Prévia do material em texto
<p>O QUE É UM DISPOSITIVO</p><p>Gilles Deleuze</p><p>A filosofia de Foucault apresenta-se freqüentemente como uma análise de</p><p>dispositivos concretos. Mas o que é um dispositivo?</p><p>1</p><p>É antes de mais nada um emaranhado,</p><p>um conjunto multilinear. Ele é composto de linhas de natureza diferente. E estas linhas do</p><p>dispositivo não cercam ou não delimitam sistemas homogêneos, o objeto, o sujeito, a</p><p>língua, etc., mas seguem direções, traçam processos sempre em desequilíbrio, às vezes se</p><p>aproximam, às vezes se afastam umas das outras. Cada linha é quebrada, submetida a</p><p>variações de direção, bifurcante e engalhada, submetida a derivações. Os objetos visíveis,</p><p>os enunciados formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos em posição são como vetores</p><p>ou tensores. Assim as três grandes instâncias que Foucault distinguirá sucessivamente,</p><p>Saber, Poder e Subjetividade, não têm de maneira alguma contornos fixos, mas são</p><p>correntes de variáveis em luta umas com as outras. É sempre numa crise que Foucault</p><p>descobre uma nova dimensão, uma nova linha. Os grandes pensadores são um pouco</p><p>sísmicos, eles não evoluem mas procedem por crises e por abalos. Pensar em termos de</p><p>linhas móveis, é a operação de Herman Melville, e havia linhas de pesca, linhas de</p><p>submersão, perigosas, até mesmo mortais. Há linhas de sedimentação, disse Foucault, mas</p><p>há linhas de "ruptura", de "fratura". Separar as linhas de um dispositivo, em cada caso, é</p><p>desenhar um mapa, cartografar, medir a passos terras desconhecidas, e é isso que ele chama</p><p>de "trabalho sobre o terreno". É necessário instalar-se sobre as próprias linhas, que não se</p><p>limitam a compor um dispositivo, mas que o atravessam e o arrastam, do norte ao sul, do</p><p>leste ao oeste ou em diagonal.</p><p>As duas primeiras dimensões de um dispositivo, ou aquelas que Foucault separa no</p><p>início, são as curvas de visibilidade e as curvas de enunciação. Os dispositivos são como</p><p>máquinas de Raymond Roussel analisadas por Foucault, são máquinas de fazer ver e de</p><p>fazer falar. A visibilidade não remete a uma luz em geral que viria iluminar os objetos</p><p>preexistentes, ela é feita de linhas de luz que formam figuras variáveis inseparáveis deste</p><p>ou daquele dispositivo. Cada dispositivo tem seu regime de luz, maneira pela qual a luz cai,</p><p>se esfuma, se expande, distribuindo o visível e o invisível, fazendo nascer ou desaparecer</p><p>um objeto que não existe sem ela. Não é só a pintura mas a arquitetura: assim o "dispositivo</p><p>prisão" como máquina óptica, para ver sem ser visto. Se há uma historicidade dos</p><p>dispositivos, é a dos regimes de luz, mas também a dos regimes de enunciados. Pois os</p><p>enunciados, por sua vez, remetem a linhas de enunciação sobre as quais se distribuem as</p><p>posições diferenciais de seus elementos: e, se as curvas são elas próprias enunciados, é</p><p>porque as enunciações são curvas que distribuem variáveis, de modo que uma ciência nesse</p><p>momento, ou um gênero literário, ou um estado de direito, ou um movimento social, se</p><p>definem precisamente através de regimes de enunciados que eles fazem nascer. Não são</p><p>nem os sujeitos nem os objetos, mas os regimes que devem se definir para o visível e para o</p><p>enunciável, com suas derivações, suas transformações, suas mutações. E, em cada</p><p>dispositivo, as linhas transpõem alguns limiares, em função dos quais elas são estéticas,</p><p>científicas, políticas, etc.