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399Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 399-405, set./dez. 2018 Questão étnico-racial: desigualdades, lutas e resistência Ethnic-racial question: inequalities, struggles and resistance Dirce Kogaa Raquel Santos Sant’Anab Maria Lúcia Martinellia Esta edição especial da Revista Serviço Social & Sociedade traz para o debate o “Racismo e suas expressões socioinstitucionais: traços estrutu- rantes da sociedade brasileira”, que junto com a edição anterior da Revista sobre o tema da “Diversidade sexual e de gênero”, compõem um denso circuito de diálogos e reflexões que se articulam ao XI Seminário Anual de Serviço Social promovido pela Cortez Editora, no último mês de maio de 2018, sobre a instigante questão: “Questão social, sexismo, racismo e lgbtfobia: Que país é esse?” O compromisso com a superação das desigualdades sociais, com o combate a todas as formas de opressão e exploração, faz parte do posicio- namento do serviço social brasileiro há décadas. Quando a profissão constrói uma direção social crítica, ela o faz bus- cando um referencial teórico-metodológico que permita olhar para a reali- http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.149 EditorialEDITORIAL aPrograma de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo-SP, Brasil. bCurso de Serviço Social da Universidade do Estado de São Paulo (UNESP) – campus de Franca-SP, Brasil. 400 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 399-405, set./dez. 2018 dade numa perspectiva de totalidade e, ao mesmo tempo, coloca a necessi- dade de um posicionamento ético-político; isto faz com que o serviço social brasileiro avance, mas ao mesmo tempo requer dos profissionais um cons- tante aprimoramento profissional. Afinal, como superar as marcas dos pre- conceitos socialmente construídos e que fazem parte da nossa formação social e política? Desconstruir preconceitos exige conhecimento, reflexão e posicio- namento ético-político. Porém, não é possível superar limites se estes nem sequer são percebidos e apreendidos como tal. Como afirma Kosik (1995), ninguém investiga para além do imediato, se não acreditar que existe algo a ser descoberto. Afinal, nós assistentes sociais vivemos nessa sociabili- dade e construímos conceitos e juízos provisórios para seguir a vida como seres sociais. Como muito bem nos lembra Heller (1980), os juízos pro- visórios que são contestados pela razão e pela experiência, mas que se mantêm inabalados, são preconceitos, e mais: o afeto da fé os sustenta, basta acreditar, não importa que tenham sido cientificamente desconstruí- dos, ou se mostrado equivocados pela vivência. Nas palavras da pró- pria autora: a maioria dos preconceitos, embora nem todos, são produtos das classe domi- nantes [...] Isso não é apenas consequência de suas maiores possibilidades técnicas, mas também de seus esforços ideológicos hegemônicos: a classe burguesa aspira a universalizar a sua ideologia (Heller, 1980, p. 54). Essa edição da Revista Serviço Social & Sociedade vem contribuir com esse processo permanente que a profissão tem feito ao longo dos últimos 40 anos, no sentido de avançar teórica e politicamente. Afinal, o racismo é uma marca estruturante da formação sócio-histórica brasileira, e remonta à face bárbara de um país que insiste em ser moderno (Ianni, 1994). Segundo José de Souza Martins (1994), trata-se de uma “sociedade de história lenta”, ou ainda, trata-se de uma interpretação da realidade social, a partir da perspecti- va de uma “sociologia de história lenta”, que 401Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 399-405, set./dez. 2018 permite fazer uma leitura dos fatos e acontecimentos orientada pela necessi- dade de distinguir no contemporâneo a presença viva e ativa de estruturas fundamentais do passado (...) Mais do que isso, uma sociologia da história lenta permite descobrir, e integrar na interpretação, estruturas, instituições, concepções e valores enraizados em relações sociais que tinham pleno senti- do no passado, e que, de certo modo, e só de certo modo, ganharam vida própria. É sua mediação que freia o processo histórico e o torna lento (Martins, 1994, p. 14). Tais marcas sócio-históricas que persistem na questão étnico-racial em nosso país seguem no artigo sobre as “Persistentes desigualdades raciais e resistências negras no Brasil contemporâneo”, de Zelma Madei- ra e Daiane de Oliveira Gomes. Importa ressaltar, como defendem as autoras, que frente às persistentes desigualdades raciais encontram-se as resistências negras. No final do editorial da Revista Serviço Social & Sociedade n. 132, as autoras lembravam do assassinato de Marielle Franco, dignamente lembrada como “mulher, negra, bissexual, moradora em favela, socióloga, defensora dos direitos humanos e a quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro nas últimas eleições municipais”. Sem dúvida, passados 120 dias de sua morte ainda não desvendada, faz-se necessário relembrar de sua figura nesta Revista 133, também pela face da luta e resistência. Em um capítulo do livro Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil (2017), Ma- rielle Franco apresenta um texto que trata justamente sobre uma outra perspectiva para se olhar para as periferias da cidade, suas mulheres e suas populações: Ainda que essa realidade das desigualdades, que pavimenta a história brasi- leira, tenha maior impacto em toda a periferia, principalmente nas favelas, as mulheres desse amplo território não são marcadas pela carência, como apa- rece no discurso predominante da imprensa e do poder hegemônico. Assumi- ram papel de centralidade de ações criativas e de conquistas de políticas do Estado que atuaram no caminho inverso das desigualdades, ampliando direi- 402 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 399-405, set./dez. 2018 tos em várias dimensões humanas. Conquistaram, assim, alterações em seus territórios com força para disputar, na cidade, novas localizações no imaginá- rio popular e para as relações humanas (Franco, 2017, p. 91). Ou seja, a questão étnico-racial vincula-se ao próprio processo de construção desigual de nossas cidades, que reproduzem o modelo desigual e discriminatório da nossa formação societária, de que trata o artigo “Notas para o debate das relações de exploração-opressão na sociedade patriarcal- -racista-capitalista”, de Milena Fernandes Barroso. O debate sobre a questão étnico-racial dialoga diretamente com questões muito importantes para o serviço social que sustenta seu projeto profissional fundamentalmente a partir da teoria marxiana, e que tem na centralidade do trabalho o elemento fundante da sociabilidade. Afinal, haveria uma hierarquia na determinação da realidade e, portanto, a prioridade da classe? A questão racial vem depois? É preciso ficar atento a este debate, afinal, a prioridade ontológica do trabalho defendida pela teoria marxiana não se confunde com o estabelecimento de hierarquias; ao reconhecer no trabalho o elemento que funda a sociabilidade humana, essa referência teórica nos permite entender o que é a realidade como construção social; ora mas o trabalho sempre foi exe- cutado pelos diversos seres humanos que compõem a realidade e que estabe- leceram diferentes tipos de economia e sociedade. Na sociedade capitalista, a base que sustenta a desigualdade social é a exploração do trabalho, que vai acontecer de diferentes maneiras de acordo com outras particularidades que compõem a classe trabalhadora de cada país. Como muito bem destacam os artigos publicados nesta edição, se quisermos entender a classe trabalhadora desse país, temos que analisar a própria formação da sociedade brasileira, afinal, essa classe trabalhadora sempre teve sexo e cor. Sem o eixo classe não é possível entender a realidade brasileira, porém somente com esse complexo social tampouco a entenderemos, afinal nada mais estranho a Marx que um único determinante definindo uma realidade. Totalidade significa entender a complexidadeque compõe as diversas particularidades presentes na realidade. Cisne e Santos (2018) enfrentam esse debate e reafirmam a necessida- de de identificar esses complexos sociais. A perspectiva de totalidade recla- 403Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 399-405, set./dez. 2018 mada pelas autoras identifica o trabalho como elemento fundante da socia- bilidade, mas descrevem três divisões estruturais que, associadas entre si, compõem a realidade: Partimos da concepção marxista de que as relações sociais se fundam por meio do trabalho. O trabalho, nesta sociedade hetero-patriarcal-racista-capitalista, possui três divisões estruturais associadas entre si: a) a divisão social fundada nas relações entre as classes; b) a divisão racial, fundada nas relações sociais de raça; c) a divisão sexual, fundada nas relações de sexo. As relações sociais são perpassadas pela apropriação do trabalho de um grupo ou classe sobre outro. São essas relações sociais, mediadas por antagonismos e hierarquias, que pro- cessam a produção e a reprodução sociais, permeadas pela exploração da força de trabalho e pelas opressões a ela vinculadas (Cisne; Santos, 2018, p. 25). O preconceito étnico-racial foi e ainda é um dos pilares de sustentação das desigualdades, e isso tem que ser tratado no trabalho e na formação dos estudantes e profissionais que compõem o serviço social brasileiro. Afinal, o combate a todas as formas de preconceito tem que estar no cotidiano de formação e do trabalho profissional, e não apenas ser abordado quando uma atividade discriminatória surge. O mito da democracia racial realizou um grande desserviço para a sociedade brasileira e combatê-lo compõe nosso posicionamento ético-po- lítico. E como afirma Matos (2015), o nosso projeto profissional não é um jaleco que colocamos para trabalhar, independentemente de nossos valores e concepções. Na realidade, são nossas concepções que irão dar a direção para o projeto profissional e: Se estivermos mais qualificados (as), daremos, no trabalho, respostas melho- res. Se efetivamente internalizarmos os valores do projeto ético-político, que são emancipatórios, daremos respostas emancipatórias para “a dureza” do dia a dia — que naturaliza a desigualdade social, estimula o preconceito, desqua- lifica os indivíduos fora do padrão dominante — tanto no trabalho como nas outras esferas da sociabilidade (Matos, 2015, p. 685). 404 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 399-405, set./dez. 2018 Nesta edição, o leitor e a leitora ficarão fortalecidos para essa luta, pois, de fato, os diversos artigos, cada um com um enfoque, nos subsidiam e apoiam teórica e politicamente esse posicionamento coerente, previsto pelo projeto profissional do serviço social. Os artigos, em geral, que compõem este número da Revista tratam da temática étnico-racial sob a tríade “desigualdade, luta e resistência”, e o fazem em diálogo plural com o referencial marxiano e com o projeto pro- fissional do serviço social brasileiro. Ainda que a ênfase dos artigos recaia sobre a questão dos negros, a Revista traz ainda o debate sobre a questão indígena. Um deles escrito, por Elizângela Cardoso de Araújo Silva, destaca o direito a terra como condição fundamental para os povos indígenas. O outro artigo sobre esta temática é de autoria de Joaquina Barata Tei- xeira, intitulado “Etnias amazônicas: confrontos culturais e intercorrências no campo jurídico”. Não sem motivo, esta assistente social e professora aposentada pela Universidade Federal do Pará (UFPA), em sua incansável militância pela questão indígena aos 82 anos de idade, recebeu justa home- nagem no XI Seminário Anual de Serviço Social, cujo texto “Joaquina Barata: Amauta do Serviço Social brasileiro”, de autoria do Prof. Marcelo Braz, encerra este número da Revista, recordando-nos a importância de saber reconhecer méritos e comemorar juntos, pois ao fazê-lo estamos dan- do visibilidade a trajetórias de vida densamente vividas. Referências CISNE, Mirla; SANTOS, Silvana Mara Morais. Feminismo, diversidade sexual e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018. (Biblioteca básica de serviço social, v. 8) FRANCO, Marielle. A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista negra e favelada. In: BUENO, Winnie et al. (Orgs.). Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil. Porto Alegre: Editora Zouk, 2017. 405Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 399-405, set./dez. 2018 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1980. IANNI, Octavio. A ideia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense, 1994. KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. MARTINS, José de Souza. O poder do atraso — ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec, 1994. MATOS, Maurílio Castro de. Considerações sobre atribuições e competências profissionais de assistentes sociais na atualidade. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 124, p. 678-698, out./dez. 2015. Notas das autoras Dirce Koga — Assistente Social, doutora em Serviço Social, docente e pesquisadora CNPq. E‑mail: dirce.koga@gmail.com Raquel Sant’Ana — Assistente Social, doutora em Serviço Social, docente e pesquisadora da UNESP. E‑mail: raquelssfranca@yahoo.com.br Maria Lúcia Martinelli — Assistente Social, doutora em Serviço Social, docente e pesquisadora. E‑mail: mlmartinelli@terra.com.br Este é um artigo de acesso aberto distribuído nos termos de licença Creative Commons. 413Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.151 Relações raciais no Brasil: colonialidade, dependência e diáspora Race relations in Brazil: coloniality, dependency and diaspora Leonardo Ortegala Resumo: Este artigo discute as relações raciais no Brasil, numa perspectiva crítica ao conhecido equívoco teórico de que o racismo é meramente um subproduto das desigualdades de classe. Dis- cute também a teoria marxista da dependência e a decolonialidade, de modo que o exercício de aproximação dessas teorias demonstrou que a TMD e a decolonialidade são ferramentas teóricas convergentes, dotadas de grande relevância para se compreender e intervir na realidade brasileira de desigualdade social e racial. Palavras-chave: Raça. Racismo. Decolonialidade. Teoria marxista da dependência. Genocídio. Diáspora. Abstract: This article discusses race relations in Brazil, in a critical perspective to the well- known theoretical misconception that racism is merely a by-product of class inequalities. It also discusses the Marxist Theory of Dependency and Decoloniality, so that the exercise of approximation of these theories demonstrated that TMD and Decoloniality are convergent theoretical tools, endowed with great relevance to understand and intervene in the Brazilian reality of social and racial inequality. Keywords: Race. Racism. Decoloniality. Marxist theory of dependency. Genocide. Diaspora. Introdução Sabemos que qualquer esforço de compreensão da realidade brasileira a partir de sua história já revela indícios suficientes de que tal compreen- são é impossível se tivermos como ferramentas apenas referenciais teórico-metodológicos importados direto dos países hegemônicos. Isso nos leva a perceber que a compreensão das realidades dos países capitalistas dominantes não significa a compreensão das dinâmicas do capitalismo nos ArticlesARTIGOS aDepartamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB), Brasília-DF, Brasil. 414 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 países subalternos. Foi diante desse fato que Rui Mauro Marini, Florestan Fernandes e outros se esforçaram para contestar o processo vigente nas ciências sociais dos países latino-americanos à época, em que se buscava compreender a realidade local a partir da utilização de referenciais europeus e estadunidenses de forma imediata, ou seja, sem compreender as particula-ridades da realidade brasileira ou da América Latina como um todo. Essa não foi uma lacuna exclusiva das perspectivas positivistas, mas também de perspectivas críticas como o próprio marxismo, sempre que aplicado sem considerar as particularidades da realidade local. A proposta de uma teoria marxista da dependência busca compreender a realidade la- tino-americana não apenas de forma crítica, como também a partir de suas características próprias, sendo a dependência uma de suas características principais para essa perspectiva. Essa, porém, não é a única tentativa teórica de compreender a rea- lidade local considerando especificidades em relação à realidade dos países hegemônicos. O próprio fenômeno que desencadeia o pensamento equivocado de associação direta entre a realidade dos países hegemônicos a uma realidade universal é uma demonstração de que a nossa forma de compreender o mundo está marcada pelo que seria a colonialidade. É essa uma das principais assertivas da perspectiva1 decolonial, que se dedica a recuperar e produzir saberes a partir desses lugares e sujeitos que têm em comum as marcas da subalternização na era moderna.2 Essa abordagem decolonial lança uma nova luz sobre os processos que marcam o início da era moderna e sobre como eles, muitas vezes aparentemente encerrados no passado, estruturam as relações na contemporaneidade. Na verdade, mais do que simplesmente lançar uma nova luz, o projeto decolonial busca 1. Às vezes referida como projeto, às vezes como abordagem, entre outros termos, será aqui referida apenas como perspectiva para não confundir o/a leitor/a durante a exposição do texto. 2. O aprofundamento acerca da colonialidade como uma das chaves de compreensão do mundo nos últimos séculos é um esforço não apenas da abordagem decolonial, mas também de outras correntes de pen- samento, como a pós-colonial, descolonial e outras, que partilham entre si semelhanças e diferenças. Neste texto, porém, a perspectiva análise é a abordagem decolonial. Sobre distinções entre essas perspectivas, conferir Bernardino-Costa e Grosfoguel, 2016. 415Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 resgatar pensamentos e autores que já realizavam esse trabalho teórico e que, no entanto, não tiveram a devida importância em seu tempo e lugar, em razão dos próprios processos da colonialidade e da subalternização. Esses processos assujeitam não apenas países, continentes ou economias, mas também determinados indivíduos, a partir de suas marcas, idiomas, linguagens e outras características, num processo que ocorre não apenas do império para fora, como também do império para dentro (Bernardino- -Costa e Grosfoguel, 2016). Nesse processo é possível, então, matizar as realidades nacionais muitas vezes tratadas de forma homogênea, de modo que os países dominantes se revelam marcados por desigualdades diversas. Isto significa que, além das desigualdades de classe, outros processos são responsáveis por desigualar e assujeitar determinados indivíduos e grupos, por meio da raça,3 da etnicidade, do gênero e outros. Assim como na maioria dos países da América Latina, o Brasil, fun- dado enquanto Estado-nação a partir da colonização de países europeus, sobretudo de Portugal, teve como principal força de trabalho do país ao longo de seus cinco séculos de existência as pessoas trazidas à força do continente africano. Esse povo, que resistiu às mais diversas tentativas de aniquilação e que hoje é majoritário no território nacional, é denominado como população negra, e sua experiência no país é também compreendida por diversos intelectuais e ativistas negros como parte da diáspora africana. Essa diáspora não é uma experiência exclusiva dos negros brasileiros, mas é partilhada em diversas partes do mundo e, de modo especialmente seme- lhante, nos países da América Latina e do Caribe, unidos simbolicamente pelo Atlântico Negro.4 A ideia de diáspora possibilita perceber as proximi- dades entre experiências geograficamente distantes, ao mesmo tempo que permite compreender os distanciamentos entre experiências de vida entre os grupos populacionais que compõem uma mesma nação. É a compreensão da 3. Aqui, vale dizer, raça e etnia possuem, não um sentido biológico, mas sociológico, cuja amplitude inclui outros processos, como xenofobia, migração, religiosidade, idioma, sotaque, fenótipo, indumentária e outros. 4. Atlântico Negro é a metáfora utilizada por Paul Gilroy (2012) para este elo entre os países africanos e da Diáspora. 416 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 diáspora e seus desdobramentos que permitem perceber as particularidades da experiência racializada das relações sociais, ainda que se esteja tratando de grupos pertencentes a uma mesma classe social ou a um mesmo extrato socioeconômico. Um exemplo disso é o fenômeno dos homicídios na sociedade brasileira. Analisando os dados do Mapa da Violência (Waiselfisz, 2014), é possível observar que os homicídios estão concentrados em bairros de menor poder econômico e infraestrutura, nos quais vivem as classes trabalhadoras de média e baixa renda. Seria esperado, portanto, que os homicídios estivessem deter- minados unicamente por uma questão de classe. Todavia, dentre os jovens assassinados no Brasil, 70% são negros, percentual muito acima da represen- tação de jovens negros no país. Além disso, num período de dez anos, a taxa de homicídio de jovens negros sofreu um crescimento de 32%, enquanto o percentual de jovens brancos diminuiu 32% (Waiselfisz, 2014, p. 184). Em razão de sua flagrante seletividade racial, esse fenômeno ficou co- nhecido como extermínio da juventude negra, e é um entre os exemplos que evidenciam a importância de se conhecer a experiência da diáspora negra para que se possa efetivamente compreender a realidade brasileira. Fica mais do que evidente também a necessidade de se compreender a dimensão racial dos fenômenos sociais da realidade brasileira, quando se entende que tanto os processos da colonialidade quanto os da diáspora são estruturados pela ideia de raça, isto é, de que a humanidade é constituída de diferentes grupos raciais. Diante disso, tornam-se imprescindíveis os estudos sobre as ideias de dependência, colonialidade e diáspora, tendo raça como um dos pilares epistemológicos principais para se compreender a realidade brasileira em suas particularidades.5 Em razão de tal importância, este artigo se propõe a discutir cada uma delas, seguidas de algumas considerações finais acerca desse movimento de compreensão da realidade latino-americana e, mais especificamente, a brasileira, a partir de teorias diferentes entre si, mas que demonstram potencial de complementaridade, pois têm em comum o esforço 5. Sobre a categoria particularidade aqui utilizada, cf. Lukacs (1978). 417Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 de compreender tal realidade não mais apenas a partir do universal, mas a partir de suas particularidades. Tensões raciais no processo de formação do Brasil Qualquer aproximação mais atenta em relação ao estudo da história brasileira é capaz de evidenciar o quanto as relações entre europeus, indí- genas e africanos foram marcadas por distinções de cunho racial. Ora por argumentos espirituais, ora por argumentos biológicos e médicos, e até mesmo pelo senso comum senhorial, negros e indígenas eram classificados e reclassificados ao olhar do europeu de forma racializada, isto é, de forma a estabelecer distinções entre esses três grandes grupos, não apenas com um sentido de hierarquização, mas de definição do que era ou não considerado humano.6 Tal elemento é importante para compreender as relações sociais no Brasil, pois, em um mundo marcadamente antropocêntrico, caracterizar determinado grupo como não humano ou sub-humano resultava em total isenção moral para a exploração, escravização e extermínio desse grupo assim classificado. Isto está evidenciado nosmais diversos estudos da historiografia e da sociologia do Brasil e não teve seus efeitos suspensos “por decreto”, como a promulgação da Lei Áurea ou da Proclamação da Independência. Dessa forma, muito antes de as classes sociais capitalistas emergirem e passarem a exercer forte determinação sobre os processos de relações sociais na maior parte do mundo, era a raça o distintivo oficial entre os grupos sociais nas metrópoles e colônias. Entretanto, à medida que o capitalismo foi se consolidando como modo de produção tanto nos países europeus quanto nas Américas, difundiu-se também a ideia de que o racismo ia chegando ao fim, dada a associação direta entre racismo e escravidão, bem como em virtude da condição supostamente indistinta de trabalhador que o livre mercado oferecia a todos os que dependiam da própria força de trabalho. Sobretudo 6. Para um estudo aprofundado sobre a invenção do “ser negro”, conferir Santos (2002). 418 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 num país como o Brasil, no qual a convivência entre brancos e negros era supostamente pacífica, narrada principalmente por Gilberto Freyre ([1933] 1998) como um palco romântico da democracia racial7 e da sublimação das diferenças, a ideia de que raça e racismo seriam dois componentes fundantes e fundamentais das desigualdades e violências da nova sociedade passou a dar lugar a explicações de caráter liberal, fundamentadas nas competências e no mérito individual, por um lado, no caráter de classe que se estabelecia, por outro. O fato é que, no século XIX, o impulso capitalista causado pela Re- volução Industrial e pela nova organização e divisão do trabalho que esta demandava coincide com os principais processos de abolição da escravidão racializada no Ocidente, sendo o Brasil considerado o país a realizá-la mais tardiamente, em 1888. As mudanças no modo de produção geradas pela Revo- lução Industrial se desdobram nos mais diversos aspectos da sociedade. Entre estes, as relações entre dominados e dominantes, de modo que a abolição do regime de trabalho escravista não foi somente atravessada por lutas sociais do povo negro ou por concepções ideológicas abolicionistas, mas também pelas transformações econômicas em curso, de modo que a própria Ingla- terra, antes um dos principais países no processo de reprodução do trabalho escravo, passou a coibi-lo de forma incisiva, com o objetivo de consolidar o novo sistema econômico e social do qual era protagonista (Moura, 2014). Nesse processo de transição do regime escravista para o capitalista, a mão de obra escravizada passa a ser substituída pela mão de obra livre e assalariada. Isso, porém, não significa dizer que o trabalhador que antes era escravizado foi absorvido como assalariado. Num sentido contrário, estudos como o de Sales dos Santos (1997) demonstram a intensificação da importação de mão de obra de países europeus, com vistas a substituir os trabalhadores negros, movidos pela ideologia racista do sucessivo bran- queamento da população brasileira. É nesse contexto, então, que se formam no Brasil as classes sociais capitalistas. Num contexto de enfraquecimento 7. Sobre o conceito de democracia racial, conferir Guimarães (2002) e Bernardino (2002). 419Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 progressivo do regime escravista, em que as elites econômicas e políticas do país se viam diante de um impasse em relação a quem seria o tipo ideal de ocupante dos postos de trabalho do novo modelo econômico. A pesquisa realizada por Santos (1997) apresenta trechos de discursos e de jornais da época, nos quais se discutia abertamente a transição para o regime do mercado de trabalho livre. A opinião de maior força era a de que negros, além de não possuírem os requisitos necessários para suprir a nova demanda, eram indesejáveis para o futuro do país, cuja elite econômica e política desejava que se tornasse branco. O imigrante europeu era considerado superior ao indivíduo negro e ao asiático, embora estes tivessem os custos para a importação menores que os do europeu (Idem). Quanto ao imigrante asiático, a exemplo da malquista africanização resultante do regime escra- vista, o receio era o da “mongolização” do país (Idem). Quanto a isso, até mesmo o louvado político abolicionista Joaquim Nabuco falou a respeito, se manifestando contrário à imigração espontânea de africanos e asiáticos, ao mesmo tempo em que lamentava a expulsão dos holandeses da província de Pernambuco, a qual representava como deputado federal. Em um de seus discursos no Congresso Nacional,8 dizia Nabuco sobre a tentativa fracas- sada de colonização holandesa, que “nós tivemos talvez essa possibilidade de sermos uma nação maior do que somos, mas nem a imigração africana, nem a imigração mongólica me inspiram a mesma simpatia” (Nabuco, 1983, p. 185, apud Santos, 1997). Santos afirma que uma das razões para a defesa do abolicionismo feita por Nabuco se devia ao atraso que o trabalho escravo representava para a transição ao trabalho livre e à importação de mão de obra europeia: “Não se pode ter ao mesmo tempo trabalho livre e trabalho escravo, escravatura e imigração” (Nabuco, 1983, p. 183, apud Santos, 1997). Episódios como esses são demonstrações de que as ideias de raça (e o racismo que lhes são inerentes) não se extinguiram no processo de transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Pelo contrário, as mesmas ideias 8. Os discursos podem ser acessados na íntegra por meio da publicação Perfis parlamentares, n. 58: Joaquim Nabuco (2010), disponível no portal da Câmara dos Deputados. 420 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 racistas que atribuíam superioridade e inferioridade a diferentes indivíduos por origem e fenótipo nos séculos da escravidão também pautaram e determinaram a constituição do trabalho livre e do capitalismo em território brasileiro. Neste breve panorama é possível perceber o quanto a história do Brasil é saturada de elementos que marcam sua constituição, como as relações de dependência em relação aos países capitalistas centrais, as relações de colonialidade ope- rando tanto de fora para dentro do território como internamente, bem como a centralidade da diáspora no processo de construção do país. Tudo isso, porém, não seria possível sem que a concepção de que a humanidade era dividida entre raças fosse amplamente aceita como verdade do ponto de vista científico. Ao longo do século XX, porém, essa tese vem a perder força, passando a ser combatida e sendo praticamente extinta dos discursos oficiais, sobretudo após a derrota nazista. Contudo, se por um lado as distinções de raça foram se esvaziando de sentido em seu fundamento biomédico, em seu sentido sociológico tais ideias passaram por um intenso processo de sofisticação, tornando-se extremamente importantes no processo de constituição do Brasil como Estado-nação com as profundas marcas de desigualdade, violência e privilégio que carrega ainda hoje. Portanto, faz-se necessário compreender de que forma a raça incide nas relações sociais brasileiras e de que forma as marcas da colonialidade e da dependência são por ela atravessadas. Raça e racismo no contexto brasileiro Apesar de possuírem características comuns nos mais diferentes países, as ideias de raça e a operação do racismo possuem peculiaridades que as diferenciam de um território para outro. Na realidade brasileira, a ausência de um regime de segregação como o apartheid e o Jim Crow estadunidense, favoreceu por muito tempo a ideia já referida de um paraíso racial, onde brancos e não brancos conviviam harmoniosamente após o fim da escravidão. Essa suposta realidade despertou o interesse da Organização das Nações Unidas e de outras instituições ligadas à pesquisa e fomentaram uma série 421Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 de estudos, sobretudo durante as décadas de 1950 e 1960, com o intuitoinicial de compreender os segredos por trás do êxito brasileiro em superar o racismo (Nogueira, 2007). O que acontece é que o resultado da grande maioria das pesquisas realizadas confirmou a existência de um racismo à brasileira, o que o movimento negro brasileiro já afirmava e enfrentava dé- cadas antes.9 Comprovou-se, então, academicamente, a existência do racismo no Brasil, e entre suas principais características encontravam-se: a) o fato de estar mais associado à cor da pele e do fenótipo do que à origem racial de um indivíduo, que ficou conhecido como preconceito racial de marca, em oposição ao preconceito racial de origem (Idem), b) a capacidade de operar no cotidiano e produzir apartação sem realizá-lo explicitamente, o que ficou conhecido também como racismo cordial (Turra e Venturi, 1995), assim como c) a capacidade de operar sem explicitar aquele que o opera, apelidado de racismo sem racistas, caracterizado a partir da pesquisa realizada pelo Instituto DataFolha (Idem), em que 89% dos entrevistados consideravam existir racismo no país, enquanto apenas 10% admitiam ser racistas. Orientados por forte inspiração do marxismo vigente nesse período, os estudos mais difundidos em relação à questão racial, de autores como Florestan Fernandes, Carlos Hasenbalg, Octavio Ianni e outros, eram geral- mente voltados para compreender o negro nesse novo modo de produção: o capitalismo. Durante a segunda metade do século XIX foi construída uma noção, que até hoje possui forte incidência, de que, diferentemente dos séculos anteriores em que vigorava a escravidão e as ideologias racialistas fa- lidas, o racismo no capitalismo estaria subordinado à desigualdade de classe. Partindo-se de um pressuposto factualmente comprovado de que a maioria da população pobre era a população negra, desenvolveu-se politicamente a tese economicista de que o racismo poderia ser extinto resolvendo-se as desigualdades de classe. O desenvolvimento dos estudos sobre raça, entretanto, vem demons- trando a multiplicidade de origens e efeitos das mais variadas expressões do 9. Meios de comunicação como, por exemplo, o jornal Quilombo, criado por Abdias do Nascimento, são de 1948. 422 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 racismo, que se retroalimentam continuamente e extrapolam as estruturas econômicas. Jurema Werneck, fundadora da ONG Criola e atual diretora da Anistia Internacional no Brasil, apresenta, baseada na concepção apre- sentada por Camara Jones a estrutura do racismo em três dimensões (Jones apud Werneck, 2016): 1) pessoal/internalizado, relacionado a sentimentos e condutas do próprio indivíduo para consigo e a aceitação individual de padrões e estigmas racistas, 2) interpessoal, manifestado por meio de ações ou omissões presentes nas relações sociais, por meio das quais se expressam o preconceito e a discriminação, expressões mais conhecidas do racismo, geralmente significados pelo senso comum como o racismo em sua totalidade, 3) racismo institucional, também conhecido como racismo sistêmico, e que contempla ainda a perspectiva do racismo estrutural. Esta dimensão está associada a questões materiais e de acesso a poder. Sua complexidade está no fato de que geralmente não é possível identificar um indivíduo a operar esse tipo de racismo, que se encontra difuso nas dinâmicas institucionais e políticas, em processos históricos e na escassez de acesso à informação e outros recursos. Essas três dimensões, afirma Werneck, atuam de modo concomitante, “gerando sentimentos, pensamentos, condutas pessoais e interpessoais, atuando também sobre processos e políticas institucionais” (2016, p. 541). O esquema apresentado por Werneck é didático e analítico, pois pro- cura definir o racismo, este conceito muitas vezes difuso, em diferentes dimensões que são, na verdade, expressões de um mesmo fenômeno. A partir dessas dimensões, é possível compreender que as consequências do racismo não se resumem às questões econômicas. É uma forma de violência que agride o indivíduo também em seu subjetivo. Que elimina a história de um povo e que gera processos institucionalizados, mesmo que de manei- ra indireta, porém de extrema eficácia. É importante, todavia, frisar que, embora didático, esse esquema explicativo das dimensões do racismo não pode ser tomado desprovido de mediações, sob o risco de não conferir ao fenômeno do racismo a profundidade e a intensidade que possui. Nesse sentido, é importante acrescentar a esse fenômeno duas outras categorias: diáspora e genocídio. 423Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 É a diáspora, mais precisamente a diáspora africana, a categoria res- ponsável por reconectar o problema do racismo à sua formatação histórica na modernidade. Sem a compreensão dos flagelos sofridos pela população negra trazida à força para as colônias europeias, e de como esse histórico produz efeitos nos dias de hoje, tratar de racismo tende a ser mais um dos debates sobre as mazelas da sociedade capitalista do século XXI, aferíveis em números e curvas gráficas. O conhecimento sobre a diáspora africana é o que possibilita recompor as dinâmicas de opressão nos países colonizados, extrapolando as geografias oficiais e complexificando o esquema socioeco- nômico tradicional, em que a opressão está diretamente relacionada à pobreza econômica. A compreensão da diáspora é que faz emergir o Atlântico Negro, expressão trazida por Paul Gilroy, que, entre outras contribuições, mostra que a experiência de um negro brasileiro pobre pode ser mais próxima à de um negro estadunidense rico do que a de um brasileiro branco, seja ele rico ou pobre. Essas conexões redescobertas por meio da identificação de “correntes marítimas” de unidade entre os países colonizados trazida pela identificação desse Atlântico Negro possibilita a constituição de novas rotas, formas e motivos para a coletivização da população negra das Américas, como parte do caminho de reescrita de sua história nesses territórios, de suas experiências de preservação de valores, de resistência e de reexistência, mas também de opressão e genocídio. O genocídio, mais precisamente o genocídio negro, é uma expressão que possui tanto um sentido denotativo quanto conotativo. No sentido denotativo está o movimento político e jurídico de classificar o conjunto de processos a que está submetida a população negra (no caso específico, a brasileira), como um crime de genocídio. Isto implica o reconhecimento de organismos internacionais e as penas e indenizações legalmente previstas para esse tipo de caso, como foi o genocídio do povo judeu pelo regime nazista (Flauzina, 2014). Em seu sentido conotativo, está o uso da categoria genocídio como capaz de elucidar as conexões entre as violências e violações perpetradas contra a população negra, tratadas, via de regra, pelo Estado e pelas polí- ticas sociais como problemas isolados. Nesse sentido, a predominância de 424 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 pessoas negras entre os casos de mortalidade materna, de evasão escolar e de encarceramento não são fenômenos independentes (Almeida, 2015). Estão essencialmente ligados por esse processo genocida, que é perverso, pelo fato de transcorrer ao longo dos séculos de existência do país, sem nunca ser enunciado enquanto tal, mas sempre como uma “coincidência” de tragédias (Ortegal, 2016). É a categoria genocídio negro que traduz esse processo ativo, dotado de intencionalidade e racialmente determinado. É essa a categoria responsável por retirar a questão do racismo de seu local clássico, sobretudo no Brasil, de passividade, aleatoriedade, condicionado-a como subproduto das desigual- dades de classe do capitalismo. Esse genocídio não pode ser compreendido sem que se compreenda também a diáspora negra, como categoria que dá ao racismo a profundidade histórica que este possui, desvelando os contínuos persistentes até hoje entre oque ocorreu no início do século XVI e o que acontece em pleno século XXI com a população negra. É o que complexi- fica as relações sociais no Brasil e que faz emergir outras referências para a composição dos processos de opressão, revelando o caráter racista nas composições intragênero, intraclasse e outras. Por ser uma categoria dual, diferentemente da categoria essencialmente negativa que é o genocídio, a diáspora traduz não apenas a violência do sequestro e do apagamento da identidade de um povo. Aponta também para, a partir da consciência dos processos de violência, as possibilidades de reconexões históricas e epistemológicas com aquilo que fora apartado no processo diaspórico, e, consequentemente, abre novas possibilidades para a reorganização desse povo oprimido e sua luta. Com essa contribuição teórica trazida pelas categorias genocídio e diáspora, a categoria racismo adquire outro patamar de complexidade, pro- fundidade e também centralidade no processo de compreensão da história e da realidade brasileira. Esse processo atravessa e é também atravessado pela colonialidade e pela dependência, categorias que intitulam duas escolas de pensamento que, por sua criticidade e relevância, serão aqui discutidas, num esforço introdutório de aproximação e interlocução entre elas. 425Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 Teorias críticas para a realidade brasileira: a perspectiva decolonial e a teoria do capitalismo dependente Assim como é equivocada a ideia aqui já discutida de que o racismo é meramente uma expressão ou um subproduto das desigualdades sociais capitalistas,10 é também insuficiente a tentativa de compreensão da dinâmi- ca do racismo no Brasil ignorando a tarefa de situar as relações raciais na estrutura social e econômica em que estão inseridas. Esse esforço implica ir além do superficial. Ir além de se afirmar, por exemplo, que o país vive sob o regime capitalista, socioeconomicamente dividido entre classes desiguais, de modo que a parcela minoritária da população brasileira vive em condição de abundância patrimonial, enquanto a maior parte da população vive em condições de pobreza ou extrema pobreza.11 Informações como estas, embora verídicas, são apenas a expressão superficial da realidade social, que mantém ocultas as estruturas e dinâmicas que determinam e produzem tal realidade. A hegemonia da produção de teorias e recomendações a respeito do desenvolvimento dos países dentro do modelo capitalista estão concentradas em agências internacionais, como o Banco Mundial e países dominantes, com destaque para os Estados Unidos (Burginski, 2016). Uma análise su- perficial e imediata poderia induzir a crer que a obediência às perspectivas e recomendações feitas pelas agências e países posicionados no topo do mundo capitalista levariam os países menos desenvolvidos a um patamar mais próximo ao daqueles em melhor situação. É justamente em contraposi- ção a esse tipo de proposta que se levantam teorias como a chamada teoria marxista da dependência. 10. Diversos são os dados que evidenciam que raça e classe muitas vezes possuem incidências desa- gregadas. Além das taxas de homicídios entre jovens já mencionadas, a taxa de homicídios entre mulheres, no período de 2003 a 2013, aumentou 54,2% entre mulheres negras, enquanto reduziu 9,8% entre mulheres brancas (Waiselfisz, 2014). 