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<p>SE T E A RT E S LI B E R A IS:</p><p>U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>I S BN:</p><p>978-85-52993-17-9</p><p>Publicado por:</p><p>Av. Higienópolis, 174, Centro</p><p>86020-908 — Londrina (PR) — Brasil</p><p>editorapadrepio.org</p><p>Autoria de Alcuíno de Iorque,</p><p>Hugo de São Vítor e Rábano Mauro</p><p>Tradução de Equipe Christo Nihil Præponere</p><p>Capa por Klaus Bento</p><p>Diagramação por Eduardo de Oliveira</p><p>Direção de Criação por Luciano Higuchi</p><p>Edição, Organização e Revisão por Éverth Oliveira</p><p>© Todos os direitos desta edição</p><p>pertencem e estão reservados à</p><p>Editora Padre Pio.</p><p>Com exceção de pequenos excertos utilizados em análises críticas, nenhuma</p><p>parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou armazenada, em qual-</p><p>quer meio ou forma, sem a autorização prévia, e por escrito, do editor.</p><p>A criação, exploração e distribuição de quaisquer edições não autorizadas</p><p>desta obra, em qualquer formato existente atualmente ou no futuro —</p><p>incluindo mas não se limitando a texto, áudio e vídeo —, é proibida sem a</p><p>autorização prévia, e por escrito, do editor.</p><p>Redempti ac vivificati Christi sanguine, Christo nihil præponere debemus,</p><p>quia nec ille quidquam nobis præposuit.</p><p>SUMÁRIO</p><p>Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5</p><p>SETE ARTES LIBERAIS: UMA INTRODUÇÃO</p><p>1. Diálogo sobre as sete colunas da sabedoria . . . . . . . . . . . . . 9</p><p>2. Importância do trivium e do quadrivium . . . . . . . . . . . . . . . 21</p><p>3. Sete artes liberais explicadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28</p><p>EPÍLOGO</p><p>Sobre o Beato Alcuíno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53</p><p>Sobre Hugo de São Vítor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60</p><p>Sobre Rábano Mauro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64</p><p>5</p><p>PREFÁCIO</p><p>Padre Paulo Ricardo</p><p>A ineficácia do sistema educacional moderno torna-se cada dia</p><p>mais evidente. O número de escolas e universidades só aumen-</p><p>ta, enquanto o nível dos profissionais despenca. Há médicos</p><p>que ignoram os fins da medicina, psicólogos que desconhecem</p><p>a estrutura da alma humana, padres que ignoram as verdades</p><p>da teologia. Muitos diplomas universitários poderiam ser com</p><p>razão chamados de cheques sem fundo.</p><p>Há várias causas que explicam essa derrocada no ensino, causas</p><p>políticas e sociológicas, causas próximas e remotas. Entre as cau-</p><p>sas próximas de ordem intelectual, encontra-se o pragmatismo,</p><p>que reduziu os objetivos da educação à formação de profissionais.</p><p>A partir daí, não é de espantar que os pedagogos tenham despre-</p><p>zado as “línguas mortas” como o latim e o grego; afinal de contas,</p><p>se o objetivo da educação é apenas formar mão de obra qualifica-</p><p>da, por que aprender uma língua que ninguém mais fala?</p><p>Essas e outras perversões educacionais moldaram profunda-</p><p>mente o imaginário popular. Praticamente todas as pessoas</p><p>hoje veem o estudo de forma utilitária, isto é, estudam para</p><p>alcançar algum objetivo prático, como a aprovação num con-</p><p>curso público ou no vestibular, conseguir uma promoção etc.</p><p>E se nesse mar utilitarista, alguma inteligência ousa levantar-se</p><p>para buscar o conhecimento como um bem valioso em si, logo</p><p>é taxada de esquisita, irracional ou excêntrica. Falsas ideias</p><p>como esta precisam ser removidas de nossas almas.</p><p>6</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>Tradicionalmente, a educação sempre foi compreendida como</p><p>processo de formação integral do homem, no seu aspecto</p><p>cognitivo e moral. Na obra de Platão e Aristóteles, vemos ni-</p><p>tidamente qual a finalidade do ensino: formar sábios, ou seja,</p><p>pessoas notáveis pelo seu saber e virtude, capazes de ordenar e</p><p>governar adequadamente a sociedade. A pedagogia cristã, re-</p><p>conhecendo o que de bom havia nos gregos, soube absorver e</p><p>aperfeiçoar estes ideais, formando monumentos de sabedoria</p><p>como Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Alberto</p><p>Magno e tantos outros.</p><p>Para resgatar os valores tradicionais da educação, publicamos</p><p>o presente opúsculo, composto de textos dos grandes pedago-</p><p>gos medievais, Alcuíno de Iorque, Rábano Mauro e Hugo de</p><p>São Vítor. Afinal, quando uma geração perde o contato com</p><p>seu passado, urge construir pontes que lhe permitam reconec-</p><p>tar-se com suas origens.</p><p>Traduzimos alguns trechos destes autores, nos quais eles apre-</p><p>sentam a doutrina das sete artes liberais: gramática, retórica,</p><p>dialética, aritmética, geometria, música e astronomia:</p><p>• De Alcuíno, traduzimos a introdução do livro De</p><p>Grammatica, em que o educador inglês dialoga com seus</p><p>discípulos sobre os degraus que levam à sabedoria.</p><p>• De Hugo de São Vítor, traduzimos alguns capítulos de</p><p>Eruditiones Didascalicæ, em que o vitorino comenta quais</p><p>são as artes e sua relação com a filosofia, e ensina como</p><p>devem ser estudadas.</p><p>• De Rábano Mauro, traduzimos alguns capítulos do De Ins-</p><p>titutione Clericorum, em que o præceptor Germaniæ explica</p><p>resumidamente cada uma das artes e mostra como são im-</p><p>portantes para o clérigo no estudo das Sagradas Escrituras.</p><p>7</p><p>Prefácio</p><p>Nos três autores vemos claramente a finalidade da pedagogia</p><p>cristã: através das sete artes liberais, conduzir à contemplação</p><p>da verdade, contida sobretudo na Sagrada Escritura. Eis a ra-</p><p>zão por que os medievais se preocupavam não apenas com a</p><p>transmissão de conteúdo, mas com a formação moral do es-</p><p>tudante. Se o objetivo da pedagogia era levar o aluno à con-</p><p>templação da verdade e, consequentemente, a unir-se com a</p><p>Verdade suprema que é Deus, era absolutamente necessário</p><p>educá-lo para a virtude.</p><p>Disto podemos deduzir o caráter ascético que eles atribuíam ao</p><p>estudo. O estudante medieval sabia que o aprendizado da gra-</p><p>mática, por exemplo, não era um fim em si mesmo, mas ape-</p><p>nas um dos sete degraus necessários para alcançar a sabedoria.</p><p>Logo, quando estudava, tinha presente a ordem das disciplinas</p><p>e sua meta, que é a contemplação da verdade nas Sagradas Es-</p><p>crituras. Isto lhe permitia a cada momento viver o estudo com</p><p>sobrenaturalidade, como meio de união com Deus. Se nem to-</p><p>dos chegavam à meta, isso não anula o fato de que este era o</p><p>objetivo, como podemos ler nos textos que seguem.</p><p>Esperamos que este breve opúsculo seja de fato uma ponte ca-</p><p>paz de reconectar o leitor às bases pedagógicas de nossa civili-</p><p>zação. Que seja, ademais, um testemunho do vigor intelectual</p><p>que sempre tiveram os clérigos católicos, não menos dotados</p><p>nas ciências humanas do que nas divinas. Sim, a Igreja Católica</p><p>produziu religiosos e clérigos tão versados em teologia como</p><p>em astronomia, direito, música, arquitetura, enfim, em todos</p><p>os ramos do saber, porque nela é cultuado aquele único Deus</p><p>uno e trino, fonte pleníssima de toda a verdade.</p><p>SETE ARTES</p><p>LIBERAIS:</p><p>UMA INTRODUÇÃO</p><p>9</p><p>DISCÍPULOS — Ó doutíssimo mestre, ou-</p><p>vimos-te muitas vezes dizer que a filosofia</p><p>foi a mestra de todas as virtudes, e que so-</p><p>mente ela, entre todas as riquezas do sécu-</p><p>lo, nunca deixou na miséria quem a pos-</p><p>suía. Com tais palavras estimulaste-nos,</p><p>como em verdade confessamos, a procurar</p><p>tão excelente felicidade, ávidos por saber</p><p>qual seria a essência desta disciplina ou os</p><p>degraus pelos quais poder-se-ia ascender a</p><p>ela. Com efeito, tenra é nossa idade, e mui-</p><p>to débil para levantar-se sozinha sem que</p><p>tu nos estendas tua mão direita.</p><p>Sabemos que no coração está a natureza</p><p>de nosso espírito, e que na cabeça está a</p><p>dos olhos. E assim como os olhos, quan-</p><p>do são aspergidos pelo esplendor do sol ou</p><p>de qualquer outra presença de luz, podem</p><p>discernir com grande perspicácia qualquer</p><p>coisa que se lhes apresenta, assim o vigor</p><p>do espírito torna-se capaz de acolher a sa-</p><p>bedoria se há quem comece a ilustrá-lo.</p><p>DISCIPULI — Audivimus, o</p><p>doctissime magister! sæpius te</p><p>dicentem quod philosophia es-</p><p>set omnium virtutum magistra,</p><p>et hæc sola fuisset quæ inter</p><p>omnes sæculi divitias nun-</p><p>quam miserum se possiden-</p><p>tem reliquisset. incitasti nos,</p><p>ut vere fatemur, his dictis</p><p>ressuscitou; logo, é falso o antecedente. O</p><p>antecedente é que não há ressurreição dos</p><p>mortos; logo, há ressurreição dos mortos.</p><p>Em suma: Se não há ressurreição dos mor-</p><p>tos, também Cristo não ressuscitou; ora,</p><p>abundantius quam gravitatem</p><p>decet, verborum ornamenta</p><p>consectans, sophisticus dicatur.</p><p>“Sunt etiam veræ connexiones</p><p>ratiocinationis falsas habentes</p><p>sententias, quæ consequuntur</p><p>errorem illius cum quo agitur.</p><p>Quæ tamen ad hoc inferuntur</p><p>a bono et docto homine, ut his</p><p>erubescens ille [qui] errorem</p><p>sequitur, eumdem relinquat er-</p><p>rorem, qui si in eodem manere</p><p>voluerit, necesse est ut etiam</p><p>illa quæ damnat tenere cogatur.</p><p>“Non enim vera inferebat</p><p>Apostolus cum diceret: Neque</p><p>Christus resurrexit. et illa alia:</p><p>Inanis est fides nostra, inanis est</p><p>prædicatio nostra (1 cor., xV).</p><p>Quæ omnino falsa sunt, quia</p><p>et christus resurrexit, et non</p><p>erat inanis prædicatio eorum</p><p>qui hoc annuntiabant, nec fides</p><p>eorum qui hoc crediderant. At</p><p>quia falsum est quod sequitur,</p><p>necesse est ut falsum sit quod</p><p>præcedit. Præcedit enim non</p><p>esse resurrectionem mortuo-</p><p>rum, quod dicebant illi, quorum</p><p>errorem destruere voluit Apo-</p><p>stolus. Porro illam sententiam</p><p>præcedentem, qua dicebant non</p><p>esse resurrectionem mortuo-</p><p>rum, necessario sequitur: Neque</p><p>Christus resurrexit. Hoc autem</p><p>quod sequitur, falsum est; chri-</p><p>stus enim resurrexit: falsum est</p><p>ergo quod præcedit. Præcedit</p><p>autem non esse resurrectionem</p><p>mortuorum: est igitur resur-</p><p>rectio mortuorum. Quod totum</p><p>breviter ita dicitur: Si non est</p><p>resurrectio mortuorum, neque</p><p>christus resurrexit; christus</p><p>37</p><p>3. Sete ArteS liBerAiS exPlicADAS</p><p>Cristo ressuscitou; logo, há ressurreição</p><p>dos mortos.</p><p>Como há verdadeiros nexos não só entre</p><p>sentenças verdadeiras, mas também entre</p><p>as falsas, é fácil aprender a verdade das co-</p><p>nexões, inclusive em escolas não ligadas</p><p>à Igreja; contudo, a verdade das senten-</p><p>ças deve ser investigada nos santos livros</p><p>eclesiásticos. Não obstante, a verdade das</p><p>conexões não foi instituída pelos homens,</p><p>mas percebida e notada por eles, para que a</p><p>pudessem aprender ou ensinar; pois é per-</p><p>pétua e divinamente instituída na natureza</p><p>das coisas feitas por Deus, seu autor.</p><p>Tendo já falado sobre a lógica, falaremos</p><p>em seguida sobre a matemática.</p><p>IV. Sobre a matemática</p><p>Em latim, podemos chamar à matemática</p><p>ciência doutrinal que estuda a quantidade</p><p>abstrata. Chama-se abstrata a quantidade</p><p>de que tratamos apenas no raciocínio, à</p><p>qual, por obra do intelecto, separamos da</p><p>matéria, ou de outros acidentes (por exem-</p><p>plo: par ou ímpar), ou de coisas semelhan-</p><p>tes. Divide-se em aritmética, música, geo-</p><p>metria, astronomia, das quais falaremos</p><p>separadamente segundo a ordem.</p><p>autem resurrexit; est igitur re-</p><p>surrectio mortuorum.</p><p>“cum ergo sint veræ connexio-</p><p>nes, non solum verarum, sed</p><p>etiam falsarum sententiarum,</p><p>facile est veritatem connexio-</p><p>num etiam in scholis illis disce-</p><p>re, quæ præter ecclesiam sunt,</p><p>sententiarum autem veritates in</p><p>sanctis libris ecclesiasticis inve-</p><p>stigandæ sunt. ipsa tamen veri-</p><p>tas connexionum non instituta,</p><p>sed animadversa est ab homi-</p><p>nibus et notata, ut eam possint</p><p>vel discere vel docere. Nam est</p><p>in rerum ratione perpetua et</p><p>divinitus instituta” (August., l.</p><p>c., ii, 31), quæ a Deo auctore</p><p>sunt facta.</p><p>Sed quia de logica iam diximus,</p><p>de mathematica consequenter</p><p>dicemus.</p><p>CAPUT IV. De</p><p>mathematica</p><p>“Mathematica est quam latine</p><p>possumus dicere doctrinalem</p><p>scientiam, quæ abstractam con-</p><p>siderat quantitatem. Abstracta</p><p>enim quantitas dicitur, quam</p><p>intellectu a materia separantes</p><p>vel ab aliis accidentibus, ut est,</p><p>par, impar, vel ab aliis huiusce-</p><p>modi, quæ in sola ratiocinatio-</p><p>ne tractamus” (isid. Etym., iii).</p><p>Hæc dividitur “in arithmeti-</p><p>cam, musicam, geometriam,</p><p>astronomiam”: de quibus sin-</p><p>gulis secundum ordinem dis-</p><p>seremus.</p><p>38</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>V. Sobre a aritmética</p><p>Aritmética é a disciplina da quantidade</p><p>numerável enquanto tal. É a disciplina dos</p><p>números, pois os gregos chamam o núme-</p><p>ro de ἀριθμός (arithmon). Os escritores de</p><p>obras seculares a puseram em primeiro</p><p>lugar entre as matemáticas porque ela não</p><p>carece de nenhuma outra disciplina para</p><p>existir. Já as posteriores, música, geometria</p><p>e astronomia, carecem de seu auxílio para</p><p>existir e para subsistir.</p><p>Josefo, o mais douto entre os hebreus, no</p><p>livro das Antiguidades (título 9), afirma</p><p>que Abraão foi o primeiro a ensinar arit-</p><p>mética e astronomia aos egípcios; os quais,</p><p>por serem homens de engenho agudíssi-</p><p>mo, receberam tais sementes e cultivaram</p><p>para si as outras disciplinas mais abundan-</p><p>temente. Com razão nossos Santos Padres</p><p>aconselham aos mais zelosos o estudo des-</p><p>tas disciplinas, pois que através delas o ape-</p><p>tite é em grande parte removido das coisas</p><p>carnais, e elas fazem desejar aquilo que, au-</p><p>xiliados pelo Senhor, só podemos ver com</p><p>o coração.</p><p>Portanto, não devemos desprezar a doutrina</p><p>do número, tão estimada em muitos lugares</p><p>da Sagrada Escritura, como consta aos leito-</p><p>res diligentes. Não sem motivo se disse em</p><p>louvor a Deus: “Dispuseste todas as coisas</p><p>com medida, número e peso” (Sb 11, 21).</p><p>CAPUT V. De arithmetica</p><p>“Arithmetica est disciplina quan-</p><p>titatis numerabilis secundum se”</p><p>(cassiod., Inst. litt., l. 2, c. 3). ipsa</p><p>“est enim disciplina numerorum</p><p>(græci enim numerum ἀριθμός,</p><p>arithmon, vocant), quam scrip-</p><p>tores litterarum sæcularium, inter</p><p>disciplinas mathematicas ideo</p><p>primam esse voluerunt, quoniam</p><p>ipsa ut sit, nulla alia indiget disci-</p><p>plina. Musica autem et geometria</p><p>et astronomia quæ sequuntur, ut</p><p>sint atque subsistant, istius egent</p><p>auxilio” (isid., Etym., iii, 1).</p><p>“Scire autem debemus iose-</p><p>phum Hebræorum doctis-</p><p>simum in primo libro Anti-</p><p>quitatum, titulo nono, dicere</p><p>arithmeticam et astronomiam</p><p>Abraham primum Ægyptiis</p><p>tradidisse; unde semina su-</p><p>scipientes, ut sunt homines</p><p>acerrimi ingenii, excoluisse</p><p>sibi reliquas latius disciplinas.</p><p>Quas merito sancti patres no-</p><p>stri legendas studiosissimis</p><p>persuadent, quoniam ex magna</p><p>parte per eas a carnalibus rebus</p><p>appetitus abstrahitur, et faciu-</p><p>net desiderare quæ, præstante</p><p>Domino, solo possumus corde</p><p>respicere” (cassiod., l. 2, c. 3).</p><p>“unde ratio numeri contem-</p><p>nenda non est, quæ in multis</p><p>sanctarum Scripturarum locis</p><p>quam magni existimanda sit,</p><p>lucet diligenter intuentibus.</p><p>Nec frustra in laudibus Dei</p><p>dictum est (Sap. xi): Omnia in</p><p>mensura et numero et pondere</p><p>disposuisti” (August. De Civit.</p><p>Dei, xi, cp. 30).</p><p>39</p><p>3. Sete ArteS liBerAiS exPlicADAS</p><p>Cada número encerra-se de tal modo em</p><p>suas propriedades, que nenhum deles pode</p><p>ser igual a qualquer outro. Logo, são desi-</p><p>guais entre si e diversos, e cada um indi-</p><p>vidualmente é diverso, cada um é finito, e</p><p>todos são infinitos.10</p><p>Também aqueles aos quais Platão ensinou</p><p>que Deus fabricou o mundo através de nú-</p><p>meros, não ousarão desprezá-los e afirmar</p><p>que não pertencem ao conhecimento de</p><p>Deus. E entre nós, o profeta falou sobre</p><p>Deus: “Faz correr o século no número” (Is</p><p>40, 26).11 E o Salvador disse no Evangelho:</p><p>“Todos os vossos cabelos estão numera-</p><p>dos” (Mt 10, 30).</p><p>Com efeito, embora venham à mente</p><p>certos corpúsculos imaginários quando</p><p>pensamos, por exemplo, na composição,</p><p>ordem ou divisão do número 6, contudo,</p><p>não consente interiormente com eles aque-</p><p>la mais forte e sólida razão que vem do</p><p>alto e contém a força do número, por cujo</p><p>olhar diz-se confiantemente que a unidade</p><p>numérica não pode ser dividida em mui-</p><p>tas partes, enquanto os corpos dividem-se</p><p>10. A série dos números não é infinita própria e po-</p><p>sitivamente, pois tal atributo compete somente a</p><p>Deus, único ente cuja essência é ilimitada e infinita.</p><p>Ao contrário, os números são imprópria e negativa-</p><p>mente infinitos, na medida em que sua contagem</p><p>pode se estender indefinidamente. (N.T.)</p><p>11. Segundo a edição dos Setenta, ou Septuaginta.</p><p>(N.T.)</p><p>“ita vero suis quisque numerus</p><p>proprietatibus teminatur, ut</p><p>nullus eorum par esse cuiquam</p><p>alteri possit. ergo et dispares</p><p>inter se atque diversi sunt, et</p><p>singuli quique</p><p>diversi sunt, et</p><p>singuli quique finiti sunt, et</p><p>omnes infiniti sunt” (August.,</p><p>De Civit. Dei, xii, cp. 18).</p><p>“Nec audebunt isti contemnere</p><p>numeros, et eos ad scientiam</p><p>Dei non pertinere, apud quos</p><p>Plato Deum magna auctoritate</p><p>commendat mundum nume-</p><p>ris fabricantem. et apud nos</p><p>Propheta de Deo dicit: Qui</p><p>profert numerose sæculum. et</p><p>Salvator in evangelio (Matth.</p><p>x): Capilli, inquit, vestri omnes</p><p>numerati sunt” (Ibid.).</p><p>Quamvis enim se obiectent</p><p>aspectui mentis, quasi corpu-</p><p>sculorum quædam simulacra,</p><p>cum senarii numeri compositio,</p><p>vel ordo, vel partitio cogitatur,</p><p>tamen validior et præpotent-</p><p>ior desuper ratio non eis an-</p><p>nuit interius, quæ vim numeri</p><p>continet, per quem contuitum</p><p>fidenter dicit id quod dicitur</p><p>unum in numeris, in nullas</p><p>partes dividi posse, nulla au-</p><p>tem corpora nisi in partes in-</p><p>numerabiles dividi, et facilius</p><p>40</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>em partes inumeráveis; e que seria mais</p><p>fácil passarem o céu e a terra, que foram</p><p>fabricados segundo o número 6, do que o</p><p>[próprio] número 6 não ser composto de</p><p>suas partes. Por isso, não podemos dizer</p><p>que a perfeição do número 6 consiste em</p><p>ter Deus completado suas obras em seis</p><p>dias; mas, ao contrário, Deus completou</p><p>suas obras em seis dias, porque o número</p><p>6 é perfeito. Portanto, ainda que estas não</p><p>existissem, aquele seria perfeito; mas se</p><p>aquele não fosse perfeito, estas não teriam</p><p>sido feitas segundo aquele.