Prévia do material em texto
CAO – Crim Boletim Criminal Comentado n°154, 9/2021 (semana nº 4) Procurador-Geral de Justiça Mário Luiz Sarrubbo Secretário Especial de Políticas Criminais Arthur Pinto Lemos Junior Assessores Fernanda Narezi P. Rosa Ricardo José G. de Almeida Silvares Rogério Sanches Cunha Valéria Scarance Paulo José de Palma (descentralizado) Artigo 28 e Conflito de Atribuições Marcelo Sorrentino Neira Manoella Guz Roberto Barbosa Alves Walfredo Cunha Campos Yolanda Alves Pinto Serrano Analistas Jurídicos Ana Karenina Saura Rodrigues Victor Gabriel Tosetto Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 2 SUMÁRIO AVISO....................................................................................................................................................3 ESTUDOS DO CAO CRIM........................................................................................................................4 Tema: Nova Lei 14.197/2021...............................................................................................................4 STF/STJ: decisões de interesse institucional COMENTADAS PELO CAOCRIM.......................................6 DIREITO PROCESSUAL PENAL:...............................................................................................................6 1-Tema: Estelionato praticado mediante depósito. Competência......................................................6 DIREITO PENAL....................................................................................................................................10 1-Tema: Estelionato Judiciário- Atipicidade?......................................................................................10 2- Tema: Aplicação da reincidência específica tratada no art. 44, § 3º, do Código Penal.................11 MP/SP: decisões do setor art. 28 do CPP............................................................................................15 1-Tema: definição do correto enquadramento dos fatos, com reflexo na atribuição funcional............................................................................................................................................. 15 Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 3 AVISO Aviso nº 492/2021 - PGJ-CAOCR, de 30/08/2021 O Procurador-Geral de Justiça, no uso de suas atribuições legais e a pedido do Centro de Apoio das Promotorias de Justiça Criminais, AVISA aos membros do Ministério Público que a íntegra do Provimento CG n° 36/2021, que altera o artigo 509 da Seção XXV, do Capítulo IV, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, quanto aos procedimentos relacionados à destinação de armas de fogo e munições à guarda de objetos, está disponível no endereço http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Criminal/Criminal_Juri_Jecrim/armas%20defogo/P ROVIMENTO-36-2021.pdf http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Criminal/Criminal_Juri_Jecrim/armasdefogo/PROVIMENTO-36-2021.pdf http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Criminal/Criminal_Juri_Jecrim/armasdefogo/PROVIMENTO-36-2021.pdf Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 4 ESTUDOS DO CAOCRIM Tema: Nova Lei 14.197, de 1º. de setembro de 2021: alterações no Código Penal e na Lei das Contravenções Penais e revogação na Lei de Segurança Nacional. O CAOCrim, nas próximas edições do boletim, irá comentar os principais dispositivos da Lei 14.197/21, pois entendemos que no seu bojo temos crimes da competência da justiça comum federal, estadual e eleitoral. É sabido que na vigência da Lei 7.170/83, todos os crimes nela previstos eram rotulados como políticos, de competência da Justiça Federal. O art. 109, IV, da CF/88, anuncia competir aos juízes federais processar e julgar os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral. O Supremo Tribunal Federal assim definiu crimes políticos: “são aqueles dirigidos, subjetiva e objetivamente, de modo imediato, contra o Estado como unidade orgânica das instituições políticas e sociais e, por conseguinte, definidos na Lei de Segurança Nacional, presentes as disposições gerais estabelecidas nos artigos 1º e 2º do mesmo diploma legal” (1). Com a entrada em vigor da Lei 14.197/21, revogando expressamente a Lei de Segurança Nacional, entendemos que não mais existe campo fértil para se cogitar de crimes políticos, mas crimes contra o Estado Democrático de Direito. Vicente Greco Filho, por sinal, há tempos já lecionava nesse sentido: Não há definição legal dos crimes políticos na legislação brasileira. Aliás, a referência a esse tipo de crimes é inadequada e, quiçá, odiosa. Certamente não se aplica aos crimes comuns, ainda que com motivação política. E menos ainda aos chamados crimes políticos puros, que a tradição constitucional brasileira sempre repeliu. Nos termos do art. 5º, LII, da Constituição, não se concederá extradição por crime político ou de opinião. Ora, como punir alguém por fato dessa natureza? A expressão no texto constitucional foi, portanto, no mínimo, infeliz e espera-se que não seja regulamentada.2 Partindo dessa premissa, pergunta-se: de quem é a competência para o processo e julgamento dos crimes previstos no Título XII da Parte Especial do CP? Depende. 1 RC nº 1.473/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 14.11.17. 2 Manual de processo penal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 145-146. Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 5 Certamente da Justiça Federal os crimes contra a soberania nacional (arts. 359-I a 359-K), crimes contra as instituições democráticas (arts. 359-L e 359-M), pois evidente o interesse da União (art. 109, IV, da CF/88). Já os crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral (arts. 359- N a 359-O), a competência nos parece ser da Justiça Eleitoral. Apenas no caso do crime do art. 359- N, quando atenta contra o exercício do mandato, será da Justiça comum, estadual ou federal, a depender do caso concreto. Impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício do mandato de um parlamentar ou chefe do executivo municipal ou estadual, a competência será da Justiça estadual. Se o crime visar prejudicar um Congressista ou presidente da República, será da Justiça Federal, pois patente o interesse da União (art. 109, IV, CF/88). O crime de sabotagem (art. 359-R), envolvendo estabelecimentos, instalações ou serviços destinados à defesa nacional, são de competência da Justiça Federal (art. 109, IV, da CF/88). O crime do art. 359-S, vetado pelo presidente da República, é mais um caso em que a competência, da Justiça comum, seria estadual ou federal a depender das circunstâncias do caso concreto, não sendo demais lembrar que o interesse da União não se presume, devendo sempre ser demonstrado. Clique aqui para acessar a íntegra da nova Lei. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14197.htm Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 6 STF/STJ: decisões de interesse institucional COMENTADAS PELO CAOCRIM DIREITO PROCESSUAL PENAL: 1-Tema: Estelionato praticado mediante depósito: competência STJ- Informativo de Jurisprudência n º. 706 Nos termos do art. 70 do Código de Processo Penal, "[a] competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução". Quanto ao delito de estelionato (tipificado no art. 171, caput, do Código Penal),a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça havia pacificado o entendimento de que a consumação ocorre no lugar onde aconteceu o efetivo prejuízo à vítima. Ocorre que sobreveio a Lei n. 14.155/2021, que entrou em vigor em 28/05/2021 e acrescentou o § 4.