena de Prisão na Habitação, Adaptação à Liberdade Condicional, VE em contexto de violência doméstica, Modificação da Execução da Pena de Prisão, VE em contexto de Crime de Perseguição). No âmbito da jurisdição tutelar educativa, a DGRSP registou, em 2016, um total de 2.089 novas solicitações para o apoio à execução de medidas (Suspensão do Processo com e sem Mediação, Tarefas e Prestações Económicas a Favor da Comunidade, Obrigações e Regras de Conduta, Acompanhamento Educativo e Programas Formativos, Internamento em Centro Educativo e Outras). Aumentaram as restrições ao fornecimento de bens aos reclusos (incluindo alimentação). Há menos trabalho nas prisões, apesar de mal pago (alguns cêntimos por hora), assemelhando-se à escravatura. Piorou a alimentação (tendo-se alargado a privatização do fornecimento das refeições nas prisões – o valor diário para alimentação, por recluso, é de cerca de € 4,00 para as quatro refeições diárias fornecidas por empresas com fins lucrativos). Continua a haver muitos reclusos sem possibilidade de estudar, sendo que 58% têm o 6º ano ou menos de escolaridade, dos mais de 86% dos reclusos que não tinham passado do ensino básico na sua formação escolar. Houve uma degradação do apoio psicológico e de reinserção, com o crescendo de recurso a psicólogos com vínculo precário e em número manifestamente insuficiente. Houve um reforço do securitarismo, apesar da insuficiência de recursos humanos nos estabelecimentos prisionais. Persiste-se nas penas mais longas da União Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é o triplo da U.E.), incluindo a prática de penas sucessivas e de medidas de segurança que leva à permanência de reclusos nas prisões por períodos que ultrapassam os 25 anos. Continuou a retenção indevida do dinheiro dos reclusos, infringindo o direito constitucional do direito de propriedade. Mantem-se a fragilidade do apoio judiciário, insistindo-se na impossibilidade do direito à própria defesa violando o direito internacional (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos) de que Portugal é Estado-Parte; Etc, etc, etc… . Como aspeto positivo evidente assinale-se o desaparecimento do balde higiénico, existência sintomática do medievalismo deste modelo de sistema prisional. Serão precisos mais indicadores para qualificar o actual sistema prisional e de justiça de aterrador, frio, desumano e tecnocrático, menorizando e desconsiderando os arguidos, os reclusos e os mais frágeis, ignorando que na sua frente estão pessoas e não autómatos? Será preciso ter em conta que cerca de 600.000 famílias estão sob ameaça de processo executivo por não conseguirem pagar as prestações dos créditos que lhes foram concedidos, num valor total de cerca de 6 mil milhões de euros (havia, em 2016, cerca de 4,4 milhões de pessoas/famílias com créditos concedidos)? Será preciso acrescentar que as dívidas fiscais atingiram, em 2016, o valor de € 15.000.000.000 e que as dívidas à Segurança Social ultrapassaram os € 7.000.000.000, sendo que muitas destas dívidas originam processo- crime? E os processos nos Tribunais Cíveis, Administrativos e Fiscais? E os processos instaurados pela ASAE, pelos Centros de Arbitragem, pelos Julgados de Paz e outras instâncias? E as execuções por dívidas que levam, muitas vezes, sem culpa propositada do devedor, à perda da habitação e de bens de grande valor afetivo? Como é possível viver num país, Portugal, com pouco mais de 10 milhões de habitantes e com este nível de litigância? Como é possível evitar que muitas pessoas tenham de seguir vias ilegais como razão de sobrevivência? As insuficiências, arbitrariedades, incompetência e desleixo das estruturas e pessoas que suportam o sistema não nos dão esperança de alteração deste quadro catastrófico. A destruição das famílias provocada pelo medo e terror do que lhes pode vir a acontecer e pelo espectro da prisão não pode continuar. As prisões são instituições retrógradas, arcaicas, medonhas, medievais e violentas. Não reinserem e são desumanas na punição. Têm-se mostrado ineficazes na reincidência e na prevenção dos atos anti- sociais. A população prisional tem crescido de forma constante em Portugal e no Mundo, demonstrando a ineficácia deste sistema de justiça punitiva. As estruturas de direitos humanos das Nações Unidas têm recomendado a substituição da via punitiva pelas vias da reabilitação e justiça restaurativa. As prisões constituem uma violenta agressão ao exercício da liberdade e à consideração desta como valor absoluto. Quem defende a liberdade não pode admitir a coexistência de prisões numa sociedade civilizada.Esta situação continua a persistir devido a um patente autismo da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (através dos seus relatórios de actividades), quer de algumas ONGs. Infelizmente, o trabalho destas ONGs não tem levado a mudanças significativas, assistindo-se, inclusivamente, ao apagamento dalgumas delas por inclusão no aparelho e funcionamento de Órgãos do Estado, num colaboracionismo reprovável cujos resultados se traduzem na manutenção da desumanidade do sistema prisional. Por outro lado, o passo positivo dado há já muitos anos, de descriminalização do consumo de drogas, não foi acompanhado duma nova filosofia não punitiva para esta problemática das drogas e sua comercialização, continuando-se uma política de combate que se tem revelado infrutífera e negativa, ao invés de encarar a realidade enquadrando legalmente a sua comercialização e dinamizando uma política de sensibilização para as consequências da dependência (vejam-se os exemplos já conhecidos do tabaco e do álcool que podem servir de guia para uma nova política sobre as drogas). Chegados a 2017, não resta outra alternativa que não seja a continuação do combate a este sistema, desajustado dos valores civilizacionais construídos na segunda metade do século XX. É gritante a necessidade de descongestionamento das prisões portuguesas e de diminuição da duração das penas, enquanto não se abolirem as prisões. A alteração profunda do código penal e a aprovação duma amnistia são atos urgentes que só a ausência de coragem política impede de concretizar. Temos de nos empenhar na construção dum outro sistema, humano, belo, solidário, fraterno, cristão. Temos de derrubar as prisões como a última instituição medieval que subsiste neste início do século XXI, abrindo caminho para a consideração da liberdade como valor absoluto. A crescente aceitação da justiça restaurativa, em que o foco se desloca do perpetrador do crime para o ato e a sua reparação, pode constituir um passo para a abolição das prisões. Temos de centrar a atenção nas implicações concretas das prisões na vida dos reclusos, nas suas famílias, nas vítimas dos crimes e na ineficácia no ressarcimento dos danos provocados pelo crime, mas sem nos deixarmos arrastar pela análise pseudo-científica, pretensamente realista, que se traduz, muitas vezes, numa masturbação intelectual ineficaz para a resposta sobre a consideração da liberdade como valor absoluto. Fiódor Dostoiévsky constatou que “O criminoso, no momento em que pratica o seu crime, é sempre um doente”. Ora, os doentes precisam de ajuda para o tratamento e não de serem enterrados em prisões. Atentemos na reflexão que nos foi legada por Sophia de Melo Breyner Andresen: “A civilização em que estamos está tão errada que nela o pensamento se desligou da mão.” Na construção das bases duma sociedade justa e pacífica e na convicção de que a felicidade humana está ligada, umbilicalmente, à existência em paz duma consciência esclarecida, importa intervir para que o trilhar do caminho da vida seja feito sobre pilares de ética e cidadania, ao arrepio dos caminhos assentes em valores primários de base repressiva que, infelizmente, são o suporte das políticas que actualmente governam o Mundo, apesar das declarações hipócritas de muitos governantes que nos querem fazer crer o contrário, assim influenciando o comportamento das pessoas que acriticamente os escutam. A via para a liberdade como valor absoluto passa por cada pessoa interiorizar o seu compromisso com essa liberdade. Já Agostinho Silva nos dizia num dos seus ensaios filosóficos: “... A primeira condição para libertar os outros É libertar-se a si próprio. ...” Manuel Hipólito Almeida dos Santos (Abril de 2017) Publicado na revista “A Ideia” – Outono de 2017 Excerto da intervenção do Presidente da República, Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa Marcelo Rebelo de Sousa enaltece ação de Obra Vicentina que é «porto de abrigo» para os reclusos. - Dez 10, 2018 (Ecclesia) Reclusos são cidadãos iguais (…) O Presidente da República defende ainda que nada nem ninguém pode sacrificar direitos fundamentais dos reclusos, "cidadãos que são iguais, na essência da sua cidadania e na sua dignidade como pessoas, a todos os demais portugueses". Marcelo Rebelo de Sousa deixou esta mensagem a propósito da atribuição do Prémio Direitos Humanos 2018 à Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, numa altura em que decorrem protestos dos guardas prisionais. A Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos "recorda, nestes dias mais do que nunca, que não há nada nem ninguém que possa sacrificar direitos fundamentais de cidadãos que são iguais, na essência da sua cidadania e na sua dignidade como pessoas, a todos os demais portugueses", afirmou o chefe de Estado. A Assembleia da República distinguiu hoje a Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos (O.V.A.R.) com o Prémio Direitos Humanos 2018, no contexto dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O presidente da República Portuguesa, que marcou presença na cerimónia, salientou que “nenhuma democracia pode considerar-se plena nem sequer duradoura se por ela não tiver democratas a trabalhar”. “Nenhum Estado de direito pode encarar com sobranceria a tarefa cívica da sua constante afirmação por palavras, mas sobretudo por atos”, frisou Marcelo Rebelo de Sousa, que neste contexto elogiou o https://www.publico.pt/1853949 papel desempenhado pela Obra Vicetina de Auxílio aos Reclusos na sociedade. Um trabalho “que nos recorda nestes dias, mais do que nunca, que não há nada nem ninguém que pode sacrificar direitos fundamentais de cidadãos que são iguais na essência da sua cidadania e na sua dignidade como pessoas, a todos os demais portugueses”, sustentou. Em entrevista à Agência ECCLESIA, no final da sessão no Parlamento português, o presidente da O.V.A.R. sustentou que este prémio veio reforçar que “a vivência cristã é necessária nas prisões”, e por isso mesmo deve ser também uma aposta mais efetiva da própria Igreja Católica. “A exemplo do que já acontece em muitos outros países, porque é que em Portugal a esmagadora maioria das dioceses não tem pastorais penitenciárias?”, questionou Manuel Hipólito dos Santos. Sobre os desafios que rodeiam o trabalho feito pela O.V.A.R., aquele responsável realça um meio onde “falta quase tudo”, desde uma “reinserção social efetiva” ao cuidado a ter com os laços afetivos que o recluso deixa no exterior, que serão sempre o seu suporte principal depois de cumprir a pena. “A prisão é um grave contributo para as roturas familiares, que é sempre um ato que lesa profundamente toda a vivência de qualquer pessoa na sociedade”, alertou o presidente da O.V.A.R., que defendeu ainda a necessidade de “uma mudança profunda no tratamento das drogas e da pobreza”, duas das “maiores” causas para a queda na marginalidade. Fundada em 1969, a Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos é uma obra especial do Conselho Central do Porto da Sociedade de S. Vicente de Paulo, entre as mais de 300 conferências vicentinas que aquela diocese integra. A organização conta com o contributo de 11 pessoas, voluntários e voluntárias, que visitam semanalmente os diversos estabelecimentos prisionais da região, desde Paços de Ferreira a Santa Cruz do Bispo, passando por Custóias e Vale do Sousa. “O nosso trabalho fundamental é ouvir, é escutar. Os reclusos têm uma necessidade de ter alguém que os ouça, sem estarem comprometidos com o sistema repressivo da prisão. E nós, tal como as visitas familiares que neste momento estão muito em causa com a greve dos guardas prisionais, representamos ali uma espécie de porto de abrigo”, completou Manuel Hipólito dos Santos. Durante a cerimónia de entrega do Prémio Direitos Humanos 2018, na Assembleia da República, Manuel Hipólito dos Santos apontou várias problemáticas ao contexto dos estabelecimentos prisionais e da Justiça em Portugal. A ausência do direito generalizado àprópria defesa, por parte dos reclusos, as situações em que a permanência na prisão excede os 25 anos previstos – “o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é o triplo da União Europeia”, denunciou o presidente da O.V.A.R. – ou a retenção indevida do dinheiro do trabalho dos reclusos. Também dramas relacionados com “as alegações de prática de tráfico de drogas e bens, de homossexualidade forçada, de violações, roubos, violências, de chantagens sobre as famílias, de autoritarismo e prepotência”, que mostram que as prisões subsistem como “instituições retrógradas, arcaicas, medievais e violentas”, apoiadas “numa parte da opinião pública que apela à vingança, à repressão” contra quem errou. O Estado de direito não pode ficar à porta das prisões”. O coordenador nacional de Pastoral Penitenciária em Portugal, por sua vez, destacou a atribuição deste prémio à O.V.A.R. como “um reconhecimento da sociedade civil ao trabalho que a Igreja Católica faz, através dos seus diversos grupos presentes nas prisões”, e “um estímulo muito grande para todos os que trabalham nas cadeias a nível nacional”. “A O.V.A.R. tem feito já desde há muitos anos um trabalho formidável, de presença, em várias cadeias do norte do país, um trabalho de persistência, de humanização das prisões, de socialização, de integração, numa ligação grande não só com os reclusos e com o estabelecimento prisional, mas com as famílias”, frisou o padre João Gonçalves. Agência Ecclesia Drogas: Principal contribuinte da população prisional O Papa Francisco tem, desde o início do seu pontificado, dedicado particular atenção às prisões, visitando-as frequentemente e manifestando preocupação com as suas consequências no presente e futuro dos reclusos, assim como nas suas famílias, apelando aos Estados para a sua humanização e construção de políticas que visem a prevenção da criminalidade que leva às prisões. A experiência da O.V.A.R. (Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos) nos contactos com os reclusos leva-nos à consideração de que as drogas são, actualmente, a principal responsável pela maioria dos crimes punidos com penas de privação da liberdade, já que além dos crimes específicos de tráfico de drogas e posse de quantidades superiores às referidas legalmente, muitos dos crimes contra as pessoas, contra o património e contra a vida em sociedade são vias para arranjar dinheiro para o negócio das drogas. Esta constatação leva-nos a que tenhamos a opinião de que as drogas são mais um problema se saúde pública do que penitenciário, corroborando semelhantes opiniões de altos responsáveis políticos, entre os quais o atual Diretor Geral da Reinserção e Serviços Prisionais, Dr. Rómulo Mateus. Iguais considerações temos vindo a produzir em eventos relevantes, nomeadamente nas sessões de homenagem de que fomos alvo na Assembleia da República (Prémio Direitos Humanos 2018) e no Terra Justa 2019 – Causas e Valores da Humanidade. Ainda no passado mês de Julho, em audição parlamentar na Assembleia da República, voltamos a dar ênfase a este tema, tendo dito “(…) Com este quadro aterrador é urgente uma mudança profunda, com o entendimento sobre a prevenção da criminalidade como caminho para a abolição das prisões, invertendo a tendência para aumentar o leque de casos e comportamentos humanos classificados como crimes puníveis com penas de privação da liberdade. Como exemplo, podemos atentar na problemática das drogas, que estimo em ser responsável por mais de 80% dos crimes cometidos pelos reclusos em cumprimento de pena, tendo sido condenadas, em 2018, cerca de 8.000 pessoas por questões relacionadas com drogas, além das que foram condenadas por crimes contra as pessoas, contra o património e contra a propriedade que, na maioria dos casos, se destina a obter meios que permitam o acesso às drogas. Tenhamos em consideração que, ainda em meados do século passado, era inexistente, ou quase residual, a sua figuração nos normativos penais. E atente-se nos exemplos que recomendamos aos nossos alunos de figuras famosas da literatura, das artes plásticas, da música e do desporto, que reconhecemos como personalidades relevantes, apesar de terem tido comportamentos e contactos com drogas que, hoje, são puníveis pela comunidade. Além da cegueira que é a não criminalização, com perda da liberdade, do consumo de drogas, não querendo ver que aceitando o consumo tem de se aceitar a sua produção e comercialização. Logo, há que considerar uma nova política de drogas, enquadrando legalmente a sua existência, desde a produção ao consumo, simultaneamente com uma grande campanha de sensibilização para os efeitos das dependências e suas consequências, a exemplo do que já foi, e está a ser, feito para o tabaco e para o álcool. Os meios humanos e financeiros adstritos ao combate às drogas, desde as polícias às prisões e às instituições cujo modelo de negócio assenta nesta problemática da droga e seu tratamento, possibilitam a feitura dessa grande campanha de sensibilização (…).” As prisões e as razões que levam a penas de privação da liberdade, são matéria que deve preocupar todas as pessoas sensíveis às tentações, ao perdão e à misericórdia. S. Vicente de Paulo foi uma dessas pessoas sensíveis, como podemos constatar no excerto do livro “ Vicente de Paulo – Pai dos Pobres – Edições Paulinas – 2006”: Já em 1618, S. Vicente de Paulo tinha visitado as obscuras prisões da Conciergerie onde estavam encerrados, em condições desumanas, centenas de condenados. (…). Era um espectáculo desolador nunca visto até então.