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A MORTE DE SI MARCELO VERAS Cult editoraParece que a psicanálise, assim como a filosofia e a literatura, na- vega por águas turvas e revoltas, lida com estranho e perturbador. Porém, que é mais espantoso é que esse estranho e perturbador quase sempre está mais próximo e nos acompanha mais cotidia- namente do que imaginamos. Por exemplo, talvez não exista algo mais inquietante e íntimo do que a angústia sobre sentido da nossa própria vida ou, que é pior, sua falta de sentido. Um grande filósofo escreveu que sobre que não se pode falar é melhor nos calarmos. Este precio- so livro, A morte de si, desobede- a essa máxima filosófica e fala sobre que nós devemos calar: le mythe décisif, matar a si mesmo. Não é bom, tampouco agradável, talvez nem mesmo seja possível, mas é necessário. Unindo uma escuta de três décadas na clínica analítica a uma fina e original leitura de Freud e Lacan, e atravessando a literatu- ra, cinema, a filosofia e estu- dos sobre suicídio, Marcelo Veras escreveu um livro único direto, duro, poético, generoso. Mais do que um livro sobre a clínica do suicídio, A morte de si é sobre conflito que inventa nossas exis- tências, a luta entre Thanatos e Eros que levamos a cabo até úl- timo minuto. A morte de si será um divisor de águas nos estudos humanistas sobre sofrimento humano. Waldomiro J. Silva Filho Professor titular de filosofia da UFBA, pesquisador do CNPq, autor, entre outras obras, de Procurando razões (2022), A calamidade (2022) e Os dias (2023).A MORTE DE SI MARCELO VERAS Cult editoraA morte de si COPYRIGHT © 2023 Editora Bregantini COPYRIGHT © 2023 Marcelo Veras Todos os direitos reservados pela Editora Bregantini. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem autorização prévia da editora PROJETO EDITORIAL Fernanda Paola EDIÇÃO Welington Andrade PREPARAÇÃO E REVISÃO Fábio Fujita PROJETO GRÁFICO E DESIGN Fernando Saraiva CAPA Paranzjah, de Caius Marcellus Araújo, grafita e ouro de iluminura sobre papel Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bibliotecária Aline Graziele Benitez CRB-1/3129 Veras, Marcelo A morte de si / Marcelo Veras. 1. ed. São Paulo : Editora Bregantini, 2023. ISBN 978-65-86596-21-2 1. Psicanálise 2. Psicologia I. Título. 23-168242 CDD-150.195 Índices para catálogo sistemático: 1. Psicanálise : Psicologia 150.195 CULT EDITORA Praça Santo Agostinho, 70 - andar, Paraíso São Paulo, Brasil CEP 01533-070 11 3385 3385 11 9 9998 9728SUMÁRIO 9 PREFÁCIO: QUEM MATAMOS QUANDO MATAMOS A NÓS MESMOS? 15 1. DESISTIR OU DESEXISTIR? 67 2.0 CORPO 125 3.A DOR DE EXISTIR 169 4. A SOLIDÃO DOS HIPERCONECTADOS 187 5. TRÊS HISTÓRIAS SOBRE SUICÍDIO 207 6. CONVERSANDO SOBRE SUICÍDIO 227 7. aFINAL 233 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS001PREFÁCIO QUEM MATAMOS QUANDO MATAMOS A NÓS MESMOS? Carnaval tem destas coisas, é momento da explo- são da alegria, meio maníaca, da transgressão das regras morais, corpos se animam, começam novos namoros, muitos fadados a acabar na Quarta-Feira de Cinzas. Carnaval brasileiro seria outro se não fosse o com- positor baiano Assis Valente. Na minha infância, eu ia para bailes de Carnaval, e era imperativo cantar suas músicas. mais estranho é que, em meio à alegria, as pessoas cantam músicas que são tristíssimas. Como bom baiano, ele gostava de São João, Carnaval e Natal. Em 1932, Assis Valente já fazia sucesso e conseguiu que suas composições fossem interpretadas pelas melhores cantoras da época, como Carmen Miranda. Até hoje algu- mas são patrimônio da MPB, como "Brasil pandeiro", can- tada pelo Bando da Lua e consagrada pelos Novos Baianos. Mas, no mês do Natal, ele teve uma de suas tristezas ao ver, num quarto de hotel no Rio de Janeiro, um pequeno quadro 9na parede com a imagem de uma menina com os sapatinhos sobre a cama esperando Papai Noel. E compôs uma música que eu sempre ouvia quando criança e que me deixava na expectativa dos presentes, mas não me dava conta do sen- tido dos versos: "Já faz tempo que eu pedi/ Mas o meu Papai Noel não vem/ Com certeza já morreu/ Ou então felicidade/ É brinquedo que não tem". Surgiu nessa noite triste a música "Boas festas": "Anoi- teceu, sino gemeu/ E a gente ficou feliz a rezar/ Papai Noel, vê se você tem/ A felicidade pra você me dar/ Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel...". sambista comentou: "Quando passou a tarde, a música estava feita. Papai Noel não tinha vindo, mas eu ganhara um presente a melhor de minhas Em outra canção, "Alegria", escutamos o lamento do artista: "Esperando a felicidade/ Para ver se eu vou melhorar/ Vou cantando, fingindo alegria/ Para a humanidade/ Não me ver chorar". Ele se matou em março de 1958. É verdade que estava atolado em dívidas, mas a tris- teza de suas letras aponta um sentimento de desconexão mais profundo com a vida. Após sua morte, encontraram uma carta no bolso de sua calça: "Vou parar de escrever, pois estou chorando de saudade de todos e de tudo". Também pediu ao amigo Ary Barroso para pagar a dívida dos aluguéis atrasados. Na mesma carta, afirmou que estava muito can- sado das injustiças e que nada mais encantava. Mas essa não foi a única carta que escreveu, muitas de suas músicas são cartas do seu inconformismo com a desigualdade da vida. menino Assis Valente era triste, ele é a menina de sapatos vazios, ele é menino que manda seus sonhos em um balão, ele também era eu, que, menino, cantava estes versos sem me dar conta: Numa noite de fogueira enviei a São João meu sonho de criança num formato de balão Mas vento da mentira derrubou sem piedade 10balão de meu destino na cruel realidade [...] Cai, cai, balão! Este livro começou a ser pensado há mais de dez anos. Sempre tive dificuldade para encontrar as boas palavras para falar de suicídio, mas elas existem e, aos poucos, foram che- gando até mim. Vieram da escrita de Ana Cristina César, Vir- ginia Woolf, Stefan Zweig, Assis Valente e, principalmente, de pacientes que escutei desde jovem analista. Aos poucos fui me dando conta de que a psicanálise me oferecia um saber fazer, além de referenciais clínicos e éticos. E, sobretudo, em minha análise pessoal, suportei perdas e me alegrei com a virada em direção à vida de alguns que queriam apenas morrer. Reunir minhas ideias e me pôr a escrever só foi possível com o encorajamento de um amigo, Waldomiro Silva Filho, sem qual este livro não estaria em suas mãos. Depois de dois anos de cobranças, texto começou a tomar forma. suicídio é um tema complexo demais e, às vezes, só palpável em pequeninos detalhes, por isso a escuta tem de saber cap- tar aquilo de que falei em meu livro precedente, Ruídos e silên- cios da vida confinada. Em um mundo repleto de injustiças, é preciso encontrar um modo de continuar a apostar na vida. Essa é a mensagem que queria passar: viver é uma aposta, mas nunca sabemos contra quem ou que apostamos. PREFÁCIO 11O-é-dj-pus Caius Marcellus Araújo Grafita e ouro de iluminura sobre papel.1 DESISTIR OU DESEXISTIR? Quem foi temperar choro e acabou salgando pranto? poderia começar com Albert Camus em mito E de Sísifo: só existe um problema filosófico real- mente sério, suicídio. Prefiro, contudo, começar com versos do poeta paraibano Leandro Gomes de Barros, que é citado por Ariano Suassuna em um comentário sobre o suicídio: Se eu conversasse com Deus iria Lhe perguntar por que é que sofremos tanto quando viemos para cá? Que dívida é essa que homem tem de morrer para pagar? Perguntaria também como é que Ele é feito que não come, que não dorme 15e assim vive satisfeito. Por que foi que Ele não fez a gente do mesmo jeito? Por que existem uns felizes e outros que sofrem tanto, nascidos do mesmo jeito, criados no mesmo canto? Quem foi temperar choro e acabou salgando o pranto? Com esse poema, poeta vai além de Camus. Não é o suicídio problema mais sério, ele faz parte de um problema maior, que é o do mal e do sofrimento humanos. Por que Deus nos dá a vida para sofrermos tanto? A escuta por décadas, como psicanalista, desse sofrimento me motivou a escrever estas páginas. Vou falar sobre suicídio tendo como perspectiva a escuta analítica, suas possibilidades e seus limites. Não se trata de uma teoria sobre suicídio e todas as suas implica- ções, tampouco um manual de como agir quando a questão do suicídio se instaura na clínica e no mundo em geral. Fale- mos do suicídio entre nós, nós do suicídio. Vou pegar pontos específicos de conexão entre, de um lado, 0 que se fala e 0 que se escreve sobre o suicídio em geral e, do outro, a minha prática como analista. Talvez melhor título fosse suicídio tal como lido na prática. Não sei bem se verbo desta frase é ler ou lidar. Mas sabemos que, na prá- tica, toda teoria é outra. Na peça teatral último capítulo, escrita e encenada pelo ator baiano Danilo Cairo, uma adaptação do conto homônimo de Machado de para mundo das mídias sociais, 0 autor inclui um outro aspecto do suicídio, que é a espetacularização. Na última vez que assisti ao trabalho, por 1 Espetáculo solo protagonizado por Danilo Cairo que teve quatro apresentações em setembro de 2020 na Casa Preta Espaço de Cultura, em Salvador (BA). Na trama, personagem Matias Deodato é um advogado que, cansado dos infortúnios que assolam sua vida, decide acabar com ela, exibindo seu ato derradeiro através de uma live. 16conta da pandemia, ele havia adaptado a peça para uma ver- são virtual, assim como o debate que realizamos em seguida. Curiosamente achei bastante oportuna a versão virtual da peça, pois muito da minha abordagem aqui passa pelo modo como as mídias sociais modificaram comportamento das estatísticas do suicídio, em escala mundial. A FALA DO ATOR Não, não, não, não! Calma, calma, calma! Eu não vou em- bora, não! Calma, calma. Eu não pretendo fazer disso aqui nenhum filme de terror, nem um programa policial desses que reviram nosso estômago, todos dias, no horário do almoço, e, mesmo assim, a gente continua a assistir. Não! Eu quero ser horário nobre! Com a presença dos melhores con- vidados, dar um tratamento estético pra isso, um lirismo que seja coerente com essa situação, pensar, enfim, um processo ritualístico que marque pra sempre na lembrança de cada um de vocês que estão me assistindo agora! Então tema do conto é o suicídio. A meu ver, poucos auto- res tiveram a fineza de trabalhar esse tema como Machado de Assis. Primeiro porque é na ironia, que não é sarcasmo, que vamos perceber alguns Witz, alguns chistes, em relação ao modo como próprio Machado de Assis se conectava com os vivos e mortos. A ironia e o humor são fundamentais para a