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Código Logístico 57353 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6434-2 9 788538 764342 IESDE BRASIL S/A 2018 Sociologia Geral Noêmia Lazzareschi Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Rawpixel.com/Shutterstock CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ L459s 2. ed. Lazzareschi, Noêmia Sociologia geral / Noêmia Lazzareschi. - 2. ed. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2018. 94 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6434-2 1. Sociologia. I. Título. 18-47123 CDD: 305CDU: 316.7 © 2007-2018 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Apresentação Historicamente situados, o mundo empresarial e o mundo do traba- lho repercutem em seu interior as condições econômicas, políticas, sociais e culturais universalmente existentes, devendo ser considerados um micro- cosmos delas derivado. Frutos sociais do processo histórico mundial, são, no entanto, ao mesmo tempo seus produtores, irradiando universalmente as suas inovações tecnológicas e organizacionais, das quais surgem novos produtos e serviços que inundam os mercados e determinam, em grande parte, novos estilos de vida. O processo social universal e o mundo empre- sarial e do trabalho estão, pois, em relações recíprocas, constituindo uma só realidade social, objeto de estudo das Ciências Sociais. Assim, a obra Sociologia Geral tem como objetivo apresentar os subsí- dios teóricos produzidos pelas Ciências Sociais e, em especial, pela socio- logia, para a compreensão das inter-relações entre a sociedade e as esferas empresarial e do trabalho. Bons estudos! Sobre a autora Noêmia Lazzareschi Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestre em Ciências Sociais do Trabalho pelo Institut Supérieur du Travail da Université Catholique de Louvain (Bélgica). Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Sumário Sociologia Geral 7 Sumário 1 A promessa e as tarefas das Ciências Sociais 9 1.1 Condições históricas do nascimento das Ciências Sociais 11 1.2 As Ciências Sociais 16 2 As sociedades industriais capitalistas 21 2.1 Émile Durkheim 22 2.2 Max Weber 23 2.3 Karl Marx 25 2.4 A estrutura das sociedades industriais capitalistas 27 2.5 As empresas 29 3 As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno 37 3.1 A acumulação primitiva do capital 37 3.2 A divisão tecnológica do trabalho 39 3.3 Taylorismo e fordismo 40 3.4 Impactos do taylorismo e do fordismo sobre o trabalhador 44 3.5 Os Anos Dourados 47 4 A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva 55 4.1 A crise da economia mundial 57 4.2 A globalização da economia 59 4.3 A reestruturação produtiva ou a nova lógica organizacional 64 4.4 O desemprego e as novas relações de trabalho 66 4.5 Novas relações de trabalho ou trabalho precário 72 4.6 Reações dos trabalhadores 74 4.7 Sindicalismo no Brasil 79 5 Novas competências profissionais 85 Sociologia Geral 9 1 A promessa e as tarefas das Ciências Sociais Wright Mills, um dos mais conceituados sociólogos norte-americanos do século XX, no livro A imaginação sociológica, chama a atenção para o fato de que [...] raramente [os homens] têm consciência da complexa ligação entre suas vidas e o curso da história mundial; por isso, os homens comuns não sabem, quase sempre, o que essa ligação significa para os tipos de ser em que se estão transformando e para o tipo de evolução histórica de que podem participar. Não dispõem da qualidade intelectual básica para sentir o jogo que se processa entre os homens e a sociedade, a biografia e a história, o eu e o mundo. (1965, p. 10) A qualidade intelectual básica necessária para que os homens compreendam a história, a biografia e as íntimas relações entre elas, dentro da sociedade, é a imaginação sociológica. Essa qualidade permite a cada um de nós se compreender como produto e produtor da vida social e, por isso, compreender-se como ser historicamente condicio- nado, em que as possibilidades e limitações na vida são, em grande parte, circunscritas pela estrutura da nossa sociedade num determinado momento da história mundial. A promessa e as tarefas das Ciências Sociais1 Sociologia Geral10 A conscientização política é a expressão primeira e talvez a mais importante da imagi- nação sociológica. Quem a possui sabe que não pode traçar livremente o próprio destino, cujo desenho é esboçado pelas condições sociais existentes, criadas e transmitidas pelas ge- rações passadas, mas reproduzidas, reformadas ou transformadas por decisões políticas da geração presente, das quais certamente exigirá participar para poder exercer algum controle sobre o curso de sua própria vida. Possibilitar o desenvolvimento da imaginação sociológica é, segundo Wright Mills (1965), a promessa das Ciências Sociais. Para cumpri-la, investiga-se, analisa-se, explica-se por meio de procedimentos metodológicos e teóricos definidores do conhecimento cientí- fico – a estrutura social, demonstrando os princípios que a constituem, os mecanismos de sua manutenção e mudança e a psicologia de homens e mulheres que dela surge. A com- preensão da estrutura social é uma condição necessária para situar historicamente o objeto de estudo de cada uma das Ciências Sociais, por mais específicos que sejam os problemas e as perspectivas teóricas que definem o eixo de suas preocupações particulares. Representando o consenso entre os mais diferentes autores sobre as tarefas e os objetivos que as Ciências Sociais se autoimpõem, Wright Mills considera como a mais importante tornar os valores sociais aceitos claros e transparentes, pois os problemas ou questões sociais resul- tam de sua transgressão, cuja origem deve ser buscada nas contradições da estrutura social. Uma questão social é um assunto público: é um valor estimado pelo público que está ameaçado. [...] A questão, na verdade, envolve quase sempre uma crise nas disposições institucionais, e com frequência também aquilo que os marxistas chamam de “contradições” ou “antagonismos”. (WRIGHT MILLS, 1965, p. 15) São muitas as questões sociais que enfrentamos: a violência urbana, os conflitos armados, a miséria absoluta de milhões de pessoas, a favela, o desemprego, o abandono de crianças, a prostituição infantil, as drogas, o analfabetismo etc. que ferem os valores centrais das sociedades humanas: o respeito à vida e à dignidade humana, distanciando-nos da rea- lização do sonho de instauração de uma sociedade justa, na qual, de fato, possam se realizar os princípios de Igualdade, Liberdade e Fraternidade, herdados da Revolução Francesa, que inauguraram o mundo moderno. O estudo científico da estrutura social é, pois, o ponto de partida não só do reconheci- mento dos problemas sociais que nos afligem, mas, sobretudo, da descoberta de suas ori- gens e dos meios disponíveis para solucioná-los ou pelo menos minorá-los, no contexto do jogo de interesses de diferentes grupos e classes sociais das decisões políticas. Mas a imagi- nação sociológica, que desperta e aprofunda a conscientização política, torna-se condutora do processo político democrático, impedindo que os homens se transformem em simples marionetes da história e objeto do poder autoritário de alguns. Para Wright Mills, as Ciências Sociais tornaram-se o denominador comum de nosso período cultural. De fato, evidencia-se universalmente o reconheci mento da importância do desenvolvimento da análise científicada vida social, pois pudemos constatar, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, que a utilização política dos conhecimentos produzidos pelas ciências físico-químico-naturais pode gerar mais problemas humanos e sociais do que A promessa e as tarefas das Ciências Sociais Sociologia Geral 1 11 realmente contribuir para resolver os já existentes. Não obstante, até aquele momento, a humanidade acreditou que o conhecimento por elas produzido era o mais eficaz e eficiente instrumento de que dispunha não só para melhorar as suas condições de vida, mas também para solucionar todos os graves e persistentes problemas sociais. Por isso, as ciências natu- rais receberam especial atenção ao longo de mais de um século no mundo moderno, sem que se prestasse atenção às prováveis consequências dramáticas do uso político que delas se pode fazer. Com efeito, basta lembrar a tragédia provocada pela bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, a ameaça constante de utilização de armas nucleares, o sofrimento de milhões de famílias devido à introdução de tecnologias sofisticadas que destroem milhares de postos de trabalho e geram desemprego em massa, os problemas éticos e morais originários das potencialidades da engenharia genética, a devastação da natureza, a poluição do ar, sonora e visual etc. para se dar conta da necessidade de se avaliar continuadamente os efeitos sociais e humanos, éticos e morais, positivos e negativos, construtivos e destrutivos, da utilização do conhecimento produzido por aquelas ciências. E essa avaliação depende não só da imaginação sociológica, mas também da produ- ção intelectual dos cientistas sociais, cujas obras podem ser consideradas como a cons- ciência crítica do processo histórico universal, contribuindo para o desenvolvimento da consciência crítica de toda a humanidade. São essas as principais tarefas e os objetivos das Ciências Sociais, cujos estudos esten- dem-se inevitavelmente ao mundo das empresas e do trabalho, ajudando os administrado- res de empresas a atuarem profissionalmente com maior clareza e responsabilidade social, sem perder de vista os seus objetivos específicos de promoção da eficiência do processo produtivo e de prestação de serviços. 1.1 Condições históricas do nascimento das Ciências Sociais A análise científica da vida social data do século XVIII e deve ser consi- derada como o produto intelectual mais importante das transformações eco- nômicas, políticas, sociais e culturais em curso desde o Renascimento e que se cristalizaram no Ocidente com a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, marcos do surgimento do mundo moderno, isto é, da consolidação da ordem social capitalista. 1.1.1 A Revolução Industrial A invenção da máquina a vapor na Inglaterra de 1750 significou o início de uma revolução nas técnicas de produção, o que possibilitou a mecanização do processo de trabalho em muitos ramos da atividade econômica, já na primeira metade do século XIX, tendo significado também uma revolução na Vídeo A promessa e as tarefas das Ciências Sociais1 Sociologia Geral12 organização da produção que, a partir de então, passou a ser realizada no interior de empre- sas com caráter permanente e racional. Ao propiciar o aumento da produtividade do trabalho, a redução dos custos de produ- ção e, como decorrência, o barateamento das mercadorias, a Revolução Industrial permitiu que se vislumbrasse o nascimento de uma sociedade de abundância e mais justa, graças às possibilidades econômicas de uma distribuição mais igualitária da renda. Rapidamente irradiada para o continente, a Revolução Industrial, ao contrário de todas as expectativas, gerou problemas sociais de extrema gravidade que se alastraram, também rapidamente, por toda a Europa. Em primeiro lugar, provocou o êxodo rural de enormes contingentes de trabalhadores entusiasmados com as perspectivas de melhoria de suas condições de vida. A consequência inevitável, porém, foi o desenvolvimento acelerado da urbanização não planejada, em que o resultado se expressou nas péssimas condições habitacionais dos trabalhadores, na imundí- cie das cidades industrializadas, na falta de fornecimento de água e nas epidemias de cólera e de tifo que se espalharam por todo o continente, dizimando milhares de pessoas. Segundo Eric J. Hobsbawm (1977, p. 225), o mais renomado historiador do século XX: Só depois de 1848, quando as novas epidemias nascidas nos cortiços começaram a matar também os ricos, e as massas desesperadas que aí cresciam tinham as- sustado os poderosos com a revolução social, foram tomadas providências para um aperfeiçoamento e uma reconstrução urbana sistemática. Devemos considerar também os baixos salários e o desemprego de milhares de traba- lhadores, visto que até a década de 1840 grandes massas da população continuavam até então sem ser absorvidas pelas novas indústrias e cidades, como um substrato permanente de pobreza e deses- pero, e também as grandes massas eram periodicamente atiradas ao desemprego pelas crises que, até então, mal eram reconhecidas como temporárias e repetiti- vas. (HOBSBAWM, 1977, p. 228) A criminalidade e a violência urbana, o alcoolismo, a prostituição e o suicídio cons- tituíam o quadro de deterioração da vida social, aprofundado pela enorme desigualdade social. Ainda nas palavras de desse estudioso: A época em que a Baronesa de Rothschild usou um milhão e meio de francos em joias no baile de máscaras do Duque de Orleans, em 1842, era a mesma em que John Bright assim descreveu as mulheres de Rochdale: “2 mil mulheres e moças passaram pelas ruas cantando hinos – um espetáculo surpreendente e singular – chegando às raias do sublime. Assustadoramente famintas, devora- vam uma bisnaga de pão com indescritível sofreguidão, e se o pedaço de pão estivesse totalmente coberto de lama seria igualmente devorado com avidez.” (HOBSBAWN, 1977, p. 227) Havia, ainda, o rígido controle e a disciplina impostos pelos patrões que tornavam in- fernal a vida dos trabalhadores das fábricas, os quais estavam submetidos a jornadas de trabalho de 16 horas e a todo tipo de castigos e multas. A promessa e as tarefas das Ciências Sociais Sociologia Geral 1 13 A Revolução Industrial não foi, portanto, apenas uma revolução econômica, que se tornou um marco na história da humanidade ao abrir as portas do crescimento e desen- volvimento econômicos por suas inovações tecnológicas e organizacionais. Foi, também, responsável pelo aparecimento de novos e contundentes problemas humanos e sociais, além de ter dado início ao fim do antigo regime, com a entrada definitiva de novos perso- nagens no cenário social: o empresário capitalista e o trabalhador proletário, que passa- ram a constituir as duas grandes classes sociais da moderna sociedade capitalista nascente, permanentemente em conflito de interesses por ocuparem posições diferentes no processo de produção da riqueza. O capitalista é o proprietário dos meios de produção, isto é, do capital e da riqueza que gera mais riqueza – terra, tecnologia e trabalho concentrados na empresa por ele administrada –, e o proletário é proprietário apenas da força de trabalho, isto é, do capacidade para trabalhar, produzir e reproduzir em escala ampliada o capital, obrigando-se a vender a sua única propriedade no mercado de trabalho em troca de um salário com o qual deverá se sustentar. Por essa razão, a Revolução Industrial não pode ser lembrada apenas como revolução eco- nômica, devendo ser considerada uma verdadeira revolução da estrutura social que precipi- tou as transformações políticas, jurídicas e ideológicas consumadas pela Revolução Francesa. 1.1.2 A Revolução Francesa A Revolução Francesa de 1789 foi o acontecimento de maior repercussão no Ocidente por ter destruído definitivamente o antigo regime absolutista e a supremacia de uma aristo- cracia decadente e por ter criado as condições necessárias e suficientes para o surgimento do Estado Moderno e a consolidação do regimecapitalista de produção. Foi uma revolução conduzida pela burguesia enriquecida, inconformada com os consi- deráveis privilégios e honrarias sociais concedidos aos nobres e ao clero, e sequiosa de poder para, sobretudo, pôr fim aos altos impostos e às rígidas regulamentações da política mer- cantilista vigente que restringiam sua liberdade econômica. A burguesia pôde contar com o apoio imediato dos camponeses exasperados com o pagamento de um conjunto de obriga- ções existentes desde a época feudal que lhes limitavam sobremaneira os ganhos. Grupos de interesses econômicos contrariados encontraram nas ideias dos filósofos ilu- ministas e dos economistas o arsenal intelectual para defla grar uma revolução que atingiu mortalmente as instituições políticas e jurídicas vigentes pela força da nova ideologia, ins- pirada principalmente nas obras de: Locke (1632-1704), Voltaire (1694-1778) e Montesquieu (1689-1755), os grandes críticos da monarquia absolutista e pais da teoria política liberal, e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), fundador da teoria política democrática moderna. Essas obras se constituíram no fundamento teórico no qual se assenta o Estado Moderno1. 1 As obras mais importantes de John Locke são: Tratados sobre o governo; Cartas sobre a tolerância; e Tratado sobre a racionalidade do cristianismo. As de François-Marie Arouet Voltaire são: Cartas filosóficas; Candido; Ensaio sobre os cos tumes. A principal obra de Charles de Secondat, barão de Montesquieu, é Espírito das leis. As de Jean-Jacques Rousseau são: O contrato social; Discurso sobre as ciências e as artes; Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens; e Emílio. A promessa e as tarefas das Ciências Sociais1 Sociologia Geral14 Os economistas contribuíram com a crítica ao mercantilismo que impunha severas res- trições à atividade econômica com sua política de amplo controle estatal sobre o comércio, favorecendo as exportações e restringindo as importações para manter uma balança comer- cial que garantisse o enriquecimento do tesouro do país, e amplo controle da produção doméstica, com leis que regulamentavam os salários, as condições de emprego, a qualidade dos produtos etc. A crítica à política mercantilista encontrou na obra de Adam Smith (1723-1790), A riqueza das nações, de 1776, a sua expressão mais contundente e qualificou o autor como o pai do libe- ralismo econômico. A teoria por ele elaborada defendia o livre mercado por sua fundamenta- ção na competição entre os produtores que, movidos pelo desejo egoísta de obter sempre mais lucros, garantiriam não só a produção demandada pelos consumidores, como também o apri- moramento da qualidade dos produtos, a busca da eficácia e eficiência do processo produtivo para a redução dos custos e o barateamento das mercadorias, assegurando, dessa maneira, o desenvol vimento eco nômico continuado. Assim, intelectualmente fundamentados, os revolucionários de 1789 elaboraram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em setembro daquele ano, reunindo nesse documento as ideias que comandaram a transformação da sociedade francesa e, mais tarde, de todo o mundo ocidental. Nas palavras de Eric J. Hobsbawm (1977, p. 77), “esse documento é um manifesto con- tra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária”, porque, apesar de seu primeiro artigo declarar que “os homens nascem e vivem livres e iguais perante as leis”, prevê a existência de distinções so- ciais, ainda que “ somente no terreno da utilidade comum”. Mas, mesmo assim, não se pode deixar de considerar a importância social, política, econômica e cultural desse documento porque, de fato, ele inaugura o início do processo de resgate do conceito grego de cidadão, reformulando-o e ampliando-o, condição necessária para o surgimento do Estado Moderno, isto é, do Estado Racional, fundado no Direito Racional e na autoridade legal-racional, administrado burocraticamente e, segundo Max Weber (1864-1920), um dos clássicos da Sociologia, “único terreno em que o capitalismo moderno pode prosperar”. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seus artigos, foi decisiva para o surgimento das instituições políticas, jurídicas e econômicas necessárias e suficientes para o desenvolvimento do regime capitalista de produção e do Estado democrático, ao declarar a propriedade privada um direito natural, sagrado, inalienável e inviolável, como também a liberdade de expressão, a tolerância religiosa e a liberdade de imprensa, ao mesmo tempo que determinava ser o povo a fonte de toda soberania. A partir dessa declaração, o povo foi conquistando aos poucos o direito de se organizar politicamente, quer em partidos políti- cos, quer em movimentos sociais, não só para eleger seus representantes, mas também para contestar e reivindicar melhores condições de vida, ponto de partida para a efetivação de mudanças na estrutura social. Não obstante a importância desses acontecimentos, cumpre ressaltar que tanto a Revolução Industrial quanto a Revolução Francesa, como também as Ciências Sociais, são A promessa e as tarefas das Ciências Sociais Sociologia Geral 1 15 filhas do processo de racionalização da cultura ocidental, iniciado dois séculos antes, que têm como expressões mais significativas a própria ciência e a filosofia iluminista. 1.1.3 O Racionalismo O Racionalismo tem origem na chamada revolução copernicana do século XVI que, além de Copérnico (1473-1543), é obra também de Kepler (1571-1630) e Galileu (1564-1642). Esses estudiosos desenvolveram ideias, investigações e estudos sobre o universo, resultando nas primeiras e mais contundentes contes tações à autoridade da Igreja Católica Apostólica Romana como fonte única do conhecimento oficialmente aceito, até então considerado sa- grado, absoluto e incontestável. Eles fizeram nascer a convicção de que os homens, dotados de razão e de sentidos pela graça de Deus, são capazes de desvendar os mistérios de Sua criação e explicá-los corretamente. No século XVII, René Descartes (1596-1650), matemático e físico, tornou-se o maior expoente do racionalismo, ao considerar a razão como a única fonte segura de conheci- mento. No Discurso do método, afirmava ser necessário não só duvidar da veracidade dos conhecimentos existentes, como também das impressões sensoriais, pois nada garante que os nossos sentidos sejam confiáveis. Figura 1 – HALS, Franz. Retrato de René Descartes. 1649. 1 óleo sobre tela. Para ele, a reflexão filosófica deve partir de verdades ou axiomas simples e evidentes por si mesmos, como “Penso, logo existo”, e, por dedução matemática, como na geometria, chegar a um conjunto perfeitamente lógico de conhecimentos sobre indagações específicas. Com Descartes, o processo de secularização da cultura ganha fôlego porque o método racionalista por ele elaborado foi o passo decisivo para o desenvolvimento da crítica racio- nal às verdades que sustentavam a ordem estabelecida. Os resultados da aceitação desse A promessa e as tarefas das Ciências Sociais1 Sociologia Geral16 método como instrumento único para a construção do conhecimento se expressaram na emancipação do pensamento das verdades religiosas, na renúncia a uma visão sobrenatural para explicar os fatos e na contestação dos fundamentos da sociedade feudal com suas ins- tituições e costumes. Em outras palavras: o resultado do racionalismo foi a consagração do livre pensamento, livre da visão de mundo dominante até então, livre para ensaiar novas e revolucionárias construções. O Iluminismo ou Filosofia das Luzes, cuja manifestação suprema se deu na França do século XVIII, foi o ponto culminante dessa revolução intelectual em curso que abalou defi- nitivamente os alicerces culturais da sociedade medieval europeia. A crítica feroz que seus principais representantes desfecharam contra a sociedade me- dieval também se assentava na convicção de que os procedimentosintelectuais que possi- bilitaram o desenvolvimento das ciências naturais deveriam ser aplicados na explicação da realidade social como fundamento racional para a sua rejeição. E esses procedimentos não se limitavam à aplicação do método dedutivo de investigação legado por Descartes, mas também do método empirista desenvolvido por Francis Bacon (1561-1626, cuja obra princi- pal é Novum Organum), baseado na observação e na experimentação para a descoberta das leis universais invariáveis que regem a ordem natural e a ordem social. Pode-se afirmar que da conjugação do método racionalista e do método empirista advém a concepção moderna de ciência, hoje universalmente aceita como o caminho para a busca da verdade e, portanto, um dos valores centrais das sociedades ocidentais. E dessa conjuga- ção surgiram trabalhos extraordinários no campo das ciências físico-químico-naturais ainda nos séculos XVII e XVIII. Basta registrar os nomes de Isaac Newton (1643-1727) e Leibniz (1646-1716), no campo da física e da matemática, de Boyle (1627-1691) e de Lavoisier (1743- -1794), no campo da química, e de Lineu (1707-1778) e de Buffon (1707-1788), no campo da biologia, para compreender as origens das convicções dos iluministas de que a razão e a ciência poderiam permitir o exercício de um certo controle humano sobre o mundo e, fun- damentalmente, sobre a realidade social, que passou a ser compreendida como construção humana e não mais como realização da vontade divina – e, portanto, passível de crítica, de contestação e de transformação. Preparava-se, assim, o caminho para o processo revolucionário de instauração do mun- do moderno e para o desenvolvimento das Ciências Sociais. 