11. O recente relatório da Oxfam Brasil (2017) apresenta dados importantes dessa realidade social do país. Esse panorama, no entanto, deve ser o ponto de partida de uma discussão mais ampla sobre a repro- dução social no Brasil. Tratado como ponto de encerramento do assunto, o debate resta superficial, como recorrentemente tem sido. 426 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 Desenvolvida a partir dos anos 1960, essa teoria dedica-se a compreen- der a condição dependente dos países periféricos como elemento da própria lógica de funcionamento da economia capitalista mundial (Carcanholo, 2013). Dentro dessa perspectiva, não se considera possível compreender a realidade de um país como o Brasil a partir da ideia de que todos os países possuem condições igualitárias de desenvolvimento no capitalismo. Deixando de lado classificações eufemísticas como as de países desenvolvidos e em desenvolvi- mento, utilizadas pelo Fundo Monetário Internacional (2008), Nações Unidas, entre outras, essa teoria afirma que o sistema capitalista, que só pode ser compreendido em sua totalidade, é regido por uma dialética da dependência (Marini, 1973). Nessa perspectiva, desenvolvimento e subdesenvolvimento, ou dependência, estão profundamente conectados, de modo que a dependên- cia e subordinação dos países de capitalismo periférico são o outro lado da moeda do desenvolvimento dos países centrais. Desse modo, a inserção dos países periféricos na divisão internacional das economias capitalistas não estaria orientada para atingir seu próprio desenvolvimento ou independência: Em outros termos, é a partir de então que se configura a dependência, entendida como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou re- criadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. (Marini, 1973, p. 4) Em sua obra Capitalismo dependente e classes sociais na América La- tina (1973) Florestan Fernandes nega a pretensa universalidade do processo capitalista de desenvolvimento das classes sociais na Europa e passa a analisar a realidade sócio-histórica a partir de suas singularidades, sem, no entanto, desvinculá-la do contexto internacional. O que encontra a partir da análise histórica, estrutural e crítica empreendida é que a relação de subordinação dos países latino-americanos aos países de capitalismo central impossibilitou que as transformações sociais ocorressem conforme o esperado nas colônias recém-independentes. Segundo Fernandes (1973), as classes sociais na Amé- rica Latina não se formaram como nos países europeus, e as principais razões para isso seriam justamente a relação de dependência e subordinação que é 427Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 exercida, bem como a herança colonial e escravagista que, em vez de superada, foi atualizada e reaproveitada para a nova realidade social do continente e, portanto, no Brasil. Dessa forma, as classes dominantes internacionais são responsáveis por limitar e condicionar o desenvolvimento e a realidade social brasileira, em um processo que é intensificado pelo fato de que as classes dominantes no período colonial-escravagista não cederam lugar a uma nova classe essencialmente burguesa e industrial, mantendo então os mesmos di- namismos coloniais que lhes favoreciam no período anterior (Idem). Nessa dinâmica, o desenvolvimento do capitalismo na América Latina conduz não ao antigo colonialismo e nem a um desenvolvimento autônomo como em outras partes do mundo, mas justamente a essa forma de depen- dência, inclusive levada pelas classes dominantes locais que se beneficiam disso e conseguem, nessa dinâmica do capitalismo dependente, tirar proveito, assim como as classes dominantes externas (Idem). Mesmo sem explicitar e desenvolver de forma mais substancial os com- ponentes raciais presentes nesse processo, a leitura de Florestan Fernandes possibilita ampliar a compreensão sobre a realidade racialmente estabelecida nesse processo em um país como o Brasil — o mais tardio das Américas a abolir oficialmente a escravidão. Nesse processo que combina — traduzido pela ideia de dependência — as raízes e a essência de um colonialismo abandonado formalmente com um capitalismo periférico, subalternizado na divisão econômica global, mas que, embora subdesenvolvido, resulta em intenso desenvolvimento restrito para as elites internacionais e nacionais. Duas elites que, embora separadas por habitarem países diferentes, estão intimamente relacionadas do pontopelo aspecto racial que partilham. Essa contradição que ao mesmo tempo distingue e unifica essas elites, e que é peça fundamental para a compreensão da dinâmica social de um país, embora seja muitas vezes desconsiderada, é um dos objetos de interesse da decolonialidade. Em “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”, Aníbal Quijano busca evidenciar justamente a força da coloniali- dade nas relações de poder e afirma que “o processo de independência dos Estados na América Latina sem a descolonização da sociedade não pôde ser, 428 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 não foi, um processo em direção ao desenvolvimento dos Estados-nação modernos, mas uma rearticulação da colonialidade do poder sobre novas bases institucionais” (2005, p. 123-124). Para a decolonialidade, importa muito mais a dinâmica dos processos do que aquilo que é oficialmente estabelecido, como, por exemplo, o fim da escravidão negra e a independência do Brasil. O movimento teórico realizado por essa perspectiva é, ao mesmo tempo, de crítica às narrativas estabelecidas, geralmente produzidas pelo colonizador, e de elaboração e resgate de narrativas e epistemologias que partam de outros lugares, como, por exemplo, do chamado Sul global,12 e também por sujeitos que encarnam ou vivenciam essa experiência de subalternização/colonização, ainda que vivam no centro do centro do mundo. Nesta perspectiva, é tarefa da maior importância a descentralização do poder de enunciação da verdade, de posse das colônias, e da pretensa universalização que estas sugerem (Bernardino-Costa e Grosfoguel, 2016). Do exercício realizado pela decolonialidade, contudo, emergem no centro das narrativas não apenas os territórios de países de lugares geográficos. Os sujeitos que as produzem também são objeto de preocupação. E no caso do debate racial, no qual historicamente o negro sempre foi muito tematizado, mas muito pouco escutado, o exercício de desconcentrar o poder de voca- lização do sujeito clássico, branco e masculino é não apenas um esforço decolonial, mas, de fato, um esforço antirracista. Considerações finais A história do Brasil é marcada pela invasão colonial exploratória e pela escravidão racializada, que resultaram posteriormente num capitalis- mo tardio, periférico e estruturalmente racista. Diante do que foi discutido 12. O Sul global pode ser definido aqui como a referência que busca aglutinar países que se assemelham em sua condição de subalternidade para além da posição cartográfica que ocupam. 429Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 413-431, set./dez. 2018 neste artigo, fica evidente que, para compreender essa realidade são ne- cessárias teorias que atentem para tais particularidades. É nesse sentido que se buscou aproximar e fazer dialogar as teorias da dependência e da decolonialidade. É importante ressaltar que, mais do que explicar e descrever tais teorias, o exercício aqui proposto foi de apresentar a possibilidade de contribuição e convergência de cada uma delas, no contexto da interpretação das relações raciais no Brasil. Além disso, o debate sobre genocídio e diáspora negra, aqui apresentado brevemente, objetiva acrescentar ao debate sobre questão racial a devida complexidade que possui e que é tão frequentemente ignorada em produ- ções, debates e agendas institucionais sobre o assunto. Considerando que as políticas sociais na sociedade capitalista expressam embates e correlações de forças (Behring e Boschetti, 2006), faz-se importante que as formulações e estudos a respeito destas, numa perspectiva de totalidade, também incluam tensões raciais aqui apresentadas, além das de classe, gênero, sexualidade e outras. E tendo em vista o caráter crítico e socialmente comprometido das perspectivas teóricas aqui discutidas, faz-se importante afirmar que, se a realidade do agora é de opressão e exploração, que ela possa ser, então, mais do que compreendida. Que seja abolida e superada. Recebido em 23/1/18 ■ Aprovado em 20/6/18 Referências bibliográficas ALMEIDA, Magali da Silva. Desumanização da população negra: genocídio como princípio tácito do capitalismo. Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 12, n. 34, 2015. BERNARDINO, Joaze. Ação afirmativa e a rediscussão do mito da democracia racial no Brasil. Estudos Afro-Asiáticos 24, n. 2, p. 247-273, 2002. 430 Serv. Soc. 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Nota do autor Leonardo Ortegal — Assistente social, professor de Serviço Social, membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UnB. E-mail: ensejo@gmail.com Este é um artigo de acesso aberto distribuído nos termos de licença Creative Commons. mailto:ensejo@gmail.com 432 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 432-445, set./dez. 2018 http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.152 A relação de classe e raça na formação da classe trabalhadora brasileira The relationship of class and race in shaping the Brazilian working class Ellen Caroline Pereiraa Simone Sobral Sampaiob RESUMO: O propósito deste artigo é apresentar e analisar, ainda que sucintamente, através de Fernandes (2007), Ianni (1978) e Moura (1992) a complexidade da relação classe e raça no enten- dimento da composição da classe trabalhadora brasileira. Parte-se da compreensão de que as teorias racialistas, mesmo no processo de transição do escravismo para as relações de trabalho na sociedade capitalista, persistiram na formação da classe trabalhadora brasileira. Palavras-chave: Escravismo. Capitalismo. Classe trabalhadora. ABSTRACT: The purpose of this article is to briefly present and analyze the complexity of class and race relations in the understanding of the composition of the Brazilian working class, through Fernandes (2007), Ianni (1978) and Moura (1992). One The must begin by understanding that racialist theories persisted in the formation of the Brazilian Working class and that this happened since very beginning of the process of transition from slavery to labor relations in capitalist society. Keywords: Slavery. Capitalism. Working class. Introdução As mudanças no sistema produtivo no Brasil e as novas composições da força de trabalho, presentes no início do século XX, são decisivas para o entendimento do processo organizativo da classe trabalha- dora, seja mediado pela sua inserção produtiva no mercado de trabalho, seja aPrograma de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – Rio de Janeiro - RJ, Brasil. bDepartamento de Serviço Social (graduação e pós-graduação) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis - SC, Brasil. 433Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 432-445, set./dez. 2018 através da compreensão dos sujeitos que a compõem, mesmo que alijados dessa inserção. Ainda que não seja objeto do presente artigo, vale destacar dois acontecimentos relevantes dos anos de 1930 no Brasil: a fundação do Partido Comunista Brasileiro em 1929 e a formação da Frente Negra Brasileira (1931-7). A riqueza desse momento histórico é elucidativa da necessidade de analisar a complexidade constituinte da formação da classe trabalhadora brasileira, inseparável do processo organizativo da população negra no Brasil. Segundo Florestan Fernandes (2007, p. 260), “como a economia de trabalho livre se organizou sobre um patamar pré-capitalista e colonial, seria lamentável se ignorássemos como as determinações de raças se inseriram e afetaram as determinações de classes”. Se essa análise é absolutamente pertinente para entender o nascimento do capitalismo brasileiro, ela também providencia poderosos elementos para compreender a formação da classe trabalhadora no país. É acerca desse aspecto que se pretende discorrer no ensaio que ora se apresenta. As classes sociais, na perspectiva marxista, são demarcadas a partir do modo de produção capitalista e pressupõe a apropriação da riqueza so- cialmente produzida pela classe dominante — a burguesia —, a partir da exploração da força de trabalho da classe trabalhadora, que vende por meio de seu corpo a capacidade laborativa. Todo esse processo constituinte do capitalismo, produtor da exploração do homem pelo homem, marca essa sociedade pela divisão dessas duas classes — a dominante e a trabalhado- ra —, e é essa divisão que produz as infindas desigualdades, pois tudo o que o trabalhador produz é apropriado por uma minoria, os donos dos meios de produção, a burguesia. (Marx, 2013) Parte-se da ideia de que essa classe se perfaz nas singularidades dos dife- rentes sujeitos e grupos que a constituem e, ao longo da história, reivindicam interesses comuns, mas também diferentes, em virtude das especificidades produzidas pelos lugares que ocupam. Todavia, a classe social não é apenas resultado do lugar que se ocupa no modo de produção capitalista, se detentor dos meios de produção ou se possuidor apenas de sua força de trabalho. Esse tipo de definição seria 434 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 432-445, set./dez. 2018 meramente descritivo se não levasse em conta a processualidade conflitiva que lhe é constituinte, pois que é no antagonismo da luta que a classe tra- balhadora forja-se a si mesma. Quer dizer, é a luta de classes o motor das relações sociais e das classes que a compõem. A escravidão como um dos pilares estruturantes do capitalismo Octavio Ianni, em seu livro Escravidão e racismo, evidencia a relação entre escravidão e capitalismo demonstrando como esses aspectos se consti- tuem simultaneamente, ao mencionar que “o mesmo processo de acumulação primitiva, que na Inglaterra estava criando algumas condições histórico-es- truturais básicas para a formação do capitalismo industrial, produzia no Novo Mundo a escravatura, aberta ou disfarçada”. O autor trata do tema a partir da discussão acerca da acumulação primitiva do capital, compreendida por ele como o “processo social, político e econômico mais característico de transição do feudalismo para o capitalismo” (Ianni, 1978, p. 4). Foi o capital comercial que comandou a consolidação e a generalização do trabalho compulsório no Novo Mundo. Toda formação social escravista dessa área estava vinculada, de maneira determinante, ao comércio de prata, ouro, fumo, açúcar, algodão e outros produtos coloniais. Esses fenômenos, protegidos pela ação do Estado e combinados com os progressos da divisão do trabalho social e da tecnologia, constituíram, em conjunto, as condições da transição para o modo capitalista de produção. Assim, para compreender em que medida o mercantilismo “prepara” o capitalismo, é necessário que a análise se detenha nos desenvolvimentos das forças produtivas e das relações de produção. Mas para compreender esses desenvolvimentos é preciso situá-los no âmbito das transformações estruturais englobadas na categoria acumulação primitiva. Nesse sentido é que a acumulação primitiva expressa as condições históricas da transição para o capitalismo. Foi esse o contexto histórico no qual se criou o trabalhador livre, na Europa, e o trabalhador escravo, no Novo Mundo. Sob esses aspectos, pois, o escravo, negro ou mulato, índio ou mestiço, esteve na origem do operário. (Idem, p. 8) 435Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 432-445, set./dez. 2018 Evidencia-se ainda, que para o autor “a exploração do trabalho com- pulsório, em especial do escravo, estava subordinada aos movimentos do capital comercial europeu” (Idem). Ele observa que a expansão e o funcio- namento do capital mercantil cria um paradoxo, que se dá pela coexistência do trabalho livre e do trabalho escravo. Segundo Ianni (1978, p. 12), “no limite, o escravo estava ajudando a formar-se o operário”, ou seja, a escra- vidão “estava dinamicamente relacionada com o processo de gestação do capitalismo na Europa”. Se por um lado a análise de Ianni (1978) aponta a relação entre a escravização efetivada nos territórios coloniais e a formação do proletariado europeu, por outro, essas mesmas reflexões são decisivas à compressão do processo de escravização como condição necessária ao desenvolvimento do capitalismo. Marx (2013, p. 514) evidencia que a acumulação primitiva é“prévia à acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida”. De acordo com ele (p. 515), “ela aparece como ‘primitiva’ porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde”. Considerando tais aspectos, o que Ianni (1978) demonstra — conforme já mencionado — é que a escravidão é um dos aspectos constituintes do capitalismo e trará diferentes implicações nas diferentes partes do mundo. Ao encontro dessa perspectiva, Florestan Fernandes (2007, p. 260) esboça questões que coadu- nam com o discorrido, afirmando que “como a economia de trabalho livre se organizou sobre um patamar pré-capitalista e colonial, seria lamentável se ignorássemos como as determinações de raças se inseriram e afetaram as determinações de classes”. Mas no que esses aspectos afetam a formação da classe trabalhadora brasileira? Tem-se, aqui, elementos que dão condições para pensar acerca das especificidades da classe trabalhadora brasileira, em uma realidade na qual a escravidão é, sumariamente, parte constitutiva do capitalismo, servindo historicamente ao desenvolvimento do capitalismo desde a sua gênese. Um dos elementos marcantes que garantiu o lugar da escravidão nesse processo, perpetuando-o por outros meios, foi a difusão das teorias 436 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 432-445, set./dez. 2018 racialistas. Vale dizer que as teorias racialistas não foram suspensas com a abolição da escravatura. Ao contrário, essas teorias raciais que, ao longo da história, fizeram da diferença, desigualdade, foram incorporadas na vida social brasileira e imbricadas ao sistema capitalista, passando a determinar as formas de organização do trabalho. Clóvis Moura, em seu livro História do negro brasileiro (1992), ao tratar da crise do sistema escravista no Brasil afirma que, antes mesmo do fim da escravidão, se cria no país o mito da superioridade do trabalhador branco. [...] de um lado aumenta a demanda internacional pelo café e, de outro, aumenta o preço do escravo internamente. Isto levará a que alguns segmentos, mercantis ou com capitais paralisados com a extinção do tráfico, se organizem no sentido de suprir a procura de braços. Mas, como esses segmentos visavam uma taxa de lucro elevada e altamente compensadora, não irão recrutar o trabalhador nacional não branco e em particular o negro. Essa mão de obra é descartada já antes da abolição, e se cria o mito da superioridade do trabalhador branco importado que traria, consigo, os elementos culturais capazes de civilizar o Brasil. (Moura, 1992, p. 56) Ou seja, de acordo com Moura, ainda que a mão de obra branca imi- grante fosse mais cara, e mesmo que sem experiência e condições técnicas para o trabalho aqui exigido, o “trabalhador branco importado traria consigo os elementos culturais capazes de civilizar o Brasil”. Desta forma, a mão de obra negra “é descartada já antes da abolição”, a partir de uma concepção de superioridade racial branca, pautada no parecer “científico” higienista. Tais aspectos se associam e dão forma à política de branqueamento no país, que determina historicamente que o negro — para ser “aceito” — precisa se enquadrar nos padrões da “civilidade branca”, ou seja, no “mundo dos brancos”, como analisa Florestan Fernandes em sua obra, O negro foi exposto a um mundo social que se organizou para os segmentos privilegiados da raça dominante. Ele não foi inerte a esse mundo. Doutro lado, esse mundo também não ficou imune ao negro. Todos os que leram Gilberto Freyre sabem qual foi a dupla interação, que se estabeleceu nas duas direções. 437Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 432-445, set./dez. 2018 Todavia, em nenhum momento essas influências recíprocas mudaram o sentido do processo social. O negro permaneceu sempre condenado a um mundo que não se organizou para tratá-lo como ser humano e como “igual”. Quando se dá a primeira grande revolução social brasileira, na qual esse mundo se desin- tegra em suas raízes — abrindo-se ou rachando-se através de várias fendas, como assinalou Nabuco — nem por isso ele contemplou com equidade as “três raças” e os “mestiços” que nasceram de seu intercruzamento. Ao con- trário, para participar desse mundo, o negro e o mulato se viram compelidos a se identificar com o branqueamento psicossocial e moral. Tiveram de sair de sua pele, simulando a condição humana-padrão do “mundo dos brancos”. (Fernandes, 2007, p. 33, grifos no original) A análise de Moura (1992, p. 62) coaduna com o discorrido por Florestan Fernandes, indicando em seu trabalho como a política de branqueamento operou já no fim da escravidão, evidenciando que “o trabalhador nacional descendente de africanos seria marginalizado e estigmatizado”, “o ideal de branqueamento das elites seria satisfeito, e as estruturas arcaicas de propriedade continuariam intocadas”. Neste sentido, para Moura (Idem), “o negro, ex-escravo, é atirado como sobra na periferia do sistema de trabalho livre, o racismo é remanipula- do” o que cria “mecanismos de barragem para o negro em todos os níveis da sociedade, e o modelo do capitalismo dependente é implantado, perdurado até hoje”. Ou seja, no caso brasileiro, esses elementos demarcam o lugar que o Brasil ocupará na divisão internacional do trabalho, já no capitalismo. Sobre as marcas desse processo, o “retrato das desigualdades de gênero e raça” publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada — Ipea, aponta informações que dão mostras dos níveis de subalternização e explo- ração que se perpetuam atualmente, tais como: A taxa de desocupação dos homens passou de cerca de 5%, em 1995, para, aproximadamente, 6%, em 2009, ao passo que, para as mulheres, o resultado variou de cerca de 7% para 11%, em relação aos mesmos intervalos conside- rados. O desemprego é também uma realidade permeada de desigualdades de gênero e raça. Assim, a menor taxa de desemprego corresponde à dos homens brancos (5%), ao passo que a maior remete às mulheres negras (12%). No 438 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 432-445, set./dez. 2018 intervalo entre os extremos, encontram-se as mulheres brancas (9%) e os homens negros (7%). (Ipea, 2011, p. 27) [...] Quando se combinam as desigualdades de gênero e raça, percebe-se que as diferenças se acentuam: enquanto, em 2009, os homens brancos possuíam o maior índice de formalização (43% com carteira assinada), as mulheres negras apresentavam o pior (25% com carteira assinada). (Idem) [...] Finalmente, a distribuição por setor de atividade é igualmente importante para qualificar o padrão de inserção da população no mercado. É possível verificar que o setor de serviços apresentou um aumento expressivo no pe- ríodo analisado, tanto para os homens, quanto para as mulheres ocupadas, embora seu detalhamento revele peculiaridades. Os dados evidenciam uma clara segmentação ocupacional, tanto relacionada ao gênero, quanto à raça. As mulheres, especialmente as negras, estão mais concentradas no setor de serviços sociais (cerca de 34% da mão de obra feminina), grupo que abarca os serviços de cuidado em sentido amplo (educação, saúde, serviços sociais e domésticos). Já os homens, sobretudo os negros, estão sobrerrepresentados na construção civil (em 2009, este setor empregava cerca de 13% dos homens e menos de 1% das mulheres). O setor agrícola apresentou queda generalizada na oferta de empregos, mas segue sendo atividade relevante, especialmente para os homens e na região Nordeste. Já o nível de emprego na indústria man- teve-se relativamente estável (com leve aumento), sobretudo no Sul e Sudeste, seguindo empregando mais homens, sobretudo brancos. (Idem) Ainda sobre esse processo de marginalização, delineado por Moura (1992), é relevante destacar que a condição da cor agrava-se quando ob- servada a condição de gênero. Pode-se verificar que dentre as taxas de desemprego, a menor delas está entre homens brancos, e a maior, entreas mulheres negras. Além disso, os dados demonstram o mesmo fluxo quando se trata da formalização do trabalho. Ao tratar da distribuição do trabalho, o estudo citado anteriormente demonstra que as mulheres negras — em sua maioria — ocupam o setor de serviços, e o homem negro, o espaço de trabalho da construção civil. 439Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 432-445, set./dez. 2018 Ora, se o “ex-escravo é jogado como sobra na periferia do trabalho li- vre”, parece que a ele seria destinado o exército industrial de reserva, já que sua mão de obra era considerada “inferior” em detrimento da mão de obra branca. Para Marx (2013, p. 707), o exército industrial de reserva corresponde a “uma população trabalhadora excedente” que é um “produto necessário da acumulação ou desenvolvimento da riqueza com base capitalista” porque, nas palavras dele “essa superpopulação se converte” em “alavanca de acumulação capitalista, e até mesmo numa condição de existência do modo de produção capitalista”. Ou seja, “ela constitui um exército industrial de reserva dispo- nível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta como se ele tivesse criado por sua própria conta”, sendo que a formação desse exército permite que o valor da força de trabalho seja regulado de acordo com o mercado. Contudo, o que a história nos aponta é que o trabalhador escravizado — pelo menos no caso brasileiro — ocupou o lugar de “sobra da sobra”, não estando qualificado nem mesmo a ocupar lugar no exército industrial de reserva. Florestan Fernandes, em sua obra A integração do negro na sociedade de classes, explica esse processo ao sinalizar que, Nas zonas onde a prosperidade econômica desaparecera, os senhores já se haviam desfeito do excesso de força de trabalho escravo, negociando-a com os fazendeiros do leste e do sul. Para eles, a abolição era uma dádiva: livravam-se de obrigações onerosas ou incômodas, que os prendiam aos remanescentes da escravidão. Nas zonas onde a prosperidade era garantida pela exploração do café, existiam dois caminhos para corrigir a crise gerada pela transformação da organização do trabalho. Onde a produção se encontrava em níveis bai- xos, os quadros da ordem tradicionalista se mantinham intocáveis: como os antigos libertos, os ex-escravos tinham de optar, na quase totalidade, entre a reabsorção no sistema de produção, em condições substancialmente análogas às anteriores, e a degradação de sua situação econômica, incorporando-se à massa de desocupados e de semiocupados da economia de subsistência do lugar ou de outra região. Onde a produção atingia níveis altos, refletindo-se no padrão de crescimento econômico e de organização do trabalho, existiam reais possibilidades de criar um autêntico mercado de trabalho: aí, os ex-escravos tinham de concorrer com os “trabalhadores nacionais”, que constituíam um 440 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 432-445, set./dez. 2018 verdadeiro exército de reserva (mantido fora de atividades produtivas, em regiões prósperas, em virtude da degradação do trabalho escravo) e, principal- mente, com a mão de obra importada da Europa, com frequência constituída por trabalhadores mais afeitos ao novo regime de trabalho e às suas implicações econômicas ou sociais. Os efeitos dessa concorrência foram altamente prejudi- ciais aos antigos escravos, que não estavam preparados para enfrentá-la. Mas correspondiam aos interesses dos proprietários de terras e donos de fazendas, tanto quanto aos mecanismos normais da ordem econômica emergente. Em consequência, ao contrário do que se poderia supor, em vez de favorecer, as alternativas da nova situação econômica brasileira solapavam, comprometiam ou arruinavam, inexoravelmente, a posição do negro nas relações de produção e como agente de trabalho. (Fernandes, 2008, p. 31-32, grifos nossos) O autor continua, [...] ainda nos fins do século XIX, todas as posições estratégicas da economia artesanal e do pequeno comércio urbano eram monopolizadas pelos brancos e serviam como trampolim para as mudanças bruscas de fortuna, que abrilhan- tam a crônica de muitas famílias estrangeiras. (Idem, p. 33-34; grifos nossos) Importa registrar que nesse período tem-se uma alta taxa de entrada de imigrantes (trabalhadores brancos) no país. Skidmore (2012, p. 87), constata que “ocorreu um rápido aumento na população ‘branca’ entre 1890 e 1950”, sendo que, A porcentagem de brancos, tal como definidos pelo censo oficial, cresceu de 44% em 1890 para 62% em 1950. O declínio concomitante da população de cor foi mais intenso na categoria mulatos entre 1890 e 1940, caindo de 41% para 21%, embora aumentasse para 27% em 1950 [...]. Sendo assim, os ex-escravos e/ou libertos passam a ocupar o que aparece em O capital como o segmento “mais baixo da superpopulação relativa”. Para Marx (2013, p. 470-471), “o sedimento mais baixo da superpopulação relativa habita, por fim, a esfera do pauperismo”. De acordo com ele, “abstraindo 441Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 432-445, set./dez. 2018 dos vagabundos, delinquentes, prostitutas, em suma, do lumpemproletariado propriamente dito, essa camada social é formada por três categorias”, sendo: Em primeiro lugar, os aptos ao trabalho. Basta observar superficialmente as estatísticas do pauperismo inglês para constatar que sua massa engrossa a cada crise e diminui a cada retomada dos negócios. Em segundo lugar, os órfãos e os filhos de indigentes. Estes são candidatos ao exército industrial de reserva e, em épocas de grande prosperidade, como, por exemplo, em 1860, são rápida e massivamente alistados no exército ativo de trabalhadores. Em terceiro lugar, os degradados, maltrapilhos, incapacitados para o trabalho. Trata-se especial- mente de indivíduos que sucumbem por sua imobilidade, causada pela divisão do trabalho, daqueles que ultrapassam a idade normal de um trabalhador e, finalmente, das vítimas da indústria — aleijados, doentes, viúvas etc. —, cujo número aumenta com a maquinaria perigosa, a mineração, as fábricas químicas etc. O pauperismo constitui o asilo para inválidos do exército trabalhador ativo e o peso morto do exército industrial de reserva. Sua produção está incluída na produção da superpopulação relativa, sua necessidade na necessidade dela, e juntos eles formam uma condição de existência da produção capitalista e do desenvolvimento da riqueza. O pauperismo pertence aos faux frais [custos mortos] da produção capitalista, gastos cuja maior parte, no entanto, o capital sabe transferir de si mesmo para os ombros da classe trabalhadora e da pequena classe média. (Marx, 2013, p. 470-471, grifos nossos) Não se pretende aqui transpor o que Marx (2013) descreveu como “sedimento mais baixo da superpopulação relativa”, de maneira mecânica para a realidade brasileira quando tratamos do fim da escravidão, mas sim refletir sobre as interfaces que permeiam essa categoria, quando pensamos as especificidades de nossa formação social. Ou seja, entende-se que no caso brasileiro não é necessário que o negro seja “degradado, maltrapilho, inca- pacitado para o trabalho”, para que componha esse lugar, porque o racismo já destinou a ele — pela sua insígnia — o lugar de “incapaz”, “inferior”, “vagabundo” e de tantos outros atributos que o subjugam. Tais aspectos traduzem aos negros o adjetivo de “classe perigosa”, denominação clássica — da administração pública do século XIX — atribuída a qualquer pessoa que fosse um potencial desagregador da ordem. 442 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 432-445, set./dez. 2018 Sidney Chalhoub (1996) ao descrever historicamente os processos de expulsão e higienização dos cortiços no início do século XX, explicita as relações e disputas que perfazem esse espaço, formado predominantemente pela população negra. Dentre outras questões, o autor evidencia, a partir daquele ambiente, que a utilização do conceito de “classes perigosas” no Brasil, desde seu princípio, fez com que “os negros se tornassemos suspeitos preferenciais” (p. 23). De acordo ele, Na discussão sobre repressão à ociosidade em 1888, a principal dificuldade dos deputados era imaginar como seria possível garantir a organização do mundo do trabalho sem recurso às políticas de domínio características do cativeiro. Na escravidão, em última análise, a responsabilidade de manter o produto direto atrelado à produção cabia a cada proprietário/senhor individualmente. Este organizava as relações de trabalho em sua unidade produtiva através de uma combinação entre coerção explícita e medidas de proteção e “recompensas” paternalistas — uma combinação sempre arriscada, aprendida no próprio exercício cotidiano da dominação. Com a desagregação da escravidão, e a consequente falência das práticas tradicionais, como garantir que os negros, agora libertos, sujeitassem a trabalhar para a continuidade da acumulação de riquezas de seus senhores/patrões? (Chalhoub, 1996, p. 23-24) O Código Penal de 1890 (Decreto n. 847/1890) oferece indícios des- ses processos. Além da evidente criminalização da pobreza que ofereceria “perigo” à segurança pública, em seu capítulo XIII, intitulado “Dos vadios e capoeiras”, associa a prática desta última a uma infração e, consequente- mente, à sua criminalização, como se pode observar nos artigos que seguem, Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena — de prisão cellular por dous a seis mezes. Paragrapho unico. É considerado circumstancia aggravante pertencer o ca- poeira a alguma banda ou malta. 443Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 432-445, set./dez. 2018 Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro. Art. 403. No caso de reincidencia, será applicada ao capoeira, no gráo maximo, a pena do art. 400. Paragrapho unico. Si for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena. Art. 404. Si nesses exercicios de capoeiragem perpetrar homicidio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor publico e particular, perturbar a ordem, a tranquilidade ou segurança publica, ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente nas penas comminadas para taes crimes. (Brasil, 1890) Apesar de o Código Penal não explicitar de maneira direta a crimina- lização da pobreza e a definição de classe perigosa associada à insígnia de raça (pretos e mestiços), evidencia essa relação ao tratar da capoeira, por exemplo, prática esta de resistência da população negra afrodescendente desde a escravidão. Também fazia parte do discurso entre os parlamentares da época uma forte produção de estereótipos em torno da população negra. Sobre isso, é notória as duas ideias sobre os “vícios” dos libertos. Uma delas imputa o “vício” como resultado das condições de vida nos cativeiros quando escra- vos, e a outra como algo que não se pode transformar, porque é resultante de sua própria natureza. Mesmo que apresente diferentes hipóteses acerca do que provocaria os “vícios” do liberto, é consenso o fato de que ele era “possuidor de ‘todos os vícios’”. De início, o deputado afirma algo que sugerimos há pouco: o “Estado” passa a ter o “dever imperioso” de agir decididamente na política de controle social dos trabalhadores. Em seguida, encontramos novamente uma certa confusão de ideias. Ao tentar explicar o que ele pressupõe sem nenhum esforço de comprovação — o “fato” de o liberto ser possuidor de “todos os vícios” —, nosso deputado mostra-se indeciso. Primeiramente, atribui os tais vícios dos negros a “seu antigo estado”: as condições de vida no cativeiro seriam as res- ponsáveis pelo suposto despreparo dos ex-escravos para a vida em liberdade. Logo adiante, todavia, e ainda na mesma frase, o parlamentar argumenta que a lei de 13 de maio não poderia mesmo ter abolido os vícios dos libertos, pois uma lei não pode transformar “o que está na natureza”. Neste caso, o deputado já mudou claramente de conversa: os “defeitos” dos negros não se aplicam a 444 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 432-445, set./dez. 2018 partir de um determinado fato social — a escravidão —, porém se situam num campo extrínseco à história — a “natureza”. Insinuam-se aqui, sem dúvida, as famigeradas teorias racistas, que se tornariam mais influentes nas décadas seguintes; e a consequência disso é o que os “defeitos” dos negros podem ser pensados como insuperáveis, tornando-se eles, assim, membros potencialmente permanentes das classes perigosas. (Chalhoub, 1996, p. 25) A intensa produção de déficits no corpo negro produziu, e ainda produz, marcas de toda ordem: na composição da classe trabalhadora, marcada pelo alijamento da população negra da relação salarial formal — exemplo disso é a formalização recente do trabalho das empregadas domésticas —; na segregação racista promovida pelo higienismo, na produção de inferioridade e estigma. Considerações Finais Os estudos e as investigações dão mostras que a constituição da classe trabalhadora brasileira possui não apenas a exploração própria do capitalismo, mas é marcada por um profundo processo de subalternização demarcado pela escravização e pelo racismo. Além de compor o segmento mais baixo da superpopulação relativa, reduzidos ao pauperismo como “peso morto do exército industrial de reser- va”, como “custos mortos” que o capital repassa para a classe trabalhadora, os negros e negras contam com pouco reconhecimento pelos demais sujeitos que compõem a classe trabalhadora. Como se tudo isso não bastasse, o capitalismo no Brasil constituiu o racismo como poderoso veículo de fratura na classe trabalhadora. Essa fratura funciona duplamente, isto é, serve para criar formas de opressão que maximizam a exploração e, tragicamente, para produzir uma desconfiança no interior da própria classe trabalhadora, ou seja, através da produção do medo no seu próprio interior, entre seus próprios pares, fragiliza-a politicamente enquanto sujeito capaz de promover a revolução. Recebido em 16/4/18 ■ Aprovado em 18/6/18 445Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 432-445, set./dez. 2018 Referências bibliográficas BRASIL. Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890. Institui o Código Penal Brasileiro. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847- 11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 10 dez. 2017. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo: Global, 2007. ______. A integração do negro na sociedade de classes. 5. ed. 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E-mail: simone.s@ufsc.br Este é um artigo de acesso aberto distribuído nos termos de licença Creative Commons. http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.htmlhttp://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html mailto:p.ellencaroline@hotmail.com 446 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.153 Notas para o debate das relações de exploração-opressão na sociedade patriarcal-racista-capitalista Notes for the debate of the relationship between exploitation and oppression in a patriarchal-racist-capitalist society Milena Fernandes Barrosoa Resumo: O artigo problematiza a relação entre exploração e opressão a partir da perspectiva de que o capitalismo está fundamentalmente ligado ao patriarcado e ao racismo — não como legado, mas como necessidade. Destaca-se a importância de apreensão desses sistemas de forma consubstanciada para uma análise da totalidade, já que, nas relações sociais, essas contradições se fundam, como pode ser visto, na indissociabilidade entre as determi- nações de sexo/gênero, étnico-raciais e de classe. Palavras-chave: Exploração-opressão. Patriarca- do-racismo-capitalismo. Relações sociais. Abstract: This article aims to discuss the relationship between exploitation and oppression, considering capitalism as a system fundamentally linked to patriarchy and racism — not as a legacy, but as a necessity. It is important to comprehend these systems in a substantiated way for an analysis of the totality, since these contradictions merge in the context of social relations, as can be seen in the indissolubility between determinations of sex/gender, ethnic-racial and class. Keywords: Exploitation-oppression. Patriarchy- racism-capitalism. Social relations. Introdução A relação entre exploração e opressão está diretamente relacionada à questão da relação estrutural entre patriarcado, racismo e capita- lismo. Esse tema foi objeto de vários debates, na década de 1970, aUniversidade Federal do Amazonas (Ufam), Instituto de Ciências Sociais, Educação e Zootecnia (ICSEZ), Parintins-AM, Brasil. 447Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 entre teóricos e partidários do pensamento materialista e feminista-marxista (Arruzza, 2015). Neste sentido, questiona-se: seria o patriarcado e o racismo sistemas autônomos em relação ao capitalismo? Ou ainda: seria o capita- lismo indiferente ao patriarcado e ao racismo? A partir dessas questões, problematiza-se neste artigo a importância de uma unidade dialética entre as relações sociais de sexo/gênero, étnico-raciais e de classe para a apreensão das contradições que constituem a realidade concreta. Não é novidade que o modo de produção capitalista atinge ao máximo “a contradição presente em todas as formações econômico-sociais anteriores assentadas na apropriação privada dos meios de produção e dos produtos do trabalho humano” (Saffioti, 2013, p. 53).1 Esse modo de produção tem na acumulação o seu motor por meio da produção de mais-valor via explora- ção do trabalho e engendra relações sociais mediadas por mercadorias, em que as necessidades humanas são substituídas pela produção de “coisas” alheias a estas. A saturação empírica da mercadoria como categoria, “além de fazer-se acompanhar por uma divisão social do trabalho extremamente desenvolvida, marca o divórcio entre o valor de uso e o valor de troca dos produtos do trabalho” (Idem). Isso ocorre porque o valor de troca passa a presidir o processo social da produção, determinando, inclusive, a própria força de trabalho e resultando no ocultamento da exploração sob “uma aparência puramente econômica, coisificada e quantificada abstratamente, fazendo com que as taxas de exploração sejam travestidas de lucratividade” (Fontes, 2010, p. 22).2 Assim, é possível afirmar que a mercadoria não se 1. Marx (2013, p. 262) elucida esse processo ao apreender os pressupostos da relação capital-trabalho: “A relação-capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista se apoie sobre seus próprios pés, não apenas conserva aquela separação, mas a reproduz em escala sempre crescente. Portanto, o processo que cria a relação-capital não pode ser outra coisa que não o processo de separação de trabalhador da propriedade das condições de seu trabalho”. 2. “Embora o lucro de cada movimento singular do capital decorra da exploração do trabalhador livre pelo proprietário (de meios de produção e/ou de recursos sociais de produção), a conversão de dinheiro em capital envolve toda a vida social numa complexa relação que repousa sobre a produção generalizada e caó- tica de trabalhadores cada vez mais ‘livres’, expropriados de todos os freios à sua subordinação mercantil. Somente em presença dessas condições sociais o processo produtor de mercadorias, no qual reside a extração do mais-valor, pode se realizar. É por obscurecer, por velar tal base social, que a produção capitalista, ou o 448 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 refere a um objeto em si, mas é a forma pela qual os sujeitos estabelecem relações sociais no capitalismo. Nessa direção, o capitalismo não é apenas um padrão de produção: trata-se de um amplo, complexo e expansivo processo histórico-social e político-econômico. Seria, portanto, necessariamente ligado ao racismo e ao sexismo (Federici, 2017) — não como legado, mas como necessidade própria do capitalismo, pois existe “não apenas uma relação simbiótica entre o trabalho assalariado contratual e a escravidão, mas também, e junto com ela, a dialética que existe entre acumulação e destruição da força de trabalho” — situação que as mulheres vivenciam de forma particular através da apropriação, opressão e exploração de seus corpos, seu trabalho e sua vida. Disso apreende-se a consubstancialidade entre patriarcado, racismo e capitalismo e, consequentemente, a indissociabilidade entre exploração e opressão. Essa imbricação, com frequência invisível, caracteriza o atual modelo societário3 e compõe uma nova realidade historicamente constituída. A indissociabilidade entre exploração e opressão O debate da relação entre exploração e opressão, apesar de profícuo, se tornou fora de moda num contexto em que as críticas ao capitalismo retroce- deram e outras correntes do pensamento feminista se concretizaram (Arruzza, 2015).4 Ademais, mesmo com o risco de parecer “fora” de tempo, algumas teóricas feministas continuaram a trabalhar com essas questões a partir de motivações que se mantêm nos dias atuais, entre as quais a necessidade de explicar teoricamente as relações estruturais entre opressão e exploração. Contudo, esse tema ainda ocupa lugar secundário nos debates políticos e na produção teórica referenciada na teoria social crítica em geral. Prevalece, momento da atividade produtiva de valorização do capital se apresenta como meramente ‘econômico’, apesar de envolver toda a existência social” (Fontes, 2010, p. 42). 3. Neste artigo, essa relação é considerada sempre quando se faz referência à sociedade capitalista. 4. Arruzza (2015) refere-se ao debate de gênero a partir de uma perspectiva liberal, da essencialização das relações entre homens e mulheres e da desistoricização do gênero. 449Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 apesar de alguns deslocamentos importantes, a visão de que as classes sociais são homogêneas ou de que a exploração é em si mesma a única determinação das relações capitalistas. O questionamento a essas visões, por sua vez, parte da perspectiva de que “há expressões de hierarquias no interior da classe tra- balhadora, advindas da própria forma de organização da sociedade” (Cisne, 2014, p. 23). São quatro as principais teses que debatem o tema: a tese da indiferencialidade do capitalismo sobre as opressões (Wood, 2011); o ponto de vista da teoria unitária (Arruzza, 2015); a perspectiva da interseccionalidade (Crenshaw, 1989 e 2002) e a perspectiva da consubstancialidade ecoexten- sividade das relações sociais (Kergoat, 2010; Saffioti, 2004; Cisne, 2014). Wood (2011), que defende a tese da “indiferencialidade do capitalismo” sobre as opressões, considera a opressão de gênero como reminiscente de formações sociais e modos de produção prévios ao capitalismo, quando o patriarcado diretamente organizava e determinava uma estrita divisão sexual do trabalho. Para a autora, o capitalismo é, em si, indiferente às relações de gênero, ou seja, a igualdade racial ou de sexo/gênero não é antagônica ao capitalismo, pois o capitalismo é indiferente às identidades sociais das pes- soas que explora e provavelmente cooptará quaisquer opressões que estejam cultural e historicamente disponíveis, em qualquer uma de suas definições — assim, a relação entre exploração e opressão é meramente instrumental e contingente. Conforme destaca a autora, Embora o capitalismo possa usar e faça uso ideológico e econômico da opressão de gênero, essa opressão não tem um status privilegiado na estrutura do capi- talismo. Ele poderia sobreviver à erradicação de todas as opressões específicas das mulheres, na condição de mulheres — embora não pudesse, por definição, sobreviver à erradicação da exploração de classe. Isso não quer dizer que o capitalismo tenha passado a considerar a liberação das mulheres necessária ou inevitável. Mas significa que não há necessidade estrutural específica de opressão de gênero no capitalismo, nem mesmo uma forte disposição sistêmica para ela. (Wood, 2011, p. 232) Contrapondo Wood, Federici (2017, p. 11) assevera que a opressão das mulheres “na sociedade capitalista não é o legado de um mundo pré-moderno, 450 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 mas sim uma formação do capitalismo, construída sobre diferenças sexuais existentes e reconstruída para cumprir novas funções sociais”. Para Arruzza (2015), Wood empreende uma confusão entre a dimensão lógica e a dimensão histórica da análise das relações de classe. Ainda que se pudesse supor de um ponto de vista absolutamente abstrato que a exploração capitalista “não precisa” da opressão para sobreviver, todo o seu desenvolvimento histórico a evidencia como uma necessidade absolutamente imprescindível de sua formação social (Farris, 2015; Góes, 2015). Isso traz o debate sobre o que é funcional ao capi- talismo e sobre o que, além de funcional, é uma consequência necessária dele. Arruzza (2015), em direção distinta à tese de Wood, considera que o capitalismo produz opressão por necessidade e, assim, localiza o argumento tanto no nível estrutural lógico como no nível histórico. Isso, em parte, dialoga com a discussão estabelecida nos termos de Wood (2011), porém considera impresumível a cisão desses níveis da análise. Arruzza defende a “tese uni- tária”, segundo a qual “nos países capitalistas não existe mais um sistema patriarcal que seja autônomo do capitalismo. Relações patriarcais continuam a existir, mas não são parte de um sistema separado” (Arruzza, 2015, p. 37). Para a autora, considerar que o patriarcado não é um sistema autônomo dentro do capitalismo não implica aferir que a opressão de gênero não exista; por outro lado, busca não reduzir “cada aspecto da opressão para simplificá-la a uma consequência mecânica ou direta do capitalismo, nem busca oferecer uma explicação baseada somente em termos econômicos” (Idem, p. 38). Arruzza não subestima a centralidade da opressão de gênero, da mesma forma que não concorda com a ideia de que o patriarcado seria hoje um sistema autônomo, e insiste na necessidade de considerar o capitalismo não como um conjunto de leis puramente econômicas, mas antes como uma complexa e articulada ordem social que tem seu núcleo constituído de relações de explora- ção, dominação e alienação. Para a autora, o desafio que se coloca é entender como a dinâmica de acumulação de capital continua a produzir, reproduzir, transformar e renovar relações hierárquicas e opressivas, sem expressar esses mecanismos em termos estritamente econômicos ou automáticos. O conceito de interseccionalidade, por sua vez, foi oficialmente siste- matizado pela crítica e teórica estadunidense Kimberlé Crenshaw em 1989, 451Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 a partir da sua inserção no movimento Black Feminism norte-americano, para analisar como raça, gênero e classe se interseccionam e geram diferentes formas de opressões. Para Crenshaw (2002, p. 177), A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. As controvérsias em torno da interseccionalidade dizem respeito à perspectiva “geométrica” e transdisciplinar de intersecção entre as opres- sões. Kergoat (2010, p. 98) destaca que se trata de uma tentativa de enten- der “a variedade das interações das relações de gênero e de ‘raça’, o mais próximo possível da realidade concreta das mulheres afro-americanas”. A autora destaca o próprio título do artigo de Crenshaw, “Mapeamento das margens”, para tecer sua crítica à perspectiva da autora: “pensar em termos de cartografia nos leva a naturalizar as categorias analíticas”. Nessa mesma direção, destaca Elsa Dorlin (apud Kergoat, 2010, p. 98): [...] a definição [de Crenshaw] das relações sociais como setores de interven- ção implica que as mulheres [...] que enfrentam mais do que uma discrimi- nação se acham em setores isolados. [...] O conceito de interseccionalidade e, de maneira geral, a ideia de intersecção, dificulta pensar uma relação de dominação móvel e historicamente determinada [...]. Em outros termos, a interseccionalidade é um instrumento de análise que coloca as relações em posições fixas, que divide as mobilizações em setores, exatamente da mesma maneira pela qual o discurso dominante naturaliza e enquadra os sujeitos em identidades previamente definidas. As referidas críticas são pertinentes: a interseccionalidade, de fato, não consegue apreender a dinâmica complexa das relações sociais. Ademais, acreditamos que a interseccionalidade pode funcionar como um instrumento técnico-operativo aplicado às políticas públicas por possibilitar a conexão 452 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 das desigualdades sociais num nível das práticas sociais — por intermédio da integração de marcadores sociais tais como sexo/gênero, classe, “raça”, etni- cidade, geração, deficiência e orientação sexual. Soma-se a isso o seu caráter político, uma vez que a interseccionalidade é também uma forma de luta contra as opressões e, portanto, um instrumento de luta política para o movimento de mulheres negras (Hirata, 2014; Marcondes et al., 2013). Contudo, não nos parece pertinente a fragmentação entre o nível da análise e o da intervenção. A partir de um ponto de vista materialista, histórico e dinâmico, Kergoat (2010) defende a consubstancialidade e a coextensividade como uma lente ou possibilidade de apreender a relação entre exploração e opressão ou as relações sociais a partir de “unidade de substância”. Ao que parece, sua discordância principal com Arruzza localiza-se na importância que atribui à diferenciação analítica ou autonomia relativa dos tipos de relações sociais, “operação por vezes necessária à sociologia, mas que é analítica e não pode ser aplicada inadvertidamente à análise das práticas sociais concre- tas” (Kergoat, 2010, p. 93). Dessa análise é possível apreender as relações patriarcais, mesmo que elas não funcionem sozinhas. São práticas que não se permitem apreender por noções geométricas como adição, intersecção e multiposicionalidade, uma vez que são móveis, ambíguas e ambivalentes. Assim,o ponto de vista de Kergoat (2010), também defendido por Saffioti (1987 e 2004), Silva (1992) e Cisne (2014),5 é que as relações sociais são consubstanciais; “[...] elas formam um nó que não pode ser desatado no nível das práticas sociais, mas apenas na perspectiva da análise sociológica; e as relações sociais são coextensivas: ao se desenvolverem, as relações sociais de classe, gênero e ‘raça’ se reproduzem e se coproduzem mutuamente” (Kergoat, 2010, p. 94). Ou seja, patriarcado e capitalismo — mesmo que tenham particularidades que permitam uma caracterização em si —, nessa perspectiva, compõem um sistema dependente um do outro a partir do pressuposto de que tais relações são dinâmicas e que existem três relações 5. Angela Davis, mesmo que não faça alusão à consubstancialidade, realiza uma análise a partir da simbiose entre as contradições centrais das relações sociais (patriarcado, racismo e capitalismo) em suas obras, com destaque para o seu clássico trabalho Mulheres, raça e classe, de 1981. 453Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 sociais fundamentais que se imbricam e são coextensivas: sexo/gênero, a classe e a “raça” (Kergoat, 2010).6 Porém essa perspectiva apresenta-se sob prismas distintos. Cisne (2014, p. 30-31) alude à consubstancialidade entre opressão-exploração, mas defen- de a primazia ontológica da exploração sobre a opressão ou a centralidade da classe em relação ao sexo/gênero e raça (Cisne, 2014). Apesar de destacar a importância de não secundarizar os demais elementos estruturadores das relações sociais, destaca a centralidade da classe em razão do fundamento do modo de produção capitalista, que particulariza e caracteriza a formação social atual (ou seja, considera que, em última instância, as relações econô- micas são definidoras). Para a autora, não se trata de hierarquizar exploração e opressão, mas de conferir à classe uma prioridade ontológica ao considerar que apenas a classe possibilita a articulação das demais contradições. Para Saffioti (1987) e Silva (1992), a determinação “em última instância” do eco- nômico subordina as relações de sexo/gênero às relações de produção, afinal, “o conceito de relações de gênero não goza do mesmo estatuto teórico que o conceito de relações entre as classes sociais” (Silva, 1992, p. 21). Kergoat (2010, p. 99), por sua vez, considera que colocar o problema nos termos da consubstancialidade das relações sociais permite uma outra abordagem: [...] de acordo com uma configuração dada de relações sociais, o gênero (ou a classe, a raça) será — ou não será — unificador. Mas ele não é em si fonte de antagonismo ou solidariedade. Nenhuma relação social é primordial ou tem prioridade sobre outra. Ou seja, não há contradições principais e contradições secundárias. Quando as mulheres da rede hoteleira Accor enfrentam conflitos, o fazem como mulheres, trabalhadoras, mulheres negras; não fazem reivindi- cações separadas. Lutando dessa maneira, elas combatem a superexploração de todos e todas, e sua luta, assim, tem alcance universal. 6. A perspectiva da consubstancialidade foi elaborada por Danièle Kergoat inicialmente em termos de articulação entre sexo e classe social, e, posteriormente, em termos de imbricação entre classe, sexo e “raça”. Saffioti também parte inicialmente das relações de gênero e classe e, posteriormente, no livro O poder do macho, publicado em 1987, amplia a percepção da simbiose acrescentando a categoria raça/etnia. 454 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 Assim, as relações sociais podem incluir uma ou mais dimensões em termos de determinantes,7 mas na realidade concreta se encontram imbica- das, “podendo ser encontradas várias combinações, inclusive contraditórias, sob o ponto de vista de uma análise monolítica que considere a autonomia relativa de um dos sistemas de dominação-exploração” (Silva, 1992, p. 26). Para essa abordagem, não há primazia entre as relações: elas nem são sim- plesmente superpostas ou adicionadas, nem intersecções — são imbricadas, consubstanciais e conformadas. O horizonte teórico-político desse uso é a transformação da sociedade, das relações capitalistas, que também são relações hierárquicas de sexo/gênero e “raça”.8 Nessa direção, feministas materialistas como Guillaumin, ainda em 1972, pautava a construção social do que se entende por “raça”, consideran- do-a “um processo de naturalização baseado num sistema de marcas físicas totalmente arbitrárias que teve a sua origem e causa no sistema escravista do século XVIII” (Cisne e Gurgel, 2014, p. 249). E demonstrou que tanto as opressões de sexo como as de raça se apoiam num processo semelhante de naturalização de determinados grupos sociais. Contudo, o escravismo não pode ser visto de forma isolada, mas como origem da acumulação capita- lista nas Américas, imposto pela Europa a povos e países que não haviam experimentado o feudalismo. Além disso, a despeito de ter origem com a escravidão moderna, também não pode ser considerado apenas a herança cultural escravista. Afinal, “a ciência do século XX derrubou por completo qualquer pretensão à cientificidade do argumento racialista da hierarquia entre raças” e, não obstante, o “racismo continuou e continua a orientar formas opressivas de exercício do poder e a interpenetrar-se nas relações de produção, criando hierarquias de funções” (Mattos, 2017). Logo, o “racismo não é apenas um problema ético, uma categoria jurídica ou um dado psicológico. Racismo é uma relação social, que se estrutura política e economicamente” (Almeida, 7. Por exemplo, podem-se identificar relações de opressão-exploração do rico sobre o pobre, do homem sobre a mulher, do branco sobre o negro, e do heterossexual sobre o homossexual ou o bissexual (Silva, 1992). 8. Cabe elucidar que uso do termo “raça” é político e justifica-se como uma categoria social de domi- nação e de exclusão. 455Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 2016, p. 23), podendo ser facilmente apreendida no constrangimento e nas inúmeras violências vivenciadas pelas mulheres negras, por exemplo. A im- bricação entre patriarcado, racismo e capitalismo revela, assim, hierarquias e privilégios nas relações sociais de sexo/gênero, étnico-raciais e classe. Nessa direção, Collins (apud Marcondes et al., 2013, p. 137) destaca que “todas as mulheres negras compartilham a comum experiência de compo- rem uma sociedade que as desprivilegiam” e “a forma como os estereótipos vinculados à representação social são fontes inesgotáveis de violência con- tra as mulheres negras e também confinadores sociais”. Reconhecer essas hierarquias implica reter que mulheres pobres, negras e indígenas sofrem mais intensamente as opressões da ordem patriarcal, pois carregam no corpo as marcas da opressão-exploração do sexismo, do racismo e do classismo. Ademais, constatar que as opressões persistem historicamente e estão fundidas necessariamente à exploração é uma possibilidade para a unifica- ção das lutas por emancipação política e humana, diga-se, a partir de uma totalidade diversificada, que reconheça as múltiplas experiências objetivas e subjetivas de sexo/gênero (incluindo as sexualidades) e étnico-raciais. É um esforço teórico-político enfrentar os antagonismos existentes na sociedade, que respondam a situações de dominação-exploração em que se encontram as mulheres, as minorias étnicas e os pobres (Saffioti, 1987; Silva, 1992). A finalidade é, portanto, “desnaturalizar radicalmente as construções que se baseiam na diferenciação das desigualdades, sem com isso perder de vista a dimensão concreta das relações sociais” (Kergoat, 2010, p. 99). Essa aná- lise discorda, por exemplo, das abordagens que consideram que as relações de classe se inscrevem unicamente na instância econômica, e as relações patriarcais, unicamente na instância ideológica. Parte-se da compreensão de que “cada um desses sistemas possui suas próprias instâncias,que exploram economicamente, dominam e oprimem”, mas que “articulam-se entre si, de maneira intra e intersistêmica” (Idem). Não obstante, se a teoria social crítica objetiva a apreensão da totalida- de e isso implica, pois, considerar o capitalismo como totalidade histórica, dinâmica e contraditória e assim realizar análises e construir estratégias que tenham em conta as complexas relações no interior dessa totalidade (Mattos, 456 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 2017), pode-se aferir que as relações de opressão/dominação patriarcal estão imbricadas às relações de exploração necessariamente, e não contingen- cialmente, em concordância com Arruzza (2015). Logo, entende-se que o patriarcado não se limita ao campo da dominação, modelado pela ideologia machista, tampouco é um fenômeno reduzível a relações interpessoais. Diferentemente, possui um caráter e consistência societal (Arruzza, 2015) e é também um sistema de exploração, ou melhor, ele possui uma dupla dimensão: a dominação (opressão) e a exploração.9 Portanto, não há dúvidas sobre o fato de que as opressões decorrentes do patriarcado antecedem o capitalismo. A questão aqui empreendida é a do reconhecimento de que essas opressões sobreviveram à sua emergência e tornaram-se necessárias às relações sociais capitalistas.10 Saffioti (2004) argumenta que a dominação patriarcal na cena contemporânea não é a mesma da Atenas clássica ou da Roma antiga. A autora refere-se a uma “máquina do patriarcado” para demonstrar a força e a abrangência dessa dominação- -opressão que se trata de uma estrutura forte e sólida que pode ser acionada por qualquer um, inclusive por mulheres. Contudo, apesar de reformulado conceitualmente e de suas manifes- tações atualizadas conforme o movimento da realidade e os avanços no 9. Não se trata aqui de uma analogia à perspectiva weberiana do patriarcado, como “um tipo de domi- nação em que o senhor é a lei e cujo domínio está referido ao espaço das comunidades domésticas ou formas sociais mais simples, tendo sua legitimidade garantida pela tradição” (Castro e Lavinas, 1992, p. 237). O conceito weberiano de patriarcado, além de inapropriado às formas capitalistas por se tratar de um conceito específico do contexto social no qual teve sua origem (no caso, anterior ao advento do Estado), é conside- rado uma interpretação patriarcal do patriarcado. Nessa perspectiva, Pateman (1993, p. 49) assinala que “A interpretação patriarcal do patriarcado como direito paterno provocou, paradoxalmente, o ocultamento da origem da família na relação entre marido e esposa. O fato de que os homens e mulheres fazem parte de um contrato de casamento — um contrato original que instituiu o casamento e a família — e de que eles são maridos e esposas antes de serem pais e mães é esquecido”. 10. Conforme destaca Mattos (2017, p. 1), “[e]m modos de produção anteriores ao capitalismo, especial- mente nas relações de produção baseadas na unidade familiar, voltadas prioritariamente para a subsistência, a subordinação da mulher (e das crianças) ao poder patriarcal organizava em grande medida o processo pro- dutivo. A acumulação primitiva de capital, um processo de expropriação que marcou a separação dos agora proletários e proletárias dos meios de produção necessários a suprir sua subsistência lançando-os ao mercado, consistiu, em grande medida, na quebra dessas relações de produção organizadas nas unidades familiares. No entanto, o patriarcado sobreviveu, transformado e incorporado pelo capitalismo”. 457Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 campo dos direitos das mulheres, é importante dizer que a base material do patriarcado não foi destruída. Se na Roma antiga o patriarca tinha direito de vida e morte sobre sua mulher, hoje o feminicídio ou a morte de mulheres por motivos sexistas é comumente justificada pelo desvio em torno das expectativas de condutas e caminha na direção da culpabilização das víti- mas. Além disso, sobrevive e combina-se à valorização do modelo familiar monogâmico como norma e na afirmação de padrões heteronormativos. Assim, compreende-se o capitalismo também como sistema de dominação masculina de opressão e exploração das mulheres, o qual se mantém sob uma base material concreta e ancora-se numa economia doméstica e na violência sexista, que garante a produção e a reprodução da vida. De forma contrária à comum dicotomia entre patriarcado e a classe, o es- forço aqui é o de empreender um conteúdo histórico particular ao patriarcado,11 o qual implica a legitimação e a organização das relações sociais capitalistas que subalternizam duplamente o trabalho (e a posição social em geral) da mulher, seja pela apropriação do trabalho reprodutivo — o capital destruiu as relações de produção baseadas na unidade familiar, mas não dispensou a família como unidade primordial na execução de uma série das formas de trabalho essenciais para a reprodução da força de trabalho —, que rebaixa o custo da força de trabalho em geral, permitindo ao capital remunerá-la com um salário inferior (ou não salário)12 ao que seria necessário à sua reprodução caso todas essas condições essenciais à sobrevivência fossem compradas no mercado (Mattos, 2017), conferindo aos homens o poder do salário, seja pela incorporação da mulher ao mercado de trabalho assalariado em posições 11. Saffioti (2004) enumera seis justificativas para a manutenção do patriarcado como categoria útil para demonstrar a dominação-exploração das mulheres: 1) não se trata de uma relação privada, mas civil; 2) dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, praticamente sem restrição; 3) configura um tipo hierár- quico de relação, que invade todos os espaços da sociedade; 4) tem uma base material; 5) corporifica-se; 6) representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência. Para a referida autora, isso implica reconhecer que as mulheres ainda são objetos da satisfação sexual dos homens, reprodutoras de herdeiros, de força de trabalho e de novas reprodutoras. Essa “soma/mescla de dominação e exploração é entendida como opressão” (Saffioti, 2004, p. 105). 12. Aqui, refere-se ao trabalho doméstico não remunerado realizado prioritariamente pelas mulheres. 458 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 subalternas ou com remunerações mais baixas.13 Diga-se, incorporação imprescindível. Afinal, o trabalho doméstico não remunerado continuou a desempenhar um papel central na organização capitalista do trabalho e é “um dos principais pilares da produção capitalista, ao ser o trabalho que produz a força de trabalho” (Federici, 2017, p. 12). Nessa perspectiva, acredita-se que a dominação masculina é resultado também do poder que o salário confere aos homens, e não apenas da natureza “improdutiva” do trabalho doméstico. Disso pode-se aferir que não há separação entre a exploração capitalista e a opressão patriarcal e racista, mas uma imbricação entre esses sistemas — ou, como expõe Saffioti (1984, p. 19), “opressão e exploração não são propriamente fenômenos distintos”, apenas se manifestam como dimensões específicas (política, cultural, social, sexual etc.) de um mesmo processo multidimensional.14 Exclusivamente para fins analíticos, torna-se possível distinguir entre o aspecto da opressão e o aspecto da exploração das mulheres, em que a opressão se manifesta nas relações de dominação (ideológicas), enquanto a exploração está mais diretamente ligada à dimensão econômica. Defende-se a unidade dialética entre opressão e exploração na medida em que a opressão é veículo/motor para a exploração. Em outras palavras, através da opressão/dominação naturalizam-se relações, comportamentos, mentalidades, que se convertem em privilégios e desigualdades, os quais favorecem a exploração. Tais privilégios e desigualdades não se limitam ao sexo, mas abarcam as relações étnico-raciais. Assim, considera-se que “a opressão constitui,ao mesmo tempo, o veículo e o disfarce da exploração” e, apesar de afetar a todos (por seu caráter estruturante), incide de modos diferentes e com intensidades diversas sobre os elementos que pertencem a 13. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) confirmam essa tendência ao apontar que a renda média nacional do brasileiro é de R$ 2.043, sendo que os homens ganham, em média, R$ 2.251, e as mulheres, R$ 1.762 (diferença de R$ 489). Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/ concursos-e-emprego/noticia/mulheres-ganham-menos-do-que-os-homens-em-todos-os-cargos-diz-pesquisa. ghtml>. Acesso em: 10 jan. 2018. 14. Saffioti tem como pressuposto para tal análise a relação também simbiótica entre produção e repro- dução. Para a autora, produção e reprodução são faces de um mesmo sistema produtivo, “posto que qualquer modo de produção necessita da produção de meios de subsistência e da reprodução de seres humanos” (Saffioti, 1988, p. 143). 459Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 uma e a outra categoria de sexo e raça (Saffioti, 1984, p. 24). Tais relações, apesar de suas particularidades, não atuam/funcionam de forma autônoma. Nos termos de Saffioti (2004, p. 215), O importante é analisar estas contradições na condição de fundidas e enoveladas ou enlaçadas em um nó. [...] Não que cada uma destas condições atue livre e isoladamente. No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica especial, própria do nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma condiciona-se à nova realidade. De acordo com as circunstâncias históricas, cada uma das contradições integrantes do nó adquire relevos distintos. E esta motilidade é importante reter, a fim de não se tomar nada como fixo, aí inclusa a organização social destas subestruturas na estrutura global, ou seja, destas contradições no seio da nova realidade — novelo patriarcado-racismo-capitalismo — historicamente constituída. Isso faz reconhecer, por exemplo, que os homens retiram um benefício relativo da opressão de sexo/gênero e que as mulheres não experimentam dessa opressão de forma homogênea, embora estejam submetidas em seu conjunto ao poder opressivo do patriarcado. Da mesma forma, desigualdades de classe e étnico-raciais geram distintas formas de subjetividade, como já se destacou. Portanto, as relações sociais de sexo/gênero interatuam com as de classe e raça, operando na determinação das formas específicas — e hie- rarquizadas — de como as opressões são vividas objetiva e subjetivamente. Considerações finais Ao apreender a sociedade patriarcal-racista-capitalista, uma ordem que tem seu núcleo constituído de relações de exploração-opressão de sexo/ gênero, raça/etnia e classe, afora demonstrar a articulação necessária entre exploração-opressão, pretende-se contribuir para uma prática política de uni- dade. Logo, entende-se que separar a exploração das opressões — ou negar a centralidade das opressões ou as determinações para além da classe — pode cooperar para, além de fragmentar a apreensão da totalidade, segmentar as lutas. O patriarcado, com materialidade e cultura, penetrou em todas as es- feras da vida social; o capitalismo mercantilizou todas as relações sociais; e, 460 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 finalmente, o racismo, pela estrutura de poder, preconceito e discriminação, se espraiou em todo o corpo social como herança do escravismo. Assim, a suplantação da “opressão é impossível sob a lógica do capital, que a integrou de forma complexa e não linear à exploração do trabalho, sendo, portanto, indissociável da emancipação da totalidade da classe trabalhadora” (Mattos, 2017, p. 2) — ou seja, uma sociedade emancipada só é possível se supera- das as relações de opressões que a forjam. Desse ponto de vista, nenhuma forma de opressão pode ser entendida ou superada isoladamente, e a luta contra a opressão-exploração deve contemplar e incluir todas as camadas de oprimidos (Moraes, 2015). Dito isso, acredita-se que afirmar o significado sócio-histórico das relações de raça e sexo/gênero também como contradições centrais na re- produção do modo de produção capitalista não significa, em absoluto, negar ou secundarizar a condição determinativa do papel da classe. Ao contrário, refere-se à necessidade de conferir substância material aos modos de ser e reproduzir da própria determinação de classe. Disso decorre que, ao apreen- dermos como se materializam as relações sociais de produção e reprodução no capitalismo, estamos levando em conta os processos concretos de que se vale a existência dessa forma social, de onde entendemos serem imprescin- díveis as determinações de sexo/gênero e de raça, articulando, na perspectiva de totalidade, as determinações de classe. Convém apreender esse processo não a partir de uma hierarquia de valores, mas de uma unidade dialética ou “unidade de substância” (Kergoat, 2010) entre as relações de sexo/gênero, raça e classe. A unidade pressupõe que nenhuma dessas relações tem primazia sobre a outra — afinal, é a complexa dinâmica dessa relação que expressa, por exemplo, a impossibilidade de se prescindir ou hierarquizar uma ou outra contradição no próprio processo de reprodução do capital ou sem as quais este não poderia se materializar. Ade- mais, é um dos pontos de partida para um feminismo materialista-histórico no qual a reprodução social ocupa um lugar indispensável. Recebido em 19/1/18 ■ Aprovado em 20/6/18 461Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 Referências bibliográficas ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Dossiê: marxismo e questão racial. Margem Esquerda, São Paulo, n. 27, 2º sem. 2016. ARRUZZA, Cinzia. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. Outubro Revista, n. 23, p. 33-58, 2015. Disponível em: <http://bit. ly/1IV8ss1>. Acesso em: 30 out. 2017. CASTRO, Mary Garcia; LAVINAS, Lena. Do feminino ao gênero: a construção de um objeto. In: COSTA, Albertina O.; BRUSCHINI, Cristina (Orgs.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. p. 216-251. CISNE, Mirla. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez, 2014. CISNE, Mirla; GURGEL, Telma. Os atuais desafios para o feminismo materialista: entrevista com Jules Falquet. 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Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.154 Persistentes desigualdades raciais e resistências negras no Brasil contemporâneo Persistent racial inequalities and black resistance in contemporary Brazil Zelma Madeiraa Daiane Daine de Oliveira Gomesb Resumo: Este artigo aborda como o racismo se estrutura na sociabilidade brasileira e seus efeitos revelados nos índices de desigualdades sociais e raciais. Para tornar inteligíveis as relações das classes sociais em sua intersecção com a questão racial, apresentamos subsídios para repensar a edificação desta nação que se fundamenta em um conceito abstrato de democracia racial. A partir desse entendimento, destacamos as diferentes formas de resistências que têm sido constituídas pela população negra. Palavras-chave: Racismo estrutural. Desigualda- des raciais. Resistência negra. Abstract: This article discusses how racism is structured in Brazilian sociability and its effects revealed in the indices of social and racial inequalities. To make the relations of social classes intelligible at their intersection with the racial question, we present subsidies to rethink the edification of this nation based on an abstract concept of racial democracy. From this understanding, we highlight the different forms of resistance that have been constituted by the black population. Keywords: Structural racism. Racial inequalities. Black resistance. Introdução Para Andrews (2016), pesquisas têm revelado que, diferentemente do que se possa pensar, o Brasil, mesmo caracterizado como país plu- riétnico, não conseguiu evitar a permanência de grandes disparidades raciais na renda, em inserção qualificada no mercado de trabalho, educação, aCentro de Estudos Sociais Aplicados nos cursos de graduação e mestrado em Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Fortaleza-CE, Brasil. bNúcleo de Estudos e Pesquisas em Afrobrasilidade, Gênero e Família (Nuafro) da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Fortaleza-CE, Brasil. 464 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 saúde, expectativa de vida e outros indicadores revelados por agências de re- conhecimento, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), entre outras. Para Nogueira (2017), o racismo só pode ser compreendido como relação de poder, estruturado por dentro das instituições sociais, e sua superação não se faz sem a reforma destas. Racismo é uma relação que se estrutura política e economicamente. Desse modo, raça1 ganha centralidade como variável presente na produção e reprodução das desigualdades sociais e nos processos de exclusão social da população negra no Brasil. No dizer de Hasenbalg (1979), está presente na estrutura de classe e no sistema de estratificação social, daí a importância de uma análise crítica versar sobre as relações raciais no pós-abolição e a permanência do racismo estrutural. A escravidão nos legou o racismo como prática social dominante que liga ideologicamente os brancos, mantendo seus privilégios, enquanto é negada a cidadania aos negros e negras (Nogueira, 2017). Foi edificado um projeto de Estado-nação que insistia no processo de branqueamento, considerando que a miscigenação extremada significava a degenerescência, impedindo a evolução e o desenvolvimento do Brasil. Essa ideia é ilustrada quando o antropólogo Roquete Pinto, ao presidir o I Congresso Brasileiro de Eugenia em 1929, previa que em 2012 teríamos uma população com- posta de 80% de brancos e 20% de mestiços, nenhum negro, nenhum índio (Schwarcz, 1998, p. 26). Assim, a população negra do país tem sido subjugada, violentada e criminalizada desde a escravidão para saciar os interesses sociais e econômi- cos das classes ricas — fenômeno acolhido por leis cujos efeitos camuflam, revalidam e perpetuam a opressão. A propagação do discurso preconceituoso 1. A concepção de raça aqui adotada distancia-se daquela enraizada na biologia, posto que esse termo é perigoso na prática e enganoso na teoria. Priorizaremos aqui raça com densidade histórica e política. Não se tem o interesse de recorrer à questão sanguínea, mas compreender as determinações que constituem o sistema político, econômico e sociocultural hierarquizador entre povos, garantindo privilégios de todas as ordens para povos não negros (brancos), numa perspectiva biologizante/naturalizante cujo interesse alimenta um discurso racialista e segregador, enquanto seu uso em termos políticos vem como reivindicação de direitos historicamente suprimidos, como denuncia a militância negra e os cientistas sociais. 465Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 e discriminatório alicerça a narrativa para desqualificar a cidadania afrodes- cendente. O discurso da acomodação, que afirmava serem os(as) negros(as) acomodados(as) com sua situação e condição, os considerava vítimas com defeitos. Por isso, eram tratados como infantilizados e deles retirada sua humanidade. Desta forma, fez com que as desvantagens que se acumularam fossem associadas à cor da pele, de um povo dado à escravidão e mal ajustado. Destarte, as relações étnico-raciais no Brasil foram historicamente silenciadas, ou instalara-se um verdadeiro mal-estar, posto que o grupo dominante não desejava abrir mão de seus históricos privilégios e lugares sociais. A saída foi ou o silenciamento ou o discurso que retira do campo do conflito e das contradições, em nome de uma harmonia legitimada pelo processo de miscigenação e da democracia racial, a qual afirma que negros e negras usufruíram de oportunidades e integraram-se à cultura e à comu- nidade nacional. Abordagens como essas camuflam uma realidade marcada por tensio- namentos eracismo. A ideia da democracia racial, propagada como poderoso mito, funcionava como instrumento ideológico de controle social, acabando por legitimar a estrutura, que vigora até os dias atuais, de desigualdade, discriminação e opressões raciais, que tendem a serem explicadas dentro do âmbito pessoal. Assim, trata-se a questão estrutural de forma limitada às relações interpessoais, como pessoas que, por questões de ordem individual, são acomodadas ou complexadas. Esse fato impede que as situações de racismo e de opressão se transformem em questão social, pública, ficando reduzidas à esfera pessoal e não ganhando conotações políticas e coletivas, com ex- plicações relacionadas à formação social, às estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais que se reproduzem nas práticas cotidianas. Considerando a importância de evidenciar as consequências de séculos de relações sociais estruturadas pelo racismo e também as formas de resistên- cia elaboradas pela população negra para enfrentá-las, este artigo apresenta dados reveladores das persistentes desigualdades raciais, caucionadas pela discriminação e racismo nesse contexto de impactos das transformações 466 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 societárias no mundo do trabalho, na esfera do Estado e na configuração das políticas públicas no campo da transversalidade da promoção da igualdade racial e das resistências contemporâneas de negros e negras. Para isso, ini- ciaremos elucidando sobre as elaborações sociais em torno da participação da população negra na sociedade brasileira, que obstaculizaram seu desen- volvimento. 1. O pós-Abolição e o pensamento social racista e excludente Ainda que a liberdade conseguida pela Lei Áurea de 13 de maio de 1888 fosse negra, a igualdade pertencia exclusivamente aos brancos. (Schwarcz, 2012, p. 24) É importante dizer que a abolição no Brasil foi inacabada e junto dela vigoraram discursos e práticas de criminalização de conduta, como: a ocio- sidade, a vadiagem, a mendicância e a capoeiragem. Assim, a criminalização dos mestiços foi assumida como uma particularidade nacional. Tal fato guarda relação com os presídios abarrotados na sua maioria por negros e negras, gerando aumento de detentos tidos como os fora da lei, fora de controle, perigosos, maldosos e que representavam ameaça de violência. Na esteira dessa compreensão, temos a contribuição de Célia Azeve- do (2004), no seu livro Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites — século XIX. O livro mostra a preocupação das elites — o que fazer com o negro quando a escravidão terminar? Ou, então, como impedir um final brusco da escravidão, deixando à solta e sem nenhuma regra uma imensa população de negros e mestiços pobres em um país regido por uma minoria de ricos proprietários brancos? A autora traz o debate em torno dessas questões, travado por abolicionistas e imigrantistas ao longo do século XIX. A resistência de negros e negras já levantava a possibilidade de desor- ganização do trabalho. Então cresceu a exaltação a respeito das vantagens de trazer imigrantes europeus e, como corolário, “descobriu-se” a incapacidade 467Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 do(a) brasileiro(a) negro(a). A inferioridade era justificada não apenas pela própria biologia, raça inferior, híbrida impura, de baixo quilate, como tam- bém pela sua experiência como escravizado. Fazia com que seu trabalho fosse classificado como sujo, destituído de ética e moral como trabalhador. Como bem aponta Martins (2012, p. 456), “numa conjuntura em que o processo de constituição capitalista se efetivava, o trabalho assalariado se coloca numa direção essencialmente excludente, de valorização do traba- lhador branco (o imigrante europeu) como símbolo da redefinição social e cultural do trabalho no país”. O que está posto nesse processo é a lógica da discriminação racial como determinante do modo de produção baseado no trabalho livre, que bloqueava a inserção da população negra. Tal compreensão forjou mentalidades racistas no pensamento social brasileiro ao ter como hipótese que a pobreza e alienação dos(as) negros(as) no século XX era uma suposta herança da escravidão. Tal perspectiva analí- tica negava aos(às) negros(as) uma grande parte da responsabilidade pelas vitórias nas lutas contra a escravidão, ao mesmo tempo em que afirmava a existência de um pesado legado cultural cuja superação, novamente, excedia a capacidade do(a) próprio(a) negro(a). O racismo se solidifica como construção ideológica de conjunturas históricas, na qual os interesses materiais das classes dominantes encontraram uma justificativa científica para a importação de europeus e a inferioridade da maioria dos brasileiros. Buscavam reafirmar que [...] a eliminação da condição legal de escravo não incluía uma luta pelos direitos civis dos negros, e muito menos uma distribuição diferente de poder político. A chegada da República, apoiada por partidários apaixonados pelo imigrante branco, mas não pelo brasileiro de cor, fortalecem este racismo. (Azevedo, 2004, p. 12) As vulnerabilidades vivenciadas pela população negra são produtos da história criminosa da escravidão. Na atualidade, esta vive e sobrevive pagando a conta dos antepassados que não escolheram esse caminho de perversidade, atrocidades e acúmulos de desvantagens. 468 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 Sobressai a seguinte premissa: O ex-escravo e seus descendentes saíram espoliados da escravidão e des- preparados para o trabalho livre, incapazes, enfim, de se adequar aos novos padrões contratuais e esquemas racionalizadores e modernizantes da grande produção agrícola e industrial, tornando-se doravante marginais por força da lógica inevitável do progresso capitalista. (Azevedo, 2004, p. 18) Nas forças discursivas que sobressaíram sobre negros(as), foram qua- lificados ou desqualificados como aqueles e aquelas que se concentraram nas ocupações indesejáveis e insignificantes, que receberam forte influência deformadora da escravidão, sendo apontados como despreparados, incapazes para o trabalho não coercitivo (livre). Conformariam uma massa inerte, desagregada e inculta, posto que saí- ram marginalizados da escravidão, sem condições de integrar a sociedade e as classes (vagabundos e inúteis), daí ser a marginalização inevitável. Eram tidos como seres apáticos, de baixo nível mental, despreparados profissional- mente e derrotados na competição ocupacional e econômica. Foi construído um imaginário a partir do medo ou da insegurança suscitada pelos conflitos reais ou simplesmente potenciais entre uma diminuta elite, composta tanto dos grandes proprietários como das chamadas camadas médias de profis- sionais liberais, e uma massa de gente miserável — escravos e livres —, cuja existência não passava pelas instituições políticas dominantes, o que significava conferir-lhes um perigoso grau de autonomia que nenhuma lei repressiva por si só poderia coibir (Azevedo, 2004). O racismo foi abrindo caminhos para o abismo social entre negros e não negros na sociedade brasileira. Por esse motivo, buscamos explicitar não ser esse um problema que se limita ao âmbito interpessoal, comportamental, sendo uma questão estruturante das relações sociais, que em sua intersecção com o gênero e a classe demarca lugares sociais. Daí a importância de obser- var as singularidades históricas, sob o risco de afastar o debate ideológico do combate ao racismo de questões ligadas a transformações societárias. 469Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 Desse modo, é preciso inverter o sentido de cobrança da “consciência de clas- se” pendente hoje sobre as intervenções políticas de recorte racial, buscando compreender de que modo é possível construir saberes voltados à emancipa- ção completa por meio da integração do racismo e do sexismo como partes estruturantes da reflexão. Enfatiza-se:o esteio anticapitalista da luta contra o racismo é fundamental; sem ele, as intervenções resumem-se à integração do negro à sociedade salarial. (Devulsky, 2016, p. 27) Os indicadores educacionais, econômicos, políticos e sociais, quando analisados, permitem um diagnóstico da estruturação das desigualdades sociais e raciais brasileiras. Apesar das conquistas dos movimentos negros, as disparidades ainda são grandes e se faz necessário analisá-las para que se possa intervir adequadamente visando a sua superação. 2. Persistência das desigualdades raciais na sociedade contemporânea De acordo com o último censo do IBGE de 2010, 92,4 milhões de pes- soas se autodeclararam de cor branca, representando 45,5% da população. O grupo de pessoas de cor parda representava 45% do total populacional. Outros 8,6% se declararam de cor preta (17,4 milhões de pessoas) e 1,8 milhão de pessoas (0,9%) declararam outra cor ou raça (indígena ou amarela). Para efeitos de políticas públicas voltadas para igualdade racial, são considera- dos negros ou afrodescendentes os pretos e pardos. É fato que a população negra no Brasil é maioria e pesam sobre ela opressões, pois convive com as práticas discriminatórias cotidianamente. O fenômeno da “pardalização” se destaca na autoafirmação da população e apresenta o pardo como “coringa” para a indefinição. No que concerne ao sexo, conforme o Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil (Marcondes et al., 2013, p. 19), “em 2009 as mulheres negras respondiam por cerca de um quarto da população brasileira. Eram quase 50 milhões de mulheres em uma população total que, naquele ano, alcançou 191,7 milhões de brasileiros/as”. 