º ao art. 70 do Código de Processo Penal, o qual dispõe que: "§ 4º Nos crimes previstos no art. 171 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), quando praticados mediante depósito, mediante emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de valores, a competência será definida pelo local do domicílio da vítima, e, em caso de pluralidade de vítimas, a competência firmar-se-á pela prevenção." Como a nova lei é norma processual, esta deve ser aplicada de imediato, ainda que os fatos tenham sido anteriores à nova lei, notadamente quando o processo ainda estiver em fase de inquérito policial, razão pela qual a competência no caso é do Juízo do domicílio da vítima. Acesse a decisão proferida no CC 180.832-RJ COMENTÁRIOS DO CAOCRIM Lendo e relendo a decisão acima, pode parecer que o STJ manda observar o §4º, do art. 70 do CPP (competência ditada pelo domicílio da vítima), mesmo nos processos. Ousamos discordar dessa leitura e, novamente, iremos explicar o dispositivo em análise. Dadas as diversas circunstâncias em que o estelionato pode ser cometido, não raro surgem dúvidas a respeito do juízo competente para julgamento, pois nem sempre quem sofre o prejuízo e quem obtém a vantagem se encontram no mesmo local e, em tais situações, pode haver certa dificuldade para estabelecer com precisão onde o estelionatário realmente alcançou o proveito de seu ardil. O Superior Tribunal de Justiça julga incontáveis casos dessa natureza. Em seus julgamentos, a Terceira Seção do tribunal sempre diferenciou as situações em que a fraude é cometida por meio de https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202101978770&dt_publicacao=01/09/2021 Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 7 saque ou compensação de cheque das situações em que a vítima efetua depósito ou transferência de valores para uma conta corrente designada pelo estelionatário: “[...] 2. Nos termos do art. 70 do CPP, a competência será de regra determinada pelo lugar em que se consumou a infração e o estelionato, crime tipificado no art. 171 do CP, consuma-se no local e momento em que é auferida a vantagem ilícita. De se lembrar que o prejuízo alheio, apesar de fazer parte do tipo penal, está relacionado à consequência do crime de estelionato e não à conduta propriamente. De fato, o núcleo do tipo penal é obter vantagem ilícita, razão pela qual a consumação se dá no momento em que os valores entram na esfera de disponibilidade do autor do crime, o que somente ocorre quando o dinheiro ingressa efetivamente em sua conta corrente. 3. Há que se diferenciar a situação em que o estelionato ocorre por meio do saque (ou compensação) de cheque clonado, adulterado ou falsificado, da hipótese em que a própria vítima, iludida por um ardil, voluntariamente, efetua depósitos e/ou transferências de valores para a conta corrente de estelionatário. Quando se está diante de estelionato cometido por meio de cheques adulterados ou falsificados, a obtenção da vantagem ilícita ocorre no momento em que o cheque é sacado, pois é nesse momento que o dinheiro sai efetivamente da disponibilidade da entidade financeira sacada para, em seguida, entrar na esfera de disposição do estelionatário. Em tais casos, entende-se que o local da obtenção da vantagem ilícita é aquele em que se situa a agência bancária onde foi sacado o cheque adulterado, seja dizer, onde a vítima possui conta bancária. Já na situação em que a vítima, induzida em erro, se dispõe a efetuar depósitos em dinheiro e/ou transferências bancárias para a conta de terceiro (estelionatário), a obtenção da vantagem ilícita por certo ocorre quando o estelionatário efetivamente se apossa do dinheiro, seja dizer, no momento em que ele é depositado em sua conta. Precedentes: CC 169.053/DF, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 11/12/2019, DJe 19/12/2019; CC 161.881/CE, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/03/2019, DJe 25/03/2019; CC 162.076/RJ, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/03/2019, DJe 25/03/2019; CC 114.685/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 09/04/2014, DJe 22/04/2014; CC 101.900/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/08/2010, DJe 06/09/2010; CC 96.109/RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/08/2009, DJe 23/09/2009. 4. Tendo a vítima efetuado transferências bancárias para contas de pessoas físicas cujas agências bancárias localizam-se todas no Município de Guarulhos/SP, é de se reconhecer que a competência para condução do inquérito policial é do Juízo de Direito da 4ª Vara criminal de Guarulhos/SP, o suscitado” (AgRg no CC 171.632/SC, j. 10/6/2020). A Lei 14.155/21 inseriu no art. 70 do CPP o § 4º para dispor o seguinte: Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 8 “Nos crimes previstos no art. 171 do Código Penal, quando praticados mediante depósito, mediante emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de valores, a competência será definida pelo local do domicílio da vítima, e, em caso de pluralidade de vítimas, a competência firmar- se-á pela prevenção”. A partir da nova Lei 14.155, portanto, grande parte da controvérsia envolvendo a competência do estelionato plurilocal está resolvida: o crime cometido mediante depósito, emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de valores deve ser julgado segundo o domicílio da vítima. Nota-se que a solução trazida pela nova Lei diverge um tanto da orientação firmada pelo STJ. Para o tribunal, como vimos, o estelionato em que a vítima efetua depósito ou transferência bancária deve ser julgado no local em que se localiza a agência na qual o criminoso recebe o dinheiro. Mas o § 4º do art. 70 determina que, também nesse caso, a competência deve ser determinada pelo domicílio da vítima. Nos casos de pagamento por cheque, as decisões do STJ fazem referência ao local em que situada a agência bancária na qual a vítima mantém sua conta corrente. Embora, na grande maioria dos casos, a vítima mantenha a conta bancária no mesmo lugar de seu domicílio, é possível que isso não ocorra. Pela regra do § 4º do art. 70, importa o domicílio da vítima, não o local em que se situa a instituição financeira. É provável que o legislador tenha concebido a regra pensando também nas contas bancárias digitais, operadas por instituições financeiras que têm apenas uma agência – a sede, a qual na maioria das vezes está muito distante do local em que o crime é cometido. O novo parágrafo acaba tornando sem eficácia as súmulas 244 STJ e 521 STF. Por fim, debate que já nota no dia a dia (e antevisto pelo CAOCRIM no boletim 141, onde comentou a nova Lei) consiste em averiguar a competência para as ações penais que se encontrem em andamento. É dizer: em curso um processo envolvendo estelionato por meio de cheque sem fundos, iniciado antes da vigência da Lei 14.155, deve ele prosseguir perante o juízo de origem, do local da conta bancária, ou, ao revés, cumpre sua imediata remessa ao juízo do domicílio da vítima (quando diversos)? Entendemos que deve ser mantido no juízo de origem. Impõe-se a chamada perpetuatio juridicionis, pela qual a competência se firma, definitivamente, quando do registro ou distribuição da ação, não mais podendo ser modificada, segundo o art. 43 do Código de Processo Civil (com aplicaçãoao processo penal nos termos do art. 3º do CPP). O perpetuatio jurisdicionis traz uma ressalva, que ocorre quando as mudanças “alterarem a competência absoluta”. Ora, na hipótese vertente, a competência é territorial, relativa (e não absoluta), e, como tal, não se enquadra na exceção prevista no art. 43 do CPC. Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 9 Em suma: a retroatividade da norma do §4º, do art. 70 do CPP, deve ser observada se o crime ainda está na fase de investigação. Existindo processo, deve ser notado o instituto da “perpetuatio iurisdictionis”, necessário para a estabilidade da competência de foro. Uma vez determinada e fixada esta, quaisquer modificações de fato ou de direito supervenientes são irrelevantes em sua estabilidade. Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 10 DIREITO PENAL: 1-Tema: Estelionato Judiciário- Atipicidade? STJ- Notícias do STJ Por reconhecer a atipicidade da conduta, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria de votos, trancou a ação penal contra uma mulher que teria apresentado endereço falso com o objetivo de iniciar processo na Justiça Federal do Paraná sobre uma mesma questão que já havia sido julgada de forma definitiva no Distrito Federal. A ação penal proposta pelo Ministério Público Federal imputou à mulher os crimes de falsidade ideológica e uso de documento falso. Em primeiro grau, o juízo afastou a alegação de atipicidade da conduta e considerou que haveria motivos para a instauração do processo contra a denunciada. A decisão foi mantida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Segundo a Corte, o fato de o endereço supostamente falso ter sido informado em procuração e declaração de hipossuficiência juntadas a processo judicial – possivelmente de forma dolosa – tornaria prematuro o acolhimento da alegação de atipicidade. Jurisprudência vê atipicidade em estelionato judiciário. O relator do habeas corpus na Terceira Seção, ministro Sebastião Reis Júnior, destacou que a jurisprudência do STJ considera atípica a figura do chamado "estelionato judiciário", consistente no uso, em processo judicial, de documentos particulares com informações não condizentes com a realidade. Nesses casos, apontou, o entendimento é de que tais documentos gozam de presunção relativa de veracidade, passíveis de prova em contrário no curso do devido processo legal. "Ora, estando imputada conduta atípica, consistente no uso de documentos particulares, procuração e declaração de hipossuficiência, especificamente quanto à indicação de endereço, é necessário trancar a ação penal", concluiu o magistrado. Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): HC 664970 COMENTÁRIOS DO CAOCRIM Na mesma linha do entendimento exposto no julgado em comento, o STJ tem decidido reiteradamente que o ato de firmar declaração inverídica de pobreza para fins processuais não constitui falsidade ideológica: https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=HC%20664970 Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 11 “O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a mera declaração de estado de pobreza para fins de obtenção dos benefícios da justiça gratuita não é considerada conduta típica, diante da presunção relativa de tal documento, que comporta prova em contrário”3. Já se decidiu também não haver falsidade ideológica na inserção de dados inverídicos em petição judicial, vez que se trata de simples alegações, posteriormente debatidas em juízo: “Falsidade ideológica: afirmação de fato inverídico em petição: hipótese de atipicidade. 1. A petição em processo judicial ou administrativo só faz prova do seu próprio teor; não, porém, da veracidade dos fatos alegados. 2. Por isso, de regra – isto é, salvo nos casos excepcionais em que a lei imputa ao requerente o dever de veracidade – a inserção em petição de qualquer espécie da alegação de um fato inverídico não pode constituir falsidade ideológica. 3. Caso, por outro lado, em que a veracidade ou não da questionada afirmação de fato era indiferente ao deferimento da petição de simples vista de processo administrativo para extração de cópias que interessassem à defesa do peticionário”4. De igual forma, o STJ considera que a inserção de informação falsa em currículo Lattes não caracteriza o crime de falsidade ideológica porque, tratando-se de página eletrônica em que o usuário insere informações apenas mediante o uso de login e senha, não é possível certificar a identidade de quem faz a inserção. Por isso, não se trata de um documento eletrônico, assim considerado aquele integrante de página ou sítio na rede mundial de computadores que possa ter sua autenticidade aferida por assinatura digital, como estabelece a regulamentação segundo a qual é possível garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos eletrônicos (MP 2.200-2/2001). Além disso, assim como já vinha decidindo a respeito das declarações de pobreza e das petições iniciais, o tribunal ponderou que as informações constantes do Lattes – como de qualquer outro currículo – são verificáveis, isto é, não fazem prova por si (5). 2- Tema: Aplicação da reincidência específica tratada no art. 44, § 3º, do Código Penal STJ- Informativo de Jurisprudência n º. 706 A interpretação que as duas Turmas criminais do STJ dão ao art. 44, § 3º, do CP, conclui que a reincidência em crimes da mesma espécie, ainda que não seja no mesmo crime, obsta por completo a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Fica prejudicado, 3. RHC 24.606/RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe 2/6/2015. 4. STF, HC 82605/GO, Rel. Min. Sepulveda Pertence, DJ 25/2/2003. 5. RHC 81.451/RJ, DJe 31/8/2017. Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 12 assim, o debate quanto à suficiência da pena substitutiva, porque a reincidência específica torna desnecessário aferir se a substituição é ou não socialmente recomendável. Feita essa consideração, a questão que se apresenta pode ser sintetizada nos seguintes termos: para os fins da reincidência específica basta que o réu já tenha sido condenado por crime da mesma espécie, ou somente a condenação pelo mesmo crime impede a substituição da pena? A razão está com a última corrente. O art. 44, § 3º, do CP, excepciona o requisito da primariedade para a substituição da pena privativa de liberdade com a seguinte redação: "Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: [...] II - o réu não for reincidente em crime doloso; [...] § 3º. Se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime". De imediato, o princípio da vedação à analogia in malam partem nos recomenda que não seja ampliado o conceito de "mesmo crime". Toda atividade interpretativa parte da linguagem adotada no texto normativo, a qual, apesar da ocasional fluidez ou vagueza de seus termos, tem limites semânticos intransponíveis. Existe, afinal, uma distinção de significado entre "mesmo crime" e "crimes de mesma espécie"; se o legislador, no particular dispositivo legal em comento, optou pela primeira expressão, sua escolha democrática deve ser respeitada. É verdade que, em sede doutrinária, não é unânime o conceito de reincidência específica, havendo quem a entenda configurada "se o crime anterior e o posterior forem os mesmos" ou, contrariamente, "quando os dois crimes praticados pelo condenado são da mesma espécie". Esta última definição está em sintonia com o art. 83, V, do CP, que proíbe o livramento condicional para o reincidenteespecífico em crime hediondo - ou seja, quando a reincidência se operar entre delitos daquela espécie. Também no art. 112, VII, da LEP, com as recentes modificações da Lei n. 13.964/2019, o conceito de reincidência específica está atrelado à natureza (hedionda, no caso desse dispositivo) dos delitos, e não à identidade entre os tipos penais em que previstos. Por isso, se o art. 44, § 3º, do CP vedasse a substituição da pena reclusiva nos casos de reincidência específica, seria mesmo defensável a ideia de que o novo cometimento de crime da mesma espécie obstaria o benefício legal, em uma interpretação sistemática do CP e da LEP. Não foi isso, porém, que fez o legislador: com o uso da expressão "mesmo crime" - ao invés de "reincidência específica" -, criou-se no texto legal uma delimitação linguística que não pode ser ignorada. Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 13 Pode-se argumentar, é claro, que a utilização de conceitos distintos de reincidência específica (um para a substituição da pena privativa de liberdade, outro para o livramento condicional e a progressão de regime) prejudicaria a coerência interna da legislação penal. Essa realidade, aliás, é de conhecimento de todos que com ela operamos diariamente: os dois principais diplomas legislativos que esta Terceira Seção é chamada a interpretar - o CP e o CPP -, ambos octogenários, encontram-se defasados, repletos de cortes e alterados de forma pouco sistemática ao longo das décadas. É possível ver, também, outro fator relevante em favor da interpretação que hoje prevalece, neste STJ, sobre o art. 44, § 3º, do CP. Pela redação do dispositivo, há situações em que a progressão criminosa, com a prática de um delito mais grave, premia o agente com a substituição, enquanto o cometimento de dois crimes mais leves a proíbe. Por exemplo: o réu reincidente pela prática de dois crimes de furto simples (art. 155, caput, do CP) não terá direito à substituição da pena, porquanto aplicável a vedação absoluta contida no art. 44, § 3º, do CP. De outro lado, se o segundo crime for de furto qualificado (art. 155, § 4º, do CP), o réu pode fazer jus à substituição, se a pena não ultrapassar 4 anos de reclusão. Em outras palavras, o cometimento de um segundo crime mais grave poderia, em tese, ser mais favorável ao acusado, em possível violação ao princípio constitucional da isonomia. Essa contradição é impedida pelo atual entendimento das Turmas que compõem a Terceira Seção deste Tribunal, que considera o bem jurídico tutelado pelos delitos para definir se incide, ou não, a proibição contida no art. 44, § 3º, do CP. Assim, se forem idênticos os bens ofendidos, não haverá substituição, mesmo que diversos os tipos penais pelos quais o réu foi condenado. Contudo, corrigir a discutível técnica legislativa em desfavor do réu é algo incabível no processo penal, que rejeita a analogia in malam partem em seu arsenal jusdogmático. Por essas razões, entende-se pela superação da tese de que a reincidência em crimes da mesma espécie impede, em absoluto, a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, porque somente a reincidência no mesmo crime (aquele constante no mesmo tipo penal) é capaz de fazê-lo, nos termos do art. 44, § 3º, do CP. Nos demais casos de reincidência, cabe ao Judiciário avaliar se a substituição é ou não recomendável, em face da condenação anterior. Acesse a decisão proferida no AREsp 1.716.664-SP COMENTÁRIOS DO CAOCRIM Os requisitos para a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos estão previstos no artigo 44 do Código Penal e variam de acordo com a espécie de delito praticado. https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2090257&num_registro=202001476515&data=20210831&peticao_numero=202000750685&formato=PDF Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 14 Nos crimes dolosos, a substituição da pena privativa de liberdade depende do preenchimento de quatro requisitos, dois de natureza objetiva e dois de natureza subjetiva. São eles: (i) pena aplicada não superior a 4 (quatro) anos (ii) crime cometido sem violência real ou grave ameaça à pessoa (iii) não ser o condenado reincidente em crime doloso (iv) seja indicada e suficiente a substituição da pena. Ainda que verificada a reincidência, permite-se a conversão da pena se o condenado, não reincidente no mesmo crime, a medida seja socialmente recomendável (art. 44, §3º, CP). Trata-se de clara expressão do princípio da suficiência da pena alternativa. Sempre se discutiu o alcance da expressão “não reincidente específico”, e sua aplicação para vedar a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Para uns, reincidente específico é o condenado pelo mesmo crime definitivamente julgado no passado. Se o sentenciado, por exemplo, tendo condenação por furto, cometesse novo furto, para esta corrente não tinha direito à substituição da pena. Se, no entanto, condenado por furto, praticasse estelionato, a substituição era possível, desde, de acordo com o caso concreto, seja socialmente recomendável. Para outros, condenado por crime da mesma natureza, mesmo que tipificado em artigo diverso, bastava para impedir a substituição de pena. Voltando aos exemplos acima, para esta corrente, nas duas hipóteses o condenado teria que cumprir pena privativa de liberdade. O STJ, no julgado em comento, adotou a primeiro corrente. Disse que, se o art. 44, § 3º, do CP, vedasse a substituição da pena reclusiva nos casos de reincidência específica, seria mesmo defensável a ideia de que o novo cometimento de crime da mesma espécie obstaria o benefício legal, em uma interpretação sistemática do CP e da LEP (art. 112, VI). Não foi isso, porém, que fez o legislador: com o uso da expressão "mesmo crime" - ao invés de "reincidência específica" -, criou-se no texto legal uma delimitação linguística que não pode ser ignorada. Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 15 MP/SP: decisões do setor do art. 28 do CPP 1-Tema: definição do correto enquadramento dos fatos, com reflexo na atribuição funcional CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO Autos n.º 000xx11.5x.2018.8.26.0052 – MM. Juízo do Foro Central Criminal (Barra Funda) da Capital. Dipo 4 Suscitante: Promotora de Justiça Criminal de São Paulo Suscitado: Promotor de Justiça oficiante no 5º Tribunal do Júri da Capital (Pinheiros) Assunto: definição do correto enquadramento dos fatos, com reflexo na atribuição funcional Cuida-se de procedimento investigatório instaurado para apurar suposto crime de homicídio doloso consumado (art. 121, caput, do CP) perpetrado por SERGIO RICARDO DA SILVA, VINÍCIUS QUEIROZ DA SILVA, RICHARD RAFAEL EQUER SILVA, RAFAEL LOPES DOS SANTOS e EDUARDO HENRIQUE SOARES, tendo por vítima Ivan Luiz dos Santos, fato este ocorrido no dia 19 de maio de 2018, por volta das 9 horas e 30 minutos, à Rua Werner Siemens, 350, Lapa, na cidade e comarca da Capital. Policiais foram acionados para atenderem a ocorrência versando a respeito de encontro de cadáver (fls. 05/06); no local, o cadáver de Ivan apresentava sinais de violência (fls. 26/43). Nas adjacências do corpo da vítima, foram apreendidos dois pedaços de madeira, aparentemente usados para agredi-la; a vítima apresentava ferimentos pelo corpo, como escoriações nas costas, no flanco direito do tórax, no antebraço direito e na perda direita; ferimento punctório no braço esquerdo; ferimento corto-contuso no antebraço direito; ferimento corto-contuso na região da sobrancelha esquerda; dentes quebrados. A causa da morte apontada pelo laudo necroscópico foi “edema pulmonar agudo, por ação de agente biodinâmico secundário a cardiopatia hipertrófica, em vítima de politraumatismo e sob efeito de cocaína (fls. 62/66). BoletimCriminal Comentado 154- Setembro 2021 16 O exame toxicológico da vítima foi positivo para cocaína, na concentração de 352 ng/ml (trezentos e cinquenta e dois nanogramas por mililitro de sangue). O relatório de investigação de fls. 68 registra que, através de informações passadas pelos moradores da região, a vítima era morador de rua e usuária de drogas; o “boato” é de que a vítima teria sido morta por não pagar uma dívida contraída com o traficante de droga da Favela da Ritinha; o provável autor seria um indivíduo de apelido “Tio”. O pai da vítima Wilson Aparecido dos Santos esclareceu que Ivan era usuário de drogas, e já tinha sido preso por tráfico; ouviu comentários no sentido de que o ofendido teria sido morto por dívida de drogas na comunidade da Ritinha (fls. 71/72). A testemunha protegida ALPHA informou que Ivan adquiriu droga de um traficante de prenome RICARDO, alcunhado de “Tio”, morador da comunidade da Ritinha. A vítima foi até a favela para pagar a dívida com o referido traficante, mas faltou a quantia de R$ 35,00 (trinta e cinco reais); por não dispor da quantia integral, o ofendido passou a ser espancado por RICARDO, que chamou para auxiliá-lo seu filho, alcunhado de “BE”, e seu sobrinho RAFAEL, apelidado de “Rafa”, pedindo para que levassem Ivan até o campo de futebol, dando uma surra nele. Segundo a testemunha, a vítima foi espancada com paus, não resistindo aos ferimentos e falecendo no local. ALAN, “KIMBERLY” e “PICA-PAU” teriam presenciado o crime (fls. 99/100). Essas possíveis testemunhas não foram encontradas (fls. 110). “Tio” foi identificado como SÉRGIO RICARDO DA SILVA; “Rafa” como RICHARD RAFAEL EQUER DA SILVA e “Be” como VINÍCIUS QUEIROZ DA SILVA (fls. 