</p><p>A ignorância dos números impede a com-</p><p>preensão de muitas coisas contidas na Es-</p><p>critura em sentido figurado e místico. A</p><p>mente engenhosa, por exemplo, não pode</p><p>deixar de se questionar por que Moisés,</p><p>Elias e mesmo o Senhor jejuaram por</p><p>quarenta dias. Tal ação inclui um emara-</p><p>nhado simbólico que não pode ser des-</p><p>vendado sem o conhecimento e a reflexão</p><p>sobre este número, o qual contém o 10</p><p>contado quatro vezes, como se o conhe-</p><p>cimento de todas as coisas estivesse enco-</p><p>berto pelas temporais.</p><p>Com efeito, o curso dos dias e dos anos de-</p><p>senvolve-se com base no número 4: os dias</p><p>correm no espaço das horas matutinas,</p><p>meridianas, vespertinas e noturnas; e os</p><p>anos, segundo os meses da primavera, do</p><p>verão, do outono e do inverno. Portanto,</p><p>em vista da eternidade na qual queremos</p><p>cælum et terram transire, quæ</p><p>secundum senarium nume-</p><p>rum fabricata sunt, quam effici</p><p>posse ut senarius numerus non</p><p>suis partibus compleatur. Qua-</p><p>mobrem non possumus dicere</p><p>propterea senarium numerum</p><p>esse perfectum quod sex diebus</p><p>perfecit Deus omnia opera sua,</p><p>sed propterea Deum sex diebus</p><p>perfecisse opera sua, quia sena-</p><p>rius numerus perfectus. itaque</p><p>etiam si ista non essent, per-</p><p>fectus ille esset; nisi autem ille</p><p>perfectus esset, ista secundum</p><p>eum perfecta non essent.</p><p>“Numerorum etiam imperi-</p><p>tia multa facit non intelligi,</p><p>translate ac mystice posita in</p><p>Scripturis. ingenium quippe,</p><p>ut ita dixerim, ingenium non</p><p>potest non moveri quid sibi</p><p>velit, quod et Moyses et elias</p><p>et ipse Dominus quadragin-</p><p>ta diebus ieiunaverunt. cuius</p><p>actionis figuratus quidam no-</p><p>dus sine huius numeri cogni-</p><p>tione et consideratione non</p><p>solvitur. Habet enim denarium</p><p>quater, tamquam cognitionem</p><p>omnium rerum intextam tem-</p><p>poribus.</p><p>“Quaternario namque numero,</p><p>et diurna et annua curricula</p><p>peraguntur: diurna matutinis,</p><p>meridianis, vespertinis, noctur-</p><p>nisque horarum spatiis; annua</p><p>vernis, æstivis, autumnalibus,</p><p>hiemalibusque mensibus. A</p><p>temporum autem delectatione</p><p>dum in temporibus vivimus,</p><p>propter æternitatem in qua vi-</p><p>41</p><p>3. Sete ArteS liBerAiS exPlicADAS</p><p>viver, devemos nos abster e jejuar do pra-</p><p>zer das coisas temporais enquanto vivemos</p><p>no tempo; se bem que a doutrina do des-</p><p>prezo das coisas temporais, e do desejo das</p><p>eternas, se nos apresente com o [próprio]</p><p>fluxo do tempo.</p><p>Já o número 10 significa o conhecimen-</p><p>to do Criador e da criatura. O ser trino</p><p>é próprio do Criador, enquanto o núme-</p><p>ro 7 indica a criatura, segundo a vida e o</p><p>corpo. Com efeito, na vida há três coisas,</p><p>donde também se diz que Deus deve ser</p><p>amado com todo o coração, com toda a</p><p>alma e com toda a mente; no corpo apa-</p><p>recem evidentemente os quatro elementos</p><p>dos quais é composto. Logo, quando este</p><p>número 10 se apresenta a nós temporal-</p><p>mente, ou seja, quando é multiplicado por</p><p>4, somos advertidos a viver longe dos pra-</p><p>zeres temporais em castidade e continên-</p><p>cia, isto é, a jejuar quarenta dias. A isto</p><p>nos adverte a Lei, personificada em Moi-</p><p>sés, a profecia, personificada em Elias, e</p><p>o próprio Senhor, que, recebendo o teste-</p><p>munho da Lei e dos Profetas, ali no monte</p><p>brilhou entre eles diante dos três discípu-</p><p>los que o olhavam estupefatos.</p><p>Em seguida, pergunta-se como do núme-</p><p>ro 40 se forma o 50, que é tão sagrado em</p><p>nossa religião por causa de Pentecostes; e</p><p>como, multiplicado por três — em razão</p><p>dos três tempos: antes da lei, sob a lei, e sob</p><p>a graça; ou do acréscimo eminentíssimo</p><p>vere volumus, abstinendum et</p><p>ieiunandum est, quamvis tem-</p><p>porum cursibus ipsa insinuetur</p><p>nobis doctrina contemnendo-</p><p>rum temporum, et appetendo-</p><p>rum æternorum.</p><p>“Porro autem denarius nume-</p><p>rus creatoris atque creaturæ si-</p><p>gnificat scientiam; nam trinitas</p><p>creatoris est, septenarius autem</p><p>numerus creaturam indicat,</p><p>propter vitam et corpus. Nam</p><p>in illa tria sunt: unde etiam toto</p><p>corde, tota anima, tota mente</p><p>diligendus est Deus; in corpore</p><p>autem manifestissima quatuor</p><p>apparent, quibus constat, ele-</p><p>menta. Hoc ergo denario dum</p><p>temporaliter nobis insinuatur,</p><p>id est, quater ducatur, caste et</p><p>continenter a temporum de-</p><p>lectatione vivere, hoc est qua-</p><p>draginta diebus ieiunare mone-</p><p>mur. Hoc lex, cuius persona est</p><p>in Moyse, hoc prophetia, cuius</p><p>personam gerit elias, hoc ipse</p><p>Dominus monet; qui tamquam</p><p>testimonium habens ex lege et</p><p>Prophetis, medius inter illos in</p><p>monte, tribus discipulis viden-</p><p>tibus atque stupentibus claruit.</p><p>“Deinde ita quæritur, quomodo</p><p>quinquagenarius de quadrage-</p><p>nario numero existat, qui non</p><p>mediocriter in nostra religione</p><p>sacratus est propter Penteco-</p><p>sten; et quomodo ter ductus</p><p>propter tria tempora, ante le-</p><p>gem, sub lege, sub gratia, vel</p><p>propter nomen Patris et filii et</p><p>42</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>da própria Trindade, pelos nomes do Pai</p><p>e do Filho e do Espírito Santo —, refira-se</p><p>ao mistério da Igreja perfeitamente purifi-</p><p>cada; e como enfim chega aos 153 peixes,</p><p>recolhidos pelas redes que foram lançadas</p><p>à direita depois da Ressurreição do Senhor</p><p>(cf. Jo 21, 11). Assim, em muitíssimas ou-</p><p>tras formas numéricas da Sagrada Escri-</p><p>tura estão encerradas certas comparações</p><p>misteriosas, que permanecem ocultas ao</p><p>leitor dada a ignorância dos números.</p><p>Por conseguinte, os que almejam chegar</p><p>ao conhecimento da Sagrada Escritura,</p><p>devem estudar intensamente esta arte; e</p><p>quando a tiverem aprendido, entenderão</p><p>mais facilmente os místicos números [con-</p><p>tidos] nos livros divinos.</p><p>VI. Sobre a geometria</p><p>Passemos agora à geometria, que é a des-</p><p>crição contemplativa das formas, e o mo-</p><p>delo visível dos filósofos, porque, segundo</p><p>eles, seu [deus] Júpiter12 geometrizou em</p><p>suas próprias obras, como se diz nos cé-</p><p>lebres panegíricos. O que não sei se [lhes]</p><p>12. “Júpiter é o deus romano assimilado a Zeus. É por</p><p>excelência o grande deus do panteão romano. Surge</p><p>como a divindade do céu, da luz divina, das condi-</p><p>ções climatéricas, e também do raio e do trovão.”</p><p>(Pierre Grimal, Dicionário da Mitologia Grega e Roma-</p><p>na, trad. Victor Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand</p><p>Brasil, p. 261).</p><p>Spiritus Sancti, adiuncta emi-</p><p>nentius ipsa trinitate, ad pur-</p><p>gatissimæ ecclesiæ mysterium</p><p>referatur perveniatque ad cen-</p><p>tum quinquaginta tres pisces,</p><p>quos retia post resurrectionem</p><p>Domini in dexteram partem</p><p>missa ceperunt. ita multis aliis</p><p>atque aliis numerorum formis</p><p>quædam similitudinum in san-</p><p>ctis libris secreta ponuntur,</p><p>quæ propter numerorum impe-</p><p>ritiam legentibus clausa sunt”</p><p>(August., De Doct. Crist., lib.</p><p>2, c. 16).</p><p>Quapropter necesse est eis</p><p>qui volunt ad sacræ Scripturæ</p><p>notitiam pervenire, ut hanc</p><p>artem intente discant; et</p><p>cum</p><p>didicerint, mysticos numeros in</p><p>divinis libris facilius hinc intel-</p><p>ligant.</p><p>CAPUT VI. De geometria</p><p>“Nunc ad geometria veniamus,</p><p>quæ est descriptio contempla-</p><p>tiva formarum, documentum</p><p>etiam visuale philosophorum;</p><p>quod, ut præconiis celeberri-</p><p>mis offerant, iovem suum in</p><p>operibus propiis geometriare</p><p>testantur. Quod nescio utrum</p><p>43</p><p>3. Sete ArteS liBerAiS exPlicADAS</p><p>é aplicado em louvor ou repreensão, por-</p><p>quanto imaginam que Júpiter faça no céu o</p><p>que eles representam na areia.</p><p>Mas se salutarmente aplicada ao verdadei-</p><p>ro Criador e Deus onipotente, tal sentença</p><p>pode ser verdadeira. Com efeito, a santa di-</p><p>vindade geometriza, por assim dizer, quan-</p><p>do concede diversas formas e espécies às</p><p>suas criaturas, cuja existência conserva até</p><p>hoje; quando distribuiu com venerável po-</p><p>der os movimentos das estrelas, constituin-</p><p>do as fixas em certas posições, e estabele-</p><p>cendo as trajetórias por onde correriam</p><p>as móveis. Pois tudo que é bem disposto e</p><p>acabado, pode ser aplicado às qualidades</p><p>desta disciplina.</p><p>Geometria em latim significa medição da</p><p>terra e assim é definida. A geometria é a</p><p>ciência da extensão imóvel e das formas,</p><p>pois, como alguns dizem, foi pelas diversas</p><p>formas desta ciência que, pela primeira vez,</p><p>as terras do Egito foram repartidas entre</p><p>seus proprietários. Antigamente, os mestres</p><p>desta ciência eram chamados medidores.</p><p>Segundo Varrão, o mais erudito entre os la-</p><p>tinos, a causa deste nome foi a seguinte: no</p><p>início, ao estabelecerem as dimensões das</p><p>terras em certos limites, os homens garan-</p><p>tiram os benefícios da paz entre povos nô-</p><p>mades; depois repartiram o círculo do ano</p><p>inteiro conforme o número dos meses, que</p><p>são chamados meses justamente por medi-</p><p>rem o ano. Mas depois de tais descobertas,</p><p>laudibus an vituperationibus</p><p>applicetur, quando quod illi</p><p>pingunt in pulvere coloreo, io-</p><p>vem facere mentiuntur in cælo.</p><p>“Quod si vero creatori et om-</p><p>nipotenti Deo salubriter ap-</p><p>plicetur, potest hæc sententia</p><p>forsitan convenire veritate.</p><p>geometriat enim, si fas est di-</p><p>cere, sancta divinitas, quando</p><p>creaturæ suæ, quas hodieque</p><p>facit existere, diversas species</p><p>formulasque concedit; quando</p><p>cursus stellarum potentia ve-</p><p>neranda distribuit, et statutis</p><p>lineis fecit currere, quæ moven-</p><p>tur, certaque sede, quæ sunt fixa</p><p>constituit. Quidquid enim bene</p><p>disponitur atque completur,</p><p>potest disciplinæ huius qualita-</p><p>tibus applicari” (cassiod., Inst.</p><p>litt., l. 2, c. 6).</p><p>“geometria latine dicitur terræ</p><p>dimensio” (Ibid.), sicque defi-</p><p>nitur. “geometria est discipli-</p><p>na magnitudinis immobilis et</p><p>formarum, quoniam per diver-</p><p>sas formas ipsius disciplinæ, ut</p><p>nonnuli dicunt, primum Æg-</p><p>yptus dominis propriis fertur</p><p>esse partitus. cuius disciplinæ</p><p>magistri mensores ante dice-</p><p>bantur.</p><p>“Sed Varro, peritissimus latino-</p><p>rum huius nominis causam sic</p><p>exstitisse commemorat dicens,</p><p>prius quidem homines per di-</p><p>mensiones terrarum terminis</p><p>positis vagantibus populis pacis</p><p>utilia præstitisse; deinde to-</p><p>tius anni circulum menstruali</p><p>numero fuisse partitos; unde</p><p>et ipsi menses quod annum</p><p>metiantur, dicti sunt. Verum</p><p>postquam ista reperta sunt,</p><p>44</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>provocados a conhecer as [realidades] in-</p><p>visíveis, os estudiosos começaram a inves-</p><p>tigar a distância entre a lua e a terra, entre</p><p>o próprio sol e a lua; e [mesmo] qual era a</p><p>distância entre eles e o vértice do céu, algo</p><p>que segundo Varrão foi alcançado pelos</p><p>geômetras mais versados. Narra também</p><p>que a dimensão da terra inteira foi deduzi-</p><p>da com um cálculo provável, e que por isso</p><p>a própria ciência foi chamada geometria,</p><p>nome que conserva há vários séculos.</p><p>Portanto, esta ciência fora observada na</p><p>edificação do tabernáculo e do templo,</p><p>quando se levou em conta a disposição da</p><p>linha reta, do círculo, da esfera, do hemis-</p><p>fério, da forma quadrangular e das demais</p><p>figuras. O conhecimento destas coisas aju-</p><p>da muito a quem procura compreender o</p><p>sentido espiritual [da Escritura].</p><p>VII. Sobre a música</p><p>Música é a disciplina que trata de quantida-</p><p>des relativas, isto é, das que se encontram</p><p>nos sons, como dobro, triplo, quádruplo e</p><p>similares, que são chamadas relações.13</p><p>13. O termo relações designa aqui uma das dez cate-</p><p>gorias aristotélicas. Aristóteles defendia que, além</p><p>das coisas, havia relações reais entre as coisas. Se-</p><p>gundo ele, há três tipos de relações: as que derivam</p><p>da quantidade (v.g.: dobro e metade), da ação e da</p><p>paixão (v.g.: paternidade e filiação) e as que derivam</p><p>do conhecimento (v.g.: entre o objeto conhecido e</p><p>provocati studiosi ad illa invi-</p><p>sibilia cognoscenda, coeperunt</p><p>quærere, quanto spatio a terra</p><p>luna, a luna sol ipse distaret; et</p><p>usque ad verticem cæli quanta</p><p>se mensura distenderet, quod</p><p>peritissimos geometras assecu-</p><p>tos esse commemorat. tunc et</p><p>dimensionem universæ terræ</p><p>probabili refert ratione con-</p><p>lectam; ideoque factum, ut di-</p><p>sciplina ipsa geometriæ nomen</p><p>acciperet, quod per sæcula lon-</p><p>ga custodit” (Ibid.).</p><p>Hæc igitur disciplina in taber-</p><p>naculi templique ædificatione</p><p>servata est, ubi linealis men-</p><p>suræ unius et circuli ac spheræ</p><p>atque hemispherion, quadran-</p><p>gulæ quoque formæ, et cæterar-</p><p>um figurarum dispositio habita</p><p>est; quorum omnium notitia ad</p><p>spiritalem intellectum non pa-</p><p>rum adiuvat tractatorem.</p><p>CAPUT VII. De musica</p><p>“Musica est disciplina quæ de</p><p>numeris loquitur qui ad aliquid</p><p>sunt, id est, his qui inveniuntur</p><p>in sonis: ut duplum, triplum,</p><p>quadruplum, et his similia quæ</p><p>dicuntur ad aliquid” (cassiod.,</p><p>Inst. litt., l. 2, c. 5).</p><p>45</p><p>3. Sete ArteS liBerAiS exPlicADAS</p><p>Esta disciplina é tão nobre e tão útil que,</p><p>sem ela, não é possível cumprir as funções</p><p>eclesiásticas como convém. Pois tudo que é</p><p>pronunciado decentemente nas leituras, e</p><p>tudo que dos salmos é cantado suavemen-</p><p>te na igreja, é regulado pelo conhecimento</p><p>desta disciplina; e por ela não só lemos e</p><p>salmodiamos na igreja, mas cumprimos</p><p>adequadamente todo o serviço de Deus.</p><p>A música é uma disciplina que se difunde</p><p>por todos os atos da nossa vida, e da se-</p><p>guinte maneira: primeiro, se obedecemos</p><p>aos mandamentos do Criador e, com almas</p><p>puras, sujeitamo-nos às regras por ele fixa-</p><p>das. Com efeito, tudo aquilo que dizemos</p><p>ou [se] somos movidos interiormente pelas</p><p>vibrações das veias, [tudo isto] demonstra</p><p>estar associado ao poder da harmonia atra-</p><p>vés dos ritmos musicais. Ora, a música é a</p><p>ciência da correta modulação. Donde, se</p><p>nos tratamos com boas maneiras, demons-</p><p>tramos estar sempre associados a esta dis-</p><p>ciplina; mas quando praticamos iniquida-</p><p>des, não temos música.</p><p>Também o céu e a terra, ou tudo que neles</p><p>acontece por disposição divina, não existe</p><p>o conhecedor). Por exemplo: entre uma caixa de 1</p><p>metro e outra de 2 metros, há, além das duas caixas,</p><p>uma relação de metade que está na caixa de 1 metro,</p><p>e uma relação de dobro que está na de 2 metros; esse</p><p>é um exemplo de relação de quantidade. O que Rá-</p><p>bano diz, portanto, é que na música há relações deste</p><p>tipo. (N.T.)</p><p>Hæc ergo disciplina tam nobilis</p><p>est, tamque utilis, ut qui ea ca-</p><p>ruerit, ecclesiasticum officium</p><p>congrue implere non possit.</p><p>Quidquid enim in lectionibus</p><p>decenter pronuntiatur, ac qui-</p><p>dquid de psalmis suaviter in</p><p>ecclesia modulatur, huius disci-</p><p>plinæ scientia ita temperatur, et</p><p>non solum per hanc legimus et</p><p>psallimus in ecclesia, imo omne</p><p>servitium Dei rite implemus.</p><p>“Musica ergo disciplina per</p><p>omnes actus vitæ nostræ hac</p><p>ratione diffunditur: primum si</p><p>creatoris mandata faciamus et</p><p>puris mentibus, statutis ab eo</p><p>regulis, serviamus. Quidquid</p><p>enim loquimur, vel intrinsecus</p><p>venarum pulsibus commove-</p><p>mur, per musicos rhythmos</p><p>harmoniæ virtutibus probatur</p><p>esse sociatum. Musica quippe</p><p>scientia est bene modulandi.</p><p>Quod si nos bona conversa-</p><p>tione tractamus, tali disciplinæ</p><p>probamur semper esse sociati;</p><p>quando vero iniquitates geri-</p><p>mus, musicam non habemus.</p><p>“cælum quoque et terra, vel om-</p><p>nia quæ in eis superna dispensa-</p><p>tione peraguntur, non sunt nisi</p><p>46</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U</p><p>ÇÃO</p><p>sem a disciplina musical, pois Pitágoras</p><p>atesta que este mundo foi criado pela mú-</p><p>sica e pode ser governado por ela.</p><p>A música também está muito unida à pró-</p><p>pria religião cristã. Daí que não poucos</p><p>conteúdos ficam inacessíveis e ocultos</p><p>dada a ignorância de algumas coisas no</p><p>campo musical. Uma pessoa, por exemplo,</p><p>desvendou engenhosamente algumas me-</p><p>táforas a partir da diferença entre saltério</p><p>e cítara. Também quanto ao saltério de dez</p><p>cordas, é de interesse dos eruditos investi-</p><p>gar se há aí alguma regra musical que exija</p><p>este número de cordas, ou, não a havendo,</p><p>se tal número deve ser antes tomado em</p><p>sentido místico, quer em referência aos</p><p>dez mandamentos (em cujo caso não pode</p><p>ser referido senão ao Criador e à criatura),</p><p>quer se trate do número 10 em si mesmo</p><p>como expusemos acima.</p><p>Ademais, o número correspondente ao</p><p>tempo de construção do templo, que</p><p>como narra o Evangelho foi de 46 anos,</p><p>tem um não sei quê de musical; e referido</p><p>à formação do corpo do Senhor, em vista</p><p>da qual se fez menção do templo, obriga</p><p>alguns hereges a confessar que o Filho</p><p>de Deus assumiu um corpo verdadeiro e</p><p>humano, não um fictício. Assim, pois, em</p><p>muitos lugares da Sagrada Escritura en-</p><p>contramos o número e a música mencio-</p><p>nados com honra.</p><p>musica disciplina, cum Pythago-</p><p>ras hunc mundum per musicam</p><p>conditum, et per eam gubernari</p><p>posse testatur” (Ibid.).</p><p>“Hæc et in ipsa quoque reli-</p><p>gione christiana valde per-</p><p>mixta est” (Ibid.) ac inde fit ut</p><p>“non pauca etiam claudat atque</p><p>obtegat nonnularum rerum</p><p>musicarum ignorantia. Nam</p><p>et de psalterii et citharæ diffe-</p><p>rentia, quidam non inconcinne</p><p>aliquas rerum figuras aperuit;</p><p>et decem cordarum psalterium</p><p>non importune inter doctos</p><p>quæritur, utrum habeat aliquam</p><p>musicæ legem, quæ ad tantum</p><p>nervorum numerum cogat; an</p><p>vero, si non habet, eo ipso ma-</p><p>gis sacrate accipiendus sit ipse</p><p>numerus, vel propter decalo-</p><p>gum legis, de quo item numero</p><p>si quæratur, non nisi ad crea-</p><p>torem creaturamque referen-</p><p>dus est, vel propter expositum</p><p>ipsum denarium” (August., De</p><p>Doc. Crist., ii, 16).</p><p>“et ille numerus ædificationis</p><p>templi qui commemoratur in</p><p>evangelio, quadraginta scilicet</p><p>et sex annorum, nescio quid</p><p>musicum sonat; et relatus ad</p><p>fabricam Dominici corporis,</p><p>propter quam templi mentio</p><p>facta est, cogit nonnulos hæret-</p><p>icos confiteri filium Dei non</p><p>falso sed vero et humano cor-</p><p>pore indutum. itaque et nume-</p><p>rum et musicam plerisque locis</p><p>in sanctis Scripturis honorabi-</p><p>liter posita invenimus” (Ibid.).