470 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 Para compreender as vulnerabilidades que atingem negros e negras é pertinente apresentar os diversos indicadores revelados no último censo, nas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNADs) e em outras pesquisas de renome no Brasil, que mostram a força que tem a pertença ra- cial de estruturar as relações e os lugares sociais dos sujeitos numa mesma sociedade. Tomaremos como referências os dados do Atlas da violência 2016 e do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), do Mapa da Violência 2015, que trata do homicídio de mulheres, da PNAD 2014 e de outros documentos úteis para o diagnóstico, isto é, a análise da situação, mas também para a elaboração de solução dos problemas via construção e aprimoramento de políticas públicas e sociais. De maneira geral, os dados das pesquisas recentes comprovam a evo- lução da letalidade violenta contra jovens, população negra e mulheres. Segundo dados do Atlas da violência (Ipea; FBSP, 2016), entre 2004 e 2014 houve alta na taxa de homicídio de afrodescendentes (18,2%) e diminuição no número de homicídios de outros indivíduos que não de cor preta ou parda (14,6%). Em 2014, para cada não negro assassinado, morreram 2,4 indivíduos negros. Andrews (2016) e Hasenbalg (1979) afirmam que a população preta e parda tem sido maioria dos que morrem por homicídio na região Nordeste. Essa polarização geográfica foi historicamente condicionada pela dinâmica do sistema escravista no país e, desde a etapa final desse regime, pelas polí- ticas de incentivo e subsídio à imigração europeia no Sudeste e Sul do Brasil. O Mapa da violência 2015, que trata do homicídio de mulheres, revelou que, entre os anos de 2003 e 2013, foram mortas 46.186 mulheres. Desse total, 25.637 eram negras, ou 55%. As mulheres brancas assassinadas no período foram 17,5 mil, ou 37% do total. Notamos que tais disparidades são mais severas em relação a mulheres, juventude e crianças negras. Evidencia-se que as mulheres negras exercem papel fundamental em toda a estruturação das relações de opressão e subordinação. O corpo delas é utilizado de todas as formas, dentre estas a apropriação e desvalorização de seu trabalho, próprio da contradição entre capital e trabalho. Vale assinalar outras dimensões, além da produção econômica, que precisam de análise, ou seja, no nível da reprodução como sujeito histórico, 471Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 como reconhecimento dos seus perfis identitários, as subjetividades, a cultura, entre outros complexos, tendo em vista que correm o risco de ser apagadas ou secundarizadas por compreensões reducionistas e vertentes baseadas no liberalismo universal abstrato, o qual desconsidera as condições materiais de existência e igualdade material posta para tais segmentos. O retrato das desigualdades raciais é visível quando temos a renda média das mulheres, especialmente a das negras, que continua muito inferior não só em relação à dos homens, como também em relação à das mulheres bran- cas. “O rendimento médio das mulheres negras era equivalente, em 2009, a 40% do rendimento dos homens brancos, enquanto o das mulheres brancas equivalia a 68% do rendimento dos homens brancos” (ONU, 2011, p. 7). Fatos como esses têm impedido que as mulheres negras desenvolvam suas potencialidades e consigam mobilidade e ascensão social, pois ocupam posições de desvantagens no que concerne à ocupação e renda, à escolaridade, à entrada na educação superior e no mercado de trabalho, enquanto há pre- dominância no trabalho doméstico. São ilustrativos os dados fornecidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica (Ipea, 2017) no retrato das desigualdades de gênero e raça de 1995 a 2015: apesar de alguns avanços, nos deparamos com persistências para o grupo da população negra, sendo as piores posições para as mulheres negras. Em 2015, a taxa de desocupação feminina era de 11,6% — enquanto a dos homens foi de 7,8%. No caso das mulheres negras, a proporção chegou a 13,3% (a dos homens negros, 8,5%). Os maiores patamares encontram-se entre as mulheres negras com ensino médio completo ou incompleto (9 a 11 anos de estudo): neste grupo, a taxa de desocupação em 2015 foi de 17,4%. (Ipea, 2017, p. 2) No que se refere à presença de barreiras para encontrar melhores posi- ções no mercado de trabalho, essas estão presentes para homens e mulheres. No entanto, acumulam desvantagens as mulheres negras, que são maioria no emprego doméstico, historicamente marcado pela precarização, exploração e opressão. As mulheres negras, no dizer de Florestan Fernandes, foram as 472 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 que lograram êxito em encontrar trabalho no pós-Abolição: “Por causa de sua integração à rede de serviços urbanos, é a mulher que vai contar como agente de trabalho privilegiado não no sentido de achar um aproveitamento ideal ou decididamente compensador, mas por ser a única a contar com ocupações persistentes e, enfim, um meio de vida” (2008, p. 83). A categoria dos trabalhadores domésticos é formada por aproximadamente 7 milhões de profissionais, sendo que, entre as mulheres, 61,7% são negras. Historicamente, o trabalho doméstico é a principal porta de entrada das mu- lheres negras no mercado de trabalho e é onde a violação de direitos é mais evidente: praticamente 75% das trabalhadoras não têm carteira assinada. (ONU, 2011, p. 7) No que concerne à educação, é interessante notar que, ao longo da histó- ria, foi e é pauta importante nas reivindicações da população negra. Andrews (2015, p. 156) afirma que “a educação é universalmente reconhecida como uma área fundamental para a justiça social e como um dos mais poderosos determinantes de desigualdades e hierarquia social”. Um dos indicadores selecionados é a taxa de analfabetismo, que vem caindo de maneira importante no Brasil nas últimas décadas, mas que ainda não atingiu os patamares ideais e, nesse caso, apresenta um diferencial racial importante: em 2015, entre as mulheres com quinze anos ou mais de idade brancas, somente 4,9% eram analfabetas; no caso das negras, este número era o dobro, 10,2%. Entre os homens, a distância é semelhante. (Ipea, 2017, p.2) Em cenário de desemprego, trabalho precarizado como expressão da questão social no capitalismo contemporâneo, é exigido nível de escolaridade mais elevado. Porém, por motivos coloniais, a população negra tem encon- trado dificuldade em ampliar seu nível de escolaridade, e, quando assim o faz, não tem se traduzido em melhor qualificação no mercado de trabalho. Se examinarmos a escolaridade das pessoas adultas, salta aos olhos também o diferencial de cor/raça. Apesar dos avanços nos últimos anos, com mais 473Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 brasileiros e brasileiras chegando no nível superior, as distâncias entre os grupos perpetuam-se, conforme demonstram os dados: Entre 1995 e 2015, duplica-se a população adulta branca com doze anos ou mais de estudo, de 12,5% para 25,9%. No mesmo período, a população negra com doze anos ou mais de estudo passa de inacreditáveis 3,3% para 12%, um aumento de quase quatro vezes, mas que não esconde que a população negra chega somente agora ao patamar de vinte anos atrás da população branca. (Ipea, 2017, p. 2) Acrescente-se a essas desigualdades as práticas do racismo institucional nas instituições públicas no Brasil, que coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações; atua de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e organizações, provocan- do uma desigualdade na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades aos diferentes segmentos da população do ponto de vista racial. Vejamos o que revelam os dados do Ministério da Saúde de 2009. Apontam que 73% das gestantes brancas realizam sete ou mais consultas de pré-natal. Essa proporção cai para 46% quando as gestantes são negras. As restrições de acesso aos serviços e a baixa qualidade da atenção são fatores que incrementam a vulnerabilidade de mulheres negras à morte por causas relacionadas à gravidez; o risco de morte para essas mulheres pode ser 80% maior do que para as brancas. A desigualdade na saúde também atinge crianças negras, as quais têm 25% mais probabilidade de morrer antes de completar um ano de idade do que as crianças brancas. (ONU, 2011, p. 7) A desvantagem no acesso a direitos básicos que devem ser garantidos pelo Estado e na distribuição de renda por meio do acesso a postos no mer- cado de trabalho é contraposta ao número expressivo de pretos e pardos encarcerados no Brasil. Isso nos leva ao início das discussões realizadas até aqui, sendo essas consequências de práticas racistas que mantêm as 474 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 disparidades nas taxas de homicídios e encarceramento da população negra e seguem ocorrendo do período colonial até a nossa atualidade, em virtude do projeto de nação consolidado pela burguesia brasileira. É importante ressaltar que, em meio às vulnerabilidades por que passa a população negra, de cenários de extrema pobreza, demandas não atendidas por acesso às políticas públicas de proteção social, de preconceito que se transforma em ação de exclusão, de negação de identidade, de sua cultura, esta criou e vem reinventando mecanismos de resistência para garantir sua sobrevivência, ao mesmo tempo em que oferece ao Estado e à sociedade brasileira suas experiências como forma de construir coletivamente outra dinâmica de vida e ação política. Nesse sentido, compreendemos que uma luta real por uma sociedade sem exploração ou opressão, na qual o trabalho não se submeta ao controle do capital, só se efetivará com a superação das desigualdades raciais e de gênero. Logo, é exigida uma articulação das lutas sociais, pois enquanto o racismo e o sexismo forem tratados como fenômenos de menor importância, o exercício político voltado à emancipação humana continuará incompleto e inconcluso. 3. Resistências plurais e cotidianas As formas de resistência da população negra serão aqui tematizadas em perspectiva que ultrapassa as organizações políticas que ganharam força na década de 1970. Apesar de sua importância, no que tange ao campo da resistência de negros e negras no Brasil, todos os movimentos, processos de luta, fuga, afirmação identitária, expressão cultural, desde a vinda nos navios negreiros até os dias atuais, são considerados como estratégias plurais de resistir e lutar contra a ordem societária de opressão e exploração vigente. Na atual conjuntura, permeada por fortes ofensivas fundamentalistas e conservadoras que naturalizam violências, perpetuam desigualdades e ameaçam direitos conquistados, algumas estratégias e ações de negros e 475Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 negras se destacam no fortalecimento do campo democrático. A juventude negra das periferias tem protagonizado, graças ao hip-hop e/ou movimentos ligados à arte urbana e estética, ações de enfrentamento aos padrões opres- sores do corpo, cabelo, comportamento em busca de uma identidade negra fortalecida. Essa estratégia tem contribuído não só para o fortalecimento identitário, mas também para a constante denúncia e o combate ao extermínio da juventude negra. São nesses territórios negros e periféricos que a força do capital e do Estado fincam suas mais perversas raízes. Porém, são nesses territórios que surgem expressões de resistências culturais e políticas, sobretudo por parte da juven- tude, que consegue construir experiências de sociabilidade e lutas alternativas e descolonizadoras, em face de um poder cada vez mais vil e agressivo contra as comunidades e populações negras. (Nogueira, 2017, p. 5) A preocupação com os espaços de periferia das grandes e médias ci- dades, onde a população negra é a maioria e recebe as posições de trabalho mais precarizadas, tem sido um caminho apontado pela juventude. Também os Povos e Comunidades Tradicionais (PCT’s) discriminados por questões étnicas e raciais, quilombolas, indígenas e povos de terreiro têm se utilizado de diferentes formas para reafirmar sua ancestralidade e permanecer lutando cotidianamente por direitos e reparação por séculos de discriminação. Diante dos numerosos conflitos que eles enfrentam no decorrer dos processos de busca por acesso a direitos, os movimentos sociais quilombola e indígena têm lutado pela efetividade do que foi garantido constitucionalmente em 1988. Os conflitos vivenciados por comunidades remanescentes de quilombos e os povos indígenas do Brasil assumem cada vez maior projeção. A Con- venção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada em 1989, que trata dos direitos dos povos indígenas e tribais no mundo, e o Decreto n. 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, reconhece-os como “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que pos- suem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios 476 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 e recursos naturais como condição para sua reprodução [...], utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos por tradição”. Contudo, a efetividade desses direitos ainda é um desafio. Fundamen- tadas em uma ideologia racista, as ações que contribuem para a ampliação do capital são privilegiadas em detrimento das necessidades básicas que devem ser garantidas aos PCT’s para seu desenvolvimento sustentável. A construção de grandes empreendimentos realizados sem respeitar os preceitos da Convenção n. 169 da OIT, os conflitos agrários intensificados pelo uso de violência contra indígenas e quilombolas, o uso degradante dos recursos naturais, a depredação de templos religiosos de matriz africana, além das ameaças atuais de retrocesso nas legislações que regulamentam os processos de titulação das comunidades quilombolas e demarcação das terras indígenas são alguns dos exemplos dessa realidade. Porúltimo, mas não por menor importância, destacamos o protagonismo dos movimentos de mulheres negras. Conforme Lemos (2015), “na década de 1970, as mulheres negras no Brasil intensificaram suas organizações e empreenderam intensos debates acerca de direitos sociais, políticos, econô- micos e civis”. Desde então, elas têm assumido função vital no que se refere à mobilização nacional e internacional da população negra, bem como de diferentes outros atores sociais. As mulheres negras têm potencializado as denúncias contra o racismo, o sexismo e o capitalismo. Nesse sentido, destacamos a Marcha das Mulheres Negras, que ocorreu em novembro de 2015, em Brasília, em que milhares de mulheres de todo o Brasil marcharam contra o racismo e a violência e pelo bem viver. Em seu manifesto afirmaram que elas permanecem sendo a base para o desenvolvimento econômico e político do Brasil sem que a distribuição dos ativos do trabalho seja revertida para seu próprio benefício. Denunciam que vivem a face mais perversa do racismo e do sexismo por serem negras e mulheres, e alvo de discriminação de toda ordem, as quais não permitem que gerações e gerações de mulheres negras desfrutem daquilo que produzem. (Lemos, 2015, p. 210) 477Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 A organização do feminismo negro tem indicado alguns caminhos para viabilizar transformações societárias estruturais. Como apontado por Angela Davis,2 “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras, muda-se a base do capitalismo”. Assim, essas populações seguem em marcha, por diferentes caminhos e de formas plurais, todos os dias em busca de uma sociedade justa, igualitária e livre de opressões. Conclusão O racismo opera estruturalmente na formação social capitalista. Estrate- gicamente funciona como mecanismo definidor de lugares sociais. Com a atual ofensiva do conservadorismo, as antigas desigualdades advindas do período colonial escravista são reeditadas e têm resultado em profundas violações de direitos humanos, as quais dilaceram e despotencializam essas populações. A emancipação da população negra pressupõe mais do que a dimensão estritamente econômica; ela envolve dimensões culturais, políticas e de va- lores profundas. Por esse motivo, os indicadores apresentados alertam para a urgência de políticas públicas qualificadas e a necessidade de desnaturalizar e analisar a sociedade de forma a considerar a intersecção entre raça/etnia, gênero e classe social. É necessário ampliar ações que radicalizem a democracia, e alguns caminhos têm sido apontados nas formas plurais de resistência da população negra. Nesse sentido, é preciso fortalecer esses segmentos e suas organiza- ções, bem como assegurar sua participação em todas as esferas de poder. Recebido em 18/1/18 ■ Aprovado em 19/6/18 2. Palestra proferida em 25 de julho de 2017 na Universidade Federal do Recôncavo Baiano. 478 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018 Referências bibliográficas ANDREWS, George Reid. América afro-latina: 1800-2000. São Carlos: EdUFSCar, 2015. AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites — século XIX. Rio de Janeiro: Annablume, 2004. BRASIL. 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Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.155Povos indígenas e o direito à terra na realidade brasileira Indigenous peoples and the right to land in Brazilian reality Elizângela Cardoso de Araújo Silvaa Resumo: Este artigo analisa o processo histó- rico das afirmações legais do direito dos povos indígenas brasileiros à terra. Trata da violência contra os povos originários: expropriação e mortes dos que resistem e lutam pela garantia do acesso e usufruto dos bens naturais. Com base na pesquisa bibliográfica e documental, analisam-se os conflitos que atingem os povos indígenas e a concreta necessidade de demarcação como con- dição fundamental para a continuidade da vida indígena na realidade brasileira. Palavras-chave: Indígena. Terra. Direitos humanos. Abstract: This article deals with the historical process of the legal affirmations of the right of Brazilian indigenous peoples to land. It deals with the violence against indigenous peoples: expropriation and deaths of those who resist and fight for the guarantee of access and usufruct of natural goods. Based on bibliographical and documentary research, it analyzes conflicts that affect indigenous peoples and the concrete need for demarcation as a fundamental condition for the continuity of indigenous life in the Brazilian reality. Keywords: Indigenous. Land. Human rights. Introdução A análise do processo histórico da luta e conquista do direito dos povos indígenas à terra na sociabilidade capitalista exige uma breve caracterização da relação entre instâncias de poder e povos originários na nossa formação social brasileira. A histórica questão fundiária indígena envolve diversas problemáticas quanto ao acesso e uso da terra: aIndígena Pankararu. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Pernambuco-RE, Brasil. 481Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 violências sofridas por indígenas em conflitos diretos com a classe burguesa de ruralistas, donos do agronegócio acarretando consequências nefastas para os povos que ainda vivem no campo. A invasão, ocupação e exploração do solo brasileiro foram e são determinantes para as transformações radicais que os povos originários passam no decorrer de cinco séculos. Um longo processo de devastação física e cultural eliminou grupos gigantescos e inúmeras etnias indígenas, especialmente através do rompimento histórico entre os índios e a terra. Por dentro da tradição da teoria social crítica, podemos captar elementos teó- rico-metodológicos muito significativos para análise do processo histórico social vivido por esses povos e apreender a teia contemporânea de ameaças à própria continuidade da existência da vida indígena e sua possibilidade de autodeterminação e auto-organização. Destaca-se a importância de reconhecer as mudanças que ocorrem com a interação real entre a vida indígena no campo brasileiro (marcada por ele- mentos singulares de ruralidade) e o compartilhamento de diversos elementos próprios da vida tipicamente capitalista em algumas regiões brasileiras (os processos de proletarização e assalariamento indígena, incorporação de tecnologia na vida cotidiana e na organização do trabalho). Esse destaque tem o intuito de enfatizar a necessidade da superação de um pensamento evolucionista que defende a integração e a assimilação obrigatória dos povos indígenas ao modo de vida tipicamente capitalista na expectativa do apagamento étnico. Considera-se neste texto que essas transformações vividas por indígenas brasileiros não apagaram os traços étnicos que unem socialmente os grupos indígenas. As formas específicas de organização social estão presentes em elementos que dão unidade inter e intraétnica de diversas expressões da cultura do trabalho, organização econômica, social e vivências espirituais. No caso específico do Brasil, de acordo com dados da Fundação Na- cional do Índio, Funai (dados do censo do IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2010 disponíveis no site da FUNAI, 2016), conta- biliza-se aproximadamente 305 etnias de povos indígenas, preservando 274 482 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 línguas e totalizando 896,9 mil indígenas distribuídos em todo o território brasileiro em 688 terras e áreas urbanas.1 A condição dos povos indígenas na realidade brasileira foi histórica e socialmente desprezada ou tratada com muito preconceito e violência. O próprio termo “índio” não tem unidade concreta, nem semântica, expressando a marca histórica contraditória da colonização. A diversidade dos grupos étnico-linguísticos da América Latina não cabe nesse termo genérico, porém ele passa a ser assumido historicamente como uma definição estratégica de um grupo social no processo geral de organização e reivindicação política. De acordo com Almeida (2010, p. 31), “em toda a América havia inú- meros povos distintos que foram chamados de índios pelos europeus que aqui chegaram”, classificados pelos portugueses com o intuito de viabilizar os objetivos da colonização. Nas investidas etnocêntricas, o colonizador era a referência. Assim, os nativos foram classificados em dois grupos de índios: “aliados” e “inimigos”. Por dentro da reprodução histórica de preconceitos e de toda forma de violência da escravidão, perseguições e catequização, a trajetória institucio- nal da atuação dos órgãos de “proteção” também registrou a diversidade de formas de organização social e resistência dos povos originários — língua, tipo físico e cultura —, constatando a diversidade de troncos linguísticos indígenas divididos em inúmeros subgrupos. A primeira parte do artigo apresenta elementos históricos da condição social em que viveram e vivem os povos indígenas brasileiros. A segunda parte versa sobre os avanços legais da proteção das terras indígenas e as contradições da demarcação de terras indígenas na sociedade capitalista. Conclui-se com reflexões sobre a questão da importância da luta em defesa dos direitos humanos indígenas e sobre os limites da emancipação política indígena na sociabilidade burguesa. 1. De acordo com a Funai (2016), existem 32 grupos não contatados (isolados) confirmados pelo órgão (Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/nossas-acoes/politica-indigenista?start=4>. Acesso em: set. 2016). 483Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 1. Histórica questão fundiária no Brasil: expropriação de terra indígena, aldeamento e avanços da política indigenista Muitas são as formas históricas de acesso, uso e apropriação da terra. Esses são processos que geram diversos conflitos na história da humanidade. No caso específico da realidade brasileira, a terra, na sua dimensão política e econômica, é um bem que envolve muitas tensões e conflitos de disputa. Por se tratar de um meio de produção de riqueza bastante valioso, dispondo de diferentes possibilidades de exploração, o seu acesso, uso e apropriação são desiguais, envolvendo violência institucional, material e estratégias políticas que promovem concentração e expropriação. Trata-se aqui da constituição do latifúndio. A realidade do acesso, uso e apropriação das terras brasileiras é resul- tado de uma condição colonial de longa exploração. É importante recordar as consequências nocivas do sistema colonial secular que, além de devastar física e culturalmente as populações originárias, também garantiu a institui- ção das grandes propriedades privadas nas mãos de poucos. Referimo-nos à grande concentração de terras nas mãos de classes agrárias que exerceram seu violento poder de dominação e exploração dos trabalhadores do campo através de múltiplas formas de expropriação. A Lei de Terras de 1850 foi o “batismo do latifúndio”. Depois do longo processo de concessões do sistema de sesmarias, através do qual a Coroa por- tuguesa atribuía o poder de exploração de determinadas extensões de terras a sesmeiros com vistas à produção, a referida lei condiciona o acesso à terra exclusivamente por meio da compra.Nesse contexto também se alargou a grilagem, caracterizada pela falsificação em larga escala de documentações de posse de terra.2 A legitimação do latifúndio no Brasil é marcado por estratégias (i)legais e políticas que favoreceram economicamente as classes dominantes no meio agrário até os dias atuais. É também a base da violência social, desagregação, 2. “Terras griladas são aquelas que foram apropriadas ilegalmente, através da falsificação de documen- tos. A grilagem, [é uma] [...] prática arraigada na história agrária brasileira” (Caldart et al., 2012, p. 441). 484 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 desaldeamento e superexploração das massas pobres trabalhadoras do campo, indígenas e negras do nosso país. É com o avanço das formas capitalistas de exploração do campo brasi- leiro que a relação entre indígenas, lavradores, quilombolas vive constantes ameaças de expropriação e reprodução das formas de rompimento com seu principal meio de reprodução da vida: a terra. Temos inúmeros casos na realidade brasileira de expulsão de populações ribeirinhas, tradicionais, quilombolas, pesqueiras pela ação predatória do grande capital nas investi- das dos grandes empreendimentos (hidrelétricas, barragens, exploração de minérios, de madeira, entre tantos outros). Dos primeiros anos da colonização até a Lei de Terras (séculos XV-XIX) ocorre uma destruição radical das populações originárias, bem como a dis- persão e diversas formas de migrações compulsórias, produto da expulsão de seus territórios. A Lei de Terras exerceu a função de institucionalizar formas de expropriações. Os povos que resistiram e adentraram os sertões e outras regiões de difícil acesso no país, durante o século XX, continuam ameaçados com os avanços de formas de exploração capitalista no campo. Os processos constantes de expulsão de indígenas leva-os a compor uma massa de trabalhadores espoliados e em condições de extrema precariedade, seja nas pequenas ou nas grandes cidades. Com o avanço do capitalismo no campo, a terra cumpre a função de mercadoria (“terra de negócio”, nos termos de José de Souza Martins). Desse modo, a questão da “propriedade” da terra no Brasil é complexa. Em termos legais, dispomos de muitas modalidades de posse, porém a realidade e a legislação são instâncias marcadas pela desigualdade. Na base dos conflitos de terra no Brasil está o interesse capitalista da burguesia agrária pela exploração da grande riqueza natural existente nas terras ainda ocupadas por indígenas e os limites da força política e econô- mica das diferentes modalidades de trabalhadores do campo, entre eles os povos originários. [...] o que se observa em relação à terra no Brasil é uma complexa realidade que envolve, de um lado, múltiplas formas de acesso coletivo e comunitário, 485Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 e lutas pelo seu controle democrático, no que diz respeito a terras indígenas, quilombolas, tradicionalmente ocupadas ou ocupadas pelos movimentos sociais em luta pela Reforma Agrária; e, de outro, a reafirmação de formas monopolistas de controle da propriedade da terra no Brasil, favorecidas por ações das diversas esferas do Estado brasileiro, seja quando nega a titulação de terras indígenas, rejeita o reconhecimento de terras quilombolas e não legitima terras tradicionalmente ocupadas, seja quando não desapropria para fins de Reforma Agrária as terras que descumprem a função social, favorece a grilagem de terras, garante a manutenção de latifúndios improdutivos intoca- dos e preserva o direito de propriedade de quem utiliza mão de obra escrava. (Caldart et al. 2012, p. 444) A questão da disputa de terras e o monopólio da posse nas mãos de classes economicamente poderosas são os principais impasses vividos pelas populações originárias que residem em regiões ricas em recursos naturais, es- pecialmente quando essa classe dominante se encontra bem representada em uma bancada ruralista no Parlamento brasileiro e em aparelhos privados de hegemonia que atuam para legitimar os interesses dos “reis do agronegócio”. De acordo com o Relatório da Comissão Pastoral da Terra sobre os casos de violência no campo: Em 2015, 50 pessoas foram assassinadas no campo, o maior número de víti- mas desde 2004, e 39% a mais do que em 2014, quando foram registrados 36 assassinatos. Como em anos anteriores, a violência se concentrou de forma, pode-se dizer espantosa, na Amazônia, onde foram computados 47 dos 50 assassinatos — 20 em Rondônia, 19 no Pará, 6 no Maranhão, 1 no Amazonas, 1 no Mato Grosso —; 30 das 59 tentativas de assassinato; 93 das 144 pessoas que receberam ameaças de morte; 66 dos 80 camponeses presos. E ainda 20.000.853 dos 21.374.544 hectares em conflito. 527 dos 998 conflitos por terra também lá ocorreram, com destaque para o Maranhão com 120, 99 no Pará e 83 em Rondônia. (CPT, 2015, p. 9-10) Como verificamos no relatório, há uma condição alarmante de ameaças vividas pelos trabalhadores do campo. São números expressivos que indicam 486 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 os interesses e as disputas pela riqueza dos recursos naturais disponíveis nas mãos da classe trabalhadora. Ainda de acordo com o relatório da Comissão: A mineração, as hidrelétricas e as madeireiras se expandem exigindo do poder público a construção de linhões, portos, o asfaltamento e abertura de estradas e de hidrovias e, consequentemente, a valorização das terras. Está pronto o caldo para o aumento e o acirramento dos conflitos e, sobretudo, para o crescimento da concentração da propriedade latifundiária. (CPT, 2015, p. 10) O incessante interesse do grande capital continua a ameaçar as vidas dos povos das florestas, ribeirinhos, pesqueiros, quilombolas e indígenas que vivem uma relação com a terra-natureza não mercadológica. O proces- so de acumulação e renovação das formas de exploração do capital requer processos ampliados de expropriação.3 Essa lógica de exploração capitalista se depara com a resistência dos trabalhadores e lideranças organizados(as) do campo, usa da violência física, patrimonial e institucional para garantir a apropriação injusta e desigual da terra. No início do século XIX, ocorrem diversas transformações no Brasil, especialmente a ruptura com o pacto colonial, superando o estado jurídico- -político, nas palavras de Florestan Fernandes. Essa ruptura com o passado colonial não ocorre com a condição material que, para Fernandes (2005, p. 51), “iria perpetuar-se e servir de suporte à construção de uma nova so- ciedade nacional”.4 3. Ao analisar a tendência incontrolável de expansão do capital, Virgínia Fontes (2010, p. 22) afirma que “a expropriação massiva é, portanto a condição inicial, meio e resultado da exploração capitalista”. A autora continua: “[...] expandir as relações capitalistas corresponde, portanto, em primeiro lugar, à expansão das condições que exasperam a disponibilidade de trabalhadores para o capital, independentemente da forma jurídica que venha a recobrir a atividade laboral de tais seres sociais. A expropriação primária, original de grandes massas campesinas ou agrárias, convertidas de boa vontade (atraídas pelas cidades) ou não (expulsas, por razões diversas de suas terras, ou incapacitadas de manter sua reprodução plena através de procedimentos tradicionais, em geral, agrários) permanece e se aprofunda, ao lado de expropriações secundárias, impulsio- nadas pelo capitalismo — imperialismo contemporâneo [...]” (p. 44). 4. Com a independência do Brasil e a formação de um Estado nacional e as exigências de adaptação às mudanças políticas e econômicas internacionais, nascem os ideais de unidade e nacionalidade voltadas para 487Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 Prevaleceu nesse período uma subalternidade ideológica da vida e das necessidades dos índios. Eram tratados como crianças órfãs, definindo a condição de tutelaque juridicamente foi reafirmada no Código Penal de 1916, considerados como “menores de idade” e “relativamente incapazes”, mantendo o princípio da tutela (Idem, p. 89 e 137).5 1.2. A questão da terra na política indigenista no século XX No início do século XX, a questão indígena não era tratada substan- cialmente como se fosse social ou política. Estava situada nos conflitos de interesse econômico em torno da posse de terras. A Constituição de 1891 não tratava de forma substancial da questão, fazendo apenas breve menção a um possível reconhecimento de terras que eventualmente tivessem sido re- conhecidas anteriormente pela Coroa portuguesa. Índios continuavam sendo vistos como problema para o desenvolvimento nacional e como obstáculo para o progresso nacional. Após denúncias internacionais da condição indígena e dos trabalhadores do campo brasileiro, foi criado, em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que em 1918 se tornaria o Serviço de Proteção aos Índios, o SPI. Em função das dificuldades da pri- meira versão do órgão para atuar na amplitude das demandas de tantos grupos sociais, o SPI passa a atuar exclusivamente com as demandas indigenistas. O índio passa a ser visto como “um ser digno de conviver em comunhão a construção de uma “única identidade histórica e cultural”. A identidade indígena não era, nem de longe, aquela que representaria essa imagem nacional. 5. É importante enfatizar o papel que cumpriu a Lei de Terras de 1850, que dava o direito de posse da terra apenas àqueles que pagassem por ela. A lei excluía radicalmente pequenos lavradores e aldeias indíge- nas. No período, a política indigenista passa a ser da responsabilidade do Ministério da Agricultura, criado em 1860, sendo que diversas aldeias foram extintas formalmente e índios dispersados. “Seus habitantes são condenados a viver como posseiros sem terra, perdendo suas características específicas. O período do Brasil Império caracterizou-se com a afirmação do poder dos grandes senhores, do latifúndio, pela manutenção da servidão e da escravatura”, afirma Gomes (2012, p. 88). 488 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 nacional”, mas permanece a visão da inferioridade cultural e “evolutiva”. Vistos como infantis, “necessitariam da tutela do Estado a quem caberia dar-lhes condições para evoluir a um estágio cultural e econômico superior, para daí se integrarem à nação” (Gomes, 2012, p. 92-93). No decorrer do século XX ocorreram muitas transformações positi- vas sobre a questão indígena brasileira, tanto na dimensão institucional de organização dos serviços de regularização das políticas como na atuação direta do Estado e dos órgãos de proteção em favor do avanço na legislação de proteção. Embora com elementos e instrumentos contraditórios, houve processos de mapeamento que favoreceram a visibilidade da presença in- dígena no território brasileiro, bem como, ainda que de forma limitada, a organização de dados e registros oficiais que dimensionaram a condição concreta da realidade dos povos. Em 1928, é aprovada a Lei n. 5.484, que passa a regulamentar a situação jurídica dos índios. Exonera a tutela orfanológica e coloca-os sob a tutela do Estado. Ocorre o processo de “classificação” indígena de acordo com o grau de relacionamento com a sociedade brasileira, denominados como: “grupos nômades”, “aldeados ou arrancados”, “incorporados a centros agrícolas”, e reunidos em povoações indígenas. Índios incorporados à sociedade ou em centros agrícolas são responsáveis por seus atos. (Gomes, 2012, p. 95-96) A Constituição de 1934 apresenta pela primeira vez na história brasilei- ra, e ainda de forma pontual, um artigo referente favorável à não alienação de suas terras: “[...] será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las” (Gomes, 2012, p. 96). No tópico que segue são apresentadas as mudanças conceituais sobre terras indígenas no sistema normativo brasileiro. Essas mudanças ocorrem a partir da ampliação da organização política de órgãos de defesa e alargamento da formação política e organização dos próprios indígenas. 489Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 2. A questão do direito indígena à terra no sistema normativo brasileiro Antes das décadas de 1970-1980 foram se ampliando e reafirmando leis voltadas para a definição e proteção das terras indígenas, mas ainda pre- valecia a ideia integracionista de nacionalização e incorporação dos índios (essa era a meta principal do órgão indigenista).6 A Constituição de 1937, no artigo 154, definia: “Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter per- manente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das mesmas”. Nos termos da Constituição de 1946, artigo 216: “Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não se transferirem”. No decorrer do século XX modificam-se as definições formais por den- tro da legislação do que são “terras indígenas”, formas e tempo de “ocupação” (ocupação permanente, modo tradicional de ocupação, tempo de ocupação). Mudanças que passam a definir as ações do Estado brasileiro voltadas para a demarcação das terras indígenas e definição legal e institucional das formas de proteção, dos limites e controle dos territórios. Gradativamente, amplia-se na sociedade brasileira o “sentimento de responsabilidade histórica do Estado brasileiro para com os índios” e o anseio de superar a condição de tutela e de objeto do Estado, construindo autonomia e atenção básica aos seus territórios. Esse sentimento entra em confronto com a nova realidade construída na trama do poder instituído pelo golpe militar de 1964. Em meio aos retrocessos e violências próprias do regime militar que se instala no Brasil a partir de 1964, ocorrem diversas denúncias internacionais 6. O Decreto n. 736, de 6 de abril de 1936, estabelece que “os índios devem ser nacionalizados para serem incorporados à sociedade brasileira e define as terras indígenas como ‘aquelas em que presentemente vivem e já primariamente habitavam e são necessárias para o meio de vida compatível com o seu estado social: caça, pesca, indústria extrativa, lavoura ou criação; aquelas que já lhes tenham sido ou venham ser reservadas para seu uso ou reconhecidas como de sua propriedade a qualquer título’” (Gomes, 2012, p. 96). 490 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 das torturas e massacres realizados contra índios brasileiros, além de crimes de responsabilidade administrativa atribuídos ao SPI, situação que leva à extinção do órgão (Gomes, 2012, p. 100-101). No cenário ideológico do “desenvolvimento com segurança” foi criada, em 5 de dezembro de 1967, a Fundação Nacional do Índio (Funai) com a missão precisa de transformar o índio em brasileiro, permitindo que “evo- luísse” rapidamente: “[...] integrá-los à nação e assimilá-los culturalmente ao seu povo em um processo acelerado”, nas palavras de Gomes (2012). Na conjuntura, a Constituição de 1967 trouxe mudanças e retrocessos jurídicos e políticos. Segundo Gomes (2012), na conceituação sobre terras indígenas que passam a ser da União e para os índios, restou a posse exclusiva e a inalienabilidade. No entanto, a nova definição favoreceu o processo de demarcação das terras indígenas. Em 1973, foi aprovado o Estatuto do Índio, a Lei n. 6.001, de 19 de dezembro desse mesmo ano.7 A referida lei regulamenta aspectos jurídico- -administrativos e determina a condição social e política do índio perante a nação, tratando da definição de terras indígenas e processos de regularização fundiária e estipulando medidas de assistência e promoção dos povos indí- genas como indivíduos.8 O Estatuto do Índio atribui à Funai a “responsabi- lidade de único agente responsável pela definiçãodo que é terra indígena e pela demarcação em todas as ‘etapas’. O ato final de homologação fica sob a prerrogativa do presidente da república” (Gomes, 2012). A Funai, como o principal órgão do Estado voltado para as demandas de proteção aos direitos indígenas, tem se tornado o centro das grandes tensões e investidas do pensa- mento conservador brasileiro que tenta ressuscitar as visões integracionistas e assimilacionistas sobre os povos indígenas. 7. De acordo com o Estatuto, “índio ou silvícola é todo indivíduo de origem e ascendência pré-colom- biana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional”. E no seu art. 19: “As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo”. 8. Gomes, 2012, p. 102. 491Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 2.1. A luta pela terra e afirmações constitucionais dos direitos indígenas no Brasil As décadas de 1970 e 1980 foram momentos marcantes em termos de espraiamento de retrocessos na interpretação da condição de vida dos po- vos indígenas e nas condições de trabalho do principal órgão de proteção, reconfigurado e enfraquecido pelo regime civil militar. Foi também um período de forte ebulição dos movimentos sociais na realidade brasileira, o que possibilitou denúncias e críticas sobre a atuação estatal. Naquele momento de redemocratização do país ocorreu uma ampliação dos debates sobre a “questão indígena” através da mobilização de organizações que defendiam as causas indígenas, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da própria organização política crescente dos índios em favor dos seus direitos com a criação de associações indígenas em diversas partes do Brasil (Gomes, 2012, p. 109). O artigo 172, inciso IX, do Estatuto do Índio (1973), passa a afirmar: Cumpre à União, aos estados e aos municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos: garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes. Com a abertura política no país e a força participativa dos movimentos em favor da Constituinte, a questão indígena passa a ganhar mais espaço na agenda política brasileira no sentido de reverter o quadro de retrocessos legais. De acordo com o documento do Conselho Federal de Serviço Social, o “CFESS Manifesta” de 2012, a questão indígena também ganha maior visibilidade em termos de avanços normativos pela significativa atuação do movimento indígena, que ganha força no período da redemocratização política do Brasil pós-1980. 492 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 As reivindicações indígenas foram contempladas em grande parte na Cons- tituição brasileira de 1988, concentradas no Capítulo VII, artigos 231 e 232. Legalmente, os/as índios/as são reconhecidos/as no seu modo de vida, quanto às suas formas de organização, costumes, línguas, crenças e tradições, e são assegurados os direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas por eles/as. Rompeu-se a perspectiva da integração desses povos à sociedade nacional. (CFESS, 2012, p. 2) A Constituição federal apresenta mudanças significativas no que se refere à orientação da ação do Estado, reformulando os seus mecanismos de ações voltadas aos povos indígenas.9 Conforme Baniwa (2012), na década de 1970 emerge um movimento pan-indígena que ganhou ampla dimensão no continente latino-americano e conquistou direitos constitucionais nas décadas de 1980 e 1990 — defesa do direito à particularidade e à diversidade e denúncia das injustiças étnicas. No Brasil, com a aprovação da Constituição de 1988, a ideologia da unicidade do Estado se afirma como coisa do passado. A Carta Magna mudou, em termos legais, significativamente a inter- pretação jurídico-social dos povos indígenas no país. Como afirma Baniwa, a Carta Magna supera a concepção de tutela, reconhecendo a capacidade civil dos índios; abandona o pressuposto integracionista, em favor do re- conhecimento do direito à diferença sociocultural dos povos indígenas, na linha do multiculturalismo contemporâneo; reconhece a autonomia societária dos povos indígenas, garantindo para isso o direito ao território, à cultura, à educação, à saúde, ao desenvolvimento econômico, de acordo com seus projetos coletivos presentes e futuros; reconhece o direito à cidadania híbrida: étnica, nacional e global (Baniwa, 2012, p. 207). A principal demanda da vida indígena, a terra, é apresentada como condição fundamental para a continuidade da vida e da saúde, a reprodução 9. No que se refere ao conceito de “terras indígenas”, a CF de 1988, no parágrafo 1º de seu artigo 231 define: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. 493Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 social, sua autodeterminação e seu etnodesenvolvimento. De acordo com a Constituição Federal de 1988,10 nos termos da Funai (2016): Terra Indígena (TI) é uma porção do território nacional, de propriedade da União, habitada por um ou mais povos indígenas, por ele(s) utilizada para suas atividades produtivas, imprescindível à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e necessária à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Trata-se de um tipo específico de posse, de natureza originária e coletiva, que não se confunde com o conceito civilista de propriedade privada. São mudanças significativas que possibilitam visualizar novos horizon- tes para os povos indígenas no enfrentamento cotidiano dos seus desafios diante da possibilidade do respeito à diferença e reais necessidades para sua continuidade humana e social. No início deste século XXI, acompanhamos avanços nos debates sobre o fenômeno da “indianidade” e em favor da política da diferença. Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desen- volvimento econômico, social e cultural (Artigo 3) [...] Os povos e indivíduos indígenas têm direito a não sofrer assimilação forçada ou a destruição de sua cultura (Artigo 81). (Nações Unidas, 200811) Entramos em um momento histórico de afirmação, no plano político, de uma nação pluriétnica, de rejeição das ideias evolucionistas, da busca pela garantia da legitimação de diferenças internas, garantias de direitos territo- riais e repercussão desses avanços para as políticas indigenistas e indígenas (que possam envolver a participação efetiva dos povos em questão). Porém, 10. Ainda no parágrafo § 2º: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. 11. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, 2008. 494 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 esses avanços estão em confronto com a realidade da sociedade brasileira, como analisaremos no próximo tópico. 