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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Battles, Ford Lewis Análise das Institutas da Religião Cristã de João Calvino / Ford Lewis Battles; tradução de Pedro Henrique R. de O. Issa. — São Paulo: Vida Nova, 2022. ePub3. ISBN 978-65-5967-143-4 Título original: Analysis of the Institutes of the Christian religion of John Calvin 1. Calvino, João — 1509-1564. Institutas cristãs 2. Reforma da Igreja — Doutrinas 3. Teologia doutrinal I. Título II. Issa, Pedro Henrique R. de O. Índices para catálogo sistemático 1. Calvino, João — 1509-1564. Institutas cristãs ©1980, de Ford Lewis Battles Título do original: Analysis of the Institutes of the Christian religion of John Calvin, edição publicada pela P&R Publishing Company (Phillipsburg, NJ, EUA). Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Sociedade Religiosa Edições Vida Nova Rua Antônio Carlos Tacconi, 63, São Paulo, SP, 04810-020 vidanova.com.br | vidanova@vidanova.com.br 1.ª edição: 2022 Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em citações breves, com indicação da fonte. Impresso no Brasil / Printed in Brazil Todas as citações bíblicas sem indicação da versão foram traduzidas diretamente da versão do autor. Direção executiva Kenneth Lee Davis http://vidanova.com.br Coordenação editorial Jonas Madureira Edição de texto Ubevaldo G. Sampaio Preparação de texto Bruna Gomes Ribeiro Revisão de provas Abner Arrais Coordenação de produção Sérgio Siqueira Moura Diagramação Aldair Dutra de Assis Capa OM Designers gráficos Livro digital Lucas Camargo Sumário Prefácio à edição brasileira Prefácio Introdução O prefácio de Calvino endereçado a Francisco I LIVRO UM: O conhecimento do Deus Criador LIVRO DOIS: O conhecimento de Deus, o Redentor em Cristo, primeiramente revelado aos patriarcas, sob a Lei, e então a nós, no evangelho LIVRO TRÊS: A forma pela qual recebemos a graça de Cristo: que benefícios ela nos traz e quais os efeitos que decorrem dela LIVRO QUATRO: Os meios ou auxílios externos pelos quais Deus nos convida à comunidade de Cristo e ali nos mantém Prefácio à edição brasileira Um recurso inestimável para estudar as Institutas da religião cristã João Calvino é considerado um dos mais importantes teólogos da história da igreja. Somente outros três homens tiveram impacto parecido: Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino e Martinho Lutero. Mas, em termos de genialidade, profundidade e extensão, os dois personagens mais influentes são Agostinho e Calvino. As formulações teológicas de ambos foram de longo alcance, com implicações para todas as esferas do pensamento, indo até mesmo além da influência sobre uma determinada denominação cristã. Da mesma forma que católicos e protestantes são devedores a Agostinho, a influência de Calvino se estende a anglicanos, presbiterianos, congregacionais e batistas. Na Prússia, os luteranos foram impactados pela influência de seus escritos. Mais recentemente, pentecostais e carismáticos também descobriram suas valiosas obras. Aliás, Calvino amava os escritos de Agostinho e se percebia em continuidade com a herança do bispo de Hipona. Ele citou Agostinho mais do que qualquer outro escritor antigo nas Institutas. Sempre que ele queria estabelecer a antiguidade ou a importância de uma doutrina, citava Agostinho, especialmente porque ele era uma autoridade com a qual Calvino e seus interlocutores católicos concordavam. Mas uma área de diferença importante é que Calvino tinha fluência em grego e hebraico, enquanto Agostinho era fraco em grego e desconhecia o hebraico. Além disso, quando Calvino surgiu no cenário europeu, o movimento de Reforma estava dividido e sob intensa pressão do catolicismo. Mas, antes de sua morte, a fé reformada se solidificou e se tornou um movimento internacional, alcançando, a partir da Suíça, a França, norte da Itália, centro da Alemanha, Holanda, Inglaterra, Escócia, Espanha, Hungria, Polônia e até o Brasil — para onde Calvino enviou os primeiros missionários a chegarem às Américas, em 1555, para tentar implantar a France Antarctique no Rio de Janeiro. Em resumo, a importância de Calvino foi tamanha para a fé cristã e para o Ocidente que é reconhecida mesmo em círculos seculares.¹ O cidadão de Genebra Calvino era cidadão francês, morando na cidade de Genebra. É importante enfatizar isso, pois ajuda a colocar o reformador em contexto. Supõe-se em certos círculos antipáticos à sua teologia que ele foi uma espécie de ditador de Genebra — uma tosca caricatura recorrente. Como ele não era cidadão genebrino, não tinha influência sobre as decisões acerca do ordenamento civil da cidade e nem tinha direito de voto em decisões políticas ou eclesiásticas no conselho municipal. Toda a sua influência foi eminentemente espiritual, especialmente por meio de sua pregação e escritos.² E esta influência se estendeu a todas as esferas da cidade. Por exemplo, Genebra se tornou o primeiro lugar na Europa a ter leis que proibiam: jogar fezes, urina e lixo nas ruas; fazer fogo ou usar fogão num cômodo sem chaminé; ter uma casa com sacadas ou escadas sem que as mesmas tivessem grades de proteção; a permissão de que as parteiras se deitassem nas camas com os bebês recém- nascidos (a lei visava proteger o nenê da contaminação); alugar uma casa sem o conhecimento da polícia; sendo comerciantes, cobrar além do preço permitido ou roubar no peso e, sendo produtores, estocar mercadorias para fazê-la faltar no mercado e assim encarecê-las. A influência sobre as estruturas sociais Poucas formulações do pensamento ocidental tiveram tanto impacto sobre a nossa cultura quanto os escritos de Calvino, preparados em virtual luta para submeter toda existência ao comando do Deus que se revela nas Escrituras. Por exemplo, a ideia de um governo republicano e representativo, onde se tem a alternância do poder, e onde o povo está ligado por um pacto, foi introduzida na cultura ocidental por meio de Calvino. As obras de Teodoro de Beza, De Jure Magisterium (“Do direito dos magistrados”), George Buchanan, De Jure Regni Apud Scotos (“Os poderes da Coroa da Escócia”) e Johannes Althusius, Política, estavam conectadas com os escritos do reformador francês. E deve-se notar que esses escritores cristãos estavam na vanguarda dos debates políticos nos séculos 16 e 17. Por exemplo, a primeira defesa da liberdade de imprensa e a primeira deposição de um rei tirano, e mesmo sua execução por alta-traição, ocorreram na Inglaterra no século 17, em círculos influenciados diretamente pelo pensador francês. E a ideia do cruzamento fiscalizador entre os poderes (checks and balances) já estava sendo debatida nas treze colônias britânicas da América do Norte em meados do século 18 pelo clérigo presbiteriano John Witherspoon, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, exercendo profunda influência sobre James Madison, autor da grande constituição daquele país. A rebelião americana, no século 18, que deu origem à mais antiga e duradoura democracia do Ocidente, também foi fruto da influência do pensamento de Calvino. Todos os capelães do Exército Continental eram presbiterianos, sendo que 2/3 dos soldados eram presbiterianos. Conta-se que o rei George III, no auge da guerra nas treze colônias, chamou-a de “aquela pequena rebelião presbiteriana” — em outras palavras, havia uma guerra aberta dos presbiterianos contra a Coroa britânica. Depois, amargurado, afirmou que “aqueles malditos presbiterianos estão por trás disso, eles sempre desafiam a monarquia, não importa de onde eles venham”. Embora as forças britânicas raramente queimassem prédios durante a guerra, destruíram a Primeira Igreja Presbiteriana em Elizabeth, New Jersey, e a casa paroquial. Entre seus membros, William Livingston, mais tarde o primeiro governador eleito de New Jersey, Elias Boudinot, que viria a se tornar presidente do Congresso, e o reverendo James Caldwell, o “Pároco Combatente”, eram rebeldes fervorosos.³ Assim, em países influenciados pelo pensamento reformado— Suíça, Holanda, Inglaterra, Escócia e Estados Unidos — não surgiram déspotas, nem nas esferas políticas muito menos nas eclesiásticas. Também podemos mencionar que a ética protestante do trabalho, com as ênfases na vocação, frugalidade, disciplina, santidade do trabalho e a importância dos estudos seculares, também são legado do grande reformador. Um estilo peculiar Talvez a maior dificuldade em se aproximar de Calvino reside na falta de empatia entre o leitor e o escritor. Diferente da maioria dos escritores anteriores, como Agostinho e Lutero, para ficar em dois exemplos, o reformador francês falou muito pouco de si mesmo. Até mesmo reconstruir a conversão de Calvino é desafiadora. Ele dedicou poucas linhas ao tema, em seu comentário ao livro dos Salmos. O foco de Calvino, como pregador e escritor é o texto bíblico. O que deveria ser uma virtude — a total ênfase na Escritura — torna-se um entrave, para muitos leitores. Então, a imagem que fica de Calvino é que ele foi uma pessoa fria, que escreveu sobre predestinação, e comandou Genebra com mão de ferro. Só que esta caricatura está longe da realidade. Suas cartas são forte exemplo do caráter modesto, simples e desprendido de Calvino. E, também, da lealdade que ele devotava a seu grande círculo de amizades. Ele escreveu cartas para colegas reformadores, tais como Guillaume Farel, Pierre Viret, John Knox, Martinho Lutero, Philip Melanchthon, Thomas Cranmer e Heinrich Bullinger, reis, príncipes e nobres, como o Duque de Somerset, o rei Eduardo VI e Lady Jane Grey, da Inglaterra, o rei Sigismundo II Augusto, da Polônia, o Duque René de Ferrara e o Almirante Gaspard de Coligny, da França, a igrejas perseguidas e cristãos presos, a pastores, a vendedores de livros cristãos e a mártires à espera da sentença. Por exemplo, as duas cartas que ele escreveu a um grupo de presos em Lyon, em 1552 e 1553, são um forte e comovente testemunho dos interesses pastorais do reformador de Genebra. O lugar da doutrina da predestinação Ainda assim, se disseminou uma caricatura do reformador de Genebra, como se sua única contribuição ao pensamento cristão tivesse sido sistematizar a doutrina da predestinação. Isso está bem longe da verdade. Agostinho, Isidoro de Sevilha, Gottschalk de Orbais, Anselmo da Cantuária, Bernardo de Clairvaux, Thomas Bradwardine, Tomás de Aquino, John Wycliffe, Jan Hus e Thomas à Kempis, antes de Calvino, escreveram sobre esse tema. Agostinho legou à cristandade uma série de tratados refutando a heresia pelagiana, onde a doutrina da predestinação é desenvolvida e detalhada magistralmente.⁴ Lutero escreveu uma obra imensa e irrefutável sobre essa doutrina, Da vontade cativa, antes de Calvino.⁵ É quase anticlimático ler sobre a predestinação nos escritos de Calvino, pois não há originalidade no que ele registrou sobre a predestinação. Por exemplo, nas Institutas, o debate sobre a predestinação ocupa pouco espaço. Ela não está na seção onde comumente é abordada nos livros de teologia sistemática, a providência de Deus, mas se encontra no fim do debate sobre a obra do Espírito Santo na salvação. Na verdade, são os últimos quatro capítulos dessa seção (21- 24). E o único capítulo sobre oração (20), nessa mesma seção, é maior que estes quatro capítulos juntos. E o surpreendente é que o enfoque dessa doutrina é devocional e pastoral; não há um único traço de especulação sobre a predestinação. Em seus comentários bíblicos, por exemplo, Calvino tratou do tema quando o texto bíblico exige, como nos comentários às epístolas de Romanos, Gálatas e Efésios. Como têm sido sugerido, o tema central da teologia de Calvino pode ser a soberania de Deus por meio da benevolência de Cristo ou a união mística do fiel com Cristo. “Um tratado para os tempos” Calvino foi um gigante por várias razões: por enfatizar a autoridade e prioridade das Escrituras (sola Scriptura), por solidificar o método histórico-gramatical de interpretação bíblica, por se preocupar com a estrutura da igreja visível, caracterizada pela pregação da Palavra de Deus e correta administração dos sacramentos do batismo e da ceia, pela transformação ocorrida em Genebra, que se tornou o modelo de uma república cristã para toda Europa, e, principalmente, por sua imensa contribuição literária. Esta engloba comentários bíblicos sobre quase todo o Novo Testamento e grande parte do Antigo Testamento, milhares de sermões, tratados polêmicos, cartas e escritos litúrgicos e catequéticos. Mas sua grande obra foi as Institutas da religião cristã, que seria “uma chave e entrada que a todos os filhos de Deus outorgue acesso a correta e cabal compreensão da Santa Escritura”. A primeira edição surgiu em Basiléia, no ano de 1536, e tinha 6 capítulos. Era publicada em formato pequeno, de modo que cabia facilmente nos amplos bolsos que se usavam antigamente, e podia circular dissimuladamente pela França católica. Em nove meses se esgotou esta edição, que, por estar em latim, era acessível a leitores de diversas nacionalidades. Então, Calvino continuou preparando edições sucessivas das Institutas, que foi crescendo segundo iam passando os anos.⁷ A edição latina passou por algumas ampliações, revisões e reorganizações, em 1536, 1539, 1543, 1545 (sem alteração), 1550, 1553 e 1554 (ambas sem alterações), até atingir sua forma definitiva, publicada em Genebra, em 1559. Essa edição foi reimpressa duas vezes em 1561. À tradução francesa de 1541 — que não foi simplesmente uma tradução da edição latina de 1539, tendo muito material da edição de 1536 —, seguiu-se outras: 1545, 1551, 1553 e 1554 (ambas sem alterações), 1557, e a definitiva, de 1560.⁸ Assim sendo, é uma alegria apresentar ao público de fala portuguesa a importantíssima obra Análise das Institutas da religião cristã de João Calvino, de Ford Lewis Battles. Usei este valioso livro pela primeira vez em 1996, para acompanhar meus primeiros estudos das Institutas. Foi um auxílio - imprescindível ao qual continuei recorrendo continuamente em meus estudos da importante obra de Calvino. Espero, agora, que mais estudantes da obra maior do reformador francês se beneficiem desse excelente guia, “um esboço analítico detalhado do texto das Institutas conforme Calvino o redigiu”, que “pode tanto ser um mapa da estrada para a jornada quanto um útil instrumento para revisão”, como escreveu Battles. E, como ele escreveu, o que ficará evidente na medida em que o estudante disciplinado e motivado for avançando em seus estudos das Institutas, empregando esse guia, é que “a teologia de Calvino habita o mundo real e o encara frontalmente”. E, ao estimular o leitor a estudar as Institutas, ele afirma: “Em primeiro lugar, você deve querer ler o livro; em segundo lugar, você deve partir do início; em terceiro lugar, você deve persistir, por mais demorado que lhe seja, até chegar à última página. […] Em quarto lugar, não lamente que uma questão pareça ficar sem resposta, ou que uma ponta solta pareça não estar amarrada: ela será respondida; ela será amarrada. Seja paciente. […] Em quinto lugar, conforme você lê, não pense apenas na época de Calvino […], mas pense também na sua própria época”. Portanto, leitor, ad fontes! Em 6 de fevereiro de 1564, Calvino, em estado de saúde bem frágil, foi levado em uma cadeira até a Catedral de São Pedro, onde pregou seu último sermão, acerca dos evangelhos. Algumas semanas depois, ele reuniu os ministros em particular e disse: “Quanto à minha doutrina, tenho ensinado fielmente e Deus te me concedido graça para escrever o que escrevi com toda a fidelidade de que fui capaz. Não falsifiquei uma única passagem das Escrituras, nem dei a ela nenhuma interpretação errada, até onde sei; e embora pudesse ter introduzido sentidos perspicazes, se eu tivesse estudado perspicácia, lancei tal tentação sob meus pés e visei sempre a simplicidade. Nada escrevi motivado pelo ódio a alguém, mas sempre propus fielmente aquilo que considerava que fosse a glória de Deus. […] Eu tinha esquecido este ponto: rogo-lhes que não façam nenhuma mudança,nenhuma inovação. As pessoas frequentemente pedem novidade. Não é que eu deseje, por minha própria causa ou por causa de ambição, que aquilo que estabeleci deva permanecer e que as pessoas devam preservá-lo sem desejar nada melhor, mas porque as mudanças são perigosas e, algumas vezes, danosas”. E, assim, em 27 de maio de 1564, Calvino morreu e foi sepultado no Cimetière des Rois em um túmulo não identificado, por seu próprio pedido. O único anseio do reformador era para que Deus recebesse exclusivamente toda a glória. Que o estudo diligente das Institutas conduza leitores a estudar com cada vez mais paixão e afinco as Escrituras Sagradas, inspiradas pelo Espírito, a fonte e meio da revelação do Deus uno e trino ao seu povo eleito em Cristo Jesus. E que possamos ser tão fiéis quanto o reformador no estudo diligente e na proclamação vigorosa da “sã doutrina”, o “mistério da fé” (Tt 1.9; 2.1; 1Tm 3.9), ao mesmo tempo em que ansiamos para que o Senhor Criador e Redentor seja glorificado em tudo. Ut in omnibus glorificetur Deus! Franklin Ferreira Diretor-executivo e professor de Teologia Sistemática e História da Igreja do Seminário Martin Bucer; consultor acadêmico de Edições Vida Nova; pastor da Igreja da Trindade, São José dos Campos, SP ¹ Para textos introdutórios à vida, obra e impacto de Calvino, cf. especialmente Karl Barth, The theology of John Calvin (Grand Rapids: Eerdmans, 1995); Wulfert De Greef, The writings of John Calvin: an introductory guide (Louisville: Westminster/John Knox Press, 2008); F. Bruce Gordon, Calvin (New Haven: Yale University Press, 2011); Alister McGrath, A vida de João Calvino (São Paulo: Cultura Cristã, 2005); W. Stanford Reid, org., Calvino e sua influência no mundo ocidental (São Paulo: Cultura Cristã, 2013); Marc Vial, John Calvin: an introduction to his theological thought (Geneva: International Museum of the Reformation/Labor et Fides, 2009); Ronald S. Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma (São Paulo: Cultura Cristã, 2003); François Wendel, Calvin: origins and development of his religious thought (Grand Rapids: Baker Books, 1987). ² Cf. por exemplo William G. Naphy, Calvin and the consolidation of the Genevan Reformation (Louisville: Westminster/John Knox Press, 2003). ³ Joseph S. Tiedemann, “Presbyterianism and the American Revolution in the Middle Colonies”, em Church History, vol. 74, no. 2 (June 2005): 306-344; Brandon S., Durbin, “The Presbyterian Enlightenment: the confluence of evangelical and enlightenment thought in British America” (James Madison University, 2018). Masters Theses. ⁴ Cf. Santo Agostinho, A graça (I): O espírito e a letra; A natureza e a graça; A graça de Cristo e o pecado original (São Paulo, Paulus, 1998); A graça (II): A graça e a liberdade; A correção e a graça; A predestinação dos santos; O dom da perseverança (São Paulo, Paulus, 2002). ⁵ Martinho Lutero, “Da vontade cativa”, em: Obras selecionadas (São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1993), vol. 4: Debates e controvérsias II, p. 11-216. “Prefácio à edição francesa de 1541 e subsequentes, nessa língua”, em As Institutas ou Tratado da religião cristã, edição latina de 1559 (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), vol. 1, p. 45. ⁷ Para uma biografia da obra mais importante e influente da Reforma, cf. F. Bruce Gordon, John Calvin’s ‘Institutes of the Christian religion’: a biography (Princeton: Princeton University Press, 2016). Esse livro explora as origens, o estilo e as características principais das Institutas, examinando suas raízes teológicas e históricas e mostrando como essa obra se desenvolveu em suas várias edições para se tornar uma ampla síntese da teologia reformada, extremamente influente até os dias atuais. ⁸ As principais edições disponíveis em português são: As institutas da religião cristã, primeira edição de 1539 (São José dos Campos: Fiel, 2018); As institutas ou Tratado da religião cristã, edição francesa de 1541 (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vol.; As institutas ou Tratado da religião cristã, edição latina de 1559, 4 vol. “O adeus de Calvino aos ministros de Genebra (anotado pelo ministro [Jean] Pinant)”, em: Cartas de João Calvino (São Paulo: Cultura Cristã, 2009), p. 191. Prefácio Um dos cursos mais populares do Pittsburgh Theological Seminary, ofertado no final da década de 1960 e durante a década de 1970, foi um seminário sobre as Institutas da religião cristã, de Calvino, ministrado pelo dr. Ford Lewis Battles. O seminário não apenas concedeu aos estudantes a oportunidade de estarem frente a frente com um dos mais destacados estudiosos de Calvino como também os equipou para pensarem histórica, sistemática e pastoralmente, no melhor sentido da palavra. Quando os alunos foram informados, no início do curso, de que uma das exigências seria ler na íntegra a edição de 1559 das Institutas, vários deles questionaram se era sábio fazer a matrícula nessa eletiva. Como alguém poderia tratar todo o loci teológico contido na obra definitiva de Calvino? Não obstante, aqueles que combateram o bom combate e persistiram até o fim saíram do curso com um panorama instrutivo do pensamento do teólogo, tão essencial para o entendimento de qualquer doutrina particular. Conforme os capítulos desta Análise vinham à tona, muitos estudantes do seminário sobre Calvino e de cursos afins requisitavam cópias e achavam-nas úteis enquanto percorriam as Institutas. Clérigos e leigos também julgaram a Análise extremamente útil. Por essa razão, é um prazer ver esta obra impressa para que todos aqueles que desejam mergulhar nas raízes da Reforma possam ter um guia e, por assim dizer, um mapa da estrada. Se Ford Lewis Battles pudesse ter visto a publicação final desta obra, ela certamente teria agradado seu coração. Com a morte do dr. Battles no Dia de Ação de Graças de 1979, o universo acadêmico e a Igreja Mundial perderam um homem central para ambos. Ao expressar gratidão a Deus pelo dom de sua vida, sei que falo por uma geração de estudantes que foram privilegiados por estarem sob sua tutela, por ensinarem sob sua orientação e por empreenderem pesquisas sob sua rigorosa honestidade. Uma das expressões favoritas de Ford Lewis Battles — e, na verdade, uma admoestação para todos nós — era “Ad Fontes”. De volta às Fontes! Se esta Análise da obra monumental de Calvino for instrumental em redirecionar, ainda que poucas pessoas, para uma das fontes primárias do pensamento reformado, então o trabalho aqui apresentado estará bem recompensado. John R. Walchenbach Páscoa, 1980 Introdução Mais uma síntese das Institutas? Louvado seja todo homem que nos livra de ter que depender de compêndios dos grandes clássicos!¹ Em sua introdução às Institutas da religião cristã, de Calvino, edição da Library of Christian Classics (Philadelphia: The Westminster Press, 1960), John T. McNeill traçou o histórico literário complexo, não apenas das edições completas daquela obra em vários idiomas, mas também dos numerosos epítomes e condensados que começaram a aparecer logo após a morte de Calvino (LCC 20. xlviii — l).¹¹ A maioria desses textos são compactos ou condensações, em uma série de aforismos, das ideias da obra do teólogo. Às vezes, esses compêndios são acompanhados por tabelas que buscam dispor graficamente a estrutura lógica que o antologista vislumbra na obra de Calvino. O presente livro, entretanto, não se encaixa estritamente em nenhuma dessas categorias. Ele é simplesmente um esboço analítico detalhado do texto das Institutas conforme Calvino o redigiu. A Análise tem sua origem no meu seminário sobre as Institutas, iniciado na Hartford Seminary Foundation e prosseguido no Pittsburgh Theological Seminary, em 1967, e no Calvin Theological Seminary, entre 1978 e 1979. Naquele seminário, as Institutas da religião cristã foram lidas integralmente e discutidas no decurso de um único termo ou semestre. Essa é, de fato, uma tarefa extensa, mas nada menos do que a leitura do texto completo oferecerá uma visão precisa do pensamento de Calvino. Para obtê-la, entretanto,alguma orientação é necessária, e é essa a função almejada pela Análise ao oferecer, como faz, uma visão sinóptica do que o dr. McNeill chamou, de forma pitoresca, de “o miolo truncado” das Institutas. Certamente, a Análise não é um substituto à leitura do todo, mas pode tanto ser um mapa da estrada para a jornada quanto um útil instrumento para revisão. A Análise não poderia ter sido concebida sem o auxílio de muitos estudantes que, por meio de suas questões e reflexões, moveram-me à tarefa de escrevê-la; ela nunca poderia ter sido completada sem a colaboração paciente de John Walchenbach, meu antigo assistente de ensino em Pittsburgh, hoje secretário executivo de planejamento na Reformed Church in America. Ele é responsável pelo trabalho dos capítulos 6, 9, 10 e 11 do Livro Dois; dos capítulos 11, 12, 13, 14, 16, 17, 18 e 25 do Livro Três, bem como dos capítulos 7 a 17 do Livro Quatro. A. C. Burfeind trabalhou nos capítulos 3 e 4 do Livro Quatro. O uso da Análise pelos colegas de outras instituições também tem sido uma fonte de encorajamento para mim. A biografia de um livro (1536-1559): de seis a oitenta capítulos A história da igreja cristã registra dois tipos de teólogos: aqueles cujo pensamento atravessa constante mudança e desenvolvimento durante o transcurso de sua vida, e aqueles que parecem ter abraçado, logo no início de sua carreira teológica, uma moldura que permanece, desde então, firme e constante. A franqueza das Retratações de Agostinho aponta para o primeiro gênero de teólogo. Calvino é geralmente apontado como exemplo do segundo. Em certo sentido, a teologia de Calvino é, do início ao fim, uma e a mesma. Diferentemente de Agostinho, ele não precisou de um livro de Retratações para explicar as contradições entre os seus primeiros escritos e os últimos. Todavia, mesmo com todo seu ar de firmeza e constância, as Institutas da religião cristã passaram, sim, por mudanças durante o curso de sua história literária, e essas mudanças se deram como resposta dinâmica ao incessante debate teológico do período. Se a fonte e inspiração das Institutas foi a Escritura, vista tanto em sua origem quanto em sua longa história exegética, a matriz, por sua vez, foram os tempos em que Calvino viveu. Em companhia de Agostinho, Lutero e muitos outros, Calvino enxergou a vida cristã após a conversão não como um salto para a perfeição, mas como um amadurecimento gradual, frequentemente doloroso, rumo à consumação abençoada que só pode advir com a morte.¹² Assim, quando Calvino afirma, em sua “Epístola ao Leitor” que introduz a edição final das Institutas em latim, que “Embora eu não me arrependesse do labor empenhado, eu nunca estive satisfeito até que a obra tivesse sido disposta na ordem agora estabelecida” (LCC 20.3), o que ele está dizendo, efetivamente, é: “Aqui, nestas edições sucessivas de minha magnum opus, está a história de meu próprio amadurecimento gradual na vida cristã”. Conforme lemos as Institutas, nunca devemos nos desviar para longe desse testemunho pessoal de seu autor. A história literária das Institutas já foi contada diversas vezes, e este não é o lugar para repetir uma crônica tão recorrente. O que se faz necessário, aqui, é um delineamento de alguns dos fatores decisivos que moldaram este quarto de século que conduziu, de um pequeno e conciso esboço da fé, a um ensaio completo e perene sobre a religião cristã. Em primeiro lugar, Calvino amadureceu muitíssimo à medida que avançou com suas leituras nos pais da igreja, na Escritura e na história de sua exegese. Uma assimilação sólida, porém limitada, de Agostinho marca a edição de 1536. Uma vasta incorporação de material agostiniano ingressa, pela primeira vez, na edição de 1539. Outros ainda são agregados na terceira edição em latim, de 1543. É visível como o trabalho subsequente de Calvino na antropologia e na eclesiologia cristã, após a primeira edição, deve muito a Agostinho. João Crisóstomo, o segundo mais importante pai da igreja, está praticamente ausente na primeira edição; sua influência começa a aparecer em 1539 e, claro, amplamente nos Comentários ao Novo Testamento, cuja preparação é concomitante às Institutas. O manuseio equilibrado de Calvino dos textos bíblicos repousa, pelo menos em parte, em seu amálgama altamente pessoal de sistemática de Agostinho e exegese de Crisóstomo. Poder-se-ia também apontar o impacto menor, mas significativo, de outros pais da igreja no amadurecimento teológico de Calvino. Em segundo lugar, desde que tomou conhecimento de Martin Bucer, tanto por meio de seus escritos quanto no período em que colaboraram em Estrasburgo, Calvino foi profundamente influenciado por ele. Já dependente de Bucer em muito de seu entendimento sobre a oração,¹³ por meio das Enarrationes sobre os Evangelhos (1530), Calvino chegou, sob a tutela de Bucer, a um entendimento mais profundo da predestinação. A leitura de Metaphrases sobre Romanos (1536), de Bucer, é perceptível pela primeira vez no Catecismo de 1537-38 (servindo como um trampolim entre a primeira e a segunda edição das Institutas¹⁴); depois, é vista plenamente nas Institutas de 1539 e no comentário de Calvino a Romanos, publicado no ano seguinte. Em terceiro lugar, o “interlúdio pastoral” de 1538-41, quando Calvino pastoreou a pequena congregação francesa emigrada em Estrasburgo, rendeu frutos nas ricas adições eclesiásticas à edição de 1543. O calvinismo seria de fato um sistema teológico pobre para a igreja, ou no mínimo inadequado, se fosse privado dos lampejos significativos sobre a vida e disciplina da congregação adoradora estabelecidos nesse ano. A exposição de Calvino sobre a natureza da igreja e sua disciplina deve ser conjugada com sua contribuição — que não deve ser esquecida — à adoração e ao louvor cristão.¹⁵ A “Epístola ao leitor” que encabeça The form of church prayers and songs [A forma dos cânticos e orações da igreja] (1542) testemunha, uma vez mais, da maturação de Calvino na fé. Os adversários de Calvino, tanto quanto seus aliados, podem ser ressaltados como um quarto fator no amadurecimento do livro. O estímulo dos debates frequentemente vitriólicos — desde Pierre Caroli, que objetou, sem sucesso, a ortodoxia trinitária de Calvino; até Miguel Serveto, que se empenhou em destruir a doutrina da Trindade e romper o vínculo vívido entre Antigo e Novo Testamentos — aprofundou a teologia de Calvino em um sentido positivo. Conforme costurava seu caminho pelo labirinto de posições eucarísticas conflitantes, as respostas argutas aos seus adversários conferiram uma raiz crescentemente profunda a uma posição já intuída, corretamente, em 1536. Não há uma só página das Institutas em que o debate contínuo com um ou outro notável não seja evidente. Por fim, podemos apresentar, de forma geral, um fator de importância incalculável na elaboração das Institutas: a própria Genebra. A delongada luta de Calvino para fornecer estruturas administrativas e legais operacionais à cidade que o abraçou, e colocá-las em funcionamento; sua ronda pastoral diária na igreja, no consistoire [consistório], na escola; sua vasta correspondência para além dos limites daquela cidade — todas essas atividades garantiram que as Institutas se tornariam, progressivamente, do início ao fim, a obra de uma verdadeira teologia pastoral. À guisa de síntese, dois diagramas são oferecidos nas (p. 15-16). O primeiro traça as mudanças e acréscimos de material nas primeiras cinco principais edições em latim das Institutas; o segundo esquematiza a relação literária das Institutas de 1536, o Catecismo de 1538 e as Institutas de 1539.¹ Biografia espiritual em forma sistemática A atitude com que nos colocamos a ler, pela primeira vez, obras clássicas da fé, é frequentemente crucial para determinar quais benefícios obteremos delas. Se nos achegarmos às Institutas de Calvino como um livro de referência em teologia sistemática, como muitos já o fizeram, ele nos renderá, de fato, lampejos valiosos. Contudo, em uma leitura assim, não conhecemos nem metade de seu autor. Imagineque, antes mesmo de abrirmos na primeira página, tenhamos a informação: “Vocês estão prestes a partilhar de uma das experiências clássicas da história cristã; nas páginas enganosamente ordenadas e aparentemente frias que se seguem, estão impressas as apaixonadas respostas de um homem ao chamado de Cristo”. Se mantivermos, sempre diante de nós, o caráter autobiográfico desse livro, o homem completo nos falará em verdade plena. Calvino nos diz que, em suas Institutas, ele “pavimentou a estrada” para que os estudantes no início de seus estudos compreendessem a Escritura (“Ao leitor”, LCC 20.4f.). Não obstante, ele ensina que a compreensão da Escritura depende da iluminação do leitor pelo Espírito Santo (1.7; 3.2). É de se esperar, portanto, que sua exegese adentre firmemente na experiência pessoal de personagens bíblicos, nos quais ele encontra um reflexo de si mesmo. Nos Salmos de Davi, por exemplo, Calvino encontra “uma anatomia de todos os estados da alma”. Eis aqui uma abordagem “experiencial” da exegese bíblica por meio da identificação biográfica com personagens do Antigo Testamento, surpreendentemente similar àquela de Martinho Lutero¹⁷ e nada estranha a todos os autênticos pregadores. Em outra ocasião,¹⁸ discuti a “imitatio Davidis” [imitação de Davi] com que nos deparamos tão frequentemente nos escritos de Calvino — especialmente nas Institutas e no Comentário aos Salmos. Ele prefere, frequentemente, deixar que o salmista fale em seu lugar acerca de sua própria condição espiritual. Dois ensaios examinam esse emprego autobiográfico que Calvino faz de Davi, um deles de R. A. Hasler¹ e outro, mais extenso, de J. R. Walchenbach.² Dos personagens do Novo Testamento, Paulo é o que mais se aproxima de espelhar o status animae [condição da alma] de Calvino. Em sua Answer to Balduin’s Insults [Resposta aos insultos de Balduin] (1561), ele afirma: A verdade é que eu não sou edificado pela grandeza das revelações que me são concedidas, como se eu fosse um Paulo; ainda assim, reconheço que eu tenho isto em comum com o Apóstolo: que um mensageiro de Satanás foi enviado a mim por Deus para me bofetear na face e que, assim, eu mesmo sou ensinado a ser humilde. Mas assim como devemos, a todo tempo, orar para que Deus afugente o diabo e seus anjos, é também nosso dever nos opormos aos seus vitu- périos, a fim de que a verdade não seja vilipendiada pelas falsidades que eles assim nos outorgam. O leitor, municiado dos relatos lacônicos de Calvino sobre sua conversão e amadurecimento ulterior, tais quais apresentados no prefácio do Comentário aos Salmos (1555-7), marchará com passos mais firmes pelos caminhos desvelados das Institutas.²¹ Talvez ele perceba o papel crucial que Romanos 1.18-25 (especialmente os versículos 18 e 25) teve, provavelmente, na conversão de Calvino e em sua busca da vida cristã nos anos que se seguiram.²² Certamente, a contraposição de Calvino entre a verdade e a falsidade, bem como seu postulado dos dois conhecimentos — o de Deus e o de si — derivam particularmente dessa passagem. Qual é o cerne das Institutas, quando lida nessa ótica pessoal e experiencial? Para o homem, é um manual de piedade. Mas, em relação a Deus, do que se trata? As Institutas da religião cristã são um esforço ousado para verdadeiramente coroar Deus como rei de seu povo (3.20.43). Que Deus possa governar sobre as nações — não é esse o tema central da teologia de Calvino?²³ Deus é rei. Calvino nunca fala literalmente da “soberania de Deus”, uma abstração pálida que aleija o essencial — e bíblico — imaginário real. Isso explica a “moldura política” das Institutas: ela começa com a carta ao rei francês, Francisco I, e termina com o famoso capítulo sobre o governo político (4.20). A teologia de Calvino habita o mundo real e o encara frontalmente. Sua carreira enquanto escritor e como líder não foi aquela do sonhador ou teórico utópico, pois nele o estudo da lei e da teologia tocavam-se em seu plano mais profundo. Um livro de antíteses A epístola dedicatória de Calvino a Francisco I introduziu não apenas a primeira edição das Institutas, mas também todas as edições subsequentes. Esse documento de alta importância, entretanto, é omitido, por alguns tradutores alemães das Institutas, por, do ponto de vista teológico, não ser tão interessante assim! Em certo sentido, essa epístola conserva uma pista adicional para a gênese e o amadurecimento de todo o livro. Endereçando sua primeira edição, a partir de seu refúgio na Basileia, tanto para o soberano cujo regime opressivo o levou a fugir e exilar-se quanto para seus correligionários sitiados, o jovem Calvino elucida, naquelas páginas iniciais, as duas frentes em que sua campanha teológica deveria ser travada. De um lado, ele rejeita o cristianismo deficiente da Sorbonne romanista, o establishment teológico da época. Do outro, dissocia-se do partido fanático revolucionário denominado, por ele, de “catabatistas”, posteriormente concebidos, de forma mais clara, como uma variedade de tendências radicais. Sua mensagem é a seguinte: assegurar seu soberano do caráter católico²⁴ do partido da Reforma, mais fiel do que seus inimigos sorbonnistas ao passado escriturístico e patrístico reivindicado por ambos; e assegurá-lo do caráter não subversivo e do apoio leal à monarquia pelo partido da Reforma, um partido a ser claramente diferenciado dos sonhos selvagens do Reino de Münster, liquidado poucos meses antes. Essa polarização inicial das Institutas, talhada pela natureza da crise política e eclesiástica contemporânea, perdurou por todas as edições subsequentes. Isso já foi examinado por mim, em outra ocasião,²⁵ de forma técnica e detalhada. Aqui, portanto, falaremos somente em termos descritivos que possam auxiliar o leitor à medida que ele traceja seu caminho pelo livro. As Institutas são, em certo sentido, um livro de antíteses. Essa é uma característica frustrante para o leitor novo, que espera que cada tópico seja plenamente esgotado antes que o próximo seja introduzido. É frustrante também para o crítico teológico ordeiro, minucioso, de mentalidade filosófica, que busca reduzir o todo à sua essência. Calvino, ao que tudo indica, ludibria ambos. Ele é, primeiramente, um teólogo escriturístico, e só depois um utilizador da filosofia, da lógica e da retórica — ferramentas humanas de ordenamento e das quais ele faz bom uso, mas nunca à custa do que julga ser a palavra manifesta da Escritura, compreendida contextualmente. Diante dos olhos de Calvino, sempre estão os episódios do que nós hoje chamamos de “história da salvação”, uma história que todo cristão deve experienciar por si mesmo, ainda que modestamente. Estou ciente de que, ao oferecer a análise tabular que apresento a seguir, “A estrutura antitética das Institutas”, corro o risco de representar inadequadamente o fluxo do pensamento de Calvino ao longo das Institutas. Entretanto, para o leitor desejoso de coligir a busca de Calvino pela verdade em meio à falsidade, ela pode ser útil de alguma forma. A estrutura antitética das Institutas Livro Um A. Conhecimento do Deus Criador 1. caps. 1-3/4 conhecimento verdadeiro (escriturístico) vs. falso (filosófico) de Deus 2. cap. 5a/5b² B. Revelação caps. 6-8/9: revelação escriturística (verdadeira) vs. extraescriturística (falsa: Schärmer) C. Deus como objeto de adoração caps. 10-11/12: ídolos (falsos) vs. Deus (verdadeiro) D. A Divindade cap. 13a/13b: verdadeira vs. falsa (principalmente Serveto) perspectiva da Trindade E. Criação: hexamerão; anjos; demônios cap. 14a/14b: verdadeiras vs. falsas perspectivas F. Conhecimento do homem (enquanto criatura): alma; corpo cap. 15a/15b: verdadeira (escriturística) vs. falsa (filosófica) perspectiva do homem G. Providência 1. cap. 16a/16b: verdadeiras (escriturísticas) vs. falsas (filosóficas) perspectivas 2. cap. 17a/17b: verdadeiras (escriturísticas) vs. falsas (filosóficas) atitudes em relação à providência 3. cap. 18a/18b: perspectiva verdadeira vs. falsa perspectiva da ação da providênciade Deus em relação aos ímpios Livro Dois A. A Queda e degeneração da raça humana; condição da vontade humana (conhecimento do homem enquanto decaído), principalmente contra a perspectiva Católica Romana 1. Cap. 1a/1b: verdadeiro vs. falso entendimento da condição decaída do homem (pecado original) 2. Cap. 2a/2b: verdadeiras vs. falsas perspectivas acerca da vontade humana (cativa vs. livre) 3. Cap. 3a/3b: total (verdadeira) vs. parcial (falsa) corrupção da natureza corrompida do homem 4. Cap. 4a/4b: soberania de Deus (verdadeiro) vs. liberdade humana (falso) 5. Caps. 1-4/5: vontade: livre (falsa) vs. não livre (verdadeira) (antítese resumidora) (cap. 6: capítulo transitivo para o conhecimento do Deus Redentor: Cristo) B. Lei e evangelho 1. Por que a lei foi dada cap. 7a/7b: verdadeiras vs. falsas perspectivas 2. Exposição do Decálogo cap. 8a/8b: verdadeiras vs. falsas perspectivas: no tocante à lei em geral e aos mandamentos específicos em particular 3. Cristo revelado na lei e no evangelho cap. 9a/9b: verdadeiras vs. falsas perspectivas 4. Relação entre lei (Antigo Testamento) e evangelho (Novo Testamento) caps. 10-11a/10-11b: verdadeiras vs. falsas perspectivas (principalmente Serveto) C. Cristo 1. Necessidade do Deus-homem enquanto mediador cap. 12a/12b: verdadeiras vs. falsas perspectivas (principalmente Osiander) 2. Encarnação cap. 13a/13b: verdadeiras vs. falsas perspectivas (principalmente Menno Simmons) 3. Unidade das duas naturezas em uma pessoa cap. 14a/14b: verdadeiras vs. falsas perspectivas (principalmente Serveto) 4. Os ofícios e obra de Cristo em nosso favor caps. 15-17a/15-17b: verdadeiras vs. falsas perspectivas Livro Três A. O operar do espírito no coração dos homens (cap. 1): alicerce do Livro III B. Fé cap. 2a/2b: escolástica (falsa) vs. verdadeira concepção da fé C. Arrependimento 1. Cap. 3a/3b: antítese entre verdadeiro arrependimento e falsas perspectivas de arrependimento (principalmente a insistência dos reformadores radicais no perfeccionismo) 2. Caps. 3/4-5: verdadeiro arrependimento vs. perspectivas escolásticas de arrependimento (que incluem confissão e satisfação acrescida de indulgências e purgatório) D. A vida cristã 1. Cap. 6a/6b: verdadeiras vs. falsas perspectivas da vida cristã em geral 2. Caps. 7-8a/8b: verdadeira renúncia de si mesmos vs. falsa paciência dos estoicos 3. Caps. 9/10: equilíbrio entre a antecipação da vida futura e o verdadeiro gozo da vida presente, alimentada por aquela; antítese subsidiária 4. Caps. 10a/10b: a atitude correta em relação à vida presente — alocada entre os falsos extremos da austeridade e da lassidão E. Justificação pela fé 1. Justificação pela fé vs. justificação por obras e suas doutrinas derivadas (méritos, supererrogação etc.), a posição escolástica: disposta no cap. 11:13-20, mas também no âmago dos caps. 12-18 2. Justificação pela fé no Cristo pleno vs. justificação pela fé somente na natureza divina de Cristo (o luterano Osiander) (caps. 11:5-12) F. Liberdade cristã cap. 19a/19b: verdadeiras vs. falsas perspectivas de liberdade G. Oração (cap. 20) Em meio a uma interpretação afirmativa da oração em geral, e da Oração do Pai- Nosso em particular, ao lado de tópicos correlatos, Calvino traça um caminho entre a rejeição da oração como supérflua e orações presas a formas fixas. H. Predestinação Antítese fundamental: liberdade de Deus vs. liberdade do homem, expressa em uma série de antíteses subordinadas: 1. Cap. 22: eleição incondicional por um Deus totalmente livre vs. eleição dependente do anteconhecimento de nossos méritos (posição Católico Romana tradicional não agostiniana) 2. Cap. 23: incompreensão natural da predestinação vs. esforços da razão humana para sondá-la, ultrapassando as fronteiras escriturísticas 3. Cap. 24: decretos secretos de predestinação e reprovação vs. várias teorias que concedem algum espaço para a vontade humana I. Ressurreição final cap. 25a/25b: imortalidade da alma mais ressurreição do corpo no último dia vs. diversas perspectivas Livro Quatro A. Natureza e organização da igreja 1. Caps. 1/2: verdadeira vs. falsa igreja 2. Caps. 3-4/5-7: verdadeiros vs. falsos ofícios e governo da igreja B. Poder eclesiástico 1. Responsabilidades atribuídas aos homens pela igreja a. cap. 8a/8b: poder da igreja quanto aos artigos de fé vs. prática papal b. cap. 9a/9b: verdadeiros vs. falsos concílios c. cap. 10a/10b: verdadeiras organizações de igreja (de acordo com a lei de Deus e a consciência humana) vs. organizações papais d. cap. 11a/11b: relação correta entre jurisdição espiritual e temporal vs. usurpação papal de ambas e. cap. 12a/12b: verdadeira disciplina eclesiástica (orientada pelo amor) vs. falsa disciplina eclesiástica (lassidão excessiva ou severidade excessiva) 2. Reponsabilidades atribuídas aos homens por si mesmos cap. 13a/13b: obediência simples à vontade de Deus vs. votos humanos (incluindo o monasticismo) que adulteram e impossibilitam a verdadeira obediência C. Sacramentos 1. A antítese geral: verdadeiros sacramentos (caps. 14-18, sintetizados no final do cap. 18) vs. falsos sacramentos (cap. 19) 2. Batismo caps. 15a/15b e 16: verdadeiro batismo vs. falso batismo e falsas práticas batismais 3. Ceia do Senhor a. cap. 17a/17b: uma série de antíteses entre a “verdadeira” doutrina e várias outras falsas (transubstanciação, ubiquidade); também entre a “verdadeira” administração e as várias maneiras falsas de administrar a ceia do Senhor b. caps. 17/18: verdadeira ceia do Senhor vs. falsa missa papal D. Governo civil (cap. 20) 1. seç. 1-2: perspectiva verdadeiras vs. perspectiva falsa do governo - civil/espiritual a. subjugar o civil em favor do espiritual b. marginalizar o espiritual em favor do civil 2. seç. 3ss. contém uma série de antíteses subsidiárias contra vários aspectos da perspectiva a; não se elabora a perspectiva b (cf., contudo, seç. 9) 3. seç. 10-12: verdadeira vs. falsa perspectiva do uso da força e da guerra 4. seç. 13: verdadeira vs. falsa perspectiva dos impostos 5. seç. 14-16: verdadeira vs. falsa perspectiva da Lei Mosaica em relação ao governo civil 6. seç. 17-21: verdadeira vs. falsa perspectiva do uso cristão dos tribunais de justiça 7. seç. 22-32: verdadeiras vs. falsas atitudes frente a governantes injustos a. o direito de revolução b. obediência, mesmo quando a vontade de Deus é infringida Lendo as Institutas Como uma pessoa deveria se propor a ler as Institutas? Eu tenho o mau hábito de ler novos livros — isto é, novos para mim — esquadrinhando o índice remissivo, examinando as conclusões, saboreando a organização, eventualmente selecionando algumas passagens de teste e, então, me perguntando se vale a pena prosseguir na leitura. Eu não recomendaria essa abordagem para ler as Institutas. Em primeiro lugar, você deve querer ler o livro; em segundo lugar, você deve partir do início; em terceiro lugar, você deve persistir, por mais demorado que lhe seja, até chegar à última página. Não se torne um calvinista dos primeiros cinco capítulos, ou do primeiro livro. Eu geralmente consigo identificar, quando as pessoas falam sobre Calvino, se elas o conhecem apenas de ouvir falar, se leram apenas algumas páginas da sua obra magna ou se apenas a folhearam seletivamente. Por não terem ideia da interdependência maravilhosa do pensamento de Calvino, elas fazem perguntas que uma leitura mais completa das Institutas poderia ter respondido. Em quarto lugar, não lamente que uma questão pareça ficar sem resposta, ou que uma ponta solta pareça não estar amarrada: ela será respondida; ela será amarrada. Seja paciente. Se, depois de ter lido o livro todo pela primeira vez, você continuar em grave desacordo com Calvino — bem, que assim seja! Mas qual alternativa coerente você terá para oferecer? Em quinto lugar, conforme você lê, não pense apenas na época de Calvino (vista, talvez, pelas lentes do Portrait of Calvin [Retrato de Calvino], de T. H. L. Parker, ou da Calvin’s Geneva [Genebra deCalvino], de W. Monter),²⁷ mas pense também na sua própria época. Será que Calvino também não está dialogando com o ocaso do século 20? Nessa especulação, leitores das Institutas realizaram, às vezes, descobertas supreendentemente úteis. Por fim, não hesite em colocar esta Análise ao seu lado conforme lê. Para os que preferem captar a estrutura do livro como um todo antes de mergulhar nele, a Análise pode ser um auxílio, pois ela dispõe fielmente a organização tripartite da obra em livro, capítulo e seção. Cada seção é analisada concisamente em seus pontos proeminentes. O usuário pode, claro, ler os cabeçalhos do livro e capítulo para uma consulta rápida. Para uma leitura mais profunda, porém, ele pode escrutinar os tópicos de seção; no nível mais detalhado, ele pode, ainda, estudar as categorias subordinadas no interior de cada seção. A partir daí ele deve, claro, recorrer ao próprio texto.