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INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS GEOGRÁFICOS Silvana Kloster dos Santos Geografia marxista e as agendas culturais Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Descrever as teorias da filosofia e do marxismo para examinar as relações espaciais da geografia humana. Apontar os elementos da geografia marxista em pautas sociais. Identificar a necessidade de engajamento político dos geógrafos na defesa da diminuição das disparidades socioeconômicas e regionais. Introdução Neste capítulo, você aprenderá sobre a geografia crítica inspirada no marxismo, em que as relações sociais estão diretamente ligadas às forças produtivas dos meios de produção, inspirada no pensamento do filósofo alemão Karl Marx, ícone do pensamento crítico, político, filosófico e eco- nômico presente à sua época. Abordaremos a dialética do pensamento econômico contemporâneo, de modo a compreender a corrente liberal que antecedeu o marxismo durante a Revolução Industrial, para, então, compreendermos a teoria social crítica inspirada no próprio marxismo. Posteriormente, nos anos de 1970, o marxismo será introduzido aos estudos geográficos mais atuais, incorporando o conceito de espaço como uma função dinâmica tão importante quanto os demais setores da produção e da reprodução social. Do liberalismo clássico à teoria econômica de Marx Para a compreensão do pensamento da geografi a marxista, é necessário entender a dialética do pensamento político contemporâneo, dividida entre a corrente liberal, que tem raízes no pensamento dos fi lósofos iluministas do século XVII e dos economistas da escola clássica do século XVIII, tendo como referência o fi lósofo e economista britânico Adam Smith (1723-1790), e a corrente marxista, que se inspira no pensamento do fi lósofo alemão Karl Marx (1818-1883), ícone do pensamento crítico, político, fi losófi co e econômico presente à sua época. O liberalismo clássico e o capitalismo Até o advento da Primeira Revolução Industrial, ocorrida entre 1760 e 1870, na Inglaterra, o mundo era um conjunto de realidades espaciais das mais diversas, e as sociedades se distribuíam na infi nita diversidade espacial dos gêneros de vida das civilizações. A tecnologia industrial passa, então, a intervir na distribuição, unifi cando-se em sua expansão área a área, um após outro, nesses antigos espaços (MOREIRA, 2007). A Revolução Industrial foi um conjunto de alterações socioeconômicas que se iniciou na Europa. É nesse período que se estabelece efetivamente o capitalismo, por meio da troca do trabalho artesanal pelo assalariado nas fábricas. Até o fim do século XVIII, a maior parte da população europeia residia no campo e produzia o que consumia. Uma nova estrutura social é formada no campo por elementos econômicos e sociais. Com a queda do feudalismo, os proprietários das terras comunais passam a cercar suas terras, impedindo o acesso da população camponesa. O trabalho no campo passa a ser assalariado, a burguesia rural se consolida e a produção agrícola passa a ser voltada para o mercado, e não mais para a subsistência. Os camponeses desprovidos de recursos financeiros deixam de residir no campo e passam a buscar trabalho nas cidades que despontavam para a industrialização, ao mesmo tempo em que a indústria necessitava de mão de obra para operar nas máquinas. Segundo Oliveira (2017, p. 91): Com base em intensos estudos e pesquisas, pode-se acrescentar que, a Revo- lução Industrial na Inglaterra foi um processo revolucionário no período da Idade Moderna, a qual oportunizou um crescimento acelerado, tanto no meio urbano, como no meio industrial. A revolução restaurou a economia inglesa, sendo que essa restauração foi um dos pontos positivos da industrialização. Por outro lado, a mão de obra do proletariado foi substituída pelas máquinas, onde a classe trabalhadora perdeu totalmente a independência que tinha em sua produção no sistema doméstico, e passaram a trabalhar fora de suas casas, e ser vigiados nas grandes indústrias, assim como, explorados e oprimidos, onde crianças e adultos trabalham apenas para obter seu sustento, o pão de cada dia. A classe do proletariado não era mais dona do seu trabalho, mas sim, tinham que seguir as inovações, e a produção acelerada das máquinas, sem saber o resultado final do produto. Geografia marxista e as agendas culturais2 Junto à Revolução Industrial, ocorre, respectivamente, a ideologia do capitalismo e o êxito do liberalismo clássico. O liberalismo proporcionou as bases filosóficas do sistema capitalista industrial. Dessa maneira, são introduzidas inovações, destacando o desen- volvimento da máquina à vapor como fonte de energia manufatureira, ocasionando intensas mudanças sociais e econômicas (HUNT; SHERMAN, 1977). Com o advento da Segunda Revolução Industrial (1860 a 1900), na Ale- manha, na França, na Itália, no Reino Unido e nos Estados Unidos, essa inter- venção das máquinas é levada à escala planetária na forma da uniformização dos modos de vida e processamentos produtivos, envolvendo uma série de desenvolvimentos dentro das indústrias química, elétrica, de petróleo e de aço. Os espaços são globalizados em menos de um século sob um só modo de produção, que unifica os mercados e os valores, suprime a identidade cultural das antigas civilizações e traz, com a uniformidade técnica, uma desarrumação socioambiental em escala inusitada (MOREIRA, 2007). Segundo Hunt e Sherman (1977), é no transcorrer do processo de indus- trialização que a visão de mundo individualista subjacente ao liberalismo clássico tornou-se a ideologia influente do capitalismo. Muitas das ideias do liberalismo clássico haviam deitado raízes e mesmo conquistado ampla aceitação no período mercantilista, mas foi somente no final do século XVIII e no século XIX que o liberalismo clássico dominou definitivamente o pensamento político, econômico e social na Inglaterra (HUNT; SHERMAN, 1977, p. 57). Contudo, o que é o liberalismo clássico que antecede o marxismo? Vamos entender. De acordo com Hunt e Sherman (1977), a doutrina psicológica dos ideológicos do liberalismo clássico assegurava quatro pressupostos sobre a natureza humana: todo homem é egoísta, frio e calculista, basicamente inerte e atomista. Segundo Bentham (1955 apud HUNT; SHERMAN, 1977), a natureza expôs a espécie humana ao domínio de duas autoridades imperantes: a dor e o prazer. Segundo o autor, somos por elas governados em todas as nossas atividades, em tudo o que falamos e em tudo o que pensamos. Além da dor e do prazer, os pensadores do liberalismo conferiram também o intelecto humano uma função bastante importante. 