2.2. Direitos humanos dos povos indígenas: as contradições do fenômeno jurídico na sociabilidade burguesa A realidade contemporânea e as demandas vitais próprias dos povos originários são muito complexas e dinâmicas. Um sistema jurídico normativo não dá conta deincorporar as demandas das diversas formas de organização social. Porém os povos indígenas e sua singularidade estão sob as determina- ções dessa dimensão da vida: o fenômeno jurídico da sociabilidade burguesa e suas formas de controle e regulação da vida social. Tratar do “direito à terra” e da necessidade da demarcação das terras indígenas frente às ameaças da apropriação capitalista do campo é tratar do desenvolvimento concreto da singularidade indígena e sua interlocução com o complexo social total: como um ser social. As populações originárias nativas foram engolidas (e dizimadas) du- rante todo o período colonial pela imposição de um novo sistema de vida. A própria construção de uma identidade nacional, de um poder estatal na realidade brasileira, coloca os indígenas numa condição radicalmente peri- férica, subalterna, para obedecer e se enquadrar efetivamente no sistema de normas que se refere à sua própria vida. Neste tópico, não é possível dar conta da complexidade da análise sobre o direito por dentro das contradições do sistema jurídico capitalista burguês. Há uma tentativa de breves aproximações sobre a luta, na sociedade de clas- ses, para garantia dos direitos básicos para a preservação da vida indígena. De acordo com Sartori (nos seus estudos lukacsianos), o direito como sistema de normatividade contém uma essência classista. Envolve media- ções de classes sociais, linguagem, divisão do trabalho e cotidiano. Nesse caso, para Sartori, o domínio de uma classe sobre a outra, como processo contraditório, nunca pode ser total. Significa dizer que a própria dinâmica 495Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 social permite, em circunstâncias favoráveis, mudanças que respondam aos interesses das classes não dominantes, atendendo a interesses particulares. Desse modo, “o direito é uma mediação que se interpõe entre o domínio direto e os conflitos entre as diversas classes sociais com interesses diversos” (Sartori, 2010, p. 80). Ainda conforme Sartori, o direito como fenômeno jurídico atua a partir de uma função homogeneizadora: “a vontade da lei, aparentemente unitária, surge de compromissos entre atores cuja função é contraditória nos confli- tos oriundos da sociedade civil-burguesa”. Sartori, citando Lukács afirma: “[...] quanto mais a vida social se faz social, tanto mais nítida se torna tal homogeneidade” (2010, p. 80). E continua: O Direito visa alcançar o maior número possível de condutas [...] e é inerente à sua forma buscar a totalidade da sociedade, colocando sobre o mesmo con- junto de normas os diversos indivíduos singulares [...] a própria legalidade da sociedade civil-burguesa, pois não deixa de ser uma imposição que avilta a personalidade dos indivíduos e tenta reprimir a mediação da particularidade, a qual se interpõe entre o singular e o universal. (p. 81). Ao afirmar que “a totalização homogeneizante do fenômeno jurídico não é uma mera ilusão”, Sartori (2010) apresenta indicativos interessantes para refletir sobre a importância da luta indígena no seio contraditório da sociabilidade capitalista. É uma luta constante em favor da proteção de sub- sistemas diferenciados de organização da vida social e reprodução humana, como o caso da resistência das populações indígenas ribeirinhas, pesqueiras, que vivem artesanalmente dos recursos naturais da mata para garantir sua reprodução social. Como nos lembra Sartori (2010, p. 82): O próprio complexo que prima pelos valores individualistas, em seu desenvol- vimento real, subsume o indivíduo a uma categoria geral e niveladora [...] o indivíduo singular, assim, é colocado frente às normas universais de maneira abrupta; o que gera uma contradição que marca a forma de sociabilidade inerente à sociedade civil-burguesa. 496 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 Para Sartori, o fenômeno jurídico, porém, continua ligado à dominação de uma classe social exercida, sempre que preciso, por meio da violência. O direito, assim, se configura como uma mediação que atenua a dominação direta, mesmo a pressupondo, mantendo. Dando continuidade à análise do direito como complexo contraditório, também contamos com a contribuição de Mészáros para a interpretação marxista dos problemas da “esfera legal”. O texto do autor dá atenção à concepção de direitos humanos, seus limites e possibilidades. A recuperação da trajetória histórica das mudanças legais dos direitos indígenas no decorrer da história do Brasil apresentadas neste artigo não propõe uma visão legalista do tema. Como afirma Mészáros (2008, p. 162), “nada se resolve apenas pela proclamação de direitos, nem mesmo pelo mais solene dos direitos do homem. A esfera legal se torna eficaz na medida em que se introduz profundamente no corpo da ‘sociedade civil’”. Prossegue o autor (p. 163): A “ilusão jurídica” é uma ilusão não porque afirma o impacto das ideias legais sobre os processos materiais, mas porque o faz ignorando as mediações ma- teriais necessárias que tornam esse impacto totalmente possível. As leis não emanam simplesmente da “vontade livre dos indivíduos”, mas do processo total da vida e das realidades institucionais do desenvolvimento social dinâmi- co, dos quais as determinações volitivas dos indivíduos são parte integrante. As leis contemporâneas voltadas à proteção das demandas e necessida- des próprias dos povos indígenas são resultado de muita luta, organização dos próprios indígenas e articulação com os órgãos que atuam em sua defesa. Também estão constantemente ameaçados porque entram em confronto com os processos materiais, com a realidade econômica dos empreendimentos capitalistas de exploração dos recursos naturais que ainda estão nas mãos dos povos originários. Essa tensão atinge toda a classe trabalhadora porque ela se volta contra os trabalhadores do campo, contra as próprias formas de vida marcadas pela produção e reprodução da vida em conexões diretas com a natureza. 497Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 Não haverá emancipação humana dos povos indígenas por dentro do sistema capitalista, nem por dentro da divisão entre trabalhadores do campo, rurais e povos originários porque a massa de trabalhadores expropriados compõe toda a classe trabalhadora. Como lembra Mészáros (2008, p. 168): “[...] enquanto estivermos onde estamos, e enquanto o ‘livre desenvolvimento das individualidades’ estiver tão distante de nós como está, a realização dos direitos humanos é e permanece uma questão de alta relevância para todos os socialistas”. 3. Considerações finais A situação contemporânea dos processos de demarcação das terras indígenas encontra-se no centro de grandes ameaças e pressões da bancada ruralista no Congresso Nacional brasileiro. Além das propostas e investidas relacionadas à reestruturação da Funai (sucateamento, terceirizações, nomea- ções de militares para presidência), persistem propostas de mudanças signi- ficativas nos processos de demarcação de terra e códigos que regulamentam a exploração de recursos naturais no território brasileiro por parlamentares conservadores da direita representantes do agronegócio. É o caso das propos- tas de leis que tramitam no Congresso Nacional que visam extinguir direitos indígenas já conquistados, ou “modificar (dificultar) e criar possibilidades para a exploração dessas áreas por não indígenas” (ISA, 2016).12 Atualmente existem 462 terras indígenas regularizadas que representam cerca de 12,2% do território nacional, localizadas em todos os biomas, com concentração na Amazônia Legal (distribuídas da seguinte forma: 10% no 12. Podemos destacar: “[...] a retirada do Poder Executivo, a função de agente demarcador das terras indígenas ao incluir entre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e a ratificação das demarcações já homologadas. Deputados e senadores teriam o poder,inclusive, de rever e reverter demarcações antigas ou já encerradas” (ISA, 2010). 498 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 Sul, 6% no Sudeste, 54% no Norte, 11% no Nordeste, e 19% no Centro- -Oeste do país) (Funai, 2016). A demarcação das terras indígenas é muito importante, pois possibilita para os indígenas a segurança de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica, como prevê a legislação. As condições de continuidade da vida indígena envolvem uma lista in- findável de ameaças, tanto para os povos que vivem nas florestas como para os que vivem na caatinga sertaneja, dos ribeirinhos do sertão aos litorâneos, que passam a assumir vida de migrantes, adentrando nas filas do proletariado urbano ou nos bolsões de pobreza das grandes cidades. Documentos como “O dossiê Belo Monte — Não há condições para a licença de operação”, organizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e publicado em junho de 2015 (que denuncia os riscos para as populações indígenas ribeirinhas com o início do enchimento dos reservatórios da usina hidrelétrica de Belo Monte, situada na região de Altamira, PA e com o desvio definitivo do rio Xingu para que parte da usina comece a operar) e o relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil — dados de 2015”, elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário, são reveladores das condições aviltantes impostas aos povos indígenas brasileiros.13 Embora reconheçamos a impossibilidade da norma, de a lei transformar a vida concreta, por reconhecer os limites da igualdade formal, e da função social do sistema jurídico na sociedade capitalista, é importante destacar o avanço normativo que trata dos direitos dos povos indígenas no Brasil. A aceitação social de que as terras indígenas são “direitos originários”, ou seja, antecedem a criação do próprio Estado brasileiro, é fundamental para 13. O relatório do Cimi (2015) apresenta dados nacionais sobre as diversas formas de violência sofridas pelos povos indígenas brasileiros: violência contra o Patrimônio (omissão e morosidade na regularização de terras, conflitos relativos a direitos territoriais, invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio); violência contra a pessoa (assassinatos, tentativa de assassinato, homicídio culposo, ameaça de morte, lesões corporais dolosas, abuso de poder, racismo e discriminação étnico cultural, violência); violência por omissão do Poder Público (suicídio, desassistência na área de saúde, morte por desassistência à saúde; mortalidade infantil, disseminação de bebida alcoólica e outras drogas, desassistência na área de educação escolar indígena; desassistência geral). 499Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 480-500, set./dez. 2018 os processos de demarcação, considerando as pressões constantes do grande capital através do agronegócio que amplia os processos de expropriação dos povos indígenas de suas terras. Enquanto vivemos sob as determinações do sistema capitalista, as con- quistas políticas e constitucionais dos povos originários ainda atuarão de forma significativa para garantir estratégias de proteção da vida dos nossos povos. Recebido em 15/4/17 ■ Aprovado em 27/2/18 Referências bibliográficas ALMEIDA, Maria Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. BANIWA, Gersem. A conquista da cidadania indígena e o fantasma da tutela no Brasil contemporâneo. In: RAMOS, Alcida Rita. Constituições nacionais e povos indígenas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. BRASIL. Lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. CALDART, Roseli Salete et al. (Orgs.). Dicionário da educação do campo. 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E-mail: elicardosoaraujo17@gmail.com Este é um artigo de acesso aberto distribuído nos termos de licença Creative Commons. 501Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 501-514, set./dez. 2018 http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.156 Etnias amazônicas: confrontos culturais e intercorrências no campo jurídico Amazon ethnics: cultural confronts and intercorrences in the legal field Joaquina Barataa RESUMO: O artigo trata da relação jurídica entre a ordem legal oficial brasileira e as não oficiais, surgidas do confronto entre a sociedade nacional e as etnias indígenas do território pátrio. No interior dessa conflituosa relação, o pluralismo jurídico, entendido como a coexistência de dois ou mais sistemas jurídicos, surge, a partir da Constituição brasileira de 1988. Não obstante os avanços, o plu- ralismo não tem dado conta de assegurar às etnias indígenas da Amazônia a garantia de seus direitos. Palavras-chave: Etnias indígenas. Pluralismo jurídico. Constituição Federal de 1988. ABSTRACT: The article deals with the legal relationship between the official Brazilian legal order and the unofficial ones, arising from the confrontation between the national society and the indigenous ethnic groups of the country. Within this conflictive relationship, legal Pluralism, understood as the coexistence of two or more legal systems that are effective, concomitantly in the same space-time, arises, starting from the Brazilian Constitution of 1988. Despite the constitutional advances, the underlying pluralism, has not taken into account the assurance to the indigenous peoples of the Amazon of the guarantee of their rights. Keywords: Indigenous groups. Legal pluralism. Federal Constitution of 1988. Introdução Sabe-se que Estados republicanos possuem ordenamentos jurídicos que regulam a vida em uma sociedade determinada. A História, en- tretanto, demonstra a convivência de vários ordenamentos jurídicos em nações que promoveram ou promovem sua expansão subsumindo ou- tras nações, outras etnias, outras culturas, criando situações de convívio de várias referências para a vida social no campo das normas e dos princípios que regem a sociedade. aPesquisadora autônoma, Belém-PA, Brasil. 502 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 501-514, set./dez. 2018 Registros históricos indicam asconquistas do Império Romano, bem como seu esfacelamento decorrente das invasões bárbaras, como fatos que ensejaram inevitáveis intercâmbios culturais. A colonização também promoveu situações de choque cultural, no campo dos direitos, entre colonizados e colonizadores. É o caso da América do Norte, da América Latina e do Brasil (só para falar no continente americano). São territórios em que, antes dos “descobrimentos”, já habitavam, há mais de 10 mil anos, uma pluralidade de etnias indígenas. A mundialização do capital, a partir do século XX, também traz situações que, por sua vez, reivindicam amparos legais e criam certa onda de “pluralismo jurídico”. “Pluralismo jurídico” e “monismo jurídico” opõem-se no plano conceitual e no plano fático. O monismo jurídico, que teria predominado após a Revolução Francesa, sustentava-se na crença de que somente o ordenamento jurídico estatal seria dotado de eficácia. Princípios e valores sociais de outras etnias não eram considerados porque esse ordenamento não concebia outras ordens jurídicas no mesmo espaço/tempo. Tal con- cepção, entretanto, gradativamente relativizou-se na dinâmica histórica de processos de dominação, de intercâmbio, de movimento de migrações e de internacionalização do capital. O pluralismo jurídico, portanto, surge da existência de dois ou mais sistemas jurídicos, dotados de eficácia, concomitantemente em um mesmo espaço-tempo. Neste artigo será tratada a relação entre a ordem legal oficial brasileira e as não oficiais, surgidas do confronto entre a sociedade nacional e as etnias indígenas do território pátrio, mais especificamente as situadas no território amazônico. Observações de campo em territórios indígenas que comparecem neste artigo foram obtidas a partir de: a) Pesquisas empreendidas em áreas indígenas do Alto Rio Negro, estado do Amazonas, entre 1975 e 1979. b) Pesquisa realizada em área indígena no município de Oiapoque (mesmo período). c) Pesquisa realizada na área indígena Munduruku – sudoeste do Pará (mesmo período). d) Visita empreendida na área indígena Tembé, em 1995. 503Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 501-514, set./dez. 2018 As informações foram contidas em relatório oficial do setor de estudos da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) – 1979, e subsidiaram uma dissertação de mestrado do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea) da Universidade Federal do Pará (UFPA) em 1984. Pluralismo jurídico e direito de minorias na Constituição Federal de 1988 O direito estatal revelou-se na história do Brasil insuficiente e incom- pleto para regular a vida social de um país que se originou de uma invasão e da conquista territorial de extensa área originalmente ocupada por uma pluralidade de etnias indígenas. Além disso, após o chamado “descobrimen- to”, grande quantidade de migrantes, de início escravizados e mais tarde oficialmente libertos, originados do continente africano, passaram também a compor a riqueza étnica do país. Para Sánches Rúbio (in Wolkmer et al., 2010), tal insuficiência do direito estatal poderia ser suprida com a “oficialização” de outras práticas jurídicas provindas de fontes de direitos que não se reduzam ao Estado. Ao oficializar tal pluralidade, outras práticas sociais, outros valores e princípios passariam a coexistir no âmbito do direito estatal. Tratar-se-ia, todavia, de uma ofi- cialização que não coloca os distintos sistemas jurídicos em contradição; ao contrário, tendem, ao menos no plano da lei, a se harmonizar. O direito estatal deixaria, então, de ser excludente e passaria a incluir outras fontes de direito. Estar-se-ia, aí, no campo de um “pluralismo jurídico”. O pluralismo jurídico traria duas grandes vantagens segundo o autor: a) os distintos sistemas normativos tornar-se-iam visíveis conceitualmente e b) os sistemas subsumidos no plano das relações reais passariam a ser legalizados, e não criminalizados. O debate em torno do tema examina várias situações de interpenetração de diferentes ordenamentos legais (formais ou não) e chega a identificar diferentes abordagens do pluralismo jurídico. Vale destacar as mencionadas por Sabadell (2000, p.119): 504 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 501-514, set./dez. 2018 a) a questão da interlegalidade; b) a ordem internacional; c) a abordagem das sociedades multiculturais – direitos de minorias. No que se refere à abordagem das sociedades multiculturais – forma- lizada no Brasil como direitos de minorias (assunto deste artigo), parece ter validade a afirmação de Tamanaha (2008), quando afirma haver grande indefinição no conceito de pluralismo jurídico. Dissensos manifestar-se-iam em várias áreas e começariam pela ausência de consenso acerca do que é “direito” e quais regras deveriam ser absorvidas na instrumentalidade estatal. Na verdade, é mais do que uma “indefinição”. Trata-se de grandes oposições no seio das formas de sociedade em convivência, que suscitam interrogar-se: o pluralismo jurídico dá conta de diferenças substantivas entre distintas ordens sociais no plano estrutural e superestrutural? A questão aqui tem como referência: identidades, valores, princípios e costumes, como se observa na relação entre as etnias e a sociedade nacional em confronto na Amazônia. Mapeando tais diferenças, tem-se o quadro a seguir: Etnias indígenas e sociedade nacional: diferenças e oposições estruturais e superestruturais Identidade, valores e costumes das etnias indígenas Identidade, valores, princípios e costumes da sociedade nacional Relações de produção preservam a igualdade social. Não há classes sociais em formato piramidal. A desigualdade social é generalizada e tem sua base na divisão social do trabalho das relações de produção capitalistas, de onde emanam as classes sociais dominantes e subalternas. Não há a propriedade privada da terra. As comunidades apropriam-se livremente dela pelo trabalho. Posse comunal. A propriedade privada é assegurada na Constituição. Inexistência de sistemas penais privativos de liberdade. Sistemas penais privativos de liberdade. Gestão social pelo Conselho de anciãos. Sociedade sem Estado. Gestão estatal da sociedade (Legislativo, Executivo e Judiciário). Sistema de parentesco (família extensa). Prevalência da família nuclear. 505Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 501-514, set./dez. 2018 São diferenças substantivas entre dois processos de produção radical- mente distintos, cujas identidades advêm de seus peculiares processos de trabalho e apropriação social. O modo de apropriação da natureza para a reprodução das sociedades indígenas conjuga de forma coerente a apropriação coletiva, livre, direta e natural da terra e dos meios de trabalho com os chamados elementos superestruturais que se manifestam nos valores e normas que regulam o processo de troca, de distribuição e consumo das famílias extensas. Qualquer que seja a etnia, qualquer que seja a variação cultural, os dados da observação direta constatam a forma cooperativa como ainda se articulam em muitas etnias, o processo de trabalho que intervém na natureza, com a apropriação livre de seu pré-requisito (objetos e instrumentos de trabalho). Tal processo envolve os membros ativos das etnias sem distinção, inclusive os sacerdotes (pajés, xamãs, caciques, tuxauas). A apropriação natural e livre dos meios de produção (pelo trabalho) e a “comunidade” no seio da qual estruturam-se internamente relações sociais igualitárias ainda são combinações percebidas na observação das etnias cuja estrutura produtiva não tenha sofrido significativas alterações na convivência com a sociedade nacional. Quer no Alto Içana e Uaupés (formadores do rio Negro – estado do Amazonas), onde foram observadas oito etnias em 1976, quer no Alto Tapajós, onde foi observada a etnia Munduruku em 1978, quer no Oiapoque, quando em contato com os Palikur, Garibi e Karipuna, em 1978, ainda foi possível perceber essa original forma de relação livrecom a natureza e de convivência produtiva e social sem dominação interna, especialmente nos grupos mais isolados, apesar de tratar-se de etnias já pressionadas há longos anos em sua cultura e organização pelas investidas da catequese (qualquer que seja o credo), do mercado e da propriedade privada. Não obstante a presença da mercadoria, que é um dos tentáculos da produção capitalista em áreas indígenas, consubstanciada nos produtos que refletem maior dependência dos indígenas à sociedade nacional, não obs- tante a produção de excedentes, que é a forma de transformar a tradicional 506 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 501-514, set./dez. 2018 produção local em valores de troca para o mercado, a estrutura produtiva mantém certa originalidade, evidenciada no livre acesso aos recursos da natureza, bem como no trabalho cooperativo, sustentáculos essenciais do processo de produção das etnias. Conforme essa estrutura, assenta-se o relacionamento dos indivíduos e o modo específico de trabalho, “que é sempre trabalho familiar e muitas vezes comunal” (Marx, 1977, p. 89). Etnias indígenas e sociedade nacional Não obstante a subsunção dos indígenas à sociedade nacional nos longos anos da conquista, com a extinção de várias etnias, em algumas áreas parece não ter sido abrupta a transformação do modo de produção, nem automáti- ca e mecânica a desarticulação da forma de sociedade, mesmo que em seu conteúdo tenha ocorrido grandes mudanças. No Alto Içana, por exemplo, os grupos étnicos sofrem investidas há mais de trezentos anos em sua reli- giosidade original e conformação cultural. Lá, atualmente, a influência dos evangélicos é bastante acentuada, tendo acabado por expurgar oficialmente as figuras sagradas da tradição cultural, sendo as sessões de oração e cânticos centradas agora em torno da Bíblia, traduzida por missionários estrangeiros para a língua baniwa ou nyengatu. As chefias têm presentemente, entre suas novas funções, as de “pastor”. Todavia, no que toca às relações de produção, face não se ter dado a separação da etnia dos meios de produção, elementos da forma de sociedade original são reproduzidos. É importante notar que no dia 5/8/1976 o “chefe” da etnia baniwa de nome Virgílio, então “capitão” e “pastor” do povoado denominado Taiçu- cãoeira, a pedido da equipe de pesquisa recusou-se, de forma cortês, a cantar e dançar com o seu grupo antigas canções e danças da tradição baniwa, por considerar “pecado” e, caso praticadas, “as coisas passariam a não dar certo na vida do povoado”. Apresentariam à equipe, caso quisessem, “cânticos protestantes, pois só traziam benefícios”. O mesmo observou-se quanto 507Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 501-514, set./dez. 2018 ao ritual denominado Dabukuri, extinto das práticas rituais da aldeia por constituir “pecado”. Apesar dessas alterações na consciência religiosa, os Baniwa continua- vam até então suas práticas de trabalho cooperativo, sua relação livre com a natureza, bem como sua vida comunitária. Pode-se desconfiar, contudo, que tais transformações vêm como suporte para mudanças mais radicais no plano das relações materiais. O trabalho catequético de qualquer credo em áreas indígenas na Amazônia parece ter sido uma estratégia de penetração de outra ordem social e econômica. De fato, nos povoados mais próximos ao município denominado São Gabriel da Cachoeira, encontramos índios “aculturados”, isolados em famí- lias nucleares, proprietários privados de fazendas, com atividades comple- mentares de comércio de mercadorias e transportes de produtos, enquanto outros serviam como força de trabalho assalariada, o que demonstra nem sempre o índio tem sua inserção na sociedade capitalista pelo estrato mais baixo da estrutura social. Direitos indígenas na Constituição de 1988 e pluralismo jurídico São amplamente reconhecidos os avanços que a Constituição brasileira de 1988 inaugurou com respeito aos povos indígenas. Pela primeira vez lhes foi assegurado, em âmbito jurídico, o direito à diferença; isto é, de serem índios e de permanecerem como tal. Eis o que afirma o caput do artigo 231 da Constituição: São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, cren- ças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. É importante notar que a nova Constituição estabelece que os direitos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam são de natureza 508 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 501-514, set./dez. 2018 originária, isto é, são anteriores à formação do próprio Estado, existindo independentemente de qualquer reconhecimento oficial. Vide o parágrafo 1º do artigo 231: São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios(as) por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as impres- cindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Entende-se, pelo conteúdo desse artigo 231, que a demarcação de uma terra indígena, fruto do reconhecimento feito pelo Estado, deveria ser ato me- ramente declaratório, cujo objetivo seria apenas identificar com precisão a real extensão da posse para assegurar a plena eficácia do dispositivo constitucional. No que se refere às terras indígenas, a Constituição de 1988 ainda estabelece, entre outros dispositivos, os seguintes: • São nulos e extintos todos os atos jurídicos que afetem essa posse, salvo relevante interesse público da União (art. 231, § 6). • Apenas os índios podem usufruir das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (art. 231, § 2). • O aproveitamento dos seus recursos hídricos, aí incluídos os poten- ciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, só pode ser efetivado com a autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados da lavra (art. 231, § 3, art. 49, XVI). • É necessária lei ordinária que fixe as condições específicas para exploração mineral e de recursos hídricos nas terras indígenas (art. 176, § 1). • As terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis, e o direito sobre elas é imprescritível (art. 231, § 4). • É vedado remover os índios de suas terras, salvo casos excepcionais e temporários (art. 231, § 5). 509Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 501-514, set./dez. 2018 Assim, como qualquer pessoa física ou jurídica no Brasil, as etnias passaram a ganhar legitimidade para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses. O pluralismo jurídico parece estar contido na letra da lei, mas a realidade social enseja questionar-se o alcance desse avanço constitucional, haja vista que nas Disposições Constitucionais Transitórias fixou-se em cinco anos o prazo para que todas as terras indígenas no Brasil fossem demarcadas, e o prazo não se cumpriu. As demarcações ainda são um assunto pendente. Não se pode esquecer, também, o embate de repercussão nacional em que fazen- deiros e produtores rurais, instalados na reserva indígena Raposa Serra do Sol, queriam assegurar, ali, propriedades privadas consolidadas juridicamente. Conflito jurídico: área indígena Raposa Serra do Sol O mencionado “pluralismo jurídico” que deveria pacificar o usufruto dos direitos indígenas aos seus territórios tradicionais não eliminou a polê- mica da velha tradição. E polêmicas no próprio campo jurídico estiveram fortemente presentes no conflito envolvendo a área indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, no ano de 2008, em que interesses de grandes proprie- tários tentaram sobrepor-se à lei e aos direitos das etnias, não obstante as garantias constitucionais, o que levou Ricardo de Holanda Janesch (2008) a afirmar: “Não raro se vê, destarte, injustiças e absurdos jurídicos legitimando os desígnios dos coronéis”. Envolvidosno conflito, estavam, de um lado, os arrozeiros e o governo do estado de Roraima, e de outro lado as etnias, a Funai, os antropólogos e as ONGs que atuavam na área. O histórico resumido do conflito aponta que em 1917 o território lo- calizado entre os rios Surumu e Cotingo fora destinado, pela Lei Estadual n. 941 do então estado do Amazonas (a que pertencia Roraima à época), à ocupação e usufruto das etnias Macuxi e Jaricuna. Contestações foram sur- gindo desde 1977 contra a reserva ou ao seu tamanho, rebatendo no plano 510 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 501-514, set./dez. 2018 estatal. Estranhamente, no ano de 1996, o então Presidente Fernando Henri- que Cardoso deu garantia à possibilidade de contestação da demarcação da terra indígena. Após muitos embates, finalmente o presidente Lula assinou a homologação da reserva em 15/4/2005, já incluindo, além dos Macuxi e Jaricuna, os Ingarikó, Patamona, Taurepang e Wapixana. Os embates, toda- via, continuaram, até que em 2006 fazendeiros entram na justiça para tentar manter a posse de suas terras dentro da área demarcada da reserva, atrasando a desocupação da área. Em abril, o STF negou o pedido de suspensão da demarcação da Raposa Serra do Sol. Vale lembrar que, além da Constituição que estabelece o princípio da prevalência dos interesses indígenas, há o Estatuto do Índio, que busca complementar as eventuais lacunas deixadas pela Lex Magna. O pluralismo nos casos penais E como se apresenta o pluralismo jurídico quando diferenças radicais no plano das responsabilidades penais comparecem no convívio entre a sociedade nacional e as etnias indígenas, se, como se viu, nas sociedades indígenas inexistem sistemas penais privativos de liberdade? É conhecido o caso da comarca de Nova Xamantina (MT), em que o juiz determinou a soltura de um indígena que havia sido preso ao ser encontrado dormindo em um automóvel parado no meio de uma rodovia federal. A etnia Xavante, na região, reagiu ao fato, cercou o fórum da cidade e bloqueou a rodovia exigindo a libertação do índio. Interrogações várias surgiram, regis- tradas pelo desembargador federal aposentado Vladimir Passos de Freitas em 2013, tais como: Que fazer? Pode ser lavrado auto de prisão em flagrante? É necessária a presença de representante da Funai? Onde responderá o indígena por tal ato, na Justiça Federal? Estadual? Se condenado, onde e como cumprirá a pena? Salienta o desembargador que os indígenas, no âmbito penal, são tra- tados com base no Código de 1940, o qual não lhes teria feito referência 511Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 501-514, set./dez. 2018 explícita, do que se conclui que, nos termos do artigo 21, serão inimputáveis se forem inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Entretanto, o mesmo jurista reconhece mudanças recentes que vêm alterando esse quadro e trazendo novas dúvidas. Entre as mudanças, destaca as trazidas pela Constituição de 1988: Fruto desta evolução, os povos indígenas vêm se organizando, estão mais conscientes de seus direitos e os reivindicam, dentro de suas possibilidades. Alguns de seus membros passaram a dedicar-se ao estudo. É o caso de Vilmar Martins Moura Guarany, mestre em Direito pela PUC-PR, e de Joênia Batista de Carvalho, conhecida como Joênia Wapichana, com mestrado em Direito no James E. Rogers College of Law, na Universidade do Arizona, em Tucson, Estados Unidos. (Freitas, p. 1, 2013) Entre as dúvidas relacionadas a ocorrências criminais envolvendo in- dígenas, diz o autor haver uma zona nebulosa sobre como se deve proceder. No âmbito policial, menciona o risco de a autoridade policial ser acusada de arbítrio. Observa ainda que desde 1973 a Lei n. 6.015 (conhecida como Estatuto do Índio), dispõe no artigo 57: “Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções disciplinares contra os seus membros”, desde que fatos ocorram no interior da reserva. Fatos externos à reserva, como o de Mato Grosso, são decididos pelo Poder Judiciário. A competência não é da Justiça Federal, porque inexiste qualquer dispositivo constitucional ou processual penal que assim determine. Portanto, salvo caso de interesse indígena genérico (v.g., genocídio), a competência é da Justiça Estadual (STF, RE 419.528/PR, Pleno, j. 03.08.2006, rel. Min. Cézar Peluso). (Freitas, p. 12013). No caso da condenação de índio integrado, a execução da pena terá regras próprias, previstas no artigo 56, parágrafo único do Estatuto do Índio, que diz: 512 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 501-514, set./dez. 2018 As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado. Recomenda o jurista que “sempre que possível, a sanção corporal deverá ser evitada. A liberdade faz parte dos índios e na prisão tendem a isolar-se, muitas vezes adoecem” (Freitas, op. cit. p. única). Portanto, a execução, quando possível, “deve dar-se na própria aldeia a que pertencem e, se as circunstâncias recomendarem, em regime de semiliberdade sob controle de órgão que lhes dê assistência” (Freitas, op. cit, p. única). Considerações finais Parece não haver reciprocidade no chamado pluralismo jurídico quando normas, princípios e valores das sociedades subsumidas são ab- sorvidas de forma seletiva, especialmente das etnias que foram vitimizadas num injusto e indesejável processo de dominação. Intercorrências de toda ordem comparecem para perturbar essa relação juridicamente plural, mas não igualitária. Pesquisa da ONG denominada Centro de Trabalho Indigenista (CTI), realizada conjuntamente com a Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) no ano de 2006, analisou, em Mato Grosso do Sul, processos judiciais abertos contra indígenas. A pesquisa registra que “quase 100% desrespei- taram garantias previstas na Constituição Federal, no Estatuto do Índio e, principalmente, na convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) — da qual o Brasil é signatário”. Não obstante todas as garantias constitucionais, o Estado brasileiro não consegue conter a violência contra os povos indígenas, haja vista a ocorrên- cia de 118 assassinatos em 2016, segundo relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O relatório também aponta mortes por suicídio e causas diversas. Somente em 2017, 106 indígenas se suicidaram e 735 crianças 513Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 501-514, set./dez. 2018 indígenas menores de cinco anos morreram por causas diversas, como, por exemplo, em decorrência da desnutrição infantil. Em visita a um grupo da etnia Tembé, no Pará, por parte da Universi- dade Federal (UFPA) em 1995, observou-se que os indígenas sobreviviam pela ação assistencialista da Funai. O estado de saúde visível das crianças era de subnutrição. Isto porque sua reserva, da qual haviam sido expulsos por fazendeiros, e que lhes fora devolvida por ação Judicial da Funai, fora reduzida a uma extensa área de capim. Não havia uma árvore sequer. Um grande número de vítimas também foi registrado em Roraima, entre o povo Yanomami, que em 2016 contabilizou 59 mortes. Outras re- giões não estão isentas das violências. Mato Grosso do Sul, onde vivem os Guarani-Kaiowá, registrou dezoito mortes por agressões. No estado, é alto também o número de suicídios: trinta. “A gente tem observado, e os dados demonstram, um crescimento de todas as formas de violência contra os povos indígenas e seus direitos”, disse Cleber Buzatto, secretário executivo do Conselho Indigenista. Buzatto parece ter razão quando identifica um processo mais amplo de tentativa de desconstrução dos direitos consagrados pela Constituição Federal. Aponta que a bancada de parlamentares identificada como ruralista é responsável por essa movimentação, que “acaba se refletindo em ataques”. Como exemplodesse processo, cita a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 215, que propõe alterar a Carta Magna para transferir ao Congresso a decisão final sobre a demarcação das terras indígenas. E nesse Congresso, cuja maioria pertence a uma organização criminosa, não se pode confiar. Além disso, segundo Buzatto, “há um aumento dos discursos de incitação ao ódio e à violência”. Eis aí um tema que merece muita atenção de pesquisadores, de juristas e dos ministérios públicos, para que no futuro não se venha a chorar por perdas irreparáveis na história da Amazônia. Recebido em 31/1/18 ■ Aprovado em 20/6/18 514 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 501-514, set./dez. 2018 Referências bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 24. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2006. ______. Decreto de 15 de abril de 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Dnn/Dnn10495.htm>. Acesso em: 12 jan. 2018. ______. Estatuto do índio. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/quem/legislacao/ estatuto_indio.html>. Acesso em: 12 jan. 2018. BUZATTO, Cleber. Relatório do Cimi. Mato Grosso do Sul: Cimi, 2016. FREITAS. V. P. Responsabilidade penal dos indígenas é pouco discutida. Consultor Jurídico de 30/6/2013. Disponível em: <www.conjur.com.br>. Acesso em: 12 jan. 2018. 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Nota da autora Joaquina Barata — Professora aposentada de Serviço Social; mestre em Planejamento do Desenvolvimento; especialista em Administração Universitária; vice-presidente do CFESS (2002-2005). E-mail: Joaquina@ufpa.br Este é um artigo de acesso aberto distribuído nos termos de licença Creative Commons. 515Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.157 A luta contra as explorações/opressões, o debate étnico-racial e o trabalho do assistente social The fight against farms/oppressions, the ethnic-racial debate and the work of the social worker Márcia Campos Euricoa Resumo: O artigo explicita alguns aspectos da questão étnico-racial no contexto da sociedade brasileira na contemporaneidade e busca apreen- der como a intervenção protagonizada por várias mulheres negras, ativistas na luta contra o racismo, que ingressaram na profissão, principalmente a partir de 1980, legitima o debate efervescente na vida cotidiana. Apreender as assimetrias de raça/ cor e o modo como o racismo opera é condição primordial para a efetivação do Projeto Ético-Po- lítico do Serviço Social. Palavras-chave: Racismo institucional. População negra. Serviço Social. Abstract: The article clarifies some aspects of the ethnic-racial issue in the context of Brazilian society in contemporary and seeks to apprehend as the intervention starring by several black women, activists in the fight against racism, who entered the profession, mainly from 1980, legitimizes the debate, effervescent in everyday life. Apprehending the asymmetry of race/color and the way in which racism operates is a prime condition for the effective ethical-political project of Social services. Keywords: Institutional racism. Black population. Social Services. Diversas situações de violação dos direitos humanos são reproduzidas no miúdo da vida cotidiana brasileira, a exemplo das condições vexatórias em que sobrevivem parcelas significativas da população, sem acesso aos mínimos sociais, assistidas por políticas sociais fragmentadas, pontuais e focalizadas. Quando se entrecruzam as variáveis classe social, gênero, raça/etnia, a questão da miserabilidade afeta proporcionalmente mais homens e mulheres negras de todas as idades. aAssistente social no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Docente na Faculdade Paulista de Serviço Social (FAPSS). Professora substituta na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo-SP, Brasil. 516 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 A despeito da concretude das assimetrias de raça/cor no país, somos bombardeadas(os) com discursos e práticas que reatualizam o mito da de- mocracia racial e reivindicam o privilégio de classe, camuflado pela falácia da meritocracia. Há inclusive aqueles(as) que invocam o Artigo 5º da Cons- tituição Federal vigente para desqualificar lutas e conquistas importantes para o conjunto da sociedade, sob o argumento de que qualquer tratamento diferenciado fere o princípio de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. É fácil reivindicar mérito quando este é sinônimo de privilégio. Fácil levantar a bandeira do mérito quando a vida não está ameaçada de maneira diária, incessante e sem trégua por um Estado facista, racista e homofóbico. Os recentes acontecimentos reavivam em nós o status quo e a dor denunciada por exemplo pelas “Mães de Maio”, vozes femininas que insistem em afirmar que “os nossos mortos têm voz”. Aqui reverencio homens e mulheres de todas as idades que morreram pelas mãos do Estado brasileiro, pela fome, pobreza, acesso precário à saúde, à moradia, à segurança pública, pela cri- minalização dos pobres e dos movimentos sociais, pela ação desenfreada das milícias, entre tantas outras expressões violentas da questão social. Mortes que se universalizam nas figuras das Cláudias, Marieles, Luanas, Dandaras, Amarildos, Fabianes... Quero lembrar também o encarceramento em massa da população negra, de maneira tão emblemática quanto o aprisionamento e a condenação por convicção do jovem negro Rafael Braga. Este é o cenário que conforma a vida da maioria da população negra em um país que completará no próximo dia 13 de maio a marca de 130 anos de abolição da escravidão, sem que mudanças significativas tenham ocorrido na vida cotidiana. No próximo dia 15 de maio será a vez de o Serviço Social completar 82 anos de existência no país, e o material alusivo à data destaca que “Nossa escolha é a resistência: somos classe trabalhadora!”