101/103). Laudo perinecroscópico anexado a fls. 118/129. RICHARD RAFAEL EQUER DA SILVA negou a prática do crime (fls. 135). A testemunha BETA informou que conhecia de vista a vítima e que, na noite do crime, houve uma festa na casa de RICARDO, vulgo “Tio”, onde havia várias pessoas da comunidade; RICARDO seria traficante e dono da “Biqueira” da região; seu filho VINÍCIUS é conhecido como “Be”, morando ambos Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 17 na mesma residência. Presenciou o momento em que a vítima tentou pagar a dívida de drogas contraída com RICARDO, ocasião em este último disse: “está faltando dinheiro para o pagamento total”. RICARDO passou a desferir socos e pontapés contra IVAN nas costas e murros no estômago; a vítima foi levada, por VINÍCIUS, RICHARD e outro indivíduo de nome RAFAEL, até o campo de futebol da comunidade, onde todos deram pauladas, sendo que Ivan não resistiu e morreu. Após cerca de quarente minutos, “Be”, RICHARD e RAFAEL deixaram o campo; soube, depois, por populares, que a vítima tinha morrido (fls. 137/139). A testemunha BETA reconheceu por fotografia o indiciado “Tio” como sendo SÉRGIO RICARDO DA SILVA, que agrediu a vítima durante a festa, determinando que seu filho VINÍCUS, RICHARD e RAFAEL agredissem a pauladas a vítima Ivan, o que o levou à morte (fls. 140/141). Citada testemunha BETA também reconheceu por fotografia VINÍCUS QUEIROZ DA SILVA, alcunhado de “Be, filho de Ricardo, o qual, na companhia de RICHARD e de outro indivíduo de prenome RAFAEL, agrediram a vítima Ivan no Campo de futebol da Comunidade Bento Bicudo, resultando na morte da vítima (fls. 142/143). BETA reconheceu, ainda, por fotografia, RICHARD RAFAEL EQUER DA SILVA, conhecido por “Richard Rafel”, sobrinho de Ricardo, o qual na companhia de VINÍCUS e outro indivíduo de prenome RAFAEL agrediram mortalmente a vítima Ivan (fls. 144/145). Foi representado pela decretação das prisões temporárias de RICARDO, VINÍCUS e RICHARD, além de ordens de busca e apreensão (fls. 176/174). Nada de irregular foi arrecadado (fls. 185/200). A testemunha BETA reconheceu RICHARD como sendo a pessoa que acompanhou VINÍCUS e RAFAEL, arrastando a vítima até o campo de futebol onde foi executada (fls. 216/217). BETA reconheceu pessoalmente RICHARD (fls. 220/221); reconheceu, ainda, VINÍCIUS como sendo a pessoa que na companhia de RAFAEL e RICHARD arrastou a vítima pelos braços até o campo Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 18 de futebol, onde foi agredida com chutes, pontapés, socos e agressões, com uso de madeira com prego na ponta. A testemunha GAMA disse que conhecia a vítima fatal, que era usuária de drogas, trabalhando para o tráfico para “Tio”. No dia do ocorrido, viu “Tio”- notório traficante do local- na travessa João Antônio Ferreira Filho, defronte ao número 28, agredindo a vítima com madeiradas por motivo de “desacordo” referente ao pagamento de dívida de drogas. RICARDO agrediu a vítima com golpes de madeira pelo corpo (desferindo de cinco a seis pauladas); agrediu, ainda, as mãos do ofendido. Ivan foi arrastado por RICARDO, VINÍCIUS, RAFAEL e EDUARDO até um campo de futebol. Disse que não viu as agressões naquele local, mas soube que Ivan foi agredido a “madeirada”, com pontas de prego. As pessoas que executaram a vítima, segundo soube, seriam RICARDO, RAFAE e VINÍCIUS, enquanto que EDUARDO continha os moradores da comunidade (fls. 222/223) GAMA reconheceu por fotografia RICARDO como sendo o “Tio”, traficante de drogas, que praticou as agressões com pauladas, chutes e pontapés contra Ivan. BETA reconheceu por fotografia RAFAEL LOPES, citado como RAFAEL, o qual, na companhia de RICARDO, VINÍCIUS e RICHARD agrediram Ivan a pauladas (fls. 241). Foi determinada a prisão temporária de RAFAEL e busca apreensão em sua residência (fls. 269/271). Resultante da busca e apreensão na residência de RAFAEL nada de irregular foi encontrado; já na residência de Fabiana foi apreendido seu aparelho celular (fls. 275). Foi determinada a quebra de sigilo telefônico e telemático dos dados do celular apreendido (fls. 281/282). O suspeito Eduardo foi identificado como EDUARDO HENRIQUE SOARES (fls. 297/298). GAMA reconheceu fotograficamente EDUARDO HENRIQUE SOARES como sendo a pessoa que no local do crime conteve moradores da comunidade Ritinha para não ingressarem no local, visando assegurar o homicídio (fls. 370). Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 19 EDUARDO HENRIQUE SOARES foi indiciado (fls. 321). Em seu interrogatório, EDUARDO disse que participou da festa de aniversário de VINÍCIUS, acrescentando que no evento estavam seus colegas RICARDO, vulgo “Tio”, VINÍCIUS, RICHARD e RAFAEL, vulgo “Gordo”, além de outras pessoas que não conhecia. Por volta das 3 horas e 30 minutos, IVAN ficou conversando com RICARDO, na porta da residência; afirma ter presenciado RICARDO agredir Ivan com tapas no rosto e socos no peito, tendo a vítima deixado o local no sentido da Rua Suraia Aidar Menon. Soube apenas no dia seguinte, por intermédio dos moradores da comunidade, que IVAN havia sido agredido com pauladas no campo de futebol por VINÍCIUS, RICHARD e RAFAEL. Ivan foi morto em decorrência do não pagamento de dívida de drogas contraída com RICARDO. EDUARDO reconheceu fotograficamente RAFAEL, RICHARD, RICARDO e VINÍCIUS (fls. 340). VINÍCIUS foi indicado diretamente, enquanto que SÉRGIO RICARDO DA SILVA e RAFAEL LOPES DOS SANTOS foram indiciados pela forma indireta (fls. 344), todos nos termos do art. 121, § 2, incisos III e IV, do Código Penal RICARDO e RAFAEL não foram localizados. RICHARD RAFAEL EQUER DA SILVA foi também indiciado (fls. 366). Interrogado, o indiciado RICHARD esclareceu que participou da festa de VINÍCIUS na residência de SÉRGIO e FABIANA, sendo que VINÍCIUS, RAFAEL e EDUARDO também lá estavam. Na madrugada do dia 19 de maio de 2018, a vítima Ivan se dirigiu até a residência de RICARDO a fim de pagar uma dívida de drogas, sendo certo que Ivan trabalhava na “biqueira”. Afirma ter presenciado o momento em que seu tio RICARDO agrediu com socos no peito de Ivan,que foi conduzido até um campo de futebol por seu primo VINÍCIUS. Passado algum tempo, junto com seu primo Victor, avistaram no campo de futebol, RAFAEL e outra pessoa de prenome LUCIANO agredindo Ivan a pauladas. Asseverou que chegou a pedir para VINÍCIUS, RAFAEL e LUCIANO cessarem as agressões contra Ivan, mas as agressões continuaram e Ivan foi lesionado na cabeça, pernas e costas de Ivan. As madeiras foram deixadas no próprio local. Refere não ter visto o indiciado EDUARDO pelo local. O indiciado reconheceu, por fotografia, LUCIANO SILVA como sendo a pessoa que, na companhia de VINÍCIUS e RAFAEL agrediram a pauladas a vítima Ivan (fls. 382). Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 20 RICHARD foi indiciado (fls. 377/385). Victor Queiroz Ferreira da Silva confirmou ter participado da festa de aniversário de VINÍCIUS, seu irmão; negou ter visto qualquer agressão (fls. 381/388). A Digna Autoridade policial relatou o inquérito policial, concluindo que a vítima morreu em decorrência de edema pulmonar agudo por ação de agente biodinâmico, secundário a cardiopatia hipertrófica, em virtude de poli traumatismo e sob efeito de cocaína, caracterizadas as lesões, cometidas em concurso de agentes: RICARDO teria sido o mandante do crime, visto que a vítima lhe devia a quantia de R$ 35,00 (trinta e cinco reais), decorrente do tráfico de drogas; VINÍCIUS, RAFAEL e LUCIANO seriam os coautores do crime, conduzindo Ivan até o campo de futebol, onde teria sido executado por meio cruel e recurso que dificultou sua defesa. RICHARD e EDUARDO teriam atuado como partícipes, uma vez que acompanharam os coautores, mas sem agredirem a vítima. Representa, então, ao fim, pela decretação das prisões preventivas de SERGIO RICARDO DA SILVA, VINÍCIUS QUEIROZ DA SILVA, RAFAEL LOPES DOS SANTOS e de EDUARDO HENRIQUE SOARES (fls. 392/411). O Douto