</p><p>Em terceiro lugar, um dispositivo comporta as linhas de força. Dir-se-ia que elas</p><p>vão de um ponto singular a um outro nas linhas precedentes; de certa maneira elas</p><p>"retificam" as curvas precedentes, traçam tangentes, envolvem os trajetos de uma linha à</p><p>outra, operam o vai e vem do ver ao dizer e inversamente, agindo como flechas que não</p><p>param de entrecruzar as coisas e as palavras, levando adiante a batalha entre elas. A linha</p><p>de força se produz "em toda a relação de um ponto a outro", e passa por todos os lugares de</p><p>um dispositivo. Invisível e indizível, ela está estreitamente embaraçada às outras, e, no</p><p>entanto, pode ser desembaraçada. É ela que Foucault traça, é sua trajetória que ele encontra</p><p>em Roussel, em Brisset, nos pintores Magritte ou Rebeyrolle. É a "dimensão do poder", e o</p><p>poder é a terceira dimensão do espaço, interior ao dispositivo, variável com os dispositivos.</p><p>Ela se compõe, com o poder, com o saber.</p><p>Enfim Foucault descobre as linhas de subjetivação. Essa nova dimensão já suscitou</p><p>tantos mal entendidos que passamos por dificuldades em precisar suas condições. Mais que</p><p>qualquer outra, sua descoberta nasce de uma crise do pensamento de Foucault, como se ele</p><p>tivesse que remanejar o mapa dos dispositivos, encontrar para eles uma nova orientação</p><p>possível, para não deixá-los simplesmente se fechar sobre as linhas de força</p><p>intransponíveis, impondo contornos definitivos. Leibniz exprimia de maneira exemplar esse</p><p>estado de crise que relança o pensamento quando se crê que tudo está quase resolvido:</p><p>pensávamos ter chegado ao porto, mas somos jogados de novo em alto mar. E Foucault, por</p><p>sua vez, pressente que os dispositivos que analisa não podem ser circunscritos por uma</p><p>linha que os envolve, sem que outros vetores passem por cima ou por baixo: "transpor a</p><p>linha", ele diz, como "passar do outro lado"? Essa ultrapassagem da linha de força, é o que</p><p>se produz quando ela se recurva, faz meandros, afunda, e torna-se subterrânea, ou antes</p><p>quando a força, em vez de entrar numa concordância linear com outra força, volta-se sobre</p><p>si própria e se exerce sobre si própria ou se afeta a si mesma. Esta dimensão do Si não é de</p><p>maneira alguma uma determinação preexistente que se encontraria pronta. Antes de mais</p><p>nada, uma linha de subjetivação é um processo, uma produção de subjetividade em um</p><p>dispositivo: ela tem que se fazer, contanto que o dispositivo o permita ou possibilite. É uma</p><p>linha de fuga. Ela escapa às linhas precedentes, ela se lhes escapa. O Si não é nem um saber</p><p>nem um poder. É um processo de individuação que age nos grupos ou nas pessoas, e se</p><p>subtrai tanto às relações de forças estabelecidas quanto aos saberes constituídos: uma</p><p>espécie de mais-valia. Não é seguro que todo dispositivo comporte isto.</p><p>Foucault considera o dispositivo da cidade ateniense como o primeiro lugar da</p><p>invenção de uma subjetivação: é que, de acordo com a definição original que ele propõe, a</p><p>cidade inventa uma linha de força que passa pela rivalidade dos homens livres. Ora, desta</p><p>linha sobre a qual um homem livre pode comandar outros, separa-se outra muito diferente,</p><p>segundo a qual aquele que comanda os homens livres deve ele mesmo ser mestre de si. São</p><p>estas regras facultativas do domínio de si que constituem uma subjetivação, autônoma,</p><p>mesmo se, na seqüência, ela é chamada a fornecer novos saberes e a inspirar novos poderes.</p><p>Perguntar-se-á se as linhas de subjetivação não são a borda extrema de um dispositivo, e se</p><p>elas não esboçam a passagem de um dispositivo a outro: elas preparariam neste sentido as</p><p>"linhas de fratura". E, assim como as outras linhas, as de subjetivação não têm uma fórmula</p><p>geral. Brutalmente interrompida, a pesquisa de Foucault deveria mostrar que os processos</p><p>de subjetivação apresentam eventualmente modalidades totalmente diferente do grego, por</p><p>exemplo os dispositivos cristãos, os das sociedades modernas, etc. Não se pode invocar</p><p>dispositivos onde a subjetivação não passe pela vida aristocrática ou pela existência</p><p>estilizada do homem livre, mas pela