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EXPERIMENTANDO 
LE CORBUSIER
-
INTERPRETAÇÕES 
CONTEMPORÂNEAS
DO MODERNISMO
MICKAËL LABBÉ
-
ARCHITETTURA POVERA:
REFLEXÕES SOBRE A ÉTICA 
DA ARQUITETURA, A PARTIR DE UMA 
LEITURA LECORBUSIANA DA VILA MATILDE, 
DE TERRA E TUMA ARQUITETOS.
2 EXPERIMENTANDO LE CORBUSIER
Mickaël Labbé
Mestre de Conferências de Estética e Filosofia da Arte
Faculdade de Filosofia da Universidade de Estrasburgo
3 EXPERIMENTANDO LE CORBUSIER
“A casa simples vai acolher os derradeiros dias do meu pai e da minha 
mãe, após uma vida de muito trabalho. Mãe musicista, pai apaixonado 
pela natureza” (Le Corbusier).
“Em 2011, um rapaz procurou-nos para saber se podíamos fazer um 
projeto de moradia para a mãe dele, pessoa sem grandes posses que 
vivia numa casa com graves problemas de estrutura e salubridade.” 
(Terra e Tuma).
Suíça 1923 – Brasil 2011. Le Corbusier construiu uma pequena casa 
para seus pais à beira do Lago Leman; a agência Terra e Tuma atendeu a 
demanda de um filho que buscava solução para alojar a mãe cuja casa 
parecia prestes a desabar. 
Foram feitas duas construções que pareciam nada ter em comum: 
épocas distintas, continentes diferentes, problemáticas sociais irredutí-
veis, paisagens, climas, gestos arquitetônicos bastante específicos. 
Duas histórias corriqueiras, procurando oferecer um teto a uma mãe, dar 
abrigo às vidas “ínfimas” ou precárias de seres simples e queridos. Nenhum 
vínculo de causalidade e de influência recíproca entre os dois projetos.
Entretanto essas duas aventuras arquitetônicas ocorreram na linha 
de uma longa história que bem poderia ser a do passado e do presente 
de certa ideia de modernidade da arquitetura, assim como do vínculo 
entre arquitetura e sociedade.
 É pela possibilidade de tal filiação que gostaríamos de expor consi-
derações buscando retomar princípios da modernidade lecorbusiana (e 
sua profunda atualidade) a partir do comum espírito que os liga ao que 
INTRODUÇÃO
Vila Matilde, 2011
4 EXPERIMENTANDO LE CORBUSIER
foi realizado, em outras épocas e latitudes, pela agência Terra e Tuma no 
momento da construção da Vila Matilde. Também é um modo de pensar 
a responsabilidade do arquiteto hoje, pois ela se exerce sobretudo naquilo 
que parece o mais insignificante e de menor sentido político: a responsa-
bilidade pelo tecido da vida comum e pelas “micro-histórias” individuais.
Porque isso, já não parece evidente.
De fato, hoje mais do que nunca – no Brasil como no mundo todo 
– a organização material das cidades e o jogo de interesses que ela 
proporciona costumam ser fonte de infelicidade para muitos dos seus 
moradores e fonte de desenvolvimento apenas para uma minoria. 
Assim considerados, seja na escala de uma aglomeração seja em esca-
la mundial, inúmeros projetos urbanos parecem caminhar no sentido 
da perigosa “patologização” social do espaço quanto à sua dimensão 
comunitária e compartilhada. Pensemos, por exemplo, na constituição 
do mundo urbano como “favela global” em grande parte do mundo e 
como futuro-acampamento de uma parte crescente do espaço urbano 
diante dos problemas das migrações, do desenvolvimento das “gated 
communities” e outros protegidos “guetos das altas-rodas”, bem como 
pela concentração das populações excluídas em espaços cada vez mais 
afastados, o que poderia ser considerado uma forma de “dubaização” 
das megalópoles que pensam sua identidade como valor de troca, a 
“disneylandização” e a museoficação das cidades, sobretudo de certas 
cidades europeias (Bruges, Dubrovnic etc.), o aburguesamento do cen-
tro das cidades e a expulsão de populações históricas de suas moradias 
Villa “Le Lac”, 1923 
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5 EXPERIMENTANDO LE CORBUSIER
populares, os shoppings e o turismo como modo de relação principal 
com o espaço urbano, a rarefação dos programas de áreas verdes e 
de áreas livres para encontros não produtivos, a ausência de qualquer 
planificação em termos de habitat social em vastas partes do mundo, 
a “falta” de moradias etc. Todos esses fenômenos fundamentais que 
afetam o futuro de nossas cidades seguem no sentido da distensão do 
social e da privatização do espaço em favor de interesses sobretudo 
especulativos e mercantis. 