psicanálise, pois são maneiras de se obter uma mudança sub- jetiva de nossos pacientes, permitindo a passagem do trágico para cômico. Talvez você se lembre da dedicatória com que se inicia livro Memórias póstumas de Brás Cubas, também de Machado: "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memó- rias póstumas". Ou seja, existe então, no modo "machadiano" de conceber a morte e além, a possibilidade de os mortos se manifestarem. E se que tiraram a própria vida também pudessem nos contar a razão de seu ato? Convido você a pen- sar que todo suicida tem uma carta. A carta do suicida não é 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 17um gênero literário, mas diz muito sobre a maneira como cada um decide morrer. Pronto, prefiro o verbo ler ao verbo lidar. Mesmo nos casos em que nenhuma carta foi encon- trada, sabemos que ela pode ter sido jogada dentro de uma garrafa no mar. Às vezes temos a sorte de encontrar essa mensagem quando menos esperamos. A carta no suicídio é crucial para os que ficam, suas palavras se tornam uma subs- tância para dar algum escoramento ao vazio da perda. Lem- bro-me bem de uma paciente que ficou anos entre luto e a perplexidade diante da morte inexplicável de uma irmã. Muitos anos depois ela descobriu que sua irmã vivera por anos uma relação secreta e intensa com um homem casado, e que ele decidira ficar com a esposa. Só depois dessa desco- berta é que ela pôde realizar um trabalho de luto e seguir sua vida. Ela me disse que, finalmente, "a vida e a morte da irmã faziam algum sentido". A expectativa do encontro da carta mobiliza os afetos de todos. Todos queremos ler essa carta, a família, a polícia, a imprensa, também os escritores de romance, de novelas policiais e mesmo os poetas. Este livro não seria possível sem essas cartas. Foram elas que, inicialmente, motivaram meu interesse. Quando falo de cartas, falo que o suicídio, por mais que seja um ato solitário, inclui destinatário. suicídio não ocorre sem Outro, quer seja um gesto "para" um outro, quer para "separar-se" dele. Explicarei mais adiante um pouco melhor que é esse Outro. A alteridade, sem dúvida, é um tema complexo para a psicanálise. Mas aqui, neste primeiro momento, eu chamaria esse outro de destinatário, aquele para quem a carta se dirige. Inicialmente, antes de entrarmos no tema, como mui- tos não conhecem minha trajetória, acho que eu devo me apresentar e dizer de onde parto para estar escrevendo aqui sobre suicídio. Meu contato inicial com a necessidade de fazer alguma coisa pela morte do outro veio dos anos como estudante de medicina. Aprendemos que a nossa função é de 18salvar vidas, prolongar e modificar as rotas inexoráveis que nos levarão, algum dia, a encontrar a morte. Já formado, fiz um percurso de alguns anos como residente de cirurgia car- díaca como gosto de dizer, já parti muitos corações e plantonista de unidades de terapia intensiva, que, nos anos 1980, eram muito menos sofisticadas do que as atuais, ou seja, tratava-se de ambientes onde a experiência da impo- tência diante da morte era algo cotidiano. Houve um momento em que descobri que a cirurgia e a UTI não funcionavam muito para mim. o momento de que eu mais gostava, como residente de cirurgia cardíaca, era o antes e depois, quando eu podia falar com os pacientes e, sobretudo, ouvi-los. A partir dessa constatação, comecei a perceber que tinha um outro caminho na clínica médica para explorar, e foi assim que acabei na psiquiatria. Já estava casado e tinha uma filha quando decidi fazer uma outra resi- dência, agora pensando que encontraria as palavras que não conseguia escutar ou dizer na clínica médica. A transição do bisturi à palavra foi muito impactante para mim, raciocínio é diferente, a cirurgia tem um poder de resolutividade muito maior. Quem me dera se pudesse extirpar as paixões como se extrai um apêndice. Mas, quando fui para a psiquiatria, também não gostei muito, percebia que as drogas usadas pelos pacientes, sem dúvida muito necessárias em alguns casos, distorciam minha escuta e meu raciocínio clínicos, deixando pouca margem para que eles encontrassem outras soluções para expressar seus afetos, delírios e alucinações. Como precisava sobrevi- ver, continuei dando plantões de UTI e fazendo a residência de psiquiatria ao mesmo tempo. Creio que eu era, ao menos na Bahia, único psiquiatra que também era plantonista de UTI. Os plantões de UTI pagavam melhor. Inclusive foram nesses plantões de UTI que topei com meus primeiros casos de tentativas de suicídio graves; foi quando comecei a ter um acesso maior a esses casos e a perceber como havia pouco espaço para a palavra do paciente, considerada menos impor- 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 19tante do que medicar e localizar a patologia em questão. Com frequência eu os via ainda na perplexidade do próprio ato, sem serem capazes dizer 0 que se passara, o que os motivara àquilo naquele momento. Mas transformar em doença ato suicida acaba por calar a subjetividade daquele que o perpe- trou. Em assuntos de vida e morte, sempre recordo uma frase de Millôr Fernandes: "A vida é uma doença mortal, transmi- tida por via sexual". Foi nessa época que comecei minha análise pessoal e, por algum tempo, hesitei entre ficar onde estava e me tornar psicanalista. Tornar-se psicanalista não é algo banal. As ins- tituições psicanalíticas, a seu modo, sabem como é impossí- vel separar esse desejo de ser psicanalista da própria análise. Não podemos dizer que é um desejo puro, ele é sempre atra- vessado pelos nossos sintomas. Querer ser psicanalista pode ser um sintoma como qualquer outro. Foi quando ocorreu um fato que faz parte da rotina de quem trabalha em uma UTI, local em que sempre há casos no limite da morte, e que me fez decidir pela psicanálise. Digo banal porque a condição para suportar um estado de emer- gência constante em um plantão de UTI é um certo enrijeci- mento dos afetos: tornamo-nos todos um pouco insensíveis, por sobrevivência. fato foi seguinte: um dia, no meu plantão, um colega, também médico do hospital, entra porta adentro, sem mesmo passar pela portaria, carregando seu filho, que tinha sido encontrado desfalecido no fundo da piscina. Um menininho de três para quatro anos. Começamos imediatamente a fazer as manobras de ressuscitação, eu o entubei, pegamos uma veia subclávia, que tem maior calibre, fizemos adrenalina, massagem cardíaca, com toda a equipe mobilizada, durante muito tempo, tentando reanimar aquela criança, que tinha chegado praticamente sem sinais vitais. Havia, contudo, um agravante: fato de esse meu colega se encontrar ali na cena. Estávamos sob olhar de um pai diante de seu filho. Quan- tas questões estariam passando pela sua cabeça? o medo da 20perda, a culpa por não ter visto cair, a destruição de sonhos de futuro. Chegou um momento em que nós, da equipe, come- çamos a nos entreolhar: desistiríamos? Ao lançar um olhar para meu colega em desespero, que deve ter durado uma fra- ção de segundo, ouvi dele uma frase de que não me esqueço: "Marcelo, eu sei, mas tenta mais um pouquinho!". Hoje aquela criança é um homem adulto, com sua pró- pria família, saudável. Sempre que eu encontrava com esse meu colega na frente de alguém, ele fazia questão de dizer: "Este é cara que salvou meu filho!". Eu ficava embaraçado porque que salvara seu filho havia sido seu olhar de pai. Foram anos de análise interpretando aquela cena, sobretudo por eu mesmo ter passado por uma experiência pessoal meses antes do episódio. Tive um filho que nasceu prematuro e que ficou algumas horas no berçário antes de eu perder. Então não era apenas meu colega naquela cena: eu também estava lá, sentado em um banquinho de hospital na frente da incu- badora, impotente por não conseguir salvar meu filho. Sem dúvida, se não fosse pela presença do meu colega, nós tería- mos feito todas as manobras de ressuscitação e seguido todos os protocolos, mas ficaríamos somente tristes pela perda da criança, tendo feito tudo 0 que estava ao nosso alcance e interrompendo a reanimação. que nos moveu, no entanto, foi desconforto da frase "tenta mais um pouquinho". E foi aí que eu percebi que, por mais que sejam impor- tantes os protocolos, as regras, a aceitação dos limites da vida, nada subverte mais as expectativas do que 0 desejo. É desse desejo, que vai contra as regras, que a psicanálise se ocupa. desejo não faz milagres, mas nos leva além e nos permite transgredir um pouco, sair das rotinas. A psi- canálise surgiu precisamente no momento em que algumas pacientes histéricas de Freud, que eram tratadas como se tivessem algum problema orgânico, estavam, na verdade, atravessadas por desejos inconscientes, muitas vezes con- traditórios, que não encontravam outro modo de expressão além do próprio corpo. 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 21Desde Freud, com o mito da interdição por Édipo, sabe- mos que a primeira inscrição do desejo, desejo pela mãe, já é proibido, mas que foi consumado por uma transgressão das leis na tragédia. Por isso recomendo pensar que, diante de um possível suicídio, e sei que muitos leitores deste texto lidam com a questão do suicídio na clínica, no ciclo de amiza- des ou mesmo na própria família, é preciso lembrar que você mesmo já se interrogou se a vida deveria continuar ou parar. Se a sua vida valia a pena. No meu caso, alguns suicídios me marcaram muito, de pessoas próximas a mim, amigos, fami- liares, ídolos e pacientes. Pessoas por quem tinha grande apreço e que me deixaram diante do enigma de seu ato final. As motivações são sempre bem diversas, nunca deve- mos julgar precipitadamente que suicídio de alguém se deu por uma única causa. Minha escolha pela psicanálise sem- pre se baseou no fato de que, para além das causas explíci- tas, todos possuem um leque de situações inconscientes que também estão presentes na decisão de cada um. É necessário analisar com cuidado os fatos que culminaram no ponto de viragem em que a proteção de si, conferida pelo amor narcí- sico, foi substituída pela vontade de terminar com a própria vida. Constatamos na clínica analítica que a decisão pelo suicídio pode acontecer em pessoas que nunca tinham pen- sado nisso anteriormente. E, muitas vezes, é uma ideia que se desencadeia aos poucos e vai ganhando corpo. Meu propó- sito é mostrar que o que está em jogo no suicídio, na maioria das vezes, é a "morte de si", algo bem distinto da "morte de mim". Dizer que se trata de uma morte de si é dizer que há um assassinato de si, ou seja, em muitos casos é essa persona que se apresenta para nós diante do espelho que