1.2 As Ciências Sociais Não há fronteiras rígidas entre as Ciências Sociais, pois todas, como vimos, têm por objeto de estudo o comportamento social determinado pelo processo histórico universal. No entanto, cada uma delas focaliza um aspecto específico desse comportamento, anali- sando-o de uma perspectiva própria, em torno de conceitos particulares que definem a sua construção teórica. Mas todas as Ciências Sociais se beneficiam dos conhecimentos pro- duzidos pelos autores de cada uma, num íntimo entrelaçamento que permite o enrique- cimento e aprofundamento da compreensão da vida social. Embora se possa distinguir a Vídeo A promessa e as tarefas das Ciências Sociais Sociologia Geral 1 17 especificidade da produção das Ciências Sociais, em cada uma delas se identifica a contri- buição do trabalho das demais, pelo menos no que diz respeito à utilização dos principais conceitos que indicam o seu campo de estudo particular e os problemas fundamentais de que se ocupam. A Economia Política teve sua origem na Escola Clássica da Inglaterra, com a publicação das obras de Adam Smith, David Ricardo (1772-1823, autor de Princípios de Economia Política) e Thomas Malthus (1766-1834, autor de Ensaio sobre a população). Ela estuda as ações sociais voltadas à produção, à circulação, à distribuição e ao consumo de bens e serviços em seu contexto institucional nacional e internacional. A Ciência Política analisa as instituições políticas que regulamentam a distribuição do poder, as diferentes formas de governo, a administração do Estado, a luta pelo poder, o comportamento político em suas diferentes manifestações – político-partidário e eleitoral –, as atitudes populares diante das questões políticas, a participação em movimentos so- ciais, enfim, o processo político em geral, inclusive no seio das organizações e empresas. A História é a ciência que estuda o processo de produção da vida (isto é, das condi- ções materiais de existência e da consciência, expressa no conjunto de crenças, valores, padrões de comportamento), na expectativa de apreendê-lo em suas diferentes manifesta- ções e especificidades ao longo do tempo. Detém-se sobretudo na análise daqueles acon- tecimentos que decisi vamente contribuíram para a sua transformação com o surgimento de novas instituições sociais. A Psicologia Social investiga as relações recíprocas entre personalidade e estrutura social, demonstrando a influência do ambiente social na formação da personalidade e como, em con- textos grupais, os processos sociais são por ela influenciados, como, por exemplo, na ação da multidão, tal como tumultos ou linchamentos, nos estudos de opinião pública, nos movimen- tos sociais, nas atitudes grupais em relação aos preconceitos de qualquer natureza etc., ou seja, como as reações coletivas alteram a conduta individual e interferem na vida social. A Antropologia focaliza seus estudos na construção da cultura, ou seja, no mundo dos significados e dos valores sociais predominantes nas mais diferentes sociedades, inclusive nas sociedades ágrafas (sem grafia), analisando-as em todos os seus aspectos. Por isso, as fronteiras entre a Antropologia e a Sociologia são muito tênues. A Sociologia, ciência que subsidia o curso Análise Social, investiga, analisa, explica e interpreta a estrutura social como um todo, levando em consideração todos os aspectos que a constituem – o econômico, o político, o cultural, o histórico, o psicológico – como também os demais fenômenos que interferem na configuração da vida social – como a demografia, a ocupação do espaço físico etc. É a ciência das relações sociais norteadas pelas instituições ou padrões de comportamento, que expressam valores, crenças, ideias, sentimentos comparti- lhados pelos membros de uma sociedade, e princípios sobre os quais se assenta a organiza- ção da vida social em todas as suas dimensões: econômica, política, social, cultural, deter- minando sua estrutura e assegurando-lhe uma ordem. Por isso, muitos autores se referem à Sociologia como a ciência que procura descobrir, descrever, explicar e compreender a ordem que caracteriza a vida social, ou seja, os padrões de comportamento que a caracterizam e A promessa e as tarefas das Ciências Sociais1 Sociologia Geral18 (GIDDENS, 2005, p. 23-24) A imaginação sociológica nos permite ver que muitos eventos que pare- cem dizer respeito somente ao indivíduo, na verdade, refletem questões mais amplas. O divórcio, por exemplo, pode ser um processo muito difícil para alguém que passa por ele – o que Mills chama de “problema pes- soal.” Mas o divórcio, assinala Mills, é também um problema público numa sociedade como a atual Grã-Bretanha, onde mais de um terço de todos os casamentos termina dentro de dez anos. O desemprego, para usar outro exemplo, pode ser uma tragédia pessoal para alguém despe- dido de um emprego e inapto para encontrar outro. Mesmo assim, isso vai bem além de uma questão geradora de aflição pessoal, se considerarmos que milhões de pessoas numa sociedade estão na mesma situação: é um assunto público, expressando amplas tendências sociais. Tente aplicar esse tipo de perspectiva à sua própria vida. Não é necessário pensar apenas em acontecimentos preocupantes. Considere, por exemplo, por que você está virando as páginas deste livro – por que você decidiu estudar Sociologia. Você pode ser um estudante de Sociologia relutante, fazendo o curso somente para preencher créditos exigidos. Ou você pode estar entusiasmado para descobrir mais sobre o assunto. Quaisquer que sejam as suas motivações, você provavelmente tem muito em comum, sem saber necessariamente, com outros que estudam Sociologia. Sua decisão individual reflete sua posição numa sociedade mais vasta. As seguintes características se aplicam a você? Você é jovem? Branco? Você vem de um background profissional ou de colarinho-branco? Você já teve, ou ainda tem, um trabalho de meio turno para aumentar seus ganhos? Você quer encontrar um bom trabalho quando terminar sua edu- cação, mas não está especialmente empenhado em estudar? Você não sabe realmente o que é sociologia mas acha que tem algo a ver com como as pessoas se comportam em grupo? Mais de três quartos de vocês respon- derão “sim” a tais questões. Estudantes universitários não sãoo típico da que “permitem a corrente rotineira da vida social” (INKELES, 1964, p. 47), possibilitando, portanto, prever o seu curso e, ao mesmo tempo, indicar as manifestações de desordem, de conflito e de mudança, pois a realidade social é processo. Ampliando seus conhecimentos Estudando Sociologia A promessa e as tarefas das Ciências Sociais Sociologia Geral 1 19 população como um todo, mas tendem a ser provenientes de ambientes mais favorecidos. E suas atitudes geralmente refletem aquelas sustenta- das por amigos e conhecidos. Os ambientes sociais dos quais viemos têm muito a ver com os tipos de decisões que achamos apropriadas. Mas suponha que você respondeu “não” a uma ou mais dessas ques- tões. Você pode ter vindo de um grupo minoritário ou de um passado de pobreza. Você pode ser alguém de meia-idade ou mais velho. Mesmo assim, outras conclusões provavelmente se seguem. Você provavelmente teve de se esforçar para chegar onde está; talvez você tenha tido de supe- rar reações hostis de amigos e de outros quando contou a eles que estava pretendendo ir à faculdade; ou talvez você esteja combinando Ensino Superior com paternidade em tempo integral. Embora sejamos influenciados pelos contextos sociais em que nos encon- tramos, nenhum de nós está simplesmente determinado em nosso com- portamento por aqueles contextos. Possuímos e criamos nossa própria individualidade. É trabalho da Sociologia investigar as conexões entre o que a sociedade faz de nós e o que fazemos de nós mesmos. Nossas atividades tanto estruturam – modelam – o mundo social ao nosso redor como, ao mesmo tempo, são estruturadas por esse mundo social. O conceito de estrutura social é importante na Sociologia. Ele se refere ao fato de que os contextos sociais de nossas vidas não consistem apenas em conjuntos aleatórios de eventos ou ações; eles são estruturados ou padronizados de formas distintas. Há regularidades nos modos como nos comportamos e nos relacionamentos que temos uns com os outros. Mas a estrutura social não é como uma estrutura física, como um edifício que existe independentemente das ações humanas. As sociedades humanas estão sempre em processo de estruturação. Elas são reestruturadas a todo o momento pelos próprios “blocos de construção” que as compõem – os seres humanos como você e eu. Atividades 1. Explique a seguinte afirmação: “A imaginação sociológica capacita seu possuidor a compreender o cenário histórico mais amplo, em termos de seu significado para a vida íntima e para a carreira exterior de numerosos indivíduos. Permite-lhe levar em conta como os indivíduos, na agitação de sua experiência diária, adquirem frequen- temente uma consciência falsa de suas posições sociais. Dentro dessa agitação, busca- -se a estrutura da sociedade moderna, e dentro dessa estrutura são formuladas as A promessa e as tarefas das Ciências Sociais1 Sociologia Geral20 psicologias de diferentes homens e mulheres. Através disso, a ansiedade pessoal dos indivíduos é focalizada sobre fatos explícitos e a indiferença do público se transfor- ma em participação nas questões públicas” (MILLS, 1965, p. 11-12). 2. Explique as condições históricas que permitiram o surgimento das Ciências Sociais. 3. Qual o objeto de estudo das diferentes Ciências Sociais? É possível delimitar frontei- ras entre elas? Justifique sua resposta. Referências GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005. HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. INKELES, Alex. O que é Sociologia? São Paulo: Pioneira, 1974. WEBER, Max. História geral da Economia. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores). WRIGHT MILLS, C. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1965. Resolução 1. A imaginação sociológica permite a cada um de nós se compreender como produto e produtor da vida social e, por isso, compreender-se como ser historicamente condi- cionado, cujas possibilidades e limitações na vida são, em grande parte, circunscritas pela estrutura da nossa sociedade num determinado momento da história mundial. 2. A partir do século VXIII, quando se deixou de acreditar que a construção humana era obra de um processo divino e as vozes da razão e do empirismo começaram a ser aceitas, surgiu a necessidade de se refletir cientificamente sobre a realidade e a estrutura social. Isso se deu especialmente em um contexto de revoluções (Revolu- ção Francesa, Revolução Industrial), grandes guerras (Primeira e Segunda Guerras Mundiais) e avanço das ciências exatas e biológicas (Newton, Lavoisier, Buffon). 3. O objeto de estudo das Ciências Sociais é o comportamento social determinado pelo processo histórico universal. Não há como delimitar a fronteira entre as Ciências Sociais, pois coexistem em um estreito inter-relacionamento, no qual todas dialogam e se beneficiam dos resultados postulados entre si. Sociologia Geral 21 2 As sociedades industriais capitalistas A Sociologia é uma ciência recente. Nasceu com o mundo moderno para explicá-lo e compreendê-lo. Assim, seu objeto de estudo é a estrutura das sociedades industriais capitalistas, denominadas sociedades modernas por Durkheim, capitalismo moderno por Max Weber e modo de produção capitalista por Marx e Engels. Embora Auguste Comte, com a publicação do Curso de Filosofia Positiva, entre 1830 e 1839, seja considerado o pai da Sociologia, os autores clássicos que mais contribuí- ram para o seu desenvolvimento foram Émile Durkheim (1858-1917), Max Weber (1864-1920) e Karl Marx (1818-1883)1. Esses três autores elaboraram os mais impor- tantes princípios explicativos da análise sociológica, respectivamente, o princípio da causação funcional, da conexão de sentido e da contradição dialética e se tornaram referências fundamentais para os autores contemporâneos e todos aqueles que preten- dem iniciar-se no estudo da produção sociológica. 1 As obras principais dos clássicos da Sociologia são: Émile Durkheim: A divisão do trabalho social; As regras do método sociológico; O suicídio; As formas elementares da vida religiosa; Educação e sociedade. Max Weber: Metodologia das Ciências Sociais; A ética protes tante e o espírito do capita lismo; História geral da econo mia; Economia e sociedade; Ciência e política: duas vocações. Karl Marx: Manuscritos eco nômicos e filosóficos de Paris de 1844; A ideologia alemã (em colaboração com F. Engels); Miséria da filosofia; Manifesto do Partido Comunista (em colaboração com F. Engels); O 18 Brumário de Luis Bonaparte; Salário, preço e lucro; Trabalho assalariado e capital; Contribuição à crítica da economia política; A luta de classes na França; Grundrisse e, a mais importante, O Capital: crítica da economia política. As sociedades industriais capitalistas2 Sociologia Geral22 Da aplicação desses princípios à análise da estrutura social resultaram explicações e interpretações diferentes, isto é, teorias diferentes sobre o mesmo objeto de estudo: a socie- dade capitalista, cujas características fundamentais foram nos apresentadas por esses três autores, ao mesmo tempo, fornecendo os princípios metodológicos para o desenvolvimento da pesquisa empírica. 2.1 Émile Durkheim Para Durkheim, a característica principal das sociedades modernas é a divisão do traba- lho social. Ao promover a interdependência das funções profissionais especializadas, a divi- são do trabalho social, que tem como origem o aumento da população, gera a solidariedade orgânica, ou seja, um novo tipo de coesão ou integração social que nasce do reconhecimento coletivo da complementariedade das atividades individuais diferenciadas, assegurando a existência e o funcionamento da sociedade e, consequentemente, a satisfação das necessida- des individuais de um maior número de pessoas. Figura 1 – Émile Durkheim. FONTE: Wikimedia Commons. Compreenda-se que, para Durkheim, a vida social só é possível porque existe uma cons- ciência coletiva, ou seja, um conjunto de crençase sentimentos comuns aos de uma determina- da sociedade que forma um sistema específico com vida própria. Ou, ainda: Vídeo As sociedades industriais capitalistas Sociologia Geral 2 23 a sociedade não é simples soma de indivíduos, e sim sistema formado pela sua associação, que representa uma realidade específica com seus caracteres pró- prios. Sem dúvida, nada se pode produzir de coletivo se consciências particula- res não existirem; mas esta condição necessária não é suficiente. É preciso ainda que as consciências estejam associadas, combinadas, e combinadas de determi- nada maneira; é desta combinação que resulta a vida social, e, por conseguinte, é esta combinação que a explica. (DURKHEIM, 1971, p. 71) Assim, a vida social é possível porque existe uma consciência coletiva que se impõe e, portanto, é compartilhada pelas consciências individuais. Desse compartilhamento, nasce a coesão social ou a solidariedade social. Nas “sociedades simples” (hordas, clãs, tribos), marcadas por uma divisão rudimen- tar do trabalho social, dado o pequeno número de pessoas que as compõem, predomina a “solidariedade mecânica” que nasce de crenças e sentimentos compartilhados por todos os membros da sociedade. Nelas, o conteúdo da consciência coletiva é o culto à própria sociedade, mantendo-se o respeito total e absoluto às suas crenças e sentimentos. Por isso, nas sociedades simples, os indivíduos são totalmente envolvidos pela consciência coletiva, havendo quase nenhuma controvérsia entre eles. Mas, à medida que acontece o desenvolvimento da divisão do trabalho social, os senti- mentos comuns se atenuam, porque as atividades sociais se modificam, diferenciando os indi- víduos entre si nas suas crenças e ações. A consequência inevitável disso é o desenvolvimento do individualismo, que se torna o novo conteúdo da consciência coletiva nas sociedades mo- dernas. A divisão do trabalho social é, portanto, a condição criadora da liberdade individual e, ao mesmo tempo, de um novo tipo de solidariedade social que, como vimos, nasce do sen- timento dos laços de interdependência dos indivíduos que, ao desempenharem funções dife- renciadas, contribuem uns com os outros para a satisfação das necessidades de todos. Essa seria, pois, a função social da divisão do trabalho social, isto é, o efeito social útil que produz, expresso na solidariedade orgânica, integração ou coesão social de um novo tipo de sociedade. Surgiu, a partir da análise dos efeitos sociais úteis dos fatos ou fenôme- nos sociais, o princípio explicativo da causação funcional que permeia toda a obra de Émile Durkheim. Lembrando que, se Adam Smith, no livro A riqueza das nações, de 1776, já havia demonstrado a função econômica da divisão do trabalho – o aumento da produtividade do trabalho, a redução dos custos da produção e o barateamento das mercadorias –, Durkheim apenas se interessa por seus efeitos sociais nas mais diferentes esferas da vida em sociedade. 2.2 Max Weber Para Max Weber, o traço característico do capitalismo moderno é a racionalidade da conduta em todas as dimensões da vida. Essa racionalidade funciona como fundamental princípio norteador da vida econômica que se manifesta na multiplicação de empresas, por meio das quais todas as necessi- dades de um grupo humano são satisfeitas. Vídeo As sociedades industriais capitalistas2 Sociologia Geral24 Figura 2 – Max Weber. Fonte: Wikimedia Commons. Weber (1980, p. 123) afirma que “O capitalismo existe onde quer que se realize a satis- fação de necessidades de um grupo humano, com caráter lucrativo e por meio de empresas, qualquer que seja a necessidade de que se trate”. No entanto, o capitalismo moderno surgiu apenas na segunda metade do século XVIII com a organização racional do trabalho, ou seja, com o desenvolvimento da organização empresarial. Isso se deu apenas no Ocidente, onde havia as condições culturais suficientes e necessárias para tal. O fato de tal desenvolvimento haver se verificado no Ocidente, deve-se aos traços característicos de cultura, peculiares a esta parte da Terra. Só o Ocidente conhece o Estado, no sentido moderno da palavra, com administração orgânica e relativa- mente estável, funcionários especializados e direitos políticos. Os indícios destas instituições na Antiguidade e no Oriente, não alcançaram pleno desenvolvimen- to. Só o Ocidente reconhece um direito racional, criado pelos juristas, interpretado e empregado racionalmente. Só no Ocidente se encontra um conceito de cidadão (civis romanus, citoyen, bourgeois), porque, só no Ocidente, se deu uma cidade no sentido específico da palavra. Além disso, só o Ocidente possui uma ciência no sentido atual. Teologia, filosofia, meditação sobre os problemas da vida foram conhecidas pelos chineses e indianos, aliás, com uma profundidade como nunca foi sentida pelo povo europeu. Uma ciência racional e uma técnica racional foram coisas desconhecidas para aquelas culturas. Finalmente, a Cultura Ocidental se distingue de todas as demais, isto pelo fato da existência de pessoas possuidoras de uma ética racional da existência. Em todos os lugares encontramos a magia e a religião: entretanto, só é peculiar do Ocidente o fundamento religioso do regime de vida, cujo resultado tinha de ser o racionalismo específico. (WEBER, 1980, p. 146, grifos do original) As sociedades industriais capitalistas Sociologia Geral 2 25 Logo, entendemos que o processo de racionalização do mundo ocidental nas suas dife- rentes manifestações, na visão de Max Weber, é condição necessária para o surgimento do capitalismo moderno e compreensão do significado do princípio explicativo da conexão de sentido. Com efeito, a racionalização do mundo ocidental é o processo de diferen ciação das esferas de valor e de ação, antes unificadas pela religião. Desta forma, a racionalidade passa a reger as diferentes dimensões da atividade social. A partir daí, valores distintos, muitas vezes em conflito, orientam as ações sociais, em que o sentido subjetivo a elas atribuído pelo sujeito, cabe às Ciências Sociais e, especificamente à Sociologia, compreender e interpretar. 2.3 Karl Marx Para Marx, a especificidade do modo de produção capitalista reside na extração da mais-valia, isto é, numa nova modalidade de exploração do tra- balho, substituindo a escravidão e a servidão que caracterizaram, respecti- vamente, o modo de produção antigo e o modo de produção feudal, e que se constitui na fonte principal dos lucros do capitalista. A mais-valia correspon- de à diferença entre o valor das mercadorias produzidas pelo trabalhador e o valor de sua força de trabalho (capacidade para trabalhar), expressa no salário. O trabalhador produz muito mais valor (riqueza na forma de mer- cadorias) do que recebe em troca pela única mercadoria que possui e que é obrigado a vender no mercado de trabalho para sobreviver: a sua força de trabalho. Figura 3 – Karl Marx. Fonte: Wikimedia Commons. Vídeo As sociedades industriais capitalistas2 Sociologia Geral26 Para Marx, a origem da exploração do trabalho é a propriedade privada dos meios de produção, responsável também pela divisão social do trabalho entre trabalho intelectual e trabalho material. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante2. (MARX; ENGELS, 1978, p. 56) Assim, no modo de produção capitalista, os proprietários do capital realizam o traba- lho intelectual e são os produtores da consciência, da ideologia, da visão de mundo, isto é, da superestrutura social, composta da estrutura jurídico-política e ideológica. A ideologia dominante é imposta aos não proprietários dos meios de produção, produtores das condi- ções materiais de vida, ou seja, da infraestrutura. Ela é a representação mental das condições de vida da classe dominante, muito distintasda classe dominada. A ideologia é sempre falsa consciência do mundo e, por isso, conduz à alienação, isto é, à incapacidade de compreender a realidade e de sobre ela exercer controle. As classes sociais, por ocuparem posições diferentes no processo de produção da riqueza, têm interesses econômicos divergentes, razão pela qual estão permanentemente em relações sociais de conflito (latente ou manifesto, como nas greves, nos movimentos sociais, nas reivin- dicações por melhores condições de vida). No Manifesto do Partido Comunista, de 1848, Marx e Engels afirmam que A história de toda sociedade existente até hoje tem sido a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre de cor- poração e companheiro, numa palavra, o opressor e o oprimido permaneceram em constante oposição um ao outro, levada a efeito numa guerra ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou, cada vez, ou pela reconstituição revolu- cionária de toda a sociedade ou pela destruição das classes em conflito. (MARX; ENGELS, 1978, p. 94) Assim, para esses autores, as transformações do modo de produção vigente nos diferen- tes momentos da história da humanidade (no Ocidente, modo de produção antigo, modo de produção feudal e modo de produção capitalista) resultaram da luta de classes, da contradi- ção dialética entre os interesses das classes sociais. Nas sociedades capitalistas, a luta de classes foi simplificada. “A sociedade global divide-se cada vez mais em dois campos hostis, em duas grandes classes que se defron- tam – a burguesia e o proletariado” (MARX; ENGELS, 1978, p. 94). Da luta entre essas duas classes surgiu um novo modo de produção, fundado na propriedade coletiva dos meios de produção, pondo fim à exploração do trabalho e à existência das classes sociais: o modo de produção comunista, no encerramento da fase de transição do capitalismo para a ditadura do proletariado, ou seja, do socialismo para o comunismo. 2 Atente-se para o fato de que Marx se refere à divisão social do trabalho e não à divisão do traba- lho social, como Durkheim. Os significados dessas expressões são muito diferentes, porque enquanto Marx se refere à origem da divisão do trabalho, Durkheim se refere à especialização das funções so- ciais, sem preocupar-se com a sua origem. As sociedades industriais capitalistas Sociologia Geral 2 27 A destruição do modo de produção capitalista acontecerá pela emergência da con- tradição dialética entre desenvolvimento das forças produtivas materiais (capacidade de produção de uma sociedade) e as relações sociais de produção entre capitalistas e assala- riados. O fato é que ao revolucionar constantemente os meios de produção para enfrentar a acirrada competição nos mercados de bens, a burguesia vai cavando sua própria cova, visto que ao substituir trabalhadores por máquinas, sempre mais sofisticadas, gera desemprego em massa e impede a reprodução do próprio capital por impedir o consumo da produ- ção cada vez mais diversificada e em grande escala. Emerge, então, a contradição dialética entre a acumulação da riqueza, de um lado, e, de outro, a acumulação da pobreza, parali- sando o próprio processo de produção da riqueza e contribuindo para o fortalecimento da organização política dos trabalhadores, cujo resultado é o rompimento das relações sociais capitalistas pela revolução comunista. A Sociologia, ainda hoje, continua subsidiada pelas obras dos três clássicos aqui rapi- damente apresentados, pois os autores contemporâneos têm construído novos esquemas de explicação teórica a partir da sua total rejeição, da sua reformulação ou ainda da sua amplia- ção, na tentativa de acompanhar e compreender o processo histórico que se manifesta em situações por aquelas obras não contempladas. Como Durkheim, Weber e Marx fundamentam suas teorias em princípios epistemoló- gicos distintos (respectivamente, Positivismo, Sociologia da Compreensão e Materialismo Histórico e Dialético), em nenhuma hipótese é possível utilizar conceitos por eles elabo- rados de maneira indistinta, porque seu poder explicativo se circunscreve no conjunto da teoria que lhes deu origem. No entanto, pode-se elencar as características peculiares das sociedades capitalistas contemporâneas utilizando as indicações que eles nos legaram, mui- to embora as tenham explicado diferentemente. Assim, reunimos a seguir os componentes essenciais da estrutura das sociedades capitalistas. 2.4 A estrutura das sociedades industriais capitalistas Os princípios norteadores das relações sociais e da organização das di- ferentes dimensões da vida social podem ser assim apresentados: • Trabalho livre, decorrente do primeiro artigo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, segundo o qual todos os homens nascem livres e iguais perante a lei, condição necessária para a existência do mercado livre de trabalho e para a transformação da força de trabalho em mercadoria, isto é, trabalho assalariado. Um mercado de trabalho livre existe quando e somente quan- do os trabalhadores (seguindo a conhecida frase de Marx) são livres no duplo sentido, ou seja, “como pessoas livres, podem dispor de sua força de trabalho como mercadoria própria” e “são desprovidos de tudo o mais necessário à realização de sua Vídeo As sociedades industriais capitalistas2 Sociologia Geral28 força de trabalho”. Um mercado de trabalho pressupõe a ausência de proprieda- de em dois sentidos: o trabalhador não pode estar vinculado a um proprietário como um material componente da produção, nem pode controlar propriedade e, portanto, suas próprias chances de garantir uma existência fora do mercado de trabalho. O trabalhador não pode ser propriedade de alguém nem possuir propriedade. (OFFE, 1989, p. 72) • Instituição da propriedade privada dos meios de produção, isto é, do capital, a todos acessível juridicamente, porém, na prática, só é acessível a alguns poucos, origem da contradição entre igualdade jurídica e desigualdade de fato. • Desigualdade de fato, expressa na formação de classes sociais, que consiste na formação de grupos de pessoas que ocupam diferentes posições no processo de produção da riqueza, essas são determinadas pela posse ou não dos meios de produção. Desse restrito acesso de fato à propriedade do capital, nascem as duas grandes classes sociais das sociedades capitalistas: a dos proprietários do capital (capitalistas ou burguesia) e a classe dos não proprietários do capital (proletaria- do ou classe assalariada) que vive da venda de sua força de trabalho no mercado livre em troca de um salário; as relações de produção entre proprietários e não proprietários dos meios de produção são regulamentadas por um contrato livre de trabalho que poderá ser rompido a qualquer momento por uma das partes. • Luta de classes, latente ou manifesta, devido ao conflito de interesses econômicos das classes e/ou grupos sociais. Os conflitos manifestos se expressam nos movi- mentos reivindicatórios e/ou grevistas, e os latentes são subjacentes às relações sociais entre as classes e, por isso, são permanentes. • Divisão racional do trabalho, cujo critério único é a competência profissional e a capacitação técnica dos trabalhadores e divisão tecnológica do trabalho no interior das empresas. • Economia de mercado, que consiste em uma estrutura econômica organizada para a produção de mercadorias, ou seja, a produção em larga escala de bens e pres- tação de serviços para a troca por dinheiro no mercado de bens e serviços, com fundamento na livre iniciativa e na livre competição, embora parcialmente regu- lamentada pelo Estado. • Produção de bens e prestação de serviços por empresas, com caráter permanente e racionalmente organizadas para a obtenção de lucros, que tem como origem prin- cipal a exploração do trabalho, ou seja, a extração da mais-valia, que é, a diferença entre o que foi efetivamente produzido pelo trabalhador e o que lhe foi pago em forma de salário: o trabalhadorsempre produz mais do que recebe. • Estado Moderno, fundado no Direito Racional e na autoridade legal-racional, cuja legitimidade advém da crença na superioridade da lei racionalmente elabo- rada pelo poder legislativo, representante da vontade do povo; Nele governa-se em nome da lei para fazer cumpri-la. Ela estabelece a separação entre os poderes executivo, legislativo e judiciário e, numa democracia plebiscitária, os cidadãos As sociedades industriais capitalistas Sociologia Geral 2 29 escolhem seus governantes através de eleições livres. O Estado Moderno é ad- ministrado burocraticamente, com funcionários de carreira que ocupam cargos para os quais foram nomeados após terem demonstrado, pela via de concursos públicos, competência técnica para tal, ou, como se afirmou anteriormente, pela escolha soberana dos cidadãos para a ocupação de cargos no executivo e no po- der legislativo. • Direito Racional, isto é, direito calculável, como condição necessária para a exis- tência das sociedades capitalistas modernas, pois, como afirma Max Weber (1980, p. 124), “Para que a exploração econômica capitalista proceda racionalmente pre- cisa confiar em que a justiça e a administração seguirão determinadas pautas”. • Secularização e racionalização e/ou intelectualização da cultura, herdada da filo- sofia racionalista do século XVIII, cujas expressões mais importantes são a ciência, a técnica racional, o Estado Moderno e a razão como princípio organizador de todas as dimensões da vida. • Técnica racional para a mecanização, automatização e informatização da produ- ção e da prestação de serviços, isto é, industrialização, para a produção em larga escala de todas as mercadorias, característica das sociedades industriais. 