A premente necessidade de repensar uma forma de apropriação da 
cidade pelos que nela vivem e a fazem foi recentemente mostrada pelo 
fenômeno mundial do “movimento das praças”. Tais tendências de fundo 
tornaram-se visíveis pelos manifestantes da Praça Taksim em Istambul, 
pelos da Praça Tahrir no Cairo, de Madison no Wisconsin, bem como por 
Occupy Wall Street, da Puerta del Sol de Madri e da Praça Catalunya de 
Barcelona, ou ainda da praça Syntagma de Atenas e da Praça da Repú-
blica em Paris. O Brasil tem lugar de destaque na retomada atual da 
ideia de Lefebvre do “direito à cidade” (e isso até a votação do “Estatuto 
da cidade” em 2001).
Diante de tais fenômenos, os principais arquitetos do mundo contem-
porâneo (os “astroarquitetos” ou “’archistars” como costumam ser cha-
mados) abandonaram totalmente – se não de todo em palavras, ao menos 
em atos – qualquer pretensão a uma renovação da arquitetura do cotidia-
no da cidade, e isso em proveito da concepção de construções espeta-
culares, ligadas a encomendas públicas ou privadas (os incontornáveis: 
museus de arte contemporânea, torres em Dubai ou lojas para Prada).
Porém, nesse quadro que parece irremediavelmente sombrio, cin-
tilam algumas luzes que, por sua humanidade, clareiam a monotonia 
fajuta da cidade contemporânea.
 É exatamente isso que os arquitetos de Terra e Tuma recusam, pro-
curando lutar por uma intervenção simples e humilde, mas de alcance 
inestimável. Contra os grandes chavões, a Vila Matilde encarna muito 
concretamente a realização de uma “ética da arquitetura” que permite a 
resistência circunstanciada à “patologização” do espaço social. Porque, 
mesmo que os males da vida global designem às vezes processos abstra-
tos, são eles antes de tudo experiências concretas que atingem quem as 
recebe localmente: na própria carne e no próprio ser, em suas casas e seus 
bairros. Os desafios da História podem assim ser vividos como histórias.
Que fique bem claro: não se trata aqui de procurar dizer “a verdade” sobre 
o projeto da agência Terra e Tuma, nem de pretender estabelecer qualquer 
vínculo causal entre o projeto e as ideias de Le Corbusier. Mas, de modo 
despretensioso, propor uma reflexão a partir do que essa construção nos 
leva a pensar da arquitetura, de sua ética e de seu lugar na sociedade.
A força do projeto da Vila Matilde está na união efetuada entre ética 
da arquitetura e estética perfeitamente realizada. Se for possível pensar 
uma filiação entre certas teorizações e realizações lecorbusianas e a Vila 
Matilde, diferentes das que surgem do contexto da encomenda ou da natu-
reza do tipo de programa do habitat doméstico, é primeiro e antes de tudo 
no status dessa união (constitutiva da arquitetura) que ela se encontra.
I. A VILA MATILDE
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6 EXPERIMENTANDO LE CORBUSIER
A Vila Matilde nasceu de uma demanda peculiar, que faz toda a sin-
gularidade e beleza de um projeto que é também a narrativa de uma 
história. Os arquitetos de Terra e Tuma foram procurados pelo filho da 
ocupante da residência atual, a fim de pedir que construíssem uma casa 
para sua mãe. Senhora sem grandes recursos, morando há anos em um 
bairro periférico de São Paulo (bairro que dá nome à casa), estava ela numa 
habitação com graves problemas de estrutura e risco de desabamento. É 
aí que entra em jogo a moral da história e surge certo etos arquitetônico.
