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Efeitos terapêuticos rápidos 
no tratamento de uma neurose obsessiva*
 
Sérgio de Campos**
 
Palavras-chave: neurose obsessiva, interpretação, gozo, transferência. 
 
 
João é um jovem universitário, inteligente, que faz sucesso com as garotas, mas há 
alguns anos que tem convivido com uma angústia que acabou por lhe desenvolver o hábito 
repetitivo de lavar as mãos. João chega ao consultório com a demanda de tratar sua “mania de 
lavar as mãos” e de aliviar sua angústia, a qual permanece constituída a despeito das dezenas 
de vezes ao dia que ele lava suas mãos. 
Em decorrência dessa compulsão, João apresenta uma dermatite esfoliativa na pele das 
mãos e em seus antebraços. Ele tem gasto - em sua jaula obsessiva - cerca de três horas de seu 
dia nesse ritual. Antes, lavava apenas as mãos, depois, passou a lavar os antebraços. E, mais 
recentemente, tem lavado também o tronco, o rosto e a cabeça. À noite, antes de dormir, João 
reinicia o processo. Quando finaliza a lavação, ele não pode encostar em nada. Fecha a 
torneira com o cotovelo, depois passa álcool no cotovelo e se dirige para a cama com os 
braços levantados, como um cirurgião antes da cirurgia, sem se encostar em nada. João, 
angustiado, descreve suas compulsões que não se revelam propriamente um sintoma.
 
Consistência do sintoma[1] 
Quando teria iniciado a mania de lavar as mãos? Surpreendentemente, ele responde: 
Dia 01 de maio de 1994. Mas, o que aconteceu nesse dia? Creio que nada aconteceu de 
especial, a não ser o fato do Senna ter morrido. João ressalta que aprecia a velocidade, mas 
após a morte do Senna perdeu todo o interesse pela “Fórmula Um”. Quando mais jovem, 
queria ser piloto de corrida como Senna. Confessa que tem uma motocicleta possante e que 
abusa da velocidade tanto no campo como na cidade, às vezes enfrentando situações de risco. 
Assinala que tem muito medo da morte, mas mesmo assim, não entende por que tem colocado 
a vida em perigo em várias ocasiões por causa da alta velocidade. Encerro a sessão deixando 
1
essa questão como enigma. O sujeito tem na velocidade o seu mais gozo e sua causa de 
desejo.
Na sessão seguinte, João considera absurdo esse procedimento de lavar as mãos 
repetidamente e confessa todo esse aparato com certo constrangimento. João confidencia ser 
um sujeito muito angustiado. Pergunto se a lavagem das mãos alivia a angústia. Ele revela 
que no início, o ato de se lavar praticamente acabava com a angústia, mas atualmente ela se 
atenua, fugazmente, apenas no momento do ritual. Narra que sofreu nos últimos tempos uma 
intensificação da angústia. Assinalo, então, que houve alguma serventia em se lavar e que esse 
ato deve lavar mais alguma coisa além das mãos. Talvez fosse necessário, hoje, encontrar 
outro método mais consistente de aliviar sua angústia, ponderei.
 João comenta: Todo esse processo é demorado, porque após lavar as mãos, eu não as 
enxugo e aguardo pacientemente a água escorrer certo. Mas a água escorre sempre errado e 
eu não paro de lavar as mãos até que ela escorra certo pelos meus antebraços e minhas 
mãos. Relata que não pode deixar de lavar as mãos ainda que considere esse ato absurdo e 
sem sentido. Sou coagido por mim mesmo a lavar as mãos. Indagado sobre as razões dele se 
lavar tanto, João responde que aparentemente não vê motivo. No entanto, quando questionado 
o que aconteceria se ele não se lavasse, ele responde: Se eu não lavo, surge uma sombra 
negra em minhas mãos. Trata-se de um negro que não é um sujo de minha mão. Se eu olho 
para minhas mãos, vejo que elas estão limpas e brancas e que não há negro algum. Mas, 
apesar disso, eu tenho a impressão que há uma mancha negra e tenho que lavar as mãos até 
que esse negro desapareça. Quando não há mais negro algum nas mãos, ele surge ora no 
antebraço, ora no tronco, ora na face, o que me faz persistir lavando várias partes do corpo. 
 Pergunto: afinal, que relação o negro tem com o fato da água escorrer certo ou errado? 
João ressalta: Quando a água escorre certo, significa que a sombra negra foi lavada e 
desapareceu e quando a água escorre errado significa que o negro permanece, devendo eu 
continuar lavando as mãos. João comenta que a mancha negra tem aparecido também sobre 
os seus sapatos. Se sente incomodado, pois, às vezes, é surpreendido pelos seus familiares 
lavando seus sapatos sem necessidade aparente. É absurdo mas parece que a água limpa e 
purifica o negro. Sinto que a água tem haver com a vida e o negro tem haver com a morte. 
Parece que a água me purifica da morte. O analista acolhe suas ruminações, procurando 
extrair delas um sintoma propriamente analítico. Éric Laurent ressalta que o obsessivo tem um 
véu[2]. Nesse caso, pode-se indagar se João revela um trauma, cujo real da morte se apreende 
2
sob o véu da mancha negra. Com efeito, João tenta recobrir em vão pela compulsão de lavar 
as mãos essa sombra negra que vela o real. 
 