²⁸ Outros que desejem achegar-se ao livro diretamente, sem serem “notificados” pela Análise, podem, apesar disso, julgar este livro útil. Quando sentir que se perdeu no caminho — e todos nós nos perdemos em uma obra de tamanha extensão e complexidade —, espie no esboço analítico o que você acabou de ler. Ele pode destacar os pontos que devem ser mantidos na mente. E meses, ou até anos depois, conforme você vasculha sua memória por lampejos calvinianos dos quais se recorda apenas parcialmente, este pequeno sumário pode te levar sem dor àquilo que estiver buscando. Estas palavras estariam incompletas se não ecoassem o próprio chamado de Calvino à Escritura. Ele escreveu as Institutas para atrair cristãos à Palavra de Deus; ele escreveu seus Comentários para elucidar não tanto os elementos amplos da fé, mas os detalhes do próprio texto. Ele proclamou as Escrituras do púlpito. O leitor das Institutas verá o seu próprio entendimento e convicção despertados ao continuar seus estudos para além das Institutas — para as Escrituras, que são sua fonte, e para os Comentários e Sermões, que exibem ainda mais a fé bíblica de João Calvino. Ford Lewis Battles Calvin Theological Seminary Abril, 1979 ¹ H. Hailperin, Rashi and the Christian scholars (Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1963), p. 27 ¹¹ A edição das Institutas de Calvino da Library of Christian Classics, volumes 20 e 21 da série de Westminster, serão referenciadas como LCC 20 e LCC 21. ¹² Veja John Calvin [João Calvino], The piety of John Calvin, edição e tradução para o inglês de Ford Lewis Battles (Grand Rapids: Baker, 1978), p. 55, 84, n. 275. ¹³ Institution 1536, edição e tradução para o inglês de Ford Lewis Battles (Atlanta: John Knox Press, 1975), cap. 3 e notas. ¹⁴ Veja Catechism 1538, edição e tradução para o inglês de Ford Lewis Battles, 1972, introdução; veja tb. seção 13. ¹⁵ Veja Piety, cap. 6. ¹ Discuti essas relações de forma mais detalhada em outra ocasião. Veja meu Calculus Fidei, artigo apresentado no International Congress on Calvin Research, Amsterdam (1978). ¹⁷ C. W. Hovland, “Anfechtung in Luther’s biblical exegesis”, in: Franklin H. Littell, org., Reformation Studies (Atlanta: John Knox Press, 1962). ¹⁸ Piety, p. 39. ¹ R. A. Hasler, “The influence of David and the Psalms upon Calvin’s life and thought”, in: Hardfort Quarterly, vol. 5, n. 2, p. 7-8. ² J. R. Walchenbach, The influence of David and the Psalms in the life and thought of John Calvin, Tese de Mestrado não publicada, Pittsburgh Theological Seminary, 1967. ²¹ Veja Pity, p. 39. ²² Inst. 1536, p. xvi-xvii, Calculus Fidei, Premissa 1. ²³ Cf. Comm. Isahiah, 2:4. ²⁴ No sentido de “universal”. (N. do T.) ²⁵ Calculus Fidei. ² Note que “a” e “b”, aqui, não se referem a seções separadas dos capítulos, mas a duas vozes ouvidas como antífona por meio de um capítulo. ²⁷ Para o neófito, sugere-se essa breve biografia prévia de Parker, em vez de seu mais recente John Calvin: a biography (Philadelphia: Westminster, 1976), um ensaio bem mais longo. ²⁸ Conquanto a Análise tenha sido preparada primariamente com a minha tradução das Institutas em mente (LCC 20-21 [1960]), ela pode ser usada com a tradução de Allen ou Beveridge; se alguma dessas for empregada, contudo, o leitor terá que condescender com diferenças na apresentação dos termos. O prefácio de Calvino endereçado a Francisco I 1. Circunstâncias sob as quais o livro originalmente foi escrito a. intenção original de apresentar, especialmente para compatriotas franceses, alguns rudimentos para auxiliar os diligentes no caminho da santidade b. mudança no propósito da obra devido à perseguição e aos falsos rumores sobre os evangélicos c. petição de uma avaliação justa e completa por parte de um rei verdadeiramente cristão 2. O apelo em favor dos evangélicos perseguidos a. os evangélicos (1) fé escriturística (2) martírio heroico b. os [católicos] romanos (1) negligência da fé escriturística (2) insistência na missa, purgatório, peregrinações e outras frivolidades 3. Refutação das acusações dos adversários contra a doutrina dos evangélicos a. nova: a santa Palavra de Deus não é nada “nova” b. desconhecida: a verdadeira doutrina permaneceu por longo tempo enterrada e esquecida pela impiedade do homem c. incerta: nossa segurança contrasta com suas dúvidas d. ausência de milagres corroborantes: verdadeiros vs. falsos milagres 4. Afirmação enganosa de que os pais da igreja se opõem ao ensino da Reforma a. os pais da igreja, como todos os homens, são falíveis; os romanistas adoram mais os seus erros e falhas do que suas virtudes b. “não ultrapasse os limites” (Pv 22.28) O que os pais da igreja dizem vs. práticas romanistas (1) Deus não precisa de ouro ou prata: rituais ostensivos (2) cristãos podem tanto comer quanto se abster da carne: jejuns de quaresma (3) monges devem trabalhar: monges indolentes e dissolutos (4) sem imagens de Cristo ou santos: igrejas entulhadas de imagens (5) após o sepultamento dos mortos, que eles descansem: eterna preocupação com os mortos (6) na eucaristia, pão e vinho permanecem: transubstanciação (7) todos os presentes devem participar da ceia do Senhor: missas públicas e privadas barateiam a graça e o mérito de Cristo (8) desautorização de juízos precipitados sem base na Escritura: uma selva de estatutos, cânones etc. não fundamentados na Palavra de Deus (9) afirmação do casamento para clérigos: imposição do celibato (10) a Palavra de Deus deve ser preservada de sofismas: pelejas teológicas especulativas 5. O apelo ao costume é contrário à verdade a. a maior parte dos costumes é resultado dos vícios pessoais da maioria, que se tornam erros públicos e assumem, equivocadamente, força de lei b. em contraste com tal erro público está a verdade eterna do reino de Deus, o qual nós, santificando o nome do Senhor, seguimos destemidamente c. embora todo o mundo possa cair na mesma impiedade, a força dos números não nos licita nem nos exime dela 6. Erros sobre a natureza da igreja a. a verdadeira igreja eterna, na qual todos os fiéis louvam e adoram um só Deus e Cristo, o Senhor, tal como ele sempre foi adorado b. os pontos de controvérsia (1) que a forma da igreja é sempre observável (2) que essa forma se encontra na igreja romana e em sua hierarquia c. a verdadeira igreja é marcada pela pregação pura da Palavra de Deus e pela administração correta dos sacramentos: essa igreja esteve frequentemente submersa e sem forma visível durante os períodos testamentários e pós- testamentários (1) evidência do Antigo Testamento (2) evidência da história da igreja d. o cuidado de Deus com sua igreja (1) puniu os infiéis com uma supressão temporária da imagem visível de sua verdadeira igreja, (2) mas preservou seus verdadeiros filhos da extinção e. perigos de considerar a igreja por sua pompa vazia (1) exemplificados na história do Antigo Testamento (2) evidenciados no “legítimo” concílio da Basileia, que resultou no escândalo Eugênio-Amadeus e nos abusos em seu encalço f. a letalidade da falsa doutrina da igreja visível para as almas cristãs7. Tumultos supostamente resultantes da pregação da Reforma a. mudança na estratégia de Satanás (1) por séculos, Satanás manteve a igreja atordoada em luxos mundanos (2) contudo, quando ela começou a despertar, ele reagiu com contendas e discórdias, levantando seus “catabatistas” e outros pulhas b. analogia entre a experiência dos apóstolos e a nossa (deveríamos, portanto, ter a mesma confiança que os apóstolos tinham) 8. Que o rei esteja prevenido para não agir com base em falsas acusações: os inocentes descansam na justiça divina a. a acusação de que somos sediciosos é totalmente falsa, pois mesmo no exílio oramos por sua majestade, e nossa conduta tem sido exemplar b. se, em vosso reino, quaisquer subversivos organizarem tumultos tendo o evangelho como pretexto, tendes leis e punições legais para contê-los c. tendes agora preconceito contra nós; esperamos que este apelo modifique vossa atitude; mas, caso não o faça, depositamos ainda a nossa confiança no Rei dos reis LIVRO UM O conhecimento do Deus Criador CAPÍTULO 1 O conhecimento de Deus e o de nós mesmos estão relacionados, e de que forma eles se interrelacionam 1. Sem o conhecimento de si, não há conhecimento de Deus a. nossa verdadeira sabedoria é confinada, quase inteiramente, ao (1) conhecimento de Deus (2) conhecimento de nós mesmos b. nossas ricas bênçãos, reconhecidas como provenientes de Deus, revelam nossa pobreza e ruína, as quais, por sua vez, nos compelem a recorrer a Deus (1) para buscarmos o que nos falta (2) para aprendermos humildade c. Não podemos aspirar seriamente ao conhecimento de Deus sem antes começarmos a ficar insatisfeito com nós mesmos 2. Sem o conhecimento de Deus, não há conhecimento de si a. se nós restringirmos, hipocritamente, nosso olhar a nós mesmos e não transcendermos para a contemplação de Deus, enaltecemos, complacentemente, nossas próprias virtudes b. contudo, no instante em que nossos pensamentos se elevam para Deus e suas excelências, vemos nossas “virtudes” como ímpias, tolas e fracas 3. O homem perante a majestade de Deus a. exemplos escriturísticos da dolorosa consciência do homem acerca de sua reles condição, quando confrontado pela majestade de Deus: Jó, Abraão, Elias etc. b. ordem de ensino proposta: (1) conhecimento de Deus (2) conhecimento de nós mesmos CAPÍTULO 2 O que é conhecer a Deus, e para qual finalidade se dirige o conhecimento dele 1. O conhecimento de Deus é, na prática, reverência a. dois aspectos do conhecimento de Deus (1) sentir que Deus, nosso Criador, nos sustenta e nos abençoa (a presente discussão) (2) abraçar a reconciliação oferecida a nós em Cristo (a ser tratada posteriormente) b. a origem da piedade (santidade) (1) Deus, por seu poder, não apenas criou e sustenta o mundo, mas é a fonte e causa de tudo o que é bom e justo (2) essa consciência das excelências de Deus nos ensina a piedade, que é a fonte da religião (3) piedade: a reverência, combinada com o amor por Deus, que é induzida pelo conhecimento dos seus benefícios 2. O propósito do conhecimento de Deus a. o homem não deve especular “O que é Deus?”, mas, sim, perguntar “Qual é o seu caráter? O que condiz com sua natureza?” b. o propósito do nosso conhecimento de Deus (1) nos ensinar temor e reverência (2) nos guiar para buscarmos todos os bens em Deus e dar-lhe crédito quando recebidos c. a atitude da mente piedosa em relação a Deus é determinada por sua total dependência dele: “mesmo que não houvesse inferno, ainda se assombraria ao ofendê-lo” d. a definição da religião pura e verdadeira: a fé, combinada de tal forma com um temor a Deus que esse temor também assume uma reverência solícita e carrega consigo uma adoração legítima, conforme prescrito na lei CAPÍTULO 3 O conhecimento de Deus foi naturalmente incutido na mente dos homens 1. A natureza desse dom natural a. universal (1) existe em todos os homens por instinto natural (2) torna indesculpável a negligência da adoração a Deus (3) é encontrada mesmo entre os povos mais selvagens (4) é encontrada em todos os tempos e lugares b. a idolatria é prova dessa universalidade (1) nenhum homem voluntariamente humilha-se diante de algo exterior a si mesmo (2) a adoração de pau e pedra testificam da impressão intensa e inextirpável do divino 2. A religião não é uma invenção arbitrária a. alguns alegam que a religião foi inventada arbitrariamente por homens descrentes e astuciosos para escravizar os mais simples b. isso, porém, não teria sido possível se (1) não existisse uma percepção natural de deidade na mente dos homens mais simples (2) os homens ardilosos não tivessem, eles mesmos, uma vaga ideia da religião c. provas da religião existem mesmo entre os mais ímpios (1) homens se voltam para a religião quando estão submetidos à tensão ou grande medo (e.g., Calígula) (2) como pessoas bêbadas ou frenéticas, eles são irrequietos em seu sono (3) conquanto sua consciência de Deus varie em intensidade, ela nunca está totalmente ausente 3. Uma verdadeira irreligião é impossível a. uma noção indelével de divindade está gravada na mente dos homens (1) até mesmo a perversidade dos ímpios demonstra isso (2) a consciência de Deus é dádiva nossa por nascimento, não uma doutrina a ser aprendida na escola b. a adoração de Deus e a busca pela similitude distingue o homem dos animais CAPÍTULO 4 Esse conhecimento é sufocado ou corrompido, em parte pela ignorância, em parte pela maldade 1. Superstição a. a piedade genuína e o verdadeiro conhecimento de Deus não se encontram no mundo (1) alguns intencionalmente se rebelam contra Deus (2) outros perdem-se em superstições b. por que a superstição não é perdoável? (1) ela envolve orgulho e obstinação (2) ela envolve, portanto, o julgamento de Deus a partir de algum parâmetro tolo e uma especulação indomável sobre sua natureza e a forma como ele deveria ser adorado (3) resumindo, a superstição é o resultado de (a) vã curiosidade, (b) desejo desregrado de muito conhecimento e (c) falsa confiança; sendo, portanto, inescusável 2. Afastar-se de Deus conscientemente a. o significado do Salmo 14.1: “Os tolos dizem em seus corações que não há Deus” (1) o pecador embrutecido rejeita toda recordação de Deus (2) ademais, eles negam abertamente a existência de Deus, não no sentido de privá-lo de seu ser, mas ao negar sua providência e ao governo sobre o mundo (3) assim, tornam-se cegos em sua obstinação e negam a Deus b. eles sentem-se forçados a reconhecer algum deus, mas optam por fazê-lo criando um ídolo morto e vazio, e negando o verdadeiro Deus 3. Não podemos conceber Deus segundo os nossos próprios caprichos a. opiniões vagas e equívocadas do divino são ignorância de Deus (1) não basta, portanto, qualquer religião, mas apenas a verdadeira (2) Deus não é um fantasma para ser remodelado de acordo com o capricho de alguém (3) na superstição, a verdadeira adoração a ele é descartada, por alguns, em favor da adoração de meros delírios b. portanto, nenhuma religião é genuína a menos que seja associada à verdade 4. Hipocrisia a. a falsa religião que resulta do medo servil e coercivo do juízo de Deus (1) tais homens religiosos desejam destronar a Deus e seu juízo (2) porque eles percebem que não o conseguem, eles praticam um simulacro de religião (3) contudo, apesar de seu suposto medo de Deus, suas vidas são, ao mesmo tempo, perversas e ímpias b. contraste entre a verdadeira e a falsa santidade (1) rebeldes de coração, eles fingem obediência a Deus em seus sacrifícios insignificantes e seu zelo espúrio, mas suas vidas são marcadas por franca imoralidade (2) sua confiança não está em Deus, o Criador, mas em si mesmos, as criaturas (3) o resultado é a cegueira espiritual; ainda que não desapareça, a consciência do divino fica totalmente corrompida (4) resumindo, o senso de divindade naturalmente gravado no coração humano é evidenciado pelas orações relutantes e superficiais procedentes dos ímpios em momentos de crise espiritual; nãoobstante, sua obstinação impede que essa noção de deidade os conduza à verdadeira religião CAPÍTULO 5 O conhecimento de Deus resplandece na criação do universo e no seu governo contínuo 1. A clareza da autorrevelação de Deus nos despoja de qualquer desculpa a. assim como a consciência da deidade divinamente implantada, a revelação diária do Senhor na operação do universo visa nos oferecer o conhecimento de Deus; essa é a finalidade última de uma vida abençoada b. embora a essência de Deus seja inefável para o homem, as marcas de sua glória na natureza são tão óbvias que nem mesmo os homens rudes e ignorantes são desculpáveis c. como a Escritura continuamente afirma, se você abrir seus olhos para o vasto e belo tecido do universo, você vê, como em um espelho, o Deus que, fora isso, é invisível 2. A sabedoria de Deus não permanece oculta para ninguém a. as artes e ciências humanas, por meio de sua observação atenta da natureza, proporcionam aos homens um vislumbre mais profundo nos mistérios da sabedoria divina b. contudo, mesmo para os incultos, há mais do que o suficiente no mundo natural para revelar-lhes a sabedoria divina; a estrutura do corpo humano o revela 3. O homem é a mais sublime prova da sabedoria divina a. o homem é corretamente chamado de microcosmo; ele é um exemplo raro do poder, bondade e sabedoria de Deus b. visto que não há necessidade de sairmos de nós mesmos para encontrarmos a Deus, nós não temos absolutamente nenhuma desculpa c. a Escritura e os escritores pagãos igualmente afirmam a paternidade de Deus sobre os homens, os quais, enquanto filhos seus, demonstram suas grandes dádivas; nós devemos, portanto, ser compelidos a amá-lo e adorá-lo em retribuição 4. Os homens, ingratos, porém, se voltam contra Deus a. apesar da fonte divina desses dons, os homens, em orgulho e amor-próprio, sufocam o impulso de adorar a Deus; eles ficam com o crédito para si mesmos b. os ateus, apesar de provas eloquentes de Deus em seus próprios corpos, o rejeitam e o substituem pela “natureza” 5. A confusão da criatura com o Criador a. alguns negam a imortalidade da alma, tomando a natureza como fundamento (1) eles afirmam que a alma não pode subsistir separada do corpo (2) pelo contrário — nos usos mais elevados da razão humana não existe uma contrapartida corpórea, e esses constituem sinais de imortalidade divinamente comunicados (3) se, portanto, o homem é divino, somos, então, compelidos a reconhecer seu Criador e a ver no engenho e nas artes humanas uma origem superior divina b. alguns também atribuem à natureza sua própria criação (1) especulações ociosas sobre uma “mente universal” devem ser rejeitadas (2) a natureza não é Deus, mas sim a ordem prescrita por ele c. consequentemente, não devemos confundir Deus com a operação inferior de suas obras 6. O Criador revela seu senhorio sobre a criação a. Deus, enquanto Senhor da criação e doador de todos os dons, deseja que nós olhemos para ele, dirijamos nossa fé a ele, adoremos e recorramos a ele b. os fenômenos naturais (as obras de Deus dentro do curso ordinário da natureza) testemunham de seu poder c. seu poder nos conduz à sua eternidade d. sua eternidade demonstra que ele é fonte e mantenedor de todas as coisas e. sua criação e a preservação de todas as coisas são resultado de sua bondade f. sua bondade, a causa única da Criação, deve ser mais do que o suficiente para nos atrair para o seu amor 7. O governo e o juízo de Deus a. há provas ainda maiores das excelências de Deus naquelas suas obras que transcorrem fora do curso ordinário da natureza b. Deus mostra sua misericórdia ao lidar com a sociedade humana; contudo, mostra diariamente sua bondade para com os santos e sua severidade para com os ímpios c. ainda que os ímpios pareçam prosperar momentaneamente e os santos pareçam sofrer, devemos reconhecer (1) sempre que Deus pune um pecado nesta vida, ele está mostrando que odeia todos os pecados e que os punirá, todos, no juízo (2) por sua bondade universal para com os pecadores, ele está tentando demovê- los de sua impiedade 8. A soberania de Deus domina a vida dos homens a. os livramentos aparentemente fortuitos dos homens, de perigos e tribulações, mencionados nos Salmos, são provas da providência e bondade paternal de Deus, mas a maioria de nós é demasiadamente cega para vê-las b. o poder e a sabedoria de Deus são vistos na destruição dos ímpios e de suas obras, e em sua restauração e exaltação dos humildes e oprimidos — ambos os procedimentos sendo calculados e ajustados à situação humana 9. Não devemos tentar perscrutar a essência de Deus; antes, contemplá-lo em suas obras a. o conhecimento de Deus para o qual somos chamados não é uma especulação vazia, mas um conhecimento sólido e fértil que se enraíza em nosso coração b. a maneira perfeita de buscar a Deus (1) não tentar, por curiosidade audaciosa, perscrutar sua essência (que é objeto de adoração, e não de investigação) (2) contemplá-lo em suas obras, pelas quais ele se revela intimamente a nós 10. O propósito desse conhecimento de Deus a. o propósito é duplo: (1) erguer-nos em adoração a Deus (2) encorajar-nos à esperança da vida eterna b. notamos que, na vida presente, os exemplos de sua clemência e severidade são incompletos, assegurando-nos, assim, de uma outra vida, na qual a iniquidade terá sua punição; e a justiça, sua recompensa c. as obras de Deus nos dão, na forma de um retrato, um conhecimento de suas perfeições d. nós, porém, só compreendemos seu propósito principal, valor e a razão pela qual devemos ponderá-los, quando mergulhamos em nós mesmos e contemplamos: (1) sua vida, sabedoria e virtude em nossas vidas (2) sua justiça, bondade e misericórdia em sua conduta para conosco 11. Os anúncios que recebemos da Criação de Deus não cumprem seu propósito a. nossa resposta a esses testemunhos radiantes na ordem da natureza é tosca (1) muito poucos, ao contemplar o céu e a terra, pensam sobre seu Criador (2) a maioria nem reage b. ao considerarmos aqueles eventos que se passam fora do curso da natureza, nos inclinamos mais para o acaso do que para a providência de Deus como explicação (1) quando eventos nos compelem a cogitar algum sentimento de divindade, nós logo nos retiramos em nossos próprios delírios e fantasias (a) cada um de nós forja sua própria forma peculiar de erro pessoal (b) todos nós, porém, abandonamos o Deus verdadeiro em favor de frivolidades prodigiosas (isso é verdadeiro até para homens cultos, como Platão) (2) quando o governo dos eventos humanos revela a providência, nós, em leviandade e erro, o explicamos em termos de vontade cega do destino 12. Os anúncios de Deus são asfixiados pelas superstições humanas e pelos erros dos filósofos a. não apenas nações, mas também homens individuais, em sua cegueira mental, vieram a ter seus próprios deuses b. não apenas os incultos, mas também os próprios filósofos eruditos mostram a variedade vergonhosa dos esforços humanos de perscrutar os céus (1) quando mais elevadas sua arte e perspicácia, mais camuflados e enganosos são seus ídolos (2) nenhum mortal jamais inventou qualquer coisa que, basicamente, não corrompesse a religião; os estoicos e os egípcios testemunham disso (3) as divergências inevitáveis acerca dessas concepções pessoais errôneas de Deus levaram os epicureus e outros a lançarem fora, impiamente, toda a percepção de Deus c. aparentemente, se os homens aprendessem apenas pela natureza, eles não se apegariam a nada certo, sólido ou nítido, mas ficariam presos a princípios confusos de tal forma a adorarem um Deus desconhecido 13. O Espírito Santo rejeita todos os cultos forjados por homens a. o Espírito Santo proclama apóstatas, que substituíram Deus por demônios, a todos os homens que corrompem a religião pura ao abraçarem suas próprias opiniões b. até mesmo a concepção clássica de que a adoração religiosa deve se conformar às tradições de um dado país ou cidade é um vínculo de piedade muito fraco e frágil para serseguido na adoração a Deus c. consequentemente, cabe ao próprio Deus testemunhar de si mesmo dos céus 14. As evidências de Deus na natureza falam conosco em vão a. desassistidas, essas evidências não podem nos conduzir a Deus b. como Paulo ensina, nossos olhos permanecem cegos para elas até que sejam iluminados pela revelação interna de Deus por meio da fé 15. Nossa impotência é culpada a. nós não podemos alegar ignorância como desculpa por nosso fracasso em seguir essas evidências até o conhecimento de Deus, quando até mesmo as criaturas mudas e irracionais proclamam sua glória b. tal instrução é insuficiente, pois somos levados, a partir do sutil sabor de divindade que ela nos dá, a adorarmos os sonhos e espectros de nossos próprios cérebros, usurpando de Deus a adoração que lhe devemos CAPÍTULO 6 A Escritura é necessária como guia e mestra para qualquer um que queira alcançar o Deus Criador 1. Deus nos outorga o verdadeiro conhecimento de si mesmo somente pelas Escrituras a. apesar do desvelar universal de Deus no esplendor da terra e do céu, nós carecemos de outro auxílio melhor para nos dirigir ao Criador b. tal auxílio é encontrado na Palavra de Deus (1) inicialmente, impediu os judeus de caírem no esquecimento e, agora, mantém os cristãos no puro conhecimento dele próprio (2) dissipa nossa debilidade assim como os óculos ampliam a página impressa para os leitores de vistas fracas c. os dois estágios do conhecimento que a Escritura nos dá (1) o conhecimento de Deus enquanto Criador (a presente discussão): não apenas que nós devemos adorar algum Deus, mas que é ele o Deus que devemos adorar (2) o conhecimento de Deus enquanto Redentor (a ser tratado no Livro Dois) d. a proposta da análise (1) o presente tópico: como a Escritura nos ensina que Deus, o Criador do universo, pode ser discernido, por aspectos precisos, da multidão de deuses espúrios (2) subsequentemente, procederemos a uma discussão da redenção em Cristo 2. A Palavra de Deus como Sagrada Escritura a. a transmissão inviolável da verdade através de todas as eras (1) Deus comunicou aos patriarcas o que eles deveriam legar para a posteridade, por meio de oráculos e visões ou pelas obras e ministérios de homens (2) esses oráculos foram posteriormente registrados, quando a lei foi anunciada (3) mais tarde, profetas foram acrescentados como intérpretes da lei b. a verdadeira religião (tanto a fé quanto o correto conhecimento) tem sua origem em doutrinas celestes, as quais nós só podemos conhecer por meio do estudo reverente da Escritura e da aceitação obediente do que aprouve a Deus revelar ali de si mesmo 3. Sem a Escritura, caímos no erro a. a inclinação poderosa do homem para se afastar de Deus tornou a evidência escrita da doutrina celeste muito necessária b. a Palavra verdadeira e vividamente nos descreve Deus a partir de suas obras c. se abandonarmos o caminho escriturístico, vagaremos sempre pelo erro e nunca chegaremos ao nosso propósito 4. A Escritura pode nos comunicar o que a revelação nas obras não pode a. Davi nos ensina que, como Deus chama, em vão, todas as pessoas para si mesmo por meio da contemplação do céu e da terra, a lei constitui a única escola dos filhos de Deus b. este é, também, o significado do ensinamento de Jesus à mulher samaritana CAPÍTULO 7 A Escritura deve ser confirmada pelo testemunho do Espírito. Sua autoridade, portanto, pode ser estabelecida como certa; trata-se de uma falsidade perversa dizer que sua credibilidade depende do julgamento da igreja 1. A Escritura deriva sua autoridade de Deus, não da igreja a. a Escritura tem autoridade plena somente à medida que homens a consideram como a Palavra viva de Deus oriunda do céu b. é um erro pernicioso afirmar que a autoridade da Escritura repousa sobre a determinação da igreja c. isso está baseado na noção absurda de que as promessas da vida eterna oferecidas na Escritura consistem no julgamento humano e dependem exclusivamente dele 2. A igreja em si está fundamentada na Escritura a. Efésios 2.20 b. a alegação de que os escritos proféticos e apostólicos permanecem sob dúvida até que a igreja decida sobre sua autenticidade é refutada pelo fato de que a aceitação da Escritura precisava preceder à fundação da igreja c. a Escritura exibe claras evidências de sua própria veracidade e não precisa de testemunhas externas 3. Agostinho não pode ser citado como contraevidência a. a afirmação de Agostinho, de que ele não teria acreditado no evangelho se a autoridade da igreja não o movesse a tanto, deve ser interpretada à luz de seu contexto (1) ele está aqui refutando os maniqueus, que usavam o evangelho como um disfarce para promover a fé em Mani (2) o que conduz descrentes ao evangelho? A igreja, por sua autoridade, introduz o evangelho aos descrentes, mas a veracidade do evangelho não depende dela b. em outras palavras, a autoridade da igreja é uma introdução por meio da qual nós somos preparados para a fé no evangelho; essa interpretação da afirmação de Agostinho é corroborada por seu ensino em outras obras 4. O testemunho do Espírito Santo: maior do que todas as “provas” a. quando estamos convencidos de que Deus fala em pessoa na Escritura, temos a mais alta prova da credibilidade da sagrada doutrina b. essa convicção nos advém não por meros argumentos, juízos ou conjecturas humanas, mas do testemunho secreto do Espírito c. é a majestade de Deus reluzindo a partir da Escritura, e não as provas racionais, que nos informa sobre sua origem divina d. embora homens céticos demandem tais provas para evitar crenças tolas e levianas, defender a Escritura por meio de disputas é fazer as coisas às avessas, pois o testemunho do Espírito é mais excelente do que todos os argumentos e. a Palavra não encontrará aceitação no coração dos homens até que seja selada ali pelo testemunho interno do Espírito, o mesmo Espírito que falou por meio dos lábios dos profetas 5. A Escritura carrega sua própria autenticação: αὐτόπιστον a. nossa convicção de que, na Escritura, temos a verdade irrefutável, fundamenta-se no testemunho do Espírito em nosso coração b. “Não falo de nada que cada um dos fiéis não vivencie em si mesmo…” c. somente os eleitos de Deus vivenciam esse privilégio singular, e é assegurada a eles, não à multidão, a capacidade de compreender os mistérios de Deus CAPÍTULO 8 Até onde alcança a razão humana, provas suficientemente sólidas estão à disposição para estabelecer a credibilidade da Escritura 1. A Escritura é superior a toda sabedoria humana a. uma vez que aceitamos a autenticação da Escritura pelo Espírito, as provas que anteriormente eram inúteis tornam-se subsídios muito úteis para nos ajudar na compreensão da Escritura b. a magnificência do assunto, e não a graciosidade da linguagem, nos leva à admiração da Escritura (1) sabiamente, Deus manifestou grandes temas em linguagem simples para nos lembrar de que o poder da Escritura reside em sua fonte divina, e não na eloquência humana (2) por mais encantados que fiquemos pela elegância de autores clássicos como Demóstenes ou Cícero, Platão ou Aristóteles, nós saímos do encanto para o poder esmagador da Escritura, que faz aquelas impressões se dissiparem 2. O conteúdo é decisivo, e não o estilo a. o fato de que alguns dos profetas tivessem um estilo eloquente demonstra que o Espírito não carece de eloquência b. ainda assim, nos outros profetas, apesar de seu estilo rústico, a majestade de Deus está igualmente presente c. Satanás imita até mesmo esse estilo rude e arcaico para aprisionar almas, mas até mesmo os homens moderadamente sensíveis percebem esse engodo d. aqueles para quem os profetas insossos não possuem órgãos gustativos Evidências do Antigo Testamento [3-10] 3. A notável antiguidade da Escritura a. a teologia egípcia e todas as outras religiões são muito mais recentes do que a era de Moisés b. Moisés, na verdade, estava reiterando um pacto celebrado quatrocentos anos antes, com Abraão c. a Escritura, portanto, ultrapassatodos os outros escritos em antiguidade 4. A veracidade da Escritura demonstrada pelo exemplo de Moisés a. é desnecessário refutar a alegação egípcia de uma história que antecede a Criação em seis mil anos b. a franqueza de Moisés acerca de Levi, Aarão e Miriam, que vai contra os sentimentos da carne; o ter relegado seus próprios filhos ao estrato social mais baixo (excluindo-os do sacerdócio) e outros exemplos provam a origem divina do que ele escreveu 5. Milagres fortalecem a autoridade dos mensageiros de Deus a. os eventos miraculosos do Êxodo, com Moisés, demonstram que ele foi profeta inconteste de Deus b. como todas essas coisas foram proclamadas diante da congregação, não houve oportunidade de fraude perante as testemunhas dos eventos 6. Os milagres de Moisés são incontestáveis a. ao lado dos milagres, são mencionadas coisas controversas que atiçariam a hostilidade do povo se eles não os tivessem vivenciado b. para combater o fato irrefutável de que Moisés realizou os milagres, Satanás os atribuiu, falsamente, às artes mágicas — uma acusação suficientemente refutada pelos mais rigorosos testes aos quais Deus submeteu Moisés 7. Profecias [de Moisés] que se cumpriram em oposição a toda expectativa humana a. a futura primazia de Judá: a profecia antecipa a unção de um pastor humilde da tribo de Judá: Davi b. a participação final dos gentios no pacto de Deus: a profecia antecipa eventos de quase dois mil anos depois c. concluindo, o cântico de Moisés (Dt 32) é um espelho límpido no qual Deus aparece claramente 8. Deus confirmou as palavras do profeta a. exemplos de Isaías (1) prenúncio da queda de Jerusalém para os caldeus (2) também profetizou a libertação dos caldeus por Ciro (nascido 100 anos depois da morte de Isaías) b. exemplos de Jeremias e Ezequiel: (1) profecia do exílio de setenta anos de duração, do regresso e da restauração (2) embora separados geograficamente, Jeremias e Ezequiel concordam em suas afirmações c. Daniel também profetizou como se estivesse escrevendo a história de eventos comumente conhecidos 9. Deve-se confiar na transmissão da lei a. alguns questionam, irracionalmente, a autenticidade da autoria da Escritura, mas aceitam cegamente a genuinidade dos autores clássicos b. a mão da providência divina vista na preservação da lei e de sua redescoberta pelo rei Josias, após a negligência dos sacerdotes c. os escritos sagrados foram transmitidos pelos patriarcas que vivenciaram os eventos ali descritos ou ouviram deles de seus pais e mantiveram-nos frescos em suas memórias 10. Deus preservou maravilhosamente a lei e os profetas a. detratores da Escritura afirmam que, depois que Antíoco ordenou que todos os livros fossem queimados (1Mac 1:56-57), eles foram substituídos, na sequência, por falsificações b. o cuidado que o Senhor tomou para preservar sua Palavra revela que isso é uma falsa acusação: (1) ele armou os sacerdotes para preservarem as Escrituras com sua própria vida, se preciso fosse (2) ele garantiu que os livros sagrados retornassem para um lugar de honra amplamente aprimorado, agora traduzidos para o grego e disseminados por todo o mundo (3) apesar das vicissitudes dos judeus, os livros mantiveram-se a salvo e intactos (4) embora os judeus, durante a Restauração, quase tivessem a língua hebraica obliterada, os antigos livros hebreus perduraram (5) Deus escolheu os judeus, os mais violentos inimigos de Cristo, para nos preservar a doutrina da salvação até que ela pudesse ser manifesta nele Provas do Novo Testamento e da história da igreja [11-13] 11. Os mistérios celestes foram transmitidos por homens incultos a. os primeiros três evangelistas, criticados por alguns por seu estilo humilde, estão discursando, na verdade, sobre mistérios celestes acima da capacidade humana b. isso é especialmente verdadeiro sobre o Evangelho de João, mas também pode ser dito dos escritos de Paulo e Pedro c. esses autores, em sua maioria homens rudes e incultos, repentinamente começaram a falar de mistérios celestes — prova empírica de sua instrução pelo Espírito 12. A igreja, em todos os tempos e lugares, agarrou-se à Escritura, apesar da oposição a. a constante obediência à Escritura por homens de muitas épocas, apesar de Satanás e o mundo terem tentado seu melhor para impedi-la, é testemunha de uma proteção sobre-humana b. o poder divino é visto também na aceitação da Escritura por muitas nações amplamente espalhadas e que, fora isso, não têm nada em comum 13. O sangue dos mártires a. motivos para segurança na postura heroica dos mártires cristãos b. a fé deles não é de um excesso fanático, mas, sim, um zelo firme e constante, ainda que sóbrio, para com Deus Síntese: todas as provas aludidas não podem substituir o testemunho do Espírito a. apesar de eloquentes, essas provas não são fortes o suficiente, por si mesmas, para produzir uma fé firme b. até que os homens recebam confirmação da persuasão interna do Espírito, é inútil tentar provar aos descrentes que a Escritura é a Palavra de Deus CAPÍTULO 9 Ao abandonarem a Escritura e se atirarem na revelação, os fanáticos lançam fora todos os princípios da santidade 1. Os fanáticos erroneamente apelam para o Espírito Santo a. os libertinos, sentindo que se libertaram da “letra que mata”, rejeitam a Escritura em favor da inspiração do Espírito b. os apóstolos, na igreja primitiva, ainda que iluminados pelo Espírito de Cristo, nem por isso trataram a Palavra de Deus com desprezo (1) sua atitude reverente foi prevista em Isaías 59.21 (2) e testemunhada por Paulo, o qual, apesar de sua experiência extática (2Co 12.2), insiste no conhecimento da lei e dos profetas c. a tarefa do Espírito não é fantasiar um novo tipo de doutrina que afaste do evangelho 2. O Espírito Santo é reconhecido por sua concordância com a Escritura a. para nos beneficiarmos do Espírito de Deus, devemos nos dedicar à leitura e observação da Escritura b. qualquer espírito que nos imponha uma doutrina que não seja a da Palavra de Deus é falso e mentiroso c. os libertinos alegam que não é digno do Espírito (ao qual todas as coisas deveriam se sujeitar) sujeitar-se à Escritura, mas isso é julgá-lo por critérios inferiores aos dele mesmo, sendo que ele deve ser comparado somente consigo d. ele é o autor da Escritura, e na Escritura a sua imagem está estampada 3. Palavra e Espírito coexistem inseparavelmente a. aludem, falsamente, à rejeição de Paulo da “letra que mata”; essa afirmação não rejeita as Escrituras, mas insiste em que o Espírito Santo habita de tal forma em sua verdade, a qual ele expressa na Escritura, que somente quando a reverência e dignidade adequadas são prestadas à Palavra é que ele manifesta o seu poder b. a certeza da Palavra e a certeza do Espírito unidas por um vínculo mútuo (1) a luz do Espírito se extingue quando profecias são tomadas com desprezo (2) contraste entre a rejeição desastrada da Palavra de Deus por parte desses entusiastas arrogantes e a sobriedade dos filhos de Deus, que colocam sua segurança na iluminação do Espírito Santo e no seu instrumento, as Escrituras CAPÍTULO 10 A Escritura, para corrigir todas as superstições, estabeleceu o único Deus verdadeiro, contra todos os deuses dos pagãos 1. A doutrina escriturística do Deus Criador a. o conhecimento de Deus manifesto no universo criado é condizente com aquele expresso na Palavra? (1) essa questão é muito extensa para uma discussão completa aqui (2) o propósito agora é simplesmente oferecer um índice do que se deve buscar nas Escrituras e como fazê-lo b. os limites da presente discussão (1) o pacto com Israel, culminando no advento do Redentor, não será considerado no momento (2) antes, serão apontadas aquelas passagens escriturísticas que descrevem como Deus, o Criador do céu e da terra, governa o mundo — sua bondade, sua justa vingança, sua longanimidade 2. Os atributos de Deus, segundo a Escritura, condizem com aqueles conhecidos em suas criaturas a. passagens escriturísticas não nos mostramcomo ele é em si mesmo, mas como ele é com relação a nós: ele age com gentileza, bondade, misericórdia, justiça, juízo e verdade (1) Êxodo 34.6-7 (2) Salmos 145 (3) Jeremias 9.24 (1Co 1.31) b. o propósito desse conhecimento escriturístico de Deus: temor — confiança — adoração verdadeira — plena dependência dele 3. Até mesmo adoradores de ídolos sabiam da unidade de Deus a. a Escritura rejeita todos os deuses dos pagãos b. os politeístas nunca perderam completamente a noção de que existia, na verdade, somente um Deus (1) assim, sua insistência no politeísmo é evidência de sua frivolidade e dos enganos de Satanás, e é indesculpável (2) todos, desde a multidão grosseira até os filósofos sofisticados, corromperam a verdade de Deus CAPÍTULO 11 É ilícito atribuir uma forma visível a Deus, e qualquer um que erija imagens geralmente abandona o Deus verdadeiro Refutação daqueles que atribuem uma forma visível a Deus [1-7] 1. Somos proibidos quanto a toda representação pictórica de Deus a. todos os gêneros de especulação humana a respeito da deidade, seja de filósofos ou de pessoas comuns, estão agrupadas como idolatria pela Escritura b. nos Dez Mandamentos, a proibição de fabricar ídolos resulta diretamente da insistência sobre a unidade de Deus c. a tendência universal de associar uma forma visível a Deus é totalmente repudiada; não se admite graus de verdade quanto às imagens 2. Toda representação figurativa de Deus contradiz o seu ser a. Moisés, Isaías e Paulo falam abertamente contra as imagens visíveis de Deus, que desonram sua majestade b. até mesmo pagãos iluminados, como Sêneca, condenam isso c. a alegação absurda dos defensores de imagens, de que os judeus foram proibidos de fabricá-las porque eram inclinados à superstição 3. Nem mesmo sinais diretos da presença divina justificam as imagens a. tais manifestações diretas da presença divina, como aparecem na Escritura, têm por objetivo conter a curiosidade dos homens, ensiná-los da invisibilidade de Deus ou prenunciar a futura revelação de Deus em Cristo b. o Querubim do propiciatório era parte da pedagogia da antiga aliança e não cabe na nossa época espiritual mais madura c. Juvenal, um pagão, tinha mais lucidez do que os papistas (que defendem imagens, fundamentados no Antigo Testamento) quando censurava os judeus por adorarem meras nuvens e as divindades do céu d. devemos reconhecer nossa grande inclinação para a idolatria, um vício comum não restrito aos judeus 4. Imagens e figuras são contrárias à Escritura a. a tendência absurda de fabricar deidades a partir de matéria morta — apontada tanto na Escritura quanto nos poetas pagãos — é algo natural do homem b. a Escritura abertamente condena aqueles que confeccionam seus deuses com suas próprias mãos c. a tolice da distinção dos gregos, entre “semelhança” e “imagem esculpida”, totalmente refutada pela Escritura 5. A Escritura rejeita que imagens sejam os “livros dos incultos” a. Gregório, o Grande, caracteriza imagens como os livros dos incultos b. os profetas ensinam que qualquer coisa de Deus apreendido a partir de1q2a imagens é inútil e falso, porque os dois se opõem terminantemente c. quando rejeitamos a visão dos papistas, estamos somente repetindo, verbatim, o ensino dos profetas 6. Os doutores da igreja também as rejeitam parcialmente a. Lactâncio, Eusébio e o Concílio de Elvira, especialmente, são claros nesse ponto b. Também a esse respeito, Agostinho cita o pagão Varrão de forma marcante: (1) as imagens não originaram os erros acerca de Deus, mas os proliferaram (2) ademais, elas reduziram o temor a Deus c. que os homens conheçam a Deus, portanto, a partir de alguma outra fonte que não as imagens 7. As imagens dos papistas são inteiramente inapropriadas a. a ideia de “livros dos incultos” é refutada pela Escritura b. os papistas representam até mesmo os santos e mártires indecentemente: que eles os retratem de forma mais modesta se esses devem ser “livros de santidade” c. nem mesmo existiriam “incultos” se a igreja tivesse cumprido seu dever A origem dos ídolos [8-11] 8. A origem se encontra no desejo do homem por uma divindade tangível a. Sabedoria de Salomão 14:15 sugere que os ídolos surgiram a partir do desejo de honrar os mortos, mas a Escritura mostra que essa tendência de fabricar ídolos antedata o desejo de honrá-los b. a mente concebe um ídolo; as mãos lhe dão forma c. a fabricação de ídolos, buscando um Deus que pode realmente ser visto, é quase uma tendência universal 9. Qualquer uso de imagens conduz à idolatria a. o próximo passo após a construção de ídolos era a sua adoração b. por essa razão, o Senhor proibiu a fabricação de imagens de Deus c. desculpas para confecção de ídolos (1) os pagãos entendiam que Deus era mais do que pau e pedra: possuíam muito mais imagens do que deuses e mudavam sua feição conforme a ocasião (2) o sujeito bronco entendia que não estava adorando um objeto visível, mas uma presença que o habitava (3) os mais argutos negavam isso, afirmando que por meio da imagem física eles contemplavam o signo da coisa que deveriam adorar d. idólatras judeus e gentios eram movidos pelo mesmo desejo: eles pensavam que, por meio das imagens, o deus estaria expresso de forma mais firme e presente, e manifestaria seu poder nas imagens; assim, eles pensavam que estavam adorando uma divindade no céu 10. Adoração de imagens na igreja a. os atos dos papistas diante de suas imagens refutam sua alegação de que, diferentemente dos antigos idólatras, eles não estão adorando imagens b. as críticas dos profetas do Antigo Testamento à idolatria aplicam-se igualmente à presente idolatria dos papistas 11. Subterfúgios tolos dos papistas a. a distinção absurda dos papistas entre dulia (veneração ou culto aos ídolos) e latria (adoração de ídolos) b. eles afirmam, irracionalmente, que “adoram seus ídolos sem adoração”, conforme o significado das duas palavras gregas mostra c. assim, os papistas são exatamente como os antigos idólatras Uso e abuso de imagens [11-16] 12. As funções e limites da arte a. pinturas e esculturas, enquanto dádivas de Deus, devem ser usadas licitamente, isto é, para retratar coisas que os olhos são capazes de ver, e não Deus, que é invisível e que proibiu qualquer representação pictórica de si mesmo b. tais elementos lícitos ao esforço artístico incluem (1) histórias e eventos: para ensino e admoestação (2) imagens e formas de corpos sem nexo histórico: para o deleite c. a maioria das imagens nas igrejas são desse último gênero — muitas delas, obras do maligno e da perversão 13. Enquanto a doutrina esteve pura e firme, a igreja rejeitou as imagens a. pelos primeiros quinhentos anos, a igreja manteve-se livre de imagens b. quando a degeneração do ministério tomou lugar, imagens começaram a adornar as igrejas c. pais da igreja, como Agostinho e Jerônimo, alertam sobre os perigos das imagens d. os cristãos deveriam aceitar, ao invés das imagens mortas, as imagens vivas do batismo e da ceia do Senhor e. para os papistas, entretanto, as imagens são uma bênção incomparável 14. O Concílio de Niceia, simpático às imagens, é uma prova, em si, da terrível distorção da doutrina a. o Segundo Concílio de Niceia, sob mando da imperatriz Irene, decretou a adoração de imagens; é usado como prova pelos defensores das imagens b. o Libri Caroli, um autêntico documento dos tempos de Carlos Magno, reproduz os argumentos absurdos dos bispos presentes em favor das imagens 15-16. Continuação das provas dos absurdos do Segundo Concílio de Niceia a. as Escrituras não são apenas mal-interpretadas, mas também mal citadas b. a presunção dos papistas da antiguidade das imagens é suficientemente dissipada pelos raciocínios absurdos daquele Concílio c. “Onde está, agora, a distinção entre latria e dulia, pela qual eles se acostumaram a ludibriar Deus e os homens? Pois o concílio aceita, sem exceção, tanto as imagens quanto o Deus vivo.” CAPÍTULO 12 Deus é distinto dos ídolos, de forma queapenas ele pode ser plenamente adorado 1. A verdadeira religião nos liga a Deus enquanto um só e único Deus a. a definição de “religião” (1) a insistência escriturística acerca do Deus único também implica que nada de sua divindade pode ser transferida a outrem (2) tanto religio quanto eusebia sugerem adoração ordenada e evasão da confusão (3) a superstição amontoa um despropositado volume de futilidades b. ao combater a perversão universal da religião entre os homens, Deus se mostra um Deus ciumento (1) a lei e a adoração adequadas se combinam na lei de Deus para sujeitar o homem à sua vontade (2) assim, os homens são impedidos de incorrer em rituais perversos c. a proliferação de divindades menores abaixo do supremo Deus (também presente entre gregos e judeus) deprecia a glória de Deus ao fracionar as suas funções d. a adoração de santos nada mais é do que uma extensão dessa tendência 2. “Adoração” e “veneração” de ídolos são a mesma coisa a. a distinção entre latria e dulia foi inventada para permitir a transferência das honras divinas para os anjos e os mortos b. em grego, dulia significa culto, e latria, adoração; como o culto é superior à adoração, os papistas estão, na verdade, honrando mais aos santos do que a Deus 3. A adoração de ídolos é uma tentativa de usurpar Deus de seu ser e outorgá-lo às criaturas a. a prática escriturística demonstra a nulidade da falsa distinção dos romanistas entre dulia e latria e nega, a homens e anjos, o direito de receber a mais elevada adoração b. as origens da adoração de santos (1) transferência da observância da devoção para outros que não o Deus único (2) honras divinas ao sol, às estrelas e aos ídolos (3) ambição: homens furtaram, para os mortais, aquilo que era devido a Deus — oferecendo sacrifícios, indiscriminadamente, a divindades subsidiárias, deuses menores ou heróis mortos CAPÍTULO 13 Na Escritura, somos ensinados, desde a Criação, sobre a essência única de Deus, que contém em si mesma três pessoas A DOUTRINA ORTODOXA DA TRINDADE [1-20] O significado das pessoas [da Trindade] [1-6] 1. Transcendência, unidade e espiritualidade de Deus a. o ensino escriturístico sobre Deus deve descartar tanto os delírios vulgares quanto os sofisticados sobre ele, que enfatizam sua natureza espiritual b. na Escritura, Deus acomoda o conhecimento de si mesmo à nossa tênue capacidade: eis a verdadeira explicação para os chamados antropomorfismos da Bíblia 2. As três “pessoas” de Deus a. três pessoas — mais uma característica especial para distinguir Deus dos ídolos de forma mais precisa b. para evitar erros, precisamos eliminar noções erradas de “pessoas” e fundamentar nosso entendimento desse conceito na Escritura (Hb 1.3ss): (1) uma essência, ou ousia, em Deus (2) mas três pessoas, hypostases — substâncias, ou melhor, subsistências — distintas entre si 3. As expressões “trindade” e “pessoa” ajudam na interpretação da Escritura e são, portanto, admissíveis a. nossa convicção, a despeito dos protestos: um Deus em três pessoas, sendo cada uma delas plenamente Deus b. a acusação acerca do uso de palavras “estranhas” (1) se os termos contrariarem a simplicidade da Palavra de Deus, eles devem, é claro, ser rejeitados (2) entretanto, se eles expressam concisamente algo da Escritura, devem ser admitidos 4. A igreja considerou necessárias tais expressões, como “trindade”, “pessoa” etc. a. esses termos se fizeram necessários no passado, assim como no presente, devido a corrompedores da verdadeira doutrina b. Ário professou que Cristo é Deus e filho de Deus, mas em seguida afirmou que Cristo foi criado e teve um início: os pais ortodoxos da igreja desmascararam sua