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Indaial – 2020 Fundamentos do estado e da administração Pública Prof. Nilton Bruno Tomelin 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2020 Elaboração: Prof. Nilton Bruno Tomelin Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: T656f Tomelin, Nilton Bruno Fundamentos do estado e da administração pública. / Nilton Bruno Tomelin. – Indaial: UNIASSELVI, 2020. 356 p.; il. ISBN 978-85-515-0457-4 1. Administração pública. - Brasil. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 351 III aPresentação Caro acadêmico! Ao iniciar os estudos da disciplina Fundamentos do Estado e da Administração Pública, o convidamos a conhecer o percurso formativo que orientará seu encontro com temas, que embora conhecidos com maior ou menor intensidade, merecem ser aprofundados para contribuir com sua formação profissional e pessoal. Para cada uma das três unidades de estudos, diferentes autores lhe proporcionarão clareza para o entendimento do conceito de Estado, sua relação com o poder e consequentemente com a administração pública. Na Unidade 1, intitulada Estado, você conhecerá as Origens, teorias, formação e tipos históricos de Estados, permitindo seu acesso a diferentes teorias e teóricos que buscam definir a origem do Estado e apontar a construção histórica de cada uma dessas teorias. Num segundo momento será estabelecido um debate em torno do Conceito e dos Fins do Estado, buscando definir o(s) conceito(s) de Estado conhecido(s) e suas implicações em relação à definição da finalidade do Estado. Após conhecida a origem, a historicidade, o conceito e a finalidade do Estado é chegado o momento de você compreender os chamados Elementos Constitutivos do Estado: território, povo, soberania. Trata-se dos elementos que estabelecem a identidade do Estado, bem como seus princípios estruturantes. Nesta mesma linha serão abordadas as diferenças entre Estado e Nação para que você tenha estabelecida a exata noção desses dois conceitos. Finalmente, a Unidade 1 apresentará as Formas de Estado, demonstrando que diante da diversidade do que se estudou nos tópicos anteriores, nos deparamos com diferentes formatos de Estado. A Unidade 2 tratará da relação entre Estado e Poder e por isso discutirá de maneira mais pontual as formas de se exercer o poder e suas implicações na definição de modelos. Por essa razão inicia-se a discussão definindo e apresentando historicamente o exercício do poder no modelo de relação entre Estado e Poder, denominado Monarquia, muito comum em tempos passados, em que é vista atualmente como ultrapassada ou de pouca efetividade. Em seguida será apresentada e discutida a relação pautada na aplicação do conceito de República, com um viés de maior participação popular. Ainda nesta unidade, você conhecerá a relação entre Estado e Capitalismo, apontando uma necessária clareza acerca do protagonismo do Estado num contexto de intensa participação privada no comando de definições de políticas públicas, vislumbrando um certo conservadorismo político. Como uma espécie de antítese a este modelo, você compreenderá IV a relação entre o Estado e o Socialismo, em que apontam-se visões mais progressistas de Estado e de políticas públicas como forma de prover o Estado da função de garantir a redução de desigualdades. Esta unidade lhe apresentará um estudo sobre o Estado e o Totalitarismo, que aponta para regimes que efetivamente se contrapõem aos movimentos civilizatórios que permitem a humanidade estabelecer e garantir direitos fundamentais. Já a Unidade 3, denominada Estado e Administração Pública, lhe oferece a oportunidade de identificar elementos do Estado no exercício efetivo de sua gestão, que apesar de ser definida por escolhas políticas assume um caráter técnico. O primeiro tópico será o governo e a sociedade, que tratará da razão maior da existência do Estado: as pessoas. São as pessoas, por outro espectro, que irão compor o governo e dar sentido as suas ações. Por isso no segundo tópico você será apresentado a uma análise histórica acerca da Evolução da administração pública brasileira, apontando inclusive aspectos legais que determinaram diferentes modelos de gestão e compõe a base para o(s) atual(is) modelo(s) conhecido(s). A Unidade 3 abordará ainda burocracia e gerencialismo, e os conceitos de governabilidade, governança e descentralização do poder. Trata-se do entendimento dos meios burocráticos que poderão estabelecer o formato de gestão do Estado, o que será fundamental para que se defina a estrutura e função da administração pública. Estas apontam para a dinâmica (organograma) da gestão do Estado, que por sua vez será imprescindível para determinar a eficiência, eficácia e efetividade na administração pública. Assim, com o presente livro didático, espera-se contribuir para que você possa desenvolver seus próprios conceitos acerca da temática tratada. Assim, apresentamos um instrumento de apoio ao seu esforço, como forma de estímulo às futuras discussões. Para além de sua formação acadêmica, espera-se que este material possa contribuir com a sua formação pessoal, apresentando novos horizontes de leituras de contexto! Bons Estudos! Prof. Nilton Bruno Tomelin V Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI VI VII Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer teu conhecimento, construímos, além do livro que está em tuas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela terás contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar teu crescimento. Acesse o QR Code, que te levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para teu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nessa caminhada! LEMBRETE VIII IX UNIDADE 1 – ESTADO ...........................................................................................................................1TÓPICO 1 – ORIGENS, TEORIAS, FORMAÇÃO, TIPOS HISTÓRICOS: UMA HISTÓRIA DE MUITOS CAMINHOS ...............................................................................................3 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................3 2 FORMAÇÃO DO ESTADO ..................................................................................................................4 2.1 O ESTADO ORIENTAL.....................................................................................................................6 2.2 O ESTADO GREGO ...........................................................................................................................8 2.3 O ESTADO ROMANO ......................................................................................................................9 2.4 O ESTADO MEDIEVAL ..................................................................................................................11 3 ESTADO MODERNO ..........................................................................................................................14 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................17 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................19 TÓPICO 2 – O QUE É PARA QUE SERVE O ESTADO? .................................................................21 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................21 2 PENSANDO O ESTADO ....................................................................................................................22 3 O ESTADO SEGUNDO SEUS FINS ................................................................................................37 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................42 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................44 TÓPICO 3 – TERRITÓRIO, POVO, SOBERANIA: O QUE FUNDA A IDENTIDADE E PERTENCIMENTO AO ESTADO .................................................................................47 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................47 2 TERRITÓRIO: IDENTIDADE E PERTENCIMENTO ...................................................................48 3 POVO: A QUEM PERTENCE O ESTADO .......................................................................................55 4 SOBERANIA: UM ESTADO ENTRE ESTADOS ...........................................................................61 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................69 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................71 TÓPICO 4 – POR QUE INSISTIMOS EM CONFUNDIR ESTADO E NAÇÃO? .......................73 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................73 2 HISTÓRIA E ORIGEM DO CONCEITO DE NAÇÃO .................................................................74 3 INTERAÇÃO ENTRE OS CONCEITOS E PRÁTICAS: ESTADO-NAÇÃO ............................76 4 A SUPERAÇÃO DO MODELO ESTADO-NAÇÃO ......................................................................81 RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................86 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................88 TÓPICO 5 – QUE ESTADOS TEMOS? ...............................................................................................91 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................91 2 MODELOS CONCEITUAIS MODERNOS DE ESTADO ............................................................92 2.1 O ESTADO ORIENTAL...................................................................................................................92 2.2 O ESTADO GREGO .........................................................................................................................94 2.3 O ESTADO ROMANO ....................................................................................................................95 2.4 ESTADO MEDIEVAL ......................................................................................................................96 sumário X 2.5 ESTADO MODERNO ......................................................................................................................97 3 MOVIMENTOS POLÍTICOS RECENTES: NOVAS CONFIGURAÇÕES DE ESTADO? .....98 3.1 ESTADO NACIONAL .....................................................................................................................98 3.2 ESTADO LIBERAL ..........................................................................................................................99 3.3 CRISE DO ESTADO LIBERAL .....................................................................................................100 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................105 RESUMO DO TÓPICO 5......................................................................................................................111 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................113 UNIDADE 2 – ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO ..............................................................................................115 TÓPICO 1 – MONARQUIA: PODER CONCENTRADO E CENTRALIZADO ........................117 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................117 2 HISTÓRIA E ORIGEM DO REGIME MONÁRQUICO .............................................................118 3 CONCENTRAÇÃO DE PODER E CENTRALIZAÇÃO DE DECISÕES E INTERESSES ......122 3.1 MONARQUIA ABSOLUTISTA ...................................................................................................123 3.2 MONARQUIA CONSTITUCIONAL ..........................................................................................125 4 A SUPERAÇÃO DA MONARQUIA E SUAS “SOMBRAS” NOS NOVOS REGIMES ......127 4.1 BRASIL COLÔNIA ........................................................................................................................128 4.2 BRASIL IMPÉRIO ..........................................................................................................................129 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................139 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................141 TÓPICO 2 – REPÚBLICA: PODER COMO FONTE E PRODUTO DE DEMOCRACIA, LIBERDADE E CIDADANIA .......................................................................................143 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................143 2 HISTÓRIA E ORIGEM DO REGIME REPUBLICANO .............................................................144 3 DEMOCRACIA, LIBERDADE E CIDADANIA: ALICERCESDO REGIME REPUBLICANO ..................................................................................................................................146 4 AS “SOMBRAS” DAS VELHAS PRÁTICAS E A DESVIRTUAÇÃO DO REGIME REPUBLICANO .................................................................................................................................157 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................162 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................164 TÓPICO 3 – O ESTADO E O CAPITALISMO: O ESTADO MÍNIMO E LIBERALISMO ......167 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................167 2 HISTÓRIA E ORIGEM DO CAPITALISMO ................................................................................168 2.1 PRIMEIRA FASE – CAPITALISMO COMERCIAL OU PRÉ-CAPITALISMO ......................173 2.2 SEGUNDA FASE – CAPITALISMO INDUSTRIAL ..................................................................174 2.3 TERCEIRA FASE – CAPITALISMO MONOPOLISTA-FINANCEIRO ..................................174 3 ESTADO MÍNIMO: DO LIBERALISMO AO NEOLIBERALISMO E APROFUNDAMENTO DA ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL .................................................... 175 4 ESTADO CAPITALISTA LIBERAL: A NATURALIZAÇÃO DA DESIGUALDADE SOCIAL .................................................................................................................................................181 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................185 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................187 TÓPICO 4 – O ESTADO E DEMOCRACIA: O ESTADO COMO GARANTIA AO ACESSO À UNIVERSALIDADE DE DIREITOS ..........................................................................189 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................189 2 HISTÓRIA E ORIGEM DO SOCIALISMO ..................................................................................190 XI 3 ESTADO COMO FIEL PROTETOR DE DIREITOS E GARANTIAS ......................................196 4 ESTADO DEMOCRÁTICO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS COMO INSTRUMENTOS DE COMBATE À MISÉRIA E DISTRIBUIÇÃO DE RIQUEZA E RENDA ...................................201 RESUMO DO TÓPICO 4......................................................................................................................209 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................210 TÓPICO 5 – O ESTADO E O TOTALITARISMO: O ESTADO COMO OBJETO E O PODER COMO OBJETIVO .........................................................................................................213 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................213 2 HISTÓRIA E ORIGEM DO TOTALITARISMO ..........................................................................214 3 A BRUTALIDADE COMO INSTRUMENTO DE IMPOSIÇÕES DE INTERESSES ............217 3.1 NAZISMO .......................................................................................................................................217 3.2 FASCISMO ......................................................................................................................................219 3.3 STALINISMO..................................................................................................................................220 4 A “COISIFICAÇÃO” DO ESTADO EM DETRIMENTO DE SUA COMPLEXA FUNÇÃO SOCIAL .................................................................................................................................................221 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................227 RESUMO DO TÓPICO 5......................................................................................................................229 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................231 UNIDADE 3 – ESTADO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ...........................................................233 TÓPICO 1 – O GOVERNO E A SOCIEDADE: RELAÇÕES QUE CONCRETIZAM A RAZÃO DE EXISTIR O ESTADO ...............................................................................................235 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................235 2 A SOCIEDADE COMO CENÁRIO DE ATUAÇÃO DOS GOVERNOS .................................236 3 A EXISTÊNCIA DO ESTADO COMO CENÁRIO DE CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES ENTRE GOVERNO E SOCIEDADE ...............................................................................................244 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................254 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................256 TÓPICO 2 – EVOLUÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA: GESTÃO COMO PRÁTICA DA DEFESA DOS INTERESSES E DIREITOS COLETIVOS ....................................................................................................................259 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................259 2 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA PRÁTICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ..........260 3 O CONCEITO DE GESTÃO PÚBLICA E SUA RELAÇÃO COM O DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ..............................................................................................................................................276 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................282 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................284 TÓPICO 3 – BUROCRACIA, GERENCIALISMO, GOVERNABILIDADE, GOVERNANÇA E DESCENTRALIZAÇÃO DO PODER: BASES E EVOLUÇÃO CONCEITUAL PARA A CONSTRUÇÃO DO ESTADO MODERNO .............................................287 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................287 2 DEFINIÇÃO DE BUROCRACIA E GERENCIALISMO, GOVERNABILIDADE, GOVERNANÇA E DESCENTRALIZAÇÃO DO PODER ..........................................................288 3 O ESTADO MODERNO COMO FRUTO DE DA EVOLUÇÃO DE CONCEITOS DE BUROCRACIA E GERENCIALISMO, GOVERNABILIDADE, GOVERNANÇA E DESCENTRALIZAÇÃO DO PODER .............................................................................................296 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................302 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................303 XII TÓPICO 4 – ESTRUTURA E FUNÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: GESTÃO COMO CAMINHO PARA A CONCRETIZAÇÃO DA CIDADANIA E DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ...................................................................................305 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................305 2 GESTÃO PÚBLICA E CIDADANIA ..............................................................................................3063 GESTÃO PÚBLICA E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ............................................310 RESUMO DO TÓPICO 4......................................................................................................................322 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................324 TÓPICO 5 – EFICIÊNCIA, EFICÁCIA E EFETIVIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O PROTAGONISMO DA GESTÃO PÚBLICA NA VIDA DAS PESSOAS .......327 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................327 2 DEFINIÇÃO DE EFICIÊNCIA, EFICÁCIA E EFETIVIDADE ...................................................328 3 IMPLICAÇÃO DA APLICAÇÃO DOS CONCEITOS DE EFICIÊNCIA, EFICÁCIA E EFETIVIDADE EM GESTÃO PÚBLICA .......................................................................................332 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................338 RESUMO DO TÓPICO 5......................................................................................................................341 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................343 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................345 1 UNIDADE 1 ESTADO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • definir as origens, teorias, formação e tipos históricos de Estado como princípios fundamentais aos estudos sobre a temática proposta pela dis- ciplina; • discutir os conceitos e fins do Estado como forma de compreender o seu efetivo protagonismo na vida das pessoas; • debater as múltiplas concepções de território, povo e soberania, como ele- mentos constitutivos do Estado e suas implicações na gestão do Estado; • demonstrar as diferenças entre Estado e Nação como forma de estabele- cer entre esses conceitos uma relação de interação e complementariedade; • analisar as formas de Estado para que se possa compreender a dinâmica temporal e espacial que as definem. Esta unidade está dividida em cinco tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – ORIGENS, TEORIAS, FORMAÇÃO, TIPOS HISTÓRICOS: UMA HISTÓRIA DE MUITOS CAMINHOS TÓPICO 2 – O QUE É E PARA QUE SERVE O ESTADO? TÓPICO 3 – TERRITÓRIO, POVO, SOBERANIA: O QUE FUNDA A IDENTIDADE E PERTENCIMENTO AO ESTADO TÓPICO 4 – POR QUE INSISTIMOS EM CONFUNDIR ESTADO E NAÇÃO? TÓPICO 5 – QUE ESTADOS TEMOS? Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 ORIGENS, TEORIAS, FORMAÇÃO, TIPOS HISTÓRICOS: UMA HISTÓRIA DE MUITOS CAMINHOS 1 INTRODUÇÃO Afinal, como surgiu o Estado? Esta seria a pergunta certa a se fazer no início deste estudo? Certamente, fazer uma boa pergunta, como nos diz o poeta gaúcho Mário Quintana, poderá nos conduzir a um conhecimento mínimo necessário para compreender esse importante conceito. Comecemos a responder para, enfim, saber se essa realmente é a pergunta ideal que haveremos de nos fazer. Ao analisar o conceito de Estado, grafado em letra maiúscula, é fundamental que se analise o protagonismo e as expectativas que se têm em relação a ele, frente às demandas atuais. Assim, o estudo sobre Estado exige que ele seja definido e caracterizado para que se dê o efetivo entendimento acerca de sua significação em nosso contexto. De forma sucinta é possível dizer que o Estado é a organização político-jurídica de uma sociedade para realizar o bem comum, com governo próprio e território determinado. Este conceito é recente e fruto de uma construção histórica que se confunde com a história da própria humanidade. Assim é preciso compreender essa construção histórica através das suas origens. Acerca do surgimento do Estado existem três formas de descrevê-la: 1) Há autores, como Eduard Meyer e Wilhelm Koppers, que consideram que o Estado, assim como a própria sociedade, sempre existiu. Afirmam também que o homem desde os primórdios está integrado em uma organização que se pode chamar de social, dotada de poder e autoridade. Sua finalidade seria determinar o comportamento social de todos os componentes do grupo. 2) Outros autores, como Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacqes Rousseau, entretanto, afirmam e defendem a concepção de que a sociedade existiu sem o Estado durante um certo período e, depois, por diversos motivos, mas que num dado momento foi constituído o Estado para atender às necessidades dos grupos sociais, como fruto de verdadeiro contrato social. “A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas”. Mário Quintana UNIDADE 1 | ESTADO 4 3) Alguns autores, como Carl Schmitt e Balladore Pallieri, por fim, somente admitem como Estado a sociedade política dotada de certas características bem definidas, o que só ocorreu a partir do século XVII, com a ascensão do absolutismo, como veremos a seguir. De forma sintetizada, Dallari (2006) afirma que o Estado é a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo, situado em determinado território. Este é um conceito que abarca, independentemente da historicidade uma definição simples e moderna de Estado. Este é o cenário em que iniciamos nossos estudos. O propósito é que você, por meio da leitura do texto, tenha a liberdade de elaborar seu próprio entendimento sobre o tema. Suas convicções e argumentos serão construídos, respeitando sua própria história e experiência de vida, desafiando-o a ser autônomo e livre. Bons estudos! 2 FORMAÇÃO DO ESTADO A falta ou a imprecisão desses registros, no entanto, não impede uma análise hipotética acerca da origem do Estado e nos lança o desafio de compreender como se deu efetivamente a formação do Estado primitivo de onde nasceu o modelo atual. Inicialmente é preciso que você saiba que há duas teorias fundamentais que procuram esclarecer como surgiu o Estado, apontando sua origem a partir de visões distintas e até mesmo opostas: • a da formação natural, baseada na concepção de homem como animal político de Aristóteles (2000), que reconhece no Estado um resultado de um processo natural e não de um ato voluntário, provocado por alguma circunstância humana. Assim, a formação do Estado teria sido motivada por movimentos e fatores absolutamente naturais, sem qualquer intervenção ou direcionamento humano. Considera-se o surgimento do Estado como um processo desencadeado por necessidades naturais ao ser humano e não como uma forma de acordo coletivo (contrato), ou de intenções individuais ou coletivas. O Estado é concebido, portanto, como uma consequência da própria existência humana, que deve ser organizada de alguma forma. • a da formação contratual, fundada na concepção de Thomar Hobbes (1998), que afirma que intenções e vontades combinadas de alguns homens ou de todos leva à criação do Estado. Esse acordo teria sido determinado em cada circunstância por interesses e intenções que não necessariamente visavam atender às necessidades implícitas ao ser humano. O centro dessa concepção é a intencionalidade, que é construída a partir de necessidades muito particulares de indivíduos ou grupos específicos. TÓPICO 1 | ORIGENS, TEORIAS, FORMAÇÃO, TIPOS HISTÓRICOS: UMA HISTÓRIA DE MUITOS CAMINHOS 5 Essa é a teoria adotada nesse estudo reconhecendo que a formação do Estado não é um movimento espontâneo como a formação de grupos sociais, mas um cenário que reflete vontades e intenções de homens e mulheres que vivem em sociedade. IMPORTANTE Quanto à formação há distintas explicações,você perceberá que divergências aparecem quando descobrir as razões (intenções) que teriam feito surgir o Estado. Segundo o professor André Luiz Lopes (2010), as mais referenciadas e citadas são: a) Origem familiar: concebe a ideia de que cada família primitiva se ampliou e deu origem a um Estado como uma espécie de propriedade transmitida como herança. Seriam, portanto, grupos mais fechados e mantidos isolados. Seria algo similar ao que hoje convencionamos chamar de tribos. Nelas podem ter surgido as primitivas formas de monarquias, tema que será abordado noutro tópico. b) Origem em atos de força: considera o fato de que a superioridade de força de um grupo social permitiu-lhe submeter outro grupo (mais fraco), nascendo o Estado dessa conjunção de dominantes e dominados. Assim, o Estado é uma organização em que as lutas de poder se eternizam e geram para além dos conflitos, sucessões por meio das variações de força e poder dos grupos que o compõem. Essas sucessões não obedecem aos moldes democráticos de escolhas, mas à imposição de uma nova ordem frente à outra. c) Origem em causas econômicas: o poder político ou mesmo o da força foi superado pelo poder econômico, resultante do acúmulo de riquezas individuais, o que flagrantemente teria desarticulada a convivência harmônica. Surgem então novas formas de aquisição da propriedade com acúmulo de riquezas. Surgem diferentes estratos sociais, nascendo o Estado dessa relação entre dominantes e dominados, mediada pelo poder econômico. Dessa origem inspiram-se muitos Estados modernos, em que o poder econômico se confunde com o poder político. ATENCAO UNIDADE 1 | ESTADO 6 d) Origem no desenvolvimento interno da sociedade: é o próprio desenvolvimento espontâneo da sociedade que deu origem ao Estado. Trata- se de um Estado não alinhado a modelos, mas fruto de um processo histórico único, com identidade própria. Esse espontaneísmo teria sido derivado da necessidade de a sociedade organizar-se e determinar funções e posições individuais frente a um contexto mais coletivo. A maioria dos Estados modernos apresenta traços mais ou menos profundos de sua própria história. Com isso, cada Estado é único, mesmo que similar a outros. Em razão da variação da formação e da origem dos Estados, você perceberá que há diferentes Estados surgem ao longo do tempo, com características próprias de acordo com o contexto histórico. Aqui, analisaremos os Estados oriental, grego, romano e medieval, que conduziram ao que se pode chamar e Estado Moderno. 2.1 O ESTADO ORIENTAL O Estado Oriental, também chamado de Antigo ou Teocrático, é o modelo de Estado das antigas civilizações do Oriente ou do Mediterrâneo. O uso desse remo pode parecer um tanto impróprio contemporaneamente, mas em razão da atual configuração geopolítica torna-se mais fácil compreender de que Estado efetivamente se está falando. Você, em outros momentos de sua vida acadêmica, deve ter visto que alguns eventos ocorreram de forma simultânea em diversas partes do planeta, sem que os envolvidos soubessem. A falta de registros ou mesmo de meios para tal impede que muitas informações acerca de processos, similares ou não, sejam conhecidas na atualidade, portanto, muitos fatos e até povos acabam sendo ignorados pela humanidade contemporânea, mas certamente contribuíram para que pudéssemos chegar até aqui. Por isso, partindo dos registros mais antigos de que se tem conhecimento, parte-se do chamado Estado Oriental para iniciar a discussão sobre Estado. Nesse Estado era comum a mescla entre família e religião. Além disso, Estado (poder político de caráter teocrático) e a economia (poder econômico) formavam um conjunto indefinido sem que se pudesse distinguir o pensamento político, religioso, da moral e filosófico. Essa confusão de papéis e atores políticos culminaram com um Estado de poderes unitários fortemente ligados à religiosidade. Não se poderia imaginar outra conclusão diante de uma população majoritariamente pouco esclarecida, uma vez que o apelo religioso costuma facilitar a dominação sobre pessoas ou grupos com essa carência. Embora com poucos registros, deduz-se que na Pré-História a grande sacada foi o domínio do homem sobre a natureza. Mais do que a natureza como ambiente é preciso lembrar que o homem necessitou dominar sua própria natureza, impondo a si próprio limites e regras para uma convivência minimamente possível. TÓPICO 1 | ORIGENS, TEORIAS, FORMAÇÃO, TIPOS HISTÓRICOS: UMA HISTÓRIA DE MUITOS CAMINHOS 7 O maior exemplo disso é o surgimento da cidade, certamente o símbolo maior do estabelecimento das relações políticas fora da família. Como assim? Ora, para existir como tal, a cidade necessita de uma organização e de estratégias de gestão e de escolhas coletivas ou sobre o coletivo. E isso é essencialmente uma soma de atos políticos. A política foi o resultado do processo que levou nossos ancestrais a tomar consciência de que um grande agrupamento de pessoas necessitava organização. Nessa nova organização não poderia haver divisão interior, territorial ou de funções, e uma forma de garantir essa unidade foi a mescla entre religiosidade e Estado, sendo este dominado pela primeira e por essa razão também denominado de Estado Teocrático. O faraó também passa a ser o líder do Estado, além de ter sua autoridade legitimada pelo seu vínculo com divindades. FIGURA 1 – FARAÓ RECEBE A SAUDAÇÃO DOS SÚDITOS FONTE: <https://static.todamateria.com.br/upload/te/oc/teocracia_egito_bb.jpg>. Acesso em: 23 jul. 2019. Não é difícil imaginar que nele as ordens, os costumes adotados e toda a forma de exercício de poder são orientados por um poder divino. Intencionalmente, o governante é confundido com uma espécie de semideus. Sua dogmática relação com o poder divino pode até lhe limitar alguns poderes, mas é exaltada como expressão da vontade divina. Por não haver registros mais detalhados, presume-se que o Estado, em sua versão primitiva, teria surgido pela centralização do poder por parte de alguns integrantes das sociedades primitivas. Esses indivíduos começam a centralizar o poder de forma mais duradoura. Mas como seriam escolhidos esses indivíduos? Esse é um processo necessariamente associado à prática da agricultura e do domínio da escrita. A agricultura determinando a ascensão econômica e a escrita o domínio das informações e dos registros, conforme veremos no Subtópico 5 desta unidade. UNIDADE 1 | ESTADO 8 2.2 O ESTADO GREGO O protagonismo histórico do Estado Grego é marcado pela fundação da chamada cidade-Estado, a polis, cujo ideal era a autossuficiência. Pela primeira vez estabeleceu-se uma classe política, dominada por uma elite que tinha o efetivo poder de decisão. Constituiu-se uma forma de administração pública do Estado, pautada em interesses coletivos. A autonomia individual restringiu-se às relações de caráter privado. FIGURA 2 – REPRESENTAÇÃO DE UMA ASSEMBLEIA DE CIDADÃOS FONTE: <http://obviousmag.org/filosofia_tecnologia_arte_e_pensamento/2017/as-origens-da- democracia.html>. Acesso em: 23 jul. 2019. Embora possa ser considerado o precursor, verdadeiro embrião do governo de características democráticas, não se pode comparar essa condição às atuais formas democráticas de governo. Isso por um motivo elementar! No modelo grego, a democracia restringia a condição de cidadão aos que não fossem estrangeiros, escravos e mulheres. Assim, a cidadania, como é retratada na figura anterior, é um privilégio bastante restrito no Estado Grego. Mesmo assim é inquestionável a sua importância para se alcançar o atual modelo democrático conhecido, que ainda não atingiu sua forma ideal. Como nos lembra Kenneth Minogue (1996, p. 19), “os cidadãos eram diferentes uns dos outros em riqueza, beleza e inteligência, mas eram iguais enquanto cidadãos, porque eram racionais e a única relação adequada entre os seres racionais é a persuasão”. TÓPICO 1 | ORIGENS, TEORIAS, FORMAÇÃO, TIPOS HISTÓRICOS: UMA HISTÓRIADE MUITOS CAMINHOS 9 A persuasão, convém dizer, ainda hoje é o caminho mais justo para a consolidação da democracia. Ao contrário do comando, típico de regimes totalitários e líderes autoritários, a persuasão considera o princípio da igualdade entre os interlocutores. IMPORTANTE Graças ao modelo grego, construíram-se ao longo da história inúmeras formas de Estado, tendo a democracia como seu valor político supremo. À medida que se consolidou essa nova lógica, novos grupos passaram a ter sua cidadania reconhecida, e a democracia teve sua prática reconhecida. Até hoje, o regime democrático, nascido com os gregos, é reconhecido como aquele que mais acolhe a multiplicidade de opiniões, presente em todo o contexto humano. É importante destacar que não há democracia sem política, e como mencionamos, foram os gregos que fizeram nascer a classe política e, não por outra razão, costuma-se atribuir aos gregos a invenção da política, o que é assim descrito por Minogue (1996, p. 20): Os gregos foram o primeiro povo na história a criar sociedades deste tipo; foram, certamente, os primeiros a criar uma literatura que explorou essa forma de vida como experiência. A política era a atividade específica para essa nova figura chamada “cidadão”. Podia revestir muitas formas, mesmo aviltantes, de tirania e usurpação, mas numa coisa os últimos clássicos da Grécia foram inflexíveis: para eles o despotismo oriental não era política. Dessa forma, todo o combate ao que não é democrático nasce com a própria democracia e aperfeiçoa-se a partir dela. O surgimento da democracia é tão decisivo e marcante para a humanidade que há quem diga que a própria história tenha sua existência marcada com o início da própria democracia. Entretanto, outros Estados surgem paralelamente ao grego, como é o caso do Romano. Sobre a discussão em torno da democracia e da persuasão, estas serão retomadas no último tópico desta unidade. 2.3 O ESTADO ROMANO Como dito anteriormente, o modelo grego de Estado não foi exclusivo, mas ao contrário, apenas um dos conhecidos. Outro modelo de Estado bastante relevante é o Estado Romano. Nele, a família é a base da organização, garantindo aos descendentes dos fundadores do Estado privilégios especiais. Atinge um patamar próximo ao monárquico, por conta dessa característica. Mas diferencia- se deste pelo fato de que o povo participava diretamente do governo que era exercido por um magistrado. UNIDADE 1 | ESTADO 10 Porém, a exemplo do modelo grego, o volume de pessoas participantes do que se chamava de povo era restrito. A cidadania romana aplicava-se apenas aos homens livres. Portanto, como você pode perceber, difere profundamente da democracia atual, dotada de uma soma de aperfeiçoamentos e de inclusão coletiva. Com o passar do tempo, novos estratos sociais surgiram, o que forçou a criação e ampliação de direitos. Uma característica desse tempo foram as frequentes invasões, com a finalidade de incorporação de novos territórios ao império. Nesse contexto, não é de se estranhar o protagonismo do poder militar, característica marcante do Estado (Império) Romano. Como a constituição da humanidade como tal é reconhecidamente um processo histórico, não poderia ser diferente com o Estado, que compõe uma das mais venturosas criações humanas. IMPORTANTE A queda do imperador Flávio Rômulo Augusto, em 476, derrotado por um bárbaro, é concebido como marco para o fim do Império Romano. Mas esse fato não pode ser concebido como uma única ou maior razão para isso. Há quem afirme que não se deve discutir o motivo da queda, mas os motivos que permitiram ao Império Romano durar tanto tempo. Sua imensa extensão fez com que Roma perdesse o controle sobre todo o território. FIGURA 3 – MAPA DO IMPÉRIO ROMANO EM SEU APOGEU FONTE: <https://www.historiadomundo.com.br/romana/mapa-do-imperio-romano.htm>. Aceso em: 25 jul. 2019. TÓPICO 1 | ORIGENS, TEORIAS, FORMAÇÃO, TIPOS HISTÓRICOS: UMA HISTÓRIA DE MUITOS CAMINHOS 11 Paralelo a isso afirma-se que com a ineficiência do exército; o Estado (Império) tornou-se pouco eficiente na gestão; profundas mudanças de natureza religiosa (com a ascensão do cristianismo) e a pressão bárbara (povo excluído da chamada cultura greco-romana) contribuíram também para a queda do Império Romano. A partir dessa soma de fatos, surge o que chamamos de Estado Medieval e o Império Romano se desfaz. 2.4 O ESTADO MEDIEVAL Como você pode perceber, o Estado Romano, ao ruir, foi tomado por novas formas de gerir e determinar o protagonismo do Estado. Vários impérios menores foram surgindo (Figura 4), sendo mais importante, o Sacro Império Romano Germânico. Além disso, há que se considerar a perseverante relação entre Estado e religião, neste momento da história ocidental, com o Cristianismo. É neste contexto que surge o Estado Medieval. FIGURA 4 – REPRESENTAÇÃO DO ESFACELAMENTO DO IMPÉRIO ROMANO FONTE: <https://www.pinterest.es/pin/360006563942652315/>. Acesso: 25 jul. 2019. Este é caracterizado pela identidade cristã, sendo constituído por sucessivas invasões bárbaras e pelo aparecimento do feudalismo. Essencialmente, o Cristianismo passa a ser o precursor do conceito de universalidade. Com isso fica estabelecido que todos são iguais, superando a ideia de grupos (castas ou classes) privilegiados, estabelecidos desde a Antiguidade. Os privilegiados eram os que detinham o poder econômico acumulado por meio de negócios e pelo monopólio da escrita. Se todos são iguais, então não há distinção entre os que detêm direitos. ATENCAO UNIDADE 1 | ESTADO 12 Evidentemente que concretizar esse Estado de igualdade de direitos se supunha que todos fossem ou se converteriam em cristãos. Para concretizar essa igualdade, estabeleceu-se uma espécie de simbiose entre Estado e Igreja, em que castigos e punições se confundiam nos campos jurídico e religioso. A proximidade entre Estado e Igreja levou o Papa Leão III a conferir a Carlos Magno o título de Imperador do Sacro Império Romano, em 25 de dezembro de 800. Isso por que o referido imperador tinha sua autoridade contestada em face à multiplicidade de centros de poder (os reinos, os senhorios, as comunas, as organizações religiosas). Embora gozando absoluto prestígio junto ao Papa, o próprio imperador se recusava a se submeter à autoridade da igreja. Para ele, isso teria um custo muito elevado: perderia parte de sua liberdade de agir de acordo com seus interesses. Esse é um dos pontos fundamentais que conduziram à composição do chamado Estado Moderno, consolidando a supremacia dos monarcas e reduzindo fortemente o poder e a influência da Igreja Católica. Com isso, o grande império dilui-se em Estados menores. Nesses novos Estados surge o feudalismo, uma relação contratual servil com base na propriedade da terra e não mais exclusivamente na força de trabalho (escravos). O proprietário cederia a terra e o trabalhador ofereceria sua força de trabalho e partilhariam os frutos da soma de trabalho e terra, o que garantia a sobrevivência de ambos. Evidentemente, neste período valorizou-se a posse da terra, desencadeando uma administração do Estado articulada à complexa organização militar capaz de assegurar as relações de laborais e de propriedade. IMPORTANTE Além disso, a relação servil se estendia sobre outros aspectos, uma vez que a relação entre trabalho e propriedade não seria a única a ser estabelecida nos feudos. Haviam também relações entre os proprietários e outras figuras poderosas que dominavam a política e a economia do Estado. Proprietários feudais e imperadores mantinham relações de cooperação, assim como proprietários e servos, apoiando-se nas guerras e até mesmo contribuindo financeiramente em troca de proteção. TÓPICO 1 | ORIGENS, TEORIAS, FORMAÇÃO, TIPOS HISTÓRICOS: UMA HISTÓRIA DE MUITOS CAMINHOS 13 FIGURA 5 – REPRESENTAÇÃO DE UM FEUDO FONTE: <http://www.historialivre.com/medieval/salafeudalismo.htm>. Acesso em: 25 jul. 2019. O contrato entreo senhor feudal e o chefe de família, desprovido de propriedade, se estabelecia de forma que uma faixa de terra era cedida pelo senhor feudal. Cada fração de terra do feudo seria cultivada por uma família que prestaria contas ao senhor feudal e, assim, verdadeiros mosaicos se estabeleciam em cada feudo. O contratado, como servo, garantiria o suficiente para que a sua família pudesse se sustentar, porém, em contrapartida, parte da produção era repassada ao dono das terras: o senhor feudal. Assim, o Estado Medieval, nos diferentes impérios, foi caracterizado pela existência de um poder superior exercido pelo imperador. Abaixo dele, uma multiplicidade de poderes menores determinados pelos senhores feudais, sem uma hierarquia estabelecida, além de uma diversidade de ordens jurídicas (norma imperial, eclesiástica, contratos etc.) que serão retomadas no Subtópico 5 desta unidade. Isso produziu uma intensa instabilidade social, política e econômica, clamando por uma profunda necessidade de ordem e autoridade, o que serviu de embrião para Estado Moderno. Este será o tema a ser debatido, estudado e interpretado no próximo subtópico deste livro didático. Além disso, você poderá adiantar e ampliar seus estudos com o texto Sobre a evolução do Estado, de Márcio Eduardo Pedrosa Morais, o qual você encontrará no site https://jus.com.br/artigos/18831/sobre-a-evolucao-do-estado. DICAS UNIDADE 1 | ESTADO 14 3 ESTADO MODERNO O Estado Moderno, na perspectiva do ordenamento e organização de um novo modelo de Estado, caracteriza-se pela soberania, a territorialidade e o povo e se originou da necessidade de unidade, a busca de um único governo soberano dentro do território delimitado, após a fragmentação do sistema feudal. FIGURA 6 – REPRESENTAÇÃO ESQUEMÁTICA DO ESTADO MODERNO FONTE: <https://www.cafecomsociologia.com/conceito-estado-sociologia/>. Acesso em: 27 jul. 2019. SOBERANO. Analisando mais criteriosamente, observam-se quatro elementos presentes em todos os estados modernos: capital, fronteira, soberania externa e legitimidade. Seu nascimento se deu no século XV, com o surgimento e aprimoramento do capitalismo mercantil registrado em Portugal, França, Inglaterra e Espanha. Posteriormente, aparece também na Itália. Ao final do século XIV e na primeira metade do XV é flagrante a crise do sistema feudal fomentada por sucessivas insurgências dos camponeses (servos) e da evolução do comércio na Europa. Esta última estimulada pelo crescente volume de navegações e pelo movimento de mercadorias e riquezas entre as nações europeias e suas colônias. A burguesia clamava por sua autonomia econômica e política, possível apenas com a existência de um governo central estável e centralizado, apto a prestar serviços à população. Outra demanda burguesa era a redução de impostos e unificação de moedas, visto que cada feudo ou região possuía um sistema financeiro com características próprias. TÓPICO 1 | ORIGENS, TEORIAS, FORMAÇÃO, TIPOS HISTÓRICOS: UMA HISTÓRIA DE MUITOS CAMINHOS 15 A consolidação do Estado Moderno se deu ao longo de cerca de três séculos e estabeleceu como suas características principais: a) um só poder; b) um só exército; c) autoridade soberana de todo o território; d) administração unificada; e) criação do sistema burocrático. IMPORTANTE O chamado Estado Moderno foi edificado a partir de importantes pensadores e suas teorias, as quais serão discutidas adiante. É importante destacar que não há um Estado Moderno único, mas uma diversidade de Estados que seguem uma orientação similar, do ponto de vista teórico, sem, no entanto, ocultar particularidades que os diferenciam. Assim, oportunamente perceberemos que o Estado Moderno é um conceito e não exatamente um modelo. Antecipadamente é possível dizer que o Estado Moderno substitui os regimes absolutistas e é o precursor de intensa movimentação histórica, merecendo destaque a Revolução Francesa, como um dos fatos histórico/políticos mais importantes da história, e foi marcada por acontecimentos igualmente decisivos para o que viria depois: a Assembleia Nacional Constituinte, de 1789; a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e outros movimentos. Deve-se lembrar que a Revolução Francesa, ocorrida entre 1789 e 1799, encerrou o Absolutismo no país, mas seus reflexos foram sentidos em todo o mundo ocidental. A relevância dessa revolução é tão expressiva que os historiadores a consideram como o verdadeiro divisor de águas entre a Idade Moderna e a Idade Contemporânea. Ela aconteceu em razão da acentuada desigualdade social, somando-se às novas ideias iluministas, gestão malconduzida e com graves problemas fiscais, queda dos níveis econômicos franceses. Foi a Revolução Francesa que marcou também a composição do novo modelo de Estado pelo surgimento efetivo do sufrágio universal e dos movimentos sociais na prática política. Isso, dito de outra forma, significa que a participação popular conhecida e aplicada aos Estados atuais teve sua gênese nesse período. Desta forma, o Estado contemporâneo carrega consigo as marcas desses modelos e, certamente, por mais que se queira um modelo ideal, ainda há que se considerar diferenças e divergências de formas de construir essa importante entidade. NOTA UNIDADE 1 | ESTADO 16 Vídeos sobre a Origem do Estado. Os vídeos aqui indicados tratarão das relações entre Sociedade, Estado e Governo, focalizando o Estado como conceito central dessa discussão. Com ele você poder responder objetivamente e refletir sobre a origem, características e finalidades do Estado. Para facilitar seus estudos, você poderá fazer um quadro-resumo, descrevendo em tópicos cada uma dessas reflexões. Você também poderá analisar o Estado brasileiro e comparar com apontamentos dos vídeos, compreendendo assim a sintonia entre Estado ideal e Estado real. Vídeo 1: https://www.youtube.com/watch?v=P_haxmRhx8A Vídeo 2: https://www.youtube.com/watch?v=kj4wCKTZtyQ DICAS 17 Neste tópico, você aprendeu que: • O Estado, tal qual conhecemos hoje, tem sua origem atribuída a duas visões distintas: a) formação natural motivada por movimentos e fatores absolutamente naturais, sem qualquer intervenção ou direcionamento humano; b) formação contratual, que afirma que intenções e vontades combinadas de alguns homens ou de todos leva à criação do Estado. As razões que fizeram o Estado surgir são: a) Origem familiar: como propriedade transmitida como herança; b) Origem em atos de força: o Estado é uma organização em que as lutas de poder se eternizam e geram sucessões por meio das variações de força e poder dos grupos que o compõe; c) Origem em causas econômicas: resultante do acúmulo de riquezas individuais, o que flagrantemente teria desarticulado a convivência harmônica; d) Origem no desenvolvimento interno da sociedade: é o próprio desenvolvimento espontâneo da sociedade que deu origem ao Estado. • O Estado Oriental também é chamado de Antigo ou Teocrático. Poucos e imprecisos registros pré-históricos apontam para a grande sacada humana: o domínio do homem sobre a natureza. Esse modelo viu surgir a cidade, símbolo maior do estabelecimento das relações políticas fora da família. O perfil teocrático desse Estado remete à centralização de poder. • A seleção dos indivíduos responsáveis pela condução do Estado está diretamente relacionada à agricultura e à escrita. A primeira em razão da produção de excedentes e seu controle, e a segunda em razão do acúmulo de saberes que passariam a ser registrados e transmitidos por quem tivesse acesso ao domínio da escrita. A escrita contribuiu para sistematização de regras e códigos, os quais passaram a inspirar o arcabouço jurídico que encontramos na atualidade. Um exemplo clássico é o Código de Hamurabi. • O Estado Grego é marcado pela fundação da chamada cidade-Estado, a polis, estabelecendo-se uma classe política. Foi o embrião do governo de características democráticas. Porém, a cidadania era um privilégiorestrito aos homens livres no Estado Grego. • A democracia grega foi fundada tendo por base a persuasão, e não a imposição de vontades. Graças ao modelo grego, construíram-se ao longo da história inúmeras formas de Estado, tendo a democracia como seu valor político supremo. RESUMO DO TÓPICO 1 18 • Outro modelo de Estado que você pôde notar, bastante relevante, é Estado Romano, que teve por base de sua organização a família, garantindo aos descendentes dos fundadores do Estado privilégios especiais. A exemplo dos gregos, o volume de pessoas participantes do que se chamava de povo era restrito. A cidadania romana aplicava-se apenas aos homens livres. • No Estado Romano, o poder físico e o poder legal tornaram o Estado um império sem limites ao poder de atuação do Estado. A queda do imperador Flávio Rômulo Augusto, em 476, derrotado por um bárbaro é concebido como marco para o fim do império Romano. A imensa extensão do império fez com que Roma perdesse o controle sobre todo o território. • Além disso, contribuíram para o fim do império Romano a ineficiência do exército; profundas mudanças de natureza religiosa (com a ascensão do cristianismo) e a pressão bárbara. • A ruína do Estado Romano fez surgir vários impérios menores que compuseram Estados que caracterizaram o período medieval. Uma das marcas desse período foi o aparecimento do feudalismo. O Cristianismo passa a ser o precursor do conceito de universalidade, estabelecendo que todos são iguais. Essa igualdade fortaleceu uma espécie de simbiose entre Estado e Igreja, em que castigos e punições se confundiam nos campos jurídico e religioso. • O feudalismo, uma relação contratual servil com base na propriedade da terra e não mais exclusivamente na força de trabalho (escravos), baseava-se na ideia de que o proprietário cederia a terra e o trabalhador ofereceria sua força de trabalho. Ao contratado, o suficiente para que a família do servo pudesse se sustentar. • Por não haver parlamento que define regras e leis em nome da população, o direito era consuetudinário (regido pelos costumes). Segundo estudos, o Estado Moderno é caracterizado pela soberania, territorialidade e povo e se originou pela busca de um governo soberano dentro do território delimitado, após a fragmentação do sistema feudal. Nele observam-se três fases: o estado nacional, estado liberal, crise no estado liberal. • A consolidação do Estado Moderno se deu ao longo de cerca de três séculos e estabeleceu como suas características principais: um só poder; um só exército; autoridade soberana do rei para todo o território; administração unificada; criação do sistema burocrático. O Estado Moderno tem sua construção embasada em diversos pensadores, cada qual com sua marca. • O chamado Estado Moderno, portanto, substitui os regimes absolutistas e é marcado pela Revolução Francesa e seus desdobramentos. 