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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSÓFICAS/ FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO HISTÓRICO DA MILITÂNCIA NA CONSOLIDAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO BRASIL CAROLINA WEILER THIBES NITERÓI 2018 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRAUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO CAROLINA WEILER THIBES HISTÓRICO DA MILITÂNCIA NA CONSOLIDAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO BRASIL Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais. Orientador: Prof. Dr. Wilson Madeira Filho Coorientadora: Profa. Dra. Olivia Maria Ferreira Schneider NITERÓI 2018 THIBES, Carolina Weiler. Histórico da militância na consolidação de políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil/ Carolina Weiler Thibes, UFF / Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, 2018. 235 f. Orientação do Prof. Dr. Wilson Madeira Filho. Coorientação da Profa. Dra. Olívia Maria Ferreira Schneider. Tese (Doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais) – Universidade Federal Fluminense, 2018. 1. Segurança Alimentar e Nutricional; 2. políticas públicas; 3. narrativas orais. . I. Tese (Doutorado). II. Título: Histórico da militância na consolidação de políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil CAROLINA WEILER THIBES HISTÓRICO DA MILITÂNCIA NA CONSOLIDAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO BRASIL Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais. Aprovada em 14 de agosto de 2018. BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________________________ Prof. Dr. Wilson Madeira Filho – Orientador UFF _____________________________________________________________________ Profa. Dra. Olívia Maria Ferreira Schneider – Coorientadora UERJ _____________________________________________________________________ Profa. Dra. Annelise Caetano Fraga Fernandez UFRRJ _____________________________________________________________________ Profa. Dra. Daniela Sanches Frozi Fiocruz/Brasília _____________________________________________________________________ Profa. Dra. Patrícia Henriques UFF _____________________________________________________________________ Profa. Dra. Taís de Souza Lopes UFRJ Queremos vossa atenção Nesses versos popular Rimado ou sem a rima Queremos manifestar O conceito que temos De segurança alimentar Todo mundo tem direito De poder se alimentar Com alimentos saudáveis Todo dia e sem parar Respeitando os costumes E a cultura do lugar A agricultura familiar É quem produz alimentos Mas precisa ter a terra A água e implementos Sem agredir a natureza Dando a ela seu sustento A falta de alimentos Existe em todo lugar Esse tipo de problema Nós temos que superar Distribuindo terra e água Para o agricultor cultivar Adquirindo terra e água Alguns problemas vão acabar Principalmente a fome E a obesidade popular Trazendo paz e saúde Para o povo do nosso lugar Para acabar com a fome E também a obesidade As doenças associadas Da nossa sociedade Precisamos de alimentos Saudáveis e em quantidade O direito alimentar É parte fundamental De condições necessárias Mas também essencial De forma igualitária E não discriminal Todo País tem direito À soberania alimentar Produção e distribuição É garantia, a Lei nos dá! Cabe aos nossos governantes Fazer isso funcionar Cordel de autoria de Juvaldino Nascimento da Silva, recitado na abertura da V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional Dedico esta tese a todos e todas que militam pela efetividade da Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil. AGRADECIMENTOS A redação da tese é solitária, mas todos os esforços pretéritos de aprovação para o ingresso no doutorado, a frequência nas disciplinas, a participação em congressos, o trabalho de campo, o delineamento do objeto de estudo e o empenho até se chegar efetivamente ao momento da defesa da tese, envolvem muitas pessoas. Nesse sentido, tenho muito a agradecer a todos os que estiveram comigo e fizeram parte desta caminhada para que eu conseguisse concluir este trabalho. Agradeço aos meus pais Marta e Orestes, pelo exemplo, amor incondicional e importância que deram à minha educação. À minha irmã Aline, pelo carinho e apoio desde sempre. Aos meus amigos e familiares, por partilharem comigo muitas alegrias, compreenderam a minha ausência (muitas vezes por motivos acadêmicos) em momentos importantes e me incentivarem a prosseguir nesta jornada. Ao meu orientador Wilson, que desde a minha graduação em Direito vem me ensinando a desconstruir a dogmática jurídica e a compreender a interdisciplinaridade dos saberes. À minha coorientadora Olívia, pela proposta original deste estudo e contribuição sempre carinhosa ao longo deste trabalho. Ao amor da minha vida Daniel, pelo companheirismo, afeto, estímulo para que eu concluísse com êxito esta tese e por tornar minha vida mais feliz. Vocês todos foram fundamentais para que eu chegasse até aqui! Agradeço ainda ao meu mestre budista, Daisaku Ikeda, por me incentivar a conquistar todos os meus objetivos e por acreditar na minha capacidade em me tornar uma pessoa melhor a cada dia, contribuindo para a construção de um mundo melhor também. Agradeço aos entrevistados, que gentilmente cederam seu tempo e suas histórias tornando possível este trabalho de tese. Por fim, agradeço à CAPES pela concessão de bolsa que viabilizou a elaboração e desenvolvimento de todo este trabalho. RESUMO O objetivo desta tese é registrar, a partir das narrativas de algumas das principais lideranças de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) no Brasil, o processo de construção das políticas de SAN brasileira e de como se constituiu, em seus bastidores, a trajetória deste movimento. A pavimentação do caminho contra a desigualdade econômico-social, que desembocou no fortalecimento de ações políticas e na institucionalização de uma agenda governamental voltada especificamente para a temática de SAN é longa e caracterizada por lutas, denúncias e militância de múltiplos atores sociais. Trata-se de um movimento “de baixo para cima”, ou seja, que é concebido pela sociedade civil e que em virtude desta militância, se internaliza no Estado. Partimos das trajetórias precursoras de Josué de Castro e Betinho, baluartes da SAN no Brasil, desembocando na inserção da temática de SAN nos debates e engajamento da sociedade civil na década de 1990. Em seguida, a tese se estrutura nas narrativas coletadas em entrevistas semi-estruturadas com quinze atores sociais militantes na temática de SAN, a saber: Albaneide Peixinho, Ana Segall, Christiane Costa, Edgard Moura (conhecido como Amaral), Élido Bonomo (conhecido como Lelinho), Elisabetta Recine, Flavio Valente, Francisco Menezes, Írio Conti, Malaquias Batista Filho, Marcos Rochinski, Maria Emília Pacheco, Mauro Morelli, Pedro Kitoko e Renato Maluf. As primeiras entrevistas foram realizadas com os ex-presidentes do Conselho Nacionalde Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), a saber: Renato Maluf, Francisco Menezes e Maria Emília Pacheco. Na triagem dos atores sociais considerados como relevantes para serem entrevistados citados por estes, chegamos aos quinze nomes citados. A partir de 2003, a SAN ganha uma nova abordagem e é tratada como prioridade na agenda política nacional. Algumas iniciativas foram fundamentais para integrar e consolidar várias ações de SAN, dentre elas está a recriação do CONSEA e a criação do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar, posteriormente remanejado para o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Apesar dos avanços significativos na SAN brasileira, o golpe parlamentar de 2016 acarretou profundos retrocessos no cenário político, trazendo o receio de retorno aos índices de insegurança alimentar. As lideranças em SAN por nós entrevistadas, entretanto, afirmam unanimemente que pretendem resistir. A esperança é de que o movimento pela SAN, por ser originário da militância, tenha força para enfrentar a derrocada dos investimentos e o desmonte de equipes e ações de programas estratégicos na temática. Os relatos das lideranças em SAN parecem mostrar a importância da retomada da história de luta, característica inerente ao movimento da SAN no Brasil. PALAVRAS-CHAVES: Segurança Alimentar e Nutricional; políticas públicas; narrativas orais ABSTRACT The purpose of this thesis is to record, from the narratives of some of the main leaders of Food and Nutrition Security (SAN) in Brazil, the process of building the Brazilian SAN policies and how, behind the scenes, it was build the trajectory of this movement. The way against economic and social inequality, which led to the strengthening of political actions and the institutionalization of a government agenda focused specifically on SAN issues is long and characterized by struggles, denunciations and militancy of multiple social actors. It is a movement "from the bottom up", that is conceived by the civil society and that by virtue of this militancy, is internalized in the State. We start from the precursory trajectories of Josué de Castro and Betinho, bulwarks of SAN in Brazil, leading to the insertion of SAN in the debates and engagement of civil society in the 1990s. The thesis is then structured in the narratives collected in semi-structured interviews with fifteen social actors militants in SAN, namely: Albaneide Peixinho, Ana Segall, Christiane Costa, Edgard Moura (known as Amaral), Élido Bonomo (known as Lelinho), Elisabetta Recine, Flavio Valente, Francisco Menezes, Írio Conti, Malaquias Batista Filho, Marcos Rochinski, Maria Emília Pacheco, Mauro Morelli, Pedro Kitoko e Renato Maluf. The first interviews were held with the former presidents of the National Council for Food and Nutrition Security (CONSEA), namely: Renato Maluf, Francisco Menezes and Maria Emília Pacheco. In the screening of the social actors considered as relevant to be interviewed cited by them, we reach the fifteen names cited. From 2003, the SAN gains a new approach and is treated as a priority in the national political agenda. Some initiatives were essentials to integrate and consolidate several SAN actions, among them is the re-creation of the CONSEA and the creation of the Extraordinary Ministry of Food Security, later reassigned to the Ministry of Social Development and Fight against Hunger. Despite the significant advances in the Brazilian SAN, the parliamentary coup of 2016 brought profound setbacks in the political scenario, bringing fears of returning to food insecurity rates. The leaderships in SAN interviewed by us, however, unanimously affirm that they intend to resist. The hope is that the movement for the SAN, because it originates from the militancy, will have the strength to face the collapse of investments and the dismantling of teams and actions of strategic programs in the thematic. The reports of the leadership in SAN seem to show the importance of resumption of the history of struggle, a characteristic inherent to the movement of SAN in Brazil. KEYWORDS: Food and Nutrition Security; public policy; oral narratives LISTA DE ABREVIAÇÕES ABAG - Associação Brasileira de Agronegócio ABIA - Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids ABRA - Associação Brasileira pela Reforma Agrária ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva ACB - Ação Católica Brasileira ADI - Ação Direta de Inconstitucionalidade ANA - Articulação Nacional de Agroecologia ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária AP - Ação Popular ASCOFAM - Associação Mundial de Luta Contra a Fome ATER - Assistência Técnica e Extensão Rural AUP - Agricultura Urbana e Periurbana CAISAN - Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CERESAN - Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional CID - Centro Internacional para o Desenvolvimento CIMI - Conselho Indigenista Missionário CNA - Comissão Nacional de Alimentação CNBB - Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros CONAB - Companhia Nacional de Abastecimento CONAR - Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária CONDRAF - Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável CONSEA - Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional CONTAG - Confederação dos Trabalhadores na Agricultura CONTRAF - Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar do Brasil CPDOC - Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito CPT – Comissão Pastotal da Terra CTA - Centro de Tecnologias Alternativas CUT - Central Única dos Trabalhadores DHAA - Direito Humano à Alimentação Adequada DIAP - Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar EBIA - Escala Brasileira de Insegurança Alimentar FAO - Food and Agriculture Organization of the United Nations (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional FBSSAN - Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional FEC - Fundação Euclides da Cunha FETRAF - Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar do Brasil FIDA - Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola FNDE - Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação GESAN - Grupo de Estudos em Segurança Alimentar e Nutricional Professor Pedro Kitoko IBASE - Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDEC - Instituto de Defesa do Consumidor INAN - Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INPA - Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia IPEA - Instituto de Pesquisa Aplicada JEC - Juventude Estudantil Católica JUC - Juventude Universitária Católica LOSAN - Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional MAPA - Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento MDA - Ministério de Desenvolvimento Agrário MDS - Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome MDSA - Ministério do Desenvolvimento Social e Agrári MESA - Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome OAB - Ordem dos Advogados do Brasil OIT - Organização Internacional do Trabalho OMS - Organização Mundial de Saúde ONU - Organização das Nações Unidas OPPA - Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura PAA - Programa de Aquisição de Alimentos PBF – Programa Bolsa Família PCB - Partido Comunista Brasileiro PEC - Proposta de Emenda à Constituição PFL - Partido da Frente Liberal PFZ - Programa Fome Zero PIB - Produto InternoBruto PLANAPO - Plano Brasil Agroecológico PLANSAN - Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional PMA - Programa Mundial de Alimentos PNAD - Pesquisa Nacional por Amostras por Domicílio PNAE - Programa Nacional de Alimentação Escolar PNAN - Política Nacional de Alimentação e Nutrição PNAPO - Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica PNSAN - Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional PPGSD – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito PRONAF - Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar PRONARA - Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos PSB - Partido Socialista Brasileiro PT - Partido dos Trabalhadores PTB - Partido Trabalhista Brasileiro SAN - Segurança Alimentar e Nutricional SAPS - Serviço de Alimentação da Previdência Social SENAC - Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial SISAN - Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional SPG - Sistema Participativo de Garantia Orgânica STAN - Serviço Técnico de Alimentação Nacional STF - Supremo Tribunal Federal SUAS - Sistema Único de Assistência Social SUDENE - Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste SUS – Sistema Único de Saúde TCU - Tribunal de Contas da União UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro UFF – Universidade Federal Fluminense UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso UFPA - Universidade Federal da Paraíba UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro UNB - Universidade de Brasília UNESP - Universidade Estadual Paulista UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância LISTA DE FIGURAS Figura 1: 1958 – material de campanha lançado pelos sindicatos de trabalhadores rurais de Pernambuco ................................................................................................. 48 Figura 2: Figura 2: Betinho no aeroporto Galeão, no retorno do exílio, em setembro de 1979 ....................................................................................................................... 61 Figura 3: Dom Mauro Morelli (em pé) na 1a Conferência Nacional de SAN, com Betinho (no canto esquerdo) ...................................................................................... 77 Figura 4: Conselheiros do CONSEA Estadual do Espírito Santo em stand montado no salão principal durante a V Conferência Nacional de SAN ................................ 177 Figura 5: Grupo debatendo o Eixo 1 “O que é Comida de Verdade?” ....................180 Figura 6: Abertura oficial da V Conferência Nacional de SAN........................................................................................................................... 181 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Evolução numérica da segurança alimentar nos anos de 2004, 2009 e 2013 ................................................................................................................................... 131 Gráfico 2: Percentual da evolução da segurança alimentar nos anos de 2004, 2009 e 2013 .......................................................................................................................... 131 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 17 1. PRECURSORES DA SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO BRASIL: JOSUÉ DE CASTRO E BETINHO ........................................................ 35 1.1. JOSUÉ DE CASTRO: PIONEIRO DA SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO BRASIL ...................................................................................................................... 37 1.1.1. Vanguarda dos estudos de Josué de Castro e fundação de institutos relacionados à Segurança Alimentar e Nutricional ............................................ 38 1.1.2. Publicação de Geografia da fome e convite a membro da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura ........................................... 41 1.1.3. Josué de Castro na política brasileira e criação da Associação Mundial de Luta Contra a Fome ............................................................................................. 45 1.1.4. Exílio, falecimento e legado ....................................................................... 50 1.2. BETINHO: RETOMADA DO DEBATE E MOTIVADOR DA PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL ...................................................................................................... 53 1.2.1. Hemofílico e militante católico .................................................................. 55 1.2.2. O exílio ....................................................................................................... 58 1.2.3. O retorno ao Brasil, fundação do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas e luta pela democracia .................................................................... 60 1.2.4. Diagnóstico do HIV e redemocratização ................................................... 63 1.2.5. Movimento pela Ética na Política e Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida .............................................................................................. 67 1.3. DÉCADA DE 1990: RECONHECIMENTO DA SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL À MARGEM DO GOVERNO FEDERAL .................................................... 71 1.3.1. Programa Comunidade Solidária .............................................................. 79 1.3.2. Cúpula Mundial de Alimentação ............................................................... 82 1.3.3. Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e de Conselhos Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional Estaduais ............. 86 2. CRIAÇÃO INSTITUCIONAL DO SISTEMA NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL ........................................................................... 91 2.1. BASES CONCEITUAIS PARA A INSTITUCIONALIZAÇÃO ......................................... 91 2.2. CRIAÇÃO DO PROJETO FOME ZERO .................................................................... 97 2.3. RECRIAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL ......................................................................................................... 103 2.4. CRIAÇÃO DO MINISTÉRIO EXTRAORDINÁRIO DE SEGURANÇA ALIMENTAR, REMANEJADO PARA MINISTÉRIO DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME ................................................................................................................................ 109 2.5. PROGRAMA FOME ZERO, PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS DA AGRICULTURA FAMILIAR E PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR .. 112 2.6. AVALIAÇÃO DA INSEGURANÇA ALIMENTAR PELA PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRAS POR DOMICÍLIO .................................................................................... 123 2.7. SISTEMA NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL ................. 133 2.7.1. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional ..................... 142 2.7.2. Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional ............ 147 2.8. EMENDA CONSTITUCIONAL 64/2010 ................................................................ 148 3. CONFERÊNCIAS NACIONAIS DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL ....................................................................................................... 154 3.1. I CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL....... 157 3.2. II CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL ..... 162 3.3. III CONFERÊNCIANACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL .... 166 3.4. IV CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL .... 169 3.5. V CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL ..... 174 4. CONTRIBUIÇÃO DAS LIDERANÇAS DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL E SUAS EXPECTATIVAS PARA O FUTURO ..................... 185 4.1. ANÁLISE DAS PRÓPRIAS TRAJETÓRIAS JUNTO ÀS POLÍTICAS DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL .................................................................................. 187 4.2. O MOMENTO É DE RESISTÊNCIA: EXPECTATIVAS DAS LIDERANÇAS DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL PÓS-GOLPE ............................................ 199 4.3. CONTRIBUIÇÕES PESSOAIS DAS LIDERANÇAS DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL NA CONJUNTURA PÓS-GOLPE ........................................................... 210 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 219 REFERÊNCIAS.......................................................................................................224 ÍNDICE REMISSIVO DE TRECHOS DAS ENTREVISTAS............................235 17 INTRODUÇÃO De acordo com relatório State of Food Insecurity in the World 2015 (Mapa Mundial da Fome 2015), desenvolvido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e pelo Programa Mundial de Alimentos (PMA), 795 milhões de pessoas no mundo estão subnutridas, sendo que 780 milhões estão localizadas em países subdesenvolvidos1. O relatório analisou os progressos alcançados e os desafios remanescentes em relação à Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) de 129 países, entre os anos de 1990 – 2015. O State of Food Insecurity in the World 2015 registrou ainda a conclusão deste período de monitoramento das Metas dos Objetivos do Milênio, encerrado em 2015. Nesta análise, o Brasil é o país, entre os mais populosos, que teve a maior queda (82,1%) de subalimentados entre os anos de 2002-2014. Neste mesmo período, a América Latina reduziu em 43,1% esta quantidade. Além disso, entre os anos de 2003-2015, o Brasil reduziu pela metade, de 10,7% para 5%, sua taxa de desnutrição. O fato de quase 800 milhões de pessoas no mundo viverem/sobreviverem em estado de subnutrição deixa evidente a necessidade de se ampliar a reflexão, o debate e a agenda de pesquisas sobre a desnutrição e a fome. Frisar a complexidade dos inúmeros fatores envolvidos nesta temática é premente para que se possa avançar na reversão deste diagnóstico. O vigoroso destaque do Brasil na busca pela erradicação da fome é um indicativo de que houve efetividade nas políticas públicas brasileiras nesse sentido e que é pertinente o resgate desta trajetória. A inclusão do estudo da fome em um conceito mais abrangente como o da Segurança Alimentar e Nutricional indica um refinamento nesta abordagem. É justamente a trajetória da evolução desde conceito, condicionado pela militância de inúmeros atores sociais e que irá desembocar na afirmação de políticas públicas voltadas para a SAN, que se pretende desenvolver neste trabalho de tese. O tema da SAN é vasto e abrange toda a cadeia alimentar, deste o acesso à terra, reforma agrária, condições de plantio dos alimentos, seu transporte e possibilidade de escoamento até a informação nos rótulos da origem, qualidade e 1 FAO, FIDA, PMA. The State of Food Insecurity in the World 2015. Meeting the 2015. international hunger targets: taking stock of uneven progress. Roma, Fao. 2015. p. 04. 18 segurança dos alimentos e a venda nos mercados, perpassando ainda pela atuação do Estado e da sociedade civil. Entendemos que a pavimentação do caminho contra a desigualdade econômico-social, que desembocou no fortalecimento de ações políticas e na institucionalização de uma agenda governamental voltada especificamente para a temática da SAN, é longa e caracterizada por lutas, denúncias e militância de múltiplos atores. Trata-se de um movimento “de baixo para cima”, ou seja, que é concebido pela sociedade civil e que em virtude desta militância, se internaliza no Estado. Ora, as ações e a opinião que estes militantes sustentaram e sustentam, deram credibilidade à SAN, definindo sua importância e seu significado no âmbito das políticas públicas brasileiras. Dessa forma, seria contraditório abordar a evolução deste conceito, que se alicerça na estruturação de políticas publicas neste início de século, sem registrar a trajetória deste movimento e da atuação de personagens que foram fundamentais para o delineamento do quadro sócio-político atual. Sendo assim, o objetivo deste trabalho de tese é analisar o processo de construção das políticas de SAN brasileiras e registrar, através das narrativas de algumas das principais lideranças de SAN no Brasil, como se constituiu a trajetória deste movimento. Muitos acontecimentos não-oficiais protagonizados pelos entrevistados estão registrados nesta tese, desvendando as razões de alguns fatos e decisões no âmbito da SAN no Brasil. Construção e recorte do objeto de estudo Nossa inserção no movimento da SAN no Brasil ocorreu em maio de 2015, quando nos debruçamos sobre o Projeto de Fortalecimento do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) nos Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Coordenado pelo professor Wilson Madeira Filho (orientador desta tese), secretariado por Letícia de Oliveira Gago Ramos de Souza e por Ubiratan Alves da Silva, técnicos-administrativos da Universidade Federal Fluminense (UFF), o Projeto teve por finalidade desenvolver ações conjuntas entre a sociedade civil, o Conselho Estadual de SAN (CONSEA) e a Câmera Interministerial de SAN (CAISAN) dos respectivos Estados, que contribuíssem para fortalecer o SISAN. O Projeto se desdobrou em três etapas distintas: i) promoção de assessorias e capacitações, dentro da pauta de SAN, para servidores e gestores governamentais 19 vinculados às CAISANs e para os conselheiros dos CONSEAs dos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo; ii) promoção de oficinas e apoio à realização das Conferências Municipais, Regionais e Estatuais de SAN dos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo e participação na V Conferência Nacional de SAN; iii) produção acadêmica através da elaboração de conteúdos e materiais a serem utilizados, tais como: diagnóstico, sistematizações, cartilhas, subsídios para campanhas, bem como artigos acadêmicos. O Projeto foi financiado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e teve o suporte contábil da Fundação Euclides da Cunha (FEC). Devido a burocracias internas tanto da FEC quanto da UFF, iniciamos a primeira etapa do Projeto sem o repasse das verbas prometidas. No primeiro momento, fomos a campo sem o repasse das bolsas de financiamento (os recursos foram liberados em maio de 2016), movidos pelo fascínio despertado pelo tema e para cooperar com o engajamento e militância das equipes que já atuavam na temática nestes Estados. Em Minas Gerais, o Projeto foi coordenado por Élido Bonomo, atual presidente do CONSEA Estadual de Minas Gerais e com ampla militância na SAN neste Estado. Faziam parte desta equipe: Antonioni Afonso, Gisele Aparecida Dias Carneiro, Melissa Luciana de Araújo, Regina Rodrigues de Oliveira, Roberta Oliveira Lima e Wagner de Oliveira Rodrigues. No Espírito Santo, o Projeto teve a coordenação de Pedro Kitoko, que presidiu o CONSEA Estadual do Espírito Santo entre os anos de 2004 e 2016. Faziam parte desta equipe: Alcemi Almeida de Barros, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, Joabe Lucas de Oliveira Filho, Leidiçara Zoppi, Leticia Camillo Silvares, Marilene Rodrigues Cristo eSâmela da Silva Ferreira. No Rio de Janeiro, o Projeto foi coordenado por Marcelino Conti de Souza, técnico-administrativo da UFF, doutorando do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da UFF e militante do movimento negro e que adentrou na militância da SAN por ocasião deste Projeto. Sua atuação no movimento da SAN no Rio de Janeiro foi crucial para a realização da IV Conferência Estadual de SAN no Rio de Janeiro. Faziam parte desta equipe: Alba Valéria Santos Simon, pós- doutoranda junto ao PPGSD-UFF, Bernardo Raphael Bastos de São Clemente, doutorando do PPGSD-UFF, Amanda dos Santos Travisco, Jessica de Faria Santos 20 e Karina de Paula, estudantes do curso de Segurança Pública da UFF. Como equipe de supervisão, participando de eventos e diretrizes nos três Estados, atuavam Wilson Madeira Filho, como coordenador geral do projeto, Wagner Rodrigues, em apoio à subequipe mineira, Rodolfo Bezerra de Menezes Lobato da Costa, em apoio à sub equipe fluminense e eu, Carolina Weiler Thibes, em apoio a subequipe capixaba. Além disso, atuaram outras duas subequipes. Uma delas, sob a coordenação da professora Ana Maria Motta Ribeiro, composta por Márcia Barros Ferreira Rodrigues, professora titular da Universidade Federal do Espírito Santo, Maria José Andrade de Souza, doutoranda do PPGSD-UFF e Rodrigo Pennut da Cruz, mestrando do PPGSD- UFF, voltada a fazer o levantamento de produções acadêmicas em cada um dos três Estados federativos citados. E a outra, coordenada por Renato Maluf, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e composta por Bruna Toniolo, Bruno Prado, Juliana Casemiro, Luciane Ferrareto e Mariana Santarelli, voltada para a sistematização das oficinas realizadas nos três Estados de atuação do Projeto de Fortalecimento do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O histórico, a trajetória e as configurações políticas e culturais dos três Estados envolvidos no Projeto são bastante distintas, demandando diferentes abordagens e estratégias de atuação. Minas Gerais foi o primeiro Estado da Federação a ter o CONSEA Estadual, possuindo uma lei estadual (Lei Estadual 15.982/2006) que dispõe sobre a Política Estadual de SAN. O Rio de Janeiro não tem uma Política Estadual de SAN e a realidade institucional da SAN do Estado é bastante frágil. Já o Espírito Santo ainda não dispõe de uma Política Estadual de SAN, embora já tenha um diagnóstico consistente da vulnerabilidade alimentar dos Povos e Comunidades Tradicionais capixabas. As políticas de SAN no Estado do Espírito Santo, da mesma maneira como ocorreu em âmbito nacional, somente começaram a se estruturar a partir do ano de 2003, com a recriação do CONSEA Estadual. A mobilização da população negra e dos Povos e Comunidades Tradicionais é relativamente organizada no Espírito Santo e a partir da realização do I Encontro Nacional de SAN da População Negra e dos Povos e Comunidades Tradicionais, em setembro de 2011, formalizou suas demandas nos debates da SAN no Estado, dando visibilidade ao movimento e ressaltando a necessidade de se revitalizar a diversidade cultural e os usos e conhecimentos 21 tradicionais.2 Minha atuação, como já adiantado, se deu, particularmente, no Estado do Espírito Santo, onde atuei junto com os membros do CONSEA Estadual capixaba e com a equipe do Grupo de Estudos em Segurança Alimentar e Nutricional Professor Pedro Kitoko (GESAN). Minha primeira participação no Projeto ocorreu em maio de 2015, por ocasião da III Conferência Municipal de SAN de Vitória, quando tive meu primeiro contato com a equipe integrante do Projeto do Espírito Santo. Ao longo de 2015, auxiliei na realização de outras Conferências Municipais e Regionais no Espírito Santo e em novembro de 2015, participei da V Conferência Nacional de SAN. Foi justamente por ocasião da V Conferência Nacional de SAN que se recortou o objeto desta tese. Em conversa com a nutricionista e professora Olívia Schneider (coorientadora desta tese), que tem longa atuação e militância no movimento da SAN no Brasil, esboçou-se a hipótese de resgatar a trajetória do movimento da SAN no Brasil através das narrativas das lideranças deste movimento. De acordo com Olívia Schneider, é no cotidiano da vida que se encontram os espaços de construção das tramas da rede em SAN3. A partir deste momento, apurei a minha observação sobre os atores sociais presentes à V Conferência Nacional de SAN e passei a conjecturar quem poderiam ser meus possíveis entrevistados. A tese se estrutura nas narrativas coletadas em entrevistas com quinze atores sociais militantes na temática de SAN. As primeiras entrevistas foram realizadas com os ex-presidentes do CONSEA4, a saber: Renato Maluf, Francisco Menezes e Maria Emília Pacheco. Elaboramos um questionário com sete perguntas: 1) Como se deu o seu interesse pela temática de SAN?; 2) Na sua opinião, quais são os marcos essenciais na efetivação da SAN no Brasil?; 3) Que destaque você faria a sua atuação na construção e efetivação da SAN no Brasil?; 4) Como você visualiza a inserção da SAN no conjunto das políticas públicas brasileiras?; 5) Na sua opinião, como se encontra a atual conjuntura da SAN no Brasil?; 6) Quais as suas expectativas para a 2 THIBES, Carolina Weiler; RODRIGUES, W. O. Segurança Alimentar e Nutricional: breve análise da atuação do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado do Espírito Santo. In: IV Congresso Interdisciplinar em Sociais e humanidades: fronteira e integração - estudos interdisciplinares na América Latina, 2015, Foz do Iguaçu/PR. 3 SCHNEIDER, Olívia Maria Ferreira. Segurança Alimentar e Nutricional e Programa Saúde da Família: tecendo as similitudes e redes de saberes. In: SCHNEIDER, Olívia F. (org). Segurança Alimentar e Nutricional: tecendo a rede de saberes.Rio de Janeiro: FAPERJ, 2012. p. 185 4 O CONSEA, conforme será mostrado ao longo da tese, é um órgão de assessoramento imediato à Presidência da República na temática de SAN. Dada a sua importância, elegemos seus ex-presidentes como os primeiros a serem entrevistados. 22 SAN no Brasil daqui para a frente e como espera contribuir?; 7) Quais lideranças o senhor considera essenciais na trajetória da SAN no Brasil? Na última pergunta, conforme explicitado, pedíamos a indicação de lideranças da SAN no Brasil que o entrevistado consideraria importantes para constar nesta tese. Após entrevistarmos estes três ex-presidentes do CONSEA, fizemos uma triagem dos atores sociais por eles citados como relevantes para constar nesta tese, selecionamos os que se repetiam e buscamos entrevistá-los. Na triagem dos atores sociais considerados como relevantes para serem entrevistados citados por Renato Maluf, Francisco Menezes e Maria Emília Pacheco, chegamos aos seguintes nomes: Albaneide Peixinho, Alessandra Lunas, Arnoldo de Campos, Carlos Eduardo (conhecido como Caê), Christiane Costa, Dourado Tapeba, Edgard Moura (conhecido como Amaral), Élido Bonomo (conhecido como Lelinho), Elisabetta Recine, Flavio Valente, Inês Rugani, Írio Conti, Luciene Burlandi, Luiz Marinho, Malaquias Batista Filho, Marcos Rochinski, Mauro Morelli, Maya Tagashi, Natalie Begamo, Pedro Kitoko e Vanessa Schottz. Dom Mauro Morelli presidiu o primeiro CONSEA nos anos de 1993 à 1994, mas foi entrevistado posteriormente porque foi bastante reticente em nos conceder a entrevista. Luiz Marinho é sindicalista e presidiu o CONSEA nos anos de 2003 e 2004. De acordo com os relatos de Renato Maluf e Francisco Menezes, a indicação de Luiz Marinho para a presidência do CONSEA se deu para apaziguar as disputas à época pelo cargo. Dada sua pouca afinidade com a temática de SAN, desconsideramos a possibilidade de entrevistá-lo. Elisabetta Recine, atual presidente do CONSEA, tomouposse em maio de 2017. De acordo com relato de Maria Emília Pacheco, sua permanência na presidência do CONSEA foi prorrogada por solicitação de conselheiros da sociedade civil do CONSEA e de presidentes de CONSEAs Estaduais, em virtude do golpe parlamentar em maio de 2016. Aguardamos, portanto, os desdobramentos políticos para entrevistarmos Elisabetta Recine recentemente, em março de 2018. Em outubro de 2016, foi realizado em Brasília o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional, o qual participamos apresentando um artigo sobre SAN5. Aproveitamos o evento e a presença de alguns dos atores 5 THIBES, Carolina Weiler; COSTA, Rodolfo Bezerra de Menezes Lobato da. Direito Humano à Alimentação Adequada como atividade docente. II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, 2016. 23 sociais mencionados, para entrevistá-los, a saber: Edgard Moura, Flavio Valente, Írio Conti, Professor Malaquias, e, por indicação de nossa coorientadora, Olívia Schneider, que também participou do II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional, entrevistamos Ana Maria Corrêa Segall. Albaneide Peixinho, Marcos Rochinski, Christiane Costa e Elisabetta Recine foram entrevistados por Skype. Entramos em contato com Carlos Eduardo (Caê), Dourado Tapeba e Luciene Burlandi, mas por questões alheias a nossa vontade, não conseguimos entrevistá-los. Não conseguimos contatar Alessandra Lunas, Arnoldo de Campos, Inês Rugani, Maya Tagashi, Natalie Begamo nem Vanessa Shots. Entretanto, incluímos trecho de entrevista de Arnoldo de Campos concedida à Revista SAN e trechos de artigo de Maya Tagashi, que trata da implementação do Programa Fome Zero. Acreditamos que as narrativas pessoais dos quinze atores sociais entrevistados e que compõe esta tese, tornam a análise da SAN no Brasil mais concreta e mais factíveis as situações relatadas. Além dos relatos orais, utilizamos discursos, relatos retirados de documentários, relatórios de pesquisa e textos dos próprios entrevistados, muitos deles estudiosos da SAN. As publicações destes intelectuais da SAN subsidiaram a construção analítica da trajetória que pretendemos desenvolver, dando coerência ao que é narrado. Assim, a perspectiva teórica desenvolvida nesta tese é a dos intelectuais militantes na SAN. Militantes entrevistados (ordem alfabética) Albaneide Peixinho - É graduada em Nutrição pela Universidade Federal da Bahia e Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São Paulo. É coordenadora geral do Programa Nacional de Alimentação Escolar e membro do CONSEA. Ana Maria Segall Corrêa - É graduada em Medicina pela Universidade de Brasília, Mestre em Saúde Pública pela Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health/EUA e Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas. Coordenou a investigação multicêntrica que validou para o Brasil a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA). Participa como especialista do Comitê Científico Latino-Americano para Desenvolvimento e Aplicação da Escala Latino-Americana e 24 Caribenha de Medida da Segurança Alimentar. É membro do CONSEA desde 2009 até o momento e participa como conselheira da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar. É professora associada aposentada com vínculo de professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Campinas. Christiane Gasparini Araújo Costa - É graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade de São Paulo e Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo. É membro do Comitê Global de Segurança Alimentar e Nutricional da ONU e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. É membro do CONSEA e presidente do CONSEA Municipal de São Paulo. É coordenadora da área de SAN do Instituto Polis. Edgard Aparecido de Moura - É graduado em Gestão de Processos Empreendedores pela Faculdade de Tecnologia Diamante e é pós-graduado em História da Cultura Afro-brasileira pelo Instituto Mantenedor de Ensino Superior da Bahia. Cursa o mestrado em Alimentos, Nutrição e Saúde pela Universidade Federal de São Paulo. É membro do CONSEA e membro do Movimento Social Agentes de Pastoral Negros do Brasil. Élido Bonomo (Lelinho) - É graduado em Nutrição pela Universidade Federal de Ouro Preto, Mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais e Doutor em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Minas Gerais. Presidiu o Conselho Regional de Nutricionistas da 9ª Região - CRN9/MG e preside o Conselho Federal de Nutricionistas. Foi membro do CONSEA e é presidente do CONSEA do Estado de Minas Gerais. Integra o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e coordena o Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar da Escola de Nutrição da Universidade Federal de Ouro Preto. É professor na Universidade Federal de Ouro Preto. Coordenou o Projeto de Fortalecimento do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional no Estado de Minas Gerais nos anos de 2015 à 2017. Elisabetta Recine - Preside o CONSEA desde 2017 até o momento. É graduada em Nutrição pela Universidade de São Paulo, Mestre em Ciências pela Universidade de 25 São Paulo e Doutora em Saúde Pública também pela Universidade de São Paulo. Integra o Grupo Temático Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (GT ANSC/ABRASCO). É docente e coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília. Flavio Luiz Schieck Valente - É graduado em Medicina e Mestre em Saúde Pública pela Harvard University. Foi professor na Universidade Federal da Bahia nos anos de 1979 à 1982 e nos anos de 1983 à 1995, foi professor na Universidade Federal de Santa Catarina. Nos anos de 1992 à 1994 foi assessor técnico da presidência do CONSEA. Foi consultor técnico da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH) nos anos de 2002 à 2007 e por sete anos foi coordenador geral da ONG Ágora. É representante da sociedade civil no Comitê Diretivo do Comitê Permanente de Nutrição da ONU e membro da coordenação nacional do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional. Foi Secretário Geral da FIAN Internacional nos anos de 2007 à 2015 e desde 2016 é Senior Advisor da FIAN Internacional. Francisco Menezes - Presidiu o CONSEA entre os anos de 2004 à 2007. É graduado em Economia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Mestre em Desenvolvimento Agrário pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. É membro da coordenação nacional do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional, coordenador do IBASE e colaborador na Área de Pobreza e Segurança Alimentar da ActionAid no Brasil. Durante sua gestão no CONSEA, três políticas foram priorizadas: o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Cisternas. A conversão em lei da compra institucional de 30% dos alimentos do PNAE diretamente da agricultura familiar somente se concretizou em 2009, mas foi em sua gestão que se iniciou esta demanda. Em sua gestão também foi aprovada a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei 11.346/2009), que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Írio Luiz Conti - É graduado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo e graduado em Teologia pelo Instituto Missioneiro de Teologia. É Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Doutor em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É membro 26 fundador e ex-presidente da FIAN Brasil e ex-presidente da FIAN Internacional. É membrodo CONSEA e professor no Instituto Superior de Filosofia Berthier/Passo Fundo. Malaquias Batista Filho (Professor Malaquias) - É graduado em Medicina pela Universidade Federal da Paraíba, Mestre em Nutrição em Saúde Pública pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. Implementou, sob orientação de Ivan Beghin (consultor da Organização Pan-Americana de Saúde), o Programa de Suplementação Alimentar Supervisada, que teria servido de protótipo para a criação, em 1975, do Programa de Suplementação Alimentar do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN)6. Participou de missões internacionais na América Central como consultor da Organização Pan- Americana de Saúde e em Cabo Verde e Moçambique como consultor da FAO. Dentre outros prêmios, títulos e homenagens, foi agraciado em 2007 com a Medalha de Mérito Científico Nacional pelo Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco; em 2008 foi homenageado pela Academia Brasileira de Ciências por sua destacada atuação na área de Nutrição em Saúde Pública; em 2012 recebeu da Fundação Bunge, o Prêmio Bunge em Segurança Alimentar e Nutricional na categoria Vida e Obra; e em 2016, recebeu o Prêmio Anísio Teixeira da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) em reconhecimento por suas relevantes pesquisas na área da Nutrição. Atualmente, é docente no Programa de Pós-Graduação em Saúde Integral do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira. Marcos Rochinski - É agriculto familiar e avicultor. Foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Palmeira/PR e coordenador do Departamento Rural da Central Única dos Trabalhadores (CUT) do Paraná e posteriormente, do Coletivo de Jovens Rurais da CUT do Fórum dos Três Estados do Sul (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). Nos anos de 2001 à 2007, foi Secretário de Formação da CUT- PR, sendo um dos fundadores da Federação dos Trabalhadores na Agricultura 6 VASCONCELOS, Francisco de Assis Guedes de. A epidemiologia das deficiências nutricionais no Nordeste: a contribuição de Malaquias Batista Filho à institucionalização da Nutrição em Saúde Pública no Brasil. Caderno de Saúde Pública vol.16 n.2 Rio de Janeiro Apr./June 2000. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2000000200023 Acesso em junho de 2018 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2000000200023 27 Familiar da Região Sul do Brasil (FETRAF-SUL)7. É membro da direção nacional da CUT, membro do CONSEA e coordenador geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil (CONTRAF). Maria Emília Pacheco - Presidiu o CONSEA entre os anos de 2012 à 2017. É graduada em Serviço Social pela Faculdade de Serviço Social de Juiz de Fora e Mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É integrante da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional. Durante sua gestão no CONSEA, tiveram destaque os debates sobre a importância da redução do uso de agrotóxicos e transgênicos e do incentivo à produção orgânica de base agroecológica. Mauro Morelli - Presidiu o CONSEA entre os anos de 1993 à 1995. É bispo da Igreja Católica e emérito residente da Diocese de Luz, em São Roque de Minas/MG. Concluiu seus estudos ginasial e clássico no Seminário Seráfico São Fidélis, em Piracicaba/SP. É formado em Filosofia pelo Seminário Maior de Nossa Senhora da Conceição em Viamão/RS e em Teologia pela Saint Mary`s Seminary and University em Beltimore/EUA. Foi ordenado padre em Baltimore/EUA para a Diocese de Piracicaba em 28 de abril de 1965. Foi vigário da Paróquia São João Batista em Rio Claro/SP nos anos de 1966 à 1974. Foi vigário episcopal da região de Rio Claro/SP nos anos de 1967 à 1974 e Secretário Regional da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Sul 1/SP nos anos de 1971 à 1975. Em dezembro de 1974, foi nomeado bispo auxiliar do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns na Arquidiocese de São Paulo pelo Papa Paulo VI. Nos anos de 1975 à 1979, presidiu a Comissão Regional de Presbíteros/SP e nos anos de 1979 à 1981 presidiu a Comissão Episcopal Regional/SP. Em maio de 1981, foi nomeado pelo Papa João Paulo II o primeiro bispo da então criada Diocese de Duque de Caxias, onde permaneceu até junho de 2005. Integrou, junto com o Pastor Presbiteriano Jaime Wright e Dom Waldyr Calheiros, nos anos de 1986 à 1990, a Junta Jurídica do Serviço Paz e Justiça na América Latina, organização internacional em defesa dos direitos humanos e 7 Disponível em: http://www.fetrafsul.org.br/siteantigo/index.php?option=com_content&view=article&id=2615:marcos- rochinski-e-o-novo-coordenador-da-fetraf-brasil&catid=1:ultimas-noticias&Itemid=104 Acesso em junho de 2018. http://www.fetrafsul.org.br/siteantigo/index.php?option=com_content&view=article&id=2615:marcos-rochinski-e-o-novo-coordenador-da-fetraf-brasil&catid=1:ultimas-noticias&Itemid=104 http://www.fetrafsul.org.br/siteantigo/index.php?option=com_content&view=article&id=2615:marcos-rochinski-e-o-novo-coordenador-da-fetraf-brasil&catid=1:ultimas-noticias&Itemid=104 28 organismo consultivo da ONU. Contribuiu na criação, em 1992, do Movimento pela Ética na Política e participou, em 1993, do Movimento Contra a Fome a Miséria e pela Vida. Em 2004, fundou o Instituto Harpia Harpyia, com sede em Indaiatuba/SP, que busca promover o direito humano à alimentação e nutrição. Foi presidente do CONSEA Estadual de Minas Gerais nos anos de 1999 à 2015. Durante sua gestão no CONSEA Nacional, incidiu politicamente em ações como a merenda escolar, nas ações emergenciais de combate à fome no Nordeste, na distribuição de estoques públicos de alimentos à população carente, nas pesquisas e programas sobre alimentação e nutrição e nos programas de distribuição de leite e de alimentação do trabalhador8, contribuindo para a inserção formal na agenda do governo federal de ações de SAN. Em sua gestão, foi realizada a I Conferência Nacional de SAN, em julho de 1994. Pedro Makumbundu Kitoko - É graduado em Nutrição pela Escola Superior de Ciências da Nutrição/Tunísia, Mestre em Saúde Pública e Nutrição pela Université Paris 1 (Pantheon-Sorbonne)/França, Doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo e Pós-Doutor em Epidemiologia Nutricional pela Universidade de São Paulo. Foi diretor administrativo da Faculdade de Medicina e Chefe do Departamento de Saúde Pública da Universidade Agostinho Neto/Angola. Foi membro do CONSEA e presidiu o CONSEA Estadual do Espírito Santo nos anos de 2004 à 2016. Coordenou o Projeto de Fortalecimento do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional no Estado do Espírito Santo nos anos de 2015 à 2017. Renato Maluf - Presidiu o CONSEA entre os anos de 2007 à 2011. É graduado em Economia pela Universidade Metodista de Piracicaba e Mestre e Doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas. Possui dois pós-doutorados: um pela Oxford University e outro pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Entre os anos de 2010 e 2015 foi membro do Comitê Diretivo do Painel de Alto Nível de Especialistas em Segurança Alimentar do Comitê das Nações Unidas de Segurança Alimentar Global. Desde 2011 integra a Chaire UNESCO – Alimentations du Monde, Comité d`Orientation Stratégique (Collège Personnalités Qualifiées), sediada em Montpellier/França. Integra também o Observatório de Políticas Públicas para a 8 Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN). Estruturando o Sistema Nacionalde Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) Brasília: CAISAN, 2011. p. 19. 29 Agricultura (OPPA). É membro da coordenação nacional do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. É professor titular do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA UFRRJ), onde coordena o Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional (CERESAN). Durante sua gestão no CONSEA, foi aprovada a Lei 11.947/2009, que institucionalizou que a compra de 30% dos alimentos destinados ao Programa Nacional de Alimentação Escolar devem advir da agricultura familiar. Foi também em sua gestão que foi aprovada a Emenda Constitucional 64/2010, que inclui no artigo 6o da Constituição Federal o direito à alimentação. Narrativas orais A abordagem da trajetória do movimento da SAN no Brasil a partir das memórias e narrativas de seus principais agentes propulsores parece não ter sido foco precípuo de trabalhos acadêmicos até o momento e é este o propósito central desta tese. Sendo assim, a principal fonte documental desta tese são os relatos orais coletados ao longo dos anos de 2016, 2017 e 2018 através de entrevistas semiestruturadas com as principais lideranças da SAN no Brasil. Por se estruturar em depoimentos orais gravados e transcritos, nossa metodologia se insere no ramo da História Oral. A História Oral é uma metodologia de pesquisa que se baseia em entrevistas gravadas com pessoas que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjecturas, instituições, modos de vida ou outros aspéctos da história contemporânea de forma a elucidar a compreensão do passado, com o auxílio de documentos escritos, imagens e outros tipos de registro9. Por se tratar de uma história não-oficial, ou seja, que não advém de arquivos nacionais (paradigma da instituição de memória organizada em torno de fonte escrita)10 ou de registros científicos, a História Oral atuaria como uma 9 Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/acervo/historiaoral Acesso em maio de 2018. 10 TREBITSCH, Michel. A função epistemológica e ideológica da história oral no discurso da história contemporânea. In: História Oral. Marieta de Moraes (org). Rio de Janeiro: Diadorim Editora Ltda, 1994. p. 23 http://cpdoc.fgv.br/acervo/historiaoral 30 contra-história, uma história ‘vista de baixo’. De acordo com Trebitsch, em oposição à história positivista, que valoriza as fontes escritas, a História Oral: (...) vem se opor como contra-história, operando uma inversão historiográfica radical, tanto do ponto de vista dos objetos como dos métodos. História vista de baixo, história do local e do comunitário, história dos humildes e dos sem-história, tira do esquecimento aquilo que a história oficial sepultou11 Trebitsch prossegue: Opondo à fria trilogia acadêmica - Estado, história, escrita - a sua própria trindade - revolução, memória, oralidade -, a História Oral assume um projeto utópico de democratização da história, contra a instituição, a civilização, o progresso, a cidade, propondo-se devolver a palavra ao povo, ao rural, ao primitivo. História quente, militante, história dos excluídos, em que o oral se opõe ao escrito como a natureza à cultura, o vivenciado ao concebido, o verdadeiro ao artificial, a História Oral construiu sua identidade sobre um sistema maniqueísta de antinomias, de que decorrem os seus princípios metodológicos - uso da pesquisa de campo e da observação participante, abertura interdisciplinar para as demais ciências sociais.12 A luta pela SAN no Brasil é um movimento de “baixo para cima”, ou seja, é por meio da luta social que a SAN se institucionaliza como política de Estado. Assim, nos parece coerente narrar a história da SAN no Brasil sob a ótica dos militantes precursores desta luta. Entendemos que a trajetória e a experiência constituída por esses atores no cotidiano da militância em SAN, mostrará os caminhos das tensões, embates e dos encadeamentos que convergiram para a elaboração das políticas públicas de SAN no Brasil. Através da busca nos detalhes, na observação dos indícios dos depoimentos coletados não prezados por documentos oficiais, pretendemos enredar os principais fatos que engendraram o atual painel de políticas públicas de SAN no Brasil. A compreensão de narrativa de Walter Benjamin, filósofo e sociólogo alemão, pode ser muito adequada para este trabalho de tese, pois na concepção do autor, a experiência e a memória se fundam na narrativa. Para Benjamin, “a experiência que 11 TREBITSCH, Michel. A função epistemológica e ideológica da história oral no discurso da história contemporânea. In: História Oral. Marieta de Moraes (org). Rio de Janeiro: Diadorim Editora Ltda, 1994. p. 23 12 TREBITSCH, Michel. A função epistemológica e ideológica da história oral no discurso da história contemporânea. In: História Oral. Marieta de Moraes (org). Rio de Janeiro: Diadorim Editora Ltda, 1994. .p. 25 31 passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores” 13 e complementa: “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”14. A narrativa, para Benjamin, teria caráter atemporal: “Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver”15. E ainda: “um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois”16. A informação, ao contrário, é crua, direta e se esgota assim que cumpre sua função: “Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele”17. Neste trabalho de tese, pretendemos resgatar a narrativa do aconselhamento, que retrata a experiência coletiva e que condiz com a tessitura da trajetória que pretendemos registrar. Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas se ‘dar conselhos’ parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis18. Sendo assim, as vivências, experiências e lembranças devem ser as fontes das narrativas a serem colhidas dos atores sociais com destaque na temática de SAN. Citando uma vez mais Benjamin, “ (...) o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração (...)”19, ou seja, a maneira como o passado é relembrado e como assume a sua forma no presente. Os estudos sobre a experiência do autor espanhol Jorge Larrosa parecem compor adequadamente com o encadeamento teórico que pretendemos utilizar neste 13 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Editora Brasiliense. 3a Edição. 1987. p. 198 14 Idem. p. 201 15 Idem. p. 204 16idem. p. 37 17 Idem. p. 204 18 Idem. p. 200 19 Idem. p. 37. 32 trabalho de tese. Larrosa entende que a experiência é algo que nos acontece, que nos toca: A experiência seria o modo de habitar o mundo de um ser que existe, de um ser que não tem outro ser, outra essência, além da sua própria existência corporal, finita, encarnada, no tempo e no espaço, com outros. E a existência, como a vida, não pode ser conceitualizada porquesempre escapa a qualquer determinação. Porque é, nela mesma, um excesso, um transbordamento, porque é nela mesma possibilidade, criação, invenção, acontecimento. Talvez por isso se trate de manter a experiência como uma palavra e não fazer dela um conceito (...). a experiência é o que é, e além disso mais outra coisa, e além disso uma coisa para você e outra coisa para mim, e uma coisa hoje e outra amanhã, e uma coisa aqui e outra coisa ali, e não se define por sua determinação e sim por sua indeterminação, por sua abertura20. Recuperar e registrar as experiências singulares de alguns dos protagonistas do movimento pela SAN no Brasil, no nosso entender, é valorizar a militância destes ativistas. É imprescindível buscar no passado o embrião que levou aos desdobramentos atuais da luta pela SAN no Brasil para que no presente, sua consolidação seja lembrada e vinculada a esta luta pretérita. Walter Benjamin, ao constatar a pobreza da experiência da sociedade capitalista moderna, questiona: “pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural se a experiência não mais o vincula a nós?” 21 . Analogamente, devemos nos questionar sobre o real significado das conquistas políticas e sociais de SAN se não as vincularmos à militância histórica dessa trajetória. Para Benjamin, não seria possível uma descrição unânime sobre o passado, pois ele é passível de diferentes interpretações. Nesse sentido, a história contada em registros escritos não seria absoluta, podendo ser reconstruída a partir de outras fontes e pontos de vista. Para Benjamin, não haveria uma verdade a ser alcançada, mas processos de construção/desconstrução de sentidos e significados22. O mesmo ocorre com a imagem do passado, que a história transforma em coisa sua. O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por 20 LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2014. p. 43-44. 21I BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Editora Brasiliense. 3a Edição. 1987. p. 115 22 MONTENEGRO, Antônio Torres. História e Memória: combates pela história. In: Revista História Oral da Associação Brasileira de História Oral – Vol. 10 – 2o semestre de 2007. p. 4 33 um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?23 Recorremos ao pensamento de Walter Benjamin buscando articular passado e presente para que ambos sejam transformados. Trilhando estes ensinamentos, entendemos que cabe ao presente retomar e reconhecer os sinais de resistência na luta histórica pela SAN para que acontecimentos esquecidos e emudecidos nesta trajetória ganhem destaque na história narrada neste início de século XXI. Estrutura da tese O primeiro capítulo abordará as trajetórias precursoras de Josué de Castro e Betinho, baluartes da SAN no Brasil, desembocando na inserção da temática de SAN na agenda política nacional na década de 1990. A biografia de Josué de Castro será a primeira a ser analisada, quando remontaremos às suas iniciativas pioneiras na implementação de programas em prol do que hoje se denomina Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), ao seu trabalho como professor universitário, escritor e político até sua atuação por dois mandatos consecutivos como presidente da FAO e seu falecimento, em setembro de 1973. Em seguida, nos debruçaremos sobre a trajetória de Betinho, cuja vida e militância são indissociáveis. Sociólogo e exilado político, Betinho retoma a temática alimentar condicionando a participação da população na reversão do diagnóstico de fome de milhões de brasileiros. Em 1981, Betinho funda, junto com companheiros de exílio, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) e no início da década de 1990, lidera a campanha nacional “Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria e pela Vida”, engajando a sociedade na luta contra a fome e as desigualdades sociais. A década de 1990 seria marcada por políticas neoliberais de escassos diálogos com os movimentos sociais e a temática da SAN teria amadurecido por iniciativas segmentadas da sociedade civil, à margem das políticas do governo federal. A iniciativa da Ação da Cidadania teria inserido, em definitivo, a temática da SAN na agenda política nacional e contribuído para a criação do CONSEA, extinto logo após 23 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Editora Brasiliense. 3a Edição. 1987. p. 223. 34 sua criação, cedendo lugar ao Programa Comunidade Solidária. Outros acontecimentos, como a origem do Governo Paralelo, a Cúpula Mundial de Alimentação e a criação do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) são tratados neste primeiro capítulo. No segundo capítulo analisamos a institucionalização da SAN no Brasil a partir do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no ano de 2003. Iniciamos o capítulo apresentando alguns princípios elencados por Maluf e Menezes que seriam condicionantes de uma alimentação satisfatória e que devem nortear as ações e políticas públicas de SAN. Em seguida, nos debruçamos sobre a estruturação do Programa Fome Zero (PFZ), que enseja a recriação do CONSEA, a criação do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e a criação e o fortalecimento de dois de seus principais programas: o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar. A progressiva diminuição dos índices de desnutrição e insegurança alimentar passam a ser mensurados a partir de 2004 através da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, criada por iniciativa de Ana Maria Segall Corrêa, que em entrevista a nós concedida descreve os bastidores da elaboração desta Escala. A narrativa da origem, do desenvolvimento e da posterior aplicação da EBIA também compõe o segundo capítulo, que prossegue tratando do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, da aprovação do projeto de lei que o instituiu, a Lei Orgânica de SAN (LOSAN) e dos componentes que estruturam este Sistema inovador e intersetorial. O capítulo se encerra tratando da inclusão do direito à alimentação na Constituição Federal através da Emenda Constitucional 64/2010 e dos embaraços e empecilhos que tiveram de ser sobrepujados para sua aprovação. O terceiro capítulo trata das Conferências Nacionais de SAN, espaços deliberativos e de participação social, onde inúmeros segmentos se reúnem para monitorar e propor ações para a SAN no Brasil. São analisadas as cinco Conferências Nacionais realizadas nos anos de 1994, 2004, 2007, 2011 e 2015. Cada Conferência propõe um tema e o refinamento deste tema e do conteúdo debatido nestes encontros indicam o paulatino amadurecimento da SAN no Brasil e de sua inserção nas políticas públicas brasileiras. Encerramos a tese com o capítulo quatro, quando abordamos a destituição da ex-presidente Dilma Rousseff, recepcionada como golpe parlamentar pelo movimento da SAN no Brasil, e as expectativas das lideranças em SAN por nós entrevistadas 35 neste contexto pós-golpe. Neste capítulo final incluímos relatos e trechos das entrevistas que não foram integradas nos demais capítulos, mas que consideramos relevantes e peculiares aos entrevistados. São narrativas que não constam em nenhum documento oficial e onde se apresentam as perspectivas dos principais atores sociais militantes na temática sobre a SAN no futuro em um contexto de claros retrocessos civilizatórios. O horizonte que vislumbram é pessimista, sendo o maior deles o retorno do Brasil ao Mapa da Fome. Entretanto, conforme será mostrado ao longo deste trabalho de tese, a SAN noBrasil é fruto da militância e diante dos retrocessos vivenciados a partir do golpe parlamentar no primeiro semestre de 2016, a intenção é resistir e buscar reverter este cenário através de enfrentamentos via movimentos sociais. 1. PRECURSORES DA SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO BRASIL: JOSUÉ DE CASTRO E BETINHO Médico, cientista social, geógrafo, nutrólogo, político, professor e escritor, Josué de Castro é referência obrigatória no diagnóstico da fome e da miséria no Brasil. Em 1946, lançou Geografia da fome, sua obra mais conhecida, em que faz uma análise precisa da fome no Brasil, deixando evidente que este não é um fenômeno natural, mas consequência de uma realidade social desigual e injusta. A partir desta publicação, a fome torna-se objeto multidisciplinar de estudo e compreensão24. A inserção da temática da SAN nas políticas públicas brasileiras ocorre conforme os desdobramentos históricos e no período da ditadura militar há uma estagnação desta matéria, quiçá uma involução. A reabertura política, a partir do final da década de 1970, permite o retorno de muitos exilados políticos, que colaboram para a retomada do debate do flagelo da fome no Brasil. Dentre os exilados que regressaram ao Brasil, o mais engajado na militância para o enfrentamento da fome teria sido Herbert de Souza, o Betinho. Em 1981, Betinho funda, junto com os economistas Carlos Afonso e Marcos Arruda, o IBASE e no início da década de 1990, lidera a campanha nacional “Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria e pela Vida”. A partir desta mobilização nacional, a fome se torna, efetivamente, uma questão de política pública e se internaliza dentro do Estado. Na década de 1990 há uma involução do processo para uma democracia participativa nas políticas públicas de SAN. Entretanto, movimentos e organizações sociais se articulam em paralelo ao governo federal (é formado o Governo Paralelo) e participam da Cúpula Mundial de Alimentação. Criam o CONSEA, alguns Conselhos Estaduais de SAN e fundam o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. 24 Nesse sentido ver o trabalho de NASCIMENTO, R.C. O Papel do CONSEA na Construção da Política e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. 2012. Tese (Doutorado em Ciência Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 2012. p. 13 37 1.1. Josué de Castro: pioneiro da Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil Até os anos 1920-30, o tratamento da problemática alimentar no Brasil teria se limitado ao âmbito do abastecimento e fiscalização dos alimentos25, o que enfatiza o caráter pioneiro dos estudos de Castro. Em âmbito mundial, o termo “Segurança Alimentar” passou a ser utilizado na Europa a partir da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), mas sob estreita ligação com a segurança nacional, pois se vinculava com a capacidade de cada país produzir sua própria alimentação, ou seja, de se auto- suprir, de forma a não ficar vulnerável a possíveis cercos, embargos e boicotes por razões políticas ou militares26. A eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e a expansão dos conflitos para além das fronteiras europeias agrava a preocupação com o suprimento de alimentos e da fome como flagelo mundial27 e a Segurança Alimentar passa a ser tratada de forma hegemônica como uma questão de insuficiência de alimentos. Nesse contexto, a questão alimentar ganha novos contornos, tornando-se uma tarefa de Estado. De acordo com Maluf, a ação estatal é o nascedouro da noção de Segurança Alimentar e o fator “segurança” embutido no conceito, costuma ser atribuído às circunstancias excepcionais vivenciadas naquele período28. No pós-guerra são criados inúmeros organismos internacionais dedicados direta ou indiretamente à questão alimentar, com destaque para a FAO, instituída em 1945 e a Organização Mundial de Saúde (OMS), criada em 1948. As bases dessa criação teriam sido lançadas em 1943 durante a Conferência das Nações Unidas sobre Alimentos e Agricultura, em Hot Spring/EUA, quando o então presidente norte- americano Franklin Roosevelt convidou os países aliados a traçarem planos relacionados a alimentos e agricultura no bojo da reconstrução posterior ao final do conflito29. 25 MAGALHÃES, Rosana. Fome: uma (re)leitura de Josué de Castro. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz Editora, 1997. p. 28 26 AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS (ABRANDH). O Direito Humano à Alimentação Adequada e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, 2013. p. 13 27 INSTITUTO DE POLÍTICA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). A Trajetória Histórica da Segurança Alimentar e Nutricional na Agenda Política Nacional: projetos, descontinuidades e consolidação, Rio de Janeiro, 2014. p. 09 28 MALUF, Renato S. Segurança Alimentar. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 30 e 36. 29 Idem, p. 51 38 No Brasil, a temática da SAN começa a ganhar certa difusão a partir das análises de Josué de Castro. Visionário, Josué de Castro foi pioneiro ao sistematizar o estudo da fome e a relacioná-lo à organização social desigual e injusta. Ao fazer este diagnóstico, Castro transfere para a esfera política e econômica a responsabilidade pelo seu enfrentamento. 1.1.1. Vanguarda dos estudos de Josué de Castro e fundação de institutos relacionados à Segurança Alimentar e Nutricional Em 1935, Josué de Castro desenvolveu seu primeiro estudo de cunho sociológico denominado As condições de vida das classes operárias do Recife, publicado originalmente no livro Alimentação e raça, sendo o primeiro do gênero no país a assinalar a gravidade dos efeitos da fome/subnutrição e a relacionar a produtividade do trabalhador à sua alimentação, sendo um marco na história da nutrição no Brasil 30 . No texto, Castro também analisa as condições de vida, de moradia e o salário dos operários e teria como desdobramento a institucionalização do salário mínimo no governo de Getúlio Vargas, em 1940. A partir de então, Josué de Castro passa a associar o aspecto biológico das carências e necessidades humanas, ao caráter político, social e econômico do fenômeno da fome. A origem dos estudos de Josué de Castro remonta à sua infância, vivida no Nordeste. Filho único de Manoel Apolônio de Castro e Josepha Carneiro de Castro, Josué Apolônio de Castro nasceu na cidade de Recife PE, em 05 de setembro de 1908. Seu pai, proprietário de terras e mercador de gado e leite, veio de Cabaceira PB31 para Recife em 1877, em virtude da grande seca que assolou a região naquele ano. Sua mãe era filha de senhor de engenho da Zona da Mata pernambucana e tornou-se professora em Recife.32 Quando tinha quatro anos de idade, seus pais se divorciaram e ele passou a morar em Recife com a mãe. Em 1935, Josué de Castro publica o conto O ciclo do caranguejo, em que descreve a trajetória de uma família de habitantes dos mangues de Recife. A realidade dos mangues do rio Capibaribe, sua lama, os caranguejos e os homens miseráveis que 30 Disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro. Acesso em fevereiro de 2016. 31 O município de Cabaceiras se localiza na microregião do Cariri, nos domínios da bacia hidrográfica do Rio Paraíba. 32 Disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro. Acesso em fevereiro de 2018. javascript:janel('verbetes/fome.htm') javascript:janel('verbetes/nutricao.htm') javascript:janel('verbetes/vargas.htm') http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro 39 sobreviviam neste cenário, é traço marcante e perpassa toda a obra de Josué de Castro. Segundo o autor: A primeira sociedade com que travei conhecimentofoi a sociedade dos caranguejos. Depois, a dos homens habitantes dos mangues, irmãos de leite dos caranguejos. Só muito depois é que vim a conhecer a outra sociedade dos homens – a grande sociedade. E devo dizer com franqueza que, de tudo o que vi e aprendi na vida, observando estes vários tipos de sociedade, fui levado a reservar, até hoje, a maior parcela de minha ternura para a sociedade dos mangues – a sociedade dos caranguejos e dos homens, seus irmãos de leite, ambos filhos da lama.33 E complementa: A verdade é que a história dos homens do Nordeste me entrou muito mais pelos olhos do que pelos ouvidos. Entrou-me por dentro dos meus olhos ávidos de criança sob a forma destas imagens que estavam longe de serem sempre claras e risonhas.34 Esta é a raiz dos estudos de Josué de Castro, que se desdobra em muitas outras obras, que são referência nas abordagens da SAN brasileira. Remetendo-nos à perspectiva de Larrosa, que afirma que a experiência funda também uma ordem epistemológica e uma ordem ética. O sujeito passional tem também sua própria força, e essa força se expressa produtivamente em forma de saber e em forma de práxis. (...) O saber da experiência se dá entre o conhecimento e a vida humana. De fato, a experiência é uma espécie de mediação entre ambos.35 A experiência pretérita de Josué de Castro reflete-se nas suas escolhas profissionais e intelectuais. A infância vivida nos mangues do Recife e toda a miséria perpassada por aquela realidade, teria influência profunda em sua personalidade e na predileção pela temática da fome e miséria brasileiras, assim como na militância no sentido de reverter este flagelo brasileiro. 33 BIBLIOTECA DIGITAL DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. Josué de Castro. Brasília: Plenarium Editora, 2007. p. 20 34 CASTRO, Anna Maria de. (org.). Fome: um tema proibido – Últimos escritos de Josué de Castro. Petrópolis: Editora Vozes, 1983. p. 22 35 LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2014. p. 30 40 Como professor, Josué de Castro mantinha um olhar crítico sobre as atividades acadêmicas. Assim, em setembro de 1933, junto com outros intelectuais, funda a Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife, onde atuaria como Professor Catedrático de Geografia Humana até 1935. De acordo com Nascimento: Essa Faculdade surge a partir das dificuldades [que] Josué de Castro e os demais intelectuais da época encontravam como pesquisadores sociais, sem o trabalho de equipes capacitadas, sem disciplina de métodos e sem bibliotecas especializadas. 36 Entre 1935 e 1938, Josué de Castro atuaria também como Professor Catedrático, mas de Antropologia, na Universidade do Distrito Federal. Antes disso, em 1934, se casara com uma de suas alunas da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife, Glauce Soares, e se mudara para o Rio de Janeiro, onde passara a chefiar o Serviço Central de Alimentação do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, considerado um marco na assistência alimentar do trabalhador. Este Instituto se transformaria no Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS)37, que dentre outras ações, destacam-se a criação de restaurantes populares, o fornecimento de alimentos por alguns empregadores e a participação na educação alimentar38. O SAPS teve vigência até 1967 e esta experiência teria inspirado o atual Programa de Alimentação ao Trabalhador do Ministério do Trabalho e Emprego assim como o Restaurante Popular do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome 39. No intuito de promover estudos e pesquisas que tratassem da alimentação como uma questão social e buscando colaborar com o Estado na execução de políticas públicas, Josué de Castro funda, em 1940, a Sociedade Brasileira de Nutrição, que preside entre 1942-1944. Em 1943, Castro idealiza e é designado Diretor do Serviço Técnico de Alimentação Nacional (STAN), que surge no contexto da desestruturação da economia mundial durante a Segunda Guerra Mundial. Cabia ao STAN realizar pesquisas e experimentos na área de tecnologia alimentar, como, por exemplo, 36 NASCIMENTO, R.C. Josué de Castro: o sociólogo da fome. 2002. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade de Brasília. p. 49 37 Idem, p. 52 38 Disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro. Acesso em 11 de fevereiro de 2016. 39 NASCIMENTO, R.C. O Papel do CONSEA na Construção da Política e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. 2012. Tese (Doutorado em Ciência Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 2012. p. 12 http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro 41 métodos de conservação dos alimentos. A partir de 1944, o STAN passa a publicar o periódico Arquivos Brasileiros de Nutrição, que seria a primeira publicação de porte sobre questões relacionadas à alimentação40. Em 1945, o STAN é substituído pela Comissão Nacional de Alimentação (CNA), que Josué de Castro passa também a dirigir até 1954. O CNA era um órgão do Conselho Federal de Comércio Exterior, que imprimia caráter mais permanente às atividades iniciadas pelo STAN, desde a educação alimentar e assistência à indústria nacional de alimentos 41. Concomitantemente, em 1945 tem fim a Segunda Guerra Mundial e é criada a Organização das Nações Unidas (ONU), em especial a FAO 42, que teria contribuído para que fossem articuladas internacionalmente, iniciativas de promoção de assistência e ajuda alimentar. 1.1.2. Publicação de Geografia da fome e convite a membro da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura Nesse contexto de progressos das questões alimentares, que ganham relevância a ponto de ser criada uma agência na ONU para tratar especificamente do flagelo da fome no mundo, Castro publica pela editora O Cruzeiro, sua obra mais conhecida: Geografia da fome – o dilema brasileiro: pão ou aço, em que sistematiza de forma pioneira, o mapa da fome no Brasil. Para organizar e sistematizar o mapa da fome no Brasil, Josué de Castro divide a obra em cinco grandes regiões brasileiras, de acordo com suas características alimentares específicas: a Amazônia, o Nordeste Açucareiro, o Sertão do Nordeste, o Centro-Oeste e o Sul. Tais áreas são descritas conforme suas particularidades geográficas, sociais, econômicas e culturais, que demandam, segundo Castro, políticas públicas distintas para a erradicação da subnutrição e da fome. Este diagnóstico preciso e com argumentos científicos fundamentados deixam evidente que a discussão de que o fenômeno da fome seria consequência de questões climáticas e raciais tem, em realidade, caráter econômico, politico e social. Magalhães tece as seguintes observações sobre Geografia da fome: 40 Disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro. Acesso em fevereiro de 2016 41 Idem. 42 A FAO tem o objetivo de combater a fome e a pobreza e promover o desenvolvimento agrícola e a segurança alimentar e nutricional. Disponível em: https://nacoesunidas.org/agencia/fao/. Acesso em: março de 2018. http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro https://nacoesunidas.org/agencia/fao 42 Percebe-se a preocupação de refinar o conceito de fome, o que marca uma mudança em relação à produção anterior. Se, em seus primeiros escritos, a fome, a subnutrição e o problema alimentar aparecem, frequentemente, como sinônimos, neste último trabalho, Josué de Castro explora, exatamente, o eixo principal de suas formulações. Ao contrário dos enfoques fragmentados e pouco articulados entre si, ele propõe uma categoria que exprima a amplitude e a multidisciplinaridade da questão.O livro demonstra, ainda, algumas reorientações em seu pensamento que, para maior compreensão, necessita de uma aproximação não só com a trajetória pessoal do autor, como também com as mudanças na conjuntura histórica e social do País nos primeiros anos da década de 4043. Geografia da fome é lançado no contexto de industrialização e urbanização intensos no Brasil, inseridos no projeto modernizador do então Presidente da República, Getúlio Vargas. Conforme o título indica o dilema brasileiro: pão ou aço, Josué de Castro busca, nesta obra, ressaltar a importância das políticas públicas, especificamente a questão social, sendo a fome o seu símbolo44. Não devemos, pois, ter nenhuma reserva acerca da necessidade e da oportunidade de uma política desenvolvimentista para o Brasil. As nossas dúvidas e possíveis divergências se encontram no campo de execução desta política, nos elementos postos em jogo para dinamizar e orientar a nossa emancipação econômica. O atual governo, desejoso de promover em ritmo acelerado a nossa expansão econômica, e impregnado da ideia de que só através da industrialização intensiva poderemos emancipar-nos economicamente, vem realizando o seu programa de metas, de forma a criar nosso espírito um certa apreensão. Apreensão de que o critério de prioridades para aplicação de nossas escassas disponibilidades econômicas não seja o critério ideal. Somos daquele que julgam necessário promover o desenvolvimento industrial, sem contudo sacrificar exageradamente os investimentos no setor da economia agrária. 45 E complementa: A solução ao dilema não está no atendimento exclusivo ao pão ou ao aço, mas simultaneamente ao pão e ao aço, em proporções impostas em face das circunstâncias sociais e das disponibilidades econômicas existentes. Todas as tentativas de exigir de qualquer coletividade um custo de progresso acima do tolerável acarretam ressentimentos e tensões sociais ameaçadoras.46 43 MAGALHÃES, Rosana. Fome: uma (re)leitura de Josué de Castro. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz Editora, 1997. p. 45 44 NASCIMENTO, R.C. Josué de Castro: o sociólogo da fome. 2002. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade de Brasília. p. 75 45 CASTRO, Josué de. Geografia da fome – o dilema brasileiro: pão ou aço. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 12a Ed., 2012. p. 281 46 Idem. p. 283 43 A militância coerente e fundamentada de Josué de Castro, exemplarizada em Geografia da fome, alcança repercussão e reconhecimento internacional, sendo traduzida para mais de 25 idiomas. Através desta obra, Castro se consolida como escritor e pesquisador da questão alimentar no mundo47. Professor Malaquias Batista Filho, médico, pesquisador, militante no combate à fome, em especial à desnutrição infantil e contemporâneo de Josué de Castro, foi um de nossos entrevistados e destacou a erudição intelectual de Castro: Josué era um personagem interessante até sob o ponto de vista fisiológico. Ele escrevia com a mão direita e esquerda. O Darcy Ribeiro, que era muito amigo dele e era vice-governador quando o Brizola foi governador do Rio de Janeiro, ele dizia que [diante de] qualquer um dos cinco grandes problemas do mundo podiam botar Josué de Castro como debatedor que ele tinha condições de debater.48 O reconhecimento internacional de Josué de Castro o leva a ser delegado representante do Brasil na Conferência de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas convocada pela FAO, em Genebra, em agosto de 1947 e a se efetivar como membro do Comitê Consultivo Permanente de Nutrição da FAO, também em 194749. Além disso, em 1948, é convidado a participar da Primeira Conferência Latino- Americana de Nutrição promovida pela FAO, em Montevidéu.50 Cabe ressaltar que no ano de 1946, Castro participa da fundação e torna-se o primeiro diretor do Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, atual Instituto de Nutrição Josué de Castro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sendo assim, Josué de Castro se consolida definitivamente no debate internacional sobre alimentação e nutrição e, em 1951, é eleito Presidente do Conselho Executivo da FAO, assumindo em 1952 e permanecendo no cargo por dois mandatos consecutivos, até 1956. Sobre sua vitória no primeiro mandato, Josué de Castro relembra: 47 MAGALHÃES, Rosana. Fome: uma (re)leitura de Josué de Castro. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz Editora, 1997. p. 45 48 Trecho de entrevista concedida pelo professor Malaquias Batista Filho em 07 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional 49 CASTRO, Anna Maria de. (org.). Fome: um tema proibido – Últimos escritos de Josué de Castro. Petrópolis: Editora Vozes, 1983. p. 152 50 NASCIMENTO, R.C. Josué de Castro: o sociólogo da fome. 2002. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade de Brasília. p. 65 javascript:janel('verbetes/instituto.htm') 44 A mais tremenda emoção da minha vida foi quando alcancei a presidência do Conselho da FAO. Meu competidor era Lorde Bruce, da Inglaterra. Atribuo a minha vitória a dois fatores: a) não acreditavam nela; b) quem ganhou foi a miséria. (...) Foi justamente naquela eleição para presidente do Conselho da FAO, quando venci Lorde Bruce por 34 a 30 votos, depois de um embate no primeiro escrutínio. Minha grande emoção foi sentar na cadeira da presidência, olhar um a um os representantes das grandes potências e recordar os mocambos do Recife, onde se reproduzia o ciclo do caranguejo, onde viviam outros meninos de rua, como eu tinha sido. Pensei, comovido, na tremenda responsabilidade que carregava e na injustiça que a vida escreve de eu não poder correr à casa de meu pai e, depois, à casa de minha mãe, para lhes contar, separadamente, como sempre, que seu filho estava sentado na Cadeira da Presidência.51 Uma vez mais, notamos a importância e a ascendência de seu passado de menino humilde sobre seu reconhecimento como intelectual conhecedor das questões alimentares e da fome. Dando prosseguimento a suas análises sobre a fome e a miséria, Josué de Castro publica em 1948, Geopolítica da fome, que aborda esta temática em âmbito mundial, dando sequência a Geografia da fome, em perspectiva mais completa e de diagnóstico mais amplo. Da mesma forma que a obra anterior, Geopolítica da fome recebeu vários prêmios, dentre eles o prêmio Franklin Roosevelt da Academia Americana de Ciências Políticas, em 1952 e o prêmio Internacional da Paz do Conselho Mundial da Paz, em 1954. Em outubro de 1953, ocorre, na Venezuela, a Terceira Conferência Latino- Americana de Nutrição, quando Josué de Castro apresenta o Plano Nacional de Alimentação, sob responsabilidade da Comissão Nacional de Alimentação, órgão que presidia. Este Plano, segundo Nascimento: representou um marco na trajetória das políticas públicas em alimentação e nutrição no Brasil, na medida em que as experiências anteriores, a saber STAN e SAPS (que continuava precariamente funcionando), referiam-se à necessidade de melhorar a situação alimentar do país de maneira geral, sem mencionar especificamente a necessidade de cuidar da desnutrição (...) 52 51 Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. Josué de Castro. Brasília: Plenarium Editora, 2007. p. 46-47 52 NASCIMENTO, R.C. Josué de Castro: o sociólogo da fome. 2002. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade de Brasília. p. 74 45 Nesta Terceira Conferência Latino-Americana de Nutrição a questão da merenda escolar aparece com destaque, em função de experiências ocorridas em países da América Central. Dessa forma, em março de 1955, com grande empenho de Josué de Castro, érealizada no Brasil, a Campanha Nacional de Merenda Escolar, subordinada ao Ministério da Educação e Cultura53. 1.1.3. Josué de Castro na política brasileira e criação da Associação Mundial de Luta Contra a Fome Em outubro de 1954, Castro se candidatou a deputado federal por seu Estado natal, Pernambuco, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Em carta enviada ao médico e amigo pernambucano, Arnaldo Marques, militante de esquerda ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), Castro comenta sua decisão de concorrer às eleições: Cheguei à conclusão de que as forças de reação se organizam numa articulação ostensiva contra o liberalismo progressista, pretendendo esmagar quaisquer tentativas de se obter um certo progresso social através de medidas de libertação das classes mais pobres do regime da fome em que as mesmas vegetam. Diante disto, tenho a impressão de que não me é possível ficar à margem da luta, depois de ter denunciado nos meus livros a desigualdade social e o desequilíbrio econômico como as causas principais do marasmo desta zona do Brasil onde nasci, e por isto resolvi considerar a possibilidade de candidatar-me a deputado federal no próximo pleito (...)54 Na sua campanha, além da formação de comitês descentralizados nos bairros de Recife e no interior, Josué de Castro teria feito vigorosa articulação na área sindical e também, com Francisco Julião, advogado, deputado estadual e líder das Ligas Camponesas, movimento que cresceria nos anos seguintes. A parceria com Francisco Julião teria levado Josué de Castro a se aproximar das questões agrárias, culminando na publicação, em 1957, do livro Sete palmos de terra e um caixão, seu 53 NASCIMENTO, R.C. Josué de Castro: o sociólogo da fome. 2002. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade de Brasília. p. 73 54 Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. Josué de Castro. Brasília: Plenarium Editora, 2007. p. 56 46 último livro publicado no Brasil e obra de referência para quem estuda a questão agrária55. Castro se elege deputado federal, sendo o sétimo mais votado da coligação56. Ao assumir seu mandato, em 1955, Josué de Castro torna-se vice-líder do PTB e Presidente da Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados. Em 1956, se encerra seu mandato na presidência do Conselho Executivo da FAO, onde, de acordo com Silva57 , ao empreender sua luta contra a fome, teria questionado as velhas estruturas agrárias e o latifúndio improdutivo, defendendo de maneira inconteste, a reforma agrária. Dessa forma, teria colocado os interesses dos países pobres como prioritários, reivindicando verbas para que a FAO, de fato, cumprisse sua função. Esta sua postura independente e em defesa do bloco de países mais pobres o tornou persona non grata frente aos interesses dos países que comandavam a economia mundial. Em resposta à sua política de defesa dos interesses dos países mais pobres, foi feito um acordo entre os representantes dos EUA e Inglaterra para impedi-lo de concorrer a um terceiro mandato. Em seu discurso de despedida, desiludido com o que se poderia chama ‘a indústria da fome’, denuncia o complô dos mais ricos contra os mais pobres e confessa a sua decepção frente à inoperância daquele organismo.58 Conforme elucidado por Silva, em seu discurso de despedida da presidência do Conselho Executivo da FAO, Josué de Castro foi fiel às suas convicções: (...) me sinto decepcionado diante da obra que realizamos. Decepcionado pelo que fizemos porque, a meu ver, não elaboramos até hoje uma política de alimentação realista que ponha em linha de conta, ao mesmo tempo, as desesperadas necessidades do mundo e nossos objetivos. Não fomos suficientemente ousados, não tivemos a coragem suficiente para encarar, de frente, o problema e buscar as suas soluções. (...) Precisamos, a meu ver, ter a coragem de discordar de certas opiniões para aceitarmos a imposição das 55 NASCIMENTO, R.C. Josué de Castro: o sociólogo da fome. 2002. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade de Brasília. p. 84 56 Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. Josué de Castro. Brasília: Plenarium Editora, 2007. p. 56 57 SILVA, Tânia Elias Magno da. A Construção da Esperança e do Compromisso Social no Itinerário de Josué de Castro. Revista Eletrônica Inter-Egere: número quarto, dois anos. n. 04. 