2.5 As empresas A produção de bens e a prestação de serviços no interior de empresas com caráter permanente e racionalmente organizadas formam um traço distintivo das sociedades industriais capitalistas, pois, em nenhum outro momento da história da humanidade, a satisfação das necessidades sociais dependeu delas totalmente. Sem dúvida, só podemos dizer que toda uma época é tipicamente capitalista quando a satisfação de necessidades se acha, segundo o seu centro de gravidade, orientada de tal maneira que, se ima- ginamos eliminada esta classe de organização, fica em suspenso a satisfação das necessidades. (WEBER, 1980, p. 124) Embora, ainda segundo Max Weber, encontremos várias formas de capi- talismo ao longo dos tempos, foi apenas com a organização empresarial e per- manente do trabalho que surgiu o capitalismo moderno, isto é, o capitalismo racional. Encontramos, primeiramente, por toda a parte, e nas épocas mais diferentes, tipos de um capitalismo irracional: empresas capitalis- tas que tinham por finalidade o arrendamento dos tributos (tanto no Ocidente como na China, e na Ásia Menor) e outras espécies de contribuições para financiar a guerra (na China e na Índia, na época dos Estados parciais); capitalismo mercantil de tipo especu- lativo, tal como os mercadores o conheceram, quase sem exceção Vídeo As sociedades industriais capitalistas2 Sociologia Geral30 em todas as épocas da história; e capitalismo usuário, que, através do empréstimo, explora as necessidades alheias. [...] Todas estas foram, somente, circunstâncias econômicas de caráter irracional, sem que jamais surgisse delas um sistema de or- ganização do trabalho. O capitalismo racional tem em conta as possibilidades do mer- cado, isto é, oportunidades econômicas no sentido mais estrito do termo: quanto mais racional for mais se baseia na venda para grandes massas e na possibilidade de abastecê-las. Este capitalismo, elevado à categoria de sistema, apenas se con- segue no desenvolvimento moderno Ocidental, nos fins da Idade Média. (1980, p. 157, grifos do original) Mas, não só para Weber, as empresas constituem um dos traços distintivos e fundamen- tais das sociedades capitalistas, para Marx, as empresas racionalmente organizadas para a produção das mercadorias representam a característica mais significativa do novo modo de produção, porque é no seu interior que a nova modalidade de exploração do trabalho, a extração da mais-valia, se realiza, tornando-se a fonte principal dos lucros do capitalista e o fator determinante da reprodução do capital. E quanto mais racional for a organização do trabalho, maior será a taxa da mais-valia e, portanto, a taxa de lucros. O trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, a quem pertence seu trabalho. O capitalista cuida em que o trabalho se realize de maneira apropriada e em que se apliquem adequadamente os meios de produção, não se desperdiçando matéria- -prima e poupando-se o instrumental de trabalho, de modo que só se gaste deles o que for imprescindível à execução do trabalho. (MARX, 1971, p. 209) Assim, o Livro I de O Capital, O processo de produção capitalista, dedica-se inteiramente à análise do processo de produção capitalista que se realiza no interior das empresas, cuja maior preocupação é a de organizar racionalmente o processo de trabalho para permitir o aumento da sua produtividade e, consequentemente, dos lucros dos capitalistas. A divisão tecnológica do trabalho, que consiste na decomposição do processo de traba- lho em operações simplificadas realizadas por trabalhadores diferentes, ainda no período manufatureiro, é uma das expressões da racionalização das empresas. Decompondo o ofício manual, especializando as ferramentas, formando os tra- balhadores parciais, grupando-os e combinando-os num mecanismo único, a divisão manufatureira do trabalho cria a subdivisão qualitativa e a proporciona- lidade quantitativa dos processos sociais de produção; cria assim determinada organização do trabalho social e, com isso, desenvolve ao mesmo tempo nova força produtiva social do trabalho. A divisão manufatureira do trabalho, nas bases históricas dadas, só poderia surgir sob forma especificamente capitalista. (MARX, 1971, p. 417) Mas, sem dúvida, a expressão mais significativa da organização racional do trabalho é a mecanização do processo de produção, com a introdução da maquinaria, que substitui o trabalhador, prolonga a jornada de trabalho além do necessário para a sua sobrevivência e intensifica o trabalho, aumentando ainda mais a taxa da mais-valia e a taxa de lucros. Esse emprego (da maquinaria), As sociedades industriais capitalistas Sociologia Geral 2 31 [...] como qualquer outro desenvolvimento da força produtiva do trabalho, tem por fim baratear as mercadorias, encurtar a parte do dia de trabalho da qual pre- cisa o trabalhador para si mesmo, para ampliar a outra parte que ele dá gratui- tamente ao capitalista. A maquinaria é meio para produzir mais-valia. (MARX, 1971, p. 424) Para Marx, portanto, a divisão do trabalho no interior das empresas tem como obje- tivo aumentar a produtividade do trabalho e os lucros dos capitalistas, sempre maiores com a introdução de sofisticadas tecnologias. Acirra o conflito social, imanente às socie- dades capitalistas, por intensificar a exploração do trabalho e degradar o trabalhador ao desprofissionalizá-lo, tornando-o um verdadeiro autômato. Mesmo Durkheim reconhece que as formas contemporâneas da divisão do trabalho não podem engendrar solidariedade social, porque a especialização pronunciada das tare- fas provoca descoordenação das funções e constitui fonte de desintegração por impedir o desenvolvimento do sentimento de interdependência, tornando-se patológica. Independentemente das interpretações teóricas elaboradas pelos clássicos da Sociologia, podemos apresentar as características definidoras das empresas a partir de suas obras e, gra- ças a elas, compreender também o seu surgimento e desenvolvimento como consequência das novas condições econômicas, políticas, sociais e culturais que marcaram o Ocidente da segunda metade do século XVIII. Isso significa que, desde sempre, as empresas devem ser pensadas como produto da- quelascondições permanentemente em processo, em transformação, o que implica afirmar que, para conhecê-las, é preciso situá-las historicamente, acompanhando-se o processo his- tórico universal que as determina, ao mesmo tempo que é por elas determinado. Tarefa desafiadora e, por isso mesmo, imensamente interessante. Pode-se definir a empresa como um grupo de pessoas propositadamente formado e racionalmente organizado para a produção em larga escala de bens ou para a prestação de serviços, para trocá-los por dinheiro no mercado de bens e serviços, tendo por objetivo único a obtenção de lucros. Todas as empresas são organizações, mas nem todas as organizações são empresas. O que as distingue é o fato de que somente as empresas têm como meta a obtenção de lucros. O exemplo mais ilustrativo de organização é o Estado, a maior de todas as organizações, e seus organismos prestadores de serviços à população sem fins lucrativos. A organização racional das empresas se expressa: • na divisão racional e tecnológica do trabalho, ou seja, na distribuição das tarefas segundo o critério único da competência profissional, da capacitação técnica, de seus membros; • nas diferentes formas de organização do processo de trabalho, fundadas na divi- são do trabalho e que, ao longo do século XX, foram identificadas como tayloris- mo, fordismo e toyotismo; • na existência de normas racionalmente elaboradas que regulamentam o compor- tamento de seus membros e a execução das tarefas; As sociedades industriais capitalistas2 Sociologia Geral32 • na estrutura de autoridade hierárquica, como princípio de coordenação das tarefas; • na aplicação dos métodos e dos conhecimentos científicos ao processo produtivo e de prestação de serviços; • na utilização da mais moderna e sofisticada tecnologia, produto de pesquisa per- manente, muitas vezes por elas financiada; • no cálculo econômico permanente, cálculo matemático dos custos da produção, das tendências do mercado, das probabilidades de obtenção de lucros e mesmo das probabilidades de prejuízos; • na rápida e adequada reação às condições econômicas, políticas, sociais e culturais, nacionais e internacionais, determinantes das condições mercadológicas e de ob- tenção de lucros, como consequência da análise permanente do processo histórico. Como grupo de pessoas, a empresa se apresenta como um microcosmo social, desen- volvendo os mesmos processos sociais que caracterizam a sociedade geral, apenas dela se diferenciando por realizarem uma atividade específica para a qual foram socialmente pre- parados. Assim, tal como na sociedade geral, os membros da empresa desenvolvem ações sociais orientados por uma cultura empresarial que se origina na cultura da sociedade como um todo, submetem-se à obediência das normas estabelecidas e à estrutura de autoridade hierárquica e, ao mesmo tempo, informalmente, elegem seus líderes, ocupam posições dife- renciadas segundo a sua competência profissional, colaboram e competem entre si, estão em conflito permanente com os seus empregadores, lutam por melhores condições de trabalho, de salário e de vida, e dependem da situação do mercado de trabalho para a manutenção de sua empregabilidade. Por essas razões, o administrador, para tornar-se realmente competente, deverá adqui- rir os conhecimentos produzidos pelas Ciências Sociais para compreender o comportamen- to organizacional nas suas múltiplas determinações, a fim de promover, com a colaboração dos trabalhadores, os ajustamentos às condições econômicas, políticas, sociais e culturais, nacionais e internacionais, existentes. Ampliando seus conhecimentos O valor do trabalho (MARX, 1982, p. 28) Devemos voltar agora à expressão “valor ou preço do trabalho”. Vimos que, na realidade, esse valor nada mais é que o da força de trabalho, medido pelos valores das mercadorias necessárias à sua manutenção. Mas, como o operário só recebe o seu salário depois de realizar o seu trabalho e como, ademais, sabe que o que entrega realmente ao capitalista é o seu trabalho, ele necessariamente imagina que o valor ou preço de sua força de trabalho é o preço ou valor do seu próprio trabalho. Se o preço de sua força de trabalho As sociedades industriais capitalistas Sociologia Geral 2 33 é 3 xelins, nos quais se materializam 6 horas de trabalho, e ele trabalha 12 horas, forçosamente o operário considerará esses 3 xelins como o valor ou preço de 12 horas de trabalho, se bem que estas 12 horas representem um valor de 6 xelins. Donde se chega a um duplo resultado: Primeiro: O valor ou preço da força de trabalho toma a aparência do preço ou valor do próprio trabalho, ainda que a rigor as expressões de valor e preço do trabalho careçam de sentido. Segundo: Ainda que só se pague uma parte do trabalho diário do ope- rário, enquanto a outra parte fica sem remuneração, e ainda que esse tra- balho não remunerado ou sobretrabalho seja precisamente o fundo de que se forma a mais-valia ou lucro, fica parecendo que todo o trabalho é trabalho pago. Essa aparência enganadora distingue o trabalho assalariado das outras for- mas históricas do trabalho. Dentro do sistema do salariado, até o trabalho não remunerado parece trabalho pago. Ao contrário, no trabalho dos escravos parece ser trabalho não remunerado até a parte do trabalho que se paga. Claro está que, para poder trabalhar, o escravo tem que viver e uma parte de sua jornada de trabalho serve para repor o valor de seu próprio sustento. Mas, como entre ele e seu senhor não houve trato algum, nem se celebra entre eles nenhuma compra e venda, todo o seu trabalho parece dado de graça. O lucro obtém-se vendendo uma mercadoria pelo seu valor O valor de uma mercadoria se determina pela quantidade total de traba- lho que encerra. Mas uma parte dessa quantidade de trabalho representa um valor pelo qual se pagou um equivalente em forma de salários; outra parte se materializa num valor pelo qual nenhum equivalente foi pago. Uma parte do trabalho incluído na mercadoria é trabalho remunerado; a outra parte, trabalho não remunerado. Logo, quando o capitalista vende a mercadoria pelo seu valor, isto é, como cristalização da quantidade total de trabalho nela invertido, o capitalista deve forçosamente vendê-la com lucro. Vende não só o que lhe custou um equivalente, como também o que não lhe custou nada, embora haja custado o trabalho do seu operário. O custo da mercadoria para o capitalista e o custo real da mercadoria são coisas inteiramente distintas. Repito, pois, que lucros normais e médios se obtêm vendendo as mercadorias não acima do que valem e sim pelo seu verdadeiro valor. As sociedades industriais capitalistas2 Sociologia Geral34 Atividades 1. Apresente e explique as características principais das sociedades industriais capita- listas segundo as perspectivas teóricas elaboradas pelos clássicos da Sociologia. 2. Qual o traço definidor de uma empresa e como se expressa? 3. Como se explica a desigualdade social de acordo com o pensamento de Marx? Referências DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971. MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. O processo de produção do Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. MARX, Karl. Salário, Preço e Lucro. In: Coleção Os economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1982. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1989. WEBER, Max. História geral da economia. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores). Resolução 1. Para Durkheim, a característica principal das sociedades modernas é a divisão do trabalho social. Ao promover a interdependência das funções profissionais especia- lizadas, a divisão do trabalho social, que tem como origem o aumento da população, gera a solidariedade orgânica, ou seja, um novo tipo de coesão ou integração social que nasce do reconhecimentocoletivo da complementariedade das atividades indi- viduais diferenciadas, assegurando a existência e o funcionamento da sociedade e, consequentemente, a satisfação das necessidades individuais de um maior número de pessoas. Para Max Weber, o traço característico do capitalismo moderno é a racionalidade da conduta em todas as dimensões da vida. Essa racionalidade funciona como fundamen- tal princípio norteador da vida econômica que se manifesta na multiplicação de em- presas, por meio das quais todas as necessidades de um grupo humano são satisfeitas. Para Marx, a especificidade do modo de produção capitalista reside na extração da mais-valia, isto é, numa nova modalidade de exploração do trabalho, substituindo a escravidão e a servidão que caracterizaram, respectivamente, o modo de produção antigo e o modo de produção feudal, e que se constitui na fonte principal dos lucros do capitalista. A mais-valia corresponde à diferença entre o valor das mercadorias produzidas pelo trabalhador e o valor de sua força de trabalho (capacidade para tra- balhar), expressa no salário. O trabalhador produz muito mais valor (riqueza na for- As sociedades industriais capitalistas Sociologia Geral 2 35 ma de mercadorias) do que recebe em troca pela única mercadoria que possui e que é obrigado a vender no mercado de trabalho para sobreviver: a sua força de trabalho. 2. Pode-se definir a empresa como um grupo de pessoas propositadamente formado e racionalmente organizado para a produção em larga escala de bens ou para a presta- ção de serviços, para trocá-los por dinheiro no mercado de bens e serviços, tendo por objetivo único a obtenção de lucros. Todas as empresas são organizações, mas nem todas as organizações são empresas. O que as distingue é o fato de que somente as empresas têm como meta a obtenção de lucros. O exemplo mais ilustrativo de orga- nização é o Estado, a maior de todas as organizações, e seus organismos prestadores de serviços à população sem fins lucrativos. 3. Para Marx, a desigualdade social surge a partir da separação e estratificação das classes sociais, que por sua vez se formam pela posse ou não dos meios de produção material e, consequentemente, intelectual. Sociologia Geral 37 3 As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno 3.1 A acumulação primitiva do capital A estrutura econômica da sociedade capitalista tornou-se possível graças à acumulação primitiva do capital ainda na estrutura econômica da sociedade feudal, anterior, portanto, à acumulação capitalista, como resultado de “processos idílicos” (aventureiros), sobretudo violentos, de obtenção de riquezas. Vídeo As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno3 Sociologia Geral38 As descobertas de ouro e de prata na América, o extermínio, a escravização das populações indígenas, forçadas a trabalhar no interior das minas, o início da conquista e pilhagem das Índias Orientais e a transformação da África num vas- to campo de caçada lucrativa são os acontecimentos que marcam os albores da era da produção capitalista. Esses processos idílicos são fatores fundamentais da acumulação primitiva. Logo segue a guerra comercial entre as nações europeias, tendo o mundo por palco. Inicia-se com a revolução dos Países Baixos contra a Espanha, assume enormes dimensões com a guerra antijacobina da Inglaterra, prossegue com a guerra do ópio contra a China etc. Os diferentes meios propulsores da acumulação primitiva se repartem numa or- dem mais ou menos cronológica por diferentes países, principalmente Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Na Inglaterra, nos fins do século XVII, são coordenados através de vários sistemas: o colonial, o das dívidas públicas, o moderno regime tributário e o protecionismo. Esses métodos se baseiam em parte na violência mais brutal, como é o caso do sistema colonial. Mas, todos eles utilizavam o poder do estado, a força concentrada e organizada da socieda- de para ativar artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção no modo capitalista, abreviando assim as etapas de transição. A força é o parteiro de toda sociedade velha que traz uma nova em suas entranhas. Ela mesma é uma potência econômica. (MARX, 1971, p. 868) Max Weber também se refere aos processos de acumulação da riqueza anterio- res ao capitalismo moderno que caracterizaram as formas de capitalismo irracional. Dentre esses processos, [...] a ocupação e exploração de grandes regiões fora da Europa. As aquisições coloniais dos Estados europeus deram lugar, em todos eles, a uma gigantesca acumulação de riquezas dentro da Europa. O meio empregado para este acú- mulo de riquezas foi o monopólio dos produtos coloniais, as possibilidades de colocação nas colônias, isto é, o direito de transportar-lhes as mercadorias, e, finalmente, as oportunidades de ganho que oferecia o transporte, mesmo entre a metrópole e as colônias, tal como foram asseguradas pela Ata de Navegação Inglesa, de 1651. Tal acumulação de riquezas ficou garantida, sem exceção, por todos os países, mediante o exercício do poder, o que se revestiu de várias for- mas, isto é, o Estado tirava das colônias lucros imediatos; administrando dire- tamente suas riquezas, ou cedendo-as a determinadas sociedades, em troca de certos pagamentos. (WEBER, 1980, p. 136) Assim, se a acumulação primitiva do capital foi obtida mediante atividades aventu- reiras, a acumulação do capital nas sociedades modernas resulta da eficácia e eficiência da administração empresarial, isto é, da capacidade de explorar ao máximo, racionalmente, todos os recursos, meios e fatores da produção. O que resulta, portanto, da organização ra- cional do trabalho no interior das empresas, do cálculo econômico permanente e da análise racional, probabilística em termos matemáticos, dos mercados nacionais e internacionais, frutos de múltiplas determinações: econômicas, políticas, sociais e culturais universais. As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno Sociologia Geral 3 39 Neste capítulo, a atenção se volta para as implicações sociais e humanas do processo de racionalização do interior das empresas, isto é, das diferentes formas de organização racional do processo de trabalho que marcaram o século XX e de- terminaram, em grande parte, os mercados de trabalho. 3.2 A divisão tecnológica do trabalho A primeira expressão da racionalização do interior das empresas industriais foi a divisão do processo de trabalho em operações especializadas atribuídas a di- ferentes trabalhadores, já no século XVIII, conforme nos demonstrou Adam Smith (1937, p. 4) em A riqueza das nações: Um homem estica o arame, outro o retifica e um terceiro o corta; um quarto faz a ponta e um quinto prepara o topo para receber a cabeça; a cabeça exige duas ou três operações distintas: colocá-la é uma fun- ção peculiar, branquear os alfinetes é outra e até alinhá-los num papel é uma coisa separada: e o importante na fabricação de um alfinete é deste modo dividido em cerca de dezoito operações que, em algumas fábricas, são executadas por mãos diferentes, embora em outras o mes- mo homem às vezes execute duas ou três delas. Os efeitos econômicos altamente positivos da divisão do trabalho devem-se, segundo Smith, a três diferentes circunstâncias: ao aumento da destreza de cada trabalhador individualmente; segun- da, à economia de tempo que em geral se perde passando de uma es- pécie de trabalho a outra; e, finalmente, à invenção de grande número de máquinas que facilitam e abreviam o trabalho, e permitem que um homem faça o trabalho de muitos. (SMITH, 1937, p. 7) Ao longo do século XIX, a divisão do processo de trabalho acentuou-se e foi por Marx denominada divisão tecnológica do trabalho por conformar-se às exigências da introdução de novos instrumentais de trabalho, ou seja, às exigênciasde um sistema de máquinas que, ao desenvolver-se, propiciou uma total reorganização do interior da fábrica. No entanto, até o final daquele século, o trabalho industrial ainda era realizado por operários profissionais, conhecedores da matéria-prima e de todas as etapas de sua transformação num produto final. Seu conhecimento advinha da experiência vivida no chão da fábrica e lhes garantia autonomia profissional. Dada a inexistên- cia de uma programação da produção, predominava a organização autônoma do trabalho do operário profissional, que Alain Touraine, sociólogo francês, qualificou de sistema profissional ou Fase A do processo de organização e de qualificação do trabalho. A qualificação do operário é, sobretudo, indicada por seu poder de co- mando e decisão sobre o próprio trabalho a partir do conhecimento da totalidade do processo produtivo. Vídeo As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno3 Sociologia Geral40 Esta independência, essa liberdade profissional do operário em relação à empre- sa que o emprega é inseparável da unidade profissional das categorias operárias, num ofício determinado, unidade fundada na sucessão hierarquizada de níveis de aprendizagem e decisão. (TOURAINE, 1973, p. 449) Nessa fase, a divisão tecnológica do trabalho, em estágio pouco avançado, preservava o trabalho profissional altamente qualificado. 3.3 Taylorismo e fordismo Nas últimas décadas do século XIX, Frederick Taylor1 desenvolveu um novo método de organização do processo de trabalho industrial para aumentar o volume de produção, a fim de atender a demanda crescente pela conquista de novos mercados e “assegurar o máximo de prosperidade ao patrão e, ao mesmo tempo, o máximo de prosperidade ao empregado” (TAYLOR, 1966, p. 29), sendo esse o principal objetivo da administração. Figura 1 – Frederick Winslow Taylor. Fonte: Wikimedia Commons. O ponto de partida da obra de Taylor é a sua constatação de que o trabalhador é, por princípio e definição, vadio, trabalhando muito menos do que é fisicamente capaz, tal 1 Engenheiro norte-americano que ficou conhecido como pai da administração científica, também conhecida como taylorismo, pela importância de sua obra, especialmente em Princípios de administração científica, publicada em 1911. Vídeo As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno Sociologia Geral 3 41 como afirma nessa passagem extravagante que, com certeza, a todos atordoa já pelo título “Vadiagem no trabalho”: Os ingleses e americanos são os povos mais amigos dos esportes. Sempre que um americano joga basquetebol ou um inglês joga cricket, pode-se dizer que eles se esforçam, por todos os meios, para assegurar a vitória à sua equipe. Fazem tudo a seu alcance para conseguir o maior número possível de pontos. O sentimento de grupo é tão forte que, se algum homem deixa de dar tudo de que é capaz no jogo, é considerado traidor e tratado com desprezo pelos companheiros. Contudo, o trabalhador vem ao serviço, no dia seguinte, e em vez de empregar todo o seu esforço para produzir a maior soma possível de trabalho, quase sem- pre procura fazer menos do que pode realmente – e produz muito menos do que é capaz; na maior parte dos casos, não mais do que um terço ou metade dum dia de trabalho, é eficientemente preenchido. E, de fato, se ele se interessasse por produzir maior quantidade, seria perseguido por seus companheiros de oficina, com mais veemência, do que se se tivesse revelado um traidor no jogo. Trabalhar menos, isto é, trabalhar deliberadamente devagar, de modo a evitar a realização de toda a tarefa diária, fazer cera, [...] é o que está generalizado nas indústrias e, prin- cipalmente, em grande escala, nas empresas de construção. (TAYLOR, 1966, p. 32) Essa citação inicial é bastante esclarecedora da intenção única de Taylor que é a de en- contrar resposta à pergunta fundamental tanto para o capitalista quanto para o seu prepos- to: como fazer o trabalhador trabalhar mais? A resposta é o taylorismo. Ao criar e atribuir à gerência as funções de planejamento e controle do trabalho com o estudo de tempos e movimentos para a eficaz realização das tarefas inerentes aos diferentes postos de trabalho, de seleção e treinamento do pessoal, de fixação do volume de produção a ser obtido de cada um dos trabalhadores, de elaboração de programas de incentivo em di- nheiro ao trabalhador Taylor fez surgir uma nova estrutura administrativa com fundamento na ideia de tarefa e deu início à chamada Fase B ou sistema técnico de organização do trabalho. A ideia da tarefa é, quiçá, o mais importante elemento na administração cientí- fica. O trabalho de cada operário é completamente planejado pela direção, pelo menos, com um dia de antecedência e cada homem recebe, na maioria dos casos, instruções escritas completas que minudenciam a tarefa de que é encarregado e também os meios usados para realizá-la. [...] Na tarefa é especificado o que deve ser feito e também como fazê-lo, além do tempo exato concebido para a execu- ção. (TAYLOR, 1966, p. 51) Partindo do princípio da divisão tecnológica do trabalho e da especiali zação do operá- rio, Taylor estabeleceu cargos e funções, definindo o conteúdo e o modo de execução das tarefas de cada um e suas inter-relações com as dos demais, sob a supervisão da gerência. Iniciava-se, assim, o processo de total dissociação entre a concepção do projeto do resultado e do processo de trabalho e o trabalho de execução do projeto, o que se resume na dissocia- ção entre trabalho intelectual e trabalho manual. O operário tornou-se um mero executor de tarefas previamente prescritas. As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno3 Sociologia Geral42 A Fase B é marcada, portanto, pela centralização da organização e do controle da produção que permite e aprofunda a fragmentação e a especialização das atividades industriais, fazendo surgir o operário especializado ou semiqualificado, simples condu- tor de máquinas e executor de tarefas preestabelecidas, embora não elimine o trabalho qualificado, concentrado, agora, nas oficinas de manutenção e ferramentarias. Os operários especializados estão sujeitos à organização centralizada do traba- lho. Já não representam um potencial profissional suscetível de utilizações di- versas. Definidos pelo posto de trabalho e, em grande parte, intermutáveis, a sua especialização não é análoga à dos operários das manufaturas, cuja habilidade, mesmo reduzida à execução de trabalhos parcelares, continuava a ser o princípio definitivo. (TOURAINE, 1973, p. 454) Assim, não mais havia necessidade de “homens