Então, em vez de propor a construção de uma nova casa em outro 
bairro da cidade, o que afastaria a proprietária dos laços que formavam 
o tecido de sua existência – a proximidade da família e dos amigos, a 
impregnação em um local onde se sentia bem, com suas referências, o 
respeito da memória individual e coletiva no apego que nos liga a um 
lugar específico e aos que o fizeram –, os arquitetos aceitaram o desafiode reconstruir uma casa nova no mesmo lugar da antiga, danificada 
pelo passar do tempo.
Aí está, ao mesmo tempo, o sinal de respeito que tiveram os arquite-
tos por sua cliente (por mais modesta que fosse) e uma ideia arquitetô-
nica muito inventiva. Ambos indissociáveis. Porque o ato arquitetônico 
não foi considerado como meramente funcional e estético. O arquiteto 
não constrói apenas uma coisa (um objeto belo e tecnicamente concluído), 
mas também o quadro ou contexto de uma vida. Vida com consistência 
própria, com história, limites e legitimidade. Vida para a qual se constrói. 
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A arquitetura é o quadro no qual ocorre nossa vida cotidiana, o que a 
torna possível com outros possíveis no mesmo espaço. Ao criar lugares 
e espaços, a arquitetura permite que acontecimentos simples e corri-
queiros tenham existência no mundo comum.
Por isso, o arquiteto é responsável pelo que existe, o que já lá está e 
do que não cabe pura e simplesmente fazer abstração (a construção e seu 
entorno, a vida social do cliente, sua história pessoal e suas lembranças).
A ideia fundamental de Terra e Tuma foi que construir é reconstruir. 
Construir é recuperar o que se perdeu da existência no intuito de ajudar 
os indivíduos a reconstruírem suas existências no próprio lugar onde 
elas foram escritas.
E, em vez de ceder à tentação arquitetônica do grande gesto ou da 
reescrita a partir do zero, em vez de tentar produzir um objeto arquite-
tônico espetacular, os arquitetos de Terra e Tuma procuraram recompor 
uma nova construção com a mesma textura daquela já existente (mate-
rial e social). Esse é o forte reconhecimento do que significa a casa para 
quem nela mora: não apenas lugar onde se está ou se dispõe de uma par-
te de espaço (o que já é muito para alguns), mas a possibilidade de esten-
der o espaço da própria vida partindo do sentido de ter uma casa para si.
Além disso, a reconstrução do projeto da Vila Matilde não dispensou 
a exigência expressamente arquitetônica que caracteriza a Terra e Tuma. 
Embora dispondo de exíguo orçamento, com prazo curto e múltiplos 
constrangimentos (alterar o antigo imóvel sem comprometer a estabi-
lidade do conjunto, visto estar ele encostado nas construções vizinhas), 
a proposta dos arquitetos foi uma autêntica criação arquitetônica, uma 
“architettura povera” no sentido mais nobre do termo. De fato, como 
todo grande projeto arquitetônico, a Vila Matilde soube transformar fra-
queza em força, dificuldades em soluções expressivas.
Convém logo lembrar que os arquitetos ofereceram à cliente uma 
construção que ousaríamos chamar de muito “luxuosa”. Não o luxo em 
materiais nobres ou onerosos (quase todo o conjunto foi construído 
com tijolos simples), mas abundância de coisas fundamentais: espaço, 
conforto, a possibilidade de ter gestos cotidianos bem fluentes, a con-
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sideração das suas necessidades específicas, da luminosidade e ainda 
um espaço verde dentro da própria construção. Pouco importou não 
ser a cliente de uma classe mais favorecida, ou a construção não estar 
situada no centro da visibilidade urbana. Por mais anódina que seja a 
construção de tais edifícios, ela representa um ato de resistência, na e 
pela arquitetura, ao modo como o espaço urbano contemporâneo é tra-
tado reproduzindo desigualdades, reforçando segregações, inscrevendo 
nesse espaço as divisões sociais que impedem a verdadeira comunida-
de. Aí se encontra o poder da arquitetura, por menor que seja, de apre-
sentar pequenos núcleos significativos nos quais a marcha violenta das 
coisas não se reproduza pura e simplesmente. É também um modo de 
questionar as divisões que estruturam o tecido social (centro-periferia, 
luxo-pobreza, qualidade-riqueza etc.). 