3Geografia marxista e as agendas culturais Aí está a vertente calculista e intelectual da teoria psicológica do liberalismo clássico: a ênfase que confere à avaliação racional dos prazeres e dores e, em contrapartida, o menosprezo pelo capricho, o instinto, o hábito, o costume e as convenções (HUNT; SHERMAN, 1977, p. 58). A visão que o indivíduo tem sobre si perante a sociedade é uma visão individualista, ou seja, cabe a cada cidadão esforçar-se individualmente para conquistar seu capital, sua renda e seu status social. Se os menos favorecidos economicamente estão em estado de penúria, é porque são preguiçosos, não se esforçaram o necessário. Outra característica importante que deve ser destacada sobre os liberais clássicos é a sua visão sobre a sociedade. Para eles, é importante que os homens estejam organizados em sociedade devido à necessidade de segurança coletiva e das vantagens econômicas da distribuição do trabalho, sendo a divisão do trabalho a base fundamental da doutrina econômica do liberalismo clássico. Um dos fundamentos básicos do liberalismo clássico era de que os homens, em particular os de negócio, deveriam possuir liberdade para dar vazão a seus im- pulsos egoístas, o que sugeria a anulação dos mecanismos de controle e repressão impostos pelasociedade, exceto os indispensáveis (HUNT; SHERMAN, 1977). Os economistas liberais afirmavam que as relações de competição junto às economias de mercado eram favoráveis tanto para os indivíduos como para toda a sociedade. Essa visão é exposta na obra considerada a mais importante consumação intelectual do liberalismo clássico, a obra de Adam Smith, “A Riqueza das Nações”, publicada em 1776 (HUNT; SHERMAN, 1977). A obra de Adam Smith é considerada um marco na história da Economia Política. Nela, Smith toma o trabalho como problema econômico central, entendido como atividade produtiva, como fonte de riqueza, reagindo contrariamente à concepção elitista mercantilista agrária dos fisiocratas da época. O trabalho, para ele, servirá como base para a explicação sobre a riqueza das diferentes nações. A proporção, segundo Smith, sobre a qual o produto desse trabalho se reparte entre um número maior ou menor de consumidores é que torna a nação mais ou menos rica. Destaca-se na sua obra a teoria da produtividade do trabalho (HUGON, 1980). Para Smith, os indivíduos esforçam-se sucessivamente para encontrar o emprego que seja mais vantajoso para o capital, o qual detém o comando. Aqueles que são desprovidos de capital estão sempre em busca de um em- prego que lhes ofereça melhor rendimento em troca do seu trabalho. A falta de uma autoridade ou lei que determine onde o capital deve ser empregado torna o trabalho mais produtivo, pois o interesse no lucro faz a escolha recair naturalmente sobre a produção de um bem que corresponde à necessidade das pessoas e que elas estejam dispostas a adquirir (HUNT; SHERMAN, 1977). Geografia marxista e as agendas culturais4 Smith era a favor do mercado livre, onde os produtores, movidos pelo desejo egoísta de obter maiores lucros, concorreriam entre si para atrair o dinheiro dos consumidores. Assim, o mercado e o trabalho seriam investidos na produção de bens mais desejados pelos consumidores. Era o livre jogo da oferta e da procura, e o mercado agiria como uma “mão invisível”, direcionando as motivações egoístas e interesseiras dos homens para atividades reciprocamente complementares que promoveriam, de forma har- moniosa, o bem-estar de toda a sociedade, eliminando qualquer ação paternalista sobre a população mais pobre. Qualquer intervenção governamental na economia, impondo restrições, provocaria um efeito de retração da procura e interromperia o processo de acumulação de capital. Não era admissível a intromissão paternalista do governo nos assuntos econômicos (HUNT; SHERMAN, 1977). Sobre a ética paternalista cristã, caberia aos ricos promover a segurança e o bem-estar dos pobres, por meio de medidas paternalistas e atos de caridade. O industrial Robert Owen (1771-1858), sobre o qual você estudará mais à frente, defendeu essa ideia e considerava injusta a sociedade em que uma classe, aproveitando-se do poder que possuía, explorava as classes inferiores. “A propriedade privada dos meios de produção (fábricas, máquinas, ferramentas) possibilitava a uma classe minoritária explorar economicamente a grande massa de agricultores e operários.” (HUNT; SHERMAN, 1977, p. 79). Adam Smith opunha-se a essa noção. Ao contrário, para ele, o capitalista que agir para o seu próprio interesse estará proferindo naturalmente investimentos para a própria sociedade (HUNT; SHERMAN, 1977). É no liberalismo clássico que surge a teoria populacional de Thomas Robert Malthus. Segundo a teoria malthusiana, a população, quando não está submetida ao controle, tende a crescer naturalmente em cada geração em proporção geo- métrica (1, 2, 4, 8, 16, ...), ao passo que que a produção de alimentos cresceria em proporção aritmética (1, 2, 3, 4, 5, 6, ...), tornando necessário submeter a população a algum mecanismo de controle, pois a produção de alimentos não seria suficiente para alimentá-la. Como solução, Malthus propõe duas formas de controle do crescimento populacional: os controles preventivos e repressivos. Os preventivos consistem na limitação voluntária da natalidade, pela limitação do número de filhos, principalmente pelos mais pobres. Os pobres deveriam pôr no mundo apenas os filhos que pudessem sustentar. Já os repressivos são os que atuam com o máximo rigor, ou seja, com o aumento da mortalidade. São compostos por epidemias, mortes resultantes de uma alimentação insuficiente, pelas guerras, as disputas pelos meios de produção, como a terra (HUGON, 1980). 