19 1 A escassez de registros não impede que estabeleçam hipóteses acerca da origem do Estado. Isso nos remete a analisar historicamente o caminhar da humanidade para compreender as teorias que explicam como surgiu o Estado. Diante disso são apontadas as teorias da formação natural e da formação contratual. Fazendo uma análise comparativa entre ambas, assinale a afirmativa correta: ( ) A teoria da formação natural considera que o Estado é resultado da soma de circunstâncias e interesses; a contratual considera apenas interesses individuais de determinados atores sociais. ( ) A teoria de formação contratual afirma que o Estado é resultado da intencionalidade de indivíduos ou grupos específicos; a da formação natural, que o Estado é uma consequência da existência humana. ( ) A teoria da formação contratual considera que o Estado surge da mesma forma que surgem grupos sociais; a da formação natural, que o Estado resulta de um grande acordo coletivo. ( ) Não há diferenças entre elas, apenas uma relação de complementariedade, visto que nenhum Estado pode desconhecer elementos de ambas. 2 O surgimento do conceito de Estado, considerando os diferentes contextos em que foi aplicado, implicou necessariamente a ocorrência de diferentes tipos de Estados. No presente texto, destacaram-se os Estados: oriental, grego, romano e medieval. Analisando as alternativas a seguir, assinale qual representa a ordem correta dos termos referentes respectivamente aos Estados Oriental, Grego, Romano e Medieval: a) ( ) Persuasão; escrita; feudalismo; império. b) ( ) Feudalismo; escrita; império; persuasão. c) ( ) Escrita; feudalismo; persuasão; império. d) ( ) Escrita; persuasão; império; feudalismo. 3 O estabelecimento do Estado Moderno ocorreu ao longo de aproximadamente três séculos e estabeleceu como suas características principais: I- Um só poder e um só exército. II- Autoridade soberana de todo o território. III- Administração descentralizada. IV- Criação do sistema bancário próprio. Neste sentido pode-se dizer que: ( ) As alternativas I, II e III estão corretas. ( ) As alternativas I e II estão corretas. ( ) As alternativas II e IV estão corretas. ( ) Todas as alternativas estão corretas. AUTOATIVIDADE 20 4 A democracia, nascida na Grécia, é uma das mais significativas heranças daquele povo deixada ao mundo. Se não é o regime político ideal ou perfeito, é sem dúvida o que melhor representa a liberdade, o direito coletivo e o respeito à vontade soberana do povo. Se considerarmos a forma como os gregos a conceberam e a forma como a democracia é exercida e vivida atualmente, notam-se profundas diferenças, a ponto de se dizer que a democracia atual em pouco se assemelha à grega antiga. Diante disto, aponte aspectos que você considera essenciais para diferenciar o modelo grego antigo de democracia e o que temos hoje. 21 TÓPICO 2 O QUE É PARA QUE SERVE O ESTADO? UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO “A lei de ouro do comportamento é a tolerância mútua, já que nunca pensaremos todos da mesma maneira, já que nunca veremos senão uma parte da verdade e sob ângulos diversos”. Mahatma Gandhi A frase inicial, desse importante líder pacifista, um dos maiores da história, é peça-chave para que efetivamente possa se compreender o sentido de Estado. Como você poderá perceber, trata-se de um espaço de convivência, fruto da criação humana e para conservar sua existência deve necessariamente ter a tolerância como ingrediente intrínseco. Iniciaremos a tarefa de analisar o sentido do conceito de Estado pela sua origem. Toda a criação humana tem por características fundamentais a sua funcionalidade e a sua utilidade. Ou seja, é preciso ter clareza acerca do que é (como funciona) e para que (finalidade). Não há por parte humana nenhuma criação ou invenção a qual essas características não se apliquem. Em relação ao Estado, após estudar sua origem e sua caminhada histórica, que nos trouxe ao chamado Estado Moderno, este é o momento para que se estabeleçam respostas para duas perguntas sobre ele: O que é? Para que serve? A primeira pergunta não faz referência apenas a uma questão etimológica, mas também técnica. Trata-se de esclarecer acerca do que se está efetivamente falando, quando se menciona termo Estado. Afinal, o seu uso sem algum critério ou definição banaliza o seu uso e desarticula seu potencial de intervenção nos momentos em que se faz necessário. A segunda remete a uma discussão fundamental acerca da maneira como é conduzido o próprio Estado. Diferentes correntes ideológicas ora lançam o Estado a favor de determinadas práticas, ora contra. Há um movimento pendular que faz com que o Estado por vezes legitime práticas de violação de direitos humanos e por outros estabeleça políticas afirmativas, por exemplo. O que se pretende, ao debater essas duas temáticas é fazer com que você compreenda a exata dimensão do protagonismo do Estado na vida das pessoas. Também é importante afirmar que esse protagonismo depende muito do viés ideológico e da concepção de princípios como cidadania, dignidadee democracia, que os administradores do Estado devem ter. UNIDADE 1 | ESTADO 22 Assim, você é convidado a participar desse debate e estendê-lo a outros cenários, para que sua aprendizagem seja fruto de uma construção não apenas acadêmica, mas social, humana e ética. Bons estudos! 2 PENSANDO O ESTADO Conhecendo a origem do Estado, agora é hora de contextualizar e traduzir esse conceito e aplicá-lo à atualidade. Assim é fundamental a reflexão sobre seu protagonismo conhecendo conceitos fundamentais como povo, território e soberania. São conceitos verdadeiramente estruturantes para depois analisar o Estado que temos e que deveríamos ter. Mas para pensar o conceito de Estado é preciso compreender a origem etimológica do termo Estado. Do ponto de vista etimológico, pode-se dizer que a palavra Estado surge com os gregos, cujos Estados não ultrapassavam os limites da cidade (Cidades-estado). Os gregos também utilizavam o termo polis, cidade, e daí veio política, arte ou ciência de governar a cidade. Os romanos, com o mesmo sentido tinham civitas e res publica. Do século XVI em diante o termo Estado foi sendo assimilado pelas diferentes línguas e idiomas, passando a figurar como parte integrante destes. É o État francês, Staat alemão, State inglês, Stato italiano e, em português e espanhol, Estado. IMPORTANTE Como foi dito, os gregos são os grandes mentores do termo e do sentido de Estado. Aristóteles (IV a.C.), em sua celebrada obra denominada A Política, já escrevia sobre o Estado, descrevendo a organização política de Atenas e Esparta, os órgãos de gestão dessas cidades, culminando com uma classificação de todas as formas de governos então existentes. Por essa razão pode-se considerar Aristóteles como fundador da ciência do Estado, especialmente no que diz respeito a sua definição clássica. ATENCAO TÓPICO 2 | O QUE É PARA QUE SERVE O ESTADO? 23 Já Platão (IV a.C.), autor da obra A República, que também se preocupou em tratar da temática do Estado, diferenciou-se de Aristóteles uma vez que este preocupou-se em estudar o Estado real, tal como existia em sua época, propondo a identificação de seus princípios fundamentais. Assim, quando você estudar o que efetivamente constitui o Estado, você estudará um legado deste importante autor. FIGURA 7 – ARISTÓTELES FONTE: <https://demonstre.com/wp-content/uploads/2016/01/aristoteles-1.jpg>. Acesso em: 3 out. 2019. Platão, filósofo e matemático grego, é autor de diversos diálogos filosóficos e fundador da Academia em Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo ocidental. Nasceu e faleceu em Atenas. Foi influenciado por Sócrates, Pitágoras e Heráclito. NOTA FIGURA 8 – PLATÃO FONTE: <https://static.mundoeducacao.bol.uol.com.br/mundoeducacao/conteudo_ legenda/e0eb9c8fc33d8750939a00adf9381ba9.jpg>. Acesso em: 3 out. 2019. UNIDADE 1 | ESTADO 24 Platão, ao propor os princípios do Estado, acabou lançado o que chamamos de Estado ideal, tal como deveria ser, em conformidade com sua própria concepção do homem e do mundo. Assim, ao comparar o discurso de ambos (Aristóteles e Platão), percebemo-nos num profundo exercício dialético que se propõe alcançar- se ou aproximar-se de um Estado que poderíamos chamar de ideal. Já no século XVI, Maquiavel, por meio de sua obra O Príncipe, lança os fundamentos da política moderna, descrevendo-a como a arte de atingir, exercer e conservar o poder. Até hoje, Maquiavel é citado e referenciado, especialmente quando se analisam atitudes e comportamentos dos que ascendem ao poder. Muitas práticas condenáveis de se alcançar, exercer e conservar o poder o são utilizando o jargão atribuído a Maquiavel: “os fins justificam os meios”. O que Maquiavel propôs, entretanto, não pode ser considerado um precedente ou uma justificativa para a prática de atos ilícitos e até criminosos de alguns agentes públicos para estreitarem suas relações com o poder. Filósofo, Nicolau Maquiavel é considerado o fundador do pensamento e da ciência política moderna, nasceu em 3 de maio de 1469 e faleceu em 21 de junho de 1527, em Florença, Itália. NOTA FIGURA 9 – MAQUIAVEL FONTE: <https://aulazen.com/wp-content/uploads/2018/04/A-obra-e-biografia-de- Nicolau-Maquiavel.jpg>. Acesso em: 3 out. 2019. Entretanto, apesar dos méritos conceituais de Maquiavel, é possível afirmar que a maioria dos estados ocidentais se encaixam melhor na definição do Estado de Max Weber. Para Weber, o Estado moderno monopoliza os meios de legítima violência física, ao longo de um território bem definido. Essa violência, entretanto, não tem nada a ver com a prática de atos criminosos e condenáveis como torturas e perseguições. Ao contrário, a violência trata da imposição de limites para a ação humana tendo por base o exercício da autoridade sustentada pela lei. A lei, por sua vez, determina regras impessoais, aprovadas pelo poder legislativo, ao mesmo tempo em que autoriza o Estado a intervir, lhe restringe o poder, evitando excessos. TÓPICO 2 | O QUE É PARA QUE SERVE O ESTADO? 25 Intelectual, jurista e economista alemão, Maximilian Karl Emil Weber é um dos fundadores da Sociologia. Nasceu em 21 de abril de 1864 e faleceu em 14 de junho de 1920, na Alemanha. Suas ideias foram marcadas pelas de Karl Marx e Friedrich Nietsche. NOTA FIGURA 10 – WEBER FONTE: <https://www.studentsforliberty.org/wp-content/uploads/2017/06/FB-Max- Weber.jpg>. Acesso em: 3 out. 2019. Porém, a realidade permite dizer que nem sempre Weber se encaixa na definição de Estado, uma vez que nem sempre este dispõe do completo monopólio sobre os meios legítimos de violência física, ao longo de um território definido. O que dizer das chamadas milícias urbanas, que assumem o papel do Estado em territórios em que este se ausenta? Nesse caso não se pode falar de legitimidade racional-legal. O fato é que com Weber produziu-se uma extensa literatura sobre os processos pelos quais o "Estado moderno" surgiu, a partir do estado feudal associando-se a outros teóricos a serem descritos na sequência deste livro didático. Por essa razão retomaremos o tema Estado Moderno, uma vez que este é o modelo de Estado em que nos encontramos e sobre qual é fundamental refletir. Do ponto de vista teórico, ao nos aproximarmos do conceito de Estado ideal podemos dizer que é por isso e para isso que a sociedade se organiza numa estrutura como o Estado. Essa necessidade se dá para a satisfação do desejo vago e indeterminado de um bem que ultrapassasse o seu bem particular e imediato. De certa forma, o Estado surge para atender à preocupação em formalizar estruturas que fossem capazes de garantir e promover este bem comum. Assim, o bem comum passa a ser também bem público, que para ser alcançado necessita da soma permanente de esforços e relações de instituições organizadas de toda a coletividade, que se condicionam numa megaestrutura denominada Estado. Conforme mencionamos no tópico anterior, não há de se falar num modelo único de Estado (Moderno), mas numa grande variedade alinhada a referenciais teóricos que compõem um conceito de Estado Moderno. Assim, reconhecendo-se UNIDADE 1 | ESTADO 26 que cada grupo é diverso, com um desenvolvimento econômico e social próprios e com um entendimento específico da sua própria realidade, chega-se a diferentes formas de ser do Estado. É importante destacar também que o Estado Moderno admite a diversidade dentro dele próprio, concebendo a ideia de que cada indivíduo é único. Uma das características da cidadania é o respeito à individualidade do sujeito (cidadão). Esse respeito é garantido por regras (leis) generalistas que o resguardam e a sua individualidade, mesmo estando envolvido na teia de ações relações do Estado antes de seu nascimento, com a proteção dos direitos do nascituro, por exemplo. Esse resguardo se estende por toda a vida e até depois de sua morte, quando disciplina o cumprimento de suas últimas vontades, além de destinar seus bens e sua existência civil.Como veremos em outro tópico, o Estado Moderno é uma sociedade descrita conforme sua base territorial, com sujeitos (divididos em governantes e governados), e que estabelece, dentro de seu território, a supremacia sobre todas as demais instituições. Território, povo e soberania são elementos constituintes e irrenunciáveis a qualquer Estado Moderno. O Estado Moderno comporta-se de tal modo que o interesse coletivo (estatal) deve estar acima de qualquer outro, razão pela qual, por vezes, o Estado poderá dispor do patrimônio do cidadão quando lhe for de interesse ou de necessidade imprescindível. IMPORTANTE É exatamente nesse sentido que a Constituição e todo o arcabouço jurídico protagonizam um papel fundamental. É na legalidade que se sustenta a ideia de que o Estado poderá dominar todas as formas de atividade que julgar conveniente. É da função legítima do Estado a coação de um cidadão ou grupo social para impor sua vontade a todos que habitam seu território. Note que está se falando da vontade do Estado e não do seu dirigente. Ali está o diferencial imposto pelo Estado Moderno sobre os demais modelos. TÓPICO 2 | O QUE É PARA QUE SERVE O ESTADO? 27 A vontade suprema é o interesse público ou o bem público (comum), conforme já mencionado. ATENCAO Nessa mesma linha é fundamental esclarecer que este poder de coação não significa a extinção de liberdades, mas de um necessário controle para que todos desfrutem dela, limitando-se a respeitar a liberdade alheia. Há quem diga que a liberdade de um termina onde inicia a do outro. Em verdade, a liberdade de um deve respeitar os limites para não atingir a liberdade do outro, e nessa lógica inclui-se o próprio Estado, que além disso deverá ser o guardião da liberdade coletiva. Importante reforçar que para um Estado ser justo e democrático, e por isso, moderno, o poder de coação seja determinado pelo arcabouço jurídico nascido do poder legislativo e obedecido de forma integral. Por essa razão o Estado é a organização político-jurídica de uma sociedade para realizar o bem público/ comum, com governo próprio e território determinado. Deve-se notar o importante papel do poder legislativo, o que é reconhecidamente o mais democrático e representativo dos poderes, uma vez que todos os seus membros são fruto de um processo eleitoral. Esse poder é legitimamente capaz de dar eco à voz das ruas por meio da elaboração de leis, uma de suas atribuições, que atendam aos anseios da coletividade. Do ponto de vista da sua funcionalidade, o artigo Elementos Constitutivos do Estado, de autoria de Misael Alberto Cossio Orihuela (2011), a versão moderna de Estado pressupõe também: • A existência de forças armadas em caráter permanente: como forma de garantir e manter a defesa territorial do Estado, visto que ao longo da história são frequentes as ameaças de invasões e tomadas de territórios entre Estados. Mas não é só para isso que se mantém contingentes e estruturas armadas! Há circunstâncias excepcionais, em que cabe ao exército (ou forças armadas) intervir internamente em favor da ordem e da paz social. Assim, por exemplo, a proteção de fronteiras e intervenção em regiões internas para assegurar a paz são imprescindíveis à preservação do bem comum aos cidadãos daquele Estado. • Tributação central: que estabelece alíquotas uniformes, evitando abusos, além de servir como forma de redistribuir recursos e manter um padrão mínimo de investimentos em todas as áreas e setores daquele Estado. Assim, por exemplo, ao estabelecer um tributo escalonado sobre a renda, o Estado determina que os que possuem renda maior contribuam mais para que o Estado disponha UNIDADE 1 | ESTADO 28 de recursos para atender às políticas públicas a favor de toda a sociedade. Da mesma forma ao determinar que programas sociais que atendam às demandas de grupos mais fragilizados sejam financiados por recursos públicos, o Estado está propondo uma redução de desigualdades econômicas e sociais entre seus cidadãos. • Relações diplomáticas permanentes: a diplomacia, especialmente ao longo do século XX e início do século XXI, tem se revelado a garantidora da paz em casos de conflitos, a forma mais eficiente e racional para a sua resolução. A diplomacia é também fundamental para a consolidação da soberania dos Estados. Partindo-se dessa premissa significa que não se pressupõe intervenções de Estados sobre outros, exceto em casos excepcionais de violação de direitos humanos fundamentais, por exemplo. Em verdade, a grande tarefa contínua da democracia é contribuir para que acordos comerciais sejam firmados, beneficiando mutuamente os Estados envolvidos ou a assinatura de tratados referentes a diferentes temáticas. Lembrando que esses tratados devem ser legitimados pelo legislativo local, assimilando status de lei, impondo obediência e fiscalização entre os Estados signatários. Esses trados oferecem segurança jurídica e asseguram relações de confiança e credibilidade entre os Estados. • Desenvolvimento da política econômica do Estado: trata-se da apresentação de ações interventivas do Estado para minimizar os efeitos de determinadas práticas competitivas que possam lesar um setor da população. Medidas protetivas podem ser fundamentais para sobrevivência de pessoas e setores econômicos, para impedir que sua falência gere consequências à sociedade toda. Assim, por exemplo, programas de apoio à agricultura familiar beneficiam diretamente uma parte da cadeia produtiva e indiretamente à toda a sociedade, que irá dispor de alimentos a valores mais baixos a não precisará arcar com os custos de um excessivo êxodo rural. Há inúmeras discussões sobre o tamanho e a forma de intervenção do Estado sobre a Economia. Governos progressistas tendem a conceber um Estado mais protetivo, privilegiando a preservação de setores de economia local ou nacional. Já governos liberais tendem a reduzir a presença do Estado (Estado mínimo), privilegiando a livre competição e acesso de investimentos estrangeiros (àquele Estado) em nome da liberdade e livre iniciativa. • Homogeneização cultural: trata-se da criação de uma identidade nacional, por meio do respeito às características marcantes da cultura daquele Estado. Não se trata de anular as diferenças, mas estabelecer entre elas uma relação de respeito, partilha e integração, sem que se percam as identidades, mesmo considerando uma necessária coalisão (sem colisões). Um exemplo muito ilustrativo em nível de Brasil é a preservação da língua (idioma) e sua universalização. Embora, em todo o território nacional se fale oficialmente língua portuguesa, em cada região (ou mesmo cidade) do país há elementos linguísticos próprios que definem a identidade daquele local. Não há razão para que isso não seja respeitado, uma vez que se preserva a unidade do idioma nacional e ao mesmo tempo convive- se com uma farta riqueza regional. Observa-se, entretanto, que em alguns casos e de forma intencional, diferenças entre grupos de culturas diferenciadas TÓPICO 2 | O QUE É PARA QUE SERVE O ESTADO? 29 acabam produzindo conflitos que em última instância poderão comprometer a unidade do próprio Estado. Por isso a necessidade de estabelecer políticas nacionalistas para enfatizar a partilha de símbolos e identidade nacional. Todas essas características funcionais do Estado têm como finalidade, conforme foi possível perceber, preservar a sua unidade e a sua soberania, porém é indispensável lembrar que o Estado adquire “vida” por meio do coletivo humano que comporta, a que chamamos de sociedade. É ela que dará sentido e razão de ser ao Estado e este não pode voltar-se contra ela ou simplesmente ignorá-la. Então, agora é o momento de você conhecer alguns detalhes de uma relação que merece destaque do ponto de vista histórico! E a relação que se estabelece entre o Estado e a Sociedade. Alguns pensadores como Hobbes, Rousseau e Kant, tidos como clássicos, reconhecem uma proximidade entre ambos. Já os efetivamenteconsiderados modernos, como Hegel e Tocqueville, os consideram entidades independentes. Marx (que terá sua teoria analisada em outro momento do texto) e Habermas consideram que a sociedade civil constitui a base econômica do Estado, envolvendo-se em assuntos públicos, determinando o sentido do próprio Estado. Há autores ainda mais recentes, como Gramsci, que consideram que há partes que promovem a integração entre ambos, descritas por Althusser como organizações civis (igrejas, escolas, sindicatos). Estes podem constituir-se num verdadeiro aparato ideológico estatal, por vezes estabelecendo uma mescla entre o Estado e estas entidades, descaracterizando a identidade moderna do Estado. O artigo Crítica ao modelo da nova sociedade civil, do professor Adrián Gurza Lavalle, disponível no link http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0102-64451999000200007, permite um aprofundamento maior sobre o pensamento desses autores e suas consequências para o nosso debate. Outro escrito importante para compreender a diversidade de autores que versam sobre esse tema é o texto O conceito de sociedade civil, disponível em https://www.maxwell.vrac.puc-rio. br/6617/6617_5.PDF. DICAS Ao mesmo tempo, percebe-se um crescente protagonismo de muitos grupos sociais na elaboração e execução de políticas típicas de Estado, como é o caso de muitas ONGs, igrejas, associações e outros grupos. Essas entidades, seja com seus próprios recursos ou com a ajuda do Estado, acabam exercendo funções destes, especialmente no campo assistencial, o que torna cada vez mais difícil UNIDADE 1 | ESTADO 30 identificar os limites das funções do Estado, sendo estes estendidos e contraídos conforme circunstâncias temporais, como fatores econômicos, vertentes políticas do grupo governante. Para exemplificar, podemos citar a polarização entre privatização e nacionalização (estatização) de determinados segmentos econômicos, conforme apontamos quando da análise do desenvolvimento de políticas econômicas do Estado. Como dissemos, é comum percebermos a alternância dessas duas ideias conforme a concepção de Estado do governo de plantão. Da mesma forma, a regulamentação de determinadas atividades econômicas, com maior ou menor intervenção do Estado. Em decorrência disso, por vezes nos deparamos com discussões em torno do que cabe à sociedade civil e ao Estado. Por essa razão já é recorrente entre os cientistas sociais o uso do conceito de políticas e redes descentralizadas de governo, em substituição às práticas burocráticas de Estado e ao controle direto estatal sobre políticas. O fortalecimento dos setores não estatais e o consequente enfraquecimento do Estado impõem sérios riscos, especialmente sobre as camadas mais frágeis da sociedade. O Estado reduzido as expõe a uma ampla dificuldade de acesso a direitos básicos como saúde, saneamento, educação, entre outros. IMPORTANTE Nesse momento é fundamental compreender alguns movimentos teóricos que se encontram presentes em nossas discussões. Frutos desses movimentos, temos quatro pensadores indispensáveis para compreender a relação do Estado com a sociedade que o compõe: John Locke, Charles de Montesquieu, Jean- Jacques Rousseau e Thomas Hobbes. Passemos a dialogar com e sobre eles. a) John Locke (1632-1704) e o liberalismo: TÓPICO 2 | O QUE É PARA QUE SERVE O ESTADO? 31 John Locke, filósofo inglês, o "pai do liberalismo", empirista teórico do contrato social. Locke defendia a liberdade e a tolerância religiosa. Nasceu em 29 de agosto 1632, em Wrington, e faleceu em 28 de outubro de 1704, em High Laver (ambas no Reino Unido). Foi influenciado por Hobbes, Descartes e Platão, entre outros. NOTA FIGURA 11 – JOHN LOCKE FONTE: <http://www.filosofia.com.br/figuras/biblioteca/Locke.png>. Acesso em: 4 out. 2019. Considerado um dos principais (ou o principal) mentor do liberalismo, esse ilustre pensador tinha como um dos pontos centrais na sua discussão o chamado Estado de Natureza. Sobre isso pode-se afirmar que Locke entende que as leis naturais são ditames da razão, ou seja, toda e qualquer justiça que se queira praticar tem sua origem exclusivamente na razão. Nessa perspectiva, Ferreira Neto (2007) disserta que Locke afirma que essas noções são inatas a qualquer ser humano. A sociedade é, portanto, um fenômeno natural. Para ele, o estado de natureza é um estado de igualdade, em que os homens têm a “perfeita liberdade” de regular suas ações e dispor seus bens “conforme acharem conveniente, dentrodos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem” (LOCKE, 1988, p. 35). Assim, o estado de natureza é um estado de igualdade, em que os homens convivem livremente apoiados apenas em noções naturais de justiça. Todavia, se no estado de natureza “qualquer um tem o direito de castigar os transgressores da lei da natureza” (LOCKE, 1988, p. 36), o autor não considera ser razoável que um homem seja eventualmente seu próprio juiz. Surge, portanto, a necessidade de uma autoridade externa, imparcial e impessoal, que possa julgar todos os homens que praticarem qualquer ato inadequado à vida em sociedade, porém típicas do chamado estado de natureza: o governo civil (Estado). Isso invalida qualquer forma de governo (Estado) em que um homem só, “governando uma multidão, tem a liberdade de ser juiz no seu próprio caso, podendo fazer aos súditos tudo quando lhe aprouver, sem que alguém tenha a liberdade de formular perguntas” (LOCKE, 1988, p. 38). Para Locke, portanto, UNIDADE 1 | ESTADO 32 o indivíduo sai do estado de natureza e ingressa no estado civil apenas para assegurar os seus direitos naturais, e não para perder sua liberdade natural. Um desses direitos basilares é o da propriedade. Sobre isso, Gabriel Portilho Ribeiro, em seu artigo Locke e a propriedade como direito fundamental (2016), descreve o seu entendimento acerca de propriedade. Segundo ele, para Locke, propriedade não são apenas os bens adquiridos pelo indivíduo, mas também sua própria vida e sua liberdade. A propriedade só pode ser legitimada de forma digna pelo trabalho. O trabalho humano, por sua vez, associado à propriedade da terra ampliou a produtividade produzindo excedentes à sobrevivência dos que a cultivavam. Os homens passaram, assim, a trocar seus produtos (o surgimento da economia de mercado) e, mais adiante, encontraram uma maneira de realizar permutas sem envolver diretamente os produtos, através de um equivalente universal: o dinheiro. E aí chega-se ao ponto central do liberalismo: a não intervenção do Estado sobre a economia. Para Locke, o protagonismo do Estado se restringe a garantir a convivência dos homens, julgando-os mediante leis civis devidamente criadas. Nesse contexto, “a lei, em seu significado verdadeiro, é não só a limitação, mas a direção de um agente livre e inteligente para o seu próprio interesse e não prescreve mais do que importa no bem geral dos que estão sob essa lei” (LOCKE, 1988, p. 56). Sucintamente é possível dizer que a teoria de John Locke afirma que o Estado é apenas um instrumento à mão do povo para que este possa garantir seus direitos naturais. Na perspectiva de Locke, os indivíduos, ao constituírem sociedade e se submeterem a uma autoridade comum, não perdem a liberdade, mas a consolidam. b) Charles de Montesquieu (1689-1755) e o constitucionalismo TÓPICO 2 | O QUE É PARA QUE SERVE O ESTADO? 33 Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu, foi um político, filósofo e escritor francês. Autor da teoria da separação dos poderes, presente na constituição da maioria das democracias modernas. Nasceu em 18/01/1696 em Brède e faleceu em 10/02/1755 em Paris (ambas na França). Foi fortemente influenciado por Locke, Hobbes e Aristóteles, entre outros. NOTA FIGURA 12 – CHARLES DE MONTESQUIEU FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7e/Montesquieu_1.jpg>. Acesso em: 4 out. 2019. Em sua obra prima O Espírito das Leis,de 1748, Montesquieu afirma em sua principal tese que as leis são reflexo da sociedade e dos seus costumes. É no 11º livro desta obra que ele apresenta sua tese referente à divisão dos poderes, após analisar diferentes formas de governo: o despótico (Estado no qual um senhor absoluto domina sozinho sobre os súditos), o republicano (em que o povo é soberano e legislador e pode exercer seu governo diretamente (democracia) ou através de intermediários (aristocracia) e o monárquico (em que o monarca governa não de forma absoluta, mas com base e submetido às leis e amparado por poderes intermediários como a nobreza, o clero e os magistrados. Foi este pensador que estabeleceu que liberdade política é “o direito de fazer tudo o que as leis permitem”, uma vez que até então se fazia o que se queria. A isso o autor acrescenta que “a verdadeira liberdade só se dá quando existem leis que determinam o que o cidadão pode ou não fazer” (MONTESQUIEU, 1973, p. 155). A grande sacada montesquiana está contida nesta formulação: é preciso que o poder freie o poder. Uma sociedade será efetivamente justa na medida em que ninguém, nem mesmo um poder, subjugue o outro. Montesquieu reitera exaustivamente que, enquanto os poderes legislativo e executivo estiverem reunidos em uma mesma pessoa, não pode haver liberdade. Descreve também que se os três poderes forem exercidos todos pelo mesmo homem teremos um Estado despótico; se por um restrito grupo de homens, teremos um Estado aristocrático; mas se pelo povo, haverá um Estado democrático. UNIDADE 1 | ESTADO 34 É preciso dizer que a ideia do equilíbrio dos poderes não é montesquiana, pois Locke e Maquiavel, além dos principais pensadores políticos da Antiguidade Clássica, como Platão, já a haviam pensado. A originalidade de Montesquieu está no uso de elementos da tradicional teoria republicana das formas de governo (Maquiavel) e da teoria liberal da divisão dos poderes (Locke) – criar uma nova fórmula de segregação de poderes. Seu modelo de divisão tripartite do poder estatal (legislativo, executivo e judiciário) foi aplicado na maioria das modernas constituições e vigora até hoje, inclusive no Brasil. c) Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e a cidadania Jean-Jacques Rousseau foi um importante filósofo, teórico político, escritor e compositor autodidata suíço. É considerado um dos principais filósofos do iluminismo e um precursor do romantismo. Nasceu em 28 de junho de 1712, em Genebra (Suíça), e faleceu em 2 de julho de 1778, em Ermenonville (França). Sofreu forte influência de Locke, Hobbes e Montesquieu. NOTA FIGURA 13 – JEAN-JACQUES ROUSSEAU FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/b7/Jean-Jacques_ Rousseau_%28painted_portrait%29.jpg>. Acesso em: 4 out. 2019. Essencialmente é possível dizer que o indivíduo está no centro de qualquer reflexão feita por Rousseau e está presente nas suas principais obras: Discurso sobre as ciências e as artes, de 1750, Emílio, de 1762, o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de 1753, e Contrato social, de 1762. Em suas obras, a questão norteadora será sempre “qual caminho deve ser percorrido pelo homem para chegar à felicidade”? Diante disso, Rousseau afirma que o grande desafio é reparar toda a injustiça da sociedade atual e conceber uma nova ordem social proporcionando aos homens um estado de felicidade, que se assemelhe àquele existente no estado TÓPICO 2 | O QUE É PARA QUE SERVE O ESTADO? 35 de natureza. Para ele, uma vez tendo o homem abandonado o estado de natureza, só seriam possíveis dois rumos: a felicidade ou a miséria humana. Ele considera que se optou pelo segundo. Para alcançar a felicidade, o autor considera fundamental o cultivo da liberdade que define da seguinte forma: “Os cidadãos só se deixam oprimir quando, levados por uma ambição cega e olhando mais abaixo do que acima de si mesmos, a dominação torna-se-lhes mais cara do que a independência e quando consentem em carregar grilhões para por sua vez poder aplicá-los” (ROUSSEAU, 2000, p. 110). Essa afirmação o consolida como um precursor da forma republicana, visto que condena com veemência a dominação e a espoliação. Em sua obra também destaca o protagonismo do amor-próprio, que, segundo ele, fez surgir a identidade individual e sua identidade moral: a consciência. Junto à moralidade e à consciência, nasce também outro fruto da modernidade: o descobrimento da intimidade, “esta esfera secreta, escondida dos demais, na qual cada um pode encontrar refúgio e alívio das loucuras da forçosa vida em sociedade” (ROUSSEAU, 2000, p. 92). São essas qualidades da vida moderna que permitem a Rousseau vislumbrar uma sociedade civil que contenha compaixão e solidariedade, isto é, uma sociedade civil que conduza os indivíduos ao patriotismo. d) Thomas Hobbes (1588-1679) e o Estado Natural Thomas Hobbes foi matemático, cientista político e filósofo, autor de Leviatã e Do cidadão. Nasceu em 5 de abril de 1588, em Westport, e faleceu em 4 de dezembro de 1679, em Derbyschire, ambas no Reino Unido. Sofreu influência de Maquiavel, Aristóteles e Platão. NOTA FIGURA 14 – THOMAS HOBBES FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7e/Montesquieu_1.jpg>. Acesso em: 4 out. 2019. UNIDADE 1 | ESTADO 36 O estado de natural, para Hobbes, significa a compreensão de que os homens têm um poder absoluto, fazendo o que for preciso para alcançá-lo. Hobbes afirmava que os homens são maus por natureza, pois não conhecem limites para sua própria violência. É atribuída a ela a expressão “o homem é o lobo do próprio homem”. O domínio de um sobre o outro ou sobre algum objeto é sempre pela força, segundo ele, sempre utilizando características inerentes à natureza do próprio homem. Como nenhum ser humano se considera inferior a outro, esse domínio não aceito passivamente, origina muitos conflitos. A pacificação e regulação desses conflitos se dá pela própria sociedade civil, por um acordo chamado Contrato Social, quando os sujeitos renunciam de seu próprio poder e o transferem para o Estado, para manter a ordem e a paz social. Isso está descrito em sua famosa obra Leviatã, na qual também defende um governo absoluto. Uma das formas de se manter a paz social e ao mesmo tempo um grande desafio para mantê-la é o direito à propriedade. Sabe-se que a propriedade como grande responsável pela profunda desigualdade faz com que a posse de um bem determine também o fim último de todo o fazer humano. Sobre isso assevera: O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer: isto é meu! e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!’ (ROUSSEAU, 2000, p. 87). Ao reconhecer que um dos fundamentos do Estado é a proteção do direito à propriedade, afirma que este surge como uma forma de proteger os mais ricos dos males advindos dos conflitos, mascarando essa postura de justiça. Críticos desse teórico apontam-lhe uma certa ingenuidade, como aponta Pinzani (2009, p. 107) ao afirmar que: [...] ele parte do pressuposto de que a quantidade de bens numa sociedade permaneça constante e acha, portanto, que a questão da desigualdade econômica pode ser resolvida simplesmente através de uma redistribuição desses bens; fala genericamente em “ricos” e “pobres”, como se não houvesse outros grupos sociais; exalta uma autarquia extremamente difícil de ser realizada e condena qualquer forma de comércio e de contato entre os países. TÓPICO 2 | O QUE É PARA QUE SERVE O ESTADO? 37 Apesar desta sua ingenuidade, sua teoria do Estado está alicerçada no Contrato Social, atribuindo um valorextraordinário ao exercício da cidadania. Para ele não há organização mais politicamente legítima que o pacto social. Segundo ele, o pacto social é “como encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo, a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes? (ROUSSEAU, 2000, p. 69). IMPORTANTE Essa força comum são as assembleias populares, em que as decisões devem ser submetidas à vontade geral dos seus membros. Destaca, também, na toada da separação dos poderes, que a assembleia (poder legislativo), uma vez cumprido o seu papel, deve ausentar-se para que não haja conflito de interesses. Seu modelo de Estado é inteiramente aplicável apenas em pequenas democracias participativas, cidades, por exemplo. O governo de um país de grandes dimensões geográficas, como o Brasil, não pode adotar o modelo democrático proposto por Rousseau, senão através de uma democracia representativa. Pois bem! Feita essa reflexão sobre o protagonismo do Estado na vida social e econômica da população contida em seu território e da necessária preservação de sua soberania, é o momento de se compreender as finalidades operacionais do Estado, independentemente da linha política que o governa. Vamos tratar dos fins que justificam a existência do Estado na sua concepção moderna, e que sugere as garantias que devem ser resguardadas, sob pena de acentuarem-se desigualdades em diferentes níveis, especialmente o econômico, o que deflagra uma série de outras injustiças. 3 O ESTADO SEGUNDO SEUS FINS Após compreender a amplitude do conceito de Estado, suas múltiplas e possíveis formas de se relacionar com o seu contexto e sua reconhecida complexidade é fundamental compreender os fins do Estado. Estes, por sua vez, são igualmente amplos e sua definição e classificação apontam elevado grau de complexidade. Basicamente, quanto à forma, Calegari (2010) afirma que quanto aos fins do Estado pode-se distingui-los da seguinte maneira: UNIDADE 1 | ESTADO 38 1- Fins objetivos – são os que dizem respeito ao papel representado pelo Estado no desenvolvimento da história da humanidade. É o protagonismo exercido pelo conceito de Estado no processo histórico de construção das relações humanas. Esses fins podem ser universais (comuns a todos os Estados de todos os tempos) ou particulares (próprios de cada Estado em razão das circunstâncias de seu surgimento e desenvolvimento). Um exemplo de fim objetivo universal é determinar sua soberania sobre os demais Estados. Já como um de caráter particular pode-se citar a determinação de políticas de reconhecimento de direito ao voto feminino. São fins objetivos porque tem um fim com objetivo definido, cujos limites são conhecidos. Como no exemplo citado, uma vez garantido o direito ao voto às mulheres, todas as mulheres invariavelmente desfrutarão do mesmo direito a partir da promulgação do ato legal que o garanta. 2- Fins subjetivos – relacionam-se ao atendimento das necessidades individuais ou de grupos que compõem aquele Estado naquele momento. Trata-se do protagonismo das relações entre Estado e cidadão, em que para cada momento é preciso que o Estado apresente ao cidadão ações que lhe garantam as condições essenciais para o seu acesso aos direitos fundamentais. Pode-se dizer que essa categoria de fins reflete a síntese dos fins individuais. Como exemplo é possível citar as políticas públicas de erradicação da pobreza. É de caráter subjetivo porque a identificação da condição de pobreza é muito variável, de acordo com a realidade regional e até mesmo individual. Além disso é um direito pelo qual deve-se lutar sempre, pois ele depende de outras variáveis, como as condições econômicas do próprio Estado. Especificamente, do ponto de vista da amplitude do relacionamento do Estado com os cidadãos é possível identificar: 1- Fins expansivos – costumam ser identificados em Estados totalitários, em que se observa um crescimento desmesurado do Estado, culminando com uma completa anulação do indivíduo. Todas as ações do Estado direcionam- se sobre si e não sobre os seus cidadãos. Podem ser utilitárias (preconizam o máximo desenvolvimento material, sacrificando valores fundamentais); há quem confunda essa concepção com a ideia de bem comum; um exemplo dessa modalidade de finalidade estatal é o investimento em expansão da atividade produtiva por meio de concessões ou renúncias fiscais em favor de determinados setores econômicos. As ações estatais podem ser também de natureza ética, opondo-se ao utilitarismo e considerando a supremacia dos fins éticos; também podem levar ao totalitarismo, uma vez que atribuem ao Estado condição de fonte de moral, permitindo ao Estado intervir nos princípios e valores individuais ou mesmo coletivos; um exemplo disso são as discussões em torno do papel do Estado frente à descriminalização ou não de algumas drogas. 2- Fins limitados – quando o Estado é considerado um simples mediador de conflitos sociais, porém sem poder de iniciativa, especialmente no que diz respeito à economia. Basicamente, o Estado deve atuar seguindo uma tríade de características: a) Estado-polícia – função exclusiva de preservação da TÓPICO 2 | O QUE É PARA QUE SERVE O ESTADO? 39 segurança, coagindo, reprimindo e penalizando infratores; b) Estado-liberal – apenas proteger a liberdade individual, sem, no entanto, estabelecer condições mínimas para o exercício dessa liberdade; c) Estado de direito – o Estado torna-se um intransigente aplicador da lei, sem qualquer preocupação se essa lei protege o cidadão do cometimento de injustiça, geralmente transformando o direito numa relação de conveniências. Os Estados governados por perfis ideológicos mais conservadores adotam essa limitação do Estado como forma de garantir a ordem pública, a liberdade e a legalidade. 