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<p>Carlos Francisco de Morais</p><p>Alexandre Bonafim Felizardo</p><p>Renata de Oliveria Souza Carmo</p><p>Literatura portuguesa</p><p>Catalogação elaborada pelo Setor de Referência da Biblioteca Central Uniube</p><p>Morais, Carlos Francisco de.</p><p>M792l Literatura portuguesa / Carlos Francisco de Morais, Alexandre</p><p>Bonafim	Felizardo,	Renata	de	Oliveira	Souza	Carmo.	–	Uberaba:</p><p>Universidade	de	Uberaba,	2017.</p><p>256 p.</p><p>Programa	de	Educação	a	Distância	–	Universidade	de	Uberaba.</p><p>Inclui	bibliografia</p><p>ISBN</p><p>1.	Literatura	portuguesa.	2.	Poesia	portuguesa.	3.	Prosa	portuguesa.</p><p>I.	Felizardo,	Alexandre	Bonafim.	II.	Carmo,	Renata	de	Oli-veira	Souza.	III.</p><p>Universidade	de	Uberaba.	Programa	de	Educação	a	Distância.	IV.	Título.</p><p>CDD	869</p><p>©	2017	by	Universidade	de	Uberaba</p><p>Todos	os	direitos	reservados.	Nenhuma	parte	desta	publicação	poderá	ser</p><p>reproduzida	ou	transmitida	de	qualquer	modo	ou	por	qualquer	outro	meio,	eletrônico</p><p>ou	mecânico,	incluindo	fotocópia,	gravação	ou	qualquer	outro	tipo	de	sistema	de</p><p>armazenamento	e	transmissão	de	informação,	sem	prévia	autorização,	por	escrito,</p><p>da	Universidade	de	Uberaba.</p><p>Universidade de Uberaba</p><p>Reitor</p><p>Marcelo	Palmério</p><p>Pró-Reitor de Educação a Distância</p><p>Fernando	César	Marra	e	Silva</p><p>Coordenação de Graduação a Distância</p><p>Sílvia	Denise	dos	Santos	Bisinotto</p><p>Editoração e Arte</p><p>Produção	de	Materiais	Didáticos-Uniube</p><p>Revisão textual</p><p>Erika	Fabiana	Mendes	Salvador</p><p>Diagramação</p><p>Andrezza	de	Cássia	Santos</p><p>Projeto da capa</p><p>Agência	Experimental	Portfólio</p><p>Edição</p><p>Universidade	de	Uberaba</p><p>Av.	Nenê	Sabino,	1801	–	Bairro	Universitário</p><p>Carlos Francisco de Morais</p><p>Doutor	em	Letras	(Literatura	Portuguesa),	mestre	em	Letras	(Literatura</p><p>Portuguesa)	e	bacharel	e	licenciado	em	Letras	Português,	pela	Universidade</p><p>de	São	Paulo	(USP).	Professor	Adjunto	IV;	professor	dos	cursos	de	Letras</p><p>(Português-Espanhol	e	Português-Inglês);	professor	permanente	do</p><p>Programa	de	Mestrado	Profissional	de	Letras	da	Universidade	Federal	do</p><p>Triângulo	Mineiro	(UFTM).	Coordenador	do	Grupo	de	Pesquisa	Literatura</p><p>em	Diálogo.</p><p>Alexandre Bonafim Felizardo</p><p>Mestre	em	Estudos	Literários,	especialista	em	Fundamentos	Críticos	da</p><p>Literatura,	pela	Universidade	Estadual	Paulista	“Júlio	de	Mesquita	Filho”</p><p>(Unesp).	Graduado	em	Letras	pelo	Centro	Universitário	Claretiano	de</p><p>Batatais	(Ceuclar).	Tem	experiência	na	área	de	letras,	com	ênfase	em</p><p>literatura	brasileira	e	literatura	portuguesa.	Professor	de	Literatura	da</p><p>Universidade	Estadual	de	Goiás	(UEG).</p><p>Renata de Oliveira Souza Carmo</p><p>Especialista	em	Língua	e	Literatura	Inglesa	pela	Universidade	de	Ribeirão</p><p>Preto	(Unaerp).	Licenciada	em	Letras	Português-Inglês	pela	Universidade</p><p>de	Uberaba	(Uniube).	Professora	do	curso	de	Letras	Português-Inglês</p><p>da	Universidade	de	Uberaba.</p><p>Sobre os autores</p><p>Sumário</p><p>Apresentação ......................................................................................VII</p><p>Capítulo 1 Panorama	da	poesia	portuguesa .........................................1</p><p>1.1	A	poesia	de	Luís	de	Camões ...................................................................................3</p><p>1.1.1	Camões	épico:	o	diálogo	com	a	tradição	e	a	afirmação	da	modernidade .... 6</p><p>1.1.2	Camões	lírico:	uma	enciclopédia	da	poesia	ocidental ................................ 27</p><p>1.2	Panorama	da	poesia	barroca ................................................................................36</p><p>1.3	Bocage,	um	poeta	entre	dois	tempos ....................................................................39</p><p>1.4	Panorama	da	poesia	romântica .............................................................................47</p><p>1.5	Cesário	Verde	e	a	poesia	do	olhar	moderno .........................................................50</p><p>1.6	Panorama	da	poesia	simbolista ............................................................................ 55</p><p>1.7	Mário	de	Sá-Carneiro:	Orpheu	entre	o	sonho	e	a	revolução	modernista .............61</p><p>1.8	José	Régio	e	a	poesia	da	Geração	da	presença .................................................. 66</p><p>1.9	Tendências	do	pós-guerra .....................................................................................70</p><p>1.10	Conclusão ............................................................................................................78</p><p>Capítulo 2 A poesia de Fernando Pessoa ...........................................83</p><p>2.1	Considerações	iniciais ...........................................................................................84</p><p>2.2	Um	eu	que	se	fez	inúmeros	eus ............................................................................89</p><p>2.3	Pessoa	ninguém? .................................................................................................. 92</p><p>2.4	Alberto	Caeiro:	o	guardador	de	rebanhos ............................................................. 95</p><p>2.5	Ricardo	Reis:	um	pagão	em	tempos	modernos ..................................................104</p><p>2.6	Álvaro	de	Campos:	o	poeta	cosmopolita	da	vida	moderna ................................ 115</p><p>2.7	Fernando	Pessoa	ortônimo	é	ele	mesmo? .........................................................124</p><p>2.8	Conclusão ............................................................................................................131</p><p>Capítulo 3	Eça	de	Queirós	e	os	novos	rumos	da	literatura	portuguesa .....133</p><p>3.1	O	Realismo	em	Portugal:	um	pouco	de	história ..................................................134</p><p>3.2	Ecos	de	mudança ................................................................................................136</p><p>3.3	Uma	ilustre	obra ...................................................................................................137</p><p>3.4	Singularidades	de	um	conto ................................................................................146</p><p>Capítulo 4	A	prosa	portuguesa	modernista	e	contemporânea ..........185</p><p>4.1	Panorama	da	prosa	portuguesa	no	século	XX ...................................................186</p><p>4.2	José	Régio	e	o	romance	psicológico	da	“Geração	da	presença” .......................187</p><p>4.3	O	Neorrealismo:	literatura	e	ideologia .................................................................192</p><p>4.3.1	Alves	Redol	e	a	literatura	como	documento	social ....................................194</p><p>4.3.2	Os	romances	neorrealistas	de	Fernando	Namora ....................................197</p><p>4.3.3	Carlos	de	Oliveira	e	a	análise	psicossocial	da	realidade ..........................202</p><p>4.4	Agustina	Bessa-Luís:	a	emergência	da	autoria	feminina ....................................206</p><p>4.5	O	romance	filosófico	de	Vergílio	Ferreira ............................................................212</p><p>4.6	Novas	tendências	ficcionais:	anos	1960-1990 ....................................................220</p><p>4.7	José	Saramago,	romancista	de	Portugal	e	do	mundo ........................................231</p><p>4.8	Conclusão ............................................................................................................244</p><p>Prezado(a)	aluno(a),</p><p>Este	é	o	livro	de	Literatura Portuguesa.	Trata-se	de	uma	literatura	que</p><p>conta	com	nove	séculos	de	existência,	pois	teve	início	no	século	XII,	ou</p><p>seja,	em	plena	Idade	Média,	e	cuja	importância	para	nós,	brasileiros,</p><p>é	indiscutível,	não	só	pelas	ligações	existentes	no	passado,	não	só</p><p>pela	língua	comum,	mas	porque	seu	conhecimento	é	indispensável</p><p>para	a	compreensão	de	nossa	própria	literatura.		Ora,	num	único	livro</p><p>jamais	se	poderia	pretender	apresentar	uma	produção	 literária	 tão</p><p>rica	e	diversificada	como	a	portuguesa,	de	modo	completo.	A	única</p><p>alternativa	era	optar	por		uma	visão	panorâmica	da	poesia	e	da	prosa</p><p>e,		desta,	apenas	a	produção	mais	recente.	Para	não	ficar	só	nessa</p><p>visão	panorâmica,	optou-se	também	por	escolher	um	representante	de</p><p>cada	um	desses	gêneros	para	um	estudo	um	pouco	mais	aprofundado.</p><p>Isto	explica	a	organização	que	se	deu	ao	volume:	compõe-se	de	quatro</p><p>capítulos:	1 – Panorama da poesia portuguesa; 2 – A poesia de</p><p>Fernando Pessoa; 3</p><p>o	retrato	que	se</p><p>vai	completando	é	o	de	alguém	perfeitamente	equilibrado.</p><p>Na	segunda	estrofe,		harmoniza-se	o	despejo	e	a	vergonha,	sinalizando</p><p>que	ela	sabe	quando	agir	sem	timidez	e	também	quando	manter	o</p><p>recato,	traços	essenciais	para	uma	dama	nas	cortes	renascentistas.	Ao</p><p>se	referir	ao	repouso	que	vê	nela,	ou	seja,	à	serenidade	que	marca	suas</p><p>atitudes,	Camões	selecionou	dois	adjetivos,	“gravíssimo	e	modesto”;</p><p>observe	que	eles	não	se	opõem	quanto	ao	sentido,	já	que	gravidade</p><p>e	modéstia	habitam	o	mesmo	campo	semântico,	mas,	em	termos	de</p><p>classificação	dos	graus	do	adjetivo,	não	poderiam	estar	mais	distantes.</p><p>“Gravíssimo”	está	no	Superlativo	Absoluto	Sintético,	o	grau	máximo	dos</p><p>adjetivos,	usado	para	atribuir	aos	seres	qualidades	que	eles	tenham	num</p><p>nível	muito	elevado;	“modesto”,	ao	contrário,	está	no	grau	normal,	que</p><p>indica	uma	característica	sem	lhe	atribuir	intensidade.	O	resultado	disso</p><p>é	mostrar	como	a	serenidade	da	mulher	é	equilibrada,	sendo	intensa,</p><p>mas	demonstrada	de	maneira	normal,	sem	exageros	que	conotassem</p><p>vaidade.</p><p>Na	terceira	estrofe,	volta	a	mescla	de	ousadia	e	recato:	“Um	encolhido</p><p>ousar”,	o	que,	mais	uma	vez	mostrando	a	equanimidade	da	retratada,	leva</p><p>o	poeta	a	dar	a	ela	sua	marca	essencial,	a	“brandura”.	Essa	capacidade	ideal</p><p>que	ela	demonstra	de	colocar	em	equilíbrio	todas	as	características	encontra</p><p>uma	expressão	perfeita	no	paradoxal	fato	de	ela	nutrir	um	“medo	sem	ter</p><p>34 UNIUBE</p><p>culpa”,	que	só	se	resolverá	se	percebermos	que	o	poeta	está	dizendo	que</p><p>ela,	antecipadamente,	receia	ofender	as	pessoas	e,	por	isso,	age	de	modo</p><p>a	não	deixar	que	isso	aconteça.	Entendido	assim,	o	“medo	sem	ter	culpa”</p><p>será,	simplesmente,	o	cuidado	que	a	musa	camoniana	coloca	em	todas	as</p><p>suas	relações	com	as	outras	pessoas.</p><p>Como	a	moça	do	retrato	aprendeu	a	ser	assim?	Terá	ela	já	nascido	tão</p><p>perfeita?	A	mesma	terceira	estrofe,	em	seu	verso	final,	traz	a	informação</p><p>que	desfaz	esse	mistério:	“Um	longo	e	obediente	sofrimento”.	A	partir</p><p>desse	verso,	o	 leitor	pode	avaliar	que	as	qualidades	 tão	positivas</p><p>dessa	mulher	foram	desenvolvidas	ao	longo	do	tempo,	por	meio	das</p><p>experiências	e	do	sofrimento.	É	por	isso	que	a	primeira	informação	que</p><p>recebemos	no	poema	é	a	de	que	seus	olhos	se	movem:	ela	não	é	uma</p><p>estátua	colocada	num	pedestal,	dentro	de	um	museu;	é	uma	pessoa	viva,</p><p>que	sofre	e	aprende	com	o	sofrimento,	pois	o	aprendizado	é	a	lição	que	o</p><p>sofrer	nos	dá	e	que	precisamos	obedecer.	Portanto	a	musa	não	nasceu</p><p>equilibrada	por	uma	intervenção	divina;	ela	se	equilibrou	ao	longo	da	vida,</p><p>atingindo	agora,	no	momento	em	que	o	poeta	a	observa,	a	serenidade</p><p>modelar	que	ele	nos	apresenta.</p><p>É	essa	a	conclusão	que	se	pode	tirar	do	terceto	final	do	poema,	em	que,</p><p>por	meio	do	pronome	demonstrativo	“Esta”,	o	eu	lírico	resume	todas	as</p><p>características	equilibradas	da	moça	e	as	apresenta	como	a	formosura</p><p>celestial	que	existe	nela	e	que	foi	capaz	de	transformar	o	pensamento</p><p>dele,	ou	seja,	de	o	fazer	se	encantar	por	ela.	É	por	isso	que	o	texto	se</p><p>vale	de	mais	uma	referência	ao	mundo	clássico,	ao	chamá-la	de	Circe,	ou</p><p>seja,	ao	mostrar	que	ela	tem,	como	a	feiticeira	da	mitologia	e	da	epopeia,</p><p>o	dom	de	transformar	quem	se	aproxima	dela.	A	vantagem	do	poeta	é	que</p><p>ela	o	transformou	num	apaixonado,	como	indica	o	pronome	possessivo	de</p><p>primeira	pessoa	usado	por	ele,	“minha”,	e	não	em	um	porco.</p><p>UNIUBE 35</p><p>Vivaz,	branda,	risonha,	bela,	sensata,	despejada,	recatada,	serena,</p><p>grave,	modesta,	bondosa,	limpa,	graciosa,	tímida	e	ousada,	cuidadosa,</p><p>inteligente,	encantadora.	A	 leitura	deste	soneto	nos	faz	pensar	em</p><p>dezoito	adjetivos	perfeitamente	aplicáveis	à	mulher	de	quem	ele	fala.</p><p>A	soma	deles	é	inevitável:	trata-se	de	uma	pessoa	perfeita.	A	base	de</p><p>sua	perfeição,	contudo,	é	o	aprendizado,	feito	longamente	durante	a</p><p>vida.	Torna-se,	então,	necessário	que	o	leitor	perceba	que	esse	poema</p><p>não	é	apenas	um	retrato	de	mulher,	mas	 também	uma	receita	de</p><p>mulher.	Quem	o	observar	com	sabedoria	poderá	usá-lo	como	modelo</p><p>de	comportamento	no	mundo,	aprendendo	com	ela	a	se	equilibrar	em</p><p>todas	as	circunstâncias.	Assim,	um	texto	que,	inicialmente,	parecia</p><p>assumir	apenas	uma	dimensão	pictórica,	descrevendo	a	figura	de	uma</p><p>bela	mulher,	revela-se	como	um	exemplo	de	literatura	filosófica,	pois	tudo</p><p>que	há	nele	o	torna	um	pequeno	tratado	de	Ética,	o	ramo	da	Filosofia	que</p><p>trata	dos	comportamentos	humanos.</p><p>A	“celeste	formosura”	a	que	se	refere	o	poema,	então,	não	é	a	beleza</p><p>física	da	mulher	observada,	mas	seu	equilíbrio.	Este,	então,	domina	todo</p><p>o	campo	de	conteúdo	do	texto,	mas,	como	a	demonstrar	o	classicismo</p><p>da	lírica	de	Camões,	está	presente	também	em	toda	a	forma	do	poema.</p><p>Desde	a	Grécia	clássica,	chegou	ao	Renascimento	a	lição	de	que	o</p><p>conteúdo	de	uma	obra	de	arte	precisa	encontrar	uma	forma	adequada</p><p>para	se	manifestar.	“Um	mover	de	olhos,	brando	e	piedoso”,	realiza</p><p>esse	ideal	no	grau	mais	elevado	de	perfeição,	porque	retrata	um	ser</p><p>equilibrado	sendo	ele	mesmo	um	texto	completamente	equilibrado.	É	o</p><p>que	se	vê	na	escolha	de	uma	forma	fixa	como	o	soneto,	que	não	permite</p><p>ao	escritor	excessos	ou	lacunas:	tem	de	ter	catorze	versos,	nem	um	a</p><p>mais	ou	a	menos.</p><p>O	mesmo	pode	ser	dito	da	seleção	de	um	verso,	o	decassílabo,	que</p><p>se	mantém	o	mesmo	no	poema	inteiro,	fale	das	feições	ou	do	caráter</p><p>da	musa.	O	esquema	de	rimas,	neste	caso,	abbaabbacdecde,	também</p><p>impõe	aos	versos	a	mesma	disciplina	que	a	moça	demonstra	em	sua</p><p>36 UNIUBE</p><p>vida,	pois,	seguindo	o	exemplo	dela,	sabe	se	adaptar	às	mudanças</p><p>exigidas:	ao	passar	dos	quartetos	para	os	tercetos,	ou	seja,	das	estrofes</p><p>que	 traçam	com	 largas	pinceladas	o	perfil	da	mulher	para	as	que</p><p>sintetizam	seu	significado,	as	rimas	se	tornam	outras.</p><p>A	pontuação	também	é	equilibrada,	pois	nela	não	se	encontram	alterações</p><p>no	tom	do	sujeito	poético,	que	organiza	o	poema	inteiro	como	uma	única</p><p>frase	declarativa,	como	indica	o	único	ponto	final	que	o	encerra;	assim,</p><p>não	há	espaço	para	pontos	de	exclamação	ou	de	interrogação,	que,</p><p>ao	expressar,	alternadamente,	momentos	de	exaltação	ou	de	dúvida,</p><p>quebrariam	a	serenidade	da	linguagem	do	texto.	Neste	soneto,	como</p><p>é	a	regra	geral	da	literatura	de	Luís	de	Camões,	conteúdo	e	forma</p><p>se	 irmanam	para	alcançar	o	mesmo	objetivo:	a	construção	de	um</p><p>objeto	de	beleza	e	sabedoria,	feito	de	palavras	e	estruturas	poéticas</p><p>cuidadosamente	escolhidas.</p><p>Todos	os	sonetos	de	Luís	de	Camões	estão	disponíveis	para	leitura	no	site</p><p>Jornal	de	Poesia,	que	contém	a	obra	completa	de	muitos	poetas	portugueses,</p><p>brasileiros	e	africanos.	O	link	para	os	sonetos	camonianos	é	este:</p><p>http://www.jornaldepoesia.jor.br/camoes78.html</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>Panorama da poesia barroca1.2</p><p>No	estudo	da	literatura	portuguesa,	convencionou-se	chamar	de	Barroco</p><p>o	período	subsequente	a	1580,	ano	da	morte	de	Luís	de	Camões	e	da</p><p>perda	da	autonomia	política	de	Portugal,	em	função	da	crise	dinástica</p><p>havida	por	causa	da	morte	do	rei	D.	Sebastião,	que	não	deixara	herdeiros</p><p>diretos.</p><p>No	contexto	barroco,	havia	duas	formas	principais	de	circulação	da</p><p>produção	lírica:	os	serões	do	Paço	e	as	antologias.</p><p>UNIUBE 37</p><p>Os	serões	do	Paço	eram	as	reuniões	noturnas	realizadas	no	palácio	real</p><p>ou	outras	residências	da	nobreza	da	época.	Como	tal,	eram	a	principal</p><p>forma	de	entretenimento	das	classes	altas,	oferecendo	aos	literatos	a</p><p>oportunidade	de	apresentar,	de	viva	voz,	os	seus	textos	diante	de	um</p><p>público	seleto.</p><p>O	ambiente	palaciano	exercia	considerável	influência	sobre	a	escrita	da	poesia</p><p>barroca,	pois	estimulava	os	autores	a	competir	pela	atenção	dos	diletantes,	entre</p><p>eles	as	mais	famosas	damas	da	época.	Dessa	forma,	não	se	estranha	que</p><p>tenham	surgido	nesse	momento	histórico	estilos	poéticos	que	se	destacavam</p><p>pela	depuração	das	formas	e	pela	agudeza	dos	pensamentos	expressos	por</p><p>meio	das	mais	requintadas	figuras	de	linguagem.</p><p>Outra	grande	influência	sobre	a	poesia	barroca	portuguesa	vinha	do</p><p>escritor	 espanhol	 Luís	 de	Góngora	 (1561-1627),	 grande	 nome	 do</p><p>chamado	Século	de	Ouro,	nome	dado	ao	auge	da	cultura	espanhola,</p><p>entre	os	séculos	XVI	e	XVII.	Góngora	desenvolveu	um	estilo	marcado</p><p>pela	sofisticação	dos	raciocínios	e	da	linguagem,	explorando	tanto	a</p><p>sonoridade	das	palavras	como	os	jogos	sintáticos.	Seu	refinamento</p><p>imagístico,	com	inúmeras	alusões	a	cores,	sons	e	sensações	táteis,</p><p>definiu	o	procedimento	estilístico	que	viria	a	ser	chamado	de	gongorismo</p><p>ou	cultismo,	em	que	predominava	o	culto	da	expressão	perfeita.</p><p>A	importância	do	ambiente	palaciano	e	da	poesia	de	Góngora	se	refletiu</p><p>no	caráter	lúdico	da	lírica	barroca	portuguesa,	entendida	em	seu	tempo</p><p>como	entretenimento.	As	marcas	mais	visíveis	desse	espírito	são	os</p><p>malabarismos	verbais,	na	sintaxe	e	nas	figuras	de	linguagens,	o	apuro</p><p>das	 rimas	e	da	versificação,	os	 jogos	de	contrastes,	o	gosto	pelo</p><p>claro-escuro,	a	preferência	por	temas	da	vida	cortesã	(luxos,	festas,</p><p>torneios	esportivos,	a	beleza	das	mulheres).</p><p>O	registro	impresso	da	produção	poética	do	Barroco	português	foi	feito,</p><p>ao	longo	do	século	XVIII,	por	duas	antologias:	A Fénix Renascida e O</p><p>Postilhão de Apolo.</p><p>38 UNIUBE</p><p>A Fénix Renascida ou Obras Poéticas dos Melhores Engenhos</p><p>Portugueses,	como	era	o	seu	título	completo,	foi	publicada	em	cinco</p><p>volumes,	surgidos	entre	os	anos	de	1716	e	1728.	De	maneira	geral,</p><p>os	poemas	selecionados	para	ela	são	marcados	pela	influência	da</p><p>poesia	lírica	e	épica	de	Camões,	pelo	apego	às	agudezas	de	estilo	e</p><p>pensamento	da	herança	gongórica	e	pela	variedade	de	temas.	Há	textos</p><p>amorosos,	épicos,	mitológicos,	satíricos	e	religiosos.</p><p>O Postilhão de Apolo,	cujo	título	completo	não	reproduzimos	aqui</p><p>por	ser	formado	por	sessenta	e	duas	palavras	(excesso	que	já	é	uma</p><p>confissão	de	seu	barroquismo),	teve	dois	volumes	impressos,	em	1761</p><p>e	1762.	Metade	dos	140	poemas	reunidos	nessas	edições	já	havia	sido</p><p>publicada	na	Fénix Renascida.</p><p>Os	principais	autores	constantes	da	Fénix e do Postilhão	foram	Jerónimo</p><p>Baía,	Sóror	Violante	do	Céu,	António	Barbosa	Bacelar	e	Eusébio	de</p><p>Matos.	Fora	dessas	duas	antologias,	merecem	destaque	também	na</p><p>poesia	barroco	os	nomes	de	D.	Francisco	Manuel	de	Melo	e	Francisco</p><p>Rodrigues	Lobo.</p><p>Você	pode	ler	excertos	de	“Lampadário	de	cristal”,	de	Jerónimo	Baía,	que</p><p>é	considerado	o	mais	fiel	exemplo	da	poesia	publicada	nas	antologias</p><p>barrocas,	neste	endereço:</p><p>http://www.nicoladavid.com/literatura/jernimo-baa/lampadrio-de-cristal.</p><p>O	poema	toma	como	tema	um	luxuoso	lustre	presenteado	por	uma	nobre</p><p>italiana,	a	Duquesa	de	Saboia,	à		sua	irmã,	que	era	a	Rainha	de	Portugal.</p><p>Ele	não	aparece	na	íntegra	no	endereço	citado,	pois	tem	mais	de	trinta</p><p>páginas	de	extensão.</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>UNIUBE 39</p><p>Bocage, um poeta entre dois tempos1.3</p><p>A	lição	clássica	da	poesia	lírica	de	Luís	de	Camões	reverberou	para	muito</p><p>longe	de	sua	época	de	vida.	O	interesse	pela	cultura	da	antiguidade</p><p>greco-latina	e	o	diálogo	com	a	herança	trovadoresca	e	petrarquista	que	o</p><p>grande	bardo	cultivou	se	tornaram	exemplos	para	várias	outras	gerações,</p><p>sendo	visíveis	na	obra	de	outro	grande	sonetista,	Manuel	Maria	Barbosa</p><p>du	Bocage	(1765-1805).</p><p>A	literatura	portuguesa	do	século	XVIII	foi	marcada	pelo	influxo	das	novas</p><p>ideias	iluministas,		que,	a	partir	da	França,	espalharam-se	por	todas	os</p><p>meios	culturais	europeus.	Da	grande	geração	dos	intelectuais	que	criaram</p><p>a Enciclopédia	francesa,	primeira	grande	tentativa	moderna	de	organizar</p><p>e	sistematizar	todo	o	conhecimento	já	obtido	sobre	o	mundo,	emanaram</p><p>ideias	e	propostas	racionalistas	de	reorganização	da	ciência,	da	política,</p><p>da	economia,	da	educação,	do	próprio	Estado.	O	princípio	para	isso	era</p><p>aquele	que	estava	no	cerne	do	Iluminismo:	o	culto	da	ciência,	da	razão</p><p>e do progresso.</p><p>A	primeira	enciclopédia	moderna	 foi	a	Encyclopédie,	editada	com	28</p><p>volumes,	71.818	artigos,	e	2.885	ilustrações,	por	Jean	le	Rond	d’Alembert</p><p>e	Denis	Diderot,	a	partir	de	1772.	Também	colaboraram	com	ela	filósofos</p><p>importantes	como	Jean-Jacques	Rousseau,	Voltaire	e	Montesquieu.</p><p>AMPLIANDO	O	CONHECIMENTO</p><p>Em	Portugal,	a	época	do	Iluminismo	coincide	com	o	governo	progressista</p><p>do	Marquês	de	Pombal,	que,	como	primeiro-ministro,	promoveu	o	início</p><p>da	laicização	da	educação,	a	modernização	da	Universidade	de	Coimbra</p><p>e	a	reurbanização	da	cidade	de	Lisboa,	depois	que	a	maior	parte	dela	foi</p><p>destruída	pelo	terremoto	acontecido	em	1755.	A	efervescência	cultural</p><p>desse	período	se	traduziu	na	escola	literária	conhecida	como	Arcadismo,</p><p>cujo	nome	deriva	da	antiga	região	pastoril	grega	e	da	Arcádia	Lusitana</p><p>40 UNIUBE</p><p>(fundada	em	1765),	uma	academia	literária	que	incorporava	tanto	as</p><p>ideias	 iluministas	quanto	a	valorização	do	passado	clássico,	como</p><p>registra	Massaud	Moisés:</p><p>Tendo	por	norte	a	divisa	inutilia truncat,	desejam</p><p>testemunhar	o	repúdio	às	“coisas	inúteis”	que	adornavam</p><p>pesadamente	a	poesia	barroca.	E	julgando	que	esta</p><p>tendência	estética	correspondera	ao	desequilíbrio	e</p><p>à	decadência	dos	valores	clássicos,	propõem-se	a</p><p>restaurar	a	supremacia	da	autêntica	poesia	clássica.</p><p>Para	 consegui-lo,	 empreendem	 uma	 viagem	 no</p><p>passado	mais	remoto,	em	busca	das	fontes	originárias</p><p>do	Classicismo.	Desprezando	o	Barroco,	detém-se	no</p><p>século	XVI	e	dele	aceitam	o	pastoralismo e a poesia</p><p>camoniana,	visto	coincidirem	com	o	ideal	que	eles,</p><p>os	árcades,	pretendem	realizar.	Saltando	por	sobre</p><p>os	séculos	medievais,	que	a	seu	ver	tinham	lançado</p><p>no	 esquecimento	 a	 literatura	 clássica,	 chegam</p><p>à	Antiguidade	greco-latina,	fim	da	viagem:	na	ideal,</p><p>mitológica	Arcádia,	região	grega	de	pastores	e	poetas</p><p>vivendo	em	meio	a	uma	Natureza	sempre	 idílica,</p><p>localizam	 os	 seus	 anseios	 de	 plenitude	 poética.</p><p>(MOISÉS,	2008,	p.	145).</p><p>Entre	os	poetas	que	aderiram	às	propostas	da	Arcádia	Lusitana	e	de	sua</p><p>sucessora,	a	Nova	Arcádia	(fundada	em	1790),	num	contexto	de	prestígio</p><p>do	Iluminismo	e	de	retomada	do	quadro	de	referências	clássicas,	tal	como</p><p>o	descreve	Moisés,	estavam	alguns	nomes	de	real	valor	literário,	como</p><p>Nicolau	Tolentino,	Filinto	Elísio	e	a	Marquesa	de	Alorna,	mas	Manuel	du</p><p>Bocage	foi	o	que	criou	a	obra	de	maior	impacto	sobre	a	posteridade.</p><p>A	obra	poética	de	Bocage	é	bastante	variada,	pois	ele	foi	autor	de</p><p>anedotas	picantes,	poesia	pornográfica,	satírica	e	lírica.	Esta	última</p><p>se	manifestou	nas	vertentes	elegíaca,	bucólica	e	amorosa.	Em	termos</p><p>formais,	escreveu	odes,	canções,	idílios,	epigramas,	cantatas,	elegias,</p><p>epístolas,	cançonetas	e,	principalmente,	sonetos,	sendo	considerado,	ao</p><p>lado	de	Camões	e	de	Antero	de	Quental,	poeta	do	Realismo,	um	dos	três</p><p>maiores	sonetistas	da	língua	portuguesa.</p><p>Inutiliza truncat</p><p>Cortem-se	os</p><p>excessos.</p><p>Pastoralismo</p><p>Utilização	da	vida</p><p>de	pastores	como</p><p>tema	poético.</p><p>UNIUBE 41</p><p>A	obra	sonetística	de	Bocage	testemunha	não	só	seu	talento	como</p><p>versejador,	mas	a	complexidade	da	relação	do	autor	com	a	cultura	de	seu</p><p>tempo.	Isso	se	dá	pelo	fato	de	que,	a	rigor,	se	pode	considerar	que	sua</p><p>lírica	tem	duas	faces,	uma	ligada	de	maneira	mais	estreita	ao	Arcadismo</p><p>e	outra	que	já	dá	sinais	do	Romantismo,	que	logo	revolucionará	a	cultura</p><p>ocidental.</p><p>O	poema	a	seguir	apresenta	de	maneira	clara	a	faceta	árcade	da	lírica</p><p>bocageana:</p><p>Marília,	nos	teus	olhos	buliçosos</p><p>Os	Amores	gentis	seu	facho	acendem;</p><p>A	teus	lábios	voando	os	ares	fendem</p><p>Terníssimos	desejos	sequiosos:</p><p>Teus	cabelos	sutis	e	luminosos</p><p>Mil	vistas	cegam,	mil	vontades	prendem:</p><p>E	em	arte	de	Minerva	se	não	rendem</p><p>Teus	alvos	curtos	dedos	melindrosos:</p><p>Resiste	em	teus	costumes	a	candura,</p><p>Mora	a	firmeza	no	teu	peito	amante,</p><p>A	razão	com	teus	risos	se	mistura:</p><p>És	dos	céus	o	composto	mais	brilhante;</p><p>Deram-se	as	mãos	Virtude	e	Formosura</p><p>Para	criar	tua	alma	e	teu	semblante.	