duplicidade por meio da palavra homoousios c. Sabélio também enxergou no Pai, Filho e Espírito meros nomes de Deus, sem hierarquia ou distinção: os pais da igreja o desmascararam ao afirmar a trindade das pessoas em uma unidade 5. Limites e necessidade de termos teológicos a. conquanto fosse melhor prosseguir sem esses termos, não devemos ser afobados ao rejeitá-los, mas sim reconhecer que eles expressam o fato de que Pai, Filho e Espírito Santo são um, embora diferenciados entre si por um certo atributo b. com toda humildade, muitos pais da igreja alertaram acerca da limitação desses termos gregos e latinos: nós devemos imitar sua humildade, mas reconhecer, ao mesmo tempo, a utilidade desses termos na discussão 6. O significado da concepção mais importante a. pessoa: uma “subsistência” na essência de Deus b. subsistência: o ato de se relacionar, por um vínculo comum, à essência, mas ser distinto dela por uma característica especial c. quando Deus é mencionado simples e indefinidamente, a alusão é igualmente ao Filho e Espírito; quando, porém, as pessoas da Trindade são comparadas, suas propriedades especiais diferenciam cada uma das demais d. a economia divina do Deus trino em nada afeta a unidade de sua essência A deidade do Filho [7-13] 7. A deidade da “Palavra” a. a “Palavra”, mencionada no Antigo e Novo Testamento, não é uma mera expressão, mas, na verdade, a sabedoria eterna que habita junto a Deus e a fonte de todas as profecias b. a Palavra, imutável, permanece eternamente uma e única com Deus, e é o próprio Deus 8. A eternidade da Palavra a. alguns homens, ainda que não abertamente destituam a Palavra de sua deidade, furtam secretamente sua eternidade ao afirmar que ele teve início com a criação do universo b. em vez disso, a Palavra, concebida antes do início do tempo por Deus, reside perpetuamente com ele: disso se prova tanto sua eternidade quanto sua verdadeira essência e deidade 9. A deidade de Cristo no Antigo Testamento a. estamos interessados, aqui, nos testemunhos do Antigo Testamento que afirmam a deidade de Cristo, não naqueles que proclamam seu ofício mediador b. os judeus torcem a interpretação dessas passagens para excluir, no geral, qualquer aplicação dos títulos a Cristo 10. O “anjo do Deus eterno” a. os judeus estão errados em não reconhecer Jeová manifestado frequentemente na figura de um anjo b. Serveto afirma, pecaminosamente, que Deus nunca revelou a si mesmo para Abraão e os outros patriarcas, mas que eles adoravam um anjo em seu lugar: a partir dessas e outras passagens, seguimos os pais da igreja na interpretação do anjo como a Palavra, Cristo c. prova-se, assim, que Cristo é o mesmo Deus que sempre foi adorado entre os judeus 11. A deidade de Cristo no Novo Testamento: testemunho dos apóstolos a. passagens dos Salmos e Isaías, aplicadas à Cristo por Paulo, mostram que ele é exatamente o Deus cuja glória não pode ser transferida para outrem b. João afirma que a majestade de Deus vista por Isaías em sua visão do templo era, na verdade, Cristo c. outras passagens fazem essa identificação também, proclamando Cristo como aquele único Deus, sempre adorado, e não afirmando um segundo deus 12. A deidade de Cristo é demonstrada em suas obras a. no governo do mundo b. no sondar do coração dos homens e na remissão de seus pecados 13. A deidade de Cristo é demonstrada por seus milagres a. diferença entre os milagres de Cristo e os milagres dos profetas e apóstolos: (1) eles simplesmente distribuíram os dons de Deus através de seu ministério (2) Cristo exibiu o seu próprio poder b. a verdadeira salvação, bondade e justiça vêm do próprio Deus; Cristo as tinha perfeitamente em si mesmo; portanto, Cristo é Deus c. essas evidências mostram que: (1) as coisas que o Pai nos concede nos advêm pela intercessão do Filho (2) o próprio Filho é o autor dessas coisas, por mútua participação no poder d. a percepção da própria presença de Deus pela mente piedosa é, contudo, melhor do que todas as provas racionais: ela quase pode tocá-lo quando se sente despertada, preservada, justificada e santificada A deidade do Espírito [14-15] 14. A deidade do Espírito é demonstrada em sua obra a. a atividade do Espírito vista no resguardo da massa caótica (Gn 1.2) e, então, no adornar do universo com ordem e beleza na criaçãob. o Espírito participou com Deus no envio dos profetas c. aprendemos a multiforme ação do Espírito não somente na Escritura, mas na nossa firme experiência de santidade (1) a causa da essência, vida e crescimento nas coisas criadas (2) o autor da regeneração para a vida incorruptível, por seu próprio poder (3) o garantidor da sabedoria e da fala (4) o doador da justificação, poder, santificação, verdade, graça e de todo o bem — por meio dele, entramos na comunidade de Deus para desfrutar de tudo isso d. portanto, o Espírito participa do poder de Deus e habita hipostaticamente em Deus 15. Testemunhos manifestos da deidade do Espírito a. por meio da habitação do Espírito, somo templos de Deus; portanto, o Espírito Santo = Deus b. as palavras com que os profetas se referem ao Senhor dos Exércitos remetem, no Novo Testamento, ao Espírito Santo: portanto, o Espírito Santo = Deus c. a abominação do “pecado contra o Espírito Santo” também prova sua deidade A Trindade enquanto Unidade e Tríade [16-20] 16. Unidade a. a insistência de Paulo acerca de um Deus, uma fé e um batismo, e a comissão de Cristo para batizar em nome do Pai, Filho e Espírito Santo, corroboram em favor de uma essência em Deus, no qual três pessoas residem b. a insensatez dos arianos, que negam a essência comum de Pai e Filho; e dos macedônicos, que o fazem quanto ao Pai, Filho e Espírito Santo 17. Tríade a. conquanto a Escritura diferencie as três pessoas entre si, nós devemos lidar com tais distinções com grande reverência e sobriedade, como diz Gregório de Nazienzo: “Eu não consigo pensar em uma sem, rapidamente, ser engolfado pelo esplendor das três; tampouco posso discernir as três sem que seja imediatamente levado a uma.” b. Pai, Filho e Espírito não são meros títulos, remetem a uma distinção real, mas não uma divisão c. alusão a textos da Escritura para mostrar a distinção entre Pai e Filho; Filho e Espírito 18. Diferença entre Pai, Filho e Espírito a. a insuficiência das comparações humanas b. a distinção manifesta nas Escrituras (1) Pai: início da obra; fonte e manancial de todas as coisas (2) Filho: sabedoria, conselho (plano) e dispensação ordenada de todas as coisas (3) Espírito Santo: poder e eficácia daquela obra c. uma distinção de ordem, não de tempo (1) não há antes e depois na eternidade (2) a mente humana, porém, naturalmente contempla (a) Deus primeiro (b) segundo, a sabedoria que procede dele (c) por fim, o poder pelo qual ele executa os decretos de seu plano [conselho] (dupla processão, tal como visto em Romanos 8) 19. A relação entre Pai, Filho e Espírito a. em cada hipóstase, a natureza plena deve ser entendida, mas a cada uma pertence sua característica especial b. como Agostinho mostra, a diferença de termos para as pessoas da Trindade se deve a suas inter-relações 20. O Deus triúno a. a crença em Deus implica uma essência simples e única, na qual identificamos três pessoas ou hipóstases b. os usos do nome “Deus” (1) indistinto: designa todas as três pessoas (2) Mas proeminentemente o Pai, como início e fonte, sem, contudo, depreciar da deidade do Filho e do Espírito Santo c. os nomes “Pai”, “Filho” e “Espírito Santo” implicam um relacionamento entra essas pessoas d. a essência plena de Deus é, portanto, espiritual e abrange Pai, Filho e Espírito Santo REFUTAÇÃO DE ALGUMAS HERESIAS MAIS ATUAIS [21-29] 21. O mistério da Trindade deve ser recebido por uma fé ensinável, não por astúcia a. hoje, como no passado, Satanás está provocando contendas sobre a essência divina do Filho, do Espírito e sobre a distinção entre as pessoas: nossa intenção primeira era falar aos ensináveis, mas agora somos compelidos a batalhar com esses depravadores da doutrina b. contudo, tais discussões pedem por sobriedade devido à limitação evidente da mente humana no conhecimento de Deus c. a tarefa não pede por uma curiosidade desordenada, mas por uma aderência ao que Deus ensina em sua Palavra 22. A contenda de Serveto contra a Trindade a. é inútil elencar erros e heresias antigas; nossa tarefa é asseverar a unidade da essência e a distinção das pessoas contra aqueles que as confundem b. síntese das visões de Serveto (1) definições (a) Trindade — inefável e hostil à concepção da unidade de Deus: a deidade seria tripartite se três pessoas residissem na essência de Deus (b) Pessoas — algumas ideias externas que não subsistem verdadeiramente na essência de Deus, mas nos representam Deus em algum tipo de manifestação; ou — manifestação visível da glória de Deus (2) a “teogonia” de Serveto (a) princípio: nenhuma diferenciação em Deus (b) Cristo adveio como Deus a partir de Deus; o Espírito procedeu dele enquanto outro Deus (c) há uma parte de Deus tanto no Filho quanto no Espírito; o Espírito está substancialmente em nós e em toda a criação (d) portanto, Filho e Espírito estão indiscriminadamente mesclados com seres criados em geral, e existe divindade substancial não apenas na alma do homem, mas em outras coisas criadas 23. O Filho é tão Deus quanto o Pai a. Gentile, Fazy e outros evitaram a pecaminosidade de Serveto ao professarem as três pessoas, mas em seguida qualificaram essa afirmação b. síntese de suas visões (1) o Pai verdadeiramente e propriamente é o único Deus e essentiator¹ (2) ele incutiu sua própria deidade no Filho e no Espírito quando os formou (3) eles, portanto, fazem uma distinção em essência entre o Pai, de um lado, e o Filho e o Espírito, de outro c. refutação: deve haver algum traço de diferenciação para que o Pai não seja o Filho. Aqueles que apontam esse traço na essência, claramente reduzem a nada a verdadeira deidade de Cristo, o qual, sem essência — e, de fato, sem a essência plena — não pode existir 24. O nome “Deus”, na Escritura, não se refere somente ao Pai a. com base em que “a menos que o Pai seja somente Deus, ele seria seu próprio pai”, objeta-se que referências não especificadas a Deus na Escritura aplicam-se somente ao Pai b. pelo contrário, desde a encarnação Cristo tem sido chamado de “o Filho de Deus” (1) enquanto Palavra eterna, gerado antes de todos os tempos pelo Pai (2) enquanto mediador, vindo para nos unir ao Pai c. outras objeções no mesmo sentido refutadas pela Escritura 25. A natureza divina é comum às três pessoas a. eles dividem a essência divina entre Pai, Filho e Espírito Santo, contrariamente ao nosso ensino e à Escritura, em que se sustenta que Deus é um em essência b. eles nos atribuem, falsamente, uma “quaternidade” (de essência divina mais três pessoas) c. para nós, a unidade reside na essência, a Trindade, nas pessoas d. o resultado de seu erro ímpio e absurdo seria que a Trindade se torna a conjunção de um Deus com duas coisas criadas 26. A subordinação da Palavra encarnada ao Pai não é contraevidência a. eles afirmam que se Cristo for Deus, propriamente, ele é erroneamente chamado de “Filho” b. quando Cristo se dirige a Deus em João 17:3, ele está falando enquanto mediador, mas sua divindade não é minimizada por isso, embora esteja encoberta para o mundo; na palavra “Deus”, ele inclui a si mesmo c. a posição mais elevada do Pai em relação ao Filho não significa o rebaixamento do Filho a uma segunda classe de divindade, abaixo do Pai em termos de glória celeste: Cristo, porém, desceu até nós para nos conduzir ao Pai e a si mesmo, já que ele é um com o Pai 27. Nossos adversários apelam, equivocadamente, para Ireneu a. Ireneu insistiu que o Pai de Cristo foi o único e eterno Deus de Israel; eles jogam isso contra nós b. lembre-se de que Ireneu estava combatendo hereges que negavam que o Deus do Antigo Testamento e o Pai de Cristo eram um e o mesmo; nossa disputa é contra aqueles que negam, a Cristo, a mesma deidade essencial atribuída ao Deus Pai c. muitas passagens de Ireneu provam que ele aceitou Cristo como um e mesmo Deus que seu Pai 28. O apelo a Tertuliano tampouco tem valor a. em suma, Tertuliano insiste na unidade essencial da Divindade, mas vê na economia ou dispensação divinaa diferenciação entre as pessoas da Trindade b. a subordinação do Filho ao Pai, portanto, não se dá no reino da substância ou essência, mas no reino da economia 29. Todos os reputados doutores da igreja confirmam a doutrina da Trindade a. da mesma forma, Justino e Hilário são tomados como patronos, por nossos adversários, com base nas mesmas falsas premissas que Ireneu b. a citação de Inácio provém de uma fraude c. Agostinho, a quem nossos adversários rejeitam, conheceu os pais da igreja precedentes e defende que o nome “Deus” é atribuído especialmente ao Pai, porque se o princípio não deriva dele, nem mesmo a unidade de Deus pode ser concebida d. essa refutação é suficiente, exceto para especuladores inveterados CAPÍTULO 14 Mesmo na criação do mundo e de todas as coisas, a Escritura distingue, por traços inconfundíveis, o verdadeiro Deus dos falsos deuses A OBRA DOS SEIS DIAS DA CRIAÇÃO [1-2] 1. Nós não devemos, nem podemos, ficar aquém do ato criativo de Deus em nossa especulação a. Deus explicitou a história da Criação para que os homens não pudessem concebê-lo falsamente, como os pagãos o fazem, ou como os filósofos fugazmente o concebem enquanto a mente do universo, mas para que pudessem concebê-lo distintamente — da mesma forma que Moisés — como o Criador e fundador do universo, como seu Espírito e sabedoria eterna b. os usos da narrativa da Criação e da história conforme esquematizadas na Escritura: (1) para refutar as fábulas egípcias (2) para fazer conhecido o princípio do universo e, assim, manifestar mais claramente a eternidade de Deus, que é, de fato, uma imagem viva de si mesmo, como óculos para os olhos debilitados c. devemos conter nossa curiosidade e especulação nos limites dos seis mil anos estabelecidos pela narrativa de Deus 2. A obra de seis dias mostra a bondade de Deus para com o homem a. os seis dias condescendem com o breve intervalo da nossa atenção e compele nossa razão a contemplar as obras de Deus em obediência de fé e ansiando pela quietude do sétimo dia b. os seis dias também nos mostram o cuidado paternal de Deus em prover para toda a necessidade do homem antes de sua criação OS ANJOS [3-12] Importância e utilidade dessa doutrina [3-4] 3. Deus é Senhor sobre todos! a. os anjos, embora não mencionados no hexamerão² mosaico (em razão da acomodação às mentes simplórias), não eram divinos, mas seres criados, como se pode inferir de outras passagens das Escrituras b. a heresia maniqueísta, de que Deus e o Diabo são princípios coordenados, surgiu da recusa de atribuir ao Deus bom a criação de qualquer coisa má c. a menção à criação de “coisas visíveis” no Credo Niceno é, provavelmente, reflexo disso 4. Nós não devemos nos deleitar em especulações acerca dos anjos, mas buscar o testemunho da Escritura a. a regra da modéstia e sobriedade: não falar, conjecturar ou mesmo procurar saber qualquer coisa a respeito de questões obscuras, senão o que nos foi transmitido pela Palavra de Deus; buscar e meditar sobre aquelas coisas que corroboram a edificação b. que nós não especulemos, portanto, em qual dos seis dias os anjos foram criados; basta saber que o foram c. que nós evitemos, portanto, a tola sabedoria de Dionísio e sua Celestial hierarchy [Hierarquia celeste]³ d. a tarefa do teólogo: fortalecer consciências, ensinando coisas verdadeiras, certas e proveitosas, e não distrair os ouvidos com palavrório O ministério dos anjos [5-7] 5. As atribuições dos anjos na Escritura a. mensageiros: intermediários por meio dos quais Deus se manifesta aos homens b. hoste: análogo à escolta que adorna a majestade de um príncipe c. virtudes: manifestar o poder e a força da mão de Deus d. principados, poderes, domínios: por meio dos anjos, Deus gere sua autoridade no mundo e. tronos: em certo sentido, a glória de Deus reside neles f. “deuses”; (= Cristo) (1) eles espelham a divindade de Deus para nós (2) eles, muito mais do que príncipes e governantes, merecem o título 6. Os anjos como protetores e auxiliadores dos fiéis a. o Antigo Testamento contém episódios de anjos protegendo os homens do perigo b. no Novo Testamento, Cristo foi servido por anjos em suas tribulações e sua vinda e ressurreição foram anunciadas por eles 7. Anjos da guarda? a. é duvidoso se cada homem possui seu anjo da guarda; antes, todos os anjos cuidam de cada um de nós b. não existe fundamento para a crença popular em um anjo “bom” e um “mau” para cada homem A vida dos anjos [8-9] 8. A hierarquia, número e forma dos anjos a. a Escritura não nos oferece detalhes sobre o número, as ordens ou formas dos anjos: apenas indicações gerais b. o restante deve permanecer entre os mistérios a serem revelados no Último Dia 9. Os anjos não são meras ideias, mas realidade a. contra os “libertinos” que, assim como os antigos saduceus, negaram a existência real dos anjos, há muitos textos nas Escrituras em defesa de sua realidade b. até mesmo Cristo, enquanto supremo mediador, foi certa vez chamado “anjo” (Ml 3:1) Contra a adoração de anjos [10-12] 10. A glória divina não pertence aos anjos a. porque eles refletem a glória de Deus e administram seu cuidado para conosco, os homens tendem a adorá-los b. Paulo nos advertiu quanto a isso, como sendo uma depreciação de Cristo: os anjos bebem da mesma fonte que nós, eles apenas refletem o esplendor da majestade de Deus 11. Deus faz uso dos anjos não para seu próprio benefício, mas para o nosso a. Deus não depende dos anjos para executar suas ordens; de fato, ele às vezes os ignora e age diretamente b. Deus usa anjos para se acomodar à nossa capacidade débil e nos mostrar, de forma mais minuciosa, sua proteção amorosa para conosco: por exemplo, Elias e seu servo (2Rs 6.17) 12. Os anjos não devem desviar o nosso olhar da direção do Senhor a. o propósito dos anjos é nos conduzir a Deus, não nos afastar dele b. a Escritura não permite o modo platônico de buscar acesso a Deus por meio da adoração de anjos DIABOS E DEMÔNIOS [13-19] Atuação dos demônios [13-15] 13. A Escritura nos municia de antemão contra o adversário a. toda a imagística acerca dos demônios tem o único propósito de nos advertir e equipar para o combate contra o adversário b. nossa vida é um serviço militar no qual somos instados a perseverar, clamando a Deus por força e auxílio em nossa fraqueza e desfalecimento 14. O reino da impiedade a. as referências escriturísticas a demônios (no plural) nos lembra da vasta hoste de inimigos contra nós, para que não negligenciemos nossos esforços b. as referências escriturísticas a Satanás (no singular) colocam o reino da impiedade contra o reino da justiça, a igreja dos santos contra a fação dos ímpios 15. Um conflito irreconciliável a. a figura do Diabo apresentada na Escritura deve nos inflamar na defesa da glória de Deus e de nossa própria salvação contra esse inimigo implacável b. o retrato da depravação consumada do Diabo A Queda de Satanás e dos demônios [16-17] 16. O Diabo é uma criação de Deus degenerada a. os demônios foram inicialmente criados como anjos de Deus, mas por degeneração eles arruinaram a si mesmos e se tornaram instrumentos de ruína para outros b. apenas isso é proveitoso saber; qualquer especulação para além disso acerca da Queda dos demônios é vã 17. O Diabo permanece sob o poder de Deus a. Satanás, contudo, só pode agir com a permissão e tolerância de Deus b. as ações de Satanás, entretanto, originam-se em sua própria oposição ardorosa e deliberada a Deus c. por isso ele leva a cabo somente o que lhe foi permitido, e assim obedece, quer queira, quer não, seu Criador A luta dos fiéis contra Satanás [18] 18. Certeza de vitória! a. Deus nunca permite a Satanás liquidar ou destruir os fiéis, ainda que eles possam ser terrivelmente oprimidos por ele b. já com os ímpios, é diferente: é permitido a Satanás subjugá-los c. isso é verdadeiro tanto comunitariamente quanto individualmente: fiéis portam a imagem de Deus; os ímpios são filhos de Satanás, em cuja imagem sedegeneraram Personalidade dos demônios (19) 19. Demônios não são pensamentos, mas realidades a. [os libertinos] defendem, quanto aos demônios, a mesma irrealidade que defendem quanto aos anjos (seç. 9) b. essa visão é amplamente refutada por claros testemunhos escriturísticos que seriam despropositados se demônios não existissem A VISÃO CORRETA DA OBRA DE DEUS E SEUS BENEFÍCIOS [20-22] 20. Esplendor e abundância da criação a. deleitemo-nos nas obras de Deus que nos cercam por todos os lados e ponderemos com piedosa meditação sobre elas, ainda que elas não sejam a evidência principal para a fé b. a partir de Gênesis 1-2 e do Hexamerão de Basílio e Ambrósio, podemos concluir o seguinte: (1) Deus criou o céu e a terra a partir do nada e, em uma sequência maravilhosa, os povoou com seres vivos, cada um em seu lugar; e embora todos eles estejam sujeitos à corrupção, cada um é capaz de preservar sua espécie até o Último Dia (2) de tempos em tempos, ele renova alguns [seres vivos] e, por seu dom de propagação, assegura a continuidade das espécies em um universo abundantemente abastecido (3) finalmente, o homem é apresentado como o exemplo mais excelente das obras de Deus 21. Como nós devemos ver as obras de Deus? a. não temos nem a capacidade, nem o espaço, para descrever como os atributos de Deus resplandecem na criação do universo; antes, nossa tarefa é ensinar o que significa Deus ser o Criador do céu e da terra b. a regra: não passar ao largo, com descuido ingrato ou desatenção, dos notáveis poderes que Deus manifesta em suas criaturas; aprender a aplicar a regra a nós mesmos, para que nosso próprio coração seja tocado c. “o Hino à Criação” 22. A contemplação da bondade de Deus em sua Criação nos leva à gratidão e confiança a. expansão da segunda parte da “regra” (seç. 21): os grandes benefícios preparados por Deus para nós deveriam nos levar a invocá-lo, adorá-lo e amá-lo b. agir de outra forma com relação à sua generosidade seria reles ingratidão c. [que possamos] confiar no que Deus nos dá; reconhecer cada benefício nosso como uma bênção dele; estudar, amar e servi-lo com todo o nosso coração CAPÍTULO 15 Discussão da natureza humana enquanto criada. As faculdades da alma, da imagem de Deus, da livre-escolha e da integridade original da natureza do homem. Introdução 1. O homem é proveniente, sem mácula, da própria mão de Deus; ele, portanto, não pode jogar a culpa de seus pecados no Criador a. por que discutir a criação do homem? (1) porque o homem é o exemplo mais nobre da justiça, sabedoria e bondade de Deus b. caráter duplo do conhecimento de si: (1) como o homem era na Criação (a presente discussão) (2) como o homem se tornou após a Queda (a ser discutido depois) c. nossa intenção: defender a justiça de Deus de toda acusação NATUREZA DA ALMA [2-5] 2. Diversidade de corpo e alma a. definição de alma e espírito (1) alma: uma essência imortal, porém criada; a parte mais elevada de um homem (2) espírito: um sinônimo para “alma”, exceto quando as duas palavras são usadas em conjunto b. evidências gerais da natureza divina e imortal da alma enquanto essência, à parte do corpo (1) senso de imortalidade (2) consciência: observada em nossos sentimentos de culpa, medo etc. (3) grandes dádivas com as quais a mente humana foi dotada (4) sono e sonhos c. evidências escriturísticas da alma 3. A imagem e semelhança de Deus no homem a. além das evidências externas e físicas (o caminhar vertical, por exemplo) ou a diferenciação dos homens em relação aos animais — e sua semelhança com Deus — temos o fato mais convincente de que o homem foi criado à imagem de Deus em um sentido espiritual b. a afirmação de Osiander, de que essa imagem se estende tanto à alma quanto ao corpo, é absurda c. a questão da imagem/semelhança (1) não há diferença entre essas palavras, como insistem alguns intérpretes — existe, na verdade, uma evidência de paralelismo literário hebraico (2) o homem, quanto à sua alma, é dito imagem de Deus, embora a semelhança a Deus se estenda a toda superioridade do homem sobre as outras criaturas (3) imagem/semelhança expressam a integridade com que Adão foi dotado (a) reta inteligência (b) afeições mantidas nos limites da razão (c) todos os sentidos ajustados em boa ordem (d) remetia verdadeiramente todos os dons ao seu Criador d. embora o lugar privilegiado da imagem divina fosse na mente e no coração, ou na alma e suas faculdades, não havia qualquer parte no homem, nem mesmo em seu próprio corpo, em que lampejos [dessa imagem] não resplandecessem 4. A verdadeira natureza da imagem de Deus deve ser derivada daquilo que as Escrituras dizem sobre sua renovação por meio de Cristo a. uma definição plena de “imagem” deve ser buscada nas faculdades distintivamente humanas e, especialmente, em como elas se encontram no homem restaurado por meio de Cristo, pois (1) a Queda de Adão não implicou a destruição total da imagem de Deus no homem, mas uma terrível deformação (2) portanto, voltamo-nos para o homem regenerado em Cristo b. aspectos dessa renovação, segundo Paulo (1) conhecimento (2) justiça pura e santidade c. a imagem de Deus é a excelência perfeita da natureza humana que reluziu em Adão antes da Queda, mas que foi, subsequentemente, tão corrompida — e quase apagada —que nada permanece depois da ruína, senão aquilo que é confuso, mutilado e dominado por enfermidades. Portanto, aparece parcialmente agora nos eleitos, à medida que nasceram novamente pelo espírito; mas alcançará seu pleno esplendor no céu d. para conhecer as partes dessa imagem, precisamos discutir as faculdades da alma 5. A alma do homem é criada por Deus, e não é uma espécie de emanação da sua natureza a. Serveto reviveu a falsa concepção maniqueísta de que a alma humana é uma porção da deidade; isso é refutado pela evidência da natureza pecadora do homem e pela unidade da essência de Deus b. Osiander acredita que a imagem de Deus no homem consiste na presença, nele, da justiça essencial de Deus; isso também é puro maniqueísmo c. Paulo ensina que a alma do homem é como Deus, não em essência, mas pelo poder de seu Espírito OPINIÃO DOS FILÓSOFOS SOBRE A ALMA CRITICADA EM VISTA DA QUEDA DE ADÃO [6-8] 6. A alma e suas faculdades a. dentre os filósofos, somente Platão chega próximo de uma apreciação da natureza incorpórea da alma humana b. a natureza da alma a partir da Escritura: (1) substância incorpórea (2) habita no corpo, como princípio animador, como se fosse uma casa (3) a busca do homem por Deus é uma prova de que ele é divinamente dotado de razão (4) discordâncias no interior da alma não advêm da existência de duas almas em cada homem (como alguns filósofos sustentam), mas da natureza decaída do homem c. as faculdades da alma a partir dos filósofos (1) Platão via Temístio (veja diagrama a seguir) (2) Aristóteles (Ética): divisão dos poderes da alma em apetitiva (sem razão, mas submissa a ela), intelectiva (partícipe, em si, da razão); três princípios de ação: sentido, intelecto, apetite (3) essas visões, conquanto prováveis, são muito complicadas para nosso propósito 7. Entendimento e vontade como os verdadeiros poderes fundamentais a. os filósofos, ignorantes da Queda do homem, confundem duas condições muito diferentes do homem b. a alma humana consiste em duas faculdades: (1) entendimento: distingue entre objetos a serem aprovados ou desaprovados — age como líder e governante da alma (2) vontade: escolhe e segue o que o entendimento declara bom e evita o que ele desaprova — respeita a decisão do entendimento e aguarda juízo do entendimento em seus próprios desejos c. termos equivalentes: filósofos distinguem entre entendimento e sentido; nós o incluímos como entendimento. Nós também substituímos a palavra “apetite”, de uso dos filósofos, por “vontade” 8. Livre escolha e a responsabilidade de Adão a. as faculdades do homem antes da Queda (1) a mente (entendimento) é concedida ao homem para discernir o bem do mal, o certo do errado,o que deve ser seguido e o que deve ser evitado — τὸ ἡγεμονικόν, o “guia” (2) vontade: a sede da livre escolha b. portanto, o homem [pré-lapsariano] tinha o poder, se assim desejasse, de alcançar a vida eterna; mas não foi dada a ele a constância para perseverar c. isso mudou com a Queda do homem: o homem era muito diferente, no início de sua criação, de todos os que vieram depois dele, a qual, derivando sua origem dele em estado corrompido, adquiriu dele uma mancha hereditária d. os esquemas dos filósofos fracassam porque eles não levam a Queda em consideração Institutas de Calvino, 1:15:6, de Temístio, De Anima II, VII (R. Heinze, ed., p. 36, 120, 122). Aristóteles, Ética a Nicômaco I, 13 (p. 1102 b 30ss.); VI, 2 (p. 1139 a 17); Temístio VI, p. 112-114. CAPÍTULO 16 Deus, por seu poder, nutre e sustenta o mundo criado por ele e governa suas muitas partes por sua providência Afirmação da providência especial de Deus, contra as opiniões dos filósofos [1-4] 1. Criação e providência conjugadas inseparavelmente a. a percepção material consegue reconhecer um Deus que outrora criou todas as coisas e que lhes dá energia suficiente para prosseguir por si mesmas desde então b. Mas a fé, perscrutando ainda mais profundamente, vê o Criador também como governante e mantenedor de tudo que ele criou (doutrina da providência) (1) a moldura celestial (2) todas as coisas na terra, incluindo questões humanas 2. Não existe sorte ou acaso a. a percepção material (em todas as eras) atribuiu todos os acontecimentos à sorte ou ao acaso, anuviando, assim, a providência de Deus b. Mas a fé, fundamentada nas Escrituras, sabe que todas as coisas acontecem de acordo com a vontade de Deus (1) acontecimentos (2) objetos inanimados que agem de acordo com suas propriedades específicas, mas sob a direção ubíqua de Deus c. o sol, em todo seu poder e glória, está às ordens de Deus (observar como a Escritura corrige, para Calvino, as observações da natureza) 3. A providência de Deus governa tudo a. não por um movimento geral, mas com uma propulsão direta e específica para tudo o que acontece; não por uma lei universal da natureza que confina a vontade de Deus dentro de seus limites estreitos: evidência escriturística b. benefícios para aqueles que louvam, adequadamente, a onipotência de Deus (1) seu poder é amplo para fazer o bem no céu e na terra, bem como entre suas criaturas vigilantes e obedientes (2) ele nos protege de todas as coisas nocivas; mitiga nossos medos supersticiosos de qualquer coisa que nos ameace: exemplos escriturísticos 4. A natureza da providência a. dois erros (1) não é um simples conhecimento prévio, mas governo ativo dos acontecimentos (2) não é um governo confuso e geral de criaturas individuais (falsa distinção entre a vontade de Deus e sua determinação) b. providência “geral” e “especial” (1) a doutrina da providência geral é aceita no sentido de que Deus não apenas supervisiona, mas exerce um cuidado especial sobre cada uma de suas obras (2) alguns escritores obscurecem a providência especial de Deus ao restringi-la somente aos atos particulares; nós defendemos que Deus ativamente regula todos os acontecimentos individuais, de forma que nada acontece por acaso Doutrina da providência especial amparada pela evidência das Escrituras [5-7] 5. A providência de Deus também dirige o particular a. alguns pressupõem que Deus concede direção geral às forças da natureza, mas que as coisas particulares, por si mesmas ou por acaso, são impulsionadas pela inclinação da natureza b. mas conquanto isso explique a progressão das estações, não explica a fecundidade ou escassez das colheitas, a abundância ou fome, pois essas são bênçãos ou maldições de Deus: exemplos escriturísticos 6. A providência de Deus diz respeito aos homens de forma especial a. assim como o universo foi estabelecido especialmente para a humanidade, o propósito de seu governo sobre ele é o mesmo b. nenhum homem pode agir, ou mesmo falar, a menos que Deus o deseje c. até mesmo ocorrências que parecem bastante fortuitas estão sujeitas à vontade de Deus, como demonstram a Escritura; todas as coisas vivem debaixo do plano secreto de Deus 7. A providência de Deus também regula ocorrências naturais a. exemplos da Escritura (1) vento: nenhum evento se levanta ou avulta, senão pela ordem expressa de Deus (2) poder de procriação (3) nutrição b. a providência geral de Deus (1) prossegue a ordem da natureza (2) é adaptada para uma finalidade definida e específica Discussão da sorte, acaso e contingências aparentes nos acontecimentos [8-9] 8. A doutrina da providência não é uma crença estoica no destino! a. falsa acusação, contra a providência cristã, de que se trata da doutrina estoica do destino (cf. Agostinho) (1) estoico: a necessidade reside em uma cadeia de causas (2) cristão: decretos eternos de Deus executados em seu governo de todas as coisas b. sorte e acaso são termos pagãos inadmissíveis aos cristãos, como dizem Basílio e Agostinho 9. As verdadeiras causas dos acontecimentos estão ocultas de nós a. a morosidade e os limites da mente humana veem como fortuitas as coisas que são, na verdade, ordenadas pelo propósito de Deus b. nesse sentido, “destino” e “sorte” são palavras usadas na Escritura para explicar eventos aparentemente contingentes, mas consabidos, pela fé, derivarem de um movimento secreto de Deus. [A liberdade de Deus de conduzir acontecimentos pode ser inferida do haver poupado os ossos frágeis de Cristo de serem quebrados] CAPÍTULO 17 Como podemos aplicar a doutrina da providência para nosso maior benefício A interpretação da providência divina com referência ao passado e ao futuro [1-5] 1. O sentido dos caminhos de Deus a. três coisas a serem notadas (1) a providência de Deus deve ser considerada no que tange ao futuro, bem como no que tange ao passado (discussão nas seçs. 3-5) (2) sua obra (especialmente na seç. 9): (a) ora por meio de um intermediário (b) ora sem um intermediário (c) ora em oposição a um intermediário (3) por meio dela, Deus revela seu cuidado por toda a raça humana, mas especialmente sua atenção no governo da igreja (discutido nas seçs. 6-8) b. a obscuridade ocasional da providência de Deus em seu trato com os homens não deve nos levar a atribuir todas as ocorrências à sorte cega, ou vilipendiar seus juízos ocultos (1) a providência de Deus é revelada no desfecho final que demonstra seu propósito, mesmo nos eventos mais dolorosos (2) analogia com a trovoada que cai sobre nós, enquanto no alto, acima da tempestade, reina a serenidade 2. As regras de Deus serão respeitosamente observadas! a. a atitude apropriada acerca da providência de Deus é de temor, reverência e humildade, não a arrogância de alguns que tentam limitar as ações de Deus à sua própria razão b. a Escritura prova, irrefutavelmente, que tudo o que acontece no universo é governado pelo plano inefável de Deus (1) a vontade de Deus tal qual revelada na lei — e no evangelho — distingue-se de sua vontade oculta, chamada pelas Escrituras de “abismo” (veja 1:18:3 sobre a afirmação da unidade da vontade de Deus) (2) o testemunho de Jó, em especial, quanto a isso c. que possamos consentir com a suprema autoridade de Deus, para que sua vontade seja, para nós, a única regra de justiça e a verdadeira causa justa de todas as coisas (1) não se trata de uma vontade absoluta divorciada de sua justiça (Sorbonne) (2) mas de providência, a fonte única de justiça, ainda que oculta 3. A providência de Deus não nos exime de nossa responsabilidade a. nós não devemos culpar a Deus por nossa impiedade ou adversidades, como fazem certos poetas pagãos b. os libertinos igualmente argumentam, absurdamente, que a providência: (1) ridiculariza quaisquer precauções contra o perigo ou a morte, porque não podemos escapar do fim que Deus decretou para nós (2) exime-nos de nossos crimes, pois Deus decretou que eles aconteceriam e, portanto, é sua própria causa, e nós somos apenasseu instrumento 4. A providência de Deus não nos desculpa da devida prudência a. Deus impôs limites à nossa vida através de seus decretos eternos b. isso, porém, não nos impede de usar os meios e recursos que ele nos deu para a preservação da nossa vida c. assim, tanto a tolice como a prudência são instrumentos da dispensação divina 5. A providência de Deus não absolve nossa impiedade a. a alegação: que todos os feitos passados, mesmo aqueles que são maus, ocorrem pela intervenção da vontade de Deus e, portanto, não podem ser punidos b. a resposta: (1) em sua Palavra, Deus exige de nós somente o que ele ordena; se agirmos contra sua vontade, somos obstinados e desobedientes; ainda assim, ele usa até mesmo nossos feitos maus para alcançar seu bom propósito (2) a culpa, entretanto, está sobre nós; pois se nós fazemos o mau, nossas consciências são condenadas, mas em Deus existe apenas o uso legítimo de nossas más intenções: analogia do cadáver fedendo ao sol; nem por isso os raios do sol fedem Meditando nos caminhos de Deus na providência: a felicidade de reconhecer atos da providência [6-11] 6. A providência de Deus como consolo dos fiéis a. a meditação sobre a providência de Deus é um antídoto adequado e reconfortante para as críticas mencionadas acima b. testemunhos das Escrituras ao cuidado particular — e não generalizado — de Deus sobre todas as criaturas, especialmente do homem e, de uma maneira singular, de sua igreja 7. A providência de Deus na prosperidade a. os testemunhos das Escrituras mostram que todos os homens, bons ou maus, estão sob o poder de Deus; seu zelo é governar todas as criaturas para seu bem e sua segurança b. os benefícios que derivam desse entendimento: (1) gratidão pela prosperidade (seç. 7) (2) paciência na adversidade (seç. 8) (3) libertação das angústias acerca do futuro (seçs. 10-11) 8. A certeza da providência de Deus nos ajuda em todas as adversidades a. na adversidade, erguemos nosso coração a Deus para, então, recebermos paciência e moderação pacífica da mente b. conforme numerosos exemplos na Escritura ensinam, nós devemos remeter nossa mente a isto: “o Senhor o quis; portanto deve ser suportado, não apenas porque ninguém pode combatê-lo, mas também porque ele deseja somente o que é justo e oportuno” (1) isso é verdadeiro para as injustiças causadas pelos homens (2) e para os infortúnios que acontecem sem a ação humana 9. Nenhum desdém pelas causas intermediárias! a. no que tange aos acontecimentos passados (1) pela gentileza demonstrada, devemos ser gratos aos homens, mas, em última instância a Deus, como seu principal autor (2) pela perda sofrida, devemos reconhecer que ocorreu pela vontade do Senhor, mas devemos também atribuí-la a nós mesmos (3) em todos os crimes, devemos contemplar, ao mesmo tempo, a justiça de Deus e a impiedade do homem b. no que tange aos acontecimentos futuros (1) devemos nos beneficiar da assistência humana, mas sempre como um instrumento legítimo da providência divina a ser usufruído (2) devemos buscar o que parece oportuno para nossa mente, mas confiar, em última instância, na sabedoria de Deus, e não nos auxílios externos, como guia para nosso objetivo c. assim, seremos capazes de nos despojarmos da afobação e presunção, e clamar continuamente a Deus 10. Sem a certeza da providência de Deus, a vida seria insuportável a. a ameaça de incontáveis infortúnios nos achegam a todo tempo, ainda que a maioria deles raramente aconteça — pelo menos não para todos ou ao mesmo tempo b. que vida miserável de perturbação nós viveríamos se fôssemos lançados e bofeteados de um lado para o outro pela sorte cega! 11. A certeza sobre a providência de Deus coloca em nosso coração uma confiança jubilosa em relação a Deus a. a providência divina nos alivia de nossos medos e ansiedades, e nos dá conforto e segurança b. a providência nos ensina que mesmo o Diabo e seus anjos estão agrilhoados ao serviço de Deus (exemplos da Escritura) c. a ignorância da providência é a causa última de todas as misérias; o seu conhecimento é a mais elevada bem-aventurança Respostas a objeções [12-14] 12. Sobre o “arrependimento” de Deus a. as passagens do Antigo Testamento em que “Deus se arrepende” levam alguns a afirmar que Deus não determinou os assuntos dos homens por meio de um decreto eterno, mas por meio de decretos circunstanciais, conforme ele julgava o homem correto e justo b. não se pode acusar Deus de arrependimento mais do que de ignorância, erro ou impotência c. algumas passagens que falam do arrependimento de Deus também falam de sua imutabilidade acima de qualquer arrependimento 13. A Escritura fala do “arrependimento” de Deus para fazer concessões ao nosso entendimento a. nos limites e fraquezas de nossa mente, não podemos entender Deus como ele realmente é b. por isso, ele precisa se apresentar a nós não como ele é, mas como ele aparenta ser para nós c. as emoções, a mutabilidade e outras qualidades humanas afins que dizem respeito ao arrependimento não podem ser atribuídas a Deus, que está acima de tudo isso, mas sim ao homem, que é descontente consigo mesmo d. por isso, o plano de Deus permanecerá eternamente imaculado 14. Deus executa firmemente seu plano a. os exemplos de Jonas em Nínive e do rei Ezequias não ilustram as mudanças do plano de Deus, mas as admoestações de Deus das quais os homens podem se arrepender, e assim executam sua vontade e seus decretos b. isso também é visto no caso de Abraão e do rei Abimeleque CAPÍTULO 18 Deus usa de tal forma as obras dos ímpios, e de tal forma subjuga suas mentes para executar seus juízos, que ele permanece puro de toda mácula 1. Não uma simples “permissão”! a. a falsa distinção entre “executar” e “permitir” (1) sugerida pela percepção carnal (humana), a fim de “preservar” Deus da mácula de cometer o mau e do aparente absurdo de Deus punir os homens por uma cegueira infligida divinamente (2) entretanto, essa distinção proposta sugeriria que existem áreas da existência sobre as quais Deus não tem conhecimento ou controle, ou que ao menos se entregam a um movimento não direcionado por ele (3) pelo contrário, todos os ímpios estão de tal forma sob o poder de Deus que ele direciona suas más intenções para qualquer finalidade que lhe pareça boa e faz uso de seus feitos ímpios para executar seus juízos — e sem qualquer mácula ou culpa de sua parte b. exemplos da Escritura (1) como o próprio Jó reconhece, não é Satanás, mas o próprio Deus a fonte de suas provações: os homens ou Satanás podem instigar algo, mas Deus, por seu condão, reverte seus esforços para executar seus juízos (2) a cegueira e insanidade de Acabe (1Rs 22.20, 22) (3) os apóstolos reconhecem Pilatos e os judeus como meros executores do que Deus decretou (At 4.28; cf. 2.23 etc.) (4) o incesto de Absalão foi obra do próprio Deus (2Sm 16.22; 12.12) (5) segundo Jeremias, a crueldade dos caldeus em relação a Judá foi obra de Deus (Jr 1.15; 7.14; 50.25 etc.) (6) a “zombaria”, a “vara de sua ira” e expressões afins na Escritura atestam a mesma coisa (7) portanto, Deus não se assenta ocioso em uma torre de vigia aguardando os acontecimentos fortuitos, como se seus juízos dependessem da vontade humana (visão epicurista) 2. Como o impulso de Deus se desenrola no homem? a. várias expressões escriturísticas mostram que “qualquer coisa que concebemos em nossa mente é dirigida para a finalidade de Deus por sua secreta inspiração”; não pela simples permissão, mas com a atuação ativa do Espírito b. isso é visto notavelmente no “endurecimento do coração do faraó” (1) seria absurdo dizer que o faraó endureceu seu próprio coração (2) antes, a vontade de Deus é a causa: o homem, conquanto seja alvo da ação de Deus, ao mesmo tempo age por si mesmo c. frequentemente Deus age nos ímpios pela intervenção de Satanás, mas sempre com o impulso, direção e limitação de Deus d. esse tópico será mais bem discutido com o livre-arbítrio, no Livro Dois e. portanto, “como se diz que a vontadede Deus é a causa de todas as coisas, eu fiz de sua providência o princípio determinante para todos os planos e obras humanas, não apenas para demonstrar sua força nos eleitos, que são regidos pelo Espírito Santo, mas também para compelir os réprobos à obediência” 3. A vontade de Deus é uma unidade a. as blasfêmias daqueles que rejeitam os oráculos patentes e inequívocos da Escritura b. refutação de sua primeira objeção, de que se nada acontece independentemente da vontade de Deus, existem nele duas vontades contrárias: por seu plano secreto, ele decreta o que proíbe abertamente por sua lei (1) evidência da Escritura, testemunho de Agostinho (2) somente nosso desleixo e incapacidade de entendimento supõem que exista qualquer contradição na vontade de Deus, qualquer variação nele, qualquer mudança em seu plano ou discordância em si mesmo 4. Mesmo quando Deus usa os feitos dos ímpios para seus propósitos, ele não sofre censura a. sua objeção: se Deus não apenas usa a obra dos ímpios, mas também governa sua intenção: (1) ele é o autor de toda a impiedade (2) os homens são injustamente condenados se eles executam o que Deus decretou, porque obedecem à sua vontade b. confusão entre vontade e preceito, em sua acusação: conquanto Deus realize por meio dos ímpios o que ele decretou por seu juízo secreto, eles não são desculpáveis, como se tivessem obedecido o preceito de Deus que violam, deliberadamente, por sua própria luxúria c. discussão de exemplos da Escritura: (1) a divisão de Israel e Judá e os acontecimentos relacionados do Antigo Testamento vistos à luz da vontade de Deus e da impiedade do homem (2) Agostinho acerca da traição do nosso Senhor por Judas d. deve-se manter uma atitude de humildade ensinável e admissão de nossas limitações mentais em relação ao ensino das Escrituras neste assunto ¹ I. e., “fonte de toda essência”. (N. do T.) ² I. e., os seis dias da Criação. (N. do T.) ³ Publicado em português por Ecclesiae sob o título A hierarquia celeste. LIVRO DOIS O conhecimento de Deus, o Redentor em Cristo…, primeiramente revelado aos patriarcas, sob a Lei, e então a nós, no evangelho CAPÍTULO 1 Pela Queda e revolta de Adão, toda a raça humana foi entregue à maldição e degenerou-se de sua condição original; a doutrina do pecado original Um conhecimento verdadeiro de nós mesmos destrói a autoconfiança [1-3] 1. Conhecimento equivocado e correto de si a. o antigo adágio: “conhece-te a ti mesmo” b. sua aplicação distorcida por alguns filósofos que instam o homem a conhecer a si mesmo para reconhecer seu próprio valor e excelência c. os elementos do verdadeiro autoconhecimento; considerar: (1) o que Deus nos deu na Criação e ainda nos dá: nós devemos tudo a ele (2) nossa condição miserável depois que a Queda de Adão nos fez perder nossa natureza original justa e nos deixou humilhados e envergonhados d. a dinâmica da vida cristã dignidade original → contraste absoluto com a nossa condição decaída abominação e desgosto para conosco mesmos → humildade → novo zelo na busca de Deus → recuperação das boas coisas que perdemos (imortalidade) 2. O homem, por natureza, inclina-se para uma autoadmiração ilusória a. o autoconhecimento exigido é tal que nos despoja de toda confiança em nossas próprias habilidades b. as armadilhas em dar ao homem crédito por sua excelência: (1) eleva o nosso amor-próprio cego e inato (2) mesmo se atribuímos parte à Deus, ficamos com o bastante para dar ocasião ao orgulho e excesso de confiança c. em praticamente todas as eras, homens que enalteceram virtudes humanas foram populares porque apelaram ao orgulho dos homens d. Mas aqueles confiantes de que podem fazer qualquer coisa por seu próprio poder lançam-se, por ignorância própria, à destruição 3. Os dois principais problemas do autoconhecimento a. como adquirimos autoconhecimento? (1) o julgamento carnal¹ sugere que o homem pode conhecer a si mesmo muito bem, pode ousadamente declarar guerra contra os vícios e alcançar uma boa vida por seu próprio esforço (2) Mas, se o parâmetro do julgamento divino for empregado, o homem fica esvaziado de autoconfiança, levado ao completo desânimo e impotência (3) contudo, Deus assim nos dirige para meditarmos sobre a nossa nobreza original, e assim nos desperta para ansiarmos o reino de Deus b. as duas partes do autoconhecimento de Deus; considerar: (1) o propósito para o qual ele foi criado e dotado: meditação sobre a adoração divina e a vida futura (i. e., a natureza do seu dever) (2) sua própria carência de habilidades: confusão (a dimensão de sua capacidade de executar esse dever) O pecado de Adão implicou a perda dos dons originais do homem e a ruína de toda a raça humana [4-7] 4. A história da Queda nos mostra o que é o pecado (Gn 3): infidelidade a. que tipo de pecado, na deserção de Adão, acendeu a vingança de Deus contra toda a humanidade? (1) é pueril chamá-lo de intemperança glutona, pois toda espécie de frutos abundava para o deleite de Adão (2) a recomendação de comer o fruto da árvore da vida e a proibição do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal foi um teste da fé de Adão (3) daí que, como Agostinho sugere, foi o orgulho que deu início a todos os males b. qual foi a natureza da tentação de Adão? (1) a desobediência foi princípio da Queda (cf. Rm 5:19), ocasionada: (a) pelas lisonjas de Satanás (b) pelo próprio desprezo do homem pela verdade: irreverência para com a Palavra de Deus (2) a infidelidade foi a raiz da Queda (3) isso levou à ambição e ao orgulho, aliado à ingratidão (em relação à grande generosidade de Deus): apostasia (4) a ambição levou à desobediência obstinada — os homens lançaram fora o temor de Deus e seguiram seus próprios desejos c. síntese: Adão jamais teria ousado se opor à autoridade de Deus, a menos que ele tivesse desacreditado da Palavra de Deus 5. O primeiro pecado como pecado original a. a presença da maldição por todo o mundo, do contraste entre o que os homens são e o que foram criados para ser, é o fundamento para inferir que a punição do pecado de Adão se estende a toda sua descendência b. pecado original = a depravação da natureza anteriormente boa e pura c. posição dos pais da igreja em relação ao pecado original: (1) os primeiros pais lidaram com isso de forma obscura porque a ideia de que o pecado de um foi feito pecado comum de todos não é a visão usual (2) Pelágio e Celéstio negaram despudoradamente o pecado original, mas Agostinho (e outros) se empenharam em mostrar que nós somos corrompidos não por impiedade adquirida, mas por carregarmos um defeito inato desde o ventre de nossas mães (3) Salmos 51.5 como texto-prova: essa confissão não é exclusiva de Davi; portanto, a sina comum da humanidade está exemplificada nele d. síntese: descendentes da semente impura, somos todos nascidos infectados pelo contágio do pecado 6. O pecado original não se baseia em imitação a. o contraste Adão/Cristo estabelecido em Romanos 5.12-17 é a base para a crença no pecado original por propagação (não por imitação, como defende Pelágio) e na justiça adquirida pela transmissão de Cristo b. O propósito de Paulo, em 1Coríntios, é reforçar a fé dos santos na ressurreição: a vida perdida em Adão é recuperada em Cristo (1Co 15.22) c. “Nós morremos em Adão” deve ser interpretado pela analogia do contágio [d. tudo isso para exaltar o nosso novo nascimento em Cristo] 7. A transmissão do pecado de uma geração para outra a. nossa preocupação deve ser com os dons confiados a Adão e perdidos na Queda, não com a fonte da alma humana b. os dons foram dados não a um homem, mas atribuídos ao todo da raça humana; de forma que, quando foram tomados de um homem, foram retirados de todos c. metáforas (1) raízes podres produzem ramos e galhos podres (2) o fluxo de contágio não avança pela natureza enquanto originalmente criada, mas enquanto posteriormente corrompida d. os filhos não descendem da regeneração espiritual de seus pais, mas de sua geração carnal (Agostinho vs.pelagianos) O pecado original definido como depravação da natureza, o qual merece punição, mas que não parte da natureza enquanto criada [8-11] 8. A natureza do pecado original a. definição: “o pecado original é uma depravação e corrupção hereditária da nossa natureza, difundida em todas as partes da alma, que nos torna, primeiramente, sujeitos à ira de Deus e, então, produz em nós as ‘obras da carne’” b. duas considerações: (1) somos tão viciados e deturpados em cada parte de nossa natureza que estamos justamente condenados e culpados diante de Deus: todos, até mesmo crianças, são culpados por seu próprio pecado, não pelos dos outros (2) essa perversidade nunca acaba em nós, mas produz novos frutos continuamente (a) não é uma mera ausência de justiça original, mas a presença de uma potência ativa e um poder para o mal (b) não é mera concupiscência de uma parte — o todo do homem é maculado 9. O pecado subverte todo o homem a. todas as partes da alma, bem como as do corpo, são possuídas pelo pecado (Paulo) b. descrições escriturísticas do pecado original em termos de renovação (1) todo o terceiro capítulo de Romanos (2) Efésios 4.23 (3) Romanos 12.2; 8.7; 8.6 10. O pecado não é nossa natureza, mas seu desarranjo a. nosso pecado não é reflexo da manufatura de Deus; novamente faz-se distinção entre a natureza enquanto criada e a natureza enquanto corrompida b. que ninguém resmungue que Deus poderia ter melhor arranjado ao prevenir a Queda de Adão: o segredo da predestinação é a chave (veja 3.21-24, a seguir) c. nossa própria depravação da natureza, e não o autor da natureza, deve ser responsabilizada pela nossa ruína: o homem é responsável 11. Corrupção “natural” da “natureza” criada por Deus a. nosso uso do termo “natural” refere-se, aqui, à natureza corrompida, não a uma propriedade substancial da natureza original, e é usado para descartar a má conduta, em vez do direito hereditário, como causa da corrupção b. esse uso do termo “natureza” nos permite (1) usar frases como “naturalmente abominável a Deus” e “naturalmente depravado e defeituoso” (2) negar a ficção maniqueísta dos dois criadores (que eles inventaram para evitar atribuir a causa do mal ao Deus justo) CAPÍTULO 2 O homem agora está privado da liberdade de escolha e acorrentado a uma servidão miserável 1. Introdução e método a. perigos do orgulho e da confiança descarada b. deve-se glorificar a Deus em humildade Opinião sobre “livre-arbítrio” dada pelos filósofos e teólogos [2-9] 2. Os filósofos confiam no poder do entendimento 3. Apesar de tudo, os filósofos afirmam a liberdade da vontade 4. As visões dos escritores eclesiásticos em geral e em particular a. geralmente demonstram menos clareza, mas tendem a aceitar o livre-arbítrio b. definições de livre-arbítrio por: (1) Orígenes (2) Agostinho (3) Bernardo (4) Anselmo (5) Pedro Lombardo (6) Tomás de Aquino 5. Distinções patrísticas e escolásticas entre liberdade da vontade em questões temporais e espirituais a. distinção patrística das esferas da liberdade humana e graça divina (1) as “coisas intermediárias”, não pertencentes ao reino de Deus, entram debaixo do livre juízo do homem (2) a justiça verdadeira — referida pelos pais [da igreja] à graça especial de Deus e regeneração espiritual b. três tipos de vontade (Próspero de Aquitânia, Calling of the Gentiles [O chamado dos gentios]) (1) sensitiva dádivas livres do homem (2) psíquica (3) espiritual — obra do Espírito Santo no homem c. isso não é uma refutação, mas uma avaliação das opiniões dos pais da igreja (1) eles estão preocupados, principalmente, com a relação da vontade com a obediência à lei divina (2) nós, porém, não podemos negligenciar sua importância para ações civis ou externas d. a distinção escolástica dos tipos de liberdade [Lombardo] (1) da necessidade — ainda habita no homem (2) do pecado perdidos por meio do pecado (3) da miséria 6. Distinções equívocadas dos escolásticos a. todos concordam (exceto os socinianos, que dizem que a graça é igualmente e indiscriminadamente distribuída) que o livre-arbítrio não bastará para habilitar o homem a fazer boas obras, a menos que ele seja auxiliado por uma graça especial b. mas o homem foi totalmente destituído de todo o poder de fazer o bem ou ele ainda tem algum parco poder? (1) Agostinho diz que o homem é totalmente destituído (2) os primeiros escolásticos (Bernardo, Lombardo, Fulgêncio) pensam estar seguindo Agostinho quando sugerem que, uma vez que o homem receba a graça inicial, sua livre aceitação dela é meritória (segundo o Concílio de Orange) (3) os escolásticos posteriores (Occam, Biel, os sorbonistas) estão ainda mais distantes do pensamento de Agostinho 7. Que o homem seja necessariamente um pecador, mas sem coerção, não fundamenta uma doutrina de livre-arbítrio a. é errado atribuir à disposição do homem para pecar o rótulo vultuoso de “livre-arbítrio” b. a maioria dos modernos, seja pessoas comuns ou teólogos eruditos, negligenciam a interpretação desse termo pelos escritores antigos e, amparando- se em seu significado etimológico [in verbi etymon], culminam em uma desastrosa autoconfiança 8. Agostinho afirma que a vontade é “cativa” a. Agostinho emprega o termo liberum arbitrium [livre-arbítrio] amplamente, mas geralmente para dois propósitos: (1) para enfatizar o pecado inescusável do homem (2) para reforçar o caráter vazio e negativo da “liberdade” do homem ou de sua emancipação da justiça b. seria preferível abolir o termo e, então, libertar a igreja de uma fonte de contenda 9. Inconsistência de escritores eclesiásticos sobre o livre-arbítrio a. ao apontarmos o tratamento ambíguo do livre-arbítrio por todos os escritores eclesiásticos, à exceção de Agostinho, alertamos o povo de Deus a não depender da opinião dos homens nesse assunto b. entretanto, até mesmo esses autores enalteceram o livre-arbítrio com este propósito: abandonar a confiança em sua própria virtude e apegar-se no poder reside em Deus somente CONDIÇÃO ATUAL DO ENTENDIMENTO E DA VONTADE DO HOMEM [10-27] Devemos abandonar toda autoafirmação [10-11] 10. Condição atual do entendimento e da vontade do homem a. o autoconhecimento se baseia na consciência de nossa impotência; o mais ínfimo crédito concedido ao esforço de alguém impugna a honra de Deus e nos expõe, como nossos primeiros pais, às intenções do Diabo b. a Escritura repetidamente nos humilha com o propósito de despojar nossa confiança, por menor que seja, em nossa própria força (exemplos da própria Escritura) 11. A verdadeira humildade dá honra somente a Deus a. ambos, Crisóstomo e Agostinho, enfatizam a humildade como uma virtude cristã fundamental b. Agostinho particularmente insiste na completa submissão, não como mera abstenção do orgulho e arrogância [exemplos] Corrupção do entendimento [12-25] entendimento de coisas terrenas [12-17] 12. Embora dons sobrenaturais sejam destruídos e dons naturais corrompidos, resta razão o bastante para diferenciar o homem dos animais ferozes a. dons sobrenaturais suprimidos pelo pecado (1) incluem a fé, o amor a Deus, a caridade para com o próximo, o zelo por santidade e a justiça (2) esses são restaurados por Cristo em nós por meio da graça da regeneração b. dons naturais (razão, vontade) não são suprimidos, mas corrompidos pelo pecado (1) se a razão fosse completamente suprimida, o homem seria indistinguível dos animais ferozes (a) portanto, algumas centelhas de razão ainda reluzem (b) elas, porém, são ineficazes porque estão encobertas por um manto de densa ignorância (2) a vontade também não some completamente, uma vez que está ligada à nossa natureza pecaminosa e, por isso, não é manifestada da forma correta c. introdução à discussão da condição do entendimento humano sob o pecado (cf. 1.15.7; (a) entendimento, (b) vontade) (1) é errado condenar o entendimento humano por sua cegueira perpétua: contrário à Palavra de Deus e à experiência (2) o entendimento humano ainda é capaz de percepçãoe anseia pela verdade, mas mostra sua ineficácia ao investigar ninharias — como observam os filósofos, mas não o sabem explicar 13. A ordem social a. as capacidades de entendimento variam conforme o objeto contemplado: distinção entre objetos terrenos e “coisas” celestes terrenos (1) não dizem respeito a Deus ou seu reino, à verdadeira justiça ou à vida futura abençoada (2) mas se relacionam com a vida presente ou (1) governo (2) administração do lar (3) habilidades mecânicas (4) artes liberais(1) conhecimento de Deus e de sua vontade (2) a regra pela qual submetemos nossas vidas à vontade de Deus b. o caráter inato e universal da lei enquanto base da organização humana: equidade (epiekeia): alguma necessidade de ordem política foi incutida em todos os homens c. o fato de que alguma semente de ordem política foi incutida em todos os homens não é refutado por criminosos e outros gêneros de foras da lei, que rejeitam a lei por causa de seus desejos, e não de seu entendimento; suas agitações simplesmente provam a fraqueza da mente humana 14. As artes — liberal e manual a. conquanto as artes não sejam compartilhadas em igual medida por todos os homens, quase todos têm algum talento em alguma arte: isso é evidência da capacidade persistente do entendimento humano (após a Queda) b. a criação ocasional de parvos por Deus demonstra (pela sua ausência) que a capacidade nas artes é um dom de Deus c. o homem tem, portanto, o princípio das artes congênito em si e a capacidade inerente para aperfeiçoar-se nas artes (contra a doutrina da reminiscência de Platão) 15. As ciências a. toda ciência humana vem do Espírito de Deus, a única fonte da verdade b. daí que não devemos depreciar nenhuma verdade humana, do contrário condenamos o Espírito, sua fonte última, e assim somos culpados de ingratidão a Deus c. Deus, portanto, deixou alguns dons com os homens mesmo depois que sua natureza foi despojada de sua verdadeira bondade 16. A competência humana na arte e na ciência também derivam do Espírito de Deus a. o Espírito de Deus distribui dons naturais, para a humanidade, para o bem comum — para todos, justos e injustos; isso deve ser diferenciado, entretanto, do espírito de santificação b. daí que podemos ser tutelados nas artes úteis e nas ciências mesmo pelos ímpios, já que eles receberam seus dons de Deus c. Agostinho ensina — e os escolásticos concordam — que os dons gratuitos foram suprimidos depois da Queda, enquanto os restantes, os naturais, foram corrompidos: isso não significa que os dons eram degenerados em si mesmos, mas que para homens degenerados, eles não eram mais puros 17. Síntese a. por sua graça geral (comum), Deus limita a corrupção da natureza b. por uma graça especial, ele dota cada homem segundo o seu chamado entendimento das coisas celestiais [18-25] α O discernimento espiritual fica totalmente perdido enquanto não somos regenerados (itens 18-21) 18. Os limites do nosso entendimento a respeito do reino de Deus e discernimento espiritual a. o discernimento espiritual consiste em conhecer (1) Deus (2) sua benevolência paternal em nosso favor (nossa salvação) (3) como moldar nossa vida de acordo com a regra de sua lei (itens 22-25) b. filósofos têm vislumbres o suficiente de Deus para refreá-los de esconder sua impiedade sob a ignorância, mas fora esse lampejo sutil, seus livros estão repletos de confusões e mentiras 19. A cegueira espiritual do homem demonstrada em João 1.4-5 a. mas nossa opinião enfatuada desse lampejo sutil nos torna cegos b. João, no prólogo de seu evangelho, nos ensina que não temos absolutamente nenhum entendimento espiritual, a menos que sejamos iluminados pelo Espírito de Deus 20. O conhecimento do homem sobre Deus é da própria obra de Deus, por meio da iluminação de seu Espírito; testemunho da inabilidade do homem: a. João Batista e Moisés b. o próprio Cristo c. Paulo (o mais claro de todos) 21. Sem a luz do Espírito, tudo é escuridão a. testemunhos de Paulo sobre o esclarecimento pelo Espírito b. a luz do sol e o ensino do próprio Jesus não estão disponíveis aos homens à parte do Espírito c. “aquele que atribui qualquer conhecimento adicional a si mesmo é tanto mais cego, porque não reconhece sua própria cegueira” β O pecado é distinto da ignorância ( vs . Platão), mas pode ser ocasionado pelo engano (itens 22-25) 22. A evidência que o homem possui sobre a vontade de Deus o torna inescusável, mas não lhe assegura nenhum conhecimento certo a. de acordo com Paulo, o que a lei de Moisés faz pelos judeus, a lei natural (consciência) faz pelos gentios b. definição de lei natural: “lei natural é aquela percepção da consciência que distingue suficientemente entre o justo e o injusto, e que despoja os homens das desculpas de ignorância, ao passo que os prova culpados por seu próprio testemunho” c. a noção errônea de Platão de que o pecado devido à ignorância emerge da autocomplacência do homem: quando ele comete o mal, prontamente afasta de sua mente, tanto quanto pode, o sentimento de pecado 23. O juízo do bem e do mal, conquanto se dê arbitrariamente, é obscuro a. como mostra Temístio, o homem é bom nas definições gerais, mas medíocre na aplicação a casos específicos: um homem pode considerar maus o assassinato ou o adultério, exceto quando ele próprio vislumbra cometer qualquer um desses crimes b. às vezes, contudo, contra essa regra geral, o homem deliberadamente e conscientemente se precipita na impiedade c. essa tendência é proveitosamente explicada pela distinção de Aristóteles entre ἀκράτεια (incontinência) e ἀκολασία (intemperança) (1) na incontinência, a paixão (παθή) cega a mente para o mal e seus delitos, mas quando ela retrocede, o arrependimento retorna (2) na intemperança, há persistência teimosa no pecado 24. O conhecimento humano falha completamente no que tange à primeira tábua da lei; no que tange à segunda, falha de forma crítica a. nosso poder para discriminar entre o justo e o injusto só é suficiente para nos prevenir de esquivar da verdade e usar da ignorância como nossa desculpa b. nossa cegueira é demonstrada se medimos nossa razão pela lei de Deus, o padrão da perfeita justiça (1) primeira tábua: como poderíamos ter qualquer noção da adoração adequada a Deus a partir de nossas próprias percepções naturais? (2) segunda tábua: aqui nós vemos de forma um pouco mais clara, mas ainda imperfeitamente, por causa de nossa preocupação com a preservação da sociedade civil; os filósofos também não perscrutam para além dos vícios exteriores, desejos perversos adentro 25. Todos os dias precisamos do Espírito Santo para que não percamos nosso caminho a. assim como todos os pecados não podem ser atribuídos à ignorância, assim também nem todos os pecados são apenas o resultado da maldade e depravação b. testemunho de Paulo, Davi e Agostinho sobre a inabilidade do homem de, desassistido, entender os mandamentos de Deus corretamente (1) Paulo nega que até mesmo o agir adequado quanto a qualquer coisa possa adentrar nossa mente (2) Davi repetidamente pede a Deus por um novo entendimento da lei (3) Agostinho equipara a graça da iluminação pelo Espírito à luz do sol — e igualmente necessária “Corrupção da vontade” — a inabilidade do homem para desejar o bem [26-27] 26. O instinto natural que trata o “bem” e o “aceitável” da mesma forma não tem nada a ver com a liberdade da vontade e não é prova desta a. liberdade de decisão [moral] depende da vontade, e não do entendimento b. o instinto natural de buscar o seu bem-estar (“bem”) é um impulso racional que o homem compartilha com os animais c. nós desejamos seguir o bem, nossa eterna bem-aventurança, mas não o fazemos nem o logramos à parte do impulso do Espírito Santo 27. Nossa vontade não pode desejar o bem sem o Espírito Santo a. a visão de que os homens têm impulsos inatos sutis para o bem, mas carecem de potencialização do Espírito Santo, é baseada em uma falsa leitura, por parte de alguns dos primeiros pais [da igreja] (sobre os quaisse ergueram alguns dos escolásticos ulteriores), da descrição de Paulo do bellum intestinum [guerra interior] (Rm 7.18ss) b. esse versículo não se refere à natureza humana, mas à natureza humana regenerada, como Agostinho veio a compreender c. Agostinho interpreta Paulo, Moisés e Davi a esse respeito: “nada nos pertence, senão o pecado” CAPÍTULO 3 Apenas coisas execráveis provêm da natureza corrupta do homem A natureza corrupta do homem é tal que requer uma total renovação de sua mente e vontade [1-5] 1. O homem todo é carne a. em João 3.6 e Romanos 8.6-7, há um contraste absoluto entre espírito e carne (1) “carne” significa o homem plenamente natural e não regenerado (2) “espírito” significa a alma totalmente renovada pelo Espírito Santo b. esse argumento é posto ainda mais claramente em Efésios 4.17-23, em que Paulo contrasta a cegueira e maldades da degeneração com a luz da regeneração c. o entendimento do homem não renovado por Deus produz apenas pensamentos estúpidos, frívolos, insanos e perversos 2. Romanos 3 como testemunho da corrupção do homem a. essa passagem [usando excertos dos Salmos] não descreve a moralidade depravada de uma época ou de indivíduos específicos, mas acusa a corrupção invariável, por natureza, e não por mero costume, de todos os filhos de Adão b. exegese da passagem (1) Paulo despoja o homem (em sua condição apóstata) da justiça e, então, do entendimento (2) todos caíram, tornaram-se corruptos e incapazes de fazer o bem (3) enumera seus atos vergonhosos, nem todos manifestos em cada [um], mas latente em todas as pessoas (4) a semelhança com o corpo enfermo, embora este ainda tenha algum vigor de vida, enquanto a alma está totalmente destituída de todo bem 3. A graça de Deus refreia, às vezes, o que não purifica: o problema do virtuoso não regenerado a. os virtuosos de todas as épocas parecem nos alertar contra ajuizar a natureza do homem enquanto totalmente corrompida b. eles, porém, apenas ilustram um outro operar da graça de Deus — não para purificar, mas para, ao menos, refrear internamente c. a graça restritiva de Deus é necessária, em meio à total depravação dos homens, para tornar possíveis a sociedade e a vida humana; modalidades: (1) restrição por vergonha (2) restrição por medo da lei (3) restrição porque a honestidade é considerada proveitosa (4) outros erguem-se acima da massa ordinária para que, por sua excelência, possam manter os demais obedientes a eles d. síntese: Deus, por sua providência, refreia a perversidade da natureza para que não se irrompa em ato; mas ele não a purifica internamente 4. A retidão é dom de Deus; mas a natureza do homem permanece corrompida a. o problema da retidão pagã: Camilo vs. Catilina (1) ou Camilo = Catilina, ou (2) o homem natural tem alguma capacidade de cultivar virtude b. solução: essas “virtudes naturais” são dádivas especiais de Deus, outorgadas em alguma medida e variavelmente sobre homens ímpios em tudo o mais c. síntese: quanto às virtudes que nos enganam com seus espetáculos vãos, elas terão aplauso na assembleia política e no trato regular entre os homens; mas perante o trono de juízo celestial, eles não serão de nenhum valor para alcançar a justiça 5. O homem peca necessariamente, mas sem coerção a. o homem é impotente para se dirigir por si mesmo em direção ao bem: a Escritura atribui esse movimento inteiramente à graça de Deus b. no estado decaído do homem, a vontade permanece desejosa por pecar (1) desejar: (humano) (2) desejar o mal: (da natureza corrupta) (3) desejar o bem: (da graça) c. distinção entre necessidade e coerção (1) Deus é incapaz de fazer o mal, não por coerção, mas devido à sua bondade sem limites: o livre-arbítrio de Deus não é embaraçado ou comprometido pelo fato de que ele deve fazer o bem (2) o Diabo pode fazer apenas o mal, mas ele peca por vontade própria (3) o homem, embora sujeito à necessidade do pecar, ainda assim peca voluntariamente (4) homem: liberdade → pecado → corrupção (permutando a liberdade em necessidade) d. objetivo dessa distinção: na Queda, o homem pecou voluntária e desejosamente, não sob coerção externa; sua natureza já depravada pode agora ser movida e impelida somente para o mal, i.e., está sujeita agora à necessidade do pecado e. testemunho de Bernardo [de Claraval] acerca da servidão voluntária do homem Conversão da vontade é o efeito da graça divina internamente outorgada [6-14] 6. A inabilidade do homem para fazer o bem se manifesta acima de tudo na obra da redenção que Deus realiza totalmente sozinho a. o método de Deus para suprir o que nos falta, corrigir e tratar nossa natureza corrompida (1) inicia-se ao instigar amor, desejo e zelo pela justiça em nosso coração (ou por meio do curvar, moldar e direcionar nosso coração à justiça) (2) completa-se ao nos confirmar na perseverança b. exegese de Ezequiel 36.26: “Eu removerei o coração de pedra do seu corpo e lhe darei um coração de carne” (1) essa comparação mostra, na verdade, que nada de bom pode ser extraído de nosso coração; o que se passa [de bom] vem totalmente de Deus (2) “criados novamente” não significa que a vontade começa agora a existir, mas que é permutada de uma má vontade para uma boa c. passagens corroborantes de Paulo e de Salmos ensinam que: (1) Deus é o autor da vida espiritual do começo ao fim (2) nem o mínimo de crédito nos é dado, já que nossa salvação, dom gratuito de Deus, vem da segunda criação (antítese: Adão vs. Cristo) (3) todas as partes das boas obras, desde seu primeiro impulso, pertencem a Deus (4) o homem nada tem do que se orgulhar, pois a salvação toda provém de Deus 7. Não se trata de um caso da “cooperação” do crente na graça; a vontade é primeiramente exercida por meio da graça a. ensino errôneo da cooperação: que a vontade, tendo sido preparada pelo poder de Deus, tem, então, sua própria parte na ação (1) [Pedro] Lombardo, aqui, está distorcendo o uso de Agostinho da pedissequa, a vontade humana enquanto “servente” da graça (2) Crisóstomo erroneamente afirma: “Nem a graça sem a vontade, nem a vontade sem a graça, pode fazer qualquer coisa” b. Agostinho defende que a graça é anterior a todo mérito 8. A Escritura atribui a Deus tudo o que é para o nosso proveito a. método: selecionar sem violentar alguns testemunhos claros da Escritura para resumir o assunto, mas também com o aval de Agostinho (“a quem os santos, por amplo consenso, investem justamente da maior autoridade”) b. Deus (a única fonte do bem) c. nossa conversão é a criação de um novo espírito e um novo coração; nossa vontade reformada, conquanto seja boa, provém de Deus, não de nós mesmos 9. As orações na Escritura mostram, especialmente, como o princípio, a continuação e o fim da nossa bem-aventurança provém de Deus somente a. a oração de Salomão e as de Davi, nos Salmos, mostram: (1) a antítese entre o movimento perverso do coração e a correção de Deus (2) a depravação total do homem intocado pela graça (3) que a pureza de coração, uma vez recebida, é plenamente uma dádiva, uma “criação” de Deus b. João e Paulo, no Novo Testamento, também afirmam que é somente Deus que age em nós para fazer o bem c. o dom de Deus inclui duas partes (1) a vontade para fazer o bem (2) o poder para realizá-lo (para sobrepujar o fardo da carne que pesa sobre a vontade) 10. A atividade de Deus não produz uma possibilidade que podemos exaurir, mas uma realidade à qual não podemos acrescentar a. Crisóstomo falsamente afirma: “Aquele que Ele atrai, deseja ser atraído”: essa visão errada foi por muito tempo defendida por muitos na igreja b. antes: o Senhor, por seu Espírito, direciona, dobra e governa nosso coração, e reina neles como sua própria posse c. Deus não julga todos, indiscriminadamente, dignos de sua graça (como alguns escolásticos defendem) (1) essa ideia é que, uma vez que a graça é proferida por Deus, os homens são livres para aceitá-la ou rejeitá-la (2) antes, seguindo Agostinho, devemos sustentar que os eleitos são tambémregenerados por meio do Espírito Santo, movidos e governados por sua direção INÍCIO PELAGIANA liberdade incondicional da verdade ESFORÇO HUMANO (mais graça auxiliadora, porém não necessária) SEMIPELAGIANA passo inicial tomado por liberdade não assistida TUDO O MAIS É DOM DE DEUS AGOSTINIANA passo inicial pela graça preveniente TUDO É DOM DE DEUS predestinação absoluta CONCÍLIO DE ORANGE 529 Deus habilita o homem para fazer o bem que ele faz OU: todos, entretanto, são capazes, depois de terem recebido graça por meio do batismo, com a cooperação de Deus, de alcançar o que é necessário para a salvação de suas almas (sinergismo) 11. A perseverança é obra de Deus, exclusivamente; não é uma recompensa, nem um complemento ao nosso ato individual a. a noção errônea de que a perseverança é distribuída de acordo com o mérito dos homens, à medida que cada um se mostre receptivo à primeira graça, contém dois erros (1) que a nossa gratidão pela primeira graça e nosso uso lícito dela são recompensados por dádivas subsequentes (2) que a graça não opera em nós por si mesma, mas apenas como uma cooperadora conosco [cooperatrix] b. o primeiro ponto sugere dois alertas (1) não afirmar que o uso lícito da primeira graça é recompensado por graças posteriores, como se o homem, por seu próprio esforço, tornasse efetiva a graça de Deus, ou (2) pensar sobre a recompensa de tal forma a deixar de considerá-la livre graça de Deus c. o segundo ponto usa a distinção trivial entre graça “operadora” e “cooperadora” (1) essa mesma distinção é usada por Agostinho, mas não para dividir a ação entre Deus e o homem; antes, para enfatizar a multiplicação das graças (2) a boa vontade do homem é dom de Deus, concedida livremente por Deus 12. O homem não pode atribuir a si próprio nem mesmo uma única boa obra independentemente da graça de Deus a. falsa interpretação de 1Coríntios 15.10 — eles interpretam a inserção da frase de Paulo, “não eu, mas a graça de Deus que estava comigo”, como Paulo corrigindo a si mesmo, a fim de ensinar que ele era um parceiro na obra da graça do Senhor: até mesmo bons homens em todo o resto têm tropeçado nesse obstáculo! b. a ambiguidade da expressão é realçada pela tradução em latim, que perde a força do artigo grego; a tradução correta é que a graça presente com ele era a causa de todas as coisas c. esse é o ensino de Agostinho e Bernardo 13. Agostinho não reconhece, também, nenhuma atividade independente da vontade humana a. os sorbonistas alegam toda ambiguidade contra nós, mas eles estão apenas abraçando Pelágio contra Agostinho b. Agostinho: (1) Adão: posse, sed non velle [poder, não querer] nós: posse velle [querer e poder] (após a graça) (2) três estágios: (a) posse non peccare [capaz de não pecar] (antes da Queda) (b) non posse non peccare [incapaz de não pecar] (após a Queda) (c) non posse peccare [incapaz de pecar] (na graça) c. resumindo, nas palavras do próprio Agostinho: “somente a graça produz toda boa obra em nós” 14. Agostinho não elimina a vontade do homem, mas a torna totalmente dependente da graça a. a graça age internamente, transformando a vontade má em boa; ela não age externamente, arrancando a vontade má e substituindo-a por outra, que é boa b. essa graça não é conferida a todos os homens, mas quando concedida, é pela livre graça, e não pelos méritos humanos c. a graça subsequente também é conferida por Deus, e não concedida porque os homens meritoriamente aceitaram a primeira graça d. a vontade humana não alcança a graça pela liberdade, mas obtém a liberdade pela graça e. “livre-arbítrio”: somente pela graça se pode ser convertido a Deus e, qualquer coisa que se possa fazer, se consegue somente por meio da graça CAPÍTULO 4 Como Deus opera no coração do homem O homem está sob o controle de Satanás: a Escritura, porém, mostra Deus fazendo uso de Satanás no endurecimento do coração do réprobo [1-5] 1. O homem permanece sob o poder do Diabo — e voluntariamente, na verdade a. sumário da discussão (1) prova de que o homem está de tal forma aprisionado pelo jugo do pecado que ele não pode, por sua própria natureza, almejar ou pelejar em direção ao bem (2) por uma distinção entre coerção e necessidade, demonstra-se que o homem peca tanto necessariamente quanto voluntariamente b. questões que permanecem (1) mas qual é a parte do Diabo e a parte do homem no ato do pecado? (2) Deus tem algum papel nas obras más atribuídas a ele, em parte, pela Escritura? c. a alegoria [pseudo]agostiniana do cavalo (homem) com dois cavaleiros (Deus ou o Diabo). Interpretação: (1) a vontade, aprisionada pelas armadilhas de Satanás, necessariamente se submete, em obediência, à sua direção (2) aqueles que o Senhor não torna dignos, ele justamente abandona à ação de Satanás 2. Deus, Satanás e homem: agentes no mesmo evento [o ataque dos caldeus a Jó (Jó 1.17)] a. a coisa toda parte de Satanás b. mas Jó reconhece ali a obra do Senhor c. “divisão de trabalho” [(1) não estamos lidando, aqui, com a ação universal de Deus que sustenta todas as criaturas e lhes confere energia para tudo que eles fazem] (2) ação especial que aparece em cada feito particular (a) Satanás é instrumento da ira de Deus, do decreto de Deus para executar seu justo juízo [finalidade] (b) Satanás instiga os caldeus (que lhes foram entregues por Deus para executar essa tarefa) [modo] (c) os caldeus executam a má ação 3. O que significa “dureza”? a. princípio exegético na leitura dos pais da igreja: os pais às vezes se abstêm da confissão clara da verdade para evitar que os ímpios falem de forma irreverente das obras de Deus (1) isso é aceitável se nos apegarmos à Escritura (2) Agostinho às vezes demonstra isso ao atribuir o “endurecer” e “obscurecer” a um simples anteconhecimento, e não à ação de Deus; mas em Contra Julianum [Contra Juliano], Agostinho claramente afirma que os pecados acontecem pelo poder de Deus como uma punição por pecados cometidos previamente b. são duas as formas pelas quais Deus “endurece” (1) ao retirar sua luz, permanecem somente trevas e cegueira (2) ao destinar ativamente os propósitos e vontades dos homens, Deus executa seus juízos por meio de Satanás, enquanto administrador de sua ira 4. Exemplos escriturísticos de como Deus lida com os ímpios a. primeiro modo: Jó 12.20; 12.24; Isaías 63.17 b. segundo modo (1) o endurecimento do coração do faraó (2) a resistência das tribos autóctones à invasão de Canaã pelos israelitas Síntese de Agostinho: “O fato de que homens pecam é sua própria obra; que eles, ao pecarem, façam isso ou aquilo, provém do poder de Deus, que divide as trevas como lhe apraz” 5. Satanás também deve servir a Deus a. “o espírito mau do Senhor” (1Sm 16.14; 18.10; 19.9]) não o Espírito Santo, mas um “espírito de Deus”, porque responde à sua vontade e poder e age como instrumento de Deus, e não como um autor próprio b. como Satanás governa um homem réprobo e como o Senhor age em ambos (1) Deus fabrica esses instrumentos perversos, os quais ele mantém debaixo de sua mão e utiliza-os, quando lhe apraz, para servir à sua justiça b. sendo maus, eles dão à luz, por suas ações, uma impiedade concebida em sua natureza depravada A providência de Deus sobrepuja a vontade dos homens em questões externas [6-8] 6. Não estamos por conta própria em ações que não são, em si mesmas, boas ou más a. e quanto às ações humanas no reino físico em contraste com o espiritual — o homem tem liberdade para agir aqui? b. alguns [os luteranos] concedem liberdade ao homem no reino civil — isso não é tão relevante quanto admitir a impotência do homem para justificar a si mesmo: este é o principal ponto necessário que se conheça para a salvação c. mas até mesmo aqui, é a graça especial de Deus que opera em nosso benefício ou nos dirige para longe do perigo d. numerosos exemplos escriturísticos demonstram que a mente dos homens estava mais submetidas ao Senhor do que governada por si mesma (1) a benção de Jacó sobre José, quando ele o julgouum pagão no Egito (2) Saul impelido à guerra pelo Espírito de Deus (3) Absalão dissuadido do conselho de Aitofel (4) Roboão persuadido pelo conselho dos jovens (5) a confissão de Raabe, de que era Deus que fazia as nações tremerem ante à chegada de Israel etc. 7. Em cada caso, o domínio de Deus permanece acima da nossa liberdade a. mas esses não seriam exemplos especiais, a partir dos quais não se pode generalizar? b. não, até mesmo nossa própria experiência diária mostra que nossa mente é dirigida (inclusive em coisas externas) pela incitação de Deus, e não pela nossa própria liberdade c. esta é a chave para interpretar Provérbios 20.12; 21.1 (1) de todas as vontades, a vontade do rei deve ser aquela que menos se sujeita (2) Mas até mesmo a vontade do rei está na mão de Deus (3) assim, nossas vontades também não estão isentas daquela condição d. Agostinho afirma que o poder de Deus (por meio de seu juízo secreto, porém justo) dirige todas as vontades humanas (1) para outorgar benefícios ou (2) para infligir juízos 8. A questão do “livre-arbítrio” não depende de conseguirmos realizar o que queremos, mas se conseguimos querer livremente a. a habilidade do homem de escolher livremente não depende do desenrolar das coisas ou do sucesso exterior b. não se está discutindo aqui o poder para se executar uma decisão, mas a liberdade de julgamento e da inclinação da vontade c. Atílio Régulo, o prisioneiro, não tem mais nem menos livre-arbítrio do que Augusto, o governante do mundo CAPÍTULO 5 Refutação das objeções comumente apresentadas em defesa do livre-arbítrio Respostas a argumentos a favor do livre-arbítrio baseados no senso comum [1-5] 1. Primeiro argumento: o pecado necessário² não é pecado; o pecado voluntário é evitável a. Pelágio usou esse argumento contra Agostinho; nós, porém, não apelamos simplesmente ao peso do nome de Agostinho b. o pecado não é menos pecado porque é necessário (1) o pecado não é necessário em virtude da Criação, mas, em virtude da Queda, o homem é aprisionado ao pecado (2) o Diabo peca necessariamente; porém voluntariamente (3) inversamente, a vontade dos anjos eleitos não pode rejeitar o bem, mas nem por isso deixa de ser vontade (4) Bernardo ensina que somos ainda mais miseráveis porque a necessidade é voluntária c. o pecado não é evitável porque é voluntário: afirmar o oposto é passar, erroneamente, de “voluntário” para “livre” 2. Segundo argumento: recompensa e punição perdem seu significado a menos que ambos, virtudes e vícios, procedam da livre escolha da vontade a. esse é o argumento de Aristóteles (1) também usado por Crisóstomo e Jerônimo (2) Jerônimo também cita a opinião de Pelágio: “se é a graça de Deus operando em nós, então é a graça, e não nós, que não trabalhamos, que será coroada” b. as punições são infligidas sobre nós justamente, já que a culpa do pecado deriva sua fonte de nós (i.e., os pecados são propriamente nossos; portanto, nós somos justamente punidos) c. é absurdo dizer que as recompensas da justiça dependem da bondade de Deus, e não dos nossos próprios méritos (1) Agostinho diz que os méritos derivam dos dons de Deus e, portanto, Deus coroa seus próprios dons (2) o apóstolo Paulo diz que os fiéis são coroados ou glorificados porque eles foram escolhidos, chamados e justificados pela misericórdia do Senhor, e não por seus próprios esforços (3) Deus recompensa as graças que ele outorga sobre nós como se elas fossem nossas, porque ele as faz nossas 3. Terceiro argumento: toda distinção entre bem e mal seria obliterada a. o argumento apresentado por (1) Crisóstomo: se escolher o bem ou mal não é uma faculdade da nossa vontade, aqueles que compartilham da mesma natureza devem ser todos maus ou todos bons (2) Próspero de Aquitânia: ninguém teria jamais abandonado a fé se a graça de Deus não o tivesse deixado em uma condição suscetível b. de alguma forma, eles se esqueceram de que (1) a eleição de Deus faz a distinção dos homens (2) o dom de Deus da perseverança é conferido a alguns, mas não a todos 4. Quarto argumento: toda exortação seria irrelevante, a menos que o pecador tivesse em si a capacidade de obedecer a. Agostinho enfrentou esse argumento e o respondeu em: (1) On rebuke and grace³: “Ó homem! Aprende por preceito o que deves fazer; aprende por reprimenda que é sua própria culpa que você não o tem; aprende por oração de onde podes receber o que desejas ter” (2) On the Spirit and the letter⁴: que Deus não mensura os preceitos de sua lei de acordo com as potencialidades humanas; antes, ele concede aos eleitos a capacidade de cumpri-los b. Cristo e o apóstolo estão do nosso lado (1) Cristo declara: “Sem mim, vocês não podem fazer nada”; não obstante, ele condena, castiga e exorta (2) Paulo se lança contra os coríntios por sua negligência no amor; contudo, ora para que o Senhor possa concedê-los amor c. Paulo aponta que o ensino, a exortação e a repreensão mudam de fato a mente d. Moisés e os profetas exortam, mas professam que os homens se tornam sábios somente pelo dom de Deus 5. O significado da exortação a. para os ímpios: (1) hoje, compele-os com o testemunho da consciência (2) no dia do juízo, torna-os inescusáveis b. para os fiéis (1) em conjunção com a obra interna do Espírito Santo, convence do pecado e (2) acende o desejo pelo bem Respostas a argumentos em favor do livre-arbítrio baseados na interpretação da lei, das promessas e das reprimendas da Escritura [6-11] 6. Os preceitos de Deus são “a medida de nossa força”? a. nossos adversários citam numerosos mandamentos de Deus a partir da Escritura e dizem que, ou Deus zomba de nós, ou exige somente o que está dentro da nossa capacidade b. a lei foi colocada acima de nós para nos mostrar claramente nossa própria fraqueza c. o testemunho de Paulo acerca da síntese da lei (1) o propósito e cumprimento da lei é o amor (2) Paulo ora para que o coração dos tessalonicenses abunde em amor (3) entretanto, ele admite plenamente que a lei ecoa em nossos ouvidos inócua, a menos que Deus inspire em nosso coração toda a síntese da lei 7. A lei aponta, em si, nosso caminho rumo à graça a. a Escritura claramente explica o uso múltiplo da lei b. aos mandamentos estão associadas promessas que proclamam que nosso sustento e, da mesma forma, toda nossa virtude, repousa no auxílio da graça divina c. como disse Agostinho: “Deus nos obriga a fazer o que não conseguimos para que saibamos que devemos buscar nele” 8. Os diversos tipos de mandamentos claramente mostram que, sem a graça, não podemos fazer nada (três classes; mencionadas primeiramente em 6) a. primeira classe: aqueles que exigem que o homem se converta a Deus (1) Deus, porém, testemunha por meio de Moisés, Ezequiel etc., que ela é realizada por ele mesmo (2) Agostinho testemunha: “O que Deus promete, não realizamos nós mesmos por escolha ou natureza; mas ele mesmo o faz por meio da graça” b. segunda classe: aqueles que simplesmente falam sobre a observância da lei; mas muitas passagens dizem que nossa justiça, santidade, piedade e pureza são dons de Deus c. terceira classe: aqueles que obrigam o homem a perseverar na graça de Deus; mas Paulo ora e dá graças porque Deus completa toda boa obra e propósito neles 9. A obra da conversão não é dividida entre Deus e o homem a. nossos adversários dizem (1) que nós façamos nosso melhor, e Deus favorecerá nossos frágeis esforços, e (2) que Zacarias 1.3 não se refere ao relacionamento de Deus conosco, mas ao testemunho material de sua disposição gentil em relação a nós 10. As promessas bíblicas pressupõem (segundo a visão de nossos adversários) a liberdade da vontade a. como no caso dos mandamentos de Deus, nossos adversários dizem que Deus zomba de nós quando nos convida a merecer suas bênçãos sabendo que somos impotentes b. eu nego isso e afirmo que as promessas pretendem (1) prevenir os ímpios de desfrutar de seus pecados, e (2) ajudar os mandamentos a acender o desejo por justiça nos fiéis 11. As repreensõesna Escritura, objetam eles ainda, perdem seu sentido se a vontade não for livre a. se a vontade não é livre, Deus é cruel em nos repreender por males de que não podemos escapar b. contudo, o pretexto da necessidade é uma defesa frágil e fútil; eles são culpados e não podem jogar a culpa sobre uma causa externa c. pecadores deveriam dar ouvidos a essas reprimendas e aprender a odiar seus pecados d. Daniel 9.4-19 é um exemplo de como as reprimendas servem aos santos e. uma coleção de exortações escriturísticas e passagens correspondentes demonstram que o poder necessário vem de Deus Respostas a argumentos baseados em passagens especiais e pontuais na Escritura [12-19] 12. Deuteronômio 30.11ss. a. se essas palavras se aplicam ao preceito básico, elas são importantes no caso presente b. no entanto, o apóstolo declara que Moisés falou acerca da promessa do evangelho c. uma pessoa obstinada pode alegar que Paulo distorceu a passagem d. em Deuteronômio 30.6, Moisés ensina que nosso coração deve ser circuncidado por Deus. Portanto, o poder está alojado no Espírito Santo, não no homem e. o testemunho de Paulo concorda com isso 13. Defende-se que a “espera” de Deus pela ação do homem pressupõe liberdade da vontade a. em Oseias 5.15, o Senhor diz: “Eu voltarei ao meu lugar até que pesem sobre seus corações de buscarem a minha face” (1) nossos adversários dizem que isso seria ridículo se os homens não fossem livres para inclinar suas vontades para algum lado (2) eles admitem que a graça de Deus é necessária para a conversão (3) entretanto, eles só consentem que a graça seja necessária de tal forma a reservar para o homem sua própria capacidade b. os que tais passagens significam? (1) a retirada de Deus significa a retirada de sua Palavra, na qual ele habitualmente revela sua presença (2) sua consideração do que os homens podem fazer significa que ele secretamente os prova para desensoberbecê-los (3) isso não implica nenhum poder de livre-arbítrio 14. Essas obras não são, então, “nossas”? a. nossos adversários argumentam que a Escritura chama as boas obras de “nossas”, e que b. nós não somos movidos por Deus como pedras; portanto, conquanto a graça de Deus tenha o protagonismo, nosso esforço tem um papel secundário c. o pão pelo qual suplicamos a Deus também é chamado de “nosso” d. a segunda objeção é descartada pela consideração da forma com que o Espírito age sobre os santos (1) Deus não nos move da mesma forma que nós jogamos uma pedra (2) “O querer é da natureza, mas o querer corretamente é da graça” 15. As “obras” são nossas pelo dom de Deus, mas são de Deus por sua incitação a. qualquer coisa boa na vontade provém da pura incitação do Espírito b. aquilo que Deus faz é chamado de “nosso” porque (1) Deus o faz em nós; não é o nosso próprio fazer (2) é a nossa mente, vontade e esmero que ele direciona 16. Gênesis 4.7b diz: “Seu desejo será contra ti e tu deves dominá-lo” a. nossos adversários dizem que o Senhor, aqui, prometeu a Caim que o poder do pecado não teria controle sobre sua mente se ele quisesse dominá-lo! b. a passagem foi mal-empregada c. contudo, pressupondo sua aplicação, essa passagem não prova a liberdade da vontade, pois trata-se (1) ou de um mandamento; caso em que já demonstramos que nenhuma implicação de liberdade se segue (2) ou de uma promessa; caso em que não há cumprimento 17. Romanos 9.16; 1Coríntios 3.9 a. já “que não depende daquele que deseja ou daquele que executa, mas de Deus que demonstra misericórdia”, nossos adversários dizem que (1) existe algum desejo e alguma execução (2) o significado de Paulo, no entanto, é mais simples: somente a misericórdia do Senhor está aqui; Deus realiza em nós tanto o querer quanto o realizar b. da mesma maneira, eles distorcem a expressão “nós somos cooperadores de Deus”: essa passagem diz que os ministros são cooperadores porque Deus os proveu dos dons necessários 18. Eclesiástico 15.14-17 a. a autoridade do autor é questionável b. mas se nós não o rejeitarmos prontamente, descobrimos que (1) ele diz que o homem foi criado com livre-arbítrio, o que consentimos (2) mas nós dizemos que ele o perdeu c. eu respondo não apenas aos meus adversários, mas a esse autor, dizendo (1) se a interpretação dos meus adversários está correta, nós rejeitamos sua autoridade (2) se esse autor deseja apenas mostrar que o homem é a causa de sua própria ruína, eu concordo 19. Lucas 10.30 a. nossos adversários fazem disso uma alegoria da Queda da raça humana (1) a raça humana é assaltada pelo pecado e pelo Diabo (2) mas é deixada “meio viva” (3) isso implica que, alguma medida, razão e vontade permanecem b. suponhamos que eu rejeite a alegoria concebida pelos pais [da igreja]: (1) a Palavra de Deus não deixa uma “meia vida” para os homens (2) as Escrituras claramente afirmam que nós estávamos mortos e fomos revividos c. contudo, suponhamos que aceitemos a alegoria (1) o que sobra para o homem não o capacita para alcançar um verdadeiro conhecimento de Deus (2) a visão de Agostinho e o consentimento mútuo das escolas⁵ é que, aquilo de que a salvação depende foi retirado do homem após a Queda CAPÍTULO 6 O homem decaído deve buscar a redenção em Cristo Através do Mediador, Deus é visto como um Pai gracioso [1-2] 1. Somente o Mediador socorre o homem decaído a. como toda a raça humana decaiu da vida para a morte na pessoa de Adão, nosso conhecimento do Deus Criador derivado do universo é inútil, a menos que se lhe acrescente a fé b. porque nos beneficiamos tão pouco de nossa contemplação da ordem criada, somos chamados à fé em Cristo, o qual, porque parece ridículo, é desprezado pelos descrentes c. a fé é acrescentada à nossa situação apartada quando nós humildemente abraçamos a pregação da cruz 2. Até mesmo a antiga aliança proclama que não há fé no Deus gracioso independente do Mediador a. à parte do Mediador, Deus nunca demonstrou favor para com os povos antigos; mas isso quer dizer apenas que o estado contente e abençoado da igreja sempre teve seu fundamento na pessoa de Cristo b. personagens do Antigo Testamento citados para mostrar que a igreja sempre ansiou pelo seu cabeça, consumado em Jesus Cristo Cristo é essencial para a aliança e a verdadeira fé [3-4] 3. A fé e esperança da antiga aliança se alimentou da promessa a. quando o consolo é prometido na aflição, prefigura-se o símbolo da confiança e esperança no próprio Cristo b. a promessa e esperança do Redentor é o que confere estabilidade à aliança 4. Fé em Deus é fé em Cristo a. desde o princípio do mundo, persistindo por meio das promessas feitas a Davi, Cristo foi mantido diante de todos os eleitos para que eles pudessem contemplá- lo e colocar sua confiança nele b. mesmo que muitos homens tenham, em algum momento, se gabado de adorar a suprema majestade, o Criador do céu e da terra, ainda assim, porque não tinham um Mediador, não era possível para eles verdadeiramente provar da misericórdia de Deus e, assim, serem persuadidos de que ele era seu Pai CAPÍTULO 7 A lei não foi dada para restringir o povo da antiga aliança a si mesmo, mas para alimentar esperança de salvação em Cristo até sua vinda As leis moral e cerimonial são relevantes para conduzir a Cristo [1-2] 1. O Mediador socorre apenas homens decaídos a. a lei foi incorporada cerca de 400 anos depois de Abraão, não para afastar o povo de Cristo, mas para fortalecê-lo em sua expectativa dele, renovando, dessa forma, a aliança de Abraão b. os ritos prescritos pela lei seriam totalmente absurdos, a menos que fossem sombras da vinda de Cristo c. os ritos pretendiam erguer os olhos dos homens para Cristo 2. A lei contém uma promessa a. na entrega da lei de Moisés e na fundação do reino de Davi, Cristo foi posto perante o Israel antigo como um espelho b. em