5Geografia marxista e as agendas culturais Caberia aos governos, segundo a obra “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith, três funções genéricas: proteger o país contra invasões de estrangeiros, proteger os cidadãos contra “injustiças” cometidas por cidadãos e o dever de construir e manter a instituições e obras públicas, que, mesmo sendo vantajosas para toda a sociedade, seus gastos não superariam o lucro se essas instituições estivessem a cargo de um pequeno grupo de indivíduos (HUNT; SHERMAN, 1977). A teoria de Malthus, juntamente com as teorias econômicas liberais, se- gundo Hunt e Sherman (1977), teria por finalidade a renúncia de qualquer tentativa de intervenção dos governos paternalistas em favor dos pobres na economia. Os mesmos liberais apoiariam um governo paternalista se este beneficiasse os capitalistas. No fim do século XIX, a função de proteger o país de ameaças externas foi desdobrada para a proteção e a ampliação dos mercados externos por meio de repressão militar. A função de proteger os cidadãos contra as “injustiças” recebeu outro sentido, o da proteção à propriedade privada, à propriedade de fábricas e equipamentos, garantir o cumprimento de contratos e garantir a ordem interna. Os capitalistas detinham o poder político e econômico por serem os donos dos meios de produção. A atribuição do governo na função de protetor da fonte de se provinha o poder fazia dos capitalistas a classe política e economicamente dominante (HUNT; SHERMAN, 1977). Com a Revolução Industrial, os níveis de produtividade do trabalho foram elevados aos mais altos níveis pelo homem. Cresceram o número de fábricas e a utilização de máquinas para o rendimento da produção. Grande parte dessa produção destinava-se à criação de bens de capital, e muito pouco para bens de consumo. Esse investimento em bens de capital causou um custo social elevado, ocasionando enormes carências para as massas. “A experiência his- tórica demonstra que sempre que as sociedades precisam obrigar parte de seus membros a apertar os cintos e a viver ao nível de subsistência, foram os de menor poder econômico e político que tiveram que arcar com os sacrifícios” (HUNT; SHERMAN, 1977, p. 71). As fábricas concentravam os trabalhadores em um ponto sob a autoridade capitalista burguesa. Assim, era possível para o patrão dirigir o processo produtivo de acordo com seus interesses, determinar a carga horária por meio da tirania do relógio e controlar a dedicação do produtor ao trabalho. Com a concentração de trabalhadores, era possível também regular o padrão tecnológico utilizado na produção, controlar fraudes ou sabotagens e criar um modelo disciplinar e hierárquico na administração da fábrica. Geografia marxista e as agendas culturais6 Enquanto os donos do sistema de produção enriqueciam, a classe de tra- balhadores não sofria melhora alguma. De acordo com muitos pesquisadores, nesse período, a classe de operários sofreu todo tipo de exploração. Era comum o emprego de mulheres e crianças, mesmo despreparadas, para trabalhar nas máquinas, recebendo salários bem inferiores aos salários recebidos pelos homens (ver Figura 1). Famílias inteiras eram obrigadas a trabalhar para sobrevivência. Crianças eram negociadas como mera mercadoria, muitas trabalhavam de 14 a 18 horas por dia, com uma única refeição. Muitas dormiam no trabalho por exaustão ou sofriam acidentes de trabalho. As mulheres eram submissas e muitas tinham de ceder aos desejos dos seus empregadores ou capatazes. Os operários eramexpostos a todo tipo de doenças (HUNT; SHERMAN, 1977). Figura 1. Meninos e meninas trabalhando na sala de giro do moinho de Cornell, em Fall River, Massachusetts – janeiro de 1912. Foto de Lewis Hine. Fonte: Everett Historical/Shutterstock.com. No novo contexto, enquanto as cidades cresciam rapidamente, acom- panhando o processo de industrialização, os camponeses não conseguiam sobreviver à exploração dos seus pequenos lotes, e, como não havia emprego nas fazendas, só restava o abandono do campo e a busca por novas formas de sobrevivência. Esse deslocamento de um grande número de pessoas para as cidades tornou-se um problema. 7Geografia marxista e as agendas culturais Para controlar as massas, a Inglaterra e, depois, outros países da Europa estabeleceram a Lei dos Pobres (séc. XV até o séc. XIX). Essa lei buscava o controle sobre as multidões de excluídos por meio de repressão pura e simples, com execução de mendigos e criminosos. Atribuía às autoridades a posse para entregarem sob contrato para as fábricas os filhos dos indigentes. Essas crianças eram submetidas às mais severas servidões, ficando à mercê dos seus patrões. Os operários não viam essa situação sem reagir, ao contrário, desde a intro- dução das indústrias têxteis, os operários já buscavam organizar-se na defesa coletiva dos seus interesses. As resistências dos trabalhadores acabavam em motim e tiroteio. O fortalecimento dos sindicatos e o intenso descontentamento econômico e social que dominava a época intimidou as classes dominantes (HUNT; SHERMAN, 1977). Insensíveis com as condições de vida dos mais carentes, os liberais clássicos combatiam as iniciativas que pudessem melhorar as condições de vida dos trabalhadores. Eram contrários a Spenhamland, estabelecida na legislação social liberal. Era um auxílio aos pobres, criado em 1795, que assegurava aos desamparados condições mínimas de sobrevivência, estando ou não emprega- dos. O auxílio deveria ser bem inferior ao menor salário oferecido no mercado de trabalho, para que o indivíduo buscasse melhor emprego por medo de ser estigmatizado. Para os liberais clássicos, os trabalhadores deveriam aceitar qualquer tipo de emprego que lhes fosse oferecido, independentemente do salário e das condições de trabalho (HUNT; SHERMAN, 1977). A insatisfação e os graves problemas sociais estabelecidos após a Revolução Industrial e a consolidação do capitalismo fizeram surgir um movimento contrário ao pensamento liberal clássico. Entre os abastados proprietários de terras e os aristocratas, havia uma parte que apoiava a ideia de que as classes superiores deveriam proteger e velar pela sorte dos pobres. Algumas das denún- cias de exploração vinham justamente dos conservadores radicais. Atribuíam