(BOCAGE,	1994,	p.	3).</p><p>A	escolha	do	soneto	como	forma	já	liga	o	poema	à	grande	tradição	lírica</p><p>de	Dante	Alighieri,	Francesco	Petrarca	e	Luís	de	Camões,	que	diversas</p><p>vezes	se	valeram	de	sua	estrutura	concisa	para	traçar	um	retrato	físico</p><p>e	espiritual	de	suas	musas,	consideradas	como	exemplos	de	perfeição</p><p>feminina	e	humana.	É	no	contexto	dos	sonetos	de	Dante	inspirados	em</p><p>Buliçosos</p><p>Agitados,	em</p><p>movimento.</p><p>Sequiosos</p><p>Sedentos.</p><p>Minerva</p><p>Na	mitologia</p><p>latina, era a deusa</p><p>da	sabedoria,</p><p>do	comércio	e</p><p>das	artes;	é	este</p><p>último	aspecto	o</p><p>destacado pelo</p><p>poeta.</p><p>Melindrosos</p><p>Habilidosos,</p><p>talentosos.</p><p>Candura</p><p>Pureza.</p><p>42 UNIUBE</p><p>Beatriz,	nos	de	Petrarca	dirigidos	à		Laura	e	nos	de	Camões	dedicados</p><p>à		Dinamene	que	este	de	Bocage	também	se	instala,	mostrando	que</p><p>sua	base	inicial	de	composição	é	o	princípio	da	mimese,	tal	como	o</p><p>Renascimento	a	interpretava,	ou	seja,	como	a	imitação	dos	modelos	do</p><p>passado,	não	no	sentido	da	cópia	de	suas	obras,	mas	do	aprendizado</p><p>de	sua	técnica.</p><p>O	nome	pelo	qual	é	identificada	a	mulher	a	quem	o	sujeito	poético	se</p><p>dirige	no	primeiro	verso,	“Marília”,	já	tinha,	na	época	do	Arcadismo,</p><p>uma	longa	tradição	na	poesia	bucólica	humanista	e	renascentista,	na</p><p>qual	se	juntava	a	outros	como	Nise,	Natércia	e	Belisa	para	identificar</p><p>poeticamente	as	belas	pastoras	pelas	quais	se	apaixonava	o	sujeito</p><p>poético,	também	ele	disfarçado	sob	a	máscara	de	um	pastor.	Esse</p><p>procedimento	o	leitor	brasileiro	já	reconhece	a	partir	da	poesia	árcade</p><p>de	Tomás	António	Gonzaga,	autor	das	famosas	“Liras”	que	Dirceu</p><p>endereçava	a	uma	musa	também	chamada	Marília.</p><p>O	bucolismo	associado	tradicionalmente	ao	nome	“Marília”	é	confirmado</p><p>pela	ambientação	do	poema,	feita	ao	ar	livre,	como	indica	o	movimento</p><p>dos	desejos,	que	atravessam	os	ares	para	buscar	os	lábios	da	moça,</p><p>assim	como	os	Amores	já	haviam	buscado	seus	olhos.	A	partir	desses</p><p>dois	elementos	de	natureza	narrativa,	o	soneto	passa	a	revelar	sua</p><p>verdadeira	essência,	que	é	descritiva,	pois	também	Bocage	cultivou	o</p><p>tema	do	retrato	de	mulher	em	sua	lírica.</p><p>As	duas	primeiras	estrofes	são	dedicadas,	fundamentalmente,	a	descrever</p><p>a	beleza	física	de	Marília.	Nelas,	seus	olhos	são	o	foco	de	atenção	de</p><p>Cupido,	pois	os	Amores	são,	na	mitologia	greco-latina,	uma	de	suas</p><p>formas	de	manifestação.	Pela	luz	que	emanam,	os	olhos	de	Marília,</p><p>ao	ver	do	sujeito	poético,	são	capazes	de	oferecer	iluminação	mesmo</p><p>a	seres	sobre-humanos,	o	que	já	indica	a	idealização	que	será	feita	da</p><p>mulher	no	texto.	O	mesmo	pode	ser	dito	de	seus	lábios,	cabelos	e	mãos,</p><p>que	também	sempre	são	descritos	em	termos	de	superioridade,	seja	em</p><p>beleza	ou	talento.</p><p>UNIUBE 43</p><p>A	terceira	estrofe	mostra	as	qualidades	interiores	de	Marília:	sua	pureza,</p><p>fidelidade	no	amor,	racionalidade	e	alegria.	O	leitor	atento	já	percebeu</p><p>que	a	musa	de	Bocage	tem	os	mesmos	atributos	que	Leonor	de	Sousa</p><p>Sepúlveda,	Tétis	e	a	musa	sem	nome	de	“Um	mover	de	olhos,	brando</p><p>e	piedoso”...</p><p>Na	quarta	estrofe	vem	o	fecho	de	ouro,	ou	seja,	a	explicação	definitiva</p><p>da	superioridade	de	Marília	em	relação	a	todas	as	outras	mulheres,	dado</p><p>que	ela	é	o	resultado	da	união	entre	as	qualidades	morais	e	físicas,</p><p>personalizadas	na	“Virtude	e		Formosura”	de	que	fala	o	penúltimo	verso,</p><p>como	se	elas	fossem	as	divindades	que,	presidindo	ao	nascimento	da</p><p>moça,	a	abençoaram	com	todos	esses	predicados	admiráveis.</p><p>Esse	rápido	passeio	pelo	nível	semântico	do	poema	serve	para	colocar</p><p>em	relevo	os	procedimentos	árcades	de	Bocage.	O	uso	do	pseudônimo,	a</p><p>localização	das	personagens	no	espaço	aberto	da	natureza,	a	referência</p><p>a	seres	da	mitologia	clássica	e	o	elogio	da	musa	como	exemplo	de</p><p>equilíbrio	entre	aspectos	opostos	da	natureza	humana	o	colocam	numa</p><p>linha	direta	de	descendência	em	relação	a	Dante,	Petrarca	e	Camões.</p><p>Em	relação	a	este	último,	não	é	exagero	afirmar	que	este	soneto	de</p><p>Bocage	mimetiza	de	maneira	rigorosa	“Um	mover	de	olhos,	brando	e</p><p>piedoso”,	pois	não	lhe	falta	nem	a	referência	inicial	ao	movimento	dos</p><p>olhos	da	mulher,	representativo	da	riqueza	de	sua	vida	interior	e	seu</p><p>interesse	pelo	mundo	e	por	uma	existência	em	sociedade.</p><p>Para	 se	 aquilatar,	 entretanto,	 o	 grau	 de	 pertencimento	 do	 soneto</p><p>bocagiano	à	visão	de	mundo	neoclássica,	iluminista,	que	o	Arcadismo</p><p>privilegiava,	é	preciso	observar	quantas	referências	à	luz	ele	contém,</p><p>de	maneira	direta	ou	 indireta.	Assim	é	que	o	facho	dos	Amores,	a</p><p>luminosidade	do	cabelo	de	Marília,	capazes	de	cegar	“mil	vistas”,	a</p><p>brancura	de	seus	dedos,	a	candura,	ou	seja,	a	alvura	de	seus	modos</p><p>de	agir,	o	brilho	com	que	ela	é	vista	nos	céus,	que	já	são	eles	mesmos</p><p>a	morada	de	incontáveis	pontos	de	luz,	são	todos	índices	simbólicos	da</p><p>44 UNIUBE</p><p>racionalidade	que	o	poeta	nela	identifica.	Essa	presença	metafórica	da</p><p>razão	no	poema	dá	a	base	para	a	construção	do	caráter	equilibrado	da</p><p>musa,	tal	como	já	acontecera	no	poema	de	Camões	com	o	qual	mantém</p><p>relações	de	intertextualidade,	mas	isso	não	é	tudo:	é	necessário	ver	que</p><p>ela	se	manifesta	no	próprio	corpo	do	poema,	cuja	forma	é	totalmente</p><p>racional.	É	o	que	se	conclui,	novamente,	ao	se	ver	que	se	trata	de	um</p><p>soneto	organizado	rigorosamente	dentro	dos	modelos	tradicionais,	com</p><p>o	verso	decassílabo,	o	esquema	de	rimas	interpoladas	nos	quartetos	e</p><p>alternadas	nos	tercetos,	exatamente	como	no	exemplo	camoniano.</p><p>Os	procedimentos	acima	descritos	se	repetem	em	alguns	dos	mais	belos</p><p>e	famosos	poemas	de	Bocage,	como	“Ó	tranças	de	que	Amor	prisões	me</p><p>tece”	e	“Olha,	Marília,	as	flautas	dos	pastores”.</p><p>Todo	este	panorama	se	altera	em	outros	sonetos,	como	“Minh’alma	quer</p><p>lutar	com	meu	tormento”,	“Ânsias	terríveis,	íntimos	tormentos”	ou	“Meu</p><p>ser	evaporei	na	lida	insana”,	dando	até	ao	leitor	a	impressão	de	que	o</p><p>Bocage	lírico	não	é	um	poeta	só,	mas	dois,	tamanhas	são	as	diferenças.</p><p>É	o	que	se	vê,	por	exemplo,	num	soneto	como	este:</p><p>Sobre	estas	duras,	cavernosas	fragas,</p><p>Que	o	marinho	furor	vai	carcomendo,</p><p>Me	estão	negras	paixões	na	alma	fervendo</p><p>Como	fervem	no	pego as crespas vagas.</p><p>Razão	feroz,	o	coração	me	indagas,</p><p>De	meus	erros	a	sombra	esclarecendo,</p><p>E	vás	nele	(ai	de	mim!)	palpando,	e	vendo</p><p>De	agudas	ânsias	venenosas	chagas.</p><p>Cego	a	meus	males,	surdo	a	teu	reclamo,</p><p>Mil	objetos	de	horror	co´a	idéia	eu	corro,</p><p>Solto	gemidos,	lágrimas	derramo.</p><p>Fragas</p><p>Penhascos.</p><p>Pego</p><p>O	mar.</p><p>Vagas</p><p>As ondas.</p><p>UNIUBE 45</p><p>Razão,	de	que	me	serve	o	teu	socorro?</p><p>Mandas-me	não	amar,	eu	ardo,	eu	amo;</p><p>Dizes-me	que	sossegue,	eu	peno,	eu	morro.</p><p>(BOCAGE,	1994,	p.	33).</p><p>O	primeiro	aspecto	a	considerar	é	o	desaparecimento	da	luz	dos	campos</p><p>lexical	e	semântico	do	poema.	Ao	contrário	do	soneto	anterior,	o	que	se</p><p>apresenta	neste	é	a	escuridão,	manifestada	direta	e	indiretamente	nas</p><p>cavernas	associadas	aos	penhascos	de	que	fala	o	primeiro	verso,	na</p><p>negrura	das	paixões	que	acometem	o	eu	lírico,	na	sombra	e	na	cegueira</p><p>em	que	os	erros	e	os	males	o	colocam.</p><p>Todos	esses	índices	de	escuridão	na	natureza	e	no	mundo	interior</p><p>do	sujeito	poético	são	emanações	de	sua	situação	básica	na	vida:	a</p><p>irracionalidade	de	suas	ações	no	domínio	amoroso.	Assim	como	falta</p><p>no	poema	a	luz,	falta	mais	ainda	Marília:	observe	que	se	fala	nele	do</p><p>amor,	mas	não	de	quem	o	inspirou,	porque,	no	momento	de	elocução</p><p>representado	pelos	versos,	o	estado	do	eu	é	de	solidão.</p><p>Sem	musa,	sem	amor,	sem	luz,	sem	razão;	vivendo	assim,	o	eu	lírico</p><p>experimenta	a	própria	natureza	como	sua	inimiga,	pois	aqui	ela	não</p><p>o	acolhe	tão	confortavelmente	como	no	poema	anterior,	mostrando	a</p><p>passagem	do	locus amoenus (lugar	ameno)	típico	do	Arcadismo	para</p><p>o locus horrendus	(lugar	horrendo)	de	que	falará	o	Romantismo,	que</p><p>entenderá	o	mundo	essencialmente	como	um	lugar	de	sofrimento	para</p><p>o	ser	humano.</p><p>Ausente	Marília,	“Sobre	estas	duras,	cavernosas	fragas”	apresenta	ainda</p><p>um	diálogo,	mas	com	a	Razão,	vista	como	uma	entidade	superior,	capaz</p><p>de	enxergar	a	interioridade	do	eu	lírico,	o	que	lhe	permite	revelar	a	ele</p><p>mesmo	seus	erros,	seus	desejos	e	suas	dores.	Dessa	forma,	o	poema	se</p><p>converte	também	numa	espécie	de	espelho,	na	qual	o	eu	pode	se	ver	e</p><p>se	conhecer.	Entretanto	ele	se	recusa	a	escutar	a	voz	da	Razão	e	a	ver</p><p>o	que	ela	lhe	mostra.</p><p>46 UNIUBE</p><p>É	por	isso	que	ele	teme,	sofre,	chora,	lamenta,	geme	e	até	pensa	em</p><p>morrer	–	e	é	por	isso	que	este	soneto	e	outros	semelhantes	a	ele,</p><p>como	os	citados	há	pouco,	convertem-se	numa	novidade	no	quadro	do</p><p>Arcadismo	português:	a	cada	verso,	a	cada	estrofe,	exteriorizam	uma</p><p>confissão	sentimental	inaceitável	para	o	pensamento</p><p>neoclássico,	que</p><p>buscava	a	harmonia	e	a	racionalização	de	todos	os	aspectos	da	vida,</p><p>inclusive	os	sentimentais.</p><p>No	quadro	da	recepção	crítica	da	obra	de	Bocage,	há	estudiosos	que</p><p>tentam	explicar	a	mudança	de	enfoque	representada	por	poemas	assim	a</p><p>partir	da	biografia	do	poeta,	observando	seus	muitos	problemas	de	dinheiro,</p><p>de	inimizades	e	amorosos,	entre	os	quais	se	destaca	a	maior	das	muitas</p><p>frustrações:		a	de	ver	sua	amada	Gertrudes,	musa	a	quem	imortalizou	em</p><p>poesia	sob	o	pseudônimo	de	Gertrúria,	casar-se		com	seu	próprio	irmão.</p><p>Entretanto	será	sempre	mais	seguro	ir	buscar,		no	espírito	cambiante	da</p><p>época	em	que	Manuel	du	Bocage	viveu,	leu	e	escreveu,	as	raízes	para	as</p><p>transformações	operadas	em	sua	literatura.	É	o	que	faz	Francisco	Ribeiro</p><p>da	Silva,	da	Universidade	do	Porto,	em	seu	ensaio	“A	propósito	de	Bocage”,</p><p>com	o	qual	abriu	o	colóquio	Colóquio Internacional Leituras de Bocage</p><p>(séculos	XVIII-XXI),	realizado	naquela	instituição	em	2005:</p><p>a	época	em	que	Bocage	viveu	foi	tempo	de	confrontação</p><p>e	de	contradição	entre	um	mundo	velho,	marcado</p><p>pelo	autoritarismo	político	e	cultural,	pela	intolerância</p><p>religiosa,	 pela	 inquisição,	 pela	 teocracia,	 pelo</p><p>cesaropapismo,	pela	submissão	e	um	mundo	novo</p><p>que	se	queria	dirigido	para	e	pela	Liberdade,	pelo	livre</p><p>pensamento,	pela	livre	criação,	pelo	progresso,	pela	fé</p><p>nas	capacidades	do	homem.	Bocage	sofreu	ele	próprio</p><p>as	contradições	da	época,	visto	que	foi	expulso	da	Nova</p><p>Arcádia	por	ter	posto	a	descoberto	a	mediocridade	de</p><p>alguns	académicos	e	foi	preso	no	Limoeiro	às	ordens</p><p>de	Pina	Manique	pela	sua	iconoclastia	irreverente	e</p><p>anticlericalismo	 mordaz,	 muito	 embora	 se	 tenha</p><p>reconciliado	com	os	princípios	religiosos	que	aprendera</p><p>em	menino	e	nunca	tenha	sido	um	adepto	incondicional</p><p>da	Revolução	Francesa.</p><p>UNIUBE 47</p><p>A	contradição	não	foi	por	ele	experimentada	apenas</p><p>no	 tocante	 aos	 sentimentos	 e	 às	 opções	morais,</p><p>religiosas	e	filosóficas.	Também	ao	nível	dos	cânones</p><p>literários	e	estéticos	teve	que	saber	fazer	a	ponte</p><p>entre	o	classicismo	de	Camões	que	ele	idolatrava	e	o</p><p>romantismo	individualista,	solitário	e	sofrido	que	vinha</p><p>lançando	raízes.	(SILVA,	2006,	p.	11).</p><p>A	virtude	dessas	palavras	de	Francisco	Ribeiro	da	Silva	é	a	de	colocar</p><p>em	relevo	o	quanto	a	obra	lírica	de	Bocage	pode	ser	vista	e	lida	como</p><p>o	testemunho	das	mudanças	que	estavam	acontecendo	na	passagem</p><p>do	século	XVIII	para	o	XIX,	em	todos	os	campos	de	atuação	humana,</p><p>entre	os	quais	não	se	pode	deixar	de	incluir	o	da	sensibilidade	e	da</p><p>mentalidade.	 Surgiu	 nessa	 época	 a	 nova	 mentalidade	 ocidental,</p><p>alicerçada	pelo	Romantismo	que	ensaiava	seus	primeiros	passos,	na</p><p>liberdade	das	emoções	e	na	sensibilidade,	não	na	racionalidade.	É</p><p>por	isso	que	esse	Bocage	que	fala	da	solidão,	do	sofrer	de	amor,	da</p><p>escuridão	interna	das	almas,	e	o	faz	abertamente,	como	numa	confissão</p><p>sentimental,	aceitando	apenas	o	constrangimento	imposto	pelas	regras</p><p>de	metrificação,	estrofação	e	rimas	do	soneto,	pode	ser	entendido	como</p><p>um	Bocage	pré-romântico,	a	ser	lido	ao	lado	do	árcade,	com	o	mesmo</p><p>destaque,	mas	talvez	mais	atenção,	pois	sinaliza	o	que	autores	como</p><p>Almeida	Garrett,	Alexandre	Herculano,	João	de	Deus	e	Camilo	Castelo</p><p>Branco	ainda	esperarão	cinquenta	anos	para	poder	fazer,	ou	seja,	quando</p><p>o	Romantismo	propriamente	dito	instalar-se,	finalmente,	em	Portugal.</p><p>Panorama da poesia romântica1.4</p><p>Vista	em	seu	conjunto,	a	produção	lírica	portuguesa	do	período	romântico</p><p>constituiu	um	paradoxo:	vindo	à	 luz	na	mesma	época	em	grandes</p><p>obras	no	romance	e	no	teatro	revelava	a	qualidade	e	a	originalidade</p><p>do	Romantismo	no	país,	nunca	alcançando	um	nível	de	qualidade</p><p>equivalente.</p><p>No	teatro	é	possível	destacar	a	obra-prima	de	Almeida	Garrett,	Frei Luís</p><p>de Sousa	(1843);	na	prosa,	são	conhecidas	grandes	realizações	como</p><p>Viagens na minha terra	(1846),	do	mesmo	Garrett,	Eurico, o presbítero</p><p>48 UNIUBE</p><p>(1844),	de	Alexandre	Herculano	e	Amor de perdição	(1866),	de	Camilo</p><p>Castelo	 Branco.	 Expressões	 máximas	 do	 estilo	 pessoal	 de	 seus</p><p>criadores,	essas	obras	conquistaram	para	eles	um	prestígio	artístico	que</p><p>não	se	desvaneceu	até	os	dias	de	hoje;	são	elas	facilmente	identificadas</p><p>pelos	leitores	com	o	espírito	romântico	tal	como	ele	se	deu	a	conhecer</p><p>em	Portugal,	em	termos	de	inovações	formais,	expressão	sentimental	e</p><p>compreensão	subjetiva	da	realidade	histórica.</p><p>Na	 poesia,	 raros	 são	 os	 autores	 conhecidos	 naquele	 período	 que</p><p>conseguiram	ultrapassar	a	mediocridade	na	exploração	do	sentimentalismo</p><p>e	do	individualismo,	os	quais,	como	características	fundamentais	do</p><p>Romantismo,	ainda	contrastavam	de	maneira	evidente	com	as	formas</p><p>poéticas	 tradicionais	que	muitos	desses	autores	não	conseguiram</p><p>abandonar.	As	poucas	exceções	a	essa	regra	se	veem	no	livro	Folhas</p><p>caídas,	ainda	de	Garrett,	em	parte	da	produção	de	Soares	de	Passos	e</p><p>na	lírica	de	João	de	Deus.</p><p>João	Batista	da	Silva	Leitão	de	Almeida Garrett (1799-1854)	construiu	uma</p><p>das	mais	sólidas	obras	literárias	de	Portugal,	manifestada	em	verso,	prosa</p><p>e	drama.	Foi	também	político,	jornalista	e	diplomata.	Em	termos	de	poesia,</p><p>o	melhor	de	sua	criação	foi	seu	sétimo	livro,	Folhas caídas,	publicado	em</p><p>1853.	Nessa	obra,	chama	a	atenção	o	fato	de	o	poeta	elaborar	um	estilo</p><p>peculiar	de	romantismo,	já	que	em	seus	versos	a	tendência	geral	do	eu	lírico</p><p>é	mesclar	a	sondagem	de	sua	subjetividade	e	a	expressão	de	seus	anseios</p><p>amorosos	com	uma	linguagem	equilibrada.	Assim,	a	melhor	imagem	do</p><p>Garrett	poeta	romântico	não	é	a	de	um	ser	desesperado	sentimentalmente,</p><p>mas	de	alguém	que	busca,	que	ama	e	que	sofre,	mas	que	consegue	se</p><p>conter	racionalmente	ao	fazer	poesia	sobre	tais	temas.</p><p>A	lírica	de	António	Augusto Soares de Passos	(1826-1860)	é	típica	do</p><p>Ultrarromantismo,	como	é	conhecida	a	segunda	geração	do	Romantismo</p><p>português.	Tuberculoso	desde	a	juventude,	fracassado	sentimental	e</p><p>profissionalmente,	sua	poesia	serve	como	uma	espécie	de	reflexo	de	sua</p><p>vida,	como	mostra	Ana	Rosa	Guimarães	em	estudo	sobre	ele:</p><p>UNIUBE 49</p><p>Ainda	em	vida,	publicou	suas	composições	poéticas,	que</p><p>alcançaram	grande	êxito.	Soares	de	Passos	espelhou</p><p>sua	poesia	na	desgraça	 íntima,	aliada	à	sensação</p><p>dolorosa	de	finitude,	diante	da	eternidade	do	Cosmos	e	da</p><p>Natureza.	Deprimido	pela	doença	e	pelos	vários	motivos</p><p>de	padecimento	de	uma	sensibilidade	fora	do	comum,</p><p>debateu-se	entre	o	desalento,	o	desânimo	pessimista</p><p>de	quem	sente	a	morte	próxima	e	canta	o	lado	funéreo</p><p>das	coisas	em	“O	Noivado	do	Sepulcro”,	e	a	ânsia	de</p><p>gozar	a	vida	em	toda	a	sua	plenitude,	tendo	por	apoio</p><p>aquilo	que	constituía	novidade	para	o	espírito	progressista</p><p>do	tempo	(“O	Firmamento”,	“O	Anjo	da	Humanidade”).</p><p>Em	suma,	o	negativismo	a	se	contrapor	ao	anseio</p><p>angustiado	de	viver	a	vida	com	otimismo	calcado	em</p><p>crenças	de	fraternidade,	amor	ao	próximo	e	liberalismo.</p><p>Nesse	caráter	ambivalente	e	paradoxal	mora	a	grande</p><p>força	de	seu	lirismo,	que	acaba	por	encarnar	o	instante	de</p><p>depuração	do	Romantismo	(GUIMARÃES,	2016,	p.	125).</p><p>A	sensibilidade	incomum	e	o	gosto	mórbido	pelos	temas	ligados	à	morte,</p><p>destacados	pelas	observações	de	Ana	Rosa	Guimarães,	encontram	sua</p><p>perfeita	expressão	ultrarromântica	na	obra	mais	conhecida	de	Soares	de</p><p>Passos, O noivado do sepulcro.	Trata-se	de	um	longo	poema	narrativo,</p><p>a	respeito	de	dois	jovens	amantes	que	tiveram	impedida,	por	questões</p><p>familiares,	a	realização	em	vida	de	seu	amor;	depois	da	morte,	ambos</p><p>se	levantam	da	tumba	e	se	reencontram,	podendo,	assim,	dar	vazão</p><p>plenamente	a	seu	sentimento.	Idolatrado	desde	sua	primeira	publicação,</p><p>em	1855,	pelos	admiradores	do	estilo	do	poeta,	mais	tarde,	com	o</p><p>surgimento	do	Realismo,	o	texto	passaria	a	ser	ridicularizado	pelos	jovens</p><p>escritores,	que	consideravam	inaceitável	a	visão	de	mundo	emotiva	e</p><p>irracional presente nele.</p><p>João	de	Deus	de	Nogueira	Ramos	(1830-1896)	foi	o	poeta	português	que</p><p>mais	se	aproximou	da	criação	de	uma	obra	autenticamente	romântica.</p><p>Advogado	 formado	em	Coimbra,	 atuou	 também	como	 jornalista	 e</p><p>deputado,	além	de,	como</p><p>pioneiro	da	pedagogia	em	seu	país,	ter	dirigido</p><p>uma	campanha	nacional	em	prol	da	educação	das	crianças,	à	qual	teve</p><p>no	centro	o	método	de	ensino	de	leitura	criado	em	seu	livro	A cartilha</p><p>maternal	(1876).</p><p>50 UNIUBE</p><p>As	características	que	definem	a	lírica	de	João	de	Deus	e	o	distinguem</p><p>dos	demais	românticos	são	a	temática	amorosa	e	sua	linguagem	simples,</p><p>espontânea	e	musical,	que,	pelos	seus	ritmos,	aproxima-se	da	oralidade</p><p>e	da	fala	das	pessoas	do	povo.	Em	seus	poemas,	a	figura	da	mulher	é</p><p>apresentada	com	reverência,	numa	atitude	mística	do	sujeito	poético</p><p>que	revela	a	influência	das	cantigas	de	amor	trovadorescas.	A	essa</p><p>idealização,	contudo,	é	contraposto	um	sensualismo,	índice	da	vida	que</p><p>animava	o	sentimento	expresso	em	seus	versos.	Também	contribuiu</p><p>para	o	duradouro	prestígio	da	obra	do	autor	a	sensibilidade	com	que	ele</p><p>tratava	os	temas	da	vida	amorosa,	como	o	desejo	e	a	saudade.</p><p>Ao	contrário	de	Soares	de	Passos,	João	de	Deus	viria	a	ser	muito</p><p>admirado	pelos	jovens	que	dariam	origem	ao	Realismo	na	literatura</p><p>portuguesa;	um	deles,	Teófilo	Braga,	foi	o	responsável	pela	publicação,</p><p>em	1893,	de	Campo	de	flores,	reunião	de	toda	a	obra	lírica	do	poeta.</p><p>A	leitura	na	íntegra	de	“O	noivado	do	sepulcro”	pode	ser	feita	neste	endereço:</p><p>http://reproduction-inderdite.blogspot.com.br/2009/12/analise-de-o-noivado-</p><p>do-sepulcro-de.html.</p><p>AMPLIANDO	O	CONHECIMENTO</p><p>Cesário Verde e a poesia do olhar moderno1.5</p><p>O	 período	 da	 literatura	 portuguesa	 identificado	 como	 Realismo,</p><p>predominante	entre	os	anos	de	1865	e	1890,	portanto,	entre	o	Romantismo</p><p>e	o	Simbolismo,	marcou	uma	profunda	alteração	no	contexto	cultural</p><p>daquela	 época.	 Influenciados	 pelas	 consequências	 da	 Revolução</p><p>Industrial,	principalmente	nos	avanços	conquistados	nos	campos	da</p><p>ciência,	da	tecnologia	e	da	economia	capitalista,	os	jovens	realistas</p><p>tinham	por	propósito	atualizar	a	cultura	de	Portugal,	colocando-a	a	par</p><p>de	tudo	o	que	se	discutia	em	centros	mais	desenvolvidos	da	Europa	em</p><p>UNIUBE 51</p><p>termos	também	de	arte,	filosofia	e	política.	Na	polêmica	que	travaram</p><p>com	os	últimos	românticos,	conhecida	como	a	“Questão	Coimbrã”,	por</p><p>ter	acontecido	principalmente	na	cidade	de	Coimbra,	onde	estudavam</p><p>os	principais	defensores	das	novas	ideias,	as	posições	cientificistas,</p><p>politicamente	engajadas,	republicanas	e	anticlericais	definiriam	a	direção</p><p>que	a	literatura	portuguesa	trilharia	por	muitos	anos	a	seguir.</p><p>Nesse	contexto,	surgiriam	alguns	dos	mais	duradouros	talentos	das</p><p>letras	lusitanas,	entre	eles,	Antero	de	Quental,	Eça	de	Queirós,	Ramalho</p><p>Ortigão,	Guerra	Junqueiro,	Gomes	Leal.</p><p>Embora	não	tenha	participado	dos	embates	ideológicos	e	literários	que</p><p>definiriam,	a	partir	de	Coimbra,	o	papel	da	geração	realista	em	Portugal,</p><p>o	nome	de	Cesário	Verde	também	deve	ser	acrescentado	à	relação	dos</p><p>grandes	desse	tempo,	pois,	ao	lado	da	poesia	política	e	metafísica	de</p><p>Antero	de	Quental,	sua	obra	dá	destaque	a	outra	vertente	importante	na</p><p>arte	dos	finais	dos	oitocentos:	a	poesia	do	cotidiano.</p><p>Diferentemente	 da	 maioria	 dos	 autores	 associados	 ao	 Realismo</p><p>português,	Cesário	Verde	(1855-1886)	não	estudou	em	Coimbra,	mas</p><p>em	Lisboa,	em	cuja	universidade	frequentou	por	algum	tempo	o	curso</p><p>de	Letras.	Toda	sua	vida	foi	passada	nessa	cidade,	onde	seu	pai	estava</p><p>estabelecido	no	comércio	de	ferragens,	no	qual	o	filho	também	trabalhou</p><p>por	muito	tempo.	Não	espanta,	portanto,	que	a	vida	cotidiana	de	Lisboa</p><p>seja	o	tema	mais	evidente	da	poesia	que	ele	produziu,	a	qual	publicou</p><p>esparsamente	em	jornais	e	outros	periódicos	da	época	e	que	só	saiu</p><p>reunida,	postumamente,	em	O livro de Cesário Verde,	publicado	por</p><p>um	amigo	seu	em	1887.</p><p>O	caráter sui generis	da	obra	de	Cesário	é	assim	avaliado	por	Massaud</p><p>Moisés:</p><p>A	curta	e	anônima	existência	de	Cesário	Verde	não</p><p>conheceu	qualquer	reconhecimento	durante	o	seu</p><p>transcorrer.	Passou	despercebida	em	seu	tempo	e</p><p>assim	ficou,	até	que,	de	alguns	anos	a	esta	parte,	a</p><p>crítica	começou	a	dar-lhe	a	devida	importância,	graças</p><p>52 UNIUBE</p><p>à	sua	poesia,	dotada	de	estranha	força	e	capaz	de	se</p><p>pôr	ao	lado	das	mais	significativas	da	época.	É	que</p><p>Cesário	Verde	reuniu	um	conjunto	de	fatores	bastante</p><p>especiais,	e	suficientemente	fortes	para	se	distinguir,	a</p><p>um	só	tempo,	como	autônomo	e	grande	poeta.	[...]</p><p>Dotado	 de	 um	 temperamento	 anti-“literário”	 por</p><p>excelência,	projeta-se	nas	coisas	exteriores	(pessoas,</p><p>macadame,	piche,	repolho,	rolhas,	peixe,	etc.)	com</p><p>todo	o	peso	de	sua	fervilhante	vida	interior,	a	fim	de</p><p>apreender	a	imagem	fugaz	das	coisas,	em	perpétuo</p><p>dinamismo.	É	então	que	nasce	a	poesia	do	cotidiano,</p><p>do	trivial,	pois	o	poeta	necessita	ver-se	continuamente</p><p>nas	coisas,	para	atingir	o	claro	equilíbrio	do	verso,	elo</p><p>entre	o	seu	drama	e	a	poesia.	A	duplicidade	inicial	dos</p><p>planos,	com	o	propósito	de	fixar	o	instante	que	passa,	e</p><p>a	certeza	de	que	o	próprio	poeta	é	que	está	passando,</p><p>—	leva	Cesário	Verde	a	colocar-se	numa	zona	limítrofe</p><p>de	estradas	que	conduzem	ao	Impressionismo	e	ao</p><p>Expressionismo.	(MOISÉS,	2008,	p.	242-244).</p><p>Massaud	Moisés	faz	referências	a	certos	vocábulos	que	localizam	a</p><p>poesia	de	Cesário	num	ambiente	tipicamente	urbano:	as	pessoas,	o</p><p>macadame	(mistura	de	brita,	breu	e	areia)	que	revestia	as	ruas	dos</p><p>bairros	que	estavam	sendo	modernizados	naquele	tempo,	os	produtos</p><p>de	consumo	diário,	à	venda	no	comércio	lisboeta.	É	da	relação	que</p><p>o	sujeito	poético	de	seus	versos	estabelece	com	esses	estímulos</p><p>exteriores	que	Cesário	compõe	sua	poesia;	nela,	a	observação	da</p><p>realidade	citadina	é	o	principal	motor	da	inspiração	poética.	É	o	que	se</p><p>vê	em	muitos	de	seus	poemas	mais	importantes,	como	“O	sentimento</p><p>de	um	ocidental”,	que	acompanha	o	trajeto	do	eu	lírico	pela	noite	de</p><p>Lisboa,	em	que	ele	vê	toda	a	ebulição	da	vida	de	uma	cidade	que	se</p><p>moderniza	e	enriquece,	ao	mesmo	tempo	em	que	ainda	mantém	intactas</p><p>muitas	estruturas	de	injustiça	e	exploração	dos	mais	pobres.	O	mesmo</p><p>pode	ser	dito	de	poemas	como	“Esplêndida”,	“Humilhações”,	“Arrojos”,</p><p>“Deslumbramentos”	e	“Cristalizações”,	nos	quais	o	eu	lírico	exterioriza</p><p>sua	devoção	por	uma	mulher	ao	mesmo	tempo	ideal	e	fatal,	pois	o	atrai</p><p>e	o	repulsa,	mas	sempre	num	quadro	de	vida	urbana,	em	que	a	situação</p><p>sentimental	do	poeta	é	mostrada	contra	o	pano	de	fundo	dos	hábitos</p><p>sociais,	incluindo	as	caminhadas	pelo	Passeio	Público,	a	frequência	a</p><p>teatros	e	cafés	da	Baixa,	o	bairro	comercial	e	boémio	de	Lisboa.</p><p>UNIUBE 53</p><p>Essa	penetração	da	realidade	contemporânea	na	lírica	de	Cesário</p><p>Verde	se	revela	magistralmente	em	“Num	bairro	moderno”,	poema	que</p><p>pode	ser	lido	como	complementar	a	“O	sentimento	dum	ocidental”,	pois</p><p>também	mostra	o	eu	lírico	caminhando	pela	cidade,	mas	durante	o	dia.</p><p>Nele,	ao	longo	de	vinte	estrofes	de	cinco	versos,	o	leitor	acompanha	o</p><p>poeta,	que	sai	de	casa	às	dez	da	manhã,	ao	longo	de	seu	trajeto	para</p><p>o	trabalho	na	Baixa.	A	descrição	das	ruas,	casas	e	hábitos	burgueses</p><p>é	feita	de	maneira	sempre	detalhada	e	precisa,	temperada	pela	ironia</p><p>de	quem	observa,	mas	também	julga,	pois	a	realidade	nunca	lhe	é</p><p>neutra.	