se busca eliminar. A morte de si é um tema que surge com frequência em um projeto que coordeno na Universidade Federal da Bahia, que escuta a urgência subjetiva da comunidade universitária, algo como 50 mil pessoas. Psiu, Programa de Saúde Men- tal e Bem-Estar da UFBA, tem uma equipe de mais de trinta voluntários orientados pela psicanálise lacaniana, que ofere- 22cem seus ouvidos para vozes frequentemente em desespero, à iminência de uma tentativa de suicídio. Já realizamos nos últi- mos cinco anos do projeto mais de 10 mil acolhimentos de pes- soas nessa situação, em urgência subjetiva. Oferecemos um encontro com um psicanalista, às vezes virtual, e o resultado é que Psiu, provavelmente pelo acesso fácil e desburocrati- zado de encontrar alguém na hora do desespero, apresenta um número baixíssimo de suicídios consumados apenas dois até hoje. Um dos melhores resultados entre os programas universitários de prevenção de suicídio que conheço. Vivemos um momento inquietante no qual fenômeno da elevação das taxas de suicídio é percebido em todas as universidades e escolas, não apenas no Brasil, como em todo o mundo. preocupante aumento de suicídio entre jovens não tem precedentes nas estatísticas de suicídio ao longo dos séculos. Enquanto em outras faixas etárias números seguem maiores regularidade e previsibilidade, suicídio de jovens aumentou sensivelmente. Cada vez mais escutamos histórias de tentativas de suicídio e de mortes de crianças de nove, dez anos de idade, e, sobretudo, de adolescentes (Campos, 2019). De fato, os universitários que buscam o Psiu são, em sua maioria, ainda adolescentes ou jovens adultos, que deveriam ter um futuro pela frente. que está acontecendo? Ninguém entra para a uni- versidade sem um projeto de futuro, certo? Então, que se passa com esses jovens que buscam um futuro e, de repente, decidem se matar? Alguma coisa faz com que, cada vez mais, nos confrontemos, nas instituições que lidam com jovens, com a experiência da tentativa de suicídio e do suicídio efe- tivado. No fundo, grande desafio que me fez conceber o Psiu foi: como pode o encontro com um psicanalista ser útil na prevenção do suicídio? Obviamente a palavra prevenção deve ser lida com cautela; nunca devemos ter a pretensão de achar que há algum método infalível preventivo. É o que encontraremos na sociologia de Émile Durkheim, que estudou meticulosamente, à sua maneira, o suicídio na 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 23sociedade. Podemos discordar aqui ou ali, mas a obra de Dur- kheim é uma referência incontornável para pensar a questão do suicídio. Não vou me deter nesse estudo, pois pretendo abordar mais especificamente a ação psicanalítica. Quando falo de psi- canálise e suicídio, não me refiro exclusivamente aos aspectos sociológicos, políticos ou filosóficos, que são, é claro, impor- tantes; falo precisamente o que é uma abordagem que leva em conta a transferência, vínculo que é possível construir com alguém que pretende romper todos os vínculos. Em meus anos morando em Paris, fui psiquiatra plan- tonista do hospital Fernand-Widal, que fica no décimo arron- dissement, e que era hospital de referência para tentativas de suicídio na cidade. Nossos plantões eram sempre carrega- dos pelas questões do suicídio, pois hospital ficava ao lado do centro de análises toxicológicas, e é fato notório que uma das formas de tentativa de suicídio mais comuns é a ingestão de alguma substância nociva ao sujeito. psiquiatra-chefe do serviço, já falecido, era membro fundador de uma sociedade de suicidologia. Um dia ele me disse que essa sociedade havia sido desfeita, pois ele mesmo não acreditava mais que fosse possível sustentar uma disci- plina como a suicidologia. Chegara à conclusão de que não havia a possibilidade de criar uma ciência nesse sentido, por- que suicídio é tão atravessado por fatores distintos e impre- visíveis que o objeto corria o risco de ser relativizado demais, olhado em grandes proporções, deixando escapar, sob os nossos olhos, a singularidade de cada ato de uma vida que sempre é única. Por isso convido você a repensar algumas propostas difundidas e que beiram a charlatanice, como a possibilidade de reduzir as taxas de suicídio a zero. No mínimo é uma ingenuidade, mas sabemos que existem pessoas que anun- ciam tal meta. Isso é difícil, muito difícil, por várias razões: vejamos que as taxas de suicídio são calculadas a partir de casuísticas positivas, suicídios realizados, definidos como tal; mas a experiência clínica nos mostra que há um número 24expressivo de suicídios que são realizados silenciosamente. São pessoas que desistem da vida em silêncio, discretamente, sem que saibamos ao certo. Quantos acidentes de carro, por exemplo, não são suicídios deliberados? Há uns vinte anos, recebi uma paciente por quem passei a nutrir uma grande simpatia. Ela tinha feito pós-doutorado em letras e literatura na França, e as consultas mostravam uma mulher rica em conteúdos, capaz de fazer ironias e mesmo comentários bem-humorados. Ainda assim, ela me procurou, a princípio não por vontade própria, mas pelo fato de estar deprimida e não ver nenhum sentido na vida. Para ela a vida era um fardo. Eu a ouvi por muito tempo, passamos meses conversando. Mas a questão da morte era algo muito presente em seu discurso. Por razões diversas, ela deixou de frequentar meu consultório, e perdemos contato. Passados alguns anos, encontrei por acaso sua irmã, que me contou que ela havia morrido. Quando eu ia perguntar algo mais sobre o fato, a irmã me disse: "Pelo menos ficamos reconfortados porque ela não se matou, ela se equivocou nos remédios, tomou os remédios errados, e sem querer acabou morrendo". É óbvio que não foi isso o que aconteceu. Era alguém que não errava nos cálculos. Ela simplesmente consumou projeto de suicídio que acalen- tava fazia anos. Posso dizer que a notícia me entristeceu, por- que era uma pessoa realmente muito interessante, mas não posso dizer que fiquei surpreso com aquela notícia. Mesmo sem ter uma teoria ou técnica específica para o suicídio, acho que sei como a questão não deve ser abor- dada. Uma delas é pensar que é possível zerar as taxas de suicídio, até mesmo porque, como veremos mais adiante, há suicídios perfeitamente justificáveis. suicídio em si não é uma doença, portanto nem todo suicídio deve ser visto como patológico. Tampouco o suicídio é um sintoma. sin- toma é exatamente aquilo que pode nos defender da falta de sentido no mundo, por isso não devemos ter pressa em resolver sintomas dos pacientes. Diante da precariedade de nossa existência, o sintoma é uma tentativa de introdu- 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 25zir algum sentido nas irrupções do real insensato em nossas vidas. Dentre todas as insensatezes, a maior, sem dúvida, é a falta de sentido das questões envolvendo a vida e a morte. Trata-se daquilo que as pessoas não costumam falar muito em análise, mas que 0 analista experiente consegue captar nos silêncios. É muito complexo viver a vida sem um sentido, melhor, sem Um sentido com maiúscula para nossa existência. Sem se apoiar em grandes idealizações, que são a porta para as grandes decepções, a psicanálise é sempre uma tentativa de ressignificação de valores e ideais. Há quase um paradoxo; quanto mais nos desapegamos de certos valores da vida, aquilo que nos foi transmitido como o mais importante, menos pensamos em nos matar por não ter alcançado. grande drama humano é que não vamos escapar da morte. Podemos até antecipá-la, abreviar essa expectativa, mas a morte é para todos. E é nesse ponto que a psicanálise se separa das religiões. Escuto com frequência: "Ah! Mas a psicanálise é como uma religião!". Respondo que a psicaná- lise não é uma religião, principalmente porque ela não tem saber algum sobre a morte, enquanto o que caracteriza quase todas as religiões é justamente fato de oferecer um saber sobre a morte. A religião é um modo de dar sentido à nossa existência, mas há outros. Falarei disso durante todo livro. Podemos ficar com a afirmação, que talvez pareça banal, mas diz tanto, de que há formas laicas de enfrentar a morte. o cemitério dos vivos e dos mortos Há uns dez anos fiz uma bela viagem pelo Egito. Como não me lembrar de Freud e toda a sua coleção de pequenas anti- guidades que pude ver quando visitei a última casa em que morou, em Londres? Navegamos pelo Nilo, passando por Luxor, até Assuã. A relação da civilização egípcia com os mortos é muito mais natural, os sarcófagos e múmias estão presentes em toda a cultura. E foi na cidade do Cairo que des- 26cobri uma coisa muito interessante, que eu não sabia que era e que me foi explicado por um cairota. Passávamos por um lugar que nos era apresentado como sendo um cemitério, mas havia uma infinidade de pessoas entre e sobre os túmu- los. Eu perguntei: "Mas não é um cemitério?". A explicação que me foi dada era de que ali era cemitério dos vivos e dos mortos. fato é que na cidade do Cairo metro quadrado foi ficando muito caro, e, aos poucos, começaram a construir casas no cemitério. Por quê? Porque as pessoas inicialmente tinham o costume de passar Dia dos Mortos nos túmulos do cemitério. Ali comemoravam, almoçavam, jantavam. Fal- tava espaço para morar, e então muitos ficaram morando sobre os túmulos do próprio cemitério. Essa organização urbana insólita nos traz a relação de contiguidade entre vida e morte, ainda mais quando pensa- mos no Egito, no Egito antigo, onde tudo foi feito para des- pertar da vida após a morte. E, no museu do Cairo, encontrei as riquezas do túmulo de Tutancâmon. Faz exatos cem anos que seu túmulo foi encontrado pelo egiptólogo inglês Howard Car- ter. fato inédito é que as pirâmides do Egito sempre foram saqueadas por ladrões, uma vez que guardavam tesouros do defunto, estocados para despertar, mas a descoberta em 1922 do túmulo de Tutancâmon incluía todos os seus tesouros. Existem milhares de pirâmides no Egito, onde as pes- soas mais abastadas eram sepultadas com seus objetos valiosos, tudo aquilo que era justamente o maior chamariz para ladrões. Então, todos os túmulos eram profanados para roubar esses tesouros. Tutancâmon era um faraó cujo túmulo nenhum ladrão havia, até então, descoberto, por isso foi pos- sível encontrar todas as suas riquezas intactas. Quando vamos ao museu do Cairo, encontramos ali o seu corpo, sua múmia, sobre os quais, graças aos novos processos de scanner e tomo- grafia, é possível obter uma série de informações: como ele morreu, sua idade óssea, seu DNA. Ou seja, é possível mapear praticamente todo o corpo de Tutancâmon, menos encontrar lugar onde habita a sua vida. 