. Quero reafirmar que nosso compromisso com a classe trabalhadora precisa considerar necessariamente suas pautas universais, mas também apreender suas particularidades. Entre o universal e o particular se põe um campo de disputas onde certamente o pertencimento étnico-racial, a 517Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 identidade de gênero, a orientação sexual, o lugar ocupado na divisão social e técnica do trabalho revelam a diversidade humana, mas também acirram a desigualdade no interior da própria classe. Nas próximas linhas me ocuparei do debate acerca do racismo institu- cional e do quanto as(os) assistentes sociais podem no seu trabalho cotidiano reproduzir práticas racistas, ainda que de maneira abstrata e no campo das ideias reproduzam o discurso da luta contra todas as formas de opressão. Certamente esta é uma perspectiva radical, e é a partir dela que quero abrir o debate. O racismo no que se refere à população negra e aos povos indígenas está enraizado na sociedade brasileira, e as razões pelas quais ele se reatualiza cotidianamente são complexas e contraditórias. Logo, não existe uma única resposta para esta questão, posto que mergulhar nesse terrenoacidentado implica adentrar pelo campo da ideologia e da sua funcionalidade em cada período histórico, identificando os sistemas de privilégios dos grupos humanos que reivindicam para si um lugar de superioridade. O Serviço Social brasileiro enfrenta na década de 1980 os mesmos dilemas postos para a sociedade, no árduo processo de redemocratização do país. Do ponto de vista do debate acerca do racismo, o período também é emblemático, e o avanço da luta contra o preconceito e a discriminação étnico-racial, seja em âmbito nacional, seja internacionalmente, com certeza incide na profissão. Ora, se o Serviço Social é parte e expressão da socieda- de, a intervenção protagonizada por várias mulheres negras, militantes, que ingressaram na profissão tem grande impacto no sentido de ampliar o debate e exigir respostas institucionais acerca do racismo. A partir desta década o coletivo profissional será provocado a repensar suas referências teóricas e ampliar o debate para apreender os desdobramentos do racismo institucional no trabalho profissional. Destaco a importância dessas mulheres na inserção do debate étnico-ra- cial nas deliberações da categoria profissional a partir das(os) profissionais que integram a gestão do Conselho Federal de Serviço Social no período de 1990 a 1993. Pela primeira vez na história da profissão, a questão da não discriminação aparece como um dos princípios fundamentais do Código de 518 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 Ética Profissional do(a) Assistente Social, aprovado em 1993. Deve-se des- tacar que a trajetória das mulheres negras, assistentes sociais, que travaram batalhas importantíssimas e abriram caminho para o debate étnico-racial no espaço acadêmico, a partir da década de 1980, ainda carecem de um registro rigoroso, que nos permita compreender melhor o debate no interior da profissão naquele período. Um marco importante da luta contra o racismo e que merece destaque é o processo de organização da fase preparatória para a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e todas as Formas Correlatas de Intolerâncias (2001) realizada na cidade de Durban, África do Sul, espaço onde se discutiu o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem qualquer tipo de distinção. O documento final da conferência apresenta, desde os preâmbulos, a reafirmação dos princípios de igualdade e não discriminação, reconhecidos na Declaração Universal de Direitos Humanos. O racismo que incide sobre a população negra em esfera global foi alvo de críticas contundentes. No âmbito nacional, as deliberações são inseridas nas agendas dos movimentos sociais envolvidos na luta contra o preconceito, a discriminação étnico-racial, a xenofobia, a intolerância re- ligiosa, evidenciando a urgência da aplicação de medidas que visem coibir práticas violadoras dos direitos humanos. A partir de então a questão étnico-racial ganha visibilidade na cena política e passa a ser reconhecida e tratada pelo Estado brasileiro como um problema nacional, momento em que se desenvolve o Programa de Com- bate ao Racismo Institucional no país, com a finalidade de contribuir com o estabelecimento de políticas de desenvolvimento e redução da pobreza, bem como combater as desigualdades decorrentes da origem étnico-racial das(os) brasileiras(os). A participação ativa de diversos segmentos do movimento negro e de agentes públicos, com experiência em relação ao tema, foi crucial no pro- cesso de denúncia das situações de racismo, preconceito e discriminação étnico-racial vivenciadas pela população negra no âmbito da vida privada. Para além dessas situações, os diversos sujeitos coletivos denunciaram o 519Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 tratamento discriminatório no acesso aos bens e serviços e às várias políticas públicas promovidas pelas próprias instituições e que mantêm a reprodução da pobreza geracional e de mecanismos de permanência da população negra nas áreas de maior vulnerabilidade econômica, política, social, bem como a desqualificação de sua cultura e práticas religiosas. Seguramente, os debates protagonizados pelas(os) profissionais engaja- das(os) na luta antirracista e que desenvolvem seu trabalho profissional como assistentes sociais representam um marco, à medida que permitem desvelar as determinações presentes na vida social e que requerem outras mediações que permitam a análise do movimento do real, naquilo que representam as particularidades da população negra brasileira. Os avanços continuam, e a tarefa que se coloca como urgente é des- vendar nas tramas do real a intrínseca relação entre questão étnico-racial e questão social, à luz da teoria marxista, ação que não se coloca apenas como modismo, como tarefa particular de assistentes sociais negras(os), mas como uma imperiosa tarefa do coletivo profissional, à medida que a fragmentação da análise pode produzir pesquisas e intervenções no âmbito das políticas públicas, com um cariz de modernidade, mas apoiadas em posturas conser- vadoras e autoritárias. Na contemporaneidade, a hierarquização dos grupos étnico-raciais, a partir do padrão da branquitude, tem sido funcional aos interesses do ca- pitalismo. O conceito de branquitude vem sendo debatido com densidade teórica por Schucman (2014), o que nos permite apreender o “ser branco” como alguém que ocupa determinadas posições e lugares sociais vincula- dos, no caso da experiência brasileira, à aparência, ao status e ao fenótipo. Schucman (2014) afirma que do mesmo modo que as categorias de classe e gênero, “a categoria raça é um dos fatores que constitui, diferencia, hie- rarquiza e localiza os sujeitos em nossa sociedade” (p. 85). Neste sentido, podemos tomar como base o lugar do belo no imaginário social a partir da branquitude. Por conseguinte, a “superioridade estética é sim um dos traços da branquitude em nosso país” (p. 90) e se desenvolve em relação a todos os outros, não brancos. 520 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 Iraci e Sovik (2004) vão além e referem que a branquitude e seu sis- tema de privilégios não se restringe à cor da pele, mas funciona como uma espécie de passaporte, que possibilita o acesso a lugares diferenciados, o que se pode perceber entre as pessoas cuja herança genética é atribuída à população negra, mas que, ao exibir fenótipos próximos aos brancos, como, por exemplo, traços mais “finos”, podem ser tratadas como “brancas”. A escolha metodológica de iniciar o debate pautando a questão da bran- quitude tem como finalidade considerar, a priori, que nunca houve, não há e jamais haverá racismo reverso. Ao afirmar isto, busco apreender a questão da branquitude no âmbito das construções sócio-históricas e desnaturalizar o lugar do privilégio, no interior de uma sociedade patriarcal, machista, racista e sexista. Para tanto faz-se necessário superar um modo de vida em que as diferenças e os privilégios, segundo raça/cor, são potencializados. Retomando Schucman, “é preciso que a branquitude, como lugar de normatividade e poder, se transforme em identidades étnico-raciais brancas em que o racismo não seja o pilar de sustentação” (2014, p. 92). O racismo é um fenômeno universal que, no caso do Brasil, incide majoritariamente sobre a população negra e tem como uma das formas mais eficazes de opressão a desqualificação de tudo aquilo que remete a sua herança genética, cultural, religiosa, a suas tradições e valores, quando estes colocam em jogo a supremacia branca. Há, no entanto, a apropriação de alguns símbolos do grupo e uma valoração positiva a partir da análise do grupo dominante, com o intuito de promover a harmonia social. Com frequência podemos encontrar a valorização de objetos/adornos específicos, o que nem de longe é sinônimo de valorização da própria população negra. Essa inversão apoia-se no racismo, um sistema de opressão estruturadoa partir de relações de poder. Ainda que, no âmbito individual, uma pessoa do grupo dito “inferior” consiga superar o grupo dito “superior”, isto não altera substantivamente a noção coletiva da hierarquização das raças e da “inferioridade”. A tese pseudocientífica de que a população negra era naturalmente inferior há muito foi derrubada. Entretanto, o racismo se mantém porque 521Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 cumpre uma função social, na qual a supremacia da branquitude continua a autorizar a exploração, a dominação e a opressão contra os outros. Por outro lado, as pesquisas com seres humanos avançaram de maneira significativa nas últimas décadas, evidenciando a proximidade genética entre grupos cujas características físicas são absolutamente distintas. Entretanto, a obje- tividade da ciência, em vez de solucionar velhos dilemas, nos coloca novos desafios e reforça nossa indignação com os casos de racismo, preconceito e discriminação étnico-racial reproduzidos diariamente nos mais diferentes espaços e classes sociais. Ora, os estudos genéticos comprovaram que não existem raças puras, que indivíduos pertencentes a grupos diversos, com características físicas distintas, podem ser biologicamente muito próximos. Se nossa constituição genética pode ser tão próxima, ao mesmo tempo que nossa aparência física pode ser tão distante, como explicar a reprodução “viral” do racismo ao longo da história? Raça é um conceito elástico que se modifica conforme as demandas históricas e pode ser utilizado igualmente tanto por defensores da ideologia racial, quanto por seus adversários. Essa elasticidade, não raramente, traz como resultado a indiferença quanto a um problema social tão complexo conforme Santos (1984). Portanto, mesmo que eu compartilhe dessa ideia, de que o conceito não se sustenta a partir do biológico, o debate sobre raça não é uma falsa questão, uma vez que os grupos raciais constroem concep- ções acerca dos outros grupos raciais, no intuito de marcar a diferença e a hierarquia. A hierarquia tem sua gênese no processo de escravidão no Brasil, um fenômeno historicamente determinado e datado, ancorado na supremacia branca, e que se organiza a partir de uma estrutura que, pela primeira vez na história da humanidade, submete à escravização um grupo inteiro em virtude da sua origem étnico-racial negra, a partir do século XVI. O tráfico transatlântico de seres humanos do continente africano para o Brasil, no espectro da colonização portuguesa, é parte de um projeto maior, devido à necessidade de um contingente enorme de mão de obra altamente qualificada 522 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 para desbravar um território tão extenso. São homens e mulheres negros detentores de saberes na área da agricultura, da fundição de ferro, extração de minérios, entre outros, que são arrancados do continente africano, perdem sua identidade, são batizados com nomes de santas e santos católicos, para ser imediatamente transformados em mercadoria. Mais que o suor do traba- lho forçado, a capacidade intelectual é que agrega valor a essa mercadoria desumanizada para que não seja necessário o exame de consciência da classe dominante acerca da barbárie que o processo de escravização da população negra reatualiza. Afinal, a burguesia vive da exploração do trabalho. Minha investigação parte da premissa que há entre o racismo e o ca- pitalismo uma articulação fortalecida pela ideologia racial, essencial para a dinâmica das relações sociais na contemporaneidade e que justifica, ainda que não explique, o pauperismo de parcela majoritária da população negra brasileira. A permanência histórica desse grupo em patamares vexatórios e a forma como as políticas públicas vêm se desenvolvendo sob o mito da democracia racial leva a uma pretensa inclusão dos diferentes no acesso aos bens e serviços, cunhada pelo discurso da igualdade jurídica. O tratamento autoritário e racista com que o Estado brasileiro trata as questões relativas à população negra na contemporaneidade está atrelado ao projeto societário em curso e guarda profunda relação com o lugar da “infe- rioridade” a que a população negra vem sendo submetida desde o período colonial. Com frequência, os detentores dos meios de produção a excluem das funções que exigem níveis altos de qualificação técnica e restringe seu acesso às vagas consideradas mais “simples”, por acreditarem que existe uma incompatibilidade entre ser negro e ser capaz de exercer atividades que demandam certo grau de desenvolvimento intelectual, reproduzindo a lógica da separação entre trabalho manual e intelectual. Sob tais bases, o trabalho manual se acopla à “incapacidade” da popula- ção negra. E, no interior da classe trabalhadora, há níveis diferentes de explo- ração da mão de obra, segundo o pertencimento étnico-racial, ou seja, quanto mais escura a cor da pele, mais as ofertas de trabalho serão precarizadas e desprotegidas, e as remunerações não permitem a manutenção de patamares 523Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 mínimos de existência. As funções mais precarizadas, que se assemelham àquelas desenvolvidas durante a escravidão, são “naturalmente” reservadas para esse grupo, uma vez que permanece a reprodução da “inferioridade” étnico-racial da população negra. Em relação ao trabalho doméstico, não é por acaso que este é desenvolvido majoritariamente por mulheres negras, pois exige baixa escolaridade, pouca qualificação técnica e alta capacidade de resistência, quer do ponto de vista da força física, quer da condição de subalternidade, em um cenário de “afetividade” entre patrões e empregadas. Angela Davis, no livro Mulheres, raça e classe, aborda a questão das diversas opressões que estruturam a sociedade capitalista, em especial nos Estados Unidos da América, mas sua análise tem muito a contribuir com os debates ao redor do mundo, sobre as faces excludentes do capitalismo, in- clusive em relação ao modo pelo qual o racismo se sobrepõe à solidariedade de classe entre as(os) trabalhadoras(es) e, é essencial, entre as mulheres de diversas origens. As estratificações no interior da classe trabalhadora estão marcadas pelo racismo, com rebatimento, inclusive, entre homens e mulheres de origem branca. As(os) assistentes sociais desenvolvem seu trabalho profissional nas diversas políticas públicas, no complexo e contraditório processo de repro- dução das relações sociais. No modo de produção capitalista, a manutenção de níveis extremos de desigualdade social está mediada pela funcionalidade do racismo e, no caso das relações institucionais, sejam elas públicas ou pri- vadas, é dependente do racismo institucional, que possibilita a manutenção de práticas racistas, internalizadas e reproduzidas de maneira automatizada e naturalizada. O racismo institucional refere-se às operações anônimas de discrimi- nação racial em instituições, profissões ou mesmo em sociedades inteiras, de acordo com Cashmore et al. (2000). O anonimato existe na medida em que o racismo é institucionalizado, perpassa as diversas relações sociais, mas não pode ser atribuído ao indivíduo isoladamente. Ele se expressa no acesso à escola, no mercado de trabalho, na criação e implantação de políti- cas públicas que desconsideram as especificidades raciais e na reprodução 524 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 de práticas discriminatórias arraigadas nas instituições, conforme descrito por Eurico (2011). Em Lopes e Quintiliano (2007) vemos que no âmbito institucional — onde se desenvolvem as políticas públicas, os programas e as relações interpessoais —, toda vez que a instituição não oferece acesso qualificado às pessoas em virtude de sua origem étnico-racial, da cor da sua pele ou cultura, o trabalho fica comprometido, o que se configura como racismo institucional. Nas últimas duas décadas, as discussões sobre comoo setor público poderia comprometer-se mais efetiva e continuadamente com a prevenção e o combate ao racismo institucional, no âmbito público e privado, desen- cadearam uma série de ações, com destaque para a proposta coordenada pelo Instituto Amma Psique e Negritude (2008) com o título Identificação e abordagem do racismo institucional, cuja análise aponta duas dimensões interdependentes e correlacionadas: a dimensão político-programática e a dimensão das relações interpessoais. O racismo institucional se expressa no modo como as instituições esta- belecem suas diretrizes gerais, as relações de poder, como são reproduzidas ações pragmáticas, sustentadas pelo mito da democracia racial, e as(os) profissionais precisam se apropriar do debate para que consigam fortalecer a resistência diante dessas estruturas de poder, inclusive no estabelecimento das relações interpessoais, que sofrem interferências institucionais, sendo que em várias situações a atitude individual extrapola os limites institucionais, desconsiderando princípios fundamentais baseados na ética e no respeito ao outro. Entendemos que no cotidiano das instituições, no qual o racismo se revela de maneira constante e sem tréguas, as(os) assistentes sociais podem assumir o compromisso de desvelar o racismo na dimensão organizacional, propor intervenções na direção oposta e desempenhar papel relevante tam- bém no trabalho com a equipe para coibir práticas racistas, que incidem de maneira perversa na vida da população negra. Destaco como uma ação importante para as(os) assistentes sociais na luta contra o racismo o tratamento adequado dos indicadores sociais e a qualificação desses dados, posto que pela nossa “fama” recentemente fomos 525Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 inseridas indiscriminadamente como “peritas(os)” em equipes responsáveis pela avaliação de fenótipo para o acesso às cotas para negras(os) em con- cursos públicos, e somos consultadas também em relação aos critérios de autoclassificação no acesso às cotas nas universidades públicas. É preciso aprofundar o debate para não incorrer em erros grosseiros, a partir da reprodução de discursos vazios e estéreis acerca de uma questão tão cara para a sociedade brasileira. Há que se pensar em qualificação profissional com envolvimento do conjunto CFESS/Cress, Abepss e Enesso, uma vez que a apreensão das determinações sócio-históricas que conformam a presença negra no país é fator primordial para que o atendimento dispensado pela(o) assistente social se efetive com base nos princípios que norteiam o trabalho profissional, independente da área de atuação. Diversos estudos, seguindo a metodologia do próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE (2010), apresentam os dados referentes ao quesito cor/raça, agregando pretos e pardos em um mesmo indicador, já que estes compõem a população negra. Nossa análise partilha dessa inter- pretação, pois ainda que muitas pessoas não se reconheçam como pretas e se autodeclarem pardas, estas serão alvo do acesso precário às políticas públicas, tanto quanto as primeiras, quando comparadas a outros grupos raciais. Entretanto, há que se problematizar o fato de diversos instrumentais de coleta de dados, pesquisas acadêmicas e produções teóricas reproduzirem reiteradamente graves erros analíticos, ora classificando a população negra como negra e parda, ora como negra e mulata, ora como negra e preta, ora como preta e mestiça, entre outras variações presentes no imaginário social brasileiro. Mesmo quando se trata de trabalhos com reconhecida qualidade teórica, a confusão quanto aos termos e a falta de uniformidade no uso das classificações adotadas pelo instituto, e que são utilizadas por vários institutos de pesquisa, trazem prejuízos ao debate, reforçando aquilo que sistemati- camente tenta se combater: o racismo institucionalizado e inquestionável, de tão naturalizado. Em última análise, o uso de terminologias diversas, conflitantes entre si, também cumpre o papel de reprodução do racismo institucional, à medida 526 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 que seus interlocutores podem construir respostas falseadas para problemas reais. Preta e parda, entendidas como cores, correspondem às construções sociais, assim como as outras categorias, e o IBGE as adota para classificar a população negra no Brasil. A uniformização das cores é relevante, pois permite que as desigualdades étnico-raciais possam ser comparadas em di- versas pesquisas de instituições diferentes. Se conhecer a população negra é fundamental, o uso de terminologias variadas e divergentes é um complicador. Nas últimas décadas, essa pauta tem sido ampliada, como resultado da maior visibilidade política que esse segmento alcançou, problematizando aquelas formas de identificação que eram historicamente pejorativas e que incidiram na formulação de qualificadores condizentes com o país. Assim, a alta concentração da população na categoria parda, quando se analisa pretos e pardos, revela o longo caminho a ser trilhado rumo à consciência do pertencimento étnico-racial, reduzindo as barreiras da cor, pois há, entre os brasileiros, uma falsa ideia de que preta é uma categoria pejorativa — leia-se: feia. Então, uma parcela significativa da população negra vive um doloroso dilema: valorizar a herança africana, ao mesmo tempo que anseia por determinado status social obtido pela aproximação do grupo racial branco e pela negação da sua própria negritude. O racismo institucional determina, antes mesmo do nascimento, o lugar de classe, no interior da própria classe trabalhadora, segundo critérios de raça/cor, com raríssimas exceções. E aqui vou me valer de uma constatação precisa do racismo nos escritos de Carolina Maria de Jesus, no livro Quar- to de despejo: “Eu escrevia peças e apresentava aos donos de circos. Eles respondiam-me: — É pena você ser preta” (Jesus, 1960, p. 90). A coleta do quesito raça/cor apresenta-se fetichizada no trabalho profis- sional das(os) assistentes sociais, que, ao se depararem com a pergunta, não sabem como encaminhar a questão. O preenchimento desse dado requer uma análise acerca do véu que separa a(o) profissional e a população atendida. Não fosse a incidência do racismo entre nós, perguntar a cor seria simplesmente classificar os sujeitos e a partir daí identificar a maior ou menor capacidade de cobertura dos diversos grupos étnico-raciais pelas políticas públicas. 527Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 Em uma sociedade racista ocorre exatamente o oposto, e a coleta do quesito raça/cor faz emergir o mito da democracia racial e a turbulência pro- vocada pelo racismo real, persistente e arraigado, ofuscado pelo discurso da igualdade. Chamo a atenção para isso porque têm sido recorrentes estudos que analisam raça/cor somente quando as pesquisas se referem à população negra, quando este deve ser um qualificador universal, que permite, nas pesquisas com outros grupos populacionais, apresentar a partir da raça/cor o lugar de maior ou menor privilégio de cada grupo. E por fim e sem esgotar o debate é importante explicitar que as mar- cas e rupturas provocadas pelo racismo no Brasil que incidem de maneira violenta sobre a população negra são fatores determinantes nos processos de adoecimento e morte, seja pelas situações de violência urbana, que no caso dos jovens negros assassinados configuram-se como genocídio; seja pela violência obstétrica que tem, entre suas vítimas preferenciais, as mu- lheres negras; seja no acolhimento institucional de crianças e adolescentes, majoritariamente negras(os), entre outras tantas formas de reprodução da violência étnico-racial. As marcas são visíveis. Remetem ao processo de escravidão e de uma abolição inconclusa nos termos de Chiavenato (1988), e para além disso, a violência étnico-racial tem sua função reformulada e continua a oferecer muniçãopara manter a desigualdade social. Quer seja no âmbito do capitalismo mundial, cujas dimensões são globais, quer seja no da particularidade da vida brasileira, a verdadeira democracia racial configura-se um mito, contrária aos interesses do modo de produção vigen- te. A essa realidade soma-se as particularidades que compõem as relações étnico-raciais no país, indissociáveis da fragilidade da própria democracia brasileira. A primeira é absolutamente dependente da segunda e talvez esta seja a razão que mantém vivo o mito. A ação direta e contundente de homens e mulheres insatisfeitos com essa realidade provoca rupturas importantes que oxigenam os sonhos de uma sociedade melhor e as(os) profissionais de Serviço Social precisam se engajar também nessa frente de luta, pois o silêncio acerca dessa questão tão cara para a sociedade tem desdobramentos no trabalho cotidiano. Embora pareça óbvio, faz-se necessário pontuar que os sujeitos que acessam as políticas compõem-se de múltiplas dimensões: 528 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 pertencimento étnico-racial, sexo, idade, identidade de gênero, orientação sexual e classe social. Dimensões essenciais e interdependentes, as quais, compreendidas em sua totalidade, ampliam as possibilidades de um fazer profissional pautado na ética e no respeito aos direitos humanos. O combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação étnico-racial exige, na mesma medida, o combate à sociedade de classes, à desigualdade de gênero, bem como o respeito à diversidade sexual, entre outras garantias individuais cotidianamente violadas. O debate está posto e cabe às(aos) profissionais se engajarem na luta contra todas as formas de exploração/ opressão, caminho indispensável rumo à efetivação do projeto ético-político profissional do Serviço Social, explicitado no Código de Ética de 1993, que dentre seus princípios reconhece a liberdade como valor ético central, pro- põe a defesa intransigente dos direitos humanos, o empenho na eliminação de todas as formas de preconceito e a não discriminação como princípios éticos fundamentais. Recebido em 14/5/18 ■ Aprovado em 20/6/18 Referências bibliográficas AMMA-PSIQUE E NEGRITUDE QUILOMBHOJE. Identificação e abordagem do racismo institucional. Brasil, 2008. CASHMORE, E. et al. Dicionário de relações étnicas e raciais. Trad. Dinah Kleve. São Paulo: Selo Negro, 2000. DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016. Declaração e Programa de Ação adotados na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Conferência de Durban. 31 de agosto a 8 de setembro de 2001, Durban — rica do Sul. Disp. CHIAVENATO, J. J. As lutas do povo brasileiro: do “descobrimento” a Canudos. São Paulo: Moderna, 1988. 529Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018 EURICO, M. C. Questão racial e Serviço Social: uma reflexão sobre o racismo institucional e o trabalho do assistente social. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). PUC/SP, São Paulo 2011. IBGE. Censo demográfico 2010. Disponível em: <https://censo2010.ibge.gov.br/apps/ atlas/>. Acesso em: 1 fev. 2018. IRACI, N.; SOVIK, L. Diálogos contra o racismo. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), dez. 2004. JESUS, C. M. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 1960. LOPES, F.; QUINTILIANO, R. 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Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.158 A manipulação das consciências em tempos de barbárie e a criminalização da juventude negra no Brasil The manipulation of the consciousness in the present barbarism and the criminalization about the of the black youth in Brazil Jaqueline Garcez Buozia Resumo: Neste artigo, buscamos refletir sobre a relação entre a manipulação das consciências e a naturalização das manifestações mais expressivas da barbárie atual no Brasil, o superencarceramen- to e genocídio da juventude negra. A partir do referencial teórico marxista, refletimos sobre o processo de consciência do ser social e o caráter manipulatório da esfera jurídica, destacando o papel fundamental que exerce no processo de criminalização e naturalização da barbárie. Palavras-chave: Consciência. Criminalização seletiva. Ideologia. Direito. Manipulação. Abstract: In the present article, we seek to reflect on the relationship between the manipulation of the consciousness and the naturalization of the most expressive manifestations of barbarism in the present Brazilian scenario, the over imprisoment and the genocide of black youth. From the Marxist theoretical framework, we reflect on the process of consciousness of the social being and, then, we analyze the manipulative character of the juridical sphere and the key role it plays in the process of selective criminalization and naturalization of barbarism. Keywords: Consciousness. Selective Criminaliza- tion. Ideology. Law. Manipulation. Introdução Bem-vindos ao espetáculo Todos os espectadores Facção Central apresenta O circo dos horrores Facção Central aDefensoria Pública de São Paulo. São Paulo-SP, Brasil. 531Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 O tema apresentado neste artigo tem como objetivo refletir sobre a relação entre a manipulação das consciências e a naturalização das manifestações mais expressivas da barbárie atual. A partir desse recorte, buscamos revelar, introdutoriamente, alguns elementos que com- põem o atual fenômeno do grande encarceramento e genocídio da juventude negra no Brasil. Assim, visando buscar os fundamentos reais, econômicos e ideoculturais do que está em curso, as reflexões sintetizadas neste artigo têm como referencial teórico a tradição marxista. A reestruturação produtiva do capital, segundo Netto (2012, p. 417), tem caracterizado uma “extraordinária economia do trabalho vivo, elevando brutalmente a composição orgânica do capital; resultado direto na sociedade capitalista: o crescimento exponencial da força de trabalho excedentária em face dos interesses do capital”. Dentre outras transformações societárias que emergiram com a crise do capital, há uma nova onda punitiva que, segundo Menegat (informação verbal),1 configura-se através de duas formas que objetivam administrar o desmoronamento social causado pela crise estrutural do capital, a qual afeta todas as esferas constitutivas da vida social em âmbito global. A primeira forma de gestão das massas ociosas consiste na ampliação das prisões e no grande encarceramento, travestida pela guerra contra as drogas iniciada na virada do século XX para o XXI. A partir dos anos 1980, foram registrados aumentos exorbitantes no número de instituições prisionais e da população carcerária, em sua maioria negra, motivados pelo Movimento de Lei e Ordem2 imposto pelos Estados Unidos, o qual representa a máxima 1. Seminário Direito e Marxismo, Universidade Federal de Santa Catarina, 2013 — Painel Criminologia Crítica — UFSC. 2. Cabe destacar que as Leis de Jim Crow, que institucionalizarama segregação racial nos estados do Sul dos EUA, vigoraram até 1965. Portanto, novas formas foram criadas pela sociedade burguesa para manter o controle social, através da segregação racial. “Um dos princípios do ‘Movimento de Lei e Ordem’ separa a sociedade em dois grupos: o primeiro, composto de pessoas de bem, merecedoras de proteção legal; o segundo, de homens maus, os delinquentes, aos quais se endereça toda a rudeza e severidade da lei penal.” Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7938>. Acesso em: 8 mar. 2017. http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7938 532 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 repressão e a expansão de leis incriminadoras. O aumento do encarceramento ocorre, portanto, em escala mundial, haja vista a relação entre a criminali- zação3 seletiva e o processo de acumulação do capital. Os dados divulgados no último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias,4 atualizado em junho de 2016 e publicado em dezembro de 2017 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, são ainda mais impac- tantes do que o levantamento realizado em 2014.5 Enquanto, naquele ano, o Brasil registrou um aumento de 575% na população prisional desde 1990, dois anos depois o crescimento chegou a 707%. Atrás apenas dos Estados Unidos e da China, o país ultrapassou a Rússia e ocupou a terceira posição entre as nações que mais prendem no mundo, registrando uma taxa de crescimento de 7,3% ao ano, enquanto a taxa de crescimento populacional brasileira é de 0,77% e está declinando nos últimos anos, segundo pesquisa publicada pelo IBGE agosto de 2017.6 A proporção de pessoas presas para cada 100 mil habitantes era de 137 nos anos 2000, saltou para 306,2 em 2014 e atingiu 352,6 em junho de 2016, no tempo em que a média mundial era de 144. Desse modo, a população carcerária brasileira chegou a 726.712 pessoas. Cabe ainda destacar que 40% das pessoas estavam presas sem ter sido julgadas, sendo que nas unidades prisionais que informaram o dado, cerca 3. A prisão, desde a sua origem, nunca foi um mecanismo de combate ao crime, mas um instrumento de controle de determinado grupo social em cada época da forma social hoje hegemônica. Partimos do conceito de criminalização como o ato de imputar crime ou tomar como crime as ações de determinados grupos sociais: “[...] a transformação em sistemas penais não pode ser explicada somente pela mudança das demandas da luta contra o crime, embora essa luta faça parte do jogo. Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção. É, pois, necessário pesquisar a origem e a força dos sistemas penais, o uso e a rejeição de certas punições e a intensidade das práticas penais, uma vez que elas são determinadas pelas forças sociais” (Rusche e Kirchheimer, 2004, p. 20). 4. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de- -informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf>. Acesso em: 18 jan. 2018. 5. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf/@@ download/file>. Acesso em: 10 mar. 2017. 6. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2017/08/populacao-brasileira-passa- -de-207-7-milhoes-em-2017>. Acesso em: 18 jan. 2018. http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf/@@download/file http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf/@@download/file http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2017/08/populacao-brasileira-passa-de-207-7-milhoes-em-2017 http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2017/08/populacao-brasileira-passa-de-207-7-milhoes-em-2017 533Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 de 47% dos presos provisórios estavam custodiados há mais de noventa dias aguardando julgamento. Com isso, dentre os cinco países com maior popu- lação carcerária, o Brasil também está entre as maiores taxas de presos sem condenação, ficando à frente dos Estados Unidos, cujo percentual é de 20%. Analisados os dados que demonstram o perfil dos presos, nota-se que esse “rigor” penal apresenta evidente seletividade: 64% dos presos são negros, enquanto na população brasileira em geral, a proporção é significa- tivamente menor (46%); 55% têm entre 18 e 29 anos, e 19% entre 30 e 34 anos; 51% possuem o ensino fundamental incompleto; 14%, apenas o ensino fundamental, 6% foram alfabetizados sem cursos regulares e 4% não foram alfabetizados.7 Sobre os tipos penais, a maioria consiste em crimes contra o patrimônio (40%) e tráfico de drogas (28%). Esse panorama torna-se, ainda, mais alarmante se considerados os mandados de prisão aguardando cumprimento,8 as prisões domiciliares e os adolescentes em cumprimentos de medidas privativas de liberdade. Caso sejam computados, o Brasil se aproximará de 1, 5 milhão de pessoas. Concomitante ao superencarceramento demonstrado pelos dados su- pracitados, a segunda forma de gestão das massas, de acordo com Menegat (informação verbal),9 refere-se à cruel “contribuição” que o Brasil oferece ao mundo: o genocídio da juventude negra. A cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil; cerca de 23,1 mil jovens negros são assassinados 7. O levantamento aponta que “ao observarmos a participação dos jovens na população brasileira total, é possível afirmar que essa faixa etária está sobrerrepresentada no sistema prisional: a população entre 18 e 29 anos representa 18% da população total no Brasil e 55% da população no sistema prisional no mesmo ano”. Já “a informação sobre a raça, cor ou etnia da população prisional estava disponível para 493.145 pessoas (ou 72% da população prisional total). A partir da análise da amostra de pessoas sobre as quais foi possível obter dados acerca da raça, cor ou etnia, podemos afirmar que 64% da população prisional é composta por pessoas negras. Na população brasileira acima de 18 anos, em 2015, a parcela negra representa 53%, indi- cando a sobrerrepresentação desse grupo populacional no sistema prisional” Disponível em: <http://depen. gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/ relatorio_2016_22111.pdf>. Acesso em: 18 jan. 2018. 8. Em 2014, correspondiam a cerca de 500 mil. Em janeiro de 2018, constavam abertos cerca de 608 mil mandados. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/bnmp/#/relatorio>. Acesso em: 18 jan. 2018. 9. Seminário Direito e Marxismo, Universidade Federal de Santa Catarina, 2013 — Painel Criminologia Crítica — UFSC. http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf http://www.cnj.jus.br/bnmp/#/relatorio 534 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 anualmente no país, a maioria durante ações policiais; os homicídios de jovens negros, de 15 a 29 anos, é quatro vezes maior quando comparado aos jovens brancos; aos 21 anos apresentam um risco 147% maior quando comparados aos brancos, amarelos e indígenas.10 Para pensar de que forma tais soluções barbarizantes do capital para a vida social são tratadas como naturais e (re)produzidas acriticamente no cotidiano11 da sociedade brasileira, partimos de uma reflexão sobre o processo de consciência do ser social, destacando a suaforma elementar, ou seja, a sua primeira manifestação. Em seguida, apontamos o caráter manipulatório da esfera jurídica e o papel fundamental que exerce no processo de criminalização seletiva, naturalização da violência estatal e reprodução do capital. Por fim, tecemos um breve comentário acerca da produção e reprodu- ção dos estereótipos, através dos meios de comunicação, que legitimam a criminalização da juventude pobre, sobretudo negra. O processo de consciência do ser social e a naturalização da criminalização Na televisão A verdade não importa É negro, favelado, então tava de pistola MC Carol O movimento da consciência, assim como o movimento da realidade, possui um caráter dialético e, desta forma, não pode ser considerado algo linear. Assim, esse movimento é constituído por formas de consciência que representam tanto o rompimento quanto a continuidade, isto é, encontra sua 10. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160322_nt_17_ atlas_da_violencia_2016_finalizado.pdf >. Acesso em: 8 mar. 2017. 11. Entendido neste artigo como espaço de reprodução da imediaticidade da vida social. http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160322_nt_17_atlas_da_violencia_2016_finalizado.pdf http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160322_nt_17_atlas_da_violencia_2016_finalizado.pdf 535Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 determinação material no movimento do ser social.12 Acerca desse processo,13 o professor Iasi (2011, p. 11) explica que: [...] cada momento traz em si os elementos de sua superação, em que as formas já incluem contradições que, ao amadurecerem, remetem a consciência para novas formas e contradições, de maneira que o movimento se expressa num processo que contém saltos e recuos. Trata-se, ainda, de um processo ao mesmo tempo particular e universal, na medida em que “a partir da diversidade de manifestações particulares podemos encontrar, nitidamente, uma linha universal quando falamos em consciência de classe” (Iasi, 2011, p. 13). Desta forma, quando pensamos sobre a classe trabalhadora, a consciência ora é moldada pela ordem do capital, ora pela busca de seus próprios interesses. Para melhor compreender esse fenômeno, ao analisar o desenvolvimento da consciência, Iasi (2011) trata das três formas dialéticas desse processo: a forma elementar, a segunda forma de consciência denominada de consciência em si e a terceira forma ou consciência para si. Considerando os limites e os propósitos deste artigo, enfocaremos a primeira manifestação da consciência, a qual possui como um de seus me- canismos básicos a ultrageneralização, ou seja, “a captação de um concreto aparente, limitado, uma parte do todo e do movimento de sua entificação”. Constitui-se, nesse momento, da interiorização das relações vividas pelo indivíduo. Contudo, não se trata de interiorizar as relações em si, mas sim os “seus valores, normas, padrões de conduta e concepções” (Iasi, 2011, p. 14). Desse modo, de acordo com Iasi (2011, p. 18), a constituição das carac- terísticas da forma elementar da consciência tem como elementos principais: 12. Lukács (2013, p. 41) define o ser social como um “complexo composto de complexos”, cujas cate- gorias ontológicas sociais fundamentais, como o trabalho, a linguagem, a cooperação e a divisão do trabalho, não podem ser adequadamente compreendidas se consideradas isoladamente. 13. “Falamos em processo de consciência e não em consciência porque não a concebemos com uma coisa que possa ser adquirida e que, portanto, antes de sua posse, poderíamos supor um estado de não cons- ciência” (Iasi, 2011, p. 12). 536 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 1. a vivência de relações que já estavam preestabelecidas como realidade dada; 2. a percepção da parte pelo todo, onde o que é vivido particularmente como uma realidade pontual torna-se “a realidade” (ultrageneralização); 3. por esse mecanismo, as relações vividas perdem seu caráter histórico e cultural para se tornarem naturais, levando à percepção de que “sempre foi assim e sempre será”; 4. a satisfação das necessidades, seja de sobrevivência ou do desejo, deve respeitar a forma e a ocasião que não são definidos por quem sente, mas pelo outro que tem o poder de determinar o quando e o como; 5. essas relações não permanecem externas, mas se interiorizam como nor- mas, valores e padrões de comportamento, formando com o SUPEREGO, um componente que o indivíduo vê como dele, como autocobrança e não como uma exigência externa; 6. na luta entre a satisfação do desejo e a sobrevivência, o indivíduo tende a garantir a sobrevivência, reprimindo ou deslocando o desejo; 7. assim, o indivíduo submete-se às relações dadas e interioriza os valores como seus, zelando por sua aplicação, desenvolvimento e reprodução. Diante desses elementos, destacamos para a compreensão do nosso tema que, em uma sociedade burguesa, as ideias e interesses do capital são, portanto, reproduzidas e naturalizadas na medida em que o indivíduo toma como geral a realidade que se apresenta imediata e particularmente. Ainda nas palavras do autor (p. 21): Quando, numa sociedade de classes, uma delas detém os meios de produção, tende a deter também os meios para universalizar sua visão de mundo e suas justificativas ideológicas a respeito das relações sociais de produção que garantem sua dominação econômica. Neste sentido, essa forma inicial da consciência “expressa-se como alienação” e pode ser considerada como “a base, o terreno fértil, onde será plantada a ideologia como forma de dominação”. Entretanto, é necessário apontar que ela “apresenta-se como alienação não porque se desvincula da 537Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 realidade, mas pelo fato de naturalizá-la, por desvincular os elementos compo- nentes da visão de mundo de seu contexto e de sua história” (Iasi, 2011, p. 20). Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência (Bewusstsein) não pode jamais ser outra coisa do que o ser cons- ciente (bewusste Sein), e o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida [...]. (Marx e Engels, 2007, p. 94) Destarte, a materialidade das relações que produzem a alienação e se ex- pressam no universo das ideias como ideologia deve ser compreendida a partir da relação entre trabalho e capital, pois, ao mesmo tempo em que o trabalho é considerado fundante do ser social e do processo de humanização, sob o império da mercadoria, ele deixa de ser livre ao ser transformado em trabalho assalariado, alienado, fetichizado. Desta forma, “sob o capitalismo, o trabalhador frequentemente não se satisfaz no trabalho, mas se degrada; não se reconhece, mas muitas vezes recusa e se desumaniza no trabalho” (Antunes, 2013, p. 9). Ao recordar Marx, Antunes (2013, p. 8-9) afirma que, com o modo como se organiza o trabalho e a vida a partir dos ditames do modo de produção capitalista, “o homem estranha-se em relação ao próprio homem, tornando-se estranho em relação ao gênero humano”. Posto isso, em síntese, a aliena- ção se expressa a partir de três aspectos: “a) o ser humano está alienado da natureza; b) o ser humano está alienado de si mesmo; c) o ser humano está alienado de sua espécie” (Iasi, 2011, p. 22). A consciência das massas, portanto, é a consciência das necessidades impostas violentamente pela forma social do capital. Nas palavras de Marx (apud Menegat, 2012, p. 66), Não basta que as condições de trabalho apareçam num polo como capitale no outro polo, pessoas que nada têm para vender a não ser a sua força de 538 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 trabalho. Não basta também forçarem-na a se vender voluntariamente. Na evolução da produção capitalista, desenvolve-se uma classe de trabalhadores que por educação, tradição, costume, reconhece as exigências daquele modo de produção como leis naturais evidentes. E de que maneira a consciência, em sua forma elementar, se relaciona com a criminalização e o genocídio da juventude negra? Ora, se o modo de produção capitalista em seu atual estágio de desenvol- vimento produz um enorme exército de reserva14 incapaz de ser absorvido, em um momento de crise estrutural, em que as suas contradições são esgarçadas, o grande capital volta-se tão somente para sua lógica de autorreprodução, ampliando a mistificação das relações subsumidas ao capital. A ofensiva neoconservadora aparece nesse estágio com uma função ideológica, que “reproduz um modo de ser fundado em valores historicamen- te preservados pela tradição e pelos costumes — no caso brasileiro —, um modo de ser mantido pelas nossas elites, com seu racismo, seu preconceito de classe, seu horror ao comunismo” (Barroco, 2015, p. 624). Desta feita, a função repressiva do Estado15 é expandida, contudo, em um Estado democrático de direito, a coerção não será utilizada sem que seja de alguma forma legitimada. Para tanto, ganham destaque na manipulação das consciências as esferas de reprodução da vida social, as quais apresen- tam como conteúdo essencial, “falando em termos inteiramente gerais e 14. Subescrevemos a análise de Antunes (2015, p. 787): “[...] me parece claro que para Marx o exército industrial de reserva é parte intrínseca da classe trabalhadora. A classe trabalhadora que está no desemprego, que é estrutural, no sentido da lógica destrutiva do capital, compreende o que Marx com muita qualidade delimitou os distintos elementos que compreendem o exército industrial de reserva, que hoje podemos chamar de ‘exército de reserva’”. 