3- Fins relativos – são uma forma de garantir a participação da coletividade, por vezes contribuindo para a redução do protagonismo do Estado em ralação ao seu povo. O Estado, nesse caso, não toma inciativas de forma isolada ou unilateral, mas permite a presença da população em debates e discussões para dar-lhe certo protagonismo. Concebe-se a ideia de que elementos produtores de cultura geral de um povo residem, de modo fundamental, nos indivíduos e na sociedade, não no Estado. Caberá ao Estado o papel de incentivar e fomentar a participação efetiva da população. Exemplos disso são as inserções de conselhos na tomada de decisões em relação a determinadas políticas públicas. Independentemente da classificação do Estado quanto aos seus fins, trata- se de uma associação política de pessoas e seu fim geral é, em última instância, fazer com que os indivíduos ou grupos sociais possam atingir seus respectivos fins particulares. Assim, pode-se afirmar que o fim do Estado é o bem comum, na perspectiva do conjunto de condições que favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana. Existe uma diferença fundamental que qualifica a finalidade do Estado: este busca o bem comum de um certo povo, situado em determinado território. O bem comum pode ser interpretado de diferentes formas, porém é possível dizer que trata da melhor forma de se estabelecer uma convivência social possível e viável, isto para atingir a plena paz social. Diante do que foi exposto é possível dizer que há uma multiplicidade de finalidades do Estado de acordo com as expectativas de quem o analisa, porém são essas finalidades que irão compor o seu próprio conceito. O que se notou é que por se tratar de uma organização social composta por sujeitos de diferentes concepções e pensamentos, o Estado é essencialmente uma sociedade política. Essa sociedade política, de acordo com a multiplicidade de expectativas em torno de suas finalidades, conta com a política como arte de bem governar segundo interesses coletivos. Essa forma de fazer política é meio indispensávelpara que os indivíduos e as demais sociedades, situadas num determinado território, possam atingir seus respectivos fins. UNIDADE 1 | ESTADO 40 Na perspectiva de que os fins do Estado e os dos indivíduos sejam possíveis, pode-se identificar como funções legítimas e intransferíveis do Estado: • manter a ordem; • assegurar a defesa; • promover o bem-estar; • alavancar o progresso da sociedade. IMPORTANTE Dessa forma, a promoção do bem comum implica também garantir todas as condições de vida que possibilitem e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana. Inúmeras declarações de natureza local ou mesmo universal expressam essa tarefa de cada Estado, visando a que todo ser humano tenha sobre si o manto da proteção de seus direitos, tornando-os indisponíveis a quem por alguma razão queira desvirtuar as funções elementares do exercício do poder em qualquer Estado. Como o modelo atual de Estado deriva dos modelos e teorias apontadas anteriormente, especialmente no modelo descrito por Montesquieu, é preciso identificar sucintamente o protagonismo de cada poder frente à tarefa de garantir o bem comum, neste caso, conforme estabelece também a Constituição Federal de 1988: • Protagonismo do Poder Legislativo – exercido pelo Poder Legislativo que tem a função de elaborar leis. O poder legislativo, conforme já afirmamos, por ser composto por membros exclusivamente eleitos pelo voto popular tem legitimidade para apontar as demandas da sociedade e convertê-las em regras para o alcance do bem comum. Afinal, em Estados caracterizados pela forma representativa de governo, essas demandas que representam a melhoria das condições de vida dos representados sãos as que elegem os seus representantes. Dito de outra forma, no caso do Brasil, o vereador, deputado ou senador será eleito pela plataforma de demandas que defende. • Protagonismo do Poder Executivo – exercido pelo Poder Executivo e tem como função administrar o Estado visando seus objetivos fins já descritos. Eleito pelo voto popular, o chefe deste poder compõe sua equipe de intervenção para executar o projeto de gestão apresentado aos cidadãos daquele Estado. Sua legitimidade está na aprovação desse projeto e na sua execução partindo do arcabouço legal legitimamente analisado e aprovado pelo legislativo. Nesta mesma toada cabe ao executivo do Estado nomear funcionários, criar cargos, executar serviços públicos, arrecadar impostos etc. TÓPICO 2 | O QUE É PARA QUE SERVE O ESTADO? 41 • Protagonismo do Poder Judiciário – exercido pelo Poder Judiciário, tem a função de interpretar e fiscalizar a aplicação da lei. No caso brasileiro é um poder constituído por agentes nomeados e aprovados pelos demais poderes, entre os que possuem reconhecido conhecimento jurídico e autoridade moral para exercer o poder de juiz, que cabe ao próprio Estado. Isso pode ocorrer em casos de dissídios entre os cidadãos ou entre os cidadãos e o próprio Estado. Em síntese, declara o Direito. Nota-se, assim, que em condições democráticas o Estado (moderno) tem como base a concepção de que sua maneira de existir é condicionada por princípios e regras (leis) predefinidas. Por essa razão, regimes, governos e correntes políticas passam pelo poder, mas o Estado permanece. No próximo tópico trataremos dos componentes basilares do Estado: território, povo e soberania. Vídeos sobre os teóricos do Estado. No Vídeo 1, você poderá debater e analisar informações mais precisas sobre Montesquieu. O Vídeo 2 tratará das características dos três poderes da república, fundados na teoria de Montesquieu. É importante você conhecer esse teórico, pois o Estado atual, inclusive o brasileiro, baseia-se nele. Para sintetizar esses vídeos, monte um quadro-resumo descrevendo as características e atribuições dos três poderes determinados por Montesquieu. Agora é com você! Assista aos vídeos e preencha o quadro: Vídeo 1: https://www.youtube.com/watch?v=_GQjpJu9W5Y Vídeo 2: https://www.youtube.com/watch?v=E7EjZgcp1bM DICAS Conceito (Poder) Definição Atribuições Executivo Legislativo Judiciário FONTE: O autor 42 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • A “popularização” do termo Estado se deu a partir de Aristóteles. Já Platão ocupou-se de identificar os princípios fundamentais do Estado, propondo o que chamamos de Estado ideal. Entre eles travou-se um profundo exercício dialético que se propõe alcançar um Estado ideal. Já no século XVI, Maquiavel lançou os fundamentos da política moderna, descrevendo-a como a arte de atingir, exercer e conservar o poder. • A maioria dos estados ocidentais, porém, se encaixa melhor na definição do Estado de Max Weber. Para Weber, o Estado moderno monopoliza os meios de legítima violência física, que impõe limites à ação humana. Neste sentido, cumpre dizer que o Estado surge para atender à preocupação em formalizar estruturas que sejam capazes de garantir e promover o bem comum. • Do ponto de vista da sua funcionalidade, a versão moderna de Estado pressupõe também a existência de forças armadas em caráter permanente: para segurança de fronteiras e interna (excepcionalmente); tributação central: que procura auxiliar a redução de desigualdades sustentando as ações do Estado no que é arrecadado dos que tem mais para amenizar o sofrimento de quem tem menos; relações diplomáticas permanentes: para assegurar a soberania e as relações entre os Estados; desenvolvimento da política econômica do Estado: com o intuito de garantir competitividade justa e equilíbrio na distribuição e uso da riqueza; homogeneização cultural: trata-se da criação de uma identidade nacional, por meio do respeito às características marcantes da cultura daquele Estado e de suas peculiaridades internas. • Três pensadores são indispensáveis para compreender a relação do Estado com a sociedade que o compõe: John Locke, Charles de Montesquieu, Jean- Jacques Rousseau e Thomas Hobbes. John Locke e o liberalismo: centralizou sua discussão no chamado Estado de Natureza, em que as leis naturais são ditames da razão. O Estado de Natureza é um estado de igualdade, em que os homens convivem livremente, apoiados apenas em noções naturais de justiça. Charles de Montesquieu e o constitucionalismo: segundo ele, as leis são reflexo da sociedade e dos seus costumes. Montesquieu é o autor da tese referente à divisão dos poderes. É dele a ideia de que liberdade política é “o direito de fazer tudo o que as leis permitem”. Jean-Jacques Rousseau e a cidadania: suas discussões colocam o indivíduo no centro, sempre. Para ele, o grande desafio é reparar toda a injustiça e conceber uma nova ordem social. Sua teoria do Estado está alicerçada ao Contrato social, criada por Thomas Hobbes ao propor a teoria do Estado Natural, atribuindo um valor extraordinário ao poder de polícia ao Estado para regular conflitos, descrito em sua obra Leviatã. 43 • Reconhecida a complexidade inerente ao Estado, você passou a analisar seus fins quando temos: ᵒ os fins objetivos, que dizem respeito ao protagonismo exercido pelo conceito de Estado no processo histórico de construção das relações humanas. Esses fins podem ser universais (comuns a todos os Estados de todos os tempos) ou particulares (próprios de cada Estado em razão das circunstâncias de seu surgimento e desenvolvimento); ᵒ fins subjetivos relacionam-se ao atendimento das necessidades individuais ou de grupos refletindo a síntese dos fins individuais. Sobre os fins relacionados ao relacionamento do Estado com os cidadãos temos: a) fins expansivos – típicos de Estados totalitários em que se observa um crescimento desmesurado do Estado, com as ações do Estado direcionadas a si e não sobre os seus cidadãos; b) fins limitados – quando o Estado é considerado um simples mediador de conflitos sociais, porém sem poder de iniciativa, especialmente no que diz respeito à economia; c) fins relativos – é garantir a participação da coletividade, por vezes contribuindopara a redução do protagonismo do Estado em relação ao seu povo. Caberá ao Estado o papel de incentivar e fomentar a participação efetiva da população. • São consideradas funções do Estado: manter a ordem; assegurar a defesa; promover o bem-estar; alavancar o progresso da sociedade. Assim o bem comum pode ser descrito como desenvolvimento integral da personalidade humana e preservação da segurança. • Seguindo a estrutura de Estado de Montesquieu, é preciso identificar o protagonismo de cada poder na tarefa de garantir a satisfação desse bem comum: ᵒ Legislativo – função de elaborar leis, fiscalizar as ações do poder executivo para a melhoria das condições de vida dos representados. ᵒ Executivo – tem como função administrar o Estado visando os seus objetivos e o chefe deste poder compõe sua equipe de intervenção para executar o projeto de gestão. ᵒ Judiciário – tem a função de interpretar e fiscalizar a aplicação da lei. No caso brasileiro é um poder constituído por agentes nomeados e aprovados pelos demais poderes. 44 1 Max Weber é considerado o teórico que melhor define o que pode ser chamado de Estado Moderno. Evidentemente que, para chegar ao conceito de Estado Moderno e sua consequente aplicação, muitos pensadores como Aristóteles, Platão e Maquiavel devem ser considerados. Assim é necessário dizer que o modelo de Estado em que se enquadra a expressiva maioria dos Estados atuais não é um conceito fechado, visto que cada um é fruto de um longo processo histórico e que se aplica sobre diferentes realidades. Diante disso, analise as afirmativas a seguir e assinale a alternativa correta: a) ( ) Um Estado para ser justo e democrático, e por isso moderno, o poder de coação deve ser determinado pela necessidade do momento e nascido dos costumes locais. b) ( ) O Estado Moderno considera que o interesse coletivo (estatal) não pode estar acima de outros, razão pela qual, por vezes, o Estado poderá dispor de seu patrimônio em favor do cidadão. c) ( ) Estado moderno é uma sociedade descrita conforme sua base territorial, com sujeitos e que estabelece, dentro de seu território, a supremacia sobre todas as demais instituições. d) ( ) Do ponto de vista da sua funcionalidade, a versão moderna de Estado pressupõe: forças armadas convocadas em tempos de guerra; tributação descentralizada; relações diplomáticas e desenvolvimento de políticas econômicas de Estado. 2 Locke, Montesquieu e Rousseau são três pensadores fundamentais para que se possa conhecer a origem do Estado Moderno e permitem compreender as múltiplas faces que este Estado revela. Sobre esses pensadores, analise as sentenças a seguir. I- Para Locke, o estado de natureza é um estado de igualdade, em que os homens convivem livremente, apoiados apenas em noções naturais de justiça. II- Segundo Rousseau, uma vez tendo o homem adotado o estado de natureza, só seriam possíveis dois rumos: a felicidade ou a riqueza. III- Ao definir a separação de poderes, Montesquieu inaugura a ideia de que “é preciso que o poder freie o poder”. IV- Liberalismo, constitucionalismo e cidadania são as respectivas marcas desses autores, presentes nas discussões atuais acerca de Estado (Moderno) e suas características. Diante do exposto pode-se dizer que: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) As sentenças I, III e IV estão corretas. c) ( ) As sentenças II e IV estão corretas. d) ( ) Todas as alternativas estão corretas. AUTOATIVIDADE 45 3 O Estado Moderno possui fins muito claros e que podem ser estabelecidos conforme diferentes critérios. Sobre o critério FORMA, identifique com V (Verdadeira) e F (Falsa) cada uma das afirmações: ( ) Os fins objetivos incluem o protagonismo exercido pelo conceito de Estado no processo histórico de construção das relações humanas. ( ) Os fins subjetivos tratam do protagonismo das relações entre cidadãos de tal forma que o Estado apenas assiste ao desenrolar dos fatos e intervém apenas em casos de violência extrema. ( ) Os fins objetivos são os que dizem respeito ao papel representado pelo Estado no desenvolvimento da história da humanidade. Já os fins subjetivos relacionam-se ao atendimento das necessidades individuais ou de grupos que compõem aquele Estado naquele momento. ( ) Os fins subjetivos podem ser compreendidos como a categoria de fins que reflete a síntese dos fins individuais. Agora assinale a alternativa que apresenta a sequência correta: a) ( ) V, F, F, V. b) ( ) V, F, V, V. c) ( ) F, V, V, V. d) ( ) V, F, V, F. 4 Este tópico retrata uma importante reflexão conceitual acerca das razões e fins de existência do Estado, com importante destaque ao que chamamos de Estado Moderno. Uma das características fundamentais desse Estado é a definição, atribuída a Montesquieu, de que devem existir três poderes distintos com protagonismos próprios e com a finalidade inequívoca de garantir o bem comum. Assim, disserte sobre o protagonismo dos três poderes, identificando suas principais atribuições e características. 46 47 TÓPICO 3 TERRITÓRIO, POVO, SOBERANIA: O QUE FUNDA A IDENTIDADE E PERTENCIMENTO AO ESTADO UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO “A democracia surgiu quando, devido ao fato de que todos são iguais em certo sentido, acreditou-se que todos fossem absolutamente iguais entre si”. Aristóteles O pensador grego exalta a necessidade de se refletir sobre a igualdade como valor fundante da democracia. Ao se definir os elementos basilares do Estado, percebê-los com a sensibilidade exigida pela democracia certamente lhe garante suas diferenças em relação aos demais, não a impedindo de relacionar-se respeitosa e criticamente com eles. Conhecendo aspectos que revelam as origens, a formação, os tipos históricos, o conceito e as finalidades, agora é o momento de conhecer os chamados elementos constitutivos do Estado, que são essencialmente três: território, povo e soberania. São termos conhecidos por você? Afinal, costumam aparecer com frequência em diferentes mídias, ou já foram objeto de estudo em alguma disciplina ou momento de sua formação. É importante destacar que, para cada contexto, esses termos adquirem definições próprias. Também é verdade que em determinadas circunstâncias os termos são utilizados de forma equivocada, o que acaba distorcendo o seu sentido. Além disso, podem ter seu uso banalizado ou atrelado a concepções que não refletem o seu real sentido. Por essa razão, neste tópico, você poderá encontrar diferentes entendimentos teóricos sobre esses conceitos, alinhados a concepções de Estado conforme o entendimento de diferentes teóricos. Mas é importante destacar que ao analisarmos esses conceitos com o auxílio de teóricos, estamos revelando uma diversidade de compreensões. O que de fato interessa é que você construa seu próprio conceito, para aplicá-lo a sua vivência profissional e pessoal. Assim, quando você se defrontar com as palavras território, povo e soberania, você terá elementos para fazer sua própria análise do que está sendo dito. Bons estudos! 48 UNIDADE 1 | ESTADO 2 TERRITÓRIO: IDENTIDADE E PERTENCIMENTO A palavra território é frequentemente associada ao espaço ocupado por um Estado, nos limites de suas fronteiras. De fato, há uma relação profunda entre território e espaço e as fronteiras, e por vezes essa relação torna-se confusa. Por isso é importante saber como essa relação se dá e suas consequências para compreender o real protagonismo do conceito de território, bem como em que contribui para estabelecer uma identidade e uma sensação de pertencimento em seus habitantes. Para que você possa compreender a amplitude do conceito que trataremos neste breve escrito, é importante compreender o sentido que se convenciona atribuir a território. Assim, o professor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira descreve o termo: “Território... A área de um país, ou estado, ou província, ou cidade, etc... base geográfica do Estado, sobre a qual exerce ele a sua soberaniae que abrange o solo, rios, lagos, mares interiores, águas adjacentes, golfos, baías e portos” (FERREIRA, 1988, p. 632). Partindo disso, você verá que não se trata de um conceito simples. Ao contrário, está revestido de mudanças produzidas pela história e pela forma como muitos autores procuram aplicá-lo. Por essa razão, neste estudo serão dedicadas algumas páginas à análise histórica do conceito de território, bem como de sua aplicação a diferentes contextos e entendimento de vários autores. Apesar de que os Estados sempre manifestaram preocupação em relação aos seus limites territoriais, até pouco tempo a preocupação era demarcar para proteger os centros urbanos (cidades) onde localizava-se a maior parte da população e as suas estruturas de governo. As expansões territoriais tinham como propósito dominar esses centros, sem dar muito importância ao seu entorno (Figura 15), tanto é que uma tendência das cidades antigas é de serem cercadas por muros, que não necessariamente coincidem com os limites do Estado. FIGURA 15 – CIDADE DE CARCASSONE (FRANÇA) FONTE: <https://dicasparis.com.br/2016/07/carcassonnena-franca.html>. Acesso em: 29 jul. 2019. TÓPICO 3 | TERRITÓRIO, POVO, SOBERANIA: O QUE FUNDA A IDENTIDADE E PERTENCIMENTO AO ESTADO 49 Pode-se ver que a parte antiga da cidade de Carcassone (França) estava completamente cercada por muros e torres de vigilância, sem que houvesse maior preocupação com o seu entorno, hoje ocupado, compondo a Cidade Nova. Essa é uma realidade comum das cidades antigas e medievais em todo o mundo. Como dissemos, a determinação de fronteiras é algo recente, mais precisamente do final do século XIX. Isso porque o aumento da população exigiu que se buscasse ampliar o uso do solo e de seus recursos. O que antes consistia num mero contorno dos grandes centros, agora passa a assumir uma importância estratégica para a sobrevivência das cidades. As terras passaram a ser valorizadas segundo sua possibilidade de habitabilidade e de exploração. Também é dessa época a invenção do motor movido à combustão, o que fez ampliar a importância do petróleo, outra riqueza encontrada em solos e mares e que motiva a determinação rigorosa de limites entre Estados. Além disso, são recorrentes o surgimento e a estratégica manutenção de conflitos entre povos ou mesmo grupos internos, com a finalidade de explorar essas riquezas. IMPORTANTE IMPORTANTE Além da ocupação para fins de agricultura, o solo passou a ser fonte de muitas riquezas que aguçam o desejo de sua posse. O fato disso ocorrer não é fruto do acaso. É nesse período que a ciência (química) passa a estudar e descobrir inúmeros elementos químicos que se tornariam úteis à vida humana, além dos já conhecidos metais precisos, já alvos da ambição de muitos. Seja qual for a razão, o fato é que hoje conta-se com 193 Estados (membros da ONU) e alguns como o Kosovo, Taiwan e Palestina ainda não são reconhecidos como tal. Mas todos eles, independentemente de sua condição, possuem limites geográficos determinados por fronteiras. 50 UNIDADE 1 | ESTADO FIGURA 16 – MAPA-MÚNDI FONTE: <https://suburbanodigital.blogspot.com/2015/04/lista-dos-paises-que-fazem-parte-da- onu.html>. Acesso em: 30 jul. 2019. Os mapas, instrumentos de representação gráfica de fronteiras, permitem compreender a importância desse instrumento para a localização do espaço ocupado por um território. O mapa é frequentemente usado como forma de identificação de um Estado, assim como uma fotografia serve para identificar o rosto de uma pessoa. Como foi dito, temos cerca de duas centenas de Estados que compõem o que chamamos de Organização das Nações Unidas (ONU). Note que se trata de uma organização que abriga Nações, não necessariamente nações. Há quem possa dizer que Estado e Nação são sinônimos. Como veremos noutra unidade, Estado e Nação são conceitos diferenciados, mas para este momento é conveniente compreender que cada território organizado na condição de Estado estabelece com os demais a que se chama relações internacionais. Em breve analisaremos essas relações com mais afinco, quando tratarmos da soberania. Diante da perceptível complexidade que envolve o conceito de território, convém fazermos uma análise do pensamento acadêmico sobre o seu significado efetivo e suas implicações. Assim, a partir de agora você poderá compreender o que pensam alguns teóricos a respeito da importância do território para o entendimento do Estado. As discussões em torno do conceito de território, além de não se esgotar neste breve estudo, propõe entendimentos diversos, por vezes complementares ou até mesmo antagônicos. Mesmo nessas condições há uma concepção clara de que se trata de uma construção que revela uma profunda historicidade. Boligian e Almeida (2003, p. 241) afirmam que numa visão mais funcional, o território remonta “a base espacial onde estão dispostos objetos, formas e ações construídas pelos atores sociais e historicamente determinadas segundo as regras do modo de produção vigente em cada época, ou seja, pelas relações sociais de produção”. Noutra perspectiva de caráter mais simbólico-afetiva, “território é o espaço das experiências vividas, onde as relações entre os atores, e destes com a natureza, são relações permeadas pelos sentimentos e pelos simbolismos atribuídos aos lugares. São espaços apropriados por meio de práticas que lhes garantem uma certa identidade social/cultural” (BOLIGIAN; ALMEIDA, 2003, p. 241). TÓPICO 3 | TERRITÓRIO, POVO, SOBERANIA: O QUE FUNDA A IDENTIDADE E PERTENCIMENTO AO ESTADO 51 Assim, há uma distinção clara entre a ideia de espaço e de território, sendo o primeiro local definido por fronteiras e pertencente ao Estado. Já o segundo, além de conter um espaço é definido por relações e vivências que se somam a outras já conhecidas e servem de sustentação para as que ainda virão. Nesse sentido, Santos (1999, p. 8) alerta que: [...] o território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas. O território tem que ser entendido como o território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida. O território, para além de um simples espaço geográfico limitado, representa um elemento de identidade do Estado. O pertencimento a um território não significa apenas estar contido nele. Faz referência também ao fato de que tudo o que o indivíduo faz é cultura e pertence àquele território. ATENCAO FIGURA 17 – DIVERSIDADE CULTURAL BRASILEIRA FONTE: <https://www.todamateria.com.br/diversidade-cultural/>. Acesso em: 2 ago. 2019. 52 UNIDADE 1 | ESTADO Quando se apontam diferenças regionais, particularidades de determinados grupos, dentro de um mesmo país (Figura 17), está se propondo que a unidade de um território implica a convivência absolutamente harmoniosa entre os diferentes. Assim, pertencer a um território é poder ser efetivamente o que se quer ser, participar da vida cultural e produzir cultura para o lugar em que se está. Quando isso acontece, se está pertencendo ao território e não apenas ocupando um espaço. Não há como imaginar um Estado sem que se necessite ter clareza acerca do território que ocupa. Nesse sentido, Ratzel (1990, p. 73-74) afirma: [...] é fácil convencer-se de que do mesmo modo como não se pode considerar mesmo o Estado mais simples sem o seu território, assim também a sociedade mais simples só pode ser concebida junto com o território que lhe pertence [...] os organismos que fazem parte da tribo, da comuna, da família, só podem ser concebidos junto com seu território. Sem isso não é possível o seu desenvolvimento, assim como sem território não se poderia compreender o incremento da potência e da solidez do Estado. Assim, nota-se que território é um conjunto de elementospertencentes àquele espaço geográfico como é o caso das organizações públicas e privadas nele contidas. Qualquer tentativa de separar o território desses elementos descaracteriza seu sentido enquanto espaço em que se situa o Estado. A esse respeito, Saquet (2010, p. 31) analisa essa afirmação da seguinte forma: [...] Ratzel faz uma tentativa de avançar na abordagem do território (povo) ligado ao solo/ambiente, sinalizando para além da geopolítica através de elementos da cultura (religião) e da economia (comércio), porém, em virtude de sua proposta teórico-metodológica com um caráter institucional e burguês, não consegue abarcar coerentemente essas três dimensões ao tratar do território. Por isso faz uma abordagem a serviço do Estado alemão de sua época, sem superar a visão naturalista de território. Demonstra, assim, o celebrado teórico ainda que tenha proposto uma compreensão inovadora, que não atingiu plenamente a descrição do que seja território e sua relação com o Estado. Por essa razão o próprio Saquet (2009, p. 81) assevera que: “o espaço corresponde ao ambiente natural e ao ambiente organizado socialmente, enquanto que o território é produto de ações históricas que se concretizam em momentos distintos e sobrepostos, gerando diferentes paisagens, logo, é fruto da dinâmica socioespacial”. A dinâmica histórica a que se refere o autor inspira a compreender que um território é também por vezes razão de disputas e conflitos, alimentando guerras que podem se prolongar por décadas ou mesmo indefinidamente, a exemplo do que acontece no Oriente Médio. Regiões colonizadas até recentemente como foi o caso da África (Figura 18) viram seus territórios fracionados por interesses, por superpotências ou grupos econômicos. TÓPICO 3 | TERRITÓRIO, POVO, SOBERANIA: O QUE FUNDA A IDENTIDADE E PERTENCIMENTO AO ESTADO 53 FIGURA 18 – CARICATURA ILUSTRATIVA DA DIVISÃO DE TERRITÓRIOS SEGUNDO INTERESSES FONTE: <https://questoes.grancursosonline.com.br/questoes-de-concursos/geografia- geopolitica/441678>. Acesso em: 2 ago. 2019. Mais didaticamente, Saquet (2007, p. 73) explicita que: [...] no território, há temporalidades e territorialidades, descontinuidades; múltiplas variáveis, determinações e relações recíprocas e unidade. O território [...] é espaço de vida, objetiva e subjetivamente; significa chão, formas espaciais, relações sociais, natureza exterior ao homem; obras e conteúdos. É produto e condição de ações históricas e multiescalares, com desigualdades, diferenças, ritmos e identidade(s). O território é processual e relacional, (i) material. Portanto, o território será sempre dinâmico, construído conforme movimentos históricos, que fazem do espaço um importante objeto da mobilidade histórica tão conhecida e presente em muitas discussões. O espaço, conceito que costuma ser objeto de confusão em relação ao de território, por isso Raffestin (1993, p. 143) afirma que: É essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente [...] o ator “territorializa” o espaço. Esse processo de territorialização consiste na humanização do espaço, tornando-o não apenas habitável, mas também precursor de relações de natureza econômica, social e política. O caráter político revela-se nas escolhas, quando se percebe que territorializar é submeter o espaço a condições e intencionalidades fazendo-o instrumento de processos humanos que o reconstroem permanentemente. Raffestin (1993, p. 144) complementa que “o território se apoia no espaço, mas não é o espaço. É uma produção a partir do espaço. Ora, a produção, por causa de todas as relações que envolve, se inscreve num campo de poder”. E assim, obviamente, quem detém certo poder, imprime sobre o território, 54 UNIDADE 1 | ESTADO suas próprias intensões que passam, voluntária ou involuntariamente, a ser o que guia as intenções de todos que habitam aquele espaço em que o território se assenta. As relações de poder político são também as que fundam a construção histórica do Estado, razão pela qual estabelece-se uma relação de profunda bilateralidade entre Estado e Território. Com a evolução do conceito de Estado, também evoluem as concepções de território, inclusive no que diz respeito à transposição do próprio poder do Estado sobre o território. Assim, Andrade (1995, p. 19) afirma que: O conceito de território não deve ser confundido com o de espaço ou de lugar, estando muito ligado à ideia de domínio ou de gestão de uma determinada área. Deste modo, o território está associado à ideia de poder, de controle, quer se faça referência ao poder público, estatal, quer ao poder das grandes empresas que estendem os seus tentáculos por grandes áreas territoriais, ignorando as fronteiras políticas. Nota-se, portanto, que se está numa fase, segundo esse autor, de superação do próprio conceito de Estado como aquilo que se acha limitado a um território (ANDRADE, 1995). Ao ultrapassar as fronteiras políticas dos Estados, por meio de empresas, nota-se uma influência clara de um Estado sobre outro, para além daquelas determinadas pela diplomacia. Além disso, algo observado neste último século, é cada vez mais intenso o domínio político e econômico dos países do hemisfério Norte sobre os do Sul (Figura 19). A chamada globalização cristalizou esse domínio e, de certa forma, ampliando a desigualdade em condições de desenvolvimento entre os territórios dos dois hemisférios. Assim, mesmo mantida a soberania política entre os Estados, nota-se uma submissão de uns em relação a outros no campo econômico e social. FIGURA 19 – CARICATURA ILUSTRANDO AS RELAÇÕES DE PODER ENTRE NORTE E SUL FONTE: <http://origin.guiadoestudante.abril.com.br/estudar/simulados/simulado-geografia- geopolitica-505013.shtml>. Acesso em: 3 ago. 2019. TÓPICO 3 | TERRITÓRIO, POVO, SOBERANIA: O QUE FUNDA A IDENTIDADE E PERTENCIMENTO AO ESTADO 55 Por isso, mesmo considerando que o conceito de território se encontra em irreversível evolução, há uma grande variação em relação ao seu direcionamento. Além disso, é perceptível que a evolução se dá por caminhos diferenciados e em conformidade com as relações de poder que ocorrem e variam constantemente. Como se pode perceber na análise de Rogério Haesbaert, território é um conceito complexo conforme o enfoque que se quer dar e aponta três abordagens: 1) jurídico-política, segundo a qual o território é visto como um espaço delimitado e controlado sobre o qual se exerce um determinado poder, especialmente o de caráter estatal; 2) cultural(ista), que prioriza dimensões simbólicas e mais subjetivas, o território visto fundamentalmente como produto da apropriação feita através do imaginário e/ou identidade social sobre o espaço: 3) econômica, “que destaca a desterritorialização em sua perspectiva material, como produto espacial do embate entre classes sociais e da relação capital- trabalho (HAESBAERT, 2004, p. 18). Analisando essa afirmação percebe-se que o conceito de território avança abarcando outros, além de ser concebido, como dissemos, de formas diferenciadas conforme o ponto de vista de quem o avalia. Você pode perceber também que a discussão sobre território leva a compreender que em seu contexto há uma constante relação de poder que não se limita apenas ao que é típico de Estado. Em outro tópico desta unidade, voltaremos a analisar essa questão quando será tratado o conceito de Estado-Nação. A título de aprofundamento de estudos ou leituras futuras sugerimos duas obras: • HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do "fim dos territórios" à multiterritorialidade. Bertrand Brasil, 2004. • HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. Tradução de Carlos Szlak. São Paulo: Annablume, 2005. DICAS 3 POVO: A QUEM PERTENCE O ESTADO Como vimos nosubtópico anterior, o Estado não é um conceito único ou isolado. Ao contrário, é um conceito imerso em uma ampla gama de outros conceitos. Assim, como acabamos de discutir o conceito de território, suas particularidades e diversidade, é fundamental que se discuta o termo (conceito de) povo. Além disso, quando discutimos em tópicos anteriores o conceito, a historicidade e a finalidade do Estado, enfatizou-se que o bem comum e zelo pela dignidade das pessoas seriam razões fundamentais de existência do Estado. 56 UNIDADE 1 | ESTADO Certamente, você já o encontrou e o utilizou em diferentes situações e contextos para expressar variadas concepções ou para referir-se a diferentes ideias. Em nosso contexto, a necessidade de discutir esse conceito deve-se ao fato de que não se pode falar de Estado sem identificar a quem ele pertence. Sim, o Estado não existe como entidade autônoma, mas ao contrário, é pertencente e contém em si um coletivo humano. É para esse coletivo que ele existe. Inicialmente é preciso buscar o entendimento da definição etimológica da palavra povo. Nos reportamos ao filósofo italiano, Nicola Abbagnano, que assim a descreve: POVO (lat. Populus,...). comunidade humana caracterizada pela vontade dos indivíduos que a compõe de viver sob a mesma ordem jurídica. O elemento geográfico não é suficiente para caracterizar o conceito de povo; como dizia Cícero, “povo não é uma aglomeração de homens, reunidos de qualquer maneira, mas uma aglomeração de gente associada pelo consentimento ao mesmo direito e por comunhão de interesses” (Rep., I, 25,39)... por outro lado o conceito de povo distingue-se do de nação (v.) porque este contém um conjunto de elementos necessitantes que se somam à noção de destino comum, ao qual os indivíduos não podem subtrair-se legitimamente. O conceito de nação começou a formar-se a partir do conceito de povo, quando, com Montesquieu, começaram a ser ressaltadas as causas naturais e tradicionais (clima, religião, tradições, usos e costumes etc.) que contribuem para formar o que Montesquieu chamou de “espírito geral” ou “espírito da nação” (Espritdeslois, XIX, 4-5)... (ABBAGNANO, 2000, p. 783, grifo do autor). Assim, nota-se que não se está falando um termo simples, mesmo que seu uso seja corriqueiro. Por trás dele há uma complexidade que procuraremos descrever neste texto, considerando aspectos históricos e contextuais, nessa ordem, sem esquecer as diferentes formas de aplicar o termo, conforme o entendimento de teóricos e estudiosos. Comecemos por um pouco de história! Como vimos noutro tópico, todas as referências alusivas ao Estado e democracia remetem aos gregos. Em relação ao conceito de povo não poderia deixar de ser diferente. Exatamente pelo fato de que a composição do Estado e da própria democracia depende da participação da coletividade. Foi na Grécia Antiga que pela primeira vez se reconheceu que o poder estava nas mãos da população, a que se chamou de povo. Esse reconhecimento representa o nascimento da democracia, conceito que, como vimos, passou por diferentes processos de evolução e atingiu o formato que conhecemos hoje. Outro fato a ser registrado e que historicamente o conceito de povo sugere, como veremos, é sua íntima relação com o de cidadania. TÓPICO 3 | TERRITÓRIO, POVO, SOBERANIA: O QUE FUNDA A IDENTIDADE E PERTENCIMENTO AO ESTADO 57 Sempre convém lembrar que o cidadão que compunha um conjunto denominado povo se restringia apenas aos homens livres e nativos, portanto, estrangeiros e escravos, além de mulheres não eram considerados cidadãos e não estavam incluídos no conceito de povo. Dallari (1998, p. 103) recorda que “Aristóteles afirmava que somente entre homens livres seria possível um direito em sentido político e que sem este direito não haveria Estado”. Assim, povo, na Grécia Antiga, pode ser compreendido com um conceito relacionado diretamente à aristocracia, um pouco distante do conceito atual, o que serve para reforçar a ideia de que se trata de um conceito fruto de um processo evolutivo, que ainda está em andamento. Roma, assim como na construção do conceito de Estado, tem participação na definição do conceito de povo, porém com algumas diferenças marcantes em relação à Grécia. Aqui o povo era constituído por pessoas de relevância social, mas que não pertencia à aristocracia local, conforme lembra Barbosa (2011, p. 3) ao afirmar que “Definimos como cidadão ‘do povo’ aquele indivíduo portador de direitos civis e políticos que se encontrava inserido na vida pública de sua comunidade e que não pertencia à aristocracia”. Assim, pode-se dizer que se diferencia do entendimento grego, pois o critério aqui é a relevância social. Mantinham-se os escravos e mulheres fora do grupo que poderia ser chamado de povo. Os aristocratas eram, nesse contexto, um grupo superior, que atribuíam a si, serem descendentes de antigos heróis ou mesmo terem uma certa relação com alguma divindade. O povo era uma categoria intermediária entre essas categorias: inferior à aristocracia e superior aos escravos e mulheres. Na Idade Média, o termo povo está frequentemente associado à população camponesa. Essa população foi constituída pela lógica feudal, que como vimos, dominou as relações entre as pessoas naquele período. O feudalismo organizou uma sociedade em que se percebia um predomínio da autoridade local sobre a central, devido a um flagrante processo de descentralização de poder para decisões mais corriqueiras. A autoridade local era, em última instância, o dono das terras para quem os camponeses trabalhavam em troca de uma parcela da produção. Com o fim do regime feudal, a autoridade passa novamente a ser exercida por uma autoridade central, de forma plena, e todos os súditos do rei passaram a formar o povo, sejam eles camponeses ou donos de propriedades. Mas é na chamada Idade Contemporânea que a política passou a ser atividade diretamente ligada ao povo, inclusive com a mudança de perfil em relação aos grupos humanos que o constituem. O fim da escravidão e o reconhecimento da cidadania feminina incluiu grande parcela da população que ainda não tinha acesso à categoria povo. 58 UNIDADE 1 | ESTADO Conforme mencionado, com a Revolução Francesa e outros movimentos, o Estado ingressa no seu formato moderno. Nele, o povo será personagem central de toda a organização política, tornando-se condutor de toda a soberania do Estado. Assim, a participação popular dita literalmente o destino do Estado e seu comportamento frente aos demais Estados. ATENCAO Por conseguinte, passa-se a reconhecer o povo como única e legítima fonte de poder, o que ficou muito evidente no processo de independência dos Estados Unidos. Por essa razão, em termos de Estado Moderno, atribui-se aos norte- americanos o pioneirismo da utilização do conceito de povo, como titular da soberania e como “dono” do próprio Estado. Esse pioneirismo se deu com Thomas Jefferson, que atribuía ao povo um papel preeminente na constitucionalização do país. Esse presidente norte-americano, ao elaborar a Constituição da Virgínia, em 1776, considerou fundamental que ela fosse promulgada pela autoridade exclusiva do povo. Essa autoridade é que convencionou-se denominar cidadania, conceito e princípio norteador de toda a participação popular no processo de tomada de decisões do Estado. Ospitali (1966, p. 31), ao tratar dessa relação, afirma que povo é “o conjunto de pessoas que pertencem ao Estado pela relação de cidadania”. No mesmo raciocínio, Virga (1975, p. 43-44) exalta essa relação ao afirmar que é “o conjunto de indivíduos vinculados pela cidadania a um determinado ordenamento jurídico”. Corrobora com essa concepção a afirmativa de Christense e Müller (2009, p. 94) quando sustenta que “povo não é um conceito simples nem um conceito empírico”. Assim é importante destacar que, conforme esses autores, não basta um conjunto de pessoas residir no mesmo Estado para ser considerado parte do seu povo.Há que se estabelecer entre elas uma forte relação, chamada de cidadania. Por essa relação as pessoas (povo) assumem a condição de pertencimento recíproco entre elas e o próprio Estado. IMPORTANTE TÓPICO 3 | TERRITÓRIO, POVO, SOBERANIA: O QUE FUNDA A IDENTIDADE E PERTENCIMENTO AO ESTADO 59 Com isso, as decisões devem ser tomadas de acordo com princípios e demandas comuns e os resultados dessas decisões incidem sobre todos, a que chamamos de sociedade. Como vimos anteriormente, para que esse coletivo (sociedade) seja respeitado nas relações que estabelece com o Estado, deve haver um arcabouço legal que atinja a todos por igual (universal) e o interesse do coletivo deve predominar sobre o individual. Isso não significa que os chamados direitos individuais devam ser subestimados. Para que esse arcabouço legal possa assumir esse perfil é preciso que se constitua uma verdadeira democracia representativa em que o povo efetivamente seja representado por seus pares, escolhidos segundo a vontade da maioria. Sobre isso, Christense e Müller (2009, p. 61) doutrinam que “neste contexto, o povo elege seus representantes, os quais, por sua vez, são responsáveis pela elaboração de textos de normas, que, em regra, vinculam as ações e interesses do próprio povo, enquanto população”. Portanto, representação popular é exatamente isso. O povo escolhe entre os seus representantes, que farão exatamente isso, representar toda a população nas grandes discussões e construindo consensos em torno dos interesses da coletividade, preservando direitos individuais. Nesse sentido, Dallari (1998, p.15) lembra que “Locke postulou, partindo da ideia do caráter inseparável que tem a liberdade com relação à essência do homem, as limitações que deveriam ser exigidas do poder do Estado, cujos fins consistiriam na proteção da vida, da liberdade e da propriedade”. Nota-se que mesmo primando pelo coletivo, o individual não perde força. Assim os direitos individuais (vida, liberdade e propriedade) seguem preservados, porém havendo conflito de interesses entre indivíduos e sociedade, prevalecem os da segunda. Por essa razão, fazer parte da sociedade é essencial para que o indivíduo possa usufruir da totalidade de seus direitos. Sobre o sentido de sociedade, como conceito derivado de povo, vale lembrar que: Grande ou pequena, no entanto, a população do Estado não é a simples justaposição de indivíduos. Estes pertencem a várias associações, como a família, os grupos profissionais, etc. Formam um todo orgânico, têm os seus interesses e as suas actividades enquadradas dentro de sociedades de naturezas diversas, não se encontram isolados, singularizados diante do Estado. Indivíduo e sociedade são termos de um binómio indestrutível: não é possível conceber um sem o outro (AZAMBUJA, 2008, p. 35-36). Dessa forma o autor reporta ao entendimento de que nenhum ser humano é capaz de viver só e que sociedade é um conceito tão complexo quanto o de povo. A complexidade e a diversidade de relações estabelecidas justificam-se pelo fato de que cada indivíduo tem necessidade de se relacionar com outros para diferentes finalidades: econômica, social, política, religiosa etc. Reconhecendo o indivíduo como sujeito de relações, pode-se dizer que por meio delas e com elas, diferentes indivíduos unem-se e formam o que chamamos de sociedade ou passa a compor várias delas, segundo seus interesses 60 UNIDADE 1 | ESTADO e necessidades. As pessoas que transitam em diferentes sociedades e habitam um mesmo estado, independentemente de sua condição financeira, social, religiosa, de sua orientação sexual, de sua origem étnica, compõem o que chamamos de povo. No Estado Moderno, o termo e o conceito de povo fazem parte do arcabouço jurídico, o que faz Comparato (1997, p. 213) afirmar que “povo não é um conceito descritivo, mas claramente constitucional”. O uso do termo na lei máxima do país revela não apenas a sua importância, mas o seu impacto sobre o funcionamento do Estado e de suas instituições. Em relação à Constituição brasileira de 1988, no parágrafo único de seu artigo 1º, o constituinte asseverou que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente [...]” (BRASIL, 1988, s.p.). Portanto, atribui ao povo o real e efetivo pertencimento de todo o Estado, de suas relações, de suas finalidades e da sua gestão. Com isso, grava-se com a devida profundidade, o conceito mais absoluto de democracia da lei das leis. Nessa direção, Christense e Müller (2009, p. 93) afirmam que “o povo aparece na teoria jurídica da democracia enquanto bloco. Ele é a pedra fundamental imóvel da teoria da soberania popular e fornece como lugar-comum de retórica a justificativa para qualquer ação do Estado”. Portanto, nada que o Estado faça pode distanciar-se da ideia de que todos os seus poderes, e, portanto, tudo o que por meio deste poder for decidido e executado, deverá levar em consideração o que o povo determinar, observando-se como já foi dito, o respeito aos direitos individuais fundamentais. Diante disso pode-se dizer que o conceito de povo é uma construção permanente, uma criação contínua. Isso é cada vez mais perceptível na medida em que se reconhece o pressuposto de que não existe um conceito que possa ser único e aplicável a todo e qualquer Estado. É sempre prudente lembrar que em cada Estado há uma forma distinta de democracia. Assim, com o aprimoramento da democracia criam-se mecanismos que ampliam a atuação do povo em relação a seu governo. Um exemplo disso é a participação popular na elaboração de orçamentos governamentais ou ainda em conselhos que elaboram e fiscalizam políticas públicas. Na medida em que o conceito de povo evolui, o conduz a ser autor de ações do Estado, consolida-se também outra característica fundamental do Estado: a soberania. Na medida em que o povo assume seu protagonismo, fortalece-se o Estado, consolidando sua relação com organizações internas e com outros Estados. Na medida em que o povo se sente pertencente ao Estado e ao mesmo tempo o percebe como seu, dificulta-se qualquer prática interna ou externa de subordinação dos interesses de Estado (coletivos) em detrimento de interesses individuais internos ou externos. TÓPICO 3 | TERRITÓRIO, POVO, SOBERANIA: O QUE FUNDA A IDENTIDADE E PERTENCIMENTO AO ESTADO 61 4 SOBERANIA: UM ESTADO ENTRE ESTADOS Em tempos de aprofundamento de crises, relações comerciais, estabelecimento de acordos entre nações, alinhamentos e distanciamentos entre países e líderes mundiais, pelos mais diferentes motivos é comum a discussão em torno do termo soberania. Por vezes aparece de forma confusa, dificultando a compressão do que realmente significa e em que situações pode-se aplicá-lo. Há sempre uma tendência em confundi-lo com termos como autonomia, liberdade, independência, identidade e tantos outros. Assim como vimos nas discussões sobre território e povo, a discussão em relação à soberania também é complexa! Aqui o ponto de partida será como nas temáticas anteriores, a definição literal do termo para que se estabeleça preliminarmente de que estamos falando. Recorrendo aos escritos do filósofo italiano, Nicola Abbagnano, encontramos a seguinte descrição: SOBERANIA...poder preponderante ou supremo do Estado, considerado pela primeira vez como caráter fundamental do Estado por Jean Bodin, em Six livres de la republique (1576). Segundo Bondin, a soberania consiste negativamente em estar liberado ou dispensado das leis e dos usos do Estado; positivamente, consiste no poder de abolir ou criar leis. O único limite da soberania é a lei natural e divina (Six livres de la republique, 9. ed., 1576, I, p. 131-32). O termo e o conceito foram aceitos por Hegel: “as duas determinações, de os negócios e os poderes particulares do Estado não serem autônomos e estáveis nem em si mesmos, nem na vontade pessoal dos indivíduos, mas de terem raízes profundas na unidade do Estado – que outracoisa não é senão a identidade deles – constituem a soberania do Estado”. (Filosofia do Direito, pp. 278). Hegel esclarece esta noção dizendo: “o idealismo que constitui a soberania é a mesma determinação segundo a qual, no organismo animal, as chamadas partes deste não são partes, mas membros, momentos orgânicos cujo isolamento ou existência por is é enfermidade” (Ibid., p. 278). Essas determinações de Hegel são dirigidas contra o princípio afirmado pela Revolução Francesa, de que a soberania está no povo. Rousseau qualificara de soberano o corpo político que nasce com o contrato social e assim definira o seu poder: “O corpo político ou soberano, cujo ser deriva tão-somente da santidade do contrato, nunca pode obrigar-se, nem mesmo em relação a outros, a nada que derrogue aquele ato primitivo, que seria a alienação de alguma parte de si mesmo ou a sua submissão a outro soberano. Violar o ato graças ao qual existe significaria anular-se; e o que o nada é nada produz” (Ibid., I, 7). Portanto, o princípio da soberania é ser o poder mais alto em certo território: isso não significa poder absoluto ou arbitrário. Para a moderna teoria do direito, a soberania pertence à ordenação jurídica sendo entendida como a característica em virtude da qual “acima da ordenação jurídico-estatal não existe outra” (H. Kelsen, General Theoriof Law and State, 1945; trad. It. p. 390). Segundo Kelsen, se admitirmos a hipótese da prioridade do direito internacional, o Estado pode ser considerado soberano apenas em sentido relativo; se admitirmos a hipótese do direito estatal, pode ser chamado de soberano no sentido absoluto e originário da palavra. A escolha entre as duas hipóteses é arbitrária (Ibid., p. 391) (ABBAGNANO, 2000, p. 911, grifo do autor). 