</p><p>47</p><p>3. Sete ArteS liBerAiS exPlicADAS</p><p>Portanto, não devemos dar ouvido às fal-</p><p>sidades das superstições dos pagãos, que</p><p>representaram as nove Musas como filhas</p><p>de Júpiter e Mnemósine. Varrão os refuta,</p><p>e não sei se pode haver entre eles alguém</p><p>mais versado e interessado nestas coisas. Se-</p><p>gundo ele, certa cidade (não me recordo o</p><p>nome) encomendou a três artífices três está-</p><p>tuas das Musas, que seriam colocadas como</p><p>oferta no templo de Apolo, e seriam esco-</p><p>lhidas e compradas, de preferência, aquelas</p><p>do artista que lograsse fabricar as mais be-</p><p>las. Aconteceu que os artífices produziram</p><p>obras igualmente belas, e a cidade gostou</p><p>das nove e comprou todas para que fossem</p><p>destinadas ao templo de Apolo. E Varrão</p><p>[conclui] dizendo que posteriormente o</p><p>poeta Hesíodo deu nome a cada uma.</p><p>Logo, não foi Júpiter que gerou as nove</p><p>Musas, mas três artesãos fabricaram três</p><p>delas cada um.14 E aquela cidade encomen-</p><p>14. “As Musas são filhas de Mnemósine e de Zeus e</p><p>são nove irmãs, fruto de nove noites de amor. Ou-</p><p>tras tradições dão-nas como filhas de Harmonia, ou</p><p>então de Úrano e Geia (a Terra e o Céu). Todas estas</p><p>genealogias são evidentemente simbólicas e ligam-</p><p>-se, de forma mais ou menos directa, a concepções</p><p>filosóficas sobre o primado da Música no Universo.</p><p>De facto, as Musas não são somente as Cantoras di-</p><p>vinas, cujos coros e hinos alegram Zeus e todos os</p><p>deuses; presidem também ao Pensamento em todas</p><p>as suas formas: eloquência, persuasão, sabedoria,</p><p>história, matemáticas, astronomia.” (Pierre Grimal,</p><p>Dicionário da Mitologia Grega e Romana, trad. Victor</p><p>Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 319).</p><p>“Non enim audiendi sunt erro-</p><p>res gentilium superstitionum,</p><p>qui novem Musas, et iovis et</p><p>Memoriæ filias esse finxerunt.</p><p>refellit eos Varro: quo nescio</p><p>utrum apud eos quisquam ta-</p><p>lium rerum doctior vel curio-</p><p>sior esse possit. Dicit enim</p><p>civitatem nescio quam (non</p><p>enim nomen recolo) locasse</p><p>apud tres artifices terna simu-</p><p>lacra Musarum, quod in templo</p><p>Apollinis donum poneret, ut</p><p>quisquis artificum pulchriora</p><p>formasset, ab illo potissimum</p><p>electa emeret. ita contigisse ut</p><p>opera sua illi quoque artifices</p><p>æque pulchre explicarent, et</p><p>placuisse civitati omnes novem</p><p>atque omnes esse emptas, ut in</p><p>Apollinis templo dedicarentur;</p><p>quibus postea dicit Hesiodum</p><p>poetam imposuisse vocabula.</p><p>“Non ergo iupiter novem Mu-</p><p>sas genuit, sed tres fabri ternas</p><p>creaverunt. tres autem non</p><p>propterea illa civitas locaverat,</p><p>48</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>dara três, não por tê-las visto em sonho,</p><p>nem por elas se terem manifestado em</p><p>número de três aos olhos de algum dos ci-</p><p>dadãos; mas porque era fácil perceber que</p><p>todo som, elemento material das canções,</p><p>é por natureza de três tipos: pois ou é pro-</p><p>duzido pela voz, como no caso dos que</p><p>cantam com a boca e sem instrumento; ou</p><p>pelo sopro, como o das trombetas e flautas;</p><p>ou pela percussão, como nas cítaras, tam-</p><p>bores e demais instrumentos que ressoam</p><p>através da percussão.</p><p>Sendo ou não verdadeiros os fatos narra-</p><p>dos por Varrão, nós, contudo, não deve-</p><p>mos evitar a música por causa da supersti-</p><p>ção dos profanos, se pudermos extrair dela</p><p>algo útil à compreensão das Sagradas Es-</p><p>crituras; nem devemos dar atenção às suas</p><p>futilidades teatrais, quando investigamos</p><p>algo sobre cítaras e órgãos que contribui</p><p>para a compreensão de coisas espirituais.</p><p>Afinal, não é porque eles dizem ser Mer-</p><p>cúrio o inventor das letras, que nós não de-</p><p>vemos aprendê-las. E se eles consagraram</p><p>templos à Justiça e à Virtude, e preferiram</p><p>adorar na pedra o que se deve cultivar no</p><p>coração, nem por isso devemos evitar a</p><p>justiça e a virtude. Ao contrário: que todo</p><p>bom e verdadeiro cristão, onde quer que</p><p>encontre a verdade, entenda que ela per-</p><p>tence ao seu Senhor.</p><p>quia in somnis eas viderat, aut</p><p>tot se cuiusquam illorum oculis</p><p>demonstraverant; sed quia faci-</p><p>le erat animadvertere omnem</p><p>sonum, quæ materies cantile-</p><p>narum est, triformem esse na-</p><p>tura. Aut enim voce editur, si-</p><p>cuti eorum est qui faucibus sine</p><p>organo canunt; aut flatu sicut</p><p>tubarum et tibiarum; aut pulsu</p><p>sicut in citharis et tympanis, et</p><p>quibuslibet aliis, quæ percu-</p><p>tiendo canora sunt” (Ibid., 17).</p><p>“Sed sive ita se habeat, quod</p><p>Varro retulit, sive non ita, nos</p><p>tamen non debemus propter</p><p>superstitionem profanorum</p><p>musicam fugere, si quid inde</p><p>utile ad intellegendas sanctas</p><p>scripturas rapere potuerimus,</p><p>nec ad illorum theatricas nugas</p><p>converti, si aliquid de citharis</p><p>et de organis, quod ad spirita-</p><p>lia capienda valeat, disputemus.</p><p>Neque enim et litteras discere</p><p>non debuimus, quia earum <re-</p><p>pertorem> dicunt esse Mercu-</p><p>rium, aut quia iustitiæ virtuti-</p><p>que templa dedicarunt, et quæ</p><p>corde gestanda sunt in lapidi-</p><p>bus adorare maluerunt, propte-</p><p>rea nobis iustitia virtusque fu-</p><p>gienda est. immo vero quisquis</p><p>bonus verusque christianus est,</p><p>domini sui esse intellegat, ubi-</p><p>cumque invenerit veritatem”</p><p>(Ibid., 18).</p><p>49</p><p>3. Sete ArteS liBerAiS exPlicADAS</p><p>VIII. Sobre a astronomia</p><p>Resta falar da astronomia, ciência conve-</p><p>niente para os religiosos, grande tormento</p><p>para os curiosos, como disse alguém. Pois</p><p>se com espírito casto e moderado a inves-</p><p>tigamos, ela brilha com grande claridade</p><p>mesmo em nossos sentidos, como dizem</p><p>os antigos. É como subir com a alma aos</p><p>céus, examinar racionalmente toda aquela</p><p>máquina suprema e, com a sublimidade es-</p><p>peculativa da mente, colher ao menos algo</p><p>do que os mistérios de tão grande exten-</p><p>são escondiam! O próprio mundo, como</p><p>dizem</p><p>alguns, foi conglomerado numa</p><p>circularidade esférica, de tal modo que sua</p><p>circunferência encerrasse as diversas for-</p><p>mas das coisas. Daí Sêneca ter composto</p><p>um livro em forma de controvérsia, como é</p><p>costume entre os filósofos, cujo nome é De</p><p>forma mundi — “Sobre a forma do mundo”.</p><p>Portanto, a astronomia de que tratamos</p><p>chama-se lei dos astros; porque [estes] não</p><p>sabem parar ou mover-se senão do modo</p><p>como foram dispostos pelo seu Criador,</p><p>exceto quando são alterados por algum</p><p>milagre feito por arbítrio da divindade. Por</p><p>exemplo: Lê-se que Josué ordenou ao sol</p><p>que parasse em Gabaon (cf. Js 10, 12), e que</p><p>nos tempos do rei Ezequias [o profeta] fez</p><p>[a sombra] retroceder dez graus (cf. 2Rs 20,</p><p>11), e que na Paixão de Cristo Senhor o sol</p><p>obscureceu-se por três horas (cf. Lc 23, 45)</p><p>etc. E por isso chamam-se milagres, porque</p><p>CAPUT VIII. De</p><p>astronomia</p><p>“Astronomia ergo superest”</p><p>(cassiod., Inst. litt., l. 2, c. 5),</p><p>quæ, ut quidam dixit, dignum</p><p>est religiosis argumentum,</p><p>magnumque curiosis tormen-</p><p>tum. Hanc ergo “si casta ac</p><p>moderata mente perquirimus,</p><p>sensus quoque nostros, ut et</p><p>veteres dicunt, magna claritate</p><p>perfundit. Quale est enim ad</p><p>cælos animo subire, totamque</p><p>illam machinam supernam in-</p><p>dagabili ratione discutere et</p><p>inspectiva mentis sublimitate</p><p>ex aliqua parte conligere, quod</p><p>tantæ magnitudinis arcana ve-</p><p>laverunt? Nam mundus ipse, ut</p><p>quidam dicunt, sphærica fertur</p><p>rotunditate conlectus, ut diver-</p><p>sas rerum formas ambitus sui</p><p>circuitione concluderet. unde</p><p>librum Seneca consentanea</p><p>philosophis disputatione for-</p><p>mavit, cui titulus est: De forma</p><p>mundi.” (Ibid.).</p><p>“Astronomia itaque dicitur,</p><p>unde nobis sermo est, astrorum</p><p>lex, quia nesciunt ullo modo</p><p>aliter, quam a suo creatore di-</p><p>sposita sunt, vel consistere vel</p><p>moveri, nisi forte quando ali-</p><p>quo miraculo facto divinitatis</p><p>arbitrio commutantur, sicuti ie-</p><p>sus Nave soli in gabaon ut sta-</p><p>ret, legitur imperasse, et tempo-</p><p>ribus ezechiæ regis retrorsum</p><p>decem gradibus reversum fuis-</p><p>se, et in passione domini chri-</p><p>sti tribus horis sol tenebrosus</p><p>effectus est, et his similia. ideo</p><p>enim miracula dicuntur, quo-</p><p>niam contra consuetudinem</p><p>rerum admiranda contingunt.</p><p>50</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>acontecem coisas admiráveis contra o cos-</p><p>tume das coisas. Como dizem os astrôno-</p><p>mos, as [estrelas] que estão fixas no céu se</p><p>deslocam; já os planetas, isto é, as [estrelas]</p><p>errantes, se movem, embora perfaçam sua</p><p>trajetória segundo uma regra definida. A</p><p>astronomia é, portanto, como já foi dito, a</p><p>disciplina que contempla os cursos e as fi-</p><p>guras todas dos corpos celestes, e examina</p><p>racionalmente as relações entre uma estre-</p><p>la e outra e entre estas e a terra.</p><p>Em algo se diferenciam a astronomia e a</p><p>astrologia, conquanto ambas pertençam a</p><p>uma só disciplina. O conteúdo da astrono-</p><p>mia é o movimento circular do céu; o nas-</p><p>cimento, o ocaso e o movimento dos astros;</p><p>bem como a razão dos nomes que estes pos-</p><p>suem. A astrologia é em parte natural, e em</p><p>parte supersticiosa. É natural na medida em</p><p>que segue o curso do sol e da lua, e a posi-</p><p>ção que, em determinadas épocas, apresen-</p><p>tam as estrelas. Mas é supersticiosa desde</p><p>o momento em que os astrólogos tentam</p><p>encontrar augúrios nas estrelas e descobrir</p><p>o que os doze signos do zodíaco dispõem</p><p>para a alma ou para os membros do corpo,</p><p>ou quando se afanam em predizer, basean-</p><p>do-se no curso dos astros, como será o nas-</p><p>cimento e o caráter do homem.</p><p>Esta parte da astrologia que, com inves-</p><p>tigação natural, trata dos movimentos do</p><p>sol, da lua e das estrelas, e cuidadosamente</p><p>examina certas mudanças do tempo, esta,</p><p>feruntur enim, sicut dicunt</p><p>astronomi, quæ cælo fixa sunt;</p><p>moventur vero planetæ, id est</p><p>erraticæ, quæ cursus suos certa</p><p>tamen definitione conficiunt.</p><p>Astronomia est itaque, sicut</p><p>iam dictum est, disciplina, quæ</p><p>cursus cælestium siderum et fi-</p><p>guras contemplatur omnes, et</p><p>habitudines stellarum circa se</p><p>et circa terram indagabili ratio-</p><p>ne percurrit”. (Ibid.).</p><p>“inter astronomiam autem et</p><p>astrologiam aliquid differt”</p><p>(isid. Etym., iii, 26), licet ad</p><p>unam disciplinam ambæ per-</p><p>tineant. “Nam astronomia cæli</p><p>conversionem, ortus, obitus</p><p>motusque siderum continet</p><p>vel ex qua causa ita vocentur.</p><p>Astrologia vero partim natu-</p><p>ralis, partim superstitiosa est.</p><p>Naturalis, dum exsequitur solis</p><p>lunæque cursus vel stellarum,</p><p>vel stellarum certas temporum</p><p>stationes. Superstitiosa vero est</p><p>illa, quam mathematici sequun-</p><p>tur, qui in stellis augurantur,</p><p>quique etiam duodecim cæli</p><p>signa per singula animæ vel</p><p>corporis membra disponunt,</p><p>siderumque cursu nativitates</p><p>hominum et mores prædicere</p><p>conantur” (Ibid.).</p><p>Hanc quidem partem astrolo-</p><p>giæ, quæ naturali inquisitione</p><p>exsequitur, solis lunæque cur-</p><p>sus atque stellarum et certas</p><p>temporum distinctiones caute</p><p>rimatur, oportet a clero domini</p><p>51</p><p>3. Sete ArteS liBerAiS exPlicADAS</p><p>digo, convém seja aprendida pelo clero do</p><p>Senhor com diligente meditação; a fim de</p><p>que, por certas conjecturas das leis e por</p><p>estimações calculadas e verdadeiras dos</p><p>argumentos, não apenas investigue veraz-</p><p>mente o transcurso pretérito dos anos, mas</p><p>também saiba raciocinar fielmente sobre</p><p>os tempos futuros, de maneira que saiba</p><p>descrever para si mesmo o início da festa</p><p>da Páscoa e os dias exatos de todas as sole-</p><p>nidades e celebrações a serem observadas,</p><p>e possa instruir corretamente o povo de</p><p>Deus acerca das celebrações.</p><p>solerti meditatione disci, ut per</p><p>certas regularum coniecturas</p><p>et ratas ac veras argumento-</p><p>rum æstimationes, non solum</p><p>præterita annorum curricula</p><p>veraciter investiget, sed et de</p><p>futuris noverit fideliter ratioci-</p><p>nare temporibus, usque pascha-</p><p>lis festi exordia et certa loca</p><p>omnium solennitatum atque</p><p>celebrationum sibi sciat inti-</p><p>mare observanda, et populo dei</p><p>rite valeat indicare celebranda.</p><p>EPÍLOGO</p><p>53</p><p>SOBRE O BEATO ALCUÍNO</p><p>James Burns 1</p><p>Eminente educador, homem de letras e teólogo, Alcuíno nas-</p><p>ceu por volta de 735 e faleceu em 19 de maio de 804. Era de</p><p>origem nobre do Reino da Nortúmbria, mas o local de seu nas-</p><p>cimento é objeto de controvérsia. Provavelmente foi em Iorque</p><p>ou perto dela.</p><p>Ainda criança, entrou para a escola catedral fundada nesse lo-</p><p>cal pelo Arcebispo Egberto. Suas aptidões e sua piedade preco-</p><p>ce depressa atraíram a atenção de Elberto, mestre da escola, e</p><p>do arcebispo, que se dedicaram especialmente à instrução dele.</p><p>Em companhia do seu mestre, fez várias visitas ao continente</p><p>durante a juventude e quando, em 767, Elberto tornou-se arce-</p><p>bispo de Iorque, o dever de dirigir a escola recaiu naturalmente</p><p>sobre Alcuíno. Durante os quinze anos que se seguiram, de-</p><p>dicou-se ao trabalho de ensino em Iorque, atraindo inúmeros</p><p>estudantes e enriquecendo a já valiosa biblioteca.</p><p>Ao regressar de Roma, em março de 781, encontrou-se com</p><p>Carlos Magno em Parma e foi convencido por este príncipe, a</p><p>quem muito admirava, a mudar-se para a França e a instalar-se</p><p>na corte real como “Mestre da Escola do Palácio”. A escola foi</p><p>1. Traduzido a partir de: James Burns, “Alcuin”. In: The Catholic Encyclopedia,</p><p>v. 1. New York: Robert Appleton Company, 1907. Disponível em <https://</p><p>www.newadvent.org/cathen/01276a.htm>. Acesso em 18 jan. 2024. Verbete</p><p>adaptado passim para esta publicação.</p><p>54</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>mantida em Aachen durante a maior parte do tempo, mas foi</p><p>transferida para outros locais, de acordo com a mudança da</p><p>residência real. Em 786 regressou à Inglaterra, aparentemente</p><p>para tratar de importantes assuntos eclesiásticos, e novamente</p><p>em 790, numa missão de Carlos Magno.</p><p>Alcuíno participou do Sínodo de Frankfurt, em 794, e teve</p><p>um papel importante na elaboração dos decretos que conde-</p><p>naram o adocionismo, bem como nos esforços feitos poste-</p><p>riormente para conseguir a submissão dos prelados espanhóis</p><p>relutantes. Em 796, já com mais de sessenta anos, desejoso de</p><p>se afastar do mundo, foi nomeado por Carlos Magno aba-</p><p>de de São Martinho, em Tours. Lá, nos seus anos</p><p>de velhice,</p><p>mas com um zelo inabalável, empenhou-se em construir uma</p><p>escola monástica modelo, reunindo livros e atraindo alunos</p><p>de longe e de perto, como fizera antes, em Aachen e Iorque.</p><p>Faleceu em 19 de maio de 804.</p><p>Aparentemente, Alcuíno foi somente diácono. Alguns julgam,</p><p>no entanto, que ele foi ordenado sacerdote, pelo menos em</p><p>seus últimos anos de vida. Seu biógrafo anônimo, ao descrever</p><p>este período, diz dele que celebrava todos os dias a Santa Mis-</p><p>sa. Numa de suas últimas cartas, Alcuíno agradece a oferta de</p><p>uma casula, que promete usar nos ritos sagrados. É provável</p><p>que tenha sido monge e membro da Ordem Beneditina, em-</p><p>bora este fato também seja contestado, pois alguns historiado-</p><p>res afirmam que ele foi somente um membro do clero secular,</p><p>mesmo quando exerceu o cargo de abade em Tours.</p><p>Quanto ao seu trabalho como educador e estudioso, podemos</p><p>dizer, de modo geral, que foi dele a maior contribuição para</p><p>o movimento de renascimento pedagógico que distinguiu a</p><p>época em que ele viveu, e que tornou possível o grande renas-</p><p>cimento intelectual de três séculos depois. Nele, a erudição</p><p>anglo-saxã alcançou sua mais ampla influência, já que a rica</p><p>55</p><p>ePÍlogo: SoBre o BeAto AlcuÍNo</p><p>herança intelectual deixada por São Beda, o Venerável, em Jar-</p><p>row foi retomada por Alcuíno em Iorque e, por meio dos seus</p><p>trabalhos subsequentes no continente europeu, tornou-se a</p><p>herança permanente da Europa civilizada.</p><p>Um aspecto importante do trabalho educativo de Alcuíno em</p><p>Iorque foi o zelo com sua preciosa biblioteca, bem como a pre-</p><p>servação e a ampliação dela. Viajou várias vezes pela Europa</p><p>com o objetivo de copiar e recolher livros. Também numerosos</p><p>alunos se reuniram ao seu redor, vindos de todas as partes da</p><p>Inglaterra e do continente. Em seu poema sobre os santos da</p><p>Igreja de Iorque, escrito provavelmente antes de fixar residên-</p><p>cia na França, deixou-nos uma valiosa descrição da vida aca-</p><p>dêmica de Iorque, bem como uma lista dos autores representa-</p><p>dos no seu catálogo de livros. O programa de estudos abrangia,</p><p>segundo as palavras de Alcuíno, “os estudos liberais e a palavra</p><p>sagrada”, ou seja, as sete artes liberais que compreendem o tri-</p><p>vium e o quadrivium, com o estudo das Escrituras e dos Santos</p><p>Padres para os mais avançados.</p><p>Mas foi quando assumiu a direção da Escola do Palácio que as</p><p>capacidades de Alcuíno se revelaram de forma mais evidente.</p><p>Apesar da influência de Iorque, o ensino na Inglaterra estava</p><p>em declínio. O país era vítima de dissensões e guerras civis, e</p><p>Alcuíno percebeu no poder crescente de Carlos Magno e em</p><p>sua ânsia pelo desenvolvimento do ensino uma oportunidade</p><p>que nem mesmo Iorque, com toda a sua preeminência e vanta-</p><p>gens escolásticas, podia oferecer.</p><p>E ele não se decepcionou. Carlos Magno apoiava-se na educa-</p><p>ção para completar a obra de construção do império em que</p><p>estava empenhado, e sua mente ocupava-se de projetos pe-</p><p>dagógicos. De fato, um renascimento literário já tivera início.</p><p>Eruditos foram trazidos da Itália, da Alemanha e da Irlanda, e</p><p>quando Alcuíno, em 782, estabeleceu uma aliança com Carlos</p><p>56</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>Magno, depressa encontrou à sua volta em Aachen, para além</p><p>dos jovens membros da nobreza que era chamado a instruir,</p><p>um grupo de alunos mais velhos, alguns dos quais se encontra-</p><p>vam entre os melhores eruditos da época. Sob a liderança dele,</p><p>a Escola do Palácio tornou-se aquilo que Carlos ambicionava:</p><p>o centro de conhecimento e cultura de todo o reino e mesmo</p><p>de toda a Europa. O próprio Carlos Magno, sua rainha Lute-</p><p>garda, sua irmã Gisela, seus três filhos e duas filhas tornaram-</p><p>-se alunos da escola, um exemplo que o resto da nobreza não</p><p>tardou a imitar.</p><p>O mérito supremo de Alcuíno como educador reside, no en-</p><p>tanto, não apenas na formação de uma geração de homens e</p><p>mulheres cultos, mas sobretudo em inspirar, com seu próprio</p><p>entusiasmo pela aprendizagem e pelo ensino, os jovens talen-</p><p>tosos que acorriam a ele de todos os lados.