extraordinários”, com exceção dos membros da gerência. As práticas de seleção e treinamento visavam apenas conhecer as aptidões dos candidatos a um emprego e treinar os selecionados de acordo com o método planejado. “A seleção, então, não consistiu em achar homens extraordinários, mas simples- mente em escolher entre homens comuns os poucos especialmente apropriados para o tipo de trabalho em vista.” (TAYLOR, 1966, p. 76). Daí deriva o princípio da escolha do homem certo para o trabalho certo, cujas qualidades deveriam ser a força física e/ou a rapidez de percepção e reação na inspeção de qualquer objeto, mas de todos, sem exceção, a qualidade essencial deveria ser a capacidade para a obediência estrita. Sem dúvida, o taylorismo permitiu aumentar consideravelmente a produtividade do trabalho, reduziu os custos de produção e os preços das mercadorias e, sobretudo, permitiu aumentar consideravelmente os lucros dos capitalistas, “assegurando ao máximo a pros- peridade do patrão”. Mas, e quanto à prosperidade do empregado? A “prosperidade do empregado”, acreditava Taylor, estaria assim assegurada: Na tarefa, é especificado o que deve ser feito e também como fazê-lo, além do tempo exato concebido para a execução. E, quando o trabalhador consegue rea- lizar a tarefadeterminada, dentro do tempo-limite especificado, recebe aumento de 30 a 100% do seu salário habitual. (TAYLOR, 1966, p. 51) A nova organização do trabalho, caracterizada pela centralização e controle da produção pela gerência, tornou-se a forma predominante de administração do processo produtivo até as últimas décadas do século XX, porque o taylorismo foi aperfeiçoado por Henry Ford I, o pai da indústria automobilística, com a introdução, em 1914, de uma inovação tecnológica: a esteira automática de produção ou sistema automático de transporte de peças e ferramentas para intensificar ainda mais o ritmo de trabalho, agora totalmente controlado pela gerência que pode imprimir, com um simples apertar de botão, o ritmo que quiser ao trabalho de todos. O fordismo caracteriza o que poderíamos chamar de socialização da proposta de Taylor, pois, enquanto este procurava administrar a forma de execução de cada trabalho individual, o fordismo realiza isso de forma coletiva, ou seja, a admi- nistração pelo capital da forma de execução das tarefas individuais se dá de uma forma coletiva, pela via da esteira. (MORAES NETO, 1989, p. 36) As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno Sociologia Geral 3 43 Figura 2 – Henry Ford. Fonte: Wikimedia Commons. Ford, diferentemente de Taylor, considerava o trabalhador não apenas um produtor de mercadorias, mas também um consumidor. Por isso, aumentou os salários de seus traba- lhadores e instituiu a jornada de trabalho de oito horas como incentivo ao consumo, além de distribuir alguns benefícios, como: restaurantes, transporte, hospital e assistência social, por ter compreendido que a produção padronizada em massa requeria consumo de massa. Compreendeu também que o “fordismo” seria adotado nos mais diferentes setores da ativi- dade econômica, inclusive nos escritórios onde a esteira de produção era movida pelo “office boy interno”, e poderia ser responsável pelo surgimento da sociedade de consumo de massa, o que de fato aconteceu devido à adoção, na década de 1930, de políticas intervencionistas de Estado que tinham por objetivo proteger a economia nacional, regulamentar as relações de trabalho e fortalecer os sindicatos, garantindo a elevação dos salários, consequentemente, o consumo em massa. No entanto, é duvidosa a pretensão de Taylor, extensiva ao fordismo, de considerar essa forma de administração do processo de trabalho de “científica”. Trata-se muito mais de justificar a intensificação do trabalho pela ciência do que propriamente demonstrar o caráter verdadeiramente científico dessa organização do trabalho, pois, como ressalta Salm (1980, p. 64) “[...] a Ergono mia – estudo dos tempos e movimentos – não pode ser vista como algo objetivo, mas sujeito a negociações e compromissos” o que nos permite afirmar que o taylorismo/fordismo se fundamentam no conhecimento empírico, mas não propriamente científico, dos efeitos positivos da disciplina e obediência rígida às normas da empresa, ra- cionalmente elaboradas, para o aumento da produtividade do trabalho. As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno3 Sociologia Geral44 Além disso, deve-se considerar que o acesso da classe operária ao consumo de bens in- dustrializados, graças ao aumento dos salários e ao baratea mento das mercadorias, foi uma razão suficiente para justificar a submissão – não muito passiva, é verdade – a essa nova forma de administração do trabalho. A análise crítica ao taylorismo/fordismo nos remete à questão do conflito de classes nas sociedades capitalistas e ao problema fundamental com o qual se defronta o capitalista: como obter a colaboração do trabalhador e fazê-lo trabalhar mais e melhor? Em princípio, ninguém quer trabalhar para enriquecer o outro em troca apenas de um emprego no qual do salário se extrai o estritamente necessário para a sua sobrevivência. O taylorismo e o fordis- mo foram as respostas encontradas pelo capital, ao longo do século XX, para enfrentar esse problema, mas os trabalhadores sempre reagiram – e sempre reagem – às condições impos- tas, organizando-se politicamente em sindicatos e em movimentos sociais reivindicatórios de diferentes naturezas, muitos deles bem-sucedidos que lhes garantiram alguma melhoria nas condições de trabalho e de vida. Conciliar interesses divergentes é o desafio maior a ser confrontado pelo capital, pelo administrador, pelos governos estabelecidos e pelos próprios trabalhadores, num esforço conjunto para a promoção do desenvolvimento e redução da desigualdade social. 3.4 Impactos do taylorismo e do fordismo sobre o trabalhador Não há dúvida de que o taylorismo e o fordismo permitiram a melhoria das condições de vida para a parcela da classe operária assalariada das grandes corporações, dando-lhe acesso ao consumo de bens industrializados, além de terem gerado milhares de empregos nos EUA e terem sido responsáveis, em grande parte, pelo seu extraordinário crescimento econômico, o que fez do país uma potência mundial. Mas, a que preço? Charles Chaplin, no filme Tempos modernos2, produziu a representação artística mais ilustrativa do trabalho infernal das fábricas fordistas e a transformação do trabalhador num autômato desvairado, infeliz. Não faltaram razões para isso, porque esse novo modelo de trabalho provocou fatores que influenciaram diretamente a vida pessoal do trabalhador, tais como: • A desprofissionalização: os trabalhadores passam a ser responsáveis apenas pela execução de uma ou mais tarefas simplificadas, repetitivas e insignificantes, pen- sadas pela gerência científica, inclusive nos gestos e movimentos necessários para realizá-las bem e rapidamente, o que representa a monopolização do saber operá- rio por essa gerência que, nas palavras de Benjamin Coriat, se define pela análise do obstáculo que vence: trata-se nada menos que de ex- propriar aos trabalhadores seu saber [...] não se trata somente de expropriar aos trabalhadores seu saber, senão também de confiscar este saber recolhido e sistematizado – em benefício exclusivo do capital. [...] o que aqui se instaura 2 TEMPOS Modernos. Direção: Charles Chaplin. Produção: Charles Chaplin. EUA, 1936. 87 min. Vídeo As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno Sociologia Geral 3 45 maciçamente é a separação entre trabalho de concepção e de execução, um dos momentos-chave da separação entre trabalho manual e intelectual. (CORIAT, 1976, p. 94) Essa especialização conduz inexoravel mente à perda da noção de totalidade do processo de produção e compromete a capacidade de compreensão do significado do próprio trabalho, sendo causa de profunda insatisfação e sentimento de frustra- ção por impossibilitar a realização das potencialidades intelectuais e a satisfação das necessidades de autoestima e autorrealização, raiz da tendência ao absenteís- mo, desperdício de material, negligência, acidentes de trabalho, turnover (rodízio de pessoal), alcoolismo, drogas, stress, Lesão por Esforço Repetitivo (LER), fadiga constante etc. e da resistência às condições impostas através de movimentos sindi- cais, alguns marcados por extrema violência. • a monopolização do saber pela gerência científica: isso reduz o poder de barganha da classe trabalhadora, cujos movimentos de resistência, sindicais, tornaram-se movimentos reivindicatórios por melhorias nas condições de trabalho, aumentos salariais e estabilidade no emprego e não mais movimentos visando à reapropria- ção dos instrumentos de trabalho, de orientação revolucionária. • A profunda insatisfação com as condições de trabalho: essa é causa da “evasão no lazer” em suas mais variadas formas – desde o simples passatempo diante da televisão até os esportes agressivos e jogos de azar – como necessidade visceral de preencher o vazio da alma e combater o tédio provocado pelo trabalho massacran- te que é tido como insignificante, desinteressante,repetitivo, alienado e alienante, submisso, disciplinado e humilhante. Tudo aquilo de que se viram privados no trabalho – iniciativa, responsabilida- de, realização – os trabalhadores buscam reconquistar no lazer. Constatou-se, durante os últimos dez anos, uma fantástica proliferação de “manias”, de passa- tempos (art and craft hobbies), às quais se acrescentam todas as espécies de lazeres ativos, fotografia, cerâmica, eletrônica, rádio etc., todas as categorias daquilo que Erich Fromm, por seu lado, opondo-se aos serviços “aperta-botão” das máquinas automáticas, chama de “do it yourself activities” (atividades “faça você mesmo”). Bell acrescenta, que se ajusta plenamente às interpretações que, antes, déramos desses fatos: A América viu multiplicar-se o “amador” numa escala até então desconhecida. E se nisso há, em si, um bem, ele foi obtido a um preço muito ele- vado: o da satisfação no trabalho. (FRIEDMANN, 1972, p. 159) Assim, no século XX, o trabalho ao ser separado do lazer, do prazer, da alegria da busca da autoestima e da autorrealização, transformando sua a expe riência e a vivência em casti- go, punição, expiação do pecado original, tal como o interpretaram as tradições religiosas do Ocidente, ofereceu como compensação o alargamento do tempo livre para não só pos- sibilitar a reposição saudável da força de trabalho e o aumento do consumo da produção em massa, mas também (muito embora essa não fosse a intenção) a reversão no e pelo lazer das privações do desenvolvimento da individualidade no e pelo trabalho a que submeteram milhões de trabalhadores. As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno3 Sociologia Geral46 O taylorismo e o fordismo geraram uma massa de trabalhadores insatisfeitos, entedia- dos, frustrados, infelizes, alienados de si mesmos, de sua própria natureza, cujas potencia- lidades não puderam se efetivar na realização de um trabalho arte-criação-ação inteligente e transfigurou o papel da Razão na História em racionalidade instrumental das grandes organizações racionais do mundo moderno. A organização racional é, assim, alienadora: os princípios orientadores da conduta e da reflexão, e com o tempo também da emoção, não estão centralizados na cons- ciência individual do homem da Reforma, ou na razão independente do homem cartesiano. Os princípios orientadores são, na verdade, alheios e em contradição a tudo o que se tem compreendido historicamente como individualidade. Não será demais dizer que no desenvolvimento extremo, a possibilidade de razão que tem a maioria dos homens é destruída, à medida que a racionalidade aumenta e sua localização, seu controle, passa do indivíduo para a organização em grande escala. Há, então, racionalidade sem razão. Essa racionalidade não está de acordo com a liberdade, sendo, antes, a sua destruidora. (MILLS, 1965, p. 185) O taylorismo e o fordismo universalizaram-se como forma predominante de organiza- ção do processo de trabalho no pós-Segunda Guerra Mundial, em 1945, tendo sido um dos fatores determinantes da rápida reconstrução da Europa Ocidental e do Japão que, pouco mais tarde, desenvolveu o toyotismo, inaugurando a Fase C ou sistema automático de produção, por muitos autores denominada produção flexível. É preciso ressaltar, no entanto, que as consequências positivas, ao contrário das negati- vas, da predominância do taylorismo/fordismo não se estenderam a toda classe trabalhado- ra e muito menos a todos os países. A América Latina ainda se debate para extirpar os enor- mes bolsões de pobreza em todos os seus países, sem contar a disparidade das condições de vida entre eles. A competição econômica entre países se acirrou e os conflitos entre eles tornaram-se inevitáveis, inclusive os conflitos armados que não deram trégua à humanida- de um só dia do século XX e neste início do século XXI. Considera-se também que não foi simples coincidência o aparecimento das diferentes teorias de motivação para o trabalho3, a partir dos anos 1950, quando da universalização do taylorismo/fordismo e a contratação de psicólogos nas empresas. A simples denominação dessas teorias – Teorias de Motivação para o Trabalho – já é razão suficiente para se dar conta da dimensão das questões suscitadas pelas novas condições que não atingiram apenas os trabalhadores, mas também as empresas, obrigadas a enfrentar os problemas referidos de alcoolismo, drogas, negligência, turnover etc., a rever os seus métodos de gestão e a atender muitas das reivindicações dos trabalhadores, se quisessem obter a sua colaboração. Compreende-se facilmente que, se naquelas condições trabalhar fosse uma atividade agradável, não haveria necessidade de se pensar em aplicar técnicas de motivação dos tra- balhadores originadas de teorias de motivação para o trabalho. 3 As teorias da motivação foram elaboradas por Maslow (1970), Herzberg, Mausner e Snyderman (1959) e Argyris (1969). As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno Sociologia Geral 3 47 3.5 Os Anos Dourados A maioria dos seres humanos atua como os historiadores: só em retrospecto reconhece a natureza de suas experiências. Durante os anos 1950, sobretudo nos países “desenvolvidos” cada vez mais prósperos, muita gente sabia que os tempos tinham de fato melho- rado, especialmente se suas lembranças alcançavam os anos anterio- res à Segunda Guerra Mundial. Um primeiro-ministro conservador britânico disputou e venceu uma eleição geral em 1959 com o slogan “Você nunca esteve tão bem”, uma afirmação sem dúvida correta. Contudo, só depois que passou o grande boom, nos perturbadores anos 1970, à espera dos traumáticos 1980, os observadores – sobretu- do, para início de conversa, os economistas – começaram a perceber que o mundo, em particular o mundo do capitalismo desenvolvido, passara por uma fase excepcional de sua história; talvez uma fase única. Buscaram nomes para descrevê-la: “os trinta anos gloriosos dos franceses (les trente glorieuses), a Era de Ouro de um quarto de século dos anglo-americanos. O dourado fulgiu com mais brilho contra o pano de fundo baço e escuro das posteriores Décadas de Crise. (HOBSBAWM, 1995, p. 253) Esse é o parágrafo inicial das mais de cem páginas da parte dois do livro de Eric Hobsbawm, A era dos extremos: O breve século XX - 1914-1991 – dedicada exclusivamente a apresentar e analisar as expressões materiais e não materiais da prosperidade sem precedentes que se estendeu do período imediato ao pós- -Segunda Guerra Mundial (1945-1973) e atingiu não só a Europa e o Japão, mas também alguns países da América Latina – razão pela qual o título dessa parte do livro é A era de ouro, também denominada por diferentes autores de Os anos dourados, Os anos gloriosos, As décadas de ouro. no Brasil, esse momento da história ficou popularmente conhecido como Os Anos Dourados que, entre nós, tiveram curtíssima duração, pois foram interrom- pidos pelos Anos de Chumbo da ditadura militar. Os Anos Dourados iniciaram no governo de Juscelino Kubitschek (Os Anos JK), em 1956, cujo programa de gover- no, o conhecido Plano de Metas, prometia “cinquenta anos de desenvolvimento em cinco”, dinamizando a economia brasileira com a construção de Brasília e a entrada do capital estrangeiro para a produção de bens duráveis. Em 1957, Juscelino inaugurou a pedra fundamental da Volkswagem do Brasil, inauguran- do, ao mesmo tempo, outra fase da industrialização nacional: a industrialização de bens duráveis com capital estrangeiro. A construção de Brasília e os investi- mentos estrangeiros no país geraram milhares de empregos, especialmente em São Paulo, na região do ABC paulista (Santo André, São Bernardo e São Caetano), transformando-a no polo industrial de ponta da América Latina, com tecnologia estrangeira e administração fordista do processo de trabalho. Vídeo As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno3 Sociologia Geral48Figura 3 – Juscelino Kubitschek de Oliveira. Fonte: Wikimedia Commons. Porém, os Anos Dourados no Brasil chegaram ao fim com a Revolução de 1964, que interrompeu o processo político democrático, pois, de acordo com diversos autores, a Era de Ouro significou um momento marcado não só pelo crescimento e desenvolvimento econô- micos, mas também pela democratização das instituições políticas e sociais. Por isso houve muitas razões para justificar as denominações desse período de 30 anos do século XX e para preencher as cem páginas da parte dois do livro de Hobsbawm. São elas: • Altíssimo crescimento econômico: A economia mundial crescia a uma taxa explosiva. Na década de 1960, era claro que jamais houvera algo assim. A produção mundial de manufaturas quadrupli- cou entre o início da década de 1950 e o início da década de 1970, e, o que é ainda mais impressionante, o comércio mundial de produtos manufaturados aumentou dez vezes [...]. A produção agrícola mundial também disparou, embora não espe- tacularmente. E o fez não tanto (como muitas vezes no passado) com cultivo de novas terras, mas elevando sua produtividade. (HOBSBAWM, 1995, p. 275) • Pleno emprego: a média de desemprego na Europa Ocidental estacionou em 1,5% e em 1,3% no Japão. • Elevação dos salários: graças ao aumento da oferta de empregos e ao fortalecimento dos sindicatos, cujo poder de barganha também aumentou; acrescente-se a isso a distribuição de benefícios sociais, tais como educação fundamental, assistência mé- dica e hospitalar, seguro-desemprego etc., que também contribuíram para aumentar o poder aquisitivo dos assalariados. As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno Sociologia Geral 3 49 • Desenvolvimento científico e tecnológico: o que permitiu inundar os mercados de novos produtos a preços populares: televisão, discos de vinil, rádios portá- teis transistorizados, relógios digitais, calculadoras de bolso a bateria e depois a energia solar, e produtos de uso industrial e comercial – motor a jato, transistor, energia nuclear etc. (HOBSBAWN, 1995, p. 261). • Multinacionalização do capital: a transferência do capital de grandes corporações para o Leste Asiático e a América Latina à procura de mão de obra barata e politi- camente desorganizada, deu origem à uma nova divisão internacional do trabalho ao permitir a industrialização de bens duráveis (eletrodomésticos, automóveis, tratores etc.) em países até então produtores e exportadores de bens primários – commodities – e produtores de bens industrializados de consumo ( produtos ali- mentícios, de higiene pessoal, tecidos, sapatos etc.). • Internacionalização da economia: o que propiciou a criação de instituições in- ternacionais, como o Banco Mundial (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) para a promoção do investimento internacional, manutenção da estabilidade do câmbio, além de tratar de balanças de pagamento (HOBSBAWM, 1995, p. 269). • Adoção de políticas intervencionistas na economia pelos Estados nacionais: subsidiando, sustentando, supervisionando, planejando e também administran- do indústrias de toda natureza e construindo a infraestrutura necessária para o seu desenvolvimento, ao mesmo tempo em que adotaram políticas da social-de- mocracia com a universalização de benefícios e programas sociais graças ao gran- de volume de impostos arrecadados, fazendo nascer os Estados de Bem-Estar (Welfare States). • Mudanças culturais profundas em todas as esferas da vida: ressaltando-se as que atin- giram a música, com Elvis Presley e as bandas dos Beatles e Rolling Stones; a família e os relacionamentos entre os sexos, com a pílula anticoncepcional e a instituição do divórcio em muitos países; a universalização do blue jeans que revolucionou a moda; os movimentos feministas e a liberação feminina; os movimentos antirracistas etc. No entanto, a prosperidade dos Anos Dourados foi desigual e a pobreza em muitos países da África, da América Latina e da Ásia continuou a atingir milhões e milhões de pes- soas, apesar do crescimento econômico também dessas regiões. Por quê? faremos aqui um parênteses para apontar as causas do fraco desenvolvimento econômico e social da América Latina e, em especial, do Brasil, mesmo durante o curto período dos Anos Dourados. O subdesenvolvimento econômico e social do Brasil (LAZZARESCHI, 2003, P. 70-71) Países em processo de desenvolvimento e aqueles denominados emergentes (Brasil, México, Argentina, Índia, China e os do Sudeste Asiático) são depen dentes da tecnologia As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno3 Sociologia Geral50 originária dos países de industrialização avançada, o chamado Grupo dos Sete (G7): USA, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Canadá. A dependência tecnológica tem como resultado inevitável a sujeição econômica que se expressa no desequilíbrio permanente da balança de pagamentos e na dependência do aporte de capitais estrangeiros, seja na forma de investimentos produtivos diretos, seja na forma de capital financeiro captado a juros altíssimos no mercado internacio- nal especulativo, desregulamentado e volátil, para financiar investimentos em infraes- trutura e garantir o lastro da moeda, cuja estabilização depende das reservas nacionais em dólares. Países de tecnologia atrasada ainda continuam exportadores de commodities primárias, isto é, de matérias-primas ou bens primários ou industrializados com pouco valor agregado, vendidos a preços quase sempre declinantes no mercado internacional, com exceção do petróleo. A produção de bens duráveis, na maioria dos países dependentes da América Latina, foi possível, num primeiro momento, graças ao processo de multinacionalização do capital. Esse processo intensificou-se, sobretudo, a partir da década de 1960, motivado pela pers- pectiva muitíssimo atraente de obtenção de altas taxas de lucro, resultado da abundância de mão de obra, fraqueza dos movimentos sindicais e políticos e dos baixos salários, com- parativamente àqueles pagos nos países de origem do capital. Não se fazia necessária, portanto, a transferência de tecnologia de última geração para diminuir os custos de pro- dução e aumentar a competitividade dos países da região nos mercados internacionais. Assim, ao mesmo tempo que a multinacionalização do capital significou a intensificação do processo de industrialização dos países dependentes, iniciado em décadas anterio- res, impediu, pelas mesmas razões que a motivaram, o desenvolvimento do mercado interno e a elevação dos níveis de vida de suas populações, além de sangrar os cofres públicos com o pagamento da dívida externa contraída tanto para a construção da infraestrutura industrial necessária quanto para financiar investimentos não produti- vos – investimentos realizados de forma irresponsável por muitos governos militares da América Latina. Fernando Henrique Cardoso (1975, p. 73-74) afirmou a respeito do processo de interna- cionalização do mercado interno: É a esse processo que me refiro com o designativo industrialização excludente ou restritiva. Por quê? A razão é simples em termos de uma caracterização que tome em consideração os efeitos dessa industrialização. Transfere-se para as economias em desenvolvimento um sistema produtivo já pronto, importando-se fábricas completas que, no decorrer de poucos anos, passam a fabricar os utensílios usuais à vida moderna dos países desenvolvidos e trazem com eles as técnicas [e não só a tecnologia produtiva] requeridas para o funciona- mento das economias industriais de massa: propaganda, fabricação constante de novos produtos e criação de novas necessidades de consumo, suporte financeiro complexo [cré- dito ao consumidor e ao produtor], entre outros. Entretanto, da mesma forma que a industrialização substitutiva se iniciou no Brasil e nos outros países latino-americanos sem a ocorrênciaprévia ou posterior de uma profunda modificação na economia e na propriedade agrárias, sua etapa final, que supunha a pro- dução dos bens de consumo de massa, deu-se sem que tivessem ocorrido significativas tendências à redistribuição de rendas. Assim, a internacionalização dos mercados – se é certo que significou a abertura do mercado aos capitais estrangeiros e maior homogenei- zação das técnicas de produção, comercialização e funcionamento, em comparação com os centros de desenvolvimento mundial – não trouxe consigo maior participação social nos frutos do progresso tecnológico. Como compatibilizar, nessas condições, a escala de produção com o mercado? (CARDOSO, 1975). As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno Sociologia Geral 3 51 O resultado do processo de industrialização excludente ou restritiva no Brasil e nos demais países da América Latina foi a elevação dos índices de inflação a dois dígitos mensais com as consequências correlatas previsíveis: diminuição dos investimentos estrangeiros e dos gastos públicos; corrosão dos salários; aumento do desemprego, além dos pedidos de socorro ao FMI, implicando sempre dolorosos ajustes econômicos e queda dos níveis de vida da população. Por essas razões, a década de 1980 foi conside- rada a década perdida, com o recrudescimento da dependência econômica, tanto para o Brasil quanto para o conjunto dos países latino-americanos que adotaram políticas semelhantes de industrialização pela via da substituição das importações, financiada pelo capital estrangeiro. Exportadores de bens com pouco valor agregado e, por isso mesmo, vendidos a preços baixos, e importadores de bens com muito valor agregado, comprados a preços eleva- dos, dependentes do mercado financeiro internacional ou do FMI para garantir a sua credibilidade na economia mundial, os países de tecnologia atrasada vivem as conse- quências dramáticas do círculo vicioso da dependência: são dependentes porque têm tecnologia atrasada e têm tecnologia atrasada porque são dependentes. [...] Após duas décadas perdidas – a de 1980, em decorrência da crise gerada pelo endivi- damento externo e pelos altos índices de inflação, e a de 1990, devido à recessão eco- nômica provocada não só pelas crises internacionais (México, Rússia, Ásia), mas tam- bém, e sobretudo, pelo Plano Real que se fundamentou na política de juros altos para atrair capitais financeiros e conter a inflação, na cobrança de impostos em cascata para ajustar as contas públicas, numa política cambial de igualização da moeda nacional ao dólar americano que inviabilizava as exportações e na abertura dos mercados brasilei- ros aos produtos estrangeiros altamente competitivos, paradoxalmente combinada à consolidação e ao fortalecimento de blocos econômicos, congregando os países mais ricos do mundo, como o Nafta e a União Europeia, resistentes à abertura de seus merca- dos à concorrência internacional –, o Brasil e alguns países da América Latina (México, Argentina) conhecem uma nova fase de industrialização determinada pela globalização da economia que, por sua vez, dá início a novas formas de dependência dos países tec- nologicamente atrasados. Os Anos Dourados chegam ao fim na década de 1970, quando começa a se configurar uma crise de consumo com o acirramento da competição internacional. Para enfrentar a cri- se, procede-se a uma total reestruturação da economia mundial que, inevitavelmente, pro- voca a reestruturação