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 27Todas as riquezas e os tesouros do faraó estavam preser- vados, mas então que faltava na cena de seu sepultamento? Ali estavam o corpo, suas posses, aquilo que aprendemos com Lacan a chamar de "objetos a", na versão de bem pre- cioso e na versão de dejeto². Mas faltava a possibilidade de faraó gozar deles. Na verdade, quem gozava eram os milha- res de turistas que visitavam museu como eu. Meu propósito é mostrar que a aliança entre a morte e a satisfação pulsional está presente em todos nós, durante toda nossa existência. Por mais que queiramos voltar ao nar- cisismo primário, um tempo hipotético concebido por Freud em que nos satisfaríamos sem investimento libidinal no outro, bem reconfortados no útero e sem necessidades maio- res, a psicanálise demonstrou que esse momento é perdido para sempre quando somos iniciados no universo da lingua- gem. Um exemplo: não comemos apenas porque temos fome, não comemos qualquer coisa, objeto oral vai além da fome e explode em mil matizes gastronômicos. Passamos horas de nossas vidas preparando, desfrutando e depois descartando esses objetos. Tanto que grandes decisões políticas ou finan- ceiras são tomadas à mesa, enquanto se goza da oralidade. mesmo se passa com 0 objeto anal. Para alguns, momento matinal de defecar e ler os jornais é um momento de grande prazer. Mas esse prazer chegou ao máximo na sociedade de consumo atual, cada vez mais marcada pela acumulação de bens inúteis e o seu descarte. Aqui é importante termos em mente modo como Freud pensa a questão do suicídio e a sensação de perda. Podemos, em uma primeira instância, pensar que a perda do objeto, a frustração dessa perda, é suficiente para justificar o suicídio de alguém. Com Freud aprendemos que que está em jogo no suicídio é que o sujeito trata a si mesmo como objeto perdido. Ele diz em seu texto Luto e melancolia: ego só pode se matar se, devido ao retorno da catexia objetal, 2 Não desanime com Lacan, falarei do "objeto a" depois. 28puder tratar a si mesmo como objeto". Ocorre uma reversibi- lidade que aponta a ambiguidade dos sentimentos que temos com nossos bens e pessoas amadas que se vão. Por um lado, há o amor pelo que foi perdido e, por outro, o ódio pela frus- tração e pelo abandono. suicídio seria exatamente fato de que esse ódio retorna para o ego, ao se tratar como 0 próprio objeto perdido. É desse fenômeno que falarei com mais deta- lhes posteriormente, chamado por Freud de identificação. No caso, identificação ao objeto de amor perdido. Isso nos faz ter a crença de que vamos gozar para sempre, inclusive após a morte. Quem nunca se imaginou em seu pró- prio enterro, vendo as pessoas tristes, chorando a sua perda? Não deixa de ser um tipo de gozo que é projetado para um mo- mento em que gozamos de ser o que falta ao outro. Gozar de fazer falta ao outro. Quem não ouviu uma tia ou uma mãe das antigas dizendo: "Vocês vão ver quando eu estiver morta no caixão, tanto que vocês irão sentir minha falta!". Então é nor- mal, como seres habitados pela linguagem, que possamos con- jugar verbos no futuro. Ou seja, é comum pensarmos na nossa própria morte como se ainda pudéssemos sobreviver a ela. Por mais que pensemos: "Vou dar um fim à minha vida", teremos dificuldade em escapar dessa condição que a linguagem nos proporciona: projetar, fabular um futuro sem nós. É essa perspectiva que faz com que muitos suicí- dios tenham uma dimensão histórica, épica e mesmo ética. Quando Sócrates decide se matar, é porque ele sabe que sua morte terá implicações éticas sobre os que estão ao seu redor. mesmo ocorre com Antígona e a Ofélia de Shakespeare. É muito difícil pensar a própria morte como uma separação radical do Outro, algo como atingir a "pureza de não ser". Daí Lacan ter escrito esta que é uma de suas mais belas frases, quase um poema: que sou eu? Eu sou no lugar se vocifera que o universo é uma falha na pureza do Não Ser" 3. 3 No original: "Que suis-je? Je suis à la place d'où se vocifère que l'univers est un défaut dans la pureté du 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 29É interessante aqui marcar a aproximação entre pen- samento platônico, tal como expresso no Fédon, que conta os últimos momentos que antecederam suicídio de Sócrates ingerindo cicuta, e pensamento religioso em si, que atra- vessa a maioria das religiões⁴. Ambos percebem a vida ter- rena como um obstáculo à verdadeira vida, as exigências do corpo impedem que a alma seja plena. A separação entre corpo e a alma aponta um bem. Assim, há um desejo de pureza que é incompatível com a psicanálise, pois esta trata exatamente dos prazeres do corpo como a impureza que nos é constitutiva. É isso exatamente a definição de gozo, algo que não é apenas prazer lícito, mas um prazer que ignora as barreiras morais. Lembro-me de um paciente repleto de ati- tudes machistas, mas que, na cama, gozava apenas quando recebia uns tapas de sua parceira. Não deixa de ser curioso, no caso das religiões, paradoxo entre a condenação do sui- cídio e encorajamento ao suicídio, na medida em que se diz que melhor virá depois da vida. Por que não pulamos essa etapa da dor e vamos logo para plano do paraíso? Tanto no Fédon quanto no cristianismo, por exemplo, corpo é habitado por um gozo incômodo, precisamente por ser da natureza mesma do gozo ser aquilo que resiste ao pensa- mento e aos ideais. Somos todos atravessados por esse impasse que separa a vida que temos, ocupada o tempo todo pela pulsão, que não dá trégua nunca, e a ideia de que, na vida após a morte, estaremos livres do gozo pulsional. Tanto que não encontra- mos referência à relação sexual nos textos sobre 0 paraíso. É claro que podemos encontrar quem pense diferente, psicanalista talvez esteja nessa zona. Darei exemplo de uma amiga psicanalista, Vera Santana, que, às vésperas de sua morte por um câncer de pâncreas, fez questão de me dar uma entrevista para falar de sua morte e do morrer. Cito seu nome pois sei que foi a forma de ela se inscrever em um Há um ótimo artigo que me foi passado pelo amigo Waldomiro Silva Filho, que aborda essa questão: "Socrate Suicide", de James Warren (2001). 30futuro no qual não estaria mais; ela tinha perfeita consciên- cia disso. Mas, ao mesmo tempo, ela soube formular exem- plarmente a dimensão da pureza do não ser. A história de sua vida, que por sinal a levou à formação em psicanálise, é marcada por uma morte inaugural quando ainda era criança, a de sua irmã mais velha, que morreu afogada. sentimento de perda foi tamanho que, anos mais tarde, quando se casou e teve uma filha, ela deu à menina nome da irmã. Ou seja, uma vida que se estruturou em torno de um objeto de amor perdido, em parte substituído pela materni- dade. Acontece que essa filha, alguns anos antes de Vera adoe- cer, também morreu de um câncer, o que a lançou em um luto total. A separação era tão dolorosa que, por alguns anos, ela só conseguia vestir uma camisa com a estampa do rosto da filha perdida. Contudo, mesmo quando seu próprio câncer se agravou, e plenamente consciente da proximidade da morte, Vera falava com grande tranquilidade de seu morrer. E foi aí que ela me disse algo muito lúcido, uma lucidez que demons- trava efeito da psicanálise sobre ela: "As pessoas tentam me consolar dizendo que, pelo menos, eu irei reencontrar minha filha e minha irmã. Elas não sabem que a morte para mim é justamente o oposto, é a possibilidade de, enfim, me separar em definitivo delas". A quem pertence o corpo? É importante levarmos em conta as mudanças da percepção do suicídio através dos tempos. Somente assim podemos pen- sar modo como a psicanálise se encaixa no tema. A palavra suicídio é relativamente recente, ela surge no século XVI. suicídio é a morte de si ou o assassinato de si, expressões que já põem em questão uma alteridade justamente no ato que pensamos ser 0 mais individual da existência. No "assassi- nato de si", quem é a vítima e quem é algoz? É na trama das relações de alteridade que podemos aproximar a psicanálise 1 DESISTIR DESEXISTIR? 31da clínica dos casos de suicídio, pois logo de cara sabemos que inconsciente é sempre um outro para nós mesmos. inconsciente é algo que nos faz agir a reboque de nossa von- tade. A aposta na psicanálise sempre envolve a dimensão de que a realidade em que atuamos já responde a uma outra cena, como afirmou Freud. Esse será justamente objeto de meu próximo capítulo, usar as ferramentas da psicanálise para decifrar a pergunta: Quem matamos quando matamos a nós mesmos? Quando inconsciente subverte nosso próprio Eu pensante, podemos perceber que, em nós mesmos, esta- mos permanentemente em relação com algum tipo de "outra coisa". Podemos, a partir dessa constatação, pensar de cara em duas alteridades, corpo a quem pertence? e a vida a quem pertence? Cito aqui duas referências muito boas para pensar suicídio em uma visão mais ampla da civilização. História do suicídio, de Georges Minois (2018), é um dos melhores com- pêndios sobre tema. Outro livro muito interessante, mais recente, é suicídio no Ocidente e Oriente, do autor ita- liano Marzio Barbagli (2019). Aprendemos com esses autores que suicídio na Anti- guidade era admitido em algumas regiões. Havia espaço para se pleitear a morte voluntária, tal como recentemente cineasta Jean-Luc Godard fez. Entre gregos, não, mas, entre romanos, se uma pessoa apresentasse razões objeti- vas para querer dar fim à própria vida, ela podia solicitar ao Estado. postulante se dirigia a um conselho da cidade, que poderia estar de acordo ou não com pedido. Mas conceito de pessoa era limitado. Quem não poderia reivindicar a pró- pria morte? Minois diz que soldados e os escravos não eram autorizados a solicitá-la, já que seus corpos pertenciam ao Estado, diferentemente do que ocorria com os cidadãos. A morte de Antígona, na tragédia homônima de Sófo- cles, tem algo de suicídio, mesmo que seu gesto de insubordi- nação à autoridade de Creonte tenha levado este a condená-la à execução. Relembremos rapidamente 0 que se passa nessa 32peça teatral, que, junto a Édipo rei e Édipo em Colono, inte- gra a trilogia tebana. A história tem início com a morte dos dois filhos de Édipo, Etéocles e Polinices, que se matam mutuamente na luta pelo trono de Tebas. Com isso sobe ao poder Creonte, parente próximo da linhagem de Jocasta e tio de Antígona. Seu primeiro édito diz respeito ao destino dos corpos dos irmãos labdácidas. Fica estipulado que corpo de Etéocles, que lutou em favor de Tebas, receberá todo ceri- monial próprio