Cruzando	com	as	personagens	de	baixa	extração	social	que</p><p>prestam	serviço	aos	habitantes	do	bairro	moderno	por	onde	passa,	entre</p><p>eles	vendedores,	criados,	padeiros,	condutores	de	carruagens,	ele	vai</p><p>contrastando	o	trabalho	deles	com	o	luxo	e	o	conforto	das	casas	em	que</p><p>batem,	mas	não	podem	entrar.</p><p>O	clímax	deste	quadro	de	contrastes	se	dá	quando	o	sujeito	poético	vê</p><p>parar,	diante	de	uma	mansão,	uma	vendedora	ambulante	de	verduras,</p><p>legumes	e	frutas.	Ao	observá-la	detidamente,	ele	descreve	sua	pobreza</p><p>e	sua	feiura,	mas,	vendo	o	conteúdo	da	grande	cesta	que	ela	carrega,</p><p>acaba	por	revelar	o	processo	artístico	da	poesia	cesariana:</p><p>Subitamente	–	que	visão	de	artista!	–</p><p>Se	eu	transformasse	os	simples	vegetais,</p><p>À	luz	do	Sol,	o	intenso	colorista,</p><p>Num	ser	humano	que	se	mova	e	exista</p><p>Cheio	de	belas	proporções	carnais?!</p><p>(...)</p><p>E	eu	recompunha,	por	anatomia,</p><p>Um	novo	corpo	orgânico,	aos	bocados.</p><p>Achava	os	tons	e	as	formas.	Descobria</p><p>Uma	cabeça	numa	melancia,</p><p>E	nuns	repolhos	seios	injetados.	(VERDE,	2006,	p.	107).</p><p>54 UNIUBE</p><p>A	partir	daí,	será	narrado	como	o	eu	lírico	vai	compondo	em	sua	imaginação</p><p>uma	figura	de	mulher,	cujo	corpo	se	vai	formando	daquilo	que	ele	vê	no</p><p>cesto	da	vendedora;	o	leitor	atento	perceberá	que,	ao	mesmo	tempo,	as</p><p>estrofes	do	poema	vão	sendo	escritas.	A	atitude	do	eu	lírico	nessas	estrofes</p><p>e	nas	que	se		seguem,	ou	seja,	a	de	se	deixar	inspirar	pelos	recortes	da</p><p>vida	real	e	cotidiana	que	tem	diante	dos	olhos,	para	criar	um	ser	de	ficção,</p><p>reproduz	o	procedimento	geral	da	obra	de	Cesário	Verde,	que	é	o	de	se</p><p>alimentar	da	realidade,	em	seus	detalhes	mais	comuns,	para	fazer	uma</p><p>poesia	diferente	de	todas	de	seu	tempo,	em	Portugal.	Nisso,	o	autor	se</p><p>mostra	um	herdeiro	da	concepção	moderna	de	arte	e	poesia,	inaugurada</p><p>por	Charles	Baudelaire,	como	aponta	Ricardo	Daunt:</p><p>Assim,	ao	escolher	o	transitório	e	o	relativo,	tornam-se</p><p>ao	alcance	do	poeta	assuntos	prosaicos,	ampliando-se</p><p>o	espectro	lírico	de	sua	obra.</p><p>Cesário	Verde	aproxima-se	de	concepção	expressa</p><p>por	Baudelaire	no	Salon	de	1846,	onde	defende	que	a</p><p>beleza	absoluta	e	eterna	não	existe,	não	sendo	mais	do</p><p>que	uma	abstração.	[...]</p><p>Atraído,	contudo	[...]	pelo	dia	a	dia,	pelo	cotidiano,</p><p>afasta-se	de	qualquer	intuito	de	fazer	do	poema	um</p><p>território	filosófico,	como	Antero	de	Quental.	Sua	obra</p><p>atesta	a	presença	de	um	sujeito	lírico	que	deambula</p><p>pelo	mundo	urbano	da	civilização	industrial	capturando</p><p>os	variegados	recortes	físicos	e	os	múltiplos	estímulos</p><p>sensoriais	da	cidade	labiríntica.	(DAUNT,	2006,	p.	14).</p><p>Foi	a	partir	dessa	poesia	das	pequenas	coisas,	colhida	nos	instantes</p><p>fugazes	da	vida	urbana,	que	se	fez	a	poesia	de	Cesário	Verde,	a	qual</p><p>passou	quase	anônima	em	sua	época,	mas,	atualmente,	faz	com	que</p><p>ele	seja	conhecido	como	um	dos	grandes	líricos	a	ter	escrito	em	língua</p><p>portuguesa.</p><p>Você	pode	baixar	O	livro	de	Cesário	Verde	na	íntegra	neste	endereço:</p><p>https://www.luso-livros.net/wp-content/uploads/2013/03/O-Livro-de-</p><p>Ces%C3%A1rio-Verde.pdf</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>UNIUBE 55</p><p>Panorama da poesia simbolista1.6</p><p>O	predomínio	das	questões	científicas,	tecnológicas	e	econômicas</p><p>na	formação	da	visão	de	mundo	associada	ao	Realismo	nas	últimas</p><p>décadas	do	século	XIX	esteve	na	base	do	surgimento	de	uma	geração</p><p>de	autores	que	marcou	profundamente	a	história	da	literatura	ocidental.</p><p>Podem	ser	citados	nesse	contexto	gigantes	como	Liev	Tolstói	e	Fiodor</p><p>Dostoievski,	na	Rússia,	Gustave	Flaubert	e	Honoré	de	Balzac,	na	França,</p><p>Charles	Dickens	e	William	M.	Thackeray,	na	Inglaterra,	Eça	de	Queirós,</p><p>em	Portugal,	Machado	de	Assis,	no	Brasil.</p><p>Contudo	o	pronunciado	cientificismo	e	apego	à	vida	material	resultantes</p><p>dos	progressos	técnicos	produzidos	pela	segunda	fase	da	Revolução</p><p>Industrial	(1870-1914)	foram	interpretados	negativamente	por	determinados</p><p>grupos	de	intelectuais,	em	muitas	das	mesmas	nações	citadas	acima.	Do</p><p>ponto	de	vista	deles,	a	cultura	da	passagem	entre	os	séculos	XIX	e	XX</p><p>se	distanciara	dos	verdadeiros	valores	humanos,	como	a	sensibilidade,</p><p>a	imaginação	e	a	busca	de	experiências	que	transcendessem	o	cotidiano</p><p>e	o	mundo	do	trabalho.	No	campo	das	artes,	essa	visão	de	mundo</p><p>alternativa	deu	origem	ao	movimento	conhecido	como	Simbolismo.</p><p>À	fria	e	racionalista	observação	da	realidade	social	defendida	pelo</p><p>Realismo,	com	vistas	a	nela	intervir	como	força	transformadora,	os</p><p>simbolistas	responderão	com	uma	arte	que	busca	outro	entendimento	do</p><p>processo	artístico,	ao	qual	deviam	também	corresponder	outras	formas</p><p>de	expressão,	como	apontam	António	José	Saraiva	e	Óscar	Lopes:</p><p>[...]	trata-se	[...]	de	impor	a	prosa	rítmica,	o	verso	livre,</p><p>e	certas	estruturas	estróficas	novas	ou	desusadas;</p><p>trata-se	ainda	de	surpreender	o	leitor	pelo	ineditismo</p><p>das	 imagens,	pelo	esoterismo	de	um	vocabulário</p><p>erudito	colhido	em	glossários	pouco	manuseados	e</p><p>alusivo	ao	um	mundo	deslumbrante	de	pedrarias	raras</p><p>e	alfaias	litúrgicas,	e	pelos	mais	variados	ingredientes</p><p>do	exotismo.	Tudo	isso	se	associava	a	uma	pretensa</p><p>degenerescência	cheia	de	requintes	na	arte	verbal</p><p>56 UNIUBE</p><p>dos	nefelibatas	(viandantes	das	nuvens),	nome	dilecto</p><p>desses	poetas,	 que	pretendiam	escrever	 para	os</p><p>raros	apenas.	Uma	das	notas	dominantes	na	tentativa</p><p>dessa	poesia	é	um	profundo	pessimismo,	aliás	muito</p><p>generalizado	nas	obras	da	década	de	1890.	(SARAIVA</p><p>&	LOPES,	1985,	p.	1030-1031).</p><p>O	pessimismo	a	que	se	referem	os	autores	é	causado	pelo	desencanto</p><p>que	essa	nova	geração	tem	com	o	progresso	material	e	técnico	como</p><p>fonte	de	realização	humana.	Para	autores	como	Stephanne	Mallarmé</p><p>e	Paul	Verlaine,	pais	do	Simbolismo	francês,	e	outros	influenciados	por</p><p>eles,	como	os	brasileiros	João	da	Cruz	e	Sousa	e	Alphonsus	Guimaraens</p><p>ou	os	portugueses	António	Nobre	e	Camilo	Pessanha,	a	arte	se	convertia</p><p>na	única	experiência	humana	verdadeiramente	rica	de	significados.	É</p><p>por	isso	que	eles	davam	as	costas	à	realidade	e	a	tudo	que	fosse	banal,</p><p>como	indicam	seu	gosto	pelo	mundo	das	nuvens,	quer	dizer,	dos	sonhos,</p><p>e	sua	preferência	por	um	vocabulário	que	só	pudesse	ser	decifrado	por</p><p>um	público	de	iniciados,	como	aparece	na	citação	acima.</p><p>Em	Portugal,	os	primórdios	da	escola	simbolista	estão	ligados	às	ações</p><p>do	poeta	Eugénio	de	Castro	(1869-1944).	Ao	voltar	de	uma	viagem	à</p><p>França,	ele	lançou	a	revista	Insubmissos	(1889),	cuja	proposta	básica</p><p>era	 renovar	 a	 literatura	 portuguesa;	 em	 seguida,	 publicou	 o	 livro</p><p>Oaristos	 (1890),	cujos	poemas	dialogavam	com	as	mais	recentes</p><p>mudanças	ocorridas	na	poesia	francesa,	na	qual	se	destacavam	as	ideias</p><p>simbolistas	de	Mallarmé	e	Verlaine.</p><p>O	prefácio	do	livro	de	Eugénio	de	Castro	se	tornou	o	manifesto	do</p><p>Simbolismo	português,	pois	resumia	as	linhas	de	força	dessa	nova	escola</p><p>poética.	Entre	elas,	estava	a	defesa	dos	ritmos	livres,	a	preferência	por</p><p>um	vocabulário	requintado	e	erudito,	propício	à	criação	de	imagens</p><p>simbólicas	do	inconsciente	do	artista,	a	tendência	a	negar	a	realidade	em</p><p>busca	de	uma	existência	mais	profunda,	oferecida	pelo	sonho	e	pela	arte.</p><p>UNIUBE 57</p><p>Apesar	de	ser	o	introdutor	do	Simbolismo	em	seu	país,	Eugénio	de</p><p>Castro	não	é	o	mais	importante	representante	dessa	escola	literária;</p><p>esse	lugar	pertence	a	António	Nobre	e	Camilo	Pessanha.</p><p>António Nobre	(1867-1900)	publicou	em	vida	um	único	livro:	Só	(1892).</p><p>Classificado	pelo	próprio	autor	como	o	livro	mais	triste	que	existia	em</p><p>Portugal,	a	obra	revela	um	poeta	de	rara	sensibilidade.	A	leitura	dos</p><p>poemas	que	a	compõem	deixa	entrever	um	eu	lírico	cuja	visão	de	mundo</p><p>é	marcadamente	subjetiva,	sentimental,	introspectiva	e	melancólica.	O</p><p>símbolo	máximo	dessas	tendências	é	a	“torre	de	Anto”,	moradia	fictícia	à</p><p>qual	o	sujeito	poético	refere-se	várias	vezes	e	que	equivale	ao	seu	gosto</p><p>pelo	isolamento.</p><p>António	Nobre	cursou	Direito	na	Universidade	de	Coimbra,	mas	se</p><p>frustrou	muito	com	o	ambiente	da	instituição,	no	qual	destoava	sua</p><p>personalidade	retraída.	Depois	de	ser	reprovado	duas	vezes,	desistiu,</p><p>optando	por	 ir	para	Paris,	onde	conseguiu	se	 formar	em	Ciências</p><p>Políticas.	Já	por	essa	época,	sofria	da	tuberculose	que	o	mataria	antes</p><p>de	completar	trinta	e	três	anos.</p><p>Foi	no	tempo	em	que	viveu	na	França	que	António	Nobre	conheceu	o</p><p>Simbolismo,	que	acabou	por	definir	sua	linhagem	artística;	é	dessa	altura</p><p>que	vêm	os	poemas	que	formam	o	Só,	cuja	primeira	publicação,	aliás,</p><p>foi	feita	por	uma	editora	parisiense.	Um	dos	aspectos	mais	curiosos	e</p><p>significativos	do	livro	é	o	fato	de	que,	escrito	e	publicado	em	Paris,	seus</p><p>poemas	só	falam	de	Portugal.	Esse	pormenor	demonstra	a	importância</p><p>da	memória	e	da	nostalgia	na	formulação	da	poética	de	Nobre.</p><p>O	ensimesmamento	do	sujeito	poético	presente	nos	poemas	de	Só	faz</p><p>com	que	ele	não	estabeleça	relações	com	o	mundo	real	e	cotidiano,	muito</p><p>menos	com	as	pessoas	que	o	habitam.	Dessa	forma,	ele	se	volta	para</p><p>seu	interior,	onde	encontra	todo	um	passado	que	o	atrai	constantemente.</p><p>É	assim	que,	por	meio	da	memória	de	uma	infância	em	tudo	parecida</p><p>com	a	do	autor,	que	a	viveu	em	províncias	do	interior	de	Portugal,</p><p>o	tema</p><p>da	saudade	se	afirma	como	decisivo	na	lírica	de	Nobre.</p><p>58 UNIUBE</p><p>O	efeito	 disso	é	 que	os	poemas	estão	 repletos	de	 referências	 às</p><p>paisagens	rurais,	a	hábitos,	personagens	e	familiares	com	quem	o	próprio</p><p>poeta	conviveu	em	sua	infância.	Na	sua	poesia,	então,	o	símbolo	maior</p><p>é	a	infância,	verdadeiro	Paraíso	perdido	ao	qual	o	eu	lírico	deseja	voltar</p><p>como	forma	de	fuga	e	resistência	ao	materialismo	que	predominava	em</p><p>sua	época.</p><p>Você	pode	baixar	a	primeira	edição	de	Só	a	partir	deste	link:</p><p>http://purl.pt/125/6/l-61159-v_PDF/l-61159-v_PDF_24-C-R0072/l-61159-</p><p>v_0000_capa-guardas2_t24-C-R0072.pdf</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>Camilo Pessanha (1867-1926)	é	o	mais	acabado	exemplo	de	poeta</p><p>simbolista	no	contexto	português.	Assim	como	António	Nobre,	teve</p><p>somente	um	livro	publicado	em	vida,	por	iniciativa	de	uma	amiga	sua.</p><p>Trata-se	de	Clepsidra	(1926),	obra	em	que	desenvolveu	um	estilo</p><p>personalíssimo	de	poesia,	que	mereceu	elogios	até	de	Fernando	Pessoa,</p><p>que	não	era	pródigo	em	distribui-los.</p><p>O	escritor	passou	a	maior	parte	de	sua	vida	adulta	em	Macau,	que	ainda</p><p>era	uma	possessão	portuguesa	naquele	tempo.	Formado	em	Direito	pela</p><p>Universidade	de	Coimbra,	Camilo	Pessanha	apenas	conseguiu	uma</p><p>colocação	profissional	no	Oriente,	para	onde	foi	como	professor	do	ensino</p><p>secundário.	Posteriormente,	assumiu	os	cargos	de	conservador	do	registro</p><p>predial	e	de	juiz	de	comarca.	Em	termos	pessoais,	entretanto,	foi	mais</p><p>importante	sua	imersão	na	cultura	chinesa,	evidente	em	seu	interesse</p><p>pela	língua,	poesia,	arte	e	hábitos	do	povo	entre	o	qual	foi	viver;	também</p><p>fez	parte	dessa	integração	o	vício	em	ópio,	adquirido	já	em	Macau.	Um</p><p>exemplo	perfeito	do	impacto	da	cultura	oriental	sobre	sua	obra	pode	ser</p><p>visto	no	poema	“Viola	chinesa”;	o	mesmo	pode	ser	dito	da	coleção	de	mais</p><p>de	cem	pinturas,	porcelanas,	cerâmicas,	esculturas	e	pedras	raras	que	o</p><p>poeta	acumulou	e	que	doou	ao	Estado	português	em	1918.</p><p>UNIUBE 59</p><p>Nos	poemas	de	Clepsidra,	há	diversos	procedimentos	de	estilo	e	de</p><p>temática	que	tornam	reconhecível	a	influência	do	Simbolismo	francês.</p><p>A	linguagem	é	sumamente	simbólica,	repleta	de	metáforas	e	sinestesias,</p><p>de	maneira	a	conduzir	o	leitor	a	uma	realidade	diferente,	mais	própria	do</p><p>mundo	dos	desejos	e	dos	sonhos.</p><p>Nesse	sentido,	a	grande	inspiração	do	estilo	de	Camilo	Pessanha	é	a</p><p>música,	pois,	como	na	poesia	de	Paul	Verlaine	e	de	Stéphane	Mallarmé,</p><p>o	poeta	português	também	a	via	como	a	arte	suprema,	em	função	de	seu</p><p>alto	poder	de	sugestão,	que	é	capaz	de	transportar	o	ouvinte	para	longe</p><p>de	seu	espaço	em	que	se	encontra	seu	corpo.	Exemplos	desse	apego	a</p><p>uma	visão	da	poesia	como	arte	sugestiva	no	sentido	musical	estão	em</p><p>poemas	como	“Fonógrafo”,	“Violoncelo”,	“Ao	longe	os	barcos	de	flores”</p><p>e	o	já	citado	“Viola	chinesa”.	Neles,	as	referências	diretas	e	indiretas	a</p><p>melodias	criam	uma	atmosfera	sensorial,	na	qual	as	sensações	sonoras</p><p>se	mesclam	a	outras,	visuais,	táteis	e	olfativas,	para	criar	uma	experiência</p><p>abstrata,	na	qual	o	leitor	pode	projetar	sua	sensibilidade	e	imaginação.</p><p>O	sujeito	poético	presente	na	lírica	de	Camilo	Pessanha	é	dotado	de</p><p>uma	sensibilidade	muitíssimo	exacerbada.	Em	suas	relações	com	o</p><p>mundo,	com	as	outras	pessoas,	com	a	mulher	e	consigo	mesmo,	todas</p><p>as	experiências	se	traduzem	em	termos	de	dor.	As	sensações	de	exílio,</p><p>de	loucura	e	desespero	são	comuns,	levando-o,	frequentemente,	a	um</p><p>estado	de	absoluto	desânimo.</p><p>A	consequência	dessa	disposição	de	alma,	em	termos	de	expressão</p><p>poética,	é	a	fragmentação	da	linguagem.	Muitos	poemas	de	Pessanha</p><p>são	cumulados	de	reticências,	que	indicam,	do	ponto	de	vista	do	eu,	a</p><p>inefabilidade	da	existência.	Esse	é	o	nome	que	se	dá	ao	caráter	de	certas</p><p>experiências	que	desafiam	os	limites	da	linguagem:	a	pessoa	sente,</p><p>mas	não	consegue	traduzir	em	palavras	o	que	experimentou.	O	melhor</p><p>exemplo	desse	procedimento	em	Clepsidra	é	o	poema	a	seguir:</p><p>60 UNIUBE</p><p>Se	andava	no	jardim,</p><p>Que	cheiro	de	jasmim!</p><p>Tão	branca	do	luar!</p><p>................................</p><p>................................</p><p>................................</p><p>Eis	tenho-a	junto	a	mim.</p><p>Vencida,	é	minha,	enfim,</p><p>Após	tanto	a	sonhar...</p><p>Porque	entristeço	assim?...</p><p>Não	era	ela,	mas	sim</p><p>(O	que	eu	quis	abraçar),</p><p>A	hora	do	jardim...</p><p>O	aroma	de	jasmim...</p><p>A	onda	do	luar...	(PESSANHA,	1989,	p.	27).</p><p>Visualmente,	a	terceira	estrofe	já	sugere	o	que	a	análise	das	demais</p><p>confirma:	no	processo	de	conquista	amorosa	que	o	poema	narra,	a</p><p>base	da	frustração	final	do	eu	lírico	é	o	fato	de	que	ele	não	desejava	a</p><p>mulher	concreta	que	viu	na	primeira	estrofe.	O	que	realmente	o	atraía</p><p>era	a	ambientação	do	encontro:	o	espaço	do	jardim,	o	momento	em	que</p><p>o	luar	brilhava,	o	perfume	que	a	presença	da	moça	nesse	cenário	de</p><p>sonho	desencadeou.	Em	outras	palavras:	o	que	interessava	ao	sujeito</p><p>poético	não	era	a	mulher	em	si,	mas	tudo	de	impossível,	inalcançável,</p><p>inapreensível	 que	 ela	 sugeriu.	 Havia,	 portanto,	 um	 intervalo,	 uma</p><p>distância	entre	o	desejo	do	poeta	e	sua	realização;	é	ela	que	é	sugerida</p><p>pelas	reticências,	que	deixam	incompletos	cinco	dos	doze	versos	escritos,</p><p>mais	toda	a	terceira	estrofe.	A	consequência	é	inescapável	para	o	leitor</p><p>atento:	assim	como	a	experiência	amorosa	do	eu	lírico	não	se	completou,</p><p>suas	frases	também	não	se	completam,	pois	sua	visão	do	amor	é	tão</p><p>fragmentada	quanto	sua	escrita.</p><p>UNIUBE 61</p><p>No	 contexto	 da	 poesia	 simbolista,	 a	 fragmentação	 da	 linguagem</p><p>exemplificada	por	Camilo	Pessanha	converte-se	num	símbolo	poderoso</p><p>de	 um	mundo	 em	 deterioração,	 no	 qual	 nenhum	 valor	 tradicional</p><p>permanece:	só	a	música	sobrevive	como	linguagem	válida	e,	por	isso,</p><p>a	poesia	deve	aspirar	a	ser	igual	a	ela,	ou	seja,	sugestiva,	misteriosa,</p><p>enigmática,	sutil	como	uma	língua	que	só	as	almas	podem	entender.</p><p>Todos	os	poemas	de	Clepsidra	estão	disponíveis	para	leitura	neste	endereço:</p><p>http://c-pessanha.blogspot.com.br/</p><p>No	You	tube,	você	pode	assistir	ao	documentário	“Camilo	Pessanha	–	um</p><p>poeta	ao	longe”.	Produzido	pela	Rádio	Televisão	Portuguesa	em	2007,	o</p><p>programa	apresenta	a	declamação	de	poemas,	dados	biográficos	e	análise</p><p>da	obra	do	poeta.	O	endereço	é	este:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=phXufTQjnnA</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>1.7 Mário de Sá-Carneiro: Orpheu entre o sonho e a revolução</p><p>modernista</p><p>Nas	primeiras	décadas	do	século	XX,	a	poesia	portuguesa	revelava	a</p><p>influência	de	vertentes	surgidas	ainda	no	final	do	XIX,	como	indicam</p><p>a	produção	simbolista	de	Camilo	Pessanha,	a	saudosista	de	Teixeira</p><p>de	Pascoaes	e	Mário	Beirão	e	a	parnasiana	de	Gonçalves	Crespo.</p><p>Essa	situação	contrastava	com	aquela	em	vigor	nos	países	centrais	da</p><p>Europa,	nos	quais	a	renovação	completa	das	artes	a	que	se	daria	o</p><p>nome	de	Modernismo	já	lançava	suas	bases	por	meio	das	experiências</p><p>das	chamadas	vanguardas:	o	Cubismo,	Futurismo,	Expressionismo,</p><p>Fauvismo	e	Dadaísmo,	todas	diferentes	entre	si,	mas	coincidindo	no</p><p>propósito	de	fazer	arte	de	maneiras	nunca	vistas	antes	na	tradição</p><p>ocidental,	de	raiz	greco-latina,	que	já	consideravam	ultrapassada	e</p><p>irrelevante	para	o	mundo	surgido	da	Revolução	Industrial.</p><p>62 UNIUBE</p><p>Em	1915,	um	grupo	de	jovens	artistas	e	intelectuais	de	Lisboa	se	uniu</p><p>em	torno	do	lançamento	da	revista	Orpheu,	decididos	a	trazer	para</p><p>Portugal	toda	a	efervescência	cultural	e	artística	que	viam	espalhar-</p><p>se	a	partir	de	Paris,	a	cidade	mais	importante	em	termos	de	estética</p><p>naquele	momento	histórico.	Entre	eles	estavam	Fernando	Pessoa,</p><p>Mário	de	Sá-Carneiro,	José	de	Almada-Negreiros,	Luís	de	Montalvor	e	o</p><p>brasileiro	Ronald	de	Carvalho;	para	todos,	Orpheu	deveria	servir	como</p><p>instrumento	de	divulgação	de	novas	ideias	e	novas	práticas	artísticas,</p><p>para	atualizar	a	cultura	portuguesa	conforme	o	que	ocorria	na	Europa</p><p>culta.	Segundo	Fernando	Pessoa	(1966,	p.	113),	era	preciso	“Criar	uma</p><p>arte	cosmopolita	no	tempo	e	no	espaço	(...).	A	verdadeira	arte	moderna</p><p>tem	de	ser	maximamente	desnacionalizada	–	acumular	dentro	de	si	todas</p><p>as	partes	do	mundo.	Só	assim	será	tipicamente	moderna”.</p><p>No	primeiro	semestre	de	1915,	saíram	os</p><p>dois	únicos	números	que	o	grupo</p><p>de Orpheu	conseguiu	publicar	da	revista;	o	terceiro,	suspenso	porque</p><p>não	havia	verba	para	fazê-lo	imprimir,	seria	lançado	postumamente</p><p>apenas	na	década	de	1980.	Mesmo	com	uma	carreira	tão	curta,	Orpheu</p><p>teve	um	impacto	decisivo	na	literatura	portuguesa,	que	ficaria	marcada</p><p>por	seu	ímpeto	modernizador	e	espírito	iconoclasta.	A	partir	dela,	os</p><p>nomes	de	Pessoa,	Sá-Carneiro	e	Almada-Negreiros	se	eternizariam</p><p>como	os	de	maior	importância	no	movimento	de	inserção	da	cultura</p><p>portuguesa	no	mundo	moderno.</p><p>Fernando	Pessoa	criou	toda	uma	literatura	sozinho,	com	a	criação	de</p><p>seus	heterônimos	Alberto	Caeiro,	Ricardo	Reis	e	Álvaro	de	Campos;</p><p>Mário	de	Sá-Carneiro,	ao	contrário,	foi	autor	de	uma	obra	pequena,	muito</p><p>pessoal,	mas	também	de	grande	significado.	Tendo	vivido	apenas	vinte	e</p><p>seis	anos	(1890-1916),	foi	autor	de	livros	de	contos	(Princípios,	1912,	e</p><p>Céu em fogo,	1915),	de	novela	(A confissão de Lúcio,	1914),	de	peça</p><p>de	teatro	(Amizade,	1912)	e	de	poesia	(Dispersão,	1914,	e	Indícios de</p><p>ouro,	1937).	Apesar	da	variedade	de	gêneros,	sua	literatura	é	unificada</p><p>pela	presença	de	um	lirismo	muito	forte,	baseado	na	exploração	da</p><p>UNIUBE 63</p><p>subjetividade	do	sujeito	poético	ou	das	personagens	das	narrativas.</p><p>De	modo	geral,	todos	eles	expressam	o	mesmo	dilaceramento	interno,</p><p>que	é	a	forma	que	assume	na	obra	do	autor	o	problema	modernista	da</p><p>fragmentação	do	eu.</p><p>A	primeira	estrofe	do	longo	poema-título	de	Dispersão	e	o	curtíssimo</p><p>poema	“7”	de	Indícios de oiro	coincidem	nessa	tematização	dos	conflitos</p><p>interiores	de	um	ser	vivo	num	mundo	em	constantes	transformações	e</p><p>que	não	encontra	equilíbrio	nem	mesmo	em	sua	própria	personalidade.</p><p>A	estrofe	referida	diz	assim:</p><p>Perdi-me	dentro	de	mim</p><p>Porque	eu	era	labirinto,</p><p>E	hoje,	quando	me	sinto,</p><p>É	com	saudades	de	mim.	(SÁ-CARNEIRO,	2004,	p.	22).</p><p>A	autoanálise	que	esses	versos	indicam	é	a	tônica	dominante	da	lírica	de</p><p>Sá-Carneiro.	Observe	como,	em	quatro	linhas	apenas,	há	sete	palavras</p><p>de	1ª	Pessoa	(perdi,	me,	eu,	era,	me,	sinto,	mim),	mostrando	que	o	mundo</p><p>criado	na	página	gira	em	torno	de	um	eu	obcecado	consigo	próprio.	Essa</p><p>obsessão,	entretanto,	não	se	resolve	de	forma	positiva,	pois	a	experiência</p><p>que	o	“eu”	tem	consigo	mesmo	é	de	perda,	de	descaminho	e	de	saudade.</p><p>O	retrato	que	ele	dá	de	si	na	eloquente	metáfora	do	labirinto	deve	ser</p><p>suficiente	para	o	leitor	perceber	que	não	está	diante	de	alguém	dotado	de</p><p>certezas	e	de	realizações,	mas,	ao	contrário,	de	dúvidas,	de	hesitações,</p><p>de	frustrações.	Não	é	assim,	predominantemente,	a	experiência	das</p><p>subjetividades	no	admirável	mundo	novo	da	modernidade,	em	que	todas</p><p>as	ciências	e	técnicas	evoluem,	mas	as	pessoas	continuam	se	sentindo</p><p>perdidas?</p><p>64 UNIUBE</p><p>O	poema	“7”	é	composto	por	esta	única	estrofe:</p><p>Eu	não	sou	eu	nem	sou	o	outro,</p><p>Sou	qualquer	coisa	de	intermédio:</p><p>Pilar	da	ponte	de	tédio</p><p>Que	vai	de	mim	para	o	Outro.	(Idem,	p.	44).</p><p>Nesses	versos,	o	tema	da	identidade	do	sujeito	poético,	que	é	central	na</p><p>lírica	e	também	nas	narrativas	de	Sá-Carneiro,	é	expresso	em	termos</p><p>de	oposição,	negação	e	vazio.	A	própria	disposição	das	palavras	que</p><p>forma	o	poema	revela	isso,	quando	o	leitor	atenta	para	o	fato	de	que		os</p><p>vocábulos	“Eu”	e	“Outro”	localizam-se	nos	extremos	da	estrofe.	Essa</p><p>marca	textual	é	muito	eloquente	para	significar	a	distância	que	vai	do	eu</p><p>lírico	para	os	outros	sujeitos	do	mundo,	ou,	numa	outra	leitura	também</p><p>possível,	entre	as	duas	partes	conflitantes	dele	mesmo.	A	questão	aqui</p><p>é	a	da	incomunicabilidade	entre	as	pessoas	e	de	nós	para	nós	mesmos.</p><p>Afinal,	quem	se	daria	o	trabalho	de	atravessar	uma	ponte	de	tédio?</p><p>Nesse	contexto	de	impossibilidades,	a	identidade	do	“eu”	fica	indefinida,</p><p>como	atesta	a	expressão	“qualquer	coisa”,	que	não	diz	nada	de	definido</p><p>sobre	o	ser.	Esse	procedimento	combina	de	maneira	perfeita	com	a	crise</p><p>de	identidade	de	que	falam	todos	os	modernistas,	pois,	no	século	XX,	já</p><p>não	há	mais	nada	que	defina	cabalmente	uma	pessoa,	nem	a	religião,</p><p>nem	o	trabalho,	ou	a	classe	social	ou	a	sexualidade.	Simultaneamente	a</p><p>esses	exercícios	frustrados	de	autoconhecimento,	Sá-Carneiro	também</p><p>escrevia	textos	em	que	o	sujeito	poético	se	voltava	para	os	múltiplos</p><p>estímulos	vindos	da	vida	moderna,	que	buscava	interiorizar	como	meio</p><p>de	aplacar	a	dor	de	existir.	É	o	que	se	vê	em	certas	estrofes	do	longo</p><p>poema	Manucure,	em	que	todos	os	sentidos	do	poeta	se	voltam	para</p><p>as	imagens,	sons,	cheiros	etc.,	que	são	lançados	em	sua	direção	pelo</p><p>mundo	moderno	dos	bulevares,	lojas,	jornais	e	revistas,	navios	de	longo</p><p>percurso,	aviões,	telégrafo,	telefone	e	outras	invenções	recentes.	É	o	que</p><p>se	vê,	por	exemplo,	nesta	estrofe:</p><p>UNIUBE 65</p><p>–	Ó	beleza	futurista	das	mercadorias!</p><p>–	Sarapilheira	dos	fardos,</p><p>Como	eu	quisera	togar-me	de	Ti!</p><p>–	Madeira	dos	caixotes,</p><p>Como	eu	ansiara	cravar	os	dentes	em	Ti!</p><p>E	os	pregos,	as	cordas,	os	aros...	–</p><p>Mas,	acima	de	tudo,</p><p>Como	bailam	faiscantes,</p><p>A	meus	olhos	audazes	de	beleza,</p><p>As	inscrições	de	todos	esses	fardos	–</p><p>Negras,	vermelhas,	azuis	ou	verdes	–</p><p>Gritos	de	actual	e	Comércio	&	Indústria</p><p>Em	trânsito	cosmopolita:</p><p>FRÁGIL! FRÁGIL!</p><p>843 – AG LISBON</p><p>492 – WR MADRID	(Idem,	p.	103).</p><p>A	irregularidade	métrica	desses	versos,	que	também	não	seguem	um</p><p>esquema	de	rimas,	assim	como	a	pontuação	baseada	mais	na	expressão</p><p>das	emoções	do	que	na	observância	de	regras	de	bom	uso,	mostram</p><p>a	 incorporação	 por	Sá-Carneiro	 das	 inovações	 vanguardistas	 que</p><p>interessavam	ao	Modernismo.	Essa	liberdade	formal	é	o	símbolo	de	uma</p><p>nova	geração	de	artistas,	de	um	novo	entendimento	a	respeito	do	que</p><p>deve	ser	a	poesia.	Também	aí	se	mostra	a	relevância	do	poeta,	como</p><p>assinala	Massaud	Moisés:</p><p>[...]	Sá-Carneiro	plasmou	pela	primeira	vez	em	Língua</p><p>Portuguesa	realidades	até	então	insuspeitadas.	Para</p><p>tanto,	violentou	a	ineficaz	e	espartilhante	gramática</p><p>tradicional	 e	 passou	 a	 usar	 uma	 sintaxe	 e	 um</p><p>vocabulário	novos,	que	lhe	permitissem	manipular</p><p>Sarapilheira</p><p>Tecido	grosseiro</p><p>que	serve	para</p><p>sacos,	fardos	etc.</p><p>66 UNIUBE</p><p>fórmulas	expressivas	pessoais,	plásticas,	maleáveis</p><p>e	aptas	a	surpreender	o	fluxo	das	ondas	oníricas,	o</p><p>vago,	o	alucinado,	as	febres,	o	incêndio	dos	sentidos,</p><p>a	desmaterialização	das	coisas,	a	materialização	das</p><p>sensações,	os	sentimentos	mais	abstrusos	e	sutis,</p><p>as	sinestesias	mais	inusitadas,	as	associações	mais</p><p>inesperadas.	(MOISÉS,	2008,	p.	343).