Pode assim a arquitetura opor-se às patologias da cidade e de algu-
mas de suas produções, mostrá-las e questioná-las. Arquitetura que é, 
de certo modo, “against from within”.
Convém afinal lembrar que orçamento apertado ou material modes-
to não significa de modo algum fraqueza estética ou condescendência 
social. Além da construção oferecida ao ocupante ter sido funcional e 
bem adaptada (condição necessária a qualquer arquitetura digna desse 
nome), ela é esteticamente correta, bela em sua discrição e simplicida-
de. Não haveria o mínimo sentido em querer construir um edifício cha-
mativo num tal contexto e diante de tal história. Os arquitetos mostra-
Vila Matilde
9 EXPERIMENTANDO LE CORBUSIER
ram extrema sensibilidade, o sentido de exatidão. A pobreza do material 
permitiu um jogo arquitetônico muito correto. Longe de qualquer mise-
rabilismo estético ou de qualquer forma de abandono da preocupação 
estética, os arquitetos ofereceram à cliente um espaço moderno e impe-
cável, aliança de minimalismo e de generosidade nos espaços, nas vis-
tas e texturas, de perfeição formal e de vigor nos materiais que deram 
vida à construção.
Foi como uma poesia do simples e do costumeiro, uma estética da 
pobreza erigida como afirmação de uma forma de nobreza arquitetôni-
ca. A simplicidade aí aparece como suprema sofisticação. Pois, quem 
decretou que o habitat “social” é necessariamente sinônimo de estética 
acanhada ou da repetição estereotipada das mesmas formas kitsch e 
sem qualidade? Também nisso a Vila Matilde soa como manifesto para 
certa arte da construção: o edifício deverá ser ainda mais belo e con-
temporâneo se destinado a pessoas simples ou sem recursos. O próprio 
lugar onde se vive torna-se objeto de experiência estética cotidiana, sem 
com isso impor-se ao morador ou esmagá-lo com pretensões retóricas 
(o que ocorre com inúmeras construções contemporâneas: quem vai 
ao museu percebe isso), por tratar-se sobretudo de um lugar de vida. 
A casa ficará ainda mais bela se souber ser discreta, se não se sobre-
puser à vida cotidiana dos gestos, hábitos, rituais, alegrias ou tristezas.
O que se percebe então é uma ética que assume forma visível naqui-
lo que foi construído, que se encarna e se apresenta numa estética mini-
malista e exigente, bastante acolhedora e cordial a quem ela recebe.
Algumas das razões encontradas nesta breve análise do projeto 
da Vila Matilde (importância da questão da moradia na problemática 
arquitetônica, redefinição de luxo e estética da pobreza) lembram as 
reflexões de Le Corbusier referentes à casa, bem como a contribuição 
da modernidade desse autor a uma teoria social e ética da arquitetura. 
Por isso, vamos comparar a análise do projeto aqui apresentado com 
certos fundamentos do pensamento de Le Corbusier.
Para mostrar as ligações entre duas atitudes arquitetônicas que, mate-
rialmente, nada aproxima, parece primeiro necessário relembrar que o 
projeto fundamental de Le Corbusier era sobretudo de natureza “ética”. 
“Ética e estética formam uma só coisa”, enunciado de Wittgenstein que 
poderia servir como programa para a modernidade de Le Corbusier. 