62 UNIDADE 1 | ESTADO Eis que aportamos diante de um conceito com amplas interpretações e que por isso costuma ser usado de forma generalista, por vezes, sem que seus usuários percebam o que ele de fato pode significar. Nota-se que a descrição que acabamos de analisar aponta para a necessidade de se compreender o sentido de soberania em nível jurídico. Isso torna-se essencial para que o Estado possa definir com clareza, o que efetivamente pode ou não fazer para garantir a preservação de sua soberania, sem invadir a de outros Estados ou transgredir direitos de seus cidadãos. Nesse sentido, a discussão a respeito do termo e do sentido de soberania, sustentada pelo direito, caminha para o entendimento do alcance de valores como liberdade e coação. Analisando a lei (direito) como instrumento de garantias universais (para todos) pode-se pensar que quando se invoca a chamada “força da lei”, reporta à ideia de que a soberania se constrói a partir de um mando justo. Esse senso de justiça, espera-se, é o que define a ação estatal e ao mesmo tempo submete todo o uso de coerção de que o Estado precise. Essa é a essência do que se convenciona chamar de Estado Democrático de Direito. ATENCAO Na perspectiva inversa situa-se a ideia da “lei da força”, ignorando-se princípios democráticos e de respeito ao debate. Por esse princípio todo o direito deriva da capacidade efetiva de mando, e, por conseguinte, todas as leis derivam do mais forte. Nota-se uma substituição da autoridade, legitimamente constituída pela lei, por um autoritarismo manipulador e por vezes dominado por princípios e valores que se confrontam com os da democracia. Sobre isso, Nicola Matteucci (1986), em seu Dicionário de Política, afirma que genericamente o conceito de soberania indica o poder de mando como instrumento para o debate a fim de constituir-se um aparato jurídico legítimo e justo. Matteucci (1986, p. 1179-80), sobre o conceito de soberania, “pretende ser a racionalização jurídica do poder, no sentido da transformação da força em poder legítimo, do poder de fato em poder de direito” e sobre a relação entre poder e coerção no contexto do debate de soberania afirma que “a unilateralidade destas duas posições, se levada ao extremo, poderia conduzir ou a um direito sem poder ou a um poder sem direito, quebrando assim aquele delicado equilíbrio entre força e direito que continua sendo, em qualquer situação, o objetivo último dos teóricos da Soberania”. TÓPICO 3 | TERRITÓRIO, POVO, SOBERANIA: O QUE FUNDA A IDENTIDADE E PERTENCIMENTO AO ESTADO 63 Não há dúvidas de que essa discussão acerca do papel da coerção e do direito não se esgotam num simples texto ou qualquer escrito que se queira elaborar. É uma questão permanente e que sofre constantes oscilações, conforme o tempo e os cenários em que se situam. Além disso não se pode ignorar, na análise dessa questão, as contribuições de Francis Harry Hinsley (1918-1998). Ele aponta para um certo equilíbrio entre coerção e direito, quando se discute a temática da soberania. Hinsley (1972) aponta para uma certa acomodação entre coerção e direito tanto no campo teórico quanto prático. Segundo ele, se por muito tempo o Estado era apenas uma instituição submissa às leis, por vezes criadas apenas para torná-lo objeto de soberanos, agora o Estado é a própria lei. Dele, por meio dos poderes constituídos e legitimamente exercidos, nascem as leis, inclusive as que o orientam, distanciando-se do caráter divino nas leis, que tradicionalmente dominaram a relação entre governo e comunidade. As leis criadas com a finalidade de regular conflitos culminaram com a designação do Estado como juiz supremo, isento de posições, mas defensor intransigente da preservação do direto, independentemente de quem seja o suposto beneficiário desse direito. Ferrajoli (2003) reforça esse entendimento quando ressalta que a dicotomia entre direito e soberania se resolveu internamente com o Estado guiado por uma Constituição que por sua vez será a base do Direito. Assim não haverá nenhum soberano a não ser o próprio Estado. Seus agentes (inclusive os eleitos) jamais tomarão para si a soberania, ao contrário, exaltarão o papel do Estado na resolução de conflitos de direitos promovendo a prática da coerção conforme a necessidade e na proporção prevista nas leis derivadas da própria Constituição. Quando o direito e o poder de coação tinham fundo divino era dever do monarca definir a quem cabia o direito e coação. Com o advento da soberania do Estado, governantes e governados passam a submeter-se à mesma lei e ao próprio Estado. Hinsley (1972, p. 135-6) afirma que “essa é a única forma encontrada para conciliar governantes e governados sem prender o conceito de soberania a uma instituição física, ou sem ter que negar sua existência”, e segue reconhecendo “a existência de uma autoridade final e absoluta dentro da comunidade política, e de nenhuma outra autoridade desse tipo mais além. Nesse sentido, soberania não é um fato, e sim um conceito. É uma forma de conceber e de explicar o poder político, dando ao governo um critério de legitimação e alguma responsabilidade”. Assim o poder do Estado, fundado na soberania, é um poder único e universal, atingindo todos os seus cidadãos. ATENCAO 64 UNIDADE 1 | ESTADO Não se pode omitir ou desconhecer o entendimento de Max Weber sobre esse tema, por ter sido ele um dos mais vigorosos pensadores acerca da temática do Estado. Assim, Weber (1982, p. 98) descreve que “o Estado é aquela comunidade humana que, dentro de determinado território – este, o ‘território’, faz parte de suas características – reclama para si (com êxito) o monopólio da coação física legítima”. A legitimidade da coação física, para Weber, não está apenas no consentimento legal de coagir, mas é o entendimento que o cidadão tem desse sistema de coação. IMPORTANTE Por isso, outro fator imprescindível para que um Estado atinja sua soberania, do ponto de vista da aplicação de seu poder de definir direitos e coagir caso esses direitos não sejam observados, é a aceitação do poder coercitivo do Estado. A não aceitação de parte da população, fragmentando o Estado, tira- lhe não somente a legitimidade,mas gera uma profunda insegurança jurídica, diluindo seu protagonismo e sua soberania. Retomando o pensamento de Hinsley (1972), evita-se essa diluição quando os agentes públicos que representam o povo e em seu nome comandam os diferentes setores do Estado, observam as necessidades e exigências da comunidade. Mudanças de ações, políticas públicas e mesmo razões de coação em decorrência das demandas da comunidade consolidam a soberania do Estado, integrando sociedade e Estado. Quanto mais consolidada for essa integração, mais fortemente estabelecida será a soberania do Estado. Um Estado governado por princípios alinhados à soberania acaba por adquirir maior credibilidade junto à comunidade internacional, pelo fato de apresentar-se como um Estado forte, com amplos poderes legitimados pelo seu povo. Poderes estes estáveis, pois constam de seu aparato jurídico, livre de oscilações provocadas por movimentos ideológicos ou por simples trocas de governo ou de algum de seus membros. Até o momento, você conheceu o conceito de soberania, conforme o entendimento de alguns autores que tratam da sua construção teórica. Foi possível perceber que mesmo havendo divergências quanto ao seu sentido (e sua aplicação) há unanimidade quanto a ser indispensável a qualquer Estado. Entretanto, do ponto de vista prático, o caminho parece ser diferente, mais longo e de certa forma com muitas idas e vindas. TÓPICO 3 | TERRITÓRIO, POVO, SOBERANIA: O QUE FUNDA A IDENTIDADE E PERTENCIMENTO AO ESTADO 65 Se você analisar o comportamento político da humanidade, ao longo do século XX e início do século XXI, poderá perceber que já não se pode supor a existência de uma soberania plena e absoluta. Não pela ausência de conhecimento teórico sobre o tema, que como vimos é vasto e diversificado, mas pela fragilidade ou ausência de outros princípios, como democracia, ética e respeito à verdade e à liberdade. Trata-se de um período em que se viu exemplos de totalitarismo (ditaduras, golpes contra a democracia), em que se criou e utilizou de forma constante a comunicação de massa (incluindo o sério problema das chamadas Fake News) frequentemente vinculadas a grandes conglomerados midiáticos e econômicos. Sobre isso é importante assentar as palavras de Farrajoli (2003, p. 46), explicando que “De fato, o que entrou irreversivelmente em crise, bem antes do atributo da soberania, é precisamente seu sujeito: o estado nacional unitário e independente, cuja identidade, colocação e função precisam ser repensadas à luz da atual mudança, de fato e de direito, nas relações internacionais”. Essas relações decorrem, assim como as internas, de políticas de Estado que podem apresentar oscilações de acordo com fatores econômicos, ideológicos ou de outra natureza. Mas essas relações não são meras adesões por afinidades em um ou outro desses fatores. Para o estabelecimento de relações internacionais, importa que os Estados que as estabelecem reconheçam regras, processos e instituições e as incorporem ao seu ordenamento jurídico. Nesse sentido, a incorporação a um determinado tratado, por exemplo, não é ato unilateral ou impositivo, mas negociado pela diplomacia de cada Estado para estabelecer regimes e organizações de atuação respeitando a soberania do Estado signatário. Assim, o protagonismo internacional de cada Estado é algo incluído no conceito de finalidade do próprio Estado. Pode-se afirmar que uma das funções do Estado é buscar caminhos diplomáticos para não se isolar dos demais Estados, para garantir o cumprimento de seu dever de oferecer aos seus cidadãos os direitos fundamentais e universais inerentes a todos os seres humanos. Isso tornou-se sempre mais exigido, e ao final do século XX, a globalização ampliou a mobilidade de pessoas e de capital e gerou conglomerados econômicos privados que passaram a substituir em muitos momentos o protagonismo que antes cabia exclusivamente aos Estados. Uma resposta à relegada função coadjuvante de alguns Estados foi a elaboração de projetos de integração interestatal como a União Europeia, e mais timidamente, o MERCOSUL, temática a ser abordada no próximo tópico. Mas mesmo diante das necessárias relações entre estados, a igualmente necessária soberania, faz com que o Estado continue sendo a unidade política básica do mundo, como tem sido desde o século XVI. Ao estudar o conceito de políticas e a sua aplicação, a discussão do conceito de Estado é considerado 66 UNIDADE 1 | ESTADO imprescindível. Mesmo com a globalização e a composição de blocos ou organizações internacionais para quaisquer finalidades, o estudo do artigo de Ivan Nunes, Globalização e Soberania dos Estados (2011), induz a compreender que cada Estado ainda conserva três aspectos que lhe são absolutamente inatingíveis: • O cabimento ao Estado, por meio de seus poderes constituídos, de estabelecer o arcabouço legal com vigência em seu território, para os que nele vivem, circulam ou fazem negócios. Essa é uma característica fundamental para consolidar a chamada segurança jurídica, conforme mencionamos. • A consolidação de uma identidade única para o Estado e seus membros em conformidade com as características administrativas e políticas daquele Estado. Não há um modelo único de Estado soberano. Para cada Estado, pelas suas peculiaridades, constrói-se um modelo próprio, sujeito a alterações constantes. As tentativas de transpor “modelos de sucesso”, têm-se revelado frustradas pelas diferenças abissais entre diferentes Estados. • A manutenção do monopólio do poder coercitivo é fundamental para que o Estado possa reprimir crimes internos e garantir a segurança perante eventuais ataques de outras nações. Mesmo diante de situações de extrema comoção é fundamental que a lei (o direito) seja a guia para todas as decisões. Quando se fala em ausência do Estado, como em regiões periféricas de cidades ou junto a comunidades, significa que não há mais esse monopólio ou que foi transferido do Estado para outras organizações. A não conservação desses três aspectos, como vimos, pode comprometer seriamente a soberania do Estado, uma vez que suas instituições são constantemente cooptadas ou tem sua imagem comprometida, tanto pelos regimes totalitários quanto pela comunicação de massa. Como uma espécie de “efeito dominó”, o comprometimento da soberania significa um severo comprometimento da própria democracia. Isso inevitavelmente gera uma percepção muito negativa da imagem do Estado perante a comunidade internacional. Mas o grande desgaste se dá internamente! Essa conjugação de comprometimentos faz com que uma maioria esmague uma minoria em nome do princípio democrático de que a “maioria vence”. Outro fenômeno que se percebe, especialmente com a comunicação de massa, é que uma minoria detentora do controle social (combinação de controle econômico e midiático), induz a maioria votante a votar contra seus próprios interesses. Nos últimos anos perceber-se inclusive o uso de movimentos independentes, igrejas e outros, para legitimar o que é pregado via comunicação de massa. Nasce com isso um ambiente dominado por fundamentalismos, que desconhece o poder do diálogo e da argumentação, fundamentos que sustentam a soberania e por consequência, da própria democracia. ATENCAO TÓPICO 3 | TERRITÓRIO, POVO, SOBERANIA: O QUE FUNDA A IDENTIDADE E PERTENCIMENTO AO ESTADO 67 O totalitarismo confronta-se com o Estado Democrático de Direito, que tem na soberania um de seus pilares, autorizando a minoria dominante com o aval da maioria a literalmente esmagar quem a ela se opuser. Legitimam-se exclusões, perseguições, e em casos extremos, até mesmo perseguições e torturas, típicas dos regimes totalitários ou democracias sustentadas por regimes que se forjam a partir das chamadas opiniões publicadas. Mas é sempre bom lembrar que, segundo Bodin (1992, p. 47), “a soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma república [...]”. Portanto, num país como o Brasil, que é umarepública, não se pode sequer imaginar a hipótese de se renunciar a este princípio, que inclusive está escrito e exaltado na Constituição de 1988. Não há poder legítimo sem que antes dele esteja consolidada a soberania. Finalizando este tópico, lançamos um importante desafio: Abandonar, em parte, a ortodoxia da soberania em proveito de uma nova forma que regre o comportamento das relações entre Estados derivada de uma necessidade de organizar a vida internacional em função de novos fatores que caracterizam essas relações que, decididamente, apenas têm um único meio de existência que sabemos agora ser perecível: a Terra (BACHELET, 1995, p. 22). Não se trata de abandonar a ideia e o ideal de uma luta pela soberania dos Estados, mas da unidade em torno da viabilidade da vida. Isso, evidentemente, merece outras discussões em outros momentos de sua formação, visto que o termo socioambiental é profundamente amplo e exige de cada um (Estado e cidadão) uma certa dose de renúncia, para que todos possam desfrutar dos direitos básicos de cada ser humano, dentre os quais, a vida! Estados soberanos não podem omitir seu protagonismo interno e externo em favor da luta por este e outros princípios que lhe são inerentes. 68 UNIDADE 1 | ESTADO Vídeos sobre soberania, território e povo. O vídeo 1 faz uma sintética, porém profunda, análise do conceito de soberania. O vídeo 2 disseca o conceito de território e o vídeo 3 trata dos conceitos de Estado, Governo e Nação. Com isso você poderá compreender a importância dos conceitos de soberania e território para a consolidação de um Estado. Além disso, conseguirá perceber a diferença entre Estado e Nação, bem como o protagonismo do governo nesse contexto. Sugere- se que ao assistir aos vídeos você aponte as diferenças entre Governo, Estado e Nação. Aproveite e interaja! Vídeo 1: https://www.youtube.com/watch?v=4Av83vXAavA Vídeo 2: https://www.youtube.com/watch?v=I6U9kz8ui9w Vídeo 3: https://www.youtube.com/watch?v=BnbkWxXSs3A Agora escreva o seu entendimento sobre os seguintes conceitos: Governo: Estado: Nação: DICAS 69 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • A discussão sobre o protagonismo do Estado está centrada em torno dos três elementos fundantes dos chamados Estados Modernos: território, povo e soberania. • Frequentemente associa-se território ao espaço ocupado por um Estado, por isso é importante estudar com profundidade o significado de território. Este pode ser compreendido como a base geográfica sobre a qual o Estado exerce sua soberania. Este conceito vem e é fruto de fatos históricos que ainda o afetarão. • Do ponto de vista da definição dessa base, o conceito de fronteira serve para delimitar terras valorizadas para exploração (extrativismo, agricultura etc.). Considerando a definição de fronteiras entre Estados, hoje temos 193 Estados reconhecidos pela ONU. Diferentes autores abordam o tema estabelecendo laços afetivos, identitários e de pertencimento. Modernamente reconhece-se que território faz referência a tudo o que o indivíduo faz, sua cultura, seus costumes. • O território pode ser visto também como fruto de uma dinâmica socioespacial, tendo que se considerar desigualdades, diferenças, ritmos e identidades muito particulares. Disso é possível deduzir que o território é posterior ao espaço. Este é algo determinado naturalmente, não depende da ação humana, por ser um fenômeno geológico, não cultural ou antropológico. • Outro conceito imprescindível para compreende o protagonismo do Estado é o de povo. Esse conceito relaciona-se com o de pertencimento. Historicamente, povo não era exatamente um coletivo universal, mas constituído especialmente por homens livres, nos tempos antigos. • O conceito de povo se assimilava ao de aristocracia. Tempos depois, o conceito de povo foi associado ao de camponês, de modo particular no contexto do feudalismo ao longo da Idade Média. • Na Idade Contemporânea, com o fim da escravidão e o reconhecimento da cidadania feminina, incluiu grande parcela da população que ainda não tinha acesso à categoria povo. A Revolução Francesa e outros movimentos foram marcantes com o início da ideia da participação popular no destino do Estado. • Diante disso nasce a condição de pertencimento recíproco entre o povo e o próprio Estado. Como fruto desse pertencimento, o povo escolhe entre os seus, que irá representá-lo nas grandes discussões e construindo consensos em torno dos interesses da coletividade, preservando direitos individuais. 70 • É preciso dizer que o conceito de povo é uma construção permanente e contínua, diretamente relacionada ao conceito de democracia. Por ela criam-se mecanismos que ampliam a atuação do povo em relação ao seu governo. • Quando tratamos do conceito de Soberania chegamos à ideia de que é um poder supremo e que para efeito de justiça deve ser exercido pelo Estado sobre todos os cidadãos (governantes e governados), os quais devem estar sujeitos às mesmas regras. • Entram em discussão valores como liberdade e coação, especialmente quando é invocada “força da lei”, que devem sustentar a ideia de que a soberania se constrói a partir de um mando justo. A coerção justa, universal e baseada em leis, discutidas e aprovadas por um parlamento eleitos configura-se como pressuposto básico do chamado Estado Democrático de Direito. O contrário disso é um estado totalitário. • Autores apontam para um necessário equilíbrio entre coerção e direito a ser determinado pela lei, que deve ser pensada e refletida a partir de consensos historicamente construídos na própria sociedade. O poder do Estado, fundado na soberania, é um poder único e universal. • Max Weber (1982) afirma que uma das partes características do Estado é o monopólio da coação física, sem, no entanto, ignorar a necessidade de o cidadão compreender o motivo da coação e aceitá-lo como justo. • Não é somente o tema da coação/coerção que deve ser pautada nas discussões coletivas. A participação da sociedade nas discussões do Estado também. E quanto mais consolidada for essa participação, mais fortemente estabelecida será a soberania do Estado. Isso lhe garante credibilidade internacional. • É importante que você saiba, que do ponto de vista prático percebe-se que não há uma soberania plena. Os séculos XX e XXI foram tomados por vários exemplos de ditaduras, golpes, além do poder econômico dominando meios de comunicação em massa para diminuir e até mesmo acabar com o poder do próprio Estado. Vários estados submeteram-se aos interesses de outros, numa espécie de renúncia (nem sempre por decisão da sociedade) de sua condição soberana. • Ainda assim, luta-se para manter os aspectos fundamentais que preservam a soberania dos Estados, mesmo quando estes ingressam em blocos de cooperação ou em organizações internacionais: a) exclusividade na determinação do arcabouço jurídico; b) preservação da identidade do próprio Estado construindo um modelo próprio; c) manutenção do monopólio do poder coercitivo. • Território, povo e soberania, para além de conceitos, são elementos que compõem verdadeiramente a identidade de um Estado, carregando consigo suas peculiaridades. 71 1 A discussão acerca do que é território, suas implicações em relação à definição do conceito de Estado, costuma confundir-se com outros como o de espaço, identidade etc. Considerando o conceito de território, classifique as afirmações a seguir em verdadeiras (V) ou falsas (F). ( ) O território, para além de um simples espaço geográfico limitado, representa um elemento de identidade do Estado. ( ) O espaço é um conjunto de elementos pertencentes àquele território geográfico, como é o caso das organizações públicas e privadas nele contidas. ( ) A territorialização consiste na humanização do espaço, tornando-o não apenas habitável, mas também precursor de relações de natureza econômica, social e política. ( ) Em tempos de globalização, mesmo mantida a soberaniapolítica entre os Estados, nota-se uma submissão de uns em relação a outros no campo econômico e social. Agora assinale a alternativa que apresenta a sequência correta: a) ( ) V, F, F, V. b) ( ) F, V, V, V. c) ( ) V, F, V, V. d) ( ) V, F, V, F. 2 A palavra povo é utilizada com muita frequência em diferentes contextos sem necessariamente haver um consenso sobre o termo, sua origem histórica e sua participação na discussão do conceito de Estado, seja no campo teórico quanto no prático. A partir desta afirmação, analise as sentenças a seguir: I- Se na Grécia Antiga o povo, formado pelos cidadãos, era considerado a camada mais aristocrática da sociedade, em Roma, apenas de sua relevância, o povo estava abaixo de categorias consideradas de relevância social intermediária. II- Na Idade Média o termo povo está frequentemente associado à população camponesa, em razão de se viver numa sociedade eminentemente feudal. III- Como fruto da revolução Francesa e de movimentos inspirados nela, o povo passa a ser personagem central de toda a organização política, tornando-se condutor de toda a soberania do Estado. IV- A constituição brasileira de 1988, no parágrafo único de seu artigo 1º, prevê que “todo poder emana do povo e o coage conforme decisão de seus representantes a quem passa a pertencer o poder”. Assinale a alternativa que corresponde à análise correta das sentenças propostas: a) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas. b) ( ) As sentenças I, III e IV estão corretas. AUTOATIVIDADE 72 c) ( ) As sentenças II e III estão corretas. d) ( ) As sentenças II, II e IV estão corretas. 3 A definição de soberania é fundamental para que se possa efetivamente compreender o protagonismo do Estado na vida das pessoas que o habitam (povo) e sobre a sua presença entre os demais Estados. Nesse contexto, assinale a alternativa que apresenta a informação correta: a) ( ) A relação em “Força de Lei” e “Lei da força” representam o equilíbrio fundamental para institucionalização da chamada segurança jurídica. b) ( ) Um Estado legitimamente soberano é o que entrega a um grupo de cidadãos (eleitos ou não) o poder de coagir a coletividade para que sejam cumpridas as obrigações de todo o cidadão previstas em lei. c) ( ) O Estado, constituído a partir do conceito de soberania, é protagonista exclusivo de coerção física a seu povo, por meio de regras (leis) instituídas pelos representantes. d) ( ) Um Estado provocado a coagir seus cidadãos a cumprir leis é um Estado totalitário, uma vez que as pessoas devem apenas ser convencidas de que regras precisam ser cumpridas. 4 É constante o uso do termo Estado Democrático de Direito, especialmente quando se pretende estabelecer uma identidade do Estado. Considerando os conceitos de Território, Povo e Soberania, disserte sobre a importância desses três elementos fundantes do Estado para que este seja considerado Democrático de Direito. 73 TÓPICO 4 POR QUE INSISTIMOS EM CONFUNDIR ESTADO E NAÇÃO? UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO “Não há fatos eternos, como não há verdades absolutas”. Friedrich Nietzsche Se você tem certeza a respeito dos termos Estado e Nação, a frase de Nietzsche poderá lhe oferecer meios de buscar respostas ainda mais precisas para saber se é possível realmente distingui-los. Além disso é preciso que você compreenda que mesmo depois de fazer essa distinção, saiba que estarão em constante movimento. Mas mesmo assim, vamos lá! Após conhecer os três elementos fundantes do Estado (território, povo e soberania) ocorridos após compreender as origens, a formação, os tipos históricos, o conceito de Estado, assim como suas finalidades é chegado o momento compreender o conceito de nação. Novamente, você se depara com um termo usado corriqueiramente. Mais do que isso, o termo nação é usado frequentemente com sentido de Estado e vice- versa, gerando por isso certa confusão. Entretanto, é preciso afirmar que esses conceitos são absolutamente distintos e por isso aplicados de forma distinta. O entendimento desses conceitos e de suas relações depende da análise de muitos teóricos, além de sua aplicação concreta na história e no contexto atual. Assim será imprescindível o entendimento dos tópicos já discutidos e inseri-los novamente no debate. Além disso, definir Estado e Nação é fundamental para que, no momento em que se analisar a gestão pública, possa-se saber em relação a que essa gestão será direcionada. Gestão que é determinada pela relação que o Estado estabelece com os cidadãos. Por fim é fundamental que se dê o devido destaque à diversidade de pensamentos sobre os conceitos em debate para que você possa novamente elaborar seus próprios conceitos. Afinal, essa é a finalidade e o propósito deste estudo. 74 UNIDADE 1 | ESTADO Não se espera de você apenas um acumulador de informações, mas um sujeito crítico, que mediante uma provocação se sinta no dever de manifestar seu pensamento. Uma manifestação pautada em argumentos e convicções construídas a partir de escolhas entre informações e referências seguras. 2 HISTÓRIA E ORIGEM DO CONCEITO DE NAÇÃO A palavra nação tem sua origem do substantivo latino natio, que deriva do verbo nascere, que significa nascer. Por essa razão outras palavras relacionadas ao local de nascimento são utilizadas no cotidiano de todos nós. Quando um documento menciona a nacionalidade de seu titular, faz referência ao local (país) de nascimento do indivíduo. Como veremos a seguir, historicamente o termo e seus derivados passaram a designar a organização política e comunitária de um determinado grupo de indivíduos que partilham o mesmo local para conviver. Esse processo de evolução histórica se deu a partir da fragilização do sistema feudal. Como vimos anteriormente, por cerca de 500 anos a Europa foi governada a partir do sistema feudal, baseado essencialmente na posse da terra e de forma descentralizada. Assim, entre os séculos XV e XX tinha-se um regime de governo baseado não apenas em elementos políticos, mas também em econômicos, gerando novas camadas sociais. Era um modelo piramidal com uma grande diversidade de grupos, divididos essencialmente pelas suas condições econômicas. FIGURA 20 – DIVISÃO SOCIAL DO REGIME FEUDAL FONTE: <https://www.gestaoeducacional.com.br/feudalismo/>. Acesso em: 3 ago. 2019. TÓPICO 4 | POR QUE INSISTIMOS EM CONFUNDIR ESTADO E NAÇÃO? 75 A análise desse regime e sua estrutura organizacional (Figura 20) é fundamental para compreender o movimento que produziu novos regimes e especialmente as modernas estruturas de nação. A partir do século XVI, o modelo feudal começou a ruir em razão de vários fatos, especialmente o desprestígio dos senhores feudais e do próprio clero e, principalmente, o descontentamento da condição de servidão a que era submetida a maioria da população. O formato piramidal da sociedade feudal não é apenas uma representação da ordem hierárquica de poder. Ao contrário, identifica claramente a proporção das frações da sociedade da época, em que se pode perceber o grande volume de pessoas submetidas a grupos minoritários. Mas o que isso tem a ver com o conceito de nação? É exatamente o fato de haver a necessidade de se reorganizar a sociedade num novo formato. O fim do regime servil, típico do feudalismo, fez surgir a burguesia, classe formada essencialmente por comerciantes que passaram a habitar os burgos (cidades medievais). Foi essa classe que se infiltrou no meio aristocrático e passou a dominar a vida política, social e principalmente econômica. Esse domínio estendeu-se ao longo de séculos e fortaleceu-se com a Revolução Francesa, com maior evidência no século XIX. ATENCAO Diante disso, a população passa a se identificar com outros valores do território (cultura, meios de produção diversos etc.), conforme descrevemos anteriormente e como critério de composição da nova sociedade utilizou-se o local de nascimento. Surge então a nação. Abbagnano (2000, p. 694), em seuDicionário de filosofia, ao definir nacionalismo descreve: O conceito de nação começou a formar-se a partir do conceito de povo, que havia dominado a filosofia política do século XVIII, quando se acentuou, nesse conceito, a importância dos fatores naturais e tradicionais em detrimento dos voluntários. O povo é constituído essencialmente pela vontade comum, que é a base do pacto originário; a nação é constituída essencialmente por vínculos independentes da vontade dos indivíduos: raça, religião, língua e todos os outros elementos que podem ser compreendidos sob o nome de “tradição”. Diferentemente do “povo”, que não existe senão em virtude da vontade deliberada de seus membros e como efeito desta vontade, a nação nada tem a ver com a vontade dos indivíduos: é um destino que paira sobre os indivíduos, ao qual estes não podem subtrair-se sem traição. Nesses termos, a nação passa a ser concebida claramente no início do século XIX; o nascimento desse conceito coincide com o nascimento da fé nos gênios nacionais e nos destinos de uma nação particular, que se chama nacionalismo. O conceito de povo permanecia ligado aos ideais cosmopolitas do século XVIII. Mas já em Rousseau se encontra a 76 UNIDADE 1 | ESTADO condenação desses ideais: o apego de Rousseau ao conceito de cidade- estado, da forma realizada na Grécia Antiga, levava-o a condenar o universalismo setecentista. Ao mesmo tempo, esse apego anacrônico levava-o a exaltar o valor do Estado nacional: “São as instituições nacionais que formam o gênero, o caráter, os gostos e os costumes de um povo, que o fazem ser ele mesmo e não outro, que lhe inspiram o amor ardente pela pátria, fundamentado em hábitos impossíveis de erradicar, que o fazem morrer de tédio entre outros povos, em meio às delícias das quais está privado em seu país” [...]. Assim, é notável que o conceito de nação não é fruto do acaso. Ao contrário, é uma construção essencialmente humana, na qual estão implícitas características históricas, culturais e sociais de um grupo social, cujo vínculo é muito maior que o simples fato de habitar determinado local. Trata-se de um conceito amplo, que abarca uma identidade muito forte, similar ao que ocorre com o Estado, como vimos. O nacionalismo, por sua vez, será um vínculo poderoso quando considerado como sentimento de unidade em torno de determinados ideais, havendo casos de profundo desvirtuamento, especialmente no início do século XXI. A seguir, você poderá compreender, em razão até mesmo da similaridade etimológica, a forte relação entre Estado e Nação e sua quase fusão. 3 INTERAÇÃO ENTRE OS CONCEITOS E PRÁTICAS: ESTADO-NAÇÃO O surgimento do conceito de Nação não se deu de forma isolada, mas guarda um sentido histórico, como vimos. Inglaterra, França e Espanha são pioneiras na adoção desse novo conceito. Também não se pode conceber a ideia de que esse conceito permaneceu isolado dos demais. Muitas articulações aconteceram! Ao se articular o conceito de nação ao de território (local de nascimento) e ao de povo (grupo homogêneo culturalmente) faz surgir a ideia de Estado-Nação. Outras características de nação passam a surgir, especialmente com a consolidação de regimes monárquicos de caráter absolutista. As mais importantes dessas características é a língua oficial, a religião oficial e leis comuns em todo o território. Trata-se de uma soma de formas de unificação, que se opõe à característica descentralizadora do feudalismo. Essa unificação estabelece um estado mais forte, mais representativo, fortalecendo com isso a ideia de Estado-Nação e, em alguns casos, uma constante confusão na diferenciação entre os termos Estado e Nação. Mas não se pode conceber a integração entre esses dois termos como algo meramente fruto do uso inadequado de um e outro termo. TÓPICO 4 | POR QUE INSISTIMOS EM CONFUNDIR ESTADO E NAÇÃO? 77 O fato é que, no século XIX, a Europa se vê imersa no surgimento de conceito de Nacionalismo, implantado pelas consequências da Revolução Francesa e pelas novas relações econômicas estabelecidas pela Revolução Industrial (inglesa). ATENCAO No Novo Mundo, formado por colônias dos reinos (nações) europeias, surgem inúmeras nações, derivadas especialmente da ruptura do colonialismo. A América, especialmente na parte espanhola, vê surgir um grande número de Estados e Nações com padrões próprios e características peculiares. Já na parte da América colonizada pelos britânicos, nota-se que as treze colônias se unem para compor o que conhecemos por Estados Unidos da América. Tomam-se terras dos povos originais (índios) e compõem-se as propriedades agrícolas. Inicialmente, a mão de obra escrava atendeu às necessidades, mas com o tempo migrou-se para o trabalho assalariado, não por uma questão humanitária, mas por questões de custos. No caso norte-americano, houve um crescente desenvolvimento industrial e agropecuário, favorecendo a economia local. É bom lembrar que a liberdade dos Estados Unidos de império britânico se deu ainda no século XVIII. ATENCAO Na chamada América Latina, especialmente na parte hispânica, Simòn Bolívar desejava, a exemplo do que ocorrera no Norte, unir as colônias numa grande república. Para ele, a união entre os povos da região seria fundamental para manter o equilíbrio geopolítico com a América Anglo-Saxônica. 78 UNIDADE 1 | ESTADO FONTE: <https://www.suapesquisa.com/mapas/mapa_america/>. Acesso em: 3 ago. 2019. FIGURA 21 – MAPA DO CONTINENTE AMERICANO Entretanto, o sonho de Bolívar nunca se concretizou, como você pôde perceber na Figura 21. A América do Norte e a América Portuguesa (Brasil) mantiveram-se unidas ou pouco fragmentadas, ao contrário da América Espanhola. O afã nacionalista de alguns líderes locais, incentivados pelas grandes economias da época dividiram territórios, povos e riquezas. Trata-se de uma fragmentação com consequências perceptíveis até a atualidade. Nesse sentido, o uruguaio Eduardo Galeano adverte, quando fala dos processos de independência ocorridos na América Latina: Ao mesmo tempo, e no ritmo dos novos donos da América Latina, os quatro vice-reinados do império espanhol saltaram em pedaços e múltiplos países nasceram como cacos da unidade nacional pulverizada. A ideia de “nação” que o patriarcado latino-americano engendrou ser parecia demais com a imagem de um porto ativo, habitado por uma clientela mercantil e financeira do império britânico, com latifúndios e socavões na retaguarda... a América Latina teve, TÓPICO 4 | POR QUE INSISTIMOS EM CONFUNDIR ESTADO E NAÇÃO? 79 em seguida, suas constituições burguesas, muito envernizadas de liberalismo, mas não teve, em troca, uma burguesia criativa, no estilo europeu ou norte-americano, que assumisse como missão histórica o desenvolvimento de um capitalismo nacional pujante. As burguesias destas terras nasceram como simples instrumentos do capitalismo internacional, prósperas peças da engrenagem mundial que sangrava as colônias e as semicolônias (GALEANO, 2010, p. 158). Isso explica não apenas a fragmentação territorial, mas também política da região frequentemente considerada um verdadeiro “quintal” das grandes potências de plantão. Conflitos locais são alimentados e longas disputas desgastaram econômica e politicamente a região, além da promoção da miséria e da exploração dos recursos naturais sem o devido retorno para a região. Embora não nos atenhamos a discutir essa temática, convém lembrar o conflito que culminou com a chamada Guerra do Paraguai (1864-1870), que chegou ao auge com a destruição econômica e humanitária daquele país, produzida por seus três vizinhos (Brasil, Uruguai e Argentina) sem que tivessem qualquer vantagem na condição de “vitoriosos”. Além disso, a dizimação de inúmeras populações (nações) de povos nativos constitui-se em verdadeiros genocídios com a finalidade de ocupação do território e riquezas. Uma coisa é certa! No chamado Novo Mundo, especialmente no contexto hispânico, há umadiversidade de formas de Estados-Nação que não permitem estabelecer qualquer padrão. ATENCAO O caso brasileiro é muito particular, não apenas por ser o único de origem lusitana, mas também por isso. A nação brasileira passa a ser gestada com a vinda da família real portuguesa ao Brasil, numa inusitada transferência da sede de um reino para uma de suas colônias. Afinal, D. João VI não se deslocou para o Brasil por reconhecer a importância das terras tupiniquins, mas para fugir de Napoleão. Durante boa parte do século XIX, mesmo com o episódio da Independência de 1822, a Brasil não aderiu à ideologia republicana. Fomos o último dos que aboliram a escravidão! Além disso, o país segue eminentemente agrário, ignorando qualquer consequência da Revolução Industrial e segue uma monarquia escravagista, desconhecendo qualquer possibilidade de adesão aos ideais da Revolução Francesa. Assim, você pode perceber que o entendimento da formação dos Estados-Nação não obedece a regras ou padrões, mas é fruto de um processo histórico muito particular. 80 UNIDADE 1 | ESTADO Assim, a relação entre Estado e Nação é muito circunstancial. Sempre ocorrerá, porém, por meios e razões muito próprias. Ao surgir uma nação, tende- se a criar um conceito próprio de Estado-Nação, sempre alinhado à historicidade que o produziu. Se tomarmos por base o exemplo brasileiro, podemos dizer que o Estado- Nação brasileiro condensa aspectos históricos, culturais e econômicos já existentes. Serve como um articulador, mas não como um genitor. Se em 1822 produziu um Estado, apenas em 1889 produzirá os primeiros sinais de Nação. Também não é possível estabelecer a data da corte para a instauração de um Estado-Nação no Brasil, em 1889, visto que a história é um processo com nuances surpreendentes. ATENCAO Também no conceito de Estado-Nação não é possível escapar da sempre manifestada complexidade. Sobre isso, Bobbio, Matteuci e Pasquino (2004, p. 796), abordando o tema Nação, entendem ser ela uma “reunião de pessoas ligadas por laços naturais e eternos ou pelo menos existentes ad immemorabili” e salientam que “a análise histórica do termo Nação permite perceber o verdadeiro paradoxo que a palavra encerra” e alertam para o fato de que, “apesar de a palavra apresentar conteúdo emocional forte, seu conteúdo semântico ainda é confuso e incerto no dicionário político”. Apesar dessa reconhecida imprecisão no que diz respeito à compreensão do termo, o professor Miguel Reale exalta a importância da Nação e de sua relação com o Estado, ao abordar outro conceito importante: a soberania (já debatida noutro tópico). Assim, leciona o consagrado jurista brasileiro: Devido ao fato inegável da Nação constituir uma realidade, o grau mais alto de integração social até hoje alcançado pela convivência humana, e ao fato não menos importante de que a Nação já contém em esboço ou em forma latente a personalidade estatal, que só se torna completa mediante o ordenamento jurídico, é que se costuma dizer que a Nação é titular da soberania. O termo “titular” neste caso não é empregado em sua acepção técnica, mas para indicar a sede, a fonte originária do poder estatal. É por isso ainda que dizemos que a soberania é da Nação, não em sentido contratualista-liberal, mas em sentido histórico-sociológico, visto como reconhecemos que toda Nação é um Estado em potência, tem o poder de se atualizar como pessoa jurídica na unidade de um ordenamento de Direito objetivo (REALE, 2000, p. 135). Portanto, o conceito de Nação, como conceito moderno, tende a colocar- se à frente do próprio Estado, especialmente do ponto de vista sociológico, tendo por isso um protagonismo garantido. Não que vá tomar o lugar do Estado que TÓPICO 4 | POR QUE INSISTIMOS EM CONFUNDIR ESTADO E NAÇÃO? 81 conserva sua importância e características que lhe são fundantes, mas estabelece com ele relações que poderão fortalecer a ambos, ou mesmo determinar caminhos próprios, conforme veremos no próximo subtópico. 4 A SUPERAÇÃO DO MODELO ESTADO-NAÇÃO O conceito de Estado e sua aplicação à realidade está em constante evolução, sofrendo profundas alterações, conforme já mencionado ao longo do texto. Conforme você já sabe, o Estado tem como fundamentos um território, um povo e a sua soberania. Essa é a configuração do que chamamos de Estado Moderno, porém, ao longo do século XX e início do século XXI, todos os Estados e Nações, em maior ou menor proporção foram imersos num novo processo que tem como princípio a interação econômica: a globalização. Com ela, novas variáveis passaram a integrar o perfil do Estado e a definir seus destinos. Cria-se uma espécie de concorrência com os elementos tradicionais do Estado. Agora, além de povo, território e soberania, o Estado é atingido pelo mercado, por grandes organizações econômicas, governo estrangeiros, sistemas de informações e tecnologias. As fronteiras geopolíticas já não são tão significativas enquanto limites, uma vez que o capital e a informação passam a ser transnacionais. O povo já não compõe grupos fragmentados por limites como idioma, língua, religião; em seu lugar temos uma aldeia global em que todos interagem com todos em tempo integral e real. A soberania não se sustenta mais no velho modelo de Estado como fonte exclusiva e absoluta de poder. IMPORTANTE Embora isso seja real e irreversível, é preciso garantir aos Estados poder suficiente para que a globalização respeite avanços civilizatórios, mesmo diante de processos econômicos e sociais. Uma das ciências que tem mantido especial atenção ao que vem ocorrendo é o Direito. Se o direito Nacional não consegue superar crises provocadas pelo processo de dominação econômica, partiu-se para o chamado Direito Internacional e mais recentemente para o Direito Transnacional. Esse movimento no Direito passa a fazer sentido na medida em que se passa a compreender o significado do termo globalização como integração econômica e sua implicação sobre o papel do Estado. José Eduardo Faria descreve globalização como: 82 UNIDADE 1 | ESTADO [...] A integração sistêmica da economia em nível supranacional, deflagrada pela crescente diferenciação estrutural e funcional dos sistemas produtivos e pela subsequente aplicação das redes empresariais, comerciais e financeiras em escala mundial atuando cada vez mais independente dos controles políticos e jurídicos ao nível nacional (FARIA, 2004, p. 52). Por essa razão o direito passa a tutelar bens jurídicos para além das fronteiras geopolíticas e não possui vínculos diretos ou exclusivos com um Estado. Organizações mundiais que reúnem boa parte dos Estados existentes, especialmente os vinculados à ONU, procuram manter uma certa ordem mundial, mantendo certo equilíbrio entre cooperação e competição mundial. Além disso, Cruz e Ferrer (2010, p. 107) lembram que “a Globalização obriga a recuperar a reflexão sobre a Democracia dos Estados modernos e a se perguntar pelas questões de seus fundamentos, as instituições que garantem seu exercício e seus limites em contextos sociais diferentes”. Portanto, não se está negando a existência dos Estados e de suas instituições, mas chama-se a atenção para o fato de que os modelos convencionais de Estado já não são compatíveis com o modelo econômico vigente. Com a superação dos modelos convencionais de Estado, supera-se também o entendimento que se tinha da própria democracia. Há uma crise provocada por verdadeiras brechas que aos poucos fazem ruir modelos tradicionais. Essas brechas são assim descritas: A brecha jurisdicional, que não é mais que a discrepância entre um mundo globalizado e as unidades nacionais relativas à formulação de normas; a brecha da participação de novos atores e cidadãos nos espaços de governança transnacional, ou seja, na extensão transnacional da democracia; e a brecha dos incentivos, entendidos como mecanismos de ajuda aos países em desenvolvimento para fazer efetiva a cooperação internacional (CRUZ; FERRER,2010, p. 107). Mesmo sabendo-se que a globalização é um processo de mundialização das relações econômicas e que em se tratando desse tipo de relações tudo gira em torno de competitividade, você certamente se pergunta: onde caberá a cooperação? Seriam apenas atitudes pontuais para salvar temporariamente Estados (Nações) em condição de extrema fraqueza econômica? A grande ação de cooperação está em manter todos os Estados em condições de participar do processo globalizante, produzindo e consumindo, visto que esta é resumidamente a lógica do sistema capitalista, que gestou a globalização. Por outro lado, você deve ter percebido que a cooperação incide sobre a soberania nacional, e nenhum Estado é capaz de resolver seus problemas inteiramente sozinho, uma vez que eles também já não são exclusivamente de um Estado ou região. Por isso, parece cada vez mais evidente que: TÓPICO 4 | POR QUE INSISTIMOS EM CONFUNDIR ESTADO E NAÇÃO? 