(…) Os condenados viviam num verdadeiro inferno, blasfemavam contra Deus, amaldiçoavam a vida e gritavam sem esperança de serem atendidos. (…). Não podendo acabar com esta forma de escravatura, S. Vivente de Paulo desenvolveu uma série de iniciativas no intuito de melhorar as condições de vida destes homens. (…). Manuel Hipólito Almeida dos Santos Presidente da O.V.A.R. Memórias de Prisão Por João Freire Todas estas histórias são conhecidas de historiadores e daqueles que partilham estas ideias e as têm transmitido de geração em geração. Apenas são aqui relembradas para leitores mais afastados de tais problemáticas mas, não obstante, curiosos de coisas do tempo dos nossos avós ou dos avós deles. Nessa altura, só pela imprensa, pelos bandos e proclamações oficiais se conheciam alguns destes acontecimentos, ou então pelo boca-a-boca que sempre deturpa os factos e distorce sentimentos e intenções. A privação da liberdade pessoal de movimentação física foi sempre vista como uma violência e uma punição sobre a pessoa, quer fosse encarada como necessária para a segurança de terceiros, como justa pena para crime cometido ou mera arbitrariedade dos detentores de um poder instituído. As masmorras medievais terão conhecido histórias quase inacreditáveis e o derrube de uma prisão como a Bastilha, em Paris, ficou com símbolo da revolução popular que abateu o mais faustoso e espectacular dos regimes políticos monárquicos “de direito divino”. Os princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade então universalmente declarados não impediram que, na dinâmica imparável de uma luta política fratricida, as prisões voltassem de novo a encher- se, os tribunais populares a sentenciarem e a máquina de Monsieur Guillotin a trabalhar sem detença. O visionário Babeuf e seus amigos da “conspiração dos iguais” contaram-se entre as inúmeras vítimas (reaccionários, mas também progressistas) da República de Danton, Robespierre e Saint-Just. O historiador Daniel Guérin fala com detalhe de alguns destes processos em Bourgeois et bras nus. Nesta sequência histórica, fizeram-se progressos de humanidade, como foi a declaração da abolição da condição de escravo, desde 1815. Contudo, a reorganização política que incidiu sobre os Estados modernos não foi ao ponto de reconsiderar a prática, os efeitos e os fundamentos da prisão como instituição, fortemente associada aos aparelhos de segurança policiais e aos sistemas judiciários. Mas, como na lei física (newtoniana) daacção-e-reacção, quanto mais se aperfeiçoaram os processos penais modernos (incluindo a concepção arquitectural das Penitenciárias, inspiradas pelo modelo panóptico de Jeremy Bentham), tanto mais o engenho dos homens foi capaz de os evitar ou ludibriar, fossem eles meros bandidos ou gente idealista movida pelos melhores propósitos mas inaceitáveis pelos poderosos do Estado ou do dinheiro. As grandes fugas de prisões ou de inóspitos lugares de deportação (mais tarde dos campos-de- prisioneiros ou dos gulags) chegaram a ser motivo para filmes de Hollywood, mas também essa temática do segundo pós-grande-guerra também já passou, consumida na voragem do pós-modernismo estético. Buonarroti (um descendente de Miguel Ângelo), por exemplo, foi um revolucionário que passou a sua vida oitocentista alternando entre as grades de uma cela e a preparação de novas conspirações para derrubar os poderes instalados. Noutros casos, a prisão teria sido absolutamente ineficaz, como quando quiseram punir a homossexualidade e libertinagem do poeta Byron. Mas, apesar destas ameaças, não deixaram de surgir verdadeiros criminosos e psicopatas como Jack the ripper ou Diogo Alves, o assassino do aqueduto das águas-livres de Lisboa. E tais histórias, difundidas pela imprensa da época, também levaram ao aperfeiçoamento das técnicas policiais de infiltração, provocação ou obtenção de confissão, já bem treinadas desde os tempos da Inquisição, de Pina Manique e de Fouché, incluindo os procedimentos da Okrana russa (mais tarde da Tcheka e seguidoras), bem descritos no livro de Bernard Thomas As Provocações Policiais ou pelo casal Arthur London em L’Aveu. Também as técnicas de confinamento prisional foram sendo constantemente aperfeiçoadas, em regimes concentracionários como aconteceu no “nosso” Tarrafal ou como Soljenítsin nos conta em Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, ou então rotinizadas por “mattons” como as sentidas na pele por um Serge Livrozet que as pôs em livro sob o título Berra! Desde os anos 20, os comunistas foram alvo de muitas perseguições e conheceram na primeira pessoa as torturas, as prisões e os degredos, https://pt.wikipedia.org/wiki/Um_Dia_na_Vida_de_Ivan_Denisovich sobretudo por parte de regimes autoritários. Mas, onde os seus ideais tomaram forma concreta de governo, eles usaram exactamente os mesmos métodos contra os seus adversários políticos. As ideologias e os sistemas implantados por Mussolini e Hitler levaram a repressão dos seus opositores ou dos que constituíam obstáculos aos seus desígnios a um ponto inimaginável. A prisão era apenas um patamar provisório para infligir sofrimento; e porque sempre acarretava alguma despesa, o austríaco imaginou os “campos- de-extermínio”. Mas, fossem nacionalistas, xenófobos ou insurrectos, todos já haviam exibido nas ruas as suas façanhas de violência e intolerância, que alguns, como na Espanha franquista ou nas “democracias populares” (e um poucochinho no Portugal salazarista), legalizaram depois dando rédea solta aos seus serviços policiais e prisionais. Hoje, já restam poucos entre nós os que sofreram no corpo e na mente estas inclemências. Alguns experimentaram-nas já em regime democrático, sem as violências anteriores. Mas, mesmo nas actuais polícias de manutenção da ordem e da segurança públicas, os seus comportamentos cívicos e estudados (persuasivos quanto possível, e só firmes ou de força em última instância), à imagem dos “Bobbies” britânicos, são ainda coisa recente. Tal como os guardas prisionais (e antigamente os carrascos), aquelas são profissões que endurecem a psique de quem as pratica longamente, pelo contacto quotidiano com as misérias e escórias da sociedade. Basta ver o que ainda hoje constitui notícia de telejornais, com as violências de agentes policiais made in USA (alguns deles negros) sobre minorias da população especialmente discriminadas. Tal como certos “seguranças privados”, essas actividades parecem ser especialmente atractivas para jovens violentos e de cabeça vazia, prontos a deixarem-se conduzir por demagogos de claques futebolísticas ou de gangs de extrema-direita. E se descemos à África, à Ásia ou à América Latina, tudo isto se agrava e se torna insuportável para qualquer espírito livre e saudável. Por isso, vamos apenas aqui lembrar alguns dos casos de “memórias prisionais” que deram aso a que os seus autores mais tarde os contassem em textos testemunhais ou tivessem sido divulgados por terceiros em livros que conheceram boa difusão em várias partidas do mundo. Em 1860-61, Camilo Castelo Branco esteve detido na Cadeia da Relação do Porto a aguardar julgamento, pelo crime de adultério. Do que dali suportou, viu e ouviu da boca de muitos miseráveis, deixou- nos uma obra literária de referência para o tema: Memórias do Cárcere, publicado logo em 62: é uma colectânea de casos reais das misérias económicas, físicas e morais da sociedade portuguesa de então, e dos desajustamentos e insuficiências das suas instituições públicas. Já perto do fim do II Volume desta obra, escreveu Camilo: «Isto precisa ser completamente arrasado. São palavras do senhor D. Pedro V ao sair das cadeias da Relação quando, pela primeira vez, as visitou. Que tinha visto o Rei? Tudo, as extremas misérias que nunca viram monarcas. Se alguma vez rei de Portugal entrou às enxovias, não o dizem as crónicas. Pedro V foi o primeiro príncipe que se afrontou com a face mais cancerosa e repulsiva da humanidade. Parece que os horrores lhe eram deleite. Contemplava sereno a agonia dos coléricos: a face do moribundo tem como uns resplendores da alva da eternidade; mas o aspecto patibular do parricida parece que tem como esculpidas as contorções da agonia da alma. Não foi a curiosidade artística, nem a cobiça de sensações, que encaminhou o rei ao interior daquelas paredes cintadas e chumbadas de ferro. Foi a presunção de encontrar ali homens mais castigados que as feras, engaioladas e alimentadas por fausto, embora elas tenham devorado tribos nos seus sertões. O rei apeara inopinadamente à porta da cadeia. O carcereiro era um alferes de veteranos, que naquele momento perdeu todo o seu espírito militar e marcial desassombro. Como eu estivesse no escritório, contemplei o pasmo do velho soldado do Rossilhão, o qual, a saber ler, morreria marechal-de-campo; e para ser aos quarenta anos sargento, aprendeu a escrever o nome com a mais imaginosa das caligrafias. […] Esperou o rei no seu escritório, e à pergunta “Quem é o carcereiro?”, respondeu: – Saberá Vossa Majestade que sou eu, à falta de homens. D. Pedro V correu-o com os olhos, e disse: – Conduza-me às enxovias. Abriram-se os alçapões dos calabouços. […] À sua chegada uns presos petrificaram, outros ajoelharam, e alguns, voz em grita, pediam a liberdade. […] Foi ao calabouço das mulheres, uma das quais, de mãos postas, rezou o padre-nosso […]. Saiu Sua Majestade, e, ao descer as escadas, proferiu as palavras iniciais deste capítulo: Isto precisa ser completamente arrasado. Meses depois voltou Sua Majestade à cadeia. Receava-me eu de ser mal visto do monarca, à conta de uma imprudente carta que estampei nos jornais. […] Disto me acometia o receio de ter-me malquistado com a primeira benevolência do rei. Enganei-me. O senhor D. Pedro V era um anjo: não sei dar-lhe outro nome. Foram estas as suas palavras: – Ainda aqui está? […] – Este quarto é mau! – disse o rei, encarando no papel que rebordava da parede em rolos, formando caprichosas laçarias e cornijas. – Vive-se aqui – respondi. – Viveu neste quarto alguns meses o senhor Duque da Terceira, e… Sustive a frase para deixar em silêncio e em desmemória o açougue de 1829. […] Sua Majestade, ao sair segunda vez da cadeia, disse: – Sempre a mesma miséria! […]» (Memórias do Cárcere, Vol. II, 1864: 210-217) Do anarquista russo Bákunine, vale mais começar por citar o modo como o historiador George Woodcock, descreve a sua extrovertida personalidade: «Foi o primeiro de uma longa série de aristocratas a abraçar a causa anarquista e nunca perdeu uma certa delicadezainata de trato, que combinava com uma exuberante bonomia russa e com um instintivo desprezo por todas as convenções burguesas. De estatura gigantesca, o seu aspecto impressionava a audiência, mesmo antes de a começar a conquistar com a sua persuasiva eloquência. Todos os seus apetites, à excepção do sexual, eram enormes: passava noites inteiras a conversar, lia com avidez, bebia aguardente como se fosse vinho e durante um mês na cadeia, na Saxónia, fumou mais de 1600 cigarros; comia com tamanha voracidade, que o director de uma prisão austríaca se sentiu na obrigação de lhe conceder rações duplas. Não tinha o sentido da propriedade ou da segurança material: durante uma geração inteira de dádivas e de empréstimos de amigos e admiradores, distribuindo com a mesma generosidade com que recebia, nunca se preocupando com o dia de amanhã. Era um homem inteligente, culto, mas ingénuo. Espontâneo, generoso, mas astuto. Profundamente leal e, todavia, de tal maneira imprudente que continuamente expunha os seus amigos a perigos inúteis. Revolucionário e conspirador, organizador e propagandista, era um homem verdadeiramente possuído pelo entusiasmo revolucionário. Sabia igualmente comunicar esse entusiasmo aos outros homens, levando-os a aceitar os seus ideais e arrastando-os para a acção, quer nas barricadas quer numa sala de conferências.» (O Anarquismo, Meridiano, 1971: 149-150) Na sequência da revolução de Dresden em Fevereiro de 1849, Bákunine é preso e entregue aos austríacos que o encarceraram na fortaleza de Olmütz, preso por cadeias a uma parede durante mais de onze meses. Condenado à morte em mais de um tribunal e sempre com esta pena comutada em prisão perpétua, veio a passar seis anos nas celas húmidas do bastião Alexis da fortaleza de S. Pedro-e-S. Paulo na cidade de São Petersburgo, dois dos quais “a ferros”. A despeito da sua hipócrita Confissão, o czar terá dito qualquer coisa como: “Eis um bravo rapaz, cheio de espírito; mas é um homem perigoso que vale mais manter aferrolhado”. Com a guerra da Crimeia perdida e a ascensão do czar Alexandre II, algo se altera na política russa: amnistia aos Dezembristas (de 1825), fim da servidão, adopção de um esboço de Constituição. E Bákunine vê a sua pena alterada para deportação perpétua na Sibéria, na cidade de Tomsk. No total, tinha passado oito anos encarcerado, sempre em isolamento. Mas, daí, foi a aventura para a liberdade, correndo a Sibéria até Vladivostok, a América e, enfim, a Europa, onde o seu feito foi bastante referido na imprensa, por inédito. Este homem de uma vontade inabalável trouxe porém dos seus anos de cárcere marcas definitivas: contraíra escorbuto em S. Pedro-e-S.Paulo e, segundo conta Lorenza Foschini, aí «perde os seus dentes, sofre de dores de cabeça permanentes acompanhadas de um zumbido nos ouvidos» (La princeses de Bakounine, 2016: 40; trad. própria). Embora desdentado (mas sempre sedutor), ia contudo começar agora, verdadeiramente, a sua trajectória como agitador anarquista “contra todos os poderes”. De uma geração posterior e de origem aristocrática mais elevada, Kropótkine pediu a demissão do exército depois de presenciar a repressão feita por cossacos a uma revolta de exilados polacos que trabalhavam na construção de uma estrada junto ao lago Baikal. Era bom geógrafo e começou a frequentar os círculos políticos de oposição, incluindo uma visita à Suíça onde muitos deles se haviam refugiado. Acabou por ser preso em 1874 e também ele encarcerado nas masmorras de S.Pedro-e-S.Paulo. O próprio Kropótkine descreveu assim o seu primeiro contacto com esta realidade: «Esta era então a terrível fortaleza onde grande parte da verdadeira força da Rússia havia perecido nos últimos dois séculos, e cujo nome é pronunciado em São Petersburgo em voz baixa. [...] Todas essas sombras surgiram diante da minha imaginação. Mas os meus pensamentos fixaram-se especialmente em Bákunine [...], nesta fortaleza por mais seis anos [...]