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LEGISLAÇÃO E ROTINA TRABALHISTA E PREVIDENCIÁRIA Miriany Stadler Ilanes Normas gerais e especiais de tutela do trabalho Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer a importância das normas gerais e especiais de tutela do trabalho. Descrever os princípios do Direito do Trabalho. Distinguir relação de trabalho de relação de emprego. Introdução A tutela do Direito do Trabalho é o ramo que compreende as regras concernentes à proteção do indivíduo que trabalha, incluídas as normas de medicina e segurança do trabalho, limitação da jornada de trabalho, fixação de intervalos obrigatórios, fiscalização trabalhista etc. Dentre as normas gerais de tutela do trabalho, encontramos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) regras que disciplinam a duração de trabalho, os períodos de descanso e intervalos e o trabalho noturno. Já no que diz respeito às normas especiais de tutela do trabalho, há previsão de algumas regras específicas de proteção ao trabalhador, como o trabalho desenvolvido por menores de idade, mulheres, bancários, professores e jornalistas profissionais. Neste capítulo, estudaremos basicamente sobre o tratamento dado às normas gerais e especiais de tutela do trabalho. Nesse sentido, ana- lisaremos a importância dessas normas, aprenderemos quais são os princípios do Direito do Trabalho e, por fim, diferenciaremos a relação de trabalho da relação de emprego, que muitas vezes são entendidas como sinônimos apesar de não o serem. C03_Legislacao_e_Rotina.indd 1 29/06/2018 08:21:37 Normas gerais e especiais de tutela do trabalho A lei da reforma trabalhista (Lei nº. 13.467, de 13 de julho de 2017) modifi cou diversos preceitos que compõem o Título II - Das Normas Gerais de Tutela do Trabalho da CLT, composto por cerca de 210 artigos. Considerados os novos preceitos inseridos, 17 artigos do Título II ostentam inserções normativas ou mudanças de redação realizadas por essa lei. Nesse conjunto de mudan- ças, destaca-se a profunda intervenção no crucial capítulo que versa sobre a duração do trabalho (Capítulo II do Título II, formado pelos arts. 57 a 75) (DELGADO, 2017). A duração do trabalho, seja ela diária (jornada), semanal ou mensal, com o concurso de intervalos trabalhistas funda um dos dois maiores pilares do contrato de trabalho: a própria duração do trabalho e a remuneração do trabalhador. No caso da duração do trabalho, que é objeto do Título II da CLT sobre o qual recai a nossa atenção no momento, simplesmente faz a me- dição do tempo de disponibilidade do trabalhador perante o seu empregador em decorrência do vínculo empregatício. Dessa maneira, por intermédio de regras historicamente testadas de adequada medição e proteção da duração do trabalho, a ordem jurídica trabalhista propicia urna valorização econômica do trabalho humano e urna valorização social do trabalhador, ambas em harmonia com os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, da Constituição Federal) e com a estruturação de urna sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, da Constituição Federal) (DELGADO, 2017). Por esse motivo, do ponto de vista econômico, a desregularnentação ou flexibilização das regras jurídicas concernentes à duração do trabalho diminui inequivocamente grande parte da retribuição pecuniária que deveria ser transferida ao empregado pelo contrato de trabalho. De igual modo, a des- regulamentação ou flexibilização das regras jurídicas reguladoras da duração do trabalho compromete a participação do valor representado pelo trabalho no conjunto da economia e da sociedade, reduzindo indubitavelmente o seu valor e também o dos respectivos trabalhadores (DELGADO, 2017). No que tange às modificações no tema da duração do trabalho, nove artigos da CLT sofreram alterações ou são inteiramente novos, todos com uma inevitável conexão entre si. Dessa maneira, o seu estudo se desenvolve em um bloco unitário de preceitos legais intitulado Da Duração do Trabalho. No interior desse bloco, procura-se conferir ênfase a cada um dos aspectos relativos à duração do trabalho que tenham denominação própria, como por exemplo início da jornada, horas in itinere, trabalho em regime de tempo Normas gerais e especiais de tutela do trabalho2 C03_Legislacao_e_Rotina.indd 2 29/06/2018 08:21:37 parcial, jornada padrão e