sua imaturidade, eles precisaram ser conduzidos a Cristo por meio das cerimônias: de seus sacrifícios diários para o sacrifício definitivo de Cristo c. o testemunho de Paulo de que Cristo é o fim parao qual a lei aponta Não podemos cumprir a lei moral [3-5] 3. A lei nos torna inescusáveis e nos leva ao desespero a. a observância completa da lei é justiça perfeita diante de Deus, como promete a Escritura b. mas nós cumprimos essa obediência? Não! c. assim, pendemos entre a promessa da vida e o curso da morte 4. Não obstante, as promessas da lei não são insignificantes a. o impasse: a lei promete uma bem-aventurança que nós, incapazes de mantê- la, não podemos alcançar b. isso, porém, não é absurdo ou inútil, pois leva a perceber que Deus livremente outorga seus dons sobre nós, desconsiderando nossa obediência imperfeita c. discutiremos esse ponto exaustivamente na “justificação pela fé” 5. O cumprimento da lei é impossível para nós a. nunca houve ninguém — nem mesmo um “santo” — que não tivesse concupiscência b. testemunho escriturístico desse fato c. Agostinho o afirmou contra o ataque pelagiano O primeiro uso da lei: a lei nos mostra a justiça de Deus e, como um espelho, desvela nossa pecaminosidade, levando-nos a implorar pelo auxílio divino [6-9] 6. A severidade da lei remove de nós todo autoengano a. a lei adverte, informa, acusa e condena b. a lei remove o orgulho e, assim, toda falsa justiça autoelaborada e cobiça que abriga secretamente dentro do homem 7. A função punitiva da lei não diminui seu valor a. na lei, como em um espelho, vemos nossa fraqueza, nossa iniquidade e a consequente maldição b. nossa vontade corrompida, que deveria ser obediente à lei, persiste em teimosa desobediência c. a lei impacta nossa consciência progressivamente com nossa iniquidade e, inversamente, realça a doçura da graça de Deus 8. A função punitiva da lei em sua obra sobre crentes e descrentes a. a lei condena todos os homens b. mas com dois propósitos totalmente diferentes: (1) para aterrorizar os ímpios, por causa de sua obstinação de coração (2) para fazer os eleitos perceberem que eles se colocam de mãos vazias perante Deus e devem, por isso, apossar-se de sua misericórdia 9. A lei, como diz Agostinho, pela acusação nos move a buscar graça a. um “analecto” de citações de Agostinho que afirmam que a lei, por meio de nossa incapacidade de mantê-la, nos conduz a apelar para a graça em Cristo b. Agostinho lida especificamente com esse primeiro uso da lei em On the Spirit and the letter; o segundo uso, por uma ou outra razão, ele não discute c. o primeiro uso da lei é visto também nos réprobos, os quais são levados ao terror e desespero por ele, mas persistem em seu desejo de esquivar-se do juízo de Deus apesar desse antegosto divino e justo de seu fim O segundo uso da lei: a lei restringe malfeitores e aqueles que ainda não são fiéis [10-11] 10. A lei como proteção da comunidade contra homens injustos a. por medo de sua punição, a lei restringe homens alheios, fora isso, ao que é justo e correto b. essa restrição não produz justiça, pois tais homens espumam internamente, amaldiçoam Deus e a lei, e anseiam por romper em ilegalidades c. mas tal restrição é necessária para a comunidade, cujo bem-estar e tranquilidade Deus certamente tem em mente 11. A lei como inibidora para aqueles ainda não regenerados a. dois tipos ainda não regenerados (1) os confiantes em sua justiça própria — para trazê-los à humildade (2) os desenfreados em seus desejos — para serem coibidos O terceiro uso da lei: ela admoesta fiéis e os insta ao bom proceder (12-13) 12. Até mesmo os fiéis carecem da lei a. este é o principal uso da lei b. beneficia os fiéis de duas formas (1) ajuda-os a aprender cada dia mais sobre a natureza da vontade do Senhor (2) exorta-os à obediência contínua, auxiliando-os, assim, a evitar a reversão ao pecado c. esses benefícios são descritos por Davi de uma forma não contraditória a Paulo 13. Qualquer que queira dispensar os fiéis plenamente da lei, a compreende erroneamente a. ignorantes dessa distinção, alguns cometem o erro de rejeitar toda a lei de Moisés como estranha aos cristãos b. a afirmação de que a vida de um homem justo é uma contínua meditação sobre a lei aplica-se a todas as eras da história c. ainda que nós não possamos atender às exigências da lei, ela continuamente aponta para o nosso objetivo de vida A chamada “revogação” da lei refere-se à liberdade de consciência e à descontinuidade das antigas cerimônias [14-17] 14. Em que medida a lei foi revogada para os fiéis? a. embora para os fiéis a lei não seja, agora, uma exortação, tampouco uma maldição, não se pode dizer, por essa razão, que ela foi revogada b. ambos, Paulo e Jesus, enfatizam que a lei não foi posta de lado, mas permanece inviolável c. devemos, portanto, distinguir o que foi revogado do que não foi 15. A lei é revogada na medida em que não mais nos condena a. a referência de Paulo à “maldição” aplica-se exclusivamente à força da lei que subjuga a consciência b. Cristo, diz Paulo, fez-se maldição por nós para nos libertar das exigências duras e insustentáveis da lei c. não obstante, devemos continuar a prestar a mesma veneração e obediência à lei 16. A lei cerimonial a. por sua vinda, Cristo revogou a lei cerimonial em seu uso, mas não em seu efeito b. a lei cerimonial, diz Paulo (Cl 2.17) e outros, é somente uma sombra da realidade de Cristo e deriva sua validação prévia da promessa da vinda de Cristo 17. O “o escrito de dívida contra nós” foi apagado (Cl 2.14s) a. dois grupos conflitantes de expositores defendem (1) a severidade inexorável da lei é abolida, mas não seu ensino (2) as palavras referem-se exclusivamente à lei cerimonial, de forma nenhuma à lei moral b. em oposição a ambos os grupos, as palavras de Paulo, aqui, têm uma referência mais interna (seguindo Agostinho) (1) os sacrifícios dos judeus serviam apenas para confessar repetidamente sua própria impureza, já que os ritos eram repetidos (2) contudo, em Cristo (não na lei) o judeu antigo participou, assim como nós, da mesma graça (3) Paulo está, então, alertando os cristãos para não retornarem às exigências rituais da lei, das quais Cristo os livrou CAPÍTULO 8 Explicação da lei moral (Os Dez Mandamentos) A lei moral escrita: uma afirmação da lei natural [1-2] 1. O que os Dez Mandamentos são para nós? a. este é o momento de introduzir uma explicação da lei para confirmar argumentos já anunciados (1) o culto público que Deus prescreveu ainda está em vigor (2) a lei ensinou os judeus não apenas a verdadeira natureza da santidade, mas também, ao demonstrar sua incapacidade para alcançá-la, os lançou para o Mediador — embora de má vontade (3) o contraste entre a majestade de Deus e a nossa inanidade nos leva a adorá-lo inexoravelmente b. dois propósitos da lei (1) Deus nos chama a reverenciá-lo e especifica em que consiste essa reverência (2) Deus aponta, assim, nossa impotência, e nos reprova por ela c. relação da lei interior com o Decálogo (1) testemunho da consciência enquanto acusador (2) fracasso da consciência por causa de nossa condição (3) consequente necessidade de uma lei escrita 2. A inexorabilidade da lei a. a lei nos ensina que devemos a Deus glória, reverência, amor, temor: a serem manifestos em uma vida reta, santa e pura b. se falharmos, como falhamos, somos inescusáveis Aprendemos da lei que Deus é nosso Pai, que ele é misericordioso e santíssimo, e exige, em benevolência, obediência [3-5] 3. A severidade da lei tem um objetivo positivo a. o ensinamento da lei nos leva a mergulharmos em nós mesmos b. passos que se seguem na consciência de nossa condição: (1) comparação da nossa vida com a lei: nosso fracasso (2) nossas capacidades são muito frágeis para obedecer à lei (3) em nossa impotência, somos conduzidos ao temor da morte eterna (4) nosso desespero nos leva a buscar auxílio fora de nós mesmos 4. Promessas e ameaças a. para além de nossa simples reverência pela justiça de Deus obtida dessa forma, Deus reconhece nossa inação cega b. para superá-la, ele insere (1) promessas, para mostrar seu deleite na observância da lei pelohomem (2) ameaças, para mostrar como ele detesta a impiedade, e para nos demover de nossos vícios 5. A suficiência da lei a. a lei, cuja obediência muito agrada a Deus, é a regra perfeita de justiça b. mas todos os homens tentam, forjando preceitos humanos, alcançar a justiça independentemente da Palavra de Deus (1) visto no conselho de Moisés a Israel (2) visto nas práticas degradantes que caracterizam nosso próprio tempo c. para superar essa tendência, devemos ter diante de nós a lei e a obediência como nosso objetivo A lei deve ser entendida espiritualmente e interpretada em referência ao propósito do legislador [6-10] 6. Como a lei é a lei de Deus, ela nos reivindica por completo a. a lei de Deus exige não apenas honestidade exterior, mas justiça interior, espiritual, embora poucos homens levem a sério essas exigências geminadas b. contraste entre a lei humana e lei divina (1) as leis humanas exigem apenas conformidade de ação exterior, ou então nada mais que condescendência exterior na intenção (2) a lei divina exige obediência total, não apenas no ato exterior, mas também na intenção interior — ela requer pureza completa 7. O próprio Cristo restaurou o correto entendimento da lei a. não estamos, aqui, expondo uma nova interpretação da lei, mas apenas reafirmando a restauração de Cristo da lei, contra a falsa interpretação dos fariseus b. qualquer noção de que Cristo concedeu uma nova lei do evangelho para suprir as lacunas da lei de Moisés faz um desserviço tanto à lei de Deus quanto aos patriarcas do Antigo Testamento, que certamente não eram hipócritas 8. Caminhos para o significado correto a. princípio exegético: os mandamentos e proibições sempre contêm sinédoque, ou seja, mais do que é expresso em palavras b. no entanto, há um problema na aplicação desse princípio: manter-se próximo o bastante das palavras em si, de forma a não glosá-las com acréscimos humanos c. a melhor regra é indagar: por que cada mandamento nos foi dado? Exemplos: (1) quinto mandamento: prestar honra àqueles a quem Deus prescreveu; a desonra para com eles é detestável e proibida (2) primeiro mandamento: adorar a Deus somente; a impiedade para com Deus é abominada e proibida d. dois lados em todo mandamento: (1) algo é ordenado, seu oposto é proibido (2) algo é proibido, seu oposto é ordenado 9. Mandamento e proibição a. esse último ponto significa mais do que opor a um vício sua virtude correspondente (comumente concebida como abstenção daquele vício) b. significa, positivamente, uma boa ação: não somente abstenha-se de fazer o mal a um irmão; faça o bem a ele! 10. Por sua linguagem incisiva, a lei nos comove a uma repulsa ainda maior pelo pecado a. por que Deus sugere, por sinédoque, o que ele deseja, ao invés de declarar explicitamente? b. porque estamos sempre tentando atenuar pecados ocultos, Deus os traz todos à mente, surpreendentemente, ao rotulá-los pelo pior pecado em cada categoria: por exemplo, o homicídio é mais chocante do que o ódio ou a ira As duas tábuas da lei e os mandamentos adequadamente atribuídos a cada uma [11-12] 11. As duas tábuas: deveres para com Deus (1-4) e deveres para com o homem (5-10) a. toda a lei se divide em deveres que se aplicam à adoração de Deus e deveres de amor para com os homens b. a adoração de Deus é o fundamento da justiça c. somente então estamos em posição de agir com retidão na sociedade humana d. essas duas categorias mencionadas na síntese que Jesus faz da lei 12. A distribuição dos mandamentos em duas tábuas a. os dois artigos são detalhados nos Dez Mandamentos para deixar claro precisamente o que Deus exige de nós b. o problema de arranjar os preceitos da lei (1) alguns os dividem em três e sete, suprimem o mandamento sobre imagens e dividem o último em dois (2) outros os dividem em quatro e seis, mas tendo um como prefácio, não mandamento (3) eu fico com quatro e seis, mas com um prefácio (assim como Orígenes, às vezes Agostinho, e no Eruditi commentarii in Matthei Evangelium, opus imperfectum) (4) alguns [os dividem em] cinco e cinco, como Josefo, mas isso mistura religião e caridade Exposição detalhada dos mandamentos específicos [13-50] Primeiro mandamento [13-16] 13. O prefácio (“Eu sou Jeová, seu Deus…”) a. ao arranjar as leis, é preciso cuidado para que elas não sejam revogadas por desdém b. três meios (“provas”) oferecidos para preservar a lei do desdém (1) Deus reivindica autoridade sobre o povo e lhe demanda obediência (2) ele promete graça para levá-los à santidade (3) relata seus benefícios aos judeus para provar sua ingratidão, caso não respondam 14. “Eu sou Jeová, seu Deus” [primeira e segunda “prova”] a. Deus reivindica autoridade e obediência b. pela doçura de suas promessas, ele atrai não somente para a vida presente, mas também para a vida futura; exemplos escriturísticos 15. “Que te tirou da terra do Egito, do reino da escravidão” [a terceira “prova” — recitação dos benefícios, contra ingratidão] a. livres da escravidão por Deus, o povo deve servi-lo e adorá-lo b. ele também usa títulos para distinguir-se dos ídolos — para nos manter em verdadeira adoração a si mesmo; exemplos escriturísticos c. para além do efeito pretendido nos judeus por sua libertação do Egito, ela é o tipo da nossa atual escravidão espiritual, da qual somos libertos d. assim, a lei é concebida para trazer todos os homens ao Legislador 16. O primeiro mandamento a. propósito: o Senhor deseja ser preeminente exclusivo dentre seu povo e exercer total autoridade sobre ele b. meios: adorar a Deus verdadeiramente e deixar de lado toda superstição e falsos deuses c. o que nós devemos a Deus? Quatro classes (1) adoração: a veneração e adoração que cada um de nós lhe rende ao nos submetermos à sua grandeza (2) confiança: segurança que deriva do descanso em Deus e da comunhão com ele (3) invocação: hábito de apelar a ele, sempre que a necessidade nos mover, como nosso único auxílio (4) ação de graças: gratidão com que nós o louvamos por todas as boas coisas d. mais do que simplesmente abster-se de um deus estranho, nós devemos cultivar a verdadeira religião e estar alertas contra a superstição e. significado de “perante minha face”: a ofensa se torna mais hedionda ao nos lembrar que cada um de nossos maus impulsos é claro para Deus, que sonda os recantos secretos do nosso coração Segundo mandamento [17-21] 17. Adoração espiritual do Deus indivisível a. propósito: declara que tipo de Deus ele é e com que tipo de adoração deve ser honrado b. síntese: nos demove das observâncias mesquinhas para sua adoração verdadeira e espiritual c. partes do mandamento: (1) coíbe-nos da representação material de si mesmo (2) proíbe-nos de adorar quaisquer imagens, e faz uma lista delas 18. Palavras ameaçadoras do segundo mandamento a. para nos convencer a nos apegarmos a ele, Deus demonstra (1) seu poder (EL = poder) (2) seu ciúme (3) sua intenção de defender sua glória e majestade contra a idolatria b. Deus é como um marido para nós: ele não consegue ver seu casamento ser maculado por nossa apostasia 19. “Que visita a iniquidade dos pais nos filhos…” a. isso conflita, aparentemente, com Ezequiel 18.20 b. essa dificuldade é “solucionada” de várias formas c. como um pai ímpio é geralmente seguido por um filho ímpio, a maldição do Senhor reside sobre toda a casa 20. A visitação dos pecados dos pais nos filhos não vai de encontro à justiça de Deus? a. a vingança de Deus recai sobre os homens por sua própria iniquidade b. Ezequiel 18.20 não está em contradição com isso, mas responde aos judeus que reclamavam de serem punidos injustamente pelos pecados de seus pais c. não, você é punido por seus próprios pecados — embora seja verdade que crianças frequentemente sigam os caminhos ímpios de seus pais 21. “E mostra misericórdia a mil…” a. Deus pactua sua misericórdia com os filhos dos santos e, inversamente, sua vingança sobre a descendência ímpia dos descrentes — um fato que deveria impelir enorme terrornos malfeitores e confortar os justos b. no entanto, essa sucessão de misericórdia ou juízo não é automática — de forma a comprometer a liberdade do julgamento de Deus c. mil gerações = a amplitude da misericórdia de Deus; quatro gerações = limites de sua vingança Terceiro mandamento [22-27] 22. Interpretação do mandamento a. propósito: Deus deseja que nós veneremos a majestade de seu nome b. corolário: não tratar seu nome com desprezo c. três pontos a serem observados: (1) tudo o que pensamos e dizemos sobre Deus deve exalar sua excelência (2) não devemos, por nenhuma razão, abusar de sua Palavra ou de seus mistérios (3) não devemos difamar suas obras d. o mandamento tem a ver, especificamente, com o juramento corrupto, discutido em ambas as tábuas da lei: (1) em relação à reverência e adoração de Deus (primeira tábua) (2) em relação à sociedade humana (segunda tábua) 23. O juramento como confissão a Deus a. definição de juramento: apelar ao testemunho de Deus para confirmar a verdade de nossa palavra b. exemplos da Escritura mostrando que (1) um juramento legítimo é um tipo de adoração divina (2) inversamente, um juramento por falsos deuses acende a ira amarga de Deus 24. O falso juramento como profanação do nome de Deus a. porque juramento e adoração do nome de Deus coexistem, não devemos profanar seu nome por uma falsa jura b. o modo regular de apelar a Deus como testemunha empregado, e.g., por Josué (Antigo Testamento) e pelos fariseus (Novo Testamento): isso implica que Deus vingará nosso perjúrio se trapacearmos 25. O juramento inútil a. o nome de Deus é barateado também por juramentos inúteis b. são ofensivos os juramentos não empregados na religião ou no amor c. transferir juramentos para os servos de Deus, bem como para deuses estranhos, diminui a glória do Senhor 26. O Sermão da Montanha não proíbe esse tipo de juramento? a. os anabatistas interpretam Mateus 5.34, 37 de forma literal b. contudo, tal interpretação coloca o Filho contra o Pai, pois a lei não é posta de lado por Jesus c. exegese da dificuldade (1) o propósito de Cristo não é mudar a lei, mas resgatá-la, da corrupção dos fariseus e escribas, ao seu justo propósito (2) consequentemente, “jurar” = “jurar em vão” (3) “de modo algum” não se refere ao “jurar”, mas às formas de juramento que ali se seguem (4) Cristo não está, aqui, corrigindo superstição, mas sim proibindo juramentos inúteis e indiretos 27. O juramento extrajudicial é, portanto, necessariamente aceitável a. somente juramentos proibidos pela lei são aludidos aqui: tanto Jesus quanto Paulo usaram juramentos quando necessário b. algumas pessoas isentam somente juramentos públicos (judiciais) dessa proibição c. contudo, juramentos privados sóbrios não devem tampouco ser condenados: exemplos escriturísticos d. resumindo, evite todos os juramentos inúteis: limite o jurar a defesa da glória de Deus e aprofunde a edificação fraternal Quarto mandamento [28-34] 28. Interpretação geral a. propósito: mortos para nossas próprias inclinações e obras, devemos meditar no reino de Deus nas formas que ele estipulou b. esse mandamento, enquanto prenúncio (segundo os pais da igreja primitiva), requer um tratamento especial — três condições para cumpri-lo (1) descanso no sétimo dia (descanso espiritual) (2) dia fixado de assembleia para ouvir as leis e executar os ritos (3) um dia de descanso para os servos etc. 29. O mandamento do sábado enquanto promessa (descanso espiritual prefigurado) a. a Escritura repetidamente enfatiza a centralidade desse mandamento; exemplos escriturísticos b. existe, portanto, uma correspondência íntima entre o significado externo e a realidade interna: somente no descanso estamos receptivos ao trabalhar de Deus em nós 30. O sétimo dia a. ao guardar o sétimo dia, o judeu era instado a imitar seu Criador — um empurrão ao zelo b. sete (número da perfeição na Escritura) = perpetuidade c. por meio do sétimo dia, o Senhor rascunhou para seu povo a perfeição vindoura de seu sábado no Último Dia, para fazê-los ansiar por essa perfeição meditando incessantemente sobre o sábado ao longo da vida 31. Em Cristo, a promessa do mandamento do sábado é cumprida a. se tal interpretação do número sete é muito tênue, pelo menos ela representa Deus oferecendo para nós um modelo a partir de seu próprio exemplo b. pouco importa a interpretação que fizermos: o que importa é o descaso perpétuo de nossos trabalhos c. a vinda de Cristo aboliu a parte cerimonial desse mandamento 32. Qual é o alcance do quarto mandamento para além da regulação externa? a. o que sobra do sábado para nós, então? (1) assembleia em dias fixados para pregação, comunhão e orações (2) suspensão de trabalho para os servos e trabalhadores b. então, por que não reunir-se diariamente? (1) a Escritura reconhece que a fraqueza humana torna as reuniões diárias impossíveis (2) que nós observemos, então, o que Deus estipulou para nós 33. O que celebramos no domingo? a. alguns espíritos perturbados acusam os cristãos de judaizantes b. pelo contrário, não estamos observando rigidamente uma cerimônia, mas utilizando-a para manter a ordem na igreja c. as restrições de Paulo contra a observância supersticiosa de lua nova e sábados não exclui a observância lícita de dias que promovem a paz na fraternidade cristã d. a mudança do Dia do Senhor foi feita para desbancar a superstição e manter a ordem na igreja 34. Observância espiritual do dia sagrado a. os primeiros cristãos mudaram a data para o dia da ressurreição do Senhor, para simbolizar o fim dos ritos prefigurativos b. a verdade, nublada para os judeus, agora está desvelada diante dos cristãos c. rejeitamos a alegação dos primeiros cristãos de que somente as “partes cerimoniais” da lei devem ser colocadas de lado, mas que o dia permanece (1) isso é superstição, muitas vezes pior do que aquela dos judeus (2) nós prescrevemos a frequência nas reuniões sagradas para a promoção da adoração e da piedade Quinto mandamento [35-38] 35. O amplo escopo desse mandamento a. propósito: os decretos de preeminência estabelecidos por Deus devem ser invioláveis para nós b. síntese: observem aqueles que Deus pôs acima de nós e tratem-nos com honra, obediência e gratidão, não detratando de sua dignidade por desprezo, teimosia ou ingratidão c. o significado amplo de honra na Escritura d. a pedagogia divina: por meio das submissões mais toleráveis, o Senhor nos conduz e nos habitua a toda submissão legítima — os títulos honoríficos de Deus são partilhados com os líderes terrenos 36. A exigência de uma regra universal a. devemos prestar reverência, obediência e gratidão àquele a quem o Senhor, por meio de sua providência, colocou sobre nós, seja ele digno ou indigno daquela honra b. o Senhor explicitamente nos ordena a reverenciar nossos pais, e a própria natureza nos mostra que aqueles que não o fazem são monstros, e não homens c. confirmação, na Escritura, das três partes do honrar: (1) reverência: a irreverência para com os pais é passível de morte (Êx 21.17; Lv 20.9; Pv 20.20) (2) obediência: a desobediência aos pais é passível de morte (Dt 21.18-21) (3) gratidão: por ordem de Deus, nós fazemos o bem aos nossos pais (Mt 15.4-6) 37. A promessa a. significado: “Honra teu pai e tua mãe para que possas desfrutar, por um longo período de vida, da posse da terra, a qual será tua como testemunho de seu favor” b. o prolongamento da vida presente nos é prometido, assim como foi aos antigos judeus, não contendo bênçãos em si mesmas, mas como símbolos delas 38. A ameaça a. o corolário: filhos desobedientes estão sujeitos à sentença de morte b. não apenas a longevidade é relevante, mas também a presença ou ausência da bênção de Deus durante a vida c. devemos obedecer a nossos pais, bem como todos os outros superiores, contanto que eles não nos instiguem a transgredir a lei Sexto mandamento [39-40] 39. O mandamento a. propósito: tendo o Senhor vinculado a humanidade com uma certa unidade,cada homem deve preocupar-se com a segurança de todos b. síntese: proibição de ferir o corpo do próximo c. esse mandamento se aplica não só à justiça física, mas à espiritual: tanto ato quanto intenção (i. e., homicídio — ira, ódio) 40. O motivo desse mandamento a. duplo fundamento: o homem é (1) imagem de Deus: portanto, reverencia sua imagem no homem (2) nossa carne: abrange nossa carne nele b. a culpa por homicídio inclui não apenas o ato, mas a ideia e, até mesmo, o desejo de matar Sétimo mandamento [41-44] 41. Interpretação geral a. propósito: porque Deus ama a modéstia e a pureza, toda impureza deve ser alheia a nós b. síntese: não sejas maculado com nenhuma sujeira ou intemperança luxuriosa da carne c. corolário afirmativo: regula de forma casta e restritiva todas as partes da vida d. ao homem, criado para viver em sociedade, é dado o casamento como a única união aceitável para afastá-lo da luxúria 42. Celibato? a. Deus, por graça especial, preserva alguns poucos em virgindade casta, temporária ou permanente b. o resto de nós está sujeito à parceria das mulheres tanto segundo nossa natureza criada quanto por causa de nosso estado decaído c. é tolice tentar seguir a continência celibatária quando esse dom não é concedido — de fato, tal contenda é uma violação da ordenança de Deus 43. O casamento, no que tange a esse mandamento a. cada homem deve reconhecer seu próprio dom e determinar, a partir disso, se deve se casar ou permanecer celibatário b. para evitar incontinência, devemos, se necessário, recorrer ao casamento; incontinência marital ou desejos impuros são pecados contra o mandamento de Deus 44. Modéstia e castidade a. dentro do casamento: controle sóbrio, não luxúria b. o Deus que ordena pureza de coração proíbe não apenas a fornicação, mas a sedução de outros por meio de vestimenta ou conduta lasciva Oitavo mandamento 45. Interpretação geral a. propósito: como a injustiça é abominável a Deus, honre a cada homem o que lhe é devido b. síntese: não anseie pelos bens de outro homem; antes, ajude-o a mantê-los, já que todas as posses dos homens são da distribuição de Deus c. tipos de roubos (1) por violência (2) por fraude (3) por artimanha legal (4) por lisonjeio de um suposto presente d. uma anatomia da cobiça humana em todas as suas formas 46. Esse mandamento nos obriga a se importar com os bens dos outros a. o ganho honesto e lícito exclui toda forma de exploração humana b. nosso objetivo: auxiliar todos os homens a preservar o que é deles; mas se eles forem trapaceiros, evitar discussão — até mesmo a ponto de renunciar a algo que é seu c. dever mútuo em sociedade (1) povo/governantes (2) congregações/pastores (3) pais/filhos (4) idosos/jovens (5) servos/mestres d. síntese: que cada um saiba sua posição na sociedade e seus deveres Nono mandamento [47-48] 47. Interpretação geral a. propósito: Deus, enquanto verdade, abomina a mentira; portanto, devemos praticar a verdade uns para com os outros b. síntese: que não prejudiquemos ninguém com maledicência ou difamação c. corolário: devemos ajudar fielmente a todos, tanto quanto podemos, a afirmar a verdade para proteger seu nome e suas posses d. dois aspectos da mentira (1) injuriar a reputação do próximo (2) despojá-lo dos bens e. mais uma vez, o princípio da sinédoque: o vício mais abominável representa toda sua classe f. ao passo em que o perjúrio jurídico é tratado no terceiro mandamento, aqui nos ocupamos da difamação que despoja nosso próximo de seu bom nome, e não de suas posses 48. A boa reputação do nosso próximo a. seres humanos se deleitam no falar difamatório sobre os outros b. a maledicência que Deus condena aqui é a acusação odiosa, originária do meu intento e desejo malicioso de difamar c. não apenas a maledicência é proibida, mas também o dar ouvidos a ela e encorajá-la Décimo mandamento [49-50] 49. O significado desse mandamento a. propósito: Deus deseja que nossa alma esteja disposta a amar; portanto, devemos banir todo desejo contrário ao amor b. síntese: nenhum pensamento se enraíza em nós para nos levar a desejar o prejuízo do nosso próximo c. corolário: qualquer coisa que imaginarmos ou empreendermos, deve ser para o bem e vantagem do nosso próximo d. por que um segundo mandamento tão parecido com aquele contra o adultério? (1) o sétimo mandamento inclui a intenção (2) o décimo mandamento, porém, não lida com a intenção deliberada, mas sim com a cobiça, que pode existir sem intenção deliberada e. portanto, não somente a inclinação para o mal, mas até mesmo a incitação para tanto é proibida 50. Justiça interior! a. por que Deus exige tal retidão? (1) a finalidade da lei é o amor; um coração cobiçoso está enfermo (2) seriam malignas as fantasias casuais? Aqui, alude-se aos que são animados pela cupidez (3) a pedagogia de Deus: desejos maus nos são negados ao sermos privados das próprias coisas que nos impelem à esbórnia b. os deveres prescritos na segunda tábua devem firmar-se no fundamento do temor e da reverência a Deus c. é errado dividir esse mandamento em dois, pois ele significa, como um todo: mantenha as posses de outrem a salvo, tanto a injúria e fraude quanto da mais sutil cobiça Princípios da lei à luz do ensinamento de Cristo [51-59] 51. A síntese da lei a. propósito de toda lei: moldar a vida humana segundo o arquétipo da pureza divina b. Moisés e Paulo concordam sobre a finalidade da lei c. a lei não é um manual rudimentar, mas o guia perfeito para todas as obrigações de piedade e amor 52. Por que a Escritura às vezes menciona somente a segunda tábua? a. nenhuma exegese pode negar que Cristo e os apóstolos resumem a lei citando, frequentemente, apenas a segunda tábua b. por quê? Porque a segunda tábua, por meio de sinais da vida cristã, manifesta evidência do temor real de Deus (a finalidade da primeira tábua) 53. Fé e amor a. a essência da justiça reside mais no viver inocentemente com os homens do que em honrar a Deus com piedade? Não! b. amor: a essência da lei c. o Senhor quer dizer que a lei nos obriga a observar a justiça e equidade para com os homens, de sorte que possamos nos tornar experientes em testemunhar de um temor piedoso a ele 54. Amor ao próximo a. nossa vida há de tanto melhor se conformar à vontade de Deus e sua lei quanto mais frutífera for para nossos irmãos b. o amor-próprio, sendo congênito, não precisa de lei que nos incite a ele! c. a santidade é mensurada no amor ao próximo e a Deus d. a pedagogia de Deus: tomar nossa possessão mais firme — amor-próprio — e redirecioná-la, com todo seu dinamismo, para outros homens e para Deus 55. Quem é nosso próximo? a. “próximo” não é, necessariamente, um termo de proximidade física, mas abrange toda a raça humana, sem exceção b. precisamos, primeiro, nos voltar para Deus para compreendermos o princípio do amor: qualquer que seja o caráter de um homem, ainda assim precisamos amá-lo, porque Deus nos amou 56. “Conselhos evangélicos”? a. a esses mandamentos de Cristo, os escolásticos dão o nome de “conselhos evangélicos” (1) livres para serem obedecidos ou não (2) o fardo está sobre os monges, e não sobre cristãos comuns b. exemplos escriturísticos demonstrando a aplicação universal desses preceitos 57. O mandamento para amar nosso inimigo é um mandamento genuíno a. não apenas monges, mas todos nós devemos amar nossos inimigos, como Agostinho e Paulo convincentemente argumentaram e pais da igreja, tão tardios quanto Gregório I, o consideravam um mandamento b. pergunte a esses escolásticos se amar a Deus (o que eles aceitam impor-se sobre todos) não é mais difícil do que amar seu inimigo (que eles chamam de “conselho evangélico”) 58. A distinção entre pecados mortais e veniais é inválida! a. definição dos escolásticos de pecado venial: desejo sem consentimento deliberado que não se retém longamente no coração b. resposta: é uma falha da alma se concentrar nas demandas da lei como um todo e deixar um espaço vazio para tais desejosingressarem c. pecado é pecado: não podemos fazer gradações dessa natureza 59. Todo pecado é um pecado mortal! a. Mateus 5.19 certamente se aplica a esses mitigadores da lei que negligenciam seu conteúdo e até o seu autor b. eles subestimam, insensatamente, a ira de Deus c. nossa visão: todo pecado, enquanto rebelião contra a vontade de Deus, é mortal CAPÍTULO 9 Cristo, embora fosse conhecido dos judeus sob a lei, foi ampla e claramente revelado somente no evangelho A graça de Cristo antecipada e manifesta [1-2] 1. A vantagem da comunidade do Novo Testamento a. Deus era conhecido do povo do Antigo Testamento na mesma representação com a qual ele agora aparece para nós em pleno esplendor b. a lei serviu para manter os santos na expectativa pela vinda de Cristo c. o fato de que Cristo agora tornou Deus conhecido não exclui os fiéis que morreram antes de Cristo da comunidade do entendimento e da luz que brilha na pessoa de Cristo d. os mistérios que o antigo povo somente vislumbrou em um esboço nublado são, agora, manifestos para nós; portanto, não seja cego ao meio-dia! 2. O evangelho prega o Cristo revelado a. a palavra “evangelho” pode ser tomada em um duplo sentido (1) enquanto “perdão”: o evangelho é aquilo que promete a livre remissão de pecados que comumente aparecem na lei, por meio do qual Deus reconcilia os homens a si (2) enquanto “cumprimento”: o evangelho é uma forma nova e atípica de embaixada, por meio da qual Deus cumpriu o que prometeu, cumprimento esse realizado na pessoa de Cristo b. entretanto, porque temos, na pessoa de Cristo, uma manifestação viva de que nossa salvação foi concluída, o evangelho enquanto cumprimento deve ser recebido como uma definição mais elevada Refutação de erros sobre a relação entre lei e evangelho: posição intermediária de João Batista [3-5] 3. As promessas não são revogadas para nós a. entretanto, devemos estar alertas quanto à imaginação diabólica de Serveto, que finge que pela fé no evangelho nós tomamos parte no cumprimento de todas as promessas b. ao crer em Cristo nós passamos da morte para a vida, mas devemos lembrar, ao mesmo tempo, o dito de João: embora nós saibamos que “somos os filhos de Deus, ainda não é manifesto… até que sejamos como ele, quando o veremos como ele é” c. somos ordenados, pelo Espírito Santo, a viver na esperança do gozo pleno dos benefícios espirituais de Cristo d. devemos notar uma diferença na natureza ou qualidade das promessas: o evangelho aponta diretamente o que a lei preconizou por meio de tipos 4. A oposição entre lei e evangelho não deve ser exagerada a. nós refutamos aqueles que sempre comparam, erroneamente, a lei com o evangelho ao contrastar o mérito das obras com a livre imputação da justiça b. o evangelho não suplantou toda a lei de forma a apresentar um caminho diferente de salvação 5. João Batista a. João situou-se entre a lei e o evangelho, portando um ofício intermediário entre ambos b. aquele que é menor no reino dos céus é maior que João, porque até então João não havia contemplado o evangelho em seu maior poder, a ressurreição e ascensão CAPÍTULO 10 A similaridade do Antigo e Novo Testamentos A aliança no Antigo Testamento: verdadeiramente a mesma daquela do Novo Testamento [1-6] 1. A questão a. todos os homens adotados por Deus na comunidade de seu povo desde o princípio do mundo estavam aliançados a ele pela mesma lei e pelo vínculo da mesma doutrina presente entre nós b. embora a condição dos patriarcas na comunidade diferisse da nossa, devemos nos precaver das afirmações de Serveto e de alguns anabatistas que tagarelam que os israelitas não tinham nenhuma esperança de imortalidade celeste 2. Principais pontos de convergência a. a aliança feita com os patriarcas é de tal forma semelhante à nossa em substância e realidade que as duas são, na verdade, uma e a mesma b. três pontos a serem notados (1) a prosperidade e a felicidade material não consistiam na finalidade estabelecida para os judeus: antes, eles foram adotados pela esperança da imortalidade (2) a aliança pela qual eles foram vinculados ao Senhor foi sustentada exclusivamente pela misericórdia do Deus que os chamou, e não por seus próprios méritos (3) eles conheciam e tinham Cristo por mediador, por meio de quem eram unidos a Deus e deveriam participar de suas promessas 3. O Antigo Testamento vislumbra o futuro a. como Israel tinha o evangelho prometido na lei e o evangelho não limita o coração dos homens a se deleitarem na vida presente, seria absurdo dizer que aqueles para quem o evangelho foi prometido omitiram e negligenciaram o cuidado da alma, buscando prazeres terrenos b. quando Paulo diz que as promessas do evangelho estão contidas na lei, ele prova, com absoluta clareza, que o Antigo Testamento se ocupava particularmente com a vida futura 4. Até mesmo na antiga aliança, a justificação deriva sua validade somente da graça a. como o coração do evangelho é a justificação de pecadores independentemente de obras ou mérito, e como os judeus são aqueles aos quais a doutrina da justificação pela fé foi concedida, quem ousaria separar os judeus de Cristo? b. a salvação revelada em Cristo não é nada além da manifestação das promessas que o Senhor fez previamente a Abraão e aos patriarcas 5. Sinais semelhantes da aliança a. os israelitas se igualam a nós não apenas na graça da aliança, mas também no significado dos sacramentos b. as similaridades entre nosso batismo espiritual e a travessia do mar pelos judeus c. os judeus comeram a mesma comida espiritual e beberam a mesma bebida espiritual, isto é, Cristo 6. Refutação de uma objeção baseada em João 6.49, 54 a. alguns alegam que as duas afirmações de Cristo, “vossos pais comeram o maná no deserto e pereceram” e “aquele que come do meu corpo jamais morrerá”, demonstram que o povo da antiga aliança está perdido b. essas duas afirmações, porém, convergem, porque Cristo estava acomodando sua linguagem à capacidade de seus ouvintes c. a comparação foi feita por Cristo para mostrar quão maior benefício seus ouvintes deveriam esperar dele do que o que diziam que seus pais haviam recebido de Moisés Argumento acerca da esperança da vida eterna, mostrando que os patriarcas do Antigo Testamento esperavam pelo cumprimento das promessas na vida vindoura [17-14] 7. Os patriarcas tinham a Palavra e, com ela, também a vida eterna a. deve ser tomado como certo que existe tamanho poder de vida na Palavra de Deus que ela desperta as almas de todos aqueles a quem Deus garante a participação nela b. como o Deus de outrora amarrou os judeus a si por seu vínculo sagrado, não há dúvida de que ele os separou para a esperança da vida eterna c. por “Palavra”, designa-se aquele modo especial de comunicação que tanto ilumina as almas dos fiéis para o conhecimento de Deus quanto, em certo sentido, os une a ele 8. No Antigo Testamento, Deus deu ao seu povo comunhão consigo e, portanto, vida eterna a. referências à comunhão de Deus com seu povo no Antigo Testamento b. se a autorrevelação de Deus é uma garantia de salvação, como ele pode revelar a si mesmo para um homem enquanto seu Deus sem que também lhe oferte os tesouros de sua salvação? 9. Até mesmo na antiga aliança, a bondade de Deus era mais poderosa que a morte a. muitas passagens no Antigo Testamento mostram que Deus não era apenas o Deus de Israel no presente, mas que ele jamais os desampararia no futuro b. a afirmação “eu serei o Deus da tua descendência” mostra claramente que se Deus declarou sua benevolência para com os mortos, ao auxiliar sua descendência, tanto menos deixaria de favorecer os próprios mortos c. a afirmação “eu sou o Deus de Abraão… Isaque e… Jacó”, feita bem depois de sua morte, certamente não significa que Deus é o Deus daqueles que não existem 10. A beatitude do povo antigo não era terrena a. porque o modo de vida divinamente preceituado aos fiéis era um exercício contínuo, por meio do qual eles eram lembrados de que eram os mais miseráveis de todos os homensse fossem felizes apenas nesta vida, eles meditavam na [vida] celeste b. exemplos de Adão, Abel e Noé 11. A fé de Abraão a. devemos prezar Abraão como equivalente a cem mil, se considerarmos sua fé, que nos é apresentada como o melhor modelo de credulidade b. para sermos filhos de Deus, devemos ser reconhecidos como membros de sua tribo; mas o que seria mais absurdo do que Abraão ser o pai de todos os fiéis e, ainda assim, não ocupar nem mesmo o lugar mais remoto entre eles? c. experiências de sua vida 12. A fé de Isaque e Jacó a. Isaque como um exemplo de alguém cujas perturbações não o permitiam ser feliz na terra b. Jacó como outro exemplo de infelicidade extrema c. conclusão: ambos não tiveram sua esperança firmada sobre coisas terrenas 13. Os patriarcas ansiavam por vida eterna a. se esses santos patriarcas buscaram das mãos de Deus uma vida abençoada, como sem dúvida o fizeram, eles tanto a concebiam quanto a viam como algo mais do que a vida terrena b. eles teriam sido mais estúpidos do que toras de madeira para continuar buscando as promessas quando nenhuma esperança delas se mostrava na terra — a menos que esperassem que fossem cumpridas em outro lugar 14. A morte dos santos: entrada para a vida a. em todos os seus empreendimentos nesta vida, os santos colocam perante si a beatitude da vida futura b. exemplos de Jacó, Balaão e Davi Continuação desse argumento aludindo a passagens de Davi, Jó, Ezequiel e outros [15-22] 15. Davi como proclamador da esperança a. certamente, aquele que professou que não há nada sólido ou estável na terra, mas que agarra-se a uma firme fé em Deus, vislumbra sua felicidade sediada em outro lugar b. exemplos dos Salmos ilustrando a esperança de Davi 16. Passagens adicionais aplicadas à vida futura a. O que Davi canta em muitas passagens dos Salmos sobre a prosperidade dos fiéis não pode ser compreendido a menos que seja aplicado à revelação da glória celeste b. nem mesmo Davi esconde o fato de que se os fiéis mantiverem os olhos fixos no presente estado de coisas, eles serão seduzidos por penosa tentação, como se não houvesse, para a inocência, favor ou recompensa junto a Deus 17. A esperança dos santos ergue-se para além das calamidades presentes, para a vida futura a. o exemplo de Davi nos ensina como raramente, ou nunca, Deus cumpre neste mundo o que ele prometeu aos seus servos b. Davi coloca diante de seus olhos não o que o curso oscilante do mundo apresenta, mas o que o Senhor fará quando ele se sentar em seu trono de juízo 18. Seu destino feliz contrasta com o dos ímpios a. os santos sofrem a cruz pela mão do Senhor somente por um breve momento; as misericórdias que eles recebem são eternas b. por outro lado, eles anteveem uma ruína eterna e infindável dos ímpios que foram felizes por um dia, como em um sonho 19. Jó como testemunho da imoralidade a. se seu anseio residisse na terra, Jó não poderia ter afirmado: “Eu sei que meu redentor vive e eu serei ressuscitado da terra no Último Dia” b. nós devemos, portanto, reconhecer que ele ergueu seus olhos para uma imortalidade futura, pois viu que seu Redentor estaria com ele até quando repousasse na tumba c. essas afirmações não são direcionadas a algumas poucas pessoas 20. O testemunho dos profetas sobre a imortalidade a. os profetas representaram a bondade de Deus para com o povo sob o esboço, por assim dizer, de benefícios temporais b. contudo, o retrato que pintaram eleva a mente das pessoas aos céus, levando- as necessariamente a refletir sobre a felicidade da vida futura que estaria por vir. 21. O vale dos ossos secos de Ezequiel a. os israelitas entenderam a profecia de Ezequiel primeiramente como um anúncio de que os corpos decadentes deveriam ser trazidos de volta à vida b. a visão de Ezequiel serviu não apenas para corrigir uma interpretação errônea, mas fixou nos judeus, nesse ínterim, o quanto o poder do Senhor estendia-se para além da restauração do povo da Babilônia 22. Passagens adicionais de outros profetas a. exemplo de Isaías b. exemplo de Daniel 23. Síntese e conclusão: a convergência dos Testamentos sobre a vida eterna a. este, portanto, é o nosso princípio: o Antigo Testamento ou a aliança que o Senhor fez com os israelitas não se limitava a coisas terrenas, mas continha uma promessa de vida eterna e espiritual b. Cristo, o Senhor, promete aos seus seguidores, hoje, o próprio “reino dos céus” em que possam se assentar à mesa com Abraão, Isaque e Jacó c. entretanto, assim aprouve a Deus, em justo juízo, cegar a mente daqueles que, ao recusarem a oferta da luz celeste, voluntariamente trouxeram trevas sobre si OS SOFRIMENTOS DOS PATRIARCAS (Paralelo entre Hebreus 11 e as Institutas 2:10) CAPÍTULO 11 A diferença entre os dois testamentos O ANTIGO TESTAMENTO DIFERE DO NOVO EM CINCO ASPECTOS Primeiro aspecto: representação de bênçãos espirituais por meio das temporais [1-3] 1. A ênfase nos benefícios terrenos, os quais, entretanto, levariam a considerações celestes a. outrora, o Senhor quis que seu povo direcionasse e elevasse sua mente à herança celestial; contudo, para melhor nutri-los nessa esperança, ele a manifestou para que vissem e, por assim dizer, provassem, sob a forma de benefícios terrenos b. mas agora que o evangelho revelou mais clara e evidentemente a graça da vida futura, o Senhor conduz nossa mente para meditar diretamente sobre ela, deixando de lado a modalidade mais rasa de instrução que empregou com os israelitas c. as possessões terrenas herdadas pelos israelitas eram senão um espelho no qual eles viam a herança futura que acreditavam estar preparada para eles no céu 2. As promessas terrenas correspondiam à infância da igreja no Antigo Testamento; mas não deveriam acorrentar a promessa às coisas terrenas a. o Senhor, mantendo Israel sob tutela, não concedeu promessas espirituais amplas e rasas, mas prefiguradas, em alguma medida, por promessas terrenas b. exemplos de Abraão, Davi e os profetas, baseados no argumento de Paulo em Gálatas 4:1-3 3. Benefícios físicos e castigos físicos enquanto tipos a. os santos, debaixo do Antigo Testamento, estimavam a vida moral mais do que nós devemos fazê-lo hoje, porque a vida moral era a esfera na qual tipos e símbolos eram dados para testificar da felicidade espiritual vindoura b. como os benefícios de Deus eram mais notáveis em coisas terrenas, assim também o eram seus castigos c. que Deus pune, hoje, mais gentil e raramente, é uma consideração que não aponta para a ação de diferentes deuses, mas para a forma da dispensação de Deus Segundo aspecto: a verdade, no Antigo Testamento, transmitida por imagens e cerimônias, tipificando Cristo [4-6] 4. O significado da diferença a. a segunda diferença entre o Antigo e o Novo Testamentos consiste em ilustrações: na ausência da realidade, elas mostravam senão uma imagem e sombra em vez da substância b. o Novo Testamento revela a presença da própria substância da verdade c. argumento do livro de Hebreus, concluindo que a função da lei deveria ser de uma introdução; a esperança superior sendo revelada no evangelho — e, da mesma forma, as cerimônias do Antigo Testamento eram observâncias à espera de sua confirmação em Cristo 5. Infância e maturidade da igreja a. foi da vontade do Senhor que a “infância dos judeus fosse educada nos elementos deste mundo e em observâncias exteriores pueris, como regras para a instrução desta criança” b. a lei e os profetas deram aos homens de seu tempo um antegosto daquela sabedoria que um dia haveria de ser claramente revelada 6. Até mesmo os grandes homens de fé permaneceram dentro dos limites da antiga aliança a. essa perspectiva não é afetada pelo fato de que não se encontra quase ninguém, na igreja cristã, que se compare a Abraão em excelência de fé b. o foco de nossa consideração, aqui, não é uma comparação da graça concedida a poucos, mas a dispensação que Deus utilizou na instrução de seu povo Terceiro aspecto: o Antigo Testamento é literal; o Novo, espiritual [7-8]7. Origem bíblica e significado dessa diferença a. comparação da lei e do evangelho com base em Jeremias 31.31-34, e 2Coríntios 3.6-11 b. a lei o evangelho doutrina literal doutrina espiritual lavrados em tábuas de pedra escrito no coração do homems proclamação da morte proclamação da vida proclamação da condenação proclamação da justificação a ser inutilizada permanente 8. A diferença em detalhes, conforme 2Coríntios 3 a. o Antigo Testamento é o ministério da condenação, pois acusa todos os filhos de Adão de injustiça, enquanto o Novo Testamento é o ministério da justiça, pois revela a misericórdia de Deus por meio da qual somos justificados b. esse contraste deve remeter à lei cerimonial, porque, como o Antigo [Testamento] portava a imagem de coisas ausentes, ele precisava morrer e desaparecer com o tempo, enquanto o evangelho, porque revela a própria substância, permanece para sempre c. não devemos supor, a partir dessa diferença entre a letra e o espírito, que o Senhor inutilmente outorgou sua lei sobre os judeus e que nenhum deles voltou- se para ele Quarto aspecto: servidão do Antigo Testamento e liberdade do Novo [9-10] 9. O ensino de Paulo a. a Escritura refere-se ao Antigo Testamento como sendo de “servidão”, porque produz medo na mente dos homens; e ao Novo Testamento como sendo de “liberdade”, porque os eleva à confiança e segurança b. analogia Agar-Sara c. os santos patriarcas não eram exceção à comparação de “servidão-liberdade” quando consideramos a dispensação comum pela qual o Senhor, naquele momento, lidou com os israelitas 10. Lei e evangelho a. conquanto a palavra “lei” se refere ao Antigo Testamento, deve se entender que “lei” inclui também, em si, as promessas proclamadas antes a lei b. os filhos da promessa, nascidos de Deus, que obedeceram aos mandamentos pela fé, operante por meio do amor, pertenceram à nova aliança desde o