2009. p. 72 58 Idem. p. 72 47 circunstâncias, resolvendo o problema no interesse da humanidade.59 Apesar dos enfrentamentos perante os países de Primeiro Mundo, Josué de Castro foi eleito em 1960, por iniciativa da FAO, Presidente do Comitê Governamental da Campanha Mundial de Luta Contra a Fome. A militância de Josué de Castro na Campanha Mundial de Luta Contra a Fome teria se iniciado logo após sua saída da FAO, em janeiro de 1957. Nesta data, organizou e fundou junto com Abade Pierre60, a Associação Mundial de Luta Contra a Fome (ASCOFAM) com o objetivo de transformar a realidade dos países subdesenvolvidos afetadas pelo fenômeno da fome. Tendo sua sede legal em Genebra e diversos escritórios regionais atuando em vários continentes, em setembro de 1957, a ASCOFAM funda o escritório brasileiro no Rio de Janeiro61. Faziam parte da ASCOFAM: Padre Dominique Pire62, Padre Joseph Lebret63, René Dumont64, Oswaldo Aranha, dentre outros. No Brasil, uma série de ações e propostas visando o conhecimento e o combate à fome foram realizadas pela ASCOFAM, dentre elas: o I Seminário sobre Desnutrição e Endemias Rurais, na cidade de Garanhuns PE, em 1958; o filme O Drama das Secas 65, dirigido por Rodolfo Nanni, a partir de um roteiro de Josué de Castro66; o estudo das estruturas agrárias visando à elaboração de um projeto piloto de reforma agrária; ampliação do projeto de novas indústrias alimentares; ampliação do plano de enriquecimento de alimentos; criação de um selo ASCOFAM a ser concedido aos produtos de alta qualidade; dentre outros.67 59 NASCIMENTO, R.C. Josué de Castro: o sociólogo da fome. 2002. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade de Brasília. p. 69 60 Henri Antoine Groués, também conhecido como Abbé Pierre, foi um sacerdote católico francês, fundador da Comunidade Emaús e figura emblemática na luta contra a pobreza. 61 Esta sede regional brasileira foi fechada em 1964 em virtude do Golpe Militar. 62 Georges Charles Clement Ghislain Pire: religioso dominicano belga. Fundou a Europe du Coeur au Service du Monde, organização de ajuda aos refugiados, que lhe rendeu o Premio Nobel da Paz em 1958. 63 Louis-Joseph Lebret: economista e religioso dominicano francês, criador de um grande número de associações para o desenvolvimento social, em vários países do mundo, dentre os quais o IRFED - Institut International de Recherche et de Formation, Éducation et Développement, atual Centre International Développement et Civilisations- Lebret-Irfed, em Paris. 64 Agrônomo francês, conhecido por sua luta pelo desenvolvimento rural nos países de Terceiro Mundo e o por seu compromisso ambiental . Foi um escritor prolífico, com mais de 70 livros publicados. 65 Primeiro documentário nacional com orientação científica sobre a seca no Nordeste. 66 Disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro. Acesso em fevereiro de 2016. 67 SILVA, Tânia Elias Magno da. A Construção da Esperança e do Compromisso Social no Itinerário de Josué de Castro. Revista Eletrônica Inter-Egere: número quarto, dois anos. n. 04. 2009. p. 57 http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro 48 Em 1958, Josué de Castro é reeleito deputado federal pelo Estado de Pernambuco, sendo o mais votado do Nordeste. A campanha eleitoral teve amplo apoio de Francisco Julião, reeleito deputado estaduale, à época, se destacando de forma ascendente como grande líder das Ligas Camponesas e defensor da reforma agrária. Inúmeras organizações sindicais representativas do movimento operário também explicitaram apoio à candidatura de Josué de Castro. 68 Fonte: Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. Josué de Castro. Brasília: Plenarium Editora, 2007. p. 65 Reeleito deputado federal também pelo PTB, Castro apresenta à Câmara dos Deputados em 1959, um Projeto de Lei que “defina os casos de desapropriação por interesse social e disponha sobre sua aplicação” 69 , uma proposta embrionária de reforma agrária. Além disso, defende a reaproximaçao das relações diplomáticas entre Brasil e União Soviética, em um contexto em que as forças políticas estavam polarizadas em dois blocos distintos70 em razão da Guerra Fria. De acordo com Melo e Neves71, em sua trajetória política, Josué de Castro sempre esteve alinhado às forças de esquerda, sendo um crítico ferrenho do modelo de desenvolvimento econômico sustentado na simples elevação dos índices per capita. Diferenciava-se pelas posições mais avançadas e, não poucas vezes, teria sofrido sabotagens de setores mais conservadores de seu próprio partido, o PTB. Em 68 Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. Josué de Castro. Brasília: Plenarium Editora, 2007. p. 65 69 Disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro. Acesso em fevereiro de 2016 70 Bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos em oposição ao bloco socialista, dominado pela União Soviética. 71 Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. Josué de Castro. Brasília: Plenarium Editora, 2007. p. 79 e 81 Figura 1: 1958 – material de campanha lançado pelos sindicatos de trabalhadores rurais de Pernambuco http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro 49 04 de janeiro de 1957, escreveu em seu diário, ainda não disponível ao público, em que diz: A verdade é que a política no Brasil só inspira e aguça para uma espécie de atividade espasmodicamente agitada e intelectualmente improdutiva. Mais agitação que ação verdadeira. Não há debates nem lutas por idéias e princípios, mas uma surda e contínua luta pessoal por vantagens e posições. É uma luta de vida e de morte – luta vegetativa – sem deixar nenhuma disponibilidade para quaisquer veleidades intelectuais. Depois de dois anos como parlamentar, cheguei à triste conclusão de esterelidade e da infecundidade da inteligência no Parlamento. É esta uma arena ou circo onde se degladiam outras espécies de força: a astúcia, a audácia, o cinismo, o oportunismo. Não há lugar lá para outras qualidades menos subalternas, como o espírito público, o desejo de servir, a busca de novos caminhos que possam conduzir a uma melhor distribuição de quotas de felicidade. 72 Embora decepcionado com a atuação política de seus conterrâneos, Josué de Castro prossegue em sua trajetória de militância e denúncia contra as mazelas sociais e suas causas. Em 1958, promove uma discussão nacional, com a criação de um grupo parlamentar das regiões menos favorecidas (União Parlamentar Norte-Nordeste) para se debater sobre políticas governamentais para desenvolver a região Nordeste. Deste movimento, é criada a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE)73. Também no ano de 1958, teria sido nomeado Ministro da Agricultura, mas por interesses conservadores da ala conservadora do PTB, não chega a tomar posse. Em documentário dirigido por Silvio Tendler e lançado em 1995, Darcy Ribeiro narra: Eu era chefe da Casa Civil então conversei com Jango e disse ‘é o homem mais brilhante do Brasil, mais importante nessa área de alimentos, de agricultura é Josué de Castro. E ele enfeitará o governo, vai ser uma coisa bonita ter Josué de Castro Ministro da Agricultura. Ele pode ser um grande Ministro da Agricultura.’ O Jango concordou e eu fui à Josué e disse ‘você vai ser nomeado, mas me faça um favor, não diga a ninguém’. O que o Josué fez, de besteira, foi pra Pernambuco e contou lá que seria ministro. E imediatamente surgiram os anticorpos. Uma quantidade de politicões foram em cima do Jango e de mim e disseram ‘eu sou muito melhor membro do partido, Josué não põe os pés no Brasil, está sempre fora’. Essa é uma coisa incrível, era um complô da 72 Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. Josué de Castro. Brasília: Plenarium Editora, 2007. p. 82 apud: SILVA, Tânia Elias Magno da. Josué de Castro: para uma poética da fome. 1998. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. 73 NASCIMENTO, R.C. Josué de Castro: o sociólogo da fome. 2002. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade de Brasília. p. 79 50 mediocridade, da mediocridade militante do partido (...). Então o partido dele, o PTB, impediu que o Josué fosse nomeado para uma coisa que já estava combinada, Ministro da Agricultura. É de pensar o que o Josué teria feito... Ele estava um vulcão de ideias, imaginando como fazer uma economia agrícola em que o povo comesse. É muito bom ter uma economia que produza muita soja para engordar porco no Japão, ou para engordar frango na Alemanha. Mas era preciso ter uma economia que produzisse mandioca, farinha de mandioca, feijão, arroz, o que o povo come. Então o Josué ia tentar fazer essa reversão. Mas pelo reacionarismo do Brasil e também pelos ciúmes dentro do seu próprio partido, ele foi alijado disso, não teve essa oportunidade. E o Brasil não teve a oportunidade de pegar o mais brilhante homem desse campo e fazer dele o seu Ministro da Agricultura, que é o Ministério encarregado de fazer ter comida farta em cada casa todo dia, coisa que nós estamos longe de conseguir. 74 Em 1960, por iniciativa de Darcy Ribeiro, Josué de Castro defende o Projeto 1.861 – C-60, que tratava da fundação da Universidade de Brasília, que graças ao seu empenho, é aprovado em agosto de 196175. Em 1962, é designado Embaixador-chefe da delegação do Brasil junto à ONU, em Genebra, cargo que é forçado a abandonar em 1964, pelo arbítrio da ditadura militar.76 No ano de 1963, Josué de Castro é designado para exercer a função de representante do Brasil junto ao Conselho de Administração da Organização Internacional do Trabalho (OIT), também em Genebra. Diante destes compromissos no exterior, em outubro de 1963, renuncia ao mandato de deputado federal. Ainda em 1963, Josué de Castro é indicado pela Associação Mundial de Parlamentares para um Governo Mundial (World Parliament Association), ao Prêmio Nobel da Paz. 1.1.4. Exílio, falecimento e legado Em 31 de março de 1964, deflagrado o golpe militar, o então Presidente da República, João Goulart, é deposto e uma junta militar assume o poder, tendo como representante Humberto de Alencar Castello Branco. Uma das primeiras medidas desta junta foi realizar a cassação de mandatos políticos, e dentre eles, o de Josué de Castro. Em 09 de abril de 1964, via Ato Institucional 01, Castro tem seus direitos políticos oficialmente cassados, se desliga dos cargos oficiais que ocupava nas 74 TENDLER, Silvio. Josué de Castro: cidadão do mundo. 1994. (documentário) 75 NASCIMENTO, R.C. Josué de Castro: o sociólogo da fome. 2002. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade de Brasília. p. 81 76 Disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro. Acesso em 11 de fevereiro de 2016 http://www.projetomemoria.art.br/JosuedeCastro 51 Nações Unidas e se muda/refugia, em Paris, onde assumiria a direção do Centro Internacional para o Desenvolvimento (CID)77, cargo que ocuparia até 1973. Segundo Nascimento, em virtude do exílio e da saudade de sua terranatal, Josué de Castro produz em 1966, seu único romance autobiográfico: Homens e caranguejos, em que retoma a infância passada em Recife. No prefácio desta obra, Castro relembra: Cedo me dei conta deste estranho mimetismo: os homens se assemelhando em tudo aos caranguejos. Arrastando-se, acachapando-se como os caranguejos para poderem sobreviver. Parados como os caranguejos na beira da água ou caminhando para trás como caminham os caranguejos. Foi com estas sombrias imagens dos mangues e da lama que comecei a criar o mundo da minha infância. Nada eu via que não me provocasse a sensação de uma verdadeira descoberta. Foi assim que eu vi e senti formigar dentro de mim a terrível descoberta da fome. Da fome de uma população inteira escravizada à angústia de encontrar o que comer.78 Exilado na França, Josué de Castro retoma sua percepção inicial do flagelo social dos mangues de Capibaribe, onde nasceu, passou sua infância e forjou sua personalidade. Em 27 de setembro de 1969, sem esperança de voltar de forma definitiva para o Brasil, é nomeado professor associado do Centro Universitário de Vincennes - Universidade Paris VIII, sendo responsável pela cadeira de “Geografia dos Países Subdesenvolvidos”79. Em junho de 1972, ocorre a Conferência de Estocolmo, organizada pela Organização das Nações Unidas, quando representantes de países dos cinco continentes se reuniram para discutir questões relacionadas ao meio ambiente. Nesse contexto, Josué de Castro teria se aprofundado na temática ecológica e iniciado a escrita do livro Survivre ou Périr Ensemble, que permaneceu inacabada.80 Josué de Castro faleceu em 24 de setembro de 1973, aos 65 anos, exilado em seu apartamento em Paris, enquanto dormia. Foi sepultado no Cemitério São João Batista no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1973. 77 Organização Internacional, não governamental e sem fins lucrativos, voltada à assessoria dos países de Terceiro Mundo. 78 CASTRO, Josué. Homens e Caranguejos. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2001.p. 04 79 SILVA, Tânia Elias Magno da. A Construção da Esperança e do Compromisso Social no Itinerário de Josué de Castro. Revista Eletrônica Inter-Egere: número quarto, dois anos. n. 04. 2009. p. 76 80 NASCIMENTO, R.C. Josué de Castro: o sociólogo da fome. 2002. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade de Brasília. p. 86 52 Não é simples narrar a dimensão de sua influência e a grandiosidade de sua história. Precursor de estudos basilares, que inserem o fenômeno da fome sob um viés multidisciplinar, com significados sociais e políticos, Josué de Castro abriu o caminho para que outros estudiosos caminhassem nesta mesma direção anos mais tarde. Pedro Kitoko, nutricionista, especialista em saúde pública, ex-presidente do CONSEA Estadual do Espírito Santo e militante na temática da SAN, narra a influência de Castro para despertar seu interesse pela SAN: Já como estudante universitário na Tunísia e na França, tive intensos contatos com eminentes personalidades envolvidas com o desenvolvimento social e econômico dos povos como Alfred Sauvy, cuja obra em demografia ainda é de destaque na França; Henri Vis (Université Libre de Bruxellas), destacado em saúde infantil na África Central; Jean Senecal (École Nationale de Santé Públique de Rennes/França), pediatra francês voltado para o combate à mortalidade infantil na África Ocidental; Françês Henri Dupin (Centre International de l´Enfance, Paris), que foi grande nome voltado para Nutrição em Saúde Pública. No entanto, a maior influência é fruto dos contatos que eu tinha com Josué de Castro (Centre International de Developpement e Universidade Paris VIII) e René Dumont, ambos bem conhecidos pelas suas obras sobre a fome no mundo. A relação com estes últimos acabou fortalecendo a minha relação com Alfred Sauvy pelo facto de que a divergência entre os dois se deve exatamente ao impacto da natalidade sobre a fome e vice-versa. René Dumont não concordava com a tese de Josué de Castro sobre a relação entre fecundidade e fome. O meu interesse para SAN é, portanto, fruto dos ensinamentos de Josué de Castro. (Grifos nossos)81 Flávio Valente, médico, pesquisador e militante na temática da SAN, em especial ao DHAA, destaca o pioneirismo e a importância de Josué de Castro na abordagem da fome no Brasil: Na época, isso era 1967/68, não havia grande disponibilidade de textos. Eu acabei encontrando um amigo que me emprestou o Geografia da fome e foi a primeira vez que li um livro de Josué de Castro. Não me lembro se era o Geografia da fome, eu lembro que era um livro de Josué de Castro e foi a primeira vez que eu li sobre a situação da fome no mundo. Eu venho de uma família extremamente conservadora, aliás, totalmente conservadora, essencialmente de direita, então para mim foi um choque saber que tinha gente passando fome na porta da nossa casa. Na época você não conseguia ler Josué, os livros dele eram proibidos, os livros 81 Trecho da entrevista a nós concedida por Pedro Kitoko em 10 de março de 2018, via email. 53 dele estavam sendo censurados. E aí eu comecei a me interessar por nutrição desde essa época82 (Grifos nossos) Irio Conti, filósofo, membro fundador e ex-presidente da FIAN Brasil e militante na temática da SAN, corrobora na ênfase a ser dada aos estudos de Castro: O primeiro marco é o Geografia da fome, sobretudo pra dizer assim: a fome é uma questão política que precisa ser trabalhada e assumida e ele deu visibilidade para o tema. Então nesse sentido, mesmo que na época não se falasse em Segurança Alimentar nem Segurança Alimentar e Nutricional, mas o problema, como um problema social e um problema político a ser enfrentado com politicas publicas, sem dúvidas Josué de Castro é um marco83 (Grifos nossos) As reflexões e análises visionárias de Josué de Castrio deflagraram o debate sobre o fenômeno da fome como problema a ser inserido na agenda politica. Muitas das questões que hoje se discutem no Ministério de Desenvolvimento Social foram colocadas por Castro há mais de cinquenta anos. 1.2. Betinho: retomada do debate e motivador da participação da sociedade civil A partir do Golpe Militar de 1964, os debates em torno da fome no Brasil são silenciados e assim como ocorreu com Josué de Castro, grande parte dos militantes de esquerda são enviados para o exílio, retornando para o Brasil somente na década de 1980 com a reabertura política. Em âmbito mundial, a década de 1970 é marcada pela crise no abastecimento de alimentos, quando as quebras de safras em importantes países produtores levou à escassez do estoque de alimentos. Desta forma, é realizada em Roma, em 1974, a I Conferência Mundial de Alimentação da Organização das Nações Unidas. O argumento que prevaleceu nesta Conferência foi da fome e da desnutrição como consequência da produção insuficiente de alimentos, principalmente nos países 82 Trecho da entrevista a nós concedida por Flavio Valente em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. 83 Trecho da entrevista a nós concedida por Írio Conti em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. 54 subdesenvolvidos. Sob este pressuposto, as indústrias química e agroindustrial fortaleceram a defesa da tecnologia de alto rendimento, assegurado pelo uso maciço de insumos químicos (fertilizantes e agrotóxicos)84 e da mecanização, a chamada Revolução Verde85. Embora a produção mundial tenha se recuperado, ainda na década de 1970, a elevação da oferta de alimentos resultante da Revolução Verde não foi acompanhadapelo declínio da fome mundial conforme se prometia, e a fome e a desnutrição continuam a atingir milhões de pessoas no mundo. No contexto de ganhos contínuos e crescentes, com excedente de produção e aumento de estoque, sem a proporção equivalente na diminuição no número de famintos, a partir da década de 1980, o conceito de Segurança Alimentar passa a se relacionar com a garantia do acesso físico e econômico aos alimentos. Há o reconhecimento de que a pobreza e a falta de acesso aos recursos necessários, principalmente acesso à renda e à terra, são as principais causas da insegurança alimentar mundial86. Assim, em 1982, na 8a Sessão do Comitê de Segurança Alimentar Mundial87, estabeleceu-se que O objetivo final da segurança alimentar mundial é assegurar que todas as pessoas tenham, em todo momento, acesso físico e econômico aos alimentos básicos que necessitam (...) a Segurança Alimentar deve ter três propósitos específicos: assegurar a produção alimentar adequada, conseguir a máxima estabilidade no fluxo de tais alimentos e garantir o acesso aos alimentos disponíveis por parte dos que os necessitam”. 88 De acordo com Maluf, essa mudança de ênfase na abordagem da Segurança Alimentar teve ampla repercussão, entretanto, o foco principal da FAO permaneceu concentrado nos problemas relativos à estrutura produtiva dos sistemas alimentares e à disponibilidade agregada de alimentos.89 84 MALUF, Rentao S., MENEZES, Francisco, Caderno Segurança Alimentar. Disponível em: http://ieham.org/html/docs/Caderno_Segurança_Alimentar.pdf Acesso em 23 de janeiro de 2016. 85 Expressão criada em 1966, por William Gown. Trata-se de inovações tecnológicas na agricultura, como o uso de máquinas no campo, insumos industriais, sementes geneticamente modificadas, agrotóxicos, possibilitando o aumento da produção agrícola. 86 AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS (ABRANDH). O Direito Humano à Alimentação Adequada e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, 2013. p. 14 87 O Comitê de Segurança Alimentar Mundial foi instituído em 1976 no contexto das restriçoes da oferta global de alimentos 88 MALUF, Renato S. Segurança Alimentar. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 61. 89 Idem p. 61 http://ieham.org/html/docs/Caderno_Segurança_Alimentar.pdf 55 1.2.1. Hemofílico e militante católico Em âmbito nacional, a década de 1980 se caracteriza pela abertura política, que resulta no retorno do exílio de vários intelectuais, políticos de esquerda e militantes, que se mobilizam pela restauração da democracia e da legitimação dos direitos fundamentais. Na luta contra a miséria e pela garantia do acesso aos alimentos a todos os brasileiros, perpassando pelo viés da cidadania, muitos destes ativistas se engajam na criação de organizações não governamentais e institutos, que balizariam a inserção da SAN no debate e nas políticas públicas nacionais. Dentre as diversas organizações, foi criado por Herbert José de Souza, o Betinho, e por Carlos Afonso e Marcos Arruda, em 1981 no Rio de Janeiro, o IBASE, justamente com o objetivo de promover a democracia e a cidadania. O site do IBASE informa sua finalidade: O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas é uma organização de cidadania ativa, sem fins lucrativos. (...) O IBASE tem uma história institucional muito ligada à democratização do Brasil, em particular às lutas que permeiam a emergência da cidadania e a constituição da diversificada sociedade civil brasileira das três últimas décadas. Os grandes movimentos e campanhas cívicas deste período, foram também compromissos do IBASE e, por isto, foram momentos históricos de adaptação da sua agenda e das formas de atuação. Este legado está no ethos do IBASE.90 Betinho presidiu o IBASE desde sua fundação em 1981 até seu falecimeto, em agosto de 1997 e todas as campanhas desenvolvidas pelo IBASE neste período fazem parte de sua agenda de militância por um mundo menos desigual e mais justo. Herbert José de Souza, o Betinho, nasceu em Bocaiúva, Minas Gerais, em 3 de novembro de 1935. Filho de Henrique José de Souza, dono de padaria e do primeiro cinema mudo da cidade, e de Maria da Conceição Figueiredo de Souza, teve oito irmãos (Maria Cândida, Zilá, Vanda, José Maria (que morreu aos três anos), Maria da Glória, Henrique de Souza Filho – Henfil -, Filomena e Francisco Mário), sendo que todos os irmãos homens, assim como ele, sofriam de hemofilia91. A hemofilia é uma doença genética e hereditária e na descrição de Betinho: 90 Disponível em: http://ibase.br/pt/sobre-o-ibase/. Acesso em março de 2018. 91 PANDOLFI, Dulce e HEYMANN, Luciana. (orgs.). Um abraço, Betinho. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1496.pdf acesso em 08 de fevereiro de 2018. p. 15 http://ibase.br/pt/sobre-o-ibase/ http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1496.pdf 56 Ela (a hemofilia) é muito concreta. São hemorragias intra- articulares que distendem os músculos, os tendões, os nervos e a pele. Estes sangramentos enchem e incham a parte afetada, o pé, por exemplo, ou o joelho, e provocam dores insuportáveis 92 A hemofilia o acompanharia a vida inteira e seria a responsável por sua contaminação, em 1986, pelo vírus HIV, contraído em uma das transfusões de sangue que fazia com frequência. A luta pela vida teria sido uma constante na trajetória de Betinho. Aos 15 anos, foi diagnosticado com tuberculose e seus pais, para não o internarem em um sanatório, acomodaram-no em um quarto no quintal de casa normalmente destinado à empregada. Durante esta reclusão, que durou até os dezoito anos, procurando fugir do abatimento, Betinho teria procurado a religião. Em suas palavras: procurei a religião, engajando-me num processo místico que exigia todas as minhas forças psicológicas e me preparava para a cura. Um dia, lançaram um novo medicamento, a idrazida, que me curou em três meses. Desde o início eu tinha a convicção de que esse remédio me salvaria: um verdadeiro ato de fé me levou a acreditar na cura. 93 Sua fé, somada à leitura de autores católicos franceses, o teriam incentivado à entrar em 1953, para a Juventude Estudantil Católica (JEC), ramo da Ação Católica Brasileira (ACB), onde teria iniciado sua vida de ativista político. Respirávamos o ar da Revolução Cubana. Nosso engajamento católico nos levava a acreditar na revolução personalista de Emmanuel Mounier, na visão histórica de Teihard de Chardin, em uma crítica aguda ao capitalismo, que não respeitava a pessoa humana. Desenvolvemos uma proposta decididamente anti- capitalista, que se orientava por uma visão tipicamente socialista, sustentada por um profundo entusiasmo pela transformação revolucionária. No decorrer daqueles anos, não estávamos realmente preocupados com o tipo de luta – que, mais tarde, se tornaria uma questão capital –, mas estávamos, sim, em total desacordo com a sociedade em que vivíamos. Ela devia ser mudada, e chegaríamos aos nossos objetivos por meios da ação política.94 Em 1958, Betinho inicia os cursos de Sociologia e Política e de Administração Pública, ambos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), quando passa a 92 PANDOLFI, Dulce, GAZIR, Augusto, CORREA, Lucas. (orgs.). O Brasil de Betinho. Rio de Janeiro: mórula Editorial, 2012. Disponível em: http://www.ibase.br/obrasildebetinho/#download acesso em fevereiro de 2018. p. 25 93 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p. 14 94 Idem. p. 15 http://www.ibase.br/obrasildebetinho/#download 57 militar na Juventude Universitária Católica (JUC), também ligada à Ação Católica Brasileira.De 1958 até 1962, a minha presença na JUC foi marcada por uma ativa participação no movimento estudantil, que tinha então relativa força na política nacional. Assim como a vinculação religiosa nos jogou no movimento estudantil, o movimento estudantil nos jogou na política nacional. Ao crescer esse movimento de participação, a religião já não dizia mais nada. Passamos então de uma visão religiosa a uma perspectiva política. Só que passamos à política com a mesma mística que havíamos vivido na religião, a mesma perspectiva de compromisso, a mesma pureza, responsabilidade, auto-renúncia. 95 Assim, Betinho se lança efetivamente na vida política e em 1961 visita a União Soviética como líder estudantil. Em 1962, participa da fundação e torna-se dirigente nacional da Ação Popular (AP), organização política criada por militantes católicos oriundos da JUC e da JEC, que romperam com a hierarquia da Igreja96. A militância na Ação Popular teria sido de grande amadurecimento para o ativista político e mobilizador social que Betinho se revelaria anos mais tarde. O contexto do nascimento da Ação Popular é interessante. Vivíamos, em pequena escala, uma intensa experiência política dentro da faculdade de Ciência Econômicas de Belo horizonte. Em dois anos, ela se tornou o centro político do movimento estudantil de Minas Gerais. Fomos a origem de todas as manifestações, campanhas em favor da reforma universitária, apoio à Cuba, solidariedade com o movimento operário, etc. Assim, nossa geração continuava sua aprendizagem política. 97 Além disso, a atuação junto à Ação Popular teria lhe permitido descobrir pessoalmente o Brasil e suas mazelas: Nunca tinha viajado antes, eu vivia a minha descoberta do Brasil. Em quarenta dias, visitei todas as cidades importantes, do sul do país até Manaus. Ficávamos quatro dias em cada cidade, convocando reuniões, organizando debates, apresentando peças de teatro... Eu, que só vivia entre Rio e Belo Horizonte, aproveitava para aprender sobre meu país. Foi como se tivesse feito um curso completo, tanto geográfica quanto economicamente, sobre o Brasil, sensibilizando-me com as diferenças e a miséria. Enquanto 95 PANDOLFI, Dulce e HEYMANN, Luciana. (orgs.). Um abraço, Betinho. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1496.pdf acesso em 08 de fevereiro de 2018. p. 24-25 96Idem. p. 25. 97 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p. 23 http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1496.pdf 58 comíamos nos restaurantes universitários, as crianças de rua se aproximavam de nós e mendigavam a comida que estava em nosso pratos. Essa visão da pobreza e da miséria, que no Rio não se manifestava de forma tão violenta, foi um ‘tapa na cara’ dos dirigente da UNE. 98 Inserido na política brasileira, Betinho se torna assessor do Ministro da Educação, Paulo de Tarso, em 1963, no governo de João Goulart, e empenha-se na campanha de alfabetização de adultos liderada por Paulo Freire.99 Em 31 de março de 1964, ocorre o golpe militar e em agosto, Betinho segue para o Uruguai, onde se encontravam os dirigentes do Movimento Popular Brasileiro. Em julho de 1965, volta para o Brasil e retoma a liderança da Ação Popular. Mas é novamente perseguido e preso em dezembro de 1966. Mas por ser hemofílico e correr risco de vida por causa de uma úlcera supurada, não apanhou nem foi torturado. Foi liberado pelo delegado, por ser véspera de Natal, com a condição de que retornasse na segunda-feira seguinte100. Betinho não retornou e procurou asilo no consulado do México, onde permaneceu por dez dias. Nos anos seguintes permaneceu na clandestinidade usando codinomes e disfarces e militando junto à Ação Popular. A militância de Betinho na Ação Popular teria se desgastado e suas convicções teriam seguido um caminho diferente do estabelecido no movimento. Em 1972, já exilado no Chile, Betinho rompe com a AP. 1.2.2. O exílio O exílio no Chile teria sido outro momento de importante amadurecimento político na vida de quem, futuramente, mobilizaria o Brasil na causa da fome. Segundo Betinho: De 1971 ao golpe de Estado, descobri a política com ‘pê maiúsculo’, pois o Chile era, de longe, o país mais politizado e o mais mobilizado de toda a América Latina, talvez do mundo inteiro. Foram dois anos de curso intensivo em Ciências Políticas: a descoberta do que significavam, verdadeiramente, as massas 98 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p. 25 99 PANDOLFI, Dulce e HEYMANN, Luciana. (orgs.). Um abraço, Betinho. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1496.pdf acesso em 08 de fevereiro de 2018. p. 26 100 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p. 39 http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1496.pdf 59 populares, etc. Saí de uma situação sem política, ou apolítica, para entrar na Política, a política com a dimensão das massas. 101 O golpe de Estado chileno, em setembro de 1973, faz com que Betinho busque asilo na embaixada do Panamá, onde permanece por cinco meses. Em 1974, Betinho segue com Maria Nakano, sua esposa, que o acompanharia por toda a vida, para o Canadá. Antes deste casamento, Betinho fora casado com Irles Coutinho de Carvalho, com quem teve seu primeiro filho, Daniel, em 1965. Durante o exílio no Canadá, Betinho teria tido tempo para ler, estudar, dar cursos e iniciar o doutorado em Ciências Políticas102. Neste período, teria consolidado a ideia da democracia como a melhor escolha política a ser praticada. Na análise de Dulce Pandolfi: Essas duas grandes derrotas da esquerda, uma aqui no Brasil em 1964, com a queda do João Goulart: um governo eleito, que é derrubado por um grupo de militares, um governo apoiado pela população, constitucionalmente eleito, é derrotado, e o mesmo acontece com Allende, que ele (Betinho) vive também de uma forma muito dolorosa. É um governo também eleito, ele tinha uma grande força e uma penetração nos movimentos sociais e na população e cai também devido a um golpe militar. Então eu acho que essa derrota das esquerdas faz com que Betinho certamente aposte que sem uma sociedade forte, mobilizada, dificilmente você conseguiria ampliar as conquistas e consolidar essa luta pelos direitos, pela cidadania.103 Cândido Grzybowski, ex-diretor do IBASE, complementa esta afirmação: No Canadá que o Betinho tem uma mudança estratégica na visão dele do problema e que caracteriza essa fase final da vida dele: a criação do IBASE, a volta depois do exílio que é dizer: não, nós não precisamos conquistar o Estado, nós precisamos conquistar a sociedade, tem que mudar a sociedade. Se existe autoritarismo e ditadura é porque na sociedade os valores da igualdade, do respeito, da participação, da liberdade, não estão presentes. Então temos que mudar a sociedade e o IBASE é parte desta criação. 104 Carlos Afonso, parceiro de Betinho na fundação do IBASE, corrobora com a dimensão que a vivência de Betinho no Canadá teve para sedimentar sua 101 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p. 50 102 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p. 55 103 MENDES, César. Betinho: o artista da cidadania. 2005. (documentário) 104 Idem 60 compreensão da democracia e da participação popular como único caminho para a construção de uma sociedade justa: Quando chegamos no Canadá nós vivemos uma experiência fantástica, porque foi a primeira vez que a gente chegou a um país com uma democracia absolutamenteconsolidada e funcionando105. Como ensaio do que seria futuramente o IBASE, Betinho funda em 1974 junto com outros exilados, dentre eles Carlos Afonso, a Latin American Research Unit, entidade voltada para estudos socioeconômicos da América Latina. De acordo com Pandolfe: Exatamente no exílio, junto com Carlos Afonso, que é um grande amigo dele e o Marcos Arruda, os três no exílio, discutem muito a ideia de se criar no Brasil uma entidade voltada para assessorar os movimentos sociais, que consiga coletar, produzir dados, informações, fazer pesquisas, que sirvam exatamente para embasar esses movimentos sociais. Então a ideia do IBASE é germinada ainda no exílio106. A experiência na fundação da Latin American Research Unit contribuiria, anos mais tarde, para a fundação no Brasil do IBASE por Marcos Arruda, Carlos Afonso e Betinho. 1.2.3. O retorno ao Brasil, fundação do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas e luta pela democracia Em 1979, fruto de extenso trabalho e campanha de seu irmão, o jornalista, escritor e cartunista Henfil, pelo seu retorno do exílio, colocando-o como símbolo da luta pela volta dos exilados, somada à repercussão da música O bêbado e o equilibrista, composta por João Bosco e Aldir Blanc, Betinho retorna ao Brasil. Todas as charges e desenhos publicados por meu irmão nos jornais brasileiros estavam acompanhados dessa interrogação: ‘Quando meu irmão poderá voltar?’. Eu me tornei o símbolo do conjunto dos exilados. 107 105 MENDES, César. Betinho: o artista da cidadania. 2005. (documentário) 106 Idem 107 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p. 58 61 Figura 2: Betinho no aeroporto Galeão, no retorno do exílio, em setembro de 1979. Fonte: PANDOLFI, Dulce e HEYMANN, Luciana. (orgs.). Um abraço, Betinho. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. p. 36. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1496.pdf Acesso em fevereiro de 2018. No retorno ao Brasil, Betinho funda o IBASE tendo como objetivo acompanhar as políticas governamentais e democratizar a informação, apoiando os movimentos populares. De acordo com Betinho: Eu não queria voltar com a ambição restrita de começar a trabalhar para sobreviver. Voltei com a ideia, nascida da correspondência com meu amigo Carlos Alberto Afonso, de fundar no Brasil um instituto que acompanhasse as políticas públicas, segundo o modelo dos Think Tank americanos, capaz de analisar, acompanhar e dirigir as políticas governamentais. Isso não existia no Brasil. Trabalhei um ano, antes que Carlos Afonso me reencontrasse. Foi um ano de luta e de negociações para conseguir o financiamento do projeto. Nosso primeiro orçamento ficou em um milhão de dólares. Depois, baixamos para 600 mil dólares, até chegar a 200 mil. Em 1981, nascia o IBASE.108 108 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p. 61 http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1496.pdf 62 Concomitantemente à criação do IBASE, Betinho trabalha como consultor da FAO para projetos agrários e migrações na América Latina109 e em 1983 coordena a Campanha Nacional pela Reforma Agrária, lançada pelo IBASE e outras cinco organizações 110 . Esta campanha teria sido uma das mais importantes para os movimentos sociais na década de 1980, quando os conflitos agrários matavam centenas de pessoas no campo no Brasil111. Betinho teria sido nomeado coordenador nacional da campanha porque tentava conciliar as diferentes posições para se chegar a um consenso.112 O acesso à terra, para Betinho, seria uma condicionante para o pleno exercício da democracia: A democracia não é somente um espaço institucional da política. Ela, para existir, deve também realizar-se e estar presente em todas as dimensões de nossas vidas. Talvez por isso haja uma relação histórica tão estreita entre terra e democracia. Quando a terra é apropriada, usada, monopolizada por uns poucos a democracia não existe. Quando a democracia não existe a terra se transforma em um mundo de uns poucos, contra a maioria. A ausência da democracia, e este é um termo moderno, compromete a vida do homem na terra e a vida da própria terra113. Em 1983, tem início o movimento das Diretas Já, movimento popular que reivindicava eleições diretas para presidente. Betinho enxerga este como um momento simbólico da história política brasileira na conquista da democracia: Essa bandeira acendeu uma mobilização popular fantástica. Milhões de pessoas compareceram aos famosos ‘comícios pelas diretas’. Na minha opinião, esse foi um dos momentos mais bonitos da história brasileira. A população correu atrás do voto, e isso tem um enorme valor simbólico, um valor político. O golpe tirou do cidadão o direito de escolher o presidente, portanto, o direito de constituir o poder político. Com a luta pela eleição direta, o cidadão mostra que 109 PANDOLFI, Dulce e HEYMANN, Luciana. (orgs). Um abraço, Betinho. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1496.pdf acesso em 08 de fevereiro de 2018. p. 41 110 CIMI (Conselho Indigenista Missionário), CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), CPT (Comissão Pastoral da Terra), ABRA (Associação Brasileira pela Reforma Agrária) e CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 111 PANDOLFI, Dulce, GAZIR, Augusto, CORREA, Lucas. (orgs.). O Brasil de Betinho. Rio de Janeiro: mórula Editorial, 2012. Disponível em: http://www.ibase.br/obrasildebetinho/#download acesso em 08 de fevereiro de 2018. p. 145. 112 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p.78 113 SOUZA, Herbert de. Escritos indignados. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1993. 3a Ed. p. 108 http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1496.pdf http://www.ibase.br/obrasildebetinho/#download 63 quer recuperar plenamente esse direito. Aí, sim, seria o fim do golpe. Porque o presidente passaria a ser escolhido pelo cidadão. 114 Em 1985, o movimento é derrotado e é eleito indiretamente Tancredo Neves para presidente. Entretanto, antes que assumisse a presidência, Tancredo vem a falecer e assume seu vice, José Sarney. O governo Sarney, que se prolongou até 1989, teria sido, para Betinho, de aprofundamento das desigualdades sociais e, portanto, de grandes retrocessos para a democracia: O período Sarney foi um dos desgovernos mais prolongados da história brasileira, caracterizado pela produção da crise social mais profunda, pelo agravamento da crise econômica, por todas as tentativas de continuísmo e de desmoralização do processo de democratização em curso na sociedade. Em cinco anos consegue enviar para o sistema financeiro mundial mais de 56 milhões de dólares a título de juros e amortizações da dívida externa, enquanto aprofunda a falência do sistema público de ensino, saúde, habitação e saneamento115. Historicamente ligado à oligarquias nordestinas, o governo Sarney teria diminuído os investimentos públicos e agravado a crise inflacionária e financeira do Brasil. Entretanto, garantiu o processo de transição política de um governo militar para um governo civil, sendo enfim sucedido por um Presidente da República democraticamente eleito. 1.2.4. Diagnóstico do HIV e redemocratização Tomando os retrocessos como propulsores para a ação, em 1987, Betinho participa da Campanha pela Aprovação de Emendas Populares na Assembleia Nacional Constituinte, que influenciaria no conteúdo do texto final da Constituição. Após anos de censura e repressão, as Emendas Populares foram uma iniciativa inédita na história brasileira. O processoconstituinte teve como protagonista uma sociedade civil que amargara mais de duas décadas de autoritarismo. Na euforia - saudável euforia - de recuperação das liberdades públicas, a 114 SOUZA, Herbert de; RODRIGUES, Carla. Ética e cidadania. São Paulo: Moderna (Coleção Polêmica), 1994. p. 46 115 SOUZA, Herbert de. Escritos indignados. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1993. 3a Ed. p. 26- 27 64 Constituição foi um notável exercício de participação popular. Nesse sentido é inegável seu caráter democrático. 116 Albaneide Peixinho, nutricionista, militante da SAN e membro do CONSEA, em entrevista a nós concedida, conta ter se engajado na coleta de assinaturas para que temas relacionados à alimentação constassem na Constituição Federal de 1988: E nesse período a gente começou a fazer negociações para a Constituinte de 1988. E nessas negociações a gente fez com que alguns temas que a gente considerava fundamentais, que constassem na Constituição Federal, como o da alimentação escolar e a gente pegou muitas assinatura para poder negociar com as lideranças parlamentares e eu fazia parte dessa história. Obviamente não era eu sozinha, tinha muita gente envolvida no Brasil, mas aqui (em Brasília) tinha um grupo pequeno, mas muito atuante. Alguns itens que constam na Constituição sobre alimentação e nutrição foram fruto desse trabalho das entidades da nossa categoria profissional com outras também, não era só a gente. Enquanto a gente passava aqui, tinham grupos no Rio que também passavam esse mesmo abaixo-assinado, porque a gente tinha que arrecadar na época, eu não lembro quanto, mas era muita assinatura que a gente tinha que arrecadar para poder aprovar alguma coisa117. Fruto de múltiplos debates no Congresso Nacional, com a participação de movimentos sociais, sindicatos, entidades de classe, setor público e privado, Igrejas, entre tantos outros segmentos relevantes da sociedade civil brasileira, em 05 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição Federal, também chamada de Constituição Cidadã. Dois anos antes, em 1986, Betinho foi diagnosticado com o vírus HIV e anuncia publicamente sua condição de soropositivo. Como único precedente, um hemofílico de Porto Alegre havia assumido publicamente que era soropositivo. Mesmo os hemofílicos não ousavam fazê-lo. Nenhuma razão poderia justificar aquele silêncio, principalmente porque eu tinha uma ‘vantagem’ sobre os homossexuais: a ‘desculpa’ de ser hemofílico. A epidemia aparecia, acima de tudo, como um problema dos homossexuais e dos drogados, um pouco menos como um problema dos hemofílicos. Na 116 BARROSO, Luís Roberto. Vinte Anos da Constituição de 1988: a reconstrução democrática do Brasil. In: PINHEIRO, Júlio (et all). Uma homenagem aos 20 anos da Constituição Brasileira. Florianópolis: Fundação Boitex, 2008. p. 42 117 Trecho da entrevista a nós concedida por Albaneide Peixinho em 05 de marco de 2018 via skype. 65 nossa sociedade, a homossexualidade e a droga têm forte carga de discriminação e culpa. 118 Dessa forma, em dezembro de 1986, Betinho funda a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), sendo eleito o seu presidente. Mesmo sendo difícil afrontar a discriminação, eu tinha, entretanto, mais elementos para conhecer minha condição de soropositivo. Fui convidado por um médico americano e um pesquisador brasileiro para participar do Instituto Interdisciplinar de Prevenção da Aids nos Estados Unidos. Aceitei, com a condição de que fosse criada uma sucursal brasileira. Em dezembro de 1986 fundamos a ABIA, agrupando pessoas de todas as disciplinas, de todos os horizontes, com o objetivo de ampliar a visão sobre a aids, de não mais considerá-la somente sob o ângulo médico, mas da integração de todas as suas dimensões. Percebera imediatamente a gravidade do problema e decidira assumir um papel público, dando conferências e frequentes entrevistas. Durante dois anos, consagrei a essa tarefa boa parte da minha energia119. Assim como Betinho, seus irmãos Henfil e Chico Mário contraíram o HIV por transfusão de sangue e vêm a falecer em 1988. O controle dos bancos de sangue no Brasil teria sido melhorado e deixado de ser comercializado após a morte de Henfil e por iniciativa de Betinho: No Brasil, não existia o controle do sangue: a aids era desconhecida. Ele não existia, aliás, para outras doenças. Assistimos ao comércio de sangue, uma irresponsabilidade total. O controle sanitário era totalmente ineficiente, sem equipamentos, com pouquíssimos funcionários à disposição. Nesse sentido, a aids salvou o sangue. Depois de todo o desastre, o controle foi melhorado. A morte do meu irmão teve algo a ver com isso, porque houve uma revolta: ‘Como? O Henfil morreu?’. Os outros hemofílicos, infelizmente, não eram assim tão conhecidos. A partir de então, foi estabelecido o controle nos hemocentros120. Para Cândido Grzybowsky: Há dois pólos que se unem, de formas diversas e até contraditórias, no relato de Betinho: a luta pela própria vida, tão frágil, e a luta pela vida de todos os outros, uma opção política que imprime sentido à sua vida pessoal. (...) A luta pela vida dos outros, agora na 118 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p.79 119 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p.79-80 120 Idem. p.93 66 maturidade, exprime-se na luta pela democracia, pelos valores éticos que fundamentam a democracia121. Seguindo na militância, em 1988 Betinho coordena junto com o IBASE a campanha Se Liga , Rio, momento em que o Rio de Janeiro passava por grave crise financeira. Em 1995, Betinho também participaria do Reage, Rio, contra a onda de violência na cidade. Também nos anos 1990, Betinho lançou o projeto Se essa rua fosse minha, voltado para as crianças de rua do Rio de Janeiro122. Em 1989, um ano após a promulgação da Constituição democrática, é eleito pelo voto popular, em disputa de segundo turno com Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Collor de Melo. Uma das primeiras medidas do presidente após sua posse foi o bloqueio da caderneta de poupança dos brasileiros, como parte de um plano econômico anti-inflação. Betinho foi radicalmente contra aquele governo: O objetivo maior do governo atual é transformar o Brasil num país de primeiro mundo. Em nome do paraíso capitalista do primeiro mundo se justifica tudo. O programa maior do governo é modernizar o capitalismo, internacionalizar a economia abrindo todas as suas portas para o mercado e os capitais mundiais, privatizar tudo o que for possível, reduzir o Estado à sua dimensão mínima. (...) No primeiro mundo capitalista, quando um presidente viola a Constituição é deposto pelo Congresso e o mundo não se acaba. No primeiro mundo capitalista não se bota a mão na conta corrente dos cidadãos (...) O caminho para o primeiro mundo passa pela descentralização do poder, pelo respeito total à Constituição, pelo fortalecimento do legislativo e judiciário, pela desprivatização do Estado, pela democratização e profissionalização do setor público123 O plano econômico anti-inflação do governo Collor foi um fracasso e em 1991 o Brasil afundava na inflação e na recessão. Além disso, em abril de 1992, Pedro Collor, irmão do então Presidente, concedeu entrevista em que denunciava um enorme esquema de corrupção liderado pelo tesoureiro da campanha de Fernando Collor. Foi então instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as acusações. 