</p><p>Foi	por	meio	da	construção	dessa	nova	linguagem	poética,	ajustada	a</p><p>uma	nova	compreensão	do	que	era	a	cultura	do	século	XX,	que	Mário	de</p><p>Sá-Carneiro,	de	vida	e	obra	tão	breves,	conquistou	um	lugar	de	destaque</p><p>entre	os	intérpretes	da	vida	moderna	na	poesia	de	língua	portuguesa.</p><p>O	livro	Dispersão	está	disponível	para	download	neste	link:</p><p>http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/vo000005.pdf</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>José Régio e a poesia da Geração da Presença1.8</p><p>Pouco	mais	de	dez	anos	depois	do	impacto	inicial	de	Orpheu,	uma	nova</p><p>geração	de	jovens	intelectuais	se	reuniu,	desta	vez	em	Coimbra,	em	torno</p><p>de	uma	revista	para	insistir	na	ideia	de	renovação	da	cultura	portuguesa,</p><p>especialmente	em	sua	literatura.	Tratava-se	da	revista	presença,	que	teria</p><p>uma	vida	bem	mais	longa	que	sua	antecessora,	pois	publicou	56	números</p><p>entre	1927	e	1940.	A	ela	estiveram	associados	escritores	de	peso	na</p><p>tradição	lírica	que	se	formou	à	sombra	da	monumental	contribuição</p><p>de	Fernando	Pessoa,	como	José	Régio,	Miguel	Torga,	Branquinho	da</p><p>Fonseca	e	Adolfo	Casais	Monteiro.</p><p>Em	sua	linha	editorial,	a	presença	privilegiava	a	concepção	de	uma</p><p>literatura	baseada	na	liberdade	de	criação	e	expressão,	colocando	no</p><p>centro	do	processo	artístico	o	artista	individual,	e	não	noções	de	escola</p><p>literária	ou	ideologias	sociais	e	políticas.	Assim,	os	textos	críticos	que</p><p>UNIUBE 67</p><p>publicava	atacavam	o	academicismo	tanto	quanto	a	literatura	engajada.</p><p>Já	os	textos	literários,	estes	demonstravam	apego	a	temas	subjetivos,</p><p>psicológicos,	 intuitivos.	Além	disso,	como	também	foi	 intenção	dos</p><p>escritores de Orpheu,	seus	editores	inclusive</p><p>ocupavam-se	da	divulgação</p><p>da	obra	dos	escritores	estrangeiros	mais	importantes	do	começo	do</p><p>século,	como	os	romancistas	Marcel	Proust	e	André	Gide,	os	poetas</p><p>Guillaume	Apollinaire	e	Paul	Valéry	e	o	dramaturgo	Luigi	Pirandello.</p><p>Sobre	o	cosmopolitismo	que	unia	os	presencistas	aos	órficos,	assim</p><p>traçou	Márcia	Seabra	Neves,	da	Universidade	de	Aveiro,	a	sua	evolução:</p><p>Uma	das	preocupações	omnipresentes	da	presença</p><p>consistiu	na	abertura	de	Portugal	ao	mundo	e	na</p><p>valorização	 de	 uma	 arte	 moderna	 internacional,</p><p>através	da	recepção	e	divulgação	das	tendências	e</p><p>manifestações	da	literatura	estrangeira	contemporânea,</p><p>no	propósito	de	combater	o	proverbial	paroquialismo	do</p><p>panorama	cultural	português.</p><p>Antes	da	presença,	já	a	vanguarda	de	Orpheu	se</p><p>havia	empenhado	em	«criar	uma	arte	cosmopolita</p><p>no	tempo	e	no	espaço»	(Pessoa	s.d.:	113),	uma	arte</p><p>moderna	«maximamente	desnacionalizada»	(ibid.:	114),</p><p>aglomerando	«dentro	de	si	todas	as	partes	do	mundo»</p><p>(ibid.:	114),	ou	seja,	uma	literatura	nacional	permeável</p><p>ao	diálogo	com	outras	literaturas	e	apetente	para	um</p><p>intercâmbio	estético	e	cultural.	(NEVES,	2011,	p.	134).</p><p>A	relação	da	revista	com	a	geração	de	Orpheu,	da	qual	vários	autores</p><p>ainda	estavam	vivos,	era	de	admiração	e	respeito,	principalmente	quanto</p><p>a	Fernando	Pessoa,	que	os	presencistas	consideravam	seu	mestre.	Isso</p><p>se	materializou	tanto	na	publicação	de	poemas	dele	na	presença	como</p><p>no	fato	de	alguns	dos	primeiros	estudiosos	da	obra	pessoana	terem</p><p>pertencido	aos	quadros	da	revista,	como	Adolfo	Casais	Monteiro	e	João</p><p>Gaspar	Simões.	É	por	isso	que	a	geração	da	presença	ficou	conhecida</p><p>como	a	do	Segundo	Modernismo	em	Portugal.</p><p>Dos	poetas	associados	à	presença,	um	dos	que	alcançaram	um	nível</p><p>artístico	e	de	reconhecimento	mais	alto	foi	José	Régio.</p><p>68 UNIUBE</p><p>José	Régio	era	o	pseudônimo	de	José	Maria	dos	Reis	Pereira	(1901-1969).</p><p>Sua	obra	literária	compreende	a	poesia,	o	teatro,	o	romance	e	o	ensaio,</p><p>com	quase	trinta	títulos	publicados.	O	cerne	de	sua	lírica,	ou	seja,	a</p><p>reflexão	filosófica	sobre	a	natureza	do	homem	e	seu	destino,	no	qual</p><p>se	destaca	o	problema	da	solidão	diante	de	uma	divindade	ao	mesmo</p><p>tempo	recusada	e	desejada,	reflete	também	em	seus	romances	e	peças</p><p>de teatro.</p><p>Um	de	seus	poemas	mais	famosos,	“Cântico	negro”,	evidencia	esses</p><p>temas,	além	de	registrar	outros	também	importantes,	como	a	defesa</p><p>egocêntrica	da	liberdade	do	indivíduo	diante	dos	acenos	de	grupos</p><p>sociais,	ideologias,	partidos	políticos	ou	escolas	literárias.	Sua	primeira</p><p>estrofe	deixa	claro	como	o	sujeito	poético	criado	por	José	Régio	se	nutre</p><p>apenas	de	suas	próprias	convicções:</p><p>“Vem	por	aqui”	–	dizem-me	alguns	com	olhos	doces,</p><p>Estendendo-me	os	braços,	e	seguros</p><p>De	que	seria	bom	que	eu	os	ouvisse</p><p>Quando	me	dizem:	“vem	por	aqui”!</p><p>Eu	olho-os	com	olhos	lassos,</p><p>(Há,	nos	meus	olhos,	ironias	e	cansaços)</p><p>E	cruzo	os	braços,</p><p>E	nunca	vou	por	ali…	(RÉGIO,	1965,	p.	23).</p><p>Você	 pode	 ver	 uma	declamação	 do	 poema	 completo,	 feita	 pelo	 ator</p><p>português	Marco	D’Almeida,	neste	endereço:</p><p>http://ensina.rtp.pt/artigo/jose-regio-poesia/</p><p>AMPLIANDO	O	CONHECIMENTO</p><p>UNIUBE 69</p><p>Uma	imagem	de	alto	teor	simbólico	da	importância	dada	à	subjetividade</p><p>na	lírica	de	José	Régio	é	a	antítese	formada	pela	oposição	entre	a</p><p>caracterização	do	grupo	que	procura	atrair	o	eu	lírico	para	seu	âmbito	e	a</p><p>que	é	feita	dele.	O	grupo	tem	olhos	“doces”,	expressando	uma	estratégia</p><p>de	se	mostrar	como	um	polo	positivo	de	atração;	os	do	eu	lírico	são</p><p>“lassos”,	ou	seja,	cansados,	fatigados,	entediados,	exteriorizando	sua</p><p>resistência	a	tudo	o	que	vem	de	fora;	os	braços	coletivos	se	estendem,</p><p>num	gesto	de	convite	e	acolhimento,	enquanto	os	do	indivíduo	se	cruzam,</p><p>numa	clara	manifestação	de	recusa.	Em	resumo,	essa	estrofe	opõe	o</p><p>“não”	do	sujeito	poético	aos	pedidos,	escolhas	e	influências	externas,</p><p>sinalizando	como	a	construção	da	poética	de	Régio	é	feita	a	partir	da</p><p>introjeção,	que	lhe	permitirá	ter	espaço	e	tempo	para	o	desenvolvimento</p><p>da	reflexão	e	da	sensibilidade,	que	se	voltam	não	para	o	mundo	relativo</p><p>da	pequenez	humana	e	cotidiana,	mas	para	as	eternidades	do	absoluto</p><p>metafísico,	em	que	o	poeta	buscava	solucionar	as	tensões	entre	sua</p><p>subjetividade	e	a	ânsia	pelo	reencontro	com	Deus,	como	argumenta	o</p><p>teólogo	José	Acácio	Castro,	da	Universidade	Católica	Portuguesa:</p><p>Entre	seres	incompletos	e	fragmentos	dispersos	foi</p><p>José	Régio	percorrendo	os	caminhos	onde	a	poesia</p><p>se	cruza	com	a	vida.	A	sua	opção	por	uma	estética</p><p>de	autenticidade,	onde	o	efeito	retórico	não	se	opõe</p><p>ao	conteúdo	nem	ao	sentido	da	expressão,	onde</p><p>qualquer	idealização	colectiva	do	ser	humano	não</p><p>se	opõe	ao	valor	e	ser	inalienável	que	constitui	cada</p><p>homem,	fez	com	que	o	seu	empreendimento	literário</p><p>assumisse	 um	 carácter	 quase	 militante,	 e	 a	 sua</p><p>militância	pelo	indivíduo	e	pela	pessoa	tê-lo-á	conduzido</p><p>frequentemente	à	solidão	e	mesmo	à	incompreensão.</p><p>[...]</p><p>Uma	vida	e	uma	experiência	 literária	que	não	se</p><p>escondeu	das	contradições	e	tensões	co-naturais	à</p><p>condição	humana	encontraria	nesse	silêncio	como</p><p>incenso	a	voz	definitiva,	capaz	de	o	(re)conduzir	Àquele</p><p>de	quem	sempre	falou.</p><p>O	combate	corpo-a-corpo	entre	o	homem	e	Deus	e</p><p>entre	o	homem	e	ele	próprio	cede	lugar	à	escuta	da</p><p>Voz	Inicial,	lá	onde	todas	as	alteridades	se	diluirão	na</p><p>Identidade	plena	entre	o	poeta,	a	palavra	e	o	Criador	de</p><p>toda	a	expressão.	(CASTRO,	2010,	p.	5.14-515).</p><p>70 UNIUBE</p><p>Como	argumenta	o	estudioso,	o	desejo	de	uma	experiência	que	transcendesse</p><p>a	mera	existência	corporal	e	terrena	trouxe	para	a	poesia	de	José	Régio</p><p>um	dos	temas	mais	importantes	da	lírica	ocidental,	o	diálogo	com	os</p><p>aspectos	insondáveis	da	divindade,	o	que	lhe	emprestou	um	caráter</p><p>metafísico	visto	raras	vezes	na	poesia	portuguesa.</p><p>Tendências do pós-guerra1.9</p><p>As	décadas	que	se	seguiram	à	Segunda	Grande	Guerra	viram	florescer</p><p>uma	série	de	grandes	poetas	em	Portugal,	cujas	obras	continuam	sendo</p><p>lidas,	apreciadas	e	estudadas	neste	início	de	século	XXI.	Devem	ser</p><p>mencionados	nesse	contexto	os	nomes	de	Vitorino	Nemésio,	José</p><p>Gomes	Ferreira,	Sophia	de	Mello	Breyner	Andresen,	Jorge	de	Sena,</p><p>Eugénio	de	Andrade,	Herberto	Helder	e	Maria	Teresa	Horta,	entre	outros.</p><p>Vitorino	Nemésio	Mendes	Pinheiro	da	Silva	(1901-1978)	foi	professor,</p><p>jornalista	e	apresentador	de	crônicas	na	televisão.	Como	professor</p><p>universitário,	atuou	em	seu	país	e	também	na	França,	Bélgica	e	no</p><p>Brasil.	Seus	múltiplos	interesses	literários	e	culturais	incluíam	a	poesia,	o</p><p>romance,	o	conto,	a	novela,	a	etnografia	e	a	História.	No	gênero	narrativo,</p><p>sua	obra	mais	conhecida	é	o	romance	Mau tempo no canal	(1944),	um</p><p>dos	mais	importantes	da	língua	portuguesa	no	século	XX.</p><p>A	poesia	de	Vitorino	Nemésio	tem	muitas	facetas.	Inicialmente	marcada</p><p>pela	presença	da	memória,	principalmente	interessada	em	sua	infância	e</p><p>seus	contatos	com	a	cultura	popular	na	Ilha	Terceira,	do	Arquipélago	dos</p><p>Açores,	onde	nasceu,	ela	se	ampliou	para	incorporar	temas	metafísicos	e</p><p>religiosos,	bem	como	outros	ligados	às	culturas	dos	países	onde	o	poeta</p><p>viveu,	com	o	melhor	exemplo	disso	sendo	seu	livro	Poemas brasileiros,</p><p>de	1972.</p><p>UNIUBE 71</p><p>Nos	últimos	anos	de	sua	produção,	Nemésio	também	se	interessou	pelo</p><p>diálogo	da	poesia	com	a	ciência,	passando	a	escrever	poemas	inspirados</p><p>em	recentes	descobertas	nas	áreas	da	Microbiologia,	da	Química,	da</p><p>Física	e	da	Computação.	Esses	textos	foram	recolhidos	no	livro Limite</p><p>de idade,	também	de	1972,	principalmente	em	sua	seção	intitulada	“Cão</p><p>atómico,	etc.	e	biopoemas”.</p><p>Reconhecido	como	um	dos	mais	significativos	escritores	portugueses	do</p><p>século	XX,	Vitorino	Nemésio	foi	homenageado,	em	1965,	com	o	Prêmio</p><p>Nacional	de	Literatura	e,	em	1974,	recebeu	o	Prémio	Internacional</p><p>Montaigne,	da	Fundação	Freiherr	von	Stein	/	Friedrich	von	Schiller,	de</p><p>Hamburgo.</p><p>José	Gomes	Ferreira	(1900-1985)	formou-se	em	Direito	pela	Universidade</p><p>de	Lisboa,	mas,	profissionalmente,	destacou-se	nas	atividades	de</p><p>diplomata	e	jornalista.	Escreveu	contos,	crônicas	e	romances,	mas	seu</p><p>forte	foi	mesmo	a	poesia,	gênero</p><p>no	qual	publicou	uma	dezena	de	títulos.</p><p>O	poeta	nunca	se	filiou	a	uma	escola	literária	definida,	mas	o	engajamento</p><p>de	seus	versos,	que	sempre	defenderam	a	liberdade	e	a	justiça	social,</p><p>mesmo	nas	décadas	que	viram	a	ascensão	do	fascismo	e	outras	formas</p><p>de	totalitarismo,		aproximaram-no		das	propostas	do	Neorrealismo,	se</p><p>bem	que	ele	jamais	tenha	militado	no	Partido	Comunista,	como	era</p><p>comum	neste	grupo.</p><p>Em	termos	de	linguagem,	a	lírica	de	José	Gomes	Ferreira	incorpora</p><p>as	conquistas	do	Modernismo,	em	termos	de	rompimento	de	regras	de</p><p>métrica,	ritmo	e	rimas,	de	forma	a	produzir	poemas	de	formas	variadas,</p><p>que	 refletissem	sua	 interpretação	dos	 tempos	 febris	que	vivia,	em</p><p>termos	políticos	e	sociais,	numa	dicção	adequada.	Nela,	destaca-se</p><p>a	liberdade	absoluta	dada	à	imaginação,	que	originava	metáforas	ao</p><p>gosto	surrealista,	como	a	do	famoso	verso	“Entrei	no	Café	com	um	rio</p><p>na	algibeira”,	ou	seja,	no	bolso.</p><p>72 UNIUBE</p><p>Quanto	aos	temas,	o	autor	não	se	dedicava	ao	lirismo	amoroso,	dando</p><p>preferência	a	questões	ligadas	à	condição	humana	num	sentido	mais</p><p>geral,	como	a	recusa	a	qualquer	forma	de	tirania,	a	denúncia	dos	ridículos</p><p>da	burguesia	e	a	observação	atenta	da	realidade	cotidiana.	Sua	obra	está</p><p>reunida	nos	volumes	Poesia I	(1948),	Poesia II (1950),	Poesia III	(1962),</p><p>Poesia IV	(1970),	Poesia V	(1973), Poeta Militante I, II e III	(1978).</p><p>Sophia	de	Mello	Breyner	Andresen	(1919-2004)	construiu	uma	das	líricas</p><p>mais	importantes	do	século	XX	em	Portugal.	Leitora	ávida	de	toda	a</p><p>tradição	lírica	ocidental,	soube	dialogar	intertextualmente	tanto	com	Luís</p><p>de	Camões	quanto	com	Fernando	Pessoa,	ao	mesmo	tempo	em	que</p><p>falava	em	seus	poemas	tanto	do	amor	quanto	das	questões	políticas	e</p><p>sociais.	Formalmente,	praticou	tanto	o	rigor	métrico,	rímico	e	rítmico	do</p><p>soneto	como	os	versos	livres	e	brancos.</p><p>A	grande	marca	expressiva	da	poesia	de	Sophia	é	o	entrelaçamento	da</p><p>sensibilidade	como	a	imaginação.	A	partir	desse	núcleo,	são	elaboradas</p><p>imagens	muito	originais	para	tratar	de	temas	como	a	memória,	o	amor,</p><p>a	liberdade	e	a	relação	do	ser	humano	com	a	natureza,	que,	muitas</p><p>vezes,	é	vista	como	reflexo	de	seu	interior.	Dessa	mesma	natureza,</p><p>representada	principalmente	pelo	mar,	vem	a	noção	de	que	o	sagrado</p><p>habita	o	próprio	mundo,	no	que	se	incluem	as	pequenas	coisas	que</p><p>definem	o	Homem.</p><p>Não	se	pode	esquecer	também	da	importância	da	cultura	clássica	para</p><p>a	lírica	da	autora.	Muitos	são	os	poemas	em	que	ela	se	refere	à	história,</p><p>à	mitologia,	às	artes	e	à	paisagem	gregas,	como	que	num	retorno	às</p><p>origens da cultura ocidental.</p><p>Portugal	também	é	um	de	seus	grandes	temas;	neste	particular,		destaca-se</p><p>o	livro	Navegações,	de	1983,	em	que,	seguindo	a	sua	maneira	o	exemplo</p><p>de	Camões,	ela	retoma	a	época	da	expansão	marítima,	evocando</p><p>tanto	o	encontro	de	povos	acontecido	naqueles	tempos	quanto	o	seu</p><p>UNIUBE 73</p><p>próprio,	já	que	o	livro	lhe	foi	inspirado	durante	um	voo	sobre	a	costa</p><p>litorânea	do	Vietnã,	numa	época	em	que	ela	estava	viajando	para	dar</p><p>uma	conferência	em	Macau,	cidade	da	Índia	que	estava	ainda	sob	a</p><p>administração	portuguesa.</p><p>Entre	seus	muitos	livros,	podem	ser	citados	também	Poesia	(1944),</p><p>Dia do mar	(1947),	Coral	(1950),	No tempo dividido	(1954),	O Cristo</p><p>cigano (1961),	Dual	(1972),	Ilhas	(1989)	e	Musa	(1994).</p><p>Você	pode	ver	um	documentário	sobre	Navegações,	que	inclui	muitas</p><p>informações	sobre	a	poetisa	e	declamações	de	seus	versos,	neste	endereço:</p><p>http://ensina.rtp.pt/artigo/navegacoes-de-sophia-de-mello-breyner-andresen/</p><p>AMPLIANDO	O	CONHECIMENTO</p><p>Jorge	de	Sena,	de	seu	nome	completo	Jorge	Cândido	Alves	Rodrigues</p><p>Telles	Grilo	Raposo	de	Abreu	de	Sena	(1919-1978),	profissionalmente</p><p>um	engenheiro,	 foi	um	dos	mais	prolíficos	e	 influentes	 intelectuais</p><p>portugueses	do	século	XX.	Escreveu	poesia,	 ficção,	 teatro,	 crítica</p><p>literária,	e	ensaios;	além	disso,	manteve	correspondência	com	alguns</p><p>dos	 escritores	 e	 estudiosos	 mais	 importantes	 de	 seu	 país,	 como</p><p>Sophia	 de	Mello	Breyner	Andresen,	Vergílio	 Ferreira,	 José	Régio,</p><p>Eduardo	Lourenço	e	João	Gaspar	Simões,	convertendo-se	num	dos</p><p>principais	cultivadores	da	epistolografia	na	modernidade.	Além	disso,	foi</p><p>tradutor	e	professor	universitário,	com	larga	experiência	em	instituições</p><p>brasileiras	e	estadunidenses.	Ao	Brasil,	veio	como	exilado	do	regime</p><p>ditatorial	português;	aos	Estados	Unidos,	foi	para	fugir	da	ditadura	militar</p><p>implantada	em	1964.</p><p>Em	sua	poesia,	cabe	tanto	a	reflexão	sobre	o	mundo	real	quanto	a</p><p>idealização	de	um	plano	mítico,	a	expansão	da	subjetividade	como	o</p><p>intelectualismo	mais	 rigoroso.	Seus	múltiplos	 interesses	 temáticos</p><p>74 UNIUBE</p><p>correspondem	ao	exercício	de	múltiplas	formas	de	expressão;	esse</p><p>caráter	universalista	pode	ser	simbolizado	pela	importância	que	assume</p><p>em	sua	linguagem	poética	a	atração	pelos	aspectos	contrastivos	e</p><p>contraditórios	da	vida,	que	o	sujeito	poético	tenta	integrar	em	si,	em</p><p>busca	de	uma	solução	para	os	dramas	da	condição	humana.</p><p>Alguns	de	seus	livros	mais	importantes	são:	Pedra Filosofal	(1950);</p><p>As Evidências	(1955);	Poesia-I	(Perseguição, Coroa da Terra, Pedra</p><p>Filosofal, As Evidências	e	o	inédito	Post-Scriptum)	(1961);	Metamorfoses,</p><p>seguidas de Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena	(1963);	Arte de</p><p>Música	(1968);	e	Peregrinatio ad Loca Infecta	(1969).</p><p>Eugénio	de	Andrade	foi	o	nome	literário	escolhido	por	José	Fontinhas</p><p>(1923-2005).	Sua	obra	poética	foi	construída	ao	longo	das	três	décadas</p><p>que	trabalhou	como	servidor	do	Ministério	da	Saúde.	Pessoa	de	espírito</p><p>recluso,	avesso	ao	convívio	em	círculos	literários	ou	políticos,	o	poeta</p><p>se	expressou	por	meio	de	seus	versos,	que	o	tornaram	um	dos	mais</p><p>respeitados	literatos	de	seu	país.	São	exemplos	disso,	os	muitos	prêmios</p><p>que	recebeu,	entre	eles	o	Prémio	da	Associação	Internacional	de	Críticos</p><p>Literários	(1986),	o	Prémio	D.	Dinis	da	Fundação	Casa	de	Mateus	(1988),</p><p>o	Grande	Prémio	de	Poesia	da	Associação	Portuguesa	de	Escritores</p><p>(1989)	e	o	Prémio	Camões	(2001),	que	é	a	mais	relevante	premiação	da</p><p>literatura	de	língua	portuguesa.</p><p>A	lírica	de	Eugénio	de	Andrade	é	intimista,	concisa,	musical.	Entre	os</p><p>seus	temas	de	eleição	se	destaca	o	amor,	a	natureza,	a	passagem</p><p>do	tempo,	a	memória	da	infância.	Sua	linguagem	é	feita	da	mescla	de</p><p>imaginação	e	sensibilidade,	capaz	de	transfigurar	os	próprios	elementos</p><p>da	natureza	em	símbolos	dos	mais	significativos	aspectos	da	condição</p><p>humana,	como	a	necessidade	de	companhia,	os	raros	momentos	de</p><p>epifania	e	a	morte.</p><p>UNIUBE 75</p><p>Preocupado	com	os	silêncios,	as	ausências,	os	afetos	e	as	mudanças,	o</p><p>lirismo	de	Eugénio	é	exemplo,	em	pleno	Modernismo,	da	poesia	pura	que</p><p>outros	movimentos	literários,	como	o	Simbolismo,	buscaram	alcançar,	no</p><p>sentido	de	uma	expressão	poética	concentrada	nos	aspectos	mais	sutis</p><p>da	vida	e	da	linguagem,	despidas	ambas	das	mesquinharias	do	cotidiano.</p><p>Dessa	forma,	seus	poemas	geralmente	são	curtos,	ricos	em	metáforas</p><p>que	instauram	na	consciência	do	leitor	uma	outra	realidade	que	não</p><p>a	física,	a	social,	a	política:	a	realidade	da	transcendência	possível	no</p><p>mundo	das	relações	humanas	essenciais,	como	o	amor,	a	amizade	e	a</p><p>contemplação	das	belezas	e	verdades	oferecidas	pelo	mundo	natural.</p><p>Entre	1942	e	2001,	o	poeta	publicou	um	total	de	26	livros	de	poemas;	a</p><p>maior	parte	deles	foi	reunida	em	três	volumes,	que	também	recolheram</p><p>sua	 obra	 em	 prosa:	 Poesia e prosa (1940-1979),	 dois	 volumes</p><p>publicados	em	1980;	Poesia e prosa	(1940-1980),	de	1981;	Poesia e</p><p>prosa (1940-1986),	três	volumes	lançados	em	1987.</p><p>Herberto	Helder	de	Oliveira	(1930-2015)	criou	uma	das	obras	poéticas</p><p>mais	originais	da	língua	portuguesa	no	contexto	posterior	a	Fernando</p><p>Pessoa.	O	autor	teve	formação	em	Letras,	mas	atuou	profissionalmente</p><p>como	jornalista,	bibliotecário,	tradutor	e	radialista.	Curiosamente,	sempre</p><p>demonstrou	uma	personalidade	reclusa,	avessa	à		convivência	com</p><p>grupos	literários;	não	gostava	de	dar	entrevistas	nem	de	ser	fotografado.</p><p>Tornou-se	famoso	o	episódio	em	que,	tendo	sido	agraciado,	em	1994,</p><p>com	o	Prêmio	Pessoa</p><p>– Eça de Queirós e os novos rumos da literatura</p><p>portuguesa; 4 – A prosa portuguesa modernista e contemporânea.</p><p>No	primeiro	capítulo,	como	o	título	já	está	dizendo,	você	terá	uma	visão</p><p>panorâmica	do	desenvolvimento	da	poesia	portuguesa.	O	fato	de	se	iniciar</p><p>o	estudo	pela	poesia	entende-se		porque	trata-se	do	gênero	que	melhor</p><p>representa	o	caráter	profundo	do	povo	português,	acentuadamente</p><p>subjetivo.	A	par	dessa	visão	ampla,	você	entrará	em	contato	também,</p><p>de	forma	mais	detida,	com	alguns	nomes	representativos	da	poesia</p><p>portuguesa,	como	Camões,	nas	duas	vertentes	épica	e	lírica,	Bocage,</p><p>Cesário	Verde,	Mário	de	Sá-Carneiro,	José	Régio,	para	citar	apenas	os</p><p>mais	importantes.		Completa	o	capítulo	um	apanhado	geral	sobre	alguns</p><p>poetas	contemporâneos.</p><p>Apresentação</p><p>VIII UNIUBE</p><p>No	capítulo	2,	ainda	sobre	a	poesia	portuguesa,	dedica-se	uma	atenção</p><p>especial	à	poesia	de	Fernando	Pessoa.	Aqui,	você	será	introduzido	no</p><p>vasto	e	complexo	universo	poético	dos	heterônimos,	tendo	a	oportunidade</p><p>de	identificar	os	recursos	de	linguagem	utilizados	por	cada	um	deles,	bem</p><p>como	entrará	em	contato	com	a	grande	variedade	de	temas	abordados</p><p>por	eles.	O	estudo	será	conduzido	de	modo	a	considerar	também	o</p><p>contexto	social	e	cultural	em	que	o	poeta	viveu	e	produziu	sua	poesia.</p><p>No	terceiro	capítulo,	inicia-se	o	estudo	da	prosa	portuguesa,	dando	um</p><p>especial	destaque	a	Eça	de	Queirós.	Nele,	você	poderá	acompanhar	como</p><p>se	deu	a	passagem	do	Romantismo	ao	Realismo	na	literatura	portuguesa</p><p>e	fará	uma	breve	incursão	na	biografia	do	escritor.	Em	seguida,	entrará	em</p><p>contato	com	algumas	das	principais	características	da	criação	literária	de</p><p>Eça	de	Queirós	por	meio		da	análise	de	um	de	seus	romances,	A ilustre</p><p>casa de Ramires.	Uma	atenção	especial	será	dada	ao	conto,	outro	gênero</p><p>cultivado	pelo	autor.	O	conto	escolhido	para		leitura	e	análise	constitui	uma</p><p>de	suas	obras	primas:	“Singularidades	de	uma	rapariga	loura”.</p><p>Como	ocorreu	com	a	poesia,	era	necessário	incluir	uma	visão	panorâmica</p><p>da	prosa	portuguesa.	Por	isso	o	capítulo	4	foi	dedicado	à	prosa	portuguesa</p><p>modernista	e	contemporânea.	E	aqui	também	procurou-se	fazer	um	estudo</p><p>mais	detido	de	alguns	autores	que	se	destacaram	na	produção	literária	da</p><p>primeira	metade	do	século	XX,	como	José	Régio,	Alves	Redol,	Fernando</p><p>Namora,	Carlos	de	Oliveira,	Agustina	Bessa-Luís	e	Vergílio	Ferreira	e,</p><p>representando	o	vigor	alcançado	pela	prosa	portuguesa	mais	recente,	o</p><p>escritor	José	Saramago.</p><p>Como	se	vê,	trata-se	de	um	livro	concebido	de	forma	sintética,	mas	sem	que</p><p>isso	tenha	resultado	numa	visão	empobrecedora	da	literatura	portuguesa.</p><p>A	história	literária	não	é	feita	só	de	grandes	autores	e	grandes	obras	e,	por</p><p>isso,	uma	visão	seletiva	de	sua	trajetória	não	significa	necessariamente	uma</p><p>visão	mais	pobre.	Pode	significar	que	decidimos	nos	concentrar	mais	no</p><p>estudo	de	algumas	obras	e	autores	que	demandam	um	estudo	mais	detido</p><p>e	aprofundado.</p><p>Bons estudos!</p><p>Carlos Francisco de Morais</p><p>Introdução</p><p>Panorama da poesia</p><p>portuguesa</p><p>Capítulo</p><p>1</p><p>Neste	capítulo,	você	entrará	em	contato	com	as	principais	linhas</p><p>de	força	que	definiram	as	características	e	importância	da	poesia</p><p>portuguesa,	desde	a	época	de	Camões	até	os	nossos	dias.</p><p>A	 literatura	portuguesa,	 tradicionalmente,	 é	mais	 lírica	do	que</p><p>prosaica.	Num	panorama	iniciado	em	meados	do	século	XII,	já	são</p><p>mais	de	oitocentos	anos	de	cultivo	da	poesia	no	“jardim	da	Europa	à</p><p>beira-mar	plantado”,	como	Portugal	foi	chamado	num	verso	de	Tomás</p><p>Ribeiro,	ali	pela	metade	do	século	XIX.	Em	muitos	momentos	dessa</p><p>história,	a	poesia	foi	a	via	de	expressão	predominante,	em	termos</p><p>de	prestígio,	dos	literatos	lusitanos,	como	ocorreu	no	Trovadorismo,</p><p>Renascimento,	Barroco,	Arcadismo,	Simbolismo	e	na	Geração</p><p>de	Orpheu,	como	é	conhecida	a	primeira	fase	do	Modernismo</p><p>português.	Outros	movimentos	mostraram	uma	diversidade	maior	de</p><p>gêneros,	mas	não	deixaram	de	seguir	a	tradição	de	produzir	poesia</p><p>de	grande	qualidade,	como	o	Realismo,	como	Antero	de	Quental	e</p><p>Cesário	Verde.</p><p>Para	apresentar	uma	visão	de	conjunto	dos	principais	cultivadores</p><p>do	lirismo	na	literatura	portuguesa,	então,	este	capítulo	selecionou</p><p>os	nomes	mais	significativos	desse	percurso	histórico.		Começamos</p><p>por	Luís	de	Camões,	que	definiu,	nos	tempos	do	Renascimento,	um</p><p>2 UNIUBE</p><p>modelo	de	poeta	com	interesses	universais	que	permaneceria	por</p><p>muito	tempo	com	a	referência	imediata	dos	poetas	de	outras	épocas.</p><p>O	roteiro	se	encerra	com	a	atenção	dada	a	poetas	ainda	vivos,		que</p><p>representam	as	múltiplas	vertentes	que	se	abriram	na	poesia	depois</p><p>da	experiência	transformadora	que	foi	a	obra	de	Fernando	Pessoa.</p><p>Após	o	estudo	deste	capítulo,	esperamos	que	você	seja	capaz	de:</p><p>• mostrar	a	importância	da	poesia	portuguesa	no	contexto	da</p><p>tradição	lírica	ocidental,	desde	as	origens	da	Idade	Moderna</p><p>até	a	Contemporaneidade;</p><p>• abordar	criticamente	as	relações	estabelecidas	pelos	poetas</p><p>portugueses	com	as	condições	de	produção	artística	de	seu</p><p>tempo;</p><p>• explicar	as	linhas	de	força,	em	termos	temáticos	e	formais,</p><p>presentes	 nas	 obras	 dos	 principais	 poetas	 portugueses,</p><p>com	vistas	a	fundamentar	a	análise	de	sua	contribuição	para</p><p>o	estabelecimento	da	 tradição	do	gênero	 lírico	em	 língua</p><p>portuguesa.</p><p>1.1	A	poesia	de	Luís	de	Camões</p><p>1.1.1	Camões	épico:	o	diálogo	com	a	tradição	e	a	afirmação</p><p>da	modernidade</p><p>1.1.2	Camões	lírico:	uma	enciclopédia	da	poesia	ocidental</p><p>1.2	Panorama	da	poesia	barroca</p><p>1.3	Bocage:	um	poeta	entre	dois	tempos</p><p>1.4	Panorama	da	poesia	romântica</p><p>1.5	Cesário	Verde	e	a	poesia	do	olhar	moderno</p><p>1.6	Panorama	da	poesia	simbolista</p><p>Objetivos</p><p>Esquema</p><p>UNIUBE 3</p><p>1.7	Mário	de	Sá-Carneiro:	Orpheu	entre	o	sonho	e	a	revolução</p><p>modernista</p><p>1.8	José	Régio	e	a	poesia	da	Geração	da	presença</p><p>1.9	Tendências	do	pós-guerra</p><p>1.10</p><p>Sustentava contra ele Vênus bela,</p><p>Afeiçoada à gente Lusitana,</p><p>Por quantas qualidades via nela</p><p>Da antiga tão amada sua Romana;</p><p>Nos fortes corações, na grande estrela,</p><p>Que mostraram na terra Tingitana,</p><p>E na língua, na qual quando imagina,</p><p>Com pouca corrupção crê que é a Latina.