</p><p>Assim como Beda, Alcuíno era mais professor que pensador,</p><p>mais compilador e distribuidor que gerador de conhecimento,</p><p>e neste aspecto é hoje evidente para nós que a inclinação do seu</p><p>gênio correspondia perfeitamente à necessidade intelectual ur-</p><p>gente da época: a preservação e a representação para o mundo</p><p>dos tesouros de conhecimento herdados do passado, há muito</p><p>enterrados pelas sucessivas ondas de invasão bárbara. Disce ut</p><p>doceas (“Aprende para ensinares”) foi o lema de sua vida, e o</p><p>valor supremo que atribuía ao ofício de ensinar é reconhecí-</p><p>vel na advertência aos seus discípulos, segundo a qual o jovem</p><p>ocioso nunca se tornaria professor na velhice (Qui non discit in</p><p>pueritia, non docet in senectute, Ep. 27).</p><p>Alcuíno estava eminentemente qualificado para ser o peda-</p><p>gogo da sua época. Embora vivesse no mundo e se ocupasse</p><p>muito com assuntos públicos, era um homem de singular</p><p>humildade e santidade de vida. Tinha um entusiasmo ilimi-</p><p>tado pela aprendizagem e um zelo incansável pelo trabalho</p><p>57</p><p>ePÍlogo: SoBre o BeAto AlcuÍNo</p><p>prático da sala de aula e da biblioteca; e os jovens de talento</p><p>que atraía em grandes números à sua volta, de todas as par-</p><p>tes da Europa, partiam inspirados com algo do seu próprio</p><p>ardor pelo estudo. Sua índole cordial e afetuosa tornava-o</p><p>universalmente amado, e os laços que uniam mestre e aluno</p><p>transformavam-se frequentemente numa amizade íntima a</p><p>prolongar-se por toda a vida. Muitas das cartas suas que se</p><p>conservam foram dirigidas a ex-alunos, sendo mais de trinta</p><p>ao seu querido discípulo Arno, que se tornou arcebispo de</p><p>Salzburgo.</p><p>Antes de morrer, Alcuíno teve a satisfação de ver os jovens que</p><p>formara empenhados, por toda a Europa, no trabalho do ensino.</p><p>Diz Wattenbach, falando do período que se seguiu: “Onde quer</p><p>que seja visível qualquer sinal de atividade literária, aí podemos</p><p>ter a certeza de encontrar um discípulo de Alcuíno.” Muitos dos</p><p>seus alunos vieram a ocupar posições importantes na Igreja e</p><p>no Estado e exerceram sua influência na causa do ensino, como</p><p>o já mencionado Arno, arcebispo de Salzburgo. Entre os seus</p><p>alunos encontrava-se também o célebre Rábano Mauro, suces-</p><p>sor intelectual de Alcuíno, que estudou com ele durante algum</p><p>tempo em Tours e que, posteriormente, na sua Escola de Fulda,</p><p>continuou a obra de Alcuíno em Aachen e Tours.</p><p>O desenvolvimento da Escola do Palácio, no entanto, por mais</p><p>importante que fosse, era apenas uma parcela dos amplos pla-</p><p>nos educacionais de Carlos Magno. Para a difusão da aprendi-</p><p>zagem, era necessário estabelecer outros centros educacionais</p><p>em todo o reino e, para isso, numa época em que a educação</p><p>estava tão amplamente sob o domínio da Igreja, era essencial</p><p>que o clero fosse um corpo de homens instruídos. Com este</p><p>objetivo em vista, foi emitida uma série de decretos em nome</p><p>do imperador, que impunham a todos os clérigos, tanto secula-</p><p>res como regulares, sob pena de suspensão e privação do cargo,</p><p>a capacidade de ler e escrever e a posse dos conhecimentos ne-</p><p>58</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>cessários para o desempenho inteligente dos deveres do estado</p><p>clerical. Deveriam ser criadas escolas de leitura para proveito</p><p>dos candidatos ao sacerdócio, e os bispos eram obrigados a</p><p>examinar o seu clero de tempos a tempos, para verificar o grau</p><p>de cumprimento destas leis educacionais.</p><p>Foi também projetado um esquema para a educação elemen-</p><p>tar universal. Um decreto do ano 802 ordenava que “cada um</p><p>mandasse seu filho estudar letras, e que a criança permaneces-</p><p>se na escola com toda a diligência até se tornar bem instruída</p><p>no saber”. Os decretos do Concílio de Vaison determinaram</p><p>que deveria ser criada uma escola primária em cada cidade e</p><p>aldeia, e nelas os sacerdotes lecionariam gratuitamente. É im-</p><p>possível dizer até que ponto Alcuíno merece crédito pela or-</p><p>ganização do vasto sistema educacional que foi então criado,</p><p>compreendendo uma instituição superior central, a Escola do</p><p>Palácio,</p><p>uma série de escolas subordinadas de artes liberais es-</p><p>palhadas pelo país, e escolas para o povo comum em todas as</p><p>cidades e aldeias. Não é evidente a participação dele na série</p><p>de decretos legislativos mencionados acima, mas não há dúvi-</p><p>da de que teve muito a ver com o incentivo ou mesmo com a</p><p>concepção dessas leis. Diz Gaskoin: “A voz é de Carlos Magno,</p><p>mas a mão é de Alcuíno.”</p><p>Foi também a Alcuíno e aos seus discípulos que coube a res-</p><p>ponsabilidade de implementar a legislação. É verdade que as</p><p>leis foram aplicadas de forma imperfeita; as medidas planeja-</p><p>das e parcialmente postas em prática para o esclarecimento do</p><p>povo não tiveram um sucesso completo; o movimento em prol</p><p>do renascimento e da difusão da sabedoria em todo o impé-</p><p>rio não durou. No entanto, boa parte daquilo que foi realizado</p><p>perdurou. A sabedoria acumulada (ou o passado), que corria</p><p>o risco de perecer, foi preservada e, quando o renascimento</p><p>maior e mais permanente da educação chegou, vários sécu-</p><p>59</p><p>ePÍlogo: SoBre o BeAto AlcuÍNo</p><p>los mais tarde, quando a luz começou a penetrar através das</p><p>nuvens de tempestade das contendas feudais e da anarquia, as</p><p>fundações lançadas no século VIII ainda estavam lá, prontas</p><p>para receber o peso da aprendizagem superior que os estudio-</p><p>sos do novo renascimento deveriam construir.</p><p>60</p><p>SOBRE HUGO DE SÃO VÍTOR</p><p>Papa Bento XVI 2</p><p>Queridos irmãos e irmãs!</p><p>Nestas Audiências de quarta-feira estou apresentando algu-</p><p>mas figuras exemplares de crentes, que se comprometeram a</p><p>mostrar a concórdia entre a razão e a fé, e a testemunhar com</p><p>sua vida o anúncio do Evangelho. Hoje, pretendo falar-vos de</p><p>Hugo e Ricardo de São Vítor. Ambos se situam entre aqueles</p><p>filósofos e teólogos conhecidos com o nome de Vitorinos, por-</p><p>que viveram e ensinaram na abadia de São Vítor, em Paris, fun-</p><p>dada no início do século XII por Guilherme de Champeaux. O</p><p>próprio Guilherme foi mestre renomado, que conseguiu dar</p><p>à sua abadia uma sólida identidade cultural. Em São Vítor, de</p><p>fato, foi inaugurada uma escola para a formação dos monges,</p><p>aberta também a estudantes externos, na qual se realizou uma</p><p>síntese feliz entre os dois modos de fazer teologia, da qual já</p><p>falei em catequeses precedentes: isto é, a teologia monástica,</p><p>orientada sobretudo para a contemplação dos mistérios da fé</p><p>na Escritura, e a teologia escolástica, que utilizava a razão para</p><p>procurar perscrutar estes mistérios com métodos inovadores,</p><p>e criar um sistema teológico.</p><p>2. Audiência Geral do Papa Bento XVI, proferida a 25 de novembro de 2009 e</p><p>disponível no site da Santa Sé: <https://www.vatican.va/content/benedict-x-</p><p>vi/pt/audiences/2009/documents/hf_ben-xvi_aud_20091125.html>. Aces-</p><p>so: 18 jan. 2024. Texto adaptado passim para esta publicação.</p><p>61</p><p>ePÍlogo: SoBre Hugo De São VÍtor</p><p>Temos poucas notícias da vida de Hugo de São Vítor. São in-</p><p>certos a data e o lugar do nascimento: talvez na Saxônia ou</p><p>em Flandres. Sabe-se que, tendo chegado a Paris — a capital</p><p>europeia da cultura desse tempo —, transcorreu o resto dos</p><p>seus anos na abadia de São Vítor, onde foi primeiro discípulo e</p><p>depois professor. Já antes da morte, no ano de 1141, alcançou</p><p>uma grande fama e estima, a ponto de ser chamado um “se-</p><p>gundo Santo Agostinho”. De fato, como Agostinho ele meditou</p><p>muito sobre a relação entre fé e razão, entre ciências profanas</p><p>e teologia. Segundo Hugo de São Vítor, todas as ciências, além</p><p>de serem úteis para a compreensão das Escrituras, têm um va-</p><p>lor em si mesmas e devem ser cultivadas para ampliar o saber</p><p>do homem, assim como para corresponder ao seu anseio por</p><p>conhecer a verdade. Esta sadia curiosidade intelectual levou-o</p><p>a recomendar aos estudantes que jamais limitassem o desejo</p><p>de aprender; e no seu tratado de metodologia do saber e de</p><p>pedagogia, intitulado significativamente Didascalicon [“Sobre</p><p>o ensino”], recomendava: “Aprende de bom grado de todos o</p><p>que não sabes. Será mais sábio do que todos, aquele que terá</p><p>querido aprender algo de todos. Quem recebe algo de todos,</p><p>acaba por se tornar mais rico do que todos” (Eruditiones Di-</p><p>dascalicæ, 3, 14: PL 176, 774).</p><p>A ciência da qual se ocupam os filósofos e os teólogos chama-</p><p>dos Vitorinos é de modo particular a teologia, que exige antes</p><p>de tudo o estudo amoroso da Sagrada Escritura. Com efeito,</p><p>para conhecer Deus não se pode deixar de começar a partir</p><p>do que o próprio Deus quis revelar de si mesmo através das</p><p>Escrituras. Neste sentido, Hugo de São Vítor é um típico repre-</p><p>sentante da teologia monástica, totalmente fundada na exegese</p><p>bíblica. Para interpretar a Escritura, ele propõe a tradicional</p><p>articulação patrístico-medieval, ou seja, em primeiro lugar o</p><p>sentido histórico-literal, depois o alegórico e anagógico, e por</p><p>fim o moral. Trata-se de quatro dimensões do sentido da Escri-</p><p>62</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>tura, que também hoje se redescobrem, pelo qual se vê que no</p><p>texto e na narração oferecida se esconde uma indicação mais</p><p>profunda: o fio da fé, que nos conduz para o alto e nos guia</p><p>nesta terra, ensinando-nos a viver. Contudo, mesmo respeitan-</p><p>do estas quatro dimensões do sentido da Escritura, de modo</p><p>original em relação aos seus contemporâneos, ele insiste — e</p><p>este é um aspecto novo — sobre a importância do sentido his-</p><p>tórico-literal. Por outras palavras, antes de descobrir o valor</p><p>simbólico, as dimensões mais profundas do texto bíblico, é</p><p>preciso conhecer e aprofundar o significado da história narrada</p><p>na Escritura: caso contrário — adverte com uma comparação</p><p>eficaz — corre-se o risco de ser como que um estudioso de</p><p>gramática que ignora o alfabeto. Para quem conhece o sentido</p><p>da história descrita na Bíblia, as vicissitudes humanas parecem</p><p>marcadas pela Providência divina, segundo um seu desígnio</p><p>bem ordenado. Assim, para Hugo de São Vítor, a história não</p><p>é o êxito de um destino cego ou de um acaso absurdo, como</p><p>poderia parecer. Ao contrário, na história humana age o Espí-</p><p>rito Santo, que suscita um diálogo maravilhoso dos homens</p><p>com Deus, seu amigo. Esta visão teológica da história põe em</p><p>evidência a intervenção surpreendente e salvífica de Deus, que</p><p>realmente entra e age na história, quase se faz parte da nossa</p><p>história, mas salvaguardando e respeitando sempre a liberdade</p><p>e a responsabilidade do homem.</p><p>Para o nosso autor, o estudo da Sagrada Escritura e do seu signi-</p><p>ficado histórico-literal torna possível a teologia verdadeira, isto</p><p>é, a ilustração sistemática das verdades, conhecer a sua estrutura,</p><p>a explicação dos dogmas da fé, que ele apresenta numa síntese</p><p>sólida no tratado De sacramentis christianæ fidei [“Os sacramen-</p><p>tos da fé cristã”], onde se encontra, entre outras, uma definição</p><p>de “sacramento” que, aperfeiçoada ulteriormente por outros</p><p>teólogos, contém aspectos ainda hoje muito interessantes. “O</p><p>sacramento”, escreve ele, “é um elemento corpóreo ou material</p><p>63</p><p>ePÍlogo: SoBre Hugo De São VÍtor</p><p>proposto de modo externo e sensível, que representa com a sua</p><p>semelhança uma graça invisível e espiritual, a significa, porque</p><p>para esta finalidade foi instituído, e a contém, porque é capaz</p><p>de santificar” (9, 2; PL 176, 317). Por um lado a visibilidade no</p><p>símbolo, a “corporeidade” do dom de Deus, no qual, contudo,</p><p>por outro lado, se esconde a graça divina que provém de uma</p><p>história: o próprio Jesus Cristo criou símbolos fundamentais.</p><p>São portanto três os elementos que concorrem para definir um</p><p>sacramento, segundo Hugo de São Vítor: a instituição por parte</p><p>de Cristo, a comunicação da graça e a analogia entre o elemento</p><p>visível, aquela matéria, e o elemento invisível, que são os dons</p><p>divinos. Trata-se de uma visão muito próxima da sensibilidade</p><p>contemporânea, porque os sacramentos são apresentados com</p><p>uma linguagem rica de símbolos e imagens capazes de falar</p><p>imediatamente ao coração dos homens. É importante também</p><p>hoje que os animadores litúrgicos, e em particular os sacerdotes,</p><p>valorizem com sabedoria pastoral os sinais próprios dos ritos</p><p>sacramentais — esta visibilidade</p><p>e tangibilidade da graça — cui-</p><p>dando atentamente da sua catequese, para que cada celebração</p><p>dos sacramentos seja vivida por todos os fiéis com devoção, in-</p><p>tensidade e júbilo espiritual.</p><p>64</p><p>SOBRE RÁBANO MAURO</p><p>Papa Bento XVI 3</p><p>Caros irmãos e irmãs. Hoje gostaria de falar de uma perso-</p><p>nagem do Ocidente latino verdadeiramente extraordinária: o</p><p>monge Rábano Mauro. Juntamente com homens como Isidoro</p><p>de Sevilha, Beda, o Venerável, e Ambrósio Autperto, de quem</p><p>já falei em catequeses precedentes, ao longo dos séculos da</p><p>chamada Alta Idade Média ele soube manter o contato com as</p><p>grandes culturas dos antigos sábios e dos Padres cristãos.</p><p>Recordado frequentemente como præceptor Germaniæ, Rába-</p><p>no Mauro teve uma fecundidade extraordinária. Com a sua ca-</p><p>pacidade de trabalho absolutamente excepcional, talvez tenha</p><p>contribuído mais do que todos para manter viva a cultura teo-</p><p>lógica, exegética e espiritual, da qual teriam haurido os séculos</p><p>sucessivos. Nele inspiram-se quer grandes personagens per-</p><p>tencentes ao mundo dos monges, como Pedro Damião, Pedro,</p><p>o Venerável, e Bernardo de Claraval, quer também um número</p><p>cada vez mais consistente de “clérigos” do clero secular, que</p><p>durante os séculos XII-XIII deram vida a um dos florescimen-</p><p>tos mais belos e fecundos do pensamento humano.</p><p>3. Audiência Geral do Papa Bento XVI, proferida a 3 de junho de 2009 e dis-</p><p>ponível no site da Santa Sé: <https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/</p><p>pt/audiences/2009/documents/hf_ben-xvi_aud_20090603.html>. Acesso:</p><p>18 jan. 2024. Texto adaptado passim para esta publicação.</p><p>65</p><p>ePÍlogo: SoBre ráBANo MAuro</p><p>Tendo nascido em Mainz por volta de 760, Rábano entrara no</p><p>mosteiro extremamente jovem: foi-lhe acrescentado o nome</p><p>de Mauro precisamente com referência ao jovem Mauro que,</p><p>segundo o Livro II dos Diálogos de São Gregório Magno, fora</p><p>confiado quando era ainda criança pelos seus pais, nobres ro-</p><p>manos, ao abade Bento de Núrsia. Esta inserção precoce de</p><p>Rábano como puer oblatus no mundo monástico beneditino, e</p><p>os frutos que obteve para o seu crescimento humano, cultural</p><p>e espiritual, abririam sozinhos uma espiral interessantíssima</p><p>não só sobre a vida dos monges e da Igreja, mas também so-</p><p>bre toda a sociedade da sua época, habitualmente qualificada</p><p>como “carolíngia”. Deles, ou talvez de si mesmo, Rábano Mau-</p><p>ro escreve: “Há alguns que têm a sorte de ser introduzidos no</p><p>conhecimento das Escrituras desde a tenra infância (a cuna-</p><p>bulis suis) e foram tão bem nutridos com o alimento oferecido</p><p>pela Santa Igreja que, com a educação apropriada, puderam</p><p>ser promovidos às ordens sagradas mais altas” (PL 107, 419bc).</p><p>A cultura extraordinária, pela qual Rábano Mauro se distinguia,</p><p>chamou depressa a atenção dos grandes do seu tempo. Tornou-</p><p>-se conselheiro de príncipes. Empenhou-se para garantir a uni-</p><p>dade do império e, a nível cultural mais amplo, nunca deixou</p><p>de oferecer a quem o interrogava uma resposta ponderada, que</p><p>tirava preferivelmente da Bíblia e dos textos dos Santos Padres.</p><p>Eleito primeiro abade do famoso mosteiro de Fulda e depois ar-</p><p>cebispo da cidade natal, Mainz, não cessou por isso de continuar</p><p>os seus estudos, demonstrando com o exemplo da sua vida que</p><p>se pode estar simultaneamente à disposição dos outros, sem se</p><p>privar por isso de um tempo côngruo para a reflexão, o estu-</p><p>do e a meditação. Assim, Rábano Mauro foi exegeta, filósofo,</p><p>poeta, pastor e homem de Deus. As dioceses de Fulda, Mainz,</p><p>Limbourg e Wroclaw veneram-no como santo ou beato. As suas</p><p>obras completam seis volumes da Patrologia Latina de Migne. É</p><p>a ele que se deve, provavelmente, um dos hinos mais bonitos e</p><p>66</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>conhecidos da Igreja latina, o Veni Creator Spiritus, síntese ex-</p><p>traordinária de pneumatologia cristã.</p><p>O primeiro compromisso teológico de Rábano manifestou-se,</p><p>com efeito, sob a forma de poesia e teve como objeto o misté-</p><p>rio da Santa Cruz, numa obra intitulada: De laudibus Sanctæ</p><p>Crucis, concebida de maneira a propor não somente conteú-</p><p>dos de conceito, mas também estímulos mais requintadamente</p><p>artísticos, utilizando tanto a forma poética como a pictórica</p><p>no interior do mesmo códice manuscrito. Propondo iconogra-</p><p>ficamente nas entrelinhas do seu escrito a imagem de Cristo</p><p>crucificado, ele por exemplo escreve:</p><p>Eis a imagem do Salvador que, com a posição dos seus mem-</p><p>bros, torna sagrada para nós a salubérrima, dulcíssima e</p><p>amadíssima forma da Cruz, a fim de que, acreditando no</p><p>seu nome e obedecendo aos seus mandamentos, possamos</p><p>obter a vida eterna graças à sua Paixão. Por isso, cada</p><p>vez que elevarmos o olhar para a Cruz, recordemo-nos</p><p>daquele que padeceu por nós para nos tirar do poder das</p><p>trevas, aceitando a morte para nos tornar herdeiros da vida</p><p>eterna (Lib. 1, Fig. 1, PL 107, 151c).</p><p>Este método de combinar todas as artes, o intelecto, o coração</p><p>e os sentidos, que vinha do Oriente, teria tido um desenvolvi-</p><p>mento enorme no Ocidente, atingindo níveis inigualáveis nos</p><p>códices miniaturados da Bíblia e em outras obras de fé e de</p><p>arte, que floresceram na Europa até a invenção da imprensa</p><p>e além dela também. De qualquer modo, isto demonstra que</p><p>Rábano Mauro tem uma consciência extraordinária da neces-</p><p>sidade de empenhar, na experiência da fé, não apenas a mente</p><p>e o coração, mas também os sentidos mediante aqueles outros</p><p>aspectos do gosto estético e da sensibilidade humana que le-</p><p>vam o homem a fruir da verdade com a totalidade do seu ser:</p><p>“espírito, alma e corpo”.</p><p>67</p><p>ePÍlogo: SoBre ráBANo MAuro</p><p>Isto é importante: a fé não é só pensamento, mas refere-se a</p><p>todo o nosso ser. Dado que Deus se fez homem em carne e</p><p>osso, entrando no mundo sensível, nós em todas as dimensões</p><p>do nosso ser temos que procurar e encontrar Deus. Assim a</p><p>realidade de Deus, mediante a fé, penetra no nosso ser trans-</p><p>formando-o. Por isso, Rábano Mauro concentrou a sua atenção</p><p>sobretudo na liturgia, como síntese de todas as dimensões da</p><p>nossa percepção da realidade. Esta intuição de Rábano Mauro</p><p>torna-o extraordinariamente atual. Dele permaneceram inclu-</p><p>sive os famosos Carmina, propostos para ser utilizados prin-</p><p>cipalmente nas celebrações litúrgicas. Com efeito, dado que</p><p>Rábano era acima de tudo um monge, era totalmente evidente</p><p>o seu interesse pela celebração litúrgica. Porém, ele não se de-</p><p>dicava à arte poética como fim em si mesmo, mas subordinava</p><p>a arte e qualquer outro tipo de saber ao aprofundamento da</p><p>Palavra de Deus. Por isso, com compromisso e rigor extremos,</p><p>procurou introduzir os seus contemporâneos, mas em primei-</p><p>ro lugar os ministros (bispos, presbíteros e diáconos), na com-</p><p>preensão do significado profundamente teológico e espiritual</p><p>de todos os elementos da celebração litúrgica.