121 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p. 9 122PANDOLFI, Dulce, GAZIR, Augusto, CORREA, Lucas. (orgs.). O Brasil de Betinho. Rio de Janeiro: mórula Editorial, 2012. Disponível em: http://www.ibase.br/obrasildebetinho/#download acesso em 08 de fevereiro de 2018. p. 151. 123 SOUZA, Herbert de. Escritos indignados. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1993. 3a Ed. p. 72- 75 http://www.ibase.br/obrasildebetinho/#download 67 1.2.5. Movimento pela Ética na Política e Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida Nessa conjuntura, nasce o Movimento pela Ética na Política. À princípio, reunindo um pequeno grupo de pessoas, se amplia e cumula na coalizão de novecentas organizações a favor da destituição do Presidente da República acusado de corrupção. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) decidiu entregar aos parlamentares o pedido de impeachment, assinado pelos conselheiros da entidade e outras personalidades. No dia 01 de setembro de 1992, centenas de pessoas se reuniram na sede da OAB em Brasília e seguiram em caminhada até o Congresso Nacional para entregar o pedido de destituição do Presidente da República. Os conselheiros da OAB, acompanhados por Betinho, foram à frente da passeata, de braços dados. Conforme iam caminhando, as pessoas iam aderindo. Quando chegaram na Praça dos Três Poderes, havia mais de três mil pessoas reunidas. Em reação a este ato e à adesão da mídia ao Movimento pela Ética na Política, Collor solicita que a população demonstrasse seu apoio saindo às ruas vestindo as cores nacionais no domingo. Na sexta-feira, o Movimento pela Ética na Política organizou uma manifestação propondo que se vestissem de preto, em repudio ao Presidente. Segundo Betinho: Marcamos o encontro imaginando encontrar uns cinquenta manifestantes vestidos de preto, em sinal de luto. Mas milhares foram ao encontro! Vivi um dos momentos mais importantes da minha história: a ética havia triunfado. Tive a sensação de assistir à realização do impossível. Agora podíamos dizer: ‘nada é impossível, mesmo no Brasil!’ (grifo nosso) 124 Em outra análise sobre o Movimento pela Ética na Política, Betinho reitera sua observação de que o Movimento pela Ética na Política foi o triunfo da democracia: A luta pelo impeachment foi um movimento político, sério e pacífico, que queria tirar o presidente por meios legais, portanto, por meios políticos. Como esses meios não eram conhecidos nem praticados na política brasileira, o objetivo parecia mesmo impossível, mas o Movimento conseguiu alcançá-lo. A opinião pública estava altamente politizada, as pessoas foram para as ruas e as instituições funcionaram para realizar o impeachment. Eu diria que a batalha pelo impeachment representou o movimento mais 124 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p. 103 68 definitivo na luta pela redemocratização do Brasil. A sociedade fez a democracia funcionar125. Surpresos e otimistas com tamanha mobilização popular, os representantes das organizações que integravam o movimento se reuniram e constataram que a força do Movimento estava na ética, e que a fome não combina com a ética. Surge então a frase ‘Democracia e Miséria são incompatíveis’. Betinho narra como nasceu a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida: Em uma reunião do Fórum de Ciências e Cultura do Rio de Janeiro, colocamos lenha na fogueira desse novo projeto. Um dos participantes, Dom Luciano Mendes de Almeida, pronunciou palavras que, depois, estruturaram nossa ação: ‘É uma ação’, disse ele, ‘a palavra ação deve estar presente. Ela vem da cidadania, se opõe à fome, à miséria e é pela vida. Eis o nosso movimento; cada palavra tem sua origem e o seu sentido concreto.’126 Dom Mauro Morelli é bispo da Igreja Católica e emérito residente da Diocese de Luz/MG, tendo ampla atuação na defesa dos direitos humanos. Contribuiu na criação do Movimento pela Ética na Política e na Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Em entrevista a nós concedida, relembra a criação da Ação da Cidadania: O Movimento pela Ética na Política chegou a seguinte conclusão: a corrupção é um estado em que não atende mais o bem comum. Oitava economia do mundo com 32 milhões de famintos, segundo dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Aplicada). Aí decidiram lançar um movimento pela alimentação e nutrição. Naquele momento nós vínhamos de um processo político de sonhar com a democracia. (...) e aí surgiu a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Antes desse momento, em um primeiro momento, pela ética, quando eles chegaram à conclusão sobre a corrupção e aí criaram a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Quem cunhou isso foi Dom Luciano Mendes, que era um dos integrantes da coordenação pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros). No Rio transformaram isso em ONG, mas nunca foi pretendido ser uma ONG. Me desculpa quem fez, eu conheci. A Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida é um movimento autônomo, solidário, cada um se organiza à vontade. Ele tem uma autonomia, cada um se organiza e vai em frente. 127 125 SOUZA, Herbert de; RODRIGUES, Carla. Ética e cidadania. São Paulo: Moderna (Coleção Polêmica), 1994. p. 51 126 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p. 104 127 Trecho de entrevista a nós concedida por Dom Mauro Morelli em 20 de novembro de 2017 na Paróquia São Roque, no município de São Roque de Minas MG. 69 O combate à fome e à redução das desigualdades sociais ganham destaque na política nacional e com o respaldo da sociedade civil, em março de 1992, é criada a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, movimento totalmente independente do governo, de partidos políticos e das Igrejas, que pregava um trabalho descentralizado, sem hierarquia, em que os cidadãos seriam os protagonistas. A Ação da Cidadania foi oficilamente lançada com a Carta da Ação da Cidadania, em 24 de abril de 1993, assinada por Betinho e outros ativistas, em que denunciam a fome e a miséria de milhões de brasileiros e fazem um chamado à mobilização de toda a população: Chegou a hora de colocar um basta nesse processo insensato e genocida gerador da miséria absoluta que coloca milhões de pessoas nos limites insuportáveis da fome e do desespero. (...) A sociedade brasileira definiu a erradicação da miséria como sua prioridade absoluta. Esse é o clamor ético de nossos tempos, ao qual tudo o mais deve se subordinar. Essa deve ser a prioridade da sociedade e do Estado. (...) Não se pode viver em paz em situação de guerra. Não se pode comer tranquilo em meio à fome generalizada. (...) A insanidade de um país que marginalizou a maioria deve terminar agora128. Como forma de organizar as doações e insistindo na descentralização do movimento, foram criados comitês, que reuniam pessoas por atividade profissional, local de trabalho, moradia, pertencimento à escola, igreja, dentre outros, sendo que cada comitê deveria definir sua linha de conduta, só prestando contas à própria sociedade. Aos comitês caberia mobilizar a sociedade, interpelar e pressionar o Estado no sentido de mudar o quadro social existente. A orientação seria de que cada comitê fizesse um mapeamento da pobreza e da produção de alimentos em sua região com um levantamento de entidades ou pessoas que promovessem algum tipo de trabalho relacionado ao combate à fome, além de um planejamento de suas atividades. Havia, em 1994, mais de cinco mil comitês espalhados por todo o Brasil129. Segundo 128 Trechos da Carta da Ação da Cidadania. Disponível em: PANDOLFI, Dulce, GAZIR, Augusto, CORREA, Lucas. (orgs.). O Brasil de Betinho.Rio de Janeiro: mórula Editorial, 2012. Disponível em: http://www.ibase.br/obrasildebetinho/#download acesso em 10 de março de 2018. p. 164. 129 BRASIL. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). I Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Relatório Final). Brasília: CONSEA, 1995. p. 12 http://www.ibase.br/obrasildebetinho/#download 70 Betinho, “Tal esforço, com essas características, jamais havia sido tentado no Brasil”130. O sucesso da Ação da Cidadania nos seus primeiros meses de existência era inegável. Sua grande repercussão foi amplamente confirmada por pesquisa do Ibope, realizada durante a segunda metade de dezembro de 1993, quando foram entrevistadas 2.000 pessoas maiores de 16 anos em várias cidades brasileiras. A pergunta-chave era muito objetiva: “O (a) Sr. (a) conhece ou ouviu falar alguma coisa sobre a campanha nacional contra a fome e pela vida, coordenada pelo sociólogo Betinho?”. Os resultados, divulgados em meados de janeiro de 1994, impressionaram: 93% dos entrevistados consideraram a campanha necessária, 68% já tinham ouvido falar dela, 32% dela participaram ou para ela contribuíram de algum modo e 11% o fizeram enquanto membro de algum comitê. Em todo o Brasil, estimava-se existir, ao final de 1993, cerca de três mil comitês, distribuídos por 22 dos 27 Estados da federação, concentrados nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco131. A Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida foi um dos mais importantes movimentos sociais do país na década de 1990 e teria sido, dentre todas as campanhas em que Betinho se envolveu, a que alcançou maior repercussão nos meios de comunicação e a que teria tido a maior participação dos brasileiros132. Em 09 de agosto de 1997, cercado da família e de amigos, Betinho falece em sua casa, no Rio de Janeiro, em decorrência da aids. Como reconhecimento por sua luta pela cidadania, Betinho recebeu inúmeros prêmios, dentre eles: em 1991, o Prêmio Global 500, um dos mais importantes prêmios ambientais, oferecido pela ONU; em 1993, recebeu do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) o Prêmio Crianças e Paz, concedido em reconhecimento ao seu trabalho em defesa das crianças brasileiras; em 1996, recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade de York. Além da campanha contra a fome, Betinho levantou outras bandeiras, como a reforma agrária, a aids, o meio ambiente, os problemas da cidade do Rio de Janeiro. Todas as suas pautas convergiam para a imprescindível necessidade de mobilização social. Após o exílio, a vivência da queda de dois presidentes eleitos e a experiencia com a democracia canadense, Betinho teria consciência de que a mudança deve vir de 130 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p. 105 131 PANDOLFI, Dulce e HEYMANN, Luciana. (orgs). Um abraço, Betinho. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1496.pdf acesso em 08 de fevereiro de 2018. p. 183 132Idem. p. 179 http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1496.pdf 71 uma sociedade forte e atuante. E foi esta a motivação por detrás de todas as causas pelas quais lutou. 1.3. Década de 1990: reconhecimento da Segurança Alimentar e Nutricional à margem do governo federal Fruto da recente redemocratização e do anseio por mudanças políticas e sociais, em 1991 durante o governo de Fernando Collor de Mello, é instituída a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Fome, que “solicita a criação de CPI destinada a examinar as causas da fome e a iminente ameaça à segurança alimentar”133. No mesmo ano, é constituído o Governo Paralelo, movimento criado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) sob a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva, após sua derrota às eleições presidenciais de 1989, para apresentar propostas alternativas de políticas públicas, enquanto acompanhava, criticamente, o governo de Fernando Collor de Mello134. Albaneide Peixinho foi uma das integrantes do Governo Paralelo e conta a forma como se deu sua criação: Nesse período a gente começou a escrever junto com um grupo e o pai do Graziano trabalhava no INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e ele era aquele militante da reforma agrária então a gente fez um documento. Quando o Collor ganhou a eleição, o PT criou o Governo Paralelo, que resolveu escrever um documento sobre o que achava sobre a questão da fome, da segurança alimentar e nutricional, dentre outras coisas. Esse grupo se reunia pra ver o que a gente deveria escrever. A ideia inicial não era nem entregar este documento para o Collor, porque com o Collor não tinha condições de negociação, era ser oposição mesmo e para ser oposição a gente tinha que ter propostas concretas para poder ir para o enfrentamento nas discussões. E eu fiz parte da elaboração deste documento e várias outras pessoas escreveram. Mas a parte da nutrição foi escrita muito por a gente mesmo... eu, Rosane, Iara e a gente escrevia e passava para o pai do Graziano, que escrevia a parte da 133 Câmara dos Deputados. Requerimento de Institição de CPI 5/1991. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=238050. Acesso em 23 de janeiro de 2018. 134 Disponível em: http://www.institutolula.org/historia. Acesso em janeiro de 2016. http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=238050 http://www.institutolula.org/historia 72 agricultura. Depois o Collor cai e eles entregaram (este documento) para o Itamar, que criou o primeiro CONSEA135. Renato Maluf também integrou o Governo Paralelo e corrobora com a narrativa de Peixinho: Logo depois da eleição em 1989, o Lula criou o Governo Paralelo com espécies de Ministérios. Foi uma tentativa de replicar a experiência inglesa do ‘gabinete sombra’, o shadow cabinet, mas lá tem a ver com o parlamentarismo, aqui não tem parlamentarismo. Mas ele construiu um governo, uma espécie de um governo paralelo com ministros. E o José Gomes da Silva (que é o pai do Graziano) era o Ministro da Agricultura e Alimentos e neste “ministério” tinham três grupos: um grupo que tratava da questão agrária, um da questão agrícola e nós, da segurança alimentar. Neste grupo que a gente produziu a primeira proposta de segurança alimentar, que foi a proposta que o Lula entregou para o Itamar. E foi um dos documentos que forneceu subsídios para a montagem do primeiro CONSEA, em 1993. Então esse é um documento de 1991, do Governo Paralelo, que um pouco alimentou, forneceu subsídios para a campanha do Betinho, da Ação da Cidadania, era naquele contexto.136 Em uma de suas publicações sobre SAN, Maluf faz menção à I Conferencia Nacional de Alimentação e Nutrição, realizada em 1986, como um dos embriões da proposta que levaria à criação do CONSEA, em 1993: A Conferência lançou um conjunto de proposições que também se tornaram referências permanentes, estando na origem da posterior incorporação do adjetivo ‘nutricional’ à noção de Segurança Alimentar entre nós. Ela propunha a instituição de um Conselho Nacional de Alimentação e Nutrição que formulasse a Política Nacional de Alimentação e Nutrição, que viria a ser adotada, oficialmente, em 1999. O formato do Conselho e várias das diretrizes da política sugerida eram bastante próximas da proposição antes referida. Nota-se, ainda, que a Conferência sugeriu a instituição de um Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional integrado por Conselhos e Sistemas nas esferas estadual e municipal, proposição que viria a ser retomada em 2004, pela II Conferência Nacional de SAN e pelo CONSEA137. Flavio Valente tambémfoi um dos fundadores do Governo Paralelo e corrobora com a afirmação de que a proposta de um Conselho Nacional de Segurança 135 Trecho da entrevista a nós concedida por Albaneide Peixinho em março de 2018 via skype 136 Trecho da entrevista a nós concedida por Renato Maluf em 14 de abril de 2016 no Programa de Pós- Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agrário, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ) 137 MALUF, Renato S. Segurança Alimentar e Nutricional. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 81 73 Alimentar e Nutricional remontaria à I Conferencia Nacional de Alimentação e Nutrição: Então em 1986 teve uma Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, no qual eu fui o coordenador operativo, foi o Conselho do INAN (Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição) que decidiu fazer. O INAN apoiou e nós convidamos todos os setores do governo que trabalhavam com nutrição, a comparecer, foi um pré- CONSEA, vamos dizer assim. E foi a primeira vez que nós todos nos reunimos. Foi a primeira vez que se reuniu governo e sociedade civil. Foi o primeiro espaço de articulação do que viria a ser o CONSEA futuro. Inclusive se você ler o documento final, tem uma proposta de Conselho, mas não se chamava Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, mas Conselho Nacional de Alimentação e Nutrição, que era ligado ao SUS (Sistema Único de Saúde). Eu considero um documento inovador. Levanta inclusive o direito humano à alimentação, é a primeira vez que aparece o direito humano à alimentação e à saúde. Inclusive eu tenho a honra porque fui eu quem assinei o relatório. Em 1988 foi a primeira vez que o Lula foi candidato e nós que estávamos nesse grupo, eu, o Chico (Menezes), o (José Roberto) Escórcio, o (Renato) Maluf, o Graziano, elaboramos uma proposta nacional de Segurança Alimentar e Nutricional para o Governo Paralelo. Foi aí que pela primeira vez eu participei de uma discussão sobre Segurança Alimentar e Nutricional138. Entendemos, assim, que a primeira menção para a criação de um Conselho Nacional de SAN teria ocorrido durante a I Conferencia Nacional de Alimentação e Nutrição, que teria dado ensejo à elaboração, por ativistas do Governo Paralelo, do documento entregue por Luiz Inácio Lula da Silva ao então presidente Itamar Franco. Segundo Betinho: Lula foi recebido pelo presidente Itamar Franco, e lhe propôs uma campanha contra a fome pela criação de um Conselho de Segurança Alimentar. O presidente aceitou. A ideia veio do PT, mas Lula recusou-se a dirigir a campanha e citou meu nome, em meio aos de outras personalidades. Itamar Franco me convidou para encabeçar uma espécie de Ministério da Fome. Recusei, já que não consigo pertencer ao poder, tenho uma aversão inata. Indiquei Dom Mauro Morelli, bispo de Duque de Caxias139. Flávio Valente, que contribuiu na elaboração do documento entregue à Itamar Franco, valida a narrativa de Betinho: 138 Trecho da entrevista a nós concedida por Flavio Valente em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. 139 SOUZA, Herbert de. Revoluções da minha geração. São Paulo: Moderna, 1996. p. 104 74 Em 1992, quando o Collor foi impedido, o Lula se aproximou do Itamar e o Itamar queria que o Lula participasse do governo e o Lula, ao invés de participar do governo sugeriu a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e o Itamar aceitou a proposta. Quem entregou a proposta fui eu, o (Renato) Maluf e o Pedro Simon. A gente fez uma apresentação para o Itamar e ele convidou o Lula para ser o presidente do CONSEA. O Lula não aceitou, aí ele convidou o Betinho. O Betinho não aceitou e aí foi o Dom Mauro. (...) Quando ele (Betinho) foi convidado para ser o presidente do CONSEA, ele não gostava de governo. Ele ficou preocupado e falou: ‘não, eu não quero ser não, estou muito doente’, e indicou o Dom Mauro. Então o Dom Mauro assumiu e eu fui ser assessor técnico do Dom Mauro na presidência do CONSEA140 Temos assim, de um lado, um contexto político neoliberal com Itamar Franco na Presidência da República e de outro, setores da sociedade civil, como o Governo Paralelo e a Ação da Cidadania, no pleito por um projeto político mais participativo. Representantes da sociedade civil entrevistados à época do governo Itamar Franco, elencaram três possíveis razões para o aceite na criação do CONSEA: i) a pressão exercida pela conjuntura da época, de mobilização social; ii) a sensibilidade pessoal de Itamar Franco, que se colocava muito ‘aberto’ ao diálogo com a sociedade civil; iii) a necessidade de legitimidade social do governo Itamar Franco, tendo em vista que ele era vice de Collor e havia assumido mediante o impeachment daquele Presidente.141 Dessa forma, atendendo aos anseios da sociedade civil por mais participação nas esferas de debate e deliberação das questões relacionadas à SAN, é criado em 24 de abril de 1993, via Decreto 807/1993, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar. O CONSEA seria um órgão de caráter consultivo, vinculado à Presidência da República e composto por nove ministros (da Justiça, da Educação, da Cultura, da Fazenda, da Saúde, da Agricultura, do Trabalho, do Bem-Estar Social e do Planejamento) e vinte e um representantes da sociedade civil designados por iniciativa do Presidente da República a partir de indicações do Movimento pela Ética na Política, além do Secretário Geral da Presidência da República. 140 Trecho da entrevista a nós concedida por Flavio Valente em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional 141 ZIMMERMANN, Silvia A. A pauta do povo e o povo em pauta: as Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional, Brasil – democracia, participação e decisão política. Tese (Doutorado). Rio de Janeiro: UFRRJ, 2011. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2011. p. 24 75 O CONSEA, na época, teria constituído uma forma bastante inovadora de parceria entre sociedade civil e Estado na busca por soluções para o problema da fome e da miséria no pais142. Seu objetivo, de acordo com o artigo 2o do Decreto 807/1993, era propor e opinar sobre: I - ações voltadas para o combate à fome e o atingimento de condições plenas de segurança alimentar no Brasil, no âmbito do setor governamental e não-governamental; II - medidas capazes de incentivar a parceria e integração entre os órgãos públicos e privados, nacionais e internacionais, visando a garantir a mobilização e racionalização do uso dos recursos, bem como a complementariedade das ações desenvolvidas; III - campanhas de conscientização da opinião pública para o combate à fome e à miséria, com vistas à conjugação de esforços do governo e da sociedade; IV - iniciativas de estímulo e apoio à criação de comitês estaduais e municipais de combate à fome e à miséria, bem como para a unificação e articulação de ações governamentais conjuntas entre órgãos e pessoas da Administração Pública Federal direta e indireta e de entidades representativas da sociedade civil, no âmbito das matérias arroladas nos incisos anteriores. O primeiro CONSEA teve como presidente o bispo da Igreja Católica, Dom Mauro Morelli, que à época era bispo da Diocese de Duque de Caxias. Em entrevista a nos concedida, Dom Mauro Morelli relembra sua atuação no combate à fome com Betinho: O IBASE começou ao mesmo tempo que a diocese de Duque de Caxias. O Betinho voltou do exílio e em 1981 ele começou o IBASE. Então a gente se aproximou. Eu participava sempre no IBASE das reuniões de conjuntura. O Betinho juntava todo mês umas cabeças para avaliar a realidade, pensar o que estavaacontecendo... Então ali a gente teve uma escola muito boa, um grupo que pensava bem, heterogêneo. Eu me lembro de uma reunião em que nós estávamos em torno de quarenta pessoas. Tinha de todas as tendências ideológicas, religiosas, até ateus e tudo. Eu sei que em um momento alguém chegou e disse assim: ‘o único aqui que pode falar por todos nós é o nosso bispo’. Eu adquiri uma capacidade, de, firmando a minha identidade, de ter uma relação muito boa de todas as tendências. Eu dizia: ‘nós estamos unidos contra a ditadura. Nós temos diferenças entre nós, no futuro elas vão ficar explícitas e podem até estar em campos opostos, mas agora nós nos 142 MALUF, Renato S. Segurança Alimentar e Nutricional. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 83 http://www.jusbrasil.com.br/topicos/11888843/art-2-inc-i-do-decreto-807-93 http://www.jusbrasil.com.br/topicos/11888808/art-2-inc-ii-do-decreto-807-93 http://www.jusbrasil.com.br/topicos/11888781/art-2-inc-iii-do-decreto-807-93 http://www.jusbrasil.com.br/topicos/11888746/art-2-inc-iv-do-decreto-807-93 76 unimos. O que nos une? O que nos une é a dignidade humana, é o respeito à vida, à liberdade, à participação’143. A atuação de Dom Mauro Morelli junto aos militantes da temática da SAN remontaria à década de 1980. Morelli afirma ter sido convidado a ser vice-presidente de Luiz Inácio Lula da Silva na candidatura de 1989: Eu fui do Governo Paralelo. Eu deveria ter sido vice-presidente do Lula na primeira vez, na primeira campanha dele e eu não aceitei. Eu fui convidado. Havia o Sétimo Encontro Intereclesial em Duque de Caxias em 1989 e eu não deveria aceitar e não aceitei, senão eu detonaria tudo, né? Mas eu participei do Governo Paralelo e todo mês nós tínhamos em São Paulo reuniões para trabalhar a questão do futuro governo nas questões144. A atuação contundente de Morelli na temática da SAN o leva a ser nomeado à presidência do primeiro CONSEA. Entretanto, tal nomeação teria ocorrido após a recusa de Betinho em assumir o cargo, que participa do CONSEA como representante da sociedade civil. De acordo com Dom Mauro Morelli: A Secretaria, a coordenação começa com o Itamar e o Itamar aceitou uma parceria. E como o Betinho tinha dificuldade de viajar constantemente, nessa coordenação nacional chegaram a dois nomes: o doutor (Marcelo) Lavenère, que tinha sido um dos dois advogados que entrou com um processo de impeachment e Dom Mauro Morelli. Como não ficava bem para o Lavenère ficar ao lado do Itamar Franco (não ficava bem, né? Ele derrubou lá e agora entra aqui), então o Betinho me telefona: ‘Dom Mauro, nós estamos organizando aqui e chegamos a uma decisão que o senhor será o Presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar aqui em Brasília e vai coordenar a execução de tudo isso que nós estamos amarrando com o Itamar. Eu falei: ‘tudo bem, vamos lá!’145. A narrativa de Dom Mauro Morelli mostra que a presidência deste primeiro CONSEA se deu por indicação, ao contrário do que ocorre atualmente, em que o presidente do CONSEA deve advir da sociedade civil e deve ser eleito pelos conselheiros representantes da sociedade civil. 143 Trecho da entrevista a nós concedida por Dom Mauro Morelli em 20 de novembro de 2017 na Paróquia São Roque, no município de São Roque de Minas MG 144 Trecho da entrevista a nós concedida por Dom Mauro Morelli em 20 de novembro de 2017 na Paróquia São Roque, no município de São Roque de Minas MG 145 Idem 77 Este primeiro CONSEA, embora tenha tido menos de dois anos de duração, (abril de 1993 – janeiro de 1995), incorporou formalmente na agenda do governo federal a questão da Segurança Alimentar e realizou a I Conferência Nacional de SAN. A I Conferência Nacional de SAN teria sido antecipada por um processo de discussão de âmbito nacional sobre a problemática alimentar e de conscientização sobre a dimensão da fome no Brasil, tendo ocorrido entre os dias 27 a 30 de julho de 1994, em Brasília. A Conferência recebeu contribuições das conferências realizadas em todos os Estados e dos comitês de empresas públicas e universidades146. Em 1993, Betinho cria o Comitê de Entidades Públicas no Combate à Fome e pela Vida, tendo como objetivo reunir organizações e sensibilizá-las a encontrar suas próprias formas de atuação na sociedade. Este Comitê teria dado contribuições importantes na produção de documentos na organização da I Conferência Nacional de SAN147. Figura 3: Dom Mauro Morelli (em pé) na 1a Conferência Nacional de SAN, com Betinho (no canto esquerdo) Fonte: PANDOLFI, Dulce, GAZIR, Augusto, CORREA, Lucas. (orgs.). O Brasil de Betinho. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2012. p. 170 Disponível em: http://www.ibase.br/obrasildebetinho/#download Acesso em fevereiro de 2018. O primeiro CONSEA, além de promover a I Conferência Nacional de SAN, lançou, em dezembro de 1994, o documento Diretrizes para uma Política Nacional de Segurança Alimentar – As Dez Prioridades, que fornecia uma proposta inicial para 146 MALUF, Renato S. Segurança Alimentar e Nutricional. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 83 147 Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN). Estruturando o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) Brasília: CAISAN, 2011. p. 18. http://www.ibase.br/obrasildebetinho/#download 78 a definição das prioridades na construção de uma Política Nacional de Segurança Alimentar. A curta duração do primeiro CONSEA e o êxito relativo de suas proposições poderiam ser elencados em quatros fatores principais, segundo Maluf: A novidade do tema, o caráter de transição do governo Itamar, a zelosa resistência dos controladores da política econômica e, reconheça-se, a frágil atuação da maioria dos conselheiros, tanto os oriundos do governo quanto os da sociedade civil. A débil repercussão da extinção do Conselho confirma o limitado enraizamento social daquela primeira e breve experiência. 148 Em entrevista à nós concedida, Maluf ratifica esta argumentação da importância do primeiro CONSEA, mas de sua relativa eficácia: Aquele (CONSEA) de 1994 foi uma experiência precursora, muito importante, que durou dois anos. Quando foi desfeita, quase ninguém chiou, exceto eu, Dom Mauro e não sei mais quem. Então os conselheiros foram parar no Comunidade Solidária, o Betinho não quis continuar... não houve uma reação que você dissesse assim ‘os conselheiros se indignaram’, não senti isso não... por isso que todo o reconhecimento da importância da primeira experiência de fato é o CONSEA de 2003, que é o marco institucional. 149 Zimmermann, em sua tese de doutorado em que analisa as Conferências Nacionais de SAN, elenca duas possibilidades para que a extinção deste primeiro CONSEA fosse recebida sem resistência: i) o CONSEA, enquanto materialização da parceria entre governo e sociedade civil não teria sido suficientemente compreendido, já que estava inserido em uma mobilização que se caracterizava por iniciativas pessoais e com baixo grau de consciência política; e ii) a ilusão produzida pelo Plano Real, de que os problemas sociais tinham sido superados com o fim da inflação, inaugurou um novo período de desmobilização social, que permitiu também que a sociedade civil envolvida no CONSEA não esboçasse reação à extinção do Conselho150. Desta forma, em dezembro de 1994, o Presidente da República recém 148 MALUF, Renato S. Segurança Alimentar. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 84 149 Trecho da entrevista a nós concedida por Renato Maluf em 14 de abril de 2016 no Programa de Pós- Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agrário, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ) 150 ZIMMERMANN,Silvia A. A pauta do povo e o povo em pauta: as Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional, Brasil – democracia, participação e decisão política. Tese (Doutorado). Rio de Janeiro: UFRRJ, 2011. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2011. p. 25 79 eleito, Fernando Henrique Cardoso, extingue o CONSEA e cria, em subistituição, o Programa Comunidade Solidária. No contexto internacional, o debate sobre a fome e a alimentação também prossegue e em 1992 ocorre a Conferência Internacional de Nutrição, por iniciativa da FAO e da OMS. Nesta Conferência, agrega-se definitivamente o aspecto nutricional e sanitário ao conceito alimentar com enfoque na importância do acesso aos alimentos nutricionalmente adequados e seguros para o bem-estar individual e para o desenvolvimento nacional, social e econômico 151 . Notamos, assim, um amadurecimento dos debates na temática alimentar. Também em âmbito internacional, em 1993, é realizada em Viena, a Conferência Internacional de Direitos Humanos, que reafirma a indivisibilidade dos direitos humanos, já consagrada em 1948 na Declaração Universal dos Direitos Humanos. No Brasil, em junho de 1992, é realizada a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como ECO-92. Realizada vinte anos após a primeira Conferência sobre meio ambiente, a ECO-92 reuniu representantes de cento e setenta e oito países do mundo e o IBASE ficou responsável pela instalação de rede de computadores em todos os espaços da Conferência. 1.3.1. Programa Comunidade Solidária O Programa Comunidade Solidária foi criado através do Decreto 1.366 de 12 de janeiro de 1995. Neste Programa, a presidência é indicada pelo Presidente da República, ao contrário do que ocorreu no primeiro CONSEA e que passou a ocorrer nos demais CONSEAs, em que o presidente do Conselho é um membro da sociedade civil. No Programa Comunidade Solidária, Fernando Henrique Cardoso indicou para a presidência sua esposa, a primeira-dama, Ruth Cardoso. Dom Mauro Morelli nos narrou seu encontro com o então Ministro das Relações Exteriores Fernando Henrique Cardoso, antes da criação do Programa Comunidade Solidária, para averiguar a possível continuidade do CONSEA: 151 ZIMMERMANN, Silvia A. A pauta do povo e o povo em pauta: as Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional, Brasil – democracia, participação e decisão política. Tese (Doutorado). Rio de Janeiro: UFRRJ, 2011. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2011. p. 62 80 Aí quando o Fernando Henrique é eleito eu pedi uma audiência e fui recebido no Palácio da Alvorada. Ele me recebeu lá, estavam o Marco Maciel, uma turma do Nordeste e eu disse: ‘Presidente, o nosso Conselho tem duas matrizes: uma [advinda do] Presidente da República e outra [do] Movimento pela Ética, há um acordo. A nossa composição foi assim, por isso não renunciamos coletivamente. Cabe ao senhor, que é o novo presidente, reunir o Movimento e decidir: continua ou não continua’. Ele disse: ‘Dom Mauro, continua. Depois da posse eu chamo o senhor’. Até ele me disse: ‘O que o senhor acha de nomear este...’. Eu não achei nada. Aí eu desci a rampa com o Itamar, fui na recepção do Fernando Henrique no Itamarati, que é convite, né?, depois fui para o Rio e voltei lá uns dias depois e o Fernando Henrique nunca me chamou. A Ana Peliano veio me comunicar depois que ele iria criar o Comunidade Solidária152. O Programa Comunidade Solidária incorporou alguns nomes da equipe do CONSEA, entre os quais o próprio Betinho. Dom Mauro Morelli, conforme mencionado, não foi chamado e nos narrou seu encontro com a primeira-dama, que teria contratado grande parte da equipe do extinto CONSEA, com a exceção dele: A estrutura que a esposa do Fernando Henrique, a Dona Ruth Cardoso tinha, o escritório dela era ao lado do prédio da catedral, o último prédio do Ministério. O meu era no Palácio do Planalto, tinha essa diferença. A minha equipe foi trabalhar com ela. Eu fui lá visitá-la um dia. Eu disse: ‘Dona Ruth, a senhora tem uma grande confiança em mim’ ela disse: ‘como assim?’ ‘porque toda a sua equipe trabalhou comigo’. O pessoal todo estava lá, mas nunca me chamou para nada. 153 No dia da posse de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República, em 1o de janeiro de 1995, Betinho lhe entregou a ‘Carta da Terra’, documento em que denunciava a concentração de terras no Brasil e procurava comprometer o novo governo com a solução do problema. Entretanto, a prioridade do governo seria o Plano Real, que estabilizara a economia. Desta forma, mesmo participando do Programa Comunidade Solidária, Betinho fazia críticas ao governo. Após um ano de participação, Betinho se desliga do Programa154. O Programa Comunidade Solidária englobaria duas propostas distintas, mas complementares: a do Conselho Comunidade Solidária, presidido pela então primeira- 152 Trecho da entrevista concedida por Dom Mauro Morelli em 20 de novembro de 2017 na Paróquia São Roque, no município de São Roque de Minas MG 153 Idem 154 PANDOLFI, Dulce e HEYMANN, Luciana. (orgs). Um abraço, Betinho. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1496.pdf acesso em 08 de fevereiro de 2018. p. 185 http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1496.pdf 81 dama Ruth Cardoso, e que tinha como objetivo central a articulação e a interlocução entre o Estado e a sociedade civil, e a da Secretaria Executiva do Comunidade Solidária, subordinada ao Conselho Comunidade Solidária e coordenada por Anna Maria Medeiros Peliano, que teria uma agenda básica de implementação de programas sociais nos municípios mais pobres do país, visando ações integradas nos três níveis da Federação155. O Decreto 2.999 de 25 de marco de 1999, estabelece em seu artigo 1o, o objetivo do Conselho da Comunidade Solidária: O Conselho da Comunidade Solidária tem por finalidade promover o diálogo político e parcerias entre governo e sociedade para o enfrentamento da pobreza e da exclusão, por intermédio de iniciativas inovadoras de desenvolvimento social. O Conselho do Comunidade Solidária não teria priorizado os temas da SAN como teria feito o CONSEA156 por se tratar de um Conselho de políticas sociais não voltado exclusivamente à SAN. O primeiro mandato deste Conselho (1995-1998) manteve de forma limitada as políticas públicas de combate à fome e à miséria, e no segundo mandato (1998-2002), teria havido menos diálogo com o institutos e organizações não governamentais ligadas ao tema, como o IBASE, por exemplo157. As principais críticas ao Programa Comunidade Solidária seriam o uso clientelista das políticas de SAN e a desarticulação das parcerias e alianças consolidadas anteriormente no âmbito do CONSEA. Entretanto, alguns avanços importantes devem ser mencionados durante sua vigência, como a implementação do Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar (PRONAF), em 1996, e a aprovação da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), em 1999158. 155 PERES, Thais Helena de Alcântara. Comunidade Solidária: a proposta de um outro modelo para as políticas sociais. Revista de Ciências Sociais, v. 5. n. 1, jan.-jun. 2005. p. 114 156 CUSTÓDIO, Marta Battaglia; FURQUIM, Nelson Roberto; SANTOS, Greice Maria Mansini dos; CYRILLO, Denise Cavallini. Segurança Alimentar e Nutricional e a construção de sua política: uma visão histórica. Segurança Alimentar e Nutricional, Campinas, a. 18, n. 1, p. 1-10, 2011. Disponível em: https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/63527/1/1-Seguranca-alimentar-13-06- 2011.pdf Acesso em 10 /04/2018. p. 05 157 NASCIMENTO,R.C. O Papel do CONSEA na Construção da Política e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. 2012. Tese (Doutorado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. p. 25 158 CUSTÓDIO, Marta Battaglia; FURQUIM, Nelson Roberto; SANTOS, Greice Maria Mansini dos; CYRILLO, Denise Cavallini. Segurança Alimentar e Nutricional e a construção de sua política: uma visão histórica. Segurança Alimentar e Nutricional, Campinas, a. 18, n. 1, p. 1-10, 2011. Disponível em: https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/63527/1/1-Seguranca-alimentar-13-06- 2011.pdf Acesso em 10 /04/2018. p. 05 82 O PRONAF foi implementado com o intuito de direcionar recursos para os agricultores familiares, em três modalidades: crédito, infraestrutura/serviços municipais e capacitação. A PNAN seria um compromisso do Ministério da Saúde com os males relacionados à escassez alimentar e à pobreza, sobretudo a desnutrição infantil e materna, assim como o complexo quadro dos excessos já configurado no Brasil pelas altas taxas de prevalência de sobrepeso e obesidade na população adulta. A PNAN previa sua atuação a partir do engajamento de pessoas, instituições governamentais e não-governamentais que atuassem no campo da alimentação e nutrição, servindo como marco conceitual de ação governamental. 1.3.2. Cúpula Mundial de Alimentação Em novembro de 1996, é realizada em Roma, a Cúpula Mundial da Alimentação (World Food Summit), organizada pela FAO, que contou com a participação de 185 países e da Comunidade Européia. A organização do evento solicitava que os países participantes entregassem um relatório sobre a situação alimentar e da desnutrição em seus países. Nesta ocasião, estabeleceu-se no Brasil um Comitê Técnico Interministerial, que contou com a participação, além do Estado, da sociedade civil e da iniciativa privada, que em conjunto elaboraram o documento brasileiro a ser apresentado à Cúpula. Francisco Menezes, ex-presidente do CONSEA Nacional, participou da elaboração do documento e esteve na Cúpula Mundial da Alimentação como representante da sociedade civil e relembra: Se formou um grupo para escrever a proposta brasileira para a Cúpula Mundial de Alimentação. Nós escrevemos e inclusive o relator foi o Renato (Maluf). O Renato quem fez a redação. Foram longas discussões, havia temas polêmicos envolvidos. O direito à alimentação tinha muita discussão de alguns setores do governo Fernando Henrique, setores mais ligados à economia, entende? Depois o aspecto do acesso à alimentação, havia alguns que davam muita ênfase, outros que incorporavam outros componentes, então havia uma diversidade de opiniões, mas se conseguiu chegar a um documento comum e foi o documento oficial brasileiro levado. Mas nós ficamos muito decepcionados porque o representante do governo brasileiro na Cúpula Oficial deixou de lado o documento e fez um discurso que não tinha nenhuma relação com o documento, chegando inclusive a falar uma frase que ficou famosa nesse momento na Cúpula, famosa desfavoravelmente, dizendo que ‘o mercado era capaz de resolver todos os problemas da Segurança Alimentar’. Eu me lembro que diversos representantes estrangeiros 83 vieram dizer que o mercado resolve tudo. Eu acho que era Alysson Paulinelli o nome dele, não tenho certeza. Era o Ministro da Agricultura159. O governo de Fernando Henrique Cardoso teria tentado conciliar a segurança alimentar à liberalização comercial, atribuindo papel decisivo às exportações, e tendo as importações como elemento regulador do mercado doméstico nos aspectos da disponibilidade e formação de preços 160 . Conforme narrado por Menezes, os representantes da sociedade civil discordavam desta opção neoliberal, mas teriam conseguido chegar a um consenso no documento final, que, entretanto, não foi lido oficialmente durante a Cúpula. Renato Maluf , relator deste documento entregue à Cúpula, narra como se deu a participação brasileira no evento e o desdobramento deste engajamento do grupo brasileiro lá presente: (...) e quando foi em 1996, por ocasião da Cúpula Mundial de Alimentação, o governo brasileiro criou um grupo de trabalho para preparar um documento brasileiro para a Cúpula, um grupo tripartite: governo, setor privado e sociedade civil. E eu estava no grupo da sociedade civil e acabei sendo indicado a relator do grupo. Então o documento de 1996, que foi um precursor dos documentos de agora, inclusive expressando divergências dentro dele. Foi uma experiência notável. O governo brasileiro, mesmo sendo o Fernando Henrique com aquele perfil de governo dele, as cúpulas mundiais foram todas acompanhadas de eventos de participação social, para preparar... A nossa foi a que menos teve... teve, mas foi a mais corrida. Tiveram várias cupulas mundiais nos anos 1990, além da Rio-92. Mas por que eu estou me referindo a isso? Porque ali tem um documento muito importante para consagrar uma consepção intersetorial e etc, e participação e porque a delegação brasileira da sociedade civil que foi para a Cúpula, que era a maior delegação, fora a italiana propriamente dita, nós éramos vinte e poucas pessoas da sociedade civil 159 Trecho da entrevista a nós por concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE. Alysson Paulineli, citado, foi Ministro da Agricultura no governo Geisel, de 1973 a 1979; foi presidente do Banco do Estado de Minas Gerais de 1979 a 1983, da Associação Brasileira de Bancos Comerciais Estaduais de 1980 a 1982, da Fiat Allis Latino-Americana de 1982 a 1986 e da Sociedade Mineira de Agricultura de 1983 a 1986; foi presidente da Confederação Nacional da Agricultura de 1987 até 1990; em março de 1991, foi nomeado Secretário de Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Estado de Minas Gerais; de 1992 a 1993 exerceu a presidência do Fórum Nacional de Agricultura; em janeiro de 1995, foi reconduzido ao cargo, no qual permaneceu até março de 1998; após deixá-lo, dedicou-se à empresa de consultoria Listen, em Belo Horizonte. Disponíbel em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/paulinelli-alysson, acesso em maio de 2018) 160 ZIMMERMANN, Silvia A. A pauta do povo e o povo em pauta: as Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional, Brasil – democracia, participação e decisão política. Tese (Doutorado). Rio de Janeiro: UFRRJ, 2011. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2011. p. 47 http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/paulinelli-alysson 84 brasileira. Esse é o núcleo que criou o Fórum Brasileiro em 1998, na volta de lá. Ali a gente voltou e, vamos tocar essa agenda no Brasil, né? Na contramão do governo. O governo Fernando Henrique... não tinha interlocução com o governo Fernando Henrique. Tanto é que a gente começou a ir para os Estados. Todos os governadores que se elegeram em 1999, foi 1999?... Todos os governos a gente visitou... Garotinho, Mario Covas estava bastante mal... Olívio Dutra, o Zeca do PT, em Minas era o Itamar... para criar Fóruns Estaduais e CONSEAs nos Estados. (Grifos nossos)161 Conforme narrado por Menezes e Maluf, a mobilização para e durante a Cúpula Mundial da Alimentação, possibilitou maior articulação entre o governo e a sociedade civil e acarretou na criação dos primeiros Conselhos de Segurança Alimentar em quatro Estados brasileiros. Outra contribuição da Cúpula Mundial da Alimentação, foi a associação definitiva do papel do DHAA à garantia da SAN. A partir de então, de forma progressiva, a SAN passa a ser entendida como uma possível estratégia para garantir o DHAA162. Maluf observa que a representação oficial de países importantes se fez em nível inferior ao de outras cúpulas, o que indicaria pouca atenção atribuídaà problemática alimentar à época e limitaria a eficácia dos compromissos assumidos pelos dirigentes presentes ao evento. 