existência marginalizada do "excluído"? Assim o</p><p>sinólogo Tokeï explica como o escravo alforriado perdia de certa forma seu estado social, e</p><p>se encontrava remetido a uma subjetividade isolada, queixosa, existência elegíaca, de onde</p><p>ele iria retirar novas formas de poder e saber. O estudo das variações dos processos de</p><p>subjetivação parece mesmo ser umas das tarefas fundamentais que Foucault deixou àqueles</p><p>que o seguiriam. Nós cremos na fecundidade extrema desta pesquisa, que os projetos atuais,</p><p>no que</p><p>concerne a uma história da vida privada, abrangem apenas parcialmente. Quem se</p><p>subjetiva são às vezes os nobres, aqueles que dizem, segundo Nietzsche, "nós os bons...",</p><p>mas sob outras condições são os excluídos, os maus, os pecadores, ou podem também ser</p><p>os eremitas, ou também as comunidades monacais ou mesmo os hereges: toda uma</p><p>tipologia de formação subjetiva em dispositivos móveis. E por toda parte misturas a serem</p><p>desfeitas: as produções de subjetividade escapam dos poderes e dos saberes de um</p><p>dispositivo para se reinvestirem nos poderes e saberes de um outro dispositivo, sob outras</p><p>formas ainda por nascer.</p><p>Os dispositivos têm portanto como componentes linhas de visibilidade, de</p><p>enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação, linhas de ruptura, de fissura, de fratura,</p><p>e todas se entrecruzam e se misturam, de modo que umas repõem as outras ou suscitam</p><p>outras, através de variações ou mesmo de mutações de agenciamento. Duas conseqüências</p><p>importantes decorrem disto para uma filosofia dos dispositivos. A primeira é o repúdio aos</p><p>universais. O universal na verdade não explica nada, é ele que deve ser explicado. Todas as</p><p>linhas são linhas de variação, que não têm nem mesmo coordenadas constantes. O Uno, o</p><p>Todo, o Verdadeiro, o objeto, o sujeito, não são universais, mas processos singulares, de</p><p>unificação, de totalização, de verificação, de objetivação, de subjetivação imanentes a um</p><p>determinado dispositivo. E ainda, cada dispositivo é uma multiplicidade na qual operam</p><p>determinados processos em devir, distintos daqueles que operam em outro. É neste sentido</p><p>que a filosofia de Foucault é um pragmatismo, um funcionalismo, um positivismo, um</p><p>pluralismo. Talvez seja a Razão que apresente o maior problema , porque processos de</p><p>racionalização podem operar sobre segmentos ou regiões de todas as linhas consideradas.</p><p>Foucault homenageia a Nietzsche com uma historicidade da razão; ele assinala toda a</p><p>importância de uma pesquisa epistemológica sobre as diversas formas de racionalidade de</p><p>saber (Koyré, Bachelard, Canguilhem), de uma pesquisa sociopolítica dos modos de</p><p>racionalidade do poder (Max Weber). Ele reserva, talvez, para si mesmo, a terceira linha, os</p><p>estudos dos tipos de "razão" em sujeitos eventuais. Mas o que ele recusa essencialmente, é</p><p>a identificação destes processos em uma Razão por excelência. Ele recusa toda restauração</p><p>dos universais de reflexão, de comunicação, de consenso. Pode-se dizer desta maneira que</p><p>suas relações com a Escola de Frankfurt, e com os sucessores desta escola, são uma longa</p><p>seqüência de mal entendidos pelos quais ele não é responsável. Da mesma forma que não</p><p>há a universalidade de um sujeito fundador ou de uma Razão por excelência que permitiria</p><p>julgar os dispositivos, não há universais da catástrofe onde a razão se alienaria,</p><p>desmoronaria de uma vez por todas. Como Foucault diz a Gerard Raulet, não há uma</p><p>bifurcação da razão mas ela não para de se bifurcar, há tantas bifurcações e desdobramentos</p><p>quanto instaurações, tantos desabamentos quanto construções, segundo os cortes operados</p><p>pelos dispositivos, e "não há nenhum sentido sob a proposição segundo a qual a razão é um</p><p>longo discurso que agora