dos mortos e dos deuses. Já Polinices, que se insurgiu contra a cidade, terá seu corpo largado a esmo, sem o direito de ser sepultado, e será deixado para que as aves de rapina e os cães o dilacerem. Creonte entende que isso ser- virá de exemplo para todos os que pretendam intentar contra o governo de Tebas. Importante ressaltar aqui que estão em conflito as leis divinas, encarnadas na religiosa Antígona, e as leis humanas, determinadas pelo arbítrio de Creonte. Ou seja, quando há leis distintas, é necessário entender por qual poder cada um se sente interpelado. Isso é fundamental na clínica do suicídio para o entendimento de que o que pode parecer banal a uma pessoa pode ser para outra o valor pre- cioso de sua morte... Ou a causa pela qual se deve morrer. Lacan fez um longo comentário sobre Antigona em seu seminário "A ética da psicanálise" (Lacan, 1988a), no qual deli- cadamente situa a personagem como uma mulher transitando no espaço entre duas mortes. Falaremos disso mais adiante, pois assim como todo suicida tem sua carta, todo suicida tran- sita nesse espaço entre duas mortes. Ao querer sepultar em condições iguais os dois irmãos, ela afronta a lei de Creonte, sabendo que será punida pelo tio com sua própria morte. Na tragédia de Antígona, somos capazes de perceber como os corpos dos mortos, no caso seus irmãos Etéocles e Polinices, eram submetidos às leis do Estado, que determi- nam quem pode e quem não pode ser enterrado. Mas há um momento em que não é apenas Estado que legisla sobre o corpo do suicida: quando o corpo passa a pertencer a Deus. A interdição radical surge com o grande movimento de con- 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 33denação do suicídio a partir da escolástica de Santo Agosti- nho, quando ele evoca sexto mandamento, "não matarás", também no sentido de não matar a si mesmo. E, a partir daí, principalmente na Idade Média, começa a grande condena- ção daqueles que atentavam contra a própria vida. A ponto de esses casos passarem a ser julgados com a atribuição de penas muito severas para servir de exemplo: a apropriação pelo Estado de todos os bens do morto, a proibição do sepul- tamento do suicida em um cemitério católico, o esquarteja- mento e a exposição do corpo em praça pública, entre outras. Minois escreve que apenas com o renascimento do teatro inglês é que a autonomia do sujeito com relação ao destino de sua própria vida foi resgatada. Assim, em um espaço de apenas quarenta anos, entre 1580 e 1620, tea- tro na Inglaterra produziu peças com mais de duzentos sui- cídios encenados. que era tabu passou a se inscrever na cultura. Hamlet, maximum exemplum, passou a ser um divi- sor de águas para a humanidade nesse aspecto. Exclamando "ser ou não ser, eis a questão", ele situa a pergunta no campo especular, pois, no fundo, todos nós fazemos essa indagação em alguns momentos da vida. Essa é uma questão que deixa de ser de Deus, ou do Estado, para ser a grande questão de nossa existência: qual o sentido da vida? Ser ou não ser? Continuo existindo ou não? Certa feita li um poema escrito por um paciente inter- nado em um hospital psiquiátrico que me marcou, intitulado "Erro de tipografia", e é simples: "Ser não ser, eis a questão". o louco é aquele que, de algum modo, não é alguém cuja vida é negada e que pode passá-la em um asilo, sem que Outro afirme sua existência. A invisibilidade do não ser aloja muitos sujeitos em um campo de exclusão. Todos sabemos, lamentavelmente, que o suicídio de uma jovem branca de classe média ou alta causará mais comoção do que 0 de um jovem negro da periferia. A condição de ser permanente e estruturalmente segregado é um fator de suicídio, como fala- rei mais adiante. 34Com Hamlet, Georges Minois afirma que algo da relação do sujeito com a vida e a morte mudou, abrindo finalmente espaço para se falar da responsabilidade de cada um sobre seu destino. A partir da peça, vamos perceber que a questão da existência convoca uma responsabilidade subjetiva daquele que quer se matar, e isso é fundamental para o psicanalista. De outro modo, não conseguiríamos nos servir da psicanálise como prática clínica diante do suicídio, uma clínica que só existe quando podemos questionar o agente da ação. percurso histórico traçado por Minois, atravessando os séculos, não nos deve induzir ao erro de pensar que cada etapa supera a outra, que quando a humanidade é apresen- tada ao suicídio de Hamlet abandonamos a condenação que a Igreja e o Estado promoveram nos séculos precedentes. No mundo atual, todos esses pensamentos contraditórios sobre o suicídio estão presentes sincronicamente, sendo amplia- dos pelos infernais debates das mídias sociais sobre os quais nunca haverá consenso. A religião continua sendo, em pleno século XXI, a solução e problema para inúmeros suicídios. Assim como a medicalização da vida, em que os medicamen- tos tanto podem evitar quanto, sobretudo com a prescrição indiscriminada e pouco criteriosa, levar ao suicídio. Ser ou se identificar, do traço ao objeto Existe uma sutileza na língua francesa que demorei para captar. Aprendi isso ouvindo as entrevistas de pacientes no hospital Sainte-Anne, quando morava em Paris. Pude assis- tir a excelentes entrevistas, de pacientes hospitalizados após tentativas de suicídio, realizadas por um proeminente psica- nalista, Éric Laurent. Eu achava estranho modo como ele perguntava ao paciente durante a apresentação: "Et pourquoi vous êtes- -vous suicidé?" [E por que foi que você se suicidou?], "Quand vous êtes-vous suicidé?" [Quando foi que você se suicidou?]. 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 35Ora, mas o paciente estava bem vivo e sendo entrevistado! Aos poucos entendi que, quando ele fazia essa pergunta, não queria dizer que a pessoa necessariamente havia morrido; ele se referia ao ato de ela tentar suicídio. Mas demorei para entender isso. Não deixa de ser interessante esse modo de usar verbo, pois a palavra suicidar passa a ser vista pela ação subjetiva, e não pelo resultado definitivo, quando não há mais sujeito. Um suicídio muito importante na literatura é de Wer- ther, de Goethe. Ele marcou a tal ponto sua geração que se tornou um problema social. personagem Werther era um jovem apaixonado por Charlotte, que era prometida a outra pessoa, Albert. É um livro do gênero epistolar, tudo se passa entre cartas. Conhecemos a trama através das cartas que Werther escreve ao amigo Wilhelm, por meio das quais ele fala de seu suicídio, um suicídio por amor. Na época, a história desencadeou um problema iné- dito. livro foi publicado na Alemanha no final de 1794 e obteve imediatamente um grande sucesso, mas gerou uma onda de mais de duzentos suicídios, sobretudo de jovens de faixa etária próxima à do protagonista e que se identificaram com 0 personagem. Goethe teve de ir a público se justificar porque achava que a obra não era uma incitação ao suicídio. Esse exemplo é revelador para evocarmos um dos conceitos freudianos centrais, de "identificação", que surge no capí- tulo 7 de sua Psicologia das massas e análise do Eu, de 1921. A data é importante, pois diversas proposições de Freud nesse texto são quase profecias do Holocausto que ocorreria duas décadas depois. Vale ter em mente que a identificação levar as massas tanto ao extermínio de judeus quanto ao sui- cídio, em 1978, de novecentas pessoas na Guiana Francesa, adeptas de uma seita liderada pelo pastor Jim Jones. que inferimos é que a identificação aos outros promove um fenô- meno de eclipse da subjetividade, e o sujeito passar a respon- der especularmente se apoiando na agressividade da massa, o que lhe confere uma espécie de motivação para partir para 36a ação. Uma ação que Freud vai chamar de pura cultura da pulsão de morte, que pode ser direcionada para a destruição do outro ou de si mesmo. É comum ocorrer, após um suicídio, sobretudo quando se trata de alguém com certa notoriedade, uma sequência de suicídios nos mesmos moldes. Nesses casos, o sujeito se identifica com o morto, esse objeto de amor perdido. Ou seja, nesses casos "a sombra do objeto recai sobre o ego", como afir- mou Freud, em seu texto Luto e melancolia. Com o conceito de identificação, ele demonstra que, para que nos identifiquemos coletivamente com a massa, precisamos de um traço, reduzir a alteridade a um traço. E o que é reduzir alguém a um traço? Significa que eu não posso odiar alguém ou tentar extirpá-lo, eliminar esse outro, se esse outro tem muitos traços, ou seja, se ele se mostra como um sujeito dividido, como todos somos. Para odiar é preciso calar o objeto do ódio, não lhe dar voz, e é assim que se reduz um coletivo de pessoas, marcado por infinitas diferenças, a apenas uma massa homogênea; só então é possível gene- ralizar e condenar. Quando alguém é reduzido a um traço, nada mais pode absolvê-lo. 0 traço pode ser judeu, petra- lha, coxinha, bolsominion, negro, viado e muitos outros que enxergamos diariamente na violência que busca a elimina- ção do outro. traço, a redução de alguém a um traço, é um dos modos de fazer um uso cínico do simbólico, reduzindo o outro a um simples objeto passível de ser descartado. traço permite a eliminação do outro, pouco importa que seja e quem seja o outro. outro se transforma de um ser falante em, simplesmente, uma marca. Quando ocorrem duzentos suicídios devido a um único livro, percebemos que jovens em sofrimento por amor tomam a solução de Wer- ther como modelo, com o qual se identificam, esquecemos que cada jovem é um Werther completamente diferente dos outros. Em termos individuais esses suicídios respondem a situações muito diversas, e podemos vê-los como um pro- cesso de separação daquilo que produz o sofrimento psíquico. 