163 Nesse sentido, a principal motivação dos movimentos sociais em meados da década de 1990, teria sido responder à perda de capacidade dos Estados nacionais formularem políticas agrícolas e alimentares no contexto da progressiva internacionalização da economia164. A Associação Brasileira de Agronegócio (ABAG), por exemplo, tem dentre um de seus objetivos, o fortalecimento do sistema agroindustrial, e foi fundada em março de 1993 165 , justamente no bojo destas mobilizações dos movimentos e organizações sociais por um conceito de SAN em prol de políticas públicas mais democráticas. Segundo Maluf, a promoção da SAN deve se centrar na busca pela soberania de políticas relacionadas com os alimentos e à alimentação que se sobreponha à lógica 161 Trecho da entrevista a nós concedida por Renato Maluf em 14 de abril de 2016 no Programa do Pós- Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ 162 AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS (ABRANDH). O Direito Humano à Alimentação Adequada e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, 2013. p. 15 163 MALUF, Renato S. Segurança Alimentar. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 63 164 MALUF, Renato S. Segurança Alimentar e Nutricional. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. p. 22 apud: MENEZES, F. Food sovereignty: a vital requirement for food security in the contexto of globalization. Development, v. 44, n. 4, dec./2001. 165 Disponível em: http://www.abag.com.br/institucional/historiamissaovisao. Acesso em: 06 de fevereiro de 2016. http://www.abag.com.br/institucional/historiamissaovisao 85 mercantil da regulação privada166. Ou seja, as políticas públicas de SAN devem se centrar nos interesses contra-hegemônicos do agronegócio, que com a criação da ABAG passa também a buscar imprimir seus interesses nos debates e no conceito de SAN. A Cúpula Mundial de Alimentação adotou, em 1996, a seguinte definição de Segurança Alimentar e Nutricional: A garantia, a todos, de condições de acesso a alimentos básicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em práticas alimentares saudáveis, contribuindo assim para uma existência digna, em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa, com preservação das condições que garantam uma disponibilidade de alimentos a longo prazo. É importante ressaltar que o termo Segurança Alimentar e Nutricional somente passou a ser divulgado com mais força no Brasil após o processo preparatório para a Cúpula Mundial de Alimentação de 1996, e com a criação do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, em 1998. Mas por se tratar de um conceito recente, que envolve interesses diversos, a definição de seu significado se transforma constantemente em um espaço de disputa. O conceito de SAN não é um conceito estabelecido, mas em construção167. Dessa forma, o conceito de SAN adotado pela FAO, será utilizado no Brasil, mas paulatinamente modificado, na medida em que os movimentos sociais se fortalecem e enfatizam a necessidade de se incorporar uma dimensão mais justa na cadeia produtiva dos alimentos. O termo Soberania Alimentar difere do de Segurança Alimentar por enfatizar o direito dos povos de escolherem suas próprias estratégias de produção, tendo surgido como resposta dos movimentos sociais camponeses às políticas agrícolas neoliberais. De acordo com estes movimentos, o conceito de Segurança Alimentar estabelecido pela FAO é de garantir a todos o acesso a alimentos básicos de qualidade e em quantidade sufuciente, sem comprometer as outras necessidades essenciais. Ou seja, a FAO não ressaltaria a proecupação com os modos de produção, de valorização da cultura alimentar e a segruança na cadeia produtiva do alimento O conceito de 166 MALUF, Renato S. Segurança Alimentar e Nutricional. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. p.22 167 MALUF, Renato S. MENEZES, F. Caderno Segurança Alimentar. Disponível em: http://ieham.org/html/docs/Caderno_Segurança_Alimentar.pdf Acesso em 23 de janeiro de 2016. http://ieham.org/html/docs/Caderno_Segurança_Alimentar.pdf 86 Soberania Alimentar, ratificado no Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar em Havana, em 2001, estabelece: Soberania Alimentar é o direito dos povos definirem suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito à alimentação para toda a população com base na pequena e média produção, respeitando suas próprias culturas e a diversidade dos modos camponeses, pesqueiros e indígenas de produção agropecuária, de comercialização e gestão dos espaços rurais, nos quais a mulher desempenha um papel fundamental (...). A Soberania Alimentar é a via para erradicar a fome e a desnutrição e garantir a segurança alimentar duradoura e sustentável para todos os povos.. 168 Este conceito também é adotado pelo movimento da Via Campesina, que esboçou o delineamento deste conceito em 1996, durante Cúpula Mundial de Alimentação. 1.3.3. Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e de Conselhos Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional Estaduais A mobilização social no entorno da Cúpula Mundial de Alimentação foi a semente da qual nasceu, a partir da organização de cerca de cinquenta entidades da sociedade civil, o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. As iniciativas relacionadas à SAN, que teriam tido relativa estagnação com a extinção do CONSEA, são retomadas com a realização da Cúpula. Francisco Menezes relembra: Pós-Cúpula o movimento da sociedade vem bastante fortalecido. Nós fomos provavelmente a delegação de maior expressão. Tinha vindo já aquele acúmulo da campanha contra a fome. Nós combinamos um esquema de conferência telefônica, não existia Skype na época, em que várias pessoas, de diferentes organizações, começavam a planejar de que forma atuar, como planejar as políticas... e isso culmina na criação do Fórum Brasileiro de Soberania Alimentar e Nutricional. Em uma reunião em São Paulo a gente decide pela formação do Fórum, que existe até hoje. (...)169 (Grifo nosso) 168 MALUF, Renato S. Segurança Alimentar e Nutricional. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. p. 23 169 Trecho da entrevista a nós concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE 87 O objetivo do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional é o de contribuir para a mobilização da sociedade civil na luta por soberania e segurança alimentar e nutricional, promovendo articulações entre redes, organizações e movimentos sociais 170 . Assim, a criação do FBSSAN viria, justamente, suprir a ausência de um espaço de atuação e discussão da temática de SAN em um governo caracterizado por políticas neoliberais. Maria Emília Pacheco, ex-presidente do CONSEA, destaca a importância do FBSSAN: (...) eu reputo da maior importância o papel exercido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional. Porque o Fórum estava antes e está durante esta história. Eu digo antes e durante a existência do CONSEA, por exemplo. O Fórum sempre procurou, na sua trajetória, influenciar nos rumos da política através do CONSEA e tomando também iniciativas. Eu me lembro, por exemplo, de um Seminário que nós fizemos sobre alimentação escolar, isso foi quando o Chico Menezes era presidente do CONSEA e foi extremamente importante porque nós pudemos ter um conjunto de fundamentação econômica, política, social e na horaque nós entramos no debate sobre a atual lei, sobre a feição atual do PNAE, nós tínhamos muito subsídios para dar e acompanhamos muito de perto por dentro do CONSEA e tendo o Fórum contribuído muito nisso. Outro momento também fizemos um bom debate, um bom seminário do Fórum sobre o Bolsa Família, os critérios do Bolsa Família, o funcionamento, enfim...171 Foi justamente no contexto de criação do FBSSAN, que foram criados os primeiros CONSEAs Estaduais. A extinção do CONSEA Nacional teria minado o acesso de diferentes atores sociais aos processos de construção e de decisão das politicas públicas de SAN e a criação dos CONSEAs Estaduais poderia contribuir para a reversão deste quadro. Flavio Valente elucida: Foi nessa época que a gente criou os Conselhos (Estaduais). O Itamar criou o Conselho em Minas e o Dom Mauro virou presidente do CONSEA em Minas. A nossa ideia era começar a criar os CONSEAs Estaduais e eventualmente reconstruir o CONSEA Nacional, que havia sido extinto e o Fórum foi criado exatamente para articular essas posições. E o Fórum teve um papel importante de fazer as reuniões, fazer a reunião nacional, fazer as reuniões 170 Disponível em: www.fbssan.org.br. Acesso em agosto de 2017. 171 Trecho da entrevista a nós concedida por Maria Emília Pacheco em 03 de junho de 2016 na Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) http://www.fbssan.org.br/ 88 estaduais durante o período todo, que acabou tendo um impacto importante de mobilização no período eleitoral em 2000172. Francisco Menezes relembra como se deu as visitas aos Estados para criação dos CONSEAs Estaduais, que ocorreu justamente na época de eleição dos novos governadores: O Fórum planeja iniciar sua ação política, de tentativa de incidência nas políticas, mas nós fomos surpreendidos pela própria conjuntura, porque ocorreram as eleições que reelegeram o Fernando Henrique, mas também de diversos governos estaduais e o governo Fernando Henrique ganhou em diversos Estados. Então nós procuramos com os governadores, que poderiam ser receptivos a uma proposta de dar continuidade na ênfase da questão da Segurança Alimentar e Nutricional. Visitamos vários deles. Eu, particularmente, estive no Rio Grande do Sul com o Olívio Dutra, no Acre com o Jorge Viana, em Minas Gerais com o Itamar Franco e no Rio de Janeiro com o Garotinho. Eu já conhecia o Garotinho de muito antes porque o Garotinho foi do PT e nessa época eu fui assessor dele quando ele estava em Campos, na tentativa de montar um grupo agrário. A gente percorreu... e foram fundados os diversos CONSEAs Estaduais. A gente fez um esforço, um exercício para que aquilo que tinha sido experimentado no primeiro CONSEA se reproduzisse: a participação da sociedade e a incidência nas políticas públicas dos Estados. Não havia, claro, o componente nacional. O que havia era um pequeno grupo dentro do Comunidade Solidária durante o primeiro governo, e no segundo governo não teve continuidade173. Segundo Menezes, o FBSSAN, recém-criado, teve um papel decisivo na iniciativa de criação dos CONSEAs Estaduais, fazendo experimentar nessas cidades a formulação e gestão de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional pela via da ação conjunta de governos e sociedade174. Dom Mauro Morelli não participou da fundação do FBSSAN, mas esteve à frente da criação do primeiro CONSEA Estadual, o CONSEA de Minas Gerais. Dom Mauro Morelli afirma: Naquele processo em 1999, nós criamos CONSEAs em vários Estados, no Rio e aqui em Minas. Tinha o Fórum Brasileiro e criaram o Fórum Mineiro. Eu vim conversar com o Itamar para 172 Trecho da entrevista a nós concedida por Flavio Valente em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional 173 Trecho da entrevista a nós concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE 174 VEIGA, Adriana. Fome Zero: Uma História Brasileira. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Assessoria Fome Zero, v. 1, 2010. p. 122 89 retomar e ele saber o que era... Quando eu volto aqui o Itamar estava com o decreto pronto me nomeando presidente. Eu disse: ‘ô Itamar, eu não sou dessa região. Aqui é Minas, Espírito Santo é uma região, o Rio é outra. Fica ruim para mim. Eu sou membro da Conferência Nacional (se refere à CNBB), mas a região é outra’ e ele: ‘não, mas está feito’. Ele e o Fórum fizeram um acordo e eu acabei ficando presidente do CONSEA de Minas até o ano passado, no governo Aécio. Nós implantamos 25 comissões no Estado, tivemos muitas coisas interessantes, fizemos as Conferências... a primeira lei orgânica de Estado veio daqui175. Élido Bonomo, conhecido como Lelinho, atual presidente do CONSEA Estadual de Minas Gerais, relembra a criação do CONSEA mineiro: (...) o Estado de Minas Gerais, a lei nossa é de 2005, é um ano antes da lei nacional, que é de 2006, a Lei Orgânica de Minas Gerais. Mas a gente fica entre dez e quinze anos sem ter política governamental. Do início da década de 1990 a 2000 não havia política de Estado. O nosso de Minas foi o primeiro Conselho de Segurança Alimentar. No governo Itamar Franco, Dom Mauro aparece lá. Porque o Itamar Franco tem aquela história da criação do CONSEA em 1993, e em 1994 ele cai no governo tucano, no governo Fernando Henrique. Mas o Itamar assume Minas Gerais e ele, junto com alguma experiência que ele já tinha, e Dom Mauro, que tinha sido o primeiro presidente do CONSEA, junto com ele e com a presença do Fórum Mineiro começam a levar para dentro do governo de Minas essa perspectiva. (...) entre 2000 e 2005, em Minas Gerais a gente já tinha um pouco essas experiências. São experiências várias. Tem a REDE, que já tinha experiência em agroecologia e em tecnologias sociais, tem o CTA (Centro de Tecnologias Alternativas) Zona da Mata, então já tinham algumas organizações que já vinham fazendo algumas coisas de Segurança Alimentar. Então juntam algumas pessoas da academia, alguns militantes, dando uma certa formatação de 1999 em diante, especificamente em Minas Gerais176. O Conselho Estadual de SAN de Minas Gerais foi o primeiro a ser criado no Brasil, pelo Decreto 40.324/1999, tendo realizado a primeira Conferencia Estadual em 2001. O pioneirismo de Minas Gerais também se deu com a aprovação da primeira Lei Estadual de SAN do Brasil. De acordo com Valente, em 1999 o CONSEA de Minas Gerais teria produzido um mapa detalhado da insegurança alimentar e nutricional e das iniciativas relativas ao tema em desenvolvimento no Estado. Um plano de ação foi aprovado e várias ações integradas teriam sido colocadas em 175 Trecho da entrevista a nós concedida por Dom Mauro Morelli em 20 de novembro de 2017 na Paróquia São Roque, no município de São Roque de Minas MG 176 Trecho da entrevista a nós concedida por Élido Bonomo em 12 de dezembro de 2017 via skype 90 prática, dentre elas a criação do Instituto da Terra, encarregado da aceleração da reforma agrária e fortalecimento da agricultura familiar no Estado177. 177 VALENTE, Flavio L.S.. Do combate à fome à segurança alimentar e nutricional: o direito à alimentação adequada. In: VALENTE, Flávio. (org). Direito Humano à Alimentação Adequada: desafios e conquistas. São Paulo: Cortez, 2002. p. 159 91 2. CRIAÇÃO INSTITUCIONAL DO SISTEMA NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL A partir de 2003 com a eleição de Lula para a Presidência da República, a temática da SAN ganha uma nova abordagem, tendo como principal estratégia o Programa Fome Zero, que teria fornecido asbases para a institucionalização da SAN na agenda das politicas públicas brasileiras. Um dos instrumentos utilizados para mensurar o grau de segurança alimentar dos brasileiros é a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, empregada na Pesquisa Nacional por Amostras por Domicílio (PNAD), que comprovou estatisticamente, que entre os anos de 2004 e 2013 aumentou a segurança alimentar dos brasileiros. Este feito é fruto de inúmeras conquistas, dentre elas a recriação do CONSEA e a criação do MDS, que pleitearam o fortalecimento de muitos programas sociais, com destaque para o PAA e o PNAE. Embora se mensure estatisticamente o declínio da fome e da desnutrição, alguns aspectos devem ser considerados para que se prevaleçam condições alimentares adequadas e com respeito à cultura alimentar. Tais princípios são desenvolvidos por Maluf e Menezes178, que os condicionam ao êxito da SAN no Brasil. A positivação de marcos legais como a Lei Orgânica de SAN e a inclusão do direito à alimentação no rol dos direitos fundamentais da Constituição Federal através da Emenda Constitucional 64/2010 teriam contribuído para o fortalecimento da temática e para maior comprometimento do Estado com as questões da SAN. 2.1. Bases conceituais para a institucionalização O amadurecimento do enfoque da SAN no Brasil se efetiva nas políticas públicas, que devem ser formuladas, monitoradas e avaliadas em parceria do Estado com a sociedade. De acordo com Valente, a partir da I Conferência Nacional de SAN, realizada em 1994, consolidou-se a entendimento de que a garantia da SAN deve ser um dos eixos de desenvolvimento social para o Brasil e que exige, para sua 178 MALUF, Renato, MENEZES, Francisco. Caderno Segurança Alimentar. p. 2 Disponível em: http://ieham.org/html/docs/Caderno_Segurança_Alimentar.pdf Acesso em janeiro de 2016 http://ieham.org/html/docs/Caderno_Segurança_Alimentar.pdf 92 implementação, uma parceria efetiva entre governo e sociedade civil, sem subordinação e com complementariade de ações179. Nesse sentido, Maluf entende que a incorporação da SAN entre os objetivos que orientam as escolhas estratégicas de um país contribui para implementar processos de qualidade superior em termos da combinação de resultados econômicos com equidade social, sustentabilidade ambiental e valorização cultural180. Estes três princípios são tratados por Maluf e Menezes181 , que definem as condições necessárias para que se prevaleçam condições alimentares satisfatórias. Segundo os autores, a equidade social estaria relacionada ao acesso equitativo aos alimentos de boa qualidade nutricional e que sejam isentos de componentes químicos que possam prejudicar a saúde humana. Estes dois elementos seriam de grande importância no contexto atual de desbalanceamento nutricional das dietas alimentares e de envenenamento dos alimentos em nome de uma maior produtividade agrícola ou da utilização de tecnologias cujos efeitos sobre a saúde humana permanecem desconhecidos. A valorização cultural se refere ao respeito aos hábitos e à cultura alimentar locais, ou seja, que se considere a dimensão do patrimônio cultural intrínseco às preferências alimentares das comunidades locais e às suas práticas de preparo e consumo. Para Maluf e Menezes: Cada sociedade, ao longo da sua história, construiu (e continua a construir) um conjunto de práticas alimentares que constituem seu patrimônio cultural. São estas tradições, peculiares a cada grupo social, que permitem às pessoas se reconhecerem como integrantes do mesmo tecido social. Estas escolhas alimentares e estas práticas de cozinha estiveram sempre associadas à região e às condições locais de existência. Dentre todos os elementos que compõem a cadeia alimentar são as diferentes cozinhas que melhor exprimem as tradições e costumes de uma sociedade182. Para os autores, observamos atualmente uma ruptura radical desses sistemas alimentares e para que as tradições alimentares se perpetuem seria fundamental que cada sociedade conhecesse sua história agrícola e alimentar. 179 VALENTE, Flávio. (org) Direito Humano à Alimentação Adequada: desafios e conquistas. São Paulo: Cortez, 2002. p. 159 180 MALUF, Renato S. Segurança Alimentar e Nutricional. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. p. 11 181 MALUF, Renato, MENEZES, Francisco. Caderno Segurança Alimentar. p. 2 Disponível em: http://ieham.org/html/docs/Caderno_Segurança_Alimentar.pdf Acesso em 23 de janeiro de 2016. 182 Idem. p. 37 http://ieham.org/html/docs/Caderno_Segurança_Alimentar.pdf 93 Por fim, a sustentabilidade ambiental teria relação com a sustentabilidade do sistema alimentar, pois a segurança alimentar dependeria não apenas da existência de um sistema que garanta, presentemente, a produção, distribuição e consumo de alimentos em quantidade e qualidade adequadas, mas que também não venha a comprometer a mesma capacidade futura de produção, distribuição e consumo. Além destes três princípios condicionantes de uma alimentação satisfatória, em publicação que trata do conceito de SAN183, Maluf elenca cinco princípios que devem nortear as ações e políticas públicas de SAN, que seriam: i) intersetorialidade; ii) ações estruturantes e medidas emergenciais; iii) descentralização das ações e articulação entre orçamento e gestão, iv) participação social; e v) equidade de acesso à alimentação adequada. A intersetorialidade estaria imbricada no conceito de SAN, que por seu caráter suprasetorial deveria nortear a implementação de ações setoriais a partir de uma compreensão integrada da questão alimentar e nutricional com cada setor atuando em função dos objetivos mais amplos da SAN 184 . A intersetorialidade poderia ser compreendida como uma articulação estratégica voltada à convergência de iniciativas e integração de recursos gerenciais, financeiros e humanos para organizar de maneira mais colaborativa, articulada e flexível o padrão tradicionalmente fragmentado das estruturas burocráticas institucionais públicas185. A política de SAN lida de forma integrada com os fatores determinantes da situação alimentar e nutricional de uma população, que por sua vez são de naturezas distintas – econômica, psico- social, ética, política, cultural, etc. Portanto, a inserção deste componente em cada política setorial implica numa mudança de lógica de atuação e na revisão de valores sociais, que impõe necessariamente o diálogo entre os diversos setores envolvidos. Impõe, antes de tudo um questionamento das próprias contradições da sociedade que se expressam nos objetivos setoriais mais específicos e que fazem com que muitas vezes as ações de determinados setores amortizem ou mesmo anulem o impacto dos demais186. 183 MALUF, Renato S. Segurança Alimentar e Nutricional. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. p. 122 e 123 184 BURLANDY, Luciene (org.), MALUF, Renato (org.) e MAGALHÃES, R. (org.). 2006. Construção e promoção de sistemas locais de segurança alimentar e nutricional: aspectos produtivos, de consumo, nutricional e de políticas públicas. Rio de Janeiro : Ceresan/UFRRJ, 2006. p. 22 185 BRASIL. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Documento de Referência). Brasília: CONSEA, 2015 186 BURLANDY, Luciene (org.), MALUF, Renato (org.) e MAGALHÃES, R. (org.). Construção e promoção de sistemas locais de segurança alimentar e nutricional: aspectos produtivos, de consumo, nutricional e de políticas públicas. Rio de Janeiro : Ceresan/UFRRJ, 2006. p. 24 94 A perspectiva da gestão intersetorial como lógica e forma principal de atuação nas ações de SAN é nova no Brasil, por isso se destaca como grandedesafio de mobilizar os setores para agirem de forma coordenada e articulada, dentro de uma realidade onde a cultura hegemônica é a ação setorizada.187 As ações e programas se dariam, de acordo com Maluf, por meio de espaços e mecanismos institucionais de aproximação entre os diversos setores do governo e destes com organizações da sociedade civil. A articulação entre ações estruturantes e medidas emergenciais se daria através da conjugação de medidas diretas e imediatas de garantia de acesso à alimentação adequada com ações que ampliassem a capacidade de subsistência autônoma da população. Para Maluf e Menezes, não podem ser exercidas políticas de natureza estrutural sem que sejam considerados os efeitos imediatos que serão provocados sobre as populações que estão em seu âmbito. As políticas emergenciais, se concretizam por programas e ações públicas dirigidas a grupos populacionais específicos, com o objetivo de suplementar carências alimentares e nutricionais e que são qualificadas como medidas assistenciais de natureza compensatória. Tais políticas emergenciais de segurança alimentar seriam indispensáveis para o enfrentamento de problemas que não poderiam esperar o tempo de resposta de medidas estruturais que estariam sendo tomadas simultaneamente. Estas medidas emergenciais devem trazer obrigatoriamente componentes ligados a uma transformação estrutural das condições geradoras das situações que as justificam188. A descentralização das ações e articulação entre orçamento e gestão se daria pelo estabelecimento dos papéis e atribuições das esferas de governo, prevendo arenas e mecanismos de integração intergovernamental e com as organizações sociais, bem como mecanismos de continuidade das ações. Os termos do pacto federativo – as relações entre as três esferas de governo – devem se pautar pelo princípio da subsidiariedade que determina que as funções públicas sejam exercidas, sempre que possível, pelos níveis sub-nacionais de governo e que os níveis mais abrangentes só exerçam aquelas funções que os demais não forem 187 BRASIL. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Documento de Referência). Brasília: CONSEA, 2015. p. 38 188 MALUF, Renato., MENEZES, Francisco. Caderno Segurança Alimentar. p. 2 Disponível em: http://ieham.org/html/docs/Caderno_Segurança_Alimentar.pdf Acesso em 30 de janeiro de 2018. http://ieham.org/html/docs/Caderno_Segurança_Alimentar.pdf 95 capazes. A redistribuição do financiamento e gestão no âmbito de um sistema federativo pressupõe também a adesão dos níveis de menor abrangência, uma vez que estes dispõem de autonomia política e fiscal189. A sociedade civil sempre foi protagonista em todos os momentos históricos e políticos da organização das ações de SAN no Brasil e sua participação se daria por ações conjuntas com o Estado na formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas nas diferentes fases da cadeia alimentar e em todas as esferas de governo (nacional, estadual e municipal), assegurando qualidade e fluxo das informações e mecanismos de responsabilização dos gestores e demais atores sociais. As políticas de segurança alimentar devem se constituir em um espaço privilegiado de exercício do interesse público, o que pressupõe efetivo envolvimento da sociedade civil. Ou seja, não se constitui num assunto exclusivamente governamental, devendo garantir a criação de novos espaços institucionais que assegurem a constituição de efetivas parcerias e que sejam adequados à articulação de iniciativas em áreas bastante diversas190. Embora a participação da sociedade civil seja essencial nas ações e políticas de SAN, ainda se faz necessário capacitação dos representantes envolvidos na temática, em especial dos setores mais vulneráveis. Cabe alertar, porém, que entre os elementos a serem introduzidos pelos movimentos sociais e organizações não governamentais nos programas alimentares dos governos e em seus próprios projetos encontra-se, justamente, a ótica da SAN que, raramente, aparece como tal, como demanda espontânea. O objetivo da SAN ainda carece de legitimação social e reconhecimento político-institucional no Brasil. A propósito, é especialmente relevante a capacitação em SAN dos representantes da sociedade civil que integram os diversos conselhos que tratam de questões direta ou indiretamente ligadas às questões alimentares e nutricionais191. É fundamental que a sociedade civil compreenda a temática da SAN para que possa, de fato se envolver nesta agenda. Investir na formação para a construção de 189 BURLANDY, Luciene (org.), MALUF, Renato (org.) e MAGALHÃES, R. (org.). Construção e promoção de sistemas locais de segurança alimentar e nutricional: aspectos produtivos, de consumo, nutricional e de políticas públicas. Rio de Janeiro : CERESAN/UFRRJ, 2006. p. 34 190 MALUF, Renato., MENEZES, Francisco. Caderno Segurança Alimentar. p. 43 Disponível em: http://ieham.org/html/docs/Caderno_Segurança_Alimentar.pdf Acesso em janeiro de 2018. 191 BURLANDY, Luciene (org.), MALUF, Renato (org.) e MAGALHÃES, R. (org.). Construção e promoção de sistemas locais de segurança alimentar e nutricional: aspectos produtivos, de consumo, nutricional e de políticas públicas. Rio de Janeiro : Ceresan/UFRRJ, 2006. p. 33 http://ieham.org/html/docs/Caderno_Segurança_Alimentar.pdf 96 saberes e práticas acerca da SAN nos Estados e municípios, dialogando com os equipamentos públicos (escolas, creches, unidades básicas de saúde, restaurantes populares, cozinhas comunitárias, programas sociais, entre outros) seria um caminho para promover uma cultura de direitos que identifique e signifique para o cidadão a alimentação adequada e saudável não como uma mercadoria, mas como um dos direitos sociais. 192 Por fim, a equidade se daria, conforme já mencionado, na equidade do acesso à alimentação adequada, dado que a disponibilidade de alimentos deve levar em conta os aspectos sociais, econômicos, espaciais e ambientais da produção e do abastecimento alimentar. As condições em que se dá o acesso aos alimentos pela população é também determinada pelas formas sociais sob as quais os alimentos são produzidos e ofertados (tipo de exploração agrícola, grau de concentração econômica do processamento agroindustrial e da distribuição comercial, padrões de concorrência nos mercados de alimentos, dentre outros). Maluf e Menezes argumentam que o apoio aos pequenos e médios empreendimentos rurais e urbanos dedicados ao cultivo, transformação e comercialização de produtos agroalimentares ampliam a disponibilidade de alimentos de qualidade de um modo menos custoso, valorizando a diversidade nos hábitos de cultivo e de consumo193. Élido Bonomo, atual presidente do CONSEA de Minas Gerais, enfatiza que o investimento na agricultura familiar seria o melhor caminho para a equidade no acesso ao alimento saudável: Para ter um abastecimento de alimentos que nós chamamos de saudável, nós acreditamos que tem que ser via a produção de alimentos da agricultura familiar com viés para a agroecologia. A agricultura familiar usa veneno, mas muito menos do que o agronegócio. Então tem que existir a agricultura familiar para a gente ter um alimento mais saudável e tem que ter estímulo à Politica Nacional de Agroecologia e Produção de Orgânico e o Plano Nacional de Agroecologia de Orgânico, que dentre elas tem várias outras coisas. Dentre elas tem que investir em assistência técnica com este perfil e em recursos para acesso ao PRONAF para 192 BRASIL. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). I ConferênciaNacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Documento de Referência). Brasília: CONSEA, 2015. p. 39 193 MALUF, Renato., MENEZES, Francisco. Caderno Segurança Alimentar. p. 10 Disponível em: http://ieham.org/html/docs/Caderno_Segurança_Alimentar.pdf Acesso em janeiro de 2018. 193 BURLANDY, Luciene (org.), MALUF, Renato (org.) e MAGALHÃES, R. (org.). Construção e promoção de sistemas locais de segurança alimentar e nutricional: aspectos produtivos, de consumo, nutricional e de políticas públicas. Rio de Janeiro : Ceresan/UFRRJ, 2006. http://ieham.org/html/docs/Caderno_Segurança_Alimentar.pdf 97 os agricultores melhorarem suas tecnologias e sua produção. Não é isto o que a gente está vendo. Os recursos estão diminuindo para o ano que vem194. Nesse sentido, o fortalecimento da agricultura familiar se mostraria como uma forma mais equitativa de produzir os alimentos, além de dar a oportunidade de inclusão a este grupo que por muitos anos permaneceu à margem das políticas públicas. 2.2. Criação do Projeto Fome Zero A forma como se organiza a produção agroalimentar de um país reflete as suas opções de desenvolvimento 195 . Tendo como principal objetivo apresentar uma proposta de Política de Segurança Alimentar e Nutricional participativa e inserida no eixo principal do desenvolvimento socioeconômico brasileiro, incluindo o fortalecimento da agricultura familiar, desenvlvimento rural, plano de reforma agrária, superação do analfabetismo, dentre outros, foi lançado por iniciativa do então candidato à presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, pelo PT, em outubro de 2001, o “Projeto Fome Zero: Uma Proposta de Política de Segurança Alimentar para o Brasil”, sob coordenação de José Graziano da Silva196. O engajamento político de Lula com a temática da SAN remonta ao Governo Paralelo, em 1989, que se tornaria o Instituto Cidadania no ano seguinte. Desde então teria havido um esforço do PT em estruturar um projeto de transformação da sociedade brasileira, que se concretizaria em 2001, no Projeto Fome Zero. Em entrevista de José Graziano da Silva em livro que aborda a trajetória do Programa Fome Zero, ele relembra a maneira como a temática da fome no Brasil ganhou destaque na campanha de Lula, posteriormente transformada na principal política pública de seu governo: 194 Trecho da entrevista a nós concedida por Élido Bonomo em 12 de dezembro de 2017 via skype 195 MALUF, Renato S. Mercados agroalimentares e a agricultura familiar no Brasil: agregação de valor, cadeias integradas e circuitos regionais. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 25, n. 1. p. 299-322, abril 2004. p. 301. 196 José Graziano da Silva se tornaria Ministro do extinto Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome 98 Outro momento importante se deu quando o Lula falou da fome no Jornal Nacional (nas entrevistas que eram feitas com cada um dos candidatos a presidência em 2002). O Ricardo Kotscho, assessor de imprensa que também sempre acompanhava o Lula, comentou antes da entrevista que eles iriam perguntar qual seria a primeira medida e maior prioridade se ele fosse eleito. E Lula disse que já sabia o que ira responder, mas nós não sabíamos, literalmente fomos surpreendidos no ar. E aconteceu mais uma dessas coincidências da política. Nós vínhamos tentando achar qual seria o mote central da campanha e todo mundo achava que o mote deveria ser emprego, por causa da taxa alta de desemprego da época. Tinha havido uma crise e todo mundo falava: “Emprego! Emprego! Primeiro emprego! Melhor emprego! Mulher no emprego!”. Inventaram vários programas relacionados ao emprego. Essa fala do Lula no Jornal Nacional, que a prioridade era acabar com a fome, coincidiu com uma série de reportagens da emissora – do que começa no domingo e passa a semana inteira. No início da série entrevistaram uma velhinha no Vale do Jequitinhonha que foi filmada com a panela vazia, toda arrebentada, sem cabo, sem nada, dizendo que não havia nada para comer. Voltaram para fechar a matéria com a velhinha e ela estava morta. Foi uma comoção nacional. A partir daí começou o embate: o próprio presidente Fernando Henrique veio a público (até então ninguém nunca tinha respondido ao PT) e disse que estávamos querendo inventar que no nosso Brasil tinha fome, ‘Brasil n’ai pas famine’, usou essa expressão em francês, me lembro bem porque essa expressão famine significa fome massiva, como a fome em Biafra. Hoje não é politicamente correto, mas antigamente se traduzia por ‘fome africana’. O português não tem uma tradução especial para famine, em português, fome é fome, acabou! Fui buscar no livro do Amartya Sen, que era um texto clássico na época, essa diferença entre famine e outros tipos de fome, o que hoje qualquer livro menciona. Mas ver um Presidente, que havia acabado com o Conselho de Segurança Alimentar, negar a existência da fome, foi o gancho. Começamos a juntar as peças: o CONSEA tinha acabado, a cesta básica tinha acabado e existia uma concepção arraigada no governo FHC de que a questão da alimentação não era um tema público, mas sim privado197. Há, desta forma, uma mobilização conjunta de organizações populares, ONGs, institutos de pesquisa, especialistas e movimentos sociais ligados à SAN, que via Instituto Cidadania, teriam contribuído na elaboração do Projeto Fome Zero. Christiane Costa, relembra ter sido convidada pelo Instituto Cidadania a participar do Projeto Fome Zero. Mas antes disso, discorre sobre sua participação na Cúpula Mundial de Alimentação, que teria sido fundamental para a retomada do debate público sobre SAN no Brasil. 197 Trecho de entrevista de José Graziano da Silva, retirado de: ARANHA, Adriana Veiga. Fome Zero: uma história brasileira. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Assessoria Fome Zero, v. 1, 2010. p. 99 99 Em Roma, que seria em 1996, eu fui nessa delegação do Brasil. A gente era um grupo grande, era o maior grupo de fora da Europa. Nós éramos mais ou menos umas cinquenta pessoas representando movimentos, ONGs e na volta e me lembro de ter ficado muito impressionada com a quantidade de países que tinham políticas de Segurança Alimentar, países até mais pobres do que o Brasil. Então na volta, duas coisas: uma eu comecei a escrever um projeto. Como eu atuava em uma ONG que tinha como objeto a cidade, pensar a cidade, eu escrevi um projeto pensando o que seria uma política municipal de Segurança Alimentar, isso antes do Fome Zero. E a segunda, é que nós começamos a pensar na criação do Fórum. Se formou um grupo de trabalho dessas pessoas que tinham ido participar da Cúpula e a gente começou a trabalhar, eu me lembro que era o começo da internet e formou esse grupo e ao mesmo tempo foi aprovado esse projeto de pesquisa que eu escrevi, com financiamento da Christian Aid e eu convidei o Renato Maluf para trabalhar comigo. Ele estava voltando de um pós-doc na Inglaterra e aí nós começamos a fazer seminários. Dividimos o trabalho em eixos, eixo de produção, eixo de abastecimento, eixo de educação, saúde e consumo, programas específicos e fomos levantando experiências concretas no Brasil, onde a prefeitura estava fazendo alguma coisa junto com a sociedade civil nestes eixos. Levantamos e fizemos acho que quatro pós-paper, que era sistematização dessas experiências e por último a gente fez uma publicação que reunia, que chama ‘Por uma Política Municipal de Segurança Alimentar’. Quando a gente estava terminando de fazer esta publicação, nós recebemos um convite do Instituto Cidadania, que estava elaborando o Projeto Fome Zero e aí nós entregamos esta revista para eles, que ainda nem tinha sido publicada. Integralmente, assim, a colaboração para oFome Zero, que para eles era uma boa, né? Eles estavam refletindo e a gente estava integrando uma reflexão de três anos de trabalho e assim começou o envolvimento no Fome Zero mesmo198. Francisco Menezes relembra ter sido convidado, assim como Christiane Costa, a participar do Projeto Fome Zero, e enfatiza que a proposta inicial do Projeto seria de combate à fome, mas após algumas reuniões e debates, teria se chegado ao consenso de elaboração de uma Política Nacional de SAN: Então em 2001, alguns de nós foram chamados para apoiar a elaboração da proposta do Fome Zero, que começava a ser elaborado no Instituto da Cidadania. Renato (Maluf) foi, Flavio Valente foi, Christiane foi e eu fui também. Dai a gente consegue, porque de inicio era só uma proposta de combate à fome, a gente consegue incorporar a ideia de uma Politica Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. A mim, inclusive foi pedido, porque o documento abria discorrendo sobre o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional, e eu escrevi essa parte conceitual. E começamos a opinar muito na construção daquela 198 Trecho a entrevista a nós concedida por Christiane Costa via skype em 21 de fevereiro de 2018 100 proposta. Quando o Lula ganha a eleição e se decide que o Fome Zero seria uma prioridade, eles montam, antes de o Lula tomar posse, um pequeno grupo para começar a definir as primeiras políticas que seriam implementadas e eu participei desse grupo. Nós tínhamos divergências sobre algumas coisas, mas trabalhávamos199. (Grifo nosso) Flavio Valente, integrante do FBSSAN, que também participou da elaboração do Projeto Fome Zero, é mais enfático em seu relato: O Fome Zero foi elaborado no Instituto Lula com pequeníssima participação do nosso grupo. Ele é elaborado muito mais pelos acadêmicos e pelos amigos do Graziano. Então o Instituto Lula, na época Instituto da Cidadania, elabora uma proposta que encontra uma oposição frontal do movimento, que era uma proposta que tratava a questão da fome como uma questão emergencial, sem nenhuma integração com as políticas públicas. Então o que acaba acontecendo é que há uma situação de conflito mesmo, embate mesmo, dificuldade de diálogo. Nosso amigo Graziano é uma figura meio autoritária, centralizador e ele não queria interferência. As grandes críticas eram de que era um Programa emergencial, não tinha vinculação com as políticas públicas, tinha uma crítica muito grande que era criar os Food Stamps, o tíquetes para usar nos supermercados, ou seja, não trabalhava com as redes alternativas, não trabalhava com os pequenos produtores. E este era o viés do Graziano, ele trabalhava com o agronegócio, ele sempre foi ligado ao agronegócio. Aí bateu de frente, né? Bateu-se, bateu-se, bateu-se que chegou em um ponto que conseguimos mudar o Programa, um pouco. Não saiu mais o food stamps, saiu na forma Bolsa Família. Mas este foi o primeiro embate, tiveram vários outros, no primeiro ano de governo. 200 (Grifo nosso) Não entrevistamos pessoalmente José Graziano da Silva, mas encontramos entrevista por ele concedida em que trata dos debates durante a elaboração do programa Fome Zero e o chamado Food Stamps: Começou então uma segunda versão nacional do Programa, a partir de um projeto no Instituto Cidadania de chamar grupos e discutir cada um dos tópicos, o pessoal da agricultura familiar, o pessoal da nutrição, as diferentes tribos, como chamávamos. Como juntar todos era difícil, fomos montando esse conjunto aos poucos, trabalhando por partes, e fizemos alguns seminários com grupos grandes de discussão geral do projeto. No final do Projeto havia 199 Trecho da entrevista a nós concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE 200 Trecho da entrevista a nós concedida por Flavio Valente em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional 101 uma grande pendência, um grande debate, que era como é que se criava um mecanismo e uma dinâmica de desenvolvimento local? Um dos maiores problemas do desenvolvimento local é que em geral as áreas deprimidas não estão deprimidas por acaso ou por fatores da natureza, mas sim porque existem forças sociais no controle do poder local, que geralmente querem manter aquela situação. Para romper com essa situação não bastava opor o candidato do PT contra todo mundo, às vezes até contra o padre e o professor da escola. Os chamados grotões eram politicamente muito conservadores, porque sofriam uma dominação política muito forte. Para estudar formas de romper essa cerca local, fui passar uns tempos nos EUA pela UNICAMP e andei muito na Califórnia estudando um programa chamado de Food Stamps, que na época atingia mais os mexicanos imigrantes e os negros americanos pobres, mas ainda hoje é um programa que atinge aproximadamente 15 milhões de famílias. É um programa criado após a crise de 1929 pelo Roosevelt, quando existia um grande contingente de pessoas passando fome e uma grande quantidade de alimentos estocados sem consumidores e sem dinheiro para comprá-los. Para vincular a fome com a vontade de comer, tínhamos que estabelecer uma ponte. Essa ponte é o dinheiro, é o poder do dinheiro. O dinheiro cria mercado, essa é a lição dos economistas clássicos. (...) O dinheiro tem que ser dado nas mãos das pessoas e o problema era como fazer o dinheiro chegar às mãos das pessoas sem intermediação clientelística e/ou política. Tínhamos também consciência de que dar o dinheiro nas mãos de pessoas podia não dar certo. Uma coisa é ter uma caderneta de crédito que é utilizada para quitar suas contas, mas ter dinheiro vivo para fazer o que quiser podia não dar certo. Fizemos um debate longo no início do Programa sobre como fazer essa transferência – se condicionada, não condicionada, com ou sem restrições de produtos para comprar, etc. Esse é um dos pontos interessantes do Fome Zero, o fato de ter sido construído aos poucos. Eu trabalhei nele desde 1998. Não só eu, mas também Maya Takagi, Walter Belik e uma equipe que, no final, contava com quase 100 pessoas envolvidas. (...) Essa era a cara do Fome Zero: um Programa em construção e em debate – tudo no Fome Zero não era definitivo. Ele não teve um formato único, o que dava uma grande flexibilidade, mas por outro lado aumentava muito as polêmicas, pois ele se prestou a todo tipo de ataque e cada versão do Fome Zero recebia muitas críticas201. Conforme narrado, foi através de inúmeras reuniões e debates que se constituiu o Projeto Fome Zero, que após se consolidar, ganhou a denominação de Programa Fome Zero (PFZ). O PFZ teria o objetivo de, para além de atuar de forma emergencial, ser uma política de inserção social, de geração de renda, trabalho e 201 Trecho de entrevista de José Graziano da Silva retirado de: ARANHA, Adriana Veiga. Fome Zero: Uma História Brasileira. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Assessoria Fome Zero, v. 1, 2010. p. 98. 102 resgate da auto-estima e da cidadania202. O Programa Fome Zero se torna de fato uma política pública e a partir da vitória eleitoral do presidente Lula no ano de 2003, quando o Governo Federal afirma ser responsabilidade do Estado a garantia da SAN dos brasileiros. De acordo com Menezes e Valente, conforme demonstrado em trechos de suas entrevistas, o PFZ teria ganhado o viés de Política de SAN graças à insistência de seus militantes em defender esta proposta, o que deixa claro que o movimento pela SAN na década de 1990, embora caminhasse em paralelo aos interesses neoliberais do governo federal, amadureceu e se fortaleceu a ponto de conseguir influenciar suapauta política. Os movimentos sociais expressam energias de resistência ao velho que oprime ou de construção do novo que liberte. Ao atuarem em rede, constroem ações coletivas que agem como resistência à exclusão. Através de diagnósticos sobre a realidade, constrem propostas e lutam pela inclusão 203 . Nesse sentido, Írio Conti aborda a importância das entidades da sociedade civil na defesa de uma politica de SAN: E poucos anos depois com a eleição do Lula, o governo Lula digamos assim, compra a ideia, no bom sentido, proposta pelas entidades da sociedade civil, porque já tinha um pool de entidades (...). E o governo Lula adere a esta ideia de traduzir isso em políticas publicas e daí deu no que deu. O acesso à água e as políticas públicas voltadas ao acesso à água. Foi um grande campo que se abriu204. De acordo com Maya Takagi, o desenho institucional do Programa Fome Zero se caracterizou por: - recriação do CONSEA, como órgão de assessoramento do Presidente da Republica; - criação de um Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar (MESA) e Combate à Fome, ligado à Presidência da República, para formular e implementar políticas de segurança alimentar; - amplo processo de mobilização popular, inclusive com a criação de uma assessoria especial na Presidência para cuidar desse tema; 202 BETTO, Frei. A fome como questão política. In: BETTO, Frei. (org) Fome Zero: textos fundamentais. Rio de Janeiro: Garamond editor, 2004. p. 23 203 GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais na Contemporaneidade. Revista Brasileira de Educação. v. 16 n. 47 maio-ago. 2011. p. 336 204 Trecho da entrevista a nós concedida por Írio Conti em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. 