ampliação da jornada com horas suplementares ou extraordinárias, regime de compensação de horários, banco de horas, jornada de plantão 12 (doze) horas de atividade por 36 (trinta e seis) horas de descanso subsequente, intervalos entre jomadas etc. (DELGADO, 2017). Em contexto próximo ao da duração do trabalho e com regra excludente nesse campo temático, a lei da reforma trabalhista inseriu novo capítulo no Título II da CLT ao abordar a regulação do teletrabalho. Trata-se do Capítulo II-A do Título II, integrado pelos arts. 75-A a 75-E. Ainda no Título II, mas já superado o largo tema da duração do trabalho, a Lei nº. 13.467/2017 intro- duziu também algumas mudanças no Capítulo IV, que versa sobre o instituto das férias anuais remuneradas, e atualizou o valor de determinadas multas administrativas trabalhistas (arts. 47 e 47-A) (DELGADO, 2017). No que diz respeito aos trabalhos específicos que recebem tratamento diferenciado, a CLT dedicou um título somente para as normas especiais de tutela do trabalho, exatamente nos arts. 224 a 351 do Título III. Neles, reúnem-se regras que aludem às disposições especiais sobre duração e con- dições de trabalho, instituindo ainda normas sobre a atuação dos empregados em atividades de conteúdo em outros princípios especiais, variáveis em função das condições pessoais do empregado ou da natureza do serviço desenvolvido, com o intuito de diferenciar as peculiaridades da execução dos seus serviços em relação aos demais trabalhadores (GARCIA, 2017). Esse título da CLT abrange as normas especiais do trabalho em regulamento de atividades consideradas especiais na ordem profissional, tendo em vista que preservam condições diferenciadas e com peculiaridades próprias em relação às atividades contidas na regulamentação laboral de caráter geral, apoiadas em princípios genéricos aplicáveis a todos os trabalhadores. Podemos notar uma preocupação especial do legislador acerca da duração da carga horária de determinados profissionais para lhes resguardar saúde, dadas as caracte- rísticas especiais das suas atividades. Porém, embora haja redução da jornada de trabalho, o salário permanece integral, sem sofrer redução proporcional à diminuição da carga horária de trabalho. Assim, quando você necessitar pesquisar mais sobre os direitos trabalhis- tas de bancários, telefonistas, ferroviários, professores e demais profissões específicas, deverá consultar o Título III da CLT e não as normas gerais de proteção do trabalho, visto que a norma especial revoga a norma geral. Portanto, para selecionar a norma mais adequada a ser aplicada a determinada situação, você deverá utilizar o método de exclusão: se o trabalho dispõe de norma específica, ou seja, se existir lei ou artigo na CLT que trate particu- 3Normas gerais e especiais de tutela do trabalho C03_Legislacao_e_Rotina.indd 3 29/06/2018 08:21:37 larmente do trabalho em questão, você deve aplicar tal legislação em vez da norma geral, que é a lei ou algum artigo da CLT aplicável a todos os tipos de trabalho que não possuem norma especifica (GARCIA, 2017). Princípios do Direito do Trabalho O Direito do Trabalho manifesta princípios próprios, reconhecidos pela doutrina e aplicados pela jurisprudência, quais sejam: princípio da proteção, princípio da irrenunciabilidade, princípio da primazia da realidade e princípio da con- tinuidade da relação de emprego (GARCIA, 2017). Princípio da proteção De acordo com Garcia (2017), o princípio de proteção engloba três vertentes: o in dubio pro operario, a aplicação da norma mais favorável e a condição maisbenéfi ca. O polo mais fraco da relação jurídica de emprego merece um tratamento jurídico superior, por meio de medidas protetoras, para que se alcance a efetiva igualdade substancial, ou seja, promovendo-se o equilíbrio que falta na relação de trabalho, pois, na origem, os seus titulares normalmente se apresentam em posições socioeconômicas desiguais. Na realidade, o princípio de proteção insere-se na estrutura do Direito do Trabalho, que surgiu, de acordo com a história, inicialmente, como forma de impedir a exploração do capital sobre o trabalho humano, em seguida, visando a melhorar as condições de vida dos trabalhadores e, por fim, possibilitando aos trabalhadores adquirir status social, noção máxima de cidadania. De acordo com o in dubio pro operario, na interpretação de