</p><p>Assim, tentou compreender e propor aos outros os significados</p><p>teológicos escondidos nos ritos, inspirando-se na Bíblia e na</p><p>tradição dos Padres. Não hesitava em declarar, por honestidade</p><p>mas também para dar maior importância às suas explicações, as</p><p>fontes patrísticas às quais devia o seu saber. Todavia, servia-se</p><p>das mesmas com liberdade e discernimento atento, dando con-</p><p>tinuidade ao desenvolvimento do pensamento patrístico. Por</p><p>exemplo, no final da Epistola prima, dirigida a um “corepíscopo”</p><p>da diocese de Mainz, depois de ter respondido aos pedidos de</p><p>esclarecimento a respeito do comportamento que se devia ter no</p><p>exercício da responsabilidade pastoral, prossegue:</p><p>68</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>Escrevemos-te tudo isto do modo como o deduzimos das Sa-</p><p>gradas Escrituras e dos cânones dos Padres. Tu porém, santís-</p><p>simo homem, toma as tuas decisões como melhor te parecer,</p><p>caso por caso, procurando moderar a tua avaliação de forma</p><p>a garantir em tudo a discrição, porque esta é a mãe de todas as</p><p>virtudes (Epistulæ, I, PL 112, 1510c).</p><p>Assim, vê-se a continuidade da fé cristã, que tem os seus pri-</p><p>mórdios na Palavra de Deus; porém, ela é sempre viva, desen-</p><p>volve-se e exprime-se de modos novos, sempre em coerência</p><p>com toda a construção, com todo o edifício da fé.</p><p>Dado que uma parte integrante da celebração litúrgica é a Pa-</p><p>lavra de Deus, a ela se dedicou Rábano Mauro com o máximo</p><p>empenho durante toda a sua existência. Ofereceu explicações</p><p>exegéticas apropriadas praticamente para todos os livros bíbli-</p><p>cos do Antigo e do Novo Testamento com uma intenção clara-</p><p>mente pastoral, que justificava com palavras como estas:</p><p>Escrevi estas coisas... resumindo explicações e propostas de</p><p>muitos outros para oferecer um serviço ao leitor pobre que</p><p>não pode ter à disposição muitos livros, mas também para</p><p>ajudar aqueles que em muitas coisas não conseguem entrar</p><p>em profundidade na compreensão dos significados descober-</p><p>tos pelos Padres (Commentariorum in Matthæum præfatio, PL</p><p>107, 727d).</p><p>Com efeito, quando comentava os textos bíblicos, hauria a</p><p>mãos cheias dos Padres antigos, com especial predileção por</p><p>Jerônimo, Ambrósio, Agostinho e Gregório Magno.</p><p>Depois, a acentuada sensibilidade pastoral levou-o a enfrentar</p><p>sobretudo um dos problemas mais sentidos pelos fiéis e pelos</p><p>ministros sagrados do seu tempo: o da Penitência. Efetivamen-</p><p>te, foi compilador de “Penitenciários” — assim eram chama-</p><p>69</p><p>ePÍlogo: SoBre ráBANo MAuro</p><p>dos — nos quais, segundo a sensibilidade dessa época, eram</p><p>enumerados pecados e penas correspondentes, utilizando na</p><p>medida do possível motivações tiradas da Bíblia, das decisões</p><p>dos Concílios e das Decretais dos Papas. De tais textos ser-</p><p>viram-se inclusive os “Carolíngios” na sua tentativa de refor-</p><p>ma da Igreja e da sociedade. A esta mesma intenção pastoral</p><p>correspondiam obras como De disciplina ecclesiastica e De ins-</p><p>titutione clericorum, nas quais, inspirando-se principalmente</p><p>em Agostinho, Rábano explicava aos simples e ao clero da sua</p><p>diocese os rudimentos fundamentais da fé cristã: tratava-se de</p><p>uma espécie de pequenos catecismos.</p><p>Gostaria de concluir a apresentação deste grande “homem de</p><p>Igreja”, citando algumas das suas palavras em que se refletem a</p><p>sua convicção de base:</p><p>Quem é negligente na contemplação (qui vacare Deo negligit),</p><p>priva-se sozinho da visão da luz de Deus; além disso, quem</p><p>se deixa surpreender de modo indiscreto pelas preocupações</p><p>e permite que os seus pensamentos sejam alterados pelo tu-</p><p>multo das coisas do mundo, condena-se à absoluta impossi-</p><p>bilidade de penetrar os segredos do Deus invisível (Lib. I, PL</p><p>112, 1263a).</p><p>Penso que Rábano Mauro dirige estas palavras também a nós,</p><p>hoje: nas horas de trabalho, com os seus ritmos frenéticos, e</p><p>nos períodos de férias, temos que reservar momentos para</p><p>Deus, abrir-lhe a nossa vida, dirigindo-lhe um pensamento,</p><p>uma reflexão, uma breve oração e principalmente não pode-</p><p>mos esquecer que o domingo é o dia do Senhor, o dia da li-</p><p>turgia, para vislumbrar na beleza das nossas igrejas, da música</p><p>sacra e da Palavra de Deus, a própria beleza de Deus, deixan-</p><p>do-o entrar no nosso ser. Somente assim a nossa vida se torna-</p><p>rá grande, verdadeira.</p><p>ad</p><p>tam excellentis felicitatis inda-</p><p>gationem, scire cupientes quæ</p><p>esset huius magisterii summa,</p><p>vel quibus gradibus ascendi</p><p>potuisset ad eam. Ætas [enim</p><p>(Edit., igitur)] nostra tenera</p><p>est, et te non dante dexteram</p><p>sola surgere satis infirma est.</p><p>Animi vero nostri naturam</p><p>esse intelligimus in corde, seu</p><p>oculorum in capite. oculi ita-</p><p>que si splendore solis, vel alia</p><p>qualibet lucis præsentia asper-</p><p>guntur, perspicacissime, quid-</p><p>quid obtutibus occurrit, discer-</p><p>nere valent: cæterum sine lucis</p><p>acessu in tenebris manere no-</p><p>tissimum est. Sic animi vigor</p><p>acceptabilis est sapientiæ, si</p><p>erit qui eum illustrare incipiat.</p><p>1.</p><p>DIÁLOGO SOBRE AS SETE COLUNAS</p><p>DA SABEDORIA</p><p>Beato Alcuíno de Iorque</p><p>10</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>MESTRE — Filhos, fizestes bem a compa-</p><p>ração dos olhos e do espírito. Mas “aquele</p><p>que ilumina todo o homem que vem a este</p><p>mundo” (Jo 1, 9) ilumine vossas mentes</p><p>para que progridais naquela filosofia que,</p><p>como dissestes, nunca abandona os que a</p><p>possuem.</p><p>DISCÍPULOS — Sabemos, mestre, sabe-</p><p>mos com certeza que devemos pedir àque-</p><p>le que dá abundantemente e a ninguém</p><p>rejeita (cf. Jo 6, 37). Contudo, devemos ser</p><p>instruídos com certo vagar, e conduzidos</p><p>qual enfermos com passo mais lento, até</p><p>que alguma fortaleza cresça em nós. O sí-</p><p>lex1 naturalmente possui em si o fogo, que</p><p>costuma sair com batidas. De modo seme-</p><p>lhante, a luz da ciência é natural nas mentes</p><p>humanas, mas se não for estimulada pela</p><p>contínua aplicação do mestre, permanece</p><p>latente em si como uma centelha no sílex.</p><p>MESTRE — Será fácil demonstrar-vos o</p><p>caminho da sabedoria, desde que a este-</p><p>jais procurando somente por Deus, pelo</p><p>conhecimento das coisas, pela pureza da</p><p>1. Variedade de quartzo, de cor ruiva ou parda e algu-</p><p>mas vezes negra, usado na produção de pederneiras.</p><p>A pederneira é um sílex pirômaco, capaz de produzir</p><p>faíscas quando percutido ou atritado por peças de</p><p>metal, em especial o ferro. Muito utilizado em pe-</p><p>ças antigas de artilharia, espingardas, isqueiros etc.,</p><p>gera faíscas, tornando fácil se fazer fogo em qualquer</p><p>clima, em qualquer altitude, até mesmo sob tempes-</p><p>tades e neve. (Nota do Tradutor)</p><p>MAGISTER — Bene siqui-</p><p>dem, filii, comparationem ocu-</p><p>lorum et animi protulistis. Sed</p><p>qui illuminat omnem hominem</p><p>venientem in hunc mundum (Jo</p><p>1, 9), illuminet mentes vestras,</p><p>ut in ea proficere valeatis philo-</p><p>sophia, quæ nunquam, ut dixi-</p><p>stis, deserit possidentem.</p><p>DISCIPULI — Scimus, ma-</p><p>gister, scimus certissime quod</p><p>ab eo postulandum est qui dat</p><p>affluenter et nulli improperat.</p><p>Nos tamen morulis quibusdam</p><p>instruendi sumus, et quasi in-</p><p>firmi tardiore gressu ducendi,</p><p>quousque aliquid fortitudinis</p><p>accrescat in nobis. ignem si-</p><p>quidem silex naturaliter habet</p><p>in se, qui solet exire ad ictus.</p><p>Naturale itaque est mentibus</p><p>humanis scientiæ lumen, sed</p><p>nisi crebra doctoris intentione</p><p>excutiatur, in se quasi scintilla</p><p>in silice latet.</p><p>MAGISTER — est quidem</p><p>facile viam vobis demonstrare</p><p>sapientiæ, si eam tantummodo</p><p>propter Deum, [propter rerum</p><p>scientiam], propter puritatem</p><p>11</p><p>1. Diálogo SoBre AS Sete coluNAS DA SABeDoriA</p><p>alma, para conhecer a verdade, e também</p><p>se a amais por si mesma; e não pelo louvor</p><p>humano, pelas honras do século ou ainda</p><p>pelos falsos prazeres das riquezas, coisas</p><p>estas que quanto mais são amadas tanto</p><p>mais desviam do caminho da verdadeira</p><p>ciência os que a procuram: como um ébrio</p><p>que ignora como retornará à sua casa.</p><p>DISCÍPULOS — Confessamos, sem pesta-</p><p>nejar, que amamos a felicidade: porém, igno-</p><p>ramos se possa haver alguma neste mundo.</p><p>MESTRE — Com efeito, existe nas mentes</p><p>dos homens um desejo inato pelo verdadei-</p><p>ro bem, porém o erro dirige muitos deles</p><p>aos falsos bens. Alguns creem que a máxi-</p><p>ma felicidade é abundar em riquezas, outros</p><p>alegram-se com as honras, outros congra-</p><p>tulam-se com o poder, outros deleitam-se</p><p>nos prazeres, outros são ávidos de elogios.</p><p>Mas se forem diligentemente consideradas,</p><p>tais coisas são misturadas com tantos in-</p><p>fortúnios, que dificilmente parecem conter</p><p>alguma felicidade. Alguns sonhadores pen-</p><p>sam que tais coisas lhes trarão a verdadeira</p><p>felicidade, e quando a inclinação natural os</p><p>conduz ao verdadeiro bem, vários erros os</p><p>desviam pela ignorância.</p><p>DISCÍPULOS — Que verdadeiro sábio ig-</p><p>nora serem tais coisas transitórias? E con-</p><p>tudo, quem não sabe que o viajante desta</p><p>vida é ajudado pela abundância delas?</p><p>animæ, propter veritatem co-</p><p>gnoscendam, etiam et prop-</p><p>ter seipsam diligatis; et non</p><p>propter humanam laudem, vel</p><p>honores sæculi, vel etiam divi-</p><p>tiarum fallaces voluptates, quæ</p><p>omnia quanto plus amantur,</p><p>tanto longius aberrare faciunt</p><p>a vero scientiæ lumine ista</p><p>quærentes: velut ebrius domum,</p><p>quo tramite revertatur, ignorat.</p><p>DISCIPULI — fatemur sci-</p><p>licet nos beatitudinem amasse:</p><p>sed si qua possit in hoc sæculo</p><p>esse ignoramus.</p><p>MAGISTER — est enim men-</p><p>tibus hominum veri boni natu-</p><p>raliter inserta cupiditas: sed ad</p><p>falsa quædam plurimos eorum</p><p>devius error abducit. Quorum</p><p>quidem alii maximam felicita-</p><p>tem divitiis abundare credunt</p><p>[At., credentes], alii honoribus</p><p>gaudent, alii potentia congra-</p><p>tulantur, alii voluptatibus de-</p><p>lectantur, alii laudibus inhiant.</p><p>Quæ diligentius considerata</p><p>tantis implicantur calamitati-</p><p>bus, ut vix aliquid beatitudinis</p><p>habere videantur. Hæc enim</p><p>sibi somniantes veram aliqui</p><p>felicitatem fore existimant, et</p><p>dum eos ad verum bonum na-</p><p>turalis intentio ducit, multiplex</p><p>tamen error propter ignoran-</p><p>tiam abducit.</p><p>DISCIPULI — Quis sanum</p><p>sapiens hæc esse transitoria</p><p>ignorat? tamen huius vitæ via-</p><p>torem horum abundantia adiu-</p><p>vare quis nesciat?</p><p>12</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>MESTRE — O uso moderado delas ajuda,</p><p>mas o excessivo atrapalha. Daí o valor da-</p><p>quele adágio filosófico: Ne quid nimis —</p><p>“Nada em excesso”.</p><p>DISCÍPULOS — De fato, tudo em exces-</p><p>so faz mal. Mas até quanto se deve pedir a</p><p>abundância daquelas coisas que há pouco</p><p>enumeraste?</p><p>MESTRE — Quanto exige a necessidade</p><p>do corpo, e quanto pede a dedicação à sa-</p><p>bedoria.</p><p>DISCÍPULOS — Julgamos ser próprio</p><p>de [homens] perfeitos reprimir com estes</p><p>freios da razão os movimentos da alma.</p><p>MESTRE — É a esta perfeição que vos</p><p>exorto, filhos, enquanto floresce a idade,</p><p>enquanto tem força o espírito.</p><p>DISCÍPULOS — Eia! Vamos! Guia-nos</p><p>pelas vias da razão divina, e transporta-nos</p><p>ao cume desta perfeição! Pois, embora com</p><p>passo desigual, seguimos-te como guia.</p><p>MESTRE — Por que, ó homem, animal</p><p>racional, imortal por tua melhor parte,</p><p>imagem de teu Criador, por que perdes o</p><p>que te é próprio? Por que aspiras ao que é</p><p>alheio? Por que procuras o que é ínfimo e</p><p>deixas o que é sublime?</p><p>DISCÍPULOS — Que coisas são próprias,</p><p>ou quais são alheias?</p><p>MAGISTER — Moderatus eo-</p><p>rum usus adiuvat, nimius gra-</p><p>vat. unde philosophicum illud</p><p>valet elogium: Ne quid nimis.</p><p>DISCIPULI — Notum est,</p><p>omnia nimia nocere. Sed usque</p><p>ad quem finem eorum est, quæ</p><p>paulo ante numerasti, abundan-</p><p>tia petenda?</p><p>MAGISTER — Quantum</p><p>necessitas corporis exigit, et</p><p>quantum sapientiæ expostulat</p><p>studium.</p><p>DISCIPULI — Perfectorum</p><p>esse arbitramur huiusmodi ra-</p><p>tionis frenis animarum cursus</p><p>coercere.</p><p>MAGISTER — Ad hanc sci-</p><p>licet perfectionem, dum ætas</p><p>floret, dum animus viget, vos,</p><p>filii, cohortor.</p><p>DISCIPULI — Duc, age, et</p><p>reduc per divinæ vias rationis,</p><p>et ad huius cacumen perfectio-</p><p>nis transfer. Nam, licet impari</p><p>gressu, te ductorem sequimur.</p><p>MAGISTER — Quid homo,</p><p>rationale animal, meliore parte</p><p>immortalis, tui conditoris ima-</p><p>go, quid propria perdis? Quid</p><p>aliena petis? cur infima quæris</p><p>et summa relinquis?</p><p>DISCIPULI — Quæ sunt pro-</p><p>pria, vel quæ aliena?</p><p>13</p><p>1. Diálogo SoBre AS Sete coluNAS DA SABeDoriA</p><p>MESTRE — Alheias são as coisas procu-</p><p>radas exteriormente, como o acúmulo de</p><p>riquezas; interiormente [se encontra] o or-</p><p>nato da sabedoria. Portanto, ó homem, se</p><p>fores senhor de ti mesmo, possuirás algo</p><p>que nunca temerás perder, nem fortuna</p><p>alguma poderá arrancar-te. O que então,</p><p>ó mortais, quereis encontrar fora,</p><p>quando</p><p>dentro já possuís o que procurais?</p><p>DISCÍPULOS — Procuramos a felicidade.</p><p>MESTRE — Procurais bem, se procurais a</p><p>duradoura, e não a passageira. Vede como</p><p>tantas amarguras permeiam a felicidade</p><p>terrena, que a ninguém chega em pleni-</p><p>tude nem permanece fiel, porque nada de</p><p>imutável pode ser encontrado nesta vida.</p><p>O que é mais belo que a luz? Contudo, ela</p><p>é ofuscada pelas trevas supervenientes. O</p><p>que é mais encantador que as flores de ve-</p><p>rão? Contudo, elas perecem nos frios de</p><p>inverno. O que é mais suave que a saúde do</p><p>corpo? E quem espera mantê-la perpetua-</p><p>mente? O que é mais alegre que a tranquila</p><p>paz? Contudo, ela é frequentemente anula-</p><p>da pelo triste estímulo das discórdias.</p><p>DISCÍPULOS — Não duvidamos que to-</p><p>das estas coisas são assim, como dizes. Mas</p><p>para que as dizes?</p><p>MESTRE — Para que, pelas maiores, co-</p><p>nheçais as menores.</p><p>DISCÍPULOS — De que modo?</p><p>MAGISTER — Aliena sunt,</p><p>quæ extra quæruntur, ut divitia-</p><p>rum congregatio; intra, sapien-</p><p>tiæ decus. igitur tu, o homo! si</p><p>tui ipsius compos eris, posside-</p><p>bis quod necunquam amittere</p><p>dolebis, nec ulla tibi fortuna</p><p>auferre valebit. Quid igitur, o</p><p>mortales, extra petitis, dum in-</p><p>tra habetis quod quæritis?</p><p>DISCIPULI — felicitatem</p><p>quærimus.</p><p>MAGISTER — Bene quæritis,</p><p>si manentem quæritis, et non</p><p>fugientem. Videtis quam multis</p><p>amaritudinibus terrena felicitas</p><p>aspersa est, quæ nulli vel tota</p><p>proveniet, vel fida permanet,</p><p>quia nil non mutabile præs-</p><p>entis vitæ inveniri potest. Quid</p><p>pulchrius luce? et hæc tenebris</p><p>succedentibus obfuscatur. Quid</p><p>floribus venustius æstatis? qui</p><p>tamen hiemalibus frigoribus</p><p>pereunt. Quid salute corporis</p><p>suavius? et quis hanc perpe-</p><p>tuam habere confidit? Quid</p><p>tranquilla pace iucundius? et</p><p>tamen sæpe hæc tristi discor-</p><p>diarum fomite irritatur.</p><p>DISCIPULI — Hæc omnia sic</p><p>se habere, sicut dicis, non dubi-</p><p>tamus. Sed quorsum ista?</p><p>MAGISTER — ut ex maiori-</p><p>bus minora cognoscatis.</p><p>DISCIPULI — Quonam modo?</p><p>14</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>MESTRE — Se o céu e a terra, que são para</p><p>todos os mortais [fonte] geral de beleza e</p><p>utilidade, mudam em suas vicissitudes,</p><p>quanto mais é necessário ser transitó-</p><p>rio o prazer de cada coisa específica? E</p><p>por que devem ser amadas as coisas que</p><p>não podem permanecer? O que pensais,</p><p>vós homens, do louvor, da dignidade da</p><p>honra, do acúmulo de riquezas? Lestes</p><p>sobre as riquezas de Creso,2 a fama de</p><p>Alexandre,3 a honra de Pompeu?4 E de</p><p>que lhes serviram tais coisas na hora da</p><p>morte? Enquanto cada um deles, por uma</p><p>morte prematura e dolorosa, perdeu ra-</p><p>pidamente a glória almejada e diminuiu</p><p>de algum modo a integridade da própria</p><p>ciência, há quem ainda busque louvor nas</p><p>palavras alheias. Por que vos dedicais em</p><p>acumular riquezas que, ou vos deixarão,</p><p>ou serão por vós deixadas? Que melhor</p><p>enriquecem sendo espalhadas que con-</p><p>servadas? De fato, a avareza torna [os ho-</p><p>2. Creso († 546 a.C.), último rei da Lídia, tornou-se</p><p>proverbial por sua riqueza, graças à exploração que</p><p>teria empreendido nas areias auríferas do rio Pactolo</p><p>— o mesmo em que, segundo a lenda, teria se ba-</p><p>nhado o rei Midas, que transformava em ouro tudo</p><p>o que tocava. (N.T.)</p><p>3. Alexandre, o Grande († 323 a.C.), rei da Macedô-</p><p>nia, morreu invicto nas batalhas que travou e é tido</p><p>como um dos líderes militares mais bem-sucedidos</p><p>que já existiu. (N.T.)</p><p>4. Pompeu († 48 a.C.) foi cônsul por várias vezes na Re-</p><p>pública Romana, herói militar e um dos membros da</p><p>aliança política chamada Primeiro Triunvirato. (N.T.)</p><p>MAGISTER — Si cælum ter-</p><p>raque suis semper vicissitudi-</p><p>nibus mutantur, generalis om-</p><p>nium [mortalium] pulchritudo</p><p>et utilitas; quanto magis cuiusli-</p><p>bet rei specialis delectatio tran-</p><p>sitoria esse necesse est? et cur</p><p>ea amari debent quæ permanere</p><p>nequeunt? Quid vos homines</p><p>de [nominis (Edit., hominis)]</p><p>laude, de honoris dignitate,</p><p>de divitiarum congregatione</p><p>cogitatis? legistis crœsi di-</p><p>vitias, Alexandri famam, Pom-</p><p>peii honorem? et quid hæc</p><p>perituris proderunt? dum qui-</p><p>sque illorum immatura morte</p><p>cum magno quæsitam labore</p><p>cito perdidit gloriam, minu-</p><p>itque quodammodo propriæ</p><p>integritatem scientiæ [Ms.,</p><p>iustitiæ], qui ex alienis sibi</p><p>sermunculis laudem quærit.</p><p>Quid de divitiis congregandis</p><p>studetis, quæ vel deserunt, vel</p><p>deseruntur? quæ effundendo</p><p>quam servando melius ditant</p><p>[Ms., nitent]? Siquidem avari-</p><p>tia odiosos, claros largitas facit.