das empresas e dos mercados de trabalho. Por isso, para compreender a nova forma de administração do processo de trabalho, em consolidação também no Brasil, será preciso compreender as razões da crise e a reorganização da economia mundial, com suas consequências sobre o mundo empresarial e dos mercados de trabalho. Esses temas serão abordados nos capítulos subsequentes. As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno3 Sociologia Geral52 Que sofrimento? – insatisfação e “conteúdo significativo” da tarefa (DE JOURS, 1992, p. 48-52) [...] Do discurso operário podem-se extrair vários temas que se repetem obstinadamente como um refrão obsessivo. Não há um só texto, uma só entrevista, uma só pesquisa ou greve em que não apareça, sob suas múl- tiplas variantes, o tema da indignidade operária. Sentimento experimen- tado maciçamente na classe operária: o da vergonha de ser robotizado, de não ser mais que um apêndice da máquina, às vezes de ser sujo, de não ter mais imaginação ou inteligência, de estar despersonalizado etc. É do con- tato forçado com uma tarefa desinteressante que nasce uma imagem de indignidade. A falta de significação, a frustração narcísica, a inutilidade dos gestos formam, ciclo por ciclo, uma imagem narcísica pálida, feia, miserável. Outra vivência, não menos presente do que a da indignidade, o sentimento de inutilidade remete, primeiramente, à falta de qualifica- ção e de finalidade do trabalho. O operário da linha de produção como o escriturário de um serviço de contabilidade muitas vezes não conhecem a própria significação de seu trabalho em relação ao conjunto da ativi- dade da empresa. Mas, mais do que isso, sua tarefa não tem significação humana. Ela não significa nada para a família, nem para os amigos, nem para o grupo social e nem para o quadro de um ideal social, altruísta, humanista ou político. Raros são aqueles que ainda creem no mito do progresso social ou na participação à uma obra útil. Correlativamente, elevam-se queixas sobre a desqualificação. Desqualificação cujo sentido não se esgota nos índices e nos salários. Trata-se mais da imagem de si que repercute do trabalho, tanto mais honroso se a tarefa é complexa, tanto mais admirada pelos outros se ela exige um know-how, responsabilidade, riscos. A vivência depressiva condensa de alguma maneira os sentimentos de indignidade, de inutilidade e de desqualificação, ampliando-os. Esta depressão é dominada pelo cansaço. Cansaço que se origina não só dos esforços musculares e psicossensoriais, mas que resulta sobretudo do estado dos trabalhadores taylorizados. Executar uma tarefa sem investi- mento material ou afetivo exige a produção de esforço e de vontade, em outras circunstâncias suportada pelo jogo da motivação e do desejo. A vivência depressiva alimenta-se da sensação de adormecimento intelec- tual, de anquilose mental, de paralisia da imaginação e marca o triunfo do condicionamento ao comportamento produtivo. Ampliando seus conhecimentos As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno Sociologia Geral 3 53 [...] Fadiga, carga de trabalho e insatisfação. Ao invés de fazer referência à noção de carga psíquica do trabalho, que corresponde, antes de tudo, à preocupação em apresentar uma concepção coerente com a ergonomia contemporânea, é melhor interrogar-se sobre o custo humano da insatisfação. A organização do trabalho, concebida por um serviço especializado da empresa, estranho aos trabalhadores, choca-se frontalmente com a vida mental e, mais precisamente, com a esfera das aspirações, das motivações e dos desejos. [...] Num trabalho rigidamente organizado, mesmo se ele não for muito dividido, parcelado, nenhuma adaptação do trabalho à personalidade é possível. As frustrações resultantes de um conteúdo significativo inadequado às potencialidades e às necessidades da personalidade podem ser uma fonte de grandes esforços de adaptação. Mesmo as más condições de trabalho são, no conjunto, menos temíveis do que uma organização de trabalho rígida e imutável. O sofrimento começa quando a relação homem-organização do trabalho está bloqueada; quando o trabalhador usou o máximo de suas faculdades intelectuais, psicoafetivas, de aprendizagem e de adaptação. Quando um trabalhador usou de tudo de que dispunha de saber e de poder na organizaçãodo trabalho e quando ele não pode mais mudar de tarefa: isto é, quando foram esgotados os meios de defesacontra a exigência física. Não são tanto as exigências mentais ou psíquicas do trabalho que fazem surgir o sofrimento (se bem que este fator seja evidentemente importante quanto à impossibilidade de toda a evolução em direção ao seu alívio). A certeza de que o nível atingido de insatisfação não pode mais diminuir marca o começo do sofrimento. Da análise do conteúdo significativo do trabalho, é preciso reter a anti- nomia entre satisfação e organização do trabalho. Via de regra, quanto mais a organização do trabalho é rígida, mais a divisão do trabalho é acentuada, menor é o conteúdo significativo do trabalho e menores são as possibilidades de mudá-lo. Correlativamente, o sofrimento aumenta. O sofrimento proveniente do pouco conteúdo significativo do traba- lho taylorizado não é mais um mistério e é denunciado não só pelos operários mas também pelos ergonomistas e por certos meios do patronato “progressista”. Atividades 1. Se você trabalha numa fábrica ou num escritório, descreva as suas atividades e verifi- que se estão organizadas segundo os princípios do taylorismo/fordismo, explicando como se dá essa relação. As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno3 Sociologia Geral54 2. Caso você trabalhe numa fábrica ou num escritório, perceba se é possível encontrar no seu posto de trabalho oportunidade para desenvolver as suas potencialidades de inteligência, criatividade, espírito crítico e iniciativa. Justifique sua resposta. 3. Faça uma pesquisa bibliográfica para verificar se a sua cidade natal e o seu Estado também cresceram, permitindo a melhoria das condições de vida da população du- rante Os Anos Dourados. 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Sociologia Geral 55 4 A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Continuar a apresentar as novas formas de organização do processo de trabalho que se seguiram ao taylorismo/fordismo sem situá-las historicamente poderia reforçar, para alguns incautos, a ideia vulgarmente difundida de que o interior das empresas se transforma devido ao seu dinamismo interno, natural, mecânico e, portanto, evolu- tivo, sobretudo em função da evolução tecnológica, independentemente do ambiente nacional e internacional no qual se situam. Ledo engano, como vimos anteriormente. A Sociologia nos ensina que a análise das diferentes formas de organização da produção e da prestação de serviços requer a ampliação de seus horizontes para além do próprio processo de trabalho, a fim de evidenciar os condicionantes econômicos, políticos, sociais e culturais de sua determinação. Desse modo, não incorremos no erro de considerá-las apenas como um reflexo da lógica do processo de produção capita- lista, como fruto de um determinismo tecnológico ao qual se submetem as relações de produção e a estrutura da vida social. Se assim procedesse, estaríamos considerando a estrutura econômica como independente das ações humanas orientadas pelo cenário histórico por elas mesmas construído. A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral56 Por isso, a reestruturação produtiva para a superação da crise econômica mundial que se instalou a partir da segunda metade da década de 1960 deve ser estudada e compreen- dida sobretudo como resultado de uma escolha consciente, deliberada e consentida pelos sujeitos históricos – trabalhadores, empresários, governo. E isso porque, das práticas reativas dos trabalhadores às condições de trabalho e de vida, expressas nos movimentos tanto no interior das empresas quanto na mobilização sin- dical, dependem as formas de organização do processo de trabalho, inclusive o modo de utilização da própria tecnologia, as formas de gestão da força de trabalho, a organização empresarial em seu conjunto. Essas práticas conduzem também, pelo debate político amplo, a novos rearranjos insti- tucionais de responsabilidade do Estado, que acabam por indicar o modo de solução coope- rativo dos conflitos de interesses entre as partes, estabelecendo-se temporariamente por consentimento, isto é, em decorrência da aceitação das condições sugeridas como resultado de um processo de avaliação racional das possibilidades efetivas de realização, mesmo que parcial e temporariamente, dos interesses definidos e formulados a partir da experiência. Sem o consentimento dos trabalhadores, pelo menos temporário, não se pode esperar a sua colaboração, e, sem esta, o processo de valorização do capital não se realiza. Para haver a colaboração entre as partes, a vontade dos empresários e do governo não pode se impor de forma cega e indiscriminada, porque isso significaria considerar os trabalhadores verdadei- ras marionetes da história, tomando-se por premissa a sua total incapacidade de raciocínio e de ação racional na defesa de seus próprios interesses, o que é absolutamente inimaginável e negado pelo processo histórico. Basta acompanhar a história dos movimentos operários para se verificar a solidez de suas reivindicações: Adam Przeworski (1988, p. 175) afirma que: [...] as relações sociais estabelecem estruturas de escolhas segundo as quais as pessoas percebem, avaliam e agem. As pessoas consentem quando escolhem de- terminadas linhas de ação e quando seguem na prática essas escolhas. Os assa- lariados dão seu consentimento à organização capitalista da sociedade quando agem como se fossem capazes de melhorar suas condições materiais dentro dos limites do capitalismo. Mais especificamente, consentem quando agem coletiva- mente como se o capitalismo fosse um jogo de soma positiva, ou seja, quando cooperam com os capitalistas ao escolher suas estratégias. Em outras palavras: a estrutura social se mantém se puder oferecer às pessoas, como indivíduos e membros de vários grupos, alguma garantia de que seus interesses, pelo me- nos parcialmente, serão realizados, o que implica afirmar que o consentimento e a colabo- ração são sempre provisórios, porque a avaliação racional das condições dadas em função das possibilidades de realização de interesses é permanente.E como não se tem assistido a manifestações contundentes dos assalariados do mundo inteiro contrárias à reestruturação produtiva, permite-se afirmar que com ela têm consentido, pelo menos temporariamente, porque a consideram necessária para a realização de seus próprios interesses. A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Sociologia Geral 4 57 Assim, a introdução de novas tecnologias e de novas técnicas gerenciais do processo de trabalho poderá ser compreendida: como fruto de uma situação de crise da economia mun- dial; como consequência do esforço intelectual de adaptação das tecnologias de informação, desenvolvidas sobretudo por razões políticas durante os anos da Guerra Fria, ao processo produtivo e de prestação de serviços como instrumento de enfrentamento da crise; como resultado da necessidade de expansão dos mercados, própria do regime capitalista de pro- dução e fundamental em situação de crise; e como possibilidade vislumbrada pelos próprios trabalhadores de melhoria de suas condições de vida, que a têm consentido, apesar de todos os problemas provenientes. 4.1 A crise da economia mundial A crise econômica mundial, que pôs fim aos Anos Dourados, no final de 1960, prolongou-se na década seguinte com o surgimento de novos padrões de concorrência em virtude da multinacionalização do capital e da recupera- ção da economia japonesa, elevada à potência mundial. A intensificação desse processo de multinacionalização do capital pro- vocou uma nova divisão internacional do trabalho ao transformar países da América Latina – Brasil, Argentina, México – e do Sudeste da Ásia – Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura, Malásia, Indonésia, Filipinas –, até então exporta- dores de bens primários, em países industrializados e exportadores de bens duráveis, acirrando a competição internacional e ameaçando os interesses econômicos dos EUA e dos países de tradição industrial da Europa. O novo cenário econômico mundial permitia identificar as razões do fra- co crescimento econômico e da persistência da crise: • o esgotamento relativo do paradigma taylorista ortodoxo, aí in- cluído o paradigma fordista dele derivado, por sua comprovada ineficiência produtiva, isto é, por sua rigidez tecnológica e organi- zacional que inviabiliza a inovação de produtos com sua produção padronizada em massa; • a instabilidade dos mercados, cuja consequência é a necessária adap- tação da produção ao dinamismo da demanda, assentada na exigência de qualidade do produto; • o aparecimento de novos padrões de consumo que exigem a inova- ção de produtos; • a globalização financeira da qual se tornaram reféns todos os países do mundo, sobretudo aqueles em processo de desenvol- vimento, onerando, com juros altos e desregulamentados, as ati- vidades produtivas já pressionadas pela elevação dos preços dos insumos industriais devido à crise do petróleo, com a formação da Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP) em 1973; Vídeo A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral58 • a rígida regulamentação dos mercados de trabalho em vários países industrializa- dos e as pressões sindicais que aumentaram os salários ao longo dos Anos Dourados e exigiram benefícios sociais, com o consequente aumento de impostos e encargos sociais, dificultando a sobrevivência de muitas empresas e/ou reduzindo considera- velmente a sua margem de lucros, o que significava redução de investimentos. Mas das crises nascem as soluções, pelo menos temporárias, engendradas pela própria realidade em crise. Assim, adaptando-se as tecnologias de informação de base microeletrô- nica, desenvolvidas sobretudo, mas não exclusivamente, pela Nasa durante o período mais crítico da Guerra Fria, ao processo produtivo e de prestação de serviços e conjugando-as aos métodos gerenciais do processo de trabalho aprimorados no Japão (toyotismo), proce deu-se à reestruturação produtiva cujas características principais permitem, nas palavras de David Harvey (1992, p. 141), “a flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho e dos padrões de consumo, desatando-se os três nós górdios que provocaram a crise econô- mica mundial”. Tornava-se também necessário intensificar a internacionalização dos mercados com a re- dução das barreiras alfandegárias que sempre protegeram as empresas situadas em países de tecnologia atrasada, muito sensíveis à competição internacional, para conquistar mais e mais consumidores e desatar o último nó a impedir o desenvolvimento da economia mundial. Assim, países economicamente dependentes se viram obrigados a abrir seus mercados de bens industrializados, supridos até então, como no caso do Brasil, por produtos fabrica- dos internamente, para garantir as exportações de suas commodities, e se viram submetidos a novas dificuldades, resultantes não só da globalização financeira, mas também da globali- zação comercial e da produção, na medida em que a nova lógica organizacional internacio- naliza todas as etapas das atividades produtivas com a formação de redes empresariais que ultrapassam as fronteiras nacionais. Para esses países, a alternativa de desenvolvimento não era outra a não ser a aplicação de investimentos maciços em pesquisa científica e tecnológica e na educação escolarizada de excelência, lembrando-se que países de tecnologia atrasada vivem as consequências dramá- ticas do círculo vicioso da dependência: são dependentes porque têm tecnologia atrasada e têm tecnologia atrasada porque são dependentes. Eis o grande desafio a enfrentar, caso se queira vislumbrar um futuro melhor. Os países industrializados passaram a defender as empresas nacionais, associando-se aos demais países da região com a formação de blocos econômicos, como a União Europeia, para tornar menos vulneráveis suas fronteiras comerciais da agressividade comercial mun- dial. A tentativa de se consolidar um bloco econômico entre os países latino-americanos, como o Mercosul, com resultados altamente positivos, encontra dificuldades próprias da situação como o subdesenvolvimento científico e tecnológico que caracteriza essas nações, e dificuldades geradas pelas pressões dos países desenvolvidos que relutam na abertura de seus próprios mercados, mas exigem que os mais pobres o façam. É o caso da manutenção dos subsídios agrícolas nos países membros da União Europeia e dos EUA, impedindo a importação de produtos do agronegócio dos países subdesenvolvidos. A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Sociologia Geral 4 59 Não se pode negar ou mesmo minimizar a importância da introdução das novas tecno- logias e das novas técnicas gerenciais da produção na determinação da nova configuração do mundo do trabalho, também não se pode negar que o seu interior é, em grande parte, definidor da natureza e da cristalização das tendências econômicas, políticas, sociais e cul- turais na medida em que as repercute direta e indiretamente. A globalização da economia e a introdução de novas tecnologias de base microeletrô- nica, conjugadas à adoção de novas técnicas de gerenciamento do processo de trabalho – reestruturação produtiva – para permitir a inovação e, assim, a reconquista e conquista de novos mercados foram, portanto, as soluções encontradas para o enfrentamento da crise. 4.2 A globalização da economia As transformações da economia mundial, que dão origem a um novo modo de acumulação do capital, e as transformações do processo de trabalho exigem novos rearranjos institucionais e/ou uma nova regulamentação de to- das as esferas da vida: [...] uma materialização do regime de acumulação, que toma a forma de normas, hábitos, leis, redes de regulamentação etc. que garantam a unidade do processo, isto é, a consistência apropria- da entre comportamentos individuais e o esquema de reprodu- ção. Esse corpo de regras e processos sociais interiorizados tem o nomede modo de regulamentação. (LIPIETZ, apud HARVEY, 1992, p. 117) Nasce, então, uma nova forma de acumulação do capital em substitui- ção ao período fordista de organização do processo de trabalho que David Harvey denominou acumulação flexível e Manuel Castells economia informa- cional e global, cujas características podem ser assim sintetizadas: • Internacionalização ou globalização da produção e dos mercados. • Acirramento da competição internacional. • Desenvolvimento de uma nova lógica organizacional, que resultou na transição da produção em massa para a produção flexível, ou do fordismo ao pós-fordismo, graças às novas tecnologias que [...] permitem a transformação das linhas típicas da grande em- presa em unidades de produção de fácil programação que po- dem atender às variações do mercado (flexibilidade do produto) e das transformações tecnológicas (flexibilidade do processo) (CASTELLS, 1999, p. 176). • Formação de redes entre pequenas e médias empresas sob o con- trole de sistemas de subcontratação ou sob o domínio financeiro/ tecnológico de empresas de grande porte, ou formação de redes Vídeo A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral60 multidirecionais entre pequenas e médias empresas, como as das regiões indus- triais italianas, por exemplo. • Maximização da produtividade baseada em conhecimentos, “por inter médio do desenvolvimento e da difusão de tecnologias da infor mação e pelo atendimen- to dos pré-requisitos para sua utilização (principalmente recursos humanos e in- fraestrutura de comunicações)” (CASTELLS, 1992, p. 226). A globalização da economia tem sido objeto de inúmeros estudos. Convém retomar alguns deles a fim de se conseguir compreender os seus mecanismos e processos. As cita- ções são longas, mas necessárias para dirimir dúvidas sobre um tema candente e discutido com muita controvérsia devido às suas consequências muito negativas sobre os mercados de trabalho e sobre as condições de vida dos trabalhadores nos países em desenvolvimento. Anthony Giddens (1997, p. 61), sociólogo inglês, afirma: O conceito de globalização é um dos que foram mais aplicados nos últimos anos, em debates na política, nos negócios e na mídia. Há uma década o termo “globa- lização” era relativamente desconhecido. Hoje está na boca de todos. A globali- zação significa que cada vez mais estamos vivendo “num único mundo”, em que os indivíduos, os grupos e as nações tornaram-se mais interdependentes. A globalização é muitas vezes retratada apenas como um fenômeno econômico. Muito disso se deve ao papel das corporações transnacionais, cujas operações massivas se expandem através de fronteiras nacionais, influenciando os proces- sos de produção global e a distribuição internacional do trabalho. Alguns assina- lam a integração eletrônica dos mercados financeiros globais e o enorme volume de fluxo de capital global. Outros se concentram na abrangência sem preceden- tes do comércio mundial, envolvendo uma variedade de bens e serviços muito maior do que antes. Embora as forças econômicas sejam uma parte integrante da globalização, se- ria errado sugerir que elas sozinhas a produzam. A globalização é criada pela convergência de fatores políticos, sociais, culturais e econômicos. Foi impelida, sobretudo, pelo desenvolvimento de tecnologias da informação e da comuni- cação que intensificaram a velocidade e o alcance da interação entre as pessoas ao redor do mundo. Tomando um exemplo simples, pense na Copa do Mundo realizada na França. Graças às conexões globais de televisão, alguns jogos foram assistidos por 2 bilhões de pessoas no mundo. Paul Singer (1997, p. 39-40), economista e sociólogo brasileiro, assim se refere à globalização: A internacionalização financeira, econômica e cultural surge como tendência pelo menos desde a viagem de Marco Polo ao Extremo Oriente. Houve interrupções e recuos ocasionais, mas nada que fizesse a internacionalização sumir por lon- go período. Mesmo nos dois séculos anteriores às grandes navegações, os laços comerciais entre os grandes impérios do continente asiático e a periferia euro- peia não fizeram mais que se intensificar, com a consequente prosperidade e A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Sociologia Geral 4 61 hegemonia político-financeira das repúblicas do norte da Itália. Quando portu- gueses e espanhóis se lançaram às navegações transoceânicas, a partir do século XV, a África e as Américas foram integradas a um sistema de economia mundial já em pleno funcionamento. No século seguinte, a integração alcançou a Oceania e vários arquipélagos do Pacífico. Enfim, a internacionalização já progride há mais de meio milênio e o mundo atual é o seu produto. A globalização pretende ser uma mudança qualitativa da internacionalização, na medida em que grandes progressos em comunicação e transporte aproxima- ram ainda mais todos os povos nos sentidos material e cultural. Outro fator tão ou mais significativo da globalização foi o prolongado de paz que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, não obstante as várias guerras locais travadas princi- palmente na Ásia e na África. Se a internacionalização sofreu sua maior reversão em razão das duas guerras mundiais e da crise dos anos 1930, a ausência de no- vos conflitos tão abrangentes foi decisiva para que a internacionalização pudesse dar o salto qualitativo à globalização. Em suma, aceitemos a hipótese de que o desenvolvimento da navegação aérea e da comunicação por satélite, aliado à relativa paz universal durante o último meio século, elevou a integração finan- ceira, econômica e cultural a um patamar mais elevado. Há que se notar de imediato um descompasso entre a globalização nos planos econômico e cultural e a globalização no plano político. Se hoje o comércio tanto quanto a comunicação uniformizaram os padrões de consumo na maioria dos países e, se o público chinês se emociona com telenovelas brasileiras e as nossas crianças jogam com paixão videogames japoneses, o progresso no estabelecimento de instituições governamentais internacionais tem sido escasso. [...] Do ponto de vista político, a globalização tem sido um processo essencial- mente negativo. O seu avanço se deve à desregulamentação, à eliminação de res- trições e controles que sujeitavam as transações comerciais e financeiras interna- cionais. Restrições e controles estes que se destinavam a submeter as transações entre residentes em países diferentes aos interesses coletivos dos agentes cuja atividade constitui a economia nacional. A proteção de indústrias “infantes” (re- cém-implantadas) contra a concorrência de importações de países com as mes- mas indústrias consolidadas é um exemplo clássico. Quando tarifas aduaneiras protecionistas são rebaixadas, a importação se amplia, o que conta como avanço da globalização. Mas este avanço é negativo, uma vez que é causado pela der- rubada de uma barreira e a importação acrescida toma o lugar duma produção nacional “menos competitiva”, sem que tenha sido criada no plano político-ins- titucional qualquer instância responsável pela defesa do interesse nacional ou pela definição de um itinerário para a redivisão internacional do trabalho que garantisse uma repartição equânime dos benefícios e custos entre todos os países envolvidos na globalização. Por sua vez, Octávio Ianni (1996, p. 35-39), sociólogo brasileiro, faz as seguintes considerações: A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral62 O mundo mudou muito ao longo do século XX. Não é mais uma coleção de países agrários ou industrializados, pobres ou ricos, colônias ou metrópoles, de- pendentes ou dominantes, arcaicos ou modernos. A partir da Segunda Guerra Mundial, desenvolveu-se um amplo processo de mundialização de relações, processos e estruturas de dominação e apropriação, antagonismo e integração. Aos poucos, todasas esferas da vida social, coletiva e individual, são alcançadas pelos problemas e dilemas da globalização. É claro que a globalização das sociedades, em curso nesta altura da história, vinha ocorrendo em décadas e séculos anteriores. O capitalismo, com o qual nasce o mundo de que falamos no século XX, é um modo de produção e reprodução ma- terial e espiritual que se forma, expande e transforma em moldes internacionais. [...] Mas podemos distinguir pelo menos três formas, épocas ou ciclos de gran- de envergadura na história do capitalismo. Ainda que possam distinguir-se por suas peculiaridades, convivem e mesclam-se. Em muitos casos, essas formas coe- xistem, confundem-se, assim como em outros distinguem-se com maior nitidez, e até podem dar a impressão de que se sucedem. Cada uma predomina em de- terminada época, parecendo assinalar os movimentos e as direções de países e continentes, ou do mundo. Primeiro, o modo capitalista de produção organiza-se em moldes nacionais. Revoluciona as formas de vida e trabalho locais, regionais, feudais, comunitá- rias, tribais ou pré-capitalistas. [...] Segundo, o capitalismo organizado em bases nacionais transborda frontei- ras, mares e oceanos. O comércio, a busca de matérias-primas, a expansão do mercado, o desenvolvimento das forças produtivas, a procura de outras e no- vas fontes de lucros, tudo isso institui colonialismos, imperialismos, sistemas econômicos, economias-mundo, sistemas mundiais, em geral centralizados em capitais de nações dominantes, metrópoles ou países metropolitanos. [...] Terceiro e último, o capitalismo atinge uma escala propriamente global. Além das suas expressões nacionais, bem como dos sistemas e blocos articulan- do regiões e nações, países dominantes e dependentes, começa a ganhar perfil mais nítido o caráter global do capitalismo. Declinam os Estados-nações, tanto os dependentes como os dominantes. As próprias metrópoles declinam, em be- nefício de centros decisórios dispersos em empresas e conglomerados moven- do-se por países e continentes, ao acaso dos negócios, movimentos do mercado, exigências da reprodução ampliada do capital. Os processos de concentração e centralização do capital