15. Mandel (1982, p. 333-334), ao analisar o Estado na fase do capitalismo tardio, classifica as suas principais funções da seguinte maneira: “1) criar as condições gerais de produção que não podem ser as- seguradas pelas atividades privadas dos membros da classe dominante; 2) reprimir qualquer ameaça das classes dominadas ou de frações particulares das classes dominantes ao modo de produção corrente através do Exército, da polícia, do sistema judiciário e penitenciário; 3) integrar as classes dominadas, garantir que a ideologia da sociedade continue sendo a da classe dominante e, em consequência, que as classes exploradas aceitem sua própria exploração sem o exercício direto da repressão contra elas (porque acreditam que isso é inevitável ou que é ‘dos males o menor’, ou a ‘vontade suprema’, ou porque nem percebem a exploração)”. 539Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 abstratos”, o convencimento de uma pessoa ou de um grupo de pessoas “a realizar, por sua parte, pores teleológicos concretos” (Lukács, 2013, p. 83) Vejamos: [...] o ser social é um complexo composto de complexos, cuja reprodução se encontra em variada e multifacetada interação com o processo de reprodução dos complexos parciais relativamente autônomos, sendo que à totalidade, no entanto, cabe uma influência predominante no âmbito dessas interações. (Lukács, 2013, p. 278) Embora não possam ser adequadamente compreendidos se considerados isoladamente, dentre os complexos sociais parciais que constituem o espaço da reprodução, destacamos neste artigo a esfera jurídica e a linguagem, so- bretudo a utilizada pela grande mídia controlada pelas classes dominantes. Em relação à esfera jurídica, Lukács (2013) infere que ela responde a interesses de classe econômicos, ao mesmo tempo em que se diferencia e não se confunde com a economia. O direito é entendido, em sua particulari- dade, como uma esfera de ação teleológica que tem em vista não a relação direta com a natureza, mas o processo de convencimento da consciência, característica que, como vimos, constitui a categoria da reprodução. Nesse sentido, há uma prioridade ontológica das relações socioeconô- micas que não retira a sua função social. Logo, o direito exerce uma função na reprodução social na medida em que a mediação jurídica faz parte do próprio cotidiano a partir do momento em que o Direito atua enquanto ideologia, o que ocorre, de maneira efetiva, so- mente na sociedade civil-burguesa. O Direito, pois, não atua somente quando a “normalidade” é ameaçada: a própria normalidade só se configura como tal pela mediação jurídica. (Sartori, 2010, p. 78) Lukács (2013) considera que, ao mesmo tempo em que não se trata de um simples epifenômeno, o direito possui um caráter manipulatório cada vez mais presente na sociedade burguesa. Há contradições presentes no direito, uma vez que tratar dele é tratar do movimento do próprio real. 540 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 A célula da sociedade capitalista — a mercadoria — é deixada intocada juntamente com a igualdade jurídica cujas raízes estão na realidade a que pretensamente se contrapõe: em verdade, a igualdade é um pressuposto da forma mercantil. Lukács admite que a ideia de justiça seja ambígua; assim, coloca de maneira dialética a preponderância das relações materiais: ao mesmo tempo em que aquilo que é questionado são as desigualdades da sociedade produtora de mercadorias, permanece-se na igualdade formal oriunda da forma mercantil. (Sartori, 2010, p. 113) Acompanhando o movimento da própria sociedade, a reificação da esfera econômica é conduzida também para a esfera jurídica. Segundo Lukács (2013, p. 238) “o direito constitui uma forma específica do es- pelhamento, da reprodução consciente daquilo que sucede de facto na vida econômica”. Por conseguinte, o autor húngaro afirma que o sistema jurídico não surge do espelhamento da realidade, mas só pode ser sua manipulação homo- geneizante de cunho conceitual-abstrato. Por outro lado, a coesão teórica do respectivo sistema jurídico positivo, essa sua falta de contraditoriedade oficialmente decretada, é mera aparência. (p. 239) Outra contradição encontrada no direito refere-se à violência; na me- dida em que cabe a ele lidar com os conflitos sociais e retirá-la de campo, ao mesmo tempo que parece se opor a ela, nela se baseia. Desta forma, o sistema vigente do direito positivo opera fundado no seguinte método: [...] manipular um turbilhão de contradições de tal maneira que disso surja não só um sistema unitário, mas um sistema capaz de regular na prática o aconte- cer social contraditório, tendendo para a sua otimização, capaz de mover-se elasticamente entre polos antinômicos — por exemplo, entre a pura força e a persuasão que chega às raias da moralidade —, visando implementar no curso das constantes variações do equilíbrio dentro de uma dominação de classe que se modifica de modo lento ou mais acelerado, as decisões em cada caso mais 541Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 favoráveis para essa sociedade, que exerçam as influências mais favoráveis sobre a práxis social. (Lukács, 2013, p. 247)16 Destarte, ainda que inerentemente burguês, o direito se apresenta como algo neutro no que se refere aos conflitos de classes e, ao invocar as noções de sujeito de direito e igualdade, oculta as contradições da sociedade capitalista.17 Fica claro que, para isso, faz-se necessária uma técnica de manipulação bem própria, o que já basta para explicar o fato de que esse complexo só é capaz de se reproduzir se a sociedade renovar constantemente a produção dos “es- pecialistas” (de juízes e advogados até policiais e carrascos) necessários para tal. Porém, a tarefa social vai ainda mais longe. Quanto mais evoluída for uma sociedade, quanto mais predominantes se tornarem dentro dela as categorias sociais,tanto maior a autonomia que a área do direito como um todo adquire na interação dos diversos complexos sociais. (Lukács, 2013, p. 247) O direito, portanto, exerce papel fundamental no que podemos chamar de “barbárie civilizada”, a qual se configura na medida em que “que a vio- lência não é mais exercida de maneira espontânea, irracional e emocional pelos indivíduos, mas é monopolizada e centralizada pelo Estado” (Elias apud Lowy, 2000, p. 46). O processo de criminalização, nos componentes de produção e de aplicação de normas penais, protege seletivamente os interesses das classes dominantes, pré-seleciona os indivíduos estigmatizáveis distribuídos pelas classes e cate- gorias sociais subalternas e, portanto, administra a punição pela oposição de classe do autor, a variável independente que determina a imunidade das elites de poder econômico e político e a repressão das massas miserabilizadas e sem 16. “Por um lado, a força como garantia última dessa existência e unidade; por outro, a impossibilidade de basear unicamente no uso da força essa unicidade da práxis social controlada e garantida pelo direito” (Lukács, 2013, p. 246). 17. Sobre as categorias abstratas do direito, conforme a teoria geral do direito desenvolvida por Evgeni Pachukanis, cf. Teoria geral do direito e marxismo. 542 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 poder das periferias urbanas, especialmente as camadas marginalizadas do mercado de trabalho, complementada pelas variáveis intervenientes da posição precária no mercado de trabalho e da subsocialização — fenômeno definido como administração diferencial da criminalidade. (Santos, 2008, p. 126) Desse modo, o superencarceramento, decorrente do processo de crimi- nalização seletiva, representa uma das faces da barbárie atual e é operado justamente pela esfera jurídica em conjunto com outras esferas do espaço da reprodução. Embora não seja possível desenvolver uma reflexão mais profunda neste momento, é mister ressaltar que a comunicação social, sob todos os seus as- pectos (interindividuais, institucionais e midiáticos), é outra esfera que possui um papel fundamental na manipulação da consciência em sua forma elementar. No que tange ao processo de criminalização seletiva, a comunicação desempenha um relevante papel de imposição das representações sociais e a mídia atua como um instrumento que produz e reproduz estereótipos,18 manipulando as consciências. A perversidade contida nos discursos punitivos e criminalizantes, encontrados na grande mídia e nas redes sociais, revela o seu recorte classista e racial e divide a sociedade entre “cidadãos de bem” e bandidos. Ao analisar a criminologia midiática, Zaffaroni (2013, p. 197) afirma que ela cria a realidade de um mundo de pessoas decentes, diante de uma massa de criminoso, identificada através de estereótipos, que configuram um eles se- parado do resto da sociedade, por ser um conjunto de diferentes e maus. [...] Como para concluir que eles devem infundir muito medo e ser crível que seja ele o causador único de todas as nossas aflições. Por isso, para a TV, o único perigo que espreita nossas vidas e nossa tranquilidade são os adolescentes do bairro marginal, eles. 18. Cf. Suzane Jardim. 12 estereótipos racistas dos EUA que você já viu, mas não soube identificar. Disponível em: <https://voyager1.net/sociedade/estereotipos-racistas-dos-eua/>. Acesso em: 18 jan. 2018. https://voyager1.net/sociedade/estereotipos-racistas-dos-eua/ 543Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 Podemos citar como exemplo — dentre tantos outros19 de como essa questão se materializa no cotidiano da sociedade brasileira — a diferença de tratamento utilizada pelo Portal G1, principal site de notícias do país, em duas situações semelhantes. A primeira ocorreu uma semana antes e se refere à apreensão de um homem em um bairro periférico da cidade de Fortaleza, cujo título da notícia é “Polícia prende traficante com 10 kg de maconha em Fortaleza” (grifo nosso), enquanto a segunda anuncia “Polícia prende jovens de classe média com 300 kg de maconha no Rio” (grifo nosso).20 Nota-se, desta forma, como é construída a imagem do “criminoso” a partir da população pobre e periférica, sobretudo negra. Tal estereótipo é reforçado constantemente pelos meios de comunicação — cujos interesses visam à reprodução do capital — como potencial ameaça à manutenção da segurança pública, gerando na sociedade ondas de medo, que, como aponta Faustino (2012, p. 22), são conscientemente incentivadas e sistematicamente exploradas como es- tratégia de controle a partir da legitimação da violência sistêmica. Ocorre que [...] as ondas de medo não são indistintamente distribuídas entre a classe trabalhadora como um todo, e muito menos aos pobres em geral. Nesse sentido, “o racismo segue oferecendo aos aparatos de repressão os elementos ideológicos que legitimam o livre uso da força do Estado” (Faustino, 2012, p. 24). Na mesma perspectiva, o professor e jurista Silvio Almeida (informação verbal),21 ao analisar o racismo como elemento estru- tural e estruturante das relações sociais que são determinadas pelo capita- lismo, afirma que, nos momentos de crise e transformação econômica, na 19. Basta uma rápida pesquisa na rede social mais utilizada pela população brasileira e é possível iden- tificar diversas páginas e grupos carregados de discursos de ódio. Muitos deles utilizam como nomenclatura o famigerado jargão “bandido bom é bandido morto” e cultuam abusos policiais e imagens chocantes de jovens, em sua maioria negros, mortos pela polícia. 20. Disponível em: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/03/g1-ve-diferencas-entre-apanha- dos-com-drogas.html>. Acesso em: 12 mar. 2017. 21. Estado, direito e análise materialista do racismo. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=Pyn40G76kBI>. Acesso em: 15 jan. 2018. http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/03/g1-ve-diferencas-entre-apanhados-com-drogas.html http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/03/g1-ve-diferencas-entre-apanhados-com-drogas.html https://www.youtube.com/watch?v=Pyn40G76kBI https://www.youtube.com/watch?v=Pyn40G76kBI 544 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 história do mundo e do Brasil, ocorrem mudanças “nas estratégias de lidar com a questão racial”, a qual assume formas específicas e manifestações distintas, a partir das particularidades da formação social de cada país e em cada contexto histórico. Obviamente que, seja pelas vias da esfera jurídica ou da linguagem, a difusão desse processo de criminalização, que nos remete ao racismo científi- co da criminologia lombrosiana, utiliza-se de diversos meios de mistificação da realidade, assim como ocorre em outros processos da vida social sob o domínio do capital. No Brasil neoliberal, por exemplo, ganhou evidência [...] o encarceramento de legitimação, essas prisões espe- taculosas de alguns brancos ricos, que, como dizem Nilo Batista e Raúl Zaffaroni, “servem para encobrir ideologicamente a seletividade do sistema, que através de tais casos pode apresentar-se como igualitário”. (Batista, 2010, p. 33) Em síntese, trata-se do que Lukács (2013, p. 242) já explicava: “nenhum direito pode subsistir se não puder ser efetivado mediante a coerção, mas para que o seu funcionamento se dê com o mínimo de fricção é preciso que haja certa consonância entre seus vereditos na opinião pública”. Por fim, podemos concluir que com a colaboração da mídia e a legitima- ção da esfera jurídica, “a acumulação capitalista e o neoliberalismo criaram as bases concretas para a reprodução social da barbárie manifesta em ideias, valores e comportamentos” (Barroco, 2015, p. 626), que instituem o terror em nome da “ordem”. Como diz José Paulo Netto (2012), esgotadas as suas possibilidades civilizatórias, a ordem tardia do capital “só tem a oferecer, contemporaneamente, soluções barbarizantes para a vida social”. Consideraçõesfinais As reflexões aqui trazidas, introdutoriamente, apontam que para com- preender a relação entre as soluções bárbaras utilizadas pelo capital e a sua naturalização e reprodução no cotidiano da sociedade brasileira, é preciso 545Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 analisá-la a partir da centralidade do trabalho, pois é a relação existente entre capital e trabalho que aliena, estanha e reifica as relações sociais. Em tempos de crise estrutural, as contradições do modo de produção capi- talista são esgarçadas, voltando-se tão somente à sua lógica de autorreprodução. Por conseguinte, o controle social das massas que já não são mais fun- cionais ao capital ocorrem, na atualidade, em larga escala e de uma forma extremamente cruel: uma parte é presa e a outra é exterminada a céu aberto. No entanto, essas duas formas — superencarceramento e genocídio da ju- ventude negra —, que visam evitar o desmoronamento social do capital, são vistas com naturalidade e reproduzidas no cotidiano da vida social brasileira. Os discursos de ódio, o aumento dos linchamentos, os crimes contra a vida praticados pela polícia, sob o véu da suspeita e da legalidade, demonstram a materialidade do racismo enquanto ideologia a serviço do grande capital. Nesse processo de manipulação da consciência em sua forma primeira de manifestação, tanto a esfera jurídica quanto os meios de comunicação controlados pela classe dominante possuem papel fundamental. Assim, sob a égide da legalidade, se houver qualquer ameaça ao acúmulo de riquezas e à manutenção das frações dominantes, o direito — inerentemente burguês — sempre irá operar em seu favor, exercendo papel fundamental na “barbá- rie civilizada”. Destarte, as expressões contemporâneas mais evidentes da barbárie atual no Brasil configuram um Estado de exceção que, através do caráter manipulatório do direito, se diz democrático. É evidente, portanto, a necessidade de compreender as particularidades pelas quais a luta de classes atravessa as várias esferas da vida social, através do sistema de mediações dominantes. Por fim, é preciso identificar os traços constitutivos do fenômeno social real em cada esfera da reprodução do ser social, de forma que assim possamos encontrar as estratégias para superar o atual modo de produção, que se materializa na dominação, na exploração, na violência e na barbárie; e a construção de uma nova forma social voltada para as reais necessidades humanas e sociais. Recebido em 22/1/18 ■ Aprovado em 20/6/18 546 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 530-546, set./dez. 2018 Referências bibliográficas ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? 20 anos depois. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015. ______. A dialética do trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2013. BARROCO, Maria Lucia Silva. Não passarão! Ofensiva neoconservadora e Serviço Social. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 124, p. 623-636, out./dez. 2015. BATISTA, Vera Malaguti; ABRAMOVAY, Pedro Vieira. Depois do grande encarcera- mento. 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Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.159 Interseccionalidade, racismo institucional e direitos humanos: compreensões à violência obstétrica Intersectionality, institutional racism, and human rights: obstetric violence comprehensions Jussara Francisca de Assisa Resumo: O presente artigo objetiva trazer os conceitos interseccionalidade, racismo insti- tucional e direitos humanos para compreender a violência obstétrica relacionada às mulheres negras na saúde. Pretende pontuar o movimento de mulheres negras como responsável por pautar as especificidades desse grupo social na pers- pectiva de cidadania insurgente. Entende-se que tal movimento é de fundamental importância na luta pelo direitos das mulheres negras brasileiras, principalmente no que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos. Palavras-chave: Interseccionalidade. Direitos humanos. Racismo institucional. Cidadania insurgente. Mulheres negras. Abstract: This article aims to bring the concepts intersectionality, institutional racism and human rights to understand obstetric violence related to black women in health. It aims to punctuate the movement of black women as responsible for guiding the specificities of this social group in the perspective of insurgent citizenship. It is understood that such a movement is of fundamental importance in the struggle for the rights of black Brazilian women, especially with regard to sexual and reproductive rights. Keywords: Intersectionality. Human rights. Institutional racism. Insurgent citizenship. Black women. Introdução O presente artigo traz os conceitos interseccionalidade, direitos huma- nos e racismo institucional como pano de fundo para compreender como o viés racial implícito incide nas possíveis práticas de vio- lência obstétrica contra mulheres negras no Brasil. Ressalta o movimento aPrograma de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro-RJ, Brasil. 548 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 de mulheres negras como peça fundamental para o enfrentamento das desi- gualdades sociais que atinge tal grupo, tendo como perspectiva o conceito de cidadania insurgente sugerido por Holston (2013). De acordo como o autor, “os grandes avanços da cidadania desde a promulgação da Consti- tuição de 1988 não se dissocia das fraturas sociais que fazem do Brasil um dos campeões da desigualdade e da violência urbana” (p. 6). A intensidade dessas desigualdades estimula o surgimento da cidadania insurgente que busca desestabilizar as opressões por meio da luta. Um dos principais moti- vos desse fenômeno diz respeito aos primórdios da sociedade brasileira, que desde então alijou grande parte dos brasileiros de seus direitos. A reflexão aqui trazida resulta do projeto de tese de doutorado em curso num Programa de Pós-Graduação em Serviço Social de uma insti- tuição de ensino superior pública da região Sudeste do Brasil, cujoobjeto de estudo é o enfrentamento à violência obstétrica contra mulheres negras. Tal experiência dá continuidade aos estudos realizados durante mestrado e especialização em Serviço Social e Saúde, cujo objeto de estudo foi a morte materna de mulheres negras. Durante tal percurso, foi possível identificar que a sociedade brasileira, historicamente, demarca os espaços sociais não só pelas condições socioeconômicas, mas, também, a partir da aparência e da cor da pele dos sujeitos. Os efeitos dessa dinâmica sobre a população negra são perversos onde os resultados são evidenciados, direta ou indiretamente, através da observação de alguns aspectos das relações interpessoais e das relações que as instituições estabelecem com esse grupo; das condições de vida e de desenvolvimento humano, acesso aos bens e equipamentos sociais e de sua morbimortalidade (Lopes, 2005). Torna-se oportuno pontuar que as relações sociais no Brasil são per- meadas pelo chamado viés racial implícito, que, nos termos de Cruz (2016), refere-se a um atalho mental, um recurso útil que, por vezes, faz com que tenhamos ações automáticas (intencionais ou não) baseadas nas caracterís- ticas fenotípicas. O viés racial pode ser entendido como uma perspectiva tendenciosa construída a partir do contexto sócio histórico que legitimou a escravidão negra no Brasil. Disso, resultaram práticas, conscientes e incons- cientes, que têm como uma de suas bases um contexto peculiar articulado às 549Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 ações políticas, econômicas, sociais e culturais que retratam a pessoa negra como desprovida de inteligência, humanidade, capacidade de articulação política, não sendo pensada como alvo de cidadania plena. Nessa teia, ideologias relacionadas à inferioridade e coisificação, legado da escravidão, conformam uma imagem engessada, crônica e naturalizada da população negra numa realidade subalternizada. Essa construção dá margem ao chamado viés racial implícito, que pode se manifestar em todas as áreas da vida social, sobretudo nas instituições. Portanto, infere-se que a atenção à saúde da população brasileira, especial- mente no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), não está imune a tal fenômeno, já que tem refletidas em seu cotidiano as determinações políti- co-raciais de nossa sociedade. O viés racial implícito pode ser entendido através de práticas suges- tivas de discriminação e preconceito, resultante de estereótipos relativos à pessoa negra. Este seria o pavimento pelo qual o racismo institucional caminha, possibilitando desigualdades no acesso aos serviços institucionais. Ressalta-se que o racismo institucional atua de forma sutil, resultando em desigualdades não só na prestação de serviços, mas também na possibilidade de distribuição de benefícios e oportunidades aos variados grupos a partir do caráter racial (López, 2012). Estudos como os de Kalckmann et al. (2007) identificaram expressões verbalizadas para mulheres negras durante o pré-natal e o parto, tais como: “Escutei a recepcionista (pré-natal) falar: negra é como coelho, só dá cria”; “No parto do meu último filho não me deram anestesia”; “O médico nem examinou a gestante negra”. Ou ainda: “No pré-natal, só mandavam ema- grecer eu nem sabia o que era eclampsia, quase morri” (Kalckmann et al., 2007, p. 146). A partir disso, tratar a violência obstétrica atrelada ao racismo institucional se torna relevante por externalizar o histórico de violação de direitos aos quais as mulheres negras são submetidas, sobretudo, no período gravídico puerperal. O presente artigo primeiramente trará a violência obstétrica relaciona- da às mulheres negras, chamando a atenção para a tendência desse grupo 550 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 vivenciar com maior intensidade as mais variadas manifestações de precon- ceitos, mesmo num momento tão cheio de simbolismo como a gravidez. No segundo momento, abordará os conceitos de interseccionalidade, racismo institucional e direitos humanos, como luzes que auxiliam enxergar a magnitude do processo excludente possibilitado pelo racismo, sexismo e demais eixos de subordinação. Essa dinâmica precisa ser considerada a partir da realidade brasileira, já que apresenta uma forte tendência em cristalizar as mulheres negras num lugar de desprivilégio. Por último, o texto traz o movimento de mulheres negras como ele- mento fundamental na luta contra o racismo e o sexismo na saúde, fato que demonstra que a cidadania insurgente, enquanto conceito vital, é absoluta- mente oportuna para caracterizar a existência e a resistência das mulheres negras no Brasil. Violência obstétrica e mulheres negras “Toda mulher tem direito ao melhor padrão atingível de saúde, o qual inclui o direito a um cuidado de saúde digno e respeitoso” (OMS, 2014, p. 1). Esta passagem é o preâmbulo da declaração da OMS referente à “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em institui- ções de saúde”. Este documento reconhece que, ao redor do mundo, inúmeras mulheres são vítimas de abusos, desrespeito e maus-tratos em instituições de saúde no momento do parto. Reconhece também que tais práticas violam os direitos humanos das mulheres, ameaçando seu direito à vida, à saúde, à integridade física e à não discriminação. Diante dessa realidade, o objetivo da OMS é de convocar todos os entes envolvidos para o diálogo, maior ação, pesquisa e mobilização sobre o tema, numa perspectiva de saúde pública e direitos humanos, já que [...] um crescente volume de pesquisas sobre as experiências das mulheres durante a gravidez, e em particular no parto, descreve um quadro perturba- dor. No mundo inteiro, muitas mulheres experimentam abusos, desrespeito, 551Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 maus-tratos e negligência durante a assistência ao parto nas instituições de saúde. Isso representa uma violação da confiança entre as mulheres e suas equi- pes de saúde, e pode ser também um poderoso desestímulo para as mulheres procurarem e usarem os serviços de assistência obstétrica. (OMS, 2014, p. 1) No Brasil, os debates em torno do termo violência obstétrica começam a surgir nos primeiros anos da década de 2000, sobre as influências das ex- periências ocorridas na Venezuela e na Argentina. Além disso, uma de suas características básicas está atrelada à vertente do ciberativismo encabeçado por mulheres brancas e da classe média-alta, em que as mesmas relatam suas vivências durante o parto, denunciando práticas abusivas e desrespeitosas nos serviços de saúde. Quanto à produção de conhecimento na área acadêmica, Diniz (2015) e outras realizaram o estado da arte em torno do conceito violência obstétrica a partir de revisão crítico-narrativa sobre o tema, no qual foi privilegiada a análise de literatura acadêmica, produções dos movimentos sociais e documentos institucionais do Brasil e exterior. Entende-se por violência obstétrica a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissional de saúde que se expresse por meio de relações desumanizadoras, de abuso de medicalização e de patologização dos processos naturais, resultando em perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres. (D’ Oliveira et al. apud Diniz et al. 2015, p. 3) As pesquisadoras relatam que tanto no Brasil como na América Latina o termo violência obstétrica é usado para descrever as variadas formas de violências ocorridas durante a gravidez. Os achados da pesquisa revelaram expressões como: violência de gênero no parto e aborto, violência no parto, abuso obstétrico, violência institucional de gênero no parto e aborto, des- respeito e abuso, crueldade no parto, assistência desumana/desumanizada, violações dos direitos humanos das mulheres no parto, abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto.552 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 Tratamento diferencial com base em atributos considerados positivos (casada, com gravidez planejada, adulta, branca, mais escolarizada, de classe média, saudável etc.), depreciando as que têm atributos considerados negativos (pobre, não escolarizada, mais jovem, negra) e as que questionam ordens médicas. (Diniz et al., 2015, p. 3) Baseadas nos atributos classificadores dirigidos às parturientes, as autoras identificam a existência de escolhas de determinados perfis de mulheres para o treinamento de procedimentos a partir de um ordenamento hierárquico do valor social das pacientes. Esse fato evidencia “uma hierar- quia sexual, de modo que quanto maior a vulnerabilidade da mulher, mais rude e humilhante tende a ser o tratamento oferecido a ela” (Idem, p. 4). As pesquisadoras citam que “mulheres pobres, negras, adolescentes, sem pré-natal ou sem acompanhante, prostitutas, usuárias de drogas, vivendo em situação de rua ou encarceramento, estão mais sujeitas a negligência e omissão de socorro” (Idem). De acordo com Diniz (2015), a mortalidade materna pode ser entendida como uma das possíveis consequências da violência obstétrica. Pesquisas apontam que as taxas de mortalidade materna são relacionadas ao acesso e à qualidade dos serviços de saúde ofertados, pois grande parte dessas mortes poderia ser evitada através da aplicação adequada de políticas públicas. O Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (RASEAM) de 2014 demonstra que as mulheres negras são o público-alvo da mortalidade materna no Brasil. Tal fato foi alvo de audiência pública realizada pela Subcomissão Especial Avaliadora das Políticas de Assistência Social e Saúde das Populações Vulne- ráveis na Câmara dos Deputados (Brasília) em 2016. Na época foi informado que as intercorrências que provocam os óbitos maternos vêm diminuindo entre as mulheres brancas e aumentando entre as negras. A audiência apurou que entre os anos de 2000 e 2012 as mortes por hemorragia caíram entre as brancas de 141 casos por 100 mil partos para 93 casos. Entre as mulheres negras aumentaram de 190 para 202 casos. Embora as investigações sobre as causas das mortes de mulheres em idade fértil venham crescendo e tal fato impacte nos resultados expostos, 553Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 considera-se, além de fatores clínicos e socioeconômicos, as sutis articula- ções do racismo institucional. Na mesma audiência Jurema Werneck, atual diretora da Anistia Internacional no Brasil, afirmou que a justificativa para tais disparidades talvez resida no fato de os profissionais de saúde não es- tarem alinhados a todas as técnicas necessárias para uma consulta de pré e pós-parto de qualidade para as mulheres negras. Outro fator que deve ser levado em consideração são os óbitos maternos por tipo de causa obstétrica. As causas obstétricas diretas, tais como hiper- tensão, hemorragia e infecção, são as mais recorrentes. São entendidas como aquelas que ocorrem por complicações durante a gravidez, parto ou puerpério. Por conta de intervenções, omissões, tratamento incorreto ou um conjunto de fatores resultantes de qualquer dessas causas (Brasil, 2002). Diante deste quadro é importante dizer que 92% dos casos de mortes maternas por causas diretas são evitáveis. O conceito sobre violência obstétrica é reconhecido como questão de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2014. Através da declaração intitulada “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde” é possível identificar que embora existam evidências de desrespeito e maus-tratos às mulheres durante a assistência ao parto, no momento não há consenso de como tais problemas possam ser medidos (OMS, 2014). Contudo, ao considerar o marcador social cor/raça, Ramos (2016) afirma que as negras são as que mais sofrem com a falta de informação sobre o aleitamento, assim como o não acompanhamento durante a gravidez. A autora relata, também, que o tempo de atendimento dispensado às mulheres negras geralmente é menor do que o atendimento a uma mulher branca. “Fatos como esse fazem com que a mulher negra, além de não ser assistida devidamente, também se sinta inibida diante do cuidado com sua saúde” (Ramos, 2016). Diante do exposto, é possível supor a existência do viés racial na aten- ção às mulheres negras em período gravídico puerperal, sendo necessário reconhecer o valor do recorte étnico racial para a análise dos diferenciados serviços de saúde prestados à população, como as maternidades. 554 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 Interseccionalidade, racismo institucional e direitos humanos: impactos para as mulheres negras O conceito interseccionalidade vem sendo empregado largamente para discussão em torno das especificidades das mulheres negras, principalmente entre as intelectuais negras dos EUA e do Brasil. Kimberlé Crenshaw, consi- derada uma das lideranças da teoria crítica ao racismo nos Estados Unidos, é uma das pioneiras a respeito de tal pensamento. O conceito é proposto a partir do texto “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativa ao gênero” (2002), criado no contexto da III Conferência Mundial contra o Racismo realizada em Durban — África do Sul — no ano de 2001. O objetivo foi sugerir um protocolo provisório para melhor identificar as variadas formas de subor- dinação que refletem os efeitos interativos das discriminações de gênero e raça (Crenshaw, 2002, p. 171). A intenção de Crenshaw foi trazer à tona a necessidade de as instituições de direitos humanos assumirem a responsa- bilidade em lidar com as causas e consequências de tal discriminação. De acordo com ela, ao longo da década de 1990, os resultados do ativismo de mulheres, tanto nas conferências mundiais como no campo das organizações de direitos humanos, trouxeram um consenso de que os direitos humanos das mulheres não deveriam se limitar às situações onde seus problemas se parecessem aos vivenciados pelos homens. A autora pontua que sua contribuição teve por objetivo sugerir formas de entendimento das experiências únicas de mulheres étnica e racialmente identificadas. Alerta que, muitas vezes, tais experiências são suplantadas nos discursos sobre direitos. Assim, propõe que as instituições se envolvam nos esforços de investigação das implicações acerca de gênero, racismo, xeno- fobia e outras formas de intolerância que contribuem para uma combinação de abuso de direitos humanos. [...] quando se fala dos direitos humanos, o primeiro que se aponta, quase de maneira automática, é a falta e a necessidade de proteção frente a violências 555Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 multiformes e multicausais que, procedentes dos Estados ou dos particulares, negam os direitos mais elementares (à vida, à integridade física, à liberdade de movimento, à de expressão etc.) de amplos contingentes da população de países e regiões. (Gomez, 2004, p. 74) Há dificuldades em identificar a discriminação interseccional em contex- tos nos quais as forças econômicas, culturais e sociais moldam uma estrutura onde as mulheres são atingidas por outros sistemas de subordinação. Para apreensão da discriminação como problema interseccional, Crenshaw (2002) afirma que as dimensões raciais ou de gênero, que são parte da estrutura, deveriam ser destacadas em primeiro plano, como fatores que contribuem sobremaneira para a produção da subordinação. Desta forma, a autora define interseccionalidade como [...] uma conceituação do problema que busca capturar as consequências es- truturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades bá- sicas que estruturam as posiçõesrelativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento. (Crenshaw, 2002, p. 177) A partir disso, faz sentido pensar como se constitui o viés racial implícito ao se considerar as relações raciais estabelecidas entre os diferentes grupos, especialmente entre negros e brancos, no caso do Brasil. O conceito de viés racial é largamente utilizado nos estudos estrangeiros, sobretudo nos EUA. James (2017) faz uma revisão seletiva de estudos publicados desde 2003 sobre a provável contribuição do preconceito inconsciente dos médicos americanos para as desigualdades nos cuidados de saúde. O autor revela que naquele ano um comitê do Instituto de Medicina da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos reuniu centenas de estudos documentando o fato de minorias raciais americanas, principalmente os afro-americanos, 556 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 receberem cuidados de saúde piores para amplo número de doenças, em comparação com os americanos brancos. Nisso, o referido comitê concluiu que os estereótipos negativos inconscientes dos médicos contra afro-ame- ricanos, e talvez contra outras pessoas de cor, provavelmente contribuam para essas disparidades. O viés implícito é definido por James (2017) como um estereótipo realizado por um observador em relação a membros de um grupo racial ou étnico “minoritário”. Para se chegar a tal constatação são utilizados testes de associação implícita, que quantifica a velocidade relativa com que os indivíduos associam atributos positivos como “inteligentes” aos brancos e atributos negativos como “preguiçosos” aos negros. No que diz respeito ao viés racial implícito e à relação médico/paciente, o autor afirma que, na sociedade norte-americana, Os médicos são mais propensos a prescrever analgésicos para pacientes bran- cos do que para pacientes negros. Em uma pesquisa de opinião recente, uma estudante de medicina branca discutiu como o “currículo silencioso” ensinou-a a tratar pacientes de forma diferente com base em sua raça. Sobre a questão da gestão da dor, ela escreveu: “Quando cheguei ao hospital [...] Aprendi que, entre dois pacientes com dor aguardando em uma sala de exames do departa- mento de emergência, o branco é mais provável que obtenha medicamentos e o preto é mais provável que seja dispensado com uma nota documentando narcóticos. (James, 2017, p. 4; tradução nossa) A contribuição de James (2017) suscita reflexões a respeito da realidade brasileira, no que tange à sutileza do racismo, especialmente por conta da crença de uma democracia racial. Cruz e Faria (2017), ao pesquisarem as causas de óbito mais frequentes que incidiram em mulheres brancas (grupo hegemônico) e negras (grupo vulnerável) no estado do Rio de Janeiro, no ano de 2015, constataram que: No contexto do sexismo institucional, a população de mulheres não rece- be a devida atenção pela área de saúde fora do período perinatal e, com a 557Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 sobreposição da ideologia opressiva que é o racismo institucional, as mulheres negras, no caso, têm o risco de nem na fase de idade reprodutiva receber o cuidado de saúde conforme preconiza a base de evidência científica. (Cruz e Faria, 2017, p. 1) A partir dessas constatações, as autoras sugerem a promoção do cuidado de saúde centrado na pessoa e isento de viés racial e de gênero, visando a desconstrução do racismo institucional, entendido como Fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas devido à sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes da ignorância, da falta de aten- ção, do preconceito ou de estereótipos racistas. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações. (PCRI, 2006, p. 26). Com o objetivo de identificar fatores associados à avaliação das mulhe- res no que se refere à relação profissionais de saúde/parturiente e como esses fatores influenciam na satisfação com o atendimento ao parto, a pesquisa in- titulada “Desigualdades sociais e satisfação das mulheres com o atendimento ao parto no Brasil: estudo nacional de base hospitalar” (D’Orsi et al., 2014) revelou que a cor da pele das entrevistadas foi associada à pior avaliação do tempo de espera até ser atendida e menos privacidade nos exames. Quanto ao trabalho de parto, as pesquisadoras identificaram menores níveis de respeito e maior relato de violência dirigidos às mulheres pretas e pardas. Cruz (2004, p. 450) revela que “a persistência de uma estrutura de discriminação pode ser decorrente, entre outras razões, do desconhecimento existente a respeito da demanda da mulher negra sobre suas condições de vida e saúde”. Diante do exposto, é possível inferir que os efeitos da construção do imaginário social criado em torno da população negra no Brasil se repro- duz nos serviços de saúde. A associação entre violência, doença, crime, 558 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 prostituição, “feiura” e o corpo feminino negro parece ser refletida no atendimento à saúde, especialmente no momento do parto (Silva e Fonseca, 2012). Pensar a violência obstétrica relacionada às mulheres negras se faz necessário para problematizar as hierarquias nos serviços de maternidade, visando a garantia do direito à assistência adequada para as mulheres negras nos referidos serviços. Movimento de mulheres negras numa perspectiva de cidadania insurgente Num contexto de permanente luta por direitos sociais, as mulheres negras brasileiras vêm se colocando como sujeitos políticos em busca da cidadania plena. É nesse contexto que as contribuições de Holston (2013) são pertinentes. Conforme o autor, os conflitos entre cidadãos avolumaram-se, principalmente, com a urbanização e a democratização do século XX. A in- surgência mundial de cidadanias democráticas presentes nas últimas décadas confrontou formas estabelecidas de governos e de privilégios estabelecidos. O resultado é um emaranhado entre a democracia e seus opositores, em que novos tipos de cidadãos surgem para expandir a cidadania democrática, ao mesmo tempo que novas formas de violência e exclusão a corroem. (Holston, 2013, p. 21) Ao tomar o Brasil como um caso paradigmático no que se refere à cidadania, Holston (2013, p. 22) afirma que possuímos “uma cidadania que administra as diferenças sociais legalizando-as de maneira que legitimam e reproduzem as desigualdades”. Essa dinâmica caracteriza-se pela manutenção do regime de privilégios legalizados e desigualdades legitimadas que impera no país desde sua “descoberta”. Contudo, Holston (2013) discorre que os mais entricheirados dos regimes de cidadania desigual podem ser desfeitos por movimentos de uma cidadania insurgente. O autor afirma que desde a década de 1970 as classes trabalhadoras vêm formulando nas periferias das cidades brasileiras uma cidadania insurgente que desestabiliza o entrincheirado. 559Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 Seguindo o raciocínio de Holston (2013) e o articulando com a realidade das mulheres negras no Brasil, é possível afirmar que o movimento social deste grupo em específico está absolutamente imerso no que se caracteriza como cidadania insurgente. A trajetória de luta e resistência e contra as va- riadas formas de exploração que atingem as mulheres negras brasileiras não é recente. Podemos considerar que desde a travessia do continente africano para as Américas, a resistência às formas violentase inumanas dispensadas aos africanos negros e seus descentes por parte dos colonos tiveram muitas formas de oposição. Werneck (2009), ao discorrer sobre a diáspora africana e o papel fundamental das mulheres negras nesse processo, afirma que: Na formação e expansão desta diáspora, as articulações empreendidas tinham e têm como âncora principal a luta contra a violência do aniquilamento — ra- cista, heterossexista e eurocêntrica — com vistas a garantir nossa participação ativa no agenciamento das condições de vida para nós mesmas e para o grupo maior a que nos vinculamos. (Werneck, 2009, p. 77). A interpretação que pode ser dada a esse pensamento é que a resistência é parte intrínseca da identidade negra feminina, já que as experiências de desfavorecimento social, político, econômico e cultural vêm fazendo parte de seu cotidiano desde a travessia transatlântica. Sendo assim, a categoria mulher negra é histórica, e a luta contra as desigualdades que a permeiam é secular. Num contexto de permanente luta por direitos sociais, as mulheres negras vêm se colocando como sujeitos políticos em busca da cidadania plena. Ao pensar a democracia, devemos pensar também na socialização da economia, da política e da cultura como vias para a liberdade humana. É sob a perspectiva da socialização de formas mais equânimes de vida e trabalho que o movimento de mulheres negras vem pautando suas rei- vindicações políticas a partir da compreensão das hierarquias de gênero, raça e classe. Vale pontuar que a realização da I Marcha Nacional das Mulheres Ne- gras: Contra o Racismo e a Violência pelo Bem Viver, ocorrida em Brasília 560 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 em 15 de novembro de 2015, prova a contemporaneidade e a potencialidade de tal movimento. O ato caracterizou um marco político fundamental na histórica luta das mulheres negras brasileiras por direitos sociais e humanos com o objetivo de demonstrar que esse grupo apresenta demandas sociais particulares que devem ser consideradas pelo conjunto da sociedade. Em relação à saúde, teve como destaque a denúncia da mortalidade materna de mulheres negras relacionada à dificuldade de acesso aos serviços de saúde, à baixa qualidade do atendimento somada à falta de ações e capacitação de profissionais de saúde voltadas para os riscos aos quais as mulheres negras estão expostas (Geledés, 2015). É possível inferir que a violência obstétri- ca atinge, sobremaneira, as mulheres negras, já que os indicadores sociais apontam que esse público vive de maneira mais expressiva as desigualdades impostas pelas contradições do capital. No caso das maternidades do município do Rio de Janeiro, estudos apontam para a necessidade de atenção à qualidade dos serviços prestados. Índices de óbitos maternos no Rio de Janeiro apresentam uma das mais altas taxas, superando a taxa média do país, que gira em torno de sessenta mortes por 100 mil nascidos vivos.1 De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS-RJ, 2016) do Rio de Janeiro a razão de mortalidade materna chegou a 71,4% em 2014, ou seja, foram em média 71 mortes por 100 mil nascidos vivos. Estudos apontam que a violência obstétrica vem sendo considerada uma prática que contribui para aumentar os índices de mortalidade mater- no-infantil (Ministério Público de Pernambuco, 2015). Dados disponibilizados pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) referentes aos óbitos maternos, no período de 2000 a 2013, indicam que o município do Rio de Janeiro registrou 273 mortes de mulheres brancas, enquanto o mesmo indicador para mulheres negras somou um total de 485 mortes. Ou seja, as mulheres negras morreram em média 56% a mais que as brancas durante o período gravídico puerperal (DATASUS — SIM, 2015). 1. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que o coeficiente de dez mortes por 100 mil nascidos vivos está dentro da normalidade, sendo aceitável até vinte mortes por 100 mil nascidos vivos (OMS, 2014). 561Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 A luta por condições dignas de vida é impulsionada enormemente pela investida política do movimento de mulheres negras representado por instituições ligadas à Articulação de Organizações de Mulheres Negras no Brasil. Conquistas importantes no campo das políticas sociais têm crédito nesse movimento, sobretudo no atual contexto de desmonte sucessivo das políticas sociais e aumento da violência contra a população negra. Nesse cenário, a assistência à saúde das mulheres negras em período gravídico puerperal sofre grande impacto. Sendo assim, a cidadania insurgente oriunda do movimento de mulheres negras se coloca urgente e fundamental para a manutenção e o desenvolvimento de direitos das mulheres negras brasileiras. Considerações finais Este artigo procurou trazer à tona a problemática vivenciada por mu- lheres negras e pobres em período gravídico puerperal nos serviços públicos de saúde. A gestação é um momento cercado de expectativas por grande parte das mulheres e suas famílias. No entanto, o momento que poderia ser festivo e de alegria, muitas vezes transforma-se em momento de dor e perda. O viés racial implícito sugestivo de racismo institucional e o sexismo tecem uma rede de complexidades que tem no espaço das unidades de saúde uma dinâmica cheia de conflitos. Geralmente, o saber biomédico que conta- mina a maioria dos profissionais de saúde tende a desconsiderar as opiniões das mulheres, não as tendo como sujeitos de direitos. Neste sentido, a va- lorização de princípios éticos, o investimento em educação em saúde, quer para profissionais, quer para usuários (as), devem ser colocados em pauta para que haja o reconhecimento do valor de cidadania no que se refere aos direitos reprodutivos das mulheres negras. Não se pode deixar de considerar que as políticas de saúde existen- tes, que contemplam o enfretamento da mortalidade materna de mulheres negras, são importantes instrumentos de superação da problemática. Sem dúvida, a implementação dessas políticas não passam sem críticas, já que as 562 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 dificuldades e a falta de interesse em colocá-las em prática são visivelmente atravessadas pelo racismo e pelo sexismo. Contudo, acredita-se que esse aparato legal, esse ganho político é o que garante às mulheres negras vislum- brarem o alcance da garantia de seus direitos. Nesse processo, as mulheres negras organizadas possuem tal aparato legal (construído a partir de sua participação) na contínua luta pelos direitos das mulheres negras brasileiras. Embora os avanços adquiridos a partir das políticas públicas e iniciativas governamentais em prol da saúde da população negra e a luta das mulheres negras diante da mortalidade materna sejam factíveis, muitos desafios ainda precisam ser superados. Os baixos recursos destinados às políticas públicas, a falta de integralidade entre o setor de saúde e os demais setores, as hierarquias de gênero, a discriminação racial, dentre tantos outros, devem ser enfrentados a partir da participação social e a valorização dos profissionais de saúde. O investimento em educação continuada e o redesenho da formação profissio- nal, visando maior conhecimento e visibilidade das condições de vida e saúde da população negra, são urgentes para a modificação do quadro preocupante em que se insere a saúde pública brasileira. A cidadania insurgente proposta por Holston (2013) e representada aqui pelo movimento de mulheres negras tem a possibilidade e a potencialidade de enfrentar o racismo institucional e pontuar a necessidade de compreensão integral dos direitos humanos para as mulheres negras brasileiras em período gravídico puerperal. Recebido em 19/1/18 ■ Aprovado em 19/6/18 Referências bibliográficas BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. 2. reimp. Brasília:Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2008. Disponível em: <http://www.sepm.gov.br/pnpm/ livro-ii-pnpm-completo09.09.2009.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2010. 563Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 547-565, set./dez. 2018 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Área Técnica de Saúde da Mulher. Manual dos Comitês de Mortalidade Materna/Ministério da Saúde. 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Sergio Quintero Londoñoa Resumen: El artículo analiza algunas caracte- rísticas del marxismo en la reconceptualización. Se reflexiona sobre las condiciones de las décadas 1960-1970, donde producto de las contradicciones socio-históricas, se genera una pluralidad en los fundamentos teórico-metodológicos. Se demues- tra cómo el marxismo incursiona en el Trabajo Social a partir de diversas fragmentaciones del corpus teórico de Marx, desconociendo la crítica de la economía política, y por tanto disolviendo la perspectiva de totalidad. Palabras claves: Capital. Reconceptualización. Marxismo. Valor. Abstract : In this ar t ic le we analyze some characteristics of marxism in the reconceptualization. It reflects on the conditions of the decades 1960-1970, where product of the socio-historical contradictions, generates a pluralityin the theoretical-methodological foundations. It shows how Marxism ventures into Social Work from various fragmentations of Marx’s theoretical corpus, ignoring the critique of political economy, and therefore dissolving the perspective of totality. Keywords: Capital. Reconceptualization. Marxism. Value. Introducción Al considerar que el Trabajo Social emerge y se profesionaliza en el periodo capitalista en que los monopolios se han tornado he- gemónicos, debemos ser conscientes que la “historia profesional” es relativamente nueva. Sin embargo, debido al momento socio-histórico en que constituye sus trazos fundamentales como profesión inscrita en la aCandidato a Doctor en Servicio Social por la Universidad del Estado de Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Ja- neiro-RJ, Brasil. 567Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 división socio-técnica del trabajo, nutrida por las contradicciones teóricas y políticas de la lucha de clases, también debemos reconocer que (pese a su corta historia), el Trabajo Social ha presentado varios periodos en los cuales se encuentra gran diversidad de tensiones y contradicciones. Sin entrar en un análisis extensivo sobre “la historia del Trabajo Social”, es conveniente mencionar que su constitución (génesis y desarrollo) se da como resultado de las contradicciones de la sociedad capitalista en la que las clases dominantes se encuentran obligadas a dar un tratamiento diferencial a la cuestión social, más allá de las medidas policiacas y represivas que caracterizaron el siglo XIX. (Iamamoto e Carvalho, 1984). La estructuración de la profesión avanza desde sus protoformas hasta alcanzar ciertos fundamentos teórico-metodológicos, con los cuales incor- pora elementos de las ciencias positivas (caracterizada por el pragmatismo y el instrumentalismo). Posterior a la segunda mitad del siglo XX, en el Movimiento de la Reconceptualización se presenta el ingreso del marxis- mo como arsenal heurístico con potencialidades para la explicación de las contradicciones socio-históricas, y para dar respuesta a las manifestaciones de la cuestión socia. En este contexto, la diversidad y enfrentamiento entre el positivismo y el marxismo se presenta como consecuencia de las contra- dicciones del modo de producción que determinan la profesión, y no como un proceso correspondiente a las fuerzas endógenas del Trabajo Social. (Netto, 2000; 2012). Incorporación del marxismo al Trabajo Social Los años 60 y 70 del siglo XX irrumpen con una crisis estructural que impacta todas las esferas del capitalismo. Las consecuencias de tal crisis se hacen expresivas al interior de la institucionalidad educativa (especialmente las universidades), en la que se reflejan las contradicciones entre diferentes propuestas teórico-metodológicas, que traen consigo ideas de proyectos societarios diametralmente opuestos. 568 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 La dinámica de crisis y antagonismos presenta su mayor expresión en el Trabajo Social a través del Movimiento de la Reconceptualización, donde se genera una diversidad de pensamiento que pluraliza los fundamentos de la profesión, e incorpora debates de carácter político e ideológico de las clases sociales en pugna. En otras palabras, a través de la Reconceptualización, la profesión entra de forma explícita y consciente en la contradicción política del orden capitalista, enfrentando la supuesta neutralidad valorativa, y po- niendo en tensión la estructura clásica con la que el pensamiento conservador mantenía una matriz de pensamiento ideológico reproductor de las relaciones sociales de dominación. Uno de los principales avances de la Reconceptualización es la cons- titución de pluralidad teórico-metodológica; al interior de este avance se evidencia la máxima expresión con el ingreso del marxismo como interlocutor válido, plenamente reconocido por las demás tendencias teórico-metodológicas. Sin embargo, el ingreso del marxismo al Tra- bajo Social (al igual que en otras profesiones, en las “disciplinas de las Ciencias Sociales” y en organizaciones político-partidarias) no se da sin contradicciones y límites. Basados en la premisa de que son las contradicciones del capital las que determinan la profesión (sin dejar de reconocer la autonomía relativa de ésta), consideramos que las características particulares a través de las cuales entra el marxismo al Trabajo Social encuentran su explicación en la totalidad del modo de producción capitalista. El análisis del Trabajo Social en la historia (diferente a “la historia del Trabajo Social”), permite entender que la incursión del marxismo al debate profesional obedece al contexto so- cio-histórico (particularmente del contexto convulsionado de América Latina en las décadas 1960 y 1970) y heurísticamente está vinculado al desarrollo teórico-político del movimiento socialista-comunista (y sus divergencias) a nivel mundial1. 1. Una exposición clara sobre el marxismo en Trabajo Social como un reflejo del debate de los partidos políticos y el movimiento comunista a nivel mundial, es presentada por Consuelo Quiroga, 2000. 569Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 Durante todo el siglo XX, el análisis histórico-sistemático de Karl Marx se configuró en piedra angular para la comprensión de las relaciones del modo de producción capitalista, sin embargo, su apropiación por diferentes secto- res académicos y políticos no representó per se una apropiación adecuada, ni mucho menos una profundización de sus fundamentos. Por el contrario, lo que caracterizó al marxismo en su gran mayoría fue una incorporación parcializada y precarizada de la teoría social de Marx2. En este sentido, si la apropiación de la teoría social de Marx se da con dificultades al interior del movimiento socialista-comunista, es una conse- cuencia objetiva el hecho de que tales dificultades también se presenten y hasta se profundicen al interior del Trabajo Social Reconceptualizado, en tanto que, fundamentalmente, es a través de movimientos y organizaciones políticas que se incorpora el marxismo a la profesión. Ahora bien; ¿cuáles son los fundamentos estructurales desarrollados por Marx sobre los cuales se presentan profundas diferencias en las inter- pretaciones “marxistas”? De acuerdo a la célebre expresión de Lenin, son tres fuentes y tres partes integrantes del marxismo las que se deben reconocer como arsenal heurístico. En las tres fuentes, Karl Marx se encargó de incorporar y superar (o superar-conservando) lo mejor del socialismo francés, la economía clásica inglesa y la filosofía alemana. Cada uno de estos procesos se convirtió en pilar indispensable e indisoluble de la teoría marxiana, consolidando una teoría crítica con mayor potencia explicativa y transformadora. Sólo la comprensión relacional y dialéctica que de allí se desdobla (la perspectiva revoluciona- ria, la crítica de la economía política y el método dialéctico-materialista) pueden dar cuenta de las contradicciones y leyes tendenciales del modo de producción capitalista, como condición ineludible para su transformación. Teniendo en cuenta lo anterior, es necesario revisar, aunque sea de for- ma introductoria, en qué consiste la tergiversación y apropiación limitada 2. Aquí no se aborda el debate de cuáles son las tendencias herederas de Marx que mejor incorporaron su propuesta teórico-metodológica, sin embargo vale la pena una referencia a Lukács cuando llama la atención sobre la “paralización” y “petrificación” del marxismo durante el periodo stalinista y la Tercera Internacional. 570 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 de pensamiento de Marx por parte de movimientos y partidos políticos, las “Ciencias Sociales” y el Trabajo Social. Se podrían enumerar varios limites-tergiversaciones del marxismo, sin embargo, para efectos del presente trabajo, tan sólo se retoman algunos, que a nuestro modode ver, configuran los mayores límites para el desarrollo de la crítica marxiana. • Confundir la crítica con el ente criticado: no es extraño que cualquie- ra de las críticas desarrolladas por Marx sea incorporada en la forma que él intenta superar; esto sucede de forma reiterada con la teoría de los economistas clásicos (Smith, Ricardo y otros) que planteaban la valorización del valor como un proceso originado en la circula- ción. De igual forma sucede con la filosofía idealista (principalmente Kant y Hegel) en la que la consciencia determina el ser, y no el ser a la consciencia. Y con el socialismo utópico (Saint Simon, Fourier, Owen y otros) para quienes el politicismo o los criterios morales, no pocas veces caracterizados por el voluntarismo, se expresan como alternativas (subjetivas) de superación del orden capitalista. • Dividir los elementos integrantes de un proceso indivisible: el pretender colocar la teoría de Marx como una más de las “Ciencias Sociales” conllevó a la disolución de la perspectiva de totalidad; consecuencia de ello fue la edificación de fronteras claramente definidas al interior de las ciencias, que buscan delimitar objetos, métodos y teorías propias-específicas. En el campo profesional, la búsqueda de teorías y métodos propios estimuló la creación de una supuesta especificidad, que reproduce el carácter fragmentario de las “Ciencias Sociales”. La división de la historia, la política y la economía hicieron de la totalidad concreta (modo de producción capitalista) una suma de “factores” o “esferas” que en la teoría no guardan relación dialéctica entre sí. • Incorporar de manera unilateral la interpretación política de Marx: Como consecuencia del auge de las luchas políticas durante el pe- riodo 1960-1970, se sobreponen interpretaciones politicistas que subestiman o ignoran el carácter determinante de las relaciones de 571Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 producción. En su gran mayoría, los postulados del politicismo se fundamentan en una crítica moral de la explotación, haciendo pro- puestas que se limitan a la distribución de la riqueza social, dejando intacta la forma de producción. • Establecer falsas jerarquías al interior de la totalidad: con el objetivo de superar el subjetivismo (o el politicismo) que caracteriza algunas corrientes “marxistas”, el economicismo toma tal fuerza que se presen- ta como causa predeterminada de las consecuencias políticas, dando lugar al mecanicismo divulgado por los manuales del “socialismo real”. Se sobrevalora la expresión de que “la estructura determina la superestructura” configurando un determinismo que poco o nada tiene que ver con la dialéctica al interior de los elementos que constituyen la totalidad, o con el momento ontológicamente predominante. Estos y otros límites incorporados en el marxismo se convirtieron en factores decisivos para la neutralización o eliminación del potencial revo- lucionario de la teoría marxiana. En nombre del marxismo se intentaron legitimar análisis parcializados y decisiones políticas que generaron fuertes cuestionamientos (teóricos y políticos) a nivel mundial. El epistemologismo, queriendo hacer de la teoría social de Marx un simple desarrollo académico; al igual que el politicismo, cayendo en voluntarismos pseudo-revoluciona- rios, instrumentalizaron la teoría marxiana, equiparándola con cualquier otro desarrollo de las “Ciencias Sociales”. Las principales obras de Marx que fueron apropiadas en el debate teóri- co corresponden a aquellas dirigidas al análisis de coyunturas y situaciones políticas específicas, o documentos político-partidarios; entre esas obras se corona como obra prima el Manifiesto del Partido Comunista, y otras subsidiarias como El dieciocho brumario de Luis Bonaparte, La ideología alemana, Crítica al Programa de Gotha, entre otras de menor difusión3. 3. En este artículo no se niega el valor que estas obras tienen en la producción teórica de Karl Marx; el principal objetivo corresponde a entender que un análisis parcializado, sea político, económico o histórico, es insuficiente para entender las leyes tendenciales del modo de producción capitalista. 572 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 Un análisis filológico de los textos mencionados podría evidenciar claramente que la exposición de Marx no pretende limitar su comprensión a las contradicciones políticas de situaciones coyunturales determinadas, sino que desarrolla un análisis histórico-sistemático, a través del cual presenta las contradicciones políticas como expresiones de otras contradicciones más profundas, es decir, como formas a través de las cuales se manifiesta la totalidad concreta. Sin reducir el valor que en sí guardan las relaciones políticas, Marx encuentra su raíz, no en las contradicciones políticas stricto sensu, sino en la base estructural de la producción, de donde se desdoblan todos los desarrollos y contradicciones del Ser Social4. Es justo aquí donde se identifica el mayor límite del marxismo en el Trabajo Social, al abordar de forma limitada, o simplemente al no abordar El Capital (y en general toda la crítica de la economía política), obra que constituiría la piedra angular de Marx para la comprensión de la sociedad moderna. En síntesis, la mayor dificultad que estamos advirtiendo al interior del marxismo y de la Reconceptualización es la fragmentación de las tres partes in- tegrantes, con especial desconocimiento de la crítica de la economía política5. Contribuciones para superar los límites Para Marx el objetivo de la ciencia es captar el movimiento contradic- torio de la realidad social, que se constituye en leyes tendenciales propias 4. En apariencia, con esta expresión estaríamos cayendo en el límite criticado anteriormente al establecer falsas jerarquías, sin embargo, no es eso de lo que se trata en esta situación. En Marx es claro que la relación entre la producción, circulación, distribución y consumo, analizadas a lo largo de la crítica de la economía política, es una relación indisoluble que comprende en su debida proporción el peso de cada momento; así entonces, de forma ontológica, Marx demuestra la primacía (como momento predominante) de la producción sobre los demás momentos de la rotación del capital. Al entender el Capital no como cosa, sino como la relación social que rige el mundo contemporáneo, es posible captar la primacía de las relaciones de producción, sobre los demás escenarios de socialización. 5. De acuerdo con nuestra interpretación, es a partir de esos límites que se desdoblan equívocos de gran envergadura en la profesión, tal y como el mesianismo de la Reconceptualización; el cual presenta reediciones contemporáneas en algunos sectores del cuerpo profesional. Sobre el mesianismo y fatalismo en el Trabajo Social, ver Iamamoto 2001, y el texto supracitado de Consuelo Quiroga. 573Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 de un tipo de sociedad determinado; en este caso, el modo de producción capitalista6. Superar la interpretación o descripción de los elementos super- ficiales, y llegar al reconocimiento de la lógica a través de la cual se desa- rrolla el capital (su dinámica inmanente), constituye el camino que debe ser recorrido en el ejercicio investigativo. Pese a reconocer la importancia (y límites) de las descripciones, cuanti- ficaciones y clasificaciones (propias del pensamiento positivista), al igual que las interpretaciones, causalidades, sentidos y significados (sobre los cuales se desarrolla el comprensivismo), Marx se preocupa por descubrir las leyes ten- denciales de la sociedad capitalista, tendencias que no se manifiestan de forma plena y explícita en la superficialidad de las relaciones o en la vida cotidiana. Después de acumular gran parte del debate filosófico y político desarro- llado hasta entonces (segunda mitad del siglo XIX), Marx alcanza su mayor nivel de comprensión sobre elmodo de producción capitalista al plantear la crítica de la economía política, expuesta principalmente en Los Grundrisse escritos entre 1857-1858, en la Contribución a la Crítica de la Economía Política publicado en 1859, y de forma más acabada en El Capital, el cual, lleva por subtítulo Crítica de la economía política7. El objetivo de su crítica queda claro en el prólogo a la primera edición de El Capital: Lo que de por sí nos interesa, aquí, no es precisamente el grado más o me- nos alto de desarrollo de las contradicciones sociales que brotan de las leyes 6. Marx capta el movimiento de la realidad como ley tendencial que se caracteriza por la tensión permanente de contratendencias. Por su parte, el positivismo pretenden alcanzar o evidenciar leyes absolutas, y muchas veces ahistóricas. 7. Aunque la estructura más organizada de la crítica de la economía política adquiere una forma expositiva a finales de los años 50 y durante los años 60, no hay que olvidar que desde 1844 Marx inaugura sus estudios “económicos” con los Manuscritos económico-filosóficos. No sobra recordar que Marx sólo alcanza a publicar el libro I de El Capital (el proceso de producción) en 1867. Los libros II (el proceso de circulación) y III (el proceso de producción capitalista en su conjunto) son publicados por Engels en 1885 y 1894 respectivamente, y el libro IV (teoría de la plusvalía) es publicado por Kautsky en la primera década del siglo XX. Un análisis detallado de la forma en que se va consolidando la crítica marxiana a la economía política se encuentra en Rosdolsky, 1989. 574 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 naturales de la producción capitalista. Nos interesan más bien estas leyes de por sí, estas tendencias, que actúan y se imponen con férrea necesidad. (Marx, 1976, XIV) Queda claro que las formas en las que se presentan las leyes tendencia- les no son el objeto central de análisis para la comprensión de la sociedad capitalista, aunque sea a través de éstas que se consigue develar la esencia del mismo. El objeto central de análisis es la lógica a través de la cual se desarrolla el Ser Social en el modo de producción capitalista; la dinámica inmanente que encuentra su núcleo fundamental en el valor. Desde el primer lustro de los años 40 y todo el tiempo corrido hasta 1883 (año de su muerte), Marx confronta los planteamientos “científicos” preestablecidos por la ciencia burguesa. Consigue develar que a partir del 1830-1848, producto de la lucha de clases y especialmente con la pérdida del carácter revolucionario en la burguesía, la ciencia (burguesa) pasa a tener un carácter conservador en tanto que se plantea como principal objetivo la defensa del orden social establecido, y no la búsqueda de las leyes fundamen- tales de la realidad. La filosofía burguesa entra en un proceso de decadencia, recayendo no sólo en el idealismo, sino también en la reproducción ideológica del orden burgués. Por su parte, la economía política clásica es remplazada por la economía vulgar, y los economistas burgueses, al decir de Marx, se convierten en espadachines a sueldo (mercenarios) en defensa del capital. Con base en lo anterior es necesario preguntar cómo comprende Marx que debe ser el ejercicio investigativo. La respuesta a este interrogante no es una formula instrumental, sino una premisa orientadora de carácter fun- damental: la principal herramienta con la que se cuenta en el estudio de las relaciones sociales es la abstracción; es a través de ésta que se identifican la singularidad del objeto analizado, y sus mediaciones con la totalidad. Uno de los principales logros de Marx al indagar la realidad a partir de la dialéctica materialista es descubrir que cada periodo histórico tiene características propias que lo diferencian de periodos anteriores. Es por ello que la producción teórico-política de Marx se encarga de mostrar las 575Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 particularidades del modo de producción capitalista, que no se reduce a la lucha entre “burgueses y proletarios”, sino que da cuenta de la compleja producción-relación mercantil y sus expresiones (sociales, políticas, eco- nómicas y culturales). La perspectiva de historicidad niega los análisis hipostasiados de la ciencia y la filosofía burguesa, que confunden el presente con el pasado y éste con el futuro, negando alternativas sociales diversas a la implantada por el capital. El debate directo con la economía clásica, especialmente con Smith y Ricardo, le permite demostrar a Marx que uno de los principales errores de la ciencia burguesa es trasladar categorías propias de un periodo histórico hacia otro, tergiversando o negando por completo las nuevas características que determinan la sociedad moderna. Tal vez el principal aporte de la crítica de la economía política es el descubrimiento del valor como mediación inherente de las relaciones sociales en el capitalismo. Sin embargo, esta categoría brilla por su ausencia en los es- tudios “marxistas”, y especialmente en los debates de la Reconceptualización. En su obra madura, Marx despliega el análisis para demostrar cómo el valor es una característica propia y exclusiva del capitalismo a través de la cual las relaciones sociales se presentan de forma fetichizada. Sólo en la sociedad capitalista el valor adquiere su pleno desarrollo, hasta llegar a determinar la forma en que los individuos se relacionan entre sí. Explicando la forma en que surge y se desarrolla el valor, quedan claras las características particulares que adquieren ciertas categorías en las relaciones capitalistas. Algunas categorías que van a encontrar su máximo nivel de desarrollo en el capitalismo ya se encontraban presentes en modos de producción pre-capitalistas; tal es el caso de la propiedad, dominación, explotación, la propiedad privada, división del trabajo, alienación, dinero, entre otras. Sin embargo, en el momento que el valor entra a configurar la mediación fundamental a través de la cual se establecen las relaciones so- ciales, tales categorías adquieren nuevas características. Con base en la obra madura de Marx es posible plantear que el valor es la categoría central que determina (aunque no de forma mecánica y 576 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 unidireccional) otras categorías de gran relevancia en la sociedad capitalista; esta expresión recupera el carácter predominante de la ontología marxiana, profundizando las raíces del análisis, al pasar de observaciones superficiales de la circulación, hasta llegar a la producción. Ahora bien, el análisis más profundo de la producción no se agota allí, sino que encuentra su relación con la circulación, vistas en un proceso complementario e indisoluble8. El valor es el ente que rige la producción, circulación, distribución y consumo de mercancías, constituyendo una división social del trabajo en la que los productores individuales se relacionan entre sí a través de sus produc- tos, de su trabajo objetivado. En otras palabras, en el marco de la sociedad capitalista la relación mercantil (de valor) es la que (predominantemente) posibilita las relaciones sociales. Las relaciones sociales en contextos pre-capitalistas se caracterizan por la relación directa entre los individuos, sin necesidad de ocultar su mutua dependencia; es decir, debido a que existe dependencia personal, las rela- ciones sociales se dan de forma clara; los hombres se relacionan y dependen mutualmente los unos de los otros de forma directa. Contrario a eso, en la sociedad capitalista las relaciones sociales recurren a una mediación a través de la cual los individuos tienen contacto entre sí; tal mediación es el valor, que necesariamente adquiere materialidad en las mercancías. Este tipo de relaciones fetichizadas, al decir de Marx, presenta las re- laciones sociales como relaciones entre cosas, y las relaciones entre cosas como relacionessociales; además, tal inversión se presenta como natural9. A primera vista podríamos responder con Marx que “lo que aquí reviste, a los ojos de los hombres, la forma fantasmagórica de una relación entre 8. De esta manera, para comprender en la obra de Marx el modo de producción y sus leyes tendenciales no basta con el abordaje del primer tomo de El Capital (proceso de producción) o del segundo (el proceso de circulación), sino que debe ser vista la obra en su conjunto. Además se debe tener claro que la crítica de la economía política no es una teoría económica, sino una obra que analiza las relaciones sociales sobre las cuales se desarrolla el capitalismo. 9. El fetiche no es un proceso de abstracción sino una forma de ser de lo concreto en la sociedad capitalista; en ese sentido, el fetiche no puede ser eliminado por la investigación objetiva (que revela la esencia), sino por la transformación del objeto. 577Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 objetos materiales no es más que una relación social concreta establecida entre los mismos hombres” (Marx, 1976, p. 38). Por demás, se debe mencio- nar que ésta ha sido la respuesta parcial más utilizada por diversos sectores al interior del marxismo; sin embargo esta respuesta, no deja de ser eso, una respuesta parcial. Veamos por qué. En el proceso de producción capitalista, entendido éste como producción y reproducción, el capital constante cada vez adquiere mayor magnitud frente al capital variable. Con el desarrollo de la gran industria, en el proceso de producción ya no es el trabajador el que controla a las máquinas, sino éstas a aquel; el trabajo muerto controla al trabajo vivo. Además, en la circulación, como fue mencionado anteriormente, son las mercancías las que permiten la socialización entre los productores individuales; las personas se relacionan a través de las cosas (mercancías). De esta manera, el hecho de que las relaciones sociales se presenten como relaciones entre cosas, y por ellas dominadas, no es simplemente cuestión de apariencia, sino que es la forma en que se desarrolla el capital; las relaciones sociales aparecen como lo que son. Si se pretende responder con los planteamientos radicales de Marx a la forma fetichizada en que se presentan las relaciones sociales en el capita- lismo, no será suficiente con develar el secreto a través del cual queda claro que los son hombres (al transformar la naturaleza) quienes crean la riqueza material y constituyen toda la realidad, tanto política como económica. Será necesario ir mucho más allá, al demostrar que esta inversión es inherente al capital y sólo podrá ser superada con la construcción de otro modo de producción. Si como dice Marx, el fetiche es propio del capitalismo, y de éste no se puede eliminar, la superación del fetiche necesariamente es la superación del capital. En la transformación ininterrumpida del valor es que se desarrolla el capital (no como cosa sino como relación) tanto en el proceso de producción como en la distribución; de ello dan cuenta las metamorfosis del valor analizadas por Marx en el Libro II (capital-dinero, capital-productivo y capital-mercantil) y en el Libro III (donde expone la forma y los sectores en que tal valor se distribuye como renta, salario y lucro) de El Capital. 578 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 Teniendo en cuenta que la lógica o esencia de esta sociedad se presenta de diferentes formas, vale la pena llamar la atención sobre la centralidad que al interior de ciertas tendencias “marxistas” se ha otorgado sobre algunas de estas manifestaciones, disminuyendo importancia, o incluso en algunos casos, dejando de lado el análisis del valor. En algunos análisis que priorizan el debate político, se presenta la explotación como la categoría central a partir de la cual se consolida y re- produce el sistema capitalista; al parecer, es con la explotación, (asumida como apropiación del trabajo ajeno) desde donde se desdobla toda forma de relación social capitalista. La respuesta lógica (y limitada) del marxismo vulgar corresponde al fin de la explotación y a la distribución más equitativa de la riqueza social, enfocando sus argumentos al proceso de circulación, olvidando el momento predominante de la producción. El capitalismo se resume a un problema de distribución de riqueza, desconsiderando su abor- daje como una forma alienada de producción y reproducción social. Este se convierte en el principal argumento de las organizaciones políticas que actúan en América Latina durante los años 60 y 70, con los cuales corresponde el debate académico-político de la Reconceptualización. A nuestro modo de ver, si se tiene en cuenta lo dicho sobre el valor, estas premisas, aunque hegemónicas, son ciertas, pero parciales; o dicho en otros términos, son parte de la explicación de la lógica del capital, aunque no su explicación plena. Si se considera el valor como eje central del modo de producción capitalista, se debe entender que el fin último de la explo- tación, que es desarrollada a través de la propiedad privada de los medios de producción, es justamente la creación de valor y su desarrollo creciente, el cual no puede ser entendido como relaciones económicas, sino como relaciones sociales propias del capital. El valor como categoría central se encuentra tanto en la producción como en la circulación de mercancías, y a su vez son éstas las que se encargan de garantizar la reproducción social y las relaciones sociales. Si de lo que se trata es de enfocar la centralidad del capitalismo, el núcleo de análisis debe partir de la comprensión del valor y avanzar hacia 579Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 la explotación (esta es la forma en que Marx realiza su exposición). No im- porta que el valor tenga su origen en la producción, puesto que su campo de influencia va mucho más allá, llegando a la determinación dialéctica de la política y la cultura. En síntesis, el análisis del valor no se reduce al campo meramente económico, sino que comprende la lógica del capital como una lógica general que abarca la totalidad de las relaciones sociales. Ahora bien, el hecho que la explotación, la propiedad privada de los medios de producción, la apropiación privada del trabajo social, y otras tantas categorías del capital sean consecuencias directas le la lógica del valor, no quiere decir que estas tengan que pasar a un segundo plano, perdiendo el peso que en sí tienen al interior del capital. Contrario a ello, la creación de valor no será posible si tales condiciones no están dadas en la forma que asumen bajo el régimen capitalista. De esa manera, la centralidad del valor no será tal, si no se entiende su relación congénita con otras tantas categorías que posibilitan la valorización del valor. Al abordar el valor de forma autónoma y autosuficiente se extrapolan sus características, tergiversando la forma real en la que éste se presenta. Hay quienes creyendo entender la importancia del valor, le otorgan cualidades extralimitadas, hasta el punto de asumir literalmente la lógica automática en la que éste se desarrolla. Si bien, la ley del valor es la que determina la sociedad capitalista, y no depende de la voluntad de los hombres que apare- cen como personificaciones de categorías económicas (sean ellos capitalista o asalariados), no es posible plantear la independencia plena del valor con respecto a los sujetos y por tanto a la lucha de clases. El valor no es un sujeto autónomo que avanza indefinidamente y de forma natural al margen de las contradicciones de los sujetos; plantear esto es tan equivocado como el hecho de creer que el fetiche se supera cuando se develan las relaciones sociales en el intercambio de mercancías. En el tomo II de El Capital, Marx insiste en la lógica del valor como una cuestión autónoma del desarrollo capitalista, sin embargo ello no significa una autonomía strictosensu, subvalorando otras categorías de gran relevan- cia, como por ejemplo la explotación. Para Marx, tal y como fue planteado 580 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 anteriormente, el valor no se desarrolla aisladamente, sino que requiere un conjunto de condiciones propias del modo de producción capitalista. Veamos la complementariedad que Marx coloca en el análisis entre el valor y la explotación: El capital, como valor que se valoriza, no encierra solamente relaciones de clase, un determinado carácter social, basado en la existencia del trabajo como trabajo asalariado. Es un movimiento, un proceso cíclico a través de diferentes fases, que, a su vez, se haya formado por tres diferentes etapas. [capital-dine- ro, capital-productivo, capital-mercancía]. (…) Quienes consideran una pura abstracción la sustantivación del valor olvidan que el movimiento del capital industrial es precisamente esta abstracción hecha realidad. (Marx, 1975, p. 94) A primera vista, esa expresión de Marx confirma la existencia autónoma del valor frente las dinámicas y decisiones de los seres humanos agrupados en clases sociales, sobredimensionando la ley del valor y cayendo en abs- tracciones idealistas o en el economicismo. Sin embargo, inmediatamente después de explicar el movimiento constante a través de las metamorfosis del capital y su ciclo, el mismo Marx llama la atención sobre la relación de donde realmente surge el valor; indica la raíz de todos los ciclos y formas del valor, apuntando hacia la explotación de la fuerza de trabajo. Esta sucesión de las metamorfosis del capital en acción implica la compara- ción constante de los cambios de magnitud de valor del capital operados en el ciclo de su valor originario. La sustantivación del valor frente a la fuerza creadora de valor, o sea, la fuerza de trabajo, se inicia con el acto D-T (compra de la fuerza de trabajo) y se realiza, como explotación de la fuerza de trabajo, durante el proceso de producción. (Ibíd. p. 95) De esta manera queda claro que no puede existir valor sin explotación; esta complementariedad, que en realidad es una relación que hace parte de un complejo de relaciones más amplio, es lo que caracteriza la lógica del capital, es decir, la dinámica inmanente o ley tendencial. El objetivo de la 581Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 sociedad capitalista es la producción y reproducción ampliada de valor, para lo cual son indispensables ciertas categorías o relaciones sociales, que no pueden ser sobrestimadas, o por el contrario, subestimadas. El análisis del capital debe ser una evaluación objetiva de las condi- ciones en las que se desarrollan las relaciones sociales; este fue el principal objetivo y el mayor logro de Karl Marx al constituir un método de investiga- ción fundado en la perspectiva de historicidad y totalidad, a través del cual evidencia la lógica (leyes tendenciales como dinámica inmanente) del modo de producción, y los impactos que éste ejerce sobre las relaciones sociales. La investigación de Marx frente a la sociedad capitalista es una síntesis de análisis filosóficos, culturales, políticos, históricos y económicos que muestran la relación indisoluble entre todos esos elementos; su propuesta de conocimiento científico, contrario a las “Ciencias Sociales”, rompe con la fragmentación y los muros (epistemológicos) imaginarios que determinan objetos específicos de una u otra ciencia, que fragmentan la unidad lógica en la que se presenta la realidad histórico-concreta. Consideraciones finales La teoría social de Marx es una propuesta de análisis que se propone conocer las principales características de la sociedad capitalista (sus leyes tendenciales), y a su vez, aportar en la transformación social que supere el modo de producción/reproducción. Con este objetivo fue que Karl Marx, dando continuidad a desarrollos teóricos precedentes, logró descubrir los elementos centrales la ley del valor-trabajo. Según lo anterior, el análisis de la sociedad capitalista no puede estar basado en planteamientos superficiales fragmentarios o morales del meta- bolismo del capital. Solo el descubrimiento de las leyes tendenciales posibi- litará una crítica radical que muestra las relaciones sociales como realmente son. De acuerdo con Marx, no se transforma de manera consciente lo que no se conoce; ello implica que para superar el orden capitalista, se tiene como 582 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 presupuesto el análisis de su dinámica inmanente. A partir del conocimiento de la realidad objetiva se tienen las condiciones necesarias para unificar teoría y praxis, articuladas en un proyecto social emancipartorio. Sin embargo, la obra de Marx es poco conocida, fragmentada o distor- sionada tanto en las organizaciones socio-políticas de las décadas 1960 y 1970, como en los centros de formación universitaria. El Marx que pretende indagar la totalidad del modo de producción capitalista es sustituido por una interpretación fragmentaria, que centra sus argumentos en interpretaciones politicistas. El Movimiento de la Reconceptualización, marcado por el contexto latinoamericano de organizaciones e ideales revolucionarios, incorporó la obra de Marx en su parte política, la cual, llevado al extremo, creó una forma de politicismo estéril fundado en el voluntarismo mesiánico. El supuesto “Agente de Cambio” destinado a orientar las transformaciones estructurales desconocía la lógica del capital, y por tanto otorgaba poderes extraordinarios a la lucha política y los individuos que en ella se podrían inscribir desde el escenario profesional. El choque de realidad demostró los equívocos de planteamientos voluntaristas, el cual, sumado a los nuevos contextos neoliberales, propiciaron la reinstalación de perspectivas conservadoras y neoconservadoras caracterizadas por el fatalismo, o por la apología abierta a las relaciones propias del capital. Al señalar la ausencia de la crítica de la economía política, o su tergi- versación, son comprensible los equívocos de la Reconceptualización sobre el análisis de las condiciones objetivas del momento vivido. El análisis de la realidad que privilegia y limita la interpretación de elementos políticos, desconoce la centralidad de la teoría del valor-trabajo, lo que conlleva equívocos teóricos y prácticos. El Trabajo Social, como profesión dio un gran salto cualitativo durante las décadas 1960-1970 al introducir el marxismo en su arsenal teórico-me- todológico; sin embargo, el salto cualitativo no fue plenamente consolidado. Ahora bien, las condiciones objetivas que brinda la historia, abren la posi- bilidad de profundizar el salto cualitativo, no para hacer del Trabajo Social 583Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 566-584, set./dez. 2018 una profesión “marxista”, sino para que Marx y el marxismo tengan una participación más cualificada y competente al interior de las tensiones que se tejen en la lucha por la orientación de un proyecto profesional ético-político. Recebido em 18/1/18 ■ Aprovado em 18/6/18 Referências bibliográficas IAMAMOTO, Marilda. Servicio Social y División del Trabajo. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2001. IAMAMOTO, Marilda; CARVALHO, Raul. Relaciones sociales y Trabajo Social. 3 ed. Lima: CELATS/ Editorial Alfa S.A., 1984. MARX Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo/Rio de Janeiro: Boitempo/UFRJ Editora, 2011. ______. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008. ______. El Capital. Crítica de la economía política. Tomo I. Bogotá: Fondo de Cultura Económica, 1976. ______. El Capital. Crítica de la economía política. Tomo II. Bogotá: Fondo de Cultura Económica, 1975. ______. El Capital. Crítica de la economía política. Tomo III. México D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1968. ______. Teoria da mais-valia. História crítica do pensamento