terminou". Deste ponto de vista, a questão que se coloca a</p><p>Foucault, de saber se é possível avaliar o valor relativo de um dispositivo, se não se pode</p><p>invocar valores transcendentes como coordenadas universais, é uma questão com a qual se</p><p>corre o risco de retroceder e de perder o sentido. Dir-se-á que todos os dispositivos se</p><p>eqüivalem (niilismo)? Há muito tempo que pensadores como Espinosa ou Nietzsche</p><p>demonstraram que os modos de existência deviam ser avaliados de acordo com critérios</p><p>imanentes, segundo seu teor de "possibilidades", de liberdade, de criatividade sem apelar-se</p><p>a valores transcendentes. Foucault fará a mesma alusão a critérios "estéticos",</p><p>compreendidos como critérios de vida, que substituem as pretensões de um julgamento</p><p>transcendente por uma avaliação imanente. Quando lemos os últimos livros de Foucault,</p><p>devemos nos esforçar para compreender o programa que ele propõe aos seus leitores. Uma</p><p>estética intrínseca dos modos de existência, como última dimensão dos dispositivos?</p><p>A segunda conseqüência</p><p>2</p><p>de uma filosofia dos dispositivos é uma mudança de</p><p>orientação, ela se desvia do Eterno para apreender o novo. Não se supõe que o novo</p><p>designe a moda, mas pelo contrário, a criatividade variável segundo os dispositivos: de</p><p>acordo com a questão que começou a ser formulada no século XX, como é possível no</p><p>mundo a produção de alguma coisa nova? É verdade que, em toda sua teoria da enunciação,</p><p>Foucault recusa explicitamente a "originalidade" de um enunciado como critério pouco</p><p>pertinente, pouco interessante. Ele quer considerar somente a "regularidade" dos</p><p>enunciados. Mas o que ele entende por regularidade, é o traçado da curva que passa pelos</p><p>pontos singulares, ou os valores diferenciais do conjunto enunciativo (assim ele definirá as</p><p>relações de força por distribuições de singularidades em um campo social). Quando ele</p><p>recusa a originalidade de um enunciado, ele quer dizer que a eventual contradição de dois</p><p>enunciados não é suficiente para os distinguir, nem para marcar a novidade de um em</p><p>relação ao outro. Pois o que conta é a novidade do próprio regime de enunciação, na</p><p>medida que ele pode abranger enunciados contraditórios. Por exemplo, pode se perguntar</p><p>qual regime de enunciado aparece com o dispositivo da Revolução francesa ou da</p><p>Revolução bolchevique: é a novidade do regime que conta, e não a originalidade do</p><p>enunciado. Todo dispositivo se define assim por seu teor de novidade e criatividade, que</p><p>marca ao mesmo tempo sua capacidade de se transformar, ou de se cindir em proveito de</p><p>um dispositivo futuro, ou ao contrário, de fortificar-se sobre suas linhas mais duras, mais</p><p>rígidas ou sólidas. Na medida que elas escapam das dimensões do saber e poder, as linhas</p><p>de subjetivação parecem particularmente capazes de traçar caminhos de criação, que não</p><p>param de abortar, mas também, de serem retomados, modificados, até a ruptura do antigo</p><p>dispositivo. Os estudos ainda inéditos de Foucault sobre os diversos processos cristãos,</p><p>abrem sem dúvida numerosas vias a este respeito. Contudo, não se acreditará que a</p><p>produção de subjetividade seja devolvida à religião: as lutas anti-religiosas são também</p><p>criadoras assim como os regimes de luz, de enunciação ou de dominação, passam pelos</p><p>domínios os mais diversos. As subjetivações modernas não se parecem mais nem com a dos</p><p>Gregos nem com a dos cristãos, e o mesmo ocorre com a luz, com os enunciados e os</p><p>poderes.