adquirem maior força, envergadura, alcance. Invadem cidades, nações e continentes, formas de trabalho e vida, modos de ser e pensar, produções culturais e formas de imaginar. Muitas coisas desenraizam-se, pare- cendo flutuar pelos espaços e tempos do presente. A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Sociologia Geral 4 63 As sociedades contemporâneas, a despeito das suas diversidades e tensões inter- nas e externas, estão articuladas numa sociedade global. Uma sociedade global no sentido de que compreende relações, processos e estruturas sociais, econômi- cas, políticas e culturais, ainda que operando de modo desigual e contraditório. Nesse contexto, as formas regionais e nacionais evidentemente continuam a sub- sistir e atuar. Os nacionalismos e regionalismos sociais, econômicos, políticos, culturais, étnicos, linguísticos, religiosos e outros podem até ressurgir, recrudes- cer. Mas o que começa a predominar, a apresentar-se como uma determinação básica, constitutiva, é a sociedade global, a totalidade na qual pouco a pouco tudo o mais começa a parecer parte, segmento, elo, momento. São singularida- des ou particularidades, cuja fisionomia possui ao menos um traço fundamental conferido pelo todo, pelos movimentos da sociedade civil global. [...] Desde que começou a desenvolver-se na Europa, o capitalismo adquiriu todas as características de um processo inexorável e universal. Invadiu todos os cantos e recantos do mundo; não só uma, mas várias vezes, sob diferentes formas. Algumas vezes revolucionou tudo de alto a baixo, desbaratando o que encontrava pela fren- te. Outras, acomodando-se às formas sociais de vida e de trabalho que encontrava, em uma simbiose conveniente e tensa, dinâmica e contraditória. Inclusive há casos em que o capitalismo recria formas sociais de vida e de trabalho distintas, seja pela dinâmica da simbiose, seja por suas flutuações cíclicas, quando se abrem espaços para diferentes formas de vida e trabalho. Em geral, no entanto, o capitalismo re- voluciona contínua e reiteradamente os centros e as periferias, compreendendo os campos e as cidades, as nações e os continentes. Visto assim, em perspectiva histórica ampla, o capitalismo é um modo de pro- dução material e espiritual, um processo civilizatório revolucionando continua- mente as condições de vida e trabalho, os modos de ser de indivíduos e coletivi- dades, em todos os cantos do mundo. Essas citações parecem suficientes para a caracterizar o processo de “globalização” ou de “mundialização” (palavra preferencialmente empregada pelos autores de língua france- sa) que transformou a economia e revolucionou o interior das empresas e os mercados de trabalho dos países de todos os continentes, com exceção do africano, ainda completamente desconectado dos mercados internacionais, Assim, a globalização pode ser compreendida como uma etapa do processo de realiza- ção e desenvolvimento do modo de produção capitalista, marcada pela intensificação de sua internacionalização que, iniciada em séculos anteriores, expressa-se na presença de gran- des corporações econômicas (Coca-Cola, Nike, General Motors, P&G – Procter & Gamble, Mitsubishi etc.) em quase todos os países do mundo, não só como fornecedoras de produ- tos, mas também como produtoras, por meio da formação de redes empresariais por elas comandadas, isto é, por meio de parcerias com empresas locais, que dão origem a uma nova A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral64 lógica organizacional: a da empresa em rede – de fornecedores, de produtores, de distribui- ção, de clientes, de cooperação tecnológica, de coalizões-padrão (CASTELLS, 1999, p. 210). A nova lógica empresarial repercute imediata e profundamente nos mercados de tra- balho, desestruturando-os e reestruturando-os, com graves e contundentes consequências sobre os trabalhadores e sobre a vida sindical. A constituição de redes empresariais foi impulsionada pelas tecnologias de informação e de comunicação que também permitiram o surgimento do “dinheiro eletrônico” e a glo- balização financeira, provocando uma total reorganização do sistema financeiro, pois fluxos enormes de dinheiro caminham pelo mundo via computadores sem qualquer regulamenta- ção, com poder de desestabilização das economias nacionais. A globalização fundamenta-se na redução das tarifas alfandegárias que protegem as economias nacionais da concorrência internacional e na abertura dos mercados regionais com a formação de blocos econômicos, configurando um processo de desregulamentação da vida econômica que acirra a competição nacional e internacional. A abertura dos mercados dos países em processo de desenvolvimento é altamente prejudicial às empresas nacionais, impossibilitadas de competir em igualdade de condições com as grandes corporações que lançam produtos sofisticados, baratos e inovadores, fabricados em várias partes do mundo, com mão de obra barata em mercados de trabalho desregulamentados ou pouco regulamen- tados, e que podem contar com tecnologia de ponta. As empresas nacionais em países em desenvolvimento têm poucas chances de sobrevivência independente: acabam associando- -se às grandes corporações, reforçando a interdependência econômica internacional. A globalização não pode ser apenas compreendida como fenômeno econômico, como lembram tanto Ianni (1996) quanto Giddens (2005). Ela atinge todas as esferas da vida e transformam as culturas nacionais. No plano político, a globalização se expressa na formação dos grandes organismos internacionais, como ONU, OEA, OTAN, FMI, Banco Mundial, OCDE, OMC1, de blocos econômicos regionais, ou na assinatura de acordos multilaterais de cooperação, além, é claro, dasconstantes viagens internacionais dos governantes à procura de mercados para os produtos nacionais – bens primários, em sua maioria, quando se trata de governantes de países em desenvolvimento. No plano cultural, a globalização se expressa na internacionalização dos produtos cul- turais das grandes economias mundiais: ciência, tecnologia, música, cinema, livros etc., que têm o poder de transformar desejos e expectativas das populações dos países subdesenvol- vidos. Essa adoção de valores e padrões importados de consumo, comportamento e estética tendem a esgarçar a identidade nacional. Por essas razões, a globalização tem provocado polêmicas acaloradas em todas as par- tes do mundo e, sobretudo, nos meios acadêmicos dos países em desenvolvimento. 1 ONU – Organização das Nações Unidas; OEA – Organização dos Estados Americanos; OTAN – Or- ganização do Tratado do Atlântico Norte; FMI – Fundo Monetário Internacional; OCDE – Organização de Cooperação de Desenvolvimento Econômico; OMC – Organização Mundial do Comércio. A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Sociologia Geral 4 65 4.3 A reestruturação produtiva ou a nova lógica organizacional As tecnologias da informação conjugadas às novas técnicas gerenciais do pro- cesso de trabalho transformam o interior das fábricas e dos escritórios, imprimin- do-lhes uma nova face, cujas principais características são: • Redução das dimensões físicas das unidades empresariais, em virtude não só do desenvolvimento do processo de subcontratação e terceiriza- ção, como também da adoção dos métodos japoneses de controle de qua- lidade total, cujos fundamentos se expressam nos conhecidos 5 S: shitsuke: senso de disciplina e autodisciplina seiketsu: senso de saúde física e mental seiso: senso de lim- peza e conservação dos equipamentos seiri: senso de utilização racional dos recursos seiton: senso de organização 5 S ◦ seiri: senso de utilização racional dos recursos para evitar desperdício; ◦ seiton: senso de organização; ◦ seiso: senso de limpeza e conservação dos equipamentos; ◦ seiketsu: senso de saúde, física e mental; ◦ shitsuke: senso de disciplina e autodisciplina, tendo por objetivo ve- rificar a utilização racional dos recursos para evitar desperdício e a obtenção de uma produção livre de defeitos, além, é claro, de um rígido controle dos estoques que deu origem ao método just-in-time ou produção sem estoques; • Redução da estrutura de autoridade hierárquica, com o surgimento de equipes multifuncionais com autonomia para a tomada de decisões operacionais. Vídeo A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral66 • Redução dos postos de trabalho, pois que a nova lógica organizacional se funda- menta nos princípios de integração e supervisão de todo o sistema de produção e, como afirma Zarifian (1990, p. 82), na “dissociação entre sistema técnico e sistema de trabalho, que passam a ser ligados por um novo sistema, o informacional”, consolidando o princípio de cooperação mútua que, em decorrência, aumenta a responsabilidade profissional de cada um e de todos. • Fim da execução de tarefas parcelares, simplificadas e repetitivas, exigindo-se dos trabalhadores capacidade de compreensão da totalidade do processo de trabalho, versatilidade em várias tarefas, rápida adaptação às inovações e precisão na toma- da de decisões, uma vez que os novos princípios de gestão enfatizam o processo e não a estrutura e a função. • Forte envolvimento, em consequência, de todos os trabalhadores em todas as eta- pas do processo de trabalho, tendendo a permitir o fim da total dissociação entre gerência científica e chão de fábrica que caracterizou as formas taylorista e fordista da organização do trabalho. • Adoção do princípio de aperfeiçoamento contínuo do processo (kaizen), encora- jando, assim, os trabalhadores ao desenvolvimento e à utilização de suas poten- cialidades, isto é, inteligência, criatividade, espírito crítico e iniciativa, em todas as etapas da produção e/ou da prestação de serviços, permitindo-se vislumbrar nisso o início de um novo processo, o da reumanização do trabalho, degradado pela universalização do taylorismo e fordismo no século XX. O novo modo de acumulação do capital, gestado na crise econômica das últimas déca- das do século XX, dá origem a novos problemas, dificuldades e frustrações, mas também a novas expectativas, interesses, desejos e tentativas de resolução de problemas no infinito processo de reconstrução da História. Dentre os problemas, dificuldades e frustrações criados pelo novo modo de acumu- lação do capital e, mais imediatamente, pela reestruturação produtiva, com graves conse- quências para os trabalhadores e governos de todos os países do mundo, em especial dos países subdesenvolvidos, ressaltam-se: a elevação dos índices de desemprego; o surgimento de novas e precárias relações de trabalho; o aumento considerável do mercado informal de trabalho; e a exigência de novas competências profissionais adquiridas nos bancos escolares para a garantia de empregabilidade, quando a grande maioria dos trabalhadores dos países mais pobres não tem acesso à escolaridade segundo os padrões de excelência, agravando sobremaneira a sua situação. Para os governos, os problemas sociais e políticos que daí decorrem atingem dimensões extraordinárias e exigem maior eficiência administrativa e maior competência política para firmar acordos nacionais e internacionais que permitam a elaboração de novas estratégias para reverter a situação de crise que se expressa no aumento da violência urbana, nos deficits da Previdência Social, nos conflitos comerciais internacionais, na ameaça de volta da ciranda inflacionária etc. e, sobretudo, no sofrimento de milhões de famílias atingidas pela falta de perspectivas e de esperança no curto prazo. A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Sociologia Geral 4 67 4.4 O desemprego e as novas relações de trabalho Segundo o relatório anual sobre Tendências Mundiais do Trabalho, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o desemprego atingiu 6,3% da população mundial em 2005, isto é, quase 192 milhões de trabalhadores. A América Latina e a África Subsaariana registraram as taxas mais elevadas de desemprego e os maiores índices de pobreza. Entre 2004 e 2005, 1,3 milhão de pessoas perderam seus empregos nos países latino-americanos e não mais conseguiram voltar ao mercado de trabalho. Esses índices não sofreram melhoras: quase 12 anos depois, a OIT registrou na América Latina e no Caribe um aumento de 7,9% em 2016 para 8,4% no final de 2017, representando uma alta de mais de dois milhões, totali- zando 26,4 milhões de pessoas que procuram emprego sem sucesso. Na África Subsaariana, o desemprego atingiu a casa de 9,7% em 2005, sofrendo, ao longo desses 12 anos, uma leve queda para 7,8%, ainda um número alto, considerando que é o equivalente a 29,1 milhões de pessoas (OIT, 2017) Taxas elevadas de desemprego significam taxas elevadas de pobreza. Segundo dados apresentados pelo IBGE (BRASIL, 2017), um quarto da população brasileira, 52,168 milhões, vive abaixo da linha da pobreza. Como o Brasil não tem estipulada uma linha oficial, esses dados foram baseados na perspectiva de 5,5 dólares americanos por dia (o equivalente a mé- dia de 133,72 reais mensais, considerando como base para a conversão da moeda o mês de dezembro de 2017), considerados pela ONU e pelo Banco Mundial como limites para países emergentes (que é o caso do Brasil). Valores menores para esse cálculo ainda são considera- dos em outras regiões, como 1,9 dólar para o cálculo da extrema pobreza. Segundo dados divulgados pela OIT em 2017, os jovens dos 15 aos 24 anos constituem mais de 35% de todos os desempregados do mundo, o número estimado é de 70,9 milhões. No Brasil, uma pesquisa realizada pelo IPEA – Institutode Pesquisa Econômica Aplicada – em 2017 apontou que no terceiro trimestre de 2015 o desemprego atingiu 19,7 % da popu- lação jovem entre 18 e 24 anos; em relação ao terceiro trimestre de 2017, esse número subiu para 26,5% mostrando um crescimento elevado em um curto período de tempo, em relação à faixa etária superior, entre 25 e 39 anos, a variação foi de 8,6% e 11,3% para os mesmos períodos, a metade da taxa registrada entre os jovens (BRASIL, 2017). Além desses dados, pode-se observar na Tabela 1 que os índices só aumentaram em todas as categorias nesses três anos pesquisados: Tabela 1 – Índices de desemprego no Brasil entre 2015 e 2017 por região. 2015 2016 2017 3° Trim. 4° Trim. 1° Trim. 2° Trim. 3° Trim. 4° Trim. 1° Trim. 2° Trim. 3° Trim. Brasil 8,9 9,0 10,9 11,3 11,8 12,0 13,8 13,0 12,4 Centro Oeste 7,5 7,4 9,7 9,7 10,0 10,9 12,1 10,6 9,7 Nordeste 10,8 10,5 12,8 13,2 14,1 14,4 16,3 15,9 14,8 Vídeo A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral68 2015 2016 2017 3° Trim. 4° Trim. 1° Trim. 2° Trim. 3° Trim. 4° Trim. 1° Trim. 2° Trim. 3° Trim. Norte 8,8 8,6 10,5 11,2 11,4 12,7 14,2 12,5 12,2 Sudeste 9,0 9,6 11,4 11,7 12,3 12,3 14,2 13,6 13,2 Sul 6,0 5,7 7,3 8,0 7,9 7,7 9,3 8,4 7,9 Região Metropolitana 9,7 9,8 11,9 12,6 13,5 13,5 14,9 14,7 14,1 Não Região Metropolitana 8,3 8,4 10,1 10,4 10,5 10,9 12,9 11,7 11,2 Fonte: BRASIL, 2017. Tabela 2 – Índices de desemprego no Brasil entre 2015 e 2017 por gênero. 2015 2016 2017 3° Trim. 4° Trim. 1° Trim. 2° Trim. 3° Trim. 4° Trim. 1° Trim. 2° Trim. 3° Trim. Masculino 7,7 7,7 9,5 9,9 10,5 10,7 12,25 11,5 11,0 Feminino 10,4 10,6 12,7 13,2 13,5 13,8 15,8 14,9 14,2 Fonte: BRASIL, 2017. Tabela 3 – Índices de desemprego no Brasil entre 2015 e 2017 por faixa etária. 2015 2016 2017 3° Trim. 4° Trim. 1° Trim. 2° Trim. 3° Trim. 4° Trim. 1° Trim. 2° Trim. 3° Trim. 18 a 24 anos 19,7 19,4 24,1 24,5 25,7 25,9 28,8 27,3 26,5 25 a 39 anos 8,6 8,5 9,9 10,4 10,9 11,2 12,8 12,0 11,3 40 a 59 anos 4,6 4,9 5,9 6,3 6,7 6,9 7,9 7,6 7,4 60 anos ou mais 2,7 2,5 3,3 3,8 3,6 3,4 4,6 4,5 4,3 Fonte: BRASIL, 2017. A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Sociologia Geral 4 69 Tabela 4 – Índices de desemprego no Brasil entre 2015 e 2017 por níveis de ensino. 2015 2016 2017 3° Trim. 4° Trim. 1° Trim. 2° Trim. 3° Trim. 4° Trim. 1° Trim. 2° Trim. 3° Trim. Fundamental Incompleto 7,9 7,9 9,1 9,7 10,5 11,3 12,3 12,0 11,4 Fundamental Completo 9,7 9,8 11,6 12,9 13,4 13,4 15,2 15,0 14,8 Médio Incompleto 15,3 16,2 20,4 20,6 21,4 22,0 24,2 21,8 21,0 Médio Completo 10,1 10,1 12,7 12,8 13,2 13,2 15,5 14,6 14,0 Superior 6,2 6,2 7,6 7,8 7,8 7,6 9,2 8,3 7,9 Fonte: BRASIL, 2017. Tabela 4 – Índices de desemprego no Brasil entre 2015 e 2017 por estrutura famíliar. 2015 2016 2017 3° Trim. 4° Trim. 1° Trim. 2° Trim. 3° Trim. 4° Trim. 1° Trim. 2° Trim. 3° Trim. Não Chefe Família 12,4 12,3 15,0 15,3 15,8 16,0 18,1 17,1 16,4 Chefe Família 4,8 5,1 6,1 6,6 7,0 7,2 8,4 7,9 7,6 Fonte: BRASIL, 2017. O desemprego no Brasil, o país mais industrializado da América Latina e 9ª econo- mia mundial, isto é, que possui o 9° maior produto interno bruto (PIB) do mundo, tem se mantido elevado desde a década de 1990. Em 1999, havia 7,6 milhões de desempregados, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), já na mesma pesquisa realizada em 2017, o número subiu para 13,8 mi- lhões, o equivalente a 13,3% da população brasileira. O desemprego se apresenta sob diferentes formas e tem diferentes causas. As formas mais persistentes podem ser assim identificadas: • Desemprego estrutural: típico dos países subdesenvolvidos e dependentes, pro- vocado pela fraqueza dos investimentos produtivos e pela ausência de mecanis- mos institucionais de distribuição mais igualitária da renda. A dependência eco- nômica se expressa no desequilíbrio permanente da balança de pagamentos e na dependência do aporte de capitais estrangeiros, seja na forma de investimentos produtivos diretos, seja na forma de capital financeiro, obtido a juros altíssimos no mercado internacional especulativo, desregulamentado e volátil, para financiar A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral70 investimentos em infraestrutura e pagar a dívida externa, além de garantir o lastro da moeda, cuja estabilização depende das reservas nacionais em dólares. • Desemprego tecnológico: típico dos países mais desenvolvidos, é provocado pela reestruturação produtiva, ou seja, pela introdução da mais sofisticada tecnolo- gia de base microeletrônica conjugada à adoção de novas e sofisticadas formas de organização do processo de trabalho cuja consequência imediata é a redução de milhões de postos de trabalho em todo o mundo. Basta lembrar que um só computador elimina pelo menos quatro postos de trabalho, e torna quase abso- lutamente dispensáveis os trabalhadores sem qualificação profissional, responsá- veis no passado recente pela realização de operações simplificadas e repetitivas, hoje transferidas para as máquinas computadorizadas. No Brasil, a modernização tecnológica e organizacional, a partir da década de 1990, quando da abertura dos mercados brasileiros que obrigou as grandes empresas a tornarem-se internacio- nalmente competitivas, é também responsável por parte da porcentagem do nú- mero de desempregados. • Desemprego conjuntural: como o próprio nome indica, é conse quência da queda temporária dos investimentos produtivos em determinadas conjunturas econômi- cas, financeiras ou políticas, nacionais ou internacionais, marcadas sobretudo pelo aumento dos preços dos insumos industriais, especialmente do petróleo, pelo au- mento dos índices de inflação que corrói o poder aquisitivo da moeda, dos salários e a credibilidade dos negócios. Políticas macroeconômicas e financeiras são adota- das para a retomada do crescimento sustentado com fundamento, na maioria dos casos, no aumento das taxas de juros, que inibe os investimentos consequentemen- te o consumo e impede a competitividade das empresas no mercado internacio- nal, e com fundamento num drástico controle fiscal, com drástica diminuição dos gastos do governo e recessão econômica. O resultado é o aumento do desemprego, que tende a diminuir no médio prazo, seja pelo sucesso das medidas adotadas, seja pelo forte crescimento da economia mundial que, devido à globalização, é hoje um dos fatores determinantes dos índices de emprego e desemprego ao tor- nar todas as economias do mundo interdependentes. • Desemprego friccional: provocado pela mudança de emprego ou atividade dos indivíduos, muito comum nas últimas décadas com o desaparecimento e, ao mes- mo tempo, o surgimento de muitas ocupações profissionais em decorrência das transformações tecnológicas e organizacionais do processo de trabalho e da rees- truturação dos mercados. • Desemprego temporário: ocorrido em razão da sazonalidade de algumas ativida- des econômicas, sobretudo as relativas à agricultura e ao turismo. Para a elaboração das taxas de desemprego são utilizados os critérios de desempre- go aberto e desemprego, total que englobam também o desem prego oculto e o desem- prego pelo desalento. O IBGE utiliza o critério de desemprego aberto, que corresponde às pessoas que procuraram emprego sem sucesso nos últimos 30 dias do período de referência, além de não terem tido qualquer ocupação remunerada. A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Sociologia Geral 4 71 A Fundação Seade e o Dieese adotam o critério de desemprego total, consi derando o desemprego aberto, o desemprego oculto pelo trabalho precário e o desemprego oculto pelo desalento. O desemprego oculto pelo trabalho precáriocaracteriza aqueles trabalhadores que, simultaneamente à procura de emprego, realizaram algum tipo de atividade descontí- nua ou irregular, isto é, conseguiram algum tipo de ocupação remunerada. O desemprego oculto pelo desalento, como a própria expressão indica, caracteriza os trabalhadores que desistiram de procurar emprego, “desencorajados pelas condições do mercado de trabalho ou por razões circunstanciais, embora ainda queiram trabalhar”(DIEESE, 1997). Pelo fato de adotarem metodologias diferentes e não se fundamentarem nos mesmos dados, IBGE, Seade e Dieese apresentam resultados diferentes da pesquisa sobre o desem- prego no Brasil. Infelizmente, porém, qualquer que seja a metodologia utilizada, a taxa de desemprego tem se mantido muito elevada, como elevados são os números referentes ao mercado informal de trabalho e ao trabalho precário. A informalidade não é um problema novo no Brasil e muito menos na América Latina, pois, desde a consolidação do capitalismo moderno no final do século XIX, nunca o mercado de trabalho da região alocou a maior parte da força de trabalho disponível. Sempre mais da metade dos trabalhadores latino-americanos aptos para o trabalho sobreviveu no mercado informal de trabalho ou trabalho precário, não tendo pleno acesso, portanto, aos benefícios previstos pela legislação trabalhista, tais como férias, repouso semanal remunerado, apo- sentadoria, décimo terceiro salário etc. Hoje, se o mercado informal e as diversas formas de trabalho precário chamam a nossa atenção, o motivo não reside na novidade do fenômeno, mas na sua dimensão e na falta de perspectivas de sua reversão. A redução do emprego formal parece ser tendência universal, mesmo havendo aumento dos investimentos produti- vos, porque quase sempre esses investimentos são intensivos em bens de capital e, portanto, não são geradores de milhares de postos de trabalho, como eram aqueles do tempo da orga- nização taylorista/fordista do processo de trabalho e de prestação de serviços. Grandes empresas multinacionais, como as montadoras de automóveis, estão reestru- turando suas unidades produtivas, anunciando demissões em massa. A Volkswagen do Brasil, por exemplo, que empregava mais de 40 mil trabalhadores na década de 1980, em sua fábrica fordista de São Bernardo do Campo, no estado de São Paulo, tem em 2017 cerca de 10,5 mil trabalhadores ativos, número que não tem previsão de crescimento, ao contrário, diante do cenário econômico do país, a multinacional analisa a demissão de um excedente de 34% desse pessoal. Vale sempre a pena enfatizar que a globalização, ao tornar todas as economias do mun- do interdependentes e sobretudo dependentes das conjunturas econômicas e políticas dos países mais ricos, isto é, dos maiores consumidores de mercadorias e de serviços – EUA, Europa, Japão – para aumentarem suas exportações, acirra a competição por mercados entre regiões, países e empresas. Sem dúvida, isso requer não só modernização tecnológica, mas também modernização organizacional para intensificar o processo de redução dos custos de produção e o barateamento das mercadorias. A modernização organizacional independe da modernização tecnológica, embora esta quase sempre requeira aquela. E a modernização organizacional assume diferentes formas, A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral72 muitas conjugadas, que resultam, na maioria dos casos, em expressiva supressão de postos de trabalho e na precarização das relações de trabalho. Algumas delas são: • a adoção dos métodos japoneses de gestão do processo de trabalho (toyotismo); • a formação de redes empresariais nacionais internacionais – redes de produção, de distribuição, de comercialização – com a terceirização de micro e pequenas empresas; • as fusões de empresas, alianças estratégicas, joint ventures; • o estabelecimento de novas relações de trabalho que exigem a flexi bilização ou a sua desregulamentação, mesmo em países de rígida regulamentação dessas rela- ções, como é o caso do Brasil, cuja legislação trabalhista é considerada uma das mais sofisticadas do mundo, com um grande número de artigos, cuja obediência é assegurada por uma justiça especial, a Justiça do Trabalho. 