. “Ele viveu isto”, disse a mim mesmo, “eu devo também fazê-lo: não vou sucumbir aqui!” O meu primeiro movimento foi aproximar-me da janela, situada tão alta que eu mal conseguia alcançá-la com a mão levantada. Era uma abertura longa e baixa, talhada numa parede de um metro e meio de espessura e protegida por grades de ferro e uma janela dupla metálica. A uma distância de uma dezena de metros desta janela, eu via a muralha exterior da fortaleza, de imensa espessura, no topo da qual podia distinguir uma guarita cinzenta. Somente olhando para cima eu podia aperceber um pouco do céu. Fiz uma inspecção minuciosa do compartimento onde agora tinha que passar, ninguém sabia dizer quantos anos. Da posição mais alta da lareira, calculei que estava no canto sudoeste da fortaleza, num bastião sobranceiro ao rio Neva. A estrutura na qual fora encarcerado não era, no entanto, o bastião propriamente dito, mas antes aquilo que se chama um reduto, isto é, uma construção de alvenaria pentagonal que se eleva um pouco acima das paredes do bastião e deve conter dois patamares de canhões. Este meu quarto era uma casamata destinada a uma grande arma, e a janela uma canhoneira. Os raios do sol nunca poderiam penetrá-lo; mesmo no Verão, eles perdiam-se na espessura da parede. O quarto continha uma cama de ferro, uma pequena mesa de carvalho e um banquinho da mesma madeira. O chão estava coberto com um feltro pintado e as paredes forradas com papel amarelo. No entanto, para amortecer os sons, o papel não fora colocado na parede; estava colado sobre lona, e atrás da lona descobri uma grelha de arame, por trás da qual havia ainda uma camada de feltro; só após este eu pude encontrar a parede em pedra. Dentro da sala havia um lavatório; a grossa porta de carvalho, na qual eu abri um postigo para receber a comida, tinha uma pequena fresta equipada com um óculo do lado de fora: chamavam-lhe "Judas", e através dela o prisioneiro podia ser espiado a todo momento. A sentinela que estava no corredor levantava frequentemente a persiana e olhava para dentro – mas eu ouvia as suas botas ranger quando se aproximava da porta. Tentei falar com ele; mas logo o olho que eu podia entrever pela fenda assumiu uma expressão de terror e a persiana foi imediatamente baixada, apenas para ser furtivamente aberta um ou dois minutos depois; mas não pude receber uma só palavra de resposta da sentinela. Um silêncio absoluto reinava em todo o redor. Puxei o meu banquinho para a janela e olhei para o pedacinho de céu que podia ver; tentei captar qualquer som vindo do Neva ou da cidade no outro lado do rio, mas não consegui. Esse silêncio mortal começou a oprimir-me, e experimentei cantar, suavemente a princípio, e cada vez mais forte depois. [...]» (Memórias de um revolucionário, 1899, ed. on-line: capítulo 5 A fortaleza, a fuga, I; tradução própria). Como se vê, estas técnicas de isolamento sensorial não tiveram de esperar pelos blocos carcerais modernos onde as autoridades alemãs condicionaram os radicais da Rote Armee Fraktion dos anos 1970 ou pelas infernais condições de detenção e execução final de uma Sing Sing Prison em Nova Iorque. Dois anos depois, doente, Kropótkine foi transferido daqui para o bloco prisional do Hospital Militar de São Petersburgo, de onde acabou por protagonizar mais uma arriscada fuga que teve por destino a Suíça, onde se instalou nos inícios de 1877, passando a integrar o nascente movimento anarquista, semi-legal, que estava germinando nos países da Europa ocidental. O jornal Le Révolté foi então o instrumento principal da sua actividade propagandística e doutrinária, que encontrou no francês Jean Grave o parceiro ideal, bem encravado em território e no meio operário parisienses. A França estava ainda sob o efeito traumático da Comuna de Paris e já se anunciavam sinais do que seria o movimento reaccionário do “boulangismo”. Neste quadro, um reganho de actividades de protesto popular no centro e sul do país levou à detenção do russo, que agora residia em Londres e apenas atravessara o canal para uma visita aos companheiros gauleses.Em 3 de Janeiro de 1883, juntamente com outros cinquenta e três militantes anarquistas, Kropótkine compareceu perante o Tribunal Correccional de Lyon, que o condenou a cinco anos de cadeia, para serem cumpridos na prisão de Clairvaux (a antiga abadia da ordem de S. Bernardo), especialmente destinada a condenados políticos e militares. Tendo contraído escorbuto e malária, trabalhado intelectualmente em múltiplas obras editoriais e visto crescer uma onda de protesto e simpatia de intelectuais de vários países contra a sua detenção, o governo francês acabou por ceder (ultrapassando as pressões diplomática da Rússia) e Kropótkine foi libertado em Janeiro de 1886, encurtando em dois anos o cumprimento da sua pena (de mero delito de opinião, note-se, já que a acusação de instigador de alguns motins ou actos de violência não puderam ser provados). De Clairvaux nos fala também Jean Grave, que por lá passou alguns anos mais tarde, na época dos atentados bombistas, com os quais nada teve a ver mas cujas sequelas lhe caíram também em cima. Ouçamo-lo, desde a pronúncia da sentença: «[…] Enquanto esperávamos o veredicto, tinham-nos levado para outra sala. Os acusados mantinham-se alegres, trocando graças entre si. Ninguém diria que, de facto, havia a perspectiva de vinte anos de deportação penitenciária [na Guiana ou na Ilha do Diabo] para cada um. Mas acabou por chegar até nós o rumor de que seríamos ilibados. Os jurados tinham demorado muito tempo a pôr-se de acordo. Mas a notícia confirmou-se. Fomos declarados inocentes […] com o governo a dar-nos uma ajuda nisso. O tenente que comandava os guardas de Paris que nos haviam escoltado veio felicitar-nos estendendo-nos a mão. […] Regressados ao tribunal, foi-nos lida a declaração de voto do júri. Seríamos libertados tão depressa despachassem as formalidades da soltura prisional. Íamos ser libertados! – aqueles que não tivessem outra condenação. Os reincidentes, como eu, teriam que reintegrar Mazas [uma outra prisão parisiense]. […] As formalidades para libertar os sortudos foram bastante longas. Seria mentir dizer que eu não senti tristeza por os ver partir. Mas o alívio de escapar a vinte anos de deportação atenuava um pouco o meu desapontamento. Voltei para a Conciergerie [a histórica prisão onde esteve Maria Antonieta antes de subir ao cadafalso] e em seguida para Mazas. […] Fiquei em Mazas até ao fim de Agosto esperando a transferência para Clairvaux. […] Fui levado directamente à Gare de Leste. Soube mais tarde que quase beneficiava de um favor, pois todos os camaradas que “visitavam” Claivaux passavam geralmente por La Roquette [outra prisão famosa de Paris], onde esperavam o comboio que deveria transportá-los. […] Chegámos ao fim da tarde à gare de Clairvaux. Esperavam-me dois guardas prisionais. Tomaram conta de mim e partimos para a prisão que, parece-me, é ainda bastante longe da gare. Mas sabia-me bem passear pelos campos, ao ar livre, depois de nove meses de encarceramento. […] ao fim de uma semana, tiraram-me da cela e conduziram-me perante o director, que me diz ter finalmente recebido instruções do ministério para que fosse transferido para as secção dos presos políticos. […] A secção dos políticos em Clairvaux era um edifício que em tempos tinha servido de enfermaria, e mais tarde como lugar de detenção de condenados militares. Envolvida por muros e com edifícios de um dos lados, havia um pátio ao meio onde com tílias plantadas. […] Eles [os outros detidos nesta secção, de nomes Fortuné e Breton] informaram-me que eu tinha sido um privilegiado. Todos os que me haviam antecedido em Clairvaux tinham sido obrigados a fazer um estágio de um mês na secção dos detidos “de direito comum”, antes de passar aos “políticos”. Fortuné era irmão de Émile Henry [o bombista da Gare St. Lazare em 1894]. Era algo fanfarrão. Para passar o tempo, pintalgou um ou dois quadros, usando papelada da administração como telas. Eram filhos do coronel Henry, da Comuna. Ele e seu irmão haviam sido educados em Espanha, onde o pai se havia refugiado, e onde morreu. Contou-nos que, como seu irmão, ambos tinham sido espíritas, antes de se tornarem anarquistas. Ter-se-ia ele realmente curado? Contou-nos também que os últimos actos do irmão não tinham sido senão uma forma de suicídio. Amoroso de uma mulher casada, fora para pôr termo à vida que ele se lançara na “propaganda pelo facto” [isto é, o ilegalismo e os atentados]. Eu nunca conheci Émile Henry; mas, quando li a sua declaração no processo judicial, custou-me o tom seco, frio e sem piedade que se pressentia. Era cortante como o gume de uma faca. Era corajoso, mas não havia ali qualquer traço de sentimentalidade. […] Uma vez instalado, escrevi aos amigos pedindo livros. Méreaux, que tinha sido solto após uma detenção mais ou menos longa, tinha travado conhecimento com um cantor da Ópera, o qual pôs a sua biblioteca à minha disposição. Com Stock [conhecido editor parisiense], tínhamos trocado várias cartas agridoces, mas acabámos por nos entender: escreveu-me informando enviar um caixote de livros. Gauche, também ele liberto, prometeu enviar-me tudo o que quisesse. […] Mas duas caixas eram demais para o director. Depois de ter esvaziado metade da primeira, ele voltou a meter ali todos os volumes, mesmo aqueles que não tinha julgado dignos da minha leitura. […] Das nossas janelas, a vista estendia-se longe, sobre os campos. Num canto do sótão, situava-se a capela. Um dia, em que me entretinha a esquadrinhar o que se encontrava no dito sótão, onde estavam em balbúrdia coisas do antigo mosteiro, fui surpreendido por um som de vozes que oravam. Espreitando por uma fenda do tabique, vislumbro um padre e dois detidos lendo orações fúnebres sobre um caixão. Foi uma visão sinistra naquele tugúrio! Como alimentação, ao meio-dia tínhamos um prato de carne, geralmente bife, um prato de legumes e meio-litro de vinho, este para o dia inteiro. Era escasso. Mas, como disse, salvava-nos Breton, com os víveres que ele recebia do exterior. Eu em nada poderia ajudar a melhorar o nosso menu. Não disporia sequer de um vintém se Reclus [o geógrafo] não me enviasse dez francos por mês. […] Quando eu cheguei os jornais ainda não eram autorizados, mas isto mudou pouco tempo depois. Pude então ler o relato da desgraduação de Dreyfus! Um oficial! Um milionário! Confesso que, até então, não tinha cuidado muito do que lhe sucedia. Inocente? Culpado? Quem poderia saber?... Mas devia, de facto, “haver alguma coisa. Não se rebaixa um milionário como se fora um pobre diabo”! Lendo agora a narrativa da sua despromoção, impressionou-me o seu protesto e declaração de inocência, pelo acento de verdade que dela se desprendia. […]» (Quarante anos de propagande anarchiste, 1973: 325-332; trad. própria) Como se observa neste testemunho directo, as condições prisionais de um regime democrático como a III República francesa eram já bem diferentes das da monarquia russa coeva. No entanto, as sevícias (não oficiais) e a pena de morte continuaram existindo ainda durante várias décadas. E na “livre América” houve que esperar cinquenta anos para as suas autoridades legais reconhecerem o “erro judicial” que levou os anarquistas italianos imigrados Sacco e Vanzetti à cadeira eléctrica, como levara o sueco Joe Hill (militante dos Industrial Workers of the World) ao pelotão de fuzilamento. Em tempo de guerra (declarada ou não) estas circunstâncias tornam-se sempre mais gravosas para as liberdades civis. Maurice Joyeux, um anarquista com quem ainda tivemos a oportunidade de conviver em Paris, foi protagonista de um outro acontecimento típico, embora raro, dos encarceramentos penais: o da revolta dos presos, quando o desespero atinge um auge. Mutinerie à Montluc (ed. La Rue, 1971) é o título do livro de tom romanceado que escreveu sobre o tema, com ocultação deliberada das identidades, apesar da advertência aos leitores que antecede o texto e que aqui citamos: «Este livro é um relato. A rebelião que teve lugar a 1 de Janeiro de 1941 na penitenciária militar deMontluc [nos subúrbios de Lyon] constitui o seu pano de fundo. Este motim, o único bem-sucedido durante este período perturbado, é geralmente ignorado, por a autoridade militar ter feito um prudente silêncio em volta dele. Os factos relatados nesta obra são rigorosamente exactos. Este livro foi escrito em memória dos homens que, em Monluc, Lodève, Mauzac ou Vancia, se bateram pela dignidade humana. Contrariamente a um costume que se vem expandindo na literatura, o autor não vê nenhum inconveniente em que certos indivíduos se reconheçam nas personagens desta narrativa.» É talvez tempo de passar a referir dois casos exemplares acontecidos em Portugal e de que foram vítimas – mas assumindo plenamente os actos que os levaram para tais situações penosas – pessoas que vários de nós ainda bem conhecemos. José Correia Pires, um carpinteiro civil algarvio, originário de S. Bartolomeu de Messines, foi parar ao Tarrafal em 1937, na sequência da tentativa de greve insurreccional de 18 de Janeiro de 34. Eis a descrição que ele fez dos primeiros tempos dessa oficialmente designada Colónia Penal de Cabo Verde, à sua chegada em Junho de 1937: «[…] A área do Campo, em forma rectangular, andaria por uns 5 hectares, rodeado então por uma vedação de arame farpado, de uns três metros de largo e um metro e cinquenta de altura. Um portão de uns três metros de largo por três também de alto dividido em duas folhas, cada uma com duas couceiras e três travessas, formando dois claros com duas travessas em diagonal que as reforçavam e onde o arame farpado era pregado. No interior do Campo havia 18 barracas de lona, assentes em estrados de madeira e fixas com espias de corda, cada uma com a lotação de 12 camas, por onde se espalhavam os 192 presos que agora éramos. A nascente havia 2 barracas de madeira, uma que servia de oficina de sapateiro, alfaiataria e barbearia; outra que era o lavadoiro e casa de banho. Por trás desta, havia as latrinas, duas paredes levantadas a cerca de 2 metros de altura de uns seis metros de comprido, e uma outra parede ao fundo cuja largura não iria além de metro e meio, com uma entrada de uns 0,70cm e uns 80 de parede que encobria, do exterior, o lado onde seis latões metidos em buracos recebiam os dejectos de cerca de duzentos homens que, de 24 em 24 horas, […] eram pelos presos vazados ao mar que a uns 600 metros ficava do Campo. Ao fundo, do lado do poente, ficava a cozinha, um pouco mais para o Norte e a entrar para dentro do Campo, mais uma barraca de madeira, que servia de enfermaria. A meio do Campo dois barracões de alvenaria, um que servia de refeitório, com uma divisória longitudinal ao meio, uma parte servia de refeitório e uma outra de oficina de serralheiro; um outro, do lado esquerdo, frente para a entrada, teve mais que uma função e, quando deixei o Tarrafal, era para onde iam os doentes crónicos ou em convalescença […]. O Tarrafal, embora seja uma macabra criação do salazarismo e expressão perversa de um sistema, que em tudo queria imitar a barbárie e terror do fascismo da Itália e nazismo da Alemanha, ou da Rússia, esteve na verdade muito aquém dos campos de Dachau e Grossrosen, de Karaganda e da Sibéria e tantos outros […]. Do lapso de tempo a que o mesmo autor chamou de “período agudo” – das febres tropicais e primeiras mortes de prisioneiros –, retenha-se a seguinte descrição, dramaticamente vivida: «Em 1937 as chuvas vieram mais cedo e teriam já sucedido a tempos de secas, como a outros anos de secas catastróficas antecederam. O Tarrafal foi construído com fins maléficos e selváticos, e quem o seu lugar escolheu deve ter delirado por ser tão objectivo e prático na escolha de um lugar de suplício. Cerca de duzentos homens encurralados, carentes de tudo que humanamente à vida é necessário, em luta com a ferocidade dos seus carcereiros e as intempéries de um clima que nem aos indígenas perdoa, vêem-se atacados de malária, coincidente com um ou outro caso de tifo, segundo vozes que do exterior nos alertaram, incluindo um inquinamento de águas que nos eram fatais e sem apelo a nada que nos valesse ou a alguém que nos ouvisse. As dezoito barracas eram 18 enfermarias, que nos primeiros dias se auxiliavam umas às outras, mas em breves dias ninguém nos acudia, porque num acampamento de 192 presos só 8 andavam a pé e de fora nada se esperava, como corolário de uma tragédia previamente preparada com requintes de malvadez inconcebível! Em todas as barracas há gritos de aflição e gemidos agónicos que mais afligiam a vida de uns ou outros menos afectados, mas caídos e sem se poderem levantar. A água, iam- na buscar os presos, em latas de 18 litros, ao único poço que nos podia servir. Não era água de fonte ou nascente, mas