Desse ponto de vista, dos grandes manifestos dos anos 1920 até as últi-
mas realizações do seu período brutalista, a arquitetura de Le Corbusier 
foi caracterizada pela vontade explícita de propor uma arquitetura “em 
escala humana”, arquitetura do humano e para o humano. Para Le Cor-
busier, tratava-se de conceber seus projetos levando em conta as neces-
sidades corporais e espirituais do homem comum, de modo a satisfazer 
o lado humano, considerando a totalidade das dimensões nas quais se 
firma toda existência. Talvez ingenuamente, Le Corbusier estivesse con-
vencido da possibilidade de mudar a vida pela arte e pela arquitetura 
ou, ao menos, de que a arquitetura e a concepção do ambiente humano 
tivessem papel decisivo nas possibilidades individuais e sociais de rea-
lização de si e de prosseguimento de uma existência feliz e digna desse 
II. A ÉTICA DA CASA 
EM LE CORBUSIER
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nome. Como ele assimafirmou: “Arquitetura, para mim, significa: agir 
por construção espiritual”.
A missão que ele escolhera desde a juventude era de, por meio da 
arquitetura, transformar a condição humana, metamorfosear a vida com 
a ajuda dessa arte, convencido de que o adequado ambiente arquitetô-
nico pudesse elevar as almas de seus moradores (“Necessidades mate-
riais, desejos espirituais, tudo pode ser satisfeito por essa arquitetura 
e esse urbanismo atentos”). Para ele, a arquitetura já não era apenas a 
arte de construir, mas sim concepção do espaço, da relação do homem 
com o espaço, da mediação do espaço na relação do homem com o 
mundo e consigo mesmo. 
E, se para Le Corbusier, a arquitetura nesse sentido extensivo de 
arrumação global do espaço (da porta de casa até à cidade) tem uma 
posição privilegiada no seu projeto de reforma da cultura pela media-
ção da consciência individual do habitante, é porque dispõe de uma 
natureza mista entre realidade sensível e realidade material. Por estar 
a arquitetura onipresente em nossas vidas, por ser o entrelaçamento 
de matéria com espírito – é a intenção de pensamento do arquiteto que 
se encarna na matéria arquitetônica colocando-a em ordem de acordo 
com relações precisas–, pode ela veicular outra concepção da existên-
cia e devolver ao morador, como num espelho, algumas considerações 
espirituais a partir desse entrelaçamento de ideias e de formas que é 
uma construção (a brancura, a recusa do protocolo, a exposição dos 
materiais como eles são) e não a “mentira arquitetônica”, a proporção 
etc. Como diz o próprio arquiteto:
“A arquitetura tem destinos mais sérios; suscetível de subli-
midade, toca nos instintos mais brutais por sua objetivida-
de; solicita as faculdades mais elevadas por sua abstração. 
A abstração arquitetônica tem isso de especial e magnífi-
co: ao se enraizar no fato bruto, ela o espiritualiza, porque 
o fato bruto nada mais é que a materialização, o símbolo 
da ideia possível. O fato bruto só é passível de ideias pela 
ordem que nele se projeta”.
O “fato” arquitetônico, maciço e brutal, de inegável presença objetiva 
(tal volume de betume, tal janela de vidro) não se esgota em sua mate-
rialidade. Embora ele nos absorva por sua presença sensível (e sabe-
mos que o sensível nos liga mais a ele do que a pura inteligência), por 
ser ele o fruto de uma ordem, de um pensamento projetado pelo arqui-
teto, esse fato bruto é de certa maneira “espiritualizado”. 
Diferente do que ocorre com a pintura, a literatura ou a música, o 
caráter essencialmente público da arquitetura e sua inserção material 
num ambiente do qual ela é, em parte, definidora fazem dessa “arte” 
uma realidade à qual ninguém pode escapar, a não ser que se condene 
a uma forma de exílio fora da sociedade dos homens. Se em princípio é 
possível a um indivíduo nunca ter visto um quadro, escutado um poe-
ma ou uma sinfonia, é impossível que ele não tenha tido contato com 
edifícios e obras arquitetônicas. Quer se trate dos lugares onde ocorrem 
11 EXPERIMENTANDO LE CORBUSIER
episódios mais íntimos ou mais anódinos de sua existência cotidiana, 
das ruas por onde ele passa e dos prédios que constituem a realida-
de da cidade na qual ele está e que marcam um percurso exigido por 
outras necessidades, a arquitetura é uma realidade onipresente na vida 
de cada indivíduo, mesmo que ele não dê atenção a esse fato. 