</p><p>Luís de Camões</p><p>A poesia de Luís de Camões1.1</p><p>Luís	Vaz	de	Camões	faleceu	em	10	de	junho	de	1580,	em	Lisboa.	Tudo</p><p>o	mais	é	incerteza	em	sua	vida,	pois	não	se	registrou		fidedignamente</p><p>seu	ano	de	nascimento,	que	pode	ter	ocorrido	em	1517	ou	1524	ou	1525,</p><p>dependendo	da	fonte	consultada,	ou	sua	naturalidade,	pois	Coimbra,</p><p>Santarém	e	Alenquer	disputam	com	Lisboa	essa	honra.	De	sua	infância,</p><p>nada	ficou	dito.</p><p>De	sua	juventude,	pouco	mais	se	sabe	do	que	o	folclore	repete:	os	vários</p><p>amores,	geralmente	frustrados,	o	temperamento	vivo,	a	indisciplina</p><p>nos	estudos,	a	curiosidade	inata.	Se	veio	da	frequência	a	cursos	na</p><p>Universidade	de	Coimbra	o	seu	abundante	conhecimento	da	cultura</p><p>clássica,	tanto	grega	quanto	latina,	bem	como	de	história,	geografia	e</p><p>cosmografia,	entre	outros	ramos	do	saber,	nenhum	documento	existe</p><p>para	provar	que	o	poeta	realmente	tenha	sido	aluno	da	famosa	instituição.</p><p>Homem	 feito,	 não	 se	 sabe	 de	 que	 ocupação	 tirava	 seu	 sustento,</p><p>levantando-se	a	hipótese	de	que	era	preceptor	de	filhos	da	nobreza.</p><p>As	lendas	que	se	repetem	desde	há	muito	contam	que	levava	uma	vida</p><p>4 UNIUBE</p><p>boêmia,	amigo	que	era	do	copo	e	das	belas	mulheres.	É	certo	que	esteve</p><p>como	soldado	em	Ceuta,	cidade	do	Marrocos	dominada	em	sua	época</p><p>por	Portugal,	onde	perdeu	o	olho	direito	numa	batalha	naval	no	estreito</p><p>de	Gibraltar.	Pode-se	também	afirmar	com	segurança	que,	a	partir	de</p><p>1553,	viveu	cerca	de	dez	anos	na	Índia,	como	soldado	e	funcionário	da</p><p>administração	portuguesa	nas	cidades	de	Macau	e	Goa.	Lá,	por	questões</p><p>de	dívidas	ou	de	desvios	de	condutas	profissionais,	esteve	preso	por</p><p>alguns	períodos.	Na	volta	a	Portugal,	por	falta	de	condições	de	pagar	a</p><p>viagem	completa,	ficou	por	mais	de	dois	anos	vivendo	em	Moçambique.</p><p>Foi	nesses	tempos	de	Índia	e	África	que	o	poeta	teria	composto	sua</p><p>obra-prima	épica,	Os Lusíadas.</p><p>O	livro	foi	publicado	em	1572,	mediante	a	licença	concedida	pelo	rei	D.</p><p>Sebastião,	a	quem	foi	dedicado.</p><p>(que	distingue	a	cada	ano	os	mais	relevantes</p><p>intelectuais	portugueses),	recusou-se	a	recebê-lo.</p><p>Ao	longo	das	várias	décadas	em	que	publicou	sua	poesia,	Herberto</p><p>Helder	 revelou	uma	concepção	dessa	arte	como	algo	sempre	em</p><p>evolução,	mudança	e	adaptação,	pois	ele	mesmo	não	se	impedia	de</p><p>reescrever	os	próprios	textos,	ainda	que	já	fossem	conhecidos	do	público</p><p>leitor.	Isso	conduz	o	leitor	a	alguns	dos	temas	mais	fortes	dentro	de	sua</p><p>obra,	como	as	metamorfoses,	a	passagem	do	tempo	e	a	metapoesia,</p><p>76 UNIUBE</p><p>que	produziu	algumas	das	mais	belas	reflexões	sobre	o	fazer	poético</p><p>da	contemporaneidade	portuguesa.	A	esses	temas	devem	ser	somados</p><p>muitos	outros,	pois	a	lógica	da	lírica	de	Helder	sempre	foi	a	da	amplitude,</p><p>como	demonstram	certos	poemas	de	longa	extensão,	mais	parecendo</p><p>sinfonias	de	palavras.	Sobre	isso,	assim	escreveu	Massaud	Moisés:</p><p>Poeta,	medularmente	 poeta	 [...],	 Herberto	 Helder</p><p>impôs-se	desde	cedo,	graças	ao	insólito	da	dicção</p><p>poética,	 como	um	dos	mais	 altos	 valores	 de	 sua</p><p>geração.	 Seus	 versos,	 esculpidos	 “como	 quem</p><p>deixa	um	sinal	maravilhoso”,	identificam-se	por	uma</p><p>originalidade	tensa,	veiculadores	dum	lirismo	elíptico,</p><p>sibilino,	que,	saturando	o	“eu”	poético,	se	expande	às</p><p>coisas	e	aos	seres,	como	se	a	egolatria	de	raiz	cedesse</p><p>a	um	pan-erotismo,	sinônimo	de	animação	íntima	da</p><p>Natureza	pela	projeção	da	subjetividade	do	poeta.</p><p>(MOISÉS,	2008,	p.	470).</p><p>Esse	diálogo	entre	o	sujeito	poético	e	todo	o	Universo	que	ele	incorpora</p><p>à		sua	linguagem	lírica	é	exemplificado	pela	obra-prima	de	Helder,	o</p><p>longuíssimo	poema	“O	amor	em	visita”,	no	qual,	a	partir	do	desejo	de</p><p>encontrar	a	Mulher	Ideal,	constrói	pela	palavra	todo	um	novo	mundo	em</p><p>que	os	princípios	masculino	e	feminino	podem	se	harmonizar	como	um</p><p>novo	Adão	e	uma	nova	Eva	que	habitam	um	novo	Jardim	do	Éden.</p><p>Para	conhecer	“O	amor	em	visita”	na	íntegra,	você	pode	ver	a	declamação</p><p>dele	feita	pelo	poeta	brasileiro	Basílio	Miranda,	usando	este	link:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=ZGl2NVyemYE</p><p>AMPLIANDO	O	CONHECIMENTO</p><p>Maria	Teresa	Horta	é	o	nome	literário	de	Maria	Teresa	de	Mascarenhas</p><p>Horta	Barros	(1937),	poetisa,	romancista	e	jornalista.	Sua	carreira	nas</p><p>letras	começou	nos	anos	1960,	quando	se	mostrou	uma	das	vozes</p><p>femininas	mais	contundentes	na	defesa	dos	direitos	da	mulher	na	então</p><p>repressiva	sociedade	portuguesa,	que	ainda	vivia	sob	a	ditadura	iniciada</p><p>por	António	Salazar	ainda	na	década	de	1920.</p><p>UNIUBE 77</p><p>Nesse	contexto,	esteve	vinculada	ao	Movimento	Feminista	de	Portugal,</p><p>ao	lado	de	outras	escritoras	importantes,	como	Maria	Isabel	Barreno	e</p><p>Maria	Velho	da	Costa.	Juntas,	elas	ficaram	conhecidas	como	as	“Três</p><p>Marias”,	ao	lançar	o	livro	Novas Cartas Portuguesas	(1972),	que	causou</p><p>sensação	e	mesmo	escândalo,	pois	a	obra	denunciava	temas	tabu	no</p><p>país	naquele	momento,	como	as	várias	formas	de	repressão	à	mulher,</p><p>o	patriarcalismo	ainda	dominante	na	cultura	e	as	injustiças	da	guerra</p><p>colonial,	que	o	governo	mantinha	para	impedir	a	independência	de</p><p>Angola,	Moçambique	e	outras	possessões	na	África.</p><p>A	poesia	de	Maria	Teresa	Horta	compreende	vinte	e	oito	livros,	da	estreia</p><p>com	Espelho inicial,	de	1960,	ao	mais	recente,	Poesis,	de	2017.	Neles,</p><p>são	tratadas	todas	as	formas	e	todos	os	grandes	temas	da	tradição	lírica</p><p>portuguesa	e	universal,	mas	é	preciso	dar	o	destaque	ao	erotismo,	do</p><p>qual	a	poetisa	sempre	tratou	com	a	mais	ampla	liberdade.	Sua	produção</p><p>nessa	área	é	tão	significativa,	em	termos	qualitativos	e	quantitativos,</p><p>que	ela	se	converteu,	em	2012,	na	primeira	mulher	ocidental	a	lançar</p><p>uma	antologia	de	poemas	eróticos	de	sua	autoria,	pois	esse	é	o	tema</p><p>exclusivo	dos	poemas	reunidos	em	As palavras do corpo.</p><p>Na	época,		Maria	Teresa	Horta	falou	em	entrevista	sobre	a	importância</p><p>da	sexualidade	em	sua	vida	e	obra	e	sobre	a	novidade	que	seu	livro</p><p>representava:</p><p>O erotismo é indissociável da sua poesia?</p><p>Sim,	 esse	 peso	 nota-se	 na	 dimensão	 do	 livro.	 A</p><p>sexualidade	é	a	nossa	vida.	Ignorar	isso	é	um	preconceito,</p><p>é	tapar	algo	que	faz	parte	do	ser	humano,	do	ser	vivo.	Se</p><p>formos	à	poesia	mais	ancestral	esse	lado	está	lá.	Mas</p><p>falamos	de	uma	poesia	escrita	por	homens.</p><p>Esta é a primeira antologia de poesia erótica</p><p>assinada por uma mulher?</p><p>Sim,	no	mundo	ocidental,	pelo	menos,	o	outro	não</p><p>conheço	tão	bem.	Quando	o	David	Mourão	Ferreira,	de</p><p>quem	era	muita	amiga,	lançou	o	livro	Música	de	Cama,</p><p>disse-lhe:	“Lindo!”	E	ele	respondeu:	“Não,	lindo	será	um</p><p>dia	a	Teresa	fazer	uma	antologia	destas.”	Isso	ficou	quase</p><p>como	uma	promessa	a	mim	própria	e	ao	meu	amigo.	Era</p><p>um	dos	meus	três	projetos	de	vida.	(HORTA,	2012).</p><p>78 UNIUBE</p><p>A	maneira	livre	como	a	autora	aborda	a	questão	da	sexualidade	nas</p><p>palavras	acima	é	bem	representativa	da	forma	como	toda	sua	carreira</p><p>literária	tem	sido	construída.	No	exercício	de	suas	liberdades	formais</p><p>e	temáticas,	aliado	ao	seu	exercício	de	conquista	da	autonomia	como</p><p>cidadã	durante	as	décadas	mais	decisivas	da	história	de	seu	país	no</p><p>século	XX,	a	literatura	de	Maria	Teresa	Horta	exemplificou	–	e	ainda</p><p>exemplifica	–	de	modo	exemplar	as	transformações	da	sociedade,	da</p><p>cultura	e	da	arte	portuguesas	na	contemporaneidade.</p><p>Conclusão1.10</p><p>O	percurso	da	poesia	portuguesa,	tal	como	apresentado	nas	seções</p><p>acima,	revela	as	linhas	de	força	que	sustentaram	o	cultivo	do	gênero</p><p>lírico	em	Portugal	ao	longo	dos	séculos.	Entre	elas	estão,	primeiro,	o</p><p>diálogo	com	a	tradição	clássica	greco-latina,	exemplificada	por	Luís	de</p><p>Camões	e	Manuel	du	Bocage;	em	seguida,	as	relações	mantidas	com</p><p>a	cultura	francesa,	como	mostram	as	influências	de	Charles	Baudelaire</p><p>sobre	Cesário	Verde	e	de	Paul	Verlaine	e	Stéphanne	Mallarmé	sobre	os</p><p>simbolistas;	por	fim,	o	ímpeto	renovador,	traduzido	nas	experimentações</p><p>com	novas	formas	e	temas	praticados	por	Mário	de	Sá-Carneiro,	os</p><p>presencistas	ou	a	poetisa	contemporânea	Maria	Teresa	Horta.</p><p>Resumo</p><p>Neste	capítulo,	você	pôde	ver	como	a	poesia	portuguesa	evoluiu	ao</p><p>longo	dos	 tempos,	passando	por	diversas	 transformações	que	 lhe</p><p>permitiram	absorver	as	mudanças	estéticas	e	sociais	que	alimentaram</p><p>a	manifestação	lírica	de	diversos	movimentos	e	um	grande	número	de</p><p>poetas	de	alto	gabarito.</p><p>Inicialmente,	foram	focalizados	escritores	associados	a	escolas	literárias</p><p>que	desenvolviam	um	ideário	coletivo	definido,	como	o	Renascimento,</p><p>Barroco,	Arcadismo	etc.	Posteriormente,	como	mostra	do	impacto	da</p><p>revolução	que	o	Modernismo	introduziu	em	termos	de	concepção	da</p><p>UNIUBE 79</p><p>arte	como	constante	mudança,	passaram	a	ser	objeto	de	atenção	os</p><p>poetas	que,	no	século	XX,	construíram	estilos	totalmente	pessoais,</p><p>desvinculados	de	grupos	ou	filosofias	marcadas	rigidamente.</p><p>Em	seu	conjunto,	a	poesia	portuguesa	é	definida	por	seu	aspecto</p><p>enciclopédico,	pois	engloba	todos	os	grandes	temas	épicos	e	líricos</p><p>da	tradição,	como,	por	um	lado,	a	aventura,	o	heroísmo,	a	definição</p><p>da	nacionalidade	e,	por	outro,	o	amor,	a	constituição	da	subjetividade,</p><p>os	mistérios	da	existência.	Essa	amplitude	do	campo	semântico	se</p><p>harmonizou	com	a	variada	gama	de	formas	poéticas	empregadas,	desde</p><p>as	formas	fixas	clássicas	e	renascentistas,	como	as	odes	e	os	sonetos,</p><p>até	a		explosão	de	liberdade	iniciada	pelo	Romantismo	e	completada	pelo</p><p>Modernismo.	Nesse	sentido,	a	lírica	portuguesa	caminhou	paralelamente</p><p>às	demais	veiculadas	nas	línguas	modernas,	principalmente	a	francesa.</p><p>Leituras</p><p>Para	você	aprofundar	o	conhecimento	a	respeito	da	poesia	épica	de	Luís</p><p>de	Camões,	é	importante	a	leitura	do	livro	Estudos	sobre	os	Lusíadas,</p><p>organizado	por	José	Maria	Rodrigues	e	editado	pela	Academia	Brasileira</p><p>de	Letras.	Ele	pode	ser	baixado	neste	endereço:</p><p>http://www.academia.org.br/sites/default/files/publicacoes/arquivos/</p><p>cams-09-estudos_sobre_os_lusiadas-miolo-para_internet.pdf</p><p>Especificamente	em	relação	à	lírica	portuguesa	escrita	a	partir	do	advento</p><p>do	Modernismo,	recomenda-se	a	leitura	do	artigo	“A	poesia	portuguesa</p><p>do	século	XX”,	de	Cleonice	Berardinelli,	da	Universidade	Federal	do	Rio</p><p>de	Janeiro.	Ele	está	disponível	neste	link:</p><p>http://revistas.ufpr.br/letras/article/viewFile/19471/14770</p><p>Para	conhecer	os	desenvolvimentos	da	poesia	portuguesa	a	partir	dos</p><p>anos	1960,	principalmente	em	suas	vertentes	mais	experimentais,	a</p><p>leitura	sugerida	é	a	do	e-book	Poesia	experimental	portuguesa.	Cadernos</p><p>e	catálogos.	Vol.	1.	Enquadramento	teórico	e	contexto	crítico	da	PO.EX.</p><p>O	download	pode	ser	feito	neste	endereço:	http://www.po-ex.net/pdfs/</p><p>ebook1_poex.pdf</p><p>80 UNIUBE</p><p>Referências</p><p>BOCAGE,	Manuel	Maria	Barbosa	Du.	Soneto e outros poemas.	São	Paulo:	FTD,	1994.</p><p>Disponível	em:	<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv</p><p>000059.pdf>.	Acesso	em	03	de	set.	2017.</p><p>CAMÕES,	Luís	de.	Obra completa.	Rio	de	Janeiro:	Nova	Aguilar,	2008.</p><p>CASTRO,	José	Acácio.	José	Régio	–	Para	uma	Poética	do	Absoluto.	Theologica,</p><p>2.ª	Série,	45,	2,2010,	p.	503-515.	Disponível	em:	<http://repositorio.</p><p>ucp.pt/bitstream/10400.14/13306/1/castro.pdf>.	Acesso	em:	07	set.	2017.</p><p>DAUNT,	Ricardo.	Apresentação.	In:	VERDE,	Cesário.	Obra integral de Cesário Verde.</p><p>Organização	de	Ricardo	Daunt.	São	Paulo:	Landy,	2006,	p.	11-18.</p><p>GUIMARÃES,	Ana	Rosa.	Os	elementos	ultrarromânticos	em	Soares	de	Passos	e</p><p>em	Álvares	de	Azevedo.	Linguagens & Letramentos.	Campina	Grande:	UFCG,	v.1,</p><p>nº2,	2016.	Disponível	em:	<http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.</p><p>php/linguagensletramentos/article/view/49/pdf>.	Acesso	em:03	set.	2017.</p><p>HORTA,	Maria	Teresa.	A	poesia	erótica	de	Maria	Teresa	Horta.	Máxima,	2012.</p><p>Disponível	em:	<http://www.maxima.pt/celebridades/detalhe/amp/maria-teresa-horta</p><p>-a-colecionadora-de-palavras.html>.	Acesso	em:	18	set.	2017.</p><p>LINHARES	FILHO,	José.	O	lirismo	em	Os	lusíadas.	Revista de Letras.	Fortaleza,</p><p>n.	3/4,	jul./dez.	1980/1981,	p.	88-101.	Disponível	em:	<http://www.repositorio.ufc.</p><p>br/handle/riufc/3158?locale=es>.	Acesso	em:10	set.	2017.</p><p>MARTINS,	Cristiano.	Camões.	Temas	e	motivos	da	obra	lírica.	São	Paulo:	EDUSP;	Belo</p><p>Horizonte:	Itatiaia,	1981.</p><p>MOISÉS,	Massaud.	A literatura portuguesa.	São	Paulo:	Cultrix,	2008.</p><p>NEVES,	Márcia	Seabra.		A	revista	presença	e	a	consumação	de	um	projecto	de</p><p>cosmopolitismo	estético-literário.	Limite.	Extremadura:	Universidade	da	Extremadura,</p><p>nº	5,	2011,	p.	133-152.	Disponível	em:	<http://www.revistalimite.es/volumen</p><p>%205/09marci.pdf>.	Acesso	em:	07	set.2017.</p><p>PESSANHA,	Camilo.	Clepsidra.	São	Paulo:	Núcleo,	1989.	Disponível	em:	<http://www.</p><p>dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000065.pdf>.	Acesso	em:	02	set.2017.</p><p>UNIUBE 81</p><p>PESSOA,	Fernando.	Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação.	(Textos	estabelecidos</p><p>e	prefaciados	por	Georg	Rudolf	Lind	e	Jacinto	do	Prado	Coelho.)	Lisboa:	Ática,	1966.</p><p>RÉGIO,	José.	Poemas de Deus e do Diabo.	Lisboa:	Portugália,	1965.</p><p>SÁ-CARNEIRO,	Mário	de.	Poemas.	São	Paulo:	Companhia	das	Letras,	2004.</p><p>SALGADO	JUNIOR,	António.	O	lirismo	inicial.	In:	CAMÕES,	Luís.	Obra completa.</p><p>Rio	de	Janeiro:	Nova	Aguilar,	2008,	p.	LXXX-LXXXV.</p><p>SARAIVA,	António	J.	&	LOPES,	Óscar.	História da literatura portuguesa.	Porto:</p><p>Porto	Editora,	1985.</p><p>SILVA,	Francisco	R.	da.	A	propósito	de	Bocage. Leituras de Bocage (séculos	XVIII-XXI).</p><p>Porto:	Faculdade	de	Letras	da	Universidade	do	Porto,	2006.	Disponível	em:</p><p><https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/7056/3/</p><p>nobracompletaleituras000118970.pdf>.	Acesso	em	21	set.	2017.</p><p>VERDE,	Cesário.	Obra integral de Cesário Verde.	Organização	de	Ricardo	Daunt.</p><p>São	Paulo:	Landy,	2006.</p><p>Alexandre Bonafim Felizardo</p><p>Introdução</p><p>A poesia de</p><p>Fernando Pessoa</p><p>Capítulo</p><p>2</p><p>No	percurso	desta	unidade	didática,	iremos	nos	aventurar	na	obra</p><p>de	um	dos	maiores	poetas	de	língua	portuguesa:	Fernando	Pessoa.</p><p>Poeta	de	faces	múltiplas,	de	rostos	distorcidos,	ele	criou,	a	partir	de</p><p>sua	angústia	existencial,	do	vazio	de	seu	ser,	um	jogo	de	espelhos,</p><p>de	ficções.	Desse	processo	nasceram	os	seus	heterônimos:</p><p>Alberto	Caeiro,	Ricardo	Reis	e	Álvaro	de	Campos,	poetas	quase</p><p>existentes	em	carne	e	osso,	tamanha	a	verossimilhança	de	suas</p><p>vidas	inventadas.</p><p>O	escritor	português	também	assinou	textos	com	o	próprio	nome.</p><p>Todavia,	longe	de	ser	um	expoente	de	sua	condição	concreta	de</p><p>humano,	esse	ortônimo	também	se	tornou	invenção.</p><p>Resta	-nos	a	angústia	de	um	pergunta:	quem	é	Pessoa?	Talvez	uma</p><p>boa	resposta	seria	a	do	escritor	italiano	Pirandelo:	“Pessoa	é	um,</p><p>nenhum,	cem	mil”.</p><p>84 UNIUBE</p><p>Ao	final	deste	capítulo	esperamos	que	você	seja	capaz	de:</p><p>• identificar	os	recursos	líricos	da	linguagem	e	a	gama	de	temas</p><p>abordados	por	Pessoa;</p><p>• explicar	o	contexto	social	e	cultural	do	poeta;</p><p>• esclarecer	os	significados	profundos	dos	poemas	analisados;</p><p>• indicar	e	comentar	as	principais	características	da	obra	de</p><p>Pessoa.</p><p>2.1	Considerações	iniciais</p><p>2.2	Um	eu	que	se	fez	em	inúmeros	eus</p><p>2.3	Pessoa	ninguém?</p><p>2.4	Alberto	Caeiro:	o	guardador	de	rebanhos</p><p>2.5	Ricardo	Reis:	um	pagão	em	tempos	modernos</p><p>2.6	Álvaro	de	Campos:	o	poeta	cosmopolita	da	vida	moderna</p><p>2.7	Fernando	Pessoa	ortônimo	é	ele	mesmo?</p><p>2.8	Conclusão</p><p>Objetivos</p><p>Esquema</p><p>Considerações iniciais2.1</p><p>Vamos	começar	uma	viagem	pela	obra	de	um	grande	poeta:	Fernando</p><p>Pessoa!</p><p>Poeta	modernista,	Pessoa	foi	um	artista	que	mudou	os	rumos	de	toda	a</p><p>poesia	não	só	de	língua	portuguesa,	mas	também	de	outras	línguas.	Ele</p><p>instituiu	uma	nova	forma	de	nos	perceber	e	de	percebermos	o	mundo.</p><p>Depois	de	Pessoa	o	homem	jamais	foi	o	mesmo.</p><p>Você	está	preparado	para	mergulhar	nesse	universo	insólito	e</p><p>fascinante?	Temos	certeza	que	esse	poeta	irá	mexer	com	seu</p><p>sentimento,	com	a	sua	forma	de	ver	o	mundo.</p><p>Depois	de	conhecer	um	pouquinho	da	obra	desse	tão	importante	autor,</p><p>você	voltará	à	realidade	com	uma	alma	maior,	como	um	ser	humano</p><p>mais	fecundo	e	intenso.</p><p>Basta	lembrarmos	as	palavras	de	Ricardo	Reis,	uma	das	criaturas	inventadas</p><p>por	Pessoa:	“Para	ser	grande	sê	inteiro”.	Depois	de	Pessoa,	estamos</p><p>fadados	a	ser	grandes	e	inteiros.</p><p>Fernando	Pessoa	não	foi	somente	um	grande	autor,	mas	um	escritor</p><p>paradigmático,	um	poeta	maior	entre	os	poetas	maiores.</p><p>Você	 sabe	 o	 que	 significa	 paradigmático?	 Tal	 adjetivo	 advém	 do</p><p>substantivo	paradigma.	Paradigma	representa	uma	ordem,	um	modelo,</p><p>um	pensamento	peculiar	a	um	determinado	tempo	histórico.</p><p>Vamos	ver	um	exemplo?</p><p>Antes	do	renascimento,	na	era	medieval,	o	homem	acreditava	que</p><p>Deus	era	o	centro	do	universo.	A	esse	modelo	de	pensamento,	a	esse</p><p>paradigma,	convencionou	-se	chamar	de	teocentrismo.</p><p>Com	o	advento	do	renascimento	e	a	paulatina	abertura	do	homem</p><p>medieval	ao	humanismo	e	à	redescoberta	dos	valores	greco	-romanos,</p><p>passou	-se	a	inserir	o	homem	como	a	medida	e	o	centro	do	mundo.	A</p><p>esse	novo	paradigma	deu	-se	o	nome	de	“antropocentrismo”.</p><p>Pois	bem,	Pessoa	revolucionou	a	poesia	de	tal	maneira	que,	após</p><p>o	advento	de	sua	obra,	uma	nova	sensibilidade,	uma	nova	forma	de</p><p>perceber,	de	pensar	o	mundo	e	o	homem	foram	instituídas.</p><p>UNIUBE 85</p><p>Antes	de	iniciarmos	o	nosso	passeio	pela	escrita	do	poeta	lisboeta,	vamos</p><p>compreender	um	pouco	o	contexto	social	e	alguns	dados	biográficos	da</p><p>vida	do	autor?</p><p>Nascido	em	Lisboa,	em	1888,	Fernando	Pessoa	perde	o	pai	ainda</p><p>criança,	aos	cinco	anos	de	idade.	Logo	em	seguida	sua	mãe	casa	-se</p><p>novamente	e	muda	-se	com	o	filho	e	o	novo	marido	para	Durban,	na	África</p><p>do	Sul.	Esse	incidente	biográfico	é	de	suma	importância	para	a	formação</p><p>lírica	do	poeta.</p><p>Na	África,	Pessoa	trava	contato	com	uma	língua	que	lhe	será	íntima,</p><p>o	 inglês.	Convivendo	entre	 dois	 universos	 linguísticos,	 entre	 duas</p><p>culturas,	duas	línguas,	a	inglesa	e	a	portuguesa,	inicia	-se,	talvez,	aqui,</p><p>um	processo	de	cisão,	de	divisão	do	ser,	do	eu.	Isso	com	toda	certeza</p><p>influirá	na	formação	da	sensibilidade	do	poeta.</p><p>Em	1905,	de	volta	a	Lisboa,	Pessoa	cursa	as	faculdades	de	letras	e	de</p><p>filosofia,	não	terminando,	porém,	tais	cursos.	Começa	a	trabalhar	como</p><p>correspondente	comercial,	emprego	que	lhe	garantirá	o	sustento	por</p><p>toda	a	vida.</p><p>O	início	do	século	XX	foi	um	período	de	grande	ebulição	cultural	em</p><p>Portugal.	A	república	portuguesa	havia	sido	proclamada.	Intelectuais	de</p><p>grande	importância	passaram	a	formular	uma	série	de	reflexões	sobre</p><p>a	cultura	e	o	pensamento	portugueses.	Jaime	Cortesão,	Teixeira	de</p><p>Pascoais,	entre</p><p>outros,	irão	formular,	por	meio	de	uma	importante	revista</p><p>chamada	A	águia,	o	conceito	de	saudade	para	os	portugueses.	Conforme</p><p>o	crítico	e	historiador	literário	Massaud	Moisés	(1977),	a	saudade	é	a</p><p>base	do	espírito	português.	Vejamos	o	que	esse	importante	pensador</p><p>tem	a	nos	dizer?</p><p>86 UNIUBE</p><p>Passando	para	o	exame	da	alma	portuguesa,	chega	finalmente	ao	seu</p><p>destino:	a	Saudade,	que	“é	o	próprio	sangue	espiritual	da	Raça;	o	seu</p><p>estigma	divino,	o	seu	perfil	eterno.	Claro	que	é	a	saudade	no	seu	sentido</p><p>profundo,	verdadeiro,	essencial,	isto	é,	o	sentimento	-ideia,	a	emoção</p><p>refletida,	onde	tudo	o	que	existe,	corpo	e	alma,	dor	e	alegria,	amor	e</p><p>desejo,	terra	e	céu,	atinge	a	sua	unidade	divina.	Eis	a	Saudade	vista	na</p><p>sua	essência	religiosa,	e	não	no	seu	aspecto	superficial	e	anedótico	de</p><p>simples	gosto	amargo	dos	infelizes”.	(MOISÉS,	1977,	p.	291.)</p><p>Para	mais	informações	sobre	Jaime	Cortesão,	consulte	o	site:	<http://</p><p>pt.wikipedia.org/wiki/Jaime_Cortes%C3%A3o>.</p><p>Se	quiser	conhecer	um	pouco	mais	sobre	esse	importante	poeta	português</p><p>acesse	o	site:	<http://pt.wikipedia.org/wiki/Teixeira_de_Pascoaes>.</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>Você	sabia	que	a	saudade	é	um	sentimento	muito	importante	para</p><p>Portugal?	Povo	navegante,	viajante,	os	portugueses	sempre	guardaram</p><p>uma	doce	melancolia	ante	as	despedidas,	ante	a	perda	de	um	chão,	de</p><p>uma	pátria.</p><p>E	quem	nunca	sentiu	saudade?	Aposto	que	você,	com	toda	certeza,	já</p><p>se	viu	na	situação	de	se	despedir	de	alguém	querido,	de	se	entregar	a</p><p>novas	viagens,	deixando	para	trás	um	passado	sempre	vivo	no	coração.</p><p>Pois	bem,	os	portugueses	fizeram	de	tal	sentimento	uma	sensibilidade</p><p>artística.</p><p>Prosseguindo	em	nosso	estudo,	os	intelectuais	de	A	águia	irão	formular</p><p>uma	espécie	de	teoria	sobre	a	saudade	que	influenciará	toda	a	poesia</p><p>de	língua	portuguesa,	inclusive	a	de	Pessoa.</p><p>UNIUBE 87</p><p>Após	o	 furor	de	A	águia,	surgirá	outra	revista	chamada	Orfeu.	Em</p><p>torno	 dessa	 publicação,	 irão	 se	 reunir	 inúmeros	 poetas,	 liderados</p><p>pela	genialidade	de	Fernando	Pessoa:	Mário	de	Sá-carneiro,	Almada-</p><p>Negreiros,	Raul	Leal,	entre	outros.	Esse	grupo	de	jovens	estava	antenado</p><p>com	o	que	acontecia	de	novo	no	mundo	das	artes	em	todo	o	mundo.</p><p>Vamos	conhecer	um	pouco	mais	sobre	essa	geração?	Faça	uma	pesquisa</p><p>na	Internet	e	descubra	a	biografia	e	a	obra	desses	poetas.</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>Eles	se	aproximaram	de	diversas	vanguardas	estéticas	que	renovaram</p><p>e	deram	um	novo	influxo	às	artes	de	Portugal:	o	futurismo,	o	cubismo,	o</p><p>expressionismo,	entre	outras.</p><p>Você	deve	estar	se	perguntando	o	que	seria	uma	vanguarda,	não	é</p><p>mesmo?	As	vanguardas	foram	movimentos	de	renovação	das	artes.	Toda</p><p>vanguarda	tem	como	proposta	trazer	algo	de	inovador,	propor	mudanças</p><p>e	novos	preceitos	para	a	arte.</p><p>Nesse	sentido,	o	artista	vanguardista	faz	uma	leitura	crítica	do	passado,</p><p>negando	o	que	essa	tradição	tem	de	retrógrada	e	ultrapassada.</p><p>Um	exemplo	disso	seria	o	surrealismo.	A	novidade	dessa	vanguarda	foi</p><p>explorar	o	inconsciente	como	fonte	de	criação.	Os	surrealistas	praticavam</p><p>a	escrita	automática,	pela	qual	o	autor	se	tornava	uma	espécie	de</p><p>médium,	abrindo	-se	para	o	seu	eu	profundo	e	deixando	as	palavras	virem</p><p>naturalmente,	libérrimas,	à	página.</p><p>Todo	esse	processo	se	dava	sem	nenhuma	aparente	intervenção	incisiva</p><p>e	marcante	do	pensamento	racional.	O	resultado	disso	é	o	surgimento	de</p><p>uma	escrita	caótica,	ilógica,	semelhante	aos	sonhos	absurdos,	loucos.</p><p>88 UNIUBE</p><p>Você	já	viu	alguma	tela	do	artista	espanhol	Salvador	Dalí?	Faça	uma</p><p>pesquisa	na	Internet	e	veja	algumas	das	telas	desse	artista.	Você	terá	a</p><p>noção	de	uma	arte	do	absurdo,	uma	arte	onírica,	feita	de	sonho	e	pesadelo.</p><p>Pessoa	 irá	 atuar	 na	 revista	 Orfeu,	 publicando	 ensaios	 e	 poemas</p><p>esparsos.	Tal	 revista,	entretanto,	 teria	vida	curta.	Logo	o	grupo	da</p><p>inovadora	publicação	se	dissolve.	Após	esse	fato,	Fernando	Pessoa</p><p>irá	se	recolher	a	uma	vida	reclusa,	solitária.	É	nesse	sigilo	que	o	poeta</p><p>irá	elaborar	uma	obra	poética	estrondosa,	de	grande	inovação,	poesia</p><p>visionária,	a	congregar	toda	a	tradição	da	lírica	tanto	mundial	como</p><p>portuguesa.</p><p>Nesse	sentido,	o	poeta	foi	praticamente,	em	vida,	um	autor	inédito.</p><p>Publicou	apenas	uma	coletânea	de	poemas	intitulada	Mensagem.	Seus</p><p>inéditos	foram	guardados	em	um	baú	e	até	hoje	não	se	publicou	tudo	o</p><p>que	poeta	escreveu.	Dessa	famosa	arca	de	tesouros	irromperam	escritos</p><p>preciosos,	palavras	de	grande	contundência,	a	marcar	nossa	alma	para</p><p>todo	o	sempre.</p><p>Vamos	nos	debruçar	sobre	esse	fantástico	mundo	de	Fernando</p><p>Pessoa?</p><p>Um eu que se fez inúmeros eus2.2</p><p>A	genialidade	de	Pessoa	está	no	fato	de	ele	ter	criado,	a	partir	de	sua</p><p>sensibilidade	poética,	 inúmeros	outros	eus,	seres	fictícios	que,	por</p><p>serem	coerentes	e	convincentes,	quase	chegam	a	ganhar	um	estatuto</p><p>de realidade.</p><p>O	poeta	de	Mensagem,	portanto,	criou	personagens	tão	verossímeis,	tão</p><p>concretos	e	vivos,	que	se	tornaram,	aparentemente,	pessoas	de	carne	e</p><p>osso.	A	esses	seres	inventados,	com	identidade	própria,	convencionou-se</p><p>chamar	de	heterônimos.</p><p>UNIUBE 89</p><p>São	três	os	heterônimos	mais	famosos:	Alberto	Caeiro,	Ricardo	Reis	e</p><p>Álvaro	de	Campos.	