</p><p>Nós pertencemos a dispositivos e agimos neles. A novidade de um dispositivo em</p><p>relação aos precedentes pode ser chamada de sua atualidade, nossa atualidade. O novo é o</p><p>atual. O atual não é o que somos, mas antes o que nós nos tornamos, aquilo que estamos</p><p>nos tornando, isto é o Outro, nosso tornar-se outro. Em todo dispositivo, é preciso</p><p>distinguir aquilo que nós somos (aquilo que nós já não somos mais) e aquilo que nós</p><p>estamos nos tornando: a parte da história, e a parte do atual. A história é o arquivo, o</p><p>desenho daquilo que nós somos e que paramos de ser, enquanto que o atual é o esboço</p><p>daquilo que nós nos tornamos. De modo que a história ou o arquivo é o que nos separa</p><p>ainda de nós mesmos enquanto que o atual é este Outro com o qual nós já coincidimos.</p><p>Acreditou-se, às vezes, que Foucault desenhava o quadro da sociedade moderna com o</p><p>dispositivo das sociedades disciplinares em oposição aos velhos dispositivos de soberania.</p><p>Mas isto não quer dizer nada: as disciplinas descritas por Foucault são a história daquilo</p><p>que nós deixamos de ser pouco a pouco, e nossa atualidade se delineia nas disposições de</p><p>controle aberto e contínuo, muito diferentes das recentes disciplinas fechadas. Foucault</p><p>concorda com Burroughs, que anuncia nosso futuro controlado</p><p>ao invés de disciplinado. A</p><p>questão não é saber se é pior. Pois também nós apelamos para produções de subjetividade</p><p>capazes de resistir a esta nova dominação, muito diferente daquelas que se exerciam</p><p>antigamente contra as disciplinas. Uma nova luz, novos enunciados, uma nova potência,</p><p>novas formas de subjetivação? Em todo dispositivo, nós temos que desembaraçar as linhas</p><p>do passado recente das do futuro próximo: a parte do arquivo da parte do atual, a parte da</p><p>história daquela do devir, a parte da analítica e a do diagnóstico. Se Foucault é um grande</p><p>filósofo, é porque ele se serviu da história em proveito de outra coisa: como dizia</p><p>Nietzsche, agir contra o tempo e assim mesmo sobre o tempo, em favor espero de um</p><p>tempo que está porvir. Pois o que aparece como o atual ou o novo segundo Foucault, é o</p><p>que Nietzsche chamava de intempestivo, do inatual, este devir que se bifurca com a</p><p>história, este diagnóstico que continua a análise por outros caminhos. Não predizer mas</p><p>estar atento ao desconhecido que bate à porta. Nada o mostra melhor que uma passagem</p><p>fundamental da Arqueologia do saber, e que vale por toda a obra:</p><p>"A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada: ao</p><p>mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da</p><p>orla do tempo que cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua</p><p>alteridade; é aquilo que, fora de nós, nos delimita. A descrição do arquivo</p><p>desenvolve suas possibilidades (e o controle de suas possibilidades) a partir dos</p><p>discursos que começam a deixar justamente de ser os nossos; seu limiar de</p><p>existência é instaurado pelo corte que nos separa do que não podemos mais</p><p>dizer e do que fica fora de nossa prática discursiva; começa com o exterior de</p><p>nossa própria linguagem; seu lugar é o afastamento de nossas próprias práticas</p><p>discursivas. Nesse sentido, vale para nosso diagnóstico. Não porque nos</p><p>permitiria levantar o quadro de nossos traços distintivos e esboçar,</p><p>antecipadamente, o perfil que teremos no futuro, mas porque nos desprende de</p><p>nossas continuidades; dissipa essa identidade temporal em que gostamos de nos</p><p>olhar para conjurar as rupturas da história; rompe o fio das teleologias</p><p>transcendentais e aí onde o pensamento antropológico interrogava o ser do</p><p>homem ou sua subjetividade, faz com que o outro e o externo se manifestem</p><p>com evidência. O diagnóstico assim entendido não estabelece a autenticação de</p><p>nossa identidade pelo jogo das distinções. Ele estabelece que somos diferença,</p><p>que nossa razão é a diferença dos discursos, nossa história a diferença dos</p><p>tempos, nosso eu a diferença das máscaras.” (FOUCAULT, [1969], 1987: 150 e</p><p>151)</p><p>3</p><p>.