de infiltração de água do mar e por isso sempre salobra. O poço estava no Chão-Bom e a uma distância de cerca de 500 metros do Campo, era transportada a- pau-e-corda como tudo o que saía ou entrava no Campo, pelos presos […]. Os presos em pé não podiam parar. Desde a água, que nem para um décimo das necessidades chegava, andavam de barraca em barraca a acudir aos casos mais prementes, a insistir com um ou com outro que se pudesse mexer para pôr pachos de água fria na testa do camarada que delirava com febre. […]» (Memórias de um prisioneiro do Tarrafal, 1975: 184-186 e 200-201) O outro caso emblemático que quereríamos aqui lembrar foi o do anarco-sindicalista Emídio Santana, principal autor do atentado a Salazar de 4 de Julho de 1937. No seu livro de memórias pode ler-se: «[Expulso de Inglaterra e rejeitado em França,] Cheguei a Lisboa a 19 de Outubro, entregue à polícia portuguesa quando já estavam presos quase todos os elementos que tinham participado na acção revolucionária. […] De 19 de Outubro de 1937 até à madrugada de 15 de Janeiro de 1939 decorreu a fase de interrogatórios, incomunicabilidades e o julgamento […]. Julgados por homicídio com todas as agravantes fomos condenados a penas de prisão maior penitenciária e degredo. […] O ministério da Justiça, que rivalizava com o ministério do Interior na querela de quem descobrira o atentado, a PVDE ou a Judiciária, acaba por prevalecer para nos levar à sua jurisdição penal, condenados pelo tribunal militar. Foi assim que não fomos levados para o Tarrafal mas destinados à noite penitenciária. A sentença destinava-me 8 anos de prisão maior celular seguidos de 12 de degredo. De Emídio Santana passei a ser o 71/1194. O meu bilhete de identidade eram as próprias calças, o casaco, a camisa e as ceroulas numeradas. Aqui começou a vida entre os ex-homens. […]» (Memórias de um militante anarco-sindicalista, 1985: 260-263). Da sua estadia de mais de dez anos na penitenciária de Coimbra (e mais de dezasseis na totalidade), Santana fala um pouco naquela autobiografia. Com a sua inteligência e vontade de sobreviver, conseguiu superar as agruras do isolamento, organizando actividades de ensino e cultura para os outros presos, trabalhando na tipografia onde se imprimiam teses académicas e ele podia conversar brevemente com os seus autores, e até continuando a sua militância política dentro e (para) fora da prisão. Mas também pôde gravar indelevelmente no seu espírito muitos dos dramas pessoais dos detidos que foi conhecendo. E, à maneira de Camilo, escreveu uma obra, publicada só postumamente, onde relata alguns desses casos, que começa assim: «Deixai Toda a Esperança, Vós que Entrais (in O Inferno, Dante). É afinal desse mundo ignorado dos ex-homens, dos malditos e infelizes, que tentamos aproximarmo-nos para nos apercebermos da sua pungente realidade dramática nesta sociedade convencional em que vivemos e que a omite, mas não podemos ignorá-la. Devemos por humanidade ser compreensivos dessa realidade e não escondê-la na sombra nem escamoteá-la. […] Será registado e numerado e despojado do que não lhe consentiram; deixou de ter nome, substituído pelo número de ordem; deixou de ter personalidade porque não é pessoa, é número; não se determina porque está sujeito a ordens uniformes. Deixa de ter vontade própria; só obedecee desiste de toda a esperança diluído na multidão cativa. No mundo dos ex-homens o imperativo vital é sobreviver e para tanto terá de encontrar na sua imaginação ou audácia as formas de resistir, de sofismar ou iludir. Naquele espaço confinado onde tem de viver ali mesmo fermentam todos os dramas e conflitos e onde todos estão confrontados a todas as horas com as paixões, as angústias, as revoltas ou as subtilezas de todos e de cada um, não há momentos de tranquilidade. E cada um, portador do seu drama lá dentro encontra só, segundo a sua natureza, silêncio, escuridão e nada mais. […] Nestes acontecimentos que aqui ficam revelam-se tanto os assomos do homem e da sua natureza humana como os estigmas que o sistema produz. Todavia a inscrição que Dante colocou no seu poema não deixa de ter um cruel fundamento. O cárcere não deixa de ter esse estigma, e será sempre a expressão desse inferno mitológico que permanece entre os homens.» (Onde o Homem acaba e a maldição começa, 1989: 13-15) Revimos alguns registos de indivíduos que conheceram longamente os sistemas prisionais “por dentro”, isto é: na posição de condenados. Ao lado deles, o que vou relatar a seguir é nada, é zero. E, no entanto, para mim, que vivi essa semana totalmente anómala na minha existência, de quase tudo guardo a mais viva recordação, as expressões fisionómicas dos meus interlocutores, alguns dos pormenores físicos do pequeno universo concentracionário que experimentava, o tom e o teor das conversações havidas nessas horas passadas em angustiosa espera. Estava-se em Espanha na transição política da ditadura para um regime democrático, ainda muito incerta. Franco morrera em Novembro de 1975, pelos mesmos dias em que, quase quatro décadas antes, Durruti caíra de armas na mão frente ao seu Exército de África na Cidade Universitária de Madrid, então ainda em construção. Agora, chefiava o governo Adolfo Suarez, um homem do Movimiento que percebera ter chegado a hora da mudança e contava com o apoio do novo rei Juan Carlos. Mas as resistências internas eram imensas, sobretudo na elite incrustada nos altos cargos do Estado, no exército, na polícia e na Guardia Civil. O terrorismo da ETA, do GRAPO e de outros grupos armados constituía também um enorme problema porque dava todos os argumentos aos ultras e incitavam os conservadores para se oporem à reforma política. Com a compreensão do PSOE de Felipe González e as posições “euro-comunistas” de Santiago Carrillo, Suarez conseguira dar passos legais para essa evolução em finais de 76 e apontava-se já para o Verão seguinte a realização de eleições gerais pluri-partidárias. Mas a legalização dos partidos políticos (e especialmente do PCE) não estava ainda adquirida e, às acções violentas da extrema-esquerda e dos radicais bascos, a extrema-direita respondia com outros atentados. Os “Guerrilheiros de Cristo-Rei” eram o grupo paramilitar mais em vista nesse campo, suspeito de várias “execuções extra-judiciais” e de evidentes conexões com meios policiais. E o ambiente tornou-se escaldante quando a 24 de Fevereiro de 1977 ocorreu a “matança de Atocha”, um assalto de gente deste timbre a um escritório de advogados comunistas de Madrid, assassinando a tiro cinco deles e ferindo outros quatro com gravidade. Em Portugal, o ano de 1976 fora o da entronização do regime democrático prometido pelos “militares de Abril”, com a aprovação da Constituição e a realização de eleições para os principais órgãos de poder do Estado. Boa parte da forte extrema-esquerda de então apostara em Otelo, o PCP dominava no Alentejo e nas cinturas industriais de Lisboa e Setúbal, mas Mário Soares conseguira os apoios parlamentares suficientes para governar, com António Barreto a tentar regularizar as ocupações de terras alentejanas. No esquálido campo anarquista, os grupos acampavam nas suas diversas posições ideológicas, divididos sobretudo entre os anarco- sindicalistas d’A Batalha, os libertários da Voz Anarquista e da FARP, e alguns grupos mais radicais que se reconheciam na linguagem forte da Acção Directa. Pelo que me dizia respeito, eu estava sobretudo empenhado na construção de uma federação anarquista, plural à moda dos franceses, mas – à vista de certas exuberâncias que se manifestavam, só em parte sob a forma de “bocas dos anarcas” muito soixante-huitards – muito acautelada para com a situação de clandestinidade em que se encontrava ainda a maior parte dos anarquistas em Espanha. Eu fazia parte das cinco pessoas designadas (em reunião plenária de delegados dos grupos aderentes) para a Comissão de Relações (CR) da Federação Anarquista da Região Portuguesa, uma velha designação dos anos 30 que havíamos ressuscitado e, como então, que se reconhecia como parte constituinte da Federação Anarquista Ibérica fundada em 1927, aliás com a participação dos portugueses. Esta ligação era, contudo, agora meramente simbólica e de troca de informações mútuas, mas não deixava de evocar antigos mitos (a “subversão na Ibéria”), espiadas policiais ou legítimas desconfianças de gente de fora que se perguntaria “quem de facto ali mandava”. Nestas condições, as relações do “comité” da FARP com os espanhóis faziam-se exclusivamente por correspondência postal com a FAI-no- Exílio, que tinha a sua sede em Toulouse e que desde há muito era dirigida por Federica Montseny (a primeira mulher que foi ministra em Espanha, durante a guerra civil) e seu companheiro Germinal Esgleas, ou então por meio de pessoas devidamente mandatadas para o efeito. Eu próprio desloquei-me algumas vezes a Toulouse e pude ter longas conversas com aqueles dois “papas do anarquismo”, com quem aliás algo aprendi da sua longuíssima experiência de vida, tumultuosa, nos anos da República, da guerra civil, da ocupação nazi e do prolongado exílio. Nunca recebi deles qualquer ordem ou sequer pedido: apenas informações, detalhes pessoais ou circunstanciais, e conselhos de prudência; e também algum dinheiro recolhido entre os seus camaradas, de solidariedade para com A Batalha e o relançamento da nossa propaganda, num país que vivera muito tempo “a preto e branco”; salazaristas a mandar, e comunistas a tentarem resistir- lhes. Mas, mais do que com os espanhóis exilados em França, a FARP tinha sobretudo relações epistolares com a Internacional de Federações Anarquistas (IFA), cuja sede se encontrava então em Savona, nas mãos de um adorável ancião italiano chamado Umberto Marzocchi: um homem que conhecera as origens do fascismo, lhe resistira com a Unione Sindacale Italiana (USI), se refugiara em França e combatera na guerra civil espanhola, e depois participara na Resistenza contra alemães e fascistas da sua pátria. Também com esse me encontrei diversas vezes e tive o mesmo tipo de relacionamento pessoal (decerto mais afectivo) e organizacional. E foi por seu intermédio que se combinou que a FARP deveria enviar um seu delegado a uma reunião plenária de delegados dos grupos anarquistas espanhóis que iria ter lugar em Barcelona em finais de Fevereiro de 77, organizada em modo clandestino. Colocada a questão ao Comité da FARP, fui eu, naturalmente, o designado para tal missão. Eu próprio forjei a credencial (em papel de seda amarelo) que mandatava Júlio Figueiras (o pseudónimo que eu usava publicamente) para essa representação, terminando com: “Pela Comissão de Defesa, ass. Graco”. A dita Comissão de Defesa era constituída por mim e outro elemento do “comité”, sendo por estes que deveriam passar as relações epistolares ou os contactos com Espanha (realmente, quase nenhuns) e os planos de fuga que eu tinha organizado com camaradas franceses da minha confiança pessoal para o caso de saída em emergência do país. Durante todo o “PREC”, estas precauções não eram excessivas, pois, como nós, muitos outros receavam que a aventura da “revolução dos cravos” terminasse num regresso-da-Outra-Senhora (que ELP’s e outros alimentavam) ou numa “Cuba à Portuguesa”. Também por nós passava em exclusivo a cachette das pistolas que nos vieram parar às mãos logo nos primeiros diasde “Abril libertado” por simpática oferta recordatória de alguns oficiais do MFA meus amigos, e das quais nos desfizemos logo que foi oportuno. Foi nestas condições que, numa sexta-feira ao fim do dia, apanhei o comboio Lusitânia-Expresso na gare de Santa Apolónia com destino a Madrid. Lembro-me bem que apenas transportava um saco de viagem, em napa amarelada, com alguns pertences higiénicos (e nada de papéis comprometedores) e vestia um casaco de abafo curto, de padrão claro aos quadrados, e bonet estilo francês. A credencial ia bem escondida no forro de uma das peças do vestuário. E tinha comigo o bilhete de identidade nacional e um passaporte legal. Cheguei a Madrid, à estação de Atocha, ao romper da manhã. Havia polícia por todo o lado, e pequenos grupos que conversavam e logo se dispersavam. Era o efeito do assassinato dos advogados, cometido das vésperas. Fiquei mais assustado. Mas já à partida do comboio, ao despedir-me de minha companheira (que deixara o nosso filho criança em casa dos avós), fora possuído por um estranho mal-estar psicológico. Estaria eu a correr para um precipício? Segundo a agenda noticiosa, a conjuntura política em Espanha era pesada, a incerteza grande, receava-se sempre um novo “golpe” dos militares e “ultras” do regime, ainda ressabiados com a morte de Carrero Blanco e muito críticos do caminho seguido por Suarez. Mas, ao pisar o solo de Atocha, sentir o comportamento dos transeuntes e dos agentes policiais, ver os escaparates onde os jornais e revistas titulavam “gordas” interrogativas ou alarmantes e mostravam imagens a condizer, aí percepcionei verdadeiramente o “clima” emocional por que passava a Espanha urbana naqueles dias de expectativa. Há muito que não tinha estado em Madrid mas foi sem dificuldade que, de Metro, me desloquei para a gare de Chamartin, do outro lado da cidade. Consultado o horário dos comboios e adquirido o respectivo bilhete, tomei novo comboio para Barcelona, viajando durante a maior parte do dia. Conhecia um pouco a capital da Catalunha, onde havia selado um compromisso de vida com a minha companheira no Verão de 1970. Agora, porém, tudo era diferente. Desembarquei não sei exactamente onde, talvez na Estació del Nord, e dirigi-me para a zona cidade onde tínhamos fixado o encontro com alguém que eu desconhecia. Era para as bandas do Arc de Trionf e terei jantado alguma coisa por ali, sempre de olho alerta para quaisquer indícios de perigo, que não vislumbrei. O ambiente urbano parecia-me quase normal, com bastante gente nas ruas e próprio de um sábado à noite, diferente do que sentira em Madrid. Apesar disso, talvez pelos meus receios e precauções, no meio de tanta gente que por ali circulava, eu tentava discernir qualquer indício, quer de eventuais camaradas, quer de polícias disfarçados ou provocadores de extrema-direita. Lembro- me perfeitamente da figura de um homem que retive no meu “colimador”: circulava por ali, sem fim aparente, cruzando na praça por várias verdes; era forte e atarracado, usava barba ou bigode, e distinguia-se pelo uso de um casacão de pele de carneiro, com o coiro amarelo para o exterior e a lã branca virada para dentro, com afloramentos na gola e nos punhos – muita gente usava tal veste naquela época, em França e outros países. Finalmente, o meu enlace manifestou-se, identificando-me pelos sinais vestimentários combinados: a cobertura de cabeça, o lenço de pescoço, o jornal que fingia ler. Abordou-me. Era um rapaz novo e entrámos no ritual da troca do “santo-e-senha” que, levado a bom termo, aliviou consideravelmente o meu stress. Confiava agora que estava “entre camaradas”. Percorremos ruas da cidade velha e encontrámos algum outro militante que nos levou de carro para o apartamento onde iria pernoitar. Estariam aí dois ou quatro anarquistas, entre os quais um proletário espanhol que eu conhecia de Paris, míope e de óculos de aros redondos que falou e contou histórias até tarde. Falava em voz baixa e referia-se aos companheiros da FAI como “la familia”, o que me incomodava deveras pelas conotações que no meu cérebro se faziam à mafia siciliana. Conversámos sobre a situação em Espanha e eles falaram que a polícia andava alerta connosco. Adormeci porque era tarde e estava cansado da viagem mas com fundadas preocupações sobre como iria correr no dia seguinte o tal plenário clandestino. Era domingo de manhã e viam-se poucas pessoas nas ruas. De carro, levaram-me para um bairro talvez periférico de casas baixas e modestas. Entrámos num bar-restaurante de portas já entreabertas, ao fundo do qual, descendo uns degraus, se desembocava num amplo armazém apenas preenchido com muitas cadeiras. Os camaradas iam chegando em pequenos grupos. Alguns, eu conhecia, de vista, de Toulouse ou Paris; mas, mais afectuosamente cumprimentei um jovem casal (ele, catalão do Alt Empordà; ela, estremeña de sotaque serrado) com quem muitas vezes falara em França, e sobretudo abracei o já referido septuagenário Umberto Marzocchi (que vinha acompanhado de um “trintão” de nome Mateo) e o espanhol Isaac Garcia Barba, do comité da FAI-no-Exílio, também meu conhecido. Seriam talvez dez horas, a sala enchera-se (jornais terão dito ser 78 os anarquistas presentes), a “mesa” reconhecia as credenciais dos delegados que iam chegando e ia dar-se início aos trabalhos, com a consagrada fórmula de saudação “aos presentes, a todos os que lutam pela liberdade e aos que sofrem nas prisões”. Alguém na “mesa” lembrou a ordem-dos-trabalhos e explicou a metodologia em que deveria decorrer a reunião. Nisto, um velho anarquista que eu já vira algures em França, aproximou-se e questionou a “mesa” sobre um grupo de camaradas que, embora sem a devida credencial, estava na rua e pedia para poder participar nos debates. Ele afiançava a sua “solvabilidad”, de “buenos compañeros”. A sua argumentação fazia bater no meu cérebro a imprecisa ideia de que já assistira em Toulouse a uma conversa idêntica do mesmo homem. E a sensação de desconforto, de irritação por mais uma destas parvoíces do militantismo vir ali perturbar o regular funcionamento de um processo colectivo que tinha regras e devia realizar-se com fluidez e eficácia, dadas as circunstâncias em que nos reuníamos, voltou a assaltar-me. Não sei, nunca saberei, nunca quis saber, se se tratou de uma infeliz coincidência, de um provocador involuntário, de uma “infiltração” policial ou que de alguém que cedera sob a tortura e revelara a ocorrência daquele “pleno”: o certo é que, num instante seguinte, abre-se com estrondo a porta do barracão e desce em tropel por aqueles degraus uma chusma enorme de gente de pistolas na mão aos gritos de “Al suelo! Al suelo!”, empurrando quem encontrava pela frente, virando meses e cadeiras, pontapeando os que, tomados de espanto e surpresa, tardavam a fazê-lo ou, apenas de joelhos, tentavam articular algumas palavras. Uns vinham à civil, outros em uniformes, alguns deles de metralleta a tiracolo. À minha consciência assomou, num instante, o profundo desgosto por me ver em tal situação, que concretizava o pior dos meus receios. E, talvez já em fundo, a pergunta que um antigo profissional sabedor das coisas da guerra deveria fazer: “como é que eu me fui meter como amadores como estes, que se deixam cair assim em tais armadilhas?”