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 37Não se deve perder a vida quando se quer apenas se separar de um sofrimento na vida. Contudo, quando as experiências se multiplicam, que constatamos é oposto, um processo de alienação por um traço único, e esse traço é próprio gesto de se matar: vou me matar como X ou y. Alguns números da segregação Por que 0 suicídio e a morte do outro, ambos reunidos pelos estatísticos como mortes violentas, são mais presentes em algumas culturas e países? Da leitura de gráficos facilmente encontrados nas mídias, sobretudo nos trabalhos de pesquisa, podemos mostrar que efetivamente algumas regiões apre- sentam índices de suicídio por 100 mil habitantes bastante elevados. Na Rússia, por exemplo, ocorrem mais mortes vio- lentas por suicídio do que por homicídio. Esses números sur- gem em diversos países da Europa oriental, como Lituânia e Hungria. Abro parênteses para dizer que um de meus escrito- res preferidos, húngaro Sándor Márai, também se suicidou. No Brasil, percebemos que número de mortes vio- lentas é alarmante, mas muito mais por homicídio do que por suicídio, e isso se repete em outros países próximos. Enquanto 0 padrão da Europa do Leste é de uma maior taxa de suicídios do que de homicídios por mortes violentas, em outros países, como Brasil, Porto Rico, Trinidad e Tobago, Venezuela, Equador, México, Paraguai, Filipinas, resultado é inverso. Questões ligadas ao suicídio são articuladas com questões da cultura local, e outras, diretamente ligadas à his- tória dos povos, devem ser levadas em conta. Sem dúvida, é necessário avançar os estudos que avaliem o peso da cultura colonial sobre as populações subsumidas. A imposição de uma cultura estranha, a negação de uma igualdade de aces- SOS e direitos e o desenraizamento reforçam um estranha- mento no mundo e uma falta de pertencimento que estão na base de inúmeros casos de suicídio que ficam relativamente 38ocultos, não sem certa conveniência, da visão de alguns gru- pos privilegiados. Aqui me refiro ao suicídio de índios e de jovens negros nas favelas. Em um recorte mais amplo, percebemos no Brasil, pelas estatísticas, que as taxas de suicídio entre homens aumen- taram até 2014, enquanto entre as mulheres permaneceram basicamente iguais. De 2000 a 2014, passamos de 6,5 sui- cídios para 8,7 em 100 mil habitantes, entre homens. Os homens estão se matando mais. E é preciso fazer uma leitura disso. curioso é que, ao analisarmos as tentativas de suicídio entre mulheres, percebemos que elas tentam cinco vezes mais que os homens, mas morrem bem menos. Para além da repar- tição entre os sexos, esse fato aponta algo essencial na clínica, a separação entre o suicídio que é uma demanda ao Outro e o suicídio que é um ato radical de separação desse Outro. Eis outra constatação relevante: de 2000 a 2016 nos Estados Unidos e sabemos que Brasil, em muitos aspec- tos, é um arremedo dos Estados Unidos a taxa de suicí- dio subiu por 100 mil habitantes entre jovens de dez a 24 anos de idade. Enquanto isso, as taxas de homicídio nessa mesma faixa etária caíram um pouco. É possível perceber que suicídios efetivos, em grande parte, são por armas de fogo, e sabemos como a sociedade americana se tornou uma sociedade armada. Lembremos que, sempre que ocorre uma chacina em alguma escola ou universidade, os assassinos, na maioria dos casos, se suicidam no final. Um grande problema é que um dos lobbies mais poderosos nos Estados Unidos vem da National Rifle Association (NRA), com enorme pene- tração, inclusive, na American Psychiatric Association (APA), que nega qualquer responsabilidade sobre essa mortandade. E qual é a estratégia mais capciosa da NRA para con- tinuar promovendo a venda de armas, mesmo após as cha- cinas? A resposta é culpar sistemas de saúde mental americanos, afirmando que é preciso endurecer as leis, tor- nando dispositivos de hospitalização mais rígidos, com mais internações, e tratando de estimular a detecção precoce 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 39na infância dos potenciais mass killers do futuro. Assim, que deveria ser uma responsabilidade dos que apoiam a venda de armas e a cultura do tiro passa a ser um problema psiquiá- trico. E diversos setores da psiquiatria americana apoiam ini- ciativas bastante complexas que sustentam essa falácia. Em uma tentativa de associarmos o suicídio a pro- blemas mentais, encontramos diversas estatísticas vindas da psiquiatria. Trago apenas algumas breves informações de uma enorme quantidade de trabalhos sobre tema: 37% dos casos de suicídio ocorrem entre pessoas com depressão ou os chamados transtornos de humor, e 23%, por depen- dência química. Aqui cabe uma reflexão. As pessoas estão tão medicadas que fica difícil saber se estamos diante de uma sociedade medicalizada ou de uma sociedade adicta. Porque hoje todos se submetem ao imperativo de alguma droga, lícita ou ilícita, que promete adequar sujeito ao mundo, apagando suas idiossincrasias, seus sintomas, tudo o que nos torna únicos. Onde somos palavras e onde não somos Quando digo que suicida tem sua carta, mesmo quando ele dá um fim resoluto à sua vida, é para apontar trabalho da psicanálise na revelação de uma escrita que já se encontrava lá. Para Freud, existe uma impossibilidade de se pensar a pró- pria morte, impossibilidade que ele chamou de Urverdrängt, o recalque primordial, algo que nunca aflorará na vida cons- ciente do sujeito. A morte é um furo no simbólico. falar muito sobre a morte, como fazemos aqui nestas páginas, mas não podemos perder a dimensão de que lidamos com palavras que rodeiam a Coisa bruta, o sem sentido da vida, das Ding, como pensavam Freud e Lacan. Nosso mundo simbólico é a bagagem acumulamos na vida, bagagem das coisas que pensamos com símbolos, ima- gens e palavras que jamais alcançarão a pureza do não ser que 40a morte traz. Contudo, aprendi na escuta de uma paciente algo que me marcou. Se a morte não pode ser inscrita no sim- bólico, ela não pode ser inscrita no relógio da vida que nos dá um antes e um depois. Ela é atemporal. "Não posso pensar que a morte será algo novo para mim; eu já fui morta antes. Nasci, vivi e voltarei para mesmo estado de antes de meu nascimento." Sim, no plano pragmático a morte sempre estará para nós no futuro, mas, no fundo, ela sempre esteve aí, ela atra- vessa nossa existência, viemos dela. Viver é uma busca por algo perdido, e atualizamos essa perda em cada momento de nossas vidas. Mas convido você a pensar numa inversão. Passamos a vida na busca de um objeto perdido, mas não é o objeto que sempre esteve perdido, somos nós mesmos, a essência de nosso ser, que estamos perdidos desde quando adentramos mundo das palavras. E por quê? Porque não nascemos com as palavras, todas as palavras que falamos vêm do Outro. E só nos definimos com palavras. Precisamos desse circuito que faz com que passemos do Um, Um como solidão de nossa existência, para 0 campo do Outro. E aí nos confundimos, achamos que somos que as palavras permi- tem dizer que somos. Por isso a dimensão do ato é tão importante no suicídio, ato é algo que enfim se realiza. Um verso do poeta portu- guês Almada Negreiros é bem oportuno aqui: "Até hoje fui sempre futuro". Uma das maneiras de se pensar um suicídio é como realização hic et nunc de um futuro. Quando afirmo que as religiões se fundam sobre a vida após a morte, você percebe uma afinidade e uma separa- ção entre a psicanálise e as religiões. A psicanálise também sabe que algo do desejo, do como disse Lacan, se eterniza, mesmo que 0 corpo morra. A psicanálise tem essa dimensão. Então ela sabe que, por mais que o dispositivo 5 Depois do conceito de falasser, Lacan desenvolve de parlêtre, esse ser que é puro ser de fala, pois conteúdos dessa fala já estão no campo do simbólico, no campo do Outro. Só o falar nos pertence, só falar independe do Outro. 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 41analítico implique uma destituição de crenças, o simples fato de falar já implica a crença no Outro, a crença de que esse Outro pode nos amar, nos ignorar, nos rejeitar, e somos insta- dos a permanentemente a responder a essa demanda. A clínica psicanalítica é perpassada por processos de alienação e separação do Outro. Podemos tomar como exem- plo algumas adições. Quando um jovem e ambicioso exe- cutivo quer brilhar na reunião mensal de diretoria, ele pode fazer uso de cocaína ou Rivotril, tendo em vista que Outro, que pode ser personalizado como CEO da empresa, vai pen- sar dele. Aqui percebemos que a droga tem um propósito de alienação no campo do Outro social, é um veículo para que sujeito esteja mais seguro de seu narcisismo. As coisas se complicam quando, em vez de se servir de cocaína para a reunião, esse jovem fica em casa cheirando e perde a reunião. Aqui a droga não é conectora de nada, mas um instrumento de separação. Falar para um outro, qualquer outro, já implica a crença de que há um sentido comum entre aquilo que se diz e aquilo que se ouve. Daí, na psicanálise, a importância da associação livre, dos atos falhos e dos sonhos, que são modos de des- pertar sujeito para fato de que, naquilo que dizemos, há um Outro em nós que desconhecemos, o inconsciente. São coisas que não fazem nenhum sentido fora do divã. Sabemos que todo sujeito se aferra à crença de que sabe que diz. Por isso, na clínica, não se destitui, logo de cara, a importância da razão, que agora tem o sofisticado nome de "processos cognitivos". que o psicanalista busca não é dar mais estofo ao Eu, mas, sim, fazer justamente contrário: ei, você que sabe que diz, mas não é nada disso, meu caro: seu desejo inconsciente vai no sentido oposto. Não é 0 nosso interlocutor que nos prega peças, con- fundindo-nos nos equívocos do sentido, é o inconsciente mestre que perturba sentido das coisas. Somos atropelados em nosso discurso por algo que irrompe na cena cotidiana e, nesse simples movimento, nos trai. É como o amante que, na 42hora de fazer amor com a namorada, a chama pelo nome da ex, ou da mãe; sabemos muito bem os efeitos catastróficos dessas pequenas palavras erradas. Costumo dizer que quem tem inconsciente não precisa de inimigo. Tudo isso deve ser levado em conta quando pensamos a questão do suicídio para além das estatísticas. Não que estas sejam desinteressantes, elas apenas não dão conta da plura- lidade de questões envolvidas no suicídio, pois são maiores do que o ato suicida em si, interrogam 0 que somos quando nos separamos do outro. Aqui nos separamos da pergunta de Hamlet: não se trata mais de "ser ou não ser, eis a questão", mas, sim, de "ser 0 não ser, eis a Desistir ou desexistir? Um poema de Frederico Barbosa, "Desexistir", retrata muito bem drama humano. Eu o descobri em um ótimo artigo sobre suicídio e literatura (Londero, 2019): Quando eu desisti de me matar já era tarde. Desexistir já era um hábito. Já disparara a autobala: cobra-cega se comendo como quem cava a própria vala. Já me queimara. Pontes, estradas, memórias, cartas, 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 43toda saída dinamitada. Quando eu desisti não tinha volta. Passara do ponto, já não era mais a hora exata. (Barbosa, 2013) poeta, com uma simples modificação na grafia, nos mostra tema que me interessa de um modo que, certamente, tem tudo a ver com a teoria lacaniana, deslocamento semân- tico desistir/desexistir. Duas letras a mais, eis a banalidade de alguns dramas da vida. Um fato recente que teve grande repercussão