</p><p>As diferentes linhas de um dispositivo se dividem em dois grupos: linhas de</p><p>estratificação ou de sedimentação, linhas de atualização ou de criatividade. A última</p><p>conseqüência deste método é o que trata toda a obra de Foucault. Na maior parte dos seus</p><p>livros, ele determina um arquivo preciso, com meios históricos extremamente novos, sobre</p><p>o Hospital Geral no século XVII, sobre a clínica no século XVIII, sobre a prisão no século</p><p>XIX, sobre a subjetividade na Grécia antiga, depois no cristianismo. Mas é a metade de sua</p><p>tarefa. Pois por causa do rigor, por vontade de não misturar tudo, por confiança no leitor,</p><p>ele não formula a outra metade. Ele a formula somente e explicitamente nas entrevistas</p><p>contemporâneas a cada um de seus livros: o que é hoje em dia a loucura, a prisão, a</p><p>sexualidade? Quais modos novos de subjetivação nós vemos aparecer hoje que, certamente,</p><p>não são gregos nem cristãos? Esta última questão, principalmente, persegue Foucault até o</p><p>fim (nós que não somos mais gregos nem mesmo cristãos...). Se Foucault até o fim da sua</p><p>vida dava tanta importância às suas entrevistas, na França e mais ainda no estrangeiro, não</p><p>é por gosto da entrevista, é porque ele ali traçava linhas de atualização que exigiam um</p><p>modo de expressão diverso daquele exigido pelas linhas assimiláveis nos grandes livros. As</p><p>entrevistas são diagnósticos. Como em Nietzsche, onde é difícil ler as obras sem juntar o</p><p>Nachlass</p><p>4</p><p>contemporâneo de cada uma destas obras. A obra completa de Foucault, tal</p><p>como a concebiam Defert e Edwald, não pode separar os livros que nos marcaram a todos,</p><p>e as entrevistas que nos levam a um porvir, à um devir: os estratos e as atualidades.</p><p>Resumo das discussões.</p><p>Sr. Karkeits nota que Gilles Deleuze não empregou a palavra "verdade". Onde deve</p><p>se colocar o dizer verdadeiro que Foucault fala nas suas últimas entrevistas? Trata-se de um</p><p>dispositivo em si? Ou é uma dimensão de todo dispositivo?</p><p>Gilles Deleuze responde que, em Foucault, não há nenhuma universalidade do</p><p>verdadeiro. A verdade designa o conjunto das produções que se fazem no interior de um</p><p>dispositivo. Um dispositivo abrange verdades de enunciação, verdades de luz e de</p><p>visibilidade, verdades de força, verdades de subjetivação. A verdade é a efetuação das</p><p>linhas que constituem o dispositivo. Extrair do conjunto dos dispositivos uma vontade de</p><p>verdade que passasse de uma à outra como uma constante é uma proposição sem sentido</p><p>segundo Foucault.</p><p>Manfred Franck observa que a filosofia de Foucault pertence a uma tradição pós-</p><p>hegeliana e pós-marxista que queria romper com o universal do pensamento do Iluminismo.</p><p>Contudo, acha-se em Foucault universais de toda a sorte: dispositivos, discursos, arquivos,</p><p>etc., que provam que a ruptura com o universal não é radical. No lugar de um universal,</p><p>encontram-se vários, em vários níveis.</p><p>Gilles Deleuze sublinha que a verdadeira fronteira está entre constantes e variáveis.</p><p>A crítica dos universais pode se traduzir numa questão: como é possível que alguma coisa</p><p>nova surgisse no mundo? Outros filósofos, Whitehead, Bergson, fizeram desta questão a</p><p>questão fundamental da filosofia moderna. Pouco importa que se empregue os termos</p><p>gerais para pensar os dispositivos: são nomes de variáveis. Toda constante é suprimida. As</p><p>linhas que compõem os dispositivos afirmam variações contínuas. Não há mais universais,</p><p>isto quer dizer que não há nada mais do que linhas de variação. Os termos gerais são</p><p>coordenadas cujo sentido é tão somente o de tornar possível a avaliação de uma variação</p><p>contínua.</p><p>Raymond Bellour pergunta onde se deve situar os textos de Foucault que se</p><p>relacionam com a arte: do lado do livro, e portanto do arquivo, ou do lado das entrevistas e</p><p>portanto do atual?