Interpretação
Noutra sessão: O negro me angustia porque ele me reporta à morte. Morro de medo 
de morrer. Penso que a morte é uma escuridão negra. Lembro-me que a primeira coisa que 
fiz, depois da morte do Senna, foi entrar dentro de um chuveiro. Acho que eu queria me lavar 
todo. Foi aí que os sintomas apareceram? Acho que sim. Me senti contaminado pela morte 
dele. Fiquei horas no banho. Sentia a água escorrendo no meu corpo e de repente pareceu 
que um dedo deslizou sobre as minhas costas. Foi o dedo do Senna? Intervenho na tentativa 
de permitir uma convergência de suas ruminações em um sintoma mais consistente. Ele ri 
muito e nega que era o dedo do Senna. Mas, continua: Parece coisa de maluco, mas num 
flash pensei o Senna na escuridão. Penso que na morte deve ser tudo negro. Um longo sono 
negro sem sonho numa noite escura em que nunca se acorda. Na realidade, eu me coloquei 
no lugar do Senna. 
Na sessão seguinte, João traz um sonho: no sonho estava dormindo e o Senna vem me 
abraçar. Fico feliz em vê-lo. Mas, quando ele me abraça, sinto que ele está frio. Acordo 
angustiado. O sujeito entrelaça Senna como o mestre, a velocidade como mais de gozo e a 
morte como o real. 
 Se por um lado, andar em alta velocidade pode ser considerado uma formação reativa 
contra a morte, por outro, o excesso de velocidade em que o sujeito se coloca pode ser 
considerado também um acting out. O acting out não é da ordem do desejo, mas da natureza 
da pulsão escópica. Ele é uma mostração que se deixa velar para o próprio sujeito da ação. Em 
seu exibicionismo, o acting out é visível ao máximo, mas que está localizado no registro do 
invisível para o sujeito com relação a sua causa, onde o essencial é ele se mostrar como 
resto[3]. 
 Após o sujeito se exceder na velocidade, sobrevinha-lhe o medo da percepção do 
perigo que correra. O sujeito morre de medo de morrer e, na velocidade, faz um jogo com a 
morte para testar se está realmente vivo. Lacan nos adverte que o medo do perigo não é senão 
a angústia. A noção do perigo interior funciona como uma estrutura de conservação ligada à 
defesa[4]. Ainda sobre o mecanismo de atenuação da angústia, pode-se considerar que a 
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lavagem das mãos é uma defesa da angústia de separação, dado que o sujeito não consente 
com a separação vivida como luto. A angústia é um sinal do real que surge na experiência de 
separação do objeto[5]. O sujeito não tolera a separação do objeto, acarretando uma 
insuficiência na pulsão e uma insatisfação pulsional de tal sorte que a repetição se faz 
automática e sem novidade.
 Numa outra sessão, João mais uma vez descreve seu ritual de lavar as mãos. Ele 
comenta que, após a lavagem apurada, observa a água escorrer lentamente pelo seus braços e 
mãos. Então, o ritual deve ser repetido, sempre mais uma vez, até que a água escorra certo.Mas, a água escorre errado, comenta repetidamente. Interrompo a sessão, intervindo: es (S) 
corre errado[6]. Ele perplexo e surpreso não compreende[7]. 
 Na sessão seguinte, João chega muito abatido. Senna correu errado. Murmura. 
Morreu porque correu errado. Como pode Senna ter corrido errado? Logo ele? Você acha 
que eu fico tentando me livrar dessa idéia de que Senna correu errado? Silêncio. Se ele que 
era o campeão, morreu correndo errado, é claro que isso pode acontecer comigo que fico 
andando em alta velocidade pelo trânsito. Silêncio. Parece que a morte tem haver com o 
negro. Na verdade, todo o tempo, eu luto contra o negro. Intervenho: Então, o luto é o negro? 
Será que quero me livrar do negro lavando as mãos, para não fazer o luto? A interpretação 
confronta o sujeito com a causa de desejo, numa localização subjetiva, ao assinalar o índice da 
separação do objeto. Assim, o sujeito faz o luto do objeto nada no qual gravitava sua angústia 
constituída. Enfim, o sujeito é confrontado com o real da causa e suporta colocando em ato a 
fabricação de uma aparelhagem sintomática. A interpretação subjetivou a angústia oferecendo 
uma consistência ao sintoma e elevando-o a dignidade do conceito psicanalítico. 
 Eu luto contra a idéia da morte do Senna, que no fundo é a idéia da minha própria 
morte. Penso que toda essa compulsão tem haver com a minha dificuldade de lidar com a 
minha morte. Mas, isso é uma coisa que terei de aprender a lidar e só eu terei condições de 
responder por isso. Com a interpretação o sujeito percebeu que ele enlaçara o negro 