103 - utilização de estrutura física, de pessoal e orçamentária da Secretaria Executiva da Comunidade Solidária, que também era vinculada à Presidência da República; - readequação do orçamento em R$1,8 bilhão para as ações do Programa em 2003, por ocasião da análise da relatoria do Projeto de Lei Orçamentária de 2003, na Câmara Federal.205 Observa-se, dessa forma, que além do incremento significativo do orçamento destinado ao Programa Fome Zero, houve o esforço em se articular sociedade civil, CONSEA e poder público nas ações em prol da SAN. 2.3. Recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional O engajamento da sociedade civil coloca a recriação do CONSEA Nacional como condicionante na construção da proposta de uma Politica de SAN. Conforme mostrado, a participção da sociedade civil, em especial na temática da SAN, foi se ampliando com a redemocratização do Brasil e a vitória do Partido dos Trabalhadores na eleições de 2002 teria aberto as instâncias de diálogo com diferentes segmentos sociais. De acordo com Élido Bonomo: Então todo esse acúmulo que foi acadêmico e do envolvimento e paralelo a isso, foram construídos CONSEAs Estaduais com muita dificuldade, então foram se organizando por Estado, dando suporte nacional, que quando volta o CONSEA novamente em 2003, ele volta com muita força e muita sede depois de dez anos de interrupção. Mas aí já tinha uma trajetória e a gente encontra um nascedouro muito rico, porque não eram mais os movimentos sociais falando para surdo, eram os movimentos sociais falando para uma estrutura estatal que tinham agentes da sociedade civil com esta escuta, que inclui povos de comunidades tradicionais, toda a questão dos indígenas, população de rua, população de periferia, população rural, população rural norte, que são as populações de mais insegurança alimentar 206 Renato Maluf argumenta neste mesmo sentido: 205 TAKAGI, Maya. A implementação do Programa Fome Zero em 2003. In: FRANÇA, Caio Galvão; SILVA, José Graziano da, GROSSI, Mauro Eduardo Del; (orgs.) Fome Zero: a experiência brasileira.. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), 2010. p. 53. 206 Trecho da entrevista a nós concedida por Élido Bonomo em 12 de dezembro de 2017 via skype 104 O documento de 1996 foi fundamental, a criação do Fórum Brasileiro em 1998 foi fundamental do ponto de vista da organização da sociedade civil. Tudo isso explica como que quando o Lula ganha a eleição, tem um interlocutor social, que vai para ele e apresenta uma demanda de vários setores da sociedade, e é uma demanda que é acatada, que é de ter um CONSEA e de construir uma política intersetorial e papapá... Então isso não existiria se não tivessem essas coisas nos anos 1990. O governo Lula, o Fome Zero e o CONSEA não nascem do nada, tem uma história pregressa. (...) O marco em 2003, que é a criação do segundo CONSEA, tem ali dois elementos: um é a decisão política, foi central, foi mérito do Lula isso, decisão dele dar prioridade ao tema e criar o Conselho e o Fome Zero. O segundo fator, na minha avaliação, é a maneira como a sociedade civil soube ocupar o espaço que foi aberto. Não é porque eu estive envolvido. Eu não estou falando bem de mim mesmo, estou falando do movimento. Acho que a sociedade civil soube ocupar com sabedoria e competência esse espaço, por isso que se legitimou, por isso que ninguém mexe207. (Grifo nosso) O movimento pela SAN é um movimento ‘de baixo para cima’, concebido pela sociedade civil, que em função de sua militância e persistência, tem paulatinamente sua agenda internalizada no Estado. Este histórico de enfrentamentos é coroado com a recriação, em 2003, do CONSEA, composto por dois terços da sociedade civil e que inclui representantes de inúmeros segmentos sociais. A partir de então, o CONSEA se legitima como um espaço democrático de debates e de construção das políticas públicas de SAN. Flavio Valente reitera a importância precedente do engajamento da sociedade, que teria desembocado na mobilização concreta por políticas públicas de SAN: Antes do CONSEA tem toda uma luta prévia. Essa participação social e a eleição do Lula dentro de uma campanha essencialmente baseada na luta contra a fome, como prioridade central, ou seja, havia uma mobilização popular também, não só da Academia, dos movimentos sociais, mas da massa popular, em defesa de uma proposta como essa, criam condições especificas no Brasil para se estabelecer uma realidade como a do CONSEA e do Sistema e tudo mais. O povo brasileiro deu o mandato ao Lula para ele fazer isso e esperava que ele fizesse.208 A recriação do CONSEA se deu através da edição da Medida Provisória 103, de 1o de janeiro de 2003, em seguida pelo Decreto 4.582, de 30 de janeiro de 2003, 207 Trecho da entrevista a nós concedida por Renato Maluf em 14 de abril de 2016 no Programa do Pós- Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ 208 Trecho da entrevista a nós concedida por Flavio Valente em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional 105 posteriormente convertido na Lei 10.683, de 28 de maio de 2003. Renato Maluf fala do papel do CONSEA não como instância filatrópica, mas de construção de políticas públicas: Desde o primeiro momento havia uma forte preocupação na apresentação de propostas consistentes. A gente teve uma batalha no início importante para dizer que o CONSEA não era um espaço de manifestação de benevolência social, para fazer doação, para gente de boa vontade se manifestar. O CONSEA era para discutr política pública. O governo faz política pública. A gente dizia, o governo não faz 0800. O governo arrecada imposto e faz política pública. Se a modelo, se a Gisele Bundchen quer dar o cheque, dá o cheque, faça a doação. A gente dizia, o CONSEAnão está aqui para pegar cheque de personalidade, o CONSEA está aqui para discutr política pública. E assim a gente foi insistindo. E fazíamos isso entendendo bastante bem a natureza do espaço, os seus limites, um Conselho consultivo, mas suas possibilidades209. Este “novo” CONSEA é caracterizado por sua intersetorialidade e por ser transversal aos Ministérios (supraministerial). Trata-se de um órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República, composto, majoritariamente por membros representantes da sociedade civil em relação aos membros representantes do governo, na proporção de dois terços e um terço, respectivamente, para cada segmento. De acordo com o Documento-Síntese entregue junto ao Projeto Fome Zero: O CONSEA representou uma novidade em termos de mecanismos de governabilidade no país: representantes do primeiro escalão do governo federal e da sociedade civil discutiam propostas que poderiam acelerar o processo de erradicação da pobreza e da miséria. Foram gestadas e/ou viabilizadas propostas de políticas públicas inovadoras, tais como: a descentralização do Programa Nacional de Alimentação Escolar, o Programa Nacional de Geração de Emprego e Renda, a busca de transparência na gestão de recursos públicos e a criação do PRODEA como mecanismo de aproveitamento de estoques públicos de alimentos a ponto de serem perdidos. Mais inovadoras ainda foram as formas de gestão implementadas no processo, com a criação de múltiplos grupos de trabalho mistos (sociedade civil/governo) que acabaram por consolidar uma nova política e cultura de gestão compartilhada de políticas públicas210. 209 Trecho da entrevista à nós concedida por Renato Maluf em 14 de abril de 2016 no Programa do Pós- Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ 210 INSTITUTO CIDADANIA. Projeto Fome Zero: Uma Proposta de Política de Segurança Alimentar para o Brasil. Documento-Síntese. Outubro de 2001. p. 25 106 O presidente do CONSEA é indicado pelo plenário do seu colegiado entre os representantes da sociedade civil e designado pelo Presidente da República. A escolha da presidência do “novo” CONSEA foi arquitetada nos bastidores. Francisco Menezes relata que foi convidado, mas recusou o cargo: Aí houve a decisão sobre quem seria o presidente do CONSEA. Eu lembro que era um domingo, o Graziano me ligou e disse que eu havia sido apontado para ser o primeiro presidente nesse período. Eu levei um susto, evidentemente. Não estava nas minhas cogitações, eu queria ser só conselheiro. (...) Então eu cheguei para o Graziano e falei que eu não achava conveniente eu, que sou uma pessoa desconhecida da opinião pública, o CONSEA começar com esta fragilidade, então eu disse ‘eu estou recusando, eu não estou querendo ser presidente. Eu acho que vocês precisam achar um nome que seja uma figura mais pública para presidir o CONSEA. Eles ficaram um pouco assim, mas depois decidiram211. Dom Mauro Morelli era presidente do CONSEA Estadual de Minas Gerais à época e havia presidido o primeiro CONSEA, em 1993. Em entrevista a nós concedida, conta que esperava ter sido indicado para a presidência do CONSEA Nacional: Mas depois, quando o Lula venceu, nós tínhamos uma equipe com três tendências: o pessoas da UNICAMP, nós do Rio e a Anna (Peliano) encarregada de fazer o Plano de Governo. Daí o Frei Betto entrou, ele tinha tentado derrubar o Gilberto Gil, não conseguiu e foi lá ciscar. (...) No fim da transição, um dia, dois amigos meus, um deputado e o outro empresário, estiveram com o Lula, amigos dele também, e o Lula disse: ‘O Dom Mauro não vai ser mais o Secretário de Segurança Alimentar, ele vai para o CONSEA e na segunda-feira, quando ele anuncia todo o governo ele não anunciou o CONSEA. O CONSEA só foi instalado em fins de janeiro. Eu não fui convidado para a posse do Lula e na segunda-feira, quando ele anunciou todo o governo não apareceu nada. A minha posição seria, eu queria que a professora de Recife, Tânia Bacelar, eu queria que ela fosse Secretária e eu ficaria no Conselho. Nós faríamos uma boa dobradinha. Aí eu escrevi no O Globo um artigo que saiu no dia 1o de janeiro intitulado “Boa Viagem, presidente”. Depois que eu fiquei sabendo de algumas coisas... o Chico Menezes e o Renato Maluf vieram me colocar que o meu nome tinha sido vetado da composição do CONSEA pelos evangélicos, o que é uma bobagem muito grande. Inclusive um dos bispos da Igreja Universal me pôs em uma 211 Trecho da entrevista a nós concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE 107 entrevista na Rede Record e me disse: nós nunca iríamos contra o senhor’. (...) Então depois que eu soube que haviam vetado o meu nome para integrar o CONSEA, ‘O Globo’ publica uma crítica minha e da Zilda Arns nos primeiros dias do mandato do Lula, na página 3. Dom Mauro e Zilda Arns como os primeiros críticos do governo. Aí o Lula falou: ‘telefona para o bispo’. Aí ele me telefonou e eu gritei com ele no telefone, eu nunca fiz isso. Aí eu fui à Brasília e conversei com o José Dirceu, acho que umas duas horas lá no gabinete dele e o Dulci, que era Ministro, ele era mineiro, assistiu. Eu disse: ‘ô menino, antes de você pisar aqui eu já tinha gabinete neste prédio. Se você não leu a medida provisória que o Lula fez no primeiro dia de governo, eu li. É uma grande porcaria o trato que vocês fizeram.212 (Grifo nosso) Assumiu a presidência do CONSEA Luiz Marinho, sindicalista, representante à época da Central Única dos Trabalhadores (CUT), com pouca afinidade na temática de SAN, mas que teria apaziguado as disputas pelo cargo. A partir do funcionamento regular do CONSEA, reuniões ordinárias passaram a ocorrer a cada dois meses, além de várias reuniões extraordinárias213, proporcionando maior articulação entre governo e sociedade civil. De acordo com Francisco Menezes: O CONSEA no primeiro ano, de qualquer modo, foi muito ativo. O Lula dava muita força para o CONSEA. O Lula inclusive queria uma coisa que era impossível: que quinze ministros comparecessem a todas as reuniões do CONSEA. Chamava a atenção deles na frente de todo mundo se não compareciam. Alguns compareciam sempre, porque ficavam assustados com aquela pressão toda. O Cristovam Buarque comparecia sempre. O Ciro Gomes compareceu algumas vezes. O Ministro da Saúde, Humberto Costa. O Ministro do MESA, o Graziano, evidentemente214. Em seu primeiro ano de funcionamento, o CONSEA relatou as seguintes atividades em seu balanço: a) apresentação de proposta para modificar a orientação con- vencional do Plano de Safra 2003/2004, dando prioridade à adoção 212 Trecho da entrevista à nós concedida por Dom Mauro Morelli em 20 de novembro de 2017 na Paróquia São Roque, no município de São Roque de Minas MG. Luiz Dulci, citado, dirigente nacional do PT desde sua fundação em 1980, exerceu o cargo de ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República de 2003 a 2010 213 TAKAGI, Maya. A Implementação do Programa Fome Zero em 2003. In: FRANÇA, Caio Galvão; SILVA, José Graziano da, GROSSI, Mauro Eduardo Del; (orgs.). Fome Zero: A experiência brasileira. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), 2010. p. 79 214 Trecho da entrevista a nós concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE. O entrevistado se refere ao MESA, o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, criado pela Medida Provisória 103, de 1 de janeiro de 2003, depois transformada na Lei 10.683, de 28 de maio de 2003. 108 de medidas de incremento à agricultura familiar e aos assentados da reformaagrária; b) discussão e aprovação do Plano de Ação do Mesa para 2003 e das ações para o Plano Plurianual 2004-2007; c) reivindicação de maior participação na discussão do projeto de lei sobre os transgênicos junto à Casa Civil; d) montagem da Comissão Organizadora da II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; e) orientação para a realização de Conferências Municipais, Estaduais e Regionais preparatórias para a II Conferência Nacional; f) orientação para a formação de conselhos de nível municipal e estadual, a partir da elaboração de um caderno específico, que resultou na formação de 110 conselhos municipais e 22 estaduais até dezembro de 2003. Temas que não constavam na agenda política do antigo governo como incremento da agricultura familiar, programas de transferência de renda e transgênicos, por exemplo, passaram a ser pauta das discussões do CONSEA, que teriam levado ao incremento das articulações do Conselho com organizações da sociedade civil e outros órgãos do poder público. Quanto ao aporte de recursos destinados ao MESA na sua criação, em 2003, foi substancialmente superior ao orçamento total de outros órgãos que atuavam anteriormente na área de nutrição, como a Coordenação-Geral da Política de Alimentação e Nutrição, do Ministério da Saúde, que lidava com o Programa Bolsa Alimentação e com o Programa de Educação Alimentar. O orçamento da Secretaria da Comunidade Solidária, que serviu de base institucinal para a criação do MESA, era de R$ 12,5 milhões e o orçamento previsto para as ações do Programa Fome Zero, em 2003, foi de R$ 1,8 bilhão. Dessa forma, o orçamento total do MESA passou a ser superior ao da maioria das outras pastas, sendo menor apenas que o do Ministério da Saúde e o do Ministério da Educação215. De acordo com Takagi, na Lei Orçamentária Anual (LOA) 2003, foram incluídas três novas ações: i) assistência financeira à família visando à complementação da renda para a compra de alimentos, que se concretizaria no Programa Cartão Alimentação; ii) ações voltadas para a compra da produção de alimentos de agricultores familiares, que se efetivaria através do PAA; iii) ações voltadas para a educação alimentar e melhoria das condições socioeconomicas das 215 TAKAGI, Maya. A implementação do Programa Fome Zero em 2003. In: FRANÇA, Caio Galvão; SILVA, José Graziano da, GROSSI, Mauro Eduardo Del; (orgs.). Fome Zero: A experiência brasileira. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), 2010. p. 54-55. 109 famílias, que incluiria os restaurantes populares, bancos de alimentos e construção das cisternas do semiárido nordestino216. 2.4. Criação do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar, remanejado para Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome O Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA) foi o primeiro Ministério, no Brasil, criado com a finalidade exclusiva de combater a fome e a miséria, tendo como Ministro José Graziano da Silva. A criação do MESA teve caráter emergencial, de forma a possibilitar que fossem implementadas, imediata e simultaneamente, um conjunto de políticas por vários ógãos do governo, além de articulá-las nas diferentes instâncias governamentais (federal, estadual, municipal) e com as ações de entidades da sociedade civil. A criação de um Ministério com a atribuição exclusiva para tratar da SAN não teria sido bem recebida pelos militantes da temática, que defendiam sua intersetorialidade. Maluf recorda: A princípio nós fomos contra a criação do Ministério Extraordinário. A gente achava que Segurança Alimentar não deveria ter ministério não... Tinha que ser um tema intersetorial. Aí nós criamos, estabelecemos uma interlocução com a equipe de transição, daí já era com o Graziano. Ele fez valer a proposta do MESA, passou, o Lula decidiu que sim, então o que a gente fez a partir desse momento foi começar a trabalhar a ideia do CONSEA. Então foi todo esse período da negociação com a equipe de transição, eles montando lá o Fome Zero. Nós do Fórum tínhamos uma concepção... nosso temor era que ao criar um Ministério os outros Ministérios se desobrigariam. E de fato, logo houve manifestações nessa direção. “Ah, esse negócio de segurança alimentar é lá com o Graziano”, o Ministério da Saúde falando. Então o temor de setorializar parecia se confirmar, né? Tanto é que durou um ano, um ano e pouco já criaram o MDS, que reuniu os programas sociais e o CONSEA sobreviveu217. Francisco Menezes reitera o argumento de Maluf: 216 TAKAGI, Maya. A implementação do Programa Fome Zero em 2003. In: FRANÇA, Caio Galvão; SILVA, José Graziano da, GROSSI, Mauro Eduardo Del; (orgs.). Fome Zero: A experiência brasileira. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), 2010. p. 54. 217 Trecho da entrevista a nós concedida por Renato Maluf em 14 de abril de 2016 no Programa do Pós- Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ 110 A gente achava que não deveria ser um Ministério, a gente achava que deveria ser uma Secretaria diretamente ligada ao Presidente da República para dar essa prioridade. Nisso a gente foi derrotado pelo Graziano e outros que estavam a frente do Fome Zero. Eles achavam que isto daria mais força. Nós achávamos o contrário, que precisava o Presidente ter uma presença muito forte. Nessa época eu comecei a ter contato com o Lula, eu não conhecia o Lula. Conhecia só de passagem, o Lula participava de algumas reuniões. Então uma vez eleito o Lula nós passamos uns dois meses trabalhando na proposta e também trabalhando a proposta de recriação do CONSEA porque o CONSEA tinha sido extinto pelo Fernando Henrique e quando começou a se elaborar a proposta lá no Instituto Cidadania, a proposta do Fome Zero, não se colocava o CONSEA não. Mas depois o Fórum Brasileiro forçou, eles aceitaram e entrou na proposta do Fome Zero. Depois eles gostaram da ideia e passaram a apoiar218. Sobre a importância da intersetorialidade nas políticas de SAN, Elisabetta Rancine, atual presidente do CONSEA Nacional, afirma: Acho que não existe garantia de Segurança Alimentar e Nutricional sem transversalidade, sem intersetorialidade. É uma ilusão achar que um setor só de governo resolve o problema. E do ponto de vista da sociedade, a diversidade da participação social com diferentes demandas, com diferentes perspectivas e, portanto, diferentes soluções, também é essencial. Então esse encontro entre a intersetorialidade do Estado e a diversidade da participação e do controle social é que podem gerar um espaço de articulação, decisão e implementação que possam vir a garantir, de uma maneira sustentável, a Segurança Alimentar e Nutricional. Você tem ações e demandas que estão ligadas desde a posse da terra, acesso à sementes nativas, modos de produção sustentáveis, processo de capilarização e localização das estratégias de abastecimento e de consumo, as formas de comer, as formas de preparar os alimentos, etc., então isso perpassa as diferentes áreas de conhecimento, diferentes setores de inserção social e consequentemente diferentes saberes e práticas. e então, para mim, não tem como pensar garantia e realização do direito humano à alimentação adequada sem pensar nessa multidimensionalidade.219 O caráter supraministerial do CONSEA o torna o principal órgão articulador entre o governo e a sociedade civil na proposição de diretrizes para as ações na área da SAN. 218 Trecho da entrevista a nós concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE 219 Trecho da entrevista a nós concedida por ElisabettaRancine em 26 de março de 2018 via telefone. 111 Dada a insistência dos militantes de SAN na transversalidade inerente à temática, em janeiro de 2004, o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Nutricional é extinto, dando lugar ao Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que passa a incorporar dois órgãos recém-criados em 2003: o Ministério da Assistência Social e a Secretaria Executiva do Bolsa Família220. Dessa forma, o MDS unifica três estruturas: o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Nutricional, o Ministério da Assistência Social e a Secretaria Executiva do Conselho Gestor Interministerial do Programa Bolsa Família. 221 O MDS foi criado pela lei 10.869/2004, mesma lei que extinguiu o antigo Conselho do Programa Comunidade Solidária. Patrus Ananias foi nomeado ministro do MDS, onde permaneceu até março de 2010. Em entrevista, afirma que o MDS teria como uma de suas funções integrar as ações e políticas de SAN: (...) com a criação do MDS, o Fome Zero ganhou uma dimensão mais ampla, pois deixou de ser uma política específica para integrar todas as políticas e ações em três dimensões: primeiro, as ações mais diretamente voltadas para o combate à fome e à desnutrição no Brasil; em um segundo momento, consolidar no País um Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional, o SISAN, integrado a outros sistemas, como o SUAS (Sistema Único de Assistência Social), o SUS, e também interagindo com outras políticas como a de transferência de renda e com outras ações fora do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome como, por exemplo, o Programa Luz para Todos, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar e os Territórios da Cidadania vinculados ao Ministério do Desenvolvimento Agrário. Em terceiro lugar, e já numa perspectiva mais alargada, visa o Fome Zero assegurar a soberania alimentar no contexto da soberania nacional considerando que a soberania do País esta diretamente ligada à sua soberania na produção e na reserva de alimentos para garantir em qualquer situação o direito à alimentação adequada para toda a população, inclusive em eventuais situações de emergência, de crise ou conflito222. 220 Bolsa Família: Programa unificado de transferência de renda, que incorporou o Programa Cartão Alimentação do Programa Fome Zero, além dos Programas Bolsa Escolar, Bolsa Alimentação e Vale- Gás, de vários Ministérios com o objetivo de conferir mais racionalidade à administração federal. 221 Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN). Estruturando o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) Brasília: CAISAN, 2011.p. 21. 222 Trecho de entrevista de Patrus Ananias, retirado de: ARANHA, Adriana Veiga. Fome Zero: uma história brasileira. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Assessoria Fome Zero, v. 1, 2010, p. 108 112 2.5. Programa Fome Zero, Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar e Programa Nacional de Alimentação Escolar O Programa Fome Zero foi construído, de acordo com Takagi223, em torno de cinco programas estruturais: i) reforma agrária; ii) fortalecimento da agricultura familiar; iii) projeto emergencial de convivência com o semiárido; iv) programa de superação do analfabetismo; v) programa de geração de emprego; e de cinco programas específicos: a) restaurantes populares; b) bancos de alimentos; c) ampliação da alimentação escolar; d) programa cartão de alimentação emergencial; e) educação alimentar. O objetivo seria que todos estes programas estivessem integrados no nível local, de forma a que os benefícios empregados fossem movimentados no município ou região, gerando empregos e produção de alimentos e superando o círculo vicioso da fome. O primeiro Programa implementado pelo PFZ foi o Programa Nacional de Acesso à Alimentação, o ‘Cartão Alimentação’, posteriormente incorporado ao Programa Bolsa Família. O Bolsa-Família continha: Bolsa Escola (Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à Educação), Bolsa Alimentação (Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à Saúde) e Programa Auxílio-Gás, além do Cartão Alimentação. Concomitantemente, foram criados outros programas estruturais e de fundamental importância para a efetivação da SAN, sendo os principais o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) e o fortalecimento do Programa Nacional de Alimentação Escolar. A ideia do PAA teria nascido dentro da primeira reunião do ‘novo’ CONSEA e de acordo com Francisco Menezes, por iniciativa de Plínio de Arruda Sampaio: O Bolsa Família e a transferência de renda do Bolsa Família eram componentes da Política, mas houve a necessidade de revitalizar algumas políticas que já estavam em curso e de criar outras. Começando com esta parte de criar outras, eu me lembro que na primeira reunião do CONSEA, a reunião que reinaugurou o CONSEA, o Plínio de Arruda Sampaio, que era conselheiro, ele levanta uma questão importante. Ele disse assim: ‘Olha, com o Fome Zero vai precisar haver uma maior oferta de alimentos para esta população que não tinha acesso antes ou que tinha um acesso muito precário. E a gente deve se preocupar também com quem vai 223 TAKAGI, Maya. A implementação do Programa Fome Zero em 2003. In: FRANÇA, Caio Galvão; SILVA, José Graziano da, GROSSI, Mauro Eduardo Del; (orgs.). Fome Zero: A experiência brasileira. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), 2010. p. 56 113 produzir estes alimentos’. É daí que nasce a ideia do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, porque o Plínio disse: ‘Olha, parte da agricultura familiar também vive em condições de pobreza muito aguda então vamos unir as duas pontas que isso tanto fortalece a agricultura familiar como possibilita que essa produção vá para a população carente, resolvendo a questão da oferta. Cria um mercado para a agricultura familiar, que era uma coisa que ela carecia muito. No mesmo momento também se define que assim como a agricultura patronal tinha o Plano Safra, que passe a ter um Plano Safra da agricultura familiar em específico, aí envolvendo o PRONAF, o PAA então foi criado, seguros agrícolas, esse tipo de coisa. Portanto o PAA nasce dentro do CONSEA. 224 O PAA tem duas finalidades básicas: promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar, sendo dois os públicos beneficiários: os fornecedores e os consumidores de alimentos. Os fornecedores são os agricultores familiares, assentados da reforma agrária, silvicultores, aquicultores, extrativistas, pescadores artesanais, indígenas, integrantes de comunidades remanescentes de quilombos rurais e demais povos e comunidades tradicionais, que atendam aos requisitos previstos no artigo 3o da Lei no 11.326/2006. Os fornecedores podem participar individualmente ou por meio de suas cooperativas ou outras organizações formalmente constituídas como pessoa jurídica. Os consumidores são os indivíduos em situação de insegurança alimentar e nutricional e aqueles atendidos pela rede socioassistencial e pelos equipamentos de alimentação e nutrição. O orçamento do PAA é composto por recursos do MDS e do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA)225. O caráter inovador do PAA estava na possibilidade de os pequenos agricultores venderem diretamente ao governo, sem necessidade de licitação, a preços próximos aos de mercado. E, em situações específicas, de terem acesso a antecipação de recursos para o plantio, estimulando a produção de alimentos226. Essa inovação institucional teria propiciado uma atuação diferenciada do Estado para atuar 224 Trecho da entrevistaa nós concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE 225 BRASIL, Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Cartilha Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar: renda para quem produz e comida na mesa para quem precisa! Brasília: MDS, 2012. 226 TAKAGI, Maya. A Implementação do Programa Fome Zero em 2003. In: FRANÇA, Caio Galvão; SILVA, José Graziano da, GROSSI, Mauro Eduardo Del; (orgs.). Fome Zero: A experiência brasileira. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2010. p. 70 114 proativamente nas economias de territórios de baixa dinamização econômica e forte presença de agricultores familiares227. Instituído pelo Artigo 19 da Lei 10.696/2003 e regulamentado pelo Decreto 4.772/2003, o PAA sofreu alterações que foram positivadas na Lei 12.512/2011. Desde o início, o PAA foi coordenado pelo MDS em articulação com Ministério do Desenvolvimento Agrário, Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Ministério da Fazenda e Ministério da Educação, sendo a primeira política agrícola nacional para a agricultura familiar que se articula com a Política de SAN. O PAA possui cinco modalidades: i) doação simultânea: tem como finalidade o atendimento de demandas locais de suplementação alimentar. Incentiva que a produção local da agricultura familiar atenda às necessidades de complementação alimentar das entidades da rede socioassistencial, dos equipamentos públicos de alimentação e nutrição (restaurantes populares, cozinhas comunitárias e bancos de alimentos) e, em condições específicas definidas pelo Grupo Gestor do PAA, da rede pública e filantrópica de ensino. É executada apenas com recursos do MDS; ii) compra direta: tem como finalidade a sustentação de preços de uma pauta específica de produtos definida pelo Grupo Gestor do PAA, a constituição de estoques públicos desses produtos e o atendimento de demandas de programas de acesso à alimentação. Para execução dessa modalidade, o MDS e MDA repassam, por meio de Termos de Cooperação, recursos financeiros para a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), responsável pela operacionalização; iii) formação de estoques: tem como finalidade apoiar financeiramente a constuição de estoques de alimentos por organizações da agricultura familiar, visando agregação de valor à produção e sustentação de preços. Posteriormente, esses alimentos são destinados aos estoques públicos ou comercializados pela organização de agricultores para devolução dos recursos financeiros ao poder público. Para execução dessa modalidade, o MDS e o MDA repassam, por meio de Termos de Cooperação, recursos financeiros para a CONAB, responsável pela operacionalização; iv) PAA Leite: tem como finalidade contribuir com o aumento do consumo de leite pelas famílias que se encontram em situação de insegurança alimentar e nutricional e também incentivar a produção 227 INSTITUTO DE POLÍTICA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). A Trajetória Histórica da Segurança Alimentar e Nutricional na Agenda Política Nacional: projetos, descontinuidades e consolidação, Rio de Janeiro, 2014. p. 39 115 leiteira dos agricultores familiares. Esta modalidade é executada pelos Estados do Nordeste e Minas Gerais (região Norte); v) compra institucional: foi uma inovação do Decreto 7.775/2012. Sua finalidade é garantir que Estados, Distrito Federal e municípios, além de órgãos federais também possam comprar alimentos da agricultura familiar com seus próprios recursos financeiros, dispensando-se a licitação para atendimento às demandas regulares de consumo de alimentos. Poderão ser abastecidos hospitais, quartéis, presídios, restaurantes universitários, refeitórios de creches e escolas filantrópicas, entre outros. Após a definição da demanda, o órgão comprador elabora Edital de Chamada Pública, que deve ser divulgado em locais de fácil acesso a organizações da agricultura familiar228. Os preços são definidos de acordo com a média dos preços praticados nos mercados regionais. O limite de aquisições é definido por decreto, de acordo com cada modalidade do Programa, estabelecendo anualmente um valor máximo por família. A CONAB teria papel fundamental no processo de execução do PAA, pois além de garantir a compra da produção e a determinação dos preços de mercado ao adquirir os alimentos ou sinalizar o preço de referência, também é a responsável pela operacionalização do PAA por meio de suas estruturas estaduais. A CONAB, ao exercer o direito de compra, enfraquece o papel dos intermediários comerciais, conhecidos popularmente como “atravessadores”, no escoamento da produção, possibilitando que as ações de aquisição, distribuição e consumo sejam efetuadas ao mesmo tempo e no âmbito do próprio município229. Marcos Rochinski, coordenador da Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar do Brasil (CONTRAF), corrobora com a importância da inclusão dos pequenos agricultores nas politicas públicas: (...) nós somos uma entidade representativa dos agricultores familiares e como tal nós sempre defendemos que a Segurança Alimentar e Nutricional do nosso país passa necessariamente pelo fortalecimento das políticas para este setor dos agricultores familiares, passa pelo fortalecimento da reforma agrária, pela distribuição de terras, de uma política agrícola que valorize os agricultores familiares, porque no nosso entendimento a Segurança 228 BRASIL, Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Cartilha Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar: renda para quem produz e comida na mesa para quem precisa! Brasília: MDS, 2012. 229 INSTITUTO DE POLÍTICA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). A Trajetória Histórica da Segurança Alimentar e Nutricional na Agenda Política Nacional: projetos, descontinuidades e consolidação, Rio de Janeiro, 2014. p. 39 116 e Soberania Alimentar do nosso país e de qualquer país só vai ser assegurado plenamente se você tiver um modelo de produção que consiga conciliar a preservação ambiental com um processo justo de produção e a produção de alimentos saudáveis230. Uma avaliação do PAA feita pelo CONSEA com a participação de organizações de agricultores familiares e entidades e instituições beneficiadas pela doação de alimentos, destacou os seguintes pontos positivos referentes ao PAA: i) a capacidade de estimular a organização e integração de sistemas locais de produção e comercialização e valorizar a transição e/ou a adoção de sistemas de produção agroecológicos; ii) o fomento da economia local e a valorização dos circuitos locais de mercados; iii) a capacidade de integração campo e cidade e entre agricultores e consumidores; iv) o estímulo à diversificação da produção e valorização dos produtos regionais231. Em junho de 2008, ocorreu em Brasília um seminário para se avaliar os resultados do PAA. Renato Maluf, presidente do CONSEA à época, em seu discurso, destacou que uma das razões do êxito do PAA se daria em função do engajamento dos setores envolvidos no Programa: Notem que esse é um Programa cujo êxito dependeu muito de ele ser apropriado pela população, pelos setores envolvidos, ou seja, pelo PAA ser comprado pelos setores que, de alguma maneira, participam dele. Isso é uma boa reflexão que a gente pode fazer, em um seminário como esse, no sentido de ver como é que as políticas públicas, o êxito do seu bom desenvolvimento. [inaudível] Fundamentalmente, de elas serem compreendidas pela sociedade, apropriadas pela sociedade. Aí reside grande parte do êxito dos programas, não é?232 Em outro trecho de seu discurso, Maluf ressalta o desafio da intersetorialidadena execução do PAA: Notem que, quando a gente fala da intersetorialidade, isso é um exercício difícil, viu? O pessoal do grupo gestor do PAA depois 230 Trecho da entrevista a nós concedida por Marcos Rochinski em 27 de fevereiro de 2018, via skype. 231 MAGALHÃES, Rosana; BURLANDY, Luciene; Forzi, Daniela. Programas de Segurança Alimentar e Nutricional: experiências e aprendizados. In: BURLANDY, Luciene; ROCHA, Cecília; MAGALHÃES, Rosana. (orgs) Segurança Alimentar e Nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. p. 123-124. 232 Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/discursos/2008/discurso-do- presidente-do-consea-renato-s-maluf-na-abertura-do-seminario-paa-2013-balanco-e- perspectivas.pdf/view . Acesso em abril de 2018 http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/discursos/2008/discurso-do-presidente-do-consea-renato-s-maluf-na-abertura-do-seminario-paa-2013-balanco-e-perspectivas.pdf/view http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/discursos/2008/discurso-do-presidente-do-consea-renato-s-maluf-na-abertura-do-seminario-paa-2013-balanco-e-perspectivas.pdf/view http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/discursos/2008/discurso-do-presidente-do-consea-renato-s-maluf-na-abertura-do-seminario-paa-2013-balanco-e-perspectivas.pdf/view 117 podia dizer como é que eles enfrentam, né?, na gestão do programa. Porque você está reunindo setores que têm concepções distintas, não é concepção distinta, são expectativas distintas. Você tem que colocar em comum acordo. De um lado, estão aqueles que fazem política agrícola, de outro lado, estão aqueles que usam o alimento para programas alimentares, do outro lado, estão aqueles que fazem alimentação escolar, do outro lado, está a economia, do outro lado, o orçamento, a inadimplência. Então, essa é a condição da intersetorialidade. E para avançar nas políticas sociais obviamente, eu não vou repetir, é preciso pensar a agricultura familiar e esses programas dentro de um modelo diferenciado233. A criação do PAA fez com que o segmento da agricultura familiar se tornasse um dos principais atores no monitoramento, defesa e proposição de mudanças/adequações do PAA, sendo a ampliação do volume de recursos, o maior número de agricultores beneficiados, a simplificação da institucionalidade da política, o aumento do limite financeiro de comercialização por agricultor/ano e o fortalecimento da CONAB, as demandas mais frequentes nas pautas de suas reivindicações234. Outro programa de fundamental importância, que ampliou o acesso aos alimentos a grupos populacionais vulneráveis foi o Programa Nacional da Alimentação Escolar. O PNAE, também conhecido como Merenda Escolar, existe desde 1955 235 e institui o repasse automático de valores financeiros do governo federal aos Estados, municípios e escolas federais conforme o número de matriculados em cada rede de ensino236. No primeiro mandado do ex-presidente Lula, o repasse para o PNAE teria aumentado consideravelmente, conforme narrado por Menezes, que à época presidia o CONSEA Nacional: Eu diria que a gente trabalhou com três Políticas com prioridade: sobre o PAA, sobre o PNAE e sobre o Programa de Cisternas, embora o CONSEA participasse também ativamente de avaliações e discussões sobre o Bolsa Família. Continuavam outras Políticas, como a de restaurante popular e tal, mas com uma participação 233 Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/discursos/2008/discurso-do- presidente-do-consea-renato-s-maluf-na-abertura-do-seminario-paa-2013-balanco-e- perspectivas.pdf/view . Acesso em 15/04/2018 234 GRISA, Catia. Políticas Públicas para a Agricultura Familiar no Brasil: produção e institucionalização das ideias. Tese (Doutorado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade). Programa de Pós-Graduação de Ciências em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ). Rio de Janeiro, 2012. p. 212. 235 O PNAE é o mais antigo programa social do governo federal brasileiro na área de alimentação e nutrição. 236 Disponível em: http://www.fnde.gov.br/programas/pnae. Acesso em 15/03/2018. http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/discursos/2008/discurso-do-presidente-do-consea-renato-s-maluf-na-abertura-do-seminario-paa-2013-balanco-e-perspectivas.pdf/view http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/discursos/2008/discurso-do-presidente-do-consea-renato-s-maluf-na-abertura-do-seminario-paa-2013-balanco-e-perspectivas.pdf/view http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/discursos/2008/discurso-do-presidente-do-consea-renato-s-maluf-na-abertura-do-seminario-paa-2013-balanco-e-perspectivas.pdf/view http://www.fnde.gov.br/programas/pnae 118 mais secundária do CONSEA. E logo-logo eu tive uma primeira audiência com o Lula, no primeiro semestre de 2004 e eu defino que eu vou levar duas reivindicações para ele, defino evidentemente, com os conselheiros. A gente prepara uma reivindicação de aumento de dotação orçamentária para o PAA, que ainda era pequena e a gente leva a reivindicação de quebrar o congelamento do valor per capita do PNAE. O governo transferia recursos do PNAE para as prefeituras, para governos estaduais, porque a alimentação escolar era descentralizada. Essa dotação estava congelada há dez anos. A inflação tinha corroído completamente o valor que era repassado pelo governo para a alimentação escolar. A alimentação escolar estava fraquíssima, muita gente reclamando. Muitas escolas sequer forneciam, havia problema de fraude também. Nesta audiência o Lula pediu um tempo para responder sobre a questão do PAA. De fato, depois foram muito gradativas as elevações do orçamento, mas ele ficou muito sensibilizado com a questão de que há dez anos que não era corrigido. Sobretudo porque esses dez anos, grande parte dele dizia respeito ao governo Fernando Henrique. Aí ele colocou para mim a seguinte questão, ele disse: ‘Olha, a alimentação escolar pesa muito no orçamento. Se a gente faz uma correção forte, como precisaria, isso vai dar um aumento, vai pesar no orçamento, então a gente vai ter que fazer uma programação gradativa dessa correção. Eu me comprometo com você de corrigir em 15%, inicialmente’. Não, não era 15%, é o seguinte, é que estava em 13 centavos o per capita, e depois ele aumenta para 15, depois para 18, depois aumenta para 22, depois para 28, então ele faz uma correção gradativa237. Entre 1995 a 2014, o PNAE ampliou de 33 milhões estudantes atendidos para mais de 42 milhões de escolares em 2014, chegando a 3,6 bilhões de reais o valor de recursos repassados em 2014. Além de aumentar o valor per capita da alimentação escolar, o PNAE passou a comprar 30% do alimentos da agricultura familiar 238 . Menezes nos relata os bastidores desta decisão: (...) a gente queria acabar com a terceirização da alimentação escolar, então nós colocamos isso na lei, proibindo empresas terceirizadas. Eu te diria que naquele momento, de 30 à 40% das escolas tinham alimentação escolar terceirizada então é um corte muito forte. Aí surge também a ideia de 30% da agricultura familiar para a alimentação escolar, claro que inspirado na experiência do PAA e mercado institucional de alimentos. Sobre estes 30%, a gente não chegava a uma conclusão, porque o Brasil é muito diverso, a gente dentro do grupo, sobre qual deveria ser o índice. Colocar diferentes índices significaria criar uma confusão 237 Trecho da entrevista a nós concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE 238 BRASIL. Ministério da Educação. Cartilha Nacional da Alimentação Escolar. Brasília: Ministério da Educação, 2015 119 ingovernável, municípiosreivindicando uma coisa, outros reivindicando outras, então... esses dias eu encontrei com a Albaneide Peixinho, que era coordenadora do PNAE e a gente estava recordando... diz ela, eu não consigo me lembrar disso, que fui eu quem propus os 30%, porque eles estavam em uma discussão que alguns falavam 40% outros falavam 20% e eu falei 30% e estavam todos cansados no grupo e fechou 30%. Eu não lembro como se chegou a isso. A gente também pediu para o cara da CONAB239 que nos ajudasse, que estava a frente do PAA. Ele tinha indicado mais ou menos isso, e como eu era o presidente do CONSEA, se eu falei 30% acabou ficando 30%, mas não existia nenhum cálculo ao pé da letra que devesse ser 30%. Mas evidentemente essa foi uma proposta que agradou, sobretudo, as organizações de agricultores familiares, porque abriu um mercado que eles nunca tinham tido. Naquela época eram 36 milhões de alunos se alimentando 200 dias por ano então era um mercado que a agricultura familiar nunca tinha visto. 240 A conversão em lei da compra institucional de 30% dos alimentos do PNAE da agricultura familiar somente se concretizou em 2009 com a Lei 11.947/2009. O Projeto de Lei da Alimentação Escolar (PL 2877/2008) entrou em tramitação na Câmara dos Deputados no dia 25 de fevereiro de 2008, com o objetivo de criar um marco regulatório para o PNAE. O PL 2877/2008 propôs que o Estado brasileiro garantisse o atendimento da alimentação escolar para as escolas públicas e privadas, na perspectiva de consolidar uma mudança do paradigma, abandonando uma lógica assistencialista e assumindo a lógica da alimentação como um direito, em vista da promoção de saúde. Entre suas diretrizes, está o fortalecimento do controle social, ao sugerir que deveria existir um acompanhamento das ações realizadas pelos Estados, Distrito Federal e municípios sobre a oferta da alimentação escolar. Maria Emília Pacheco afirma que o FBSSAN teve grande contribuição para a fundamentação da Lei 11.947/2009: O Fórum sempre procurou, na sua trajetória, influenciar nos rumos da política através do CONSEA e tomando também iniciativas. Eu me lembro, por exemplo, de um Seminário que nós fizemos sobre alimentação escolar, isso foi quando o Chico Menezes era presidente do CONSEA e foi extremamente importante porque nós pudemos ter um conjunto de fundamentação econômica, política, 239 Se refere à Silvio Porto, coordenador nacional do PAA, no âmbito da CONAB, à época. Silvio Porto integrou a equipe que elaborou o Projeto Fome Zero. Nos anos de 2003 à janeiro de 2014, ocupou as Diretorias de Gestão e Logística e de Política Agrícola e Informações da CONAB. Representou o Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento no Grupo Gestor do PAA. Disponível em: https://www.escavador.com/sobre/4425683/silvio-isopo-porto Acesso em 06 de junho de 2018. 