Afirmamos	serem	os	mais	famosos	porque	esses</p><p>são	os	mais	representativos,	os	de	maior	atuação	no	interior	da	obra	do</p><p>poeta.	Todavia,	há	inúmeros	outros.	Estima	-se	que	o	escritor	português</p><p>tenha	criado	dezenas	de	heterônimos.	Haja	imaginação,	não	é	mesmo?</p><p>Vamos	tentar	entender	o	que	seria	um	heterônimo?	Muita	gente,	quando</p><p>criança	ou	até	mesmo	na	fase	adulta,	deve	ter	inventado	personagens,</p><p>amigos	fictícios.	Pois	bem,	esses	seres	possuíam	uma	vida	própria,</p><p>uma	biografia,	uma	personalidade.	Tais	criaturas,	feitas	de	sonho	e</p><p>imaginação,	são,	na	verdade,	ficções	carregadas	de	marcas	do	nosso</p><p>próprio	eu.	Esses	seres	mágicos	são	heterônimos,	atores	de	uma</p><p>ficção	que	nós	inventamos,	que	nós	compomos,	para	inserir,	em	nossa</p><p>realidade	tão	pobre,	uma	aura	de	fantasia,	de	encanto	e	mistério.</p><p>Creio	que,	a	partir	de	agora,	você	deve	ter	uma	noção	mais	elaborada	do</p><p>que	seja	um	heterônimo.	Vamos	prosseguir	em	nosso	estudo?</p><p>Evidentemente	que	todos	esses	seres	fictícios,	criados	pelo	genial	poeta</p><p>português,	são	representações	de	poetas.	Tais	escritores	fictícios	são	tão</p><p>singulares,	possuem	cada	qual	uma	escrita	tão	peculiar,	que	chegam	a</p><p>nos	causar	assombro.	Como	uma	pessoa	física,	concreta,	o	Fernando</p><p>Pessoa,	como	ser	empírico,	foi	capaz	de	inventar	e	escrever	uma	poesia</p><p>peculiar	para	cada	heterônimo?</p><p>Talvez	você	deva	estar	em	dúvida	sobre	o	significado	de	uma	palavra	usada</p><p>no	parágrafo	anterior.	Empírico	significa	a	experiência	viva,	real,	concreta.</p><p>Dessa	maneira,	como	o	autor	encarnado,	Pessoa,	conseguiu	ser	tão</p><p>diferente	de	si	e,	ao	mesmo	tempo,	tão	fiel	ao	seu	projeto	poético?</p><p>É	verdadeiramente	assombroso.	Tal	empreendimento	revela	-nos	a</p><p>genialidade	desse	escritor	tão	fascinante.</p><p>90 UNIUBE</p><p>Além	dos	heterônimos,	o	autor	português	também	assinou	o	próprio</p><p>nome	em	diversos	poemas.	O	Fernando	Pessoa	por	ele	mesmo,</p><p>diferentemente	dos	demais	heterônimos,	é	comumente	chamado	de</p><p>ortônimo.</p><p>O	ortônimo	representaria	o	Fernando	Pessoa	como	poeta	a	coincidir,	pelo</p><p>menos	aparentemente,	com	a	pessoa	empírica	do	escritor.</p><p>Seria,	entretanto,	o	ortônimo	mais	legítimo	ou	mais	real	que	os	demais?</p><p>Haveria	entre	o	poeta	Pessoa	e	o	homem	Pessoa	maior	aproximação,</p><p>ao	ponto	de	podermos	descansar	nossa	curiosidade	e	aceitar	tal	paralelo</p><p>como	uma	verdade	incontestável?</p><p>De	uma	coisa	podemos	ter	certeza:	na	obra	desse	lisboeta	nada	é	simples,</p><p>tudo	é	um	jogo	de	espelhos,	uma	construção	de	palavras	labirínticas.</p><p>A	crítica	literária	Leyla	Perrone	-Moisés	(2001)	elucida	-nos	a	esse	respeito.</p><p>Ela	afirma		-nos	que	também	a	poesia	de	Fernando	Pessoa	por	ele	mesmo</p><p>transformou	-se	em	obra	de	um	ser	fictício.	Não	há	mais	realidade	no</p><p>ortônimo	do	que	nos	heterônimos.	De	tal	modo	o	poeta	finge	ao	ser	ele</p><p>mesmo,	que	a	face	do	ortônimo	torna	-se	vazia	de	um	conteúdo	autêntico,</p><p>de	uma	verdade	enraizada	na	existência	do	poeta.</p><p>Difícil?	Vamos	tentar	explicar	melhor.</p><p>O	Fernando	Pessoa	ortônimo</p><p>não	tem	existência	física,	concreta,	palpável.	Como	os	heterônimos,</p><p>ele	também	é	uma	máscara.	Dessa	forma,	o	poeta,	como	ser	físico,</p><p>representativo,	é	inapreensível.	Nunca	encontraremos	a	verdadeira</p><p>biografia	desse	escritor,	nunca	sua	existência	palpável,	concreta,	será</p><p>refratada	em	sua	escrita.	A	pessoa	de	Pessoa,	sua	verdade	humana,	será</p><p>para	seus	leitores	um	completo	mistério,	porque	o	autor	criou	uma	série</p><p>de	máscaras	nas	quais	seu	rosto	se	confundiu	e	se	apagou.</p><p>Sobre	tal	questão,	vamos	aprofundar	nossa	análise.	Para	tanto,	iremos</p><p>recorrer	ao	importante	estudo	de	Leyla	Perrone	-Moysés.</p><p>UNIUBE 91</p><p>Pessoa ninguém?2.3</p><p>Bem,	acreditamos	que	é	difícil	 imaginar	uma	pessoa	que,	em	vida,	é</p><p>ninguém.	Você	deve	estar	se	perguntando	como	tal	loucura	pode	acontecer.</p><p>Calma,	vamos	tentar	compreender	tal	fenômeno	com	maior	precisão.</p><p>Você	já	deve	ter	ouvido	a	famosa	frase	do	filósofo	francês	Descartes:</p><p>“Penso,	logo	existo”.	Pois	bem,	nossa	filosofia,	nossa	razão	e	cultura</p><p>foram	moldadas,	ao	longo	de	séculos,	pela	certeza	e	confiança	na</p><p>existência	de	um	eu	íntegro,	totalizante.</p><p>Conheça	 um	 pouco	 da	 vida	 de	 Descartes	 no	 seguinte	 site:	 <http://</p><p>pt.wikipedia.org/wiki/Ren%C3%A9_Descartes>.</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>Esse	ser	que	pensa,	que	existe,	é	uma	voz	completa,	é	o	nosso	ser,	o</p><p>nosso	espírito	ou	alma.	Tal	preceito	está	na	raiz	do	pensamento	ocidental</p><p>e	permaneceu	como	um	paradigma	durante	séculos.</p><p>O	cristianismo,	por	sua	vez,	pautou	-se	nessa	crença,	 legando	aos</p><p>homens	uma	alma,	um	eu	inteiro,	vivo,	de	realidade	quase	concreta,</p><p>que	transcende	a	vida	terrena	e	adquire,	com	a	morte,	a	eternidade.</p><p>Somente	com	o	advento	do	século	XX	tal	preceito	foi	posto	em	dúvida.</p><p>As	ciências	e	a	filosofia	questionaram	esse	ser	total,	sem	fissuras,	sem</p><p>cortes, redondo.</p><p>Você	mesmo,	enquanto	lê	esse	texto,	sente	-se	como	um	ser	verdadeiro,</p><p>consciente,	sente	-se	como	uma	pessoa	concreta,	presente	no	mundo</p><p>das	coisas	palpáveis.	Mas,	para	muitos,	isso	não	é	tão	verdadeiro	assim.</p><p>92 UNIUBE</p><p>Em	vários	segmentos	do	saber	tal	preceito	vai	se	desintegrando.</p><p>Na	linguística,	por	exemplo,	o	pensamento	de	Benveniste	(1991)	quebra</p><p>essa	certeza.	Para	esse	pensador	da	linguagem,	o	eu	só	acontece	quando</p><p>ele	enuncia.	O	eu	é	um	recurso	textual.	Só	existe	no	ato	da	fala.	Se	assim</p><p>pensarmos,	nós	somos	apenas	texto	cursivo,	em	decurso	permanente,	mas</p><p>como	todo	texto,	finitos.	Há	sempre	um	ponto	final,	um	silêncio	lacunar,	a</p><p>morte,	que	margeia	o	nosso	eu,	o	nosso	ser	feito	de	palavras.</p><p>Sobre	Benveniste,	acesse	o	site:	<http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89mile_</p><p>Benveniste>.</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>A	psicanálise,	por	sua	vez,	contribuiu	para	a	quebra	e	a	cisão	desse</p><p>eu	 total.	Para	Freud	 (apud	RAPPAPORT;	FIORI;	DAVIS,	 1991),	 o</p><p>eu,	a	psique,	se	dividiria	em	três	instâncias:	id,	ego	e	superego.	O	id</p><p>representaria	as	pulsões	do	irracional	e	do	desejo;	o	ego,	as	operações</p><p>da	razão,	os	recursos	do	consciente	aptos	a	nos	orientar,	a	nos	proteger</p><p>dos	perigos	do	mundo	externo;	o	superego	seria	a	instância	moral,	a	voz</p><p>de nossa consciência.</p><p>Além	dessa	quebra	do	eu	em	fragmentos,	a	psicanálise	trouxe	à	tona</p><p>outro	universo	em	nós,	obscuro,	submerso,	uma	verdadeira	personalidade</p><p>oculta	a	nos	guiar,	sem	que	notemos	tal	presença.	Esse	eu	escondido</p><p>seria	o	inconsciente.	Portanto,	para	a	psicanálise,	já	não	existe	uma</p><p>psique	completa,	mas	um	feixe,	um	amontoado	de	cacos,	de	vozes,	que</p><p>dão	forma	ao	nosso	eu.</p><p>Poderíamos	elencar	uma	série	de	outros	pensadores	que	contribuíram	para</p><p>a	quebra	da	certeza	de	um	eu:	Foucault,	Lacan,	Derrida,	Wittgenstein,	entre</p><p>outros.</p><p>UNIUBE 93</p><p>Bem,	 talvez	agora	fique	mais	 fácil	para	você	 imaginar	o	nosso	eu</p><p>como	uma	peça	não	coesa,	um	objeto	incompleto,	múltiplo.	Há	em	nós</p><p>inúmeros	impulsos,	contradições	que	quebram	a	integridade	de	um	eu</p><p>global.	Além	do	mais,	em	cada	situação	a	gente	sempre	é	de	um	jeito.</p><p>Nunca	somos	idênticos	a	nós	mesmos	durante	todo	o	tempo,	por	todos</p><p>os	espaços	e	na	diversidade	das	situações.</p><p>Pessoa	levou	tal	condição	existencial	ao	seu	extremo,	vivenciou	isso</p><p>dramaticamente,	ao	ponto	de	se	partir	em	vários	outros	eus.	Conforme</p><p>Leyla	Perrone	-Moisés,	o	horror	de	Pessoa	foi	“considerar	a	máscara	um</p><p>vício,	e	sentir	-se	condenado	à	máscara”.	(2001,	p.	26.)	O	homem	Pessoa,</p><p>dessa	forma,	fez	de	seu	vazio	existencial,	da	falta	de	um	eu	totalizador,</p><p>uma	multiplicação	de	máscaras,	pelas	quais	conseguiu	expressar	suas</p><p>diversas	vertentes	e	características	subjetivas.	Esse	deserto	do	ser,	do</p><p>íntimo,	fica	patente	na	seguinte	citação	de	um	texto	em	prosa	de	Pessoa:</p><p>Ficarei	no	Inferno	de	ser	Eu,	a	Limitação	Absoluta,</p><p>Expulsão–Ser	do	Universo	longínquo!	Ficarei	nem	Deus,</p><p>nem	homem,	nem	mundo,	mero	vácuo	-pessoa,	infinito</p><p>de	Nada	consciente,	pavor	sem	nome,	exilado	do	próprio</p><p>mistério,	da	própria	Vida.	Habitarei	eternamente	o	deserto</p><p>morto	de	mim,	erro	abstracto	da	criação	que	me	deixou</p><p>atrás.	Arderá	em	mim	eternamente,	inutilmente,	a	ânsia</p><p>(estéril)	do	regressar	a	ser.</p><p>(PESSOA apud	PERRONE	-MOISÉS,	2001,	28	-29.)</p><p>Esse	fragmento	nos	causa	arrepio,	não	é	mesmo?	Estamos	diante	de</p><p>um	ser	vazio,	perdido	em	si	e	de	si	mesmo,	um	homem	despencado	no</p><p>completo	vácuo,	abandonado	por	Deus	e	pelos	demais	homens.</p><p>Podemos	não	ter	vivido	tal	experiência	nessa	profundidade,	mas	com</p><p>certeza	já	sentimos	uma	angústia,	um	vazio	interior,	muitas	vezes	sem</p><p>uma	causa	específica.	Pois	bem,	como	o	poeta	vive	tudo	intensamente,</p><p>esse	vazio	existencial	é,	para	ele,	mais	agudo,	é	uma	experiência</p><p>visceral.</p><p>94 UNIUBE</p><p>Bem,	agora	talvez	fique	mais	fácil	pensarmos	o	eu	de	pessoa	a	partir	de</p><p>certa	ausência	do	ser,	uma	ausência	que,	contraditoriamente,	se	torna</p><p>plena	de	outras	presenças,	de	outras	vozes.</p><p>De	acordo	com	a	teoria	de	Perrone	-Moisés,	Pessoa	fez	-se	muito	para</p><p>preencher	o	seu	ser	vazio.	É	desse	deserto	que	nasce	o	deslumbrante</p><p>universo	dos	heterônimos.</p><p>Vamos	agora	conhecer	um	pouquinho	de	cada	um	dos	heterônimos	do</p><p>nosso	grande	poeta?	Claro	que	também	iremos	passear	pela	poesia</p><p>de	Fernando	Pessoa	ortônimo.	Vamos	lá,	então,	apreender	mais	um</p><p>pouquinho	desse	mundo?</p><p>Alberto Caeiro: o guardador de rebanhos2.4</p><p>Alberto	Caeiro	será	o	heterônimo	que	exercerá	a	tarefa	de	mestre	sobre</p><p>os	demais.	De	todas	as	criações	de	Pessoa,	Caeiro	é	aquele	que	está</p><p>mais	próximo	da	natureza,	de	uma	vida	primitiva,	não	permeada	pelo</p><p>raciocínio	lógico,	pelo	império	da	razão.</p><p>Fernando	Pessoa	chegou	a	criar	a	biografia	de	todos	os	seus	heterônimos.</p><p>Caeiro,	por	exemplo,	nasceu	em	Lisboa,	em	1889,	e	morreu	de	tuberculose</p><p>na	mesma	cidade,	em	1915.	Passou	a	vida	toda	no	campo,	em	companhia</p><p>de	uma	tia.	Teve	instrução	apenas	primária,	o	que	talvez	explique	sua	recusa</p><p>por	uma	poesia	filosofante.</p><p>SAIBA	MAIS</p><p>Para	o	heterônimo,	portanto,	o	espaço	da	natureza	é	privilegiado;	torna	-se</p><p>sua	enseada	e	seu	motivo	poético.	Conforme	Álvaro	Cardoso	Gomes,	a</p><p>natureza	para	Caeiro	“constitui	o	espaço	vivo	e	original,	espaço	da	integração</p><p>entre	homem	e	cosmo”.	(GOMES,	1987,	p.14.)</p><p>UNIUBE 95</p><p>Todo	o	esforço	de	Caeiro,	portanto,	é	o	de	retornar	a	um	mundo	original,</p><p>não	conspurcado	pelo	processo	civilizatório,	paraíso	perdido	que	o	poeta</p><p>intenta	recuperar	pela	palavra	poética.</p><p>Aliás,	como	você	deve	saber,	tal	desejo	é	natural	no	homem	moderno,</p><p>estafado	pela	vida	corrida	do	dia	a	dia.	Uma	casa	no	campo,	por	exemplo,</p><p>é	o	sonho	de	consumo	de	muitas	pessoas	que	vivem	na	cidade	grande.</p><p>Para	esse	heterônimo,	a	existência	do	homem	se	justifica	na	natureza,	em</p><p>uma	vida	de	simplicidade,	em	que	as	coisas	são	somente	o	que	elas	são,</p><p>despidas	de	toda	metafísica,	de	toda	elucubração	do	pensamento	lógico.</p><p>Para	esse	poeta,	as	pedras,	os	caminhos,	as	árvores,	os	rios,	são	belos	por</p><p>serem	coisas	simples,	despidas	de	qualquer	transcendência.	Afirma	Caeiro:</p><p>“O	que	nós	vemos	das	cousas	são	as	cousas”.	(PESSOA,	1998,	p.	217.)</p><p>Veja	que,	nesse	sentido,	o	poeta	não	segue	o	postulado	platônico,	pelo</p><p>qual	o	mundo	é	invenção	de	outro,	perfeito,	sublime,	o	mundo</p><p>das	ideias.</p><p>Dessa	forma,	não	há	necessidade	de	nenhum	discurso	poético	para</p><p>tornar	o	mundo	belo.	A	beleza	do	mundo	é	que	afeta	a	palavra	e	permite</p><p>ao	homem	vislumbrar	uma	existência	humilde,	campesina,	livre	de	todo</p><p>peso	de	uma	vida	artificial.</p><p>Se	a	palavra	não	é	responsável	pela	beleza	das	coisas,	a	poesia	nasce,</p><p>para	esse	mestre,	despida	de	recursos	retóricos	inflamados,	de	processos</p><p>estéticos	floreados.	O	poema	se	faz	com	palavras	despidas,	simples	como</p><p>as	coisas,	os	objetos:	“A	espantosa	realidade	das	cousas/	é	a	minha</p><p>descoberta	de	todos	os	dias”.	(PESSOA,	1998,	p.	234.)</p><p>Com	efeito,	a	estética	desse	guardador	de	rebanhos	é	objetivista,	centra	-se</p><p>com	maior	ênfase	no	mundo	dos	objetos,	e	não	nos	sobressaltos	da	alma.</p><p>96 UNIUBE</p><p>Conforme	Cardoso	Gomes,	o	poeta	pretende	atingir	“a	coisidade	das</p><p>coisas”.	(GOMES,	1987,	p.	15.)	Nesse	sentido,	não	cabe	no	discurso</p><p>a	 busca	 de	 verdades	 eternas,	 místicas,	 pertencentes	 a	 mundos</p><p>transcendentes,	imaginários:	“O	único	sentido	íntimo	das	coisas/	É	elas</p><p>não	terem	sentido	íntimo	nenhum”.	(PESSOA,	1998,	p.	223.)</p><p>A	grande	paixão	de	Caeiro,	portanto,	é	o	real	concreto,	é	o	nosso	mundo</p><p>palpável.	Uma	pessoa	tão	encantada	pela	superfície	física	do	mundo	só</p><p>poderia	rejeitar	todo	tipo	de	fuga	a	esse	concreto	imediato:	“eu	nunca</p><p>passo	para	além	da	realidade	imediata/	Para	além	da	realidade	imediata</p><p>não	há	nada”.	(PESSOA,	1998,	p.	277.)</p><p>Creio	que	você	já	deve	ter	experimentado	tal	situação.	Às	vezes	nós</p><p>amamos	tanto	ver	alguma	coisa,	algum	acontecimento,	um	pôr		do		sol,	por</p><p>exemplo,	uma	flor,	um	pássaro,	que	sentimos,	pelo	menos	brevemente,</p><p>que	todo	paraíso	além	da	terra	está	na	própria	terra.	Para	Caeiro	esse</p><p>encanto	faz	-se	no	aqui	e	agora,	jamais	em	um	eterno	além.</p><p>Nesse	sentido,	Caeiro	é	um	poeta	sensualista.	Ele	a	todo	o	momento</p><p>exalta	os	sentidos,	principalmente	o	olhar.	Contemplar	o	mundo,	doar	-se</p><p>a	ele	pelos	olhos,	eis	a	grande	aventura	desse	poeta	em	permanente</p><p>estado	de	encantamento	pelas	coisas.	Afirma	o	poeta:	“A	nossa	única</p><p>riqueza	é	ver”.	(p.	208),	“Vi	como	um	danado”.	(PESSOA,	1998,	p.	275.)</p><p>De	acordo	com	Álvaro	Cardoso	Gomes,	a	visão	aproxima</p><p>a	subjetividade	do	mundo:	“A	visão	é	o	mais	objetivo	dos</p><p>órgãos	dos	sentidos:	vendo,	o	sujeito	elide	o	próprio</p><p>sujeito	e	entrega	-se	ao	mundo	objetivo”.	(1987,	p.16.)</p><p>O	que	significaria	isso	que	Álvaro	nos	afirma?	Quando	a	gente	olha</p><p>as	coisas,	a	gente	não	se	sente	nelas,	próxima	a	elas?	Pois	bem,	o</p><p>crítico	nos	afirma	justamente	essa	verdade,	a	de	que	o	nosso	eu,	nossa</p><p>subjetividade,	ao	ver,	se	entrega	ao	mundo	ao	redor.</p><p>Elidir</p><p>Eliminar,</p><p>suprimir.</p><p>UNIUBE 97</p><p>Daí	nasce	em	Caeiro	a	necessidade	de	um	olhar	que	ilumina	o	mundo.</p><p>A	luz	é	metáfora	de	uma	busca	de	precisão,	de	exatidão,	de	tudo	o	que</p><p>é	contemplado:	“Às	vezes,	em	dia	de	luz	perfeita	e	exata,/	[...]	as	coisas</p><p>têm	toda	a	realidade	que	podem	ter”.	(PESSOA,	1998,	p.	218.)</p><p>Dessa	forma,	um	poeta	tão	confiante	nos	sentidos	físicos,	só	poderia</p><p>desconfiar	de	processos	psíquicos	como	a	imaginação	e	o	pensamento.</p><p>Tais	ações	do	intelecto	afastam	o	homem	da	natureza	e	da	realidade</p><p>imediata	do	mundo.</p><p>Dessa	entrega	aos	sentidos,	nasce	também	uma	desconfiança	do	tempo</p><p>retilíneo,	linear	e	histórico.	Como	sabemos,	o	tempo	que	se	estende</p><p>como	uma	linha,	como	uma	flecha	que	sempre	voa,	envelhece	em</p><p>demasia	o	presente,	tornando	-o,	com	rapidez	estúpida,	passado.	Essa</p><p>concepção	de	tempo	ocidental,	acelerada	pelo	consumo	desenfreado</p><p>(o	que	é	moda	agora	amanhã	já	está	obsoleto),	pelo	frenesi	da	vida</p><p>capitalizada,	é	totalmente	rejeitada	pelo	mestre	Caeiro.</p><p>Daí	o	heterônimo	valorizar	apenas	o	presente	e	desprezar	passado	e</p><p>futuro.	Ademais,	como	o	olhar	só	acontece	no	ato	da	ação,	o	instante	do</p><p>agora	é	a	única	realidade	verídica	do	homem.	Daí	nasce	o	sentimento</p><p>de	atemporalidade	do	presente,	de	concretude	física	do	tempo,	ao	ponto</p><p>das	coisas	estarem	fora	do	próprio	tempo:</p><p>O	que	é	o	presente?</p><p>É	uma	cousa	relativa	ao	passado	e	ao	futuro.</p><p>É	uma	cousa	que	existe	em	virtude	de	outras	cousas</p><p>existirem.</p><p>Eu	quero	só	a	realidade,	as	cousas	sem	presente.</p><p>Não	quero	incluir	o	tempo	no	meu	esquema.</p><p>(PESSOA,	Fernando,	1998,	p.	304.)</p><p>O	presente	perde	sua	realidade,	torna	-se	mero	espaço	entre	o	ontem	e</p><p>o	amanhã.	No	caso	de	Caeiro,	funciona	com	mais	eficácia	substituirmos</p><p>a	noção	de	presente	pela	de	momento.</p><p>98 UNIUBE</p><p>O	momento	seria	o	átimo,	a	curta	duração,	em	que	a	percepção	apreende</p><p>o	objeto,	anterior	a	todo	reconhecimento	e	trabalho	da	razão.</p><p>Esse	instante	mágico	torna	-se	único	e	jamais	se	repete.	Em	consequência,</p><p>também	as	coisas	tornam	-se	únicas,	singulares.	Nunca	uma	flor,	por</p><p>exemplo,	pertence	a	uma	espécie	geral	de	flores.	Uma	rosa	não	é	jamais</p><p>uma	rosa,	mas	a	rosa,	irrepetível,	inigualável	às	demais.</p><p>Nesse	sentido,	Caeiro	(PESSOA,	1998,	p.	204)	apreende	as	coisas	como</p><p>se	sempre	as	visse	pela	primeira	vez,	com	olhos	de	eterna	criança:</p><p>Sei	ter	o	pasmo	essencial</p><p>Que	tem	uma	criança	se,	ao	nascer,</p><p>Reparasse	que	nascera	deveras...</p><p>Sinto	-me	nascido	a	cada	momento</p><p>Para	a	eterna	novidade	do	mundo...</p><p>Você	já	viu	uma	criança	fazer	uma	observação	inédita	do	mundo?	As</p><p>crianças,	em	sua	ingenuidade,	guardam	uma	profunda	sabedoria,	a</p><p>sabedoria	despida	dos	processos	da	lógica	racional.	É	esse	pensamento</p><p>que	Caeiro	persegue.</p><p>A	linguagem,	a	razão,	tenta	agrupar	as	coisas	em	esquemas,	em	estruturas</p><p>generalizantes.	 Desse	 procedimento,	 nascem	 as	 ciências	 naturais	 a</p><p>organizarem	os	elementos	químicos	em	tabelas	periódicas,	os	objetos	físicos</p><p>em	estados	(sólido,	líquido	ou	gasoso),	os	animais	em	espécies.</p><p>Para	Caeiro,	isso	não	é	possível,	porque	cada	coisa	é	singular.	Daí	o</p><p>respeito	que	o	poeta	tem	pela	multiplicidade	e	diversidade	das	cosias.</p><p>Com	efeito,	a	linguagem	poética	tenta	também	acompanhar	esse	estado</p><p>caótico	da	diversidade.	Em	versos	soltos,	na	falta	de	disciplina	poética,</p><p>numa	produção	lírica	de	formas	múltiplas	como	a	vida,	nasce	essa	busca</p><p>de	uma	linguagem	capaz	de	exprimir	a	desorganização	das	coisas.</p><p>Sonetos	perfeitos	com	rimas	perfeitas	não	seriam	eficazes	ao	espelharem</p><p>o	caos	de	um	mundo	imperfeito,	desigual.</p><p>UNIUBE 99</p><p>Agora	que	vimos	algumas	características	da	poesia	de	Caeiro,	vamos</p><p>fazer	a	análise	de	um	poema	desse	heterônimo?</p><p>Vamos	ler	o	poema	número	XLIX	do	livro	O guardador de rebanhos?</p><p>Meto	-me	para	dentro,	e	fecho	a	janela.</p><p>Trazem	o	candeeiro	e	dão	as	boas	noites,</p><p>E	a	minha	voz	contente	dá	as	boas	noites.</p><p>Oxalá	a	minha	vida	seja	sempre	isto:</p><p>O	dia	cheio	de	sol,	ou	suave	de	chuva,</p><p>Ou	tempestuoso	como	se	acabasse	o	Mundo,</p><p>A	tarde	suave	e	os	ranchos	que	passam</p><p>Fitados	com	interesse	da	janela,</p><p>O	último	olhar	amigo	dado	ao	sossego	das	árvores,</p><p>E	depois,	fechada	a	janela,	o	candeeiro	aceso,</p><p>Sem	ler	nada,	nem	pensar	em	nada,	nem	dormir,</p><p>Sentir	a	vida	correr	por	mim	com	um	rio	por	seu	leito,</p><p>E	lá	fora	um	grande	silêncio	como	um	Deus	que	dorme.</p><p>(PESSOA,	1998,	p.	227-229.)</p><p>O	eu	lírico,	logo	no	primeiro	verso,	busca	a	intimidade	do	lar,	o	descanso,</p><p>o	repouso.	Daí	o	ato	enfático	de	fechar	a	janela.	No	interior	da	casa,</p><p>temos,	portanto,	a	segurança,	a	paz,	a	serenidade.	Bachelard	(1996),</p><p>importante	teórico	do	espaço,	afirma	que	a	casa	é	o	centro	do	cosmos.</p><p>Nela,	encontramos	um	ninho,	uma	concha,	onde	o	universo	todo	repousa,</p><p>adormece.	O	eu	poético	busca	justamente	esse	conforto.</p><p>Você	já	deve	ter	sentido	a	imensa	necessidade	de	conforto,	de	descanso.</p><p>Nesses	momentos,	nossa	casa	é	um	verdadeiro	oásis.	É	justamente</p><p>essa	busca	de	recanto,	de	paz,	que	leva	o	eu	lírico	do	poema	a	fechar</p><p>a	janela	da	casa.</p><p>100 UNIUBE</p><p>Essa	ideia	de	fechamento	é	acompanhada,	no	plano</p><p>sonoro,	pela	inserção	de	aliterações fechadas,	de</p><p>con	soantes	que	se	travam:	“MeTo	-me	Para	DenTro”.</p><p>Essas	aliterações	exprimem	a	sonoridade	da	própria</p><p>janela	que	se	fecha,	o	eco	surdo	desse	gesto	a	soar</p><p>pela	intimidade	da	casa.</p><p>No	interior	desse	recinto,	há	outras	pessoas,	não	identificadas,	referidas	apenas</p><p>pelos	verbos	na	terceira	pessoa	do	plural.	Pelo	ato	de	cumprimentarem-</p><p>se,	podemos</p><p>inferir	que	há	entre	o	eu	poético	e	essas	pessoas	uma</p><p>relação	amistosa	de	cordialidade.	Isso	é	reforçado	pelo	adjetivo	“contente”</p><p>ligado	ao	substantivo	“voz”.</p><p>O	ato	de	trazerem	o	candeeiro	nos	faz	pensar	que	é	noite.	A	luminosidade</p><p>desse	lustre,	arcaico,	ligado	ao	mundo	campesino,	realça	a	sensação	de</p><p>aconchego:	estamos	em	um	lar	levemente	iluminado.</p><p>O	quarto	verso	é	de	suma	importância.	Ele	funciona	como	uma	linha</p><p>divisória,	um	limite:	a	cisão	entre	o	mundo	íntimo	da	casa	e	o	espaço</p><p>externo	da	natureza.</p><p>Nesse	aspecto,	apesar	do	eu	lírico	estar	no	aconchego</p><p>da	casa,	sua	vida	inteira	se	volta	e	se	identifica</p><p>com	o	espaço	externo.	Temos	assim	uma	antítese</p><p>entre	o	interior	e	o	exterior.	É	como	se	também	o</p><p>espaço	do	lar	fosse	regido	pela	natureza.</p><p>Esse	quarto	verso	também	nos	desvela,	de	forma	quase	cinematográfica,</p><p>o	gesto	do	eu	lírico,	no	momento	tênue,	frágil,	anterior	ao	fechamento</p><p>da	janela	e	o	seu	fecundo	olhar	estendido	pelo	que	se	revela	lá	fora.	A</p><p>duração	desse	olhar	é	composta	pela	sequência	dos	versos	quinto	ao</p><p>oitavo.</p><p>Aliteração</p><p>É	uma	figura	sonora</p><p>que	consiste	na</p><p>repetição	de	alguns</p><p>sons	consonantais.	Um</p><p>exemplo	são	os	trava-</p><p>línguas,	como	aquele</p><p>“O	rato	roeu	a	roupa	do</p><p>rei	de	Roma”.</p><p>Antítese</p><p>É	a	figura	de</p><p>linguagem	pautada</p><p>pelas	oposições.</p><p>Exemplo:	“A	saudade</p><p>é	um	fogo	que	nos</p><p>gela	o	peito”.	Fogo</p><p>e	gelo	formam	uma</p><p>antítese.</p><p>UNIUBE 101</p><p>Nessa	série	de	versos,	temos	a	descrição	do	espaço	da	natureza.</p><p>Entretanto,	longe	de	ser	uma	descrição	objetiva,	temos	uma	sequência</p><p>insólita,	pois	o	eu	lírico	não	sabe	definir	a	situação	do	dia:	se	faz	chuva	ou</p><p>sol,	se	a	tarde	é	suave	ou	tempestuosa.	Temos	uma	verdadeira	mistura</p><p>de	estados	físicos.	Enfim,	o	olhar,	aqui,	não	é	límpido,	fiel	à	descrição</p><p>do	visto.</p><p>Também	nós,	em	alguns	momentos,	embaralhamos	nossa	razão,	nosso</p><p>olhar.	Perdemos	a	realidade	concreta	dos	fatos	e	inserimos	nossos</p><p>anseios,	nossos	sonhos	no	mundo.	Você	já	passou	por	uma	experiência</p><p>em	que	o	seu	pensamento	nublou	a	realidade?	Isso	faz	parte	de	nossa</p><p>existência:	a	capacidade	de	transfigurar	os	fatos	pela	imaginação.</p><p>Entretanto	aqui	se	abre	uma	contradição	entre	o	poema	e	as	crenças</p><p>professadas	pelo	mestre	Caeiro.	Conforme	já	notamos,	apesar	desse</p><p>pastor	-poeta	privilegiar	uma	poética	do	objeto	e	negar	a	todo	instante</p><p>a	interferência	da	imaginação	no	olhar	contemplativo,	temos	aqui	uma</p><p>descrição	impressionista,	marcada	pelo	estado anímico	da	voz	poética.</p><p>Essa	confusão	de	estados	temporais	do	clima	dá	-se	no	íntimo	desse</p><p>observador	que	não	se	atenta	para	o	fato	em	si,	mas</p><p>para	a	imaginação	do	visto.</p><p>Essa	confusão	de	estados	temporais	é	realçada</p><p>pela	luz	do	dia	em	oposição	à	luz	do	candeeiro.	A</p><p>luminosidade	da	lamparina	deveria	estar	associada</p><p>à	noite	e,	no	entanto,	o	eu	lírico	nos	desvela	um	dia</p><p>luminoso.	Podemos	pensar	que,	apesar	do	dia	de</p><p>sol,	o	interior	da	casa	seja	sombrio,	ato	realçado	pelo</p><p>gesto	de	acender	a	lâmpada.	De	qualquer	forma,	o</p><p>que	o	poema	nos	traz	é	um	cenário	todo	marcado</p><p>pela	 luz,	 como	 se	 o	 olhar	 desse	 contemplador,</p><p>hiperbolicamente,	tivesse	o	dom	de	iluminar	tudo.</p><p>Estado</p><p>anímico</p><p>É	o	estado	de</p><p>alma	de	uma</p><p>pessoa.</p><p>Hipérbole</p><p>É	a	figura	de</p><p>linguagem</p><p>que	consiste</p><p>no exagero.</p><p>Exemplo:</p><p>“Corto	-me	no	teu</p><p>olhar.”	É	claro</p><p>que	a	pessoa</p><p>não	se	corta</p><p>em	um	olhar.</p><p>Há	um	exagero</p><p>e, portanto,</p><p>hipérbole.</p><p>102 UNIUBE</p><p>Por	outro	lado,	se	o	dia	é	tempestuoso	ou	chuvoso,	a	luz	da	lamparina</p><p>funcionaria	como	um	norteador	ante	as	sombras	da	casa,	realçadas	pelo</p><p>tempo	fechado.</p><p>Não	temos,	em	relação	ao	tempo	físico,	meteorológico,	nenhuma	certeza.	O</p><p>que	realça	a	transfiguração	do	real	pelo	filtro	da	imaginação	do	sujeito	poético.</p><p>De	qualquer	forma,	dessa	mistura	entre	subjetividade	e	realidade,	entre</p><p>imaginação	e	mundo	físico,	temos	um	elo	de	grande	eloquência:	o	sujeito</p><p>poético,	metaforicamente,	identifica	-se	com	a	natureza:	“Oxalá	minha</p><p>vida	seja	sempre	isto...”,	ou	seja,	o	existir	humano	é	a	própria	natureza.</p><p>Talvez	agora	se	aclare	a	confusão	de	tempos	e	de	situações	climáticas	do</p><p>espaço	externo.	Esse	cenário	é	uma	metáfora	do	ser	humano,	com	suas</p><p>contradições,	com	suas	incertezas,	oscilações	e	vacilações.	Como	uma</p><p>natureza	louca,	a	fazer	chuva	e	sol,	tempestade	e	tempo	de	bonança,</p><p>com	árvores	em	sossego,	a	vida	humana	é	marcada	por	um	ritmo</p><p>absurdo,	ilógico,	disparatado	em	relação	à	ordem	do	cosmos.