Logo Passei Direto
Buscar
Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.
left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

Prévia do material em texto

<p>Concertos de leitura *</p><p>Rubem Alves</p><p>Penso que, de tudo o que as escolas podem fazer com as crianças e os jovens, não há nada de</p><p>importância maior que o ensino do prazer da leitura.Todos falam na importância de alfabetizar,</p><p>saber transformar símbolos gráficos em palavras. Concordo. Mas isso não basta. É preciso que o</p><p>ato de ler dê prazer. As escolas produzem, anualmente, milhares de pessoas com habilidade de</p><p>ler mas que, vida afora, não vão ler um livro sequer. Acredito piamente no dito do evangelho:</p><p>"No princípio está a Palavra…". É pela palavra que se entra no mundo humano.</p><p>Tive a felicidade de aprender, muito cedo, a amar os livros. Lembro-me com enorme carinho do</p><p>O livro de Lili, primeiro livro que li. "Olhem para mim. Eu me chamo Lili. Eu comi muito doce.</p><p>Vocês gostam de doce? Eu gosto tanto de doce." Nunca me esqueci dessa primeira lição. Ficou</p><p>gravada tão fundo dentro de mim que, faz uns meses, ao escrever o livro infantil A menina, a</p><p>gaiola e a bicicleta1 a história me foi ditada (poesia e literatura são sempre ditadas; elas vêm de</p><p>outro mundo) com ritmo preciso da primeira lição de O livro de Lili.</p><p>O segundo livro foi minha grande aventura, vôo solo, sozinho, no mundo das letras: A loja de</p><p>brinquedos2. Era fantástica a experiência de, sozinho, ir andando pela floresta de letras e vendo</p><p>um mundo. Quem não lê é cego. Só vê o que os olhos vêem. Quem lê, ao contrário, tem muitos</p><p>milhares de olhos: todos os olhos daqueles que escreveram. A leitura me deu alegria, mas a</p><p>história me deu tristeza. Tanto assim que, 55 anos depois, eu escrevi um outro, A loja de</p><p>brinquedos, para corrigir a tristeza do primeiro.</p><p>Aprendi a ler. Mas isso não bastava. Faltava-me o domínio da técnica que faz da leitura algo suave</p><p>como o vôo de um urubu ou deslizante como um patim no gelo. Foi dona Iva — não sei se ela</p><p>ainda vive — quem me ensinou que ler pode ser delicioso como voar ou como patinar. Ela lia</p><p>para nós. Não era para aprender nada. Não havia provas sobre os livros lidos. Ela lia para que</p><p>tivéssemos o prazer dos livros. Era pura alegria. Poliana,3 Heidi,4 Viagem ao céu,5 O saci.6</p><p>Ninguém faltava, ninguém piscava. A voz de dona Iva nos introduziu num mundo encantado.</p><p>O tempo passava rápido demais. Era com tristeza que víamos a professora fechar o livro.</p><p>A gente era pobre. Distrações não havia. Os jovens de hoje se sentem miseráveis se não podem</p><p>viajar nas férias. Eu nunca viajei.Viagem, na melhor das possibilidades, era para a casa de algum</p><p>parente. A gente ficava era em casa mesmo, com um tempo preguiçoso e vazio à nossa frente.</p><p>Que fazer com o tempo? Meu pai entrou de sócio para um "clube do livro".Todo mês chegava</p><p>um livro novo. Eram uns livros feios — brochuras de papel jornal, as páginas vinham grudadas —</p><p>que a gente tinha que ir abrindo com uma faca à medida que lia. Isso me irritava porque</p><p>interrompia o ritmo da leitura. Como eu não tinha outra coisa para fazer e desejando ter</p><p>Extraido de: Entre a ciência e a sapiência - o dilema da educação, São Paulo, Editorial Loyola, 1996.</p><p>Companhia das Letras, 1998.</p><p>Edições Loyola, 1994.</p><p>Ediouro, s.d.</p><p>Outlet Books, 1996</p><p>Monteiro Lobato, Brasiliense, 1995.</p><p>Idem.</p><p>*</p><p>1</p><p>2</p><p>3</p><p>4</p><p>5</p><p>6</p><p>1M1U9T1</p><p>M1U9T1</p><p>2M1U9T1</p><p>os poderes da professora, tornei-me um devorador de livros. Os livros do clube do livro eram</p><p>literatura adulta. Mas para mim não fazia diferença. Ler um livro que eu não entendia era como</p><p>viajar por uma terra cuja língua me era desconhecida: perdia muita coisa mas, nos intervalos das</p><p>incompreensões, havia os cenários.Tudo me espantava.