princípio do mundo c. assim, todos os santos que a Escritura menciona serem singularmente escolhidos por Deus desde o princípio do mundo, partilharam conosco da mesma bênção para a salvação eterna d. os patriarcas viveram sob a antiga aliança de tal maneira a não permanecer nela, mas a sempre aspirar pela nova e, assim, alcançaram uma participação real nela Quinto aspecto: o Antigo Testamento remete a uma nação, o Novo, a todas as nações [11-12] 11. O véu rasgou-se em Cristo a. a quinta diferença que pode ser acrescentada reside no fato de que, até o advento de Cristo, o Senhor separou uma nação para, dentro dela, confinar a aliança de sua graça b. Israel e as outras nações em comparação Israel Outras nações unido a Deus por meio de sua palavra permitido caminhar na futilidade o filho querido de Deus estrangeiros reconhecido e recebido na confiança e no cuidadodeixadas à própria escuridão santificado por Deus profanadas honrado pela presença de Deus excluídas de toda proximidade de Deus c. porém, na plenitude dos tempos, Deus foi revelado como reconciliador entre si mesmo e todos os homens 12. O chamado dos gentios a. o chamado dos gentios é, portanto, uma marca notável da excelência do Novo Testamento em relação ao Antigo b. nem mesmo Cristo, no início de sua pregação, fez qualquer movimento imediato quanto ao chamado dos gentios RESPOSTA A OBJEÇÕES ACERCA DA JUSTIÇA E CONSISTÊNCIA DE DEUS NESSAS DIFERENÇAS DE ADMINISTRAÇÃO [13-14] 13. Por que as diferenças, em geral? a. objeção: alguns dizem que não é adequado que Deus, sempre autoconsistente, permitisse uma grande mudança, desaprovando mais tarde o que outrora indicou e ordenou b. resposta: (1) Deus não deve ser considerado mutável simplesmente porque acomodou formas diversas a períodos distintos, conforme sabia ser conveniente para cada um (2) o que é mutável é a faculdade humana 14. A liberdade de Deus para lidar com todos os homens, como ele quer a. segunda objeção: Deus não poderia igualmente ter revelado a vida eterna em palavras claras, sem quaisquer ilustrações, tanto no princípio quanto após o advento de Cristo? b. resposta: é como se eles estivessem discutindo com Deus porque ele demorou para criar o mundo, ao passo que poderia tê-lo feito desde o início CAPÍTULO 12 A fim de cumprir o ofício de mediador, Cristo deveria se fazer homem Razões por que era necessário que o mediador deveria ser Deus e se fazer homem [1-3] 1. Somente aquele que fosse Deus verdadeiro e homem verdadeiro poderia transpor o abismo entre nós e Deus a. nosso Mediador precisava ser tanto Deus verdadeiro quanto homem verdadeiro, não por simples necessidade, mas por decreto divino, tendo nosso Pai decretado o que é melhor para nós b. nem filho de Adão, nem anjo; antes, a verdadeira majestade de Deus desceu até nós, já que não estava no nosso poder ascender até ele c. o abismo entre a pequenez do homem e a majestade de Deus (mesmo que o homem não tivesse caído) só poderia ser transposto dessa maneira d. Paulo o descreve como “o homem Jesus Cristo” para acomodar à nossa fraqueza: a natureza humana de Cristo é nosso caminho até Deus 2. O mediador deve ser Deus verdadeiro e homem Verdadeiro a. a tarefa gigantesca do mediador: restaurar os homens à graça de Deus — algo que somente o próprio Filho de Deus poderia fazer b. nossa adoção como filhos da graça só é possível com Cristo assumindo completamente nossa natureza humana e suas consequências (mas sem o pecado) c. nosso Redentor precisava ser ambos, Deus e homem, pois ao comer da morte, o homem deveria morrer, mas a Vida deveria vivificar d. portanto, o Filho unigênito se tornou nosso Redentor 3. Somente aquele que fosse Deus verdadeiro e homem verdadeiro poderia ser obediente em nosso lugar a. somente a obediência perfeita de Cristo à vontade do Pai poderia suplantar nossa desobediência: (1) enquanto homem, ele padeceu da morte; enquanto Deus, triunfou sobre ela (2) aqueles que rompem a união do Deus-homem, para qualquer lado que seja, são perigosos para a fé dos homens b. Cristo não era um homem qualquer, mas o descendente de Abraão e Davi: portanto, temos ainda mais certeza de que ele é o ungido Resposta à objeção a essa doutrina [4-7] 4. O único propósito da encarnação de Cristo foi a nossa redenção a. alguns especulam que Cristo ainda se teria feito homem, mesmo se não fosse necessária a redenção da humanidade b. contudo, testemunhos claros da Escritura negam isso e afirmam que Cristo encarnou para a nossa salvação (1) testemunhos do Antigo Testamento (2) testemunhos do Novo Testamento 5. Teria Cristo também se feito homem se Adão não tivesse pecado? a. (Osiander) alega que Cristo teria encarnado para mostrar seu amor pelos homens, mesmo que Adão não tivesse pecado b. resposta: a condição condenada do homem e a vinda de Cristo estão unidas por um decreto eterno de Deus: não é lícito, portanto, especular para além disso c. Osiander reacendeu a questão: é ele — e não Calvino — que é presunçoso na especulação para além dos limites estabelecidos pela Escritura 6. A doutrina de Osiander da imagem de Deus a. o fundamento de Osiander: o homem foi criado à imagem de Deus — o padrão do Messias por vir b. infere daí que: se Adão nunca tivesse caído, Cristo ainda teria se feito homem; Osiander pensa que ele foi o primeiro a ver a natureza da imagem de Deus no homem — que Deus habitou essencialmente nele c. sim [diz Calvino], como a mais elevada das criaturas de Deus, Adão portou a imagem de Deus, mas não mais do que os anjos d. Cristo, o cabeça sobre homens e anjos (1) anjos têm uma visão direta de Deus porque eles são como o Filho (2) nossa beatitude futura tomará a forma de anjos e, então, desfrutaremos da visão perpétua de Deus 7. Refutação de Osiander ponto a ponto a. Osiander alega que sem um decreto imutável acerca da encarnação do Filho, Deus se torna um mentiroso b. além disso, se Cristo não tivesse nascido como primeiro homem (não como Redentor) tudo estaria vinculado à contingência histórica — em oposição ao ensino de Paulo sobre o primeiro e segundo Adão c. Osiander pensa queCristo só tem primazia sobre os anjos à medida que os homens o têm — isso foi refutado por Paulo d. Osiander pensa que se Cristo não tivesse sido homem, os homens não o teriam tomado por rei, por cabeça de sua igreja — mas Calvino contesta que Cristo, ainda que não encarnado, poderia ter dirigido sua igreja assim como dirige os anjos e. Osiander apresenta, agora, a “profecia de Adão” (“osso dos meus ossos e carne de minha carne”) (1) isso não é “profecia”, mas diz respeito à fidelidade no casamento (2) a interpretação de Paulo sobre essa profecia (Ef 4.30-31) se vale apenas da figura do casamento para nossa união com Cristo CAPÍTULO 13 Cristo assumiu a verdadeira substância do corpo humano Referindo-se a heresias antigas, Calvino responde Menno Simons [1-2] 1. Prova da verdadeira humanidade de Cristo a. já provamos a divindade de Cristo (1.13); nossa tarefa presente é mostrar como ele, encarnado, foi nosso mediador b. marcionitas e maniqueus impugnaram, há muito tempo, a autenticidade da encarnação de Cristo c. as Escrituras, por sua vez, afirmam repetidamente a realidade da encarnação de Jesus 2. Contra os adversários da verdadeira humanidade de Cristo a. análise detalhada da distorção de passagens escriturísticas para confirmar erros de: (1) Marcião (2) Mani b. interpretação errônea de “Filho do Homem” (1) eles dizem que Cristo é assim chamado porque ele foi prometido aos homens (2) na verdade, “Filho do Homem” é uma expressão hebraica que significa “verdadeiro homem”; textos escriturísticos confirmam a plena humanidade de Cristo c. interpretação equivocada de “primogênito” (1) eles dizem que Cristo, para ser primogênito, deveria ter nascido de Adão, no princípio (2) contudo, aqui, “primogênito” faz referência não à idade, mas ao grau de honra e eminência de poder de Cristo d. interpretação errada da afirmação de que Cristo recebeu uma natureza humana, e não angélica (1) eles dizem que isso significa que ele acolheu a humanidade na graça (2) na verdade, Paulo está enaltecendo, nessa passagem, a honra que Cristo se dignou a nos dar, ao nos comparar com os anjos e. toda a controvérsia se resolve com Gênesis 3.15, que diz que a descendência da mulher esmagaria a cabeça da serpente (1) isso se refere a toda a humanidade (2) devemos alcançar a vitória por meio de Cristo (3) Cristo veio ao mundo como homem porque Deus disse a Eva para encher-se de esperança e não sucumbir ao desespero (2) a ordem política, porém, dá uma posição preferencial ao sexo masculino (3) todas as genealogias na Escritura mencionam somente homens, mas isso não significa que as mulheres não sejam importantes! (4) testemunho da lei, graus de casamento proibidos etc. provam que as mulheres contribuem igualmente para a descendência d. quando Mateus diz que Cristo foi gerado de Maria, ele não quer dizer que a virgem foi um mero canal por meio do qual Cristo fluiu 4. Cristo foi um verdadeiro homem — mas sem pecado! Um verdadeiro homem — mas também Deus eterno! a. eles consideram vergonhoso que Cristo derive sua origem dos homens; dessa forma, ele não seria isento do pecado b. Cristo, porém, teve o mesmo tipo de nascimento que nós, mas, como diz Paulo, foi resguardado do pecado c. contra seus equívocos, a liberdade de Cristo em relação ao pecado não deve ser explicada por qualquer processo mecânico, mas pela santificação do Espírito que fez de sua geração tão pura e imaculada quanto aquela antes da Queda de Adão d. “poderia a Palavra ser confinada aos estreitos limites de um corpo terreno?”, eles perguntam; nossa resposta [o “extra-calvinisticum”] : “o Filho do Homem desceu do céu de tal forma que, sem que deixasse o céu, ele desejou ser carregado no ventre da virgem, percorrer a terra e ser pendurado na cruz; não obstante, ele preenchia o mundo continuamente, assim como o fizera desde o princípio!” CAPÍTULO 14 Como as duas naturezas do mediador perfazem uma só pessoa Explicação das naturezas divina e humana em Cristo [1-2] 1. Dualidade e unidade a. “a Palavra se fez carne” = o Filho de Deus se fez Filho do Homem, não por confusão de substâncias, mas por unidade de pessoa b. a melhor analogia humana para essa união misteriosa é a do corpo e da alma: algumas características do corpo e da alma são distintas entre si; algumas são comuns; outras são passíveis de serem transferidas: mas duas naturezas subjacentes diferenciadas perfazem uma só pessoa c. assim também é com Cristo; a permutação de características na pessoa única do Mediador é chamada communicatio idiomatum [comunicação das propriedades] 2. Divindade e humanidade em sua relação mútua [classificação dos textos escriturísticos] a. da sua divindade b. da sua humanidade c. da comunicação das propriedades 3. A unidade da pessoa do Mediador: textos abrangendo ambas as naturezas de uma vez a. no Evangelho de João b. em Paulo c. as duas naturezas unidas na pessoa do Mediador (1) confundidas por alguns dos primeiros autores (2) o ofício do Mediador (que se estende até o Juízo Final) abrange, de uma vez, ambas as naturezas d. o mesmo argumento deve ser feito acerca do título “Senhor” Condenação dos erros de Nestório, Êutiques e Serveto [4-8] 4. As duas naturezas não podem ser pensadas como fundidas ou separadas a. um exame piedoso dos mistérios do ofício do Mediador evitaria a ruptura da união no sentido da extremidade do homem ou de Deus b. nós defendemos, portanto, que Cristo, enquanto Deus e homem, é detentor de duas naturezas unidas, mas não mescladas: é nosso Senhor e o verdadeiro Filho de Deus, até mesmo no tocante à sua humanidade, mas não em razão dela c. que nós evitemos, portanto, os erros geminados de (1) Nestório e seu Cristo duplo (as naturezas apartadas) (2) Êutiques, ao tentar mostrar a unidade da pessoa, destrói uma ou outra natureza (as pessoas amalgamadas) 5. O erro cristológico de Miguel Serveto a. Síntese da visão errônea de Serveto: (1) pressupõe que o Filho de Deus é uma invenção composta a partir da essência, ele espírito e corpo de Deus, e três elementos não criados (2) ele nega o Deus-homem, defendendo que antes de Cristo vir em carne, havia apenas imagens prefigurativas em Deus, as quais foram esclarecidas somente quando a Palavra verdadeiramente começou a se tornar o Filho de Deus b. em resposta, afirmamos a visão tradicional da igreja: que o Logos preexistente, o Filho eterno de Deus, assumiu a natureza humana em uma união hipostática; refutações e provas adicionais 6. Cristo enquanto Filho de Deus e Filho do homem a. Serveto alega que a Cristo só poderia ser conferido o título de “Filho de Deus” porque ele encarnou b. a Escritura, porém, prova que Cristo é Filho segundo ambas as naturezas (1) Cristo é, por natureza, Filho de Deus; nós somos filhos por adoção e graça somente (2) enquanto Cristo é preeminentemente o Filho de Deus em sua natureza divina, a filiação pode ser estendida a toda a pessoa do Mediador c. a Escritura claramente ensina as duas naturezas de Cristo, estabelecendo uma cuidadosa diferenciação entre elas (1) Filho do homem: da descendência de Adão (2) Filho de Deus: em virtude de sua deidade e essência eterna 7. A frágil contraprova de Serveto a. Serveto cita Romanos 8.32 e Lucas 1.32 para defender a alegação de que Cristo era Filho de Deus somente em virtude de sua encarnação b. ele também afirma que antes de se manifestar em carne, Cristo nunca havia sido chamado de “Filho de Deus”, exceto figurativamente c. essas visões são refutadas pela Escritura e por Agostinho, e também se invoca o apoio de Irineu e Tertuliano para a ortodoxia (contra Serveto) 8. Apresentação e refutação completa da doutrina de Serveto a. a reivindicação de Serveto de que Cristo era o Filho de Deus apenas segundo o corpo cheira à antiga visão dos maniqueus de que o homem tem sua alma por derivação de Deus b. resumo da visão de Serveto (com base na falsa interpretação de “a Palavra se fez carne”) (1) o Filho de Deus era, desde o princípio, uma ideia, e mesmo então foi preordenadoa ser o homem que se tornaria a imagem essencial de Deus (2) a Palavra de Deus não vai além do esplendor exterior (3) a geração de Cristo: a vontade de gerar o Filho foi gerada em Deus desde o princípio e estendeu-se, por ato, à própria Criação (4) Palavra e Espírito se confundem, pois Deus distribuiu em corpo e alma a Palavra invisível e o Espírito (5) a Palavra, no entanto, tinha uma função seminal, porque o Filho prefigurativo foi gerado pela Palavra (6) para ter Cristo gerado da essência de Deus, Serveto compõe Cristo a partir de três elementos não criados (7) o corpo de Cristo era da mesma substância que Deus; a Palavra foi tornada homem pela conversão da carne em Deus (8) Cristo não pode ser o Filho de Deus a menos que seu corpo derive da essência de Deus; como consequência, Serveto reduz a hipóstase eterna da Palavra a nada, arrancando de nós o Filho de Davi, prometido como nosso Redentor c. já foi dito o bastante, aqui, sobre as visões de Serveto; elas estão mais amplamente refutadas em outro lugar; concluímos: se o corpo fosse divindade em si, cessaria de ser o templo de Deus CAPÍTULO 15 Para conhecer o propósito pelo qual Cristo foi enviado pelo Pai e o que ele nos concedeu, precisamos contemplar nele, sobretudo, três coisas: o ofício profético, real e sacerdotal A obra salvadora tripartite de Cristo: Primeiro, o ofício profético [1-2] 1. A necessidade de entender essa doutrina: passagens escriturísticas referentes ao ofício profético de Cristo a. os papistas falam do Filho de Deus referindo-se a ele pelos nomes tradicionais, mas os utilizam de forma ineficiente e vazia b. nossa tarefa, portanto, é entender o propósito e uso dos títulos de Cristo c. Deus concedeu uma cadeia contínua de profetas para ensinar a salvação — mas todos eles vislumbraram um entendimento pleno somente com a vinda de Cristo 2. O significado do ofício profético para nós a. o nome Cristo pressupõe três ofícios, todos performados pela unção com óleo: profeta, sacerdote e rei b. o messianismo está ligado especialmente ao ofício real, mas não pode ser negligenciado nos outros dois c. Cristo, como afirma a Escritura, foi ungido como profeta, mas não apenas para si enquanto mestre; sua unção enquanto profeta também se aplica a todo seu corpo, a igreja, na qual a pregação do evangelho deve continuar O ofício real — sua natureza espiritual 3. A eternidade do domínio de Cristo a. reinado espiritual b. portanto, eficaz e proveitoso para nós; e eterno de duas formas (1) na igreja, que resistirá a todas as tempestades, preservada pela eternidade (2) no crente em particular, estimulado à esperança na bênção da imortalidade 4. A bênção do ofício real de Cristo para nós a. a felicidade prometida a nós não reside na prosperidade terrena, mas em uma vida celeste após a morte b. Cristo nos enriquece com aquilo que precisamos para combater nossos inimigos espirituais com coragem e êxito c. apesar de todas as nossas tribulações terrenas, Cristo, nosso rei, não nos deixará desamparados: hino de segurança do crente 5. A natureza espiritual do oficio real: a soberania de Cristo e do Pai a. o “óleo” não é físico, mas o “óleo espiritual da alegria” do salmo (Sl 45.7), recebido não para si mesmo, mas para nosso proveito b. essa unção sagrada é visivelmente simbolizada no batismo de Cristo c. a menção de Paulo, de Cristo entregando seu reinado ao Pai, significa simplesmente que a perfeita administração do reino não será como é agora d. “ao lado direito do Pai” = o representante do Pai, como Paulo explica ao chamar Cristo de cabeça da igreja e. Cristo é tanto rei quanto pastor dos santos, além de executor do juízo sobre os ímpios O ofício sacerdotal: reconciliação e intercessão [6] 6. O propósito e consecução do ofício sacerdotal de Cristo a. por sua santidade, Cristo, nosso Mediador, nos reconcilia a Deus b. contudo, por justa maldição, Deus nos é interditado; daí que uma expiação é necessária para que nos acheguemos a ele c. como mostra a Epístola aos Hebreus, somente a morte do próprio sacerdote pode nos trazer o benefício de seu sacerdócio d. por essa razão, Cristo é um intercessor eterno, e daí nossa confiança na oração, nossa paz de consciência e nossa confiança na misericórdia de Deus e. Cristo é nosso sacerdote não apenas para termos o favor do Pai, mas também para que nos receba como companheiros em seu ofício sacerdotal f. o sacrifício do nosso sumo sacerdote é definitivo — nada de sacrifícios diários papistas! CAPÍTULO 16 Como Cristo cumpriu a função de Redentor para nos comprar a salvação. Aqui, discute-se também sua morte e ressurreição, bem como sua ascensão ao céu Alienados de Deus pelo pecado, que nos amou mesmo assim, somos reconciliados por Cristo [1-4] 1. O Redentor a. nosso ensino sobre Cristo, até aqui, teve um único objetivo (1) o Redentor nos foi enviado divinamente (2) no instante em que voltamos nossa contemplação para outra coisa, nossa salvação (firmada nele) desaparece b. ninguém pode mergulhar em si mesmo e considerar seriamente quem é sem sentir a ira e hostilidade de Deus para consigo: daí que o pecador não deve buscar uma certeza modesta 2. A consciência da ira de Deus nos torna gratos por seu ato amoroso em Cristo a. os textos de Paulo sobre a inimizade de Deus para conosco até a morte reconciliadora de Cristo pretendem adequar ao nosso entendimento a nossa ruína sem Cristo b. se a Escritura tivesse simplesmente afirmado que Deus, por sua livre benevolência, não permitiu que nós dele nos alienássemos, só isso já nos levaria a experimentar um pouco da misericórdia de Deus c. mas o ensino mais dramático das Escritura acerca da condição temerosa do homem até a intercessão de Cristo retrata de forma bem mais eficaz a graça de Deus d. a Escritura ensina, assim, que antes de abraçarmos o amor de Deus, devemos ter nossas consciências marteladas pela ira de Deus através do ensino de sua hostilidade para conosco à parte de Cristo 3. A ira de Deus contra a injustiça; seu amor precede nossa reconciliação em Cristo a. entretanto, essa forma de ensino não é uma mera acomodação à nossa frágil capacidade: Deus não pode tolerar nossa injustiça b. apesar de pecadores, permanecemos criaturas de Deus criadas para a vida — embora tenhamos trazido morte sobre nós mesmos —, e ele nos ama c. por seu amor, Deus se adianta e antecipa nossa reconciliação em Cristo d. nossa segurança da benevolência de Deus reside somente em Cristo 4. A obra da expiação deriva do amor de Deus; portanto, aquela não foi estabelecida por este a. é evidente a convergência de passagens da Escritura sobre o amor de Deus por nós e sobre sua inimizade para conosco à parte de Cristo b. mas, se para além da Escritura, exigir-se o testemunho da igreja antiga, que se ouça Agostinho: (1) o amor de Deus é inefável e imutável (2) o amor reconciliador de Deus por nós precede seu ato reconciliador em Cristo (3) Deus odeia o que fizemos com sua obra, mas ama a sua obra em nós Os efeitos da obediência e morte de Cristo [5-7] 5. Cristo nos redimiu por meio de sua obediência, que ele observou ao longo de sua vida a. alcançou a reconciliação para nós por meio de sua obediência contínua, como mostrou Paulo b. isso, contudo, é visto especialmente na morte de Cristo; o Credo Apostólico o revela ao passar diretamente do nascimento de Cristo para sua morte e ressurreição c. ademais, outros textos escriturísticos remetem igualmente à obediência prévia de Cristo A condenação por meio de Pilates d. o modo peculiar da morte de Cristo, fundamentada em um julgamento e uma sentença judicial, era necessário para que a condenação destinada a nós fosse transferida a ele — não serviria qualquer morte e. todas as circunstâncias de sua morte exemplificam a condenação de um homem sem pecado por nossas transgressões f. assim nossa culpa foi transferida para Cristo: um fato que devemos nos lembrar ao longo da vida para nos livrar do medo e da ansiedade 6. “Crucificado” a. o modo da morte de Cristo tambémabarca um mistério singular (1) contemplado na cruz, o tipo mais execrável de morte (2) preconizado também no aschamot, ou sacrifícios para purificação de pecado, do qual Cristo era o arquétipo b. Paulo explicita isso em muitas passagens: (1) evidenciando as profecias de Isaías sobre o servo sofredor (2) enfatizando a necessidade de sacrifício de sangue, tanto para satisfazer a Deus quanto para nos purificar 7. “Morto e enterrado” a. primícia da morte de Cristo por nós: libertação da morte a que fomos cativos b. segundo fruto da morte de Cristo por nós: mortificação da nossa carne Explicação da doutrina da descida ao inferno [8-12] 8. “Desceu ao inferno” a. embora esse artigo do credo provavelmente tenha sido acrescentado mais tarde, ele menciona, não obstante, uma crença amplamente aceita na igreja primitiva: a descida de Cristo ao inferno b. o credo em si, ainda que não seja de autoria apostólica, é uma síntese confiável da nossa fé extraída da Escritura c. a visão de alguns de que “desceu ao inferno” é sinônimo de sepultamento é rejeitada com fundamentos lógicos 9. Cristo no submundo? a. outra visão: a descida de Cristo ao inferno serviu para libertar as almas dos patriarcas que morreram debaixo da lei b. essa é a fonte do “limbo”, uma prisão subterrânea das almas dos mortos c. a passagem de 1Pedro 3.18-20, interpretada por alguns; sua interpretação aqui corrigida 10. A “descida ao inferno” enquanto uma expressão da tormenta espiritual que Cristo atravessou por nós a. uma morte meramente corpórea da parte de Cristo teria sido ineficaz para nós b. ele, portanto, atravessou toda a severidade da vingança de Deus para aplacar a ira de Deus para conosco c. alguns rejeitam minha interpretação alegando que ela coloca após o sepultamento dele aquilo que o precede 11. Defesa dessa explicação a partir de passagens escriturísticas a. Jesus Cristo tinha de passar pelo completo senso de afastamento do Deus Pai, pelo temor vívido da morte, para que portasse plenamente nossa natureza b. o grito de abandono de Cristo não foi mera expressão da opinião dos outros, mas proveio da profunda angústia de seu próprio coração c. Cristo teve que lutar e dominar o medo que atormenta todos os mortais para possibilitar que nós também não sejamos engolidos pela morte 12. Defesa da doutrina contra os erros e mal-entendidos a. alguns alegam que Jesus não poderia ter temido pela salvação de sua alma b. refutação da visão dos nossos adversários em detalhes (1) a aflição e a tristeza de Cristo (negadas por eles) evidenciam que sua alma, bem como seu corpo, participou dos castigos para que pudéssemos ser totalmente redimidos (2) eles negam qualquer coisa de ruim em Cristo: Cristo voluntariamente assumiu nossa fraqueza, nossa natureza decaída (mas sem pecado) — não prescindindo, assim, de seu poder (3) eles alegam, então, que Cristo temeu a morte, mas não a maldição e ira de Deus, da qual ele próprio sabia estar a salvo — Cristo teve uma porfia mais difícil e agressiva do que pela morte comum (4) visões errôneas, como essas, mostram que pessoas com esse tipo de pensamento não entenderam de fato o alto preço que a nossa salvação custou para o Filho de Deus c. [Calvino aqui se aproxima de uma visão kenótica] o poder divino do espírito de Cristo permaneceu temporariamente oculto, abrindo caminho para a fraqueza da carne; contudo, essa dor e esse medo não eram contrários à fé d. rejeição dos erros apolinaristas e monotelistas que fazem de Cristo somente meio-homem e. o grande paradoxo de João 12.27s A ressurreição, ascensão e sessão celeste de Cristo [13-16] 13. “Surgiu dos mortos novamente ao terceiro dia” [três benefícios da morte de Cristo por nós] a. é somente na ressurreição de Cristo, não em sua morte, que reside a vitória da nossa fé (1) na Escritura, a divisão da nossa salvação entre a morte e a ressurreição de Cristo é como se segue (a) pela morte, o pecado e a morte são aniquilados (b) pela ressurreição, a justiça é restaurada e a vida é trazida (c) assim, por meio da ressurreição, o poder de sua morte nos é manifestado (2) ao manusear as passagens escriturísticas relevantes, devemos entender que a “morte”, por sinédoque, inclui a “ressurreição” e vice-versa b. além disso, assim como a mortificação de nossa carne depende da nossa participação na cruz de Cristo, assim também somos beneficiados por sua ressurreição c. sua ressurreição garante a nossa d. conclusão: Cristo sofreu a mesma morte de que outros homens naturalmente padecem; e recebeu a imortalidade no mesmo corpo que, no estado mortal, ele assumiu para si 14. “Ascendeu ao céu” a. a ascensão de Cristo ao céu nos deve ser real de uma forma mais proveitosa do que sua presença corpórea b. assim como seu corpo foi assunto acima de todo céu, também seu poder e potência foram difusos e espalhados para além de todas as fronteiras do céu e da terra c. Agostinho harmoniza as palavras “vós não me tereis sempre convosco” e “eis que estarei sempre convosco”: nós sempre temos Cristo de acordo com a presença da sua majestade, mas sua presença física junto a sua igreja foi somente por poucos dias 15. “Sentado à direita do Pai” a. o “sentar” é tomado da comparação com um assessor na corte de um rei b. a sessão divina de Cristo significa que ele se apossou do governo conferido a ele até o dia do juízo c. sua sessão celeste significa, portanto, mais do que a designação de sua beatitude 16. Benefícios transmitidos à nossa fé pela ascensão de Cristo a. a ascensão do Senhor ao céu abriu o caminho para o reino celestial anteriormente fechado por Adão b. Cristo no céu é nosso constante advogado e intercessor junto ao Pai c. nossa fé abrange o poder de Cristo, no qual reside nossa força contra os poderes do inferno A volta futura de Cristo em juízo [17] a. porque o reino de Cristo jaz oculto na terra sob a baixeza da carne (apesar da clara indicação de seu presente poder para aqueles que creem), a fé é chamada a considerar a presença corpórea e visível de Cristo, que ele manifestará no dia do juízo b. ninguém — vivo ou morto — pode escapar de seu juízo c. enquanto alguns autores apresentam diferentes explicações para as palavras “os vivos e os mortos”, é evidente que esta é a interpretação correta com a qual a Escritura e o credo consentem Apontamentos finais sobre o Credo Apostólico e a suficiência de Cristo [18-19] 18. O juiz é — o Redentor! a. temos grande confiança em nossa convicção de que Cristo, como intercessor, não condenará aqueles a quem recebeu sob sua guarda e proteção b. seguimos a ordem do Credo Apostólico porque ela resume, convenientemente, os principais elementos de nossa redenção, muito embora não tenhamos ilusão de sua autoria apostólica; ele foi obviamente aceito pela igreja primitiva, com o consentimento de todos, como uma profissão pública 19. Somente Cristo em todas as cláusulas do credo a. toda a nossa salvação reside em Cristo; nenhuma de suas partes provém de outro lugar: (1) nossa força — em seu domínio (2) nossa pureza — em sua concepção (3) nossa brandura — em seu nascimento (4) nossa redenção — em sua paixão (5) nossa absolvição — em sua condenação (6) nossa remissão da maldição — em sua cruz (7) nossa satisfação — em seu sacrifício (8) nossa purificação — em seu sangue (9) nossa reconciliação — em sua descida ao inferno (10) nossa mortificação da carne — em sua tumba (11) nossa novidade de vida — em sua ressurreição (12) nossa imortalidade — igualmente (13) nossa herança do reino celeste — em seu ingresso no céu (14) nossa proteção, segurança e suprimento abundante de todas as bênçãos — em seu reino (15) nossa expectativa serena do juízo — no poder dado a ele para julgar b. contudo, se nós verdadeiramente conhecemos as bênçãos de Cristo, não vamos como alguns homens, correr aqui e ali atrás de outras fontes de salvação CAPÍTULO 17 Diz-se, correta e adequadamente, que Cristo mereceu a graça e salvação de Deus por nós 1. O mérito de Cristo não exclui a livregraça de Deus, mas a antecede a. alguns homens aceitam a visão de que nós recebemos a salvação por meio de Cristo, mas ao negar a ideia de “mérito”, eles fazem de Cristo um simples instrumento, e não o autor e príncipe da vida b. citando Agostinho, refutamos isso e afirmamos a seguinte ordenação (1) o bom favor de Deus aponta Cristo como mediador para alcançar a salvação para nós (2) portanto, estamos livremente justificados pela misericórdia de Deus somente, mas, ao mesmo tempo, o mérito de Cristo (subordinado à misericórdia de Deus) intercede por nós 2. A Escritura conjuga a graça de Deus e o mérito de Cristo a. a Escritura ensina o amor de Deus como a causa maior; a fé em Cristo como causa segunda ou imediata b. de alguma forma inefável, Deus nos amou e, não obstante, esteve irado conosco ao mesmo tempo, até que se reconciliou conosco em Cristo c. nós, filhos da ira afastados de Deus pelo pecado, adquirimos, pelo sacrifício de Cristo, livre justificação para aplacar a Deus 3. O mérito de Cristo no testemunho da Escritura a. como muitas passagens atestam, Cristo mereceu e adquiriu graça para nós junto ao Pai b. significado de passagens-chave em Romanos 5 (1) Romanos 5.10-11: Deus, para quem somos detestáveis por causa do pecado, foi aplacado pela morte de seu Filho para se tornar favorável a nós (2) Romanos 5.19: antítese — da mesma forma que, pelo pecado de Adão, fomos separados de Deus e destinados à destruição, assim também pela obediência de Cristo somos recebidos em seu favor como justos 4. A substituição de Cristo a. “a graça nos foi transmitida pelo mérito de Cristo”, significa:, por seu sangue, nós fomos lavados, e sua morte foi uma expiação para os nossos pecados b. Cristo é contrastado com todos os sacrifícios da lei que o prefiguram, especialmente a partir da Epístola aos Hebreus c. devemos aceitar o poder expiatório do sacrifício de Cristo: ele se fez maldição para que nossos pecados fossem perdoados 5. A morte de Cristo: o preço da nossa redenção a. os apóstolos claramente testemunham que a punição pelos nossos pecados foi paga por Cristo b. a natureza e eficácia do sacrifício de Cristo pelos nossos pecados afirmada claramente no Novo Testamento: a promessa feita por Deus pelas nossas obras, inalcançáveis pela natureza pecaminosa, é consumada pela morte de Cristo por nós 6. Cristo não obtém mérito para si mesmo a. a tola questão de Lombardo e dos escolásticos: Cristo mereceu qualquer coisa para si mesmo? b. segundo o plano de Deus, como a Escritura mostra, Cristo se entregou em sacrifício e esqueceu de si mesmo em nosso favor c. o uso de Filipenses 2.9, pelos nossos adversários, como prova dos méritos de Cristo para si mesmo é errado: Paulo está afirmando, aqui, simplesmente que a humilhação de Cristo é seguida por sua exaltação ¹ I. e., a opinião dos homens à parte de Deus. (N. do T.) ² O termo “necessário”, nesta seção, remete à natureza pecaminosa do homem que o induz forçosamente ao pecado, e não a um pecado que é cometido por dever. (N. do T.) ³ Publicado em português por Paulus sob o título “A correção e a graça”, em Patrística — A graça (II). ⁴ Publicado em português por Paulus sob o título “O espírito e a letra”, em Patrística — A graça (I). ⁵ I. e., das universidades, onde se gestou a “escolástica” como método filosófico e teológico. (N. do T.) O termo “extra-calvinisticum” é empregado, geralmente, no contexto dos debates cristológicos entre luteranos e calvinistas. Calvino defendia a posição de que a segunda pessoa da Trindade preservava uma existência para além da humanidade (“extra”) mesmo após a encarnação. O termo foi cunhado por luteranos, durante o século 17, e guarda uma semântica crítica, típica do contexto polêmico. (N. do T.) LIVRO TRÊS A forma pela qual recebemos a graça de Cristo: que benefícios ELA NOS TRAZ e quais os efeitos que decorrem dela CAPÍTULO 1 As coisas ditas acerca de Cristo nos beneficiam pela obra secreta do Espírito 1. O Espírito Santo é o vínculo que nos une a Cristo a. como nós recebemos aqueles benefícios que o Pai concedeu ao seu Filho, não para uso privado de Cristo, mas para enriquecer homens pobres e necessitados? b. fora de nós, Cristo não estaria conosco e, por essa razão, não nos beneficiaríamos salvificamente de sua obra: ele, portanto, tinha que se fazer um de nós e habitar em nosso meio, e nós, por meio da fé, devemos nos edificar em um só corpo com ele c. como nem todos desfrutam dessa comunhão com Cristo, devemos ir além e examinar o segredo do poder do Espírito, pelo qual nós chegamos a desfrutar de Cristo e de todos os seus benefícios d. textos escriturísticos que descrevem como nós vivenciamos Cristo em Espírito e. síntese: o Espírito Santo é o vínculo pelo qual Cristo efetivamente nos une a si mesmo (cf. unção II.15.2) 2. Como e por que Cristo foi dotado do Espírito Santo a. “Espírito de santificação”: em geral, para todas as criaturas; mas especialmente para a raiz e semente da vida celestial em nós b. Espírito do Pai/Espírito do Filho: o Filho possui a plenitude do Espírito para administrar aos homens 3. Títulos do Espírito Santo na Escritura a. Espírito de adoção (Rm 8.15; Gl 4.6) b. garantia e selo de nossa herança (2Co 1.22; cf. Ef 1.14) c. vida (Rm 8.10) d. água (Is 55.1; 44:3; João 7.37; Ez 36.25) e. óleo e unção (1Jo 2.20, 27) f. fogo (Lc 3.16) g. fonte (Jo 4.14) h. mão de Deus (At 11.21) 4. Fé: a principal obra do Espírito a. por isso, termos usados para exprimir seu poder e ação geralmente referem-se à fé b. o Espírito é a fonte da fé, o mestre interior da salvação prometida, o avivador de Cristo em nós CAPÍTULO 2 Fé: sua definição apresentada e suas propriedades explicadas O objeto da fé é Cristo [1] a. síntese (1) pela lei, Deus dispõe nosso dever; quando falhamos, a sentença de morte eterna é proferida sobre nós (2) está além da nossa capacidade cumprir a lei à risca (3) há somente um meio de libertação: Cristo, o Redentor b. as atuais noções de fé escolásticas são superficiais e inadequadas: e.g., consentimento simples à narrativa do evangelho c. a fé tem Deus como seu objeto, mas por meio de Cristo, por meio de quem Deus determinou revelar sua glória a nós (1) Cristo enquanto Deus: o destino da nossa fé (2) Cristo enquanto homem: o caminho da nossa fé Fé envolve conhecimento; a verdadeira doutrina obscurecida pela concepção escolástica de fé implícita [2-5] 2. A fé repousa sobre o conhecimento, não sobre ignorância piedosa a. a “fé implícita” destrói a verdadeira fé b. acreditar não significa (1) submeter-se à prescrição da igreja com obediência cega (2) significa, antes, conhecer a Deus enquanto Pai misericordioso por meio da reconciliação consumada em Cristo 3. A doutrina romana da fé “implícita” é fundamentalmente falsa a. a ignorância temperada de humildade e a reverência ingênua e imponderada pela igreja não são a verdadeira fé b. a fé consiste, antes, no conhecimento de Deus e de Cristo: a Escritura ensina que o entendimento deve ser coadunado à fé 4. Até mesmo a fé correta é sempre cercada por erros e descrença a. há espaço para a fé “implícita” em nós, contanto que habitemos na ignorância e no erro desta vida b. as obscuridades na Escritura nos humilham em nossa ignorância c. até mesmo os discípulos demonstraram uma fé implícita antes de alcançarem pleno esclarecimento 5. A fé “implícita” enquanto pré-requisito da fé a. evidências, no evangelho, de uma atenção reverente da parte de alguns que se abriram ao ensino de Cristo: a chamada “fé” era, na verdade, somente o princípio da fé b. essa disposição ensinável é, contudo, bem diferente da ignorância bruta e morosa que os papistas apelidam de “fé” A relação da fé com a Palavra e uma breve definição de fé [6-7] 6. A fé repousa sobre a Palavra de Deus a. o evangelho nos conduz à fé b. o evangelho, embora antecipado por Moisés e pelos profetas, é mais plenamente apresentado por Cristo, o mestre das misericórdias de nosso Pai c. fé e Palavra vinculadosinextricavelmente (1) escutar é crer (2) sem a Palavra, a fé se degenera em mera credulidade (3) a Palavra é o espelho no qual nós contemplamos a Deus (4) fé é obediência à Palavra 4. fé enquanto conhecimento (1) fé é mais do que saber que Deus existe — é conhecer a vontade de Deus para conosco (2) a certeza somente pode repousar sobre a crença na verdade sagrada e inviolável de sua Palavra para nós 7. A fé surge da promessa de Deus da graça em Cristo a. a fé é estabelecida, na Escritura, por palavras de misericórdia e compaixão, não de vingança b. contudo, o conhecimento da bondade de Deus, para ser relevante para a fé, deve nos fazer confiar naquela bondade c. definição de fé: “Um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para conosco, fundamentado sobre a verdade da promessa de Cristo concedida livremente, tanto revelada à nossa mente quanto selada sobre os corações por meio do Espírito Santo” Vários significados inaceitáveis do termo “fé”[8-13] 8-10. Fé “formada” vs. “informe” a. os escolásticos defendem que uma pessoa destituída do temor de Deus ainda pode possuir um conhecimento salvífico — uma falsa concepção [8] b. a passagem de 1Coríntios 13.2 não é prova para sua distinção [9] c. o que se chama fé “informe” é somente uma ilusão de fé [10] 11-12. “Fé” entre os réprobos? a. os réprobos podem, por um tempo, vivenciar algo como a segurança dos eleitos [11] b. existe uma obra “inferior” do Espírito entre réprobos, mas que resulta sempre em uma consciência confusa e nublada da graça c. no entanto, somente os eleitos têm a fé como uma posse permanente d. a fé verdadeira e falsa contrastadas a partir da Escritura [12] 13. Diferentes significados da palavra “fé” na Escritura a. às vezes, significa “sã doutrina da piedade” b. às vezes, está confinada a um objeto particular c. às vezes, significa “o dom de realizar milagres” (segundo Paulo) d. às vezes, significa “ensino por meio do qual somos firmados na fé” e. que tipo de fé diferencia os filhos de Deus dos descrentes? Investigação detalhada do que implica a definição de fé apresentada no parágrafo 7: o elemento do conhecimento [14-15] 14. Fé enquanto conhecimento superior a. esse conhecimento não é a compreensão ordinariamente preocupada com o que é abarcado pela percepção sensorial humana b. esse conhecimento é mais uma persuasão da verdade divina do que uma instrução com provas racionais c. portanto, o conhecimento da fé consiste na confiança, não na compreensão 15. Fé implica certeza a. “certa e firme” significa constância sólida de persuasão b. exige-se certeza plena e fixa da fidelidade de Deus (1) para superar as dúvidas que revelam nossas fraquezas ocultas (2) para superar nossa ansiedade que prejudica o recebimento pleno e a fruição da misericórdia de Deus c. por isso devemos ter uma fé tranquila, ousada e confiante perante Deus 16. Certeza da fé a. as promessas de misericórdia de Deus, se tivermos a verdadeira fé, não serão verdadeiras somente fora, mas também dentro de nós b. retrato do verdadeiro crente 17. A fé na luta contra a tentação a. a certeza da fé é incompatível com as terríveis tentações que assolam os fiéis? b. negamos que tais aflições os excluam da segurança da misericórdia de Deus e o ilustramos a partir das vicissitudes de Davi, vistas nos Salmos [note-se a autoidentificação de Calvino com Davi] 18. O conflito no coração do crente a. a luta interna é um reflexo da divisão do espírito e corpo no homem b. apesar das dúvidas suscitadas pelo conflito moral, nossa segurança não reside em nenhum entendimento confuso e obscuro da vontade divina em nós, pois a fé nunca é retirada totalmente de nós e, no final, triunfa sobre todos os perigos 19. Até mesmo uma fé fraca é uma fé real a. conforme a fé cresce no crente, ela é suficiente, em todos os momentos, para nos dar alguma segurança das promessas de Deus b. sua ignorância não impede a mente de obter um conhecimento claro da vontade divina para si 20. A fraqueza e a força da fé [Paulo] a. nesta vida nós recebemos, na verdade, somente uma pequena porção da sabedoria, embora continuemos aprendendo b. no entanto, por menor que seja, e praticamente esmagada pelas tormentas, tal fé nos leva, por meio do evangelho, para a presença transformadora de Deus 21. A Palavra de Deus como o escudo da fé a. com a Palavra de Deus, a fé arma-se a si mesma contra todos os ataques b. para as dúvidas cujas provações se levantam acerca da vingança de Deus, a fé afirma, triunfantemente, o perdão e a misericórdia de Deus: essa é a experiência comum dos santos c. contanto que a incredulidade permaneça fora do coração, enquanto a fé permaneça firme interiormente, o crente-soldado não pode ser aniquilado 22. Temor correto a. fiéis, contemplando a vingança de Deus sobre os ímpios, acalentam um temor verdadeiro daquele que não enfraquece, mas fortalece sua consciência b. isso é exemplificado na exortação de Paulo aos gentios para aprenderem com a rejeição dos judeus 23. “Temor e tremor” [Fp 2.12] a. significa o temor reverente que desespera o ser, mas o leva a depositar sua plena confiança no poder de Deus b. mas como pode o temor e a fé habitar na mesma mente?: “a própria doçura e deleite da graça preenche de tal forma o homem que ele está, ao mesmo tempo, abatido em temor e maravilhado; ele depende da graça de Deus e humildemente se submete ao seu poder” 24. A certeza indestrutível da fé repousa sobre a união de Cristo conosco a. alguns “semipapistas” apresentam a fé como uma alternância entre esperança e medo; entre a contemplação de Cristo (cujo ato é a salvação) e a contemplação de nós mesmos b. Cristo, porém, habita dentro de nós: nós não o contemplamos de longe, como eles concebem a esperança c. apesar da escuridão da tentação, a alma crente não abandona sua busca diligente por Deus 25. Bernardo de Claraval acerca dos dois aspectos da fé a. em nosso coração, não somos nada b. no coração de Deus, nós verdadeiramente somos 26. Temor de Deus (enquanto Senhor) e honra a Deus (enquanto Pai) a. o temor do Senhor deve ser, para nós, uma reverência composta pela honra do filho para com seu pai e pelo temor do servo para com seu senhor b. mesmo que não houvesse inferno, nós ainda deveríamos temer mais ofender a Deus do que morrer c. contudo, devido à lassidão irrestrita da nossa carne, devemos ponderar o quanto o Senhor odeia toda iniquidade e como nenhum malfeitor escapará de sua vingança 27. Temor servil e infantil [cf. I.4.4.] a. quando João (1Jo 4.18) diz que “o perfeito amor lança fora o temor”, ele está falando sobre o temor do crente, de um tipo livre e voluntário b. o temor do descrente é algo bem diferente, já que não emana do desagrado iminente de Deus, mas de sua ameaça de vingança que eles contornariam com prazer se pudessem (cf. Ef 5.6): um tipo de temor servil c. alguns homens interpolam uma terceira variação intermediária que, ao subjugar a mente dos homens, os conduz voluntariamente a produzir um temor adequado a Deus (cf. Agostinho, Pedro Lombardo, Tomás de Aquino) 28. A fé não nos garante uma prosperidade terrena, mas o favor de Deus a. a fé não nos promete uma vida longa, honra ou riquezas b. antes, a fé nos dá a certeza de que Deus jamais falhará c. a paz interior que a graça de Deus nos traz, ansiando pela vida futura, nos abençoa mesmo em meio às misérias da vida presente Fundamento da fé: a livre promessa, oferecida na Palavra, da graça em Cristo [29-32] 29. A promessa de Deus: o sustento da fé a. a promessa livremente concedida por Deus é o fundamento da fé; é onde ela se inicia, repousa e termina b. a promessa da misericórdia é a finalidade adequada da fé, mas reconhecendo que Deus é tanto o justiceiro dos atos ímpios quanto misericordioso para com pecadores arrependidos 30. Por que a fé depende exclusivamente da promessa da graça [em resposta a Pighio]? a. a fé não se mantém de pé até que o homem se apegue à promessa livremente concedida b. a fé de forma nenhuma reconciliaDeus conosco, a menos que nos una a Cristo 31. O significado da Palavra para a fé a. a fé precisa da Palavra tanto quanto os frutos precisam da raiz viva de uma árvore b. a menos que o poder de Deus, pelo qual ele pode fazer todas as coisas, confronte nossos olhos, nossos ouvidos mal receberão a Palavra, ou não lhe atribuirão seu verdadeiro valor c. a memória dos benefícios passados nos lembra, em nosso desespero, do poder salvador de Deus: exemplos escriturísticos 32. A promessa da fé consumada em Cristo a. não há promessa de Deus que não seja um testemunho de seu amor b. os benefícios de Deus afetam os réprobos e os eleitos diferentemente (1) os réprobos, agraciados com os benefícios de Deus, nunca se tornam conscientes da misericórdia de Deus e só incorrem em juízo ainda mais pesado sobre si (2) os eleitos, apesar de atravessar ingratidão e infidelidade, nunca abandonam as promessas de Deus c. ninguém é amado por Deus independentemente de Cristo: a explicação de exemplos da Escritura aparentemente contraditórios A fé é revelada em nosso coração pelo Espírito [33-37] 33. A Palavra se torna eficaz para nossa fé por meio do Espírito Santo a. a debilidade de nossa mente requer a iluminação do Espírito Santo antes que a Palavra possa realizar seu trabalho b. a fé é uma dádiva dupla de Deus, no sentido de que o Espírito: (1) ilumina a mente (2) fortalece e ampara o coração c. como se deve explicar a ideia de Paulo do “Espírito como resultado da fé”, aparentemente uma inversão 34. Somente o Espírito Santo nos conduz a Cristo a. o discernimento humano, atordoado pelas coisas do divino, é um guia duvidoso e deve ser suplantado pelo Espírito Santo b. descrição da iluminação da alma pelo Espírito Santo e seus efeitos c. a Palavra não pode entrar em nossa mente cega a menos que ela seja iluminada pelo Espírito enquanto um mestre interior 35. Sem o Espírito, o homem é incapaz de ter fé a. o homem, em seu estado corrupto, é inapto para crer; portanto, é o poder de Deus, não o homem, que principia a fé e a distribui seletivamente (para mostrar mais plenamente a glória de sua dádiva) b. Cristo, quando nos ilumina para a fé pelo poder de seu Espírito, ao mesmo tempo nos enxerta em seu corpo, para que nos tornemos partícipes de todo o bem 36. A fé como uma questão do coração a. a Palavra de Deus não é recebida pela fé se ela simplesmente entra em nossa mente, mas somente se for recebida no próprio coração b. o Espírito age como um selo para selar, em nosso coração, as promessas previamente registradas em nossa mente 37. A dúvida não pode sufocar a fé: reafirmação do “canto do triunfo” dos fiéis sobre as tentações e dúvidas Refutação das objeções escolásticas a isso 38. O erro escolástico acerca da segurança da fé a. visão escolástica: nossa confiança na fé é baseada em raciocínios de que Deus nos é favorável, desde que nossa pureza de vida mereça o seu favor b. nossa visão não depende de tais “conjecturas morais” c. a alternância de Deus entre o favor e a aflição no seu trato com os homens mostra a tolice inata do homem 39. O cristão se alegra na habitação do Espírito [refutação da acusação dos adversários de que é uma presunção precipitada alegar um conhecimento indubitável da vontade de Deus] 40. A suposta incerteza quanto a se iremos perseverar até o fim a. os adversários tiram proveito da incerteza futura do crente acerca da salvação b. eles, porém, limitam a certeza da fé a algum ponto no tempo, quando ela verdadeiramente vislumbra uma imortalidade futura na vida após a morte! c. nós não somos arrogantes para nos vangloriar de tal confiança Relação da fé com a esperança e o amor [41-43] 41. A fé segundo Hebreus 11.1 a. explicação da “substância das coisas que se esperam” e “convicção das coisas não presentes” b. fé e amor (1) a fé nos move poderosamente para amar a Deus ao mesmo tempo que o tememos (2) erro do ensino dos escolásticos, de que o amor antecede