foi o sui- cídio assistido do cineasta francês Jean-Luc Godard, que, aos 91 anos, quis dar fim à vida fazendo uma demanda ao Outro burocrático, Outro da lei. Outro em questão era pró- prio Estado, a Suíça. A Suíça é um dos países que autorizam o suicídio assistido, assim como a eutanásia, sob uma certa argumentação do sujeito. E Godard afirmou que, para ele, já estava na hora, que já era 0 suficiente, que mais vida seria puro sofrimento. E ele fez isso abertamente, com um por- ta-voz que anunciou que tinha sido vontade dele dar fim à própria vida. No suicídio assistido, inclusive, ato final pode ficar a cargo do próprio suicida, ou seja, há todo um serviço de apoio para que ele decida momento em que vai se sepa- rar. Merecem atenção os desdobramentos do suicídio tido quando este é por demais facilitado. Falarei mais adiante do que se passou no Canadá. Há um filme, não 0 único, que considero excelente para falarmos da morte de si: As invasões bárbaras (2003), de Denys Arcand. Tenho certeza de que os mais velhos vão se recordar desse filme, e aconselho a quem não viu que assista. No filme, 0 personagem Rémy, com seus cinquenta anos, 44uma vida universitária e afetiva bastante rica, sofre de um câncer agressivo. Cercado pelos amigos, todos tentam aju- dá-lo a viver seus últimos dias com alguma qualidade, apesar das dores. Até que uma das amigas tem a ideia de chamar a filha, que é traficante de heroína, para ver se ela conseguiria atenuar o sofrimento dele. Durante o filme, a morte é tra- tada com medo, ironia e até mesmo bom humor em alguns momentos. Uma fala que acho importante ocorre quando a personagem da traficante vai administrar em Rémy a heroína. Ela diz: "Aproveite muito essa primeira vez, pois todas as próximas doses serão uma tentativa de recuperar esse primeiro prazer". Com efeito, é algo assim que se passa nas adições. Ao final, após uma noitada com os amigos de décadas, todos se despedem de Rémy, e ele pede que lhe seja aplicada a dose letal. Não são muitos os países que aceitam o suicídio assis- tido. Na América Latina, apenas um o permitiu em 2023. Seis dos nove juízes da Suprema Corte da Colômbia autorizaram suicídio assistido. país tem especificações para definir os casos e o momento em que o suicídio assistido poderá ser realizado. Esta foi a decisão: possível pedir o suicídio ou a eutanásia quando há uma lesão ou doença incurável, algo que cause uma dor física ou mental intensa, ou quando a dor é incompatível com uma vida digna". Os países que, segundo as minhas pesquisas, autori- zam o suicídio assistido são: Suíça, Holanda, Luxemburgo, Canadá, Austrália, Espanha (sugiro outro excelente filme espanhol sobre a decisão de morrer, que é Mar adentro, pro- tagonizado pelo ator Javier Bardem) e Alemanha, além de alguns estados norte-americanos. Certamente outros virão. Mas temos aí um problema: até que ponto essas medidas são justas? Ou será que elas apenas facilitam, e mesmo encora- jam, suicídio? É preciso lembrar que não estamos em um mundo de vestais impolutas, e que liberalismo, levado às extremas consequências, não vê nada demais no fato de alguém "inservível" querer se matar. 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 45A questão é que 0 aumento das taxas de suicídio é preo- cupante. A Organização Mundial da Saúde (OMS), respaldada em estatísticas e notificações dos psiquiatras, estabelece suicídio como um dos maiores problemas de saúde mental, junto com a depressão, para século XXI. É claro que dados mundiais irão evidenciar essa questão, de que aproximada- mente 1 milhão de pessoas cometeram violência autoinfli- gida e de que hoje, a cada quarenta segundos, alguém morre por suicídio, e a cada três segundos alguém tenta dar fim à própria vida. Contudo, algo me incomoda nesse viés da OMS: como isso pode ampliar e generalizar a ideia de que suicí- dio é uma patologia, que todo suicídio é patológico, do que discordo frontalmente. Ou seja, é preciso tirar suicídio da perspectiva da exclusividade médica. suicídio em si não é uma patologia, mas algo muito mais amplo, e também não se trata de um ato ligado exclusivamente à depressão. Vamos ver, inclusive, que, muitas vezes, uma depressão ou angústia podem impedir sujeito de se matar. Por isso é tão importante estar atento ao uso indiscriminado de antidepressivos. É bastante conhe- cido fato de que 0 suicídio ocorre precisamente quando o antidepressivo começa a fazer efeito e libera 0 sujeito de uma prostração que protegia do ato. Na escuta de pessoas com ideação suicidária, mais de uma vez presenciei situações em que sujeito estava depri- mido, expressava o desejo de se matar, de dar fim à própria vida, e justamente após a terceira semana de uso de antide- pressivos, quando o efeito de muitas das substâncias alcança seu maior nível, ele buscava o suicídio. Ora, é fundamental introduzir uma clínica psicanalítica que separe a depressão da inibição, que não estabeleça essas duas situações como sendo a mesma coisa. Não por acaso, na Inglaterra, entre outros países, ocor- reu um problema sério quando se autorizou a medicar em larga escala, com antidepressivos, crianças a partir de dez anos. que se percebeu foi algo sem precedentes: 0 aumento 46do suicídio entre crianças dessa faixa etária, que fez com que fossem revistos os protocolos e interrompida a medicali- zação generalizada do mal-estar infantil⁶. A medicalização do existir A OMS afirma que a depressão é o mal do milênio, no século XXI. Certo, de acordo. Mas a OMS não é um lugar de consen- fáceis, e sim lugar do peso dos lobbies mais poderosos. E sabemos bem qual é lobista principal: a indústria farma- cêutica que lucra bilhões todos anos. Para cada deprimido chorando sempre há um vendedor de antidepressivos sor- rindo! Perceba que não sou contra os medicamentos, tam- pouco digo que a indústria farmacêutica é sempre vilã, mas a máquina capitalista exige consumo, e a melhor maneira de aumentar 0 consumo é fomentar a demanda. Nem sempre foi assim, peso da medicalização da vida cotidiana aumentou muito nos últimos quarenta anos. Vivi essa transição e posso testemunhar a mudança no enfren- tamento do sofrimento psíquico. Eu me defini realmente pela psiquiatria em 1985-86, depois de passar pela cirurgia cardíaca. E foi exatamente nesse período dos anos 1980 que houve uma mudança fundamental nas classificações psi- quiátricas, aquilo que é chamado de DSM, que agora está no 5, indo para o 5R. Na minha época era o 3R, depois o DSM 4, e o DSM 4R, que foi seguinte. Justamente nesse meu período de formação algo mudou na clínica psiquiátrica a partir de um determinado momento. Foi quando se consolidou um conceito muito inquietante, 0 de "espectro depressivo". que é 0 "espec- tro"? Espectro significa mais ou menos isto: "Olha, você 6 A literatura é extensa sobre esse assunto. Sugiro aos interessados dois textos: "Antidepressant Utilisation and Risk of Suicide in Young People" (Autralian Government, 2020) e "Suicide in Children and Young People in England: A Consecutive Case Series" (Rodway et al., 2016). 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 47não está deprimido, você está 'no espectro "Olha, seu filho não é autista, ele está 'no espectro autista". Ou seja, a cada vez que termo espectro é atribuído a um estado da alma espectro depressivo, da hiperatividade, da bipolaridade etc. -, a margem de diagnósticos é aumentada exponencialmente. Não por acaso, os meados dos anos 1980 foram pre- cisamente momento em que se lançou um medicamento com uma publicidade tamanha que parecia a chegada de um novo filme da saga Star Wars: o Prozac. Uma revista de grande circulação nacional, por exemplo, deve ter rece- bido algo em troca para ter publicado na capa uma chamada tão irresponsável: "Prozac, o fim da depressão". Como se isso fosse possível. Como dar fim àquilo que não existe? É óbvio que é possível melhorar os estados depressivos com medicamentos, seria uma desonestidade intelectual dizer contrário, mas, quando o espectro depressivo toma pro- porções gigantescas, percebemos que é o mal de viver, que todos nós, em nossa miséria neurótica, possuímos, que está em questão. principal problema, quando a OMS afirma que a depressão é grande problema do século, é que foco passa a ser sujeito depressivo e se deixa de interrogar de que modo mundo está mudando e afetando seus habitantes. E, para fugir de qualquer possibilidade de que a depressão ocorra no espaço de tensão entre corpo e as palavras, é necessário reduzir tudo ao cérebro, ao universo das serotoninas. Nesse ponto, prefiro ser bem freudiano. Freud, em Luto e melancolia, divide as depressões assim: podemos chamá-las de melancolias ou de frustrações que são do sujeito neuró- tico, como um todo. As depressões melancólicas são aquelas cujas causas temos maior dificuldade em encontrar. Não se encontra facilmente a perda ou a frustração que podem ter levado sujeito a tal estado. Já no caso do luto, a perda é mais facilmente identificável: significa que aquele objeto, que foi a sustentação de meu amor, não existe mais, levando-me a ter 48de redistribuir minha libido de outro modo. Leva um tempo para que isso ocorra, daí o luto ser chamado de "trabalho" de luto: aos poucos, a ferida narcísica aberta vai cicatrizando. século XXI para a OMS é o século da depressão; para mim, ele é o século do mal-estar na civilização, como no texto de Freud. No mundo atual, com suas exigências de perfor- mance e celeridade, não há mais tempo para trabalho de luto. Mal sujeito leva um tranco e já tem de se reerguer a qualquer custo. Ou seja, o próprio mundo que faz o sujeito acumular frustrações ao ver a felicidade do vizinho não ofe- rece muitas alternativas para que ele seja menos impregnado pela exigência dos ideais de felicidade, que surgem a todo momento quando nos conectamos com a mídia, as redes sociais, o coaching etc. A máquina capitalista opera muito atrelada à lógica de que a felicidade depende do consumo; e, ao se frustrar por não ser capaz de consumir, sujeito terá a possibilidade, ao menos, de consumir suas pílulas. Estas informações eu encontrei no excelente site Mad in criado por um crítico do crescente consumo de drogas psiquiátricas no mundo atual, Robert Whitaker. Ele faz análises sempre contundentes sobre estado de medi- calização da existência e aponta que, em 1987, a população americana consumia, em média, 800 milhões de dólares por ano em medicação psiquiátrica; em 2020, com um aumento da população, que não é tão significativo, talvez de 20% ou 22%, a população americana passou a consumir 40 bilhões de dólares. Perceba aumento da medicalização e da pato- logização da existência. E mais: hoje, quem mais prescreve tais medicamentos não são nem mesmo os psiquiatras, mas, sim, outros médicos, como os ginecologistas. Houve um momento em que os ginecologistas banalizaram a prescri- ção do Rivotril, mas sabemos que agora queridinho do momento" é 0 Zolpiden. Talvez porque sintoma mais elo- quente durante a pandemia tenha sido a insônia. 