</p><p>Quarum abundantia nonnisi</p><p>ex aliorum indigentia [Ms.,</p><p>15</p><p>1. Diálogo SoBre AS Sete coluNAS DA SABeDoriA</p><p>mens] odiosos, enquanto a generosidade</p><p>os torna honrados. A abundância de tais</p><p>coisas não é gerada senão pela indigência</p><p>dos outros. Por que procurais honras que</p><p>fomentam a soberba? Não é um só o Pai</p><p>de todos? E por que injuriais vosso Cria-</p><p>dor amando o que é pior e deixando o que</p><p>é melhor? Ele quis que o gênero humano</p><p>presidisse todas as coisas terrenas; vós,</p><p>porém, precipitais vossa dignidade sob o</p><p>que há de mais baixo. Quão melhor é or-</p><p>nar-se interiormente que exteriormente,</p><p>polir com esplendor a alma perpétua.</p><p>DISCÍPULOS — Quais são os ornamentos</p><p>perpétuos da alma?</p><p>MESTRE — O primeiro de todos é a sa-</p><p>bedoria, à qual exorto-vos a ter a máxima</p><p>dedicação.</p><p>DISCÍPULOS — Donde sabemos que a</p><p>sabedoria é perpétua? E se são transitórias</p><p>todas as coisas que há pouco enumeraste,</p><p>por que o conhecimento delas também</p><p>não passa?</p><p>MESTRE — Pensais que a alma é perpétua?</p><p>DISCÍPULOS — Não só pensamos, como</p><p>sabemos com certeza.</p><p>MESTRE — A sabedoria é o ornato e a dig-</p><p>nidade da alma?</p><p>DISCÍPULOS — Sim.</p><p>indulgentia] congeritur. Quid</p><p>honores fomenta superbiæ</p><p>quæritis? Nonne unus est om-</p><p>nium Pater? et cur iniuriam</p><p>facitis conditori vestro peiora</p><p>amando, et meliora amittendo?</p><p>ille genus humanum terrenis</p><p>omnibus præstare voluit, vos</p><p>dignitatem vestram infra infi-</p><p>ma quæque detruditis. Quan-</p><p>to melius est interius ornari,</p><p>quam exterius, animam perpe-</p><p>tuam splendore polire.</p><p>DISCIPULI — Quæ sunt</p><p>animæ ornamenta [perpetua]?</p><p>MAGISTER — Primo om-</p><p>nium sapientia, cui vos maxime</p><p>studere cohortor [Ms., suadeo].</p><p>DISCIPULI — unde scimus</p><p>sapientiam esse perpetuam? et</p><p>si hæc omnia quæ ante numera-</p><p>sti, transitoria sunt, cur non et</p><p>horum scientia pertransit?</p><p>MAGISTER — Animam puta-</p><p>tis esse perpetuam?</p><p>DISCIPULI — Non solum</p><p>putamus, sed etiam certissime</p><p>scimus.</p><p>MAGISTER — estne sapien-</p><p>tia decus et dignitas animæ?</p><p>DISCIPULI — est vere.</p><p>16</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>MESTRE — Como poderá a alma ser per-</p><p>pétua de modo feliz sem a sabedoria, seu</p><p>ornato? Não é incoerente que a alma seja</p><p>perpétua sem seu ornato e dignidade?</p><p>Consequentemente, ambas parecem ser</p><p>perpétuas, tanto a alma como a sabedoria.</p><p>Percebeis que frequentemente as riquezas</p><p>abandonam os que as possuem, e todas as</p><p>honras do século muitas vezes diminuem?</p><p>DISCÍPULOS — De fato, vemos que nem</p><p>sequer o poder do reino perdura.</p><p>MESTRE — De que valem as riquezas sem</p><p>a sabedoria?</p><p>DISCÍPULOS — É como um corpo sem</p><p>alma, como diz Salomão: “De que valem as</p><p>riquezas ao estulto, se não pode comprar a</p><p>sabedoria?” (Pr 17, 16).</p><p>MESTRE — Não é esta a que exalta o hu-</p><p>milde, ergue do esterco o pobre, para que</p><p>sente com os príncipes e possua um trono</p><p>de glória (cf. 1Sm 2, 8)?</p><p>DISCÍPULOS — Sem dúvida é ela; porém,</p><p>tão bela é de possuir e quão custosa para</p><p>adquirir!</p><p>MESTRE — Que soldado é coroado sem</p><p>luta? Que agricultor tem fartura de pão sem</p><p>trabalho? Não diz o antigo provérbio que as</p><p>raízes das letras são amargas, porém seus</p><p>frutos são doces? O nosso orador prova isto</p><p>na Epístola aos Hebreus: “Toda disciplina,</p><p>no momento, parece antes ser fonte de tris-</p><p>MAGISTER — Quomodo</p><p>absque sapientia, decore suo,</p><p>anima feliciter poterit esse per-</p><p>petua? Nonne absque ratione</p><p>est, animam absque decore et</p><p>dignitate sua esse perpetuam?</p><p>consequens videtur utramque</p><p>esse perpetuam, animam scilicet</p><p>et sapientiam. Videtisne quolibet</p><p>casu sæpissime divitias habentem</p><p>deserere, et omnes sæculi honores</p><p>multoties minui?</p><p>DISCIPULI ��� Videmus ita-</p><p>que ut ne regni</p><p>quidem poten-</p><p>tia perduret [Ms., uti perdurat].</p><p>MAGISTER — Quid divitiæ</p><p>sine sapientia?</p><p>DISCIPULI — Quod corpus</p><p>sine anima, Salomone dicente:</p><p>Quid prosunt divitæ stulto, cum</p><p>sapientiam emere non possit?</p><p>(Pr 17, 16).</p><p>MAGISTER — Nonne hæc</p><p>est, quæ humilem exaltat, et</p><p>erigit de stercore pauperem, ut</p><p>sedeat cum principibus, et so-</p><p>lium gloriæ teneat?</p><p>DISCIPULI — est quidem,</p><p>sed quam speciosa in habendo,</p><p>tam laboriosa in acquierendo.</p><p>MAGISTER — Quis miles</p><p>sine certamine coronabitur?</p><p>Quis agricola sine labore abun-</p><p>dat panibus? Nonne vetus pro-</p><p>verbium, radices litterarum esse</p><p>amaras, fructus autem dulces?</p><p>igitur et noster orator in Epist.</p><p>ad Hebr. idem probat. omnis</p><p>quidem disciplina in præsenti</p><p>17</p><p>1. Diálogo SoBre AS Sete coluNAS DA SABeDoriA</p><p>teza que de alegria. Mais tarde, porém, dará</p><p>um fruto de paz e de justiça aos que nela</p><p>foram exercitados” (Hb 12, 11).</p><p>DISCÍPULOS — Vamos! Guia-nos! Com</p><p>prazer [te] seguiremos aonde for necessá-</p><p>rio, porque a esperança do prêmio costu-</p><p>ma atenuar o sofrimento. Todo aquele que</p><p>ara, é na esperança de colher os frutos que</p><p>ara. Conta-se que, quando aquele grande</p><p>filósofo chamado Diógenes expulsou todos</p><p>os seus discípulos dizendo: “Ide, procu-</p><p>rai-vos um mestre, eu encontrei um para</p><p>mim”, Platão ficou sozinho com ele. Certo</p><p>dia [o discípulo] correu com os pés lama-</p><p>centos sobre o leito do mestre na intenção</p><p>de ficar-lhe próximo; então Platão amea-</p><p>çou feri-lo com um bastão, ao que o servo,</p><p>com a cabeça inclinada, respondeu: “Não</p><p>há bastão tão duro que me possa separar</p><p>do teu lado”.</p><p>Ora, se inflamado pelo amor da sabedoria</p><p>do século, e ignorando a celeste que con-</p><p>duz à vida eterna, aquele [discípulo] per-</p><p>sistia tão ardentemente em seguir seu mes-</p><p>tre, quanto mais nós devemos seguir teus</p><p>passos, ó mestre, quando entras e quando</p><p>sais, tu que não somente sabes conduzir-</p><p>-nos pelo caminho literário dos estudos</p><p>liberais, como também podes desvendar-</p><p>-nos os melhores caminhos da sabedoria</p><p>que conduz à vida eterna?</p><p>MESTRE — Preceda-nos a graça divina, e</p><p>conduza aos tesouros da sabedoria espiri-</p><p>non videtur esse gaudii sed</p><p>mæroris; postea [vero], pacatis-</p><p>simum fructum exercitatis in ea</p><p>affert iustitiæ.</p><p>DISCIPULI — Duc, age, quo</p><p>libeat, sequimur libenter, quia</p><p>spes premii solet laborem re-</p><p>levare. omnis quippe qui arat,</p><p>in spe arat percipiendi fructus.</p><p>fertur itaque, dum Diogenes</p><p>magnus ille philosophus om-</p><p>nes suos a se expulit discipulos</p><p>dicens: Ite, quærite vobis magi-</p><p>strum, ego vero [inveni] mihi, ei</p><p>solus Plato adhæsit, et quadam</p><p>die lutulentis pedibus super</p><p>exstructum magistri lectulum</p><p>cucurrit assidere doctori, quem</p><p>Diogenes baculo ferire minita-</p><p>batur; cui puer inclinato capite</p><p>respondit: Nullus est tam durus</p><p>baculus, qui me a tuo segregare</p><p>possit latere.</p><p>At si [Ms., Si ergo] ille amore</p><p>sæcularis sapientiæ flagrans,</p><p>cælestis vero, quæ ad vitam</p><p>ducit perpetuam, ignarus, sic</p><p>ardenter magistrum sequi per-</p><p>sistebat, quanto magis nos</p><p>tua, magister, ingredientem</p><p>vel egredientem vestigia sequi</p><p>debemus, qui non solum lit-</p><p>terario [Ms., litteratorio] nos</p><p>liberalium studiorum itinere</p><p>ducere nosti, sed etiam meliores</p><p>sophiæ vias, quæ ad vitam ducit</p><p>æternam [pandere] poteris?</p><p>MAGISTER — Divina nos</p><p>præcedat gratia, et in thesauros</p><p>18</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>tual, em que possais inebriar-vos na fon-</p><p>te das riquezas divinas, a fim de que haja</p><p>em vós uma fonte de água que jorre para a</p><p>vida eterna (cf. Jo 7, 38). Contudo, como o</p><p>Apóstolo disse: “Faça-se tudo decentemen-</p><p>te e com ordem” (1Cor 14, 40), julgo que</p><p>deveis ser conduzidos por certos degraus</p><p>de instrução, partindo das coisas inferio-</p><p>res às superiores, até que paulatinamente</p><p>cresçam as penas das virtudes, pelas quais</p><p>voando aos mais sublimes espetáculos do</p><p>puro céu, possais dizer: “Introduziu-nos o</p><p>rei em seus aposentos; exultaremos e nos</p><p>alegraremos neles” (Ct 1, 3).</p><p>DISCÍPULOS — Dá-nos tua mão direita,</p><p>mestre! Ergue-nos do solo da imperícia e</p><p>constitui-nos contigo nos degraus da sa-</p><p>bedoria, pois pela dignidade de teus cos-</p><p>tumes e pela verdade de tuas palavras, re-</p><p>conhecemos frequentemente que aí estás;</p><p>aonde foste conduzido, como ouvimos,</p><p>desde tenra idade por uma razão belíssima</p><p>das coisas. E se é lícito acomodar os ouvi-</p><p>dos às fábulas poéticas, não nos parece in-</p><p>conveniente o que afirmam: que as razões</p><p>são os banquetes dos deuses.</p><p>MESTRE — Na verdade, filhos, podeis di-</p><p>zer que as razões são mais o alimento dos</p><p>anjos e o ornato das almas, do que o ban-</p><p>quete dos deuses.</p><p>DISCÍPULOS — Seja qual for o modo</p><p>como devam ser chamadas, rogamos que</p><p>nos sejam revelados os primeiros degraus</p><p>spiritalis deducat sapientiæ, in</p><p>qua divinæ ubertatis fonte ine-</p><p>briari [possitis], ut sit in vobis</p><p>fons aquæ salientis in vitam</p><p>æternam. Sed quia Apostolo</p><p>præcipiente legimus: Omnia</p><p>vestra honesta cum ordine fiant,</p><p>vos per quosdam eruditionis</p><p>gradus ab inferioribus ad supe-</p><p>riora esse ducendos reor, donec</p><p>pennæ virtutum paulatim ac-</p><p>crescant, quibus ad altiora puri</p><p>ætheris spectamina volantes di-</p><p>cere valeatis: Introduxit me rex</p><p>in cellaria sua, exsultabimus et</p><p>lætabimur in eis (Ct 1, 3).</p><p>DISCIPULI — Da dexteram,</p><p>magister, et nos ab humo impe-</p><p>ritiæ eleva, et in gradus sophiæ</p><p>nos tecum constitue, in quibus</p><p>te ex morum dignitate, ex ver-</p><p>borum veritate sæpius consi-</p><p>stere agnovimus, quo te rerum</p><p>ratio pulcherrima ab ineunte, ut</p><p>audivimus, ætate perduxit; et si</p><p>poeticis licet aures accomodare</p><p>fabulis, nobis non incongruum</p><p>videtur, quod asserunt, epulas</p><p>deorum esse rationes.</p><p>MAGISTER — Verius, o filii!</p><p>dicere potestis, rationes esse</p><p>angelorum cibum, animarum</p><p>decorem, quam epulas deorum.</p><p>DISCIPULI — Quoquo modo</p><p>hæc dici debeant, primos pre-</p><p>camur nobis sapientiæ ostendi</p><p>19</p><p>1. Diálogo SoBre AS Sete coluNAS DA SABeDoriA</p><p>da sabedoria, a fim de que, com o auxílio</p><p>de Deus e a tua instrução, possamos chegar</p><p>das coisas inferiores às superiores.</p><p>MESTRE — Lemos o que disse Salomão,</p><p>por cuja voz canta a mesma Sabedoria: “A</p><p>sabedoria edificou para si uma casa, levan-</p><p>tou sete colunas” (Pr 9, 1). Esta sentença</p><p>pertence à Sabedoria divina, que no útero</p><p>virginal construiu para si uma casa, isto é,</p><p>um corpo, e a consolidou com os sete dons</p><p>do Espírito Santo; e que também iluminou</p><p>com os mesmos dons a Igreja, que é a casa</p><p>de Deus. Contudo, a sabedoria é consoli-</p><p>dada pelas sete colunas das artes liberais;</p><p>e de outro modo não conduz quem quer</p><p>que seja à perfeita ciência, a menos que seja</p><p>exaltado por estas sete colunas ou degraus.</p><p>DISCÍPULOS — Revela-nos, enfim, o que</p><p>prometeste; e dada a fraqueza da nossa idade,</p><p>começa por nutrir-nos com algo mais delica-</p><p>do, a fim de que, crescendo em idade, mais</p><p>facilmente cheguemos a coisas mais sólidas.</p><p>MESTRE — Auxiliado pela graça divina</p><p>que prepara e aperfeiçoa, farei o que pe-</p><p>distes: pôr-vos-ei diante dos olhos os sete</p><p>degraus da filosofia, e, se Deus ajudar e a</p><p>vida o permitir, conduzir-vos-ei por tais</p><p>degraus às sublimidades da ciência especu-</p><p>lativa, conforme o permitirem nossas for-</p><p>ças e a disponibilidade de tempo e a idade.</p><p>DISCÍPULOS — Vamos! Eia! Vamos! Ti-</p><p>ra-nos enfim do ninho da inércia e põe-nos</p><p>gradus, ut Deo donante et te</p><p>edocente ab inferioribus ad su-</p><p>periora pervenire valeamus.</p><p>MAGISTER — legimus, Sa-</p><p>lomone dicente, per quem ipsa</p><p>se cecinit [Sapientia]: Sapientia</p><p>ædificavit sibi domum, exci-</p><p>dit columnas septem (Pr 9, 1).</p><p>Quæ sententia licet ad divinam</p><p>pertineat sapientiam, quæ sibi</p><p>in utero virginali domum, id</p><p>est corpus, ædificavit, hanc et</p><p>septem donis sancti Spiritus</p><p>confirmavit; vel ecclesiam, quæ</p><p>est domus Dei, eisdem donis</p><p>illuminavit; tamen sapientia</p><p>liberalium litterarum septem</p><p>columnis confirmatur; nec ali-</p><p>ter ad perfectam quemlibet de-</p><p>ducit scientiam, nisi his septem</p><p>columnis vel etiam gradibus</p><p>exaltetur.</p><p>DISCIPULI — tandem ali-</p><p>quando pande quod promisisti,</p><p>et propter fragilitatem nostræ</p><p>ætatis nos mollioribus incipe</p><p>lactare, ut ad solidiora, crescen-</p><p>te ætate, facilius</p><p>perveniamus.</p><p>MAGISTER — Divina præv-</p><p>eniente etiam et perficiente</p><p>gratia faciam quod rogastis,</p><p>vobisque ad videndum osten-</p><p>dam [Ms., ostendero] septem</p><p>philosophiæ gradus, per eo-</p><p>sdemque Deo donante et vita</p><p>comite pro nostrarum portione</p><p>virium penes temporis et ætatis</p><p>opportunitatem ad sublimiora</p><p>speculativæ scientiæ deduxero.</p><p>DISCIPULI — Duc etiam, duc</p><p>et tandem aliquando de nidulo</p><p>20</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>contigo nos galhos da sabedoria que te foi</p><p>dada por Deus, donde possamos discernir</p><p>algo da luz da verdade; e como tantas vezes</p><p>prometeste, mostra-nos os sete degraus da</p><p>disciplina teorética.</p><p>MESTRE — Os degraus que procurais</p><p>— e oxalá sejais sempre tão ardentes em</p><p>aprendê-los, quanto agora estais curio-</p><p>sos por vê-los —, são: gramática, retórica,</p><p>dialética, aritmética, geometria, música e</p><p>astronomia. Foi por eles que os filósofos</p><p>consumiram tanto seu tempo de trabalho</p><p>como de descanso. Por eles, tornaram-se</p><p>mais gloriosos que os cônsules, mais cé-</p><p>lebres que os reis, eternamente dignos de</p><p>louvor. Por eles, também os santos e ca-</p><p>tólicos doutores e defensores de nossa fé</p><p>sempre foram superiores a todos os here-</p><p>siarcas nas disputas públicas.</p><p>Por estas veredas, filhos caríssimos, corra</p><p>diariamente a vossa adolescência, até que</p><p>na idade perfeita e com o espírito mais for-</p><p>te que o sentido, chegueis aos cumes das</p><p>Sagradas Escrituras. Para que, armados</p><p>assim de todos os lados, sejais sempre in-</p><p>vencíveis defensores da verdadeira fé e em-</p><p>baixadores da verdade.</p><p>ignaviæ in ramos tibi a Deo</p><p>datæ sapientiæ compone; unde</p><p>aliquod veritatis lumen cernere</p><p>valeamus: et quoties toties pro-</p><p>misisti, septenos theorasticæ</p><p>[Ms., forastice] disciplinæ gra-</p><p>dus nobis ostende.</p><p>MAGISTER — Sunt igitur</p><p>gradus, quos quæritis, et uti-</p><p>nam tam ardentes sitis semper</p><p>ad [ascendendum (Edit., di-</p><p>scendum)], quam curiosi modo</p><p>estis ad videndum: grammatica,</p><p>rhetorica [dialectica], arith-</p><p>metica, geometrica, musica et</p><p>astrologia. Per hos enim philo-</p><p>sophi sua contriverunt otia at-</p><p>que negotia. iis namque consu-</p><p>libus clariores effecti, iis regibus</p><p>celebriores, iis videlicet æterna</p><p>memoria laudabiles: iis quoque</p><p>sancti et catholici nostræ fidei</p><p>doctores et defensores omnibus</p><p>hæresiarchis in contentionibus</p><p>publicis semper superiores ex-</p><p>stiterunt.</p><p>Per has vero, filii charissimi,</p><p>semitas vestra quotidie currat</p><p>adolescentia, donec perfectior</p><p>ætas et animus sensu robustior</p><p>ad culmina sanctarum Scrip-</p><p>turarum perveniat. Quatenus</p><p>hinc inde armati veræ fidei</p><p>defensores et veritatis asser-</p><p>tores omnimodis invincibiles</p><p>efficiamini.</p><p>21</p><p>I. Das artes que devem ser</p><p>preferencialmente estudadas</p><p>De todas as ciências, os antigos escolheram</p><p>sete de maneira especial em seus estudos</p><p>para serem usadas no trabalho pedagógico.</p><p>E de tal maneira as consideraram superio-</p><p>res às demais que, segundo eles, todo aquele</p><p>que tivesse recebido uma sólida formação</p><p>nestas disciplinas, poderia chegar ao co-</p><p>nhecimento das outras mais por sua própria</p><p>busca e exercício do que ouvindo aulas.</p><p>Com efeito, estas ciências são ótimos ins-</p><p>trumentos e excelentes bases que prepa-</p><p>ram o espírito para o pleno conhecimento</p><p>da verdade filosófica. Daí terem recebido o</p><p>nome de trivium e quadrivium, por serem</p><p>como vias pelas quais o espírito fortaleci-</p><p>do se introduz nos segredos da sabedoria.</p><p>Neste tempo, ninguém era considerado</p><p>digno do nome de mestre se não dominas-</p><p>se o conhecimento destas sete artes.</p><p>CAPUT I. Quæ artes</p><p>præcipue legendæ sint</p><p>ex his autem omnibus scien-</p><p>tiis supra enumeratis septem</p><p>specialiter decreverant antiqui</p><p>in studiis suis ad opus eru-</p><p>diendorum, in quibus tantam</p><p>utilitatem esse præ cæteris om-</p><p>nibus perspexerunt, ut quisquis</p><p>harum disciplinam firmiter</p><p>percepisset, ad aliarum noti-</p><p>tiam postea inquirendo magis</p><p>et exercendo, quam audiendo</p><p>perveniret.</p><p>Sunt enim quasi optima quæd-</p><p>am instrumenta et rudimenta</p><p>quibus via paratur animo ad</p><p>plenam philosophicæ verita-</p><p>tis notitiam. Hinc trivium et</p><p>quadrivium nomen accepit, eo</p><p>quod ii quasi quibusdam viis</p><p>vivax animus ad secreta sophiæ</p><p>introeat. Nemo tunc tempo-</p><p>ris nomine magistri dignus</p><p>videbatur, qui non harum Vii</p><p>scientiam profiteri posset.</p><p>2.</p><p>IMPORTÂNCIA DO TRIVIUM</p><p>E DO QUADRIVIUM</p><p>Hugo de São Vítor</p><p>22</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>Lê-se que Pitágoras também manteve</p><p>como prática em seus cursos que, antes de</p><p>concluídos sete anos, correspondentes ao</p><p>número das sete artes liberais, nenhum de</p><p>seus discípulos podia atrever-se a pedir-lhe</p><p>uma explicação de suas afirmações, senão</p><p>que deveria confiar nas palavras do mestre</p><p>até que concluísse sua etapa de aprendiza-</p><p>gem, e então teria a capacidade de encon-</p><p>trar a explicação por si mesmo.</p><p>Alguns, segundo se diz, estudavam com</p><p>tanto empenho estas sete artes que as</p><p>conservavam plenamente em sua memó-</p><p>ria. Desta maneira, independentemente</p><p>dos textos que tivessem em mãos ou dos</p><p>problemas propostos para sua solução ou</p><p>demonstração, não se viam obrigados a re-</p><p>passar as páginas dos livros para buscar os</p><p>princípios e razões que lhes permitissem</p><p>resolver as dúvidas, senão que, imediata-</p><p>mente, tinham à disposição em sua mente</p><p>a resposta para cada caso.</p><p>Isto explica por que nesse tempo havia tan-</p><p>tos sábios capazes de escrever mais livros</p><p>do que nós somos capazes de ler. Nossos</p><p>estudantes, ao contrário, não sabem ou não</p><p>querem seguir o método adequado para o</p><p>aprendizado, razão pela qual contamos</p><p>com muitos estudantes mas com poucos</p><p>sábios. Julgo, porém, que assim como o lei-</p><p>tor deve evitar o desperdício de tempo com</p><p>estudos inúteis, também deve fugir da ti-</p><p>bieza nos propósitos bons e úteis. Se é ruim</p><p>Pythagoras hanc in studiis suis</p><p>consuetudinem servasse legitur,</p><p>ut usque ad septenium, secun-</p><p>dum numerum videlicet septem</p><p>artium liberalium, nullus disci-</p><p>pulorum suorum de iis quæ ab</p><p>ipso dicebantur rationem po-</p><p>scere auderet; sed fidem daret</p><p>verbis magistri quousque om-</p><p>nia audivisset, sicque iam per</p><p>semetipsum rationem eorum</p><p>posset invenire.