às classes médias, insaciáveis por lucros, a responsabilidade pelos problemas sociais gerados com a industrialização. Entre os capitalistas, o mais conhecido é Robert Owen. Owen foi operário desde os 10 anos de idade e, aos 20 anos, já era gerente de fábrica. Graças ao seu tino para os negócios, acumulou uma fortuna apreciável. Era a favor de condições decentes de trabalho, salários razoáveis e educação para os filhos de seus operários. Considerava injusta a exploração de uma classe sobre a outra (HUNT; SHERMAN, 1977). “A Geografia marxista e as agendas culturais8 propriedade privada dos meios de produção (fábricas, máquinas, ferramentas) possibilitava a uma classe minoritária explorar economicamente a grande massa de agricultores e operários” (HUNT; SHERMAN, 1977, p. 79). Na época, houve também um grupo de socialistas que protestavam contra as desigualdades cometidas pelo capitalismo. Defendiam a extinção da pro- priedade privada do capital e a criação de uma sociedade industrial justa, em que homens e mulheres fossem tratados com dignidade e que os lucros da produção fossem divididos de forma justa. No liberalismo clássico, o cidadão é representado de maneira individualista, e esse sistema se mostra egoísta e insensível com os trabalhadores que tiveram de suportar os custos sociais da industrialização. Surgiram, então, movimentos contrários, os quais criticavam o sistema capi- talista vigente e defendiam o fim da propriedade privada do capital e a criação de uma sociedade industrial mais justa e digna para homens e mulheres. Esses movimentos contrários serviram como precursores para o estabelecimento de uma nova corrente, o marxismo, como veremos a seguir. Socialismo marxista Karl Marx (1818-1883) é considerado o mais importante de todos os socialistas. Suas obras infl uenciaram não apenas no campo da sociologia, mas principal- mente nas questões políticas que conduzem os destinos de uma grande parte da humanidade. Marx foi inspirado pelos socialistas do fi m do século XVIII e início do século XIX, porém ele refutava as utopias idealistas e sentimentais dos sociólogos, os quais qualifi cava como “socialistas utópicos”, pois creditava que era ingênua a ideia de que sensibilidade moral e a racionalidade da classe educada transformaria a realidade social. Para ele, os homens educados faziam parte das classes dominantes, e suas posições e privilégios eram consequências do capitalismo, e, dessa forma, eles defenderiam suas posições dentro desse sistema (HUNT; SHERMAN, 1977). Karl Marx escreveu, juntamente com Friedrich Engels (1820-1895), obras de destaque, como Manifesto comunista (1848) e O capital (1867). Foram os fundadores e principais teóricos do marxismo, ou socialismo “científico”, e organizadores e líderes ativos de um movimento revolucionário que ima- ginavam poder destruir os sustentáculos do capitalismo durante suas vidas (OSER; BLANCHFIELD, 1983). 9Geografia marxista e as agendas culturais O capital afirma a necessidade histórica de uma revolução socialista, a partir de uma análise da sociedade e da história, baseada na ideia da luta de classes. A luta de classes foi sempre o motor da história. O antagonismo que opõe a burguesia e o proletariado é, pois, a sua forma moderna. Esse antagonismo será concretizado por meio da vitória do proletariado, da abolição da propriedade privada e da exploração do trabalho e com a chegada de uma sociedade não antagônica: o comunismo (CLÉMENT et al., 1994). Do Manifesto comunista, apenas o primeiro livro foi publicado enquanto Marx era vivo (1867), o qual analisa o “desenvolvimento da produção capitalista”. Os livros II – O processo da circulação da produção do capital e III – Processo de conjunto da produção capitalista foram redigidos por Engels, a partir das notas deixadas por Marx, e publicados em 1885 e 1894. A quarta parte da obra, As teorias da mais valia foi obra (1904-1910) de Kautsky, baseada na documentação fornecida por Marx; no seu primeiro capítulo, Marx faz críticas aos modos de produção capitalista e da “imoralidade de um intercâmbio capitalista ao termo do qual o dinheiro deve sempre render mais”: “[...] o patrão não compra o produto da trabalho, mas a ‘capacidade de trabalho’ de seus operários, o que acarreta uma nova forma de escravidão, a exploração do homem pelo homem” (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 325). Os estudos de Marx sobre a sociedade capitalista estão baseados em uma abordagem histórica conhecida como materialismo histórico. Ele elaborou estudos sobre as causas e os efeitos que se conectam entre as relações dos sistemas sociais, ideias, leis, costumes, crenças religiosas, ética e moral, instituições econômicas e sociais presentes dentro dos sistemas sociais. Para ele, a base econômica da sociedade e os modos de produção exerciam uma forte influência sobre as demais instituições sociais e as especialidades de pensamento, inclusive a religiosa (HUNT; SHERMAN, 1977). O que é, então, o materialismo histórico? Consiste na tese na qual as trans- formações de ordem material determinarão todas as transformações de ordem ideológica. Tais transformações dependem das que operam na técnica de produção. A infraestrutura econômica da sociedade,a forma de se produzir, determina a superestrutura, ou seja, a moral, a arte, a literatura, a religião. Significa que as relações sociais estão diretamente ligadas às forças produtivas. O materialismo histórico constitui não só um método de interpretação dos fatos passados, mas também auxilia na dedução como um instrumento de previsão (HUGON, 1980). Segundo Gomes (1996, p. 282): A perspectiva marxista encontra no método materialista-histórico o instru- mento capaz de projetar a percepção para além do fenomenológico, fazendo sobressair as verdadeiras essências escondidas atrás das aparências. A reali- Geografia marxista e as agendas culturais10 dade última é, portanto, revelada por intermédio da razão, que reconhece, no movimento caótico da sociedade, os fatores fundamentais de sua organização e de seu desenvolvimento [...]