83 [...] A globalização do comércio e da comunicação, da produção econômica e das finanças, da expansão da tecnologia e dos armamentos, e acima de tudo dos riscos ecológicos e militares, coloca problemas que não podem mais ser resolvidos no seio da estrutura de Estados-nações ou através do método tradicional de acordos entre Estados soberanos. Se as tendências atuais persistem, a progressiva deterioração da soberania nacional necessitará da fundação e da expansão de instituições políticas no nível supranacional (FARIAS, 2001, p. 62). Assim, parece inevitável que se parta para um novo modelo de Estado, ainda desconhecido em sua totalidade. Certamente, assim como no caso do Estado Moderno, não haverá apenas um modelo, mas um conceito que deverá ser adaptado a cada realidade. Para tanto é preciso compreender que a globalização, mesmo sendo de cunho econômico, lança-se sobre a política e como tal deixa nela as suas marcas. Por outro lado, a política também pode estabelecer marcas sobre a economia, o que parece ser o grande desafio, especialmente para os que são economicamente menos favorecidos. Afinal, a política é a arte do diálogo, da barganha e da negociação. Quem tem mais a oferecer tem sua voz “mais ouvida”. ATENCAO Nesse sentido é imprescindível reconhecer que: Por trás de um viés economicista se esconde uma orientação política muito concreta, ou melhor, dizendo uma forma de dominação que, disfarçada de apolítica, expulsa os cidadãos para um mundo de redes anônimas que escapam de todo controle e a toda lógica democrática. Este mundo das redes está dominado pelas grandes empresas transnacionais, administradoras de uma economia global que tende ao oligopólio na maioria dos setores. Estas empresas estão, além disso, abertamente aliadas ao poder estatal na sua tarefa de socialização do risco e do custo, assim como na repressão àquilo que não seja politicamente correto (CRUZ; FERRER, 2010, p. 101). Diante desse cenário, você pode ser perguntar: há lugar para o Estado em tudo isso? O cenário não parece muito favorável à sobrevivência do Estado, mas analisando com um pouco mais de profundidade chega-se à conclusão de que o Estado ainda é indispensável nesses tempos de mundialização do capital. A tentação e o desejo dos grandes conglomerados econômicos é que o Estado se mantenha apenas na condição de mantenedor das demandas básicas do cidadão, em qualquer outra ingerência, especialmente no campo econômico, sob pena de incorrer em severas sanções e embargos. Bauman (1999, p. 74) afirma que 84 UNIDADE 1 | ESTADO “com a sua base material destruída, sua soberania e independência anuladas, sua classe política apagada, a nação-estado torna-se um mero serviço de segurança para as mega-empresas”. Assim, continua ele: [...] a única tarefa econômica permitida ao Estado e que se espera que ele assuma é a de garantir um ‘orçamento equilibrado’, policiando e controlando as pressões locais por intervenções estatais mais vigorosas na direção dos negócios e em defesa da população face às consequências mais sinistras da anarquia de mercado (BAUMAN, 1999, p. 74). Para compreender a financeirização do capital e suas consequências desastrosas para a distribuição de renda e riqueza recomenda-se a leitura da obra do professor Ladislau Dowbor: A era do capital improdutivo: por que oito famílias tem mais riqueza do que a metade da população do mundo?, publicada em 2017. Nesta obra, o autor disseca a trágica opção pela especulação em detrimento da circulação do capital pelos meios produtivos. Explicita a sobreposição dos interesses do capital sobre o humano e revela a participação do Estado, através de seus gestores, na consolidação desta prática. Acesse o link a seguir e confira: http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2012/06/a_ era_do_capital_improdutivo_2_impress%C3%A3oV2.pdf. DICAS Diante disso é fundamental que se perceba que o Estado, associado ou não à ideia de nação, é elemento fundamental na preservação da dignidade individual e do bem comum. O site https://www.mundovestibular.com.br/estudos/ geografia/blocos-economicos-ue-nafta-mercosul-apec-caricom-asean poderá auxiliar a compreensão das principais características dos mais importantes blocos econômicos mundiais. A superação de um modelo não significa a superação do conceito. O que se vê como razoável e, por vezes, necessária é a reinvenção do modelo, conforme o processo histórico de organização da sociedade. A presença do Estado nas suas mais variadas formas é o tema de discussão do próximo e último subtópico desta unidade. TÓPICO 4 | POR QUE INSISTIMOS EM CONFUNDIR ESTADO E NAÇÃO? 85 Vídeos sobre Estado e Nação. O Vídeo 1 vai apresentar a você de forma sucinta o conceito de Estado e Nação e suas relações. Já o Vídeo 2 focaliza a discussão em torno do conceito de Estado e suas implicações ao cotidiano do cidadão. Finalmente, o Vídeo 3 resume os conceitos de país, estado e nação apontando suas eventuais diferenças. Novamente sugere-se formalizar um quadro em que se estabeleçam semelhanças e diferenças entre esses termos e a importância de sua correlação. Assista e confira: Vídeo 1 – https://www.youtube.com/watch?v=LXx9NmrJIlI Vídeo 2 – https://www.youtube.com/watch?v=P_X1zNTTGww Vídeo 3 – https://www.youtube.com/watch?v=KwvdRS-n1e0 DICAS Conceito Características fundamentais País Estado Nação FONTE: O autor 86 RESUMO DO TÓPICO 4 Neste tópico, você aprendeu que: • A palavra “nação” tem sua origem do latim natio (nascere), que significa nascer. Com a evolução histórica surge o termo “nação”, para designar o local onde se encontram as pessoas segundo seu local de nascimento. O conceito de nação surge como forma de se sobrepor ao feudalismo, que se apresentava como uma forma de organização social piramidal. O desprestígio dos senhores feudais e do clero, a condição subserviente da maioria da população fez o feudalismo ruir. O modelo piramidal deixa clara a dominação de uma minoria sobre a maioria. • Com o fim do regime feudal surge a burguesia, que se infiltrou no meio aristocrático e passou a dominar a vida política, social e principalmente econômica. Esse domínio se fortaleceu com a Revolução Francesa e seguiu pelo século XIX. A população passa a identificar-se com valores como cultura, meios de produção diversos. Surge então a nação. Nação não é fruto do acaso, mas uma construção humana, com características históricas, culturais e sociais de um grupo social. O nacionalismo, por sua vez, é um sentimento de unidade em torno de determinados ideais. • O conceito de Estado-Nação surge pela articulação do conceito de nação ao de território (local de nascimento) e ao de povo (grupo homogêneo culturalmente). Com ele surgem ou consolidam-se regimes monárquicos absolutistas. Caracterizam também o Estado-Nação, língua e a religião oficiais e as leis comuns em todo o território. • No Novo Mundo, inspiradas nas nações europeias, surgem inúmeras nações. A América Espanhola vê surgir um grande número de Estados e Nações bastante individualizados.Já na América Britânica, as treze colônias unem-se para formar os Estados Unidos da América. Essa parte da América evidencia um forte crescimento agrícola e industrial. A América espanhola continua sendo explorada pelas potências europeias. Nações de povos originais são dizimadas. A América Portuguesa (Brasil) não foi dividida, mas seguiu o mesmo modelo de exploração ocorrida na região hispânica. • Ao longo do século XX e início do XXI notou-se um profundo desgaste do modelo convencional de Estado, o que culminou com seu enfraquecimento e ascensão de um novo princípio de interação econômica: a globalização. Com ela, as fronteiras geopolíticas perderam parte de sua funcionalidade. No lugar do povo temos uma aldeia global. A soberania não se sustenta mais como no velho modelo de Estado. 87 • Com a soberania faz-se necessário discutir a Democracia dos Estados modernos. Ainda assim os Estados exercem certo protagonismo, uma vez que mantêm uma certa atitude de cooperação garantindo mercado para consumo da produção. Por outro lado, a cooperação é fundamental, considerando que nenhum problema de Estado é exclusivo de um único Estado. • A globalização, mesmo sendo de cunho econômico, lança-se sobre a política e como tal deixa nela as suas marcas. Há espaço para a existência efetiva do Estado, no sentido de atender às demandas básicas do cidadão, sem qualquer outra ingerência, especialmente no campo econômico, sob pena de incorrer em severas sanções e embargos. Além disso, o Estado será indispensável à preservação da dignidade individual e do bem comum. O desafio é a reinvenção do modelo, conforme o processo histórico de organização da sociedade. 88 AUTOATIVIDADE 1 A análise do regime feudal e de sua estrutura organizacional em forma de pirâmide é fundamental para compreender o movimento que produziu novos regimes e especialmente as modernas estruturas de nação. Essas novas estruturas surgiram a partir da ruína das velhas estruturas, fato comum em toda a história da humanidade, em razão de seu caráter dinâmico, próprio da evolução que a permeia. Sobre as modernas estruturas de nação afirma- se: I- A população do Estado Moderno identifica-se muito mais com a cultura, meios de produção, e passa a utilizar o local de nascimento como critério para identificar-se como grupo social. II- O formato piramidal da sociedade moderna não é apenas uma representação da ordem hierárquica de poder, mas da necessária divisão de classes que sustenta o Estado-Nação, tal qual compreendemos hoje. III- O conceito de nação é uma construção essencialmente humana, na qual estão implícitas características históricas, culturais e sociais de um grupo social, cujo vínculo é muito maior que o simples fato de habitar determinado local. IV- Segundo Abbagnano (2000), povo é fruto vontade comum, e a nação é constituída essencialmente por vínculos independentes da vontade dos indivíduos, como é o caso da religião e da raça. Diante das afirmações é correto afirmar que: a) ( ) Todas as afirmativas estão corretas. b) ( ) Apenas a afirmativa II está incorreta. c) ( ) As afirmativas III e IV estão corretas. d) ( ) Nenhuma alternativa está completamente correta. 2 A ciência histórica afirma que o surgimento do conceito de Nação não se deu de forma isolada. Está associado a outros fenômenos para ser concebido e para alcançar o entendimento que se tem hoje a seu respeito. Um exemplo claro dessa articulação entre conceitos é o surgimento do chamado Estado-Nação. Embora se perceba seu declínio, em razão do processo de globalização e suas consequências é um termo presente em nosso contexto, suscita amplas discussões sobre sua importância. Sobre conceito binominal (Estado-Nação), analise as afirmações a seguir e classifique-as em verdadeiras (V) ou falsas (F): ( ) O conceito de Estado Nação é fruto da articulação entre o conceito de nação com o de território (local de nascimento) e o de nação com o de povo (grupo homogêneo culturalmente) faz surgir. ( ) Outras características importantes de uma nação são a língua oficial, a religião oficial e leis comuns em todo o território. 89 ( ) A integração entre esses dois temos é essencialmente fruto do uso inadequado desses termos, pois não há nada que permita relacioná-los. ( ) A América, especialmente na parte anglo-saxônica, vê surgir um grande número de Estados e Nações com padrões comuns, o que fortaleceu a união das treze colônias que fizeram surgir os Estados Unidos da América do Norte. Diante disso pode-se dizer que a alternativa que aponta a sequência correta de afirmativas verdadeiras e falsas é: a) ( ) V, V, V, F. b) ( ) V, F, F, V. c) ( ) F, F, V, V. d) ( ) V, V, F, F. 3 A superação do conceito de Estado-Nação origina-se de um constante processo evolutivo, o que não é exatamente uma novidade. Ao longo de muito tempo, como vimos em tópicos anteriores, o Estado teve como fundamentos um território, um povo e a sua soberania. No século XX e início do século XXI, percebe-se que o processo evolutivo do próprio conceito de Estado confrontou essa lógica em razão de uma nova dinâmica, de natureza econômica, mas de alcance político e social: a globalização. Diferentes autores a abordam, apontando em sua análise conceitual possíveis entendimentos sobre o impacto de sua existência. Analise as afirmativas a seguir e assinale a que estabelece uma relação correta entre o autor e seu pensamento: a) ( ) Faria (2004) descreve globalização como a integração da economia em nível deflagrada pela crescente similaridade estrutural e funcional dos sistemas produtivos e pela subsequente aplicação das redes empresariais, comerciais e financeiras em escala local, atuando cada vez mais independente dos controles políticos e jurídicos ao nível nacional. b) ( ) Cruz e Ferrer (2010) lembram que a globalização obriga a recuperar a reflexão sobre a Democracia dos Estados modernos e a se perguntar pelas questões de seus fundamentos, as instituições que garantem seu exercício e seus limites em contextos sociais diferentes. c) ( ) Farias (2001) afirma que se as tendências atuais persistem, a progressiva elevação da soberania nacional necessitará da fundação e da expansão de instituições políticas que possam efetivamente salvar a globalização. d) ( ) Bauman (1999) afirma que com a sua base material consolidada, sua soberania e independência garantidas, sua classe política renovada, a nação-estado torna-se o supremo depositário de todo o desenvolvimento e bem comum. 4 Analisando as características geopolíticas da América percebe-se uma grande diferenciação, razão pela qual é possível distinguir três regiões conforme a sua colonização: anglo-saxônica, espanhola e portuguesa. Após a leitura do texto deste tópico, descreva as principais características de cada forma de colonização e suas consequências geopolíticas. 90 91 TÓPICO 5 QUE ESTADOS TEMOS? UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO “Mesmo a tradição política liberal admite, ao menos desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de se contrapor ao tirano, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o poder e impõe um estado de terror, de censura, de suspensão das garantias de integridade social”. Vladimir Safatle A análise do Estado desde sua origem, passando pela sua diversidade, pela sua conjugação com o conceito de nação e pela sua aparente superação, permite a você compreender uma série de movimentos históricos. Movimentos que não são apenas de natureza política, mas que se misturam aos de natureza econômica e social. Agora é preciso compreender o destino desses movimentos, que é sua repercussão sobre o formato atual de Estado e como isso implica a vida do cidadão, visto que há sempre riscos eminentes em relação aos direitos dos mais frágeis e vulneráveis. Neste último tópico da unidade será promovida a discussão de modelos conceituais de Estado no escopo do Estado Moderno. Para tanto haverá uma revisão dos modelos historicamenteconsolidados, dando continuidade ao que foi discutido no primeiro tópico e analisado em outros. Ao tratar de modelos conceituais, não se está propondo um engessamento do tema, mas a análise dos caminhos já percorridos para que se possa compreender possíveis destinos que ainda não são conhecidos. Em razão desses modelos analisaremos movimentos políticos que conduziram a essas novas formas de Estado. Por fim será realizada uma discussão em torno dos movimentos políticos e seu real compromisso com a renovação do próprio Estado. Com isso encerra-se a primeira unidade de estudos, sem ter a pretensão de esgotamento de qualquer tema. Além disso, ao encerrar esta unidade, estendemos a você o convite para, na próxima unidade, estudarmos as relações de poder instituídas no interior do Estado. Bons estudos! 92 UNIDADE 1 | ESTADO 2 MODELOS CONCEITUAIS MODERNOS DE ESTADO O caminho formativo que você percorreu ao longo desta unidade lhe permite, nessa etapa final, compreender e construir alguns conceitos modernos de Estado. Analisando aspectos históricos, etimológicos e teóricos sobre o Estado e conceitos que o permeiam, certamente você pôde perceber que o entendimento moderno de Estado é fruto de muitas idas e vindas. Isso nos permite dizer que aquilo que hoje é considerado esta versão moderna de Estado está inevitavelmente sujeita a novas mudanças. Isso porque a ciência política, que é também um movimento histórico constante, se consolida como tal pela constante análise de suas “verdades”. É um princípio fundamental que faz a ciência ser reconhecida como um dos mais importantes artefatos culturais da humanidade. Associada à política, que é a arte de governar, conciliar e interagir através do diálogo entre os diferentes, temos uma ciência que se constrói a partir da própria caminhada história de seus conceitos. Assim, para definir alguns modelos conceituais modernos de Estado é preciso retomar alguns aspectos históricos do Estado, complementando o que vimos no primeiro tópico desta unidade. 2.1 O ESTADO ORIENTAL Adotamos o nome de Estado Oriental para designar o movimento ocorrido e registrado em algumas regiões do planeta que hoje conhecemos como Oriente. Isso não quer dizer que os acontecimentos históricos narrados por aqui sejam os únicos ocorridos no planeta, uma vez que uma das principais dificuldades para “contar” essa história é a carência de registros. Dito isso, vamos à análise do ocorrido, complementando o que foi discutido no início desta unidade. Para compreender a formação do Estado e da própria sociedade é preciso compreender os motivos que fizeram as pessoas organizarem-se em um coletivo. Como você já estudou, seja no Tópico 1 desta unidade ou em outros momentos de sua vida acadêmica, nos primórdios a humanidade não dispunha de muitas formas de se relacionar. Um dos primeiros indícios de formação de alguma coletividade se deu com a agricultura. TÓPICO 5 | QUE ESTADOS TEMOS? 93 A agricultura contribuiu de forma decisiva para que os seres humanos demandassem algum tipo de organização. Isso porque com a gradual substituição da caça e da coleta pelo cultivo e pela domesticação dos animais passou-se a produzir excedentes. Com isso era preciso pensar em armazenamento e negociação (trocas, invenção do dinheiro etc.). IMPORTANTE Entretanto, por mais que você possa imaginar que tudo o que fazemos gira em torno de interesses econômicos, certamente não lhe é estranho compreender que há outras necessidades que fazem as pessoas se aproximarem. Essa aproximação se deu por muito tempo, através de relações familiares ou pequenos grupos (aldeias, por exemplo). Nesse contexto, os fatos e fenômenos conhecidos eram relatados e transmitidos por meio da oralidade. O aumento generalizado de informações fez com que aos poucos as pessoas passassem a sentir a necessidade de registrar o que sabiam. Surge então a escrita! Ela ofereceu outra forma de poder. Graças a ela foi possível sistematizar e centralizar conhecimento, ingrediente indispensável ao poder. Assim, o que antes era disseminado e descrito oralmente por todos, agora assume uma configuração material, e por isso dominável. Surgem, assim, os indivíduos responsáveis por conhecer e transmitir o que o grupo sabe. IMPORTANTE Os achados gráficos desse tempo revelam uma organização de símbolos e representações gráficas que permitem compreender a organização e o contexto de então. É interessante observar que há evidências de que a escrita não surgiu num único lugar. Ao contrário, a escrita cuneiforme e os hieróglifos teriam surgido por volta de 3500 a.C., e por suas características acredita-se que uma não influenciou a outra. A primeira, de origem mesopotâmica, e a segunda, egípcia, duas das maiores civilizações antigas – uma prova da importância da escrita no processo civilizatório. 94 UNIDADE 1 | ESTADO Conforme afirmado anteriormente, um dos méritos da escrita foi sistematização de regras e códigos. Um dos exemplos disto foi o Código de Hamurabi (líder da Mesopotâmia – 1810/1750 a.C.). Hamurabi tornou-se especialmente conhecido em razão da criação do primeiro código de leis da história, promulgado por volta de 1700 a.C. FIGURA 22 – TRECHO DO CÓDIGO DE HAMURABI FONTE: https://br.depositphotos.com/38605477/stock-photo-code-of-hammurabi.html. Acesso em: 4 ago. 2019. Esse modelo de Estado não guarda relações maiores com o formato atual de Estado, uma vez que não havia propriamente uma autoridade central. Entretanto é inegável sua contribuição histórica para a concepção de diferentes modelos de organização do Estado, especialmente no tocante ao contexto jurídico, que conduziram aos modelos presentes em nosso tempo. A própria estratificação social, apontada por alguns antropólogos, é fato recente. O que se pode afirmar é que os primórdios do Estado têm suas formas definidas pela organização de grupos humanos a partir de sua condição elementar do ponto de vista histórico. O Estado Grego, que veremos a seguir, adota a organização coletiva como estratégia para sua consolidação. 2.2 O ESTADO GREGO Os primeiros indícios de formação de um conceito de Estado, como vimos, são percebidos na Grécia. Aliás, não apenas de Estado, mas também de Democracia, Direito etc. Não por outra razão, a Grécia é reconhecida como “berço” da civilização ocidental e sempre referenciada quando se analisa o processo político e civilizatório do Ocidente. ATENCAO TÓPICO 5 | QUE ESTADOS TEMOS? 95 Em termos de registros e concepção de história como processo político é possível dizer que a história das sociedades, principal ingrediente para os estudos da ciência política, é de origem grega. Os gregos foram os primeiros a estabelecer o diálogo como instrumento de consolidação da construção da história. Graças a eles, a humanidade consensualmente reconhece que a história é feita de atos e palavras, e tem nas próprias palavras o seu veículo. Daí a importância que os gregos deram à retórica – a arte das palavras, um conceito característico da forma grega de ser. Além disso é inegável que, após séculos, a herança grega esteja presente e defina a forma de gestão e a existência dos Estados modernos. Nenhum Estado se conserva interna e externamente se não se propuser ao diálogo. Da retórica, surgem a dialética e o diálogo, elementos fundamentais da democracia e por consequência do próprio Estado. Os Estados contemporâneos, como você pode constatar diariamente por informação da própria mídia, constroem relações de diferentes níveis e formas a partir do diálogo. Acordos comerciais, tratados, ações humanitárias, solução de conflitos, sempre acontecem por meio da prática da discussão dos múltiplos pontos de vista e pela determinação de denominadores comuns. Então o Estado Grego, que viu surgir a democracia e a política, passou a servir de exclusiva referência a todos os Estados de seu tempo? Não! Outros modelos mantiveram-se ou surgiram paralelamente ao Grego, como é o caso do EstadoRomano. 2.3 O ESTADO ROMANO Como você pôde perceber, os fundamentos do Estado Grego ainda permeiam os princípios do Estado, na sua versão moderna e atual. Mas a história, como dissemos, é construída por muitos atores, e uma de suas características é a diversificação de suas formas de construir seu caminho. O Estado Romano, como vimos no Tópico 1, é um desses caminhos, construído de forma independente do modelo grego, por isso com concepção muito particular. Para Minogue (1996, p. 32), “quando os romanos pensavam no poder, utilizavam duas palavras, a fim de marcarem uma diferença importante: potentia significava poder físico, enquanto potestas significava o direito e o poder legais inerentes a um cargo”. A soma do poder físico com o poder legal tornou o Estado um império, dada a quantidade e o alcance desses poderes. Não haveria limites ao poder de atuação do Estado. No contexto moderno e atual, convivemos com Estados com esse perfil, assumindo uma postura de liderança, construída por suas características econômicas e com sustentação midiática. 96 UNIDADE 1 | ESTADO Se o Estado desconhecia limites sobre seus poderes, não é difícil imaginar que em algum momento seus dirigentes poderiam supor que esse poder poderia servir para ampliar o próprio território do Estado. Por essa razão uma das características marcantes do Estado (Império) Romano foi a integração dos povos por meio de diversas conquistas. Roma se tornaria sede de um poder nunca conhecido ou experimentado. Novamente, é possível alinhar esse pensamento a Estados Modernos que mantiveram e mantêm nações e continentes sob seu domínio econômico, ideológico e político. ATENCAO Na Idade Média, com a ruína do Estado Romano (Império) surgem novos modelos de Estados. O mais importante é o Estado que teve por base o modelo econômico feudal, que será descrito a seguir. 2.4 ESTADO MEDIEVAL As invasões bárbaras, iniciadas no século III e repetidas em diferentes momentos até o século VI, como dito anteriormente foram fundamentais para a queda do Império Romano e ascensão do Estado Medieval. Porém, muitas regiões antes pertencentes a um único reino buscaram sua independência política. Dessa forma o Estado Medieval, em verdade, diluiu-se em vários Estado menores, com constante indefinição de fronteiras, dado o permanente clima de guerra e disputa entre esses novos estados. Conforme visto no Tópico 1 desta unidade de estudos, o Estado Medieval fundamenta-se no modelo feudal, razão pela qual é chamado por autores e teóricos como Estado Feudal. Nesse modelo não havia estados nacionais centralizados como os que conhecemos hoje. Cada senhor feudal estabelecia seu próprio poder político em seu feudo, o qual gozava de certa autonomia. Eventualmente estavam submissos a um poder maior, como era o caso do Imperador, do soberano ou mesmo do Papa. Mas o que mais interessava ao senhor feudal era a liberdade de estabelecer contratos com seus servos conforme seu interesse. Poderia exercer pleno poder sobre seus negócios e sobre suas terras. ATENCAO TÓPICO 5 | QUE ESTADOS TEMOS? 97 As leis que regiam o Estado e todas as relações nele estabelecidas não eram feitas por legisladores eleitos pelo voto popular. Não havia um parlamento definido em nome da população, quais regras seriam ou não adotadas. O direito era consuetudinário (regido pelos costumes). Assim, os costumes criados e seguidos por todos culminavam por regular a ação do próprio Estado. Até hoje observa-se a validade de certos costumes, em casos de lacunas em que a lei não consegue determinar qual regra seguir. Merece destaque a afirmação de Jacques Le Goff (1989, p. 34): Graças a esse mecanismo de interdependência (suserano-vassalo), a sociedade medieval pôde sobreviver e atravessar os difíceis dias de insegurança então reinantes. Os laços de vassalagem, com obrigações de assistência e defesa mútua, substituíram o governo forte do rei, através da descentralização do poder, fracionado na mão dos nobres. Já o Estado Moderno é caracterizado pela soberania, territorialidade e povo e se originou pela busca de um governo soberano dentro do território delimitado, após a fragmentação do sistema feudal. Nele é possível identificar as fases: estado nacional, estado liberal, crise no estado liberal. 2.5 ESTADO MODERNO Conforme visto no Tópico 1, o Estado Moderno não é exatamente um modelo, mas um conceito com muitas variações no seu formato, relação com outras áreas de vida humana, especialmente a econômica. Nesse sentido, para efeito didático, costuma-se dividir o período denominado de Estado Moderno em três fases: o nacional, estado liberal, crise no estado liberal e estado democrático liberal. A sucessão dessas fases é marcada por episódios históricos e sua divisão se dá por características conceituais próprias. Você perceberá que há características comuns em cada período. Assim, você poderá notar uma relação profunda entre cada fase e contribuições históricas e teóricas entre elas. Diante disso é possível compreender que movimentos políticos, embora associados a questões de natureza econômica, determinam novas configurações para o Estado. A relação entre esses movimentos políticos e as novas configurações de Estado serão tratadas a seguir. 98 UNIDADE 1 | ESTADO 3 MOVIMENTOS POLÍTICOS RECENTES: NOVAS CONFIGURAÇÕES DE ESTADO? O processo de formação dos Estados com a atual configuração inicia-se com a composição de diferentes modelos de Estado. Conforme você perceberá, essas diferentes formas contribuíram para que fosse possível aprimorar o próprio conceito de Estado. Veja, de forma sucinta, a sucessão de alguns desses modelos derivados dos movimentos políticos recentes. 3.1 ESTADO NACIONAL É importante destacar que o fim do Feudalismo não lançou a humanidade no modelo atual de Estado. O que se entende por Estado Moderno foi, na realidade, um período muito conturbado da história da humanidade, com o surgimento dos chamados Estados Absolutistas, que concentravam todo o poder em torno do Rei e pela primeira vez se pensou em Estados Nacionais. Teóricos como Locke, Montesquieu e Rousseau definiram, como vimos anteriormente, as bases teóricas para esse novo Estado. O grande salto histórico que fortaleceu os Estados Modernos foi o expansionismo marítimo dos séculos XV e XVI, por parte das nações que centralizavam o poder à época, com especial destaque para Portugal, Espanha, Inglaterra e França. O tamanho da atividade exploratória (predatória, segundo muitos) pode ser medida pelas nações que historicamente foram “fundadas” por essas potências. ATENCAO Essa colonização submeteu boa parte do chamado “Novo Mundo”, como vimos anteriormente, a uma sucessiva expansão da exploração de recursos naturais (especialmente metais preciosos). O trabalho escravo, sucedido pelo assalariado, garantia mão de obra barata. Esses são os ingredientes que abriram caminho para o atual modelo econômico-capitalista. As explorações de recursos minerais das colônias e de escravos africanos consolidaram a geração de comércio e de dinheiro. IMPORTANTE TÓPICO 5 | QUE ESTADOS TEMOS? 99 O Estado Moderno, em verdade de caráter absolutista, teve seu apogeu entre o final do século XVII e início do século XVIII. Essa experiência que inaugurou o Estado Moderno, além da expansão mercantil, contava com a centralização de todas as atividades no Estado: economia, justiça, segurança etc. Isso tudo implicou um aumento exagerado de impostos. As colônias foram estrategicamente divididas conforme comentado anteriormente. Assim, Castelo Branco e Silva (2009, p. 5) descrevem: Os burgueses percebem desde cedo que, para continuar a lucrar, precisam de mudanças. Isso, na prática, significa mudar as estruturas feudais ultrapassadas, que dificultam o comércio. Havia a necessidade de uma unificação da moeda, da coleta de impostos e, principalmente, de uma política centralizadora que estimulasse a segurança e a estabilidade nas regiões. Dessaforma, nobre e clero confrontaram os interesses da burguesia que era a quem cabia pagar impostos e submeter-se ao poder central e absoluto do Estado (leia-se monarca). Contestado pelo Iluminismo e por toda a burguesia, o Estado Nacional de caráter absolutista entra em declínio. A Revolução Francesa é sem dúvida o marco histórico que pôs fim a ele em praticamente toda a Europa. As mudanças propostas previam a descentralização do poder, opondo-se radicalmente ao modelo vigente. Outro aspecto amplamente questionado foi a relação entre a autoridade do monarca e o poder divino. O Iluminismo estabeleceu a racionalização da discussão em torno do poder e abre espaço para a construção de um Estado Liberal. 3.2 ESTADO LIBERAL Surge como contraponto ao recém-inaugurado Estado Moderno, porém absolutista, como forma de implementar o individualismo, a propriedade privada e a liberdade. É importante destacar que nesse período preserva-se a ideia de Estado, porém estabelecendo-se uma divisão mais objetiva entre público e privado, sem, no entanto, deixar clara a sua estreita relação. O sistema capitalista, de caráter liberal, parece não sobreviver sem manter o Estado alinhado a seus interesses. Esse alinhamento é descrito por Weber (2012), que considera o Estado o ator essencial para o sucesso do capitalismo. Para ele, a relação entre ambos fixa regras para que o capital possa se expandir de maneira vertiginosa. É o que se chama convencionalmente de segurança para investimentos (com garantia de lucros), o que não representa necessariamente uma segurança aos trabalhadores. O autor ainda destaca a relação entre o Estado e o capitalismo e a religião, afirmando que a religião protestante teve uma importância estratégica. Essa importância deve-se aos princípios atrelados ao trabalho árduo, à acumulação e à direta relação entre trabalho e comunhão com Deus (WEBER, 2012). 100 UNIDADE 1 | ESTADO Nesse cenário, o Estado liberal troca o poder absoluto do monarca pelo poder soberano do povo, com o surgimento dos primeiros regimes parlamentaristas como o inglês, que se conservam até nossos dias. Apesar das evidências apontadas por Weber, é dada ao povo a aparente condição de decidir, e, por consequência, a responsabilidade pelos resultados de suas escolhas. IMPORTANTE Além disso, não se pode ignorar a Revolução Industrial como marco histórico fundamental, do ponto de vista econômico, para o Estado Liberal. O uso do carvão e a invenção da máquina a vapor são marcos para essa nova lógica. Além das já anunciadas potências mercantis da fase anterior, outros Estados passam a figurar o cenário econômico mundial, como a Alemanha, os Estados Unidos e o Japão. Em razão das novas relações entre capital e trabalho surgem novos modelos de discussão política dessas relações. O surgimento do Socialismo é um marco desse período e se apresentam como uma espécie de contraponto à lógica capitalista, que propunha e propõe a concentração da riqueza nas mãos de poucos. É possível dizer que com o surgimento do Estado Liberal surge também a sua crise, visto que suas condicionantes passaram a ser amplamente discutidas desde o momento em que foram postas em prática. 3.3 CRISE DO ESTADO LIBERAL Pela lógica liberal, o Estado não deve intervir como regulador nas atividades econômicas. A justificativa é que a liberdade de produção e de comercialização traria progresso para as empresas e para as nações. Isso acentuou a desigualdade social, uma vez que mesmo registrando-se aumento na produção e na circulação de dinheiro, a renda não seria distribuída de forma justa. Marx, como veremos na unidade seguinte, já denuncia a concentração da riqueza nas mãos de poucos e a exploração desleal da força de trabalho pelos detentores do capital. TÓPICO 5 | QUE ESTADOS TEMOS? 101 A chamada mais-valia, termo usado por Karl Marx, denuncia a exorbitante diferença entre o que é cobrado por uma mercadoria ou serviço e valor dos meios materiais utilizados e do trabalho empregado. O lucro, base do sistema capitalista, defendido pelos liberais, seria fruto dessa diferença injusta que sempre favorece o dono do capital, e não quem investe seu trabalho e sua vida. ATENCAO Esses conflitos teriam sido responsáveis por inúmeros conflitos ao longo do século XIX e início do século XX, inclusive da Primeira Guerra Mundial. Foi nesse contexto do final do século XIX e início do XX que o mundo passa a ser divido em três: primeiro mundo (capitalista), segundo mundo (socialista) e terceiro mundo (subdesenvolvido). Essa divisão de nações em grupos político- econômicos evidencia que não há consenso e nem mesmo uma tendência que se sobrepõe à outra, deflagrando um crise, na perspectiva de uma possível unidade mundial. A primeira experiência socialista foi a russa, a partir da Revolução de 1917, quando o regime czarista foi deposto e substituído por um governo formado por líderes do Partido Comunista. A experiência da Rússia (agora União Soviética) estendeu-se por quase toda a Europa Oriental, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. IMPORTANTE Entre uma e outra guerra mundial surgem movimentos diversos que impactaram severas mudanças políticas e tiveram reflexos imediatos nas relações econômicas entre países e grandes aglomerados econômicos. Itália e Alemanha organizaram os regimes fascista e nazista, em que a participação política se reduziu à plena adesão ao regime e ao seu líder. Quem não o fizesse seria declarado inimigo e teria retaliações severas, a morte, inclusive. Nota-se que o Estado Liberal, especialmente ao longo do século XX e início do XXI, esteve em crise e muitos de seus adeptos envolvidos em conflitos mundiais e sangrentos. Esse constante estado de crise foi gerado e gerou intensos movimentos políticos que culminaram com novas configurações de Estado. Essas novas configurações serão descritas a seguir. 102 UNIDADE 1 | ESTADO Como foi visto anteriormente, há muitas formas de alterar a configuração do Estado e geralmente são de natureza política, mesmo quando as motivações são econômicas. É no cenário político, por meio de debates, contradições e acordos, que se estabelecem mudanças que nascem de grupos ou mesmo de nações ou blocos considerados dominantes. Um exemplo disso, e que refletiu profundamente na configuração do Estado nesse período, foi a Segunda Guerra Mundial. Esse acontecimento foi um confronto entre dois grandes blocos reunidos por conveniências: de um lado, as nações do eixo, lideradas por Alemanha, Itália e Japão, e do outro os capitalistas, liderados pelos Estados Unidos, Inglaterra, França e colaboração soviética. Este último sagrou-se vencedor e, por fim, dividiu-se em dois, como era de se esperar. União Soviética e Estados Unidos passaram a liderar dois grandes blocos, o socialista e o capitalista, respectivamente. Além da liderança econômica, essas duas nações protagonizaram o que foi chamado, à época, de Guerra Fria, em que se viveu um longo tempo de hostilidades e ameaças mútuas. O modelo socialista ruiu no final dos anos 1980, com a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética. Restam atualmente Coreia do Norte, Cuba e China, remanescentes desse modelo. ATENCAO Já o bloco capitalista, capitaneado pelos Estados Unidos, passa a assimilar outras práticas como o chamado Estado de Bem-Estar Social, que procura conciliar as necessidades dos trabalhadores que exigiam melhores condições de vida e as do capital. Para que isso fosse possível foi necessário que o Estado passasse a intervir na economia. Se você observar os atuais debates políticos em torno do papel do Estado na condução da economia e na garantia do bem-estar social, perceberá que os atuais liberais (centro-direita) defendem a menor intervenção possível do Estado, tanto na economia quanto na defesa dos direitos básicos das pessoas. Segundo essa lógica, tornando cada pessoa um consumidor, haveria necessidade de se produzir mais, gerando emprego, renda e tributos parasustentar o próprio Estado. Isso inaugurou um ciclo de prosperidade nos chamados países de primeiro mundo. Já nos do terceiro mundo, geralmente ainda submetidos aos interesses do primeiro mundo, essa redução do Estado condenou milhões à miséria e a condições de vida degradantes. TÓPICO 5 | QUE ESTADOS TEMOS? 103 Por conta disso surgiram regimes ditatoriais de caráter militar, geralmente financiados por alguns países de primeiro mundo, especialmente Estados Unidos. Isso acentuou-se nos 1970, especialmente com a crise do Petróleo, que impôs uma nova organização do Estado brasileiro. Mudanças no campo social foram justificadas pela política social de então, que estaria comprometendo a liberdade de mercado e a individual, considerados princípios fundantes do próprio capitalismo. Trata-se de um retorno ao antigo modelo liberal, de absoluta redução da intervenção do Estado na economia. Esse fato gerou um novo modelo econômico denominado Neoliberalismo, que consiste exatamente num modelo de absoluta liberdade de mercado. Líderes como Augusto Pinochet (Chile), Margaret Tatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (Estados Unidos) articularam a implementação desse novo modelo a que muitos denominaram de financeirização da economia, que teria culminado com a crise de 2008. ATENCAO Analisando do ponto de vista do Estado, para além da liberdade econômica, o neoliberalismo acabou atingindo os trabalhadores pobres e as pessoas em condição de vulnerabilidade. Com o Estado neoliberal, áreas como assistência social, previdência, saúde e educação públicas, habitação e direitos trabalhistas são consideradas gastos que devem ser contidos e restritos, uma vez que a lógica é a liberdade de fazer o que se quer. Conceitos como meritocracia tornam-se muito presentes quando se avalia a relação entre o indivíduo e o próprio Estado. Assim, o eventual “fracasso”, dificuldade ou dependência de alguém é visto como fruto de sua própria má vontade. Isso porque é dada a todos a possibilidade de competir. O grande problema são as condições para inserir-se diante das possibilidades. ATENCAO Na mesma perspectiva, os interesses privados, especialmente das grandes corporações passaram a ditar os destinos dos interesses públicos. É inegável a relação entre esses interesses, inclusive nos processos eleitorais e ao longo do exercício dos mandatos dos eleitos. Assim, decisões políticas passam a ser determinadas pela economia, leia-se interesses dos que detêm o capital e não necessariamente a força de trabalho. 104 UNIDADE 1 | ESTADO Vídeos sobre Estado Moderno e suas variações. No Vídeo 1 você compreenderá e aprofundará seus conhecimentos sobre Estado Moderno. O Vídeo 2 tratará de introduzir o conceito de liberalismo, que guarda forte relação com o de Estado Moderno, como já foi apontado no texto. Já o Vídeo 3 trata do neoliberalismo, como propósito de determinar o processo evolutivo dos conceitos abordados ao longo do texto. Assista e confira! Vídeo 1: https://www.youtube.com/watch?v=4BA7Bf2B5_w Vídeo 2: https://www.youtube.com/watch?v=9qt52lQcyIg Vídeo 3: https://www.youtube.com/watch?v=sGob5MEk5EM Agora, em forma de texto, descreva como você percebe a evolução do conceito de Estado Moderno a partir da discussão do liberalismo, conceito fundante do novo modelo de Estado. DICAS Assim, encerra-se a primeira unidade da disciplina Fundamentos do Estado e da Administração Pública, em que estudamos “como e para que surgiu e suas relações com a vida das pessoas ao longo da história”. Evidentemente, o tema não se esgota aqui. A discussão será mantida nas próximas unidades e certamente você ampliará seus conhecimentos em outros momentos de aprendizagem, dentro e fora do ambiente acadêmico. Mais do que conhecimentos determinados, o grande propósito é fazer com que você construa argumentos e caminhos próprios para participar da construção de um Estado em que todos possam fazer parte. TÓPICO 5 | QUE ESTADOS TEMOS? 105 LEITURA COMPLEMENTAR COMO FUNCIONARIA UMA SOCIEDADE SEM ESTADO Este artigo é a segunda e última parte da entrevista concedida por Hans-Hermann Hoppe à revista Wirtschaftswoche, o principal semanário da Alemanha sobre economia e negócios, e foi conduzida por Malte Fischer. Independentemente do número de territórios soberanos, ainda resta a questão do tamanho do governo. Os liberais clássicos sugerem que o estado seja um mero 'guarda noturno', o qual se limita a garantir a liberdade, a propriedade e a paz. Mas o senhor não quer estado nenhum. Por quê? Os liberais clássicos subestimam a inerente tendência de qualquer arranjo estatal ao inchaço. Essa é uma propensão irreversível. Quem determina quantos policiais, quantos juízes e quantos soldados — todos eles financiados por impostos — haverá em um estado mínimo voltado exclusivamente para a segurança e para os serviços judiciais? No mercado, onde bens e serviços são demandados e pagos voluntariamente, a resposta é clara: bens e serviços serão produzidos na quantidade e aos preços que os consumidores estiverem dispostos a pagar. Por outro lado, no que tange ao governo de qualquer país, a pergunta "quanto?" será sempre respondida da mesma maneira: quanto mais dinheiro você nos der, mais poderemos fazer por você. Dado que o governo pode obrigar seus cidadãos a pagar impostos, o governo sempre irá exigir cada vez mais dinheiro e, em troca, ofertará serviços de qualidade cada vez pior, dado que o governo não opera em ambiente concorrencial. A ideia de um estado mínimo, principalmente em uma democracia, é um projeto conceitualmente falho. Estados mínimos jamais permanecem mínimos. Então não deveria haver estado nem sequer para proteger a propriedade, e para fornecer serviços de segurança e de justiça? Se o estado for proteger a propriedade utilizando uma polícia estatal, então ele terá de coercivamente coletar impostos. No entanto, impostos são expropriação. Desta maneira, o estado paradoxalmente se transforma em um expropriador protetor da propriedade. Não faz sentido. Ademais, um estado que quer manter a lei e a ordem, mas que pode ele próprio criar leis, será ao mesmo tempo um transgressor e um mantenedor da lei. E isso tem de ficar claro: o estado não nos defende; ao contrário, o estado nos agride, confisca nossa propriedade e a utiliza para se defender a si próprio. A definição padrão do estado é essa: o estado é uma agência caracterizada por duas feições exclusivas e logicamente conectadas entre si. Primeiro, o estado é 106 UNIDADE 1 | ESTADO uma agência que exerce o monopólio compulsório da jurisdição de seu território; o estado é o tomador supremo de decisões. Ou seja, o estado é o árbitro e juiz supremo de todos os casos de conflito, incluindo aqueles conflitos que envolvem ele próprio e seus funcionários. Não há qualquer possibilidade de apelação que esteja acima e além do estado. Segundo, o estado é uma agência que exerce o monopólio territorial da tributação. Ou seja, é uma agência que pode determinar unilateralmente o preço que seus súditos devem pagar pelos seus serviços de juiz supremo. Baseando-se nesse arranjo institucional, você pode seguramente prever quais serão as consequências: a) em vez de impedir e solucionar conflitos, alguém que possua o monopólio da tomada suprema de decisões irá gerar e provocar conflitos com o intuito de resolvê-los em benefício próprio. Isto é, o estado não reconhece e protege as leis existentes, mas as distorce e corrompe por meio da legislação. Contradição número um: o estado é, como dito, um transgressor mantenedor das leis. b) em vez de defender e proteger alguém ou alguma coisa, um monopolista da tributação irá invariavelmente se esforçar para maximizar seus gastos com proteção e ao mesmo tempo minimizar a real produção de proteção. Quanto mais dinheiro o estado puder gastar e quanto menos ele tiver de trabalhar para obter esse dinheiro, melhor será a sua situação. Contradição número dois: o estado é, como dito,um expropriador protetor da propriedade. E como seriam definidas as leis e como seria sua aplicação? Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que, se não houvesse conflitos entre indivíduos e todos nós vivêssemos em perfeita harmonia, não haveria nenhuma necessidade de leis ou normas. O propósito de leis ou normas é justamente o de ajudar a evitar conflitos que de outra forma seriam inevitáveis. Somente as leis que atingem esse objetivo podem ser chamadas de leis boas. Uma lei que gera conflitos em vez de ajudar a evitá-los é contrária ao propósito intrínseco de qualquer lei — ou seja, trata-se de uma lei ruim, disfuncional e corrupta. Em segundo lugar, é preciso entender que toda e qualquer sociedade tem como característica intrínseca conflitos de propriedade sobre bens escassos. Conflitos ocorrem porque vivemos em um mundo de escassez, onde os bens são escassos. Afinal, se os bens são escassos, eles não podem ser de todos. É necessário haver propriedade sobre eles. As pessoas entram em choque porque querem utilizar exatamente o mesmo bem de maneiras distintas e incompatíveis. Ou eu venço a briga e utilizo tal bem do meu jeito, ou você vence e utiliza tal bem do seu jeito. É impossível que nós dois saiamos "ganhadores". No caso de bens escassos, portanto, são necessárias regras ou leis que nos ajudem a solucionar reivindicações rivais e conflituosas. Mas não é necessário que seja o estado quem irá resolver tais conflitos. Logo, todos os conflitos relacionados ao uso de bens escassos poderão ser evitados apenas se cada bem for propriedade privada, isto é, se cada bem escasso for TÓPICO 5 | QUE ESTADOS TEMOS? 