uma disposição jurídica que pode ser entendida de diversos modos, ou seja, havendo dúvida sobre o seu efetivo alcance, deve-se interpretá-la em favor do empregado. Não se trata, no entanto, de alterar o significado claro da norma, nem se permite atribuir sentido que, de modo nenhum, possa ser deduzido da disposição. Por se tratar de princípio inerente ao Direito (material) do Trabalho, o in dubio pro operario não apresenta caráter processual, uma vez que o Direito Proces- sual do Trabalho possui disposições específicas e próprias, como a avaliação da qualidade das provas produzidas e a aplicação das regras de ônus da prova. O princípio da aplicação da norma mais favorável é no sentido de que, havendo diversas normas válidas incidentes sobre a relação de emprego, deve- -se aplicar aquela mais benéfica ao trabalhador.Isso significa que, existindo Normas gerais e especiais de tutela do trabalho4 C03_Legislacao_e_Rotina.indd 4 29/06/2018 08:21:37 mais de uma norma jurídica válida e vigente, aplicável a determinada situação, prevalece aquela mais favorável ao empregado, ainda que esta norma esteja em posição hierárquica formalmente inferior no sistema jurídico. Por exemplo, se o acordo coletivo confere ao empregado direito trabalhista superior àquele previsto na Constituição Federal, é o primeiro que deve ser aplicado, por ser mais benéfico ao polo mais fraco da relação jurídica. Aliás, isso atende ao próprio mandamento constitucional de melhoria da condição social dos trabalhadores (art. 7º, caput, da Constituição Federal). Há certos critérios para saber qual é, efetivamente, a norma mais favorável. De acordo com a teoria da acumulação, as diversas disposições contidas nos instrumentos normativos devem ser comparadas individualmente, esco- lhendo aquelas mais favoráveis, aproveitando-se certas disposições (muitas vezes isoladas) de diversas normas, o que cria uma verdadeira “colcha de retalhos”. A crítica que se pode fazer a esta teoria é que, sem levar em conta o todo sistemático, cria-se um terceiro instrumento normativo. A teoria do conglobamento estabelece que os instrumentos normativos devem ser comparados em seu todo, optando por aquele que, no conjunto, é mais benéfico ao empregado. O problema desta teoria é a extrema dificuldade de avaliar cada instrumento normativo na sua totalidade, quando tratam de temas os mais diversos. Uma terceira teoria, intermediária, defende que a norma mais favorável deve ser buscada por meio da comparação das diversas regras sobre cada instituto ou matéria. Trata-se da posição mais acertada, chamada por alguns autores de teoria do “conglobamento mitigado”. Mesmo assim, “deve-se respeitar o critério da especialização”. Além disso, o parâmetro para verificar a norma mais favorável não deve ser o trabalhador considerado individualmente, mas sim “a coletividade interessada (categoria, por exemplo)”, ou “o trabalhador como um todo, objetivamente conceituado”, salvo hipóteses excepcionais. Princípio da irrenunciabilidade O princípio da irrenunciabilidade signifi ca não se admitir, em tese, que o empregado renuncie, ou seja, abra mão dos direitos assegurados pelo sistema jurídico trabalhista, cujas normas são, em sua grande maioria, de ordem pública, conforme Garcia (2017). A natureza cogente das normas de Direito do Trabalho é confirmada ao se verificar que o Estado, por meio dos órgãos competentes (Ministério do Trabalho, Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego), tem o dever 5Normas gerais e especiais de tutela do trabalho C03_Legislacao_e_Rotina.indd 5 29/06/2018 08:21:37 de fiscalizar o seu cumprimento, sancionando, orientando e regularizando, quando possível, as condutas contrárias à legislação trabalhista (art. 21, XXIV, da Constituição e art. 626 e ss. Da CLT). Além disso, a violação ou ameaça de lesão a direito trabalhista está sujeita à apreciação do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, da Constituição Federal), no caso, pela Justiça do Trabalho (art. 114 da Constituição Federal). Sendo assim, as normas que regulam as relações de trabalho não podem ser modificadas livremente pelo empregador, ou seja, não são dispositivas. Por exemplo, não são consideradas válidas estipulações, no contrato individual de trabalho, de salário inferior ao mínimo legal, nem de férias por período menor do que o previsto em