</p><p>Has septem quidam tanto stu-</p><p>dio didicisse leguntur, ut plane</p><p>ita omnes in memoria tene-</p><p>rent, ut quascunque scripturas</p><p>deinde ad manum sumpsis-</p><p>sent, quascunque quæstiones</p><p>solvendas aut comprobandas</p><p>proposuissent, ex his regulas et</p><p>rationes ad definiendum id de</p><p>quo ambigeretur, folia librorum</p><p>revolvendo non quærerent, sed</p><p>statim singula corde parata ha-</p><p>berent.</p><p>Hinc profecto accidit eo tem-</p><p>pore tot fuisse sapientes ut</p><p>plura ipsi scriberent quam nos</p><p>legere possimus. Scholastici</p><p>autem nostri aut nolunt aut ne-</p><p>sciunt modum congruum in di-</p><p>scendo servare, et idcirco mul-</p><p>tos studentes, paucos sapientes</p><p>invenimus. Mihi vero videtur</p><p>non minori cura providendum</p><p>esse lectori ne in studiis inu-</p><p>tilibus operam suam expendat,</p><p>quam ne in bono et utili propo-</p><p>sito tepidus remaneat. Malum</p><p>est bonum negligenter agere,</p><p>23</p><p>2. iMPortâNciA Do triViuM e Do QuADriViuM</p><p>fazer o que é bom com negligência, pior</p><p>ainda é esforçar-se muito por algo inútil.</p><p>Mas, como nem todos têm capacidade de</p><p>discernir o que lhes convém, mostrarei ao</p><p>leitor quais são os escritos que me parecem</p><p>mais convenientes, para logo acrescentar</p><p>também umas breves reflexões sobre o mé-</p><p>todo de aprender.</p><p>II. Dos dois gêneros de escritos</p><p>Há dois gêneros de escritos: o primeiro</p><p>compreende aqueles que tratam das artes</p><p>em sentido próprio; o segundo, aqueles que</p><p>tratam dos apêndices das artes. As artes são</p><p>as que estão subordinadas à filosofia, isto é,</p><p>que têm por objeto uma certa e determi-</p><p>nada parte da filosofia, como a gramática,</p><p>a dialética etc. Os apêndices das artes são</p><p>aqueles que só indiretamente se referem à</p><p>filosofia, isto é, que têm como objeto uma</p><p>matéria exterior à filosofia.</p><p>Algumas vezes, certos elementos extraídos</p><p>das artes referem-se à [filosofia] de maneira</p><p>esporádica e confusa; mas se forem expos-</p><p>tos com simplicidade, preparam o caminho</p><p>para a filosofia. Tal é o caso de todas as obras</p><p>dos poetas, como as tragédias, comédias e</p><p>sátiras, também</p><p>a epopeia, a lírica e os ver-</p><p>sos jâmbicos, algumas obras didáticas, as</p><p>fábulas e as histórias; e até os escritos da-</p><p>queles que agora comumente chamamos</p><p>de filósofos, os quais costumam tratar com</p><p>peius est in vanum labores mul-</p><p>tos expendere.</p><p>Sed quia non omnes hanc di-</p><p>scretionem habere possunt, ut</p><p>intelligant quod sibi expediat,</p><p>idcirco quæ Scripturæ mihi</p><p>utiliores videantur, lectori bre-</p><p>viter demonstrabo, ac deinde de</p><p>modo quoque disserendi pauca</p><p>adnectam.</p><p>CAPUT II. De duobus</p><p>generibus scripturarum</p><p>Duo sunt genera scripturarum.</p><p>Primum genus est earum quæ</p><p>propriæ artes appellantur. Se-</p><p>cundum est earum quæ sunt</p><p>appendentia artium. Artes sunt</p><p>quæ philosophiæ supponun-</p><p>tur, id est quæ aliquam certam</p><p>et determinatam philosophiæ</p><p>materiam habent, ut est gram-</p><p>matica, dialectica, et cæteræ</p><p>huiusmodi. Appendentia ar-</p><p>tium sunt quæ tantum ad phi-</p><p>losophiam spectant, id est quæ</p><p>in aliqua extra philosophiam</p><p>materia versantur.</p><p>Aliquando tamen quædam ab</p><p>artibus discerpta sparsim et</p><p>confuse attingunt, vel si sim-</p><p>plex narratio est, viam ad phi-</p><p>losophiam præparant. Huiu-</p><p>smodi sunt omnia poetarum</p><p>carmina, ut sunt tragoediæ, co-</p><p>moediæ, satiræ, heroica quoque</p><p>et lyrica, et iambica, et didasca-</p><p>lica quædam; fabulæ quoque et</p><p>historiæ; illorum etiam scripta,</p><p>quos nunc philosophos appella-</p><p>re solemus, qui et brevem mate-</p><p>riam longis verborum ambagi-</p><p>bus extendere consueverunt, et</p><p>24</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>abundância de palavras e rodeios um as-</p><p>sunto simples, e obscurecer com linguagem</p><p>complicada o que tem um sentido claro, ou</p><p>reúnem vários elementos numa só coisa,</p><p>como se pretendessem fazer uma pintura a</p><p>partir de muitas formas e cores.</p><p>Nota bem a distinção que estabeleci entre</p><p>as artes e os apêndices das artes. Mas entre</p><p>os dois eu vejo uma distância semelhante</p><p>à expressa por aquele que disse: “Quanto o</p><p>maleável salgueiro cede à pálida oliveira,</p><p>quanto a humilde valeriana aos purpúreos</p><p>roseirais”.5</p><p>Assim, se alguém decide alcançar a ciên-</p><p>cia, mas deixa de lado as artes verdadei-</p><p>ras para entregar-se às acessórias, terá um</p><p>trabalho enorme, para não dizer infinito,</p><p>e com resultados mínimos. Em suma, as</p><p>artes, sem seus apêndices, podem tornar</p><p>perfeito o leitor. Os apêndices, porém,</p><p>sem as artes, em nada contribuem para a</p><p>perfeição, sobretudo se consideramos que</p><p>eles nada têm de desejável em si mesmos</p><p>que atraia o leitor, exceto o que tomaram</p><p>ou adaptaram das artes. Que ninguém,</p><p>pois, busque neles outra coisa além do que</p><p>pertence às artes.</p><p>5. “Quanto o maleável salgueiro cede à pálida olivei-</p><p>ra, quanto a humilde valeriana aos purpúreos rosei-</p><p>rais, tanto, no nosso juízo, a ti cede Amintas. Mas</p><p>cessa de <falar> mais: entramos no antro” (Virgílio,</p><p>Bucólicas, trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Quetzal,</p><p>2021, p. 97).</p><p>facilem sensum perplexis ser-</p><p>monibus obscurare, vel etiam</p><p>diversa simul compilantes, qua-</p><p>si de multis coloribus et formis,</p><p>unam picturam facere.</p><p>Nota quæ tibi distinxi. Duo</p><p>sunt artes et appenditia artium.</p><p>Sed inter hæc tanta mihi di-</p><p>stantia esse videtur, ut ille ait:</p><p>“lenta salix quantum pallenti</p><p>cedit olivæ, puniceis humi-</p><p>lis quantum saliunca rosetis”</p><p>(Virg. in Bucol.).</p><p>ita ut quicunque ad scientiam</p><p>pertingere cupit, si relicta veri-</p><p>tate artium reliquis se implicare</p><p>voluerit, materiam laboris ne-</p><p>dum plurimam sed et infinitam</p><p>sustinebit, et fructum exiguum.</p><p>Denique partes sine appendici-</p><p>is suis perfectum lectorem face-</p><p>re possunt; illa sine artibus nihil</p><p>perfectionis conferre valent.</p><p>Maxime autem cum nihil in se</p><p>expetendum habeant unde lec-</p><p>torem invitent, nisi traductum</p><p>ab artibus et accommodatum;</p><p>neque quisquam in eis quærant</p><p>nisi quod artium est.</p><p>25</p><p>2. iMPortâNciA Do triViuM e Do QuADriViuM</p><p>Por isso, parece-me que antes de tudo de-</p><p>vemos dedicar nossos esforços às artes, nas</p><p>quais se encontram os fundamentos de to-</p><p>das as coisas e se descobre a pura e simples</p><p>verdade, e sobretudo às sete das quais falei</p><p>antes, que são os instrumentos de toda a</p><p>filosofia. Depois, se houver tempo, sejam</p><p>lidas também as outras coisas; porque às</p><p>vezes algo recreativo causa mais deleite</p><p>quando é mesclado com coisas sérias, e a</p><p>raridade faz o que é bom parecer precioso.</p><p>É por isso que às vezes retemos com mais</p><p>avidez uma sentença, quando a encontra-</p><p>mos no meio de uma fábula.</p><p>Sem embargo, o fundamento de todo o</p><p>aprendizado encontra-se nas sete artes</p><p>liberais, que devem ser preferidas às de-</p><p>mais, posto que sem elas a disciplina fi-</p><p>losófica não costuma nem pode explicar</p><p>ou definir qualquer coisa. Certamente es-</p><p>tas artes de tal maneira estão vinculadas</p><p>entre si e se exigem mutuamente em suas</p><p>razões que, se faltar uma só delas, todas</p><p>as outras não são capazes de formar um</p><p>filósofo. Por isso, parece-me que erram os</p><p>que, sem ter em conta esta coerência entre</p><p>as artes, escolhem para si algumas e pen-</p><p>sam que podem aperfeiçoar-se nelas sem</p><p>ocupar-se das demais.</p><p>Quapropter mihi videtur pri-</p><p>mum opera danda esse ar-</p><p>tibus ubi fundamenta sunt</p><p>omnium, et pura simplexque</p><p>veritas aperitur; maxime his</p><p>Vii quas prædixi, quæ totius</p><p>philosophiæ instrumenta sunt.</p><p>Deinde cætera quæque, si vacat,</p><p>legantur, quia aliquando plus</p><p>delectare solent seriis admixta</p><p>ludicra, et raritas pretiosum fa-</p><p>cit bonum. Sic in medio fabulæ</p><p>cursu inventam sententiam avi-</p><p>dius aliquando retinemus.</p><p>Verumtamen in septem libe-</p><p>ralibus artibus fundamentum</p><p>est omnis doctrinæ, quæ præ</p><p>cæteris omnibus ad manum</p><p>habendæ sunt, utpote sine</p><p>quibus nihil solet aut potest</p><p>philosophica disciplina expli-</p><p>care aut definire. Hæ quidem</p><p>ita sibi cohærent, et alternis</p><p>vicissim rationibus indigent,</p><p>ut si una defuerit, cæteræ phi-</p><p>losophum facere non possint.</p><p>unde mihi errare videntur,</p><p>qui non attendentes talem in</p><p>artibus cohærentiam, quasdam</p><p>sibi ex ipsis eligunt, et cæteris</p><p>intactis, his se posse fieri per-</p><p>fectos putant.</p><p>26</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>III. De que se deve atribuir a cada uma</p><p>das artes o que lhe é próprio</p><p>Mas há outro erro, quase tão grave quanto o</p><p>anterior, e que é preciso evitar a todo custo.</p><p>Com efeito, há alguns que, sem omitir nada</p><p>do que deve ser lido, contudo, são incapa-</p><p>zes de dar a cada uma das artes o que lhe é</p><p>próprio; ao contrário, em cada uma [preten-</p><p>dem] estudar todas. Na gramática, discutem</p><p>sobre a natureza do silogismo; na dialética,</p><p>indagam sobre a declinação dos casos; e, o</p><p>que é ainda mais ridículo, ao discutirem o</p><p>título de um livro, explicam quase a obra</p><p>inteira, e na terceira exposição, mal con-</p><p>cluíram o início. Ao atuar desta forma, não</p><p>ensinam aos demais, só fazem ostentação de</p><p>sua ciência. Oxalá que todos os pudessem</p><p>ver tal como eu os vejo! Reflete, pois, sobre</p><p>a perversidade deste costume, porque, em</p><p>verdade, quantas mais coisas inúteis acres-</p><p>centares, tanto menos capacidade terás de</p><p>entender e reter os assuntos importantes.</p><p>Assim, pois, em qualquer arte temos de</p><p>identificar e distinguir principalmente duas</p><p>coisas: primeiro, como deve ser tratada a</p><p>arte em si; segundo, como se devem aplicar</p><p>a qualquer outro assunto os princípios desta</p><p>arte. São duas coisas: tratar da arte, e agir por</p><p>meio da arte. Tratar da arte é, por exemplo,</p><p>tratar da gramática; e agir por meio da arte,</p><p>é agir gramaticalmente. Há que distinguir</p><p>bem as duas coisas: tratar da gramática, e</p><p>tratar gramaticalmente. Trata da gramática,</p><p>CAPUT III. Unicuique</p><p>arti quod suum est</p><p>tribuendum esse</p><p>est rursum alius error non mul-</p><p>to minor isto, quem summope-</p><p>re vitare oportet. Sunt enim</p><p>quidam, qui licet ex iis quæ</p><p>legenda sunt nihil præterm-</p><p>ittant, nulli tamen arti quod</p><p>suum est tribuere norunt, sed</p><p>in singulis legunt omnes. in</p><p>grammatica de syllogismorum</p><p>ratione disputant; in dialectica</p><p>inflexiones casuales inquirunt,</p><p>et quod magis irrisione dignum</p><p>est, in titulo totum pæne le-</p><p>gunt librum, et incipit tertia vix</p><p>lectione expediunt. Non alios</p><p>docent huiusmodi, sed suam</p><p>ostentant scientiam. Sed uti-</p><p>nam quales mihi, tales omnibus</p><p>apparerent!</p><p>Attende quam per-</p><p>versa sit hæc consuetudo; cum</p><p>profecto quanto magis super-</p><p>flua aggregaveris, tanto minus</p><p>ea quæ utilia sunt capere possis</p><p>vel retinere.</p><p>in qualibet igitur arte duo no-</p><p>bis maxime discernenda sunt et</p><p>distinguenda: primum, quali-</p><p>ter oporteat in ipsa arte agere;</p><p>secundum, qualiter oporteat</p><p>ipsius artis rationes quibuslibet</p><p>aliis rebus accommodare. Duo</p><p>sunt agere de arte, et agere per</p><p>artem. Verbi gratia, agere de</p><p>arte, ut est agere de grammati-</p><p>ca, agere per artem, ut est agere</p><p>grammatice. De grammatica</p><p>agit, qui regulas de vocibus da-</p><p>tas, et præcepta ad hanc vocem</p><p>pertinentia tractat; grammatice</p><p>27</p><p>2. iMPortâNciA Do triViuM e Do QuADriViuM</p><p>quem trata das regras dadas para regular o</p><p>uso das palavras e dos preceitos que perten-</p><p>cem a esta arte; age gramaticalmente, todo</p><p>aquele que fala e escreve segundo as regras.</p><p>Portanto, tratar da gramática pertence ape-</p><p>nas a alguns escritos, como os de Prisciano,</p><p>Donato e Sérvio; mas agir gramaticalmente,</p><p>pertence a todos os livros.</p><p>Quando, pois, tratarmos de qualquer arte,</p><p>sobretudo na docência, onde tudo deve ser</p><p>reduzido a compêndios para facilitar a com-</p><p>preensão, devemos dar-nos por satisfeitos</p><p>com explicar o tema da maneira mais breve</p><p>e clara possível, para evitar que, com a mul-</p><p>tiplicação de complicadas explicações, con-</p><p>fundamos o aluno em vez de instruí-lo. Não</p><p>devemos dizer tudo o que podemos, para</p><p>que não sejam ditas com menos utilidade as</p><p>coisas que devemos dizer.</p><p>Em suma, deves buscar em cada uma das</p><p>artes aquilo que especificamente lhe per-</p><p>tence. Mais tarde, quando tiveres estudado</p><p>as diversas artes e, mediante a discussão</p><p>e comparação, tiveres logrado conhecer o</p><p>que é próprio a cada uma, então poderás</p><p>relacionar entre si os princípios de cada</p><p>uma delas e, a partir desta última consi-</p><p>deração, investigar novamente o que antes</p><p>não havias compreendido suficientemente.</p><p>Não multipliques os atalhos enquanto não</p><p>tiveres conhecido os caminhos principais:</p><p>caminharás seguro, quando não tiveres</p><p>medo de desviar-te.</p><p>agit omnis qui regulariter lo-</p><p>quitur vel scribit. Agere igitur</p><p>de grammatica, quibusdam</p><p>tantummodo, ut Prisciano, Do-</p><p>nato, Servio, et similibus, con-</p><p>venit. Agere vero grammatice,</p><p>omnibus.</p><p>cum igitur de qualibet arte</p><p>agimus, maxime in docendo,</p><p>ubi omnia ad compendium re-</p><p>stringenda sunt, et ad facilem</p><p>intelligentiam revocanda, suf-</p><p>ficere debet id de quo agitur,</p><p>quanto brevius et aptius potest</p><p>explanare, ne si alienas nimium</p><p>rationes multiplicaverimus,</p><p>magis turbemus quam ædif-</p><p>icemus lectorem. Non omnia</p><p>dicenda sunt quæ dicere possu-</p><p>mus, ne minus utiliter dicantur</p><p>ea quæ dicere debemus.</p><p>id tandem in unaquaque arte</p><p>quæras quod ad eam speciali-</p><p>ter pertinere constiterit. Dein-</p><p>de cum legeris artes, et quod</p><p>uniuscuiusque sit proprium</p><p>agnoveris disputando et con-</p><p>ferendo, tunc demum rationes</p><p>singularum invicem conferre</p><p>licebit; et ex alterna considera-</p><p>tione vicissim quæ minus prius</p><p>intellexeras investigare. Noli</p><p>multiplicare diverticula quoa-</p><p>dusque semitas didiceris. Se-</p><p>curus discurres cum errare non</p><p>timueris.</p><p>28</p><p>I. Sobre a arte gramática</p><p>e suas espécies</p><p>A primeira das artes liberais é a gramática,</p><p>a segunda é a retórica, a terceira é a dialé-</p><p>tica, a quarta é a aritmética, a quinta é a</p><p>geometria, a sexta é a música e a sétima,</p><p>a astronomia. O termo gramática vem de</p><p>letra,6 como se nota do som derivado da-</p><p>quele vocábulo. Eis a sua definição: a gra-</p><p>mática é a ciência de interpretar os poetas</p><p>e historiadores, e o método de escrever e</p><p>falar corretamente. Ela é a origem e o fun-</p><p>damento das artes liberais.</p><p>À escola do Senhor, portanto, convém</p><p>aprendê-la, porque nela se encontra a ciên-</p><p>cia do falar corretamente e o método de es-</p><p>crever. Como alguém pode conhecer o sen-</p><p>tido dos sons articulados ou a propriedade</p><p>das letras e sílabas, se antes não aprendeu</p><p>isto por ela? Ou como pode saber a dis-</p><p>6. Em grego γράμμα (grámma) significa “letra”. (N.T.)</p><p>CAPUT I. De arte gram-</p><p>matica, et speciebus eius</p><p>“Prima ergo liberalium artium</p><p>est grammatica, secunda retho-</p><p>rica, tertia dialectica, quarta</p><p>arithmethica, quinta geometria,</p><p>sexta musica, septima astrono-</p><p>mia” (isid. Etym., i, 2). “gram-</p><p>matica enim a litteris nomen</p><p>accepit, sicut vocabuli illius</p><p>derivatus sonus ostendit” (cas-</p><p>siod., Inst. litt., cp. 1). Deffinitio</p><p>autem eius talis est: gramma-</p><p>tica est scientia interpretandi</p><p>poetas atque historicos, et recte</p><p>scribendi loquendique ratio.</p><p>Hæc et “origo et fundamentum</p><p>est artium liberalium” (Ibid.).</p><p>Hanc itaque scholam Domini-</p><p>cam legere convenit, quia scien-</p><p>tia recte loquendi et scribendi</p><p>ratio in ipsa consistit. Quomo-</p><p>do quis vim vocis articulatæ</p><p>seu litterarum et syllabarum</p><p>potestatem cognoscit, si non</p><p>prius per eam id didicit? Aut</p><p>quomodo pedum, accentuum et</p><p>3.</p><p>SETE ARTES LIBERAIS EXPLICADAS</p><p>Rábano Mauro</p><p>29</p><p>3. Sete ArteS liBerAiS exPlicADAS</p><p>tinção entre os pés, os acentos e as termi-</p><p>nações, se por esta disciplina não chegou</p><p>a tal conhecimento antes? Ou como pode</p><p>conhecer as regras das partes da oração, a</p><p>beleza dos símbolos, a força das figuras de</p><p>linguagem, a explicação das etimologias e a</p><p>ortografia correta, se antes não conhecer a</p><p>arte gramática?</p><p>Portanto, não é digno de censura, antes,</p><p>merece louvor quem estuda esta arte, se</p><p>nela busca não uma inútil logomaquia,7 mas</p><p>a aquisição da ciência do falar corretamente</p><p>e a perícia na escrita. É ela o juiz de todos os</p><p>escritores, pois repreende o erro onde quer</p><p>que o encontre, e onde <nota> algo bem es-</p><p>crito, comprová-lo-á com seu juízo.</p><p>Todos os símbolos que a disciplina secular</p><p>registrou, encontram-se muito frequen-</p><p>temente postos nos livros sagrados. Com</p><p>efeito, quem diligentemente ler os livros</p><p>divinos, descobrirá que os nossos autores</p><p>usaram figuras de linguagem, e com mais</p><p>variedade e abundância que se possa pen-</p><p>sar ou crer. E não somente os exemplares</p><p>de todas essas figuras de linguagem, mas</p><p>inclusive seus nomes — como alegoria,</p><p>enigma, parábola — podem ser lidos nos</p><p>livros divinos. Por isso, o conhecimento de</p><p>todas essas coisas é necessário para resol-</p><p>ver as ambiguidades das Escrituras, pois</p><p>é absurdo tomar as palavras <sempre> no</p><p>7. Em grego significa “disputa de palavras”. (N.T.)</p><p>positurarum discretionem scit,</p><p>si non per hanc disciplinam</p><p>eius scientiam ante percepit?</p><p>Aut quomodo partium oratio-</p><p>nis iura, schematum decorem,</p><p>troporum virtutem, etymo-</p><p>logiarum rationem, et ortho-</p><p>graphiæ rectitudinem novit, si</p><p>non grammaticam artem ante</p><p>sibi notam fecit?</p><p>inculpabiliter enim, imo lau-</p><p>dabiliter hanc artem discit,</p><p>quisquis in ea non inanem pu-</p><p>gnam verborum facere diligit,</p><p>sed rectæ locutionis scientiam</p><p>et scribendi peritiam habere</p><p>appetit. ipsa est enim omnium</p><p>iudex librariorum, quia ubi-</p><p>cumque errorem perspexerit,</p><p>reprehendit, et ubi bene dicta</p><p>sunt, suo iudicio comprobabit.