</p><p>Perceba,	trata	-se	de	um	poema	atípico	na	obra	do	mestre	Caeiro	e	um</p><p>texto	que	depõe	contra	a	harmonia	de	seu	pensamento,	sempre	voltado</p><p>para	descrição	fiel	do	mundo	e	a	fuga	das	oscilações	da	subjetividade.</p><p>Talvez,	nesse	poema,	já	se	esboce,	nesse	amante	da	natureza,	o	advento</p><p>dos	demais	heterônimos,	marcados	pelo	tumulto	dos	sentimentos	humanos.</p><p>No	plano	sonoro,	também	podemos	vislumbrar	uma	oscilação	de	ritmos</p><p>a	permearem	essa	confusão	das	emoções	do	eu	lírico.</p><p>No	quinto	verso,	temos	aliterações	sibilantes	e	chiantes,	numa	perfeita</p><p>homologia	com	o	som	da	chuva	ou	do	dia	límpido:	“O	dia	Cheio	de	Sol,</p><p>ou	Suave	de	Chuva”.	Já	o	verso	sexto,	temos	aliterações	travadas:</p><p>“TemPesTuoso	-aCaBasse	-muDo”,	desvelando	-nos	o	mal	tempo.</p><p>UNIUBE 103</p><p>Em	seguida,	a	partir	do	verso	nono,	o	eu	lírico	prepara	-se	para	o	sono.</p><p>Aliás,	a	ausência	de	determinadas	ações,	como	o	ato	de	ler,	de	pensar,</p><p>levam	justamente	à	estagnação,	ao	repouso.</p><p>A	voz	poética	se	deita	na	cama	e	passa	a	sentir	a	vida	como	um	rio	a</p><p>percorrer	-lhe	por	inteiro.	Essa	metáfora,	entretanto,	longe	de	ser	dinâmica</p><p>(afinal,	o	rio	significa	movimento,	fluxo),	revela	-nos	o	oposto,	ou	seja,	a</p><p>paralisação,	a	ausência	de	movimento.</p><p>O	último	verso,	lapidar	e	de	grande	beleza,	inspira	-nos	um	sossego</p><p>pleno,	como	se	todo	o	universo	a	circundar	a	casa	dormisse	juntamente</p><p>com	o	eu	lírico.</p><p>Dessa	maneira,	permeando	o	jogo	contraditório,	o	eu	lírico	parte	das</p><p>oscilações	do	mundo	exterior	para	o	aconchego	do	sono.	Uma	vez</p><p>alcançado	esse	estado	de	dormência,	o	mundo	se	torna	sereno,	como</p><p>um	Deus	a	dormir.	Chama	-nos	a	atenção	essa	imagem	do	divino.	A</p><p>natureza	ainda	guarda	a	presença	do	sagrado,	como	uma	força	a	realçar</p><p>o	encanto	do	mundo.</p><p>Bem,	espero	que	o	poema	tenha	se	aclarado	aos	seus	olhos.	Vamos</p><p>continuar	nosso	estudo?	Passemos	agora	para	o	mais	pagão	dos</p><p>heterônimos	de	Pessoa:	Ricardo	Reis.</p><p>Ricardo Reis: um pagão em tempos modernos2.5</p><p>Ricardo	Reis	representará,	entre	os	heterônimos	de	Pessoa,	a	feição</p><p>clássica	e	pagã.	Diferentemente	de	Caeiro,	Reis	cultiva	a	forma	lírica</p><p>bem	acabada,	em	poemas	de	estruturas	harmoniosas.</p><p>104 UNIUBE</p><p>De	acordo	com	a	biografia	inventada	por	Pessoa,	Ricardo	Reis	nasceu	na</p><p>cidade	do	Porto,	no	dia	19	de	setembro	de	1887.	Estudou	em	um	colégio</p><p>jesuíta,	tornando	-se	médico	e	monarquista.	Em	determinada	fase	da	vida,</p><p>exilou	-se	no	Brasil.	Não	se	tem	notícias	de	sua	morte,	tendo	o	poeta	um	fim</p><p>obscuro.</p><p>SAIBA	MAIS</p><p>Nesse	aspecto,	o	poeta	poupa	todo	o	derramamento	emotivo	gratuito,</p><p>adquirindo	uma	postura	olímpica,	aristocrática	perante	a	vida.</p><p>Ricardo	Reis,	dessa	forma,	acumula	em	sua	escrita	a	experiência	dos</p><p>antigos,	da	tradição	dos	escritores	greco	-romanos:	Horácio,	Platão,</p><p>Epicuro	etc.	Por	ser	um	neo	pagão,	um	ser	em	permanente	inquirição</p><p>perante	os	deuses,	Reis	rejeita	o	cristianismo	e	toda	a	sentimentalidade</p><p>a	ele	ligada.	Vejamos	o	que	o	crítico	Álvaro	Cardoso	Gomes	nos	elucida</p><p>a	respeito	desse	heterônimo:</p><p>a	poesia	de	Reis	se	oferece	como	um	reflexão	sobre	as</p><p>coisas,	mediada	pela	frieza	e	pelo	controle	emocional,</p><p>controle	 este	 que	 se	 dá	 pela	 linguagem	 contida,</p><p>pausada	e	pelo	espartilho	da	forma	poética	escolhida,</p><p>a	ode.	Como	se	sabe,	essa	composição	poética,</p><p>de	origem	greco	-latina,	apesar	das	transformações</p><p>históricas,	“resguardou	sempre	a	sua	atmosfera	grave,</p><p>solene,	próxima	do	drama	e	da	poesia	épica”.	(GOMES,</p><p>1987,	p.	27.)</p><p>Como	Caeiro,	Reis	cultiva	o	apreço	pela	natureza	e	também	valoriza</p><p>as	sensações	físicas.	Entretanto,	diversamente	do	mestre	Caeiro,	Reis</p><p>exercita	permanentemente	seu	racionalismo,	numa	constante	inquirição</p><p>do	sentido	da	vida.</p><p>Dessa	forma,	não	temos	nesse	heterônimo	a	ingenuidade	e	a	pureza	de</p><p>Caeiro,	sempre	despido	de	qualquer	pretensão	reflexiva	e	intelectual.</p><p>Nessa	alma	pagã,	há,	pelo	contrário,	um	substrato	filosófico,	de	cunho</p><p>helenista.	Tal	postura	do	pensamento	caracteriza	-se	pela	impotência	do</p><p>homem	ante	a	inexorabilidade	de	seu	fado,	de	sua	condição	de	ser	no</p><p>tempo	e,	portanto,	mortal.</p><p>UNIUBE 105</p><p>Bem,	você	deve	estar	achando	muitas	diferenças	entre	Caeiro	e	Reis,</p><p>não	é	mesmo?	Você	acredita	que	Caeiro	era	mestre	de	Reis?	Percebe	-se</p><p>o	quanto	o	aprendiz	vai	se	distanciando	de	seu	mentor	poético,	criando</p><p>um	universo	próprio	e	singular.</p><p>A	imitação	dos	antigos	se	dá	tanto	no	nível	 formal	como	temático.</p><p>Caeiro	resgata	a	tradição	de	palavras	do	léxico	poético	antigo	(“álacre”,</p><p>“ergástulo”,	“ínvio”	etc.),	em	um	tom	solene,	sublime,	semelhante	ao	dos</p><p>poetas	como	Ovídio	e	Homero.	Também	são	usados	recursos	retóricos</p><p>como	a	inversão	do	adjetivo	em	relação	ao	substantivo,	o	uso	da	segunda</p><p>pessoa,	inserindo	no	discurso	a	presença	de	um	interlocutor,	bem	como</p><p>a	citação	de	figuras	mitológicas.</p><p>Também	no	nível	temático,	Reis	herdará	dos	antigos	o	tom	professoral,</p><p>pragmático	da	poesia.	O	texto	lírico,	como	um	discurso	pedagógico,</p><p>tem	de	administrar	um	ensinamento	ao	leitor.	A	arte,	dessa	forma,	está</p><p>intimamente	associada	a	uma	postura	ética.	A	voz	lírica	de	seus	poemas</p><p>sempre	se	dirige	a	um	interlocutor	com	a	solenidade	de	um	mestre,</p><p>administrando	ao	outro	ensinamentos	sobre	a	vida.	Podemos	notar	tal</p><p>tom	de	solenidade,	tal	discurso	professoral,	no	seguinte	poema:</p><p>Para	ser	grande,	sê	inteiro:	nada</p><p>Teu	exagera	ou	exclui.</p><p>Sê	todo	em	cada	coisa.	Põe	o	quanto	é</p><p>No	mínimo	que	fazes.</p><p>Assim	em	cada	lago	a	lua	toda</p><p>Brilha,	porque	alta	vive.</p><p>(PESSOA,	Fernando,	1998,	p.	414.)</p><p>Aqui,	nesse	poema,	podemos	vislumbrar	um	preceito</p><p>dos	antigos,	o	do	viver	heroico,	estoico, postura</p><p>a	elevar	o	homem	acima	das	vicissitudes.	Esse</p><p>mesmo	preceito	podemos	encontrar	na	obra	de</p><p>Homero,	em	que	os	heróis	cultivavam	a	coragem</p><p>como	valor	máximo.</p><p>Estoico</p><p>Vem	de</p><p>estoicismo,</p><p>corrente da</p><p>filosofia	grega,</p><p>pela	qual	o	homem</p><p>deveria	ser	forte</p><p>e	impoluto	ante</p><p>as	dores,	numa</p><p>postura	heroica	e</p><p>altiva.</p><p>106 UNIUBE</p><p>Enfim,	você	já	deve	ter	vivenciado	situações	em	que	teve	de	ser	forte	e</p><p>aguentar	as	tristezas	e	azares	da	vida.	Pois	bem,	Reis	transformou	tal</p><p>atitude	em	ato	poético.</p><p>Vamos	continuar	nossa	viagem	pela	poesia	desse	escritor	neo	clássico?</p><p>Continuemos.</p><p>O	neopaganismo	de	Reis	caracteriza	-se	pela	postura	de	um	poeta</p><p>da	modernidade	 que,	 descrente	 e	 desencantado	 com	 seu	 tempo,</p><p>volta	-se	para	o	passado,	em	um	gesto	de	isolamento	de	cunho	crítico	e</p><p>subversivo.	Ao	voltar	-se	para	os	deuses,	Reis	critica	o	cristianismo,	bem</p><p>como	toda	a	civilização	cristã	decadente,	corrompida	pelo	capitalismo	e</p><p>pelo	consumismo	desumanizado.</p><p>Paralelo	ao	neopaganimo,	o	culto	à	realidade	imediata	e	à	natureza	também</p><p>são	vertentes	de	grande	importância	na	poesia	desse	heterônimo:	“A</p><p>natureza	é	só	uma	superfície/	Na	sua	superfície	ela	é	profunda”.	(PESSOA,</p><p>1998,	p.	430.)</p><p>Dessa	forma,	o	homem	deve	voltar	-se	para	as	coisas	visíveis	e	cultivá-las.</p><p>Com	efeito,	o	objeto	é	privilegiado	em	detrimento	da	subjetividade.</p><p>Conforme	Cardoso	Gomes,	em	Reis,	“o	homem	precisa	aprender	a	ver</p><p>as	coisas	em	sua	complexa	simplicidade”.	(1987,	p.	30.)</p><p>Essa	busca	da	realidade	imediata	desvela	-se	como	um	respeito	aos</p><p>deuses.	Se	as	divindades	não	deram	ao	homem	a	capacidade	de</p><p>ver	além	do	concreto,	temos	de	nos	resignar	e	aceitar	o	mundo	tal</p><p>como	ele	é.	Querer	ir	além,	numa	sede	de	transcendência,	seria	um</p><p>desrespeito	aos	deuses:	“A	noção	de	limite	se	oferece	porque	o	pagão</p><p>fia	-se	no	que	está	acessível	e	próximo,	pois	crer	no	vago,	ou	naquilo</p><p>que	não	se	vê,	implica	abraçar	um	dado	produzido	pela	imaginação	—</p><p>consequentemente,	privilegiar	o	sujeito	sobre	o	objeto,	a	realidade	interior</p><p>sobre	a	exterior”.	(GOMES,	1987,	p.	31.)</p><p>UNIUBE 107</p><p>Com	efeito,	Reis	privilegia	a	natureza	por	ela	ser	plural	como	os	deuses:</p><p>“Esta	realidade	os	Deuses	deram/	E	para	bem	real	a	deram	externa”.</p><p>(PESSOA,	1998,	p.	330.)	A	variedade	do	mundo	natural,	com	suas</p><p>nuanças	múltiplas,	corresponde	à	variedade	dos	deuses.	Temos	inúmeras</p><p>deidades,	porque	o	cosmos	também	é	rico	de	matizes.</p><p>Difícil,	em	nossa	sociedade,	encontrar	um	pagão.	Você	já	ouviu	falar	de</p><p>alguém	que	cultua	os	deuses	gregos	em	nossos	dias?	Reis,	assim,	erigiu</p><p>uma	religiosidade	muito	singular	e	especial.	Por	isso	teve	uma	visão	de</p><p>mundo	também	muito	peculiar	e,	por	isso,	rica	de	sentidos	novos	para	o</p><p>homem	de	nossa	era.</p><p>Por	conseguinte,	dessa	visão	pagã	da	natureza	nasce	uma	concepção</p><p>mecanicista	do	universo.	Também	tal	legado	vem	da	cultura	dos	gregos,</p><p>para	os	quais	o	universo	era	um	“conjunto	de	seres	que	não	tendem	a	um</p><p>fim,	mas	que	são	inteiramente	movidos	por	uma	causalidade	mecânica”.</p><p>(LALANDE,	1967,	p.	674.)</p><p>Com	efeito,	o	universo	se	revela	para	Reis	como	um	jogo	cíclico,	tal</p><p>como	as	estações	do	ano	que	sempre	passam,	mas	também	sempre</p><p>retornam.	Na	natureza,	portanto,	“tudo	se	repete	sempre	de	modo</p><p>idêntico”.	(GOMES,	1987,	p.	32.)</p><p>Podemos	perceber	isso	nos	seguintes	versos	de	Reis:	“No	ciclo	eterno</p><p>das	mudáveis	coisas/	Novo	inverno	após	novo	outono	volve/	À	diferente</p><p>terra/	Com	a	mesma	maneira”.	(PESSOA,	1998,	p.	364.)</p><p>Entretanto,	apesar	da	renovação	do	cosmos,	tudo	é	regido	por	um</p><p>destino	fatalista.	Os	homens,	a	natureza,	até	mesmo	os	deuses,	estão</p><p>acorrentados	ao	fado,	à	inexorável	consumição	e	efemeridade	de	tudo</p><p>o	que	existe.</p><p>108 UNIUBE</p><p>É	emblemático,	nessa	visão,	a	figura	mítica	de	Cronos	a	comer	os	próprios</p><p>filhos.	Para	os	gregos	antigos,	Cronos,	deus	do	tempo,	alimentou	-se	dos</p><p>próprios	filhos	para	garantir	sua	hegemonia	e	poder.</p><p>Como	sabemos,	esse	medo	da	finitude,	da	morte	e,	portanto,	do	passar</p><p>do	tempo	é	típico	do	homem.	Quem	nunca	foi	sacudido	por	um	tremor	ao</p><p>pensar	em	tais	questões?	A	lucidez	do	poeta	faz	dessas	preocupações</p><p>um	fundamento	de	sua	poesia.</p><p>Com	efeito,	somos,	de	acordo	com	Reis,	todos	filhos	de	Cronos	e,</p><p>por	conseguinte,	é	nosso	destino	ser	consumido	por	sua	voracidade:</p><p>“Não	se	resiste/	Ao	deus	atroz/	Que	os	próprios	filhos/	Devora	sempre”.</p><p>(PESSOA,	1998,	p.310.)	Com	efeito,	essa	“é	a	melhor	imagem	de	um</p><p>Universo,	onde	todos	os	seres	se	submetem	ao	Destino	cíclico	das</p><p>coisas,	onde	as	individualidades	se	anulam	em	prol	de	forças	maiores</p><p>e	desconhecidas,	onde	o	poeta	não	passa	de	um	hábil	artesão,	a</p><p>manipular,	de	modo	diverso,	ideias	alheias”.	(GOMES,	1987,	p.	32.)</p><p>É	importante	salientar	que,	nessa	visão	cósmica,	também	os	deuses</p><p>perecem,	numa	visão	fatalista	na	qual	o	homem	se	vê	em	total	abandono.</p><p>Fantoche,	mero	marionete,	o	ser	humano,	perecível	em	sua	condição</p><p>mortal,	está	à	mercê	dos	caprichos	dos	deuses,	que,	por	sua	vez,</p><p>tal	como	o	homem,	também	são	mortais.	Com	efeito,	o	homem	está</p><p>completamente	desprotegido,	não	apenas	por	estar	sob	o	domínio	dos</p><p>caprichos	divinos,	mas	por	ser	guiado	por	seres	arbitrários	e	mortais,</p><p>frágeis	como	o	próprio	humano.</p><p>A	morte,	assim,	irrompe	como	a	terrível	sentença	a	ceifar	a	vida,	em	um</p><p>sorvedouro	do	qual	ninguém	escapa:	“a	vida/	Passa	e	não	fica,	nada</p><p>deixa	e	nunca	regressa”.	(PESSOA,	1998.)	Nesse	movimento,	nos</p><p>tornamos	o	próprio	nada.	O	existir	humano,	assim,	é	um	mero	rastro,</p><p>leve,	sutil,	que,	ao	ser	impresso	na	areia,	logo	se	esvai,	como	algo	que</p><p>nunca	existiu.	Daí	surge	a	imagem	terrível	da	vida,	criada	por	Reis,	como</p><p>um	“eco	que	o	oco	coa”.	(PESSOA,	1998.)</p><p>UNIUBE 109</p><p>Por	sua	vez,	a	sucessão	do	 tempo	não	permite	a	unidade	do	ser.</p><p>Esse,	como	já	vimos,	é	o	drama	central	de	toda	a	obra	pessoana:	a</p><p>fragmentação	do	eu,	a	dispersão	da	identidade	oca,	caduca,	em	vários</p><p>eus.	Se	nunca	nos	 repetimos	ao	 longo	do	 tempo,	 se	sempre	nos</p><p>modificamos	a	cada	etapa	da	vida,	por	conseguinte	nunca	temos	acesso</p><p>ao	que	somos.	Assim,	a	morte	não	se	faz	como	um	fim,	um	limite	a	ser</p><p>conquistado,	mas	como	uma	realidade	sempre</p><p>presente,	uma	companhia</p><p>a	nos	aniquilar	a	cada	passagem	dos	segundos.	Para	configurar	essa</p><p>visão	de	mundo,	Reis	recorre	à	imagem	do	rio:	“vem	sentar	comigo,	Lídia,</p><p>à	beira	do	rio,/	Sossegadamente	fitemos	o	seu	curso	e	aprendamos”.</p><p>(PESSOA,	1998,	p.	315.)</p><p>Bem,	 isso	 tudo	 com	 certeza	 nos	 faz	 sofrer.</p><p>Leyla	Perrone	-Moisés	alega	-nos,	porém,	que,	a</p><p>despeito	de	toda	a	dor	das	verdades	pessoanas,</p><p>elas	são	compensadas	pelo	jogo	de	espelho	de</p><p>suas	máscaras.	Há	sempre	por	detrás	de	tudo</p><p>certo	ar	de	ator	pirotécnico,	apto	a	nos	encantar</p><p>com	suas	múltiplas	personificações.</p><p>Nem	tudo	também	é	insólito	nessa	poética.	Há	no</p><p>fundo	desse	poço,	desse	pessimismo,	alguns	lenitivos.</p><p>Isso,	com	certeza,	trará	alívio	ao	seu	coração.</p><p>Vamos	ver	quais	são	as	alternativas	a	essa	visão</p><p>crua	do	existir?</p><p>Para	 não	 cair	 em	 um	 niilismo total,	 o	 que</p><p>corresponderia	 a	 um	 gesto	 pessimista	 sem</p><p>remissão,	o	poeta	encontra	algumas	saídas	para</p><p>essa	situação	existencial	sem	saídas.	Reis	irá</p><p>eleger	o	gozo,	os	prazeres	da	vida,	da	boa	mesa,</p><p>a	arte	da	delicadeza,	como	forma	de	compensar</p><p>esse	destino	fatalista.	Ante	essa	visão	epicurista</p><p>Niilismo</p><p>É	a	quebra	de	toda</p><p>ordem,	de	todos</p><p>os	valores	de	um</p><p>tempo,	de	uma</p><p>sociedade.	Nesse</p><p>aspecto, longe de</p><p>ser	constitutiva,</p><p>tal	perspectiva</p><p>é	altamente</p><p>pessimista,	não</p><p>vê	saída	para	os</p><p>diversos	problemas</p><p>do	mundo.	Daí	o</p><p>caráter	corrosivo	do</p><p>niilismo.</p><p>Epicurismo</p><p>É	a	corrente</p><p>filosófica	grega,	na</p><p>qual	os	prazeres</p><p>têm	importante</p><p>papel.	De	acordo</p><p>com	os	epicuristas,</p><p>a	morte	não	nos</p><p>permite	a	perda	de</p><p>tempo.	Por	isso,</p><p>temos	de	desfrutar	a</p><p>beleza	e	o	gozo	da</p><p>vida	com	a	urgência</p><p>de	um	carpe diem</p><p>(expressão	latina</p><p>que	significa</p><p>“viver	o	momento</p><p>presente”).</p><p>110 UNIUBE</p><p>da	vida,	o	heterônimo	também	adota	uma	postura	estoica,	ou	seja,	uma</p><p>indiferença	em	relação	à	dor,	uma	firmeza	de	espírito	a	se	antepor	aos</p><p>desacertos	do	viver.</p><p>Entretanto	o	poeta	não	se	entrega	aos	prazeres	desregrados,	mas,</p><p>seguindo	as	ponderações	dos	gregos	antigos,	sorve	o	prazer	com</p><p>comedimento,	resgatando	pequenos	e	delicados	gestos	como	o	de	colher</p><p>flores	ou	de	repousar	à	beira	do	rio.	Daí	nascem	poemas,	como	esse,	em</p><p>que	o	momento	se	dá	com	um	carpe diem:	“feliz	o	a	quem,	por	ter	em</p><p>coisas	mínimas/	Seu	prazer	posto,	nenhum	dia	nega/	A	natural	ventura”.</p><p>(PESSOA,	1998,	p.	416.)</p><p>Agora	que	observamos	as	principais	linhas	de	força	da	poesia	de	Reis,</p><p>vamos	ler	um	poema	desse	heterônimo?</p><p>Eis	o	texto:</p><p>Segue	o	teu	destino,</p><p>Rega	as	tuas	plantas,</p><p>Ama	as	tuas	rosas.</p><p>O	resto	é	sombra</p><p>De	árvores	alheias.</p><p>A realidade</p><p>Sempre	é	mais	ou	menos</p><p>Do	que	nós	queremos.</p><p>Só	nós	somos	sempre</p><p>Iguais	a	nós	próprios.</p><p>Suave	é	viver	só.</p><p>Grande	e	nobre	é	sempre</p><p>Viver	simplesmente</p><p>Deixa	a	dor	nas	aras</p><p>Como	ex	-voto	aos	deuses.</p><p>UNIUBE 111</p><p>Vê	de	longe	a	vida.</p><p>Nunca	a	interrogues.</p><p>Ela	nada	pode</p><p>Dizer	-te.	A	resposta</p><p>Está	além	dos	deuses.</p><p>Mas	serenamente</p><p>Imita	o	Olimpo</p><p>no	teu	coração.</p><p>Os	deuses	são	deuses</p><p>Porque	não	se	pensam.</p><p>(PESSOA,	Fernando,	1998,	p.	270.)</p><p>Esse	poema	lapidar,	de	construção	bem	elaborada,	centra	-se	em	um</p><p>ritmo	sincopado,	pautado	pela	redondilha	menor,	ou	seja,	em	versos	de</p><p>cinco	sílabas	poéticas.	Já	aqui	podemos	observar	a	diferença	de	Reis</p><p>em	relação	a	Caeiro.	Este	último	tinha	um	ritmo	mais	frouxo,	expresso</p><p>por	uma	métrica	irregular.</p><p>A	primeira	estrofe	inicia	-se	com	verbos	no	imperativo.	Aqui	podemos</p><p>vislumbrar	aquele	caráter	pedagógico,	ético,	no	qual	se	inspira	Reis.</p><p>Os	três	primeiros	versos	são,	portanto,	paralelísticos	e	formam,	por	sua</p><p>vez,	uma	enumeração	cadenciada	de	ações	no	imperativo:	Segue,	Rega,</p><p>Ama.	De	atos	concretos,	atingimos	um	sentimento,	o	amor,	no	caso,	afeto</p><p>doado	às	coisas	simples	da	existência:	as	rosas.</p><p>Nos	dois	últimos	versos	da	primeira	estrofe,	temos	uma	metáfora	a</p><p>representar	o	destino	trágico	do	homem:	a	sombra	das	árvores	é	a</p><p>sombra	da	morte,	da	passagem	do	tempo,	da	escuridão	que	circunda	a</p><p>luminosidade	diáfana	da	vida.</p><p>112 UNIUBE</p><p>Esses	dois	últimos	versos,	portanto,	iluminam	o	significado	dos	anteriores.</p><p>Poderíamos	traduzir	essa	estrofe,	em	linguagem	corrente,	denotativa,	da</p><p>seguinte	maneira:	usufrua	da	vida,	pois	somos	mortais.</p><p>Você	consegue	identificar,	nas	escolas	literárias	já	estudadas	ao	longo	do</p><p>seu	curso,	a	recorrência	dessa	temática?	Pois	bem,	você	se	lembra	do</p><p>famoso	carpe diem	dos	árcades?	Aqui	temos	esse	mesmo	efeito	do	carpe</p><p>diem:	gozar	a	vida	com	avidez,	justamente	por	sermos	finitos	e	mortais.</p><p>Vejam	que	aqui	podemos	perceber	a	atitude	estoica	de	seguir	o	caminho</p><p>apesar	das	sombras.	Também	podemos	notar	a	busca	do	prazer,	de</p><p>fundo	epicurista,	quando	eu	lírico	incita	o	ato	de	colher	rosas.	São	ações,</p><p>gestos	singelos	ante	o	terror	da	morte.</p><p>A	estrofe	seguinte	principia	-se	com	dois	versos	magnânimos,	de	uma</p><p>verdade	contundente:	“A	realidade/	Sempre	é	mais	ou	menos/	Do	que</p><p>nós	queremos”.	Tais	versos	desvelam	a	condição	contraditória	do	homem</p><p>que,	por	estar	vivo,	é	sempre	movido	pelo	desejo,	pela	vontade.	Todavia</p><p>nunca	encontramos	repouso,	pois	a	realidade	nos	dá	mais	ou	menos	do</p><p>que	o	ideal.</p><p>Os	versos	que	encerram	essa	estrofe	(Só	nós	somos</p><p>sempre/	iguais	a	nós	próprios”)	proporcionam	-nos	a</p><p>visão	de	nosso	ser	íntegro,	aquele	que	permanece,</p><p>a	despeito	das	mudanças,	inalterável,	perfeito	em</p><p>sua	estaticidade.	Seria	uma	 feição	ontológica,</p><p>atávica,	o	nosso	eu	profundo,	íntegro,	além	de	toda</p><p>oscilação	do	tempo	e	da	vida.</p><p>Veja	 que,	 apesar	 de	 toda	 a	 transmutação	 de</p><p>personali	dades	em	Pessoa,	há	nele	e	em	seus</p><p>heterônimos	um	desejo	de	imutabilidade,	de	raiz</p><p>platônica	e	cristã.	Todavia	o	seu	projeto	literário	vai	contra	tal	preceito.	Temos</p><p>aqui	mais	uma	das	inúmeras	contradições	de	seu	pensamento	lírico.</p><p>Ontológico</p><p>É	aquilo	que	faz</p><p>parte de nossa</p><p>essência, de nosso</p><p>ser	verdadeiro,</p><p>portanto,</p><p>corresponde à parte</p><p>de	nossa	alma</p><p>imutável,	inalterável.</p><p>Atávico</p><p>É	o	que	herdamos,</p><p>por	toda	a	vida,	em</p><p>nosso	nascimento;</p><p>são	as	marcas	de</p><p>nossos ancestrais</p><p>mais	antigos.</p><p>UNIUBE 113</p><p>E	não	poderia	ser	diferente,	você	não	concorda?	Afinal,	um	pensamento</p><p>tão	complexo,	tão	cheio	de	reflexões	contundentes,	não	poderia	deixar</p><p>de	ser	contraditório.</p><p>A	terceira	estrofe	está	carregada	de	verdades,	de	receitas,	para	o	bem</p><p>viver.	Assim,	a	solidão	desponta	como	um	oásis,	um	reduto	de	conforto.</p><p>Isso	demonstra	a	busca	daquele	viver	ameno,	comedido,	pregado	pelos</p><p>gregos.	Dessa	forma,	a	solidão	irrompe	como	um	remédio,	uma	saída,</p><p>ante	os	vendavais	do	amor	e	da	paixão.	Estar	só	é,	portanto,	encontrar</p><p>o	sossego	distante	das	angústias	em	face	do	contato	social.</p><p>Você	mesmo	já	deve	ter	sentido	a	imensa	vontade	de	estar	só,	de	ficar</p><p>apenas	com	os	próprios	pensamentos.	O	poeta,	mais	uma	vez,	faz	dessa</p><p>vontade	tão	natural	um	tema	de	seu	lirismo	meditativo.</p><p>Por	isso	o	viver	simples	torna	-se	vida	compulsória.	Ao	deixar	-se	viver,	a</p><p>vida	nos	guia.	Assim	deixamos	de	ordená	-la.	Tal	experiência	é	expressa</p><p>em	nosso	dia	a	dia	pelo	seguinte	clichê:	“vou	deixar	a	vida	me	levar”.</p><p>Com	isso,	nos	furtamos	da	responsabilidade	de	guiar	o	nosso	fado,</p><p>somos	direcionados	pelo	fluxo	da	existência.</p><p>De	certa	forma,	ao	tirarmos	de	nós	o	império	de	nosso	destino,	furtamo-</p><p>-nos	 da	 responsabilidade	 do	que	nos	 acontece.	 Isso	 se	 torna	 um</p><p>lenitivo,	uma	paz	ante	as	dores:	elas	não	nascem	de	nossos	gestos,</p><p>mas	da	fatalidade	de	uma	vontade	superior,	desígnio	de	um	destino</p><p>incompreensível.</p><p>Dessa	verdade,	surgem	os	versos	finais	dessa	estrofe:	“Deixa	a	dor	nas</p><p>aras/	Como	ex	-voto	aos	deuses”.	A	dor	assim	fica	ara	(cruz,	o	que	denota</p><p>uma	crítica	ao	cristianismo,	doutrina	afeita	à	dor),	como	um	ex	-voto,	como</p><p>um	voto	que	não	se	faz	mais	aos	deuses.	Aqui	há	uma	crítica	mordaz</p><p>de	Reis	à	noção	de	dor	como	submissão	a	uma	divindade,	como	uma</p><p>oferenda	a	Deus.</p><p>114 UNIUBE</p><p>A	penúltima	estrofe	é	típica	do	pensamento	de	Reis.	Ela	expressa	um</p><p>distanciamento	da	vida,	como	se	viver	verdadeiramente	seria	estar	à</p><p>margem,	na	plateia,	e	não	no	palco.</p><p>Por	fim,	na	ultima	estrofe,	podemos	notar</p><p>novamente	aquele	espírito</p><p>estoico	a	suportar	as	dores.	É	preciso	aparentar	-se	com	os	deuses,	ser</p><p>digno	como	eles,	para	suportar	os	entraves	da	vida:	“Mas	serenamente/</p><p>Imita	o	Olimpo/	no	teu	coração”.</p><p>Desse	feito	surge	a	vingança	contra	os	deuses.	Por	sermos	mortais,</p><p>somos	pensantes,	temos	o	dom	de	existir.	Os	deuses	estão	em	um	nível</p><p>de	abstração,	acima	dos	desacertos	e	desastres	e,	por	isso,	não	vivem</p><p>genuinamente.</p><p>Espero	que	você	tenha	gostado	do	poema.	Nossa	viagem	é	longa,	ainda</p><p>temos	mais	ficções	para	apreciarmos.	Agora	que	a	gente	conhece	mais</p><p>um	heterônimo,	vamos	para	o	próximo?</p><p>Álvaro de Campos: o poeta cosmopolita da vida moderna2.6</p><p>Álvaro	de	Campos	é	a	mais	moderna	de	todas	as	ficções	de	Pessoa.</p><p>Suas	odes	cantam	a	perplexidade	ante	um	mundo	marcado	por	um</p><p>tempo	ultraveloz,	por	um	ritmo	estrondoso,	pontuado	pelo	frenesi	das</p><p>máquinas,	dos	carros	e	das	fábricas.</p><p>Álvaro	de	Campos	nasceu	em	1890	e	faleceu	em	1935.	Foi	engenheiro.</p><p>Sobre	ele	afirma	o	próprio	Fernando	Pessoa:	“Nasceu	em	Tavira,	teve	uma</p><p>educação	vulgar	de	Liceu;	depois	foi	mandado	para	a	Escócia	estudar</p><p>engenharia,	primeiro	mecânica	e	depois	naval.	Numas	férias	fez	a	viagem</p><p>ao	Oriente	de	onde	resultou	o	Opiário.	Agora	está	aqui	em	Lisboa	em</p><p>inactividade”.</p><p>SAIBA	MAIS</p><p>UNIUBE 115</p><p>Sua	escrita	é	movida	por	dois	ritmos	em	oposição,	em	tensão:	um</p><p>exaltado,	elétrico,	de	tom	arrogante	e	soberano,	e	outro	magoado,</p><p>melancólico,	expresso	pelo	tédio	da	vida	nas	cidades.</p><p>Sua	dicção	é	solta,	derramada.	Nela	imperam	a	fala	coloquial	e	o	verso	livre,</p><p>polimétrico,	desigual	como	o	desenho	do	sismógrafo.	Ao	escrever,	Campos</p><p>grita,	gesticula,	brada,	imitando,	em	muitas	passagens,	a	estridência	das</p><p>máquinas.</p><p>Você	agora	poderá	perceber	a	distância	imensa	entre	Caeiro	e	Campos.</p><p>O	primeiro	está	ligado	à	natureza	e	o	segundo,	ao	mundo	artificial.	Veja</p><p>o	quanto	o	poeta	Pessoa	soube	se	desmembrar,	em	perfeição,	em	seres</p><p>tão	distintos.	Isso	nos	revela,	mais	uma	vez,	a	grande	inteligência	poética</p><p>desse	lisboeta.</p><p>Surge	em	sua	obra	um	novo	conceito	de	belo,	aquele	insuspeito	até</p><p>então:	o	encanto	das	ruas	sujas,	das	fábricas,	dos	carros	barulhentos,</p><p>do	frenesi	dos	cafés	e	tabacarias.</p><p>Essa	nova	beleza	tangencia	em	vários	momentos	o	grotesco	e	o	feio.	O</p><p>que	não	é	belo	é	alçado	à	categoria	do	sublime,	desvelando	-nos	uma</p><p>sedução	oculta,	secreta.	Essa	nova	concepção	da	beleza	está	associada</p><p>às	poéticas	da	modernidade	que,	desde	Baudelaire,	apregoavam	a	busca</p><p>de	um	novo	conceito	estético.</p><p>Podemos	notar	tal	efeito	no	seguinte	poema:</p><p>À	dolorosa	luz	das	grandes	lâmpadas	da	fábrica</p><p>Tenho	febre	e	escrevo,</p><p>Escrevo	rangendo	os	dentes	para	a	beleza	disto,</p><p>Para	a	beleza	disso	totalmente	desconhecida	dos</p><p>antigos.</p><p>(PESSOA,	Fernando,	1998,	p.	311.)</p><p>116 UNIUBE</p><p>Já	não	temos	mais	aqui	o	espaço	harmônico	da	natureza.	A	vida	sublime,</p><p>campesina,	foi	substituída	pelo	ambiente	grotesco,	claustrofóbico	da	fábrica.</p><p>Nesse	espaço	não	mais	iluminado	pelo	sol,	mas	pela	luz	elétrica,	o	escritor</p><p>compõe	o	seu	poema	forjando	-o	no	ritmo	das	máquinas,	no	som	dissonante</p><p>das	engrenagens,	no	ruído	estridente	do	ranger	dos	dentes.</p><p>Outro	espaço	de	destaque	é	o	da	metrópole,	da	cidade	industrializada</p><p>e	moderna.	Como	um	estrangeiro,	o	poeta	percorre	as	ruas	em	busca</p><p>de	aventuras,	numa	solidão	pungente,	cortante,	ébrio	de	experiências</p><p>insólitas	que	possam	libertá	-lo	do	tédio.	Conforme	Gomes:	o	poeta	“é	o</p><p>homem	tomado	por	excessos,	pela	demoníaca	loucura,	cujo	espasmo</p><p>louco	é	fruto	da	imagem	que	se	tem	do	poeta	nos	tempos	modernos”.