lei, ainda que o empregado concordasse com tais derrogações de direitos trabalhistas, conforme disposições dos arts. 9º. e 444 da CLT. Além disso, quanto ao momento da renúncia, aquela feita quando da celebra- ção do contrato de trabalho é considerada, normalmente, nula de pleno direito; durante a vigência da relação de emprego, a renúncia apenas excepcionalmente é admitida, ou seja, quando existente autorização expressa; depois da cessação do contrato de trabalho, certas vezes é admitida com menos restrições. Por fim, a condição pessoal do empregado e o grau de subordinação jurídica apresentam relevância quando da verificação da higidez na manifestação de sua vontade. Mesmo havendo estas exceções, prevalece no Direito do Trabalho a vedação de atos unilaterais de disposição, pelo empregado, de seus direitos. Princípio da primazia da realidade Segundo Garcia (2017), o princípio da primazia da realidade indica que, na relação de emprego, deve prevalecer a efetiva realidade dos fatos, e não eventual forma construída em desacordo com a verdade. Em razão disso é que, por exemplo, na avaliação de certo documento per- tinente à relação de emprego deve-se verificar se ele corresponde ao ocorrido no plano dos fatos, pois deve prevalecer a verdade real. Quando se discute se determinada relação de trabalho, em gênero, corres- ponde, ou não, a um vínculo de emprego, nem sempre a roupagem atribuída à contratação corresponde à realidade. Aliás, pode ocorrer que mesmo no ajuste de vontades, pertinente à prestação do trabalho, as partes indiquem não se tratar de relação de emprego. No entanto, por meio da noção de “contrato-realidade”, deve prevalecer o reconhecimento do vínculo empregatício, caso presentes os seus requisitos (arts. 2º. e 3º. da CLT), ou seja, incide a “vontade da lei”. Normas gerais e especiais de tutela do trabalho6 C03_Legislacao_e_Rotina.indd 6 29/06/2018 08:21:37 Princípio da continuidade da relação de emprego Para Garcia (2017), o princípio da continuidade da relação de emprego objetiva preservar o contrato de trabalho, de forma que se presuma que o prazo é indeterminado e, assim, permita-se a contratação a prazo fi xo somente como exceção à regra. A sua importância se revela não apenas ao conferir segurança ao empregado durante a vigência do contrato de trabalho, mas também na sua integração à empresa, qualifi cando o serviço prestado Esse princípio inspira diversas disposições contidas no sistema jurídico brasileiro a fim de objetivar a manutenção do contrato de trabalho. Primei- ramente, cabe destacarmos que o art. 7º, I, da Constituição Federal prevê a proteção da relação de emprego contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa, embora restrinja a questão à lei complementar, ainda incompleta. Todavia, o art. 10, II, do Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias (ADCT) veda a dispensa arbitrária ou sem justa causa nas hipóteses previstas (membro da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes [CIPA] e empregada gestante). Nas hipóteses de falecimento da trabalhadora gestante, a Lei Complementar nº. 146, de 25 de junho de 2014, dispõe que o direito previsto no mencionado art. 10, II, b, do ADCT deve ser assegurado a quem detiver a guarda do filho. Ademais, a previsão na Constituição Federal, na lei e em outras fontes formais do Direito do Trabalho relativas a certas estabilidades, normalmente transitórias e que garantem a permanência no emprego, por certo tempo, de trabalhadores em situações especiais, também é uma forma de concretizar o princípio da continuidade do contrato de trabalho, o que também se aplica à vedação de dispensa por ato discriminatório, conforme a Lei nº. 9.029, de 13 de abril de 1995. A imposição do dever de indenizar o empregado ao empregador frente dispensa sem justa causa (art. 10, I, do ADCT e art. 18, § 1º, da Lei nº. 8.036, de 11 de maio de 1990) ou sem aviso prévio (art. 7º, XXI, da Constituição Federal e art. 487 da CLT) também são formas de prevenção à ruptura contratual que promovem a preferência pela sua manutenção. Outra emanação do princípio em questão se encontra na sucessão traba- lhista, prevista nos arts. 10 e 448 da CLT, que permite a preservação da relação de emprego mesmo que haja mudança na estrutura jurídica da empresa ou alteração na sua titularidade. Ocorrendo a extinção do estabelecimento, o