Entretanto, sabemos muito bem que, às vezes, a influência do 
ambiente arquitetônico e urbano é lembrada dolorosamente por aque-
les que o frequentam todos os dias, como podemos ver no caso de 
algumas periferias. Ao contrário, um ambiente arquitetônico harmonio-
so pode iluminar nossas existências, levar a certa experiência da beleza 
ou, no mínimo, ser o quadro de certa serenidade na ação. 
A realidade está quase sempre entre esses dois extremos. É cla-
ro que, embora a presença da arquitetura em nossas vidas possa ser 
insensível, ela não deixa de ser real. E, se é verdade que nosso ambien-
te arquitetônico é, em certa medida, o reflexo das condições sociais que 
lhe deram origem – e isso talvez até com mais força no seu caso que 
no de outras práticas artísticas –, ele também sempre é vetor de certa 
forma de influência sobre a vida e a consciência dos usuários e mora-
dores. Como toda forma de arte, a arquitetura é assim tão determinada 
quanto determinante; mas, por estar inserida na própria matéria daqui-
lo que constitui nossa existência mais comum, sua onipresença tam-
bém é fonte de maior influência. A arquitetura, dizia Le Corbusier, é “o 
espelho dos tempos”, ou seja, o reflexo determinado do tempo que a viu 
nascer e potência refletora, capacidade de ação sobre a consciência do 
seu morador, porque ela pode ser o vetor de certa concepção da vida 
veiculada pelo próprio jogo das formas e proporções arquitetônicas uti-
lizadas por seu criador segundo sua própria intenção.
O domínio das formas cotidianas que cercam o homem também é 
crucial para o arquiteto:
“Tudo o que procede do homem, criações de suas mãos, 
criações de seu espírito, manifesta-se em um sistema de 
formas que é o decalque do espírito que lhe ditou essa 
construção (...). A cidade, pelo que oferece aos olhos, difun-
de alegria ou desespero (...) é uma questão de formas”.
Além disso, se desejarem que a ação reformadora do arquiteto seja ple-
namente eficiente e total – o que é o caso de Le Corbusier que decer-
to não se julgava um “visionário” – o arquiteto deve primeiro voltar-se 
para o espaço que nos é próximo, ou seja, o da casa e de tudo que a 
constitui. “O homem encontrará toda a sua parte de alegria e de sere-
nidade nessa vida doméstica dignificada e ordenada”; “A habitação é 
o templo do homem”. Falando da “vocação fraterna da arquitetura”, Le 
Corbusier afirma que “dedicada ao bem da habitação (...) a arquitetura 
é um ato de amor”, porque “dedicar-se à arquitetura (...) é como entrar 
para o convento, é crer, consagrar-se, entregar-se”. Se, de acordo com a 
expressão muito presente em seus escritos, a “arquitetura é um ato de 
amor” é porque ela deve ser:
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12 EXPERIMENTANDO LE CORBUSIER
“(...) atenção voltada para o que faz a vida de todos os seres: 
o cotidiano, os momentos passados dia a dia, da infância 
até a morte, nos quartos, lugares quadrados e simples que 
podem ser comoventes, constituindo, de fato, o teatro pri-
mordial onde se exerce nossa sensibilidade, desde o minu-
to em que abrimos os olhos para a vida”.