Promotor de Justiça atuante no Júri ressaltou que, pelo exame necroscópico de fls. 62/65, após descrever as lesões suportadas pela vítima, concluiu que a causa da morte decorreu de edema pulmonar agudo por ação de agente biodinâmico, com poli traumatismo e sob efeito de cocaína. Requereu, então, a complementação do exame necroscópico para que fosse esclarecido, de forma expressa e conclusiva, se a causa da morte apontada guarda relação com as agressões sofridas pelo ofendido (fls. 414/415). Foi determinado o envio dos autos à delegacia de polícia (fls. 416/417). O indiciado LUCIANO ARISTIDES DOS SANTOS foi reconhecido por RICHARD RAFAEL EQUER DA SILVA como a pessoa que agrediu a vítima Ivan Luís dos Santos, com pedaços de madeira (fls. 432/433). Em seu interrogatório, LUCIANO ARISTIDES DOS SANTOS admitiu sua presença na festa realizada no dia 18 de maio de 2018 na residência de Fabiana; havia no local doze pessoas. Era um Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 21 evento para comemorar o aniversário de VINÍCIUS, vulgo “Be”. Negou ter agredido a vítima (fls. 434/435). O laudo necroscópico indireto relata o que foi apurado no laudo necroscópico anterior: escoriação e equimose arroxeada na região frontal esquerda; escoriação na região frontal direita, nariz, região malar direita; escoriação e equimoses arroxeadas lineares em região anterior do tórax, abdome, antebraço esquerdo, braços região torácico-lombar; escoriações em joelhos e face anterior das pernas. Equimoses arroxeadas em braço direito. No exame interno: segmento encefálico, não foram observadas lesões, na calota craniana, mas se verificou edema e congestão. No segmento torácico-abdominal, no pescoço não se avistaram lesões; no tórax, havia infiltrado hemorrágico nos músculos intercostais anteriores, bilateralmente e posteriores à direita, com fraturas dos arcos costais à direita; pulmões congestos e edemaciados. Coração com hipertrofia ventricular. Congestão hepática, com discreto infiltrado hemorrágico. No exame anátomo-patológico constatou-se que no pulmão havia congestão crônica, com edema alveolar moderado. Antracose. No coração constatou- se hipertrofia de fibras miocárdias, com fibrose intersticial discreta. Fígado, rins e cérebro com congestão. Verificada a presença de cocaína com concentração de 352 ng/ml. Conclui o médico legista afirmando que a causa da morte foi edema pulmonar agudo, por ação de agente biodinâmico secundário a cardiopatia hipertrófica em vítima de poli traumatismo e sob efeito de cocaína. Na parte de discussão, o perito explica a promoção, pelo stress, físico e emocional, de reações do organismo, de acordo com as agressões: ocorre o aumento da pressão sanguínea, da pressão arterial e da frequência ventilatória. Em pessoas saudáveis, a reação costuma ser benéfica, tendendo a normalizar após o evento estressante. Já em pessoas com patologias prévias, essa resposta ao estresse costuma ser catastrófica, podendo levar inclusive à morte. As lesões traumáticas sofridas pela vítima, promovidas por ação contundente, foram inúmeras, porém não fatais, não sendo, assim, capazes de causar a morte. Mas, considerando-se as condições anteriores ao óbito, podem ter provocado um nível de estresse que, em conjunto com o uso de substâncias, provocou uma resposta cardiovascular e respiratória excessivas. A cocaína, usada em larga escala, tem a capacidade de se ligar aos transportadores de dopamina, um neurotransmissor ligado ao bem-estar e ao prazer, fazendo com que o seu uso seja abusivo. Com o uso prolongado dessa droga, pode ocorrer hipertensão, taquicardia e arritmias; essas alterações podem ser fatais em pessoas com patologia cardiovascular Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 22 prévia. A conclusão é a de que a morte ocorreu por uma associação de fatores: as lesões traumáticas sofridas pela vítima, causando uma sobrecarga cardíaca e respiratória, o uso de cocaína em um indivíduo portador de cardiopatia crônica, levando ao edema pulmonar agudo e óbito (fls. 453/455). Laudo de local a fls. 458/469. Em nova representação, a Douta Autoridade policial requereu a decretação da prisão preventiva dos indiciados (fls. 472/473). O Culto Promotor de Justiça ressaltou que, apesar do novo estudo técnico anexado aos autos, remanescem dúvidas se as agressões anteriores- consistentes em sua grande maioria em escoriações e equimoses- com exceção da lesão por fratura de arcos costais, terem, de fato, desencadeado a causa final da morte, por edema pulmonar agudo; requereu, então, a intervenção do núcleo de perícias do IML, a fim de oferecer parecer médico legal conclusivo quanto a causa mortis (fls. 478/479). Em novo parecer, a equipe de perícias médico-legais, após dissertar a respeito das concausas preexistentes, concomitantes e supervenientes ao evento danoso, afirma que as lesões traumáticas (na pele, subcutâneo e fraturas de arcos costais) incidiram em pessoa com uma condição mórbida pré-existente, cardiopatia hipertrófica, concausa pré-existente, com agravamento do estado patológico anterior pela ação do traumatismo, acelerando a evolução da doença, em vítima sob efeito de cocaína, com o consequente estresse, provocando uma respostas cardiovascular e respiratória excessivas e fatias para a vítima, com falência cardiorrespiratória, edema pulmonar agudo e óbito (fls. 484/485). Nova representação pela decretação da prisão preventiva dos indiciados (fls. 486/487). Foi requerida pelo diligente Promotor de Justiça nova perícia para se apurar, de fato, a causa da morte (fls. 488/489). Mais uma reiteração da prisão preventiva (fls. 502). Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 23 No derradeiro parecer, analisam-se as fotos do cadáver da vítima no local: foto de fls. 465- escoriações- o lado direito do tronco e no antebraço direito do cadáver. Não foram observadas manchas de aspecto úmido, todas estão ressecadas, apergaminhadas; foto de fls. 466-escoriações- em joelho e na perna; não se observa manchas de aspecto úmido são manchas ressequidas e apergaminhadas. Fls. 466- escoriações- na região torácica; manchas também ressecadas. Fls. 467- escoriação- na região torácica esquerda (idêntica à anterior). Fls. 467- ferimentos em face do cadáver, com substância compatível com sangue. Fls. 468- imagem do tronco- não se observa manchas de aspecto úmido, estão ressecadas. Fls. 468- ferimento punctiforme- na porção posterior do braço esquerdo cadáver com mancha de sangue. Na discussão do laudo, afirma-se que, observando as fotos das lesões, constata-se a existência de escoriações, que apresentam aspecto ressecado, mas sem qualquer substância úmida em bordas ou fundos, não se permitindo aquilatar se são lesões produzidas em vida. Não há como se diferenciar de lesões realizadas em vida ou secundárias em razão da ação de insetos necrofágicos; as lesões vitais são as de pálpebra superior esquerda e braço esquerdo. A vítima apresenta duas escoriações, ferimentos corto-contusos e punctórios ao exame externo, mais acentuado no tronco. Na cavidade torácica constatou-se infiltrado hemorrágico em musculatura intercostal anterior em ambos os lados e, à direita, fraturas de arcos costais posteriores à direita, mas em exame interno desta cavidade não há lesão traumática; no abdome, há descrição de infiltração hemorrágica na região peri-esplênica, mas sem descrição de traumas nesta cavidade. Constatação de alteração pulmonar aguda e crônica (congestão, edema e antracnose); coração com alterações crônicas (hipertrofia de fibras- fibrose intersticial) e congestão em cérebro, rim e fígado. No exame toxicológico, verificada a presença de cocaína, na concentração de 352 ng/ml de sangue, que não é descrita como sendo dose comprovada de óbito. Mas a análise desse resultado deve ser criteriosa, uma vez que o efeito da cocaína é individual. A relação média entre dose e mortalidade, na maioria dos casos, é de uma concentração acima de 1000 ng/ml