a fé e a esperança 42. Fé e esperança são inseparáveis a. a esperança decorre, logicamente, de uma fé viva, e sem ela a fé é vã b. esperança: uma expectativa das coisas que a fé realmente acreditou terem sido prometidas por Deus c. como a esperança sustenta a fé (exemplificado a partir da Escritura) 43. Fé e esperança têm o mesmo fundamento: a misericórdia de Deus a. a Escritura frequentemente emprega fé e esperança de forma intercambiável; algumas vezes, elas estão conjugadas b. a tolice da dupla fundação da esperança, de Lombardo: (1) graça de Deus (2) mérito das obras c. único propósito da fé: a misericórdia de Deus d. diferentemente da confiança de Lombardo nas obras, nós contamos somente com a misericórdia de Deus e esperançamos nele, não em nós mesmos CAPÍTULO 3 Nossa regeneração pela fé: arrependimento Arrependimento, o fruto da fé: exame de alguns erros no tocante a este ponto 1. Arrependimento como uma consequência da fé a. como a síntese do evangelho consiste em arrependimento e perdão de pecados, estaria incompleta qualquer discussão da fé que deixasse de fora esses seus efeitos b. o arrependimento nasce da fé, apesar de todos os adversários em contrário 2. O arrependimento tem sua fundação no evangelho, que é abarcado pela fé a. a prioridade da fé no arrependimento significa que o reconhecimento da graça de Deus precede o senso de pertencimento a Deus (= fé), o qual, por sua vez, conduz ao arrependimento b. a esperança do perdão incita o homem contra sua morosidade c. a tolice de iniciar, mecanicamente, com o arrependimento e tentar alcançar a fé por meio de exercícios penitentes (cf. anabatistas, jesuítas) 3. Mortificação e vivificação, chamadas de duas partes do arrependimento a. mortificação: temor e tristeza de alma concebidos pelo reconhecimento do pecado e pela consciência do juízo divino: contrição → homem alquebrado b. vivificação (1) alguns a entendem como “a consolação que emerge da fé” (2) clarificação (a) não é a felicidade recebida pela mente depois que seu medo foi apaziguado (b) é, antes, o desejo (proveniente do novo nascimento) de viver santa e piedosamente 4. A penitência sob a lei e sob o evangelho [postulada por aqueles que procuram agrupar os vários significados da palavra na Escritura (exemplos oferecidos)] a. da lei: o pecador acometido pela ira de Deus e por seu próprio pecado se percebe, inextricavelmente, naquele estado de perturbação b. do evangelho: ainda que afligido penosamente, o pecador o supera e apega-se a Cristo como sua cura e consolo Definição de arrependimento: explicação de seus elementos, mortificação da carne e vivificação do espírito [5-9] 5. Definição a. fé e arrependimento permanentemente vinculados b. discussão dos termos no hebraico e no grego: (1) shuv = conversão ou volta (2) metanoia = mudança de mente ou de intenção c. a definição: (1) “verdadeira reversão de nossa vida a Deus” (seç. 6) (2) uma reversão que nasce de um temor puro e sincero dele (seç. 7); e (3) consiste na mortificação da nossa carne e do velho homem, e na vivificação do espírito” (seç. 8) d. esse é o sentido no qual os profetas e apóstolos exortaram os homens ao arrependimento 6. Arrependimento como reversão a Deus (parte 1 da definição no par. 5) a. implica uma transformação, não apenas em obras exteriores, mas na própria alma b. demonstração disso a partir de Ezequiel, Deuteronômio, Jeremias, Tiago e Isaías 7. Temor a Deus: o início do arrependimento (parte 2 da definição no par. 5) a. para incitar a mente do pecador ao arrependimento, ela deve pensar no julgamento divino: daí a frequente paridade entre julgamento e arrependimento na Escritura b. às vezes, castigos menores são infligidos para alertar o pecador contra a indolência de sua carne e sua obstinação, para uma consciência do advento de um castigo maior: Deus precisa ser severo, já que tratamentos brandos não funcionam c. toda virtude humana, tolhida da adoração devida a Deus, é pura abominação 8. Mortificação e vivificação como partes componentes do arrependimento(parte 3 da definição no par. 5) a. arrependimento exige, primeiramente, a destruição de todo pecado da carne — algo realmente difícil: autonegação b. só então chega a segunda fase do arrependimento, na qual o Espírito banha nossas almas com novos pensamentos e sentimentos 9. Novo nascimento em Cristo! a. assim como nossa mortificação é participação na morte de Cristo, nossa vivificação também é participação na ressurreição de Cristo b. portanto, arrependimento é regeneração: a restauração da imagem de Deus desfigurada em nós c. a restauração dessa imagem é, porém, um processo crescente ao longo da vida Os fiéis vivenciam santificação, mas não perfeição impecável nesta vida [10-15] 10. Os fiéis ainda são pecadores a. a liberdade da escravidão ao pecado, trazida pela regeneração, ainda não elimina o embate perpétuo, mesmo para os santos b. em divergência com Agostinho, nós não hesitamos, com a autoridade de Paulo, denominar como “pecado” as tendências para o pecado pós-regeneração 11. Nos fiéis, o pecado perdeu seu domínio, mas ainda habita neles a. o batismo elimina a culpa, mas não a substância do pecado: o vestígio permanece, como mostra a Escritura b. o preceito de amar a Deus não é cumprido a menos que todo nosso amor seja redirecionado de nós mesmos para Deus: portanto, qualquer transgressão remanescente da lei ainda é pecado 12. O que significa “corrupção natural”? a. Deus, o autor da natureza, condena apenas aquelas inclinações em nós que violam sua vontade (e que são o resultado da nossa natureza decaída) b. isso converge com Agostinho, embora ele seja hesitante em chamá-lo abertamente de “pecado” 13. Agostinho como testemunho da pecaminosidade dos fiéis [citações expostas para apoiar a interpretação de Calvino dos fracassos pós-regeneração enquanto pecado (esp. Against Julian)] 14. Contra a ilusão da perfeição a. rejeição do antinomianismo dos anabatistas: de que após a regeneração espiritual, o homem reingressa no estado de inocência, no qual todos os controles morais podem ser removidos, o Espírito liderando o regenerado b. aqui, de fato, uma visão equivocada de Cristo e do Espírito Santo: inevitável quando o buscamos fora das Escrituras c. antes, a Escritura é o lugar para buscar o Espírito do Senhor, pois é onde somos ensinados a respeito dele (1) o Espírito Santo nos é dado para santificação, para nos purificar e nos conduzir na obediência à justiça de Deus (2) somos purificados pela santificação do Espírito Santo, mas ainda permanecemos rodeados por vícios contra os quais devemos lugar diariamente 15. Arrependimento de acordo com 2Coríntios 7.11 (exposição): contrição → a. diligência ou cuidado (para escapar das armadilhas do Diabo e se manter sob o Espírito Santo) → b. indulto (purificação, o pedir perdão em vez de negar a ofensa ou minimizar a falha) → c. indignação (o pecador encontra culpa internamente, em si mesmo, reconhecendo sua própria perversidade e ingratidão para com Deus) → d. temor (o tremor na mente quando reconhecemos o que merecemos e a terrível ira de Deus para com pecadores) — humildade, preocupação avultada → e. anseio (reconhecimento do nosso próprio pecado nos leva à diligência no dever e à prontidão para obedecer) → f. zelo (ardor incitado quando esses aguilhões são aplicados em nós) → g. justiçamento (quanto mais severidade manifestamos aos nossos próprios pecados, mais esperança devemos ter na benevolência e misericórdia de Deus): mas cautelosamente, para que a tristeza não nos inunde Os frutos do arrependimento: santidade de vida, confissão e remissão dos pecados; arrependimento é perpétuo [16-20] 16. Arrependimento exterior e interior a. como os profetas demonstram frequentemente, o verdadeiro arrependimento não começa em cerimônias exteriores, mas na disposição interna do coração b. as marcas do arrependimento sincero serão apresentados sistematicamente em “A vida do cristão” (caps. 6-10) c. existem alguns exercícios externos úteis (“justiçamento”) que promovem arrependimento, mas (1) não se deve contar muito com eles (como os antigos autores às vezes tendem a fazer) (2) também não nos imputar uma austeridade maior do que a brandura da igreja nos chama a ser 17. A prática exterior da penitência não deve se tornar o principal a. arrependimento é a conversão de todo o coração a Deus, não o jejuar e lamentar que às vezes acompanham essa mudança de disposição b. entretanto, havia no Antigo Testamento — e há hoje ainda — tempos que nos convocam para uma manifestação pública de arrependimento: especialmente nos tempos de desastres iminentes (cf. IV.12.17) 18. Confissão de pecado perante Deus e perante os homens a. o arrependimento, contudo, é inadequadamente atribuído a essa profissão externa b. não apenas devemos nos arrepender diariamente das ofensas, mas nossas ofensas mais graves devem nos levar a rememorar pecados há muito enterrados: exemplo de Davi remontando ao seu próprio nascimento c. arrependimento ordinário vs. especial (1) Deus chama de volta, dramaticamente, alguns que caíram totalmente na morte espiritual: arrependimento especial (2) isso não deve, por oposição, nos levar a negligenciar nossos esforços diários de arrependimento pela corrupção da nossa natureza 19-20. Arrependimento e perdão de pecados a. arrependimento e perdão de pecados estão interligados: isso é visto no vínculo entre arrependimento e o reino de Deus/do céu nos evangelhos [19] b. arrependimento é a condição prévia do perdão, mas não o fundamento do nosso merecimento do perdão: antes, porque o Senhor determinou-se a ter piedade no fim, para que os homens possam se arrepender; ele indica em que direção se deve proceder se se deseja obter graça [20] Pecados para os quais não existe arrependimento ou perdão [21-25] 21. Arrependimento como livre dádiva de Deus a. o arrependimento é uma dádiva de Deus que ele concede pelo Espírito da regeneração para quem ele deseja, embora ele ordene o arrependimento de todos b. fé, arrependimento e misericórdia de Deus estão ligados inseparavelmente: o temor de Deus evidencia o operar da salvação no homem c. o ensino de Hebreus, de que os pecados pós-batismais não devem ser perdoados, não deve ser interpretado amplamente, como alguns o fazem: o único pecado imperdoável é o pecado contra o Espírito Santo, que surge da loucura desesperada 22. Pecado imperdoável: opor-se conscientemente ao Espírito Santo a. definições errôneas: (1) de Agostinho: teimosia persistente até a morte, com desconfiança do perdão (2) inveja da graça concedida ao seu irmão b. a verdadeira definição: “Pecam contra o Espírito Santo aqueles que, com más intenções, resistem à verdade de Deus, embora sejam de tal forma tocados por seu esplendor que não podem alegar ignorância”: conhecimento mais descrença 23. Como a impossibilidade do “segundo arrependimento” deve ser entendida (1Jo 2.19; Hb 6,10) a. um retorno à comunhão de Cristo não está aberto para aqueles que consciente e voluntariamente a rejeitaram b. não aqueles de vida dissoluta que transgridem a Palavra de Deus, mas aqueles que deliberadamente rejeitam todo seu ensino; não uma falha em particular, mas o afastar-se totalmente de Deus — apostasia do homem integral 24. Aqueles que não podem ser perdoados são aqueles que não podem se arrepender a. por causa de sua ingratidão, tais pecadores são acometidos pelo justo juízo de Deus b. prova-se que algumas expressões escriturísticas que descrevem a recusa de Deus em responder os apelos dos pecadores não se referem aos que se voltam de todo coração para Deus em arrependimento, mas sim ao tormento cego que afasta o réprobo quando este vê que precisa buscar a Deus para encontrar uma solução para seus infortúnios e, ainda assim, foge quando ele se aproxima 25. Arrependimento falso e arrependimento honesto a. ocorrências escriturísticas da resposta bondosa de Deus ao falso arrependimento explicadas como uma atenuação temporária ou suspensão dos castigos que ocorreriam no final b. Deus, portanto, mesmopor meio desses atos de bondade temporária, insta os homens ao arrependimento, embora ele não comprometa a si mesmo, por lei perpétua, a perdoar CAPÍTULO 4 Quão longe da pureza do evangelho está tudo aquilo que os sofistas tagarelam em suas escolas a respeito do arrependimento? Discussão sobre a confissão e a reparação A doutrina escolástica da confissão e contrição, com o exame de sua suposta base escriturística [1-6] 1. A doutrina escolástica da penitência a. pretendemos cobrir, tão brevemente quanto possível, o ensino escolástico sobre o arrependimento b. clichês da antiga patrística sobre o arrependimento — proferidos não para defini-lo, mas para instar os homens a não cair novamente na pecaminosidade — mal-empregados pelos escolásticos dos nossos dias c. a doutrina dos escolásticos tardios é uma prática exterior planejada para domar a carne e punir as falhas; mas eles nem esbarram na renovação interna da mente d. inadequação da divisão tradicional do arrependimento (1) contrição de coração (2) confissão da boca (3) reparação das obras e. as questões absurdas sobre as quais eles se engalfinham provam sua ignorância na questão como um todo 2. A doutrina escolástica da penitência atormenta a consciência a. eles conectam também ao perdão dos pecados os três passos do arrependimento b. contudo, ao fazer da contrição necessária proporcional ao tamanho do pecado confessado, e ao exigir uma confissão plena, eles torturam consciências que não conseguem saber ao certo se estão atendendo tais exigências 3. É a misericórdia do Senhor, e não a contrição do pecado, que se espera a. podem os escolásticos apontar qualquer um que, crendo em sua doutrina da contrição, (1) não foi levado ao desespero, ou (2) defrontou-se com o juízo de Deus com uma contrição falsa, em vez de verdadeira? b. o perdão dos pecados não pode nunca advir para qualquer um sem arrependimento, mas não é a causa do perdão o aspecto para o qual devemos nos atentar: fixemos nossa atenção na misericórdia do Senhor, e não nas nossas próprias lágrimas c. aqueles excluídos do perdão: (1) fariseus, saciados com sua própria justiça e incapazes de reconhecer, assim, sua própria miséria (2) desdenhosos que, negligentes da ira de Deus, não buscam uma solução para seu próprio mal d. a diferença entre o evangelho e o ensino escolástico: (1) o perdão de pecados é merecido por uma contrição plena (não encenada pelo pecador) ou (2) ordena o pecador a ansiar e apetecer que a misericórdia de Deus lhe mostre — por meio do reconhecimento de sua própria miséria, hesitação, fadiga, grilhões — onde buscar renovação, descanso e liberdade: na humilhação; glorificar a Deus 4. Confissão não prescrita: refutação do argumento alegórico escolástico a partir dos leprosos que foram purificados a. conflito entre juristas canônicos e teólogos escolásticos acerca da confissão: (1) juristas canônicos: confissão ordenada apenas pelos estatutos eclesiásticos (2) teólogos escolásticos: confissão ordenada por preceito divino b. principal “texto-prova”: Mateus 8.4 e paralelos (a) os sacerdotes devem identificar a lepra (Lv 14.2-3) (b) o pecado é a lepra espiritual (3) portanto, sacerdotes têm o dever de se pronunciar a esse respeito c. refutação: (1) todo sacerdócio e todos os seus deveres foram transferidos para Cristo (2) por que, então, Cristo enviou os leprosos curados para os sacerdotes? (a) para obedecer a lei civil (não ritual) (b) assim, os sacerdotes foram compelidos, mesmo contra sua vontade, a reconhecer o milagre de Cristo (3) Crisóstomo: Cristo fez isso por causa dos judeus, para que não fosse considerado um transgressor da lei 5. A desatadura de Lázaro mal-empregada (alegorização ruim) a. João 11.44: o Senhor, eles dizem, ordenou que os discípulos desatassem o Lázaro ressurreto e o deixassem ir b. na verdade, o Senhor não disse isso aos seus discípulos, mas aos judeus, para mitigar suspeitas de fraude e demonstrar seu poder superior (Crisóstomo) c. considerando que os discípulos eram o público pretendido, entretanto, poder- se-ia mais apropriadamente alegorizar como simbolizando que aqueles ressurretos por ele deveriam ser lembrados de que seus pecados foram esquecidos e perdoados, e que não deveriam ser mais severamente tratados pelos homens do que o Juiz os tratou 6. Confissão escriturística a. e quanto à frequente injunção escriturística de que nós devemos “confessar nossos pecados uns aos outros”? b. isso se refere aos condiscípulos, e não exclusivamente aos sacerdotes (1) nós deveríamos depositar nossas enfermidades sobre os ombros uns dos outros, para recebermos entre nós compaixão e consolação mútuas (2) devemos confessar nossos pecados perante nosso Deus misericordioso, perante os anjos, a igreja e todos os homens Evidências da origem tardia da confissão auricular 7. Confissão compulsória desconhecida na igreja antiga a. a confissão compulsória surgiu com o Quarto Concílio de Latrão, sob Inocêncio III: anteriormente, todas as confissões eram voluntárias b. uma sagacidade erudita sobre o “omnis utriusque sexus” [todos de ambos os sexos] — somente para hermafroditas? c. prova de que a confissão compulsória foi [uma regulação eclesiástica tardia] — nada foi instituído por Cristo, tampouco pela igreja primitiva (1) o testemunho de Sozomeno acerca do penitentiarius, um sacerdote especial de confissão-audição na igreja oriental (2) abandono dessa prática em Constantinopla, sob Nectário, por causa de escândalo 8. Crisóstomo não ordena a confissão aos homens a. Crisóstomo repetidamente indica a confissão diretamente a Deus b. ele não estava liberando os homens das prescrições divinas, mas preservando a consciência dos homens livres de embaraços (com bom fundamento escriturístico) Confissão escriturística de pecados, pública e privada [9-13] 9. Confissão perante Deus a. proposta: primeiramente, relatar o tipo de confissão ensinada na Palavra de Deus; depois, examinar as invenções dos nossos adversários b. tradução errônea da palavra hebraica אוׂדהֵ por “confessar”, em Salmos 7.17 e em outros lugares (Septuaginta e Vulgata) c. na Escritura: o Senhor perdoa; portanto, que nós derramemos nosso coração diante dele: evidência de Davi (Salmos), Daniel, João 10. Confissão de pecados perante os homens a. primeiro, confissão privada perante Deus b. segundo, se houver necessidade de proclamar a misericórdia de Deus entre os homens, confissão pública perante os homens — mas somente se a glória divina ou nossa humilhação o exigirem c. em Israel, depois que o sacerdote recitava as palavras, o povo deveria confessar suas iniquidades publicamente no templo (Lv 16.21); da mesma forma nós devemos, ao confessarmos nossa própria desgraça, manifestar a bondade e misericórdia do nosso Deus, tanto entre nós mesmos quanto perante o mundo todo 11. Confissão geral de pecado a. dois tipos de confissão pública (1) ordinária em uma congregação, mesmo que alguns sejam inocentes, eles participam na culpa do corpo inteiro e devem se juntar em confissão (2) extraordinária quando todo o povo é culpado de alguma transgressão em comum, isso requer uma confissão pública extraordinária b. a ordem de culto em uma congregação cristã deveria começar com algum rito público de confissão, não somente orar por perdão, mas também para lançar fora nossa grande complacência e indolência (1) portanto, esse rito antigo, parte da lei de tutela, pertence, em certo sentido, também a nós (2) ao esboçar uma fórmula de confissão por si mesmo e em nome do povo, o ministro abre o caminho para a oração tanto para indivíduos em privado como em público 12. Confissão privada para a cura das almas a. duas formas de confissão privada (1) realizada para nosso próprio bem, para conselho e consolo mútuos (2) realizada para o bem do nosso próximo, para reconciliação e reparação por nossas injúrias a ele b. Tiago (5.16) sugere que escolhamos a pessoa mais adequada na congregação (não necessariamente o pastor) para nos confessarmosc. essa tarefa, no entanto, é designada especialmente aos ministros, ordenados para testemunhar e afiançar a misericórdia divina (1) o crente, perturbado e afligido privadamente por uma consciência dos pecados, e incapaz de livrar-se a si mesmo deles sem auxílio externo, pode livremente usar da confissão privada para seu próprio pastor (2) contudo, esse tipo de confissão é livre, e não presa a quaisquer restrições feitas por homens (3) pastores devem permitir essa liberdade às igrejas e defendê-la, para evitar a tirania em seu ministério e a superstição do povo 13. Confissão privada para a supressão de uma ofensa (segunda forma) a. o padrão clássico é visto em Mateus 5.23-24 b. isso pode até envolver a excomunhão da comunidade por um tempo, até que o pecador tenha se submetido obedientemente à correção: Cipriano descreve essa prática do exomologesis na igreja primitiva c. a comunhão constante é avalizada como um benefício notável para consciências comprometidas, desde que a tirania e a superstição sejam excluídas O poder das chaves e a absolvição [14-15] 14. Natureza e importância do poder das chaves a. o poder das chaves tem espaço em três tipos de confissão: (1) quando toda a igreja, com solene reconhecimento de suas falhas, implora por perdão (2) quando um indivíduo que, por alguma transgressão patente cometida como ofensa comum, declara seu arrependimento (3) quando alguém que precisa do auxílio de um ministro devido a uma consciência perturbada desvela a ele sua fraqueza b. absolvição pública e privada (1) quando toda a igreja se põe diante do trono do julgamento de Deus, confessa- se culpada e toma por único refúgio a misericórdia de Deus, é de grande proveito ter ali a presença do embaixador de Cristo municiado com o mandato da reconciliação (2) o benefício é similar quando alguém apartado da comunidade recebe perdão e é restaurado à unidade fraternal (3) igualmente benéfica é a absolvição privada quando um homem abre seu coração ao seu pastor e recebe dele a mensagem do evangelho que o liberta da ansiedade atormentada c. no entanto, o “poder das chaves” nunca deve ser separado da pregação do evangelho 15. Síntese da doutrina romana da confissão a. pontos nos quais os romanistas convergem (1) todas as pessoas “de ambos os sexos”, assim que alcançam a idade de discrição, devem confessar seus pecados pelo menos uma vez ao ano para seu próprio sacerdote (2) seus pecados não são perdoados a menos que haja uma intenção firmemente estabelecida de confessá-los (3) além disso, se esse intento não for levado adiante quando oferecido, o paraíso não está mais aberto a essas pessoas (4) o sacerdote tem esse poder de ligar e desligar, a partir de Mateus 18.18 b. pontos nos quais eles divergem (1) o poder não consiste em uma, duas ou mais chaves (a) alguns dizem uma: o poder de ligar e desligar, ao qual o conhecimento é conjugado como acessório (b) alguns dizem duas: discrição e poder (c) outros, ainda, acrescentam a autoridade para discernir (ao emitir vereditos) o poder exercido na execução do veredito do conhecimento enquanto advogado (2) quando se contesta que sacerdotes podem ter ligado ou desligado pessoas indignas que não serão ligadas ou desligadas no céu, eles afirmam que: (a) as chaves são dadas a todos os sacerdotes por Cristo e conferidas a eles pelos bispos em sua promoção (b) o veredito dos sacerdotes é aprovado pelo céu se emitido justamente (c) o poder das chaves permanece com os sacerdotes enquanto eles realizam suas funções eclesiásticas; quando se trata de clérigos excomungados ou suspensos, isso se dá de forma enfraquecida e limitada (d) essas afirmações são modestas em comparação com aqueles que ensinam a nova doutrina do tesouro de méritos (veja III.5.2) Crítica dos erros romanistas e práticas injuriosas relacionadas à confissão e à satisfação [16-25] 16. A enumeração de todos os pecados é impossível a. todos os pecados devem ser contados? b. Davi, nos Salmos, mal pode contar, perante Deus, seus próprios pecados — inumeráveis — quando ele os confessa c. por que, então, deveríamos nós fazê-lo? 17. A exigência de uma confissão completa (integral) é uma tormenta imensurável a. o pecador, chamado a classificar, pesar e confessar em detalhes todos os pecados de que é culpado, só pode acabar em desespero b. os romanistas, então, oferecem a seguinte solução: faça, pelo menos, tudo que estiver ao seu alcance: no entanto, o pecador é atormentado com outro questionamento — “será que fiz tudo o que estava ao meu alcance?” c. eis, então, a solução: se arrependa, pelo menos, da sua negligência; se não for totalmente displicente, será perdoado — mas nem isso alivia o terror provocado pela voz que retumba nos ouvidos: “Confesse todos os seus pecados!” d. resposta: é tolice supor que nós possamos nos lembrar de todos os pecados cometidos em um único dia, que dirá um ano inteiro! 18. O efeito pernicioso da exigência de confissão completa a. tal confissão só poderia oferecer, na melhor das hipóteses, uma trégua momentânea para uma consciência perturbada b. a verdadeira natureza dessa lei de confissão completa (1) é simplesmente impossível e só pode levar ao desespero (2) transforma os homens em hipócritas, pois eles estão tão ocupados catalogando seus pecados externos que passam por cima da massa de pecados secretos interiores c. não se deve, então, confessar cada pecado individual? Sim, mas devemos, antes, derramar todo nosso coração a Deus e, só depois, pedir que todos os nossos erros secretos remanescentes sejam purificados, como disse Davi d. longas eras de prática confessional na igreja negam que os pecados são perdoados somente quando há uma vontade firmemente estabelecida de confessar e que o paraíso é fechado a qualquer um que tenha negligenciado uma oportunidade de confessar; muitos homens foram absolvidos sem a confissão para um sacerdote e sem tais condições e. certamente, o ligar e o desligar não se encontra na competência de um juízo terreno, pois o ministro da Palavra não pode saber a fé e o arrependimento daquele que confessa (o fundamento da absolvição) e, quando ele realiza suas funções devidas, só pode absolver condicionalmente 19. Contra a confissão auricular a. uma praga sobre a igreja; deveria ser abolida imediatamente! b. pecando ao longo de todo o ano, os homens vomitam seus pecados sobre o sacerdote como se eles mesmos estivessem transmitindo o juízo de Deus ao sacerdote c. quão relutantes os homens vão para essa confissão anual, à exceção, possivelmente, dos sacerdotes, que se aprazem em trocar anedotas de seus delitos como se fossem histórias divertidas d. Nectário sabia o que estava fazendo quando removeu o penitentiarius de sua igreja para evitar escândalo; essas pessoas são culpadas de escândalos infinitos por sua prática da confissão auricular 20. Apelos infundados ao poder das chaves a. os confessores baseiam esse tipo de confissão no poder das chaves b. o verdadeiro significado do poder das chaves (1) concedido aos apóstolos: seus clérigos são vicários ou sucessores dos apóstolos? (2) o poder do Espírito Santo foi dado antes do poder das chaves: seus confessores receberam o poder do Espírito Santo? (3) se eles reivindicam tal poder, indagamos: pode o Espírito Santo errar? c. conclusão: nenhum clérigo que repetidamente desliga o que o Senhor quis ter ligado, e desliga o que ele ordenou ligar, tem o poder das chaves 21. A incerteza do ligar e desligar sacerdotal a. a anomalia: a promessa do ligar e desligar é dada somente àqueles que ligam e desligam corretamente; mas eles o confiam, às vezes, a maus administradores que usurpam o poder sem o conhecimento e abusam do poder: estão eles enganados em sua reivindicação, ou Cristo prometeu uma mentira? b. sua evasiva: a afirmação de Cristo é limitada conforme os méritos daquele que está sendo ligado ou desligado: nós temos a Palavra para medir sua dignidade c. se, como eles admitem, um bom número de sacerdotes usa as chaves equivocadamente, comoeu posso ter certeza de estar sendo corretamente absolvido por um sacerdote? d. esse poder que eles reivindicam, sem a Palavra de Deus, não é nada — ou deve ser considerado nada 22. A diferença entre o uso deturpado e correto do poder das chaves a. objeção: se a absolvição depende da fé, ela sempre será ambígua, e o ministro, não qualificado para julgá-la, sempre será incerto sobre a absolvição b. resposta: (1) seu fundamento para a absolvição é uma confissão completa, prudentemente considerada pelo sacerdote que ouve; mas se a confissão não for completa — e como poderia ser? —, a esperança do perdão é arruinada (2) o sacerdote precisa suspender o juízo assim que ele estiver incerto sobre se o pecador está apresentando sua confissão de boa fé (3) a maioria dos sacerdotes são tão ignorantes que eles não podem, de forma alguma, exercer esse ofício c. conquanto alguns pecados permaneçam inconfessos, qualquer coisa que o sacerdote diga para fins de absolvição é vão; e o confessante é abandonado à ansiedade porque depende do arbítrio do sacerdote, não da Palavra de Deus d. o ensino de Calvino (1) a absolvição é condicionada à confiança do pecador de que Deus é misericordioso para com ele, desde que ele busque sinceramente a expiação no sacrifício de Cristo e fique satisfeito com a graça oferecida a ele (2) o ministro, funcionando como arauto, não pode errar quando profere o que lhe foi ditado pela Palavra de Deus 23. Exposição de alegações deturpadas a. vamos lidar com o poder das chaves na seção sobre o governo da igreja (IV.12.1-13) b. entretanto, aqui é necessário separar as afirmações de Cristo sobre a excomunhão e sobre a pregação do evangelho da sua aplicação absurda à confissão privada e auricular (1) o poder de absolver, que eles reivindicam falsamente por sucessão apostólica, é na verdade somente o testemunho de um perdão extraído da promessa livremente oferecida no evangelho (2) a confissão pública, não a confissão privada, depende da disciplina da igreja; deve, à guisa de exemplo, remover da igreja a ofensa pública c. Lombardo e os seus amontoam todo tipo de provas de que a confissão de pecados sempre envolve um sacerdote como examinador; enquanto Deus exige simplesmente arrependimento e fé, eles, ao acrescentarem suas próprias penalidades e reparações, amarram e limitam de forma sacrílega a graça de Deus 24. Síntese a. não há nenhuma função mais apropriada a Deus do que o perdão de pecados, no que reside a nossa salvação; as consciências devem estar cativas à Palavra, não aos homens b. esses romanistas fazem leis humanas se passarem por divinas, subjugando barbaramente consciências a regulações humanas c. principal ponto de crítica (1) essa tirania foi introduzida em um momento decadente da história da igreja (2) é uma lei pestilenta que conduz os tementes a Deus ao desespero e os descrentes displicentes a um indolente falso senso de segurança (3) as atenuações de seu ensino servem apenas para camuflar sua impiedade e obscurecer e corromper a sã doutrina 25. Apresentação geral à refutação da doutrina romanista a. a terceira parte da penitência, segundo seu ensino, é a reparação: eles defendem que os homens obtêm perdão pelas transgressões da bondade de Deus, de fato, mas isso se dá somente por meio do mérito intercessor das obras, pelas quais a ofensa pelos nossos pecados pode ser paga, para que a devida reparação possa ser feita à justiça de Deus b. a resposta da Escritura para isso é: remissão de pecados livremente oferecida (1) não é o credor da dívida quitada que perdoa, mas aquele que, sem nenhum pagamento, voluntariamente cancela o débito (2) “livremente oferecida” significa que nenhuma reparação é exigida (3) pelo nome de Cristo somente, e mais nada, nós recebemos perdão Somente a graça de Cristo proporciona verdadeira satisfação pelo pecado e paz para a consciência [26- 27] 26. Cristo proporcionou reparação total a. síntese do ensino dos escolásticos (1) perdão de pecados e reconciliação acontecem de uma vez por todas quando, no batismo, somos recebidos por meio de Cristo na graça de Deus (2) depois disso, somente por reparações podemos suplantar os pecados pós- batismais (3) essas nos são dadas por meio das chaves da igreja como única administradora do sangue de Cristo b. resposta: a passagem de 1João 2.1ss. mostra que Cristo é nosso advogado perpétuo, e não uma possível reparação dentre outras c. nós somente participamos da expiação feita por Cristo se toda a honra dela residir nele 27. A doutrina romana despoja Cristo da honra e consciência de toda segurança a. a honra de Cristo deve ser mantida íntegra (1) Cristo, por sua própria morte, derrotou a força e a maldição do pecado, assumindo todo fardo dos nossos pecados sobre si mesmo (2) é falso afirmar que depois da purificação inicial, cada um de nós sente a eficácia do sofrimento de Cristo somente na proporção da medida de nossa penitência reparadora b. consciências asseguradas do perdão dos pecados devem ter paz com Deus (1) é absurdo afirmar que a graça de Deus trabalha no primeiro perdão dos pecados, mas nos pecados subsequentes nossas obras cooperam com a obtenção do segundo perdão (2) como pode uma consciência ser tranquilizada se lhe for dito que os pecados são redimidos por reparação — e quando é que se realizam reparações suficientes? (3) a Escritura nada ensina além da repetida ação da morte de Cristo por nós: repetidamente nossos pecados são redimidos por ela Diversas distinções e objeções examinadas criticamente [28-39] 28. Pecados veniais e mortais a. nossos adversários se refugiam na distinção entre pecados veniais e mortais, com seus tratamentos distintos b. eles, porém, não conseguem realmente distinguir as duas categorias, a menos que chamem a impiedade e impureza de coração de pecado venial c. ao lado da Escritura, defendemos que todos os pecados merecem a morte; mas um pecado é venial da parte de um crente pela misericórdia de Deus em Cristo, que o dissipa d. antes da lei de Deus, todos os pecados merecem igualmente a morte e. é impossível fazer reparação pelo pecado; pois enquanto os homens o fazem, eles estão acumulando mais pecados 29. O perdão de pecados envolve remissão da pena a. sua saída: distinção entre pena e culpa (1) a culpa é perdoada pela misericórdia de Deus (2) a pena, no entanto, ainda persiste para ser sanada pela justiça de Deus b. uma anomalia: após admitir que o perdão pela culpa é gratuito, eles ensinam que os homens devem merecê-lo e conquistá-lo c. já mostramos que a Escritura nega, a todo tempo, essa distinção entre culpa e pena d. contudo, aqui estão outros testemunhos escriturísticos para encerrar a questão: (1) “Deus não mais se lembrará de nossos pecados” (2) “não os colocará em nossa conta, mas os manterá ocultos” (3) pecados: do escarlate ao branco (4) conclusão: Deus perdoa da vingança toda penalidade 30. Somente o sacrifício único de Cristo pode eliminar tanto a pena quanto a culpa a. “o castigo (correção) da nossa paz” = a pena que Cristo pagou em nosso lugar b. apolutrosis, em Paulo, não significa simples redenção, mas o preço e a satisfação da redenção c. a lei de Moisés prescreve em detalhes os ritos de expiação (1) eles não são obras, mas sacrifícios (2) os sacrifícios israelitas antecipam o sacrifício único de Cristo d. nossos adversários evasivamente distinguem entre penas eternas e temporais: na Escritura, o perdão da culpa inclui as remissões das penas, e ambos são gratuitos 31. Exposição de interpretações equivocadas da Escritura: os juízos de Deus — penal e corretivo [Calvino responde o uso de textos-prova de seus inimigos ao propor um juízo divino duplo] a. juízo de vingança: o Juiz para com os réprobos b. juízo de castigo: o Pai para com seus filhos eleitos 32. O juízo de Deus na vingança tem um propósito totalmente diferente do juízo em castigo: a distinção a. primeira distinção (1) punição por vingança: a ira de Deus (2) punição por castigo: o amor de Deus b. essa distinçãobásica pode ser traçada ao longo da Escritura; passagens escriturísticas apresentadas c. aparente contradição: o castigo de Deus para com seus eleitos é para o próprio bem deles 33. Juízo de vingança serve para punir; juízo de castigo, para aperfeiçoar a. segunda distinção: os flagelos dos ímpios são o começo da punição que sofrerão conforme o julgamento de Deus b. Deus, porém, pune sua igreja para chamá-la à humildade e levá-la ao arrependimento; exemplos escriturísticos dessa instrução divina c. de forma semelhante, Agostinho diferencia entre o trato de Deus com os santos e com os ímpios 34. O crente que atravessa o castigo de Deus não deve se abater a. o crente, diferentemente do descrente (que pensa que Deus é um juiz punitivo), deve reconhecer que a severidade de Deus é ira para com os vícios, mas amor e misericórdia para consigo b. às vezes, entretanto, parece que Deus é mais severo para com seu próprio povo do que para com os ímpios c. aqui, a admoestação da lei é um conforto: os fiéis estão sendo chamados de volta ao caminho da salvação, mas os descrentes prosseguem no erro d. não há diferença entre as penas eternas e temporais 35. A punição de Davi a. Davi foi punido para ser ensinado que Deus se desagrada com o assassinato e o adultério; além disso, a pena por realizar o recenseamento proibido, um flagelo para o povo de Davi, foi para servir de exemplo público para todas as eras e para a humilhação do servo de Deus (embora Deus tenha perdoado livremente o delito de Davi) b. da mesma forma, embora pela graça sejamos perdoados por Deus, as penas do pecado original permanecem conosco para, de tal forma humilhados, nos ensinar a aspirar mais avidamente a verdadeira beatitude c. Deus ajusta a severidade das penas que sofremos às nossas necessidades individuais d. mas por que olhar somente para o exemplo de Davi? Há muitos outros exemplos escriturísticos de absolvição gratuita, sem imposição de punições 36. As boas obras como remissão da punição a. “reparação da punição”, em Daniel 4.37, não se refere a Deus, mas aos homens: Daniel está pedindo ao cruel rei Nabucodonosor que seja bondoso para com seu povo b. “o amor cobre uma multidão de pecados”, em Provérbios 10.12, se aplica aos homens, não a Deus c. “por misericórdia e bondade, os pecados são expiados”, em Provérbios 16.6, não se refere ao apaziguamento de Deus por boas obras, mas ao prazer de Deus para com aqueles que se arrependeram e se voltaram para ele (como se prova por suas ações) 37. A mulher que era pecadora (Lc 7.36-50) a. a visão dos fariseus (1) Cristo não conhecia a mulher que ele perdoou (2) se ele a conhecesse, não a teria perdoado (3) Cristo, consequentemente, de tal forma enganado, não poderia ser um profeta b. mas Cristo contou uma parábola para mostrar que ela não era uma pecadora, porque seus pecados foram perdoados: seu amor não foi a causa, mas a prova do perdão dos pecados (argumento a posteriori) 38. A doutrina romana não pode reivindicar a autoridade dos pais da igreja a. os pais podem ter falado, às vezes, de forma descuidada sobre reparações — e.g., Crisóstomo e “Agostinho” — mas nunca como os nossos defensores contemporâneos das reparações b. “reparação”, em seu significado anterior, não era recompensa por pecados já cometidos, mas cautela caso pecados futuros fossem cometidos 39. O ensino corrupto dos escolásticos sobre os pais [da igreja] a. na era dos pais [da igreja], a reparação não era um pagamento feito a Deus, mas um testemunho perante a igreja do arrependimento do pecador b. desse rito antigo tiveram origem as confissões e reparações degeneradas de hoje c. indiscriminadamente, os escolásticos montaram, de fontes questionáveis, sua colcha de retalhos: e.g., a partir de On repentance [Sobre o arrependimento], do pseudo-Agostinho CAPÍTULO 5 Os acréscimos que eles adicionam às reparações, isto é, as indulgências e o purgatório A doutrina errônea das indulgências e suas consequências malignas [1-5] 1. As indulgências de acordo com a doutrina romanista e os prejuízos causados por elas a. sua definição: indulgências são a distribuição dos méritos de Cristo e dos santos para nos suprir das reparações que nos faltam b. por séculos, essas fraudes piedosas foram toleradas pelos homens, muito embora elas tenham sido a causa de corrupção e erros indizíveis 2. Indulgências são contrárias à Escritura a. muitos as veem, agora, como um comércio maligno, mas desconhecem seu verdadeiro fundamento: o chamado tesouro de méritos confiado ao bispo de Roma e seus subordinados b. as indulgências profanam o sangue de Cristo, declarando, contra a Escritura, sua insuficiência c. antíteses (1) reparação no sangue dos mártires (1) Cristo se fez pecado para nos fazer justos (2Co 5.21) (2) Paulo e outros morreram por nós (2) somente Cristo foi crucificado e morreu por eles (1Co 1.13) (3) estipulação de outro preço de compra: o sangue dos mártires (3) Cristo comprou a igreja com seu próprio sangue (At 20.28) (4) a santificação, em si insuficiente, é aperfeiçoada pelos mártires(4) por uma única oferta, Cristo aperfeiçoou para sempre aqueles que santificou (Hb 10.4) (5) os mártires lavam suas vestes no sangue dos santos (5) todos os santos lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro (Ap 7.14) 3. Autoridades contra indulgências e méritos dos mártires a. duas autoridades (1) Leão, o Grande: “os justos receberam coroas, não as ofereceram” (2) Agostinho: “embora como irmãos, nós morramos por nossos irmãos, nenhum sangue de mártir é derramado pelo perdão de pecados” b. resultados dessa doutrina perniciosa, em vez de Cristo (1) adiciona o sangue dos mártires ao sangue de Cristo, tendo eles supostamente oferecido a Deus mais do que eles precisavam para si mesmos (2) eles alegam que o sangue dos mártires é proveitoso somente se partilhado para o bem da igreja, para ser empregado nas reparações (3) nós afirmamos que o exemplo dos santos acende o zelo da igreja 4. Refutação de provas escriturísticas opostas a. Em Colossenses 1.24, seu texto-prova, Paulo completa, em seu próprio corpo, o que falta dos sofrimentos de Cristo b. esses sofrimentos, na verdade, não se referem à obra da redenção, que é somente de Cristo, mas aos sofrimentos diários da igreja, nos quais Cristo participa e que servem para a edificação da igreja c. Agostinho: expressa essencialmente a mesma interpretação desse versículo 5. As indulgências contrariam a unidade e a abrangência da ação da graça de Cristo a. quem ensinou o papa a enclausurar a graça de Jesus Cristo em papel e chumbo? b. ou o evangelho de Cristo é falso, ou as indulgências o são c. origem provável: penitentes sobre os quais se impôs demandas mais severas do que poderiam suportar buscaram alívio na igreja Refutação da doutrina do purgatório por meio de uma exposição da passagem escriturística apresentada para defendê-la [6-10] 6. A refutação da doutrina do purgatório é necessária a. algumas pessoas (e.g., Melâncton) não mencionam o purgatório para evitar controvérsia excessiva: isso é errado, pois essa doutrina é grosseiramente antibíblica e não se pode flertar com ela b. o purgatório é uma ficção mortal de Satanás, anula a cruz de Cristo, inflige desonra insuportável sobre a misericórdia de Deus e subverte e destrói a nossa fé c. agora que nos despojamos da doutrina romanista das reparações, a própria raiz do purgatório foi removida: tudo o que realmente precisamos dizer agora é que se trata de uma terrível blasfêmia contra Cristo 7. Supostas provas do purgatório a partir dos Evangelhos a. Mateus 12.32; Marcos 3.28s; Lucas 12.10: “O pecado contra o Espírito Santo não deve ser perdoado, nem nesta era, nem na era vindoura” (1) isso sugere que alguns pecados devem ser perdoados “na era vindoura” (2) resposta: o Senhor, aqui, está falando da culpa do pecado b. Mateus 5.25-26: “Faça as pazes com seu adversário […] caso em algum momento ele te entregue ao juiz, e o juiz ao guarda, e o guarda à prisão […] de onde você não poderá sair atéque tenha pagado o último centavo” (1) se o juiz representa Deus; o acusador, Satanás; o guarda, o anjo; então a prisão representa o purgatório (2) na verdade, contudo, Cristo está sugerindo aqui que os homens devem agir, um para com o outro, não conforme a letra da lei [summum jus], mas conforme a equidade [aequitas, epiekeia]; portanto, não se refere ao purgatório 8. Provas extraídas de Filipenses, Apocalipse, 2Macabeus a. Filipenses 2.10: os joelhos daqueles no céu, na terra e nas regiões inferiores se dobram diante de Cristo (1) eles alegam que “regiões inferiores” não pode se referir àqueles eternamente condenados; deve se aplicar às almas agonizando no purgatório (2) a passagem significa, na verdade, que o domínio sobre tudo foi dado a Cristo, e “regiões inferiores” simplesmente denota os demônios que, no final, serão trazidos perante o trono do juízo de Deus b. Apocalipse 5.13: “Ouvi toda criatura no céu e na terra, e debaixo da terra e no mar”: significa, simplesmente, que todas as partes do mundo, desde o pico dos céus até o centro da terra, declaram, à sua maneira, a glória de seu Criador c. 2Macabeus 12:43: Judas Macabeu enviou uma oferta pelos mortos a Jerusalém (1) Macabeus é um livro apócrifo [Calvino dirige o apoio de Agostinho a esse livro contra seus adversários, citando também Jerônimo contra ele] (2) O ato de Judas não foi desprovido de superstição e teimosia, mas ele o fez para que eles pudessem participar da vida eterna com os fiéis remanescentes que morreram pela nação e religião — isso nada tem a ver com purgatório! 9. A passagem crucial: 1Coríntios 3 a. os romanistas a interpretam como o fogo do purgatório, pelo qual a imundície dos pecados é purificada para que possamos entrar no reino de Deus como homens puros b. muitas das primeiras autoridades, entretanto, interpretam o fogo como referente à tribulação na cruz, pela qual o Senhor testa os seus para que não permaneçam na impureza da carne c. há, porém, uma interpretação mais clara e verdadeira do que essa (1) questão preliminar: todos os apóstolos e santos devem passar por esse suposto fogo purgatorial? Não, respondem eles. Mas Paulo está falando de todos os homens. (2) “madeira, feno ou palha” são uma metáfora para as doutrinas fantasiadas pelos cérebros dos homens, que são testadas pelo fogo do Espírito Santo, e as obras feitas sobre uma tal fundação humana são extraviadas 10. O apelo à igreja primitiva não pode ajudar os romanistas a. contudo, eles afirmam: tratava-se de uma observância muito antiga da igreja; Paulo responde que devem perder sua obra todos os que constroem a igreja sobre fundação inapropriada b. eles afirmam: tratou-se de um costume por 1.300 anos; resposta: com que autoridade, por qual revelação da Palavra de Deus? (1) o luto e o sepultamento estão ali; mas não as orações pelos mortos (2) autores antigos que de fato empregaram orações pelos mortos perceberam que lhes faltava tanto o mandamento de Deus quanto exemplos lícitos: eles o praticaram por concessão à natureza humana — portanto, não são exemplos a serem imitados c. ritos para os mortos e ritos anuais para a purificação de suas almas eram praticados entre todos os gentios (1) tais ritos foram ditados por Satanás para iludir os mortais (2) não obstante, eles serviram para lembrar os homens de que a morte não é uma destruição, mas uma passagem desta vida para outra (3) a Escritura, nisso, é superior: benditos os mortos que perecem no Senhor, pois desde então eles têm descanso de seu trabalho (Ap 14.13) d. exame da prática da igreja antiga (orações pelos mortos) (1) autores antigos o permitiram por causa do costume público e da ignorância geral (2) alguns dos pais da igreja, incluindo Agostinho, foram levados ao erro (a) Agostinho estava respeitosamente realizando o pedido de sua mãe idosa, não provando-o primeiramente pela Escritura (b) seu livro, The care to be taken for the dead [O cuidado a ser administrado aos mortos], é repleto de dúvidas e deveria arrefecer qualquer zelo tolo da parte de qualquer um que queira bancar o intercessor dos mortos e. a verdadeira regra a ser seguida é: nós não devemos incutir nada em nossas orações que não tenha correspondência na Palavra de Deus f. muito embora a igreja antiga tenha usado orações pelos mortos, eles o fizeram de forma muito diferente dos empregadores modernos do purgatório: os antigos estavam preocupados com a memória dos mortos e estavam, claramente, em dúvida quanto à condição deles — um mundo de diferença das fantasias sobre o purgatório dos romanistas, que pregam cuidado pelos mortos e o pregam superior a todas as obras do amor g. até mesmo os pais da igreja podem ser citados contra as orações pelos mortos, inclusive Agostinho h. apresentou-se, agora, o bastante para invalidar o purgatório; por que perturbar os leitores com um inventário sem fim de superstições grosseiras? A VIDA DO CRISTÃO [6-10] CAPÍTULO 6 A vida do cristão e, especialmente, por quais argumentos a Escritura nos exorta a ela 1. Proposta do tratado a. objeto da regeneração: manifestar na vida dos fiéis uma harmonia e convergência entre a justiça de Deus e sua obediência, confirmando, assim, sua adoção enquanto filhos b. conquanto a lei de Deus seja capaz de renovar nossa imagem perdida, nossa lentidão é tal que carecemos de ajuda: por isso seleciona-se da Escritura, aqui, um padrão de vida c. essa coleção de passagens da Escritura será concisa (eu amo a concisão): para uma investigação mais completa sobre as virtudes individuais, veja os pais da igreja d. tanto os filósofos quanto a Escritura lidam com as virtudes, cada um com sua própria norma — mas os filósofos, com afetação pretensiosa e organização explícita; a Escritura (Espírito Santo) lida sem afetação e com organização implícita 2. Motivações para a vida cristã a. dois aspectos principais do ensino moral da Escritura (1) inculcar o amor pela justiça em nosso coração (2) equipar-nos com uma regra para mantermos nosso zelo pela justiça no caminho apropriado b. a Escritura nos chama à santidade; não a nossa própria santidade, mas a santidade infusa em nós quando nos apegamos a Deus 3. A vida cristã recebe seu principal estímulo para a obra de Deus por meio da pessoa e do ato redentor de Cristo a. enquanto os filósofos simplesmente nos exortam a viver de acordo com a “natureza”, Deus nos deu um padrão vivo para seguirmos em Jesus Cristo, que também é nosso Salvador b. fracassar na busca pela justiça é rebelar-se tanto contra Deus, nosso Pai, quanto contra Cristo, nosso Salvador c. a Escritura continuamente nos exorta à gratidão a Deus pela dádiva de Cristo a nós d. o fundamento escriturístico da vida é muito mais rico do que os elogios dos filósofos da mera dignidade natural do homem 4. A vida cristã não é uma questão de língua, mas do coração interior a. alguns se vangloriam do nome “cristão”, mas não são tocados pelo evangelho b. primeiro se lida com a doutrina, mas ela deve adentrar nossas vidas c. até o filósofo rejeita aqueles que apenas alardeiam sobre a pureza de vida: por que não deveríamos, todos nós, sermos movidos mais pelo evangelho do que pelas frias exortações dos filósofos? 