</p><p>Schemata autem omnia quot-</p><p>quot sæcularis disciplina con-</p><p>scripsit, in sanctis libris sæpius</p><p>posita reperiuntur. Necnon</p><p>“tropis auctores nostros usos</p><p>fuisse, et multiplicius atque co-</p><p>piosius quam possit existimari</p><p>vel credere” (Aug. Doc. Crist.,</p><p>iii, 29), quisquis libros divi-</p><p>nos diligenter legit, inveniet.</p><p>“istorum autem troporum non</p><p>solum exempla sicut omnium,</p><p>sed quorumdam etiam nomina</p><p>in divinis libris leguntur, sicut</p><p>allegoria, ænigma, parabola.</p><p>Quorum omnium cognitio</p><p>propterea Scripturarum am-</p><p>biguitatibus dissolvendis est</p><p>necessaria, quia sensus ad pro-</p><p>prietatem verborum si accipia-</p><p>tur, absurdus est. Quærendum</p><p>30</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>sentido literal. Deve-se investigar princi-</p><p>palmente se com tal ou qual figura de lin-</p><p>guagem foi expresso algo que não entende-</p><p>mos, pois assim foram descobertas muitas</p><p>coisas antes escondidas.</p><p>Não é desprezível o conhecimento que,</p><p>pela arte gramática, adquirimos sobre a</p><p>estrutura métrica; porque, como atesta São</p><p>Jerônimo, entre os hebreus o saltério ora</p><p>corre em jâmbico, ora ressoa em alcaico,</p><p>ora se enche de sáficos, ora marcha a meio</p><p>pé. Por outro</p><p>lado, o Deuteronômio, o cân-</p><p>tico de Isaías, o Cântico dos Cânticos e o</p><p>Livro de Jó foram originalmente compos-</p><p>tos em versos hexâmetros e pentâmetros,</p><p>segundo Josefo e Orígenes.</p><p>Esta matéria, embora comum aos pagãos,</p><p>não deve pois ser desprezada, mas suficien-</p><p>temente aprendida, porque afinal muitos</p><p>varões evangélicos produziram livros im-</p><p>portantes sobre essa arte, e tencionavam</p><p>com isso agradar a Deus, como foram Ju-</p><p>venco, Sedúlio, Arátor, Alcimo, Clemente,</p><p>Paulino, Fortunato e muitos outros.</p><p>Se quisermos ler os poemas e os livros dos</p><p>pagãos pelo brilho da eloquência, devemos</p><p>ter em mente a figura da mulher prisionei-</p><p>ra descrita no Deuteronômio (21, 10-14):</p><p>lê-se aí que o Senhor preceituou ao israe-</p><p>lita que, se quisesse tomá-la como esposa,</p><p>deveria fazê-la raspar o cabelo, cortar as</p><p>unhas, remover os pelos e, quando estives-</p><p>se purificada, poderia então unir-se a ela.</p><p>est utique, ne forte illo vel illo</p><p>tropo dictum sit quod non in-</p><p>tellegimus, et sic pleraque in-</p><p>venta sunt quæ latebant” (Ibid.).</p><p>Metricam autem rationem quæ</p><p>per artem grammaticam disci-</p><p>tur, non ignobile est scire, quia</p><p>apud Hebræos Psalterium (ut</p><p>beatus Hieronymus testatur)</p><p>nunc iambo currit, nunc alchai-</p><p>co personat, nunc sapphico tu-</p><p>met, nunc semipede ingreditur.</p><p>Deuteronomium vero, et isaiæ</p><p>canticum, necnon et Salomon</p><p>et iob, hexametris et penta-</p><p>metris versibus (ut iosephus et</p><p>origenes scribunt) apud suos</p><p>composita decurrunt.</p><p>Quamobrem non est spernenda</p><p>hæc, quamvis gentilibus com-</p><p>munis ratio, sed quantum satis</p><p>est perdiscenda, quia utique</p><p>multi evangelici viri, insignes</p><p>libros hac arte condiderunt, et</p><p>Deo placere per id satagerunt,</p><p>ut fui iuvencus, Sedulius, Ara-</p><p>tor, Alcimus, clemens, Pau-</p><p>linus et fortunatus, et cæteri</p><p>multi.</p><p>Poemata autem et libros genti-</p><p>lium si velimus propter florem</p><p>eloquentiæ legere, typus mulie-</p><p>ris captivæ tenendus est, quam</p><p>Deuteronomium describit; et</p><p>Dominum ita præcepisse com-</p><p>memorat, ut si isrælites eam</p><p>habere vellet uxorem, calvitium</p><p>ei faciat, ungues præsecet, pilos</p><p>auferat, et cum munda fuerit</p><p>effecta, tunc transeat in uxoris</p><p>amplexus. Hæc si secundum</p><p>31</p><p>3. Sete ArteS liBerAiS exPlicADAS</p><p>Tais coisas, se as entendemos literalmente,</p><p>não são ridículas? Não obstante, quando</p><p>lemos os poetas pagãos, quando chegam</p><p>às nossas mãos livros da sabedoria secular,</p><p>também nós costumamos fazer algo e deve-</p><p>mos fazê-lo, a saber: se neles encontramos</p><p>algo útil, convertemo-lo ao nosso dogma;</p><p>mas se encontramos algo supérfluo, sobre</p><p>os ídolos, o amor ou a preocupação com</p><p>coisas seculares, nós o removemos, reduzi-</p><p>mo-lo à calvície, e o cortamos com lâmina</p><p>agudíssima à semelhança de unhas.</p><p>Antes de mais nada, porém, cuidemos para</p><p>que esta nossa liberdade não se torne obs-</p><p>táculo aos débeis, a fim de que, por causa</p><p>de nossa ciência, não venha a perecer o ir-</p><p>mão débil pelo qual Cristo morreu, se nos</p><p>vir à mesa com os ídolos.</p><p>II. Sobre a retórica</p><p>Na cultura secular, a retórica é, como ensi-</p><p>nam os mestres, a ciência do bem discursar</p><p>nas questões civis. Mas embora essa defini-</p><p>ção pareça pertencer à sabedoria mundana,</p><p>contudo, não é estranha à formação ecle-</p><p>siástica. Com efeito, tudo quanto o orador</p><p>e pregador da lei divina profere ordenada e</p><p>adequadamente ao ensinar, ou tudo quanto</p><p>expressa apta e elegantemente ao discursar,</p><p>corresponde à perícia desta arte. Portanto,</p><p>não pensemos que comete pecado quem a</p><p>estuda na idade conveniente, e quem ob-</p><p>litteram intelligimus, nonne ri-</p><p>dicula sunt? itaque et nos hoc</p><p>facere solemus, hocque facere</p><p>debemus, quando poetas gen-</p><p>tiles legimus, quando in manus</p><p>nostras libri veniunt sapientiæ</p><p>sæcularis, si quid in eis utile</p><p>reperimus, ad nostrum dogma</p><p>convertimus; si quid vero su-</p><p>perfluum de idolis, de amore,</p><p>de cura sæcularium rerum, hæc</p><p>radamus, his calvitium induca-</p><p>mus, hæc in unguium more fer-</p><p>ro acutissimo desecemus.</p><p>Hoc tamen præ omnibus cavere</p><p>debemus, ne hæc licentia nostra</p><p>offendiculum fiat infirmis: ne</p><p>pereat qui infirmus est in scien-</p><p>tia nostra frater, propter quem</p><p>christus mortuus est, si viderit</p><p>in idolio nos recumbentes.</p><p>CAPUT II. De rethorica</p><p>“rhetorica est, sicut magistri</p><p>tradunt, sæcularium litterarum</p><p>bene dicendi scientia, in civili-</p><p>bus quæstionibus” (cassiod. l.</p><p>c., cp. 2). Sed hæc deffinitio licet</p><p>ad mundanam sapientiam vide-</p><p>atur pertinere, tamen non est</p><p>extranea ab ecclesiastica disci-</p><p>plina. Quidquid enim orator et</p><p>prædicator divinæ legis diserte</p><p>et decenter profert in docendo,</p><p>vel quidquid apte et eleganter</p><p>depromit in dictando, ad huius</p><p>artis congruit peritiam; nec uti-</p><p>que peccare debet arbitrari, qui</p><p>hanc artem in congrua ætate le-</p><p>git, quique eius præcepta servat</p><p>32</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>serva seus preceitos ao discursar e expor</p><p>um assunto; na verdade, realiza uma boa</p><p>obra quem a aprende em plenitude a fim de</p><p>tornar-se apto a pregar a palavra de Deus.</p><p>Afinal, se pela arte retórica apregoa-se tan-</p><p>to o verdadeiro como o falso, quem ousará</p><p>dizer que a verdade deva permanecer iner-</p><p>me nos seus defensores contra a mentira,</p><p>a ponto de os propagadores do erro sabe-</p><p>rem já no exórdio ganhar a benevolência,</p><p>a atenção e a docilidade do ouvinte, e os</p><p>outros não o saberem? De aqueles expo-</p><p>rem o erro com brevidade, clareza e veros-</p><p>similhança, e estes narrarem de tal modo a</p><p>verdade que sejam tediosos, incompreensí-</p><p>veis e não se façam crer? De aqueles com-</p><p>baterem a verdade e defenderem a falsida-</p><p>de com sofismas, e estes não serem capazes</p><p>nem de defender a verdade nem de refutar</p><p>o erro? De aqueles, que movem e impelem</p><p>os ânimos dos ouvintes ao erro, tremerem,</p><p>chorarem, rirem e arrepiarem-se ardente-</p><p>mente ao discursar, e os defensores da ver-</p><p>dade, lentos e frios, dormirem? Quem há</p><p>tão falto de juízo que o possa aprovar?</p><p>Portanto, já que existe a faculdade da elo-</p><p>quência, tão poderosa para persuadir do</p><p>que é mau ou do que é bom, por que ela</p><p>não é adquirida pelo bons a fim de mili-</p><p>tar em favor da verdade, se os maus a usam</p><p>para a iniquidade e o erro a fim de vencer</p><p>causas perversas e vãs?</p><p>in dictando ac proloquendo ser-</p><p>monem; imo bonum opus facit,</p><p>qui eam ad hoc pleniter discit,</p><p>ut ad prædicandum verbum Dei</p><p>idoneus sit.</p><p>“Nam cum per artem rhetori-</p><p>cam et vera suadeantur et fal-</p><p>sa, quis audeat dicere adversus</p><p>mendacium in defensoribus</p><p>suis inermem debere consiste-</p><p>re veritatem, ut videlicet illi</p><p>qui res falsas suadere conantur,</p><p>noverint auditorem vel beni-</p><p>volum, vel intentum, vel facere</p><p>docilem proœmio, isti autem</p><p>non noverint? illi falsa breviter,</p><p>aperte, verisimiliter, et isti vera</p><p>sic narrent ut audire tædeat,</p><p>intelligere non pateat, credere</p><p>postremo non libeat? illi fal-</p><p>lacibus argumentis veritatem</p><p>oppugnent, asserant falsitatem,</p><p>isti nec vera defendere, nec fal-</p><p>sa valeant refutare? illi animos</p><p>audientium in errorem mo-</p><p>ventes impellentesque dicendo</p><p>terreant, contristent, exhilarent,</p><p>exhorrentur ardenter, isti pro</p><p>veritate lenti, frigidi dormi-</p><p>tent? Quis ita desipiat, ut hoc</p><p>sapiat?” (August., l. c., iV, 2).</p><p>“cum ergo sit in medio posita</p><p>facultas eloquii, quæ ad persua-</p><p>denda seu prava seu recta valeat</p><p>plurimum, cur non bonorum</p><p>studio comparatur, ut militet</p><p>veritati, si eam mali ad obti-</p><p>nendas perversas vanasque cau-</p><p>sas in usus iniquitatis et erroris</p><p>usurpant?” (Ibid.).</p><p>33</p><p>3. Sete ArteS liBerAiS exPlicADAS</p><p>Mas todos estes preceitos e advertências —</p><p>dos quais se compõe aquela que é chamada</p><p>facúndia ou eloquência, quando, às muitas</p><p>palavras e ornamentos de palavras, junta-</p><p>-se o hábil costume do exercício da língua</p><p>—; todas estas coisas, reservado para isso</p><p>um espaço de tempo adequado, devem ser</p><p>aprendidas em idade adequada e conve-</p><p>niente por aqueles que podem fazê-lo rapi-</p><p>damente. Pois os mesmos príncipes da elo-</p><p>quência romana não temeram dizer que,</p><p>se alguém não pudesse aprender essa arte</p><p>rapidamente, nunca poderia aprendê-la.</p><p>Nós, porém, não julgamos tais coisas tão</p><p>importantes a ponto de querermos que os</p><p>adultos e os mais velhos se empenhem</p><p>em</p><p>aprendê-las; basta que tenham esse cuida-</p><p>do os adolescentes; [e mesmo entre estes],</p><p>não todos os que queremos preparar para</p><p>a função eclesiástica, senão [apenas] aque-</p><p>les que ainda não foram ocupados por uma</p><p>necessidade mais urgente, a qual sem dúvi-</p><p>da deve ser anteposta a esta [arte].8</p><p>Se faltar um engenho agudo e fervoroso,</p><p>[saiba-se que] a eloquência une-se mais</p><p>facilmente aos que lêem e ouvem os elo-</p><p>quentes, que aos seguidores dos preceitos</p><p>da eloquência. E além do cânon [das Es-</p><p>8. Rábano Mauro diz que, dentre os adolescentes a</p><p>serem preparados para as ordens eclesiásticas, ape-</p><p>nas os que estivessem livres de ocupações urgentes</p><p>deveriam dedicar tempo à arte retórica. (N.T.)</p><p>“Sed quæcumque sunt de hac re</p><p>observationes atque præcepta,</p><p>quibus cum accedit in pluribus</p><p>verbis ornamentisque verborum,</p><p>exercitationis linguæ solertis-</p><p>sima consuetudo, sit illa quæ</p><p>facundia vel eloquentia nomina-</p><p>tur, hæc seposito ad hoc congruo</p><p>temporis spatio, apta et conve-</p><p>niente ætate discenda sunt eis</p><p>qui hoc celeriter possunt. Nam</p><p>et ipsos romanæ principes elo-</p><p>quentiæ non piguit dicere, quod</p><p>hanc artem nisi qui cito possit</p><p>perdiscere, numquam omnino</p><p>possit” (Id., 3).</p><p>Sed “nos non ea tanti pendi-</p><p>mus, ut eis discendis iam matu-</p><p>ras, vel etiam graves hominum</p><p>ætates velimus impendi. Satis</p><p>est ut adulescentulorum ista</p><p>sit cura; nec ipsorum omnium</p><p>quos utilitati ecclesiasticæ cu-</p><p>pimus erudiri, sed eorum quos</p><p>nondum magis urgens, et huic</p><p>rei sine dubio præponenda ne-</p><p>cessitas occupavit”.</p><p>“Quoniam si acutum et fervens</p><p>absit ingenium, facilius adhæret</p><p>eloquentia legentibus, et au-</p><p>dientibus eloquentes, quam</p><p>eloquentiæ præcepta sectanti-</p><p>bus. Nec desint ecclesiasticæ</p><p>litteræ etiam præter canonem</p><p>34</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>crituras], não faltam obras eclesiásticas sa-</p><p>lutarmente postas no cume da autoridade,</p><p>por cuja leitura o homem possa adquirir</p><p>[esta arte]; e se a isto não tencionar, mas</p><p>estiver interessado somente nas coisas que</p><p>aí são ditas, impregnar-se-á da eloquência</p><p>com que são ditas ao serem aí tratadas, so-</p><p>bretudo se a isto acrescentar o exercício de</p><p>escrever, ou falar, ou enfim discursar acer-</p><p>ca do que pensa segundo a regra da pieda-</p><p>de e da fé.</p><p>Por ora basta isto que dissemos sobre a re-</p><p>tórica, pois acerca de suas regras no gênero</p><p>do discurso trataremos com mais detalhe</p><p>depois.</p><p>III. Sobre a dialética</p><p>A dialética é a disciplina racional que tem o</p><p>poder de investigar, definir e explicar, bem</p><p>como discernir o verdadeiro do falso. É,</p><p>pois, a disciplina das disciplinas: ensina a</p><p>ensinar, ensina a aprender; nela, a própria</p><p>razão demonstra a si mesma e revela o que</p><p>é, o que quer, o que vê. Ela sozinha sabe</p><p>conhecer, e não só quer fazer sábios mas</p><p>também pode.</p><p>Raciocinando sobre ela, conhecemos o que</p><p>somos e de onde somos; por ela, entende-</p><p>mos o que seja o fazedor do bem, e o bem</p><p>que é feito; o criador, e a criatura. Por ela</p><p>investigamos a verdade e descobrimos a fal-</p><p>sidade. Por ela argumentamos, e encontra-</p><p>in auctoritatis arce salubriter</p><p>collocatæ, quas legendo homo</p><p>capiat, et si id non agat, sed</p><p>tantummodo rebus quæ ibi di-</p><p>cuntur intentus sit, etiam elo-</p><p>quio quo dicuntur, dum in his</p><p>versantur, imbuitur; accedente</p><p>vel maxime exercitatione sive</p><p>scribendi, sive dictandi, postre-</p><p>mo etiam dicendi, quæ secun-</p><p>dum pietatis ac fidei regulam</p><p>sentit” (Id., 4).</p><p>Sed hæc de rethorica nunc dicta</p><p>sufficiant, cum reservamus pau-</p><p>lo post iura eiusdem in dicendi</p><p>genere planius demonstranda.</p><p>CAPUT III. De dialectica</p><p>“Dialectica est disciplina ratio-</p><p>nalis quærendi, deffiniendi et</p><p>disserendi, etiam vera et a falsis</p><p>discernendi potens” (Alcuin De</p><p>Dialect., cp. 1). Hæc ergo di-</p><p>sciplina disciplinarum est; hæc</p><p>docet docere, hæc docet discere,</p><p>in hac se ipsa ratio demonstrat</p><p>atque aperit quæ sit, quid velit,</p><p>quid videat. Scit scire sola, et</p><p>scientes facere non solum vult,</p><p>sed etiam potest.</p><p>in hac ratiocinantes cognosci-</p><p>mus quid sumus et unde sumus;</p><p>per hanc intelligimus quid sit</p><p>faciens bonum, et quid factum</p><p>bonum; quid creator, et quid</p><p>creatura; per hanc investigamus</p><p>veritatem, et deprehendimus</p><p>falsitatem; per hanc argumen-</p><p>35</p><p>3. Sete ArteS liBerAiS exPlicADAS</p><p>mos nas disputas o que há de consequente9</p><p>e o que não há, o que há de contraditório</p><p>com a natureza das coisas, o que há de ver-</p><p>dadeiro, de verossímil e de totalmente falso.</p><p>Também nesta disciplina investigamos cada</p><p>coisa sagazmente, definimos verazmente, e</p><p>discorremos prudentemente.</p><p>Portanto, convém que os clérigos conhe-</p><p>çam esta arte nobilíssima e meditem assi-</p><p>duamente sobre suas regras, para que com</p><p>ela possam sutilmente reconhecer a astúcia</p><p>dos heréticos e, com verdadeiras conclu-</p><p>sões silogísticas, refutar seus discursos en-</p><p>venenados. Pois há muitos sofismas, isto é,</p><p>falsas conclusões do entendimento; e às ve-</p><p>zes imitam a tal ponto as verdadeiras, que</p><p>enganam não só os rudes, senão também</p><p>os eruditos menos cautelosos. Certa vez al-</p><p>guém propôs a seu interlocutor: “O que eu</p><p>sou, tu não o és”. Ao que este concordou,</p><p>afinal a afirmação era em parte verdadeira;</p><p>embora aquele fosse insidioso, e este fosse</p><p>ingênuo. Então acrescentou: “Ora, eu sou</p><p>humano”. E sendo isto também aceito, con-</p><p>cluiu dizendo: “Logo, tu não és humano”.</p><p>Tal gênero de conclusões capciosas, ao que</p><p>me consta, é reprovado pela Escritura na-</p><p>quela passagem onde se diz: “Aquele que</p><p>usa de uma linguagem sofística é odioso”</p><p>(Eclo 37, 23). Embora também se chame</p><p>9. Em certas proposições lógicas, afirmação que de-</p><p>corre necessariamente de outra. (N.T.)</p><p>tamur, et invenimus quid sit</p><p>consequens, quid non conse-</p><p>quens, et quid repugnans in</p><p>rerum natura, quid verum, quid</p><p>verisimile, et quid penitus fal-</p><p>sum in disputationibus. in hac</p><p>etiam disciplina unamquamque</p><p>rem quærimus sagaciter, et def-</p><p>finimus veraciter, et disserimus</p><p>prudenter.</p><p>Quapropter oportet clericos</p><p>hanc artem nobilissimam scire,</p><p>eiusque iura in assiduis medi-</p><p>tationibus habere, ut subtiliter</p><p>hæreticorum versutiam hac</p><p>possint dignoscere, eorumque</p><p>dicta venefica, veris syllogismo-</p><p>rum conclusionibus confutare.</p><p>“Sunt enim multa quæ appel-</p><p>lantur sophismata, falsæ con-</p><p>clusiones rationum, et plerum-</p><p>que ita veras imitantes, ut non</p><p>solum tardos, sed ingeniosos</p><p>etiam minus diligenter attentos</p><p>decipiant. Proposuit enim qui-</p><p>dam dicens ei cum quo loque-</p><p>batur: Quod ego sum, tu non es.</p><p>At ille consentit. Verum enim</p><p>erat ex parte, vel eo ipso quod</p><p>iste insidiosus, ille simplex erat.</p><p>tum iste addidit: Ego autem</p><p>homo sum. Hoc quoque cum ab</p><p>eo accepisset, conclusit dicens:</p><p>Tu igitur non es homo.</p><p>“Quod genus captiosarum con-</p><p>clusionum, Scriptura quantum</p><p>existimo detestatur, illo loco</p><p>ubi dictum est: Qui sophisti-</p><p>ce loquitur, odibilis est (eccli.</p><p>xxxVii). Quamquam etiam</p><p>sermo non captiosus, sed tamen</p><p>36</p><p>S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO</p><p>sofístico um discurso mais prolixo do que</p><p>convém à gravidade, cheio de ornamentos</p><p>de palavras, conquanto não seja capcioso.</p><p>Há também verdadeiros nexos de raciocí-</p><p>nio que contêm afirmações falsas, deduzi-</p><p>das do erro do interlocutor. São deduzidas</p><p>pelo homem bom e douto a fim de que o</p><p>errante, envergonhando-se delas, abando-</p><p>ne o erro; e se quiser permanecer nele, se</p><p>lhe deve forçar a admitir também aquilo</p><p>que condena.</p><p>Com efeito, o Apóstolo não deduzia algo</p><p>verdadeiro quando dizia: “Também Cristo</p><p>não ressuscitou”. E também: “É vã a nossa</p><p>fé, vã a nossa pregação” (1Cor 15, 13-14).</p><p>Tudo isto é completamente falso, porque</p><p>Cristo ressuscitou, e porque não era vã a</p><p>pregação dos que isto anunciavam nem a</p><p>fé dos que nisto criam. Mas como é falsa</p><p>a consequente, é necessariamente falso</p><p>o antecedente. O antecedente é que não</p><p>há ressurreição dos mortos, como diziam</p><p>aqueles cujo erro o Apóstolo queria eli-</p><p>minar. Ora, daquela sentença precedente</p><p>segundo a qual diziam não haver ressur-</p><p>reição dos mortos, conclui-se necessaria-</p><p>mente: “Também Cristo não ressuscitou”.</p><p>Mas esta conclusão é falsa, porque Cristo</p>

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