Le Corbusier refere-se sempre à dimensão espiritual dessa casa que 
deve ser o palácio do cotidiano, insistindo no seu fundamental sentido 
antropológico de abrigo, de lugar de proteção contra a natureza anta-
gônica, que assim fornece ao homem o quadro afável do exercício de 
suas atividades cotidianas ou mais meditativas (“a casa é um invólucro 
de funções materiais e sentimentais”). É também o famoso retorno à 
“escala humana”, ou seja, retorno ao sentido antropológico do ato de 
fazer arquitetura: 
“Porque a casa é nossa pousada, é objeto que, para nós, 
interessa a cabeça e a besta, porque quando estamos den-
tro dela, estamos sob sua imposição.”
Cabe também aqui retomar as várias infelizes interpretações da defini-
ção de casa como “máquina de morar”:
Fragmentos da vida comum no 
teto da Unidade de moradia.
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13 EXPERIMENTANDO LE CORBUSIER
“A casa tem duas finalidades. Primeiro, é uma máquina de 
morar, isto é, máquina destinada a nos fornecer ajuda efi-
caz para a rapidez e a exatidão no trabalho, máquina dili-
gente e agradável para satisfazer as exigências do corpo: 
conforto. Mas é também o lugar útil para a meditação e, 
por fim, o lugar onde a beleza existe e dá ao espírito a cal-
ma indispensável; não pretendo que a arte seja um grude 
para todo o mundo, digo apenas que, para alguns, a casa 
deve fornecer o sentimento da beleza. Tudo o que se refere 
às finalidades práticas da casa cabe ao engenheiro; para o 
que se refere à meditação, ao espírito de beleza, à ordem 
que reina (e será o esteio dessa beleza),será a vez do arqui-
teto. Trabalho do engenheiro de um lado; arquitetura do 
outro lado”.
Se a casa tem “duas finalidades” é porque, para Le Corbusier, a utilida-
de tem dois sentidos: uma utilidade restrita no sentido técnico da solu-
ção das questões funcionais e das exigências do programa referente às 
necessidades do corpo; e uma “utilidade” extensiva às necessidades 
do espírito cujos alimentos adequados são beleza, proporção, harmonia 
etc. Assim, se para Le Corbusier a arquitetura é sempre um ato de amor, 
não é apenas por ser ela um ato em direção ao outro, seja qual for a 
posição social desse outro; mas também por ser ela pensada pelo arqui-
teto como um gesto de oferenda a cada um daquilo que há de mais pre-
cioso e portanto mais frágil: a possibilidade de dirigir sua atenção para 
o que está além da dimensão utilitária de nossas vidas.
Le Corbusier chegou a definir o lugar de intervenção da arquitetu-
ra como “lá onde uma intenção, além daquela de simplesmente servir, 
esclarece a concepção da obra”. Por um lado, pela criação de um quadro 
de vida adequado, a possibilidade de liberar o espírito pela solução efi-
caz das questões de âmbito material ligadas às necessidades corporais 
(a arquitetura libera assim o espaço para meditar, refletir, contemplar); 
por outro lado, pelo arranjo do próprio jogo arquitetônico, a possibilida-
de do espírito comprovar a beleza pelo manejo das relações sinfônicas 
entre os próprios elementos arquitetônicos, pois a verdadeira beleza é 
forma pura e cor pura, jogo harmonioso e vivo de relações matemáticas 
medidas pelo olho e percebidas pelo espírito. Em resumo, se a arquite-
tura não for uma arte completamente livre ou desinteressada por estar 
sujeita a muitos constrangimentos utilitários e funcionais e se, como 
afirma Le Corbusier, a arquitetura tem de “servir”, trata-se, como ele 
também diz numa bela frase, de “servir bem, mas igualmente ao deus 
que existe em nós”.
Bem longe das imagens superficiais ou de um sistema de sinais arbi-
trários, o cabanon é a construção e a concretização do sentido de uma 
vida de trabalho artístico a serviço de um programa ético (o emblema 
de um modo de ser); por isso, constitui também, em parte, o símbolo 
do programa de Le Corbusier, seu mais nítido sinal distintivo e sintético, 
ou seja, o que recolhe – incarnando-o e inscrevendo-o na matéria do 
III. ARQUITETURA 
E POBREZA
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14 EXPERIMENTANDO LE CORBUSIER
construído – os valores essenciais de seu modo de pensar. Le Corbusier 
vê assim no que ele chama de “sabedoria de Diógenes” a explicação de 
sua obra arquitetônica:
“Durante toda a minha carreira, essa preocupação não me 
largou: conseguir com material simples, e mesmo pobre, 
que, até com um programa ditado por Diógenes, minha 
casa fosse um palácio.”