. Antes individual, como as formas de se produzir e o regime da propriedade, hoje, a produção tornou-se coletiva, devido à concentração do trabalho nas fábricas e à imposição e à utilização das técnicas (maquinários). O trabalhador operário vende a sua força de trabalho ao empregador, detentor do capital e proprietário dos meios de produção, que continua sob o regime individualista, ao passo que que os meios de produção são coletivizados. A infraestrutura e a superestrutura atuam em uma relação mútua de causa e efeito (HUGON, 1980). O materialismo histórico evidencia o resultado dessa interação, ou seja, o antagonismo entre as classes, a divisão entre os detentores dos meios de produção e os fornecedores da força de trabalho. No sistema feudal, eram os senhores e os servos, no sistema capitalista, são os proprietários e o proleta- riado (operários). Os primeiros se empenham para manter seus privilégios, e os últimos lutarão contra esse poder dominador ou buscarão tornar-se também beneficiários (HUGON, 1980). O proletariado é, portanto, uma classe social que se define objetivamente pela ausência de posse dos meios de produção e, subjetivamente, por uma tomada de consciência de que não somente pertence a uma classe, mas também do papel histórico de que está incumbido (HUGON, 1980, p. 212). Marx classificou quatro sistemas econômicos ou modos de produção emi- nentes, cuja sucessão marcou a evolução da civilização europeia: o comunismo primitivo, o escravismo, o feudalismo e o capitalismo. Em todos eles dominava um único modo de produção, caracterizado pela força de trabalho coletivo e uma estrutura particular de dominação. De acordo com Marx, a imposição de se ampliar a produção via exploração, visando a satisfazer à crescente demanda social, gera, inevitavelmente, conflitos, tensões e contradições entre as forças produtivas e as relações sociais de produção, alterando todo o sistema. Quando as tensões e os conflitos crescem, colocam abaixo o antigo sistema e dão origem a um novo sistema, com novas relações de classe, compatíveis, por um tempo, com as forças produtivas transformadas (HUNT; SHERMAN, 1977). 11Geografia marxista e as agendas culturais Concepção econômica de Marx Marx formula a tese da exploração por meio de dois aspectos complementares: o econômico, em o trabalho compõe o valor dos produtos; e o social, o valor do que foi produzido cabe a quem fornece o trabalho, ou seja, o operário. O empregador e o capitalista guardam para si uma parte do valor produzido, o operário não recebe o valor integral do seu trabalho, ao qual tem direito. Duas teorias foram geradas por Marx para explicar o aspecto econômico dessa exploração: a teoria do valor-trabalho e a teoria da mais-valia. Teoria do valor-trabalho: concordando com as teorias aceitas pelos liberais clássicos, como Adam Smith e David Ricardo, Marx considerava que o valor de troca de uma mercadoria era determinado pelo tempo de trabalho necessário para produzi-la. Os trabalhadores se diferenciam quanto às suas habilidades e quanto ao trabalho simples e o trabalho qualificado. O trabalho qualificado representa um múltiplo do trabalho simples. Além disso, o tempo de trabalho utilizado em uma mercadoria inútil (sem procura) instituiria uma mercadoria cujo valor de troca não corresponderia ao valor de trabalho imposto nela. Dessa forma, o desejo de lucro faria os capitalistas produzirem somente produtos que cobrissem, aos menos, os custos de produção. A procura no mercado determina a oferta do produto e as suas quantidades. O trabalhador não recebe o valor integral pelo seu trabalho, sendo considerado uma vítima do sistema de trocas da sociedade capitalista (HUNT; SHERMAN, 1977; HUGON, 1980). Teoria da mais-valia: quando os trabalhadores acabavam o processo de produção, o capitalista vendia as mercadorias por uma quantia superior à quantia investida no início do processo. Essa diferença é a origem dos lucros capitalistas, denominada mais-valia. Os capitalistas adquiriam uma mercadoria por meio da força de trabalho, e vendiam uma mercadoria diferente: aquela produzida com a força de trabalho no decorrer do processo de produção. O valor da força de trabalho é inferior ao valor do produto final, ou seja, das mercadorias produzidas com o emprego dela. Essa diferença é o lucro. O valor da força de trabalho é proporcional ao valor dos meios de subsistência necessários para a manutenção do trabalhador a um padrão mínimo de vida socialmente estabelecido (HUNT; SHERMAN, 1977). Os capitalistas obtinham lucros por serem o proprietário do capital, rein- vestindo a maior parte dos lucros para ampliar o seu capital e, assim, obter maiores lucros. Era o processo de acumulação de capital. No entanto, como Geografia marxista e as agendas culturais12 originou esse processo? Segundo os economistas da escola liberal, como o inglês Nassau Senior (1790-1864), os capitalistas conseguiram acumular capital à custa de muito trabalho, economizando inicialmente pequenas quan- tias, que se transformaram em grandes fortunas, marcando o século XIX, ao passo que os trabalhadores não tiveram o mesmo êxito, pois, em vez de terem uma vida simples, esbanjavam e desperdiçavam as suas economias (HUNT; SHERMAN, 1977). Marx era totalmente contrário a essa percepção, acusando os métodos de acumulação primitiva: o regime de cercamento dos campos e a expulsão de trabalhadores rurais, a inflação dos preços, os monopólios comerciais, a escravidão, a dizimação da população aborígene para exploração mineral, a conquista das Índias e o saque das Índias Orientais e a exploração do continente africano num campo de caça de escravos africanos (HUNT; SHERMAN, 1977). Após a realização de uma acumulação inicial de capital, o desejo de acu- mular cada vez mais é o propulsor e mantedor do sistema capitalista. O poder e o prestígio social do capitalista dependerão do volume de capital acumulado, não podendo se descuidar. O processo de concentração de riqueza e do poder é mantido quando o que detém o poder menor é esmagado ou absorvido pelo poder maior. Enquanto crescia a concentração de capital de um lado, do outro, crescia a miséria da classe operária. Para Marx, somente uma revolução por parte dos trabalhadores colocaria um fim nessa situação. Os conflitos entre os sistemas de classe resultariam na destruição do capitalismo e no estabelecimento de uma sociedade sem classes (HUNT; SHERMAN, 1977). A garantia da ascendência da classe dominante sobre a classe dominada seria a principal razão do surgimento e da manutenção do Estado, segundo Marx. O Estado serviria apenas para camuflar a dominação da classe domi- nante (INNOCENTI, 2013). Seja qual for a classe dominante, o governo sempre estará sob o comando de uma ditadura. Se a ordem é capitalista, ela estará sob a “ditadura da burguesia” sob as mais diversas formas assumidas pelo Estado burguês. Se o governo estiver sob o comando do socialismo, conviverá sob a ditadura do proletariado. A diferença entre ambas, segundo Innocenti (2013), é que, no capitalismo, a sociedade viveria a ditadura da minoria, ou seja, a da burguesia,ao passo que, no socialismo, viveria sob a ditadura da maioria, o proletariado. 