. Deitado no chão, meio entrelaçado com outros conjurados, no meio daquela desordem que ao fim de alguns minutos se acalmava, pude perceber que quem dava as ordens àqueles invasores era um oficial fardado, não sei se da Policia Nacional se da “Benemérita” Guardia Civil: e isso descansou-me um pouco, porque me indicava que não se tratava da acção de um “esquadrão da morte” colaborante com a polícia, mas antes de uma intervenção planeada das autoridades de segurança do Estado – o que sempre me oferecia outras garantias de segurança pessoal, ligadas à burocracia e regras jurídicas que sempre existem, mesmo numa ditadura, ainda que aqui mais desenvoltamente “ajustáveis à realidade”. Este raciocínio era também o sinal de que eu estava a ser capaz deultrapassar o medo e o desespero momentâneos por via de uma saída para o campo da racionalidade: onde eu procurava ajuizar todos os principais dados da situação e do seu contexto, as previsíveis informações e intenções dos policiais (e dos torturadores que estariam à minha espera) e as minhas possíveis linhas de defesa e comportamento em tão desagradável e perigosa posição. E, finalmente, sempre deitado de borco mas espiando como podia o que me circundava e sobretudo os gestos e as palavras dos homens armados, eu registei em definitivo no meu cérebro e na minha memória os esgares e as expressões de terror que se afivelam à minha volta nos fácies daqueles anarquistas amedrontados como carneirinhos, ali espezinhados e reduzidos a capachos por uma alcateia de brutos: Onde estavam os destemidos combatentes da liberdade que ainda ontem à noite pareciam ser capazes de desafiar os sequazes que Franco deixara plantados naquele país? Como pensavam eles ser capazes de suscitar a admiração e constituir um exemplo de digna resistência às opressões para o sempre tão louvado pueblo ou os estimáveis trabajadores? Onde estava agora a FAI que, no dizer grosseiríssimo e machista de alguns, era “los cojones de la CNT” (o sindicato que outrora fora a “organização de massas” do anarquismo espanhol)? Acredito que muitos outros dos presentes estariam pensando como eu. Mas, entretanto, obedecendo às ordens imperativas, fomos sendo algemados, agrupados, trazidos para o exterior e enfiados em carros celulares, a caminho da Jefatura General de Policia. Nunca cheguei a reconhecer visualmente a localização desta instituição na cidade de Barcelona. Lembro-me apenas do seu grande pátio interior, onde fui desembarcado, e de vários detalhes funcionais e arquitectónicos por onde sucessivamente me fizeram passar nesse domingo de má memória: fotografias, sob vários ângulos; impressões digitais de todas as extremidades das mãos; identificação do meu saco de viagem e conferência de tudo o que lá ia dentro; desapossamento do vestuário, trocado por um uniforme-de-detido de pano grosseiro acinzentado, só conservando os meus sapatos, porém sem atacadores; e, finalmente, descida para uma cave onde se situava um corredor de calabouços e onde fiquei encerrado em cela individual. Porém, neste itinerário, um pormenor não me escapou; entre os polícias à paisana que por ali actuava e ajudava a organizar a distribuição e encaminhamento dos detidos figurava o tal homem forte e atarracado de casaco de abafo de pele de carneiro que eu vira na véspera junto ao Arc de Trionf: era a prova de que eles sabiam antecipadamente daquela assembleia, seguiam alguns dos envolvidos e se aprontavam a lançar a sua rede de modo a colher o maior número. Começava aqui a minha estadia prisional, então sem qualquer formalidade em que porventura me dissessem porquê estava ali detido e ao que me destinavam. Somente os carcereiros se nos dirigiam com palavras breves e sem espaço para perguntas ou contestações (a que eles, de resto, não saberiam responder, nem se importavam com tal). A minha célula era escura e sem luz eléctrica, rectangular, de uns dois metros por quatro: um topo quase inteiramente preenchido por porta de ferro gradeada de alto a baixo; no outro, havia em cima uma entrada de luz e ar, também com grade, que percebi abrir para a tal pátio grande, rente ao solo. Salvo o “balde das necessidades”, não existia qualquer mobiliário, pelo que tinha de passar as horas sentado nas frias lajes do pavimento, ou então caminhando meia-dúzia de passos em cada sentido. As refeições (café matinal e duas diárias, de quantidade suficiente, vista a nossa imobilidade, mas de qualidade mínima, tipo feijoada com alguns pedaços de carne), eram-nos trazidas às celas pelos guardas, em prato de alumínio, com colher e púcaro com água. À noite, mandavam-nos sair, um por um, para ir à arrecadação existente no mesmo corredor buscar uma enxerga e um cobertor (talvez também uma almofada), e era assim que dormíamos. De manhã cedo, repetíamos a saída para a devolução daqueles aprestos e irmos à casa dos lavatórios passar um pouco de água ensaboada pelo rosto e partes do corpo. E eram estas as condições materiais em que por ali “vegetavam” algumas dezenas de pessoas, por prazos mais ou menos longos. De sons, vozes ou ruídos, nada chegava aos nossos ouvidos proveniente da vida urbana circundante, ou do funcionamento da própria instituição, que nem sabíamos ao certo qual era. Estávamos presos: Era tudo! E era suposto bastar-nos. Mas, ao longo daquele inóspito corredor, para onde deitavam todas as celas, umas individuais, outras maiores e acolhendo vários detidos, ouviam-se espaçadamente vozes e timbres que sempre nos forneciam informações aos nossos espíritos atentíssimos: eram monossílabos dos guardas para os prisioneiros, pequenos segmentos de conversas entre carcereiros (sobretudo nos momentos de rendição dos seus turnos), alguma altercação em cela colectiva ou gritos reclamantes de um detido (por vezes queixando-se de mazela após interrogatório ou doença, fosse ou não inventada). Essa primeira noite, de domingo para lunes, passei-a sozinho na minha cela, cogitando sobre como deveria actuar durante o interrogatório policial que haveria de chegar, e afligindo-me verdadeiramente ao pensar obsessivamente em que lastimável aflição estariam em Lisboa a minha companheira e outros próximos, se e quando sabedores da minha situação. Ela, que sempre me havia acompanhado nos meus empenhamentos militantes, era a última pessoa que eu desejaria ver em tal postura. Durante o dia de segunda-feira, despejaram um espanhol na minha cela, talhada à justa para duas enxergas. Era um homem de meia-idade e vinha bastante maltratado dos interrogatórios a que fora submetido. A face estava entumecida, mas ele queixava-se sobretudo da zona do fígado, onde o teriam agredido a soco e pontapés. Porquê?, perguntei- lhe: disse-me que por causa de uns tráficos de electrodomésticos, contrabandos ou coisa parecida. Em suma: era um verdadeiro “preso comum”. Porém, para os policiais, todos “comiam pela mesma medida”. O homem ficou uma ou duas noites na minha cela. Depois, nunca mais encontrei a personagem. Creio que foi na terça-feira, ao fim da tarde, que me chamaram para interrogatórios: – “Freire! Sigue-me!” bradou o guarda, fazendo girar a grossa fechadura da cela e fazendo-me acompanhar para um piso superior até uma sala onde uns três ou quatro agentes se encontravam, entre fardados e à paisana. A uma secretária sentava-se decerto o mais graduado, pela maneira com falava com os outros e dirigia a inquirição. A mim, sentaram-me numa cadeira, de mãos livres, mas com alguns porretes de madeira bem à vista. Percebia-se claramente a sua função intimidatória. Não sei quanto tempo demorou o interrogatório, mas foi de uma hora, no mínimo. Não exerceram sobre mim qualquer violência física, mas ameaçaram várias vezes fazê-lo, exemplificando com o que estavam sofrendo outros camaradas, sem qualquer rebuço. Percebi que aqueles agentes integravam a chamada Brigada Politico-Social, o departamento que, em particular, se ocupava dos anarquistas adversários do regime e da qual muito ouvira já falar. Mas o diálogo processou-se sempre dentro do terreno em que eu melhor me poderia defender: o das respostas simples e plausíveis (“inocentes”) às perguntas concretas deles; o da argumentação verificável (em menos em parte) que lhes mostrasse que não estava a mentir ou efabular; e, finalmente, teatralizando eu o papel do estrangeiro – desconhecedor dos hábitos do país – que se mostra surpreendido com coisas que em França, onde vivera longamente, e outros países vizinhos (incluindo o recente Portugal) eram normais e da mais natural convivência cívica. Tal era o caso das actividades de propaganda anarquista (jornais, comícios, distribuição de panfletos nas ruas, congressos associativos, etc.), e fora nesse quadro que eu viera de Lisboa para representar a federação anarquista portuguesa naquele encontro onde, além de uma troca geralde informações, se deveria tratar das formas de representação da FAI e da minha organização no congresso internacional aprazado para o ano seguinte em Itália. Daí também a presença do secretário da IFA, o italiano señor Marzocchi. Várias vezes fui confrontado com questões mais embaraçantes, mas de que julgo ter-me desenvencilhado sem grandes “estragos” ou contradições (a que aqueles desalmados estariam decerto muito habituados). Exibiram-me o papel de seda amarelo da minha credencial, procurando saber quem era o “Graco” que a assinava e que eu disse desconhecer. Sobretudo, eles procuravam nomes de militantes espanhóis e eu dei-lhes apenas alguns daqueles que sabia viverem em França a bom recato e haviam falado publicamente no grande comício do 19 de Julho de 1974 na ‘Voz do Operário’ em Lisboa – ainda assim, não mostrando ter qualquer intimidade com eles. Falei-lhes sobretudo da minha condição de integrante durante anos da Federação Anarquista Francesa (o que não era verdade), da existência em Lisboa de sedes de associações anarquistas e de jornais anarco-sindicalistas como A Batalha, agora de novo publicados legalmente, sabendo que na própria Espanha já se podiam agora constituir associações políticas fora do Estado e que o próprio governo de Adolfo Suarez estava muito avançado no processo de legalização dos partidos e na organização de próximas eleições livres, como em todo o mundo Ocidental. Mas a argumentação policial baseava-se sobretudo no facto de, segundo eles, a FAI ser “la rama de la metralleta de la CNT”, isto é, introduzindo o espectro de uma FAI-violenta, bem diferenciada de um sindicato CNT que podia ser aceitável na sua condição de defesa económica dos trabalhadores. Perante isto (e fazendo mais uma vez o papel do ingénuo), afirmei que nunca ouvira falar de armas nem de atentados nas muitas reuniões de anarquistas em que participara; que isso eram memórias de um passado distante, que figuravam nos livros de história mas estavam em vias de esquecimento no mundo moderno em que nos vínhamos instalando. E por aqui ficámos. Nada disseram sobre o meu futuro imediato, nem apresentaram conclusões daquilo que o meu depoimento lhes trouxera de novo ou de aproveitável para os seus propósitos. Também não me fizeram novas ameaças ou deixaram qualquer ideia acerca de novos interrogatórios. O detido suspeito, quanto menos souber, melhor! Mais inseguro fica e mais frágil estará na próxima oportunidade. Depois de um tempo de espera (que aproximou talvez o total de duas horas), trouxeram-me o meu depoimento escrito, que eu assinei sem contestação, depois de rápida mas cuidadosa leitura. Voltei à cela. Nessa noite e no dia seguinte rememorei inúmeras vezes o que dissera e o que eles haviam perguntado ou afirmado. Achei que me tinha “safo” nesta primeira confrontação. Mas que estariam outros dos detidos a confessar, sob tortura? Entrariam em contradição com as minhas declarações? “Aliviariam” para mim algumas das responsabilidades que lhes cabiam? (sendo certo que eu nada sabia de concreto acerca de actuações “guerrilheiras”, embora suspeitasse que elas pudessem existir na mente e nas práticas de alguns grupos de jovens mais inflamados: vide o caso de Puig Antich, executado a garrote vil em Março de 1974 por condenação de tribunal militar, pela morte de um guarda civil.) Em todo o caso, preparei-me para que um novo interrogatório (e eventuais torturas) pudessem acontecer. Quarta-feira passou sem qualquer novidade, e de novo isolado na mesma cela. Com a mesma rotina presidiária. O meu pensamento voava também constantemente para Lisboa, onde decerto estariam alarmados com a minha ausência de notícias ou teriam porventura já tido conhecimento pelos mass media do caso do “pleno” aprisionado em Barcelona. Mas quinta-feira, a meio da tarde, houve novas: trouxeram-me as minhas roupas próprias (incluindo os atacadores dos sapatos e o cinto), puseram-me algemas nos pulsos e meteram-me, juntamente com outros presos, numa viatura celular com destino desconhecido. Anoitecia já, e percebi à chegada que nos levavam para o Palacio de Justicia, situado ao cimo e à direita em uma alameda ajardinada, não longe do Arc de Trionf: iria passar perante um juiz. Morrinhava talvez mas, à luz dos candeeiros, apinhava-se nas imediações uma considerável multidão de pessoas em impressionante silêncio e de olhares aflitos. Eram os familiares e amigos dos acusados, que decerto haviam sido alertados pelos advogados da sua passagem em Justiça. (eu, de advogados, nunca vira nenhum, nem toga, e muito menos me fora perguntado se tinha quem me defendesse judicialmente). Este, devia ser um “tribunal de polícia” para julgar expeditivamente casos menores. Mas percebi logo que a multidão no exterior era de gente angustiada com a sorte que estaria a ser reservada aos anarquistas presos no último domingo. No entanto, nem uma palavra de protesto, nem um gesto ou um cartaz ousou sair daquela gente, bem contida por cordões policiais: este era, visivelmente, um caso político, mas que também revelava uma população amedrontada, a despeito dos seus sentimentos anti-franquistas. Numa grande sala, estavam agora umas dezenas de homens, onde reconheci alguns camaradas mas onde também se encontravam diversos acusados de pequenos delitos e meros contraventores da ordem pública ou de simples posturas municipais, como o meu “colega de cela” dos electrodomésticos fugidos ao fisco. Ali estavam os dois italianos, Marzocchi e Mateo, e com eles pude finalmente trocar informações sobre o acontecido e expectativas