4.5 Novas relações de trabalho ou trabalho precário Dessa maneira, também no Brasil vimos consolidarem-se a terceirização, o contrato tem- porário de trabalho, a jornada parcial de trabalho, o banco de horas, o trabalho em domicílio, que implicam na consolidação do processo que se convencionou denominar de precarização das relações de trabalho, por impedirem o pleno acesso dos trabalhadores a todos os benefícios previstos na legislação trabalhista – a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – e concedi- dos pelas grandes empresas para reforçar sempre mais a colaboração de seus trabalhadores. No Brasil, a terceirização tem se desenvolvido desde a década de 1990, ocupando traba- lhadores demitidos das grandes empresas que investem a importância recebida do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) na abertura de micro e pequenas empresas pres- tadoras de serviços, quase sempre fadadas ao fracasso, apesar do apoio de órgãos gover- namentais – universidades e Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, o Sebrae –, seja devido à inexperiência para gerir o próprio negócio, seja pela incapacidade para enfrentar a concorrência, seja por sua total dependência da empresa que primeiramen- te as contratou para desobrigar-se do pagamento de encargos sociais a trabalhadores res- ponsáveis por tarefas menos tecnologicamente sofisticadas do processo produtivo. Os trabalhadores das empresas terceirizadas não terão oportunidade de ascensão pro- fissional, porque não existe quadro de carreira, sentem-se mais inseguros dada a fragilidade econômica e financeira que as caracteriza, além de não terem acesso a alguns benefícios importantes concedidos pelas grandes empresas. Outras expressões do processo de precarização do trabalho são o regime de jornada parcial, já em crescimento desde o início da década de 1980, em países industrializados, o contrato temporário, o banco de horas e o desenvolvimento das ocupações, isto é, das ativi- dades autônomas ou informais. Vídeo A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Sociologia Geral 4 73 Em setembro de 1998, foi aprovada uma medida provisória regula men tando a contra- tação de trabalhadores por tempo parcial, garantindo-lhes, de forma proporcional, todos os direitos trabalhistas, como férias e décimo terceiro salário, assegurados aos empregados por horário integral. Jornada parcial de trabalho significa salário parcial e direitos trabalhistas parciais, isto é, trabalho precário. O contrato temporário de trabalho ou contrato de trabalho por prazo determinado foi instituído pela Lei 9.601, de 21 de janeiro de 1998, que também instituiu o banco de horas, com o qual a empresa deixa de pagar horas extras na medida em que o número de horas trabalhadas acompanha as flutuações da produção e as demandas do mercado. Também do ano de 1998, a Medida Provisória 1.726 alterava a legislação anterior ao prever a suspensão temporária do contrato de trabalho de dois a cinco meses, mediante acordo entre patrões e empregados. Durante a suspensão do contrato, o trabalhador deve receber do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) uma bolsa de estudos equivalente ao seguro-desemprego (em média 80% do salário) para cursos de requalificação profissional e, dependendo do acordo, cesta básica e ajuda de custo adicional. Passado esse período, o empregado deve ser recontratado e, se não o for, será demitido com todos os direitos. A reestruturação das empresas implica, portanto, reestruturação dos mercados de tra- balho com aumento dos índices de desemprego, do mercado informal e precário, o que significa afirmar, com o aumento do número de pessoas e de famílias atemorizadas ante as dificuldadesa enfrentar na luta cotidiana pela sobrevivência. No entanto, seria incorreto atribuir todos os graves problemas sociais à globalização da economia, pois, conforme se afirmou, altos índices de desemprego, de trabalho informal e de trabalho precário não são novidades na América Latina, cuja estrutura econômica subde- senvolvida é, em grande parte, responsável por eles. Apesar disso, a globalização da econo- mia é responsável por sua intensificação, juntamente com a ausência de políticas públicas que, de fato, fomentem a geração de emprego e renda, isto é, políticas econômicas, indus- triais, agrícolas, financeiras, de desenvolvimento educacional, científico e tecnológico, além de parcerias internacionais importantes, que resultem em investimentos produtivos para absorver a força de trabalho hoje excedente. Políticas governamentais, portanto, capazes de permitir ao país enfrentar a competição não só dos países de tradição industrial, científica e tecnológica, mas a competição também das gigantes economias do continente asiático, sobretudo da China. Com efeito, esse país tem conquistado mercados em todo o mundo não só oferecendo produtos baratos, mas também produtos manufaturados de maior valor agregado, de maquinário e bens industriais intermediários até produtos mais sofisticados, como computadores. A China tem ceifado importantes mercados de produtos brasileiros, como o de calçados. Com a maior população do mundo e mercado de trabalho totalmente desregulamenta- do, pagando baixíssimos salários comparativamente aos salários e benefícios previdenciá- rios nos países industrializados do Ocidente, inclusive o Brasil, com jornadas de trabalho de 12 a 14 horas e sem previdência social universal, a China não só nos “rouba” mercados, como também desvia para lá os investimentos produtivos com os quais poderiam ser gera- dos muitos empregos aqui. Até empresas brasileiras, como a Grendhene e a Embraer, por A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral74 exemplo, têm unidades produtivas naquela região. A China e os países do leste europeu recém-saídos da experiência do socialismo representam uma ameaça de desinvestimento e, em consequência, de aumento do desemprego e de precarização do trabalho aos trabalha- dores dos países do Ocidente que conquistaram com enormes sacrifícios a regulamentação das relações de trabalho. Vem daí a importância das políticas governamentais no sentido de tornarem possível a competitividade das empresas brasileiras para a garantia do emprego e da distribuição da renda. A competição internacional não se dá em igualdade de condições devido às especifi- cidades históricas e institucionais das diferentes regiões e países do mundo, e a tentativa de proteger a economia nacional se inviabiliza ante as agressivas pressões internacionais que nem mesmo os organismos criados para minimizá-las ou suprimi-las conseguem en- frentar. Ao contrário, à medida que os países ricos sustentam os grandes organismos inter- nacionais de concessão de créditos, como FMI, Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento entre outros, são eles que detêm o poder de determinar-lhes o curso que será, é claro, em defesa de seus próprios interesses, ou seja, de proteção de suas economias. 4.6 Reações dos trabalhadores Nesse contexto nacional e internacional, os sindicatos perdem poder de barganha. As reivindicações reduzem-se a uma só: a defesa do emprego. Ao longo do século passado, os sindicatos eram combativos organizando movimentos grevistas de confronto aberto ao capital, com os quais reivindicavam aumentos salariais, diminuição da jornada de trabalho, aposentadoria plena, participação efetiva na elaboração de políticas públicas para a melho- ria das condições de trabalho e de vida de todos os trabalhadores. Os sindicatos desse novo cenário tendem a adotar uma nova orientação: a da negociação permanente, seja empresa por empresa, seja por setor, seja articulada entre governo, sindicatos e empresários, na ten- tativa de garantir a estabilidade dos empregos. Compreendendo o alcance das transformações tecnológicas e econô micas em curso, os trabalhadores mudaram o seu comportamento, o seu discurso e as suas reivindicações, porque sabem que a sobrevivência dos seus empregos depende da sobrevivência das empresas que os mantêm, e o sucesso delas está inextrincavelmente ligado aos altos índices de produtividade, qualidade e inovação do processo para diminuição dos custos de produção do produto. E, da mesma maneira, as empresas compreendem que a sua sobrevivência depende do tipo de par- ceria que estabelecerem com os trabalhadores, o que significa permitir a participação não só nas decisões operacionais como também nos lucros obtidos pelo aumento de produtividade, com a fixação, em conjunto, das metas a realizar. Pode-se perceber, portanto, que um número considerável de empresas adota o sistema formal de remuneração variável que, via de regra, significa intensificação do trabalho na medida em que, como o próprio nome o indica, vincula o montante da remuneração à produtividade das equipes de trabalho. Remuneração variável e participação nos lucros alteram as relações de trabalho e rompem a relação salarial, isto é, “o conjunto das condições jurídicas e institucionais que regem o uso do Vídeo A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Sociologia Geral 4 75 trabalho assalariado, como também a reprodução da existência dos trabalhadores” (BOYER, 1986), justificando, em parte, a flexibilização e desregulamentação dos mercados de trabalho. A relação salarial não se estabelece mais como antes da reestruturação produtiva, com o mercado de trabalho (procura e oferta de trabalhadores), aumento da produtividade ba- seado no desempenho individual dos trabalhadores ou, ainda, controle institucional sobre o trabalho (legislação). A relação salarial se estabelece com base na capacidade de produção das empresas determinada pela tecnologia empregada, eficiência do conjunto de seus traba- lhadores, qualidade do produto e sobretudo capacidade de administração dos negócios, as quais, definem juntas a capacidade de competir no mercado internacional e, em decorrência, a obtenção de lucros, garantindo, ao mesmo tempo, a manutenção do emprego e a elevação dos salários ou a participação nos lucros, o que supõe o desenvolvimento de novas estrutu- ras organizacionais e de gestão do pessoal. Portanto, a participação nos lucros interessa tanto à empresa quanto aos trabalhadores. À empresa, significa garantir o esforço dos trabalhadores para atingir as metas estabeleci- das, evitando paralisações ou produção defeituosa por negligência ou irresponsabilidade. Significa também compartilhar com os trabalhadores não só os lucros, mas também pos- síveis prejuízos decorrentes, como, por exemplo: a situação do mercado local, nacional ou internacional; a política industrial e econômica do país; a incapacidade de acompanhamento das inovações tecnológicas; a má administração dos negócios; o mau desempenho de seus trabalhadores etc. Sobretudo, significa a desmobilização do movimento sindical, à medida que os interesses dos trabalhadores, agora parceiros ou sócios do capital, estariam interliga- dos aos interesses de sua empresa e sua realização não mais dependeria das conquistas dos trabalhadores do seu setor ou dos trabalhadores em seu conjunto. A saúde econômica e financeira de uma empresa a define, o que faz com que dependa diretamente de seus funcionários; sendo assim, concessões mútuas dentro da especificidade da situação empresarial tendem a tornar-se a regra. Com isso, a empresa fica livre de parali- sações ou greves promovidas pelo movimento sindical por razões salariais, de melhoria nas condições de trabalho ou de natureza política. O movimento sindical para esses trabalhadores perde importância ou deixa de ter sen- tido como estratégia para a promoção de seusinteresses econômicos imediatos, pessoais ou coletivos. Suas funções tendem a deslocar-se para o campo das políticas econômicas que alcançam todos os trabalhadores em geral e não mais vinculadas à discussão e nego- ciação dos interesses dos trabalhadores de uma categoria profissional ou de uma empresa em particular. Nessa, os próprios trabalhadores discutem e negociam diretamente com os dirigentes. O sindicato, portanto, tende a ter um novo papel, como já previa José Pastore no início dos anos de 1990: Na definição de seu novo papel, desponta a importância dos sindicatos nas negociações dos princípios gerais das políticas de internacionalização da economia, estabilização da moeda, geração de empregos, políticas de rendas e modernização tecnológica. Nos fóruns tripartites (governo, trabalhadores e em- presários), os sindicatos têm apresentado nítidas vantagens comparativas quan- do comparados com grupos de trabalhadores que se unem ad hoc para discutir A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral76 tais assuntos. Desponta, assim, uma nova divisão do trabalho – a negociação ar- ticulada – na qual os sindicatos tratam dos temas que afetam toda a economia ou setores da economia e os empregados acertam os detalhes com seus empregadores diretamente. Se essa tendência vingar, será raro, daqui para a frente, ter o sin- dicato na porta da fábrica ou confrontando chefias em nome de reivindicações específicas dos trabalhadores daquela empresa. Por sua vez, os dirigentes sindi- cais serão demandados em um nível de competência técnica bem diferente da capacitação em técnicas de confrontação. (PASTORE, 1992, p. 52) Considere-se, também, que os próprios trabalhadores têm reconhecido como falsa a proteção que lhes dá, no caso do Brasil, a legislação trabalhista, porque o peso dos encargos sociais dificulta a participação das empresas no jogo competitivo do mercado internacional e, sobretudo, dificulta a vida dos próprios trabalhadores, que pagam o preço pela proteção legal de sua força de trabalho com a ameaça frequente de desemprego e de flexibilização das relações de trabalho. Embora seja polêmica a discussão sobre o peso dos encargos sociais compulsórios e permanentes, reconhece-se que eles são muito altos, dobrando o preço da força de trabalho. O capital caminha pelo mundo à procura de condi ções favoráveis, as mais favoráveis, para a obtenção e realização de lucros. Intransigências dos trabalhadores, que impeçam as empresas de obterem lucros dentro dos patamares por elas fixados como satisfatórios, im- plicam o perigo do desinvestimento que, como já nos ensinava Buraway (1985, p. 150) na década de 1980, é uma nova forma de controle da força de trabalho, isto é, um novo tipo de despotismo hegemônico: “O novo despotismo é a tirania racional da mobilidade do capital sobre o trabalhador coletivo.” Mas os trabalhadores não assistem passivamente a essas transformações do mundo do trabalho que lhes são muitíssimo desfavoráveis. Sempre reagiram, reagem e reagirão inteli- gentemente às condições de trabalho e de vida que lhes são perversas e elaboram estratégias de defesa de seus interesses, seja no interior das próprias empresas, seja em movimentos sociais que reivindicam a transformação da situação vigente por meio de decisões governa- mentais de grande alcance, como, por exemplo: • o desenvolvimento da pesquisa científica e tecnológica que depende, de investi- mentos altamente produtivos e competitivos, geradores de milhares de empregos, em um processo já conhecido de “destruição criadora”; • o desenvolvimento da educação escolarizada e universalizada de acordo com os padrões de excelência para garantir a empregabilidade de milhões de trabalhado- res ou para garantir o sucesso de outros milhões em atividades autônomas; • reforma tributária para incentivar os investimentos e o consumo, pois em 2016, por exemplo, a carga tributária representou 32,3% do PIB, segundo dados da Secretaria da Receita Federal; • reforma política, para garantir a consolidação das instituições democráticas no seu sentido o mais amplo, inclusive a democratização econômica que, em parte, também depende do Congresso Nacional para favorecer o processo de distribuição da renda; A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Sociologia Geral 4 77 • reforma do poder judiciário, para garantir a efetivação da distribuição da Justiça; • reforma dos códigos, para adequá-los à realidade dos dias atuais. Programas sociais não são suficientes para beneficiar a população mais carente se não forem acompanhados dessas reformas. No interior das empresas, os trabalhadores remanescentes já perceberam que os limites de seu poder foram ampliados comparativamente à fase taylorista e fordista de organização do processo de trabalho, por mais paradoxal que isso possa parecer. No entanto, basta aten- tar para o fato de que as consequências econômicas e financeiras do acirramento da competi- ção de mercado verificou que as empresas são muito mais dependentes do que nunca foram, resultado da estreita colaboração de seus trabalhadores. Com tecnologia sofisticada que representa, na maioria dos casos, a imobilização de vul- tosos capitais com enormes dificuldades para ganhar e fidelizar mercados, as empresas de- pendem sempre mais de trabalhadores confiáveis. A confiabilidade deve ser tratada como um dos pilares de sustentação do funcionamento normal, dentro dos padrões de excelência, das empresas modernizadas. E para manter tra- balhadores confiáveis em seu interior, evitando-se o absenteísmo, o turnover, a negligência, a irresponsabilidade consciente ou inconsciente, as empresas se veem obrigadas a fazer con- cessões se quiserem obter deles a necessária colaboração. E passam a oferecer altos salários, formação profissional, promoções no quadro de carreira, benefícios sociais que correspon- dem a verdadeiros salários, como bolsa educação, fundo de pensão, clube desportivo, colônia de férias, participação nos lucros efetivos, programas de qualidade de vida no trabalho, maior autonomia operacional, além de se anteciparem às reivindicações de seus trabalhadores. Evita-se a greve, os prejuízos por ela provocados são quase sempre muito mais eleva- dos do que o montante a ser desembolsado pelo conjunto das reivindicações apresentadas. Daí a tendência para o desenvolvimento das negociações diretas entre as partes e o esforço para se chegar rapidamente a um acordo, como também a tendência, por parte dos traba- lhadores, à aceitação da flexibilização do mercado de trabalho, porque a proteção do Estado e do sindicato pode significar, e de fato significa quase sempre, a inviabilidade de muitas empresas, de novos investimentos, de novos empregos e de aumentos salariais reais não concedidos devido aos encargos sociais elevados que se perdem irresponsavelmente, no caso brasileiro, pela incompetência e corrupção administrativas. Aos trabalhadores que permanecem empregados interessam as transformações em curso tanto na estrutura organizacional e no estilo gerencial, como também nas formas de remuneração que incluem participação nos lucros, apesar dos enormes sacrifícios a que de- vem se submeter para a manutenção de sua empregabilidade: atualização permanente de conhecimentos, enorme responsabilidade e dedicação exclusiva aos interesses da empresa. Mas, em compensação, a reestruturação produtiva tende a revolucionar a estrutura de poder no seio das unidades empresariais ao: A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral78 • estabelecer uma política de comunicações abertas de compartilhamento de infor- mações e conhecimentos que possibilita ao trabalhador a compreensão da totali- dade do processo produtivo e de prestação de serviços; • transformar a estrutura de autoridade hierárquica, suprimindo muitos cargos de chefia intermediária, fonte de conflitosinternos; • devolver ao trabalhador a responsabilidade pelo processo de trabalho, com a for- mação de equipes com forte consciência profissional e autonomia para tomar deci- sões em situações não previstas, o que aumenta o seu envolvimento pessoal, psico- lógico, proporcionando-lhe condições para o desenvolvimento do sentimento de autoestima, quase próximo ao daquele da autorrealização. Os efeitos psicológicos destes sentimentos, afirmam os psicólogos, são a satisfação pessoal com repercus- sões positivas nos níveis de produtividade do trabalho; • desenvolver a compreensão da forte dependência mútua entre empresas e tra- balhadores, até então forte dependência unilateral, isto é, dos trabalhadores em relação à empresa. Além disso, como as empresas modernizadas tendem a ser muito bem-sucedidas, seus lucros tendem também a ser altíssimos, possibilitando não só aumentos salariais frequentes, como, sobretudo, o pagamento de salários extras, a título de participação nos lucros, dispen- sando os trabalhadores do desgaste físico e emocional provocado por movimentos grevistas de natureza reivindicatória. Enfim, as transformações do mundo do trabalho revolucionaram a estrutura do mer- cado, criando situações de trabalho e de vida muito díspares entre os assalariados, tão bem identificadas por David Harvey (1992, p. 144) nesta passagem: a estrutura do mercado de trabalho é caracterizada por um centro – grupo que diminui cada vez mais, segundo notícias de ambos os lados do Atlântico – que se compõe de empregados em tempo integral, condição permanente e posi- ção essencial para o futuro de longo prazo da organização. Gozando de maior segurança no emprego, boas perspectivas de promoção e de reciclagem, e de uma pensão, um seguro e outras vantagens indiretas relativamente genero- sas, esse grupo deve atender à expectativa de ser adaptável, flexível e, se ne- cessário, geograficamente móvel. [...] A periferia abrange dois subgrupos bem distintos. O primeiro consiste em empregados em tempo integral com habili- dades facilmente disponíveis no mercado de trabalho, como pessoal do setor financeiro, secretárias, pessoal das áreas de trabalho rotineiro e de trabalho manual menos especializado. Com menos acesso a oportunidades de carreira, esse grupo tende a se caracterizar por uma alta taxa de rotatividade, o que tor- na as reduções da força de trabalho relativamente fáceis por desgaste natural. O segundo grupo periférico oferece uma flexibilidade numérica ainda maior e inclui empregados em tempo parcial, empregados casuais, pessoal com contrato por tempo determinado, temporários, subcontratação e treinandos com subsídio público, tendo ainda menos seguranças de emprego do que o primeiro grupo A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Sociologia Geral 4 79 periférico. Todas as evidências apontam para um crescimento bastante significa- tivo desta categoria de empregados nos últimos anos. A disparidade nas situações de trabalho e de vida tem graves repercussões sobre o movimento sindical, na medida em que, ao diversificar os interesses e expectativas dos tra- balhadores, esfacela-se o sentimento de solidariedade de classe, impossibilitando a sua uni- dade em torno das mesmas reivindicações. Para aqueles que não fazem parte do grupo de trabalhadores altamente privilegiados retratados por Harvey (1992), as perspectivas serão promissoras no médio prazo se adquiri- rem as competências profissionais para a empregabilidade e para a obtenção de sucesso em ocupações autônomas que exigem criatividade, iniciativa, espírito crítico e empreendedor. Daí a importância de se oferecer, no país, cursos de empreendedorismo, incubadoras tec- nológicas e de economia solidária, isto é, de cooperativismo, para que os hoje excluídos do mercado formal de trabalho ou submetidos a relações precárias de trabalho possam vislum- brar um futuro mais digno. Além disso, os trabalhadores deverão exigir dos responsáveis a efetivação daquelas políticas públicas que, como já se referiu, são as estratégias possíveis, nesse cenário, para a promoção de uma sensível melhoria nas condições de trabalho e de vida da maioria. 4.7 Sindicalismo no Brasil Não se pretende, aqui, reconstituir a história do sindicalismo brasileiro, mas apenas apresentar os seus traços estruturais fundamentais, a fim de for- necer subsídios básicos para a compreensão da luta dos trabalhadores pela melhoria de suas condições de trabalho e de vida, necessária para o enfrenta- mento dos movimentos reivindicatórios com os quais o futuro administrador terá de lidar. Um ano após a criação do Ministério do Trabalho pelo governo provisó- rio de Getúlio Vargas, em 1930, foi instituído o modelo sindical no Brasil pelo Decreto-Lei 19.770. Apesar de sofrer algumas alterações ao longo do século XX, sobretudo na Constituição de 1988, o modelo sindical em vigor guarda as mesmas características principais do momento de seu nascimento e que permitem qualificá-lo de corporativo ou corporativista. Segundo Philippe Schmitter (1974, p. 93-94), deve-se entender por corporativismo: um sistema de representação de interesses no qual as unidades constituintes são organizadas num número limitado de catego- rias singulares, compulsórias, não competitivas, hierarquica- mente ordenadas e funcionalmente diferenciadas, reconhecidas ou permitidas (se não criadas) pelo Estado, às quais se outorga o monopólio de uma representação deliberada no interior das Vídeo A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral80 respectivas categorias em troca da observância de certos controles na seleção de seus líderes e na articulação de suas demandas e apoios. As razões pelas quais o sindicalismo brasileiro é corporativo são muito claras: • Estrutura sindical criada e imposta pelo Estado. • Unicidade sindical para cada categoria profissional e econômica e monopólio da representação dos interesses dos trabalhadores e patrões. • Reconhecimento obrigatório pelo Ministério do Trabalho, isto é, somente o sindicato reconhecido pelo Estado tem o direito de representação dos interesses de cada uma das categorias profissionais e econômicas, organizadas em sindi- catos únicos com base territorial distrital, municipal, intermunicipal, estadual e interestadual, mas nunca nacional, o que deu origem a milhares de sindicatos. • Filiação voluntária dos representados, “indicativa”, segundo Leôncio Martins Rodrigues, “da intenção de reduzir a influência do sindicato ao deixar de fora dele a grande massa de trabalhadores” (RODRIGUES, 1990, p. 61). • Todos os representados, filiados ou não, têm direito às conquistas obtidas pelo movimento sindical de sua categoria profissional ou econômica, o que constitui mais uma razão para as pífias filiação e participação dos trabalhadores nos seus respectivos sindicatos, além da compreensão de que esse modelo sindical não lhes permite contar com uma organização política democrática. • Os conflitos de interesses, individuais e coletivos, entre empresários e assalariados são resolvidos via Justiça do Trabalho, com a mediação do Estado nos casos em que se fizer necessário. • As federações sindicais são constituídas por pelo menos cinco sindicatos do mes- mo grupo, têm base estadual e representam, coletivamente, os interesses dos sin- dicatos do seu grupo, celebram contratos coletivos e instauram dissídios coletivos na falta de sindicatos representativos das categorias interessadas. • As confederações representam os interesses dos sindicatos de seu grupo no plano nacional, mas, as possibilidades que têm as federações quanto as confederações de agir jun- to às bases sindicalizadas são muito poucas e seus dirigentes têm se limitado a uma atividade puramente de cúpula, além de organizar serviços de assistên- cia jurídica e médica junto às organizações de 1º grau, isto é, os sindicatos, que não disponham de recursos suficientes.