seu art. 469, § 2º, permite a transferência do empregado, o que também evidencia a continuidade do contrato de trabalho. Nas hipóteses de suspensão ou interrupção do contrato de trabalho, embora não haja a prestação de serviços, o contrato não é encerrado, buscando-se, 7Normas gerais e especiais de tutela do trabalho C03_Legislacao_e_Rotina.indd 7 29/06/2018 08:21:38 assim, a sua manutenção. Além disso, em razão desse princípio, presume-se a continuidade do contrato de trabalho, cabendo ao empregador provar o seu término, bem como a dispensa do empregado. Princípio da norma mais favorável Delgado (2017) afi rma que o presente princípio dispõe que o operador do Direito do Trabalho deve optar pela regra mais favorável ao obreiro em três situações ou dimensões distintas: no instante de elaboração da regra (princípio orientador da ação legislativa), no contexto de confronto entre regras concorrentes (princípio orientador do processo de hierarquização de normas trabalhistas) ou no cenário de interpretação das regras jurídicas (princípio orientador do processo de revelação do sentido da regra trabalhista). Na fase pré-jurídica, que é essencialmente política, o princípio da norma mais favorável age como critério de política legislativa e influencia o pro- cesso de construção desse ramo jurídico especializado. Trata-se da função essencialmente informativa do princípio, sem caráter normativo, agindo como verdadeira fonte material do campo justrabalhista. Essa influência é muito clara, especialmente em contextos políticos democráticos, a colocar em franca excepcionalidade diplomas normativos que possam agredir a direção civili- zatória essencial inerente ao Direito do Trabalho. Na fase jurídica, após desenvolvida a regra, o mesmo princípio atua como critério de hierarquia de regras jurídicas e também como princípio para a sua interpretação. Como critério de hierarquia, permite eleger como regra prevalecente em uma dada situação de conflito de regras aquela que for mais favorável ao trabalhador, observados certos procedimentos objetivos orientado- res, evidentemente. Enquanto princípio de interpretação do Direito, permite a escolha da interpretação mais favorável ao trabalhador, caso antepostas ao intérprete duas ou mais alternativas consistentes de interpretação em face de uma regra jurídica salientada. Portanto, esse princípio informa que, no processo de aplicação e interpretação do Direito, o operador jurídico situado ante um quadro de conflito de regras ou das suas interpretações consistentes deve escolher a que for mais favorável ao trabalhador, a que melhor concretize o sentido teleológico essencial ao Direito do Trabalho. No tocante ao processo de hierarquização de normas, o operador jurídico não pode permitir que a aplicação do princípio da norma mais favorável comprometa o caráter sistemático da ordem jurídica, elidindo-se o patamar de cientificidade a que se deve submeter todo processo de interpretação e aplicação do Direito. Assim, o encontro da regra mais favorável não pode acontecer mediante separação Normas gerais e especiais de tutela do trabalho8 C03_Legislacao_e_Rotina.indd 8 29/06/2018 08:21:38 tópica e casuística de regras, acumulando-se preceitos favoráveis ao empregado e praticamente criando ordens jurídicas próprias e provisórias para cada caso concreto, como resulta do enfoque proposto pela teoria da acumulação. A respeito do processo de interpretação de normas, o operador jurídico não deve suplantar os critérios científicos impostos pela hermenêutica jurídica à dinâmica de revelação do sentido das normas examinadas em favor de uma opção simplista mais benéfica ao obreiro, como escolher, por exemplo, uma alternativa inconsistente de interpretação, porém mais favorável. No Direito do Trabalho, o processo interpretativo deve se concretizar de modo objetivo, criterioso, guiado por parâmetros técnico-científicos rigorosos. Logo, apenas se respeitados os rigores da hermenêutica jurídica, o operador ainda chegar ao contraponto de dois ou mais resultados interpretativos consistentes é que procederá o intérprete à escolha final orientada pelo princípio da norma mais favorável. Obviamente, ele não pode usar o princípio especial justrabalhista para comprometer o caráter lógico-sistemático da ordem jurídica, elidindo o patamar de cientificidade a que se deve submeter