</p><p>Gilles Deleuze lembra o projeto de Foucault de escrever um livro sobre Manet.</p><p>Nesse livro Foucault teria sem dúvida analisado mais que as linhas e as cores, o regime de</p><p>luz de Manet. Esse livro teria pertencido ao arquivo. As entrevistas teriam tirado do arquivo</p><p>as linhas de atualidade.</p><p>Foucault poderia ter dito: Manet é o que o pintor deixa de ser. Isso não retira nada</p><p>do valor de Manet. Pois a grandeza de Manet é o devir de Manet no momento em que ele</p><p>pinta. Essas entrevistas teriam consistido em separar linhas de fissura e de fratura que</p><p>fazem com que os pintores de hoje entrem em regime de luz dos quais se dirá: eles são</p><p>outros, isto é, há um devir outro da luz.</p><p>Para as artes também, há a complementariedade dos dois aspectos da analítica (do</p><p>que nós somos e por isso mesmo do que nós deixamos de ser) e do diagnóstico (o devir</p><p>outro no qual nós chegamos). A analítica de Manet implica num diagnóstico daquilo que</p><p>torna-se a luz a partir de Manet e depois dele.</p><p>Walter Seitter se espanta com o "fisicalismo" que permeia a apresentação de Gilles</p><p>Deleuze.</p><p>Gilles Deleuze refuta a expressão na medida em que ela deixaria supor que, sob</p><p>regimes de luz, haveria uma luz bruta fisicamente enunciável. O físico é um limiar de</p><p>visibilidade e de enunciação. Não há nenhum dado, em um dispositivo, que esteja no seu</p><p>estado selvagem, mas que haja um regime físico da luz, de linhas de luz, de ondas e</p><p>vibrações, por que não?</p><p>Fati Tricki pergunta como e onde</p><p>introduzir nos dispositivos a possibilidade de</p><p>demolição das técnicas modernas da servidão. Onde podem se localizar as práticas de</p><p>Michel Foucault?</p><p>Gilles Deleuze indica que não há uma resposta geral. Se há diagnóstico em</p><p>Foucault, é porque é preciso assinalar, para cada dispositivo, suas linhas de fissura e de</p><p>fratura. Em certos momentos elas se situam no nível dos poderes, noutros no nível dos</p><p>saberes. De um modo geral, pode-se dizer que as linhas de subjetivação indicam as fissuras</p><p>e as fraturas. Mas trata-se de uma casuística. Tem-se que avaliar de acordo com o caso, de</p><p>acordo com o teor dos dispositivos. Dando-se uma resposta geral, suprimisse esta disciplina</p><p>que é tão importante quanto a arqueologia, isto é, a disciplina do diagnóstico.</p><p>Faiti Tricki pergunta se a filosofia de Foucault pode chegar a romper os muros do</p><p>ocidente. É uma filosofia extra-muros?</p><p>Gilles Deleuze: Foucault restringiu por muito tempo seu método às seqüências</p><p>curtas da história francesa. Mas com os últimos livros, ele visa uma seqüência longa, desde</p><p>os gregos. Uma mesma extensão pode-se fazer geograficamente? Pode-se servir de métodos</p><p>análogos aos de Foucault para estudar os dispositivos orientais ou aqueles do Oriente</p><p>Médio? Certamente, pois a linguagem de Foucault, que considera as coisas como feixes de</p><p>linhas, como emaranhado, como conjuntos multilineares, é como oriental.</p><p>Notas da tradução:</p><p>1. Tradução de Ruy de Souza Dias (com agradecimentos a Fernando Cazarini) e Hélio</p><p>Rebello (revisão técnica), finalizada em março de 2001, a partir do texto: DELEUZE, Gilles.</p><p>Qu'est-ce qu'un disposif? IN Michel Foucault philosophe. Rencontre internationale. Paris</p><p>9, 10, 11 janvier 1988. Paris, Seuil. 1989.</p><p>2. A partir deste parágrafo e até o Resumo das discussões este texto foi traduzido e publicado como</p><p>Foucault, historiador do presente IN ESCOBAR, Carlos Henrique (org.) Dossier Deleuze. Rio de Janeiro:</p><p>Hólon, 1991:85-88.</p><p>3. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. [1969].Tradução de Luiz Baeta Neves. Rio de</p><p>Janeiro: Forense-Universitária, 1987.</p><p>4. Nachlass: [Do Alemão: nach: depois; lass: deixado.] deixado pra depois; rascunhos; escritos não</p><p>publicados; espólio; herança.</p>