7 www.madinamerica.com 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 49Li uma frase de para-choque de caminhão que diz assim: certos barulhos que a gente só escuta no silêncio" (hoje o para-choque de caminhão é Facebook, Instagram, mas sou mais velho do que ambos). Então, quando mundo silenciou, alguns barulhos ficaram muito eloquentes, o que perturbou demais a capacidade de se desligar e dormir. Curiosamente, reclamávamos do vizinho que tocava pagode e não nos deixava dormir, e então, quando vizinho deixou de batucar 0 pagode tão alto, passamos a dormir ainda pior. Não conseguimos dormir porque somos habitados pelos barulhos que saem desse silêncio. A psiquiatrização, a patologização e a medicalização do mundo são tamanhas que não temos mais espaço para atrelar sofrimento a motivações subjetivas, tudo tem de ser equacionado, ou pelo que se passa no corpo, ou pelo que se passa no mundo. mal-estar de viver não pode ser isolado no campo dos fenômenos corporais, tampouco apenas no campo social. mal-estar se encontra precisamente na junção entre esses dois campos, e é aí que vamos localizar o sintoma psica- nalítico. Somos seres precários, híbridos de um corpo e de um mundo social, e não existe nenhuma forma perfeita de exis- tir. Por isso gosto da expressão que foi usada por um amigo psicanalista, Marcus André Vieira, quando levou a público os efeitos de ter atravessado uma psicanálise e se tornado psica- nalista: a vida não tem equilíbrio, só equilibristas. Nossos sintomas são tentativas de viver entre estes dois campos tão distintos, corpo e palavra. Por isso não há clínica que possa reduzir um sintoma a zero, assim como não há política que possa fazer isso. É sempre bom lembrar o conselho da grande psiquiatra Nise da Silveira: não se curem demais da conta. Apesar de ter ótimos amigos psiquiatras e respeitar sua clínica, posso dizer que hoje, sobretudo após as políticas de saúde mental terem passado por um retrocesso nos últimos anos, sou veementemente contra os rumos tomados pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Um exemplo: no 50"Setembro Amarelo" de 2019, convencionado como mês de conscientização do suicídio, a ABP divulgou um anúncio dizendo algo como: suicídio é coisa séria, tem de ser visto pelo psiquiatra". Ou seja, a ABP trouxe para si o protagonismo das ações contra suicídio menosprezando o trabalho de equipes for- midáveis, que compõem uma rede de apoio para evitar o sui- cídio, como o Centro de Valorização da Vida (CVV), que salva muitas pessoas e cujos membros não são psiquiatras. Outro ponto importante é que não estou totalmente de acordo quando a ABP afirma que em 96,8% dos casos o suicídio está associado a transtornos mentais. A meu ver, esse número é elevado precisamente pelo fato de que todo sofrimento humano foi convertido em transtorno mental, e há uma grande diferença entre focar nos cuidados dos transtornos mentais e focar no sofrimento. Transtorno mental, que em inglês é chamado de mental disorder, diz tudo. Qualquer um que perturbe a ordem será classificado. Como existir sem per- turbar a ordem? Apenas docilizados conseguem. E todo suicida morre na contramão, atrapalhando trânsito. Necrossuicídios Para além dos transtornos mentais, é fundamental interro- gar os agentes que causam sofrimento psíquico, ou seja, em muitos casos, talvez na maioria, os sintomas de depressão, de ansiedade, de abuso de substâncias químicas são consequên- cias do adoecimento do ambiente em que o sujeito vive. Não podemos então falar de suicídio sem pensar no mundo em que vive suicida. Quem realmente está doente, o paciente ou a sociedade? Percebemos aí uma injunção, que considero fundamen- tal, dos aspectos políticos, sobretudo das políticas de Estado. Achille Mbembe, um dos pensadores contemporâneos que mais nos ajudam a compreender a complexidade dos pro- 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 51cessos de descolonização e racismo, cunhou o termo necro- política para se referir às políticas de Estado que levam ao sofrimento e à morte das populações vítimas de segregação: os negros, os loucos, os idosos, as mulheres e tantos outros. Se a necropolítica não era suficientemente visível, ela se escan- carou na guinada autoritária que se expandiu pelo mundo nesta última década. Foi pensando nessa expressão que forjei o conceito de necrossuicídio, que embora você não encontre facilmente no Google, as estatísticas do suicídio no Brasil deixam pistas muito evidentes a respeito. Ou seja, há políticas que estão sendo instauradas no delírio de que a salvação é ultralibera- lismo e que dão consistência a uma intolerância cada vez mais radical à alteridade, aos que não têm as mesmas oportunida- des, e que, portanto, não interessam tanto ao empregador. Políticas feitas por brancos heteronormativos e privilegiados dificilmente proporcionarão a negros, gays, loucos ou mulhe- res o mesmo acesso a direitos e deveres. Inúmeros são os exemplos: o aumento de sofrimento e morte de imigrantes nos países em que houve uma ascensão da extrema direita, aumento do suicídio entre idosos no Chile quando a polí- tica tornou inviável economicamente a vida da população de terceira idade etc. Aqui no Brasil, se não houvesse a universa- lidade do SUS, certamente veríamos o mesmo cenário acon- tecer. Por quê? Porque pagar um plano de saúde é muito mais caro do que a própria aposentadoria. Enquanto as aposenta- dorias são regidas pelo Estado, os planos de saúde são auto- rizados a subir constantemente seus preços. Um aposentado que ganha 2 mil reais nunca conseguirá pagar seu plano de saúde, que lhe cobra 4 mil. Sem apoio do Estado, restam ape- nas sofrimento e a dor da velhice, por isso alguns se decidem pela morte, ou simplesmente morrem por falta de assistência. Em um mundo cada vez mais individualista, em que o lucro e sucesso impõem 0 empreendedorismo de si mesmo, há pouco espaço para a solidariedade. No momento atual o caso mais impactante é do Canadá, bem distante do persona- 52gem Rémy de As invasões bárbaras. Um grande debate sobre suicídio assistido põe no centro das discussões papel do Estado, da religião e do modo de viver ou morrer liberal. que acontece quando uma famosa cadeia do comér- cio varejista de moda no Canadá, La Maison Simons, mais popularmente conhecida como Simons, lança uma série de anúncios promovendo e idealizando o suicídio assistido? Há aqui uma bizarra conjunção de questões éticas bastante com- plexas e 0 mercado do consumo. Em um vídeo, cheio de belas imagens e música, aparece Jennyfer Hatch, uma mulher de 37 anos que decide pôr fim à sua vida, após anos de convívio com a Síndrome de Ehlers-Danlos, um grupo de desordens que afeta os tecidos conjuntivos do corpo. Jennyfer, que havia sido aprovada para que a lei canadense chama de assistên- cia médica na morte, narra seus últimos momentos em um vídeo cheio de lindas imagens, na praia, rodeada de amigos, fazendo uma celebração à vida. Ao final do lindo vídeo, surge obviamente na tela a logomarca da empresa varejista. Simons, apoiando todos os belos momentos da vida, incluindo a morte. vídeo desencadeou imediatamente uma avalanche de críticas, que afirmavam que não se deve pensar suicí- dio assistido como um novo lifestyle. A nova moda é escolher seu próprio fim. Ocorre que isso não se passa em qualquer lugar, é preciso dizer que apenas no ano de 2021, mais de 10 mil pessoas buscaram a lei canadense para dar fim às suas vidas dessa forma, pouco mais de 3% de todas as mortes no Canadá! Há os detratores que identificam estímulo ao suicí- dio assistido como mais um episódio do mundo liberal, para excluir aqueles que não estão mais na cadeia de consumo e produção, os inservíveis. Mas a questão é bem ampla, pois os critérios para a inclusão das condições de admissibilidade no programa são extremamente elásticos. jornalista Ale- xander Raikin escreveu um artigo contundente no The New Atlantis (Raikin, 2022) mostrando aspectos preocupantes que nada têm a ver com a vontade de se matar: um grande número de pessoas decide pelo suicídio exclusivamente por 1 DESISTIR OU DESEXISTIR? 53falta de opção, por falta de acesso a um bom tratamento de saúde ou por outras condições mínimas de sobrevivência, que deixaram de ser papel do Estado no universo liberal. Desde que o Canadá legalizou a eutanásia em 2016, tem havido uma estranha dubiedade em seu sistema de saúde. Há uma linha de telefone direta, nacional, de prevenção de sui- cídios, operando twenty-four seven (24 horas por dia, sete dias por semana), em que operadores simpáticos tentarão dissua- di-lo de se matar. Mas hoje também existem linhas diretas de eutanásia, nas quais os operadores lhe darão os recursos necessários para lograr seu intento. Médicos e enfermeiros profissionais estão agora no negócio de salvar a vida de alguns pacientes enquanto proporcionam a morte de outros. Raikin considera dois casos individuais de pessoas admitidas no programa. Um, de Les Landry, um ex-ca- minhoneiro de Alberta com um histórico de tentativas de suicídio e que, ao perder a renda com 0 pagamento de inde- nizações por invalidez quando completou 65 anos, solicitou assistência médica na morte (Medical Assistance in Dying Maid), por sentir que não contava mais com "o apoio crí- tico de que precisava" para viver sua vida diária. Outro, de Rosina Kamis, uma doente crônica de 41 anos, eutanasiada em setembro de 2021: suas razões oficiais eram dores físicas por leucemia crônica, fibromialgia e outras condições, mas, em comunicações privadas, ela disse às pessoas que seu sofrimento era mais mental do que físico, tanto sobre iso- lamento quanto sobre a dor: "Acho que, se mais pessoas se preocupassem comigo, eu poderia ser capaz de lidar sozinha com o sofrimento causado por minhas doenças físicas". Já um defensor do sistema canadense, Richard Hana- nia considera a lei canadense um enorme progresso moral ao liberar suicídio dos anos de condenação cristã (Hanania, 2023), além de pôr no centro da questão a liberdade indivi- dual. Com a inversão da pirâmide etária, cada vez mais pes- soas idosas se sentem um estorvo para seus filhos e afirmam que não querem ser um obstáculo. Mais profundamente, o 54