13Geografia marxista e as agendas culturais Quem foi Karl Marx? Marx nasceu na Prússia e era descendente de família judia, porém se converteu ao protestantismo durante sua infância. Estudou Direito, História e Filosofia nas Universida- des de Bonn, Berlin e Jena, e recebeu o grau de doutor em Filosofia com 23 anos. Dois anos depois, casou-se com Jenny von Westphalen (1814-1881), filha de um barão que ocupava elevado cargo governamental. Jenny foi uma companheira muito devotada a Marx durante todas as vicissitudes de sua carreira. Os cargos universitários foram fechados para Marx em virtude de seu radicalismo. Dedicou-se, então, ao jornalismo, foi exilado da Alemanha, estudou socialismo francês e a economia política inglesa em Paris, foi exilado da França a pedido do governo prussiano e, finalmente, estabeleceu-se em Londres. Exceto por breves visitas ao continente, viveu o resto de sua vida na Inglaterra. Marx passou dias e anos na sala de leitura do Museu Britânico, explorando “a complicada ramificação da economia política”. Atormentado por doenças, pela extrema pobreza e pela morte de vários de seus filhos na infância, continuou a estudar, a escrever e a organizar-se. Escreveu muitos artigos e liderou a Associação Internacional dos Trabalhadores, a Primeira Internacional*, que durou de 1864 a 1876. Em 1867, publicou o primeiro volume de sua grandiosa obra, O capital. Após a sua morte, Engels editou seus manuscritos e também publicou os volumes II e III de sua obra. Após a morte de Engels, os manuscritos remanescentes foram deixados para o principal marxista da época, Karl Kautsky (1854-1938), que publicou outros três volumes sob o título de Teorias do valor excedente (ou mais-valia). Friedrich Engels, amigo íntimo, contribuinte e arrimo financeiro de Marx, era filho de um próspero fabricante de algodão alemão. Seguiu carreira dupla: de 1842 até sua apo- sentadoria, em 1869, cuidou dos interesses manufatureiros da família em Manchester, na Inglaterra; ao mesmo tempo, foi estudioso, escritor e revolucionário. Durante uma breve visita a Paris, em 1844, encontrou Marx (que havia conhecido em 1842); tornaram-se amigos e colaboradores por toda a vida. Juntos, os dois jovens escreveram o Manifesto comunista, em 1848. Engels escreveu, certa vez, que estava feliz por permanecer em posição secundária em relação a Marx, ao que Marx respondeu: “Você sabe que sou sempre muito lento para captar as coisas e que sempre sigo seus passos” (OSER; BLANCHFIELD, 1983, p. 167-168). A geografia marxista e a teoria social crítica No fi m da década de 1960 e início da década de 1970, o marxismo exerceu intensa infl uência na geografi a e nas ciências sociais. Essa infl uência se deu pela necessidade de ajustar os trabalhos acadêmicos à uma visão mais profunda e racional da realidade política e da sociedade. Nos estudos geográfi cos, houve a adoção da teoria e do método marxistas ocidentais no centralizado grupo Geografia marxista e as agendas culturais14 de geógrafos modernos ingleses. É o nascimento da geografi a humana crítica que vem a contrapor o positivismo pretensioso e reducionista da corrente geográfi ca presente nesse período (GOMES, 1996; SOJA, 1993). O positivismo foi uma doutrina criada por August Comte (1798-1857), que afirmava que o espírito científico (positivo) substitui por lei intransponível do progresso do espírito humano as crenças teológicas ou as explicações meta- físicas. Cinco ciências são beneficiadas: a astronomia, a física, a química, a fisiologia e a física social (sociologia). O período marcado pela era industrial e das ciências deve obedecer a uma política voltada à uma organização racional da sociedade, tendo uma religião sem Deus, ligada à humanidade (CLÉMENT et al., 1994; DOROZOI; ROUSSEL, 1996). A crítica ao positivismo se dá pelo isolamento da geografia focada numa visão mais técnica e matematizada em relação à história e às ciências sociais. Apesar de sua abordagem humana norteada pela fenomenologia, a geografia da época necessitava de novas ligações fora do seu campo geográfico. As cidades, as regiões e os Estados estavam crescendo, assim como os conflitos e as crises do mundo moderno. O meio acadêmico estava se tornando mais politizado e crítico, e o dis- curso teórico voltou-se contra o positivismo em direção a alternativas mais críticas, extraídas das correntes do pensamento da teoria social da Europa Continental. Surge a corrente da geografia radical, composta por dois grupos, de um lado, os geógrafos, sobretudo franceses que trabalharam para repensar o papel das tradições geográficas e para impor um ponto de vista sobre o uso político do espaço. Do outro lado, a geografia crítica absolutamente inspirada no marxismo e que foi muito desenvolvida nos Estados Unidos. O papel desses geógrafos foi adaptar os instrumentos dessa doutrina à análise espacial (GOMES, 1996). O segundo grupo teve maior destaque. Surgiram os debates críticos que reformularam e aprofundaram algumas expressões, sendo a mais evidente a do materialismo histórico profundamente especializado. David Harvey, geógrafo britânico, foi um dos destaques na evolução da geografia marxista desde o início. Para ele, a geografia marxista é um método de investigação, ao passo que a geografia histórica do capitalismo é objeto de teorização (SOJA, 1993). De acordo com Soja (1993, p. 58): Esse materialismo histórico-geográfico é muito mais