“Eu sentia muito forte a única e nobre tarefa do arquiteto, 
que é a de abrir à alma espaços poéticos utilizando com 
probidade materiais a fim de torná-los úteis.”
Esse palacete da simplicidade, convém notar, havia sido construído 
por Le Corbusier para ele e sua família em 1952, em Roquebrune-Cap-
-Martin. Trata-se do célebre Cabanon onde o arquiteto ia passar todos 
os verões com a mulher e amigos, aproveitando a beleza natural numa 
verdadeira sacralização do cotidiano – “aquele castelo de 16m2 (...) de 
excêntrico conforto e gentileza”, verdadeira obra-prima de uma architte-
tura povera, cujo programa parece “ditado por Diógenes”. 
Buscando sempre impor uma grandeza sem grandiloquência, capaz 
de “com quase nada, preparar um milagre”, Le Corbusier-Diógenes ten-
ta mostrar que a simplicidade é um resultado, e não ponto de partida. 
Simplicidade que ele define como um ato de concentração, de síntese 
do múltiplo, de cristalização a partir dos complexos dados do problema 
arquitetônico. “A simplicidade resulta da complicação; a economia da 
riqueza”, afirma ele. O simples resulta do complexo e do rico, por meio 
da seleção, supressão, concentração, escolha. Simplicidade que tam-
bém exige do arquiteto o respeito por essa lei econômica portadora da 
verdadeira riqueza e do verdadeiro luxo. Modo de compreender como 
as considerações funcionais coincidem aqui com as considerações espi-
rituais tão apreciadas pelo nosso arquiteto:
Le Corbusier em seu Cabanon
15 EXPERIMENTANDO LE CORBUSIER
“O simples é o resultado da economia e dou a esta palavra 
o mais alto valor porque ela tem o mais belo significado (...) 
Recorri à sabedoria: atingir o máximo pelo mínimo, chave 
da economia em geral e causa profunda da obra de arte. 
Economia, alta acepção? Por ela, chega-se à dignidade”.
Enfim, convém insistir: esse conceito de luxo, afastado de qualquer con-
sideração ligada ao fausto de um decoro qualquer, permite a Le Corbu-
sier apelar para a responsabilidade do arquiteto:
“(...) Não se tem o direito de transgredir regras que devem 
ser sagradas, quando se oferece apenas aos bafejados pela 
fortuna a vantagem das condições necessárias a uma vida 
sadia e regrada (...) É preciso oferecer uma qualidade de 
bem-estar acessível a todos, independentemente de qual-
quer questão financeira.”
Assim, sob muitos aspectos, Le Corbusier é de fato “o arquiteto dos 
pobres” (A. M. Vogt), não só ao dissociar no nível teórico as questões da 
riqueza dos materiais e da nobreza arquitetônica do objeto construído, 
mas também por ter feito inúmeras construções destinadas a pessoas 
de poucos recursos.
Nunca deixou de construir os palácios do cotidiano para o homem 
comum (programas para o Exército da Salvação, bairros de casas popu-
lares, projetos para países em desenvolvimento, realizações para comu-
nidades monásticas ou religiosas etc.), nem de meditar as lições da arte 
vernacular. Le Corbusier estava sinceramente convencido de que, pelo 
amor das coisas que nos cercam todos os dias “até os pobres podem 
ser felizes, se souberem como olhar”. 
Eis vários aspectos que poderiam ser encontrados, em graus diver-
sos, nessa reatualização de certa ideia da ética arquitetônica apresenta-
da pelo projeto da Vila Matilde.
O palácio da simplicidade 
+55 11 2538 3776
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