240 Trecho da entrevista a nós concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE https://www.escavador.com/sobre/4425683/silvio-isopo-porto 120 social e na hora que nós entramos no debate sobre a atual lei, sobre a feição atual do PNAE, nós tínhamos muito subsídios para dar e acompanhamos muito de perto por dentro do CONSEA e tendo o Fórum contribuído muito nisso241. O PL 2.877/2008 foi encaminhado pelo governo federal no início de 2008, sendo aprovado pela Câmara dos Deputados, por unanimidade, em novembro. A matéria seguiu para deliberação e votação no Senado Federal, onde enfrentou resistências, sendo então aprovado em junho de 2009242. Sobre as dificuldades de aprovação do PL 2.877/2008, convertida na Lei 11.947/2009, Menezes relembra: Já a Lei de Alimentação Escolar mexia com alguns pontos que depois a gente identificou que eram delicados para parlamentares que tinham financiamento de campanha de empresas interessadas, sejam empresas do agronegócio, sejam empresas terceirizadas que abasteciam a alimentação escolar. Então chega um determinado momento que é levado para o CONSEA e se tem um impasse na aprovação dela e isso eu já não era mais presidente. O Renato (Maluf) que era o presidente nesse momento e nos é dado por liderança do Congresso, ligado ao próprio governo, que a gente não vai ter condição de aprovar se a gente insistir com os 30% para a agricultura familiar e com a questão da proibição dos terceirizados, porque não vai somar a maioria nem dentro da Câmara dos Deputados para isso passar. E a gente tem que fazer uma escolha. Foi uma escolha difícil. A gente aceitou abrir mão da questão da terceirização como uma coisa para tentar enfrentar depois e manteve os 30%. Aí mesmo que lentamente e com muita pressão dos movimentos sociais, o projeto acabou sendo aprovado com algumas alterações, mas o Projeto de Lei foi aprovado. Isso abre para o movimento de Segurança Alimentar e Nutricional um ponto que já começava a ficar claro porque se formou uma frente parlamentar de Segurança Alimentar, mas vai ficando claro que não basta atuar junto ao Executivo. Precisa ter uma atenção em relação ao Congresso Nacional, se quer ter alguma incidência.243 A Lei 11.947/2009, dentre outros avanços, amplia a abrangência do PNAE para toda a rede pública de educação básica e de jovens e adultos, além de fortalecer a participação da comunidade no controle social das ações desenvolvidas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios. 241 Trecho da entrevista a nós concedida por Maria Emília Pacheco em 3 de junho de 2016 na Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) 242 ZIMMERMANN, Silvia A. A pauta do povo e o povo em pauta: as Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional, Brasil – democracia, participação e decisão política. Tese (Doutorado). Rio de Janeiro: UFRRJ, 2011. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2011. p. 61. 243 Trecho da entrevista a nós concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE 121 Christiane Costa é presidente do CONSEA Municipal de São Paulo e relata que se a compra de 30% dos alimentos da agricultura familiar para a alimentação escolar funcionou na cidade de São Paulo, que tem 12 milhões de habitantes, pode funcionar em qualquer outro município brasileiro: A Lei da Alimentação Escolar sempre teve dúvida se essa construção parava em pé nas grandes cidades porque ela tem características bastantes distintas de uma cidade média e de uma cidade pequena então nas cidades pequenas e nas médias, vai tudo bem. Não é que vai tudo bem, tem problemas, mas ela vai indo. Agora o problema são as grandes cidades. Eu escutei uma vez a presidente do FNDE244 (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) falar do Programa da Alimentação Escolar e dizer que se não parasse em pé nas grandes cidades, poderia derrubar a lei (dos 30% da compra da agricultura familiar). E São Paulo mostrou que era possível. Nós chegamos em 2015 a comprar muitas toneladas de arroz e feijão. São dois milhões de refeições diárias em São Paulo, então é complexo e a gente teve que fazer muitas costuras com o Tribunal de Contas, com o setor de compras da prefeitura. Inaugura questões essa lei, que setores que participam da compra, mas que não estão diretamente envolvidos, tem que ser sensibilizados também, então a gente estava nessa construção245. Atualmente, o PNAE é conduzido pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e tem gestão descentralizada, ou seja, o governo federal repassa o recurso, mas são os Estados, o Distrito Federal e os municípios os responsáveis por administrar o Programa localmente. O PNAE é, portanto, um Programa com responsabilidade compartilhada. São as Entidades Executoras (as Secretarias de Educação dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios e as Escolas Federais) asresponsáveis pelo desenvolvimento de todas as condições para que o PNAE seja executado de acordo com a legislação. As Entidades Executoras podem e devem complementar o recurso repassado pelo FNDE, seja para a aquisição de alimentos em maior quantidade e qualidade, seja para outras despesas (como contratação de merendeiras e auxiliares, gás, energia elétrica, equipamentos, utensílios de cozinha, 244 O Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE) é a autarquia responsável pela definição da sistemática e dos procedimentos operacionais em relação aos produtos adquiridos pelo PAA 245 Trecho da entrevista a nós concedida por Christiane Costa em 21 de fevereiro de 2018 via skype 122 material de limpeza, entre outros), pois o recurso repassado pelo governo federal serve exclusivamente para a aquisição de alimentos246. Sobre a importância do PNAE, Lelinho afirma: Eu continuo achando que um Programa que tem quase 45 milhões de pessoas que utilizam dele, é um equipamento público privilegiado para você tratar desse tema, seja ela com acesso ao alimento, você ofertando alimento de qualidade, seja levando a discussão do tema para dentro desses espaços com a comunidade acadêmica, com a comunidade escolar: alunos, professores, pais de alunos, funcionários e agricultores, que a partir de 2009 ele passa a ofertar247. Sobre os avanços conquistados com o PAA e o PNAE, Rochinski observa: Eu acho que as compras institucionais, que foram bastante importantes, como o PAA, o PNAE não só possibilitaram para a população que recebia ou que recebe essa produção ter acesso a um alimento mais saudável, mas eles também possibilitaram que os agricultores familiares se emancipassem com condições de para além das compras institucionais começassem a se inserir em um tipo de mercado que até então era um mercado bastante distante para essas pequenas associações e cooperativas248. Dessa forma, não pode ser minimizado o elo institucional estabelecido entre a alimentação oferecida nas escolas públicas e o papel da agricultura familiar da região em que se localizam. O PAA seria de fundamental importância na formatação das diretrizes do PNAE, que incorporam os agricultores familiares como fornecedores249. 246 BRASIL. Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE). Cartilha para Conselheiros do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Brasília, Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE), 2017. p. 15 247 Trecho da entrevista a nós concedida por Élido Bonomo em 12 de dezembro de 2017 via skype 248 Trecho da entrevista a nós concedida por Marcos Rochinski em 27 de fevereiro de 2018, via skype. 249 MALUF, Renato; NASCIMENTO, Renato Carvalheira. (orgs). Construção do Sistema e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: a experiência brasileira. Brasília: CONSELHO NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL (CONSEA), 2009. p. 66 123 2.6. Avaliação da Insegurança Alimentar pela Pesquisa Nacional por Amostras por Domicílio A Pesquisa Nacional por Amostras por Domicílio (PNAD) integra o Programa Nacional de Pesquisas Contínuas por Amostra de Domicílios da Fundação IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e é realizada desde 1967, tendo por objetivos suprir informações multifinalitárias sobre a população brasileira e estudar temas insuficientemente investigados ou não contemplados por censo demográficos decenais realizados por aquela instituição. A pesquisa é feita em todas as regiões do Brasil, incluindo as áreas rurais de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá, que estavam excluídas até recentemente250. A PNAD obtém informações anuais sobre características demográficas e socioeconômicas da população (como sexo, idade, educação, trabalho e rendimento) e características dos domicílios, e, com periodicidade variável, informações sobre migração, fecundidade, nupcialidade, entre outras, tendo como unidade de coleta os domicílios. Temas específicos abrangendo aspectos demográficos, sociais e econômicos também são investigados251. Historicamente, a SAN é avaliada por meio de medidas que procuram quantificar o número de indivíduos em situação de carência alimentar ou fome. A FAO utiliza como medida a disponibilidade de alimentos, mensurada por estimativa calórica média diária per capita como ferramenta para captar o grau de vulnerabilidade ou carência alimentar dos diferentes países. Adicionalmente, utiliza informações sobre estado de saúde, condições demográficas, ambientais, econômicas, políticas, sociais, climáticas, renda, gastos com alimentação, condições de moradia, saneamento, dentre outros252. O Programa Fome Zero, ao ser lançado, não dispunha de uma avaliação ou de uma pesquisa específica de acompanhamento de seus indicadores. A médica, professora da UNICAMP e pesquisadora Ana Maria Segall Corrêa, ao tomar conhecimento da inexistência de indicadores alimentares que 250 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/escola-de-gestores-da-educacao-basica/190-secretarias- 112877938/setec-1749372213/12521-informacoes-gerais-sobre-a-pnad Acesso em 15/04/2018. 251 Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/pesquisas/pesquisa_resultados.php?id_pesquisa=40 Acesso em 17/04/2018 252 COSTA, Rosana Salles. Diagnóstico de insegurança alimentar nos estudos populacionais: suas implicações e limitações como indicador de SAN. In: SCHNEIDER, Olívia F. (org). Segurança Alimenar e Nutricional: tecendo a rede de saberes.Rio de Janeiro: FAPERJ, 2012. p. 122 http://portal.mec.gov.br/escola-de-gestores-da-educacao-basica/190-secretarias-112877938/setec-1749372213/12521-informacoes-gerais-sobre-a-pnad http://portal.mec.gov.br/escola-de-gestores-da-educacao-basica/190-secretarias-112877938/setec-1749372213/12521-informacoes-gerais-sobre-a-pnad https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/pesquisas/pesquisa_resultados.php?id_pesquisa=40 124 indicassem a evolução do Programa Fome Zero, teria proposto ao professor de nutrição da Universidade de Connecticut/EUA, que estava em período sabático na UNICAMP, a elaboração de uma pesquisa que aferisse tais indicadores. Em entrevista a nós concedida, Segall relata o início da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) da PNAD: A gente achava que uma proposta de governo como o Fome Zero tinha que ter um acompanhamento para saber a base e o depois. (...) Em 2003 o professor Rafael veio fazer um ano sabático na UNICAMP e ele chegou em dezembro. Em janeiro o Lula toma posse e lança o Fome Zero e ele veio fazer o sabático na área de aleitamento materno. Era uma proposta de estabelecer uma rede de monitoramento do aleitamento materno baseado nos indicadores que saíram da pesquisa que foi feita em Santos. Era uma base, uma plataforma, a gente ainda não tinha isso ainda tão desenvolvido na época, que as unidades básicas de saúde, os hospitais, poderiam criar para ser o que é o SISVAN, um sistema de vigilância do aleitamento materno. Ele veio com este projeto e eu estava conversando com ele quando saiu o Fome Zero e eu consegui um exemplar do Fome Zero no Instituto de Economia da UNICAMP com o professor (Walter) Belick, que tinha trabalhado na formulação do Fome Zero. E nós começamos a ler o Programa e ficamos super entusiasmados com a proposta do Fome Zero. Daí terminamos de ler e eu falei assim: ‘Você percebe que não tem nada de avaliação? Se faz um Programa dessa natureza e com essa abrangência sem nem uma linha de acompanhamento e avaliação’. Aí eu falei com ele assim: ‘A gente podia pensar em propor alguma coisa...’. Aí ele falou: ‘Olha... eu trabalhei com o pessoal do Senegal com uma adaptação de uma escala norte-americanade avaliação domiciliar de Segurança Alimentar e foi uma coisa que deu muito certo como indicador lá no Senegal’. Aí ele perguntou: ‘Você acha que é possível?’, aí eu falei: ‘Olha, vamos atravessar aqui o corredor, porque nós estávamos na minha sala, que eu vou perguntar para o Secretário Geral do Ministério da Saúde, que era o Gastão Wagner’ Eele era meu colega de departamento e foi chamado pelo governo Lula para ser Secretário Geral. Aí fomos eu e o Rafael conversar com o Gastão: ‘Gastão, o que você acha de a gente fazer uma proposta...’. Aí ele disse: ‘Escreve umas páginas aí que o Ministério financia’. Começou assim... isso foi em 2003. Eu estou contando esta história feito mineiro mesmo, na beira do fogão... Mas aí nós sentamos para conversar mais organizadamente, mais academicamente sobre o assunto e aí fizemos uma proposta que ela tinha um pressuposto de aceitabilidade. Porque a proposta era: ‘Vamos desenvolver, já existe este modelo’. Porque esta escala, originalmente norte- americana, já vinha sendo desenvolvida no Canadá, tinha sido usada em alguns países da Europa e algumas adaptações em países 125 da África, então não era uma novidade a utilização deste instrumento253. O modelo de pesquisa a que se refere Ana Maria Segall Corrêa teria sido elaborado por uma doutoranda da Universidade de Cornell em uma área rural carente do Estado de Nova Iorque e testado e sancionado pelo Departamento de Agricultura dos EUA (United States Department of Agriculture - USDA), onde se buscou uma metodologia de avaliação de severidade de segurança alimentar. O objetivo da EBIA seria medir, diretamente, a percepção de insegurança alimentar e fome em nível domiciliar254 . Segall nos narra as condicionantes de aplicação desta pesquisa no Brasil: Nos Estados Unidos já fazia parte do monitoramento da Segurança Alimentar desde 1995 usando este modelo de escala. Mas tinham duas questões envolvidas. Uma questão era se isso se adaptaria ao Brasil do ponto de vista de validade. (...) Apesar de ser um instrumento norte-americano, ele estava baseado na experiência de pessoas pobres, que tinham experiência de passar por problemas de acesso aos alimentos. Então um problema era saber: será que isso que foi lá, de 32 mulheres do norte dos Estados Unidos, de área rural, será que esses itens, esses componentes, essas expressões da experiência, será que isso se aplica? Essa era uma questão. A outra era uma questão eminentemente política. Será que no momento que a gente dá essa grande reviravolta política no país, assume um governo popular, será que vão aceitar que a gente use para avaliar um programa nosso uma escala norte-americana? Tinham essas duas perguntas que a gente precisava responder255. Foi então realizado um seminário em Campinas, organizado pela UNICAMP, para fazer o que Ana Maria Segall Corrêa chamou de ‘validade de face’. Segundo Segall, foram convidados gestores de programas sociais, inclusive aqueles que já estariam envolvidos com o MESA, do inicio do Bolsa Família. Entre eles estavam Leonor Pacheco, docente do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília, que já havia tido uma experiência anterior com esta pesquisa norte-americana, agentes comunitários de saúde e por indicação deles, algumas pessoas da comunidade. Sobre a elaboração prévia da PNAD, Segall relembra: 253 Trecho da entrevista a nós concedida por Ana Maria Segall Corrêa em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. 254 KEPPLE, Anne Walleser; SEGALL, Corrêa Ana Maria. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Ciência & Saúde Coletiva 2011, 16(1):187-199. p. 195 255 Trecho da entrevista a nós concedida por Ana Maria Segall Corrêa em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. 126 Primeiro fizemos uma reunião mais técnica, pra gente mesmo se entender com os convidados e gestores e tal. E depois fizemos um grupo focal, já com inclusão, para ver se era factível, do ponto de vista político e do ponto de vista de validade daquele instrumento, da gente partir para uma proposta de adequação, formulação e validação da escala. Foi aí que eu entrei na Segurança Alimentar, que eu comecei a trabalhar a partir do desenvolvimento da escala. E aí passamos a ter apoio. Os primeiros recursos foram do Ministério da Saúde. O resultado foi de que era absolutamente possível usar. Não existia uma barreira política. As diferenças políticas não anulavam as semelhanças da experiência com a fome, que era uma experiência que em qualquer parte do mundo se produz da mesma forma, com a exclusão e tal. E do ponto de vista mais específico do uso, quem falou mais foram os agente comunitários e as pessoas da comunidade, porque eram eles que seriam retratados naquele instrumento. Com isso deu sinal verde pra gente de fato partir para trabalhar256. A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar da PNAD de 2004 é baseada no número de respostas positivas a um conjunto de 15 perguntas, respondidas por um morador identificado como preparado para respondê-las. As perguntas são257: 1) Nos últimos 3 meses, os moradores deste domicílio tiveram preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem comprar ou receber mais comida? 2) Nos últimos 3 meses, com que frequência os moradores deste domicílio tiveram a preocupação de não poderem comprar ou receber mais comida? 3) Nos últimos 3 meses, os moradores deste domicílio ficaram sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada? 4) Nos últimos 3 meses, os moradores deste domicílio comeram apenas alguns alimentos que ainda tinham, porque o dinheiro acabou? 5) Nos últimos 3 meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade, diminuiu, alguma vez, a quantidade de alimentos nas refeições ou deixou de fazer alguma refeição, porque não havia dinheiro para comprar comida? 6) Nos últimos 3 meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade, alguma vez comeu menos, porque não havia dinheiro para comprar comida? 7) Nos últimos 3 meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade, alguma vez sentiu fome, mas não comeu porque não havia dinheiro para comprar comida? 256 Trecho da entrevista a nós concedida por Ana Maria Segall Corrêa em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. 257 Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/instrumentos_de_coleta/doc1174.pdf Acesso em abril de 2018. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/instrumentos_de_coleta/doc1174.pdf 127 8) Nos últimos 3 meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade, perdeu peso, porque não comeu quantidade suficiente de comida devido à falta de dinheiro para comprar comida? 9) Nos últimos 3 meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade, alguma vez fez apenas uma refeição ou ficou um dia inteiro sem comer, porque não havia dinheiro para comprar comida? 10) Nos últimos 3 meses, algum morador com menos de 18 anos de idade, alguma vez deixou de ter uma alimentação saudável e variada, porque não havia dinheiro para comprar comida? 11) Nos últimos 3 meses, algum morador com menos de 18 anos de idade, alguma vez não comeu quantidade suficiente de comida, porque não havia dinheiro para comprar comida? 12) Nos últimos 3 meses, algum morador com menos de 18 anos de idade, diminuiu a quantidade de alimentos nas refeições, porque não havia dinheiro para comprar comida? 13) Nos últimos 3 meses, algum morador com menos de 18 anos de idade, alguma vez deixou de fazer uma refeição, porque não havia dinheiro para comprar comida? 14) Nos últimos 3 meses, algummorador com menos de 18 anos de idade, alguma vez sentiu fome, mas não comeu, porque não havia dinheiro para comprar comida? 15) Nos últimos 3 meses, algum morador com menos de 18 anos de idade, alguma vez ficou um dia inteiro sem comer, porque não havia dinheiro para comprar comida? A pontuação atribuída a cada domicílio é o número de respostas afirmativas. Se a pontuação for igual a zero, significa que o domicílio tem segurança alimentar. No caso dos domicílios cujos moradores têm todos 18 anos de idade ou mais, 1 a 3 pontos corresponde a ‘insegurança alimentar leve’, 4 a 6 pontos corresponde a ‘insegurança alimentar moderada’ e 7 a 9 pontos significa ‘insegurança alimentar grave’. No caso dos domicílios com pelo menos um morador de menos de 18 anos de idade, categorias de insegurança alimentar leve, moderada e grave correspondem, respectivamente, aos intervalos de 1 a 5 pontos, 6 a 10 pontos e 11 a 15 pontos. Dessa forma, obtém-se, para cada domicílio, uma variável de insegurança alimentar em quatro níveis: ausente, leve, moderada e grave258. A Insegurança Alimentar Ausente se refere aos casos de acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente, das famílias que sequer se sentiam na iminência de sofrer restrição no futuro próximo. Insegurança Alimentar Leve se refere aos casos em que há preocupação ou incerteza quanto a disponibilidade de alimentos no futuro em quantidade e qualidade adequadas. Insegurança Alimentar Moderada se refere à redução quantitativa de alimentos e/ou 258 HOFFMAN, Rodolfo. Determinantes da Insegurança Alimentar no Brasil: Análise dos dados do PNAD de 2004. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/san/article/view/1824 Acesso em 20/04/2018. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/san/article/view/1824 128 ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos, entre os adultos. Insegurança Alimentar Grave se refere à redução quantitativa de alimentos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre adultos e/ou crianças e/ou privação de alimentos e fome259. De acordo com Ana Maria Segall Corrêa, a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar da PNAD diferiria da norte-americana por não fazer nenhuma afirmação antes da pergunta: Nesse seminário a gente já tomou algumas decisões em relação à própria escala. Primeiro que não seria exatamente aquela escala americana porque a escala norte-americana são 18 itens e ela fala assim: ‘Algumas famílias aqui na sua área, aqui no seu Estado, relatam que quando chega no fim do mês, eles ficam muito preocupados de não ter dinheiro para conseguir comida suficiente. Isso aconteceu com você nos últimos 12 meses?’. Então há uma afirmação e em seguida uma pergunta. E aí tinha: “isso nunca aconteceu?, aconteceu algumas vezes? acontece frequentemente?’ e tal... Todas as perguntas eram assim: sempre uma frase, como eles dizem, um statement, e depois uma pergunta se aquilo acontecia. Nesse grupo das comunidades o pessoal já achou que aquilo era muito complicado, que a gente deveria partir para perguntas diretas. Disseram: ‘Olha, eu não tenho problema nenhum em dizer que na minha casa não tem comida. Tem que perguntar direto.’ A gente teve essa experiência em um estudo sobre violência. A gente foi trabalhar com umas mulheres que eram atendidas no centro de referência de atendimento às mulheres que sofrem violência e a gente cheio de cuidados para ver como a gente pergunta... e as mulheres disseram: ‘Pergunta direto! Ele chutou a sua barriga?’. E a mesma coisa aconteceu com relação a esta pesquisa. Então com este grupo a gente já reformulou a escala. Deixamos os 18 itens focais, tinham uns itens complementares que a gente deixou também, mas fizemos esta primeira modificação da escala. (...) As 18 perguntas viraram 15, os pontos de corte foram redefinidos, o fraseamento das perguntas foram modificados e com isso o IBGE usou no PNAE de 2004 260. Participaram do projeto de elaboração da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar da PNAD, segundo Segall, além da UNICAMP, quatro universidades brasileiras: Universidade de Brasília (UNB), Universidade Federal da Paraíba (UFPA), o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e a Universidade 259 Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/000000201124121120142438189866 95.pdf acesso em 15/04/2018 260 Trecho da entrevista a nós concedida por Ana Maria Segall Corrêa em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000020112412112014243818986695.pdf https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000020112412112014243818986695.pdf 129 Federal de Mato Grosso (UFMT), pois haveria necessidade de se abranger a diversidade alimentar das diferentes regiões do Brasil: A gente achava que para fazer um instrumento no Brasil, ele tinha que ser adequada à diversidade nossa, não só social e econômica, mas sobretudo da cultura alimentar, né?, que é muito diversa nesse quadrante. No Sudeste poderia ficar igual, mas no Nordeste, o Norte e o Centro-Oeste, mais para o lado Oeste mesmo, a gente deveria contemplar. Então nós convidamos professores, fizemos um grande seminário, na verdade de homogeneização nossa, de compreensão das coisas e instituímos, com o apoio da OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde), um comitê de acompanhamento da pesquisa, um acompanhamento externo da pesquisa. E aí tinham gestores, outros pesquisadores, antropólogos, sociólogos, e aí nós montamos um comitê externo de acompanhamento. Nós estávamos com muito cuidado porque eu já tinha passado pela experiência do Programa de Saúde da Mulher e a gente sabia que uma das questões importantes era ter legitimidade então a gente fez este comitê externo de acompanhamento. A gente se reuniu duas vezes no primeiro ano261. O Programa Fome Zero foi lançado em 2003 e a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar da PNAD foi introduzida em 2004. Dessa forma, a elaboração do questionário de pesquisa teria sido feito às pressas, mas com a acuidade necessária para a sutileza desse tipo de pesquisa. Segall relembra: Nós tivemos que desenvolver a Escala em um ano e pouco, um ano e dois meses porque o MDS, além de ter apoiado o financiamento de parte da pesquisa queria que o IBGE usasse na PNAE de 2004 e nós estávamos em 2003 e o IBGE queria a Escala pronta em fevereiro de 2004, porque eles queriam usar em setembro de 2004. Então a gente tinha pouquíssimo tempo, mas apesar do pouco tempo a gente achou que teria que ser uma coisa muito segura, especialmente se isso passasse a ser usado como indicador oficial, nacional. Então em cada local dessas regiões nós fizemos primeiro uma reunião com especialistas da região para discutir o instrumento e a partir daí, ouvidos os especialistas, nós fazíamos um grupo focal com a comunidade, tanto urbana como rural. Em todos os casos nós trabalhamos com o grupo focal urbano e o grupo focal rural. Primeiro a gente fez simultaneamente em Brasília, que já tinha bastante gente envolvida com o tema, e na Paraíba. Na Paraíba nós já fizemos algumas adaptações e de lá já fomos para Manaus com o pessoal do INPA e reproduzimos o mesmo processo em Manaus, com área rural e urbana. De lá fomos para o Mato Grosso. A gente ficava mais ou menos uma semana para fazer. Tinha a reunião de especialistas, o grupo focal e a gente montava com os pesquisadores o inquérito de uma amostra não- 261 Trecho da entrevista a nós concedida por Ana Maria Segall Corrêaem 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. 130 aleatória, uma amostra intencional de população rural e urbana para eles aplicarem porque não dava tempo de a gente acompanhar. Mas como são todos pesquisadores, gente habituada a fazer pesquisas desta natureza, a gente deixava tudo pronto com eles, tudo pactuado e eles faziam o inquérito quantitativo. A gente fazia, acompanhava com eles a parte quali e eles faziam a parte quanti. E a gente reproduziu isso em todos os locais. Então nós chamamos um especialista em análise estatística especifica desse tipo de escala e fizemos as análises. (...) A escolha foi de pessoas que tivessem uma relação com o tema, pessoas de confiança para além da questão acadêmica, porque era uma coisa que seria feita rápido, mas teria que seguir todos os rigores. Nós tínhamos que fazer rápido, mas com muito cuidado262. A primeira etapa de validação qualitativa teria sido constituída por cinco painéis de especialistas para definição de indicadores rurais. A estes teriam seguido onze grupos focais, tendo como participantes cerca de dez homens e mulheres adultos, residentes em comunidades pobres, rurais e urbanas dessas localidades. Dos painéis de especialistas e dos grupos focais teria resultado uma proposta de escala com quinze perguntas, cada uma delas seguida de quatro opções de frequências, com estrutura, conceitos e linguagem considerados de fácil compreensão em populações dos contextos estudados. Na segunda etapa, teriam sido feitos inquéritos populacionais com amostras intencionais em quatro áreas urbanas e cinco rurais. Nas áreas urbanas, 717 famílias integraram as amostras selecionadas de tal forma que pudessem incluir estratos populacionais de renda média, média baixa, baixa e muito baixa. A amostra rural teria incluído 1.150 famílias de trabalhadores rurais permanentes, temporários, agricultores familiares tradicionais, agricultores de assentamentos de reforma agrária, agricultores ribeirinhos e remanescentes de quilombos. O instrumento incluiu renda familiar e consumo diário de alimentos, acrescentando-se no questionário da área rural variáveis de produção agrícola e produção de alimentos para autoconsumo, visando analisar a validade externa da escala263. Teria sido formado, de acordo com Segall, um comitê externo para debater questões relativas à elaboração da EBIA, que teria sido de grande valia na elucidação do conteúdo do questionário. 262 Trecho da entrevista a nós concedida por Ana Maria Segall Corrêa em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. 263 KEPPLE, Anne Walleser; SEGALL, Corrêa Ana Maria. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Ciência & Saúde Coletiva 2011, 16(1):187-199. p. 194 131 Este comitê externo também foi muito importante porque eram discussões muito intensas. Por exemplo, como você vai quantificar a fome? Tinha gente que dizia ‘como assim quantificar a fome? Isso não existe quantificar a fome! E por que vocês querem quantificar?’. Então isso era um desafio para nós responder essas questões. E nós tínhamos que responder para nós mesmos... então esse comitê possibilitou que as coisas também ficassem mais claras264. Foram feitos três levantamentos sobre a segurança alimentar através da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar/PNAD nos anos de 2004, 2009 e 2013, todas em convênio com o MDS. A seguir, montamos dois gráficos que mostram a evolução da segurança alimentar de acordo com dados retirados da PNAD/IBGE: Gráfico 1: Evolução numérica da segurança alimentar nos anos de 2004, 2009 e 2013 Fonte: PNAD/IBGE. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/xml/suplemento_pnad.shtm. Acesso em abril de 2018. Gráfico 2: Percentual da evolução da segurança alimentar nos anos de 2004, 2009 e 2013 Fonte: PNAD/IBGE. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/xml/suplemento_pnad.shtm. Acesso em abril de 2018. 264 Trecho da entrevista a nós concedida por Ana Maria Segall Corrêa em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. http://www.ibge.gov.br/home/xml/suplemento_pnad.shtm http://www.ibge.gov.br/home/xml/suplemento_pnad.shtm 132 Observamos um declínio contínuo e expressivo da prevalência da insegurança alimentar entre os anos de 2004-2013, principalmente da insegurança alimentar grave e moderada. Em 2004 a insegurança alimentar grave e moderada somavam 19,5%, sendo que em 2013 este percentual caiu para 8,7%. Se o objetivo da elaboração da EBIA seria avaliar a eficácia do Programa Fome Zero, conforme relatado por Ana Maria Segall Corrêa, podemos afirmar, de acordo com os dados da EBIA, que o PFZ se mostrou eficaz, pois se alcançou o objetivo de diminuição da fome e desnutrição no Brasil. Obviamente que permanecem ainda inúmeros desafios neste contexto da insegurança alimentar. Se destrincharmos estes dados, veremos que as macrorregiões com maiores índices de insegurança alimentar grave e moderada continuam sendo Norte e Nordeste. No fator raça/etnia, permanecem os maiores índices de insegurança alimentar grave e moderada na raça/etnia diferente da branca. Na população negra, verificou-se que houve uma redução de 27,4% para 11% do índice de insegurança alimentar e nutricional (moderada e grave) nos últimos 10 anos. Esta desigualdade racial fica evidente quando se compara com os mesmo dados para a população branca, cujo mesmo índice foi de 4,1% em 2013265. Mas apesar dos desafios, se constata uma expressiva diminuição nos índices de insegurança alimentar no Brasil. Sobre as três PNAD realizadas e a mensuração da insegurança alimentar no Brasil, Segall afirma: A gente tem uma linha da segurança alimentar aumentando e a insegurança caindo. Então eu acho que a gente tinha razão, podemos quantificar sim! Claro que não é o único quantificador, não pode ser. Inclusive as pessoas acham, porque a gente só mede acesso com a escala, e isso tem que ficar claro para as pessoas que é uma limitação. Esta escala não pretende medir ou quantificar os desvios de todas as dimensões da segurança alimentar. Ela trabalha única e exclusivamente com acesso e por isso a gente não deve usá-la isoladamente. Ela deve estar em um conjunto de outros indicadores que deem conta tanto de explicar por que aquilo esta acontecendo, os determinantes da insegurança alimentar, você tem que ter os indicadores que sejam os explicativos da situação como você deve ter, sempre que possível, os indicadores das consequências disso na saúde, no bem-estar, nas condições psicossociais. A gente sempre recomenda que jamais se use esta escala isoladamente266. 265 BRASIL. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Caderno de Debates). Brasília: CONSEA, 2015. p. 14 266 Trecho da entrevista a nós concedida por Ana Maria Segall Corrêa em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. 133 A EBIA mede diretamente a percepção e vivência de insegurança alimentar e fome no nível domiciliar e, segundo Segall, se aplicada isoladamente, não seria adequada para medir a complexidade de um fenômeno multidimensional e interdisciplinar como a SAN. A EBIA seria útil para as estimativas de prevalência dos diversos níveis de insegurança alimentar, para a identificação de grupos ou populações de risco em nível local, regional ou nacional, e para o estudo dos determinantes e consequências da insegurança alimentar, quando a ela são adicionadosos indicadores apropriados. Para a pesquisadora, embora esta quantificação seja subjetiva, a confiabilidade dos resultados obtidos com a EBIA seria alta, por ser um instrumento cujos conteúdos e conceitos estariam fortemente enraizados na experiência de vida com a insegurança alimentar ou a fome. A EBIA teria alta capacidade preditiva de SAN quando comparada com aquelas resultantes dos indicadores indiretos, tais como consumo alimentar e renda267. Santos et al268, em artigo que trata da EBIA, destacam como pontos fortes da Escala: a sua representatividade nacional e o uso de medida consistente, validada e objetiva de insegurança alimentar, que teria sido analisada em diferentes pontos do tempo, permitindo o rastreamento detalhado do fenômeno na população brasileira entre os anos de 2004–2013. As limitações da EBIA, segundo os autores, seriam a impossibilidade de estabelecer relações causais entre as variáveis analisadas, característica que seria própria de estudos transversais e a influência do viés de memória, que se daria em virtude de a EBIA basear-se na percepção e nas diferentes experiências dos entrevistados. Além disso, avaliam que os dados apresentados poderiam não refletir a realidade encontrada em níveis geográficos menos abrangentes, pois a amostra analítica excluiria a população sem endereço residencial, que apresentaria elevada probabilidade de insegurança alimentar. 2.7. Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional 267 KEPPLE, Anne Walleser; SEGALL, Corrêa Ana Maria. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Ciência & Saúde Coletiva 2011, 16(1):187-199. p. 195 268 SANTOS, T.G., SILVEIRA, J.A.C., SILVA, G.L., RAMIRES, E.K.N.M., MENEZES, R.C.E. Tendência e fatores associados à insegurança alimentar no Brasil: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004, 2009 e 2013. Caderno de Saúde Pública 2018. p. 13 134 As primeiras proposições para a elaboração de um Sistema Nacional de SAN teriam sido feitas por ocasião da I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, realizada em 1986 em paralelo à 8a Conferência Nacional de Saúde. Tais proposições não teriam produzido resultados práticos, embora tenham sido criados sistemas na área de saúde e também na de nutrição269. Essa perspectiva teria sido retomada na II Conferência Nacional de SAN, em março de 2004, quando foi defendida e aprovada em plenária final a iniciativa para a criação de uma Lei Orgânica de SAN (LOSAN) criando o SISAN e seus congêneres nas esferas estadual e municipal. De acordo com Francisco Menezes, presidente do CONSEA Nacional à época: A Conferência se realiza e surge de Minas Gerais e se fortalece muito a proposta de que é preciso criar um marco legal para a Segurança Alimentar e Nutricional. Essa ideia vem dos Conselheiros e da sociedade civil. Essa ideia cresce. No próprio processo de preparação da Conferência começa a se espalhar e acaba que na II Conferência a diretriz mais importante é criar esse marco legal, criar a Lei da Segurança Alimentar e Nutricional. (...) Nesse novo mandato, que sai da (II) Conferência, a gente elege prioridades. A criação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional é uma das prioridades e se inspirava no SUS, no SUAS, a gente teve várias conversas. Foi criado um grupo de trabalho dentro do CONSEA, de governo e sociedade, que leva praticamente um ano para elaborar a proposta. Eu como presidente do CONSEA, eu presidia o grupo, mas isso tinha saído dentro da diretriz da Conferência da criação do marco legal de Segurança Alimentar e Nutricional.270 O Brasil tem longa experiência na implementação de programas sociais voltados para a questão alimentar e nutricional, todavia a descontinuidade e desarticulação entre os diversos programas descaracterizam esta experiência como uma política pública consistente e sistemática271 . A LOSAN, ao criar o SISAN, buscaria justamente articular as ações e programas relacionados à SAN e, segundo 269 MALUF, Renato; NASCIMENTO, Renato Carvalheira. (orgs). Construção do Sistema e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: a experiência brasileira. Brasília: CONSELHO NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL (CONSEA), 2009. p. 38 270 Trecho da entrevista a nós concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE 271 CUSTÓDIO, MARTA B. Política Nacional de Segurança Alimenta e Nutricional no Brasil: Arranjo Institucional e Alocação de Recursos. Tese (Doutorado). São Paulo: USP, 2009. Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP. Faculdade de Saúde Pública da USP. Curso Interunidades em Nutrição Humana Aplicada, 2009. p. 18 135 Menezes, teria se baseado na sua constituição em outros sistemas já existentes, como o SUS. A implementação do SISAN, contudo, seria bastante desafiadora, pois é regido por dois princípios estruturais: a intersetorialidade e a participação social, princípios bastante árduos de serem efetivados no sistema público brasileiro, uma vez que exigem quebra de paradigmas no modus operandi das políticas públicas no Brasil. O SISAN possui entre seus objetivos formular e implementar políticas, planos, programas e ações de SAN, estimular a integração de esforços entre governo e sociedade civil e promover o planejamento, o monitoramento, a gestão e a avaliação da SAN no Brasil. O SISAN foi pensado, assim, para articular os diferentes atores sociais num diálogo permanente da sociedade com o Estado em todas as suas etapas de estruturação. Este Sistema inovador requer forte engajamento político dos setores e atores sociais que compõem sua agenda e pressupõe a atuação conjunta das três esferas de governo (União, Estados e municípios) e das organizações da sociedade civil na formulação e implementação das políticas e ações de combate à fome, de promoção da SAN e da garantia do DHAA272. O projeto de lei para criação do SISAN foi aprovado por unanimidade em três comissões na Câmara dos Deputados. No Senado Federal também foi aprovado por unanimidade e em caráter de urgência pela Comissão de Constituição e Justiça em 05 de setembro de 2006, sendo a Lei 11.346/2006 sancionada dia 15 de outubro de 2006273. De acordo com Menezes, a conjuntura política na época teria corroborado para a agilidade na aprovação da LOSAN: A Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional que tinha sido a principal diretriz da II Conferência, foi elaborada em um ano. Passou inicialmente pela Câmara dos Deputados e não houve dificuldade. Havia uma conjuntura, que talvez hoje fosse diferente. Alguns temas, mesmo os deputados mais conservadores, eles ficavam temerosos em se colocar contrários. O máximo que eles faziam era atrasar o processo, mas eles ficavam temerosos em terem um desgaste político de se colocarem contra políticas como contra o enfrentamento da fome, da desnutrição, esse tipo de coisa. Tanto foi assim que a Lei Orgânica, sem nenhuma alteração de mérito durante todo o processo dela, correu na Câmara e correu no 272 BRASIL. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Caderno de Debates). Brasília: CONSEA, 2015. p. 36 273 AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS (ABRANDH). O Direito Humano à Alimentação Adequada e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, 2013. p. 144 136 Senado e foi aprovada em onze meses. Houve muito engajamento do governo para esta aprovação. Nesse sentido foi bastante bom, ele tinha uma maioria folgada naquele momento, acionando as bases no Congresso para viabilizar esta aprovação274.A LOSAN institui o SISAN, tendo como objetivo assegurar o DHAA. Diferentemente do conceito estabelecido em 1986, na I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, e em 1996, pela FAO na Cúpula Mundial de Alimentação, o artigo 3o da LOSAN reformula o conceito de SAN e inclui, além da necessidade do acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, o pressuposto de que este acesso tenha como base práticas alimentares promotoras de saúde, que seja respeitada a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. O Artigo 3o da LOSAN positiva, ipsis litteris: A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis275. Observamos um amadurecimento do conceito de SAN, que se deu, principalmente, em virtude da participação e militância do amplo e diversificado movimento social, principalmente dentro do CONSEA. O termo Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável tem origem no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil em 1992, e difere dos conceitos de SAN e de soberania alimentar por se tratar de um direito, que é inerente a todas as pessoas. O artigo 2o da LOSAN positiva e ressalta, que a alimentação adequada é um direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana. De acordo com Maluf, as políticas de SAN devem estar subordinadas aos princípios do DHAA e da Soberania Alimentar, sendo que estes devem ser os princípios norteadores das estratégias de desenvolvimento do país e da formulação de 274 Trecho da entrevista a nós concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE 275 Artigo 3o da Lei 11.346/2006 (LOSAN) 137 suas políticas públicas276. Para efetivar o DHAA e a soberania alimentar, o SISAN busca implementar ações integradas, sendo que os dois elementos que caracterizam um sistema: i) fluxos de interdependência de seus componentes e ii) mecanismos de coordenação277, se ajustariam plenamente à análise e promoção da SAN. A interdependência dos componetes da SAN estaria contemplada na intersetorialidade dos programas e ações do SISAN, que envolveria avaliação, decisão e monitoramento compartilhados entre diferentes setores do governo e sociedade civil. Já os mecanismos de coordenação estariam relacionados à cooperação entre Estado e sociedade civil, associado à recuperação da capacidade de regulação pública do sistema alimentar por parte do Estado, na contramão da ampliação da regulação exercida pelos agentes privados promovida pelas políticas de cunho neoliberal278. Os agentes coordenadores do SISAN seriam o CONSEA e a Câmara Interministerial de SAN (CAISAN), que devem ser implementados em âmbito estadual e municipal, integrando os diversos setores governamentais envolvidos no tema. O artigo 11 da LOSAN positiva a composição do SISAN: Art. 11. Integram o SISAN: I. a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, instância responsável pela indicação ao CONSEA das diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar, bem como pela avaliação do SISAN; II. o CONSEA, órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República, responsável pelas seguintes atribuições (...); III. a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, integrada por Ministros de Estado e Secretários Especiais responsáveis pelas pastas afetas à consecução da segurança alimentar e nutricional, com as seguintes atribuições (...) IV. os órgãos e entidades de segurança alimentar e nutricional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; e V. as instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, que manifestem interesse na adesão e que respeitem os critérios, princípios e diretrizes do SISAN. 