do que um levantamento de resultados empíricos através do espaço ou do que a descrição das restrições e limitações espaciais da ação social ao longo do tempo. É uma convocação irresistível para uma reformulação radical da teoria social crítica como um 15Geografia marxista e as agendas culturais todo, do marxismo ocidental em particular, e das muitas maneiras diferentes como encararmos, conceituarmos e interpretarmos não apenas o espaço em si, mas toda a gama de relações fundamentais entre o espaço, o tempo e o ser social, em todos os níveis de abstração. Esses novos debates envolvendo a teorização da geografia, do espaço, do tempo e da história ultrapassou o campo da teoria social e influenciou os discursos críticos em outras áreas, como literatura, artes, arquitetura, cinema, cultura e política. Entretanto, acabaram envolvendo críticos de tantas áreas que, hoje, não se enquadram mais no estereótipo de “geógrafo” ou “marxista” (SOJA, 1993). A geografia marxista e o uso político do espaço A geografi a marxista originou-se primeiramente nos países de língua inglesa, e, a partir dos anos de 1970, tomou corpo junto aos geógrafos franceses. Sua contribuição ocorre, necessariamente, do estudo da relação entre o espaço e os processos sociais, na busca de explicar os efeitos práticos do desenvolvimento geográfi co desigual (diferenciação de área), observando a estrutura, as práticas e as relações organizacionais que compõem a vida social (SOJA, 1993). Um dos símbolos de difusão do pensamento crítico na França é a revista Hérodote, publicada em 1976 por Yves Lacoste (1929-). Seu texto, devido à crítica à geografia tradicional, abre caminho para a nova geografia, que alertava o atraso histórico e a ineficiência da ciência em não acrescentar uma dimensão política para a sua funcionalidade. Não que a geografia tradicional seja ultrapassada, ao contrário, deve-se reconhecer a sua utilidade ideológica. A nova geografia marca a transição para o moderno ao integrar a natureza política intrínseca à reflexão espacial. Segundo Gomes (1996, p. 290-291): Uma nova ciência não pode ser definida somente em termos teóricos na concepção de Lacoste, a prática geográfica é também um elemento primeiro do problema epistemológico. Poder-se-ia dizer que uma revolução científica não se configura somente pela substituição de parâmetros, uma revolução epistemológica deve se desenvolver em consonância com a sociedade. A nova geografiaproposta por Lacoste é, ao mesmo tempo, um saber sem disfarce e uma pedagogia militante. Em resumo, o esforço epistemológico de Lacoste repousa sobre uma relação entre espaço e poder político, através de elementos didáticos como a análise de mapas e a consideração dos fenômenos em diferentes escalas. O valor de verdade, segundo a proposição de Lacoste, é função da interação entre a prática científica e a transformação social. Geografia marxista e as agendas culturais16 A geografia tradicional era vista como uma ciência conservadora que ten- cionava afirmar a natureza imutável das relações entre o homem e a Terra. Já a geografia radical, sob a influência direta do marxismo, sugere um novo modelo de análise espacial, que objetiva ser rigorosamente científico e revolucionário. No campo marxista, o espaço deve ser considerado como um produto social, ou seja, ele só pode ser explicado valendo-se dos aspectos fundamentais que organizam a sociedade. O espaço tem uma função tão dinâmica quanto os outros elementos dos setores da produção e da reprodução social. O conceito de “modo de produção” é, então, adotado para a compreensão das condições materiais de existência social, levando em consideração a divisão territorial do trabalho (GOMES, 1996). O conceito de região, em sua forma tradicional, que, por um tempo, foi deixado de lado pelos geógrafos ou foi relacionado ao conceito de formação socioeconômica, volta a ter importância graças ao conceito de desenvolvimento espacial desigual (GOMES, 1996). De acordo com Corrêa (1987, p. 45): “A região pode ser vista como um resultado da lei do desenvolvimento desigual e combinado, caracterizada pela sua inserção na divisão nacional e internacional do trabalho e pela associação de relações de produção distintas”. As formas de representação do conceito de região são diversas e estão em constante movimento. A região não possui limites rígidos e está em constante construção e reconstrução, visto que nela está contida a sociedade em constante transformação, relacionando-se com o global e o local, considerando interesses que podem ser tanto políticos como econômicos, sociais, culturais e de interesse do próprio espaço. No Brasil, o debate sobre a geografia crítica marxista ganha destaque na obra de Milton Santos, “Por uma Geografia Nova”, escrita em 1978. Nela, o autor faz críticas ao modo como era feita a geografia tradicional clássica e divide em geografia, sociedade e espaço. Santos (1978, p. 153) define o espaço da seguinte forma: O espaço deve ser considerado coo um conjunto de relações realizadas atra- vés de funções e de formas que se apresentam como testemunho de uma história escrita por processos do passado e do presente. Isto é, o espaço se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que estão acontecendo diante dos nossos olhos e que se manifestam através de processos e funções. O espaço é, então, um verdadeiro campo de forças cuja aceleração é desigual. Daí porque a evolução espacial não se faz de forma idêntica em todos os lugares. 