</p><p>As razões por que as pessoas não gostam de ler, eu as descobri acidentalmente muitos anos</p><p>atrás. Uma aluna foi à minha sala e me disse: "Encontrei um poema lindo!". Em seguida disse</p><p>a primeira linha. Fiquei contente porque era um de meus favoritos. Aí ela resolveu lê-lo inteiro.</p><p>Foi o horror. Foi nesse momento que compreendi. Imagine uma valsa de Chopin, por exemplo</p><p>a vulgarmente chamada "do minuto". Peço que o pianista Alexander Brailowiski a execute.Os dedos</p><p>correm rápidos sobre as teclas, deslizando, subindo, descendo. É uma brincadeira, um riso. Aí eu</p><p>pego a mesma partitura e peço que um pianeiro a execute. As notas são as mesmas. Mas a valsa fica</p><p>um horror: tropeções, notas erradas, arritmias, confusões. O que a gente deseja é que ele pare.</p><p>Pois a leitura é igual à música. Para que a leitura dê prazer é preciso que quem lê domine a técnica</p><p>de ler. A leitura não dá prazer quando o leitor é igual ao pianeiro: sabem juntar as letras, dizer o que</p><p>significam — mas não têm o domínio da técnica. O pianista dominou a técnica do piano quando</p><p>não precisa pensar nos dedos e nas notas: ele só pensa na música. O leitor dominou a técnica da</p><p>leitura quando não precisa pensar em letras e palavras: só pensa nos mundos que saem delas;</p><p>quando ler é o mesmo que viajar.</p><p>E o feitiço da leitura continua me espantando. Faz uns anos um amigo rico me convidou para passar</p><p>uns dias no apartamento dele em Cabo Frio. Aceitei alegre, mas ele logo me advertiu: "Vão</p><p>também cinco adolescentes…". Senti um calafrio. E tratei de me precaver. Fui a uma casa de</p><p>armas, isto é, uma livraria, escolhi uma arma adequada, uma versão simplificada da Odisséia,7 de</p><p>Homero, comprei-a e viajei, pronto para o combate. Primeiro dia, praia, almoço, modorra, sesta.</p><p>Depois da sesta, aquela situação de não saber o que fazer. Foi então que eu, valendo-me do fato</p><p>de que eles não me conheciam, e falando com a autoridade de um sargento, disse: "Ei, vocês</p><p>aí.Venham até a sala que eu quero lhes mostrar uma coisa!". Eles obedeceram sem protestar.</p><p>Aí, comecei a leitura. Não demorou muito. Todos eles estavam em transe. Daí para a frente foi</p><p>aquela delícia, eles atrás de mim pedindo que continuasse a leitura.</p><p>Ensina-se, nas escolas, muita coisa que a gente nunca vai usar, depois, na vida inteira. Fui obrigado a</p><p>aprender muita coisa que não era necessária, que eu poderia ter aprendido depois, quando e se</p><p>a ocasião e sua necessidade o exigisse. É como ensinar a arte de velejar a quem mora no alto</p><p>das montanhas… Nunca usei seno ou logaritmo, nunca tive oportunidade de usar meus</p><p>conhecimentos sobre as causas da Guerra dos Cem Anos, nunca tive de empregar os saberes</p><p>da genética para determinar a prole resultante do cruzamento de coelhos brancos com coelhos</p><p>pretos, nunca houve ocasião que eu me valesse dos saberes sobre sulfetos. Mas aquela experiência</p><p>infantil, a professora nos lendo literatura, isso mudou minha vida. Ao ler — acho que ela nem</p><p>sabia disso — ela estava me dando a chave de abrir o mundo.</p><p>Há concertos de música. Por que não concertos de leitura? Imagino uma situação impensável: o</p><p>adolescente se prepara para sair com a namorada, e a mãe lhe pergunta: "Aonde é que você vai?".</p><p>E ele responde: "Vou a um concerto de leitura. Hoje, no teatro, vai ser lido o conto A terceira</p><p>margem do rio, de Guimarães Rosa. Por que é que você não vai também com o pai?". Aí, pai e</p><p>mãe, envergonhados, desligam o Jornal Nacional e vão se aprontar…</p><p>Edições Loyola, 1994.7</p>

Mais conteúdos dessa disciplina