todo processo de interpretação de qualquer norma jurídica, como já comentamos. Princípio da condição mais benéfica De acordo com os ensinamentos de Delgado (2017), esse princípio interessa à garantia de preservação da cláusula contratual mais vantajosa ao traba- lhador ao longo do contrato, que se reveste do caráter de direito adquirido (art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal). Ademais, no contraponto entre dispositivos contratuais concorrentes, prevalece o que for mais favorável ao empregado para o princípio da condição mais benéfi ca. Incorporado pela legislação (art. 468 da CLT) e pela jurisprudência traba- lhistas (Súmula 51, I, do Tribunal Superior do Trabalho [TST]), o princípio informa que cláusulas contratuais benéficas somente poderão ser suprimidas caso suplantadas por cláusula posterior ainda mais favorável, mantendo-se intocadas (direito adquirido) em face de qualquer alteração subsequente menos vantajosa do contrato ou regulamento de empresa. Evidentemente, a alteração implementada por norma jurídica se submeteria a critério analítico distinto. Princípio da inalterabilidade contratual lesiva Ainda com base nas proposições de Delgado (2017), o princípio da inalterabili- dade contratual lesiva é especial do Direito do Trabalho. Contudo, a sua origem é claramente exterior ao ramo justrabalhista, uma vez que se inspira no princípio 9Normas gerais e especiais de tutela do trabalho C03_Legislacao_e_Rotina.indd 9 29/06/2018 08:21:38 geral do Direito Civil da inalterabilidade dos contratos. Na sua matriz civilista, essa princípio determina que as convenções fi rmadas pelas partes não podem ser unilateralmente modifi cadas no curso do prazo da sua vigência, impondo o cumprimento fi el do acordado pelos pactuantes. São vedadas, portanto, alterações contratuais que resultem em prejuízo ao trabalhador. Princípio da intangibilidade salarial O princípio da intangibilidade salarial estabelece que a parcela justrabalhista merece garantias diversifi cadas da ordem jurídica, de modo a assegurar valor,montante e disponibilidade em benefício do empregado, conforme expõe Delgado (2017). Esse merecimento deriva do fato de que o salário possui caráter alimentar, atendendo, pois, necessidades essenciais do ser humano. A noção de natureza alimentar é simbólica, obviamente. Ela parte do pres- suposto — socialmente correto, em regra — de que a pessoa física que vive fundamentalmente do seu trabalho empregatício proverá as suas necessidades básicas de indivíduo e membro de uma comunidade familiar (alimentação, moradia, educação, saúde, transporte etc.) com o ganho advindo desse trabalho, sintetizado no salário. A essencialidade dos bens a que se destinam o salário do empregado, por suposto, induz à criação de garantias fortes e diversificadas em torno da figura econômico-jurídica. Para aprofundar os seus conhecimentos no assunto, sugerimos a leitura do artigo Os princípios do Direito do Trabalho e os direitos fundamentais do trabalhador, de autoria da Profª. Drª. Patrícia Tuma Martins Bertolin (USP), disponível no link a seguir. https://goo.gl/aeXD1P Relações de trabalho e de emprego A ciência do Direito identifi ca clara distinção entre relação de trabalho e relação de emprego. A primeira expressão possui caráter genérico: refere-se a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem a sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano. Refere-se, pois, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente Normas gerais e especiais de tutela do trabalho10 C03_Legislacao_e_Rotina.indd 10 29/06/2018 08:21:38 admissível. A expressão relação de trabalho englobaria, desse modo, as relações de emprego, trabalho autônomo, trabalho eventual, trabalho avulso e outras modalidades de pactuação de prestação de labor, como trabalho de estágio, entre outros. Essa expressão traduz, portanto, o gênero a que se acomodam todas as formas de pactuação de prestação de trabalho existentes no mundo jurídico atual (DELGADO, 2017). Evidentemente, o vocábulo trabalho, embora amplo, tem uma inques- tionável delimitação: refere-se a dispêndio de energia pelo ser humano para alcançar um resultado útil e, logo, não referencia o dispêndio de energia por seres irracionais ou pessoas jurídicas. Assim, trabalho é uma atividade inerente à pessoa humana, compondo o conteúdo físico e