107 exclusivamente controlado por um indivíduo (ou grupo de indivíduos) específico — e não por vários indivíduos não especificados —, e sempre for deixado claro qual bem é propriedade de quem, e qual não é. E, para que os conflitos fossem evitados desde o início da humanidade, por assim dizer, seria necessário ter uma regra determinando que a primeira apropriação original de algum recurso escasso e até então sem dono configuraria propriedade privada. Sendo assim, existem essencialmente três "leis boas" que podem garantir uma interação humana sem a ocorrência de conflitos (ou a "paz eterna"): a) aquele que se apropria de algo até então sem dono torna-se o seu proprietário exclusivo (na condição de primeiro proprietário, ele logicamente não entrou em conflito com ninguém, dado que todas as outras pessoas apareceram em cena apenas mais tarde); b) aquele que produz algo utilizando tanto o seu próprio corpo quanto os bens dos quais se apropriou originalmente torna-se o proprietário único e legítimo do produto de seu trabalho — desde que ele, nesse processo, não danifique a integridade física da propriedade de terceiros; e c) aquele que adquire um bem de algum proprietário por meio de uma troca voluntária — isto é, uma troca considerada a priori como mutuamente benéfica — torna-se o novo proprietário desse bem. Portanto, tendo este pano de fundo, imagine agora uma sociedade sem estado. Nesta ordem natural, cada indivíduo que for o primeiro a se apropriar de algo irá se tornar o proprietário original dos bens que ele controla. Quem sugerir o contrário terá o ônus da prova. Neste arranjo, conflitos serão resolvidos por uma autoridade natural. Em vilarejos, esta autoridade natural são aquelas pessoas que forem respeitadas por todos; elas atuarão como juízes. Se houver alguma contenda envolvendo pessoas pertencentes a comunidades distintas, e que recorrerem a juízes distintos, o conflito terá de ser arbitrado no nível superior mais próximo. O que é importante é que nenhum juiz detenha o monopólio da aplicação de leis. O mesmo raciocínio se aplica a qualquer cidade, de qualquer tamanho, dado que toda e qualquer cidade está dividida em bairros, que funcionam como se fossem vilarejos integrados. Isso soa muito irrealista... ... mas não é! Apenas veja como as contendas transnacionais são resolvidas atualmente. Em nível internacional, já existe uma espécie de anarquia jurídica, pois não há um governo mundial que a tudo regula. Por exemplo, pense na cidade da Basileia. Ela está localizada em uma tríplice fronteira entre Suíça, França e Alemanha. O que seus cidadãos fazem quando há uma contenda entre eles? Em primeiro lugar, eles irão contatar suas respectivas jurisdições. Se não houver nenhum acordo, arbitradores independentes são convocados para resolver o caso. Por acaso existem mais contendas entre os cidadãos desta região do que 108 UNIDADE 1 | ESTADO entre cidadãos de Dusseldorf e Colônia? Nunca ouvi falar. Isso mostra que é possível regular disputas interpessoais pacificamente, sem que haja um estado detentor do monopólio da justiça. Um sistema jurídico sem estado provavelmente está muito além da imaginação das pessoas. Por quê? Basicamente, são ideias facilmente compreensíveis que, ao longo dos séculos, foram abolidas e extirpadas de nós por apologistas do poder estatal. Foi um grande erro evolucionário substituir a liberdade de escolha das pessoas em termos legais por um monopólio estatal da legislação. Este atual estado de coisas levou a um arranjo em que, nas eleições, uma horda ignara adquire cargos governamentais e utiliza seu poder legiferante para se enriquecer expropriando a propriedade daqueles que possuem mais riquezas do que eles próprios. Já o chefe de um clã que seja voluntariamente escolhido como um arbitrador de disputas normalmente será um indivíduo já rico que não terá motivos para querer tomar para si a propriedade de terceiros. Caso contrário, ele não seria escolhido voluntariamente como arbitrador. Como, em um mundo sem a ordem do estado, poderíamos impedir a violação de direitos elementares à liberdade, como o direito à integridade física? Contra-pergunta: por acaso tais violações são atualmente impedidas pela existência do estado? Como está a violência em países que têm um estado grande e onipresente, como os da América Latina? Enquanto os humanos forem humanos, sempre existirão áreas em que haverá homicídios e assaltos. Os governos conseguiram melhorar esta situação? Tenho minhas dúvidas. Governos também são geridos por humanos. Porém, ao contrário de uma sociedade sem estado, os líderes detêm um monopólio sobre sua posição de poder. Isso por acaso não torna estas pessoas piores do que já são? Humanos não são anjos; frequentemente fazem maldades e causam enormes estragos. Por este motivo, a melhor defesa da liberdade e da propriedade é não permitir que ninguém crie um monopólio protegido por lei. Tão logo exista um monopólio protegido por lei, não serão exatamente seres angelicais que surgirão dele. Suponhamos que sigamos suas ideias e transfiramos as clássicas funções do estado, como a proteção da propriedade e da imposição da justiça, para organizações privadas. Imediatamente teríamos de lidar com o problema de que, também nestas organizações, os homens maus podem assumir o comando e criar cartéis à custa dos cidadãos. TÓPICO 5 | QUE ESTADOS TEMOS? 109 O risco de isso ocorrer é baixo. Cartéis só conseguem sobreviver no longo prazo se o estado protegê-los. Isso ocorre hoje justamente em todos os setores da economia que são controlados por agências reguladoras, as quais existem para impedir que novas empresas entrem no mercado, façam concorrência e perturbem a tranquilidade das empresas já estabelecidas e que são as preferidas do estado. Cartéis nunca se sustentaram no livre mercado. O que tradicionalmente sempre ocorreu foi o seguinte: as grandes empresas começaram a se unir para dividir o mercado exclusivamente entre elas; no entanto, tal arranjo, por elevar os preços e reduzir a qualidade dos serviços, acaba beneficiando os membros mais ineficientes deste cartel e prejudicando os mais eficientes. Estes percebem que podem conquistar uma maior fatia de mercado fora do cartel. Tão logo eles percebem isso, o cartel se esfacela. Mas até queisso ocorra, os membros do cartel exploram os cidadãos. Esse seu raciocínio é o que eu chamo de "se suicidar por medo de morrer". Se você transfere tal tarefa ao estado, então você está dando a ele logo de partida um monopólio total. E ele certamente irá abusar deste monopólio para restringir a liberdade dos cidadãos. Em uma sociedade sem estado e com leis privadas, como lidar com o problema das externalidades? Por exemplo, quem iria fazer com que poluidores ambientais também tivessem de arcar com os custos? Esse problema é fácil de ser resolvido. Basta você conferir à parte prejudicada o direito de tomar medidas judiciais contra o agressor. Ato contínuo, ela poderá processar o causador do estrago, fazendo com que esta lhe dê um pagamento indenizatório. No século XIX, era uma prática comum os cidadãos processarem empresas que danificassem sua propriedade em decorrência de poluição. Com o tempo, o estado começou a limitar o direito de apelação, tudo com o intuito de proteger determinadas indústrias. Por isso, e como expliquei anteriormente, é crucial que os direitos de propriedade sejam claramente atribuídos. O princípio básico tem de ser: quem for o primeiro a se apropriar de um local ainda inutilizado e sem dono, adquire os direitos de propriedade. E a questão das forças armadas? Não dá para organizar a defesa nacional sem o estado, e ninguém pode ser excluído da segurança fornecida por um exército. Logo, você precisa do estado para obrigar todos os cidadãos a pagarem impostos para financiar as forças armadas. E quem disse que absolutamente todos os cidadãos querem ser defendidos por um exército? De novo, vivemos em um mundo de escassez. O dinheiro que for gasto com defesa não mais estará disponível para ser gasto em outros 110 UNIDADE 1 | ESTADO propósitos. Algumas pessoas talvez não queiram ser defendidas e, em vez disso, preferem pagar por férias no Havaí. No caso de um ataque externo, elas provavelmente iriam optar por deixar o país e, sendo assim, elas não precisam de defesa de nenhum exército. O estado não tem nenhum direito de obrigar estas pessoas a pagar impostos para financiar forças armadas. Em uma sociedade sem estado, as pessoas podem, se assim o desejarem, criar pequenas unidades de segurança, como vigilâncias comunitárias. Podem também se defender por conta própria por meio do uso de armas. Ou podem ainda contratar segurança privada. Elas teriam a liberdade de decidir livremente como iriam gastar seu próprio dinheiro. FONTE: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1795>. Acesso em: 17 out. 2019. 111 RESUMO DO TÓPICO 5 Neste tópico, você aprendeu que: • A definição de modelos conceituais modernos de Estado exige a retomada de aspectos históricos do Estado, complementando o que já foi visto no primeiro tópico. O chamado Estado Oriental é fruto do processo de organização coletiva experimentado pela primeira vez. Um dos primeiros indícios de formação de alguma coletividade se deu com a agricultura. Por ela substitui-se a caça e a coleta e passou-se a produzir excedentes. Estes passaram a ser negociados, o que fez surgir o comércio e o dinheiro. • Outro aspecto relevante foi a invenção da escrita como forma de sistematizar e transmitir conhecimentos, informações e regras, além de servir para a compreensão da evolução histórica dos povos e do próprio Estado. Graças à escrita, documentos como o Código de Hamurabi, precursor de todos os códigos legais conhecidos, podem ser estudados até hoje. A agricultura e a escrita, por essa razão, tornaram- se instrumento de poder. • O Estado Grego retrata os primeiros indícios de formação de um conceito de Estado, e de outros como Democracia e Direito. A ciência política também é de origem grega. Os gregos deram muita importância às palavras e ao uso da retórica como base para todos os diálogos necessários ao funcionamento de qualquer Estado. • O Estado Romano foi marcado pela soma do poder físico com o poder legal, surgindo um império, dada a quantidade e o alcance desses poderes, os quais seriam praticamente ilimitados. Uma marca do Estado (Império) Romano foi a integração dos povos por meio de diversas conquistas militares, mantendo nações e continentes sob seu domínio econômico, ideológico e político. • Na Idade Média, com a ruína do Estado Romano (Império), surgem novos modelos de Estados. O Estado medieval surge com as invasões bárbaras e queda do Império Romano. Esse Estado fundamenta-se no modelo feudal, razão pela qual é chamado por autores e teóricos como Estado Feudal. O direito era consuetudinário (regido pelos costumes). • O Estado Moderno é caracterizado pela soberania, territorialidade e povo e se originou pela busca de um governo soberano dentro do território delimitado, após a fragmentação do sistema feudal. Nele é possível identificar as fases: estado nacional, estado liberal, crise no estado liberal. Essas fases são caracterizadas por movimentos políticos que determinam novas e diferentes formas de configuração do próprio Estado. • O Estado Nacional marca o fim do feudalismo e teve seu marco inicial com o expansionismo marítimo dos séculos XV e XVI, por países como Portugal, Espanha, 112 Inglaterra e França. Com esse expansionismo, essas grandes nações submeteram o “Novo Mundo” à exploração de recursos naturais e ao trabalho escravo, sucedido pelo assalariado, garantia mão de obra barata. Isso abriu caminho para o modelo de economia capitalista. Trata-se de um modelo absolutista, centralizando economia, justiça, segurança etc. nas mãos do Estado. A Revolução Francesa pôs fim a ele em praticamente toda a Europa. • Com a Revolução Francesa surge a descentralização do poder e a ruptura da ideia de poder divino do monarca. É o nascimento do Estado Liberal, como forma de implementar o individualismo, a propriedade privada e a liberdade. O sistema capitalista mantém o Estado alinhado a seus interesses. Um fato histórico marcante desse período foi a Revolução Industrial e sua máquina a vapor. Um contraponto a isso foi o surgimento do Socialismo, propondo a desconcentração da riqueza nas mãos de poucos. • A chamada mais-valia, termo usado por Karl Marx, denuncia a exorbitante diferença entre o que é cobrado por uma mercadoria ou serviço e valor dos meios materiais utilizados e do trabalho empregado. O lucro, base do sistema capitalista, defendido pelos liberais, seria fruto dessa diferença injusta que sempre favorece o dono do capital, e não quem investe seu trabalho e sua vida. • Em decorrência da primazia do capital, o mundo foi dividido em capitalista, socialista e subdesenvolvido. Conflitos ocorreram, por diferentes motivos, principalmente econômicos, como foi o caso da Segunda Guerra Mundial. No pós-guerra, União Soviética e Estados Unidos lideraram e protagonizaram a Guerra Fria, o que representou um tempo de hostilidades e ameaças mútuas entre capitalistas e socialistas. • O modelo socialista ruiu com a queda do Muro de Berlim. Já o bloco capitalista, capitaneado pelos Estados Unidos, passa a assimilar outras práticas como o chamado Estado de Bem-Estar Social, passando o Estado a intervir na economia. Como contraponto a essa perspectiva surge o Neoliberalismo, que consiste exatamente em um modelo de absoluta liberdade de mercado e que culminou com a crise de 2008. • Com o Estado neoliberal, áreas como assistência social, previdência, saúde e educação públicas, habitação e direitos trabalhistas são consideradas gastos que devem ser contidos e restritos, uma vez que a lógica é a liberdade de fazer o que se quer. Ganha voz a chamada meritocracia, num cenário de supremacia dos interesses privados, em detrimento dos públicos. Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que o levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. CHAMADA 113 1 Os primeiros indícios de formação de um conceito de Estado sãopercebidos na Grécia como o de Democracia, Direito, por isso a Grécia é reconhecida como “berço” da civilização ocidental e sempre referenciada quando se analisa o processo político e civilizatório do Ocidente. Assim, analise as afirmações a seguir. I- Foram os gregos os primeiros a estabelecer o diálogo como instrumento de consolidação da construção da história. II- Nenhum Estado se conserva interna e externamente se não se propuser ao diálogo, que somente será superado pelas negociações econômicas. III- Acordos comerciais, tratados, ações humanitárias, solução de conflitos, sempre acontecem por meio do diálogo. IV- O Estado grego, que viu surgir a democracia e a política, passou a servir de exclusiva referência a todos os Estados de seu tempo. Considerando as afirmações, assinale a alternativa correta: a) ( ) As afirmativas I e III estão corretas. b) ( ) As afirmativas II e IV estão corretas. c) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas. d) ( ) As afirmativas II, III e IV estão corretas. 2 O Estado Nacional, etapa em que se fundou o chamado Estado Moderno, baseou-se no fim do Feudalismo. Esse início foi um período muito conturbado da história da humanidade, especialmente por conta dos chamados Estados Absolutistas. Um modelo de concentração de poder em torno do Rei e pela primeira vez se pensou em Estados Nacionais. Sobre o Estado Nacional, assinale a afirmativa que melhor descreve fatos relacionados a ele: a) ( ) O Estado Moderno, de caráter democrático desde seu início, teve seu apogeu entre o final do século XVII e início do século XVIII. Essa experiência inaugurou o Estado atual, e foi marcado pela democratização colonial e pela descentralização de todas as atividades no Estado. b) ( ) O Iluminismo estabeleceu a racionalização da discussão em torno do poder e abre espaço para a consolidação do Estado Nacional de caráter absolutista e liberal. c) ( ) O grande salto histórico que fortaleceu os Estados Modernos foi o expansionismo marítimo dos séculos XV e XVI, por parte das nações que centralizavam o poder à época, com especial destaque para Portugal, Espanha, Inglaterra e França. d) ( ) A Revolução Francesa é o marco histórico que impulsionou o absolutismo em praticamente toda a Europa. AUTOATIVIDADE 114 3 O Estado liberal, pode-se dizer, desde sua fundação encontra-se em crise. Essa crise não é exatamente ruim, mas é a responsável pelas sucessivas alterações de sua própria estrutura. Episódios variados marcam a história recente da humanidade e interferem diretamente no formato do Estado. Analise as afirmativas a seguir, as quais mencionam alguns desses episódios e suas relações com as mudanças de formato do Estado e assinale a correta: a) ( ) A Revolução Russa – liderada pelo Partido Liberal – foi a primeira experiência neoliberal, que implementou a partir da revolução de 1917, quando o regime comunista foi deposto. b) ( ) A Segunda Guerra Mundial – surge num período em que o cenário político, por meio de debates, contradições e acordos, estabelece mudanças que faz nascer grupos ou mesmo de nações ou blocos considerados dominantes. c) ( ) A Guerra Fria – União Soviética e Estados Unidos passaram a liderar dois grandes blocos, o socialista e o capitalista, respectivamente, de cunho exclusivamente político, sem qualquer relação com a economia, por isso irrelevante à análise das variações do próprio Estado. d) ( ) Augusto Pinochet (Chile), Margaret Tatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (Estados Unidos) articularam a implementação do Neoliberalismo, modelo econômico estatizante que demonstrou toda a sua força na superação da crise de 2008. 4 Discorra sobre a atual condição do modelo de Estado Moderno, de caráter liberal, destacando seu entendimento acerca das relações entre Estado e economia. 115 UNIDADE 2 ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • diferenciar os conceitos de Monarquia e República e suas implicações para os atuais modelos de Estado; • definir aspectos históricos dos conceitos de Monarquia e República e suas relações com outros como Democracia, Liberdade e Cidadania; • debater a relação entre Estado e capitalismo e seus reflexos sobre a gestão pública, analisando conceitos como Estado Mínimo; • identificar as relações entre Estado, democracia e socialismo conectando- -as com a concepção de Estado de Bem-Estar Social; • ilustrar a relação entre Estado e totalitarismo e seus conflitos com concei- tos como Democracia, Liberdade e Cidadania. Esta unidade está dividida em cinco tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – MONARQUIA: PODER CONCENTRADO E CENTRALIZADO TÓPICO 2 – REPÚBLICA: PODER COMO FONTE E PRODUTO DE DEMOCRACIA, LIBERDADE E CIDADANIA TÓPICO 3 – O ESTADO E O CAPITALISMO: O ESTADO MÍNIMO E LIBERALISMO TÓPICO 4 – O ESTADO E DEMOCRACIA: O ESTADO COMO GARANTIA AO ACESSO À UNIVERSALIDADE DE DIREITOS TÓPICO 5 – O ESTADO E O TOTALITARISMO: O ESTADO COMO OBJETO E O PODER COMO OBJETIVO Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverás melhor as informações. CHAMADA 116 117 TÓPICO 1 MONARQUIA: PODER CONCENTRADO E CENTRALIZADO UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Onde o conhecimento está apenas num homem, a monarquia se impõe. Onde está num grupo de homens, deve fazer lugar à aristocracia. E quando todos têm acesso às luzes do saber, então vem o tempo da democracia. Victor Hugo Após conhecer o conceito de Estado, na Unidade 1, tratando de suas origens, teorias, formação e historicidade, finalidades, elementos constitutivos e suas formas, nesta nova unidade que tratará da relação entre o Estado e o Poder, iniciamos a discussão pela forma mais antiga de se estabelecer essa relação. No primeiro momento, você conhecerá um pouco da história e origem do regime monárquico. Por esse movimento histórico você perceberá os motivos que levaram à gradual substituição do regime monárquico por outros. Também perceberá que ainda há alguns casos em que o regime sobrevive, porém com profundas mudanças nas relações de poder estabelecidas. Noutro momento será feita uma análise acerca da concentração de poder e centralização de decisões e interesses numa única pessoa e família. Neste sentido, você poderá compreender o que efetivamente representam as relações na discussão de conceitos como Democracia, Liberdade e Direito. Dadas as limitações impostas pelo regime monárquico a esses conceitos, na etapa final deste tópico, você poderá notar o movimento histórico que impôs a superação do regime monárquico em boa parte do mundo. Entretanto, notará que ainda existem certas “sombras” nos novos regimes, que ainda produzem efeitos bastante sérios. Assim, é possível compreender que apesar de ser o regime de governo mais antigo que se conhece, sua superação ainda não é total e definitiva. Além de se manifestar da maneira convencional, há regimes democráticos que acabam mascarando o poder de determinadas oligarquias ou mesmo famílias. Por essa razão, para que você possa analisar regimes ditos não monárquicos é fundamental que compreenda como eles funcionam. Com isso você poderá participar do movimento histórico em que inevitavelmente se encontra, como protagonista e não como espectador. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 118 Agora, siga em sua caminhada de leitura do texto e do contexto, construindo sua opinião, tecendo suas próprias críticas e articulando sua autoria. Bons estudos! 2 HISTÓRIA E ORIGEM DO REGIME MONÁRQUICO Como você viu na unidade anterior, desde os primórdios a humanidade vem se organizando de forma coletiva, especialmente após o surgimento da agricultura e seus excedentes e da escrita, como forma de transmissão de saberes,regras e costumes. Também é importante lembrar, que graças a isso, aos poucos surgem as cidades e o Estado, nas suas mais variadas formas de acordo com cada contexto, desde a Antiguidade, passando por Atenas e Roma, Idade Média, Idade Moderna e a Contemporaneidade. Em todo esse período percebe-se a presença do poder como instrumento de controle do Estado e de seus destinos. Como já foi mencionado, nesta unidade trataremos das relações de poder na construção e manutenção desses Estados. É importante destacar isso para que se compreenda que a análise que faremos não seguirá divisões históricas, pois não há exatamente uma sucessão de modelos, mas uma sequência de surgimentos, sem que um necessariamente substitua o outro. Iniciaremos pela Monarquia por ser a forma de governo mais antiga conhecida e que ainda persiste. Afinal, como surgiu a monarquia? Etimologicamente, vem do grego monarkhía, que significa um único líder, similar ao que provém do latim monarchìa, que faz referência a um único soberano. Geralmente, essa palavra nos remete a um sistema hereditário de governo, como é o caso da monarquia inglesa. Há também as monarquias eletivas, como é o caso do Vaticano. Em ambos os casos, o período de comando do monarca é vitalício (até a morte), exceto quando abdica ao trono. A sucessão é sempre restrita à família, geralmente filhos, conforme regras de cada Estado. Sobre como esse formato de governo foi implementado pela primeira vez, não há como apontar uma data ou um local precisos. Sabe-se que já entre os nômades havia líderes, que assumiam esse posto por conta de alguma habilidade de liderança. Como esses grupos se uniam e migravam por conta dos hábitos de caça e coleta, certamente as habilidades nessas atividades revelavam eventuais líderes. Isso não era necessariamente uma monarquia com mandato vitalício e com transmissão de poder aos descendentes. Entretanto, com o surgimento da agricultura e formação das cidades, como já vimos, começaram a surgir relações políticas (de poder) fora dos grupos familiares. Geralmente, os responsáveis pelo armazenamento do excesso produzido pela agricultura, e que respondiam pela sua negociação, passaram também a acumular riquezas e a transmiti-las a seus herdeiros naturais. Esse TÓPICO 1 | MONARQUIA: PODER CONCENTRADO E CENTRALIZADO 119 poder econômico também possibilitou a esse grupo o domínio político dos demais. Não demorou muito também para que a conservação do poder nas mãos de determinadas pessoas ou famílias fosse sacramentado pela intervenção divina. O soberano atribuía a si e a sua família uma bênção e um poder especial nascidos da vontade de Deus, o que legitima o seu poder sobre a coletividade. Aliás, essa é uma forma de legitimação que ainda persiste em alguns casos. ATENCAO Além disso, essa designação divina atribuía aos reis o chamado “direito divino”, que consiste em afirmar que, acima do rei, apenas Deus e as suas atitudes são referendadas pelo Divino. Com o advento das religiões, nos Estados monárquicos surgem as religiões oficiais. O Brasil monárquico tinha como religião oficial o cristianismo, de vertente católica. A monarquia também inaugurou os primeiros modelos de organização hierárquica da sociedade. Conforme Tedesco (2019), essa organização se deu de diferentes maneiras em várias partes do mundo, conforme é possível identificar a seguir: 1) ÁFRICA: o exemplo mais conhecido é o dos Faraós do Antigo Egito (Figura 1), com uma complexa organização social. Eles governaram por três milênios (c. 3150 a.C. a 31 a.C.). Mas além desse caso famoso, outras monarquias puderam ser identificadas no continente africano. Algumas monarquias estenderam- se até o século XX. Além disso, reinos europeus e asiáticos tinham domínios em território africano, o que culminou com a divisão do território daquele continente em inúmeros Estados. FIGURA 1 – ORGANIZAÇÃO SOCIAL DO EGITO MONÁRQUICO FONTE: <https://sites.google.com/site/lehist13/home/idade-antiga/civilizacao-egipcia/ classessociaisnoegipto>. Acesso em: 16 set. 2019. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 120 2) EUROPA: o chamado Velho Mundo testemunhou a ascensão e queda de muitos impérios além da consolidação de outros que duram até hoje. Historicamente são memoráveis o Sacro Império Romano-Germânico, o Reino da França, o Reino Unido de Grã-Bretanha e Irlanda, o Reino da Prússia, o Reino de Espanha, o Reino de Portugal (Figura 2) – a quem esteve atrelado o Brasil em sua fase colonial – além dos impérios Alemão e Russo. A dissolução de alguns megaimpérios resultou em vários Estados. Ainda hoje existem vários reinos na Europa, além de Principados, Ducados e um Estado Soberano, que adotam a monarquia como sistema de governo puro ou associado ao presidencialismo ou ao parlamentarismo. FIGURA 2 – MAPA O REIO DE PORTUGAL FONTE: <https://www.flickr.com/photos/zerrodrigues/17776325758>. Acesso em: 24 out. 2019. 3) ÁSIA: a exemplo da Europa, a Ásia também foi berço de muitos impérios e reinos. No Oriente Médio há um desataque para os Califados além de reinos surgidos nas Cruzadas (Figura 3) que se constituem de movimentos armados de origem europeia e geralmente apoiados pela Igreja Católica. Já na região oriental destacam-se impérios na região da Índia, Mongólia e China. Japão, Tailândia, Camboja, Butão e Tibete também são monarquias até o momento. FIGURA 3 – ROTAS DAS OITO GRANDES CRUZADAS FONTE: <https://dougnahistoria.blogspot.com/2016/03/mapas-historicos-cruzadas-do-sec-xi- xii.html>. Acesso em: 16 set. 2019. TÓPICO 1 | MONARQUIA: PODER CONCENTRADO E CENTRALIZADO 121 4) AMÉRICA: o regime monárquico no continente americano já estava consolidado antes mesmo da chegada dos invasores europeus. Incas, Maias e Astecas tinham seus próprios impérios, tendo seus imperadores designados por diferentes denominações. Com a chegada dos Europeus, os territórios colonizados e ocupados passaram ao domínio dos impérios do Velho Continente. Mesmo após declarar independência, países como o Brasil, México e Haiti tiveram períodos consideráveis de domínio monárquico. O Canadá tem a Rainha da Inglaterra como sua soberana, representada pelo governador-geral. FIGURA 4 – PRIMEIROS REINOS AMERICANOS FONTE: <https://escolaeducacao.com.br/incas-maias-e-astecas/>. Acesso em: 24 out. 2019. Como você pôde perceber, o regime monárquico, que é o mais antigo regime de governo conhecido, não obedece a um padrão. Cada região do mundo apresenta registros de diferentes formas de governo monárquico, sem se saber exatamente em que período surgiu em cada região. Ao contrário, por ter surgido em diferentes locais do planeta em tempos muito remotos, cada continente ou grupo humano desenvolveu sua própria forma de aplicá-lo. Sabe-se que esse movimento se iniciou com a organização das primeiras sociedades, quando formaram-se as primeiras cidades e os primeiros Estados. Esse processo foi estudado no início da Unidade 1 desta disciplina. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 122 Mas afinal, como saber se um regime é uma monarquia? O título do governante pode até ajudar a responder à pergunta. Se um Estado é governado por um rei, uma rainha, um imperador, por exemplo, você certamente está diante de uma monarquia. IMPORTANTE Para efeito acadêmico é preciso identificar as características comuns a qualquer regime monárquico. Tedesco (2019) aponta as três principais: 1) Hereditariedade: o monarca não é alguém escolhido pelo voto popular. Sua condição é herdada como se fosse um bem que pertence a sua família e determinada pelo direito hereditário. Uma exceção é o papado (Vaticano), em que o Papa é eleito por um colégio de cardeais. 2) Vitaliciedade: o monarca, ao contrário dos governantes eleitos, não possui um mandato fixo com data de conclusão. Geralmente, a morte é o que põe fim ao poder do monarca. Exceções são as abdicações ou nos casos em que o monarca é deposto por algumgolpe, revolução ou proclamações de novos regimes. 3) Ilimitabilidade do poder: os monarcas antigos exerciam seu poder de maneira ilimitada. A vontade pessoal do monarca não poderia ser medida ou obrigatoriamente influenciada por outra, nem mesmo pela lei. Atualmente, boa parte dos monarcas estão submetidos a constituições que diluem seu poder com outros personagens como presidentes, primeiros-ministros e parlamentos. O que nos interessa na discussão desse tema nesta disciplina é a relação de poder estabelecida entre o Monarca e o Estado. Como estudamos, as monarquias modernas tendem a conviver com certa divisão do poder, ao contrário do que se observava nos modelos mais antigos. Assim, é importante destacar a existência de dois tipos fundamentais de monarquia: a constitucional e a absoluta. O próximo subtópico destacará a influência de cada tipo em relação à centralização das decisões e dos interesses no regime monárquico. 3 CONCENTRAÇÃO DE PODER E CENTRALIZAÇÃO DE DECISÕES E INTERESSES Quando se analisa um regime de governo é evidente que se está falando da maneira como esse regime se comporta no que diz respeito à gestão do poder. Aliás, é imprescindível que se fale disso, pois a administração pública contemporânea trata do exercício do poder e suas consequências para a tomada de decisões e para a definição de interesses. TÓPICO 1 | MONARQUIA: PODER CONCENTRADO E CENTRALIZADO 123 Como estamos tratando do regime monárquico de gestão do Estado, você sabe como o poder é exercido nas monarquias que ainda existem hoje? Em relação aos modelos de gestão do Estado há duas formas de exercer o poder: 3.1 MONARQUIA ABSOLUTISTA Como o próprio nome já diz, trata-se de uma forma de monarquia dotada de extremo autoritarismo, em que a figura do monarca se torna a autoridade absoluta e extrema. É uma monarquia marcada, portanto, pela extensão ilimitada dos poderes do monarca sobre seus governados. Do ponto de vista político, o monarca torna-se chefe de Estado e chefe de governo. Já do ponto de vista da organização dos poderes, o monarca concentra em suas mãos as atribuições que futuramente seriam dos poderes executivo, legislativo e judiciário. IMPORTANTE FIGURA 4 – REPRESENTAÇÃO ESQUEMÁTICA DA MONARQUIA ABSOLUTISTA FONTE: <https://blog.maxieduca.com.br/wp-content/uploads/2017/08/a-formao-dos-estados- nacionais-5-638.jpg>. Acesso: 5 set. 2019. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 124 Conforme se observa na Figura 4, o monarca é diretamente sustentado pelos nobres e pelo clero, legitimando seu poder terreno com as devidas bênçãos divinas, a exemplo do que vimos na Unidade 1, quando tratamos dos Estados Feudais. A igreja e a nobreza (senhores feudais), por sua vez, mantinham-se graças ao trabalho dos camponeses. Também serviam ao monarca os profissionais liberais e os burgueses, estes com uma relação de reciprocidade, enquanto nobres e clérigos mantinham uma relação de apoio unilateral. Essa unilateralidade deve-se ao fato de que o poder do monarca era exclusivamente político, mas dependia economicamente dos aportes da igreja e da nobreza. Assim, você pode perceber que o poder absoluto do monarca, em verdade, servia para representar os interesses dos nobres e do clero. Outro aspecto relevante é que além da manutenção da estrutura monárquica de gestão era preciso manter também um poderoso exército que garantiria segurança ao monarca e ao Estado. O mesmo exército poderia ser usado em eventuais intervenções ou invasões em estados vizinhos. Entre os séculos XIV e XVII, esse tipo de monarquia foi muito comum na Europa, notadamente na França e na Inglaterra (Reino Unido). Quem já não ouviu falar de Luís XIV, o “Rei Sol”, que governou a França por longos 72 anos? Esse modelo de monarquia foi sofrendo necessárias mudanças até que nos anos de 1700 chegamos ao período de despotismo esclarecido, termo cunhado por Wilhelm Roscher, historiador alemão, em 1847, portanto, muito depois desse modelo ter sido implantado. Na prática, o despotismo esclarecido propunha ideias iluministas como o progresso do Estado e racionalismo. ATENCAO Com esses avanços abriu-se caminho por meio das chamadas revoluções burguesas, como a francesa, para que os estados europeus adotassem regimes mais participativos e de caráter mais inclusivo da população, como a monarquia constitucional e a república. Autores apontam que os Estados de Brunei, Catar, Omã, Suazilândia, Emirados Árabes Unidos e o Vaticano podem ser considerados exemplos remanescentes do regime monárquico absolutista. Conforme já mencionado, assim como qualquer regime, a monarquia absolutista passou por mudanças e percebeu-se que a concentração de poderes em mãos únicas ou de uma classe em particular e sem qualquer limite já não conseguia manter a unidade dos Estados. Por essa razão surge um novo modelo: a monarquia constitucional. TÓPICO 1 | MONARQUIA: PODER CONCENTRADO E CENTRALIZADO 125 3.2 MONARQUIA CONSTITUCIONAL Como dissemos, dos grandes problemas das monarquias absolutistas é a concentração de poder na figura do monarca. Não que esse poder estivesse de fato com exclusividade em suas mãos, mas era a ele que se atribuíam todas as decisões, não havendo instâncias outras para recorrer ou estabelecer decisões coletivas. Os que sustentavam o monarca perceberam que não precisavam depender dessa figura centralizadora. Eles próprios poderiam gerir suas decisões, inspirados inclusive nos ideais democráticos já discutidos na Unidade 1. Analisando historicamente, percebe-se que essa ruptura se deu entre os séculos XVIII e XIX. Já não se admitia a ideia de um soberano concentrar todo o poder. Mais do que isso, não se concebia a ideia de que as decisões fossem tomadas segundo a sua vontade. O iluminismo e suas ideias de liberdade política e econômica confrontaram-se fortemente ao absolutismo. A primeira Monarquia Constitucional data de 1688 e é marcada pela chamada Revolução Gloriosa, na Inglaterra. Segundo conta, tudo se deu em razão de a classe burguesa, em franca ascensão nessa época, estar extremamente insatisfeita com a falta de limites dos poderes do monarca. Além disso, reivindicavam para si maior participação nas decisões do Estado, não apenas como supostos conselheiros do monarca. No que diz respeito à oposição ao antigo regime monárquico, a Revolução Francesa foi a mais conhecida movimentação antiabsolutista da história. A diferença é que com ela a França adotou o sistema Republicano, que trataremos noutro momento. IMPORTANTE O monarca tem poderes muito limitados e, por vezes, chegam a ser apenas simbólicos. Quem já não ouviu a expressão: “fulano foi relegado à Rainha da Inglaterra” para dizer que não possui qualquer capacidade decisória? Mas não é apenas a Inglaterra que a adota! Arábia Saudita, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, Emirados Árabes, Jamaica, Japão, Marrocos, Nova Zelândia, Suécia e Tailândia são outros exemplos! Mas afinal, se o poder já não está nas mãos do monarca, a quem ele efetivamente pertence e quem o exerce? Isso tudo é determinado pela Constituição de cada país, daí a denominação desse novo modelo. Além disso, quem o adota associa a obediência à Constituição, a separação dos poderes, fundamentada em Montesquieu, como você já estudou. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 126 FIGURA 5 – REPRESENTAÇÃO ESQUEMÁTICA DA MONARQUIA CONSTITUCIONAL FONTE: <https://plataformacidadaniamonarquica.files.wordpress.com/2015/10/infografia- monarquia-constitucional.png?w=238&h=300>. Acesso em: 5 set. 2019. A expressiva maioria das monarquias constitucionais são também parlamentaristas. Nesse caso a função de chefe de Estado é atribuída ao monarca (rei, rainha, imperador, príncipe) e a chefia de governo é exercida pelo primeiro- ministro. A Figura 5, ilustra a composição desse modelo de governo. Veja que o povo elege os membros do parlamento e estes escolhem o chefe de Governo, primeiro-ministro.Este terá a função de organizar o poder executivo e poderá ser dissolvido pelo monarca ou pelo próprio parlamento que decreta novas eleições. É verdade que cada Estado que o adota constitui suas próprias regras de organização desse poder, mas a essência é a mesma! Você pode se perguntar: “Todas as monarquias se enquadram nesses dois modelos?” Não exatamente. Focamos nesses por serem os mais conhecidos e que costumam ser citados como alicerces para os sistemas de governo atuais. Mas há outros, com suas particularidades e que atendem às características do contexto em que estavam ou estão. Citaremos dois exemplos a seguir. TÓPICO 1 | MONARQUIA: PODER CONCENTRADO E CENTRALIZADO 127 a) Monarquia sagrada ou religiosa Como dissemos, a monarquia é o sistema de governo mais antigo que se conhece e a forma mais antiga que se conhece é a estritamente sagrada. Ela foi muito comum nas chamadas culturas primitivas. Nesses casos o monarca assumia uma origem divina, o que justificava seu pleno poder e de caráter ilimitado. Podemos citar como exemplos o Império Asteca e o Egito Antigo. b) Monarquia eletiva Quando você identifica a palavra eletiva, talvez imagine que o monarca exerça seu poder por um determinado período (mandato). Nesse caso, por se tratar de uma monarquia, o mandato segue vitalício. A diferença é que não há o caráter hereditário da maioria das monarquias. O sucessor será eleito! Essa eleição não é no modelo democrático de participação popular. Forma- se um conselho que procederá à votação. Após a escolha, o novo mandatário compromete-se a observar as atribuições do cargo. Um exemplo disso é o Vaticano, em que o Papa é eleito pelo colégio dos cardeais. Como você pôde perceber, a monarquia já não vive seus tempos áureos. Ao contrário, o número de Estados que a adotam oficialmente vem sendo reduzido ao longo dos anos. Há uma tendência da maioria dos Estados migrar para um regime republicano, quando efetivamente a participação popular é garantida. Porém é preciso lembrar que a passagem de um regime para outro vai muito além da simples proclamação da república e destituição do monarca. Quando isso ocorre, apesar da euforia dos que conseguiram o que almejavam, é evidente que os personagens do antigo regime normalmente assumem certo protagonismo no novo. Assim, carregam para esse novo regime resquícios do anterior, quando não o carregam por inteiro. Desse modo, muitas repúblicas carregam características muito evidentes das monarquias por muitos anos ou por toda a sua história. No próximo subtópico abordaremos a persistência dessas “sombras”, apesar da superação do regime monárquico. 4 A SUPERAÇÃO DA MONARQUIA E SUAS “SOMBRAS” NOS NOVOS REGIMES Certamente, quando você lê a palavra superação, imagina que o que foi superado já não tem qualquer possibilidade de ser retomada e que o novo supostamente não teria qualquer influência do antigo. Mas não é bem assim. A superação se dá no campo formal, com novas estruturas de Estado, de gestão e novos formatos de escolha dos gestores (atores que exercem o poder). UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 128 Mas há casos em que o regime a ser superado já durava séculos e seria inimaginável que de uma hora para outra tudo isso pudesse ser apagado. Mesmo havendo mudanças do sistema, o processo histórico é contínuo e inter-relacional, ou seja, o passado sempre estará presente e suas “sombras” se farão perceber diuturnamente. Há fatores complexos que constroem a história, não somente das monarquias, e que precisam ser levados em consideração: os atores históricos, os movimentos antimonarquistas, por exemplo. Vamos analisar esses fatores considerando o caso brasileiro. 4.1 BRASIL COLÔNIA Embora não tenhamos tratado disso até o momento é importante lembrar que o Brasil foi uma monarquia ao longo de seus primeiros 389 anos. Durante 322 anos serviu de colônia à Coroa Portuguesa, e por 77 anos, interrompidos por nove anos de período regencial (1831-1840), teve seu próprio imperador. No período colonial, iniciado com a expedição de colonização comandada por Martim Afonso de Souza, iniciou-se também a função das primeiras povoações de nosso litoral, como a Vila de São Vicente. Economicamente, esse período foi marcado pelo extrativismo, vegetal e mineral, baseado em exploração de trabalho escravo, o que se evidenciou por uma sucessão de ciclos: do pau-brasil, da cana- de-açúcar, do ouro, do café etc., conforme você pode observar na figura a seguir. FIGURA 6 – PRINCIPAIS CICLOS ECONÔMICOS BRASILEIROS FONTE: <https://www.conversaafiada.com.br/brasil/viva-exportar-materia-prima- desenvolvimento>. Acesso em: 25 out. 2019. TÓPICO 1 | MONARQUIA: PODER CONCENTRADO E CENTRALIZADO 129 Do ponto de vista da administração da colônia foi criado o sistema de governo geral, em 1548. Esse sistema consistia numa instância organizacional que administraria a colônia em nome da Coroa. Essa administração seria orientada a partir de leis trazidas da coroa. Entre 1580 e 1640, por causa da chamada União Ibérica, o Brasil passou ao domínio espanhol. Com a retomada portuguesa, o Brasil segue seu rumo como colônia. Nesse período houve divisões internas pelo menos duas vezes e ameaças de invasões francesas e holandesas. IMPORTANTE Não nos aprofundaremos nisso, porque o objetivo desse escrito não é o detalhamento histórico, mas compreender sucintamente o que nos levou à condição de império após 1822. Já essa fase merece melhor e mais precisa análise, pois se trata do período que determinará com mais intensidade a compreensão das “sombras” de um regime monárquico no regime que o sucede. 4.2 BRASIL IMPÉRIO O Estado monárquico brasileiro inicia-se com a Independência (07/09/1822), quando, ao contrário de outras nações latinas, o “libertador” torna- se o monarca. É importante lembrar que antes desse evento algo inédito ocorreu: a colônia (Brasil) recebeu em seu território a Corte do Reino que a dominava. Ao final de 1807, a família real portuguesa deixa Lisboa temendo a invasão de Bonaparte (Figura 7) e chega ao Brasil no início de 1808. FIGURA 7 – ILUSTRAÇÃO DO MOTIVO DA VINDA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA AO BRASIL FONTE: <https://slideplayer.com.br/slide/397725/>. Acesso em: 25 out. 2019. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 130 O chamado período Joanino (assim denominado por ter a frente do governo monárquico, D. João VI) trouxe inúmeras novidades à colônia, como a fundação do Banco do Brasil, da Casa da Moeda, do Jardim Botânico e da Academia Militar, além de fazer do Rio de Janeiro a nova capital do Império. Tudo isso abriu espaço para que a discussão sobre a independência pudesse acontecer de forma mais consistente, o que certamente antecipou a sua realização. A soma dessas e outras ações ofereceram ao Brasil certa liberdade que lhe permitiria um desenvolvimento econômico próprio. Com a insistência de que a família real retornasse a Portugal, em 1820, exigia-se a revogação de todas as medidas que sustentavam esse desenvolvimento. Dom Pedro foi nomeado regente por seu pai antes de partir a Portugal, em 1821. A independência tornou-se uma exigência das classes mais abastadas, que não desejavam submeter-se ao reino português, mas desejavam formar sua própria corte, fazendo parte dela. Como você deve ter estudado em outros momentos de sua vida estudantil, em 7 de setembro de 1822 ocorre o “Grito do Ipiranga”, amplamente discutido no que diz respeito ao seu simbolismo. Mas seja como for, a partir dessa data passamos a ter nosso próprio imperador: Dom Pedro I. Quanto a nossa efetiva independência (política e econômica), parece ser um processo de idas e vindas que ainda pode ser percebido hoje. O período imperial brasileiro é marcado por acontecimentos e escolhas que exercem influência sobre si próprio e sobre a história de nosso país até nossos dias. Por isso é que se menciona que ainda vivemos às sombras daquele período em certosaspectos, o que aconteceu também com outros casos mundo afora. IMPORTANTE O período monárquico, para efeitos didáticos, pode ser dividido em três períodos, com características muito particulares: Primeiro Reinado (1822-1831), Período Regencial (1831-1840) e Segundo Reinado (1840-1889). Por meio da análise desses períodos você identificará alguns acontecimentos fundamentais ocorridos em cada período. Primeiro reinado – com a independência, Dom Pedro I inicia a primeira administração independente do Brasil, marcada por muitos conflitos internos e com Portugal, somados ao autoritarismo e a incompetência dos gestores que TÓPICO 1 | MONARQUIA: PODER CONCENTRADO E CENTRALIZADO 131 acompanhavam o imperador. Nota-se que tudo isso não é exatamente uma novidade para nós. Ao contrário, estes são resquícios muito marcantes daquele tempo, ainda evidentes em nosso tempo. Sobre a independência é preciso que se diga que, apesar de ter sido proclamada, não se pode dizer que tenha ocorrido plenamente ou que a partir dela tenha se fundado o Estado Brasileiro. Um exemplo disso é apontado por Ramos (2017), ao afirmar que após a proclamação da Independência, em 1822, a estrutura tributária e alfandegária não foi imediatamente revista. Contudo, dadas as especificidades da economia brasileira, majoritariamente baseada no comércio e na produção agrário-exportadora, desde os primeiros momentos de Estado independente, as atenções estiveram voltadas à principal fonte de receitas do governo: as alfândegas. O Brasil conhece sua primeira constituição em 1824, inaugurando um novo tempo no campo jurídico nacional. Com ela, o Brasil passa a ter sua própria legislação, estabelecendo suas próprias relações jurídicas. De autoria do próprio imperador, serve também como exemplo de sua postura autoritária. Por ser a constituição, fonte primária e essencial de todo o arcabouço jurídico de um Estado, ao se definir um determinado ordenamento jurídico estabelece-se também uma forma de sociedade. Evidentemente, essa primeira constituição retrata o contexto de sua época, consolidando a monarquia como regime de governo e a escravidão como modalidade de trabalho. IMPORTANTE FIGURA 8 – ORGANIZAÇÃO DOS PODERES SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO DE 1824 FONTE: <http://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo02/const_1824.html>. Acesso em: 25 out. 2019. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 132 Por meio da Carta de 1824 instituiu-se o chamado Poder Moderador (Figura 8), conforme descrevia seu artigo 98: “O Poder Moderador é a chave de toda a organização política e é delegado privativamente ao imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos” (BRASIL, 1824, s.p.). Para Costa (1999, p. 461), esse poder pouco servia para o imperador, pois quem efetivamente detinha o comando político do país, especialmente no Segundo Reinado eram “as oligarquias que se faziam representar no Conselho de Estado, nas Assembleias Legislativas Provinciais, nas Câmaras dos Deputados, no Senado, nos ministérios, nos quadros do funcionalismo e das forças armadas”. Sobre os conflitos e a incompetência que dominava esse tempo, pode-se citar a Guerra da Cisplatina, que prejudicou enormemente a economia do país e impôs uma severa derrota ao Brasil. A região que hoje corresponde ao atual Uruguai foi disputada pelo Brasil e pela Províncias Unidas do Rio da Prata, que corresponde à atual Argentina. Apesar de Dom Pedro alegar que o Brasil teria direito sobre a região pelo fato de que sua mãe era irmã do rei Fernando VII (da Espanha), o grande motivo para a disputa era o fato de que a prata extraída dos Andes escoava pelo Rio da Prata. Era interesse do Brasil ter autoridade sobre esse estuário, sendo por isso necessário conquistar uma de suas margens, no caso, o Uruguai. Ao final da guerra, nenhum dos competidores obteve sucesso, uma vez que o território se tornou independente, originando a Província Oriental del Río de la Plata, hoje, Uruguai. Outro problema foi que Portugal reconheceu a independência brasileira apenas em 1825. A insatisfação, especialmente da elite econômica brasileira, forçou a renúncia do imperador, o que ocorreu em 1831. Como seu filho não tinha a idade necessária prevista na constituição para assumir (18 anos), passou-se por um período transitório denominado Período Regencial. Período Regencial – com a abdicação do imperador, conforme previa a constituição de 1824, o trono caberia a seu filho, desde que ele tivesse 18 anos, o que não era o caso. Diante disso foi necessário recorrer à escolha de regentes que governariam provisoriamente. Esse foi um período em que as disputas entre parlamentares e rebeliões nas províncias marcaram o ambiente político. Desse período merecem destaque a Cabanagem, a Balaiada, a Sabinada e a Revolução Farroupilha. TÓPICO 1 | MONARQUIA: PODER CONCENTRADO E CENTRALIZADO 133 Em relação às mudanças legislativas, merece destaque o ato adicional de 1834, que alterou a constituição e determinou, ente outras coisas: • fim do poder moderador durante o Período Regencial, que apesar de retomado durante o segundo império, lança as sementes para atual regime de três poderes; • fim do Conselho de Estado, centralizando o poder decisório no executivo, como é ainda hoje; • criação de Assembleias Legislativas provinciais, iniciando o processo de estabelecimento de uma certa autonomia legal das unidades do país, hoje Estados; • aumento dos poderes dos presidentes da província, contribuindo para imprimir certa autonomia também a executivos regionais; • substituição da regência trina por uma regência una, em que o poder executivo seria exercido por uma única pessoa, o que lembra o regime presidencialista em que vivemos. IMPORTANTE No caso brasileiro pode-se dizer que desse breve período temos alguns elementos que mais tarde justificariam a proclamação da república. Com ela, essas mudanças acabaram implementadas novamente, porém noutro contexto e com um formato próprio. Finalmente, para evitar que o período se prolongasse, a maioridade do imperador foi antecipada e ele foi coroado aos 14 anos de idade (Figura 9). Sabia-se que com as mudanças ocorridas, se não houvesse um abreviamento da espera pelo novo imperador, corria-se o risco de o regime monárquico ruir definitivamente. Com a coroação do imperador Dom Pedro II, inicia-se o segundo e último reinado do Brasil. FIGURA 9 – ANTECIPAÇÃO DA MAIORIDADE DO IMPERDOR FONTE: <http://historiadornet.blogspot.com/2017/10/periodo-regencial-1831-1840.html>. Acesso em: 25 out. 2019. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 134 Segundo Reinado – durou 49 anos e corresponde ao reinado de Dom Pedro II (1840 a 1889). Da consolidação do regime, seu auge até sua queda, esse período é marcado pelas campanhas abolicionista e republicana, o que manteve o imperador sob pressão. Sucessivamente, diferentes leis limitaram a escravidão no Brasil, desde a proibição de tráfico, Lei do Ventre Livre, Lei do Sexagenário e finalmente com a Lei Áurea, pondo fim ao modelo escravocrata em 1888. Porém isso não representou a valorização do trabalho ou do próprio trabalhador. Passar-se-iam mais de cinquenta anos para que Brasil passasse a ter uma legislação trabalhista consistente. Também é desse período a fatídica Guerra do Paraguai, que se estendeu de 1864 a 1870, e que teve como finalidade aniquilar economicamente aquele país. Todos esses fatores contribuíram para o enfraquecimento da monarquia e lançou o país numa profunda crise econômica. Esse processo de aprofundamento de crise, a exemplo do que ocorre no contemporâneo Brasil republicano, fez com que a monarquia perdesse forças perante as elites econômicas. Essa é uma outra sombra herdada também desse período: a elite econômica dando as cartas na política. A mesma elite quesustentou a monarquia agora passa a conspirar para viabilizar o regime republicano. É evidente que a mudança de regime, sendo este sustentado pelos mesmos interesses, não implicaria grandes mudanças da forma de gestão do Estado. IMPORTANTE Sobre esse aspecto é muito importante o que relata Margarida de Souza Neves ao descrever o ato de transição de regimes: A República não foi uma fatalidade histórica e não se limitou à superficialidade de um putsch ou de uma parada militar ainda que tal ato possua relevante significado histórico. Por sua vez, a imagem do “povo bestializado” ante a Proclamação da República descrita por Aristides Lobo, republicano histórico que parecia olhar para as ruas do Rio de Janeiro à procura do povo que tomara a Bastilha, não estabelece interpretação definitiva sobre a participação social dos populares, do caráter do novo regime ou ainda dos alcances e das repercussões sociopolíticas da República. Na forma de um Golpe de Estado dos militares, ela foi uma resposta autoritária e elitista às agitações sociopolíticas do período marcado por um ambiente de transformações no ritmo da vida e por utopias de progresso que só pareciam se realizar com o fim da monarquia (NEVES, 2008, p. 44). TÓPICO 1 | MONARQUIA: PODER CONCENTRADO E CENTRALIZADO 135 Percebe-se, portanto, que a república não surge como fruto de um movimento popular, mas da necessidade da conservação de poderes e da consolidação de certa elite. Elite que, como você pôde perceber pela narrativa de Neves (2008), temia que o clima de mudanças fosse mais profundo que o desejado. Nota-se que o processo de composição do regime republicano foi apressado e direcionado de maneira a cumprir o papel de promover uma mudança apenas de regime, mas não da lógica das relações de poder. Não se pode dizer que não houve boas intensões por parte de muitos que aderiram ao movimento republicado. Havia a convicção de que seria preciso implementar um regime mais próximo da democracia e da liberdade de participação popular. Juristas, escritores, artistas aderiram ao movimento, motivados por esses ideais. Entretanto, a elite econômica e seus representantes políticos migraram para o novo regime e com eles os seus interesses. Noutro tópico, quanto tratarmos do regime republicano, você verá que os interesses migrados seguem por todo o período republicano e ainda são percebidos contemporaneamente. Essa relação entre economia e política – é bom que se diga – não é exclusiva do Brasil. Você já deve ter notado que em boa parte do mundo “civilizado” capitalista o que dita os destinos políticos dos Estados e das pessoas é o poder econômico. Conhecidos esses períodos de nossa monarquia, para compreender a dinâmica política do período podemos partir para outras reflexões, sendo que a mais importante é a relação entre política e trabalho, que é o sustentáculo maior do poder econômico. IMPORTANTE Se no início do período monárquico havia três grupos políticos distintos (liberais moderados, liberais exaltados e restauradores), aos poucos eles converteram-se em dois (liberais e conservadores). Esses dois grupos mantiveram o domínio político do país, especialmente com Dom Pedro II. Nesses dois grupos havia aqueles que defendiam maior autonomia para as províncias e outros que defendiam a manutenção e até a ampliação do poder central do imperador. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 136 FIGURA 10 – A CHARGE DE CÂNDIDO DE FARIA AO O MEQUETREFE (1878) MOSTRA D. PEDRO II MANIPULANDO OS PARTIDOS LIBERAL E CONSERVADOR FONTE: <http://amorim.pro.br/?p=484>. Acesso em: 9 set. 2019. Embora no regime monárquico não se admita disputa pelo poder central, no parlamento, liberais e conservadores mantinham um constante clima de adversidade, causando constante instabilidade política. ATENCAO Entretanto, o imperador, por meio de seu poder moderador, mantinha os dois grupos sob seu controle (Figura 10). Como você pôde perceber, nada muito diferente do que vemos atualmente, porém hoje com grupos muito mais distintos e orientados por ideais muito mais numerosos e às vezes pouco convergentes. Especificamente, sobre os liberais, considerados os maiores responsáveis pela transição do regime monárquico para o republicano é relevante considerar o que doutrina Emília Viotti da Costa, que assevera: Durante todo o Império, os liberais, como os demais membros das elites brasileiras, tinham sido basicamente conservadores e antidemocráticos. Seu alvo fora sempre conciliar a ordem com o progresso, o status quo com a modernização. Com exceção da Abolição, a maioria das reformas propostas pelos liberais tinha sido exclusivamente política e não alterava as estruturas econômicas e sociais mais profundas, nem incrementava participação popular na vida política da nação. A reforma eleitoral de 1881, considerada por muitos uma conquista democrática, não acarretou a expansão do eleitorado (COSTA, 1999, p. 165-166). TÓPICO 1 | MONARQUIA: PODER CONCENTRADO E CENTRALIZADO 137 Dom Pedro II tinha certo controle dessas disputas, promovendo sucessivas destituições de gabinetes, o que não se vê nos regimes monarquistas parlamentaristas modernos. As sucessivas destituições geraram obviamente um grande desgaste do regime e do próprio imperador, o que lançou muitos políticos, tanto liberais como conservadores, no movimento republicano. Nota- se que a opção pela República, como dissemos, não foi por convicção, mas por conveniência. Sobre o trabalho, havia uma forte dependência do trabalho escravo, já extinto ou em extinção em grande parte do continente. O Brasil foi o último a fazê-lo, pouco mais de um ano antes de tornar-se república. Nunca é demais lembrar que ainda hoje há casos de trabalho análogo ao de escravo, sendo descobertos no país. IMPORTANTE Com a redução e o fim da escravidão no Brasil, os postos de trabalho, antes ocupados pelos escravos, passaram para os imigrantes, vindos de diversas partes da Europa. Ressalta-se que essa transição foi muito lenta, levando a crer que não era interesse da monarquia realizá-la. Para a elite econômica (rural) do Brasil do século XIX, simplesmente libertar os escravos significaria uma perda enorme, uma vez que os escravos representavam um alto custo. Por isso o fim do trabalho escravo foi gradual, primeiro impedindo a importação de novos escravos, depois libertando os filhos de escravos e os maiores de sessenta anos e, finalmente, os remanescentes. Além disso, os poucos que ainda restavam nas senzalas foram expulsos das fazendas sem qualquer recurso, desgastados pelo trabalho intenso e sem capacitação para qualquer atividade. Conforme lembra Costa (1999, p. 247), "promovida principalmente por brancos, ou por negros cooptados pela elite branca, a abolição libertou os brancos do fardo da escravidão e abandonou os negros à sua própria sorte”. Assim, você pode notar que a abolição está longe de poder ser considerada um ato humanitário. Ao contrário, tornou-se um bom negócio para a elite agrícola brasileira, e lançou milhares de pessoas às margens da sociedade. Não por acaso, hoje a parte mais pobre de nossa população é composta essencialmente por descendentes dos libertos de 1888. Soma-se a isso a forte criminalização dessa parte da população. É inegável que essa é uma sombra presente em nosso contexto e que tem martirizado milhares de pessoas ao longo desses mais de 130 anos. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 138 Mas você certamente poderia perguntar: Com o fim da escravidão, quem serviu de mão de obra no lugar dos escravos? A redução drástica de escravos, a partir de 1850, com a proibição da “importação” de escravos ampliou a imigração. Estes atuaram principalmente nas fazendas de café no Sudeste do país e outros se espalharam por diversas regiões do país, especialmente para o Sul. Esses imigrantes passaram a compor a população brasileira e a participar da vida econômica do paísjunto aos portugueses, não apenas como mão de obra, mas também como empreendedores, ajudando a conduzir o país a sua industrialização no período republicano. O perfil de nossa população foi desenhado nesse período. Se analisarmos, podemos perceber que a parte mais pobre e excluída de nossa sociedade é composta por descendentes dos que foram submetidos à escravidão e, ao serem libertos, tinham apenas a si mesmos. O Brasil do século XXI ainda não acertou as contas com esse passado, tanto do ponto de vista econômico quanto social. Assista ao Vídeo 1, que faz referência ao movimento de transição entre a monarquia e a república no Brasil: https://www.youtube.com/watch?v=ZaOXlYkNvOQ. Veja também o Vídeo 2, que faz uma análise da viabilidade das monarquias na atualidade: http://g1.globo.com/globo-news/sem-fronteiras/videos/v/sem-fronteiras-monarquia-e- uma-forma-de-governo-ultrapassada/6745063/. Leia também ao texto Absolutismo, escrito por Fernanda Paixão Pissurno, disponível no link: https://www.infoescola.com/historia/absolutismo/. A autora faz uma excelente e sucinta análise histórica dessa forma de governo monárquico, já abordado no texto que você acabou de estudar. Após assistir aos vídeos e ler o texto sugeridos, faça uma relação de vantagens e desvantagens do regime monárquico e em seguida emita sua opinião acerca de suas impressões. DICAS 139 RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você aprendeu que: • A humanidade vem se organizando coletivamente desde os primórdios da existência do próprio homem. Com o surgimento das cidades, surge também o Estado. A partir daí estabelecem-se relações de poder e regimes para que determinem como exercê-lo. • O mais antigo regime é o monárquico. Não há uma data precisa para o início da aplicação desse regime. Além disso, para consolidar seu poder, o soberano atribuía o seu poder a uma vontade divina. • A organização hierárquica (geralmente piramidal) da sociedade foi inaugurada com o regime monárquico, que se estabeleceu em todos os continentes (África, Ásia, Europa e América) com formatos diferenciados, mas obedecendo à mesma lógica. • As principais características da monarquia são três: ᵒ Hereditariedade: a condição de monarca é herdada como se fosse um bem que pertence à família. Uma exceção é o papado (Vaticano), em que o Papa é eleito. ᵒ Vitaliciedade: o monarca não possui um mandato fixo com data de conclusão, o que se dá geralmente por morte, exceto quando houver abdicação. ᵒ Ilimitabilidade do poder: os monarcas antigos exerciam seu poder de maneira ilimitada. • A análise da monarquia que nos interessa nesse momento é justamente sobre essa terceira característica do regime, que ainda persiste em vários Estados. Há essencialmente duas formas de se exercer o poder monárquico: ᵒ Monarquia absolutista: dotada de extremo autoritarismo, em que a figura do monarca se torna a autoridade absoluta e extrema. O monarca concentra em suas mãos as atribuições que futuramente seriam dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Esse tipo de monarquia foi muito comum na Europa entre os séculos XIV e XVII. ᵒ Monarquia constitucional: o excessivo autoritarismo levou o regime a uma ruptura entre os séculos XVIII e XIX. O iluminismo e suas ideias de liberdade política e econômica confrontaram-se fortemente ao absolutismo. No que diz respeito à oposição ao antigo regime monárquico, a Revolução Francesa foi a mais conhecida movimentação antiabsolutista da história. Uma característica da maioria das monarquias constitucionais é que elas são também parlamentaristas. 140 • Há ainda a Monarquia sagrada ou religiosa, muito comum nas chamadas culturas primitivas (exemplos: o Império Asteca e o Egito Antigo) e a Monarquia eletiva, na qual não há o caráter hereditário da maioria das monarquias. O sucessor será eleito, como é o caso do Vaticano. • O Brasil viveu por certo período sob o regime monárquico. Esse período antecedido por 322 anos de condição colonial durou 77 anos e foi dividido em três fases: ᵒ Primeiro Reinado: com a independência, Dom Pedro I inicia a primeira administração independente do Brasil. Apesar de ter sido proclamada a Independência, esta não ocorreu plenamente. O Brasil conhece sua primeira constituição em 1824, inaugurando um novo tempo no campo jurídico nacional. Por meio da Carta de 1824 instituiu-se o chamado Poder Moderador. Mesmo assim as oligarquias econômicas do país passaram a dominar também a política em diversas instâncias, tanto é que a insatisfação da elite econômica brasileira forçou a renúncia do imperador, o que ocorreu em 1831. ᵒ Período Regencial: com a abdicação do imperador o trono caberia a seu filho, desde que ele tivesse 18 anos, o que não era o caso. Assim, abriu-se um período de disputas e sucessivos conflitos e curtos períodos de governo regencial. Para acalmar os ânimos, a maioridade do sucessor de Dom Pedro I foi antecipada e inicia-se o segundo reinado. ᵒ Segundo Reinado: da consolidação do regime, seu auge até sua queda, esse período é marcado pelas campanhas abolicionista e republicana, o que manteve o imperador sob pressão. Aos poucos houve o enfraquecimento da monarquia e o país viveu profunda crise econômica. A mesma elite que sustentou a monarquia agora passa a conspirar para viabilizar o regime republicano. A elite econômica migrou para o novo regime e com eles os seus interesses. • Genericamente, podemos dizer que o perfil de nossa população foi desenhado nesse período. Uma minoria rica comandando os destinos de uma maioria pobre e explorada, persistindo numa profunda desigualdade econômica e social. 141 AUTOATIVIDADE 1 O regime monárquico é o mais antigo que se conhece, sem haver uma data precisa de sua criação e no que diz respeito a sua forma de aplicação, caracteriza-se pela centralização do poder nas mãos de uma única pessoa. Por vezes, inclusive, o monarca evoca para si um poder de origem divina. Além disso é interessante perceber que as monarquias apareceram em todos os continentes de maneira paralela e com características muito próprias. Sobre as monarquias em diferentes continentes afirma-se: I- No continente africano, o exemplo mais conhecido é o dos Faraós do Antigo Egito. II- O chamado Velho Mundo testemunhou a ascensão e queda de muitos impérios, por isso abandonou definitivamente este regime na atualidade. III- Incas, Maias e Astecas são exemplos de monarquias antigas ocorridas no continente americano. IV- Na Ásia, a maioria dos impérios se extinguiu antes do século XX, e os que ainda restavam foram literalmente varridos com a Segunda Guerra Mundial, como foi o caso do Japão. Sobre essas afirmativas é correto dizer que: a) ( ) I, II e III estão corretas. b) ( ) I e III estão corretas. c) ( ) III e IV estão corretas. d) ( ) Todas estão corretas. 2 A monarquia é um regime de governo em que não há eleições (exceto no caso do Vaticano), não tem previsão de fim de mandato e o poder do monarca é gigantesco. Diante disso, são características consideradas essenciais para a monarquia: a) ( ) Liberdade, Igualdade e Fraternidade. b) ( ) Divindade, Liberdade e Estado Democrático de Direito. c) ( ) Legitimidade, Hereditariedade, Vitalicidade. d) ( ) Hereditariedade, Vitalicidade, Ilimitabilidade do poder. 3 O processo de consolidação e queda das monarquias é repleto de acontecimentos que permitem dizer que a história da monarquia coincide em muitos aspectos com a história da humanidade. Analisando alguns episódios da história recente da humanidade, assinale a alternativa CORRETA: 142 a) ( ) A monarquia absolutista é dotada de extremo liberalismo, em que a figura do monarca se torna a autoridade absoluta e extrema. b) ( ) A Revolução Francesa foi a mais conhecida movimentação antiabsolutista da história. c) ( ) A passagem de um regime para outro se dá exclusivamente pela Proclamação da República e consequente destituição do monarca. d) ( ) A primeira monarquiaabsolutista data de 1688 e é marcada pela chamada Revolução Gloriosa na Inglaterra. 4 Elabore um texto descrevendo as eventuais “sombras” da monarquia ainda presentes em nosso contexto. 143 TÓPICO 2 REPÚBLICA: PODER COMO FONTE E PRODUTO DE DEMOCRACIA, LIBERDADE E CIDADANIA UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO A República não precisa de fazer-se terrível, mas de ser amável; não deve perseguir, mas conciliar; não carece de vingar-se, mas de esquecer; não tem que se coser na pele das antigas reações, mas que alargar e consolidar a liberdade. Rui Barbosa A oportuna frase do ilustre e múltiplo Rui Barbosa serve para que você perceba que, quando se fala de república, se está mencionando um regime que se apresenta não apenas como uma forma alternativa a um regime anterior, no caso brasileiro, ao monárquico. Trata-se de um conceito que tem como propósito inovar na forma de dar destino à sociedade. O regime monárquico mais antigo dos regimes políticos conhecidos, e ainda praticado atualmente, é centralizador e voltado a interesses raramente coletivos. Como você viu no Tópico 1 desta unidade, a monarquia ainda não está completamente superada. Ainda restam sombras que se traduzem em fatos que ainda rondam nosso cotidiano. Ao contrário do que propõe o respeitado autor baiano, a república ainda parece não ter viradas definitivamente as páginas obscuras de outros tempos. Estamos falando do exemplo brasileiro, que será constantemente citado, pois é o que nos atinge e certamente o que conhecemos melhor. Entretanto, este tópico não se aterá a uma discussão local ou restrita a um contexto histórico apenas. Vamos definir o sentido de república, apontar discussões importantes com autores como Norberto Bobbio e Robert Dahl, acera de conceitos que tangenciam o de república. Não se pode falar de república, que você tenha em mente os de território, soberania e povo, já estudados na unidade anterior, além de aprofundar outros como liberdade, democracia e cidadania. Apesar de haver uma franca evolução no conceito e na forma de aplicar o regime republicano aos diversos estados, não é possível dizer que este é um conceito superado. Ao contrário, parece ter se consolidado, e por mais que se possa tecer críticas sobre ele, ainda não houve outro regime mais eficiente e eficaz, o que não significa que futuramente não haverá. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 144 No horizonte teórico atual, você perceberá que o regime republicano, apesar de conservar sua essência, passa por constantes nuances que o tornam dinâmico e muito particular em cada Estado. O propósito desta unidade é que você compreenda o conceito e a dinamicidade do regime republicano e possa emitir suas próprias conclusões. Este tópico tem a pretensão de auxiliar você a compreender o sentido da palavra e o significado do regime republicano, tornando-o um leitor mais crítico do mundo que o cerca. Boa leitura e sucesso nesta etapa de estudos! 2 HISTÓRIA E ORIGEM DO REGIME REPUBLICANO Assim como em relação à monarquia é fundamental que se situe o conceito de regime republicano no tempo e na percepção de diferentes visões. A origem do termo não é recente e também não é única, assim como você pode ver em relação ao conceito de monarquia. O professor Celso Lafer assim se manifesta sobre isso: O termo república tem mais de um significado. No seu sentido mais amplo, denota comunidade política organizada. Tem como correspondente, em grego, politeia – origem da palavra inglesa polity; também vertida em latim por cívitas, que, em inglês, Hobbes traduziu por commonwealth. Na terminologia das línguas neolatinas, corresponde, grosso modo, ao atual conceito de Estado, de uso corrente a partir de Maquiavel que, semanticamente, transformou a situação – o status (de onde provém a palavra estado) rei publicae, em condição de uma comunidade política, assinalada pelos requisitos da existência de um povo, de um governo e de um território (LAFER, 1989, p. 214, grifo do original). Essa pluralidade de termos que sustentam a lógica do conceito e do próprio regime republicano pode ser sintetizada pelo termo latim, res publica, que se traduz literalmente como bem público. Assim, quando se utiliza o termo república, faz-se referência direta ao que é público, comum e que mantém relação direta com o conceito de Estado. Conceito este, conforme visto da Unidade 1, construído de forma diversa em diferentes contextos. IMPORTANTE TÓPICO 2 | REPÚBLICA: PODER COMO FONTE E PRODUTO DE DEMOCRACIA, LIBERDADE 145 Conforme aponta Luiz Carlos Bresser-Pereira, a república se consolidou por meio de vários episódios históricos e pela participação de muitos líderes e autores em diferentes partes do mundo. Os ideais republicanos e humanistas remontam às repúblicas grega e romana. Esta não é a ocasião para uma pesquisa sobre republicanismo. O humanismo cívico ou os valores cívicos republicanos surgiram em Roma, com Cícero; reapareceram nas repúblicas do Norte da Itália do quatrocento, com Bruni; tiveram sua primeira afirmação ‘moderna’ com Maquiavel; chegaram à França com Montesquieu, à Inglaterra com Harrington, e aos Estados Unidos com Madison (BRESSER- PEREIRA, 2004, p. 135). Em síntese, com o professor Bresser-Pereira você pôde notar que a República é uma criação notadamente ocidental e europeia, não havendo registros ou evidências de que tenha sido pensada por povos anteriores aos exploradores europeus em outros continentes. Aliás, surgiram nesses continentes quando as colônias se tornaram independentes, como foi o caso do Brasil. Nesse início de discussão, fica evidente que estamos diante de uma grande inovação que não se dá de forma espontânea. Imagine uma população governada sob um regime autoritário e centralizador, como é a monarquia, por exemplo, de uma hora para outra decidindo tomar em suas mãos o poder de decidir. Não seria possível, não é mesmo? A consolidação da república como sendo essa inovação, novidade, se dá de forma gradual e exige, por parte da população, uma preparação efetiva para quando dispor do poder ter condições de exercê-lo plenamente. Por isso é fundamental lembrar o que afirmou Rui Barbosa em sua campanha presidencial em 1910, ao falar da necessidade de uma instrução pública para todos na recém- fundada república brasileira: “A instrução do povo, ao mesmo tempo que o civiliza e o melhora, tem especialmente em mira habilitá-lo a se governar a si mesmo, nomeando periodicamente, no município, no Estado, na União, o chefe do Poder Executivo e a legislatura” (BARBOSA, 1960, p. 365). Citando o caso brasileiro (Figura 11), conforme mencionamos na Unidade 1 deste estudo, a Proclamação da República se deu muito mais por conveniência da classe econômica (e política) dominante do que pelo anseio popular. Rui Barbosa certamente embutiu em suas palavras a necessidade de o povo compreender a necessidade de governar a si mesmo, o que se espera num regime republicano. Portanto, o regime republicano de governo não é apenas a consolidação de um modelo, mas principalmente a sua compreensão. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 146 FIGURA 11 – HOMENAGEM DA REVISTA ILUSTRADA À PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA BRASILEIRA FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/71/Republica_no_brasil.jpg>. Acesso em: 9 set. 2019. 3 DEMOCRACIA, LIBERDADE E CIDADANIA: ALICERCES DO REGIME REPUBLICANO O regime republicano inova em muitos aspectos, porém o principal é a participação popular. Essa participação, por sua vez, vem sendo aprimorada, e em cada Estado há uma forma específica para acontecer. Você pode perceber, como membro de uma sociedade republicana, que a sua participação na vida política de nosso país é condicionada a alguns valores fundamentais. Três deles são indispensáveis: democracia, liberdade e cidadania. Vamos analisar os três, e para efeito didático vamos proceder à análise de cada um desses valores de formaseparada, porém, na prática, os três conceitos são indissociáveis, a ausência ou comprometimento de um deles ameaça ou inviabiliza os demais e o próprio regime republicano. Iniciamos com uma análise de democracia. TÓPICO 2 | REPÚBLICA: PODER COMO FONTE E PRODUTO DE DEMOCRACIA, LIBERDADE 147 Você sabe o que é realmente democracia? Existe apenas uma democracia? Essas são perguntas pertinentes para você compreender a importância para a consolidação de um regime de governo como o republicano, bem como a sua condução (administração, gestão). Antes de tudo, nunca é demais considerar que você já deve ter refletido sobre o sentido da palavra democracia, até porque você a usa constantemente em seu cotidiano. Como vivemos num tempo e em cenários em que todos se sentem no direito de participar das decisões, e de fato tem esse direito, é muito comum a necessidade de se democratizar os diferentes espaços e tempos humanos. Trata-se de um valor presente em diferentes relações, políticas, laborais e até familiares. Sobre isso, Dahl (2009, p. 19) aponta “que a democracia possa ser inventada e reinventada quando existirem condições adequadas em diferentes épocas ou lugares”. Em cada um desses espaços, assim como em tantos outros é preciso construir uma democracia que tenha uma matriz comum, mas que se adapte a cada um deles. Assim foi ao longo da história, desde quando surgiu na Grécia. Não será possível, neste breve itinerário de aprendizagem, abordar cada espaço em que a democracia se manifesta separadamente. Por isso trataremos de algumas modalidades essenciais ao regime republicano de governo, para que a essência deste (coisa pública) seja respeitada e consolidada. Tendo como motivação as questões lançadas anteriormente, e considerando a democracia uma prática essencial para que um regime que reconheça o público (coletivo, universal) como sua essência, não há como pensá-la longe da ética. Por essa razão é preciso falar em democracia ética e participativa. IMPORTANTE UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 148 FIGURA 12 – MODELO ILUSTRATIVO DE DEMOCRACIA PARTICIPATIVA FONTE: <http://m.sabedoriapolitica.com.br/products/a- democracia-participativa-como-um-novo-modelo-de-contrato-social/>. Acesso em: 9 set. 2019. Para concretizá-la é preciso atentar para o que afirma Bobbio (2009, p. 22), que assevera que “por regime democrático entende-se, primariamente, “um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados”. Assim, uma democracia não é restritiva, excludente ou centralizadora. Ao contrário, a democracia de que falamos é um método de tomada de decisões em que a coletividade horizontalmente manifesta suas opiniões e decide. A verticalidade é autoritária! Por ser inclusiva, abrangente e descentralizadora, a democracia é indispensável ao regime republicano. Qualquer prática diferente disso, mesmo nas democracias representativas, dá margem a formas de governo pouco desejáveis como o totalitarismo e o fascismo que, em última instância, representam o retorno à barbárie. Essa dimensão ética da democracia abriu margem para muitas interpretações e entendimentos divergentes. O inglês Jeremy Bentham e o escocês James Mill perceberam que os pressupostos de economia clássica e de uma sociedade capitalista de mercado eram muito conflitantes, em que o chamado bem comum, já abordado na Unidade 1, esbarrava na ideia de homem utilitarista. Percebeu-se que o fato de a sociedade ser formada por indivíduos dotados de interesses próprios tinha muitas dificuldades de manter-se unida em torno de um propósito único. De acordo com Iserhard (1995), surge a concepção de Democracia Protetora, em que Bentham e Mill adotam a ideia de que o único critério defendido era o da maior felicidade mesmo que para um número reduzido de pessoas, que segundo seus méritos, procura maximizar sua riqueza infinitamente adquirindo poder sobre os outros. TÓPICO 2 | REPÚBLICA: PODER COMO FONTE E PRODUTO DE DEMOCRACIA, LIBERDADE 149 Trata-se da proteção do indivíduo e de seus interesses sobre o interesse coletivo. É uma forma de legitimar a propriedade privada num universo em que tudo caminhava para a exclusividade do bem comum. IMPORTANTE De outra forma, você pode compreender a democracia protetora como a que oferece proteção aos cidadãos frente a alguns governos, que eventualmente por força de um regime democrático se oponham à própria democracia. O próprio Bentham (1979) afirma que regimes que não seguem rigorosamente os ditames democráticos, são opressores. Ele, inclusive, considera que essa proteção é fundamental para garantir a própria democracia, e no caso de nossa discussão, a própria república. Um autor importante para a discussão das modalidades de democracia é o filósofo canadense Crawford Brough Macpherson. Segundo ele, em meados do século XIX, os liberais, até então defensores da chamada Democracia Protetora, passaram a questioná-la. De acordo com esse estudioso, os liberais perceberam duas mudanças drásticas, que tinham como alvo a classe trabalhadora, que justificaria a proposição de um novo modelo de democracia. 1. a classe trabalhadora – que Bentham e James Mill não consideravam perigosa – começava a parecer perigosa à propriedade; e 2. as condições da classe trabalhadora se tornavam tão ostensivamente desumanas que os liberais mais sensíveis nem a podiam aceitar como moralmente defensável ou economicamente inevitável (MACPHERSON, 1978, p. 49). Nota-se que a democracia, usada como instrumento de proteção de sujeitos, a tornou tirana, lançando uma significativa parcela de pessoas a condições absolutamente deploráveis. Isso seria uma tremenda contradição. Provavelmente, esses liberais devem também ter se perguntado se existe apenas uma única democracia, ou se aquilo que testemunhavam era de fato uma democracia. Macpherson (1978), em sua obra A democracia liberal estabelece o conceito de democracia desenvolvimentista. O modelo desenvolvimentista de democracia parte necessariamente do conflito descrito por Bentham e Mill e outros liberais. Esse conflito nascia do fato de que cada sujeito se sentia livre e legitimado para lutar por seus interesses (bens) no conjunto da sociedade capitalista, sem, no entanto, reconhecer os direitos da própria sociedade. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 150 A democracia desenvolvimentista diferencia-se da democracia protetora por ter uma natureza ética, que conforme vimos, impõe à democracia o seu caráter coletivo e participativo. Uma participação não apenas no momento decisório, mas também nas consequências dessas decisões. Além disso, a democracia desenvolvimentista tem essa denominação por defender a ideia de que deve haver um desenvolvimento de todo o coletivo. IMPORTANTE A democracia desenvolvimentista tem em John Stuart Mill, filho de James Mill, com sua obra Considerações sobre o governo representativo (1981), seu mais importante mentor e teórico. De acordo com Mill (1981, p. 19), “o mais importante mérito que pode possuir uma forma de governo é o de promover a virtude e a inteligência do próprio povo”. Nota-se que, conforme descrevemos no Unidade 1, o conceito de povo nasce com o de democracia. Portanto, não há como imaginar um regime democrático (e republicano) que não inclua o povo como seu maior interesse. Em sua obra, o autor, por vezes, destaca que um governo democrático (republicano) deve ser avaliado pela qualidade com que trata seus governados, seja em grupos ou de forma individual (MILL, 1981). Nesse sentido, ao se reportar à democracia, Mill (1981, p. 148) atribui a ela o caminho mais seguro para uma “educação pública dos cidadãos”. Trata-se de uma aprendizagem constante no que diz respeito à participação popular nos processos decisórios e no próprio processo de administrar o Estado, algo típico dosregimes republicanos de governo. Graças a isso estabelece-se uma verdadeira formação política para que se possa compreender o melhor caminho para desenvolver o que chamamos de bem comum. O entendimento dessas diferentes formas de democracia (ética, protetiva e desenvolvimentista) é o momento de perguntar: Como conduzir um processo de tomada de decisões para que possa garantir seu caráter democrático? Afinal, num regime de governo republicano as decisões nunca serão monocráticas e devem ser orientadas pelo espírito de participação coletiva. Ao contrário do que muitos possam imaginar, uma democracia não é um regime em que todos fazem o que querem e da forma como querem. Ao contrário, num regime democrático e essencialmente republicano há regras construídas e discutidas coletivamente e que lhe dão funcionalidade. Neste, é fundamental compreender o que o professor Norberto Bobbio esclarece: TÓPICO 2 | REPÚBLICA: PODER COMO FONTE E PRODUTO DE DEMOCRACIA, LIBERDADE 151 Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos. Todo grupo social está obrigado a tomar decisões vinculatórias para todos os seus membros com o objetivo de prover a própria sobrevivência, tanto interna como externamente (BOBBIO, 2009, p. 30). Como você viu na Unidade 1, num regime democrático (republicano) elege-se o poder legislativo, para que represente a população para em seu nome estabelecer as regras (leis) que determinarão como as decisões devem ser tomadas pelo poder executivo, igualmente eleito, independentemente se na forma presidencialista ou parlamentarista. Veja que o parlamento é a expressão mais evidente do que chamamos de democracia representativa, ou seja, um reduzido número de representantes será a voz de um grande contingente de representados. O vereador, o deputado (estadual ou federal) e o senador que você elege é esse representante, que jamais deveria dar as costas ao seu representado, pois sua função é agir em seu nome. A democracia representativa só existe se houver democracia direta, ou seja, quando toda a sociedade elege diretamente o seu representante. ATENCAO Bobbio (2009, p. 65) afirma que “democracia representativa e democracia direta não são dois sistemas alternativos (no sentido de que onde exista uma não pode existir a outra), mas são dois sistemas que se podem integrar reciprocamente”. FIGURA 13 – MOMENTO DO VOTO FONTE: <http://twixar.me/p27T>. Acesso em: 9. set. 2019. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 152 Mas haveria outra forma de escolher os representantes do povo sem que o povo participe? Sim! Um exemplo histórico e conhecido foi a criação dos chamados cargos biônicos, em membros do parlamento e do executivo. Durante o regime militar, prefeitos, governadores e senadores foram indicados pelo regime sem passar pelo crivo das urnas. A figura do Regime Militar evidencia uma agressão absoluta à democracia, caracterizando ditadura. Por isso, vale frisar que “um Estado representativo é um Estado no qual as principais deliberações políticas são tomadas por representantes eleitos, importando pouco se os órgãos de decisão são o parlamento, o presidente da república, o parlamento mais os conselhos regionais etc.” (BOBBIO, 2009, p. 56-57). A república, como regime adotado para gerir o Estado, não pode prescindir ou renunciar a esse princípio. Embora pareça de fácil compreensão é preciso que isso seja insistentemente lembrado, para que em nome de se combater eventuais equívocos do regime não abra precedentes para um regime totalitário ou ditatorial. Para o aperfeiçoamento da democracia e da própria república, o caminho é mais democracia e mais república. E a democracia direta? Em que momento ela será possível? É evidente que seria impossível que todos os cidadãos do país participassem da tomada de decisões o tempo todo. Primeiro, porque os cidadãos não teriam tempo disponível para isso e, segundo, porque mesmo que tivessem seria impossível reunir todos o tempo todo, mesmo com as modernas tecnologias de comunicação. Mas há contextos menores em que a coletividade pode reunir-se para tomada de decisões pontuais, como é caso das reuniões para convenções coletivas de sindicatos, reuniões de associações, condomínios e tantas outras entidades para deliberar sobre assuntos de interesse daquele grupo. Em larga escala, como já dissemos, ocorrem eleições diretas para a escolha de representantes para os poderes legislativo e executivo, além de plebiscitos, referendos, audiências púbicas em que toda a coletividade é chamada a decidir. IMPORTANTE As contribuições do professor italiano, Norberto Bobbio, são muito profundas quando se pretende discutir democracia. Ele não é o único autor a tratar do tema, mas sua forma didática e contextualizada de narrar seu entendimento sobre o assunto o tornam um autor muito adequado aos nossos estudos. Por isso, para finalizar a discussão sobre democracia nesse texto, apresentamos a síntese das regras identificadas por Bobbio (1990) para que um regime seja considerado democrático. É evidente que você pode e deve buscar outras fontes para confirmar ou discordar dessa relação. TÓPICO 2 | REPÚBLICA: PODER COMO FONTE E PRODUTO DE DEMOCRACIA, LIBERDADE 153 O professor Bovero (2010, s.p.), da universidade de Turim, analisando o pensamento de Norberto Bobbio em sua crônica Observar a democracia com as lentes de Bobbio, identificou as seguintes regras: 1 – Todos os cidadãos que alcançaram a maioridade, sem distinção de raça, religião, condição econômica e sexo, devem desfrutar dos direitos políticos, ou seja, todos têm o direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a exprima por eles; 2 – O voto de todos os cidadãos deve ter o mesmo peso; 3 – Todas as pessoas que desfrutam de direitos políticos devem ser livres para poder votar de acordo com sua própria opinião, formada com a maior liberdade possível por meio de uma concorrência livre entre grupos políticos organizados competindo entre si; 4 – Devem ser livres também no sentido de ter condição de escolher entre soluções diferentes, ou seja, entre partidos que têm programas diferentes e alternativos; 5 – Seja por eleições, seja por decisão coletiva, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de considerar eleito o candidato ou considerar válida a decisão obtida pelo maior número de votos; 6 – Nenhuma decisão tomada pela maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições. Mais do que regras, esses são os fundamentos para que uma democracia se instale e sobreviva. Certamente encontrará terreno fértil num regime republicano, e dificilmente num monárquico de caráter absoluto. Esses fundamentos, no entanto, não teriam condições de se estabelecer caso não houvesse a garantia da liberdade para que possam efetivamente colocá-los em prática. Afinal, para que a democracia seja garantida é preciso liberdade, ou para que a liberdade seja estabelecida é preciso democracia? Essa é certamente uma daquelas perguntas que poderão intrigar a quem se dedique aos estudos desses dois princípios fundamentais de um Estado republicano. Nessa sequência de estudos, vamos procurar responder a esta pergunta, considerando que ambas são “parceiras” recíprocas. Como vimos no Tópico 1 desta unidade, o regime monárquico é centralizador, e no caso do modelo absolutista, avesso à liberdade de participação popular ou coletiva na tomada de decisões. Essa é uma das razões da queda de muito regimes com esse perfil e sua substituição pelo regime republicano ou pelo regime monárquico parlamentarista. Em ambos os casos se conta com a participaçãopopular, como descrevemos, visto que suas existências se pautam também nos princípios democráticos. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 154 Para que uma democracia se estabeleça é fundamental que os cidadãos tenham a liberdade de participar e tomar suas decisões. Note que ser livre numa sociedade democrática não é sinônimo de superioridade de alguém sobre outros, mas um determinado grau de possibilidade de participar da vida da coletividade, do processo decisório, digamos assim. IMPORTANTE A liberdade é também um direito fundamental, inscrito nas constituições da maioria dos países, e somada a outros direitos constitui o que chamamos de Estado Democrático de Direito, que de acordo com Bobbio (2004, p. 137), “estabelece que todos são livres e iguais na forma da lei”. Essa liberdade, quando assumida como valor que funda o regime democrático, implica não apenas o direito de ir, vir e permanecer, mas de propriedade, expressão, opinião, religião, orientação sexual e de associação. O Estado democrático também deve saber e reconhecer a necessidade de investir para que essas liberdades sejam preservadas, havendo custos para tal. Tratando da realidade dos Estados Unidos, Stephen Holmes e Caas Sunstein coadunam com esse princípio ao afirmarem que: As liberdades privadas têm custos públicos. Isso é verdade não apenas com relação aos direitos à Seguridade Social, Medicare [seguro-saúde] e auxílio-alimentação, mas também aos direitos à propriedade privada, à liberdade de expressão, à imunidade contra abusos policiais, à liberdade contratual, à liberdade de culto, e na verdade com relação a todo o conjunto de direitos característicos da tradição norte-americana (HOLMES; SUNSTEIN, 1999, p. 220). Você pode perceber que isso não se restringe à realidade norte-americana, mas ao contrário, se espraia sobre toda a nação que optar pelo caminho democrático. Mas é preciso que se diga que, em verdade, tem-se um investimento, dada a melhoria da qualidade de vidas das pessoas, que como vimos é um critério de avaliação do nível democrático de um Estado. Você percebeu que a liberdade é fonte inspiradora para outros valores e princípios fundamentais para a democracia e para consolidação do regime republicano? Um desses valores é a igualdade, já mencionada pelas palavras de Norberto Bobbio. A liberdade, como consequência de sua consolidação, estabelece uma certa igualdade entre todos os cidadãos, permitindo que todos possam participar de forma equivalente. Noutra obra, Bobbio faz referência à relação entre democracia, liberdade e igualdade aprofundando sua reflexão: TÓPICO 2 | REPÚBLICA: PODER COMO FONTE E PRODUTO DE DEMOCRACIA, LIBERDADE 155 Desse modo o regime democrático é caracterizado não tanto pelas instituições de que se vale quanto pelos valores fundamentais que o inspiram e aos quais tende. As instituições são apenas meios para alcançar certos fins. Mas por que preferimos certos meios a outros? Por que, por exemplo, preferimos o sistema eletivo ao hereditário? Evidentemente, porque acreditamos que certos meios são mais aptos para alcançar o fim desejado. [...] O fim que nos move quando queremos um regime organizado democraticamente é, numa única palavra, a igualdade. Assim, podemos definir a democracia, não mais com relação aos meios, mas relativamente ao fim, como o regime que visa realizar, tanto quanto possível, a igualdade entre os homens (BOBBIO, 2010, p. 38). É notório que são três conceitos que se forjam mutuamente. É necessário adotar a democracia como fundamento do regime de governo; que se estabeleça a liberdade como instrumento de sua consolidação e busque a igualdade para dar sentido ao regime, no caso, o republicano. Noutra passagem de sua vasta obra, o pensador italiano trata dessa relação da seguinte forma: Ideias liberais e método democrático vieram gradualmente se combinando num modo tal que, se é verdade que os direitos de liberdade foram desde o início a condição necessária para a direta aplicação das regras do jogo democrático, é igualmente verdadeiro que, em seguida, o desenvolvimento da democracia se tornou o principal instrumento para a defesa dos direitos de liberdade (BOBBIO, 1990, p. 44). Como estamos tratando de uma discussão do conceito de liberdade numa perspectiva dinâmica e histórica, assim como ocorreu com os demais é importante destacar que a liberdade de que falamos não é sinônimo de liberalismo, que é um termo igualmente muito conhecido e até venerado. Sobre as diferenças entre republicanismo e liberalismo, Bresser-Pereira (2004, p. 135) afirma que “o republicanismo enfatiza os deveres e a participação política dos cidadãos, e se baseia nas virtudes cívicas exigidas dos cidadãos, enquanto o liberalismo salienta os direitos e se baseia nas liberdades negativas dos cidadãos motivados por interesse próprio”. Não nos aprofundaremos na discussão do termo liberalismo, visto que já foi e será frequentemente abordado ao longo de praticamente todas as unidades deste livro. Apenas o citamos para lembrar que é um conceito distinto do de liberdade, por exemplo. Agora é hora de tratar de um outro conceito fundamental: cidadania. Por mais bem estruturado que seja o regime que adote a democracia como princípio e lute pela liberdade das pessoas e dos processos decisórios, pouco ou nada acontecerá se não houver, em cada pessoa, a certeza de sentir-se cidadão. UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 156 Mas afinal, o que é cidadania? Em que é possível relacioná-la com a evolução do conceito de democracia num regime republicano? Na Unidade 1 deste livro didático, o termo cidadania foi amplamente abordado em contextos muito diversos, especialmente quando se procurou tratar da origem do Estado e sua história e sobre o entendimento de alguns pensadores clássicos, merecendo destaque: Jean-Jacques Rousseau. Agora que estamos tratando da cidadania no contexto do Regime Republicano de governo, abordaremos o tema num contexto em que se propõe um aprofundamento do conceito de democracia. Se tomarmos a cidadania como princípio fundamental da democracia, Bobbio (2001, p. 107) lembra que “a ampliação dos princípios democráticos serviria como um meio para se chegar ao socialismo”. Socialismo aqui é compreendido como um sistema em que todos tenham acesso ao que realmente necessitam e contribuam com o que têm de melhor. Sobre o socialismo trataremos no Tópico 4 deste material. FIGURA 14 – CONCEITO FUNDAMENTAL DE POLIARQUIA FONTE: <https://www.dicio.com.br/poliarquia/>. Acesso em: 9 set. 2019. Para falar da cidadania, na perspectiva democrática na edificação e preservação do Estado Democrático de Direito sobre Regime Republicano, nos valeremos do pensador norte-americano Robert Alan Dahl e do conceito de Poliarquia (Figura 14). Faremos isso em razão de desejarmos que você perceba que o conceito de democracia está em franca evolução, e com ele a forma de ser do regime republicano. Por isso, discorreremos brevemente sobre esse conceito para que você possa compreender a forma de relacionar a cidadania com a democracia, conforme demandam os tempos atuais. Você deve ter notado que é impossível dissociar o conceito de cidadania do de democracia e estes do conceito de regime republicando de governo. Além disso, você também deve ter notado que esses termos também estão em evolução. TÓPICO 2 | REPÚBLICA: PODER COMO FONTE E PRODUTO DE DEMOCRACIA, LIBERDADE 157 Além disso, se observamos, partidos e até governos totalitários utilizam o discurso democrático como forma de confundir a opinião pública. Por isso é fundamental que ele seja revisto e aprimorado. Robert Dahl (1997), cientista político norte-americano e professor da Universidade de Yale, ao se dedicar a essa tarefa criou o conceito de poliarquia. Esse conceito relaciona-se ao de cidadania, pois segundo Dahl (1997, p. 31), “As poliarquias podem ser pensadas então como regimesrelativamente (mas incompletamente) democratizados, ou, em outros termos, as poliarquias são regimes que foram substancialmente popularizados e liberalizados, isto é, fortemente inclusivos e amplamente abertos à contestação pública. IMPORTANTE Por isso apontamos, neste breve escrito sobre cidadania como alicerce do regime Republicano, a discussão sobre esse novo termo (Poliarquia), pois entende-se que a cidadania não se restringe ao direito de votar e ser votado, mas de sentir-se pertencente ao processo decisório, podendo contestar publicamente aquilo que não lhe garante uma vida digna. Num contexto poliárquico não há minorias e maiorias no sentido de dominantes e dominadas, mas diferentes formas de pensar, participando ativamente do processo decisório. Portanto, o movimento teórico do conceito de cidadania é que produzirá um movimento de democracia. Como vimos anteriormente, houve diferentes formas de democracia, o que foi possível graças a diferentes atitudes dos cidadãos frente aos desafios que se apresentavam. Como veremos, ainda há profundos resquícios autoritários na democracia que sustentam o regime republicano. Abreviaremos a discussão, pois a temática da cidadania já foi amplamente apresentada em partes anteriores do texto deste livro didático e a poliarquia será novamente utilizada para discutir as sobras e as desvirtuações do regime republicano. Você verá a seguir que a poliarquia é uma forma de garantir não somente a sobrevivência da democracia, mas o seu efetivo aprimoramento. 