17Geografia marxista e as agendas culturais O importante na geografia crítica marxista é lembrar que ela renovou a carga do cientificismo que, antes, dava ênfase primordial às leis e ao rigor metodológico. O novo olhar da geografia marxista mostra que o importante não é chegar a observações gerais fundadas em regras que regulam e organi- zam o espaço, e sim enfatizar a concepção pela qual o marxismo distingue os oprimidos dos opressores, os dominados dos dominadores, os trabalhadores dos operários, etc. Refere-se ao humanismo moral, alinhado ao senso de justiça e de direito, valorizando os temas voltados à cultura e à cidadania. Geografia marxista: o estudo da desigualdade e da pobreza Segundo o princípio marxista, a desigualdade e a pobreza são produzidas pelas sociedades capitalistas, e a concepção geográfi co-social acrescenta que a desigualdade pode ser transmitida de uma geração para outra, por meio do ambiente de oportunidades no espaço geográfi co em que o indivíduo está inserido (PEET, 1982). Essa desigualdade não pode ser extinta sem alterar de modo essencial os mecanismos do capitalismo. Na verdade, a desigualdade faz parte do sistema, ou seja, os detentores do capital têm interesse em manter a desigualdade social. Segundo o marxismo, buscar soluções políticas para amenizar os sintomas da desigualdade não farão efeito sem avançar contra as forças geradoras básicas. Daí a necessidade de uma revolução social e econômica para a queda do capi- talismo e, consequentemente, a sua substituição por um método de produção e modos de vida organizados, com base nos princípios de igualdade e justiça social (PEET, 1982). A diferença de renda entre os trabalhadores é um dos alicerces da desi- gualdade social. O salário, segundo Marx, deve cobrir as despesas do sustento básico para a manutenção do corpo, mas também algumas necessidades sociais que causem satisfação e ampliem o crescimento econômico. Os salários devem cobrir os custos de substituição dos trabalhadores “desgastados” por novos trabalhadores e garantir a criação e a educação das crianças, ou seja, assegurar o desenvolvimento da força de trabalho por meio da educação (PEET, 1982). Dessa maneira, a desigualdade dos salários é importante para manter a diferença entre os níveis de educação e o conhecimento das camadas sociais da população. Dentro da própria classe operária, existe a hierarquia, que faz cada grupo de trabalhadores promover a sua substituição. A desigualdade Geografia marxista e as agendas culturais18 possui a sua utilidade, pois estimula os assalariados a se esforçarem cada vez mais, principalmente nos países de alto poder aquisitivo e consumistas, como os Estados Unidos (PEET, 1982). A desigualdade gera a alienação, pois o mercado sempre lança novas tendên- cias de consumo que se iniciam nas camadas superiores da hierarquia social e vão se propagando para as camadas de base, por meio dos sistemas de comunicação orientados para o consumo. As pessoas pertencentes à camada mais pobre são persuadidas a adquirir um produto novo, e, assim, a grande maioria das pessoas está numa luta diária para ganhar o suficiente para consumir, de alguma forma, um produto ou uma parte do consumo da camada superior. Dessa forma, a desigualdade é altamente funcional, visto que faz as pessoas se submeterem aos trabalhos, muitas vezes degradantes, desagradáveis e pesados, para o seu sustento e, consequentemente, para o consumo (PEET, 1982). O desejo de lucro faz o capitalista reduzir regularmente os seus custos de produção, introduzindo e aperfeiçoando suas máquinas e equipamentos de trabalho. A mecanização, somada aos salários de subsistência, produzirá um excedente de trabalhadores, uma massa de desempregados que formarão o que Marx chamou de “exército industrial de reserva”, formado por trabalhadores vivendo abaixo do nível de subsistência e dispostos a aceitar qualquer emprego que lhes proporcionem um salário (GOMES, 1996). A luta de cada indivíduo para sobreviver ocorre no seu espaço físico, social e econômico. Esse espaço pode conter uma série de recursos, serviços, contatos, oportunidades com os quais ele se relaciona, são as relações sociais entre os indivíduos. O resultado dessa relação é a produção de bens e serviços para a sociedade e de salários para os indivíduos. Numa visão sociogeográfica, a desigualdade pode ser justificada pelo alcance ou a ausência da relação do indivíduo com esses aspectos físicos e abstratos, ou seja, das oportunidades que o indivíduo tem dentro do seu espaço, pois, ao preparar-se para o mercado de trabalho, o indivíduo só pode aproveitar os recursos sociais de uma área limitada do espaço. A ampliação ou não dessa área dependerá do grupo social ao qual o indivíduo está inserido (PEET, 1982). O espaço geográfico é uma somade aspectos físicos: a casa, a escola, a universidade, as fábricas, o comércio em geral e abstratos: o conhecimento, a interação social, as redes de relações sociais, redes de informação, etc., que estão à disposição dos indivíduos. Por meio do espaço é possível compreender os problemas sociais, que são gerados, em grande parte, pelas crises econômicas globais, não estando diretamente ligados ao local, mas que refletem diretamente nas camadas sociais mais desfavorecidas economicamente. 19Geografia marxista e as agendas culturais Nesse capítulo, você viu que, de acordo com o princípio marxista, a de- sigualdade e a pobreza são produzidas pelas sociedades capitalistas, e essa desigualdade não pode ser extinta sem alterar, de modo ativo, os mecanismos do capitalismo. Na verdade, a desigualdade de salários e, consequentemente, social, é necessária para manter o sistema funcionando, pois é por meio da alienação provocada pelos canais de comunicação, que trabalham a favor do capitalismo, que se mantém o estímulo ao consumo e, dessa forma, a submissão dos indivíduos ao trabalho. A fim de enriquecer ainda mais os seus conhecimentos, sugerimos a leitura do texto “Mudanças paradigmáticas: a geografia crítica e o momento histórico de seu surgi- mento”, que apresenta uma compreensão do conhecimento da ciência geográfica, analisando a fase da geografia crítica. Para acessá-lo, clique no link a seguir. https://qrgo.page.link/t5Wq CLÉMENT, E. et al. Dicionário prático de filosofia. Lisboa: Terramar, 1994. CORRÊA. R. L. Região e organização espacial. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987. DUROZOI. G.; ROUSSEL, A. Dicionário de filosofia. Campinas: Papirus, 1996. GOMES, P. C. da C. Geografia e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. HUGON, P. História das doutrinas econômicas. São Paulo: Atlas, 1980. HUNT. E. K.; SHERMAN, H. J. História do pensamento econômico. Petrópolis: Vozes, 1977. INNOCENTI, A. A. F. Segurança nacional: uma discussão conceitual. Revista Cadernos de História, v. 8, n. 1, jul. 2013. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/che/. 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