psíquico dos integrantes da humanidade. É, em síntese, o conjunto de atividades produtivas ou criativas que o indivíduo exerce para atingir determinado fim (DELGADO, 2017). Já a relação de emprego, do ponto de vista técnico-jurídico, é apenas uma dentre as modalidades específicas de relação de trabalho juridicamente confi- guradas. Corresponde a um tipo legal próprio e específico, inconfundível com as demais modalidades de relação de trabalho. Não obstante o caráter de mera espécie do gênero ao qual se filia, a relação de emprego expressa a particula- ridade de também se constituir, do ponto de vista econômico-social, como a modalidade mais relevante de pactuação de prestação de trabalho existente nos últimos 200 anos, desde a instauração do sistema econômico contemporâneo, o capitalismo. Essa relevância socioeconômica e a singularidade da sua dinâmica jurídica conduziram à estruturação de um dos segmentos mais significativos do universo jurídico atual: o Direito do Trabalho (DELGADO, 2017). Passados 200 anos do início da sua dominância no contexto socioeconômico do mundo ocidental, podemos afirmar que a relação empregatícia se tornou a mais importante relação de trabalho existente no período, tanto sob a perspec- tiva econômico-social como jurídica. No primeiro plano, por se generalizar no mercado de trabalho, demarcando uma tendência expansionista voltada a submeter às suas regras a maioria das formas de utilização da força de trabalho na economia contemporânea. No segundo plano, por originar em um universo orgânico e sistematizado de regras princípios e institutos jurídicos próprios e específicos, também com larga tendência de expansionismo, que é o Direito do Trabalho (DELGADO, 2017). Dadas a relevância, a projeção e a tendência expansionista da relação empre- gatícia, de modo a reduzir o espaço das demais relações de trabalho ou assimilar às suas normas situações fáticas inicialmente não formuladas como tal, firmou-se na tradição jurídica a tendência de designar a espécie mais importante (relação de emprego) pela denominação cabível ao gênero (relação de trabalho). Dessa 11Normas gerais e especiais de tutela do trabalho C03_Legislacao_e_Rotina.indd 11 29/06/2018 08:21:38 forma, utiliza-se a expressão relação de trabalho e consequentemente contrato de trabalho ou mesmo Direito do Trabalho para indicar típicas relações, institutos ou normas concernentes à relação de emprego em sentido específico. Apesar das possíveis críticas sob o enfoque estritamente técnico-jurídico, essa tendência já está absolutamente consolidada pela incontestável hegemonia fático- -jurídica da relação empregatícia no universo de todas as relações de trabalho, o que torna meramente acadêmica e formalista a insistência em recusar a validade teórica das expressões tradicionais (relação de trabalho e contrato de trabalho) para designar a relação e o instituto de caráter específico (relação de emprego e contrato de emprego). Portanto, devemos atentar ao fato de que muitas vezes adotamos a expressão relação de trabalho ou contrato de trabalho para nos referirmos às figuras técnico-jurídicas da relação empregatícia ou contrato empregatício (DELGADO, 2017). Relação de emprego A prestação de trabalho por uma pessoa física a outrem pode se concretizar de formas relativamente diversas entre si. Mesmo no mundo econômico oci- dental dos últimos 200 anos, essa prestação não se circunscreve à exclusiva fórmula da relação empregatícia. Assim, a prestação de trabalho pode emergir como uma obrigação de fazer pessoal, contudo sem subordinação (trabalho autônomo em geral); como uma obrigação de fazer sem pessoalidade nem subordinação (também trabalho autônomo); como uma obrigação de fazer pessoal e subordinada, mas episódica e esporádica (trabalho eventual). Em todos esses casos, não se confi gura uma relação de emprego ou contrato de emprego. Todos esses casos, portanto, consubstanciam relações jurídicas que não se encontram, em princípio, sob a égide da legislação trabalhista (CLT e leis esparsas). Até o advento da Emenda Constitucional nº. 45, de 30 de dezembro de 2004 (novo art. 114 da Constituição Federal), eles sequer se encontravam sob o manto jurisdicional da Justiça do Trabalho (DELGADO, 2017). A caracterização da relação empregatícia é, portanto, um procedimento essen- cial ao Direito do Trabalho, à medida que