276 MALUF, Renato. O Consea na Construção do Sistema e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. In: GRAZIANO DA SILVA, José; DEL GROSSI, Mauro Eduardo e FRANÇA, Caio Galvão de. Fome Zero: a Experiência Brasileira. Brasília: MDA, 2010. p. 268 277 Idem. p. 268 278 Idem. p. 268 138 O CONSEA representa a sociedade civil e a CAISAN, a instância governamental. Tanto o CONSEA como a CAISAN têm como referência as deliberações das Conferências Nacionais de SAN. Nas Conferências são elencadas as diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de SAN, ocasião em que também se avalia o desempenho do SISAN. O CONSEA tem a atribuição de transformar as deliberações das Conferências Nacionais em propostas relativas ao SISAN e à Política Nacional de SAN, encaminhadas à CAISAN, que as transforma em ações e programas públicos279. De acordo com o Documento Referência da V Conferência Nacional de SAN280, já é possível apontar diversos avanços na implementação do SISAN. Em âmbito nacional, o CONSEA estaria bastante atuante e a CAISAN estaria assumindo, de forma progressiva, suas competências de coordenação intersetorial e descentralização. O SISAN, de acordo com Maluf281, pode ser considerado um sistema aberto, dado que sua função é articular, organizar e monitorar as ações e políticas públicas dos diversos setores governamentais e não governamentais, articulando-as numa Política Nacional de SAN. As noções de sistemas são muito utilizadas no âmbito dos ecossistemas e ambiental ao se referirem às relações funcionais existentes entre os elementos que compõem a natureza e à interação do ser humano com esses elementos. Sistemas sociais, sistemas econômicos e sistemas políticos, entre outros, são igualmente difundidos, com distintas conceituações e aplicações e, por certo, algumas controvérsias acerca da extensão de sua aplicabilidade em processos que, no mais das vezes, comportam elevado grau de incerteza e de abertura de soluções. A perspectiva sistêmica a que se refere Maluf se filiaria aos enfoques que caracterizam o sistema como um conjunto composto de interrelações entre seus elementos, que evoluiria com contradições, dado que as relações sistêmicas presentes nas dinâmicas econômicas, sociais e políticas contêm elementos de conflito. A ação humana se daria em um 279 MALUF, Renato; NASCIMENTO, Renato Carvalheira. (orgs). Construção do Sistema e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: a experiência brasileira. Brasília: CONSELHO NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL (CONSEA), 2009. p. 40-42 280 BRASIL. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Caderno de Debates). Brasília: CONSEA, 2015. p. 37 281 MALUF, Renato. O Consea na Construção do Sistema e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. In: GRAZIANO DA SILVA, José; DEL GROSSI, Mauro Eduardo e FRANÇA, Caio Galvão de. Fome Zero: a Experiência Brasileira. Brasília: MDA, 2010. p. 268 139 ambiente de incerteza (desconhecimento em relação ao futuro) e recorreria ao conceito de ‘consequências não intencionais’ da ação humana com o sentido de abertura a várias soluções, admitindo, portanto, a possibilidade das soluções abertas282. A Política Nacional de SAN seria uma ‘política de políticas’ justamente por propor ações integradas envolvendo participantes de outros sistemas ou processos decisórios. Esta pulverização da SANreduziria sua autonomia quando comparado aos sistemas com políticas e programas específicos com fundos orçamentários próprios, conferindo-lhe uma complexidade que, da mesma forma que o destaca dos demais sistemas, também torna difícil o seu desempenho283. A política orçamentária do governo federal deveria estar associada com os objetivos e diretrizes da política de SAN, de modo a assegurar o máximo de recursos para os programas que a compõe. O desafio estaria em construir o orçamento da SAN tendo como base duas categorias de despesa: i) manutenção e gestão das instâncias do SISAN (Conferências, Conselhos, órgãos intersetoriais) e atividades correlacionadas, em todas as esferas de governo; ii) financiamento dos programas públicos sob responsabilidade dos órgãos responsáveis pelos mesmos. O CONSEA já desenvolve uma metodologia que lhe permite apresentar proposições e monitorar a execução dos programas que considera integrantes de um orçamento típico de SAN. O desafio que se colocaria seria que, embora o SISAN e a Política de SAN definam claramente seus objetivos, parece haver dificuldades de percepção sobre quais são as medidas implementadas de SAN e a eficácia delas, em virtude de algumas características intrínsecas à Política, como sua transversalidade temática e a possível sobreposição de diversas ações, complementares ou não entre si284. 282 BURLANDY, Luciene; MALUF, Renato; MAGALHÃES, Rosana; REIS, Márcio; MAFRA, Luiz; FROZI, Daniela. Saúde e Sustentabilidade: desafios conceituais e alternativas metodológicas para a análise de sistemas locais de Segurança Alimentar e Nutricional. In: Tempus, Actas de Saúde Colet, Brasília, 9(3), 55-70 set, 2015. p. 60-61 283 MALUF, Renato. O Consea na Construção do Sistema e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. In: GRAZIANO DA SILVA, José; DEL GROSSI, Mauro Eduardo e FRANÇA, Caio Galvão de. Fome Zero: a Experiência Brasileira. Brasília: MDA, 2010. p. 268 284 CUSTÓDIO, MARTA B. Política Nacional de Segurança Alimenta e Nutricional no Brasil: Arranjo Institucional e Alocação de Recursos. Tese (Doutorado). São Paulo: USP, 2009. Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP. Faculdade de Saúde Pública da USP. Curso Interunidades em Nutrição Humana Aplicada, 2009. p.10- 11 140 Maria Emília Pacheco, ex-presidente do CONSEA Nacional, acredita que a eficácia do SISAN passa por uma mudança de mentalidade da cultura política sobre a gestão de um sistema intersetorial: E essa Política está pensada dentro de um Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, isso também faz diferença. Não é exatamente um contorno de sistemas, como é o Sistema de Assistência Social, de Saúde... porque é um Sistema intersetorial, complexo, e que precisa de uma mudança de cultura política para que se opere como Sistema porque precisa haver muito mais interrelação e fortalecimento das instâncias de controle social como os CONSEAs, desde o Nacional passando pelos Estaduais e chegando nos Municipais... precisa que existam as Câmaras Intersetoriais no plano federal, estadual e municipal... e tudo isso está em construção há muito pouco tempo. Então é um Sistema que está em construção ainda, portanto é frágil ainda nesta trajetória de tão curto tempo e que nós tememos que isto se desconstrua neste momento da nossa história285. A instituição e o funcionamento dos CONSEAs e das CAISANs nos Estados e municípios brasileiros, a que ser refere Pacheco, ainda se encontram em processo de organização e valorização política e a complementaridade e articulação das mesmas se encontra de maneira muito variada no cenário nacional. Dessa forma, é fundamental que se enfatize a importância desta complementaridade e articulação de funções para que não haja choque de competências nem conflitos hierárquicos. Esta gestão intersetorial deve estar sempre alinhada com a participação social.286 Flavio Valente acredita que a força do SISAN se deve ao amadurecimento e engajamento da sociedade civil na sua elaboração: Eu acho que isso daí (se refere à criação do CONSEA) junto com todo o preparo que havia sido feito na área técnica e apoio político na parte do social criaram as condições específicas para você ter um Sistema que não é só figurativo. Você tem um Sistema que é realmente participativo. Um Sistema que tem 2/3 da representação do CONSEA vem da sociedade civil, a presidência é da sociedade civil, tem uma Câmara Interministerial que executa, então todos os princípios que nós defendemos enquanto movimento social foram implementados nesse processo. Não foi um projeto elaborado pelo governo e aprovado, pelo contrário. Foi elaborado pela sociedade civil e ajustado por eles e grande parte dos ajustes que eles fizeram 285 Trecho da entrevista à nós concedida por Maria Emília Pacheco em 3 de junho de 2016 na Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) 286 BRASIL. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Caderno de Debates). Brasília: CONSEA, 2015. p. 37 141 foram derrotados na prática, então na realidade, o projeto final é muito mais próximo do projeto que a sociedade civil apresentou antes da primeira eleição do que um projeto trazido pelo Graziano quando eles foram eleitos. O movimento social era informado, sabia o que queria, tinha capacidade de pressão então a coisa aconteceu287. Ainda sobre a participação social no fortalecimento do SISAN, Edgard Moura, conselheiro do CONSEA Nacional, corrobora com a opinião de que o SISAN ainda não está consolidado e reafirma a importância da sociedade civil neste processo: Qual é o foco principal em 2016, o grande desafio? É a consolidação do Sistema e ele só vai consolidar com a participação social. Hoje todos os Estados fizeram a adesão ao Sistema, mas qual Estado conseguiu de fato implementar o Sistema? Porque aderir é uma coisa, implementar é outra. Eu vou construir o Sistema quando eu tiver o Plano. Então o Plano Estadual está colado. Então o desafio é consolidar isso: adesão, construção do Plano e a aplicação com monitoramento do Plano. Nós estamos falando que o controle social é isso e nós só vamos conseguir vencer se houver este monitoramento. A gente costuma dizer que o SISAN é o primo mais novo do SUS. O SUS é um sistema vitorioso, com suas dificuldades, e o SISAN está em fase de consolidar mesmo, de conseguir fazer o Plano do seu Estado, de conseguir monitorar este Plano e garantir a participação social nesse Plano288. No intuito de promover o acompanhamento, monitoramento e avaliação da SAN, a LOSAN positiva em seu artigo 10o que o SISAN tem como um de seus objetivos a formulação e implementação de políticas e planos de SAN e o artigo 18o da LOSAN detalha que a Política Nacional de SAN (PNSAN) deverá ser implementada por meio do Plano Nacional de SAN (PLANSAN). Ou seja, o Plano de SAN é o instrumento pelo qual se executa a Política Nacional de SAN. A PNSAN apresenta os procedimentos para gestão do SISAN e os mecanismos de financiamento, monitoramento e avaliação da ação do Estado. O PLANSAN, por sua vez, é a peça do planejamento da ação do Estado que contém os programas e ações a 287 Trecho da entrevista a nós concedida por Flavio Valente em 06 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional 288 Trecho da entrevista a nós concedida por Edgard Moura em 07 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional 142 serem implementados, as metas quantificadas e o tempo necessáriopara sua realização, bem como o orçamento estipulando onde se deve aplicar os recursos289. 2.7.1. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional O Conselho Nacional de Segurança Alimentar, conforme estabelecido em sua primeira formulação em 1993, é composto por dois terços de representantes da sociedade civil e um terço de representantes governamentais, compreendendo vinte membros do Estado, que são Ministros e Secretários Especiais responsáveis pelas pastas relacionadas à SAN. Os dois terços dos representantes da sociedade civil são escolhidos a partir de critérios de indicação aprovados na Conferência Nacional de SAN, correspondendo a 40 representantes da sociedade civil, entre ONGs, redes, movimentos sociais, instituições religiosas e associações profissionais. Os representantes da sociedade civil têm mandato de dois anos, permitida a recondução. O CONSEA conta também com observadores representando conselhos e associações de âmbito federal, organismos internacionais do Sistema das Nações Unidas, organizações não-governamentais, Defensoria Pública e o Ministério Público Federal, indicados pelos titulares das respectivas instituições, mediante convite formulado pelo Presidente do CONSEA290. Esta composição híbrida do CONSEA, que abarca o Estado e predominantemente os representantes da sociedade civil, somada às ações e políticas intersetoriais inerente à SAN abordadas no Conselho, lhe conferem caráter inovador e de reconhecimento internacional. Maluf afirma: Eu estou dizendo isso, olhando retrospectivamente, tomando em conta as avaliações que existem hoje em dia. Quase todas (as avaliações) unanimemente reconhecem o caráter diferencial do CONSEA em relação aos outros Conselhos, como espaço de participação. Então algum acerto teve. Internacionalmente eles se surpreendem muito com o dinamismo da sociedade brasileira e esse espaço de participação e o CONSEA é inovador nesse sentido, no seu formato... Um Conselho com 2/3 da sociedade, presidido pela sociedade. Tem dezenove ministros. Então de fato há uma admiração muito grande internacional. Eu estou me referindo ao 289 AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS (ABRANDH). O Direito Humano à Alimentação Adequada e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, 2013. p. 161 290 Artigo 3, §2 do Regimento Interno do CONSEA.. 143 nacional porque como nós temos trinta e tantos Conselhos, tem muita experiência de Conselho no Brasil. Felizmente, né? Mesmo nessa proliferação de Conselhos, se você olhar os trabalhos que avaliam a participação social no Brasil, quase todos eles irão fazer uma referência diferenciada ao CONSEA, então isso é um bom sinal291. Maria Emília Pacheco argumenta neste mesmo sentido: Eu percebo que o CONSEA, é difícil dizer isso, porque eu estou lá, parece falta de modéstia, mas falando em nome do coletivo CONSEA, eu percebo que é um Conselho muito reconhecido, talvez pela maneira como a gente funciona. (...) É fruto de uma militância. A gente acaba articulando vários campos, porque se você olha a composição do CONSEA, é muito plural. No governo Dilma houve uma iniciativa de se criar um fórum inter-conselhos, mas antes mesmo dessa iniciativa nós já tínhamos uma interrelação do CONSEA com a Comissão de Agroecologia, porque o debate de agroecologia também foi feito dentro do CONSEA. Já tínhamos iniciado uma interação com o CONDRAF, que é o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, então fomos construindo essas interações e eu acho que de uma forma muito respeitosa, de reconhecimento mútuo.292 O CONSEA está ligado diretamente à Presidência da República por seu caráter intersetorial, pela prioridade a ele conferido pelo ex-presidente Lula e por reivindicação dos movimentos sociais ligados à SAN. A integração do CONSEA à estrutura básica da Presidência da República seria uma vitória dos militantes da SAN. Maluf relata: E finalmente a ideia (da existência do CONSEA) passou e o primeiro decreto do Lula reestruturando a Presidência da Republica ele vai e mete o CONSEA na Presidência. Isso foi uma vitória brutal e de lá nunca mais saímos. Aí a gente construiu tudo negociado, a estrutura, o regimento... Os CONSEAs dos Estados foram se fortalecendo depois. Primeiro foi o fortalecimento do CONSEA Nacional. E gradativamente a consepção de um Sistema, de CONSEAs estaduais e municipais foram amadurecendo e a partir da indução do governo federal os estaduais começaram a ser montados293. 291 Trecho da entrevista a nós concedida por Renato Maluf em 14 de abril de 2016 no Programa do Pós- Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ 292 Trecho da entrevista a nós concedida por Maria Emília Pacheco em 3 de junho de 2016 na Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) 293 Trecho da entrevista a nós concedida por Renato Maluf em 14 de abril de 2016 no Programa do Pós- Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ 144 Como integrante da Presidência da República, o CONSEA conta com o apoio técnico-administrativo e financeiro da Secretaria Geral da Presidência e do MDS para a execução dos seus trabalhos. A articulação do presidente do CONSEA junto às demais instâncias de governo seria de fundamental importância para o engajamento do Estado nas ações relativas à SAN: O presidente do CONSEA tem um papel muito imprtante nesse sentido, na interlocução com o governo. Trazer o governo para dentro do Conselho. A participação do governo no CONSEA não é liquida e certa, nem do governo federal nem do estadual. O presidente do CONSEA e os Conselheiros da sociedade civil têm um papel importante para trazer o governo. Para debater os seus programas, monitorá-los, aperfeiçoá-los, exigir programas que não existem ou que estão se enfraquecendo para que eles sejam fortalecidos, coisas assim. Aí nesse caso, é um papel mesmo de mediação política que o presidente do CONSEA faz entre as demandas da sociedade, os setores representados no CONSEA e o governo294. O CONSEA não possui caráter deliberativo sobre os assuntos que examina, entretanto, sua capacidade em incidir sobre a política não é determinada por essa condição de decisão. Na verdade, o conteúdo e força política de suas resoluções é que definirá se estas se impõem ou não. O CONSEA deve possuir capacidade apurada de negociação, de forma a chegar a propostas e resoluções possíveis de serem aprovadas e aplicadas295. O CONSEA é organizado em torno de um pleno, um presidente, um secretário geral, um secretário executivo, Comissões Temáticas Permanentes e Grupos de Trabalho. O pleno constitui a instância deliberativa e decisória do CONSEA, sendo composto pelos membros do Conselho, titulares ou suplentes. Funciona com base em sessões ordinárias a cada bimestre (de acordo com o artigo 12 de seu regimento interno, o CONSEA deve se reunir de forma ordinária, seis vezes ao ano) e extraordinárias, quando necessário. Cada membro no exercício da titularidade tem direito a um voto no CONSEA, enquanto os suplentes têm direito apenas a voz296. As 294 Trecho da entrevista a nós concedida por Renato Maluf em 14 de abril de 2016 no Programa do Pós- Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ 295 MALUF, Renato; NASCIMENTO, Renato Carvalheira. (orgs). Construção do Sistema e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: a experiência brasileira. Brasília: CONSELHO NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL (CONSEA), 2009. p. 66 296 NASCIMENTO, R.C. O Papel do CONSEA na Construção da Política e do Sistema Nacionalde Segurança Alimentar e Nutricional. 2012. Tese (Doutorado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. p. 86 145 atividades do CONSEA não são remuneradas, sendo sua atuação considerada de relevante interesse público. O CONSEA possui um regimento interno que define suas atribuições e as regras para o seu funcionamento. Neste documento estão descritas as finalidades, a organização e o funcionamento de todas as instâncias do Conselho. De acordo com o artigo 2 deste regimento interno, compete ao CONSEA: I) convocar a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com periodicidade não superior a quatro anos; II) definir os parâmetros de composição, organização e funcionamento das Conferências; III) propor à CAISAN, a partir das deliberações das Conferencias Nacionais de SAN, as diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de SAN, incluindo-se os requisitos orçamentários para sua consecução; IV) articular, acompanhar e monitorar em regime de colaboração com os demais integrantes do SISAN a implementação e a convergência das ações à Política e ao Plano Nacional de SAN; V) definir, em regime de colaboração com a CAISAN, os critérios e procedimentos de adesão ao SISAN; VI) instituir mecanismos permanentes de articulação com órgãos e entidades congêneres de SAN nos Estados, no Distrito Federal e nos municípios, com a finalidade de promover o diálogo e a convergência das ações que integram o SISAN; VII) mobilizar e apoiar as entidades da sociedade civil na discussão e na implementação da Política Nacional de SAN; VIII) estimular a ampliação e o aperfeiçoamento dos mecanismos de participação e controle social nas ações integrantes da Política e do Plano Nacional de SAN; IX) zelar pela realização do DHAA e sua efetividade; X) manter articulação permanente com outros Conselhos Nacionais relativos às ações associadas à Política e ao Plano Nacional de SAN; XI) manter articulação com instituições estrangeiras similares e organismos internacionais; e XII) elaborar e aprovar o seu regimento interno. Relatório de Pesquisa do IPEA297, que aborda o CONSEA na visão dos seus conselheiros, aponta que é consenso entre seus membros que o CONSEA funciona plena e adequadamente e com bons resultados. As dificuldades encontradas seriam aquelas que afetam a articulação de interesses, natural do contexto político. Dentre os pontos fortes do CONSEA destacados na pesquisa, estão, por ordem de importância: 297 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional na Visão de seus Conselheiros. Brasília, 2012. p. 50-51 146 i) aspecto deliberativo; ii) dedicação e capacidade dos conselheiros/mobilização social; iii) capacidade de influenciar políticas públicas; iv) representatividade, diversidade e legitimidade; v) articulação sociedade civil e Estado; vi) intersetorialidade; vii) fortalecimento da democracia; viii) funcionamento interno do Conselho; ix) apoio à agricultura familiar; x) apoio e articulação com estados e municípios; xi) articulação com o Congresso Nacional; xii) influência e referência internacional; xiii) localização na Presidência da República. O aspecto deliberativo foi o ponto forte do CONSEA mais citado pelos seus conselheiros, pois seria, de acordo com os entrevistados, “um espaço de diálogo, em que há uma discussão qualificada e o tema da SAN é considerado relevante”298. Seria um espaço que permitiria o diálogo como prática democratizante. Em relação aos aspectos que precisam ser melhorados para a atuação do CONSEA, as sugestões de melhoria são, por ordem de importância: i) aperfeiçoar o funcionamento interno do Conselho; ii) apoiar Conselhos Estaduais e municipais; iii) incluir temas ausentes nas discussões; iv) monitoramento e avaliação do governante/controle social; v) participação mais ativa dos representantes do governo; vi) reorganização das plenárias; vii) ampliar a representação; viii) aprofundar a intersetorialidade; ix) mais recursos para o Conselho; x) modificações no regime interno; xi) maior publicidade ao trabalho do Conselho; xii) localização na Presidência; xiii) valorizar as comissões permanentes; xiv) outros. Aperfeiçoar o funcionamento interno do CONSEA foi a sugestão mencionada com maior frequência pelos conselheiros, com bastante variações nas falas que mencionariam desde “melhor funcionamento das comissões temáticas” até “mais objetividade dos trabalhos” ou “reduzir a quantidade de reuniões”299. Dada a amplitude e complexidade da temática da SAN e a diversidade de representatividade dos conselheiros, entendemos que seja natural as desavenças dentro do CONSEA e que se coloque como prioridade o seu aprimoramento. 298 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional na Visão de seus Conselheiros. Brasília, 2012. p. 50 299 Idem. p. 51 147 2.7.2. Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional A Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional foi criada após a LOSAN pelo Decreto 6.273/2007, com o objetivo de promover a articulação e integração dos órgãos públicos responsáveis pela execução das políticas de SAN. Sua missão é transformar em programas de governo as proposições emanadas do CONSEA. O artigo 1o do Decreto 6.273/2007, detalha as competências da CAISAN: I - elaborar, a partir das diretrizes emanadas do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - CONSEA: a) a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, indicando as suas diretrizes e os instrumentos para su execução; e b) o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, indicando metas, fontes de recursos e instrumentos de acompanhamento, monitoramento e avaliação de sua execução; II - coordenar a execução da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, mediante: a) interlocução permanente entre o CONSEA e os órgãos de execução; b) acompanhamento das propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual; III - monitorar e avaliar, de forma integrada, a destinação e aplicação de recursos em ações e programas de interesse da segurança alimentar e nutricional no plano plurianual e nos orçamentos anuais; IV - monitorar e avaliar os resultados e impactos da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; V - articular e estimular a integração das políticas e dos planos de suas congêneres estaduais e do Distrito Federal; VI - assegurar o acompanhamento da análise e encaminhamento das recomendações do CONSEA pelos órgãos de governo, apresentando relatórios periódicos; VII - definir, ouvido o CONSEA, os critérios e procedimentos de participação no SISAN; VIII - elaborar e aprovar o seu regimento interno. Integram a CAISAN todos os 20 ministérios que participam do CONSEA, sendo sua presidência exercida pelo Secretário-Geral do CONSEA. Renato Maluf relata que quando a CAISAN foi criada, a intenção era que a sua presidência estivesse ligada diretamente ao Presidente da República, conforme ocorre com o CONSEA: Hoje (a política de SAN no Brasil) já é uma referência incontornável, mas não era assim antes. Um fator muito importante para isso foi a construção da CAISAN e o seu progressivo fortalecimento. Nós fomos contra quando ela foi criada no MDS. A gente sempre quis que ela estivesse na Presidência da República, mas não conseguimos, ela ficou no MDS. O MDS precisou de um 148 esforço longo para se legitimar como um pólo irradiador de um Programa que não é só seu, que os outros Ministérios precisam se enxergar nele e participar igualmente.A CAISAN de uns anos pra cá passou a ganhar um sentido real então quando os gestores dos vário setores, dos vários Ministérios são obrigados a ir numa Câmara debater suas ações sobre a ótica da Segurança Alimentar e Nutricional, isso significa que a sua incidência aumentou300. É o Ministério de Desenvolvimento Social quem coordena as atividades da CAISAN através de sua Secretaria Executiva. 2.8. Emenda Constitucional 64/2010 A proposta de se inserir o direito à alimentação na Constituição Federal se deu em 2001, quando do lançamento do Projeto Fome Zero pelos partidários do então candidato presidencial, Luiz Inácio Lula da Silva. O senador Antônio Carlos Valadares, do Partido Socialista Brasileiro (PSB) de Sergipe, apresentou em 07 de agosto de 2001 a proposta de Emenda à Constituição (PEC) ao Senado Federal, defendendo a inclusão do direito à alimentação ao texto constitucional, especificamente no rol dos direitos sociais do artigo 6o. A PEC, denominada PEC 47/2003, foi aprovada nos dois turnos no Senado Federal, sendo remetida à Câmara dos Deputados e lá permanecendo. Em 15 de maio de 2007, o deputado Nazareno Fonteles, do PT do Piauí, propôs nova redação ao artigo 6o da Constituição Federal, acrescentando além da alimentação, a comunicação como direito social. Com parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, a PEC 64/2007 foi apensada, em 21 novembro de 2007, à PEC 47/2003, passando a tramitar conjuntamente. Por acordo que envolveu todos os parlamentares membros da comissão especial, o deputado Nazareno Fonteles abriu mão da apreciação da PEC 64/2007, de sua autoria, reconhecendo ser aquele momento crucial para priorizar a inclusão da alimentação como direito social. Foram realizadas três audiências 300 Trecho da entrevista a nós concedida por Renato Maluf em 14 de abril de 2016 no Programa do Pós- Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ 149 públicas no mês de setembro de 2009, em que se debateu o tema amplamente com diversos setores da sociedade civil, do governo e especialistas no tema301. Francisco Menezes relembra fatos ocorridos nos bastidores da Câmara dos Deputados, que teriam contribuído significativamente para a aprovação da Emenda Constitucional: Existia desde 2001 uma PEC, que colocava o direito à alimentação dentro do artigo 6o da Constituição. Este projeto havia sido apresentado por um senador de Sergipe, Valadares, do PSB e este projeto tinha passado no Senado, mas estava engavetado na Câmara dos Deputados e foi feita toda uma movimentação dos movimentos sociais, da sociedade para desengavetar e colocar na pauta. Vou te contar mais um detalhe... eu tinha participado junto com o José Padilha, que é o cineasta do Tropa de Elite, da preparação de um filme sobre a fome que se chama Garapa. A gente estava participando de uma série de debates com a exibição do filme e teve uma proposta, casando com a PEC que estava engavetada na Câmara dos Deputados, de fazermos uma exibição dentro da Câmara dos Deputados, do filme e debate. E fizemos a exibição, teve participação de vários deputados assistindo e iniciando o debate, mas aí no meio do debate nós resolvemos que melhor do que prosseguir no debate era sair como que uma passeata por dentro da Câmara dos Deputados até o gabinete do presidente da Câmara, que nesse momento era o Michel Temer e pedir, com aquele monte de gente, para falar com ele e tentar arrancar dele o compromisso de liberação para a Câmara dos Deputados apreciar. Isso eu estou falando da PEC. Então depois de uma espera de uma meia hora com o Michel Temer fechado lá dentro da sala ele apareceu e a gente se apresentou. O Padilha já era uma figura mais conhecida e nós fizemos esse movimento302. Outra estratégia adotada foram as formas de se fazer chegar à população brasileira a proposta da Emenda Constitucional. Teriam sido utilizados vários instrumentos para a mobilização, como internet, redes sociais e canais de televisão, usando as articulações já existentes das ONGs, das entidades religiosas, sindicatos, movimentos sociais e demais organizações relacionadas com o tema da SAN. A ONG Humanos Direitos contribuiu com um vídeo303 encenado por atores da Rede Globo e exibido gratuitamente pelos canais de televisão aberta em que narram a proposta da 301 NASCIMENTO, R.C. O Papel do CONSEA na Construção da Política e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. 2012. Tese (Doutorado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. p. 144-145 302 Trecho da entrevista a nós concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE 303 O video está diponível em.: http://www4.planalto.gov.br/consea/videos/alimentacao-direito-de- todos-artistas-defendem-aprovacao-da-pec-47 Acesso em 05 de junho de 2018. 150 PEC 64/2007. Menezes relembra os bastidores da elaboração deste vídeo e sua importância na aprovação da Emenda Constitucional: Um outro ponto que talvez ele (Reato Maluf) não tenha te contado e que foi absolutamente decisivo para que a PEC fosse aprovada, que a gente desencadeou depois, foi o seguinte: existe uma ONG aqui no Rio que é chamada de Humanos Direitos e que é formada principalmente por artistas globais, mas todos eles bastante progressistas e a gente tinha acesso e trouxemos a ideia de eles gravarem como que um clip falando da necessidade de colocar o direito à alimentação na Constituição e aí uns sete artistas, sendo que alguns muito renomados, como Camila Pitanga, Dira Paes, e outros, gravaram. A gente tinha conseguido uma verba da ACOM (Secretaria de Comunicação) para fazer uma coisa assim, contratada, super profissional. Os artistas não cobraram nada, aliás foram 100%, ficaram lá o tempo que precisava e gravaram. Mas tinham os técnicos, que fizeram todo o processo de gravação. Ficou muito bom. Então o que aconteceu... de um lado a gente conseguiu diversas tvs autorização para ficar gratuitamente passando e aí já viu... cara de artista da novela global todo mundo presta atenção, né? E ao lado disso, a gente também colocou... tinha umas televisões na Câmara dos Deputados e a gente conseguiu ficar passando para os deputados. Isso foi absolutamente decisivo para aprovar! E a gente conseguiu passar o Direito Humano à Alimentação na PEC. E o próprio texto que eles falam e o clip é muito bonito. Tinha que caber tudo eu acho que em 30 segundos, mas a gente conseguiu. Os caras eram muito profissionais e a gente deu as bases do que seria para dizer e tal, eles fizeram uma proposta, a gente ainda discutiu um pouquinho, aí ficou a proposta e a gente levou para os artistas e cada um falava um pedacinho. Ficou muito bom. Então isso faz parte da história de aprovação da PEC304. Além desta mobilização, teria havido um ato público, organizado pelo CONSEA, realizado no dia 1 de outubro de 2009 dentro do Congresso Nacional, quando cerca de 350 manifestantes batendo pratos de metal entregaram um abaixo- assinado com mais de 50 mil assinaturas, em que se solicitava a aprovação da emenda constitucional pelo direito à alimentação. O ato foi realizado para aproveitar a presença de conselheiros e ativistas do DHAA que participavam do Encontro Nacional III Conferência + 2. Além da petição, centenas de mensagens recolhidas 304 Trecho da entrevista a nós concedida por Francisco Menezes em 26 de julho de 2016 na sede do IBASE. 151 pela ONG Action Aid em apoio à causa também foram entregues à presidência da Câmara305. Em 3 de novembro de 2009, após oito anos de espera de tramitação nas duas CasasLegislativas, a PEC 47/2003 foi aprovada em plenário, em primeiro turno, com ampla vantagem de votos. De 377 deputados presentes no plenário, 374 votaram a favor, dois votaram contra e um absteve-se. Na primeira sessão deliberativa da Câmara dos Deputados em 03 de fevereiro de 2010, foi finalmente aprovada, em segundo turno, a PEC 47/2003. Foram 376 votos favoráveis, nenhum contrário e duas abstenções. A proposta foi transformada na Emenda Constitucional 64/2010, que alterou o artigo 6o da Constituição Federal, ficando assim redigido: Artigo 6o - São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (Grifo nosso). Sobre esta conquista, Renato Maluf afirma: Foi uma grande vitória, talvez com um significado efetivo não tão grande assim. A gente sabe que às vezes no Brasil, especialmente no que diz respeito aos direitos, tem uma eficácia muito relativa. Mas está lá, nos permite falar disso, nos permite envocar o direito, nos permite fortalecer a construção do SISAN ao dizer que tem um imperativo constitucional306. Nesse mesmo sentido, Maria Emília Pacheco ressalta que a positivação do direito à alimentação na Constituição Federal é um avanço da SAN no Brasil, mas que não se traduziria de imediato em ações concretas: Um grande marco foi quando nós com uma boa mobilização conseguimos, e com uma adesão do Congresso Nacional, conseguimos incluir no artigo 6o da Constituição brasileira, o direito humano à alimentação adequada. Pode parecer algo redundante porque é um direito que diz respeito à vida e que não estava incluído, mas na medida em que se inclui, o Estado passa a ter responsabilidade e nós começamos a falar de política de Estado. Também foi nesse período que pela primeira vez temos uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional com estas 305 NASCIMENTO, R.C. O Papel do CONSEA na Construção da Política e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. 2012. Tese (Doutorado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. p. 146 306 Trecho da entrevista a nós concedida por Renato Maluf em 14 de abril de 2016 no Programa do Pós- Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ 152 diretrizes tão amplas porque são várias diretrizes da Política que contemplam estas dimensões a que estávamos nos referindo, de acesso ao alimento, de produção sustentável, de distribuição, de consumo e isto é um avanço importante. Isso não significa que tudo isso se traduza de imediato em ações concretas que vão se resolvendo, mas nós ampliamos com esta perspectiva da Política Nacional, ampliamos a visão de Segurança Alimentar e Nutricional como algo mais amplo do que o combate a fome. Isso é uma conquista307. Edgard Moura, em sentido correlato, afirma que a positivação na Constituição Federal do direito à alimentação serviria para ampliar as ações sobre a SAN: Eu acho que quando a gente coloca na Constituição a PEC do Direito Humano à Alimentação Adequada a gente de fato começa a fazer um debate transversal. Eu coloco ele como um guarda-chuva e debaixo dele eu consigo discutir a segurança alimentar, a soberania alimentar, e eu posso trabalhar com a população brasileira e posso fazer os recortes de terra e território para este tema da alimentação adequada. Então eu acho que garantir na Constituição o Direito Humano à Alimentação Adequada, com isso eu vou ser obrigado a discutir soberania alimentar, eu vou ser obrigado a discutir Segurança Alimentar e Nutricional. Então eu acho que este é o grande marco308. A positivação na Constituição Federal da alimentação como direito fundamental é um grande marco na história da SAN no Brasil. Conforme mostrado, a SAN no Brasil transformou-se substantivamente na medida em que a participação da sociedade civil e o monitoramento social se fortaleceram. A ênfase em políticas públicas voltadas para a proteção social, que se deu, principalmente, a partir do governo do ex-presidente Lula em 2003, contribuíram de maneira significativa para a inserção da SAN, em caráter prioritário, no bojo do processo de desenvolvimento socioeconômico brasileiro. A relevância da temática da SAN teria ido ao encontro das principais propostas de uma militância mais madura do movimento. Amadurecimento este que teria permitido o desenvolvimento e avanços significativos da SAN no Brasil neste início de século XXI. Entretanto, muitas questões ainda restam por ser melhor estruturadas e aprimoradas para que o DHAA seja de fato assegurado a todos os brasileiros. A intersetorialidade, intrinseca à temática da SAN, seria um dos grandes desafios a ser 307 Trecho da entrevista à nós concedida por Maria Emília Pacheco em 3 de junho de 2016 na Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) 308 Trecho da entrevista a nós concedida por Edgard Moura em 07 de outubro de 2016 durante o II Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional 153 superado para a efetiva garantia do DHAA. Muitas ações de SAN acabam pulverizadas pela falta de integração e do apoio intersetorial dos órgãos de governo. A proposta do SISAN, instituído pela Lei 11.346/2006, parece avançar na perspectiva de um olhar integrado com condições suficientes para o alcance das políticas de SAN, que somente seria viável com ações articuladas em nível intersetorial nas esferas federal, estadual e municipal e sob permanente participação da sociedade. Tal participação vem ocorrendo com a realização das Conferências de SAN, que são representações singulares do processo decisório das políticas públicas de SAN no Brasil. No capítulo seguinte, retomaremos alguns dos desafios estruturais debatidos nestas Conferências de SAN. 154 3. CONFERÊNCIAS NACIONAIS DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL As Conferências Nacionais de Políticas Públicas não são um fenômeno novo na história brasileira. A primeira Conferência Nacionail de Política Pública teria ocorrido em 1941, no período do Estado Novo (1937 - 1946), com objetivos diversos das Conferências atuais e teria se limitado ao tema de educação e saúde 309. A partir do processo de redemocratização do Brasil, na década de 1980, os novos movimentos sociais, emergentes da luta contra o regime militar nas décadas de 1970-1980, passam a reivindicar a criação e experimentação de novas práticas sociais, fundadas em bases mais igualitárias310. São criados, dessa forma, mecanismos de participação em que o poder do Estado é compartilhado com a sociedade, como os Conselhos Gestores de Políticas Públicas, os Orçamentos Participativos, as Audiências Públicas, entre outros. As Conferências Nacionais de Políticas Públicas são retomadas, embora ainda com ocorrência limitada tanto do ponto de vista numérico quanto temático. Segundo Dagnino: O fortalecimento da sociedade civil, ao se constituir nos anos 1970 como o único pólo possível de resistência democrática ao regime autoritário, lançou as bases de um processo que acabou transcendendo a eliminação da ditadura e apontando para novos modos de fazer política. A emergência de novos sujeitos políticos, reivindicando o seu reconhecimento, participação, espaço e voz ativa, trouxe consigo essa concepção ampliada de política, vista como condição das possibilidades de democratização e conquista da cidadania311. A consagração da participação social ocorre com a promulgação da Constituição Federal de 1988, marco formal desse processo, que estimula a participação popular, entendida como o exercício pleno da cidadania.A cidadania ganha um significado ampliado para além da escolha do governante, onde a participação da sociedade é central. A participação social seria uma característica 309 VENTURA, Tiago Augusto da Silva. Democracia e Participação no Brasil: um estudo de caso das conferências nacionais de políticas públicas de 2003-2010. Dissertação (Mestrado). Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2013. p. 12. 310 DAGNINO, E.; FERLIM, U.; SILVA, D. R.; TEIXEIRA, A. C. C. Cultura democrática e cidadania. In: Opinião Pública, Campinas, vol. V. no 1, Novembro, 1998, p. 20-71. p. 21 311Idem. p. 28-29 155 distintiva deste projeto subjacente ao próprio esforço de criação de espaços públicos onde o poder do Estado pudesse ser compartilhado com a sociedade. De acordo com Dagnino, no percurso desse projeto, dois marcos devem ser destacados: i) o fato de que o restabelecimento da democracia formal, com eleições livres e a reorganização partidária, abriu a possibilidade de que este projeto, configurado no interior da sociedade e que orientou a prática de vários dos seus setores, pudesse ser levado para o âmbito do poder do Estado, no nível dos Executivos Municipais e Estaduais e dos Parlamentos e, mais recentemente, em 2003, no Executivo Federal, com a eleição de Lula como Presidente da República; ii) como conseqüência, durante esse mesmo período, o confronto e o antagonismo que tinham marcado profundamente a relação entre o Estado e a sociedade civil nas décadas anteriores cederam lugar a uma aposta na possibilidade da sua ação conjunta para o aprofundamento democrático312. Grande parte dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas foram criados após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Segundo Rangel313, apenas cinco dos trinta e um Conselhos existentes até 2010 são anteriores ao texto constitucional, dado que foi justamente a Constituição Federal de 1988 quem estabeleceu as bases orientadoras para a expansão destes espaços de participação. De acordo com Tatagiba314, os Conselhos Gestores de Políticas Públicas passam a ser um espaço de interação onde a sociedade poderia exercer um papel mais efetivo de fiscalização e controle das políticas públicas, estando mais próxima do Estado e imprimindo uma lógica mais democrática na definição da prioridade na alocação dos recursos públicos. As Conferências Nacionais de Políticas Públicas, assim como os Conselhos Gestores de Políticas Públicas, são espaços de participação e deliberação e também tiveram grande ampliação após a Constituição Federal de 1988. Segundo Ventura, 73% do total das Conferências Nacionais de Políticas Públicas foram realizadas no período entre 1990-2010, quando as Conferências passam a se configurar como 312 DAGNINO, Evelina. Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas da confluência perversa. In: Política e Sociedade. n. 5 outubro 2005. p. 139-164. p. 141-142 313 RANGEL, Tauã Lima Verdan. Segurança Alimentar e Nutricional em Perspectiva Regional: análise dos avanços do Banco Municipal de Alimentos “Cecílio Correa Cardoso”, em Cachoeiro de Itapemirim/ES, como instrumento materializador da Segurança Alimentar e Nutricional e do Direito Humano à Alimentação Adequada. Dissertação (Mestrado). Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2015. p. 97 314 TATAGIBA, Luciana. Conselhos gestores e a democratização das políticas públicas no Brasil. In: DAGNINO, Evelina. Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002. p. 47 156 experiência mais presente na relação Estado e sociedade315. A partir da eleição de Lula como Presidente da República, que tem a temática da SAN no bojo de sua estrutura governamental, é retomado o ciclo de Conferências de SAN, atendendo esta demanda de participação social que vinha sendo construída desde a redemocratização. Com a retomada do ciclo de Conferências de SAN, desencadeia-se um processo em todo o Brasil, com Conferências Municipais, Estaduais e Regionais, até seu ápice na Conferência Nacional. Estas Conferências de SAN, além de um espaço de monitoramento, reflexão, deliberação e porposição de políticas públicas, contrubuem para a formação cidadã dos mais diversos setores sociais envolvidos com a SAN, inclusive os grupos populacionais mais vulnerabilizados. É uma oportunidade de se reconhecer novos sujeitos políticos e qualificar a gestão pública. A Conferência é, portanto, mais que um evento ou uma série de encontros.Trata-se de um processo político, caracterizado pela participação dos mais diversos setores da sociedade civil e de todos os entes federados, com a perspectiva de apontar novos passos para a realização do DHAA para toda a população brasileira. Constitui- se, ainda, um processo de formação e capacitação dos atores sociais e do governo, envolvidos nesta agenda, dada a sua capacidade mobilizadora e propositiva.316 As Conferências Nacionais possuem grande quantidade de participantes, que se distrubuem em fases e dinâmicas organizativas com especificidades na forma de mobilização e organização das etapas escalonadas 317. As Conferências Naionais de SAN ocorrem com periodicidade não superior a quatro anos e são organizadas e convocadas pelo CONSEA. São precedidas de Conferências Estaduais, Distritais e Municipais, envolvendo milhares de pessoas em todo o país, onde se escolhem os delegados à Conferência Nacional, além de abordarem temas que são específicos às 315 VENTURA, Tiago Augusto da Silva. Democracia e Participação no Brasil: um estudo de caso das conferências nacionais de políticas públicas de 2003-2010. Dissertação (Mestrado). Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2013. p. 12. 316 BRASIL. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Caderno de Orientações). Brasília: CONSEA, 2015. p. 06 317 SOUZA, Clóvis Henrique Leite de. Capacidades Estatais para a Promoção de Processos Participativos: uma análise da forma de organização de conferências nacionais. Tese (Doutorado). Brasília: Universidade de Brasília, 2016. p. 12 157 suas esferas 318 . As Conferências Distritais, Estaduais e Municipais são etapas preparatórias para a Conferência Nacional e contribuem para mobilizar o governo local e a sociedade civil. Seriam oportunidades de se ampliar a reflexão e balanço dos programas e ações desenvolvidos a nivel local, sensibilizando novos parceiros para esta agenda.319 Até o momento, foram realizadas cinco Conferências Nacionais de SAN (1994, 2004 e 2007, 2011 e 2015), mobilizando, cada uma delas, cerca de duas mil pessoas oriundas de todo o país, entre representantes da sociedade civil e do poder público. As Conferências Nacionais de SAN, junto com o CONSEA e a CAISAN, formam a tríade dos componentes mais importantes do SISAN. É o CONSEA, com o apoio do MDS, o responsável pela organização dessas Conferências, que têm como objetivo ampliar e fortalecer os compromissos políticos para a promoção da soberania alimentar, garantindo a todos o DHAA por meio da implementação da Política de SAN e do SISAN nas esferas de governo e com a participação da sociedade320. São nas Conferências Nacionais de SAN que se avalia o desempenho do SISAN e quando são indicadas as diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de SAN. Nas Conferências Nacionais de SAN ficam claras as contradições existentes entre os diversos segmentos sociais participantes, mas revelam também a capacidade de geração e legitimação de suas propostas. Trata-se de um mecanismo de participação de composição plural, que tem contribuído para o amadurecimento da temática de SAN, além