5. Imperfeição e empenho da vida cristã a. a perfeição é nosso objetivo, mas a imperfeição é nossa porção na terra; portanto, não exclua ninguém da igreja só porque ele ainda não foi alcançado b. a integridade é nosso objetivo: simplicidade sincera da mente, livre da astúcia e do fingimento: o oposto de um “coração duplo” c. estamos todos embaraçados, em diversos graus; portanto, devemos progredir na vida cristã em ritmos variáveis CAPÍTULO 7 A síntese da vida cristã: a renúncia de nós mesmos A filosofia cristã do ascetismo e da autonegação; nós não somos nossos, somos de Deus [1-3] 1. Não somos nossos próprios mestres, antes, pertencemos a Deus a. o homem habilitado a seguir a Cristo (o melhor projeto de vida) por um plano mais explícito do que aquele oferecido na lei (1) princípio: “apresentar seus corposa Deus como sacrifício vivo, santo e agradável a ele” (2) exortação básica: “não sejam conformados ao modo deste mundo, mas transformados pela renovação da mente” b. não somos de nós mesmos, mas do Senhor (1) esquecer de nós mesmos (2) viver e morrer para Deus c. o primeiro passo na vida cristã: renúncia de si para obediência total a Deus — a síntese da filosofia cristã 2. Autonegação por meio da devoção a Deus a. o segundo passo: buscar a vontade do Senhor, não a nossa (1) a Escritura, ao ordenar a autonegação, sublima o desejo por poder, glória etc. (2) ao longo da vida, o cristão presta contas a Deus b. o lugar crucial da autonegação (1) quando negamos a nós mesmos, não deixamos espaço para vícios humanos resultantes do amor-próprio (2) quando falhamos em negarmos a nós mesmos, esses vícios se enfurecem em nós (3) elogios orgulhosos da virtude pelos filósofos contrastam com a preferência de Cristo por prostitutas e publicanos contra a espiritualidade orgulhosa 3. Autorrenúncia segundo Tito 2 a. oferta da graça de Deus b. remoção de dois obstáculos a ela (1) impiedade (2) desejos mundanos c. todas as ações da vida são limitadas a três partes que, conjugadas, denotam perfeição: (1) sobriedade (2) justiça (3) santidade d. mas, apesar de nossos esforços para nos devotarmos a Deus e nossos irmãos, julgamo-lo difícil: por isso, Paulo nos lembra de nossa esperança imortal O princípio da autonegação em nossos companheiros [4-7] 4. A autonegação nos dá a atitude correta para com os nossos companheiros a. o amor-próprio é o maior impedimento para a justiça b. origem do orgulho próprio, da inveja e do ressentimento para com os outros c. o único remédio: extirpar o amor pela contenda e por si próprio, como o ensino escriturístico nos ordena; lembrar que todos os nossos dons provêm de Deus e reconhecer isso em humilde gratidão d. um chamado à humildade para consigo e reverência para com os outros 5. Autorrenúncia leva à prestatividade adequada para com os nossos próximos a. as “obras do amor” só podem ser cumpridas se nós “sairmos de nós mesmos” e partilharmos nossos bens com os outros b. a igreja enquanto corpo com muitos membros: a mordomia dos nossos dons concedidos por Deus é testada pela regra do amor 6. Amor pelo próximo não depende dos hábitos dos homens, mas tem Deus em vista a. nós devemos amar nossos iguais não por seus próprios méritos, mas porque eles carregam em si mesmos a imagem de Deus b. nesse amor por aqueles que nos odeiam, devemos ir contra a natureza humana 7. A obra exterior do amor não é suficiente, é a sua intenção que conta! a. o que conta não é o cumprimento completo dos deveres externos, mas a sinceridade interna ao cumpri-los b. hoje, esmolas são frequentemente oferecidas desdenhosamente — uma atitude que nem mesmo os pagãos toleravam c. a verdadeira filantropia não tem outro limite, senão os recursos de seu doador O princípio da autonegação em nossa relação com Deus [8-10] 8. Autonegação para com Deus: devoção à sua vontade! a. uma anatomia da ambição humana: nós buscamos riqueza e poder freneticamente, e tememos e odiamos a pobreza e a condição simples b. contra essa tendência “natural”, deve-se colocar o desejo e a esperança da bênção do Senhor 9. Confiança somente na bênção de Deus a. se acreditarmos que todo o nosso bem reside na bênção de Deus, nós iremos parar de buscar a riqueza e o poder mundanos b. tenha em mente que a bênção de Deus não virá sobre aqueles que usam da fraude, do roubo e da impiedade c. pensando assim, nós daremos crédito a Deus, como Davi, por qualquer bem que nos sobrevenha 10. A autonegação nos ajuda a suportar a adversidade a. autonegação: total renúncia de toda parte da sua vida à vontade de Deus b. essa atitude deve prevalecer sobre toda aflição a que nossas vidas estão sujeitas c. manter nossa confiança de que Deus sempre nos dará, em toda adversidade, a força e o apoio necessários d. não atribua tudo isso à sorte, como os pagãos: Deus é o único juiz e governante de tudo o que acontece CAPÍTULO 8 Carregar a cruz, uma parte da autonegação Devemos, como seguidores de Cristo, carregar nossa cruz [1-2] 1. A cruz de Cristo e a nossa a. a vontade de Deus é que seus filhos adotivos levem uma vida difícil e inquieta, assim como a do próprio Cristo b. em nossos sofrimentos, partilhamos dos de Cristo, e seguimo-lo da terra até o céu c. portanto, nossos próprios sofrimentos são abençoados e portadores da salvação 2. A cruz nos conduz à perfeita confiança no poder de Deus a. enquanto Cristo sofreu aflições apenas para mostrar sua obediência ao Pai, há muitos motivos pelos quais nós somos afligidos b. o método de Deus na aflição (1) ele aflige (2) nós sucumbimos (3) nós aprendemos a clamar pelo seu poder (4) contudo, mesmo depois de tomarmos consciência da graça de Deus, tendemos a recair na autocomplacência (como o fez Davi), e então novas aflições sobrevêm c. na prosperidade, confiança; abalados pela adversidade, nós, então, nos entregamos à graça de Deus Isso é necessário para nos ensinar paciência e obediência [3-6] 3. A cruz nos permite vivenciar a fidelidade de Deus e nos dá esperança para o futuro a. ela é a fonte de todas as nossas bênçãos, como Paulo ensina b. como a cruz fortalece a esperança (1) nosso amor cego é purificado (2) nós sentimos nossa incapacidade (3) desconfiamos de nós mesmos (4) confiamos em Deus (5) perseveramos até o fim (6) repousamos em sua graça e compreendemos sua promessa (7) nossa esperança é fortalecida 4. A cruz nos exercita na paciência e obediência a. Deus já conferiu, é claro, sua bênção sobre os santos; mas em suas vidas ele prova e exercita sua obediência para que ela possa se manifestar e se tornar ativa e visível para eles b. a cruz também os ensina a não viver de acordo com seus próprios caprichos, mas de acordo com a vontade de Deus 5. A cruz enquanto remédio a. como cavalos engordados e ociosos por diversos dias, nós, autocomplacentes, tentamos lançar fora o jugo de Deus b. contra essa tendência a recair na autocomplacência, a cruz é nosso freio e remédio c. Deus, enquanto médico, trata cada homem de acordo com suas enfermidades 6. A cruz como um castigo paterno a. a aflição atual também deve nos lembrar das transgressões passadas e corrigi- las b. mas deve, principalmente, promover nossa salvação, pela qual devemos ser gratos c. propósito distinto na aflição para crentes e descrentes: toda cruz nos comprova o inabalável amor de Deus: siga a Deus! (cf. Cícero e Sêneca) Carregando a cruz na perseguição e outras calamidades [7-8] 7. Sofrendo em favor da justiça a. sofrer perseguição pela justiça, seja ela vivenciada na proclamação da verdade de Deus ou na proteção do inocente, é um conforto b. todos os males, até mesmo a própria morte, se tornam felicidade para nós quando Deus nos favorece 8. Sofrendo sob a cruz, o cristão encontra consolo em Deus a. nós devemos atravessar, com contentamento, as aflições pela mão do Senhor b. nossa alegria, porém, será sempre temperada pela dor — como alguém indiferente poderia realmente se beneficiar de tal tribulação? O cristão enfrenta o sofrimento como se enviado por Deus, e não com insensibilidade estoica [9-11] 9. O cristão, diferentemente do estoico, dá vazão à sua dor e sofrimento a. a longanimidade cristã não é nenhuma apatheia estoica b. a própria experiência de dor e sofrimento de Cristo invalida os “novos estoicos” cristãos que ensinam doutrinas como a da insensibilidade 10. Sofrimento real e paciência real em conflito mútuo a. a realidade da “dupla vontade” nos santos: divididos entre os sentimentos naturais e a disposição para a santidade b. nós sentimos as emoções da nossa natureza, mas não deixamos que elas nos afogue c. para além de todo sofrimento, tenha bom ânimo na convicção de que tudo foi desejado por Deus, para que o sigamos 11. A paciência segundo o entendimento filosófico e cristão a. os filósofos dizem: obedeçam a Deus porque é precisob. a Escritura nos faz ver na vontade de Deus (1) justiça e equidade (2) preocupação com a nossa salvação c. nosso consolo está na confiança de que a nossa cruz existe para a nossa salvação d. nossa amargura ao carregar a cruz deve ser temperada com alegria espiritual e, por isso, ação de graças e louvor ao Senhor CAPÍTULO 9 Meditação sobre a vida futura Por nossas tribulações, Deus nos demove do amor excessivo pela vida presente [1-2] 1. A vaidade desta vida a. Deus, conhecendo nossas propensões, emprega os melhores meios para nos levar do amor pelo mundo presente ao desprezo por ele b. nossa aspiração pela imortalidade celeste é o que nos separa dos animais c. contudo, nossa natureza constantemente nos puxa de volta para chafurdar na vida presente d. para combater essa tendência em nós, Deus administra aflições apropriadas para o defeito particular de cada homem e. a disciplina da cruz nos ensina que (1) esta vida, em si, é vã e corrompida por muitos males (2) nós devemos, inversamente, erguer nossos olhos para o céu 2. Nossa tendência de não perceber a vaidade desta vida a. não há meio-termo entre a rejeição e a aceitação do mundo b. agimos como se, para nós, a vida presente fosse durar para sempre c. por isso, precisamos de fortes e constantes lembretes de como a vida realmente é Uma consideração correta da vida presente, que é passageira e insatisfatória, nos conduz a meditar na vida futura [3-6] 3. Gratidão pela vida terrena! a. desprezo pela vida presente não significa ingratidão para com Deus b. os benefícios terrenos diários são um prelúdio à glória eterna c. tanto o testemunho da Escritura quanto o da própria natureza nos exortam a agradecer ao Senhor por esses benefícios d. esses benefícios são uma preparação, um antergozo da vida futura 4. O anseio correto pela vida eterna a. homens sem a luz da verdadeira religião foram sábios em desejar não terem nascido, ou em alegrar-se nos funerais e lamentar nos aniversários b. em comparação com a vida celeste, a vida presente deve ser desprezada; contudo, não devemos desprezar a vida em si, mas tratá-la como uma sentinela montando guarda, pois cabe a Deus determinar quando partiremos desta vida 5. Contra o medo da morte! a. a natureza nos impele a temer a morte, mas a piedade cristã nos lembra de que a incorruptibilidade futura suplanta esse medo e nos conforta b. todas as coisas vivas almejam, por natureza, continuar sua existência aqui, mas também anseiam pela ressurreição final; os homens, dotados de entendimento e iluminados pelo Espírito, deveriam fazê-lo especialmente c. aqui, nada mais a tratar sobre isso: deixemos aqueles que desejam maiores discussões perguntarem aos filósofos sobre o desprezo da morte d. quanto mais alegremente aguardamos o dia da morte, maior progresso teremos feito na escola de Cristo 6. O conforto preparado para os fiéis pela aspiração à vida futura a. nossa atual felicidade deve consistir na nossa contemplação intencional do céu (para além da angústia presente) b. assim podemos, sem dificuldade, suportar a prosperidade terrena dos ímpios, conhecendo seu destino final c. in fine, contemplando sobre o poder da ressurreição, vivenciaremos em nosso coração o triunfo final da cruz de Cristo sobre toda impiedade CAPÍTULO 10 Como devemos desfrutar da vida presente e de seus recursos A coisas boas desta vida devem ser usufruídas como presentes de Deus [1-2] 1. Perigo duplo: austeridade e frouxidão equivocadas a. na peregrinação por esta vida, devemos usar nossos recursos concedidos por Deus — seja por necessidade ou para deleite — para nos auxiliar em nossa jornada b. dois erros extremos a serem evitados (1) orientar sua vida por necessidade austera, abstendo-se de tudo o que se possa viver sem (2) usar das coisas desta vida sem qualquer restrição que seja sobre a consciência c. ambos os extremos devem ser combatidos pela moderação do ensino da Escritura 2. O princípio primordial a. Deus criou bens terrenos para o nosso proveito, não para a nossa ruína: usemos deles dessa forma, portanto b. um duplo propósito — deleite e necessidade — observado: (1) no ensino da Escritura (2) nas qualidades naturais das próprias coisas: beleza, sabor, gosto etc. Não devemos usar essas bênçãos complacentemente, ou buscar a riqueza gananciosamente, mas servir fielmente ao nosso chamado [3-6] 3. Um olhar ao doador dos bens previne o desregramento e a mesquinhez a. contra o estoicismo e sua ênfase no uso necessário em detrimento do deleite lícito b. mas também contra a liberalidade da luxúria, que nos faz igualmente incapazes de agradecer a Deus c. comida excessiva, roupa elegante e toda ostentação de vida afasta nossa mente de Deus 4. A aspiração à vida eterna também alinha nossa conduta de vida exterior a. o desprezo pela vida presente e a reflexão na vida futura é o princípio básico b. isso nos leva a duas regras para a conduta da vida: (1) desfrutar deste mundo como se não se desfrutasse dele (2) suportar pacientemente a pobreza e tolerar moderadamente a abundância c. a primeira regra significa: evitar o deleite excessivo, cortando a riqueza supérflua e a licenciosidade 5. Frugalidade: bens materiais consignados a. a segunda regra: moderação tanto na pobreza quanto na prosperidade b. uma terceira regra: todos os bens são nossos pela bondade de Deus, confiados a nós para nosso benefício; uma exposição deles será oferecida no final 6. O chamado do Senhor: fundamento para nosso modo de vida a. como uma sentinela estabelecida em seu posto por seu comandante, cada homem tem um chamado estabelecido para ele pelo Senhor (1) isso é para conter a inconstância e a ambição vaidosa do homem, e para dar direção e propósito para a sua vida (2) por exemplo, um cidadão privado não pode tomar uma ação de remover um tirano; somente um homem público, chamado para a vida política, pode fazê-lo b. como a prática do chamado de alguém é o próprio fundamento do fazer o bem em nossa vida diária: (1) Deus rejeita até mesmo os bons esforços aparentes que realizamos fora da designação do nosso chamado (2) devemos ficar onde Deus nos colocou, seguindo a orientação divina, em nossa miséria e dificuldade, extraindo nosso consolo do fato de que o próprio Deus colocou esses fardos sobre nós e que nenhuma tarefa, por mais servil que seja, deixa de ser preciosa aos olhos dele CAPÍTULO 11 Justificação pela fé: primeiro, a definição da palavra e da essência Justificação e regeneração: definição dos termos [1-4] 1. Lugar e significado da doutrina da “justificação” a. síntese do material já apresentado sobre a fé e seus benefícios: (1) fé é aquilo que nos habilita a abraçarmos e nos apropriarmos de Cristo (2) o benefício dessa fé é duplo (a) sendo reconciliados a Deus por meio da inocência de Cristo, podemos ter no céu, em vez de um juiz, um Pai gracioso (b) santificados pelo espírito de Cristo, podemos cultivar a inocência e a pureza de vida b. a importância da justificação 2. O conceito de justificação a. diz-se justificado aos olhos de Deus aquele que é tanto reconhecido justo pelo julgamento de Deus quanto aceito por causa de sua justiça b. comparação entre justificação por obras e pela fé (1) diz-se justificado pelas obras aquele em cuja vida se encontra tal pureza e santidade que mereça o testemunho da justiça perante o trono de Deus (2) diz-se justificado pela fé aquele que, excluído da justiça das obras, abraça a justiça de Cristo por meio da fé e, revestido dela, aparece à vista de Deus não como um pecador, mas como um homem justo 3. Uso escriturístico a. diferença ao aplicar o termo a Deus e ao homem (1) aplicado a Deus, “justificar” significa simplesmente oferecer a Deus e ao seu ensino o louvor que merecem (2) aplicado ao homem, “justificar” não quer dizer nada além de absolver a culpa daquele que foi acusado, como se sua inocência fosse confirmada b. como Deus nos justifica pela intercessão de Cristo, ele não nos absolve pela confirmação da nossa inocência,mas pela imputação da justiça, de forma que nós, que não somos justos em nós mesmos, possamos ser reconhecidos como tal em Cristo c. justificação é, na verdade, uma interpretação do perdão 4. Justificação como aceitação graciosa por Deus e perdão de pecados a. justificação enquanto “aceitação” b. justificação enquanto “imputação da justiça”, em que justiça significa o oposto da culpa c. justificação enquanto reconciliação Refutação da doutrina da “justiça essencial” de Osiander [5-12] 5. A doutrina da justiça essencial de Osiander a. todo o problema nasce porque Osiander não entende que o vínculo da nossa união com Cristo é o poder secreto do seu Espírito b. Osiander não está satisfeito com a justiça que nos foi adquirida pela obediência de Cristo e morte sacrificial, mas alega que somos substancialmente justos em Deus pela infusão tanto de sua essência quando de sua qualidade 6. Osiander mistura, erroneamente, perdão de pecados com novo nascimento a. a alegação de Osiander: Deus justifica não somente ao perdoar, mas ao regenerar; isto é, ele não deixa aqueles que justifica como estavam por natureza, antes, transforma seus vícios b. resposta: de fato, justiça e santificação são inseparáveis, mas a própria razão nos proíbe de transferir as qualidades singulares de uma para a outra, como na analogia da luz e do calor do sol 7. O significado da fé para a justificação a. a objeção de Osiander: algo além da fé é necessário para produzir a justificação, nomeadamente, a transmissão da justiça essencial de Deus, em vez de Cristo somente b. resposta: de fato, a fé somente não pode justificar, pois ela é sempre fraca e imperfeita c. propriamente falando, somente Deus justifica; então nós transferimos essa mesma função para Cristo porque ele nos foi dado para justiça 8. A doutrina de Osiander de que Cristo é, segundo sua natureza divina, nossa justiça a. a opinião de Osiander é que, como Cristo é Deus e homem, ele se fez justiça por nós no tocante à sua natureza divina, não à sua natureza humana b. resposta: se nossa justiça se encontra na divindade de Cristo, e se não recebemos esse dom particularmente de Cristo; então, em que sentido seria coerente dizer que ele foi “foi feito para nós”? c. refutação baseada em Jeremias 51.10 9. Justificação como obra do Mediador a. objeção de Osiander: a obra da justificação pode ser atribuída somente à natureza divina b. resposta: Cristo cumpriu o ofício de sacerdote segundo sua natureza humana; em seu corpo, a justiça de Cristo nos foi manifesta c. somos justificados em Cristo, na medida em que ele foi feito sacrifício expiatório por nós: algo que não é compatível com sua natureza divina 10. Qual é a natureza da nossa união com Cristo? a. somos desprovidos desse bem totalmente inefável até que Cristo nos faça seu b. a junção do Cabeça e dos membros é uma união mística; um vínculo espiritual c. a doutrina de Osiander da justiça essencial e habitação essencial tem um resultado duplo: (1) Osiander defende que Deus derrama a si mesmo em nós como uma mistura grosseira, da mesma forma como imagina um alimentar físico na ceia do Senhor (2) Deus inspira sua justiça sobre nós, pela qual nós podemos ser verdadeiramente justos com ele, já que, de acordo com Osiander, essa justiça é tanto Deus em si quanto a bondade, santidade ou integridade de Deus 11. A doutrina de Osiander da justiça essencial anula a certeza da salvação a. o ensino de Osiander de que nós somos justos junto a Deus tenta nos fazer flutuar sobre as nuvens, evitando assim nosso apelo a Deus com coração tranquilo b. objeções de Osiander (1) “ser justificado” não é um termo jurídico (2) não somos justificados por imputação gratuita c. resposta (1) a antítese entre o perdão e a acusação claramente mostra que a expressão foi extraída do emprego jurídico (2) o perdão de pecados não é um dom parcial; ele é completo e inclui a totalidade da justiça na remissão gratuita d. a objeção de Osiander: seria um insulto a Deus e contrário à sua natureza que ele justificasse aqueles que, na verdade, permaneceriam ímpios e. resposta: justificação e regeneração devem ser mantidas distintas porque vestígios de pecado sempre permanecem nos justos; portanto, a justificação não deve ser assegurada em partes, mas amplamente, enquanto a regeneração é um processo gradual de reforma para a novidade de vida 12. Refutação de Osiander a. a objeção de Osiander: Cristo se fez sabedoria para nós, mas isso se aplica somente à Palavra eterna; portanto Cristo, o homem, não é justiça b. resposta: o Filho unigênito de Deus foi, de fato, sua eterna sabedoria, mas o que Paulo diz aqui não se aplica à essência do Filho de Deus, mas ao nosso uso, e se encaixa perfeitamente na natureza humana de Cristo c. outros argumentos de Osiander de que nossa justiça é derivada da natureza divina de Cristo d. resposta: não deve ser negado que a justiça que Cristo nos outorga é a justiça de Deus, e que procede dele; entretanto, há justiça e vida para nós na morte e ressurreição de Cristo e. enquanto a justiça é definida por Osiander como aquilo pelo que nós somos movidos a agir corretamente, e que isso é ação de Deus somente, deve-se observar se ele faz isso por si mesmo e diretamente ou se por meio da mão de seu Filho f. em suma, qualquer um que embaralhe as duas formas de justiça para que as almas miseráveis não possam descansar plenamente na simples misericórdia de Deus, coroa a Cristo em zombaria com uma coroa de espinhos Refutação das doutrinas escolásticas das boas obras como eficazes para a justificação [13-20] 13. Justificação por meio da fé e Justificação por meio das obras a. a justiça da fé difere de tal forma da justiça das obras que quando se afirma uma, a outra deve ser descartada b. um homem que deseja obter a justiça de Cristo deve abandonar a sua própria justiça c. é necessário que não haja ocasião para a nossa própria vanglória, que resultaria em sugerir uma justiça das obras 14. Da mesma forma, as obras dos regenerados não podem obter justificação a. os sofistas se esquivam da questão quando tentam explicar “obras” denotando aquilo que os homens ainda não regenerados só realizam segundo a lei por meio do esforço de seu próprio livre-arbítrio, independente da graça de Cristo b. resposta: eles não percebem que, no contraste entre a justiça da lei e do evangelho, todas as obras são excluídas, independentemente do nome que recebem 15. A doutrina romana da graça e as boas obras a. confessamos, em coro com Paulo, que os cumpridores da lei são justificados perante Deus; mas, porque estamos longe de cumprir a lei, inferimos disso que as obras que devem contar especialmente para a retidão não nos ajudam em nada, uma vez que somos destituídos delas b. a definição de fé e graça dos escolásticos: (1) fé: uma firmeza de consciência no esperar, da parte de Deus, a recompensa por seus méritos (2) graça: o Espírito auxiliando na busca por santidade c. explicação de Lombardo da forma dupla em que a justificação nos é concedida: (1) a morte de Cristo nos justifica, enquanto o amor surge por meio dela em nosso coração e nos torna justos (2) por meio desse mesmo amor, o pecado pelo qual o Diabo nos mantinha cativos é extinto, de forma que ele não mais tem os meios para nos condenar d. a graça nunca deve, como em Agostinho, ser subsumida pela santificação 16. Nossa justificação de acordo com o julgamento da Escritura a. o entendimento escriturístico da justiça da fé significa abandonar nossas próprias obras e considerar exclusivamente a misericórdia de Deus b. a ordem da justificação: (1) Deus abraça o pecador em sua condição miserável (2) o pecador é tocado por uma percepção da bondade de Deus; desesperando-se, assim, de suas próprias obras, ele firma sua salvação na misericórdia de Deus c. a ordem pode diferir, mas o conteúdo permanece o mesmo 17. A justiça da fé e a justiça da lei, segundo Paulo a. a fé justifica porque recebe e abraça a justiça oferecida no evangelho b. enquantoa lei atribui a justiça às obras, o evangelho concede livremente a justiça à parte do auxílio das obras c. esse ensino é ilustrado por Romanos 10 e Gálatas 3.18 18. Justificação: não o salário das obras, mas um dom gratuito a. o argumento de Gálatas 3 ampliado b. não é necessário que alguém se esforce pela justificação debaixo da lei se, por meio da fé, recebe-se a justificação que o evangelho livremente concede c. o exemplo paulino de Abraão 19. Por meio da “fé somente” a. os sofistas não aceitam a palavra “somente”, alegando que as obras cerimoniais da lei estão extintas, mas não as obras morais b. resposta: quando a capacidade de justificar é vetada à lei, essas palavras se referem ao conjunto da lei 20. “Obras da lei” a. embora as obras sejam altamente valorizadas, elas derivam seu valor da aprovação de Deus, não de sua própria dignidade b. as obras têm valor porque, por meio delas, o homem pretende mostrar obediência a Deus c. o fato de que a fé implica em obras de amor não significa que nós somos justificados a partir desse amor operante Os pecados são redimidos somente por meio da justiça de Cristo [21-23] 21. Justificação, reconciliação, perdão de pecados a. definição: a justiça da fé é reconciliação com Deus, que consiste somente no perdão de pecados b. reconciliação: o pecado é a ruptura entre o homem e Deus, pela qual o homem é inimigo de Deus até que seja restaurado à graça por meio de Cristo c. justificação: diz-se, portanto, que o Senhor justifica aquele que foi recebido em união consigo mesmo, porque ele não pode recebê-lo na graça a menos que o converta de um pecador em um homem justo d. perdão de pecados: se aqueles a quem o Senhor reconciliou consigo mesmo forem julgados por obras, eles ainda se encontrarão, de fato, pecadores; portanto, a reconciliação ocorre pelo perdão dos pecados 22. Prova escriturística da relação próxima entre justificação e perdão de pecados a. em 2Coríntios 5.19,21, Paulo menciona justiça e reconciliação indistintamente para nos fazer entender que cada um está contido, reciprocamente, no outro b. o exemplo paulino de Davi c. declarações de Agostinhos e Bernardo 23. Justiça — não em nós mesmos, mas em Cristo a. O homem não é justo em si mesmo, mas porque a justiça de Cristo lhe é transmitida por imputação b. Cristo compartilha sua justiça conosco de modo que, de alguma forma maravilhosa, ele derrama sobre nós o suficiente de seu poder para satisfazer o juízo de Deus c. o exemplo de Jacó apresentado por Ambrósio CAPÍTULO 12 Devemos erguer nossa mente ao trono do juízo de Deus para que sejamos firmemente convencidos de sua justificação gratuita Justificação à luz da majestade e perfeição de Deus [1-3] 1. Ninguém é justo perante o trono do juízo de Deus a. estamos preocupados não com a justiça de um tribunal humano, mas com a justiça do tribunal celeste; portanto, não podemos medir a integridade das obras necessárias para satisfazer o julgamento divino por nossos próprios padrões b. o supremo juiz, tal qual apresentado na Escritura c. avaliados pelo padrão da lei escrita, devemos ser atormentados por um temor horrendo 2. Justiça perante os homens e perante Deus a. é fácil pensar que temos alguma coisa, contanto que a comparação se restrinja aos homens b. essa confiança se dissipa em um lampejo e perece quando nos voltamos para Deus c. isso é verdadeiro tanto para nossas almas quanto para nossos corpos 3. Agostinho e Bernardo de Claraval como testemunhas da verdadeira justiça a. Agostinho: “Todos os fiéis que gemem, sob este fardo da carne corruptível e nessa fraqueza de vida, têm uma única esperança: a de que nós temos um Mediador, Jesus Cristo, o justo, e ele é a conciliação pelos nossos pecados” b. Bernardo: “Onde está, de fato, o repouso firme e seguro, e a tranquilidade para os fracos, senão nas feridas do Salvador […]?” A consciência e autocrítica perante Deus nos despoja de todas as alegações de boas obras e nos leva a abraçar a misericórdia divina 4. O peso do juízo de Deus coloca um fim a toda autoenganação a. se as estrelas, que aparentam tão brilhantes à noite, perdem seu brilho à vista do sol, o que pensamos que acontecerá ao mais inocente dos homens quando comparado à pureza de Deus? b. quanto a nós, somente a pureza da vontade será exigida 5. Basta de toda autoadmiração a. que nós não nos envergonhemos de descer dessa contemplação da perfeição divina para contemplarmos a nós mesmos sem lisonjas e sem sermos afetados pelo cego amor-próprio 6. O que é a humildade perante Deus a. humildade consiste em nos reconhecermos pobres e carentes, rendendo-nos, portanto, à misericórdia de Deus b. se pensamos que nos sobra qualquer coisa para nós mesmos, não temos humildade c. a diferença entre a verdadeira e a falsa humildade 7. Cristo chama pecadores, e não justos a. a parábola do publicano e o fariseu b. Cristo convida a participar de sua benevolência somente aqueles que labutam e estão sobrecarregados 8. A arrogância e a complacência perante Deus obstruem nosso caminho a Cristo a. a arrogância emerge de uma persuasão tola sobre nossa própria justiça, quando o homem pensa que tem algo de meritório para o abonar perante Deus b. a complacência pode existir mesmo sem qualquer confiança nas obras, naquelas pessoas que pensam que não precisam aspirar à misericórdia que lhes é oferecida c. citações corroborantes de Agostinho e Bernardo CAPÍTULO 13 Duas coisas a serem observadas na justificação gratuita Glória a Deus e paz para nossa consciência [1] 1. A justificação serve à honra de Deus; e a revelação, à sua justiça a. dois itens a serem observados: (1) a glória do Senhor deve permanecer inalterada e, por assim dizer, em bom estado (2) nossa consciência, diante de seu julgamento, deve estar em descanso pacífico e tranquilidade serena b. a justiça de Deus não é suficientemente apresentada a menos que somente ele seja considerado justo e comunique o dom gratuito da justiça para os indignos c. enquanto o homem tiver qualquer coisa a dizer em sua defesa, ele deprecia, de certa forma, da glória de Deus Efeito em nossa própria justiça [2-4] 2. Aquele que se gloria em sua própria justiça rouba da honra Deus a. nós nunca nos gloriamos verdadeiramente nele, a menos que tenhamos renegado totalmente nossa própria glória b. qualquer que se glorie em si mesmo, glorifica contra Deus c. perfeito e íntegro, o louvor da justiça permanece de posse do Senhor, já que foi para manifestar sua própria justiça que ele derramou sua graça sobre nós 3. Um olhar sobre a própria justiça não oferece paz para a consciência a. a consciência pode ser pacificada diante de Deus se a justiça imerecida nos for conferida como um dom de Deus b. quando nossas almas tiverem aquilo pelo qual podem se apresentar destemidamente perante a face de Deus e receber seu julgamento inabalável, só então poderemos saber que não encontramos uma falsa justiça c. ter fé é fortalecer a mente com segurança constante 4. A ênfase na própria justiça também anula as promessas a. o cumprimento da promessa não depende do mérito, mas da fé b. a herança emana da fé para estabelecer a promessa segundo a graça c. a promessa é confirmada quando reside em Deus, não no homem d. amparo de Agostinho e Bernardo e. amparo escriturístico Fé na graça gratuita de Deus [5] 5. Somente a fé na graça gratuita de Deus nos dá paz de consciência e alegria na oração a. outra refutação da “justiça essencial” de Osiander b. nossa confiança não reside em virmos a ser regenerados, o que é sempre imperfeito na carne, mas sim em virmos a ser enxertados no corpo de Cristo, considerados, assim, gratuitamente justos CAPÍTULO 14 O princípio da justificação e seu progresso contínuo O homem em seu estado natural: morto nos pecados e carente de redenção [1-6] 1. Quatro classes de homens no tocante à regeneração a. classificação quádrupla dos homens, que pode ser: (1) aqueles não dotados de nenhum conhecimento de Deus e imersos em idolatria (2) aquelesiniciados nos sacramentos, mas que, por impureza de vida, negam Deus em suas ações enquanto o confessam com seus lábios; eles só pertencem a Cristo nominalmente (3) hipócritas que escondem sua impiedade de coração com fingimentos vazios (4) aqueles regenerados pelo espírito de Deus, que fazem da verdadeira santidade o seu zelo b. no primeiro caso, nem uma fagulha de boa vontade será encontrada neles c. ainda que aquela primeira classe de homens sobressaia-se na moral, devemos examinar a partir de que disposição de coração essas obras se manifestam 2. As virtudes dos descrentes são dadas por Deus a. comparação de virtudes e vícios em pessoas notáveis b. o Senhor colocou na mente dos homens o discernimento entre feitos honrosos e ímpios c. todas as virtudes — ou imagens de virtudes — são dons de Deus, já que nada que não provenha dele é digno de adoração 3. Não há virtude verdadeira sem fé verdadeira a. se o objetivo do que certo é servir a Deus, então qualquer coisa que se empenhe para outro fim já perde, merecidamente, o título de “certo” b. os deveres não são medidos pelos feitos, mas pelos fins 4. Sem Cristo, não há verdadeira santidade a. aqueles que não têm parte com Cristo precipitam todas as suas vidas na destruição e no juízo da morte eterna, não importa o que façam b. Agostinho: “nossa religião distingue o justo do injusto, não pela lei das obras, mas pela [lei] da fé” 5. A justiça diante de Deus não provém das obras, por melhores que sejam, mas da graça a. passagens escriturísticas mostrando que Deus não encontra nada no homem que o mova a lhe fazer bem; primeiro, Deus vem até o homem, em sua generosidade gratuita b. quem de nós pode se orgulhar de ter se dirigido a Deus por sua própria justiça, sendo que nossa primeira capacidade de fazer o bem deriva da regeneração? 6. O homem não pode contribuir em nada para sua justiça a. outros testemunhos escriturísticos contra a justiça de obras b. se a justificação é o princípio do amor, qual justiça de obras a precederá? Hipócritas e cristãos nominais debaixo da condenação [7-8] 7. Justiça é algo do coração a. nessa condição se incluem aqueles listados acima na segunda e terceira classes b. a ausência da regeneração neles mostra sua falta de fé c. eles, portanto, não foram reconciliados a Deus, nem justificados aos seus olhos, já que os homens obtêm esses benefícios somente por meio da fé d. tais homens só podem realizar o que é odioso ao julgamento de Deus e. nenhuma santificação pode ser alcançada, a menos que o coração tenha sido bem purificado primeiramente 8. Indivíduo e obras a. nos homens ainda não santificados verdadeiramente, até mesmo as obras que manifestam a mais alta magnificência ficam tão distantes da justiça frente ao Senhor que são consideradas pecaminosas b. ninguém obtém favor junto a Deus por meio de obras; elas o agradam apenas quando a pessoa encontrou favor aos seus olhos previamente Aqueles que são regenerados são justificados somente pela fé [9-11] 9. Ademais, os verdadeiros fiéis não realizam boas obras por si mesmos a. a justiça pertencente aos da quarta classe b. tais homens são consagrados ao Senhor em verdadeira pureza de vida, com corações conformados à obediência da lei c. não obstante, traços de nossa imperfeição permanecem para nos dar ocasião para a humildade d. até mesmo nossas melhores obras ainda são manchadas e corrompidas com alguma impureza da carne 10. Aquele que pensa ter sua própria justiça desconhece a severidade da lei a. um único pecado é suficiente para dissipar toda lembrança da justiça anterior b. Deus não considera como justiça definitiva para nós o perdão de pecados, a respeito dos quais nós falamos, para que, tendo obtido perdão por nossa vida pregressa, nós busquemos, depois disso, a justiça na lei — como muitos ridiculamente acreditam 11. A justiça do crente é sempre justiça da fé a. a diferença entre o nosso ensino e o dos escolásticos reside no fato de que nós afirmamos que as obras do homem não têm eficácia para a justificação, enquanto os escolásticos afirmam que um homem reconciliado definitivamente com Deus por meio da fé em Cristo pode ser considerado justo perante Deus por meio de boas obras e ser aceito pelo mérito delas b. para Abraão, entretanto, o Senhor considerou a fé como justiça c. o ministério da livre reconciliação com Deus não é proclamada por um dia ou outro, mas asseverada como perpétua na igreja Objeções escolásticas à justificação pela fé e a doutrina dos méritos supererrogativos dos santos examinada e refutada [12-21] 12. Evasivas dos adversários a. os escolásticos defendem que as boas obras não são importantes em seu valor intrínseco ao ponto de poderem alcançar a justiça, mas seu maior valor reside na “graça anuente” b. eles admitem que precisamos de perdão dos pecados para cobrir as falhas das obras, mas que as transgressões cometidas são compensadas por obras de supererrogação c. resposta: “graça anuente” nada mais é do que sua bondade gratuita 13. Quem fala de obras “supererrogatórias” desconhece a severidade da exigência de Deus e o peso do pecado a. a tal da “justiça parcial” não existe b. este é o erro deles: aquele que cumpre a lei parcialmente é justificado por obras nessa medida c. não há justiça de obras, exceto na observância perfeita da lei de Deus d. que grande perversidade é para nós, carecendo tal justiça, nos orgulharmos de algumas migalhas de obras e tentar, por meio de outras reparações, pagar pelo que está faltando! e. aqueles que falam tal disparate não percebem como o pecado é algo execrável aos olhos de Deus 14. Nem mesmo o cumprimento perfeito de nossa obrigação nos levaria à glória; mas isso sequer é possível a. como podem as obras de supererrogação se encaixar com Lucas 17.10? b. que nós não nos vangloriemos de liberalidade voluntária quando somos limitados pela necessidade 15. Deus tem direito sobre tudo que nós somos e temos; portanto, não pode haver quaisquer obras supererrogatórias a. continuação do argumento de 1Coríntios 9 e Lucas 17 b. Deus não ordenou nem aprovou as obras de supererrogação 16. Nenhuma confiança nas obras e nenhuma glória nelas a. evitar essas duas pragas (1) confiar na justiça das obras (2) atribuir qualquer glória às obras b. o importante não são as obras, mas o perdão de Deus 17. De nenhuma forma as obras podem servir ao propósito da nossa santidade a. nenhum dos quatro tipos de causas postuladas pelos filósofos tem qualquer coisa a ver com as obras b. as quatro causas e suas contrapartidas escriturísticas (veja tabela da p. 271) (1) causa eficiente: a misericórdia do Pai celeste e seu amor concedido gratuitamente a nós (2) causa material: Cristo, com sua obediência, por meio da qual conquistou a justiça para nós (3) causa formal ou instrumental: fé (4) causa final: prova da justiça divina para o louvor da bondade de Deus c. essas quatro causas são aplicadas a Romanos 3.23-26 18. O horizonte das boas obras, entretanto, pode fortalecer a fé a. os santos se recordam de sua retidão de duas formas (1) comparando sua boa causa com a causa maligna dos ímpios, eles derivam disso confiança na vitória — não tanto pelo aval de sua própria justiça, mas pela condenação justa e merecida de seus adversários (2) sem se compararem com os outros, enquanto examinam a si mesmos perante Deus, a pureza de suas próprias consciências lhes trazem algum conforto e confiança b. acerca da segunda forma, os santos certamente podem escorar e fortalecer a si mesmos na fé por meio desses sinais da benevolência divina para consigo; contudo, no que diz respeito à salvação, eles confiam, ao mesmo tempo, totalmente na promessa gratuita da justiça 19. Obras como frutos do chamado a. recordação das obras: sinais da habitação do Espírito Santo, e de não coisas que tenham qualquer parte no estabelecimento da fundação para fortalecer a consciência b. antes da oportunidade do júbilo deve vir a percepção da bondade de Deus, selada por nada menos que a certeza dapromessa 20. As obras são dons de Deus e não podem se tornar a fundação da autoconfiança para os fiéis a. os santos consideram as obras exclusivamente como dons de Deus, a partir das quais eles podem reconhecer sua bondade, e como sinais do chamado pelo qual eles executam sua eleição b. as obras não diminuem, em qualquer medida, a justiça gratuita que obtemos em Cristo c. declaração corroborante de Agostinho A CAUSALIDADE DA SALVAÇÃO Calvino alega que os católicos romanos “representam erroneamente a causa material e final, como se nossas obras dividissem metade do espaço com a fé e a justiça de Cristo”. Cf. Acta Synodi Tridentinae, Seç. VI, c. 8 (Corpus Reformatorum 7.432s), e Calvino, Antidote (Corpus Reformatorum 7.449). Veja também Louis Goumaz, La Doctrine du salut d’après les commentaires de Jean Calvin sur le Nouveau Testament (1917), teses e conclusões, XI. 21. O sentido no qual se fala das boas obras, às vezes, como causa dos benefícios divinos a. por que a Escritura mostra que as boas obras dos fiéis são a razão pela qual o Senhor os abençoa? b. embora a causa eficiente da nossa salvação consista no amor de Deus, o Senhor também abrange obras como causas inferiores c. nesse sentido, o que antecede, na ordem da dispensação, ele chama de causa do que sucede d. a ordem se parece com o seguinte (1) Deus escolhendo (2) Deus justificando (3) o homem produzindo boas obras (4) Deus glorificando nas boas obras (vida eterna do homem), caso em que a vida eterna é derivada das boas obras, mas não atribuída a elas e. a verdadeira causa é a ação de Deus, que escolhe e justifica CAPÍTULO 15 Vangloriar-se acerca dos méritos das obras destrói nossa adoração a Deus por nos ter outorgado a justiça, bem como nossa segurança de salvação Oposição de Agostinho e Bernardo, bem como da Escritura, à doutrina do mérito humano na justificação [1-4] 1. Questionamento falso e verdadeiro a. nenhum homem é justificado pelas obras a menos que ele seja liberto da menor transgressão que seja b. surge, portanto, a seguinte questão: embora as obras não possam, de nenhuma forma, ser suficientes para a justificação, elas não merecem o favor de Deus? 2. “Mérito”: uma palavra perigosa e não escriturística a. qualquer que tenha empregado, inicialmente, o termo “mérito” para as obras dos homens em vez do julgamento de Deus, fez um grande desserviço à fé sincera b. os termos “mérito” e “graça” em Agostinho, Crisóstomo e Bernardo 3. Todo o valor das boas obras provém da graça de Deus a. nossas boas obras, em si e por si, são repletas de impurezas b. boas obras são “boas” porque a bondade de Deus, em si, lhes atribuiu esse valor 4. Defesa frente à contraevidência: como Deus realmente considera as boas obras a. os sofistas traduziram erroneamente Eclesiástico 16:15 e interpretaram mal a essência de Hebreus 13.16 b. deve ser rejeitada a distinção de que as boas obras merecem as graças que nos são conferidas nesta vida, enquanto a salvação eterna é a recompensa da fé somente c. tudo o que é concedido aos santos, até mesmo a própria beatitude, vem da benevolência de Deus e objetiva fazer de nós e dos dons concedidos dignos dele Rejeição da substituição dos méritos do homem pelo de Cristo; a doutrina escolástica e semipelagiana [5- 8] 5. Cristo como o fundamento único, como principiador e aperfeiçoador a. Cristo não se tornou o fundamento da nossa salvação apenas para ver seu cumprimento decorrer de nós mesmos b. porque todos os benefícios de Cristo são nossos e nós temos todas as coisas nele; em nós não há nada 6. A teologia romana diminui o poder e a honra de Cristo a. Roma deturpou a verdade ao inventar as boas obras “morais”, pelas quais os homens são tomados como agradáveis a Deus antes de serem enxertados em Cristo b. é somente por meio desse enxertar em Cristo através da fé que nós recebemos mérito — e o mérito aqui não é nosso, mas de Cristo 7. A teologia romana não entende nem Agostinho, nem a Escritura a. a teologia romana erroneamente deriva as boas obras do livre-arbítrio, por meio do qual, dizem eles, todo mérito subsiste b. Pedro Lombardo não entendeu Agostinho, embora seja possível dizer que Lombardo é são e sóbrio quando comparado com as tradições da Sorbonne c. a teologia romana, na verdade, desencoraja a confiança na inclinação favorável de Deus para com as obras das pessoas 8. Admoestação e conforto nas bases da sã doutrina a. o exemplo de Cristo como o cumprimento da piedade e santidade b. passagens de consolo para os discípulos de Cristo CAPÍTULO 16 Refutação das falsas acusações pelas quais os papistas tentam lançar ódio sobre essa doutrina Objeção I 1. A doutrina da justificação elimina as boas obras? a. acusações levantadas contra a doutrina: (1) ela revoga as boas obras (2) ela dissuade os homens da busca pelas boas obras (3) ela torna o caminho para a justiça muito fácil (4) ela seduz ao pecado homens que já são demasiadamente inclinados ao pecado b. contudo, as boas obras não são destruídas pela doutrina da justificação pela fé, porque não se pode compreender esta sem, simultaneamente, compreender também a santificação c. Cristo não justifica ninguém que, ao mesmo tempo, ele não santifique Objeção II 2. A doutrina da justificação sufoca o zelo pelas boas obras? a. há duas razões pelas quais a segunda acusação, de que nossa doutrina dissuade os homens da busca pelas boas obras, é falsa: (1) se a única razão pela qual as boas obras são realizadas é a esperança na recompensa final, todo o fundamento de tais boas obras está completamente errado (2) o fundamento das boas obras é a gratidão pela qual nós retribuímos o amor daquele “que nos amou primeiro” b. textos escriturísticos corroborando o fundamento correto para o reto regimento da vida 3. A honra e a misericórdia de Deus como estímulos para ação: subordinação das obras a. os apóstolos da Escritura derivam suas mais poderosas exortações da ideia de que nossa salvação não repousa sobre méritos nossos, mas somente sobre a misericórdia de Deus b. é a recordação dos benefícios de Deus que bastará plenamente para levar os homens à boa ação c. conquanto a Escritura diga que “Deus retribuirá a cada um conforme suas obras” (Rm 2.6-7; Mt 16.27; 1Co 3.8, 14-15 etc.), deve-se negar que isso seja somente isso, ou que seja o principal, ou que devemos partir desse ponto Objeção III 4. A doutrina da justificação incita o homem ao pecado? a. é a mais indigna das calúnias afirmar que os homens são convidados ao pecado, uma vez que afirmamos o perdão gratuito dos pecados e declaramos que é nisso que consiste a justiça b. enquanto a justiça, para nós, é gratuita, ela não o foi para Cristo, que a comprou pelo preço de seu próprio sangue c. quando os homens são assim ensinados, eles são conscientizados, a cada vez que pecam, de que não podem fazer nada para evitar o derramamento de seu mais precioso sangue d. a justiça é preciosa demais para ser equiparada por qualquer compensação de obras CAPÍTULO 17 A convergência entre as promessas da lei e do evangelho Obras relacionadas à lei: o caso de Cornélio, em Atos 10.13 [1-5] 1. Apresentação e refutação dos argumentos escolásticos a. a acusação: a justificação não é somente pela fé se nós precisamos cumprir a lei b. resposta: a liberdade do poder da lei de que falamos não é a liberdade carnal que incita a licenciosidade c. a liberdade da qual falamos é a liberdade espiritual que conforta a consciência atacada, mostrando que ela é livre da maldição e da condenação com que a lei a oprime 2. Por meio de nossas obras, não podemos trazer ao cumprimento as promessas da lei a. as promessas de Deus são baseadas no cumprimento completo das condições da lei, as quais jamais serão cumpridas b. assim, a justiça que tentamos alcançar pelo cumprimento da lei é realizada pelos esforços de Cristo, e não pelos nossos 3. As promessas da lei são postas em prática por meio do evangelho a. as promessas de Deus não têm qualquer efeito benéfico sobre nós