[...] Os sindicatos realmente expressivos mantêm vida independente das entidades de grau superior e frequentemente se- guem política contrária a elas. Aliás, as federações e as confederações constituem o grande reduto do “peleguismo. (RODRIGUES, 1966, p. 109) • Até a Constituição de 1988, no Ministério do Trabalho outorgava-se o direito de destituir a diretoria do sindicato e nomear um interventor, tal como a havia no- meado a partir de uma lista tríplice de candidatos. A nova Constituição pôs fim à intervenção governamental nos assuntos internos dos sindicatos, ao mesmo tem- po em que ampliou o direito de greve. A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Sociologia Geral 4 81 Dessa forma, pode-se facilmente inferir que essa estrutura sindical fragmenta a clas- se trabalhadora ao mobilizar as diferentes categorias profissionais para a defesa de seus interesses específicos. A disparidade das situações de trabalho, salariais e de vida e, em consequência, as disparidades das reivindicações para atender às expectativas imediatas de cada uma das categorias profissionais impedem a união da classe trabalhadora em torno da defesa de interesses comuns e reduzem o seu poder de barganha. Na verdade, era essa a intenção de Getúlio Vargas ao promulgar, em 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho, inspirada na Carta Del Lavoro da Itália de Mussolini: atendia a antiga reivindicação dos tra- balhadores de regulamentação das relações de trabalho e, ao mesmo tempo, impossibilitava a sua unidade política com a criação de sindicatos corporativos, evitando-se, assim, o con- flito de classes. Assegurando ao sindicato regularmente reconhecido pelo Estado o direito de representação legal dos que participarem da categoria de produção para que foi organizado, a Constituição de 1937 instituiu o regime sindical mais consentâneo com as nossas condições de país que evoluía da fase agrária para a industrial, evitando que a pluralidade resultasse em luta de classes e em lutas de interesses dentro das próprias classes. (VIANNA, 1943, p. 50) Assim, durante décadas, os movimentos sindicais foram cerceados pelo governo fede- ral e se, naquele período, foi registrado, em algum momento, um crescimento do número de filiados, a explicação encontra-se no fato de que os sindicatos brasileiros tornaram-se ver- dadeiros organismos de assistência social, com a prestação de serviços jurídicos trabalhistas dos sindicalizados, de serviços médicos e odontológicos, de lazer em suas colônias de férias, bailes, festas e serviços pessoais, como manicure, cabeleireiro, barbeiro, podólogo, em vez de serem o locus de defesa dos interesses econômicos dos trabalhadores e, portanto, de luta política democrática. As duas décadas de ditadura militar (1964-1985) foram particularmente difíceis para o movimento sindical, pois os sindicatos mais fortes, como os dos metalúrgicos do ABC em São Paulo, sofreram intervenções e suas lideranças foram presas. Mas foi durante o regime autori- tário, sobretudo na década de 1970, que os sindicatos iniciaram uma onda de greves nos seto- res mais dinâmicos da economia, como o setor metalúrgico e o bancário, por exemplo, em 15 diferentes locais do Brasil, num confronto aberto contra o Estado e o patronato, apresentando muitas e variadas reivindicações, tais como reposição salarial de acordo com os altos índices de inflação que solapavam o poder de compra dos assalariados e melhores condições de tra- balho: ampliação da representação política dos trabalhadores no interior das empresas, com a organização de comissões de fábrica e na sociedade e com a participação na elaboração de políticas públicas para a melhoria das condições de vida do conjunto da população. Em 1979, foram mais de 400 greves, envolvendo mais de 3 milhões de trabalhadores, que inauguraram uma nova fase na história do sindicalismo brasileiro, denominada de o novo sindicalismo, e abri- ram o caminho para a consolidação da abertura do processo democrático, em 1985. O novo sindicalismo foi responsável pela autonomia sindical, pela fundação do Partido dos Trabalhadores, pelo surgimento das Centrais Sindicais, pelo nascimento do sindicalis- mo no setor público, pela participação dos trabalhadores nos fóruns tripartites de discussão A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral82 e negociação dos princípios gerais das políticas públicas de geração de empregos e renda, de requalificação profissional e das políticas sociais, apresentando propostas nas questões globais e não apenas setoriais, de interesse imediato. As Centrais Sindicais representam os interesses de todas as categorias profissionais e os sindicatos estão a elas filiados, o que significa a tentativa de unificação da classe trabalha- dora em torno de reivindicações comuns que transcendem as expectativas de cada uma das categorias. Ou seja: cabe às centrais sindicais a participação nas negociações para a elabora- ção de políticas econômicas e sociais que visem à melhoria das condições de trabalho e de vida de todos os trabalhadores. No entanto, as transformações no mundo do trabalho, que se iniciaram na década de 1970 nos países mais ricos e a partir da década de 1990 no Brasil, arrefeceram os ímpetos reivindicatórios do novo sindicalismo, assim como reduziram o poder de barganha dos sin- dicatos de todo o mundo industrializado, cuja preocupação e reivindicação principais pas- saram a ser a defesa do emprego. De qualquer maneira, o que aqui se quer registrar e ressaltar é o fato de que o modelo sindical brasileiro sempre se constituiu num verdadeiro obstáculo para o avanço das con- quistas reivindicatórias dos trabalhadores, mesmo em conjunturas econômicas muito favo- ráveis, ao impedir o nascimento e o desenvolvimento de uma organização propriamente democrática de representação de interesses. Ampliando seus conhecimentos A experiência do desemprego (GIDDENS, 2005, p. 335-336) O desemprego pode ser uma experiência bastante perturbadora para aqueles que estão acostumados a ter um emprego seguro. Obviamente, a consequência mais imediata é a perda da renda, cujos efeitos variam conforme o país, em função dos contrastes no nível dos auxílios-desemprego. Nos países em que há uma garantia de acesso aos serviços de saúde e a outros benefícios assistenciais, os desempregados podem até sofrer grandes dificuldades financeiras, mas continuam sob a proteção do Estado. Em alguns países do Ocidente, como os Estados Unidos, o período de pagamento do auxílio-desemprego é menor, e o sistema de saúde não é universal, fazendo com que a pressão econômica sobre aqueles que não têm um emprego seja correspondentemente maior. Estudos sobre os efeitos do desemprego em termos emocionais observaram que as pessoas que estão desempregadas vivenciam uma série de fases até se ajustarem à sua nova condição. Apesar de esta ser, sem dúvida, uma experiência individual, aqueles que enfrentaram a perda recente do A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva Sociologia Geral 4 83 emprego normalmente passam por uma sensação de choque, que vem em seguida de um otimismo diante das novas oportunidades. Quando não há uma recompensa por esse otimismo, como frequentemente acontece, os indivíduos podem cair em períodos de depressão e de profundo pessimismo em relação a si mesmo e a suas perspectivas de emprego. Se esse período de desemprego se prolongar, o processo de ajuste acaba se completando com a resignação dos indivíduos às realidades de sua situação. Altos níveis de desemprego podem provocar o enfraquecimento das comunidades e dos laços sociais. Em um estudo sociológico clássico, realizado na década de 1930, Marie Jahoda e seus colegas investigaram o caso de Marienthal, uma pequena cidade austríaca que estava atravessando uma situação de desemprego em massa após o fechamento da fábrica local. Os pesquisadoresnotaram como uma experiência de desemprego de longa duração acaba desgastando muitas das estruturas sociais e das redes de contatos da comunidade. As pessoas ficaram menos ativas nas questões cívicas, seu convívio social diminuiu e até iam menos à biblioteca. É importante observar que a experiência do desemprego também varia conforme a classe social. Para aqueles que estão situados no nível mais baixo da escala de renda, as consequências do desemprego podem ser sentidas principalmente em termos financeiros. Como já foi sugerido, os indivíduos da classe média acreditam que o desemprego prejudica primeiramente seu status social, e não o financeiro. Um conferencista de 45 anos de idade, quando dispensado, pode já ter adquirido bens suficientes para sobreviver confortavelmente durante as primeiras fases do desemprego, mas, para ele, pode ser muito difícil compreender as dimensões do desemprego para o futuro da sua carreira e para seu valor enquanto profissional. Atividades 1. Se você ou alguém de sua família já foi demitido de um emprego, como justificou a sua situação? E, agora, depois da leitura, como a justifica? 2. Se você ou alguém de sua família está à procura de um emprego, como compreendia a sua dificuldade em consegui-lo? E, agora, depois da leitura deste capítulo, como a compreende? 3. A reestruturação produtiva tem consequências perversas sobre os mercados de tra- balho. Por quê? A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva4 Sociologia Geral84 Referências BRASIL. DIEESE. Turnos de revezamento na nova Constituição. Boletim DIEESE, n. 197, ago. 1997. BRASIL. IPEA. Carta conjuntura. Sessão VIII, Mercado de trabalho, n. 37. 4º trim/2017. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/171214_CC37_secao_mercado_de_ trabalho.pdf>. Acesso em: 19 jan. 2018. BOYER, R. La flexibilité en Europe. Paris: La Découverte, 1986. BURAWAY, M. The politics of production: factory regimes under capitalism and socialism. England: Thetford Press, 1985. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em rede – A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1992. GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992. 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Sociologia Geral 85 5 Novas competências profissionais A reestruturação produtiva transforma a natureza do trabalho e define o novo perfil do trabalhador do século XXI, cujas características são muito diferentes daquelas dos trabalhadores da organização taylorista e fordista do processo de trabalho. Mas isso não quer dizer que a reestruturação das indústrias e dos escritórios tenha feito ressurgir o trabalhador profissional no sentido tra- dicional do termo e, mais precisamente, em seu sentido francês, cunhado por Georges Friedmann em O trabalho em migalhas e retomado por Alain Touraine, Braverman, Coriat, Freyssenet, entre outros. Ou seja: os trabalha- dores das indústrias e escritórios tecnológica e organizacionalmente moder- nizados realizam tarefas altamente qualificadas, mas que não são próprias de nenhum ofício de base, isto é, que não pertencem a nenhum conjunto ou família de trabalhos. Segundo Freyssenet (1977, p. 114), “a qualificação de um trabalho é medida pelo grau e frequência da atividade intelectual que exige para ser executada”. Como o grau e a frequência da utilização das faculdades intelec- tuais são, por sua vez, medidos pelo tempo estritamente necessário de apren- dizagem e de instrução para a realização de uma tarefa ou de um conjunto de tarefas, pode-se afirmar que os trabalhadores das empresas modernizadas são altamente qualificados, pois deles se exige instrução mínima de Ensino Médio e muitos cursos de aprendizagem e treinamento. Vídeo Novas competências profissionais5 Sociologia Geral86 Além disso, embora também realizem tarefas repetitivas, que necessitam muito mais de senso de responsabilidade do que reflexão, os novos trabalhadores se submetem a situa- ções de trabalho aleatórias e indeterminadas que requerem, segundo Davies, qualidades ou qualificações muito especiais: flexibilidade, adaptação e iniciativa para enfrentá-las correta- mente. Os acontecimentos aleatórios e indeterminados, isto é, imprevisíveis no tempo (as to time) e imprevisíveis em sua natureza (as to nature) impõem intervenções qualificadas sobre o processo de trabalho. Por isso, os trabalhadores: • devem ter um grande repertório de respostas, pois a natureza das intervenções necessárias não é conhecida; • não podem depender da hierarquia (supervisores), pois devem responder imedia- tamente aos acontecimentos que intervêm de modo irregular e repentino; • devem ser autorizados a efetuar as tarefas necessárias com sua própria iniciativa (DAVIES apud CORIAT, 1978). Ora, como se sabe, respostas variadas, rápidas e de iniciativa própria não são exigências que se impõem aos trabalhadores das fases anteriores à automatização e informatização do processo de trabalho, definidos pela desqualificação de suas tarefas, mas também não são suficientes para caracterizar o trabalhador profissional, cujo trabalho exige, além daquelas qualificações, o conhecimento de um ofício de base que faz dele um “onipraticante poliva- lente”, nas palavras de Georges Friedmann (1972). Suas funções se realizam por meio de decisões próprias, fundadas no conhecimento e controle sobre a totalidade do processo de trabalho e na polivalência de suas qualificações. Determinada, em grande parte, pelo estado das técnicas e dos meios de produção, a evolução do trabalho implica, segundo Alain Touraine, evolução na própria noção de qua- lificação, não se podendo definir de maneira permanente as diferenças entre trabalhadores de papéis profissionais diversos. A qualificação, portanto, mede cada vez mais o papel do indivíduo no sistema técnico e humano de produção, [...] a saber, um conjunto de atividades definidas pelo seu lugar no circuito de produção, que supõe certas características psicoló- gicas. (TOURAINE, 1973, p. 467) Até a década de 1980, a maioria dos estudos sociológicos sobre o mundo do trabalho consagrou a tese da polarização das qualificações, segundo a qual a moderna tecnologia,ao intensificar a divisão do trabalho, seria responsável pelo desenvolvimento de um pro- cesso com duplo e contraditório efeito: de um lado, a desqualificação da grande massa de trabalhadores e, de outro, a superqualificação de uma minoria. Os estudos mais importan- tes, como os de Braverman (1980), Freyssenet (1977), Coriat (1978), H. Kern e M. Shumann (1980; 1984), por exemplo, explicam esse processo pela contínua perda do domínio operário sobre o processo de trabalho, iniciada já na fase manufatureira, e o desenvolvimento das especializações nas fases seguintes, inclusive nas indústrias automatizadas, cuja tecnologia aprofundaria a desqualificação dos operários da produção, reduzindo-os a meros vigilantes de máquinas e, ao mesmo tempo, provocaria superqualificação do trabalho de algumas ca- tegorias, como de manutenção, técnicos, engenheiros e profissionais de informática. Novas competências profissionais Sociologia Geral 5 87 Entretanto, desde de meados da década de 1980 estudos têm desmentido essa ten- dência e permitido indicar outras, muito mais otimistas, que apontam para o desenvolvi- mento do processo de requalificação do trabalho nas empresas modernas. O resultado foi o abandono da tese da polarização das qualificações pelos mesmos autores que contribuí- ram para a sua aceitação. Kern e Schumann, por exemplo, em 1981, voltaram às empresas por eles analisadas nos anos 1960, chegando a conclusões contrárias àquelas que foram objeto de suas preocupações em Trabalho industrial e consciência dos trabalhadores: Não houve acentuação da divisão do trabalho mas, ao contrário, em muitos lu- gares, sérios esforços foram feitos para dar aos postos de trabalho definições mais amplas. Em lugar de uma degradação das qualificações, a preocupação com uma utilização mais global da competência operária tornou-se evidente. Não houve deterioração, mas desenvolvimento da formação, com renovação de seu conteúdo. Numa palavra: os comportamentos sob tutela foram substituídos, muito frequentemente por comportamentos, independentemente das oposições de interesse, de respeito à pessoa do trabalhador. (KERN; SCHUMANN, 1984) A tese da desqualificação dos trabalhadores desenvolvida enfaticamente por Braverman foi também rejeitada por Jones e Wood com a noção, por eles introduzida, de “qualificações tácitas”, cujo mérito é o de demonstrar que qualquer tarefa, mesmo nos empregos conside- rados não qualificados, realiza-se baseada em um saber, ou seja, “os trabalhadores utilizam uma certa qualificação e intervêm amplamente em todo o processo de trabalho concebido pelas direções” (JONES; WOOD, 1984). Segundo esses autores, vários aspectos do conhecimento humano determinam a capa- cidade dos trabalhadores de utilização de suas qualificações e constituem o que denominam conhecimento ou qualificação tácita. As dimensões principais da qualificação tácita seriam: • a prática das tarefas rotineiras que implica um processo de aprendizagem pelo qual as qualificações são adquiridas por meio da experiência; • os diferentes graus de consciência conforme a atividade a executar; e • a necessidade de os trabalhadores desenvolverem qualificações de cooperação, dada a natureza coletiva do processo de trabalho. A noção de qualificações tácitas amplia o conceito de qualificação do trabalho, não o tratando mais apenas como o conjunto de conhecimentos e habilidades específicos reque- ridos para a realização de uma tarefa. Isso implica afirmar que não há trabalho totalmente desqualificado e, evidentemente, quanto maior a complexidade das tarefas a realizar, maior será o número de qualificações tácitas exigidas. Ao mesmo tempo, implica negar a tese de Braverman sobre o total controle do processo de trabalho pela direção, mesmo nas empresas de tecnologia moderna, pois uma parte desse controle será sempre exercido pelo trabalha- dor que fará o maquinário funcionar também em função de suas qualificações tácitas. Freyssenet, já na década de 1980, também reconhece o desenvolvimento de um pro- cesso de enriquecimento da qualificação nas empresas modernas, isto é, um processo de requalificação do trabalho. Novas competências profissionais5 Sociologia Geral88 Ainda hoje o debate se centraliza em torno do que Piore e Sabel, em 1984, denominavam especialização flexível, cuja origem é o modelo da competência representado pela bem-suce- dida empresa japonesa. As qualificações exigidas no interior desse “novo modelo produtivo”, repre- sentado pelo modelo empresarial japonês, contrastam fortemente com aquelas rela cionadas com a lógica taylorista de remuneração, de definição de postos de trabalho e de competências: trata-se da capacidade de pensar, de decidir, de ter iniciativa e responsabilidade, de fabricar e consertar, de administrar a produção e a qualidade a partir da linha, isto é, ser simultaneamente operário da produção e de manutenção, inspetor de qualidade e engenheiro. (HIRATA, 1994, p. 126) O modelo da competência supõe a reformulação do próprio significado de qualificação para o trabalho, agora compreendida em suas múltiplas dimensões, isto é, em seus “compo- nentes implícitos e não organizados e em seus componentes explícitos e organizados: educa- ção escolar, formação técnica e educação profissional” (AOKI apud HIRATA, 1994, p. 128). De certa maneira, retoma também a noção de qualificações tácitas ou sociais, decompondo-a em “qualificação real” (conjunto de competências e habilidades, técnicas profissionais, es- colares e sociais) e “qualificação operatória” (potencialidades empregadas por um operador para enfrentar uma situação de trabalho). Como a estrutura industrial e de prestação de serviços é constituída na atualidade, so- bretudo da informação com base no conhecimento e a correta utilização da informação, há consenso entre os autores em dois aspectos essenciais. O primeiro refere-se às exigências impostas pela reestruturação, que podem ser assim sintetizadas nas palavras de Vanilda Paiva (1995, p. 317): [...] capacidade de manipular mentalmente modelos, pensamento conceitual com raciocínio abstrato, compreensão do processo de produção, apreciação de tendências, limites e significado dos dados estatísticos, capacidade (e precisão) de comunicação verbal, oral e visual, responsabilidade, capacidade de preencher múltiplos papéis na produção e de rápida adaptação a novas gerações de ferra- mentas e maquinarias. Dessa forma, compreende-se que aos trabalhadores das empresas modernas impõem- -se capacidade de abstração, raciocínio crítico e presteza de intervenção, isto é, capacidade para ler, interpretar e decidir com base em dados formalizados e fornecidos pelas máquinas, além de qualidades sociomotivacionais, de personalidade e caráter, que garantiarão o bom relacionamento com os colegas das equipes de trabalho. As tecnologias da informação e as novas técnicas gerenciais estão exigin do, portanto, um trabalhador que seja capaz de efetivar conhecimentos, ou seja, capaz de utilizá-los correta- mente na solução de problemas do dia a dia do trabalho e no processo de tomada de decisões que hoje devem ser rápidas devido à compressão espaço-tempo provocada pela informatiza- ção. Trata-se, assim, do reconhecimento da necessidade de se pôr fim ao problema universal- mente constatado do analfabetismo funcional. Diplomas não mais expressam a real aquisição da capacidade de efetivar conhecimentos na solução de problemas, porque o processo de Novas competências profissionais Sociologia Geral 5 89 avaliação dos candidatos a um emprego é cada vez mais determinado pela capacidade de resolução de problemas simulados do que pela apresentação de um currículo pontuado de títulos formalmente adquiridos, como também pela demonstração do preenchimento de re- quisitos pessoais de ordem sociomotivacional que permitem a integração dos trabalhadores às equipes multifuncionais e, portanto, heterogêneas. Sem dúvida alguma, somente um ensino de boa qualidade – sobretudoo Ensino Fundamental – pode garantir a formação desse novo trabalhador cuja virtude será a de ter aprendido a aprender, adaptando-se rapidamente às novas situações para, de fato, encon- trar-se em condições intelectuais, mentais e sociomotivacionais de trabalhar nessas condições. O segundo aspecto da questão refere-se à substituição do conceito de qualificação pro- fissional pelo conceito de competência, delineado anteriormente. Muitos autores têm de- monstrado a inadequação do conceito de qualificação profissional para caracterizar o perfil dos trabalhadores da economia informal. O conceito de competência, tal como tem sido desenvolvido e utilizado, ao contrário do conceito de qualificação profissional, concentra-se nas qualidades intelectuais, mentais, cul- turais e sociomotivacionais do trabalhador e que lhe permitem a compreensão da totalidade do processo de trabalho, a versatilidade em várias tarefas, a capacidade de tomar decisões rápidas e corretas e a participação em equipes multifuncionais. O interesse de um enfoque pela competência é que ele permite concentrar a aten- ção sobre a pessoa mais do que sobre o posto de trabalho e possibilita associar as qualidades requeridas do indivíduo e as formas de cooperação intersubjetivas características dos novos modelos produtivos. A grande qualidade – e talvez o risco? – do conceito de competência é a de remeter, sem mediações, a um sujeito e a uma subjetividade. Qualificação é um conceito multidimensional e pode re- meter à qualificação do emprego, do posto de trabalho, à qualificação do indiví- duo, à relação social capital/trabalho etc. (HIRATA, 1997, p. 31) As dificuldades para corresponder às novas exigências dos mercados de trabalho im- põem um enorme sacrifício e sofrimento para milhões de trabalhadores à procura de um em- prego, ou mesmo preocupados com a manutenção de seus empregos, sem que tenham tido a oportunidade de adquirir os requisitos que hoje definem a competência. Para adquiri-los é preciso voltar aos bancos escolares do Ensino Fundamental, Médio ou Superior, em cursos noturnos, frequentar aulas de informática, tentar aprender inglês etc. ,ou, então, conformar- -se com a condição de excluído do mercado formal de trabalho. Apesar de a manutenção de formas tradicionais de organização do processo de traba- lho em alguns ramos da economia, os altos índices de desemprego permitem às empresas procederem com um processo seletivo rigoroso dos candidatos a uma vaga, impondo-lhes sofisticadas competências mesmo quando os postos de trabalho a ocupar não as requerem. É exatamente nesse aspecto que se associam as noções de empregabilidade e competên- cia. Se a empregabilidade é a probabilidade de saída do desemprego ou capacidade de ob- ter um emprego, as duas noções se associam na medida em que a obtenção e manutenção de um emprego dependem da competência do candidato ou empregado, num processo de Novas competências profissionais5 Sociologia Geral90 atribuição de toda a responsabilidade pelo desemprego à incapacidade do trabalhador. São sérias as implicações políticas e sociais dessa associação dos conceitos de empregabilidade e competência, pois sabemos que vários fatores determinam a situação dos mercados de traba- lho, sobretudo os de ordem macroeconômica que resultam da adoção de políticas econômicas e sociais específicas e de conjunturas econômicas nacionais e internacionais que favoreçam a geração de empregos e que ultrapassam a vontade e o âmbito da atuação do indivíduo. Além disso, as transformações tecnológicas e organizacionais do mundo do trabalho, como já salientamos, tendem a reduzir significativamente a oferta de empregos e, por isso, a aquisição de novas competências profissionais por meio da educação escolarizada não terá como consequência a garantia de emprego para a maioria da força de trabalho disponível mesmo em conjunturas econômicas altamente favoráveis. Por essa razão, o conceito de empregabilidade tem limitado alcance social: o jovem es- tudante de hoje deve ser muito mais preparado para assumir a responsabilidade de garantir a própria sobrevivência e a de sua futura família não como empregado, mas como trabalha- dor autônomo, sujeito de novas relações sociais de trabalho. Perde importância, pois, o conceito de empregabilidade e sua compreensão como uma radicalização da teoria do capital humano, tão duramente criticada desde o nascedouro. Ganha importância a educação escolarizada para permitir a sobrevivência do maior número de pessoas quaisquer que sejam as relações de trabalho, assalariadas ou não, graças à aquisi- ção das competências necessárias para a realização do trabalho nas novas condições tecnoló- gicas e organizacionais da produção e da prestação de serviços, sendo processo irreversível o desenvolvimento científico e tecnológico. E essas competências para trabalhar nas novas condições resultam do desenvolvimento das potencialidades de inteligência, criatividade, espírito crítico e iniciativa, promovido por uma escola na qual se aprendeu a aprender e que, simultaneamente, permite a transfor- mação do jovem estudante num verdadeiro cidadão, capaz de tornar-se sujeito da História e autorrealizar-se. As novas competências, isto é, os novos conhecimentos e capacidades exigidos dos trabalhadores pela reestruturação do mercado de trabalho não têm, portanto, apenas valor econômico. Investir em educação significa muito mais do que “transformar trabalhadores em capi- talistas, não pela difusão da propriedade das ações da empresa [...], mas pela aquisição de conhecimentos e de capacidades que possuem valor econômico” (SCHULTZ, 1973, p. 35), tal como afirmava o mais importante autor da teoria do capital humano. Investir em educação e aprender a aprender significa, ao mesmo tempo, adquirir as condições para a formação de um capital intelectual cuja valorização resulta da compreensão da necessidade de se realizar o trabalho de transformação da estrutura social, de consolidação e efetivação dos ideais de- mocráticos, abrindo o caminho para a emancipação humana. Novas competências profissionais Sociologia Geral 5 91 Ampliando seus conhecimentos Habilidades múltiplas (GIDDENS, 2005, p. 314-315) Uma das convicções dos comentadores pós-fordistas é a de que novas for- mas de trabalho permitem aos empregados uma amplitude maior de suas habilidades por meio da participação em uma variedade de tarefas, em vez da realização de uma tarefa específica repetidas vezes. A produção em grupo e o trabalho em equipe são vistos como caminhos para promover uma mão de obra que tenha “habilidades múltiplas”, capaz de executar um conjunto mais amplo de responsabilidades; o que, por sua vez, leva a um crescimento na produtividade e na qualidade de mercadorias e servi- ços. Empregados que conseguem prestar contribuições múltiplas aos seus empregos terão mais sucesso na hora de resolverem problemas e propo- rem abordagens criativas. O movimento em direção às “habilidades múltiplas” traz implicações para o processo de contratação. Se houve um tempo em que as decisões em relação à contratação de funcionários eram tomadas quase exclusiva- mente com base na educação e nas qualificações, muitos empregadores agora procuram indivíduos que sejam capazes de se adaptar e de adqui- rir novas habilidades com rapidez. Assim, quem for um especialista na aplicação de um software específico pode não ser tão valorizado quanto alguém que demonstrar facilidade em ter ideias. As especializações são geralmente tratadas como bens, mas se os empregados têm dificuldades em aplicar habilidades restritas criativamente em novos contextos, essas mesmas especializações podem não ser vistas como uma vantagem em um local de trabalho flexível, inovador. Um estudo da Joseph Rowntree Foundation intitulado The Future of Work (Meadows, 1996) investigou os tipos de habilidades buscados pelos empregadores. Os autores chegaram à conclusão de que, tanto nos seto- res ocupacionais profissionalizadosquanto nos não profissionalizados, as “habilidades pessoais” são cada vez mais valorizadas. A capacidade de colaborar e de trabalhar de forma independente, de tomar iniciativas e de escolher caminhos criativos diante de desafios estão entre as melho- res habilidades que um indivíduo pode trazer a um emprego. Em um mercado no qual as necessidades individuais dos consumidores são cada vez mais satisfeitas, é essencial que os empregados de uma variedade de ambientes, desde o setor de serviços até a consultoria financeira, consigam Novas competências profissionais5 Sociologia Geral92 aproveitar as “habilidades pessoais” no local de trabalho. Segundo os autores do estudo, esse “rebaixamento” das habilidades técnicas pode ser mais difícil para aqueles que há muito tempo trabalham em funções repe- titivas, de rotina, nas quais as “habilidades pessoais” não tiveram vez. Atividades 1. Reflita sobre as suas “habilidades pessoais” para verificar se você é um empregado “flexível, adaptável e geograficamente móvel”, capaz de se ajustar às necessidades das empresas que hoje buscam trabalhadores com essas habilidades. Seja honesto com você mesmo e, caso chegue à conclusão que não possui aquelas “habilidades pessoais”, demonstre como poderá adquiri-las. 2. Quais são as diferenças entre os conceitos de qualificação profissional e competência profissional? 3. Você acredita que a mais moderna organização do processo de trabalho pode fazer do trabalho uma atividade mais prazerosa? Por quê? Referências BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. CORIAT. Différenciation et segmentation de la force de travail dans les industries de processus. In: LINHART et al. Division du Travail. Paris: Editions Galilée, 1978. FREYSSENET, Michel. La Division Capitaliste du Travail. Paris: Editions Savelli, 1977. 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Neste as habili- dades são independentes do processo, pois o conhecimento da atividade que está sendo realizada é suficiente, enquanto naquele faz-se necessário outras habilidades externas ao processo para que se tenha a compreensão de todas as etapas e as pos- síveis formas de se resolver qualquer impasse que possa acontecer, sem causar – ou causar o menor possível – prejuízo à empresa. 3. Resposta pessoal. Código Logístico 57353 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6434-2 9 788538 764342 Página em branco Página em branco