de sangue. A overdose clássica se apresenta com teores sanguíneos acima de 1000 ng/ml. Na segunda categoria, estão os casos em que, em concentrações não tão altas (entre 400 a menos de 1000 ng/ml), existe relato de sintomatologia que precede o óbito (convulsões, comportamento bizarro, etc). Na terceira categoria, existem as toxicidades de dose baixa, em que a cocaína como causa do óbito apresenta concentrações sanguíneas na mesma faixa daquelas apresentadas por usuários; nesse último caso, Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 24 não é possível uma correlação direta entre a droga e o óbito. As causas de uso de cocaína que levam à morte são: infarto do miocárdio, arritmias ventriculares e acidente vascular cerebral, sendo que os achados patológicos do exame poderiam caracterizar e correlacionar o óbito da vítima com a concentração detectada de cocaína em seu sangue (352 ng/ml de sangue). Ocorre, nessa última situação: espasmo coronariano, constrição arterial coronariana, necrose, miocardiopatia dilatada, arteriosclerose coronariana. Prossegue o laudo afirmando que, com tais elementos, a vítima, com 41 anos de idade, com lesões em tegumento corporal em face, tronco e membros, constatadas no exame de local e exame necroscópico externo; ao exame interno, apesar de fratura dos arcos costais, infiltrado hemorrágico, que foi entendido como hematoma, em musculatura de arcos costais e em região peri-esplênica, não foram observados traumas, hemorragias, contusões viscerais significativas que pudessem causar a morte da vítima. A vítima apresentava um quadro de congestão difusa, incluindo cérebro, pulmões e rins, com alterações cardíacas crônicas, e também pulmonares. As alterações todas constatadas não caracterizam o óbito como decorrente de trauma: a morte foi causada em decorrência de edema e congestão pulmonar, em vítima portadora de doença cardíaca e pulmonar crônica, por ação de agente biodinâmico. As lesões constatadas na vítima não podem ser correlacionadas com sua morte (fls. 503/513). O Douto Promotor de Justiça oficiante no Júri, ao analisar o conteúdo do último estudo médico-legal, concluiu que os indiciados cometerem, em tese, o delito de lesão corporal, e não de homicídio, razão porque remeteu a remessa dos autos ao Foro Criminal Central (fls. 516/518). O pleito foi deferido (fls. 519). O Digno Promotor de Justiça atuante na Vara Criminal fixou a compreensão de que a atribuição para atuar no presente feito é do membro do Ministério Público do Júri, uma vez que a vítima sofreu lesões traumáticas em áreas nobres do corpo humano, com fraturas dos arcos costais, que seriam concausas da morte de Ivan; desse modo, segundo a concepção do Culto Promotor, não se poderia descartar a presença do dolo do homicídio, além do que eventual dúvida reverteria em favor da sociedade, a fim de prevalecer a competência constitucional do Júri (fls. 522/523). Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 25 Os autos foram remetidos a esta Chefia Institucional ante o declínio de atribuições de ambos membros do Ministério Público (fls. 524). É o relato do essencial. Pelo que se depreende do caderno investigatório, restou devidamente apurado, através da colheita de vários depoimentos e interrogatórios, e dos laudos necroscópicos, perinecroscópico, e estudos médico-legais que a vítima Ivan Luiz dos Santos foi agredida, em um primeiro momento, pelo indiciado SÉRGIO RICARDO DA SILVA, em razão de a vítima dever a quantia de R$ 35,00 (trinta e cinco) reais decorrente do tráfico de drogas (o indiciado SÉRGIO RICARDO seria o traficante e o ofendido Ivan seu “funcionário”); depois dessas primeiras agressões, SÉRGIO, que seria o mandante, determinou aos indiciados VINÍCIUS, RAFAEL e LUCIANO que agredissem a vítima (esses indiciados seriam os coautores, que conduziram Ivan até um campo de futebol, matando-o por meio cruel e recurso que dificultou a defesa da vítima, espancando-a, inclusive com pedaços de madeira. Os indiciados RICHARD e EDUARDO teriam atuado como partícipes, uma vez que acompanharam os coautores VINÍCIUS, RAFAEL e LUCIANO, até o local das agressões, mas não lesionaram a vítima). O laudo do local referenda o teor dos depoimentos prestados, inclusive se fotografando o cadáver da vítima e os pedaços de madeira possivelmente utilizados para agredir a vítima (fls. 458/469). Percebe-se, então, que existem elementos informativos e provas coerentes de autoria e materialidade no sentido de se demonstrar que os indiciados, em concurso de agentes, agrediram o ofendido Ivan, lesionando-o. O que está em discussão nestes autos é a questão do nexo de causalidade entre as lesões sofridas em decorrência das condutas dos indiciados e a morte da vítima. O laudo necroscópico descreve escoriações e equimoses na região frontal, no nariz, na região malar, no tórax, abdome, antebraço esquerdo, braço direito; infiltrado hemorrágico nos músculos intercostais anteriores, fraturas dos arcos costais, pulmões congestos e edemaciados. Constata-se, ainda, hipertrofia ventricular do coração; congestão crônica do pulmão; a conclusão do médico Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 26 legista, neste primeiro laudo, é de que a causa da morte ocorreu em decorrência de agente biodinâmico secundário a cardiopatia hipertrófica em vítima de politraumatismo, sob o efeito de cocaína (fls. 62/66). Pelo que se extrai deste primeiro laudo, a vítima apresentava lesões corporais referentes a escoriações e equimoses em diversas partes do corpo; as escoriações são arranchamentos traumáticos da epiderme6; enquanto que as equimoses são as infiltrações de sangue nas malhas de tecidos, ambas lesões contusas decorrentes de ação contundente (no caso, agressões com os punhos e uso de pedaços de madeira). Além das lesões sofridas, o laudo necroscópicoaponta que o ofendido Ivan era uma pessoa gravemente doente: apresentava edema pulmonar, ou seja, o acúmulo de líquido no interior do pulmão, o que, segundo estudos médicos7, ocorre com mais frequência quando o coração encontra dificuldades para bombear o sangue, aumentando a pressão do sangue no interior dos pequenos vasos sanguíneos dos pulmões. Para liberar essa pressão, os vasos liberam líquido para dentro dos pulmões, o qual interrompe o fluxo normal de oxigênio, resultando em falta de ar. Na maior parte das vezes, o edema é causado pela insuficiência cardíaca. E, de fato, Ivan apresentava, provavelmente relacionado ao edema pulmonar, hipertrofia ventricular, que é o aumento da espessura do músculo da parede do ventrículo esquerdo, responsável pelo bombeamento do sangue do coração para todo o corpo. Verificou-se, a antracnose, uma lesão pulmonar típica de fumantes, que pode ocasionar disfunções pulmonares graves, inclusive fibrose. Apresentava, ainda, o ofendido hipertrofia miocárdia, uma sobrecarga funcional ao coração. Verificou-se, ademais, o consumo de quantidade significativa de cocaína pela vítima Ivan (352 ng/ml). Pelo que se constata, então, ao se interpretar o laudo necroscópico direto (o primeiro deles), a vítima tinha doenças graves preexistentes às agressões, especialmente no coração e pulmões, e tinha feito uso de quantidade significativa de cocaína. A conclusão deste primeiro laudo 6 Medicina Legal, Texto e Atlas, 2ª edição, Revista e Ampliada. Hygino de C. Hércuels. Editora Atheneu. 2014. São Paulo. Página 196 e 209. 