sobre o que nos aguardava. Marzocchi mostrou-se optimista, pois conhecia pessoalmente Sandro Pertini, o socialista que era então o Presidente de Itália, como ele antigo membro da Resistência e a quem os anarquistas italianos e as associações de combatentes antifascistas haviam recorrido, apelando a uma intervenção em nosso favor. Os três, éramos os únicos estrangeiros apanhados naquela circunstância e, por pressão de Pertini sobre o governo “penta-partito” de Andreotti, o cônsul italiano em Barcelona tinha procurado junto das autoridades espanholas uma saída airosa e rápida. Eu iria beneficiar disso. De facto, chamado em certa altura a responder perante o tribunal, o julgamento durou apenas escassos minutos com o juiz a comunicar-me que iria ser expulso do país, mas sem contudo me entregar qualquer documento de nota de culpa ou de sentença. Para mim, tudo se passou apenas por via oral. Soube ainda que os dois italianos, que haviam viajado em automóvel, seriam nessa mesma noite escoltados até à fronteira de Portbou. A mim, cabia-me um regresso em avião a Lisboa; como porém já não havia voos àquela hora, fizeram-me regressar aos calabouços de polícia onde passara toda aquela semana. Aqui, ocorreu uma daquelas falhas burocráticas ou humanas que sempre acontecem nestas instituições, escapando à vontade das autoridades e beneficiando aqueles a quem tudo (ou quase tudo) é momentaneamente negado. Tratando-se de uma mera estadia nocturna, meteram-me distraidamente num dos grandes calabouços colectivos que por lá havia. Ora, aí me esperava a pungente situação que defrontei durante aquela noite em que, às tantas, os guardas trouxeram também para ali um “travesti”-prostituto português que havia sido apanhado numa rusga policial pelos bas-fonds da cidade-condal. Era um rapaz bonito, de vinte e poucos anos, com saltos altos e seios desenvolvidos, a quem os carcereiros largavam dichotes chocarreiros: “És buena, no!? Tu compatriota…” Mas, mais importante do que isso, foi o lapso administrativo que fez com que eu fosse encontrar naquele calabouço o meu amigo anarquista espanhol-francês Isaac Garcia Barba, que estava em pleno período de sucessivos interrogatórios policiais acerca da FAI, federação de que ele era o secretário da organização-no-Exílio, bem separada da FAI-do- Interior, mas com a qual mantinha obviamente relações sigilosas de que eu ignorava todo o conteúdo. Barba – que era homem de uns quarenta anos mas fisicamente frágil – estava muito maltratado,com equimoses na cara e costelas partidas que não o deixavam respirar. Passei a maior parte da noite sentado ao seu lado no chão, confortando-o como podia. Contou-me o que confessara (coisas de menor importância) e o que conseguira ocultar, sobretudo as identidades de camaradas que não tinham sido presos mas arriscavam agora sê-lo, mercê das confissões dos violentados. Memorizei o nome (que ainda não esqueci), o número de telefone e a “palavra-passe” do anarquista de Madrid que ele me pediu especialmente para avisar, logo que estivesse em condições de o fazer. O Isaac foi libertado e devolvido a França (onde tinha constituído família e exercia a sua profissão de fotógrafo) alguns meses depois, com a saúde fortemente abalada. Nunca mais o vi, pois faleceu desses padecimentos cerca de um ano depois, deixando sòzinha a sua linda companheira francesa, porém deficiente motora de nascença, de quem ele amorosamente cuidava com carinho insuperável, que eu havia podido constatar. Terríveis dramas pessoais que por ali ocorrem… Na sexta-feira, a minha aventura prisional iria terminar. Todavia, de um modo progressivo e peculiar. Reapossado dos meus pertences e vestuário mas sujo e com barba de uma semana, levaram-me escoltado por dois polícias directamente a um avião de carreira, no aeroporto de Prat de Llobregat. Vi os agentes entregarem em mão ao comandante do aparelho um envelope que me dizia respeito e fui sentado, isolado, na primeira fila de assentos dos passageiros. Não sei se o meu corpo cheirava mal mas o meu aspecto e estes procedimentos chamavam a atenção de todos. Nas minhas costas, todos me olhavam mas ninguém me encarou de frente e as hospedeiras não trocaram palavra comigo. O avião aterrou em Barajas e a polícia do aeroporto veio tomar conta de mim, levando-me para uma zona fechada da aerogare onde não vi ninguém, salvo talvez alguma senhora empregada na limpeza diária. Contudo, ali havia instalações sanitárias e o tempo de espera para o voo que me foi destinado de ligação Lisboa deu à vontade para lavar o torso e me barbear, minorando talvez um pouco o ar de desleixo que trazia. E sobretudo, havia também um telefone público, de moedas, a que eu rapidamente recorri para ligar ao camarada espanhol que o Barba me havia recomendado e, após identificação mútua, transmitir- lhe as instruções que aquele me dera. Julgo que o cumprimento deste encargo possa ter salvo alguém de injustificadas perseguições policiais. O segundo telefonema então feito foi para Lisboa, anunciando a minha chegada em voo da Iberia ao fim desse dia. Repetidos os mesmos procedimentos de segurança, viajei sem mais novidades até à nossa capital onde, somente na altura do desembarque, a tripulação me devolveu o passaporte e outros papéis de identificação portugueses, sem mais nenhuma outra explicação. Por essa hora, decorria na Cidade Universitária de Lisboa uma pequena concentração de rua onde o panfleto distribuído pelos militantes do grupo Acção Directa pedia “Solidariedade para com o anarquista português preso em Barcelona!”. À revelia do conselho do meu advogado e amigo Joaquim Pires de Lima – que aconselhara a minha companheira a esperar uma semana para ver se eles me libertavam, sem mais engulhos, e só depois publicitar a coisa – aqueles anarquistas não haviam podido refrear mais a sua impaciência em aproveitar o meu caso como tema de propaganda política: “Morte ao Estado e a quem o apoiar!” ter-se-á gritado nesse tipo de “manifs”. De facto, aos jovens anarquistas portugueses de então, vinha faltando uma vítima ou um mártir que pudessem exibir publicitariamente, como outros maoistas ou radicais-de-esquerda o vinham fazendo. Eu, que eles tanto criticavam em privado, era o pretexto. E só mais tarde teriam outras oportunidades, aliás bem mais sérias do que a minha. Como memória de prisão, este caso é um detalhe, sem a mínima importância. Mas, para mim, foi a oportunidade de “observação sociológica” do seu micro-universo concentracionário. A cadeia do quartel do Corpo de Marinheiros, no Alfeite, fora a única enxovia que eu tinha um dia visitado. Mas desde miúdo olhei de fora, com temor e respeito (antes da idade da revolta), o Limoeiro, o Aljube, o forte de Caxias ou o Presídio de Elvas, e reflecti sobre as histórias que deles se contavam. No meu círculo de amigos da mesma geração – abstraindo, pois, os velhos anarquistas portugueses e estrangeiros que conheci, esses verdadeiros testemunhos vivos de uma história verdadeiramente dramática, a vários títulos – não houve muitos casos de experiência pessoal da situação prisional. Lembro-me da Elsa, pouco antes do 25 de Abril, do Pierre, e poucos mais… – com alguns outros a terem provado o incómodo e a insegurança de uma detenção “para verificação de identidade” (como eu também experimentei noutra ocasião) por policiais pouco confiáveis. Para todos eles vai a minha lembrança de simpatia. João Freire Junho de 2020 Audição Pública – Assembleia da República Senhoras deputadas e senhores deputados Agradecendo o convite para esta audição parlamentar, felicito V. Exªs. pela iniciativa, trazendo para a ordem do dia um tema para o qual a sociedade olha com incómodo. A O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, mantém, na colaboração dos seus membros com os reclusos do sistema prisional, o seu cariz vicentino de ajuda concreta imediata aos mais pobres e necessitados, complementada com a abertura de condições para a sua saída da condição de pobreza e exclusão social, não nos limitando ao apoio, ainda que positivo, que não ambiciona alterar a situação vigente. A desumanidade a as violações de direitos humanos vividas nas prisões portuguesas não se compadecem, apenas, com acções de remedeio. É necessária a ajuda mas tem de se alterar a situação que a motiva. Tal como temos vindo a alertar, desde há alguns anos, o sistema prisional português tem características evidentes de desumanidade e incongruência, violadoras dos referenciais jurídicos nacionais e internacionais, situação esta reconhecida por entidades como a Provedoria de Justiça e os Comités das Nações Unidas e do Conselho da Europa para as questões da tortura e dos direitos humanos. O exposto a seguir não esgota a panóplia daquilo que é necessário mudar no sistema prisional, já que o modelo civilizacional construído nos finais do século XX aponta no sentido da abolição das prisões, já que são instituições retrógradas, medievais, desumanas e violentas. Façamos um périplo pelo interior das prisões, considerando que o retrato difere de prisão para prisão e do ambiente que nelas vigora. - É importante a criação duma dinâmica de prevenção da criminalidade baseada numa via formativa e não punitiva (utilização da sedução e não da repressão), relevando o respeito pelos outros, substituindo o ódio e o egoísmo pela amizade e partilha, permitindo a satisfação de necessidades básicas com recurso a rendimentos lícitos, eliminando a pobreza e a exclusão social. - É urgente terminar com a possibilidade de cumprimento de prisão perpétua, proibida constitucionalmente, nos casos de penas sucessivas e medidas de segurança aplicáveis a inimputáveis, cumprindo, objectivamente, o disposto no Código Penal da pena máxima de 25 anos consecutivos, assim como as disposições da Constituição da República Portuguesa. A dimensão do problema, apesar da promessa do seu levantamento pelo actual director-geral da DGRSP, ainda não é conhecida. - Deve-se terminar rapidamente com a violação do Direito Internacional no que toca à garantia do direito generalizado à própria defesa, previsto no artº 14º, nº3,d), do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de que Portugal é Estado-Parte, pelo que temos sido acusados pela ONU pelo seu incumprimento, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal situação, independentemente da melhoria do apoio judiciário que se tem revelado frágil e inadequado. - É necessária uma modificação profunda na abordagem duma política sobre drogas (responsável pela maioria esmagadora da população prisional,pois a obtenção de dinheiro para a compra de droga está na base do pequeno tráfico e dos crimes contra as pessoas, contra o património e contra a sociedade), encarando a não criminalização de todo o circuito produtivo e comercial (a exemplo do tabaco e do álcool) e promovendo uma campanha alargada de sensibilização para as consequências de todas as dependências. Faz algum sentido continuar uma guerra, que já dura há dezenas de anos, sem perspetiva de a ganhar, antes pelo contrário, quedando-nos a olhar para o nosso umbigo embevecidos com o passo positivo dado da descriminalização do consumo? Não estamos a querer ver o falhanço da estratégia para ganhar essa guerra pela via punitiva de combate e da repressão. Mais, estamos a sustentar estruturas envolvidas nesse combate que não têm interesse no fim da guerra, pois tal terminará com o seu modelo de negócio. Quer a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, quer M. Kazatchkine, da Comissão Global de Políticas de Drogas, declararam, em Maio último na 26ª Conferência sobre a Redução de Danos, que a guerra às drogas fracassou, sendo favoráveis à legalização das drogas, mesmo das mais pesadas. - Há que ter em consideração de que todas as formas em uso nas tecnologias de informação e comunicação devem ser acessíveis aos reclusos, incluindo o uso alargado dos equipamentos (telemóveis e computadores), permitindo uma efectiva praxis para a ressocialização e acompanhamento da vida no exterior, tendo em conta que a aplicação de penas de prisão efectiva tem como consequência, apenas, a privação da liberdade de circulação, mantendo o recluso todos os demais direitos de que dispõem os cidadãos em liberdade plena (ver artigo de Diretor Geral da DGRSP no jornal Pùblico - 11/06/2019 – Um novo paradigma para o uso de telefone e privação da liberdade). É positivo o aumento de períodos de comunicação telefónica dos reclusos, ainda que este passo não vai impedir a continuação da entrada clandestina de telemóveis nas prisões, já que as potencialidades destes equipamentos não são supríveis com as comunicações telefónicas tradicionais (estas não permitem as novas tecnologias de comunicação e não possibilitam os contactos quando os reclusos estão fechados nas celas). - Relativamente à política de fomento da valorização académica dos reclusos e de contactos com o exterior, saúda-se o protocolo de colaboração da DGRSP com a Universidade Aberta, esperando-se que os estabelecimentos prisionais criem as condições para a adesão dos reclusos ao prosseguimento dos estudos. - Tendo o crime de condução de veículos automóveis, sem carta de condução, significativa expressão, deve-se procurar proporcionar ao recluso, preso por este crime, a possibilidade de obtenção dessa habilitação enquanto se encontra em cumprimento de pena. - É urgente a admissão da necessidade de alargar a formação para os direitos humanos dos efectivos prisionais e de concretizar o recrutamento de recursos humanos para as áreas de apoio aos reclusos (médicos, psicólogos, assistentes sociais, etc…). É necessária a promoção dum clima de dignidade e humanismo, com a melhoria das condições prisionais e de respeito pelos normativos aplicáveis dentro das prisões, nomeadamente o CEPMPL, acabando com a ideia de que o Estado de Direito fica à porta das prisões. As instituições nacionais e internacionais de direitos humanos (Conselho da Europa, Nações Unidas, Provedoria de Justiça , etc…) continuam a manifestar a sua insatisfação e perplexidade com a situação existente. - As prisões devem ter uma dimensão e localização que permitam a proximidade do recluso à sua área de residência, promovendo uma política de transferências de reclusos para tal, assim como evitando instalações de dimensão elevada que introduzam grandes aglomerados de reclusos dificultando a humanização da vida prisional, assim como combatendo a existência de grupos de liderança que praticam a extorsão e a violência nas prisões. Para análise individual de cada estabelecimento prisional, o relatório de actividades anual, publicado pela DGRSP, deveria incluir o relatório pormenorizado de cada estabelecimento prisional a exemplo do que foi feito até ao ano de 2010, tornando transparente a sua situação e o conhecimento da vida interna que tal desenvolvimento do relatório permitiria. - Sendo Portugal frequentemente visado pelas organizações internacionais de direitos humanos de que faz parte, nomeadamente das Nações Unidas e do Conselho da Europa, os relatórios produzidos por estas instituições só podem ser divulgados depois da autorização do governo português, o que não abona a favor da transparência e da boa fé. Torna-se necessário que Portugal prescinda desta prerrogativa e retire a restrição à divulgação desses relatórios logo que essas instituições os produzem. - Deve-se ter em consideração que Portugal tem o tempo médio de cumprimento de pena mais elevado da União Europeia. É injustificada a persistência nas penas mais longas da União Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é cerca do quádruplo da média da U.E.), pelo que reduzindo este tempo não precisamos de mais prisões nem de mais recursos humanos. Precisamos é de reduzir o tempo médio de cumprimento de pena, que levará à redução da população prisional, com a óbvia e consequente economia de meios financeiros, humanos e materiais. A aprovação duma amnistia contribuirá para este objectivo, corporizando, além do mais, os pilares cristãos do perdão e da misericórdia que fazem parte da matriz social portuguesa. O poder político não tem de ter medo da reacção dos portugueses a este respeito e uma amnistia, assim justificada, será apoiada pela opinião pública. - Há que considerar a aplicação das Regras de Bangkok (Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras) às reclusas com filhos, abolindo o cumprimento de penas de prisão que, por arrastamento, cumprem as crianças inocentes. - Há que tomar medidas de prevenção de