propicia o encontro da relação jurídica básica que originou e assegura o desenvolvimento de princípios, regras e institutos justrabalhistas regulados por esse ramo jurídico especial. É um procedimento com reflexos no próprio Direito Processual do Trabalho, uma vez que ele abrange essencialmente as lides principais e conexas em torno da relação de emprego. A ampliação da competência da Justiça do Trabalho pela Emenda Constitucional nº. 45/2004 (art. 114, I a IX, da Constituição Federal) não retirou a hegemonia das lides empregatícias no âmbito da justiça especializada (DELGADO, 2017). Normas gerais e especiais de tutela do trabalho12 C03_Legislacao_e_Rotina.indd 12 29/06/2018 08:21:38 Relação de trabalho A relação empregatícia e a fi gura do empregado surgem como resultado da combinação dos cinco elementos fático-jurídicos já examinados em certo contexto sócio jurídico. Há, porém, outras relações de trabalho gestadas na dinâmica social muito próximas do ponto de vista jurídico e social à relação empregatícia, mas que não se confundem. Às vezes, a diferenciação pode motivar uma pesquisa fático-teórica tormentosa (DELGADO, 2017). Em um primeiro plano, há um vínculo jurídico que, apesar de contar com os elementos configuradoresda relação de emprego do ponto de vista prá- tico, recebe da ordem jurídica uma excludente legal absoluta, que inviabiliza o contrato empregatício. Trata-se da natureza pública da relação jurídica formada. É o que se passa com os servidores administrativos das entidades estatais de Direito Público. Em um segundo plano, há outra relação jurídica, de natureza efetivamente privada, que também pode contar com os elementos integrantes da relação de emprego sem enquadrar-se no tipo legal da CLT. É o que ocorre com o estágio, desde que regularmente formado e praticado. Ressaltemos, entretanto, que não estamos mais diante de excludente legal absoluta como ocorrido acima, senão de uma presunção legal favorável ao estágio. Nesse plano, há outra relação jurídica que parece concorrer, do ponto de vista jurídico, com a relação de emprego, embora a concorrência seja mais aparente que verdadeira. São as situações relativas aos trabalhadores prestadores de serviço de cooperativas de mão de obra ou cooperativas de trabalho, segundo a terminologia seguida pela Lei nº. 12.690, de 19 de julho de 2012. Nesse ponto, também não estamos definitiva- mente perante uma excludente legal da relação de emprego (DELGADO, 2017). Em outro plano, há diversas outras relações sociojurídicas que se diferenciam da relação de emprego em vista da falta de um ou mais elementos fático-jurídicos componentes do tipo legal especificado no caput dos arts. 2º e 3º da CLT. É o que acontece, para ilustrarmos melhor, com as relações trabalhistas autônomas, eventuais e avulsas, além de outros vínculos também fronteiriços ao regulado pela CLT, como nas situações de representante comercial ou agente, motorista carreteiro proprietário do seu próprio veículo, motorista de táxi etc. Todos esses casos de relação de trabalho lato sensu são de certa forma próximos à relação empregatícia, pois todos esses trabalhadores lato sensu tangenciam a figura jurídica do empregado. Contudo, inquestionavelmente todos eles formam figuras sociojurídicas distintas da empregatícia para o Direito, com regras, institutos e princípios jurídicos diferenciados a regerem a situação concreta, desde que lhes falte pelo menos um dos elementos do vínculo empregatício. 13Normas gerais e especiais de tutela do trabalho C03_Legislacao_e_Rotina.indd 13 29/06/2018 08:21:38 Cabe, portanto, ao intérprete e aplicador do Direito reconhecer os elementos de aproximação entre as figuras comparadas para situá-las em um mesmo gênero conceitual (o do trabalho humano prestado a outrem onerosamente) e identificar também a diferença específica, de modo a situar, sem equívocos, o correto posicionamento no universo normativo existente (DELGADO, 2017). Normas gerais e especiais de tutela do trabalho14 C03_Legislacao_e_Rotina.indd 14 29/06/2018 08:21:38 DELGADO, M. G. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários a Lei 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017. DELGADO, M. G. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2017. GARCIA, G. F. B. Curso de direito do trabalho. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.