7 www.hospitalsiriolibanes.org.br Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 27 é de que a causa da morte foi edema pulmonar agudo, por ação de agente biodinâmico secundário a cardiopatia hipertrófica em vítima de politraumatismo e sob efeito de cocaína. Essa conclusão pericial é bastante confusa e ambígua, uma vez que, ao invés de esclarecer os fatos, acabou por obnubilar a causa da morte: a vítima morreu em razão das doenças pré- existentes e do uso de cocaína, ou esse estado mórbido anterior atuaria como concausa pré- existente às lesões suportadas no dia do crime, e que juntamente com ela, ocasionaram, conjuntamente, a morte da vítima? Se for entendido que as doenças e uso de drogas pela vítima causaram, por si sós, a morte da vítima, não haveria como se responsabilizar os indiciados pelo homicídio, mas sim apenas pelo crime de lesão corporal: seria o caso de uma causa preexistente absolutamente independente que causou, por si só, o evento letal. No entanto, se as doenças e o uso de drogas pela vítima caracterizar uma causa pré-existente que tenha contribuído, como concausa, para a eclosão do evento morte, juntamente com as lesões suportadas, os indiciados deveriam responder pelo crime de homicídio. Como explica o mestre Nelson Hungria8: “Se o agente procede necandi animo (isto é, com dolo, direto ou eventual, específico), que importa, sob o ponto de vista penal, a preexistência, concomitância ou superveniência de uma causa que, embora alheia ao cálculo do agente, favoreça ou condicione a eficiência letal da lesão infligida, sem ultrapassar a órbita do perigo criado por esta por esta ou incidindo na sua linha de desdobramento físico? (...) Tanto faz que a morte tenha resultado da ocorrência, por exemplo, do estado hemofílico ou diabético do ofendido, quanto da fragilidade congênita do seu osso frontal, atingido pelo golpe, ou de um processo infeccioso consequente à lesão recebida. E arremata: “O nexo causal entre a conduta do agente e o resultado não é 8 Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, Volume V, Edição Revista Forense, Rio de Janeiro, 1953. Páginas 38 e 40. Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 28 interrompido ou excluído pela interferência cooperante de outras causas. Assim, no crime de homicídio, a relação causal entre o agente e o resultado “morte” não deixa de subsistir, ainda quando para tal resultado haja contribuído, por exemplo, a particular condição fisiológica da vítima ou a falta de tratamento adequado”. Até esse primeiro momento da persecução penal, em uma leitura apressada do laudo necroscópico direto, poderia se concluir que, embora o estado mórbido pré-existente da vítima, as lesões suportadas por ela teriam dado causa à morte da vítima, de modo que os indiciados deveriam responder pelo delito de homicídio e não pelo crime de lesões corporais. Bem verificou essa grande ambiguidade do laudo pericial, o Douto Promotor de Justiça que determinou a complementação do exame necroscópico para que fosse esclarecido, de forma expressa e conclusiva, a causa da morte da vítima (fls. 414/415). Foi elaborado um segundo laudo pericial (laudo necroscópico indireto) em que se aduz que o estresse aumenta a pressão arterial e que, tais alterações, em pessoas com patologias prévias (como era o caso da vítima Ivan), seria “catastrófico”, podendo levar à morte; salienta-se, no laudo em estudo, que as lesões traumáticas sofridas pela vítima, não foram fatais; mas, se forem consideradas as condições anteriores ao óbito, em conjunto com o uso de drogas e o estresse poderiam provocar uma resposta cardiovascular e respiratória excessivas. Conclui-se o laudo pericial apontando que a causa da morte teria sido uma associação de fatores: lesões traumáticas sofridas pela vítima, causando uma sobrecarga cardíaca e respiratória, o uso de cocaína por um cardiopata, levando ao edema pulmonar agudo e morte (fls. 453/455). Pela interpretação deste laudo, a conclusão é a de que a vítima, cardiopata e com grave doença pulmonar, foi agredida pelos indiciados, o que gerou estresse, com aumento dos batimentos cardíacos e da respiração, o que ocasionou- em conjunto de concausas- a morte da vítima em razão de edema pulmonar; por esse estudo médico-legal, estaria caracterizada a prática de homicídio por parte dos indiciados. Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 29 Em perspicaz manifestação, o Culto Promotor de Justiça, Dr. Rodrigo Merli, apontou que, mesmo com a juntada do segundo laudo necroscópico (indireto) remanesceriam dúvidas se as agressões anteriores- consistentes em sua maioria em escoriações e equimoses (com exceção da fratura nos arcos costais) desencadearam, ou não, a causa final da morte, por edema pulmonar agudo; solicitou, então, a intervenção do núcleo de perícias do IML (fls. 478/479). O terceiro estudo médico-legal, emanado do núcleo de perícias do IML (fls. 503/513), em estudo das fotos do cadáver da vítima que retratariam escoriações, observou a não existência de manchas de aspecto úmido; ao contrário, se mostravam apergaminhadas, ressecadas. Dessa constatação, é apontado que não se permite aquilatar se tais lesões foram produzidas em vida, uma vez que não há como diferenciar lesões realizadas em vida ou secundárias em razão de insetos necrofágicos; as lesões vitais são as de pálpebra superior esquerda e braço esquerdo. Quanto à fratura dos arcos costais, não se constatou lesão traumática, quando do exame interno da cavidade. Aponta o estudo médico que a quantidade de 352 ng/ml de sangue podem caracterizar o óbito da vítima por espasmo coronariano, ou seja, em miúdos, a vítima poderia ter morrido de overdose. Acrescenta-se que, apesar da fratura dos arcos costais, infiltração hemorrágica em musculatura de arcos costais, e na região peri-esplênica (região abdominal), não se observou traumas, contusões viscerais significativas que pudessem causar a morte da vítima. Em outras palavras, segundo as conclusões periciais, o óbito não se caracterizou como decorrente de trauma, sendo ocasionado em razão de edema e congestão pulmonar, em vítima portadora de doença cardíaca e pulmonar crônica, por ação de agente biodinâmico; in verbis: “As lesões constatadas na vítima não podem ser correlacionadascom a sua morte”. Depreende-se desse profundo trabalho pericial que a vítima foi agredida pelos indiciados, sofrendo escoriações, na pálpebra, no braço esquerdo, no tronco, além de fratura dos arcos costais, com infiltrado hemorrágico, na musculatura das costelas; mas essas lesões não foram a causa da morte da vítima, que decorreu, segundo as conclusões do núcleo de perícias, provavelmente, de overdose. O laudo ora em estudo afasta – peremptoriamente - o nexo de causalidade entre as agressões praticadas pelos indiciados e a morte da vítima, de modo que não se pode atribuir, Boletim Criminal Comentado 154- Setembro 2021 30 depois desse completo e exauriente estudo de medicina legal, a prática de homicídio aos investigados, mas, apenas, o de lesões corporais. Comprovado o rompimento de nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado morte, descaracterizando, de maneira científica, a prática do crime de homicídio, não há por que se remeter os autos à Vara do Júri, com base em suposta dúvida em favor da sociedade, quando é certo que a ambiguidade e a dúvida, efetivamente antes existentes, foram sanadas e esclarecidas de maneira categórica. Diante deste quadro, inexistindo justa causa para uma acusação idônea e responsável pela prática de homicídio, certo que a persecução penal deve permanecer junto ao membro do Ministério Público oficiante no Juízo Comum, para que elabore sua livre convicção quanto ao delito de lesão corporal. Ante o exposto, conhece-se do presente incidente para dirimi-lo e declarar que a atribuição para oficiar nos autos é do Douto Suscitante, Promotor de Justiça que oficia perante a Vara Criminal Central da Comarca da Capital. Para que não haja menoscabo à sua independência funcional, já que a presente decisão colide com a sua opinio delicti, designa-se, se necessário, outro promotor de justiça para atuar na persecução penal, requerendo o que de direito, facultada a observação do disposto no art. 4-A da Resolução nº 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pela Resolução nº 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006. Expeça-se, se necessário, portaria, designando o substituto automático. São Paulo, 26 de agosto de 2021. Mário Luiz Sarrubbo Procurador-Geral de Justiça