represálias sobre os reclusos para os condicionar na sua forma de ser e estar, represálias estas que consistem em pareceres injustos para a concessão de licenças jurisdicionais, na atribuição de tarefas ocupacionais remuneradas e enquadramento no Regime Aberto, no caso de reclusos reivindicativos dos seus direitos. - Os tribunais de execução de penas persistem em decisões restritivas na concessão de licenças jurisdicionais (precárias) e na liberdade condicional, ao arrepio do recomendado pelos instrumentos de reinserção social, raramente concedendo uma licença com 25% do cumprimento de pena, apesar de tal possibilidade ter consagração legal, sem possibilidade de recurso por parte dos reclusos, além do desrespeito dos prazos processuais. Por outro lado, deveria ser obrigatória a presença física dos reclusos e seus advogados em todas as reuniões que apreciam o seu caso, assim como de ser-lhes fornecida cópia dos relatórios e pareceres que lhes dizem respeito, com a sua inclusão no respectivo processo individual existente no estabelecimento prisional. - Continua a retenção indevida do dinheiro do trabalho dos reclusos, infringindo o imperativo constitucional do direito de propriedade, com o argumento da constituição dum fundo de reserva. Tal só deveria ser feito com a concordância do recluso. Por outro lado, o trabalho nas prisões, sendo escasso, é remunerado com valores tão baixos, de alguns cêntimos por hora, que se pode equiparar a trabalho escravo, além de que os bens produzidos pelos reclusos, ao serem vendidos, configuram concorrência desleal com as entidades que produzem o mesmo tipo de bens tendo de suportar salários e encargos legais. - Assiste-se, no interior das prisões, a alegações de prática de tráfico de drogas e bens, homossexualidade forçada, violações, roubos, violência, chantagens sobre as famílias, autoritarismo e prepotência, situações inaceitáveis que urge acabar. - A assistência espiritual e religiosa é feita comgrandes limitações de tempo de contacto com os reclusos, agravada com a sua impossibilidade no caso das greves dos guardas prisionais (A assistência espiritual e religiosa deve fazer parte dos serviços mínimos). - A dinâmica de reinserção social em muitas prisões, a partir do início do cumprimento de pena, é claramente insuficiente, para não dizer quase inexistente, situação esta que continua a persistir devido a um patente autismo da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, através dos seus relatórios de actividades, quer de algumas ONGs, situação esta agravada pelo recurso a técnicos com vínculo precário. - Os serviços de saúde são objecto de grandes limitações, em recursos materiais e humanos, como, por exemplo, no fornecimento de próteses dentárias, auditivas e oculares, situação esta agravada pelo recurso a técnicos com vínculo precário. - É imperioso que se dê andamento à implementação de protocolos com autarquias visando a criação de “casas de saída”, permitindo a existência dum local aonde os reclusos podem recorrer quando não dispõem duma morada no exterior, permitindo a sua ressocialização e reintegração, minimizando os custos sociais do crime e da reincidência. - A alimentação é manifestamente pobre e insuficiente, em qualidade e quantidade, bastando constatar que o valor diário, por recluso, para as quatro refeições, fornecidas por entidades com fins lucrativos, é inferior a € 4,00. Em acréscimo a estas questões, importa ter em conta o que temos vindo a declarar nas sucessivas intervenções em que nos envolvemos. Em Abril último fomos homenageados com o prémio “Terra Justa – Causas e Valores da Humanidade” (Fafe - 04/04/2019) pelo nosso contributo para a humanização do sistema prisional, onde proferimos a seguinte declaração: (…) “Permitam-me um prólogo à intervenção protocolar nesta cerimónia de homenagem à O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, promovida pela Câmara Municipal de Fafe no “Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade – Terra Justa” do ano de 2019. Já que estamos em momento de homenagens, quero homenagear e solidarizar-me com todas as vítimas de atos anti-sociais, e homenagear e solidarizar-me, também, com alguns perpetradores de atos socialmente censuráveis de quem tenho tido o privilégio de contactar, na prossecução duma sociedade sem crimes, sem vítimas e sem reclusos, uma sociedade de paz e liberdade. - Recluso A – Preso há 34 anos, considerado inimputável, manifesta a sua revolta e indignação pela renovação, de 2 em 2 anos, da sua reclusão no estabelecimento prisional. Tem consciência da injustiça que lhe está a ser feita. Mantenho com ele uma relação de grande amizade. - Recluso B –Um jovem, de 32 anos, depois de cumprir uma pena de 6 anos, conseguiu arranjar trabalho como condutor dum camião de recolha de lixo e como distribuidor de pizzas. Encontramo-nos regularmente (quer enquanto se encontrava na prisão, quer agora em liberdade). Diz-me: “Aquilo, lá dentro, é muito pior do que se pode imaginar.” - Recluso C – Encontra-se preso pela 3ª vez. Quando o encontrei a iniciar o cumprimento da 3ª pena, perguntei-lhe: “ Então você aqui outra vez? Não me tinha dito que nunca mais voltaria para a prisão?” Respondeu-me: “Quando cheguei a casa depois de libertado a minha mãe disse-me: rapaz, vê lá se arranjas trabalho pois nós somos pobres e precisamos da tua ajuda. Visitámos-te pouco na prisão pois não tínhamos dinheiro para lá ir. No dia seguinte fui a diferentes lugares oferecendo-me para trabalhar e todos me disseram para deixar os meus contactos, que logo que aparecesse alguma coisa me telefonariam. No 2º dia repetiu-se o que se passou no dia anterior.” Então o recluso perguntou-me: “O senhor acha que eu tinha coragem de voltar para casa ao 3º dia sem dinheiro nem trabalho?”. Foi apanhado e preso uns dias depois. - Recluso D – Depois de 20 anos de vida atribulada, conseguiu encontrar um rumo para o seu futuro, concluindo a licenciatura em engenharia mecânica, enquanto está preso, estando agora a fazer o estágio curricular e o mestrado, devendo sair em liberdade no final do corrente ano, apesar das grandes limitações a que está sujeito para este seu percurso académico, sem poder utilizar equipamento de escrita e de acesso às TIC . - Recluso E (toxicodependente) – Como não dispunha de rendimentos para usufruir de serviços públicos essenciais, fez uma ligação clandestina à rede pública de água. Apanhado neste crime, foi condenado a pagar € 1.800 de multa, convertíveis em 300 dias de prisão. Como não tinha os € 1.800 para pagar a multa, está a cumprir os 300 dias de prisão que vão custar ao Estado cerca de € 15.000, pois um recluso custa, em média, cerca de € 50 por dia. E, entretanto, como estão a viver a esposa e o filho? Que futuro se prevê para a família? - Recluso F – Encontrei uma senhora a sair da visita semanal de sábado à prisão, com ar triste, abatido e de mágoa evidente. Perguntei- lhe se necessitava de ajuda, respondendo-me que estava preocupada com o seu filho a cumprir pena, a que se seguiu uma conversa amiga. Relatou-me que o seu filho tem tido problemas psiquiátricos desde criança, com manifestações de agressividade para com ela e para com o pai, que iam aguentando tudo pois sentiam como seu dever nunca abandonarem o filho, confiados que, um dia, ele recuperaria a razão, apesar de serem pobres e sem meios para grandes tratamentos. Na última vez o filho agrediu-os e obrigou-os a sair de casa, o que os forçou a chamar a polícia com o objectivo de lhes permitir o regresso a casa e de provocar o tratamento do filho num estabelecimento de saúde adequado. A polícia deteve o jovem, acusando-o de violência doméstica, apesar dos pais declararem não querer apresentar queixa mas, apenas, que o seu filho fosse tratado. No entanto, como a violência doméstica é crime público, o jovem foi julgado e condenado a quatro anos, sendo considerado inimputável e a pena a ser cumprida em estabelecimento psiquiátrico prisional. E, agora, lá vão os pais, todas as semanas, visitar o seu querido filho, com a consciência pesada pelo facto do seu filho estar na prisão por culpa deles, já que nunca deviam ter chamado a polícia. Pensavam que ele seria levado para tratamento hospitalar mas nunca para a prisão. Carregam esta cruz com tristeza e mágoa mas com amor incondicional pelo seu filho. Recluso G – Encontra-se a cumprir penas sucessivas que lhe foram aplicadas num total de 51 anos e 8 meses (após reclamações do recluso foram reduzidas para um total de 38 anos e 2 meses). Está preso há 17 anos, sem ter tido qualquer licença jurisdicional (precárias), sempre passados dentro da prisão. Muitas entidades conhecedoras da situação consideram que esta situação, que pode conduzir à prisão perpétua, é inaceitável e viola o disposto na Constituição da República Portuguesa. Este caso já tem sido tratado por alguns órgãos de comunicação social, tendo tido um programa específico na SIC, na rubrica “Vidas Suspensas”. O actual Diretor Geral da Direção Geral da Reinserção e Serviços Prisionais comprometeu-se a apresentar uma proposta legislativa que solucione a situação dentro do quadro constitucional e do Código Penal que prevê a pena máxima de 25 anos. Aguarda-se tal proposta e, enquanto isso não acontece, o recluso continua sem saber se algum dia sairá da prisão. A maioria destes reclusos estão presos, ou passaram pelas prisões, devido a problemas com drogas, problemática esta que está na origem de mais de 80% dos presos em Portugal. Agradecendo a consideração pela permissão deste prólogo, não posso deixar de iniciar a minha intervenção protocolar sem agradecer, sensibilizado, a escolha da O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos (Obra Especial do Conselho Central do Porto da Sociedade de S. Vicente de Paulo) para ser homenageada e felicitar vivamente a organização deste evento “Encontro Internacionalde Causas e Valores da Humanidade, Terra Justa”, colocando Fafe como exemplo na divulgação dos mais elevados direitos humanos, assim como por trazer para a consciência colectiva a necessidade de pensar sobre valores base da convivência humana em clima fraterno e solidário, procurando alertar, provocar e envolver as pessoas a refletir sobre a importância das causas e valores da humanidade, fazendo jus à muito afamada “Justiça de Fafe”. E aqui surgem, já, duas questões: Que tempo é este em que vivemos quando causas e valores da humanidade como a solidariedade, a fraternidade, a caridade e o amor ao próximo, continuam a ser valores merecedores de homenagem e não atributos correntes na prática rotineira de todos os seres humanos? Que tipo de sociedade é esta em que vivemos que substitui esses valores pelo hedonismo, egoísmo, vingança e ódio? No passado dia 10 de Dezembro, aquando da atribuição do prémio atribuído pela Assembleia da República “Direitos Humanos 2018”, tive ocasião de referenciar, sucintamente, os atropelos à dignidade humana vividos nas prisões portuguesas. Permitam-me que os repita aqui, já que a gravidade de que se revestem impõe que os tenhamos presentes, tendo em conta de que as situações referidas diferem dum estabelecimento prisional para outro estabelecimento prisional. (…) E poderia continuar a acrescentar outras situações que são atropelos aos referenciais de direitos humanos. Os organismos de direitos humanos das Nações Unidos e do Conselho da Europa são claros nos seus relatórios sobre as violações de direitos humanos nas prisões. O Estado de Direito não pode ficar à porta das prisões. Ainda, recentemente, em artigo publicado no Jornal Expresso, pelo psicólogo Mauro Paulino, foi divulgado que “a prevalência de diagnósticos psicopatológicos entre reclusos é quatro vezes superior à da população em geral, com destaque para perturbações da personalidade, designadamente anti-social, estado-limite, paranóide e narcísica. (…) Os reclusos tendem a desenvolver a denominada máscara prisional, quer a nível emocional, quer a nível comportamental, o que pode originar uma instabilidade emocional crónica e debilitante nas interações interpessoais com reflexo na intervenção a realizar. A vivência destes indivíduos é, por vezes, caracterizada por vários percursos criminais, com associação a culturas e normas morais desviantes, que servem de base às relações de poder e de interesses instituídas. Tomem-se como exemplos os diversos negócios que se desenvolvem, uma vez que todos os produtos servem para a troca, para exercer controlo, como sucede com o tráfico de droga ou a compra de tecnologias de comunicação, que podem, inclusive, servir de meio para que o recluso continue a intimidar as suas vítimas no exterior. A sobrelotação é outra variável a considerar, podendo originar uma perda de controlo por parte da administração prisional e o aumento do perigo de vida para o staff e reclusos. Ao nível dos serviços clínicos, o excesso de pessoas por técnico representa uma real limitação de atuação terapêutica, sem a possibilidade da implementação de um trabalho psicoterapêutico mais efetivo, dado o rácio técnico/recluso. Neste quadro surge, não raras vezes, a frustração entre os reclusos por terem inevitavelmente menos possibilidade de acesso a outros serviços, incluindo as ocupações (escola, trabalho), o que contribui para o aumento de competição e sintomatologia diversa. Ainda que os serviços de vigilância procurem supervisionar a violência, a verdade é que aqueles também denunciam a falta de recursos humanos no exercício de funções e que as agressões existem e provocam medo, podendo ocorrer a construção artesanal de instrumentos e armas que podem provocar ferimentos graves e mesmo a morte. A isto associa-se a complexidade dos negócios ilícitos já citados, os roubos, a própria monotonia e a manutenção de relações de poder, tendo-se aqui em consideração variáveis como o número de anos preso, o tempo que passou em instituições penais, o tipo de crime e a idade da primeira detenção.” O que se passa hoje nas prisões portuguesas, como instituições retrógradas, medonhas, arcaicas, medievais e violentas, é o reflexo da sociedade em que vivemos. Já começa a ser lugar comum caracterizar o actual modelo de sociedade como alienada, violenta, egoísta e vingativa, existindo pequenas bolsas de resistentes que continuam a querer implementar o modelo humanista construído na segunda metade do século passado, de que o Papa Francisco tem sido exemplo destacado. Assiste-se nas relações sociais, em muitas famílias e em muitas escolas, à prática dum clima de repressão, ódio, intolerância, escravatura e medo. Como exemplo pode-se atentar nos indicadores divulgados, anualmente, pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, que nos informam estarem a ser acompanhadas, nestas comissões, cerca de 70.000 crianças e jovens por ano. E a sociedade assiste, impávida e serena, a esta catástrofe! O futuro das prisões está garantido pois muitas destas crianças e jovens têm o seu destino apontado desde muito cedo, havendo necessidade urgente de, na área da justiça juvenil, se repensar o processo tutelar educativo, o funcionamento dos centros educativos e o Estatuto do Aluno e Ética Escolar que quase parece um Código de Penas para crianças estudantes. Por outro lado, a dimensão escandalosa da pobreza em Portugal, resultante dos baixos salários e pensões, assim como da precariedade crescente, constitui um grande contributo para o número elevado da população prisional, já que a esmagadora maioria dos reclusos são pobres, a quem a tentação do crime é mais difícil de resistir, pois, como disse o poeta Millôr Fernandes “Ser pobre não é crime, mas ajuda muito a chegar lá”. A pobreza existente em Portugal, país da U.E., espaço que se diz desenvolvido, é um escândalo e gerador da prática de atos anti-sociais. Como corolário desta situação, em 31 de Dezembro do ano findo tínhamos 12.867 reclusos a cumprir penas de privação da liberdade, sendo cerca de 70% superiores a 3 anos de prisão, e em 31 de Dezembro de 2017 havia 33.143 pessoas a cumprir penas e medidas na comunidade na área penal, das 51.413 condenadas nesse ano e dos cerca de 340.000 crimes registados. Esta dimensão coloca-nos nos países da U.E. com maiores taxas de pessoas em cumprimento de penas e medidas punitivas. Temos de nos afastar, decididamente, da afirmação do médico psiquiatra Miguel Bombarda que, há um século atrás, declarou “A Inquisição fazia mortos mas a Penitenciária faz doidos.” Com este quadro aterrador é urgente uma mudança profunda, com o entendimento