imaginário com o luto simbólico enodando-o com o real da angústia de tal sorte que, diante 
desse nó, ele incluiu a exteriorização do objeto a. 
4
Transferência
Após essa sessão, João retornou mais algumas vezes. Seus relatos, agora, são de que, 
gradativamente, a idéia do negro em sua mãos foi sendo deixada de lado fazendo com que o 
ritual de lavação fosse perdendo toda sua força e relevância, pois agora estava esclarecido que 
essa rotina se destinava a fazer com que Senna corresse certo. Portanto, João se sentia ridículo 
toda vez que se lavava. O saber construído fez com que o ritual se tornasse risível. A 
interpretação provocou um corte no funcionamento pulsional do supereu. O interessante é que 
o imperativo categórico do supereu lave as mãos para dar conta do negro do imperativo do 
gozo cedeu lugar para o afeto superegóico da vergonha e para um humor experimentado como 
ridículo, tentativas do sujeito em lidar com o supereu. 
A interpretação trouxe uma perda do sentido que provocou um reenodamento de RSI 
de forma a resultar na perda de gozo e em uma nova orientação do gozo opaco a partir da 
queda dos efeitos imaginários, propiciando uma angústia constituinte da exteriorização do 
objeto perdido. Aliás, a angústia não é sem objeto[8]. 
Um dia, João veio à sessão e disse que não voltaria mais uma vez que não estava 
precisando mais da análise, pois sua angústia se deslocara. Também, não estava mais lavando 
as mãos e para ele isso era o bastante. João deixou a análise há alguns anos. Na época, 
considerei que fosse uma interrupção e cogitei se houve uma vacilação do desejo do analista. 
Hoje, considero que João concluíra uma análise terapêutica. Segundo Graziela Brodsky, no V 
Congresso da EBP (2005): É necessário elevar a interrupção à dignidade de um conceito na 
lógica da cura. 
 Sobre isso, cabem alguns comentários. Primeiro, houve uma análise. Segundo, houve 
uma psicanálise aplicada à terapêutica. Terceiro, os efeitos terapêuticos foram obtidos sem 
delongas, haja visto que a análise não durou mais do que seis meses. De acordo com Lacan, 
os bons efeitos da análise duram apenas um certo tempo, o que não impede que seja uma 
saída. É melhor do que não fazer nada. A prática com a psicose ensinou a Lacan que não é 
possível enodamentos definitivos e, sim, apenas soluções provisórias com enodamentos 
contigenciais. À guisa de conclusão, pode-se dizer que a psicanálise aplicada à terapêutica é 
um médium que coloca a psicanálise no século XXI, haja visto que ela ensina os analistas a 
desidealizarem a psicanálise pura, atualizando a psicanálise em conformidade com o declínio 
dos ideais no contemporâneo.
5
 Recentemente, o pai de João morreu em um acidente com motoclicleta. A moto, em 
alta velocidade, saiu da pista e bateu contra um poste. Fui até o cemitério para oferecer 
minhas condolências. João, agradecido pela minha presença, me disse que, se precisar de 
ajuda, voltará.
* Trabalho apresentado na XI Jornada de Psicanálise da EBP – Seção Minas Gerais.
[1] Com referencia ao Texto de Éric Laurent publicado em Mental, Revue internationale de santé mentale et 
psychanalyse appliquée – 13 décembre 2003.
[2] LAURENT, E., Mental, Revue internationale de santé mentale et psychanalyse appliquée – 13 décembre 
2003.
[3] LACAN, J. L’angoisse, Le Séminaire, livre X, 1962-1963, Paris: Éditions du Seuil, 2004:146. 
[4] LACAN, J. L’angoisse, Le Séminaire, livre X, 1962-1963, Paris: Éditions du Seuil, 2004:188.
[5] LACAN, J. L’angoisse, Le Séminaire, livre X, 1962-1963, Paris: Éditions du Seuil , 2004:195. 
[6] A interpretação através do equivoco da homofonia isolou a letra na qual cifrava o gozo. Lacan assinala que 
“o equivoco com o qual acabo justamente de jogar, quando nele reconheço a abordagem predileta do 
inconsciente para reduzir o sintoma: contradizer o sentido”. (Lacan, 1975, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 
2003, p. 317).
[7] Lacan assinala que o inconsciente é um lugar diferente de todo e qualquer apreensão do sujeito que se revela 
um saber, visto que ele se oferece naquilo que do sujeito é o engano...O saber que só se revela no engano do 
sujeito (LACAN, 1975, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003, p. 337). 
[8] Enunciação de Lacan no Seminário: L’angoisse retomada por Miller no texto Angustia constituída, angustia 
constituinte durante as últimas jornadas de outono da ECF.
 
 
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