4 AS “SOMBRAS” DAS VELHAS PRÁTICAS E A DESVIRTUAÇÃO DO REGIME REPUBLICANO Como acabamos de discorrer, percebe-se que ao abordarmos o regime republicano é notório o seu movimento de evolução. Ao contrário das monarquias, que tendem a manter um certo estilo ao longo de séculos, a república busca reinventar-se. Você também pode perceber que a república, por ser mais recente, UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 158 geralmente é fruto de rupturas de regimes autoritários ou monárquicos, como foi o caso do Brasil. Nota-se, por isso, duas faces do regime republicano. Se por um lado há uma busca pelo novo e o aprimorando a si próprio, como é o caso da poliarquia, por outro, há resquícios de regimes anteriores (autoritários) que insistem em permanecer e voltar a se manifestar. Na medida em que o povo (cidadãos) percebeu e tomou para si o direito de inserir-se nos debates, contestar por argumentos e exigir respeito à pluralidade de ideias, ainda se percebe problemas como: • Limitações à liberdade de manifestação de pensamento, fortalecendo-se certa hierarquia em que parece que o pensamento de alguns vale mais do que de outros. São frequentes os fatos que se assemelham à censura, especialmente nas artes. • Restrições, mesmo que subliminares, à liberdade de voto, especialmente com práticas midiáticas que distorcem a realidade, induzindo a decisões equivocadas. O uso de Fake News para induzir o eleitorado a escolhas com base em informações inverídicas. • Igualdade de acesso aos direitos bastante limitada a condições econômicas e sociais. Há casos em que o próprio judiciário se torna mais ou menos célere de acordo com isso. • Uma tendência, após a tomada de decisão ou de realização de processo eleitoral, de imposição a certo silêncio aos vencidos. Exemplos disso são aqueles governantes que governam apenas para os seus. Mas como superar tudo isso? Ao que parece, passa-se por um desprendimento e de uma vontade política individual e coletiva de fazer da autonomia um instrumento de efetiva intervenção pela participação popular. Nesse sentido, Dahl (2009, p. 62) afirma: Tome-se a participação efetiva: para corresponder a essa norma, seus cidadãos não teriam necessariamente de possuir um direito de participar e um direito de expressar suas ideias sobre questões políticas, de ouvir o que os outros cidadãos têm a dizer, de discutir questões políticas com outros cidadãos? Veja o que requer o critério da igualdade de voto: os cidadãos devem ter o direito de votar e de ter seus votos contados com justiça. O mesmo acontece com as outras normas democráticas: é evidente que os cidadãos devem ter um direito de investigar as opções viáveis, um direito de participar na decisão de como e o que deve entrar no planejamento, e assim por diante. Nesse sentido nasce um sentimento de pertencimento, uma vez que o chamado à participação não é apenas para fins de referendo, mas de construção de um projeto de caminho coletivo em que todos constroem o caminho, caminhando, como profetizou o poeta espanhol Antônio Machado. TÓPICO 2 | REPÚBLICA: PODER COMO FONTE E PRODUTO DE DEMOCRACIA, LIBERDADE 159 Entretanto, é evidente que esse caminhar coletivo entre os caminhantes gera uma série de discordâncias, muito próprias de quem, pelo uso de sua liberdade e autonomia, construiu sua própria forma de caminhar. Essa divergência é, pois, o que garante que as diferentes formas de caminhar façam com que todos possam chegar juntos ao mesmo destino. Esta é outra distorção muito marcante no regime republicano. Há uma tendência de se impor aos vencedores o destino prometido e aos vencidos a espera pelo caminho. IMPORTANTE Parece que não se concebe o tal destino como o resultado de um projeto coletivo. Sobre isso, Dahl (1997, p. 151) assevera que “a estratégia importante num conflito é buscar soluções mutuamente benéficas. Longe de ser uma traição ao princípio, o acordo é uma coisa essencialmente boa, e o espírito de acordo, vital”. Mas você certamente já deve ter visto que certos acordos não são exatamente benéficos para todas as partes. Em nível nacional, os acordos de natureza política sempre acendem um sinal de alerta, visto que em sua maioria os beneficiados são poucos. Geralmente, os acordos pautam-se em interesses por vezes inconfessáveis, em detrimento das causas que mobilizam e favorecem o grande coletivo. No caso brasileiro, os acordos em tempos republicanos parecem reproduzir o estilo já demarcado no período monárquico. Decisões são tomadas pelos representantes populares sem que se ouçam os representados. Ainda sobre a presença do conflito nas relações políticas, Dahl (2012, p. 345) colaciona que “o conflito torna-se um aspecto inevitável da vida política e o pensamento e as práticas políticas tendem a aceitar o conflito, não como uma aberração, mas como uma característica normal da política”. O que o autor propõe é uma necessária compreensão de que a política é ciência e não doutrina, e que o conflito, ao contrário dos dogmas, inspira à inovação e à evolução de regimes, como é o caso do Republicano. Ocorre que, como dissemos, os regimes republicanos ainda se parecem muito com os regimes autoritários, inclusive os monárquicos. Apesar de haver executivos e legisladores eleitos, estes parecem literalmente dar as costas aos representados e vinculam suas decisões a interesses econômicos, que não por coincidência, costumam financiar campanhas e mobilizar forças políticas em seu favor. Nesse aspecto, o jurista Norberto Bobbio assevera que: UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 160 A democracia moderna, nascida como democracia representativa em contraposição à democracia dos antigos, deveria ser caracterizada pela representação política, isto é, por uma forma de representação na qual o representante, sendo chamado a perseguir os interesses da nação, não pode estar sujeito a um mandato vinculado (BOBBIO, 2009, p. 36). O vínculo lembra as velhas oligarquias que por séculos dominaram os destinos de Estados, reinos, impérios e colônias. Bobbio (2009) chega a considerar a evidência de uma verdadeira decadência da democracia e dos próprios Estados, quando afirma que: Se a democracia não consegue derrotar por completo o poder oligárquico, é ainda menos capaz de ocupar todos os espaços nos quais se exerce um poder que toma decisões vinculatórias para um inteiro grupo social. Nesteponto, a distinção que entra em jogo não é mais aquela entre poder de poucos e de muitos, mas aquela entre poder ascendente e poder descendente (BOBBIO, 2009, p. 40). Como você pôde perceber, a superação de velhos modelos parece não ser tarefa das mais fáceis. Ao contrário, exige um profundo exercício de revisão de conceitos e práticas. Numa República com uma democracia com perfil poliárquico, na opinião de Dahl (2012) são necessários sete perfis descritos na obra A Democracia e seus críticos: 1) Funcionários eleitos: os funcionários eleitos controlam as decisões governamentais. 2) Eleições livres e justas: os funcionários eleitos são escolhidos em eleições justas sem imposição de vontades. 3) Sufrágio inclusivo: todos têm o direito de votar. 4) Direito de concorrer a cargos eletivos: todos têm o direito de concorrer a cargos eletivos no governo, salvo em algumas exceções, como é o caso de algumas idades. 5) Liberdade de expressão: os cidadãos têm o direito de se expressar sua crítica ao governo. 6) Informação alternativa: os cidadãos têm o direito de acessar informações das fontes que julgar confiáveis. 7) Autonomia associativa: para alcançar seus vários direitos, pode associar-se da forma que lhe convier, obviamente sem subverter a lei. Desta forma, percebe-se que há algumas definições implícitas nesses perfis. Os governantes e legisladores são identificados como funcionários, ou seja, prestadores de um serviço, portanto, não devem obedecer a ninguém senão aos representados. Outro aspecto marcante é a liberdade de todos os cidadãos para participarem dos processos decisórios segundo critérios definidos em lei. Assim, o grande vínculo estabelecido num contexto republicando é esse: pessoas dispostas a prestar um serviço ao seu povo são escolhidas livremente por esse povo em conformidade com os interesses da coletividade. TÓPICO 2 | REPÚBLICA: PODER COMO FONTE E PRODUTO DE DEMOCRACIA, LIBERDADE 161 Nessa breve reflexão sobre o regime republicano é notório que ele ainda não se estabeleceu completamente do ponto de vista prático. Também é evidente que se trata de um conceito em evolução e que está associado a movimentos vindos de seu interior, por vezes fruto de suas próprias limitações. É notável também que os regimes políticos e o republicano não fogem à regra, têm uma profunda relação com a questão econômica. A escolha de governantes passa pela escolha entre diferentes modelos econômicos, especialmente os apontados por teóricos capitalistas e socialistas, como veremos nos próximos tópicos. Assista ao Vídeo 1 e conheça os princípios da república e sua aplicação concreta em nosso cotidiano: https://ciencia.ufsc.br/2018/11/11/ufsc-explica-republica-como-forma- de-governo/. Assista ao Vídeo 2 e analise a aplicação do termo república em nosso tempo: https:// veja.abril.com.br/videos/veja-sem-duvidas/por-que-alguns-paises-sao-chamados-de- republica/. A leitura do texto Brasil República, da professora Juliana Bezerra, lhe oferece uma descrição sucinta dos períodos da República brasileira, além de detalhes biográficos de nossos ex- presidentes por meio de links presentes no próprio texto. Acesse: https://www.todamateria. com.br/brasil-republica/. Após assistir aos vídeos e ler o texto indicados, construa uma linha do tempo do período republicano brasileiro identificando como o conceito de república foi efetivamente aplicado, ou seja, quando o Estado (poder) foi mais efetivamente pertencente ao povo. DICAS 162 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • O termo “república” vem do latim e significa “bem público”, o que é de todos. Historicamente falando, podemos dizer que a república é uma criação ocidental. A adoção de regimes republicanos se dá de maneira gradual, pois migra-se de sistemas autoritários para um regime essencialmente democrático. Por falar nisso, é fundamental que se saiba que o regime republicano tem como fundamentos: a democracia, a liberdade e a cidadania. • A democracia não é um conceito único, mas partindo-se de um conceito genérico (governo do povo, pelo povo) notam-se diferentes formas de aplicá-lo, com resultados muito particulares. Assim teremos a chamada democracia ética e participativa, em que se tem como princípio a liberdade de participação coletiva na tomada de decisões; a democracia protetora que visa proteger o indivíduo e seus interesses dos interesses coletivos; e a democracia desenvolvimentista que busca aliar interesses individuais e coletivos. Ainda sobre democracia é importante lembrar que John Stuart Mill (1981) afirma que um governo republicano e democrático deve ser avaliado pela qualidade com que trata seus governados. • Sobre a liberdade, no contexto da democracia é descrita como o direito de cada sujeito participar das tomadas de decisão. Cabe ao Estado Democrático de Direito, para assim ser reconhecido, assegurar a qualquer custo todas as liberdades, geralmente descritas na própria constituição do Estado. Você certamente notou que valores como igualdade e participação ativa nos processos decisórios são assegurados pela liberdade. A própria democracia depende muito da liberdade para efetivamente existir. • Num Estado Democrático, sustentado pela liberdade de participação, outro conceito fundamental é o de cidadania. Para analisar o conceito de cidadania é importante recordar o de Poliarquia, já abordado neste livro, que em linhas gerais significa “governo de muitos”. Esse termo, criado por Robert Dahl, sustenta a ideia de que a democracia precisa inovar no sentido de que as chamadas minorias podem e devem oferecer suas contribuições nos processos decisórios. Portanto, cidadão não é apenas aquele que vota ou é eleito. • Ainda restam práticas autoritárias vindas de regimes anteriores à república e que acabam limitando o alcance da própria democracia. Limites à liberdade de manifestação de pensamento, restrições à liberdade de voto, dificuldade de acesso a direitos fundamentais e, principalmente, a imposição de um certo silêncio aos vencidos representa barreiras reais e concretas à consolidação do modelo republicano na sua essência. 163 • Dahl (2012) sugere que para os conflitos serem resolvidos é preciso que haja negociações e acordos, no sentido de que todos se beneficiem delas. A superação de dificuldades por essa via não é uma traição a princípios ou valores, mas uma forma efetivamente prática de consolidar a república como um espaço de manifestação das múltiplas formas de pensar e gerir conflitos. 164 AUTOATIVIDADE 1 O conceito de república é muito diverso e aplica-se a diferentes contextos, sempre havendo a necessidade de respeitar as características históricas, sociais e econômicas de cada espaço. Sobre república, conceito, origem e história, classifique com V as afirmativas verdadeiras e com F as falsas: ( ) O regime republicano pode se sintetizado pelo termo do latim res publica, que se traduz literalmente como bem público. ( ) República é uma criação notadamente ocidental e europeia, havendo registros ou evidências de que foi pensada simultaneamente por povos anteriores aos exploradores europeus, especialmente na África e América. ( ) A frase de Rui Barbosa: “A instrução do povo, ao mesmo tempo que o civiliza e o melhora, tem especialmente em mira habilitá-lo a se governar a si mesmo” revela a importância da educação para a consolidação do regime republicano de governo. ( ) O conceito de República deve ser tomado de forma isolada para que não se contamine com o de Estado, visto que há uma tendência de se provocar essa confusão, quando em verdade esses conceitos são antagônicos e excludentes entre si. A sequência correta de classificação das alternativas é: a) ( ) V, F, F, V. b) ( ) V, F, V, F. c) ( ) V, F, F, F. d) ( ) F, F, V, F. 2 Sobre o conceito de democracia, fundamental para que se o entenda e se aplique o conceito de regime republicano, afirma-se: I- Como vivemos num tempo e em cenários emque todos se sentem no direito de participar das decisões, é muito comum a necessidade de se democratizar os diferentes espaços e tempos humanos. II- A democracia é um método de tomada de decisões em que a coletividade verticalmente manifesta suas opiniões e decide. III- A democracia desenvolvimentista diferencia-se da democracia protetora por ter uma natureza ética, que conforme vimos impõe à democracia o seu caráter coletivo e participativo. IV- Num regime democrático e essencialmente republicano há regras construídas e discutidas coletivamente e que lhe dão funcionalidade. 165 Sobre essas afirmações pode-se dizer que: a) ( ) Todas estão corretas. b) ( ) Apenas a afirmativa II está correta. c) ( ) Apenas as afirmativas I e III estão corretas. d) ( ) Apenas a afirmativa IV está correta. 3 Assim como a democracia, a liberdade e a cidadania são conceitos muito importantes no sentido de prover o regime republicano, tornando-o efetivo e garantindo que cumpra seu papel no Estado. Analisando as afirmativas a seguir, assinale aquela que é totalmente CORRETA: a) ( ) O Estado democrático também deve saber e reconhecer a necessidade de investir para que essas liberdades sejam preservadas, sem que haja custos para tal, uma vez que a liberdade, após conquistada, é de uso exclusivo do cidadão. b) ( ) A liberdade, como consequência de sua consolidação, estabelece uma certa diferenciação entre todos os cidadãos, permitindo que todos possam participar de forma particular do processo decisório. c) ( ) É necessário adotar a democracia como fundamento do regime de governo; que se estabeleça a liberdade como instrumento de luta e busque a diferenciação dos sujeitos para se definir quem é a maioria consolidada. d) ( ) Num contexto poliárquico não há minorias e maiorias no sentido de dominantes e dominadas, mas diferentes formas de pensar, participando ativamente do processo decisório. 4 Apesar do regime republicano ter sido adotado em diferentes partes do mundo e estar em frequente discussão para o seu aprimoramento, ainda há muitas sombras que remontam a regimes anteriores ou mesmo barreiras criadas pelo próprio regime. Assim, discorra sobre essas sombras e aponte caminhos para superá-las. 166 167 TÓPICO 3 O ESTADO E O CAPITALISMO: O ESTADO MÍNIMO E LIBERALISMO UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO O governo tem três funções principais. Deve providenciar a defesa militar da nação. Deve fazer cumprir contratos entre indivíduos. Deve proteger os cidadãos de crimes contra eles próprios ou seus bens. Milton Friedman Como você pôde ver ao longo do texto, os regimes políticos estão sempre muito associados a questões de ordem econômica. O Estado passa a existir quando se cria a agricultura, que demanda uma organização coletiva e todos os regimes de controle do Estado parecem preservar essa proximidade. Por esta razão, neste tópico analisaremos o modelo econômico capitalista, que é reconhecidamente um dos primeiros e mais organizados. Você perceberá que não se trata de uma invenção de alguém isoladamente ou que tenha surgido de forma independente de qualquer outro movimento. Ao contrário, trata-se de um movimento histórico que o produziu e que segue adaptando o regime às necessidades de seus beneficiários. Ao longo do texto, trataremos da temática do Estado mínimo, um conceito muito citado por quem considera que o Estado deve deixar o máximo de atribuições à iniciativa privada. Utiliza-se a problemática da corrupção para justificar isso como forma de pregar a redução do Estado, o que acaba deixando a população, especialmente a sua parcela mais frágil, à mercê dos interesses privados. É possível dizer que o capitalismo teve suas sementes lançadas no feudalismo e segue uma lógica pautada na necessidade de acumular, concentrar e centralizar, realizar e reproduzir o capital. Por vezes, o direito à posse da propriedade se sobrepõe ao direito à vida, por exemplo. Por outro lado, o capitalismo confunde-se com a nossa própria história, dominando e determinando os passos que ela dá. Certamente, você não se imagina no mundo sem estar incluído nessa lógica, visto que todos condicionamos nossa vida a ela. Trabalha-se para acumular e gastar riquezas, seja para alcançar ou manter um determinado status definido pelo próprio sistema capitalista. 168 UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO Ao mesmo tempo, trataremos do conceito de liberalismo, já mencionado em outros momentos deste texto, considerando que é incutida nas pessoas a ideia da competitividade como instrumento de conquistas. Em contrapartida há uma negação a outros valores, como a cooperação e a solidariedade. A competitividade, por sua vez, relaciona-se à meritocracia, concebendo a ideia de que o sucesso individual é fruto de empenho, e o fracasso, da falta dele. Aliás, como uma das forças motrizes do capitalismo, a meritocracia conta com o afã individualista que procura desvincular o sujeito da coletividade. Assim, o progresso e o bem-estar coletivo perdem importância e as pessoas sentem-se livres para lutar por si, mesmo que isso represente o comprometimento das lutas coletivas. Essas reflexões permearão o texto que você conhecerá a partir de agora! Partindo de algumas provocações, você é convidado a continuar construindo suas próprias opiniões. A caminhada segue... Bons estudos! 2 HISTÓRIA E ORIGEM DO CAPITALISMO Para conhecer algo com maior profundidade é importante saber sua origem. Com o capitalismo não poderia ser diferente, e é isso que vamos fazer a partir de agora, compreender como o capitalismo surgiu, se concretizou e chegou até nossos dias com força, dominando debates e processos decisórios. Essa história será contada de forma sucinta, pois o intuito é discutir as implicações desse modelo econômico nos processos de decisão e gestão do Estado atual. Assim, iniciamos dizendo que as primeiras sementes do modelo capitalista foram lançadas no período feudal, quando surgem as primeiras formas de pagamento em dinheiro da história. IMPORTANTE Relembrando o que estudamos na primeira unidade, o feudalismo surge com a queda do Império Romano no final do século V. O aumento do território e da própria população fez com que Roma perdesse o controle da situação e o império ruiu. Muitas foram as tentativas de acomodar a população, visto que eram comuns atitudes de violência, especialmente quando o Cristianismo chega a Roma. Muitos cristãos são perseguidos e mortos pelo fato de que o centro da doutrina Cristã é que todos sejam tratados de forma igualitária, o que depunha contra a prática da escravidão. TÓPICO 3 | O ESTADO E O CAPITALISMO: O ESTADO MÍNIMO E LIBERALISMO 169 É nesse momento que se pode perceber a decadência do Império Romano, o que abre espaço para o surgimento do feudalismo, já descrito na Unidade 1 deste livro didático. Durante mais de um milênio prevaleceram as relações servis e imobilidade social e econômica (quem nascesse servo, morreria servo, e quem nascesse senhor, morreria senhor). Ocorre que, com o passar do tempo, muitos servos não concordando com isso iniciam a ruptura dessa estrutura, especialmente através do comércio e das transações monetárias. Surge o capitalismo, naquela que seria sua versão mercantil. O movimento da produção (mercadorias) faz com que se mobilize não apenas o bem material, mas também a força de trabalho que passa a ser vista como mercadoria, ou como um agregado ao produto final. Nesse sentido, Maria Lúcia Martinelli esclarece que: Com o desenvolvimento do capitalismo mercantil, sobretudo a partir da primeira metade do século XV, as relações de produção no campo são invadidas pela variável comercial, as trocas se tornam cada vez mais complexas, pois passam a ter como objetivo a acumulação da riqueza e o lucro. A separação entre os camponeses e a terra, entre o produtor e os meios de produção, vai infiltrando-se sorrateiramente, fazendo-se acompanhar o seu habitual corolário,divisão social do trabalho. Iniciando-se como a primeira ruptura entre a fiação e a tecelagem. [...] Aquela economia natural da sociedade medieval entra em compasso de descaracterização progressiva, sendo substituída por novas formas de troca, que acentuam a separação entre o proprietário e o produtor (MARTINELLI, 2007, p. 31). Assim nascem relações de negociação do trabalho, o que culmina com pessoas “vendendo” seu trabalho e recebendo menos daquilo que efetivamente produzem, gerando a chamada “mais-valia”, conceito que debateremos no próximo tópico. Em razão dessas novas relações surgem as pequenas cidades, também chamadas de “burgos”, habitadas por pessoas que tinham rompido a lógica servil do sistema feudal. Essas pessoas conseguiram sua liberdade comprando-a, fugindo, fazendo comercialização de seus próprios produtos e por isso também acumularam certo capital, estabelecendo uma nova forma de relação interpessoal. Tratava-se de uma vida diferente da que existia nos feudos. A burguesia sobrevivia por meio de negociações, acumulando ainda mais riquezas, formando uma classe dominante nos campos político e econômico. IMPORTANTE 170 UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO A riqueza acumulada pela burguesia provinha principalmente da comercialização da terra e a da força de trabalho livre. A burguesia, como classe precursora do sistema capitalista, surge com uma identidade diferente da que conhecemos hoje. [...] a burguesia surge no cenário sociopolítico como classe revolucionária que luta contra os privilégios que tanto incomodavam os populares que mantinham a economia e pagavam impostos naquela época. Daí porque ter aglutinado um enorme contingente populacional em torno de seu projeto. Um projeto que, em função dos interesses burgueses, proclamava valores contrários aos privilégios dos nobres (e parasitários) e, com isso, simultaneamente, interessava às camadas populares, contando com sua aprovação e força social para a luta (FORTI; BRITES, 2013, p. 36). A burguesia, portanto, se insurge contra os abusos da classe dominante, despontando como defensora dos interesses dos menos privilegiados. O sistema capitalista surge como um instrumento de ruptura com o sistema de dominação política e econômica, num primeiro momento, estendendo direitos e riquezas à população mais pobre. Seguindo essa lógica, o ápice da luta burguesa se dá com a Revolução Francesa, que põe fim ao absolutismo. A luta revolucionária burguesa na França era por direitos considerados elementares na atual sociedade capitalista: liberdade de ir, vir e permanecer, liberdade de expressão, de troca, de iniciativa econômica, entre outros. Isso pode ser interpretado como a garantia dos direitos fundamentais de cada cidadão, a menor intervenção possível do Estado e o direito à propriedade. Assim, no século XVIII, a burguesia assume o papel de classe dirigente e o capitalismo passa a figurar como o modo de produção oficial. O capitalismo surge então como resultado do embate entre as forças produtivas e as práticas feudais. O mercado surge como cenários de trocas e depois de negociações. Podemos dizer que o capitalismo surge do conflito entre as forças produtivas e as relações feudais, de modo geral, trouxe a iniciativa original de constituir-se no mercado pela predominância do valor de troca. ATENCAO TÓPICO 3 | O ESTADO E O CAPITALISMO: O ESTADO MÍNIMO E LIBERALISMO 171 Desse modo, temos por definição que: O capitalismo é um sistema de produção de mercadoria que toma a própria força de trabalho como uma mercadoria, ou seja, um objeto de troca como outro. Conforma um tipo de organização social em que a mercadoria atravessa a sociabilidade, dada a preeminência do valor de troca e, por conseguinte, do trabalho alienado, uma vez que estes são os elementos que lhe servem de fundamento e finalidade (FORTI; BRITES, 2013, p. 36). Ocorre que o trabalho, agora como mercadoria, nessa troca geralmente não rende a quem o produz, o que efetivamente vale, como já mencionamos. A ampliação do protagonismo do trabalho (mão de obra) é evidenciada na Inglaterra, nos primeiros cinquenta anos do século XIX, com o amadurecimento da Revolução Industrial. Nesse momento, artesãos e operários tornaram-se proletários e improvisam fábricas sem as condições mínimas de segurança e higiene. Além disso, a grande parte dos trabalhadores da indústria provém do meio rural, sem uma qualificação profissional mínima. Considerando que esse cenário foi o que definiu as relações primeiras entre capital e trabalho é preciso lembrar que: Em troca de sua mercadoria, o trabalhador recebe a título de salário uma parte do produto em que se traduz parcela de seu trabalho: o trabalho necessário para a sua conservação e reprodução. O salário, embora à primeira vista apareça como preço do trabalho, é o preço da força de trabalho. Se o trabalho fosse vendido no mercado como mercadoria, teria que existir antes de ser vendido. No entanto, se o trabalhador pudesse dar uma existência independente a seu trabalho, venderia o produto do mesmo, e não o trabalho (IAMAMOTO; CARVALHO, 2006, p. 48). Além dessa dependência do trabalhador, nesse contexto de precariedade tornam-se comuns acidentes com mortes e mutilações. Além disso, em razão da falta de higiene e proteção e das jornadas excessivamente prolongadas (14 a 16 horas diárias), eram comuns doenças infecciosas e de exaustão física. O final do século XIX e início do XX testemunham a inserção da tecnologia nos meios de produção (industrial), que aprimorou a produção e o próprio mercado. Uma das características desse tempo é que as linhas de produção se tornam coletivas. Cada operário é responsável por uma parcela da fabricação de determinado objeto. Com isso perde a noção de quanto o seu trabalho contribui com aquela produção e, por consequência, o quanto vale. IMPORTANTE 172 UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO Esse processo implica fazer com que o resultado do trabalho individual assuma um caráter subjetivo, incerto, o que facilita a exploração do proprietário sobre o produtor (operário) de forma relativamente oculta. A antiga burguesia, agora proprietária, distancia-se da massa trabalhadora submetendo-a a um trabalho assalariado, que efetivamente não retribui o efetivo valor do trabalho e do esforço do trabalhador. Em relação a isso, nunca é demais lembrar que: De camponês a 'tecelão agrícola', daí para tecelão e em seguida para trabalhador assalariado, esta classe empobrecida de camponeses, pequenos produtores e artesãos assalariados não teve como escapar das malhas da oligarquia burguesa, despontando já na segunda metade do século XVI como trabalhadores assalariados, portanto como proletários, no sentido etimológico do termo (MARTINELLI, 2007, p. 32). Essa nova condição insere o proletariado no meio capitalista pelo fato de que o trabalho passa a ser considerado como elemento fundamental para o acúmulo de mais capital. O trabalhador passa a realizar esse acúmulo na medida em que usa parte de seus ganhos para adquirir bens e é isso que faz o sistema funcionar. Do que valeria produzir se não houver quem compre, não é mesmo? Porém, o grande lucro do trabalho está na detenção do próprio capital, que retribui ao trabalhador um valor inferior ao que realmente vale o trabalho, com a justificativa do despreparo do trabalhador e da divisão do trabalho. GRÁFICO 1 – EVOLUÇÃO DA DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO BRASILEIRA NOS MEIOS RURAL E URBANO FONTE: <http://resumoprovas.blogspot.com/2016/06/resumo-geografia.html>. Acesso em: 12 set. 2019. TÓPICO 3 | O ESTADO E O CAPITALISMO: O ESTADO MÍNIMO E LIBERALISMO 173 Para manter isso, uma das estratégias do meio capitalista é a utilização de mão de obra camponesa, que frequentemente se vê forçada a deixar as terras. Isso tem sido muito comum ao longo do século XX e início do XXI, se analisarmos a oscilação da população rurale urbana. O Gráfico 1 demonstra como isso ocorreu no Brasil ao longo de 60 anos, conforme dados do IBGE. Vale reforçar que o caso do gráfico, que retrata uma realidade muito conhecida por você, o Brasil é apenas um exemplo do que ocorreu em grande parte do mundo capitalista, forçando o êxodo rural, submetendo as pessoas a salários reduzidos e criando bolsões de pobreza nas periferias das grandes e médias cidades e esvaziando as pequenas. Para que você compreenda melhor essa dinâmica, vamos analisar as principais fases do capitalismo. Essa divisão se dá para efeitos didáticos, pois uma fase não extingue a anterior e não há uma precisão temporal para definir quando uma encerra e outra inicia. 2.1 PRIMEIRA FASE – CAPITALISMO COMERCIAL OU PRÉ- CAPITALISMO É o período mais longo que compreende o período dos séculos XVI a XVIII. É o período das grandes navegações e de profundas expansões territoriais e comerciais da Europa. A burguesia europeia buscou recursos minerais e especiarias por várias partes do mundo, que ainda eram desconhecidas, como é o caso do continente americano. Essa verdadeira caça ao tesouro é descrita por Eduardo Galeano (2010) em sua obra Veias abertas da América Latina, na qual descreve não apenas os fatos, mas também as consequências que ainda sentimos e sentiremos desse longo período. Já na introdução da obra, o escritor revela o que representou a América Latina ao explorador europeu: É a América Latina, a região das veias abertas. Do descobrimento aos nossos dias, tudo sempre se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal se acumulou e se acumula nos distantes centros do poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar foram sucessivamente determinados, do exterior, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo (GALEANO, 2010, p. 8). Assim, percebe-se que o “nascimento” da América Latina não coincide com ideais de soberania, liberdade ou desenvolvimento local. Ao contrário, o chamado Novo Mundo serviria apenas como fonte de recursos primários para atender às demandas no recém-nascido capitalismo, e pelo que se vê, segue sustentando o regime. 174 UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO 2.2 SEGUNDA FASE – CAPITALISMO INDUSTRIAL O século XVIII prepara a Europa para novas formas de produção, especialmente com inventos como a máquina a vapor e o tear, que representam um forte incremento tecnológico ao capitalismo, migrando de um modelo artesanal para um modelo industrial. Maria Lúcia Martinelli destaca que: A fase do capitalismo industrial, que teve início com o aparecimento das máquinas movidas por energia não humana e não animal, demandava uma rápida recomposição do cenário social, pois sua continuidade histórica dependia da consolidação do modo capitalista de produção. Era preciso, portanto, promover uma rápida transição da mão de obra para um sistema assalariado (MARTINELLI, 2007, p. 38). Isso significa que o modo de produção sofreu grande transformação, tendo o artesão substituído pela máquina. Há uma ampliação da estratificação social do ponto de vista econômico. Os donos dos meios de produção (industriais) ampliaram seus lucros, e à grande massa trabalhadora, salários irrisórios, condições subumanas de trabalho, alto risco de acidentes em máquinas, além de problema como agressões ao meio ambiente. Outro problema emergente desse período foi o desemprego, devido ao uso da máquina como fonte de mão de obra. Milhares de trabalhadores perderam suas funções para elas, e os que permaneceram tiveram seus salários reduzidos e sua carga horária de trabalho estendida. Nota-se que o trabalhador perdeu o controle sobre sua própria força de trabalho, submetendo-se a um patrão. 2.3 TERCEIRA FASE – CAPITALISMO MONOPOLISTA- FINANCEIRO É a fase em que nos situamos atualmente e que tem a globalização como grande paradigma de sustentação. Nesse contexto, o que sustenta as economias e se faz sustentar por elas é um próspero sistema bancário e grandes corporações financeiras. Como forma de consolidar seu monopólio e controle absoluto, o sistema capitalista, por meio do sistema financeiro, também passou a controlar os sistemas políticos. Nesse sentido é importante citar o que descreve o professor Ladislau Dowbor: Restam poucas dúvidas sobre a tendência geral: os gigantes financeiros mundiais estão se dotando de instrumentos de controle político. Seus recursos são, no conjunto, superiores aos administrados pelos sistemas públicos. E hoje eles controlam também o essencial da mídia e com isto a opinião pública. Crescentemente, penetram nos espaços que lhes abre o Judiciário, que deveria ser o último bastião de proteção da igualdade perante a lei. Entraremos mais adiante no processo da captura do poder. Neste ponto, o importante é constatar que muito além da erosão da concorrência natural num processo de oligopolização, estamos diante de uma estrutura articulada de poder financeiro global (DOWBOR, 2017, p. 81). TÓPICO 3 | O ESTADO E O CAPITALISMO: O ESTADO MÍNIMO E LIBERALISMO 175 Segundo esse raciocínio, pode-se perceber que o sistema capitalista atinge seu apogeu controlando não apenas o processo produtivo, mas também o decisório, impondo suas vontades. Nota-se, portanto, que a fase atual do sistema capitalista é também a fase em que ele tende a tornar o poder uma mercadoria. Sistemas políticos financiados tornam-se um verdadeiro balcão de negócios. 3 ESTADO MÍNIMO: DO LIBERALISMO AO NEOLIBERALISMO E APROFUNDAMENTO DA ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL As temáticas aqui não poderão ser analisadas separadamente, visto que o conceito de uma interfere e produz o conceito da outra. Partimos do que você viu na Unidade 1, quando John Locke é apontado como o mentor do liberalismo estabelecendo alguns princípios, como a livre concorrência, o direito à propriedade e principalmente a não intervenção do Estado sobre a economia, o que hoje chamamos de Estado Mínimo. Ao se tratar das bases do liberalismo é sempre importante mencionar Adam Smith (1723-1790), que considerava o trabalho como base para o crescimento econômico da sociedade. Trata-se de uma teoria divergente das ideias mercantilistas. Para ele e seus seguidores, as pessoas buscam naturalmente o melhor para a sociedade. Nota-se assim que o Estado não deve, portanto, exercer nenhuma ingerência sobre a economia. A centralidade na exploração do trabalho gera conceitos como produtividade, que se sustenta no valor de uso dos bens determinando com isso os valores do produto do trabalho. Esses produtos, por sua vez, são impulsionados a gerar um valor de troca, que é determinado pelo poder de compra da própria sociedade. Smith (1988) afirmou que a qualidade do trabalho empregado na produção de uma mercadoria era o que lhe conferia maior valor. Não se pode omitir, para efeito de consolidação dessa lógica, o aparelhamento ideológico do Estado, principalmente por parte da educação, para que essa exploração seja mantida e aceita passivamente como se fosse natural. Nesse sentido é importante destacar o pensamento do filósofo argelino, de origem francesa, Louis Althusser, quando este doutrina que: [...] a reprodução da força de trabalho exige não só uma reprodução da qualificação desta, mas, ao mesmo tempo, uma reprodução da submissão desta às regras da ordem estabelecida, isto é, uma reprodução da submissão desta à ideologia dominante para os operários e uma reprodução da capacidade para manejar bem a ideologia dominante para os agentes da exploração e da repressão, a fim de que possam assegurar também, “pela palavra” a dominação da classe dominante [...] A reprodução da força de trabalho tem, pois como condição sine qua non, não só a reprodução da “qualificação” desta força de trabalho, mas também a reproduçãoda sua sujeição à ideologia dominante ou da “prática” desta ideologia (ALTHUSSER, 1980, p. 22). 176 UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO Esse caráter ideológico serviu para consolidar o liberalismo e fazê-lo avançar para seu último estágio. No atual estágio em que se encontra o capitalismo (terceira fase) é possível dizer que a etapa de implantação desses princípios já está consolidada. Por essa razão pode-se dizer que estamos no contexto do neoliberalismo, especialmente após a materialização do processo de globalização. Para compreender melhor o significado dessa nova localização é preciso compreender as diferenças entre liberalismo e neoliberalismo. No modelo liberal, a base de toda a riqueza é o trabalho, enquanto no neoliberalismo há múltiplos fatores que determinam a origem das riquezas, inclusive a especulação financeira. Assim, você pode perceber que o liberalismo tem sua origem e sua concretização a partir do capitalismo de modelo industrial e o neoliberalismo no chamado capitalismo financeiro, pautado na especulação sustentada por elevadas taxas de juros. Se no liberalismo as maiores empresas são as que produzem serviços e produtos (bens), no neoliberalismo o topo é ocupado por instituições financeiras (bancos). Foi o liberalismo que influenciou revoluções burguesas, como a francesa, além de seus próprios críticos, como Marx. Embora o liberalismo defendesse a quebra dos monopólios, seu interesse sempre foi a livre iniciativa baseada na “lei da oferta e da procura”. O neoliberalismo, por sua vez, propõe um Estado Mínimo, praticamente inexistente, transformando o mercado num substituto direto do Estado. Como veremos mais detalhadamente noutro tópico, Keynes, um teórico liberal, defendia a necessidade de o Estado intervir na economia. Isso se opõe radicalmente ao que pensa o modelo neoliberal – que como dissemos, defende a liberdade – generalizada ao mercado em detrimento do encolhimento do Estado. É nítido que a adoção de medidas neoliberais não facilita o equilíbrio social, mas ao contrário, acentua a desigualdade social, especialmente pela perda de direitos. Como você percebeu, a instituição do sistema capitalista e sua concretização ao longo de suas fases gerou a formação de diferentes grupos de indivíduos, que chamamos de estratos ou classes sociais. Num contexto liberal, em que cada um é dono de uma certa liberdade para conseguir o que quiser por seus méritos, cada pessoa ascende ou não a determinados níveis econômicos e sociais. A junção de pessoas que se encontram num mesmo nível econômico e social é o que define uma classe social. ATENCAO TÓPICO 3 | O ESTADO E O CAPITALISMO: O ESTADO MÍNIMO E LIBERALISMO 177 Você já percebeu que, inevitavelmente, essas classes estão em permanente conflito? E qual a razão para isso? Realmente, os conflitos são inevitáveis e sustentam-se exatamente na base do próprio sistema capitalista: competitividade, meritocracia e não intervenção estatal. São valores que produzem e acentuam a desigualdade social, que será tratada no próximo subtópico deste livro. Antecipadamente, pode-se dizer que a desigualdade social se dá quando esses valores tomam o lugar da cooperação, da solidariedade e da proteção do Estado sobre os setores mais fragilizados da economia e da sociedade. Esses conflitos demandam uma certa organização interna nas classes para que sua voz seja ouvida e suas reivindicações encontrem espaço para discussão. É nesse contexto que surgem os movimentos sindicais. Para os neoliberais, que já têm o sistema capitalista como algo consolidado, esses movimentos são os grandes responsáveis pela crise do sistema capitalista. Não é por outro motivo que as grandes corporações, que embora defendam um Estado mínimo, acabam exigindo do Estado atitudes fortes que desidratem o poder dos sindicatos para que não intervenham no processo produtivo capitalista. Com um Estado que dificulte a mobilização da classe trabalhadora e ao mesmo tempo não intervenha na economia, favorecendo o mercado, o sistema capitalista se expande dentro e fora dos Estados. A expansão externa torna- se mais fácil na medida em que os Estados perdem parte do seu sentido com o processo de minimização (enxugamento). Essa expansão, a globalização pela mercantilização, ganha força também pelo crescente processo de digitalização das relações, que agilização a disseminação e troca de informações, que agora se dá em segundos, podendo atingir o mundo todo ou partes dele previamente selecionadas. Você percebe que o capitalismo, como modelo econômico, impôs importantes transformações sociais e políticas para se sustentar. Também percebeu que ele passou por fases determinadas, especialmente pela inserção de tecnologias, evidenciando um crescente processo de otimização de recursos e tempo, reduzindo custos e consequentemente ampliando os lucros de quem detinha e detém os meios de produção. Mas os processos produtivos, como se comportaram ao longo do tempo? Sem dúvida, os processos de produção acompanharam toda a evolução do próprio sistema capitalista, não apenas no que diz respeito à inserção de tecnologias, mas à criação e adoção de estratégias de sua gestão. 178 UNIDADE 2 | ESTADO E PODER: INTERESSES E RELAÇÕES DE (IN)SUBORDINAÇÃO Na busca por maior eficiência e pela geração de mais lucros, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, surgem modelos que alteram as bases da produção. São os chamados modelos Taylorista, Fordista e Toyotista, fazendo com que a produção se tornasse compatível com a demanda de um consumo em massa. IMPORTANTE Criados por Frederick Winslow Taylor, Henry Ford e Taiichi Ohno, respectivamente, esses três modelos assemelham-se em objetivos, mas apresentam algumas importantes diferenças, descritas quadro comparativo a seguir: Taylorismo Fordismo Toyotismo Produção Em massa, de bens homogêneos. Em massa, de bens homogêneos. Pequenos lotes, produção diversificada. Ritmo de trabalho Baseado no rendimento individual. Baseado no ritmo das máquinas e da esteira. Baseado na demanda dos clientes e no trabalho em grupo. Economia De escala. De escala. De escopo. Estoque Manutenção de grandes estoques. Manutenção de grandes estoques. Não fazem estoque. Objetivo de produção Voltado para recursos. Voltado para recursos. Voltado para a demanda. Controle de qualidade É feito no final da linha de montagem. É feito no final da linha de montagem. É feito ao longo do processo. Tarefas O trabalhador realiza uma única tarefa. O trabalhador realiza uma única tarefa. O trabalhador realiza múltiplas tarefas. Autonomia de trabalho Alta subordinação aos gerentes. Subordinação levemente atenuada. Exercida de forma estrutural. Espaço de trabalho Divisão espacial. Divisão espacial. Integração espacial. Ideias Estado de bem-estar social. Estado de bem-estar social. Estado neoliberal. Demandas Coletivas. Coletivas. Individuais. Poder Estado e sindicatos detêm o poder. Estado e sindicatos detêm o poder. Poder financeiro e individual. QUADRO 1 – QUADRO COMPARATIVO ENTRE TAYLORISMO, FORDISMO E TOYOTISMO FONTE: <https://www.diferenca.com/taylorismo-fordismo-e-toyotismo/>. Acesso em: 13 set. 2019. TÓPICO 3 | O ESTADO E O CAPITALISMO: O ESTADO MÍNIMO E LIBERALISMO 179 De forma sucinta é possível notar que os modelos Taylorista e Fordista apresentam características muito similares por terem sido concebidas nos Estados Unidos, país que figura entre os vencedores da Segunda Guerra Mundial. Percebe-se em ambos uma racionalização e fragmentação do trabalho, reduzindo movimentos do trabalhador e demandas de aprendizagens maiores, visto que o trabalhador não teria a necessidade de conhecer todo o processo de produção. Isso também reduz, com já foi dito noutra ocasião, a noção do que efetivamente vale o seu trabalho. Em ambos, aposta-se na produção em alta escala, obedecendo à capacidade de produção das próprias máquinas.