sobre a prevenção da criminalidade como caminho para a abolição das prisões, invertendo a tendência para aumentar o leque de casos e comportamentos humanos classificados como crimes puníveis com penas de privação da liberdade. Como exemplo, podemos atentar na problemática das drogas, que estimo em ser responsável por mais de 80% dos crimes cometidos pelos reclusos em cumprimento de pena, tendo sido condenadas, em 2018, cerca de 8.000 pessoas por questões relacionadas com drogas, além das que foram condenadas por crimes contra as pessoas, contra o património e contra a propriedade que, na maioria dos casos, se destina a obter meios que permitam o acesso às drogas. Tenhamos em consideração que, ainda em meados do século passado, era inexistente, ou quase residual, a sua figuração nos normativos penais. E atente-se nos exemplos que recomendamos aos nossos alunos de figuras famosas da literatura, das artes plásticas, da música e do desporto, que reconhecemos como personalidades relevantes, apesar de terem tido comportamentos e contactos com drogas que, hoje, são puníveis pela comunidade. Além da cegueira que é a não criminalização, com perda da liberdade, do consumo de drogas, não querendo ver que aceitando o consumo tem de se aceitar a sua produção e comercialização. Logo, há que considerar uma nova política de drogas, enquadrando legalmente a sua existência, desde a produção ao consumo,simultaneamente com uma grande campanha de sensibilização para os efeitos das dependências e suas consequências, a exemplo do que já foi, e está a ser, feito para o tabaco e para o álcool. Os meios humanos e financeiros adstritos ao combate às drogas, desde as polícias às prisões e às instituições cujo modelo de negócio assenta nesta problemática da droga e seu tratamento, possibilitam a feitura dessa grande campanha de sensibilização. Excelentíssimas entidades presentes Minhas senhoras e meus senhores Celebrou-se em 10 de Dezembro o 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. No próximo dia 5 de Maio o Conselho da Europa também celebrará igual aniversário. Há 70 anos os nossos pais e os nossos avós definiram os grandes valores civilizacionais que deveriam estar presentes na vida de todos nós, tendo os nossos Governos assinado os tratados e convenções que nos obrigam a respeitar esses valores. Setenta anos passados continuamos a assistir ao desrespeito desse legado, pelo que deveríamos sentir vergonha pela nossa incapacidade e indiferença. É tempo de todos nós nos empenharmos em praticar, quotidianamente, o reconhecimento da dignidade estabelecido no artº 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, considerando o direito à liberdade como valor absoluto. Este evento dedicado às grandes causas e valores da humanidade tem importância relevante numa nova dinâmica para se inverter o caminho de retrocesso civilizacional que temos vindo a viver, pelo que reforço as felicitações pela sua realização. Temos de reconstruir as bandeiras que simbolizam a humanização duma sociedade com mais fraternidade e não maior egoísmo, com mais concórdia e não mais conflitos, com mais igualdade e não maior desigualdade, com amor e não com ódio, com mais humanidade e não maior desumanidade. Tenho consciência de que o ser humano é imperfeito e, como tal, propenso a cometer erros, mas sem que tal tenha que ter como consequência a perda da liberdade. A prevenção da prática de atos anti-sociais (prevenção do crime) tem de ocupar lugar de grande importância na formação do carácter das pessoas, seja nas escolas, nas famílias, nos órgãos de comunicação social e na vida em sociedade. Ainda, há poucos anos, passou nas salas de cinema o filme “I Daniel Blake” que retrata alguns aspectos da sociedade desumana em que estamos inseridos. Recomendo vivamente o seu visionamento a quem ainda não o fez. Eu não quero fazer parte de quem não vê, de quem não ouve, de quem não lê, e não quero ignorar, como nos exortou a poetisa Sofia de Melo Breyner Andresen, de quem comemoramos o centésimo aniversário do seu nascimento. Sendo eu um defensor da liberdade e, como tal, da abolição das prisões, quero ter a esperança de que o caminho para tal se concretize fruto da pressão de iniciativas como esta. (…) O objectivo da nossa missão de voluntariado é bem claro: semear a paz e a esperança, permitindo o sonho dum mundo melhor que, infelizmente, está cada vez mais arredado do modelo de sociedade que se está a implementar neste início do século XXI. Atentemos na afirmação de Alexandre O’Neil: “E defendo-me da morte povoando de novos sonhos a vida”. Será um sonho não querermos os reclusos fechados, nos vários sentidos, mas abertos e disponíveis para com todos nos caminhos do mundo, abertos e disponíveis para com tudo que os faça crescer entre os povos, com justiça, entreajuda fraterna e a verdadeira paz? Neste sentido, continuarei a pedir a todos os que me rodeiam para reflectirem no lema desta Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, extraída do evangelho segundo S. João: “ Quem nunca errou que atire a primeira pedra”. O arrepiar do caminho que nos está a levar para um beco sem saída, que não reinsere os delinquentes nem assegura a reparação às vítimas (estas são duplamente vítimas – do crime que as afectou e deste sistema de justiça), tem de passar pela prioridade à diminuição da conflituosidade, ao invés do que se tem passado em que a prioridade foi dada aos meios repressivos. A sucessiva dotação de mais meios para a repressão – mais tribunais, mais magistrados, mais oficiais de justiça, mais prisões, mais guardas prisionais, mais polícias, mais esquadras, mais multas e mais pesadas, etc… - não tem tido resultados. Se este reforço de meios fosse dedicado a uma política assumida de prevenção da conflituosidade na sociedade, os resultados seriam muito melhores, em todos os sentidos. A aposta na repressão nunca, ao longo da história, foi o caminho para uma sociedade melhor. Mesmo na actualidade, nos países em que o sistema penal é mais repressivo (China, Rússia, Estados Unidos da América) é onde se verifica maior taxa de criminalidade e de reclusão. Logo, o modelo repressivo não é dissuasor da prática criminosa, quase parecendo provar-se o contrário; quanto maior é a repressão maior é a taxa de criminalidade. Temos de adotar o lema “Por um mundo sem cárceres”. Temos de colocar os valores da liberdade, igualdade e fraternidade como centrais na nossa relação para com os outros. Desejamos que desta audição parlamentar possam sair fortes contributos para uma nova visão do sistema prisional em Portugal, substituindo o castigo, o ódio e a vingança pela prevenção dos atos anti-sociais e pela justiça restaurativa, com tradução em medidas concretas, permitindo que o Estado de Direito viva nas prisões, enquanto não são abolidas, e sejam respeitados os Direitos Humanos, de cujos referenciais jurídicos Portugal é Estado-parte. Muito obrigado Manuel Hipólito Almeida dos Santos Presidente da O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos 09/07/2019 Nota: Intervenção de teor semelhante foi feita noutra audição parlamentar havida em 17/06/2020 Legislação sobre prisões - Código Penal - Concordata entre a Santa Sé e o Estado Português - Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade - Lei da Liberdade Religiosa - Direitos Humanos e Aplicação da Lei - Direitos Humanos e Prisões - Justiça Restaurativa - Regras Penitenciárias Europeias - Regulamento da Assistência Espiritual e Religiosa nas Prisões - Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos - Princípios Básicos Relativos ao Tratamento de Reclusos - Conjunto de Princípios para a Protecção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão - Regras das Nações Unidas para a Protecção dos Jovens Privados de Liberdade - Declaration on the Protection of All Persons from Being Subjected to Torture and Other Cruel, Inhuman or Degrading Treatment or Punishment - Princípios de Ética Médica Aplicáveis à Função do Pessoal de Saúde, principalmente Médicos, na Proteção de Presos e Detidos contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes - Princípios sobre a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e Outros Tratamentos Cruéis , Desumanos ou Degradantes Tratamentos ou Penas - Garantias para a protecção dos direitos das pessoas que enfrentam a pena de morte - Código de Conduta para Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei - Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo por Agentes da Lei - Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio) - Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing) - Diretrizes para Ação sobre Crianças no Sistema de Justiça Criminal - Princípios Orientadores das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Princípios Orientadores de Riade) - Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder - Princípios Básicos sobre a Independência do Judiciário http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=109&tabela=leis http://www.ucp.pt/site/custom/template/ucptplpopup.asp?sspageid=114&artigoID=2478&lang=1 http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1147&tabela=leis http://www.ucp.pt/site/resources/documents/ISDC/LLR.pdfhttp://media.wix.com/ugd/f5a871_a0479211ae9e453f979278a5e380ef20.pdf http://media.wix.com/ugd/f5a871_bf3258a87f0849c88855528cdc34602e.pdf http://media.wix.com/ugd/f5a871_1022d8bd2fda458db07e2f4ea1e77c60.pdf http://media.wix.com/ugd/f5a871_b61eeae08b2140a7bfa7f6361ca9f39a.pdf http://media.wix.com/ugd/f5a871_4ef305da7cb3414db297e2814fb2644e.pdf http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhaj-NOVO-regrasminimastratareclusos.html http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhaj-pcjp-15.html http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_14.htm http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_19.htm http://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/DeclarationTorture.aspx http://www.camara.leg.br/Internet/comissao/index/perm/cdh/Tratados_e_Convencoes/Tortura/principios_etica_medica.htm http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_8.htm http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhaj-AplicGarantiasPMorte-LXXII.html http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhaj-pcjp-18.html http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_23.htm http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhaj-NOVO-regrastoquio.html http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhaj-NOVO-regrasBeijing.html http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_20.htm http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhaj-pcjp-27.html http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direitos-Humanos-na-Administra%C3%A7%C3%A3o-da-Justi%C3%A7a.-Prote%C3%A7%C3%A3o-dos-Prisioneiros-e-Detidos.-Prote%C3%A7%C3%A3o-contra-a-Tortura-Maus-tratos-e-Desaparecimento/declaracao-dos-principios-basicos-de-justica-relativos-as-vitimas-da-criminalidade-e-de-abuso-de-poder.html http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/ajus/prev21.htm - Princípios Básicos sobre o Papel dos Advogados - Guidelines on the Role of Prosecutors - Princípios sobre a Prevenção Eficaz e Investigação das Execuções Extrajudiciais , Arbitrárias e Execuções Sumárias - Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas Contra os Desaparecimentos Forçados - Princípios Básicos e Diretrizes sobre o Direito a Recurso e Reparação - Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados - Convenção contra Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes - Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes (2002) - Convenção Europeia para a Vigilância de Pessoas Condenadas ou Libertadas Condicionalmente - Convenção Europeia sobre transferência de pessoas condenadas (21/03/1983) - Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais - Convenção Europeia contra a Tortura - Regulamento das Condições Materiais de Detenção em Estabelecimento Policial - A Promoção, Proteção e Usufruto dos Direitos Humanos na Internet - Aceder à ONU - Regras de Bangkok da ONU sobre medidas para mulheres delinquentes mães de crianças - Ver o site da ONU: http://www.unodc.org/documents/justice-and-prison- reform/crimeprevention/65_229_Spanish.pdf Endereços úteis: - https://www.facebook.com/ovarprisoes/ - http://ovarprisoes.wixsite.com/ovar http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_24.htm http://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/RoleOfProsecutors.aspx http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhaj-pcjp-exec-xtra-judiciais.html http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_3.htm http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_29.htm http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_3.htm http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhaj-conv-contra-tortura.html http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_2.htm http://www.gddc.pt/siii/docs/rar50-1994.pdf http://www.gddc.pt/cooperacao/materia-penal/textos-mpenal/ce/rar-8-dr-92-1993.html http://www.dgpj.mj.pt/sections/noticias/regulamento-geral-dos/downloadFile/attachedFile_f0/DL51-2011.pdf?nocache=1302519838.77 http://media.wix.com/ugd/f5a871_8872e1cef4d043bc87f3b989f0d441cd.pdf http://media.wix.com/ugd/f5a871_722b694a69034aa1a343c50e7f91fb92.pdf https://a6051698-0f29-4bc8-aeca-ab7f4adba44a.filesusr.com/ugd/f5a871_abe515836f184d46bfd5ada437f8a859.pdf http://www.unodc.org/documents/justice-and-prison-reform/crimeprevention/65_229_Spanish.pdf https://www.facebook.com/ovarprisoes/ Título: A Abolição das Prisões Autor: Manuel Hipólito Almeida dos Santos ISBN: 978-989-33-1016-8 Outubro de 2020 Table of Contents Introdução Prisões. Que esperança? Nem eu te condeno… As prisões e o voluntariado dos vicentinos Criminalidade: posso entrar? Um grama de esperança, Um grama de vida Nossa descoberta A razão de ser para estar na O.V.A.R. Divagações Coragem ou talvez não Homilia de D. Carlos Azevedo O Natal do outro lado da liberdade Prisões: Faltam alternativas para reabilitar os reclusos Sonhar ou Sobreviver? Uma visão dos idosos abandonados a partir duma prisão Poemas da Prisão Silêncios de quem gostamos, ausências de quem esperamos… Vicente de Paulo, Ozanam e a Questão do Juízo Final: Dedicatória à minha avó Abolição das prisões: uma realidade possível? PS quer rendimento mínimo para ex-reclusos Por um mundo sem cárcere: Momentos duma visita a uma prisão Por um mundo sem prisões Exmos.Senhores Deputados da Assembleia da República Repugnância perante o securitarismo Panorama da Realidade Prisional “A Prisão e as suas Consequências. Como Ajudar?” A igreja diz não à prisão, destaques › 03/08/2016 Crise do Sistema Prisional abre Espaço para o Debate Sobre o Abolicionismo Penal “Gratidão” As prisões e a liberdade como valor absoluto Excerto da intervenção do Presidente da República, Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa Drogas: Principal contribuinte da população prisional Memórias de Prisão Audição Pública – Assembleia da República Legislação sobre prisões Ficha Técnica Introdução Prisões. Que esperança? Nem eu te condeno… As prisões e o voluntariado dos vicentinos Criminalidade: posso entrar? Um grama de esperança, Um grama de vida Nossa descoberta A razão de ser para estar na O.V.A.R. Divagações Coragem ou talvez não Homilia de D. Carlos Azevedo O Natal do outro lado da liberdade Prisões: Faltam alternativas para reabilitar os reclusos Sonhar ou Sobreviver? Uma visão dos idosos abandonados a partir duma prisão Poemas da Prisão Silêncios de quem gostamos, ausências de quem esperamos… Vicente de Paulo, Ozanam e a Questão do Juízo Final: Dedicatória à minha avó Abolição das prisões: uma realidade possível? PS quer rendimento mínimo para ex-reclusos Por um mundo sem cárcere: Momentos duma visita a uma prisão Por um mundo sem prisões Exmos.Senhores Deputados da Assembleia da República Repugnância perante o securitarismo Panorama da Realidade Prisional “A Prisão e as suas Consequências. Como Ajudar?” A igreja diz não à prisão, destaques › 03/08/2016 Crise do Sistema Prisional abre Espaço para o Debate Sobre o Abolicionismo Penal “Gratidão” As prisões e a liberdade como valor absoluto Excerto da intervenção do Presidente da República, Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa Drogas: Principal contribuinte da população prisional Memórias de Prisão Audição Pública – Assembleia da República Legislação sobre prisões Ficha Técnica