</p><p>(GOMES,	1987,	p.	56.)</p><p>Campos,	atento	à	era	de	reificação	que	se	insurgia,	rastreia	na	voz	dos</p><p>futuristas	uma	metáfora	recorrente	da	desumanidade	de	nossos	tempos:</p><p>o	homem	-máquina.	O	poeta	se	metamorfoseia</p><p>em	um	motor,	em	um	carro,	tornando	-se	um	ser</p><p>despido	de	toda	aura	sublime	e	sagrada:	“Ah,	poder</p><p>exprimir	-me	todo	como	um	motor	se	exprime!/	Ser</p><p>completo	como	uma	máquina!/	Poder	ir	na	vida</p><p>triunfante	como	um	automóvel	último	modelo!”.</p><p>Conforme	Álvaro	Cardoso	Gomes:	“o	poeta	metamorfoseia	-se	numa	máquina,</p><p>isso	porque	a	máquina,	deusa	dos	tempos	modernos,	caracteriza-se	pela</p><p>impiedade	do	‘Útil’	e	do	‘Progressivo’,	ela	é	feita	para	fazer	manufaturados</p><p>impessoalmente,	de	um	modo	rápido	e	preciso”.	(1987,	p.	56).	Assim,	a</p><p>máquina	desvela	o	nosso	tempo	de	indigência	e	miséria	humana,	em	que	o</p><p>objeto	passa	a	ter	mais	valor	que	o	próprio	homem.</p><p>Por	conseguinte,	o	poeta	compõe	poemas	como	uma	máquina.	Isso</p><p>dessacraliza	a	noção	de	vate	inspirado,	tomado	pelo	furor	de	uma</p><p>inspiração.	O	poema	nasce	com	um	produto.</p><p>Reificação</p><p>Deriva	da	expressão</p><p>latina	res,	rei	=</p><p>coisa.	Homem</p><p>tornado coisa,</p><p>objeto.	É	sinônimo</p><p>de	desumanização.</p><p>UNIUBE 117</p><p>Por	sua	vez,	a	sonoridade	poética	é	totalmente	prosaica.	Não	temos	aqui</p><p>a	limpidez	dos	versos	de	Ricardo	Reis,	textos	lapidados	e	engendrados</p><p>para	serem	harmônicos,	perfeitos	como	um	sistema	solar.	Pelo	contrário,</p><p>a	poesia	de	Campos	é	um	ranger,	um	atrito	de	ferros,	uma	sirene	em</p><p>altos	brados.	O	ritmo	da	poesia	imita	o	estertor	frenético	das	ruas,	dos</p><p>carros,	das	fábricas:	“tenho	os	lábios	secos,	ó	grandes	ruídos	modernos,/</p><p>De	vos	ouvir	demasiadamente	de	perto”.	(PESSOA,	1998,	p.	315.)</p><p>Em	outros	momentos,	porém,	insurge	um	ritmo	novo,	lento,	movido	pela</p><p>melancolia	e	pela	dor.	Nesses	raros	instantes,	o	poema	adquire	um	ritmo</p><p>fluido,	doce,	como	se	as	palavras	intentassem	espelhar	o	íntimo	desse</p><p>sofrimento.	A	dicção	lenta	“é	o	resultado	não	só	do	verso	longo,	mas</p><p>também	da	entonação	que	se	requer	esticada,	demorada,	preenchendo</p><p>um	espaço	que	vai	do	presente	ao	passado”.	(GOMES,	1987,	p.	57.)</p><p>Podemos	notar	tal	efeito	nos	seguintes	versos:	“gostaria	de	ter	outra	vez</p><p>ao	pé	da	minha	vista	só	veleiros	e	barcos	de	madeira./	De	não	saber</p><p>doutra	vida,	marítima	que	a	antiga	vida	dos	mares!/	Porque	os	mares</p><p>antigos	são	a	Distância	Absoluta”.	(PESSOA,	1998,	p.	325.)</p><p>Essa	melancolia	recrudesce,	quando	o	poeta	se	vê,	no	mundo,	como	um</p><p>pária,	um	exilado,	um	ser	inadaptado	ao	mundo.	Se	no	capitalismo	são</p><p>valorizadas	as	mercadorias,	a	poesia	deixa	de	ser	um	objeto	de	consumo</p><p>e,	lentamente,	vai	se	tornando	uma	atividade	para	excluídos,	para	seres</p><p>especiais	que,	ao	perceberem	o	horror	de	nossa	civilização,	assumem</p><p>a	postura	heroica	de	profetas,	de	guerreiros,	criando	um	mundo	à	parte,</p><p>isolado	da	balbúrdia	do	mundo.</p><p>Todavia,	longe	de	ser	uma	atitude	alienada,	esse	ato	torna	-se	subversivo,</p><p>pois	é	um	verdadeiro	não	à	massificação	e	à	reificação.</p><p>O	poeta,	portanto,	vive	esse	ostracismo.	A	ele	cabe	apenas	a	náusea	da</p><p>vida:	“O	tique	-taque	estalado	das	máquinas	de	escrever./	Que	náusea	da</p><p>vida!/	Que	abjeção	essa	regularidade!”	(PESSOA,	1998,	p.	302.)</p><p>118 UNIUBE</p><p>Você,	em	diversos	momentos,	deve	ter	vivenciado	o	mal	-estar	de	nosso</p><p>tempo.	Quem	nunca	se	sentiu	em	desprestígio,	em	um	mundo	em	que	a</p><p>matéria	e	o	dinheiro	são	os	valores	absolutos?	É	sobre	tal	questão	que</p><p>o	poeta	trabalha,	legando	-nos	seus	textos	repletos	de	lucidez	e	vida.</p><p>Entretanto	esse	asco	pela	civilização	é	acompanhado,</p><p>contraditoriamente,	 por	 um	 fascínio,	 como	 se</p><p>da	 podridão	 de	 um	 mundo	 em	 crise,	 perdido,</p><p>irrompesse	uma	epifania	de	salvação,	de	alento.</p><p>A	sujeira	e	a	sordidez	das	máquinas,	das	cidades,</p><p>também	carregam	um	lastro	de	encanto,	dissonante,</p><p>a	povoar	e	renovar	a	tradição	lírica.</p><p>O	poeta,	nesse	contexto,	se	torna	um	solitário.	Não</p><p>encontra	 interlocutores	 para	 a	 sua	mensagem.</p><p>Sente	-se	plenamente	só,	abandonado	pelas	musas,</p><p>por	Deus,	pelo	amor	e	pela	sociedade.</p><p>Desse	efeito	nasce	a	sensação	de	vazio	existencial.	Esse	vazio,	conforme</p><p>acontece	com	Reis,	leva	o	poeta	a	se	multiplicar	em	vários	eus.	O	eu	do</p><p>poeta	vai	se	tornando	uma	ficção.</p><p>É	importante	notar	que	não	é	apenas	Pessoa,	homem	empírico,	que</p><p>se	desmembrou	em	vários	eus	fictícios.	Suas	criações	também	se</p><p>alastraram	em	um	jogo	de	espelhos	infinito,	no	qual	a	essência	de	uma</p><p>individualidade	se	perdeu.	Sobre	tal	feito,	afirma	-nos	Álvaro	Cardoso</p><p>Gomes:	“Um	jogo	de	espelhos	é</p><p>que	a	poesia	de	Álvaro	de	Campos	nos</p><p>oferece:	ele	que	é	sonhado	por	alguém	fora	dele,	de	repente,	põe	-se	a</p><p>sonhar	e	inventa	a	criatura	alucinada	que	fala”.	(1987,	p.	63.)</p><p>Eis	um	poema	em	que	podemos	vislumbrar	esse	processo:	“Multipliquei-me,</p><p>para	me	sentir,/	Para	me	sentir,	precisarei	sentir	tudo,/	Transbordei,	não</p><p>fiz	senão	extravasar	-me”	(PESSOA,	1998,	p.	350.)	O	poeta	se	multiplica</p><p>para	sentir	o	mundo	e	a	si	mesmo.	Porém,	nessa	busca,	ele	só	encontra</p><p>o	eco	de	um	vazio	inescrutável.</p><p>Epifania</p><p>É	a	revelação</p><p>do	sagrado.	Na</p><p>literatura,	tal	termo</p><p>se	torna	metáfora.</p><p>Representa	os</p><p>momentos	de</p><p>vivência	profunda,</p><p>de	iluminação.</p><p>Podemos	encontrar</p><p>inúmeras	epifanias</p><p>na	obra	de	Clarice</p><p>Lispector.	Suas</p><p>personagens	vivem</p><p>instantes	febris,	nos</p><p>quais	o	mundo	e</p><p>o	eu	se	desvelam</p><p>em	profundidade	e</p><p>complexidade.</p><p>UNIUBE 119</p><p>Agora	que	já	conhecemos	um	pouquinho	da	obra	de	Álvaro	de	Campos,</p><p>vamos	ler	um	poema	desse	heterônimo?</p><p>Leiamos	o	poema	“Ah,	um	soneto”	para	verificarmos	o	quanto	esse</p><p>heterônimo	também	sabe	usar,	com	exímio	trato,	as	formas	clássicas</p><p>como	o	soneto.</p><p>Ah, um soneto</p><p>Meu	coração	é	um	almirante	louco</p><p>que	abandonou	a	profissão	do	mar</p><p>e	que	a	vai	relembrando	pouco	a	pouco</p><p>em	casa	a	passear,	a	passear...</p><p>No	movimento	(eu	mesmo	me	desloco</p><p>nesta	cadeira,	só	de	o	imaginar)</p><p>o	mar	abandonado	fica	em	foco</p><p>nos	músculos	cansados	de	parar.</p><p>Há	saudades	nas	pernas	e	nos	braços.</p><p>Há	saudades	no	cérebro	por	fora.</p><p>Há	grandes	raivas	feitas	de	cansaços.</p><p>Mas	—	esta	é	boa	—	era	do	coração</p><p>que	eu	falava...	e	onde	diabo	estou	eu	agora</p><p>com	almirante	em	vez	de	sensação?...</p><p>(PESSOA,	Fernando,	2010.)</p><p>Trata	-se	de	um	soneto	clássico,	modulado	por	versos	decassílabos	(de</p><p>dez	sílabas	poéticas).</p><p>Na	primeira	estrofe,	a	metonímia	“coração”	insere	-nos	no	âmbito	dos</p><p>sentimentos	do	eu	lírico.	Como	veremos,	esse	é	um	soneto	em	que	o</p><p>sentimento	e	a	saudade	ditam	o	tom	confessional,	memorialístico.</p><p>120 UNIUBE</p><p>Como	na	metáfora,	na	metonímia	um	termo	substitui	outro,	guardando	com</p><p>esse	termo	oculto	uma	relação	de	contiguidade:	a	parte	pelo	todo,	o	lugar</p><p>pelo	ser,	a	cor	pelo	objeto	etc.	Exemplo:	“Suas	mãos	escreveram	um	poema</p><p>com	maestria”.	Veja,	as	mãos	(a	parte)	substituem	o	poeta	(o	todo).</p><p>RELEMBRANDO</p><p>Quando	iniciamos	este	estudo,	você	deve	estar	lembrado	do	quanto</p><p>a	 saudade	 representa	 um	 sentimento	 de	 amplos	 valores	 para	 os</p><p>portugueses.	Vamos	ver	os	sentidos	que	tal	sentimento	adquire	nesse</p><p>poema?</p><p>A	metonímia	 “coração”	 logo	se	 transforma	em	uma	metáfora:	 “um</p><p>almirante	louco”.	Veja	que,	ao	personalizar	o	coração,	tornando	-o	um</p><p>ser	dos	mares,	um	marujo,	um	almirante,	dois	espaços	se	entrecruzam:</p><p>o	do	íntimo,	de	dimensões	reduzidas,	espaço	emotivo	do	“coração”,	e	o</p><p>do	mar,	infinito.</p><p>A	pequenez	humana	é	espelhada	no	infinito	dos	mares.	Veja	que	aqui</p><p>temos	uma	antítese,	em	que	duas	dimensões	se	antepõem:	o	espaço</p><p>pequeno	do	coração	versus	a	imensidão	do	mar.</p><p>Como	veremos,	o	poema	todo	se	pauta	nessa	oposição.	Tal	antítese,	por</p><p>sua	vez,	irá	germinar	outras,	em	um	jogo	de	claro	e	escuro,	de	imensidão</p><p>e	pequenez,	de	sentimentalidade	e	objetividade.</p><p>Em	relação	a	esse	sentimento	do	coração	-almirante,	creio	que	você	já</p><p>deve	ter	sentido	algo	semelhante,	um	sentimento	tão	grande,	tão	imenso,</p><p>que	se	assemelha	a	um	mar,	a	um	céu	infinito.	Pois	bem,	o	poeta	quer,</p><p>ao	usar	essas	imagens,	especificar	justamente	essa	dimensão	imensa</p><p>dos	sentimentos.</p><p>UNIUBE 121</p><p>Outra	antítese	se	desvela	nessa	estrofe.	O	espaço	do	mar	(imenso,</p><p>ilimitado),	por	outro	lado,	está	ligado	ao	da	casa	(ínfimo,	limitado).	Com</p><p>efeito,	a	casa,	longe	de	ser	um	ambiente	de	conforto,	torna	-se	espaço	do</p><p>desassossego.	Podemos	inferir	isso	pela	ação	do	eu	lírico:	ele	perambula</p><p>pela	casa,	de	um	lado	para	o	outro,	como	se	não	encontrasse	o	seu	lugar</p><p>verdadeiro.</p><p>Na	estrofe	seguinte,	esse	perambular	cessa.	Encontramos	o	eu	lírico</p><p>sentado.	Todavia,	mesmo	parado,	tal	voz	poética	ainda	se	exercita,</p><p>movimenta.	Só	que,	agora,	em	pensamento.</p><p>O	desassossego	desse	marujo	 fica	ainda	mais	 evidente	por	 essa</p><p>oposição	entre	ação	corporal	e	mental.	Aqui	temos,	portanto,	outra</p><p>antítese:	estaticidade	versus	movimento.	Podemos	observar	que	o	eu</p><p>lírico,	sentado,	busca	o	movimento	do	mar.	Esse	movimento	seria	uma</p><p>metáfora	do	seu	desassossego.	Como	correntezas,	como	ondas	em</p><p>rebentação,	seus	sentimentos	são	exaltados,	incontidos.</p><p>Tal	antítese	torna	-se	mais	patente,	quando,	nos	dois	últimos	versos</p><p>dessa	estrofe,	o	lírico	nos	afirma	que	o	mar	reside	nos	seus	músculos.</p><p>Tais	músculos	(agitados	pelo	movimento	do	mar)	estão	cansados	pela</p><p>paralisia.	Essa	belíssima	antítese	mostra	-nos	o	 tédio	de	um	velho</p><p>marujo,	envelhecido,	distante	de	sua	antiga	morada,	os	mares.	A	velhice,</p><p>expressa	pelos	músculos	inertes,	cansados,	levou	esse	aventureiro	a	se</p><p>aposentar	de	sua	profissão,	de	sua	antiga	vida	de	liberdade.</p><p>Aqui	chegamos	ao	clímax	do	texto,	explicitada	por	outra	antítese:	a</p><p>oposição	entre	liberdade	e	aprisionamento.	O	mar	representa	toda	uma</p><p>existência	livre,	aventureira,	ao	passo	que	a	casa,	verdadeira	prisão,</p><p>metaforiza	a	vida	sem	êxtase,	sem	arrebatamento,	existência	morna,</p><p>despida de encanto.</p><p>Todos	nós	já	sentimos	essa	vontade	de	viajar,	de	correr	mundo.	Pois</p><p>bem,	é	esse	sentimento	que	motiva	esse	coração	-marujo	e	o	torna</p><p>melancólico.</p><p>122 UNIUBE</p><p>Na	terceira	estrofe	podemos	vislumbrar,	em</p><p>belíssimos	versos,	a	expressão	do	sentimento</p><p>da	saudade.	Veja	que	o	poeta	usa	a	anáfora e o</p><p>paralelismo sintático,	figuras	sonoras	pautadas</p><p>pela	 repetição.	 Essa	 constante	 reincidência</p><p>sonora	da	anáfora	e	do	paralelismo	têm	como</p><p>função	ressaltar	a	intensidade	da	saudade.	Esse</p><p>sentimento	é	tão	forte	que	ele	parece	martelar</p><p>no	coração,	pulsando	em	dor,	em	pancadas</p><p>surdas,	vivas.</p><p>O	corpo	do	eu	lírico	é	inteiro	saudade.	Quem	não	sentiu	uma	saudade</p><p>como	essa,	a	transbordar	pelo	nosso	corpo	inteiro,	com	pungente	força?</p><p>O	poeta	explicita	-nos	essa	intensidade	desse	sentimento	tão	importante</p><p>para os portugueses.</p><p>Na	derradeira	estrofe,	os	versos	finais	quebram,	em	um	viés	bem</p><p>moderno,	o	tom	romântico	do	texto.	Trata	-se	de	uma	dissonância.	O	eu</p><p>lírico,	em	um	viés	irônico,	afirma	sua	dúvida	e,	de	certa	forma,	satiriza	a</p><p>si	próprio:	“Mas	—	esta	é	boa	—	era	do	coração/	que	eu	falava...”.	Ele</p><p>falava	do	coração	e,	no	entanto,	começou	a	expressá	-lo	pela	metáfora	do</p><p>almirante.	Esse	procedimento	causa	-lhe	espanto.	A	dúvida	final	quebra	o</p><p>idílio	da	metáfora	e	traz	o	coração	ao	terra		a		terra	da	realidade.	Trata	-se</p><p>de	um	coração	apenas,	não	de	um	almirante.	Fica	no	ar,	por	meio	dessa</p><p>dúvida,	a	validade	da	melancolia	e	da	saudade.</p><p>Bem,	espero	que	você	tenha	gostado	desse	poema.	Vamos	continuar	o</p><p>nosso	passeio	pela	poesia	de	Pessoa?</p><p>Agora	iremos	estudar	a	poesia	do	ortônimo,	ou	seja,	do	Pessoa	ele	mesmo.</p><p>Anáfora</p><p>É	figura	de	linguagem</p><p>sonora.	Ocorre</p><p>quando	inúmeros</p><p>versos	iniciam	-se	com</p><p>a	mesma	expressão</p><p>ou	palavra.</p><p>Paralelismo</p><p>sintático</p><p>Ocorre	quando	duas</p><p>ou	mais	orações</p><p>possuem	a	mesma</p><p>construção	sintática.</p><p>UNIUBE 123</p><p>Fernando Pessoa ortônimo é ele mesmo?2.7</p><p>Conforme	já	notamos,	o	Fernando	Pessoa	ortônimo	ironicamente	se</p><p>perde	e	se	confunde	com	os	demais	heterônimos,	formando	ele	mesmo</p><p>outro	heterônimo.</p><p>Com	efeito,	a	obra	do	ortônimo	é	marcada,	como	a	dos	demais,	pela</p><p>cisão	entre	o	ser	e	o	mundo.</p><p>Essa	cisão,	por	sua	vez,	encontra	no	ortônimo	a	peça-chave	para	a</p><p>dilaceração	do	eu	em	vários	outros	eus.	Também	Fernando	Pessoa	ele</p><p>mesmo	é	ninguém,	é	nada,	é	vazio	e,	por	isso,	é	todos	e	tudo.</p><p>Nesse	sentido,	no	Cancioneiro,	obra	central	do	ortônimo,	é	recorrente	a</p><p>ideia	de	queda.	O	eu	lírico	despenca	de	uma	região	alta,	plena,	estatelando</p><p>em	um	solo	sem	glória.	De	início	temos	as	alturas:	“Aconteceu	-me	do	alto</p><p>do	infinito/	Esta	vida...”,	para	depois	advir	o	deserto:	“Hoje	sei	-me	o	deserto”.</p><p>Nesse	deserto,	o	poeta	se	perde,	se	dilacera,	deixa	de	ter	a	proteção	de	um</p><p>Deus,	de	uma	transcendência.</p><p>O	resultado	dessa	queda	é	a	sensação	de	solidão,	de	abandono.</p><p>O	rei	também	lhe	outorgou	uma	pensão</p><p>de	quinze	mil	réis	por	ano,	quantia	bastante	considerável	para	a	época,</p><p>apesar	de	ter	sido	paga	de	maneira	irregular.	Depois	de	sua	morte,	a</p><p>pensão	passou	para	sua	mãe.	Não	se	sabe	se	Camões	foi	enterrado	no</p><p>cemitério	do	hospital	onde	faleceu	vítima	da	peste,	segundo	se	diz,	ou</p><p>se	numa	campa	da	Igreja	de	Santa	Rita,	mas	isso	não	importa,	pois	o</p><p>terremoto	que	destruiu	quase	toda	Lisboa	em	1755	tornou	impossível	a</p><p>recuperação	de	seus	despojos.</p><p>Todas	as	dúvidas	desaparecem,	entretanto,	quando	se	trata	da	obra</p><p>poética	de	Luís	de	Camões.	São	patentes	e	universalmente	reconhecidas</p><p>sua	mestria	no	versejar	e	a	profundidade	de	seu	pensamento.	É	ponto</p><p>pacífico	o	alcance	de	seu	impacto	sobre	toda	a	literatura	de	língua</p><p>portuguesa	que	veio	depois	dele,	como	demonstra	Cristiano	Martins	ao</p><p>colocá-lo	entre	os	gigantes	da	cultura	ocidental:</p><p>Um	 país	 faz	 sua	 a	 voz	 solitária	 que	 se	 levantou</p><p>em	acentos	 expressivos	 e	 proféticos.	Se	não	 lhe</p><p>reconhece	de	pronto	o	valor	simbólico,	chega	pouco</p><p>a	pouco	à	consciência	de	que	essa	mensagem	traduz</p><p>a	alma	essencial	da	coletividade.	Assim,	na	obra	de</p><p>Dante	Alighieri	revê-se	a	fisionomia	medieval	italiana,</p><p>mística,	dissimulada	e	obscura;	na	de	Shakespeare</p><p>entremostra-se	o	sentido	trágico	e	passional	da	vida</p><p>UNIUBE 5</p><p>inglesa	no	século	XVI,	e	de	um	modo	que	pode	granjear</p><p>valor	de	generalidade,	mais	evidente	a	cada	dia;	na	de</p><p>Montaigne	espelham-se	as	nuanças	do	temperamento</p><p>gaulês	–	o	senso	da	proporção	e	da	beleza,	de	que</p><p>é	dotado,	a	amarga	e	irônica	sabedoria,	de	que	se</p><p>penetra;	na	de	Cervantes,	projeta-se	a	vocação	do	bom</p><p>povo	espanhol	para	o	ideal,	a	sua	ânsia	de	perfeição,</p><p>uma	e	outra	acentuadas	pelas	reivindicações	da	razão</p><p>prática,	que	as	contrastavam;	na	de	Goethe,	de	eu</p><p>apenas	nos	separa	distância	de	pouco	mais	de	um</p><p>século,	objetiva-se	o	drama	da	luta	pelo	conhecimento</p><p>intelectual	ilimitado,	bem	como	o	das	forças	misteriosas</p><p>da	alma	humana	agitada	por	todas	as	inquietudes.</p><p>E	o	que	foram,	com	efeito,	estes	artistas	e	poetas	senão</p><p>pontos	culminantes	no	panorama	da	criação	lírica,	ou</p><p>romanesca,	dos	tempos	modernos?	[...]</p><p>Entre	estes	artistas	tem	Luís	de	Camões,	pela	significação</p><p>solar	 de	 sua	 obra,	 posição	 destacada.	 A	 língua</p><p>portuguesa,	a	seu	turno,	alçou-se	a	nível	idêntico	aos</p><p>dos	outros	idiomas	em	que	se	vazaram	as	grandes</p><p>obras-primas	do	pensamento	da	humanidade,	pois</p><p>coube-lhe	–	na	expressão	camoniana	–	traduzir	acentos</p><p>dos	mais	eloquentes	que	já	se	formularam	para	definir</p><p>a	natureza	da	experiência	humana	em	face	da	beleza</p><p>fugaz	e	transitória	das	coisas	aparentes.	[...]</p><p>A	 sua	 atualidade	 é,	 assim,	 comprovada	 sobre	 a</p><p>transitoriedade	das	escolas	e	modas	literárias;	enquanto</p><p>estas	passam	e	se	apagam,	ela	se	eleva	no	horizonte</p><p>do	pensamento	e	da	arte,	a	estender	sua	influência	às</p><p>tendências	nascentes.	(MARTINS,	1981,	p.	17-19).</p><p>O	panorama	traçado	por	Cristiano	Martins	faz	referência	à	contribuição</p><p>dos	autores	que	definiram	o	papel	dos	idiomas	de	suas	nações	como</p><p>as	principais	línguas	de	cultura	no	Ocidente	e	que	assumiram	depois</p><p>da	Renascença,	marco	inicial	da	Modernidade,	o	papel	que	Homero,</p><p>Sófocles	e	Safo,	entre	os	gregos,	e	Plauto,	Virgílio	e	Horácio	entre	os</p><p>latinos	desempenhavam	na	Antiguidade	clássica:	o	de	definir	toda	uma</p><p>cultura	a	partir	de	uma	obra	literária.	Sem	dúvida,	é	graças	a	Camões	que</p><p>o	português	alcançou	sua	relevância	artística	e,	por	isso,	é	natural	vê-lo</p><p>na	companhia	de	Dante,	Shakespeare,	Montaigne,	Cervantes	e	Goethe.</p><p>6 UNIUBE</p><p>O	alcance	da	esfera	de	 influência	da	poesia	 camoniana	pode	ser</p><p>representado	por	uma	lista	de	alguns	dos	principais	poetas	brasileiros</p><p>de	todos	os	tempos:	Gregório	de	Matos,	Cláudio	Manoel	da	Costa,</p><p>Gonçalves	Dias,	Jorge	de	Lima,	Manuel	Bandeira,	Carlos	Drummond</p><p>de	Andrade,	Décio	Pignatari,	Augusto	de	Campos.	Mesmo	grandes</p><p>prosadores	brasileiros	se	referem	a	Camões	em	suas	obras,	como	é	o</p><p>caso	de	Machado	de	Assis	e	Graciliano	Ramos.</p><p>A	importância	de	Camões	em	vários	aspectos	da	cultura	brasileira,	incluindo</p><p>a	literatura	de	cordel,	pode	ser	vista	no	artigo	“O	mito	camoniano”,	de</p><p>Gilberto	Mendonça	Teles”.	Ele	está	disponível	neste	link:</p><p>http://repositorio.ufc.br/ri/bitstream/riufc/3035/1/1980_Art_GMTeles.pdf</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>A	obra	de	Camões	é	marcada	pela	variedade	em	muitos	sentidos,	a</p><p>começar	pelos	gêneros	que	cultivou:	poesia	épica,	lírica	e	dramaturgia.</p><p>A	épica	está	representada	pelo	único	 livro	que	publicou	em	vida,	Os</p><p>Lusíadas;	a	lírica	contém	formas	clássicas	(como	a	ode,	a	eclóga	e	a	elegia),</p><p>medievais	(exemplificadas	pelas	redondilhas	menor	e	maior	e	o	vilancete)</p><p>e	renascentistas	(como	o	soneto	e	o	verso	decassílabo);	no	teatro,	compôs</p><p>peças	de	inspiração	tanto	clássica	quanto	popular.	Neste	capítulo,	você</p><p>terá	a	oportunidade	de	ler	e	refletir	sobre	alguns	aspectos	essenciais	de	Os</p><p>Lusíadas	e	da	lírica,	principalmente	as	redondilhas	e	os	sonetos.</p><p>1.1.1 Camões épico: o diálogo com a tradição e a afirmação da</p><p>modernidade</p><p>Os Lusíadas	são	a	expressão	máxima	da	época	do	Renascimento	em</p><p>Portugal.	Isso	se	torna	evidente	já	a	partir	de	sua	temática,	pois	o	livro</p><p>tem	como	fio	condutor	a	narração	da	viagem	que	a	armada	de	Vasco	da</p><p>Gama	fez	à	Índia,	partindo	de	Lisboa	em	oito	de	julho	de	1497	e	chegando</p><p>UNIUBE 7</p><p>a	Calcutá	em	20	de	maio	de	1498.	É	importante	observar	que,	ao	contrário</p><p>da	Itália,	com	Leonardo	da	Vinci,	Michelangelo	e	Rafael,	ou	da	França,	com</p><p>a	Escola	da	Borgonha	(grande	centro	de	florescimento	musical)	e	os	castelos</p><p>de	Chambord	e	d’Amboise,	ou	da	Alemanha,	com	o	sistema	mecânico</p><p>de	tipos	móveis	de	imprensa	de	Gutemberg	e	a	Reforma	Protestante	de</p><p>Martinho	Lutero,	a	grande	realização	portuguesa	na	época	do	Renascimento</p><p>aconteceu	fora	de	seu	próprio	território.	O	movimento	que	colocou	o	país</p><p>no	contexto	da	modernização	da	Europa	acontecida	entre	os	séculos	XV</p><p>e	XVI	foi	sua	expansão	marítima,	que	levou	os	lusitanos	a	estabelecer</p><p>um	domínio	político	e	comercial	sobre	grandes	extensões	da	Ásia,	África</p><p>e	América.	Usando	a	viagem	de	Vasco	da	Gama	como	mote	desse	feito</p><p>que	colocaria	Portugal	no	centro	da	economia,	da	política	e	da	sociedade</p><p>europeia,	Camões	retrata	em	seu	poema	épico	todo	um	quadro	de	intensa</p><p>relevância	cultural,	marcado,	ao	mesmo	tempo,	pela	renovação	do	interesse</p><p>pelo	mundo	antigo	grego	e	latino,	daí	vindo	o	nome	de	Renascença,	e	pela</p><p>invenção	do	mundo	moderno.</p><p>O	duplo	aspecto,	clássico	e	moderno,	de	Os Lusíadas	se	reflete	já</p><p>em	sua	estrutura.	Seu	pertencimento	ao	gênero	épico,	invenção	grega</p><p>fundamental	na	cultura	ocidental	desde	a	Ilíada e a Odisseia,	atribuídas</p><p>a	Homero	desde	o	século	VIII	a.C.,	é	afirmado	pelo	fato	de	ser	um	longo</p><p>poema	narrativo	a	respeito	de	um	grande	tema.	Com	seus	8.816	versos,</p><p>formando	1102	estrofes,	que	contam,	além	da	viagem	do	Gama,	toda</p><p>a	história	da	constituição	do	reino	de	Portugal,	da	Idade	Média	até	a</p><p>época	de	D.	Sebastião,	acrescida	de	muitos	episódios,	mitológicos	e</p><p>amorosos,	certamente	o	livro	se	encaixa	na	definição	de	uma	epopeia.</p><p>Sua	modernidade,	entretanto,	também	é	visível,	já	que	seu	tema	central</p><p>é	um	fato	histórico,	acontecido	no	mundo	real	e	num	tempo	recente,	ao</p><p>contrário	do	que	os	antigos	diziam	ser	o	correto	para	o	gênero	épico,	ou</p><p>seja,	a	escolha	de	fatos	tão	antigos	que	já	tivessem	assumido	um	caráter</p><p>de	lenda.	Além	disso,	a	todo	momento,	aparecem	em	Os Lusíadas</p><p>referências	a	descobertas	científicas	contemporâneas	da	época	de	seu</p><p>enredo,	principalmente	aquelas	que	dizem	respeito	a	novos	métodos</p><p>de	navegação,	ramo	do	conhecimento	em	que	os	portugueses	estavam</p><p>assumindo	um	papel	de	pioneiros.</p><p>8 UNIUBE</p><p>O	poema	é	dividido	em	dez	cantos;	suas	estrofes	são	todas	em	oitava</p><p>rima,	ou	seja,	de	oito	versos,	seguindo	o	esquema	de	rimas	abababcc;</p><p>os	versos	são	decassílabos	heroicos,	com	a	acentuação	caindo	sempre</p><p>nas	6ª	e	10ª	sílabas.	Como	tal,	é	um	monumento	de	equilíbrio	formal,</p><p>pois	a	mesma	estrutura	serve	à	imensa	variedade	de	assuntos	tratados</p><p>O	eu</p><p>torna	-se,	como	em	Álvaro	de	Campos,	um	estrangeiro,	não	encontrando</p><p>no	mundo	o	seu	verdadeiro	lugar.</p><p>Entretanto	no	poeta	ainda	resiste	a	sensação	de	que	o	escritor	ainda</p><p>possui	um	grande	destino,	uma	missão	elevada	em	relação	à	sociedade.</p><p>Essa	missão	faz	com	o	poeta	se	isole	numa	torre	de	marfim,	de	onde	ele</p><p>destila	o	seu	desprezo	“por	este	humano	povo	entre	quem	lido”.</p><p>Essa	missão	vem	acrescida	de	um	mito:	a	de	que	o	poeta	resguarda</p><p>as	instruções	de	uma	voz	além,	transcendente.	Se	o	escritor	se	sente</p><p>abandonado	por	Deus,	em	outro	momento	ele	é	o	emissário	de	um	ser</p><p>supremo,	desconhecido	(Deus?);	“emissário	de	um	rei	desconhecido,/</p><p>Eu	cumpro	informes	instruções	de	além”.</p><p>124 UNIUBE</p><p>A	solidão,	por	sua	vez,	vem	acompanhada	do	sentimento	da	perda</p><p>do	belo,	do	sublime.	Conforme	Cardoso	Gomes:	“Quem	alguma	vez</p><p>contemplou	a	Beleza,	não	pode	aceitar	a	realidade	bruta	e	sombria	que</p><p>o	circunda	e	que	não	comporta	a	perfeição”.	(1987,	p.	50.)</p><p>Podemos	vislumbrar	tal	feito	nos	seguintes	versos:	“nem	defini	-la,	nem</p><p>achá	-la,	a	ela/	A	Beleza.	No	mundo	não	existe./	Ai	de	quem	com	a	alma</p><p>inda	mais	triste/	Nos	seres	transitórios	quer	colhê	-la!”.	Ao	enfrentar	a</p><p>Beleza	ou	a	ausência	dela,	o	poeta	só	faz	recrudescer	a	sensação	de</p><p>inadaptação	ao	mundo.	A	realidade,	sem	a	aura	de	encanto,	torna	-se</p><p>insuportável,	terrível.	Aqui	podemos	rastrear	resquícios	de	um	platonismo.</p><p>Conforme	sabemos,	para	Platão	esse	nosso	mundo	é	sombrio,	imperfeito,</p><p>é	uma	cópia	de	outro	universo,	superior,	sublime,	o	mundo	das	ideias.</p><p>A	sensação	de	que	existe	esse	além	supremo	leva	ao	que	Pessoa</p><p>chama	de	“horror	de	conhecer”.	Tal	horror	nasce	somente	naquele	que</p><p>pressente,	pela	imaginação	poética,	uma	prévia	desse	absoluto.	O	poeta</p><p>sente	saudade	desse	universo	pleno,	mesmo	sem	saber	exatamente</p><p>o	que	ele	representa.	Com	efeito,	o	sentimento	de	frustração	se	torna</p><p>imenso,	pois	sem	conhecer	o	que	busca,	o	poeta	não	possui	nem	sequer</p><p>instrumentos	para	apreender	tal	perfeição.</p><p>Enfim,	no	dia	a	dia	a	gente	percebe	o	quanto	a	beleza	é	passageira.	Como</p><p>tudo	o	que	viceja	nesse	mundo,	ela	está	fadada	ao	perecimento.	Aquele</p><p>que	busca	a	perfeição,	a	beleza,	forçosamente	encontrará	o	fracasso.</p><p>Você	já	experimentou,	com	certeza,	a	frustração	perante	os	empecilhos</p><p>do	mundo.	O	poeta	transforma	em	poesia	tais	aborrecimentos.</p><p>Todas	essas	problemáticas	 levam	à	cisão	do	eu,	como	se	a	única</p><p>alternativa	para	a	impossibilidade	de	existir,	de	atingir	o	sublime,	fosse</p><p>se	fragmentar,	como	se	tal	processo	de	retalhamento	do	eu	trouxesse</p><p>lenitivo	à	dor	do	ser.	Estar	imerso	em	um	mundo	precário	leva	o	poeta	a</p><p>se	sentir	uma	ficção,	um	sonho,	um	pesadelo:	“Entre	o	sono	e	o	sonho,/</p><p>UNIUBE 125</p><p>Entre	mim	e	o	que	em	mim/	É	o	quem	eu	me	suponho,/	Corre	um	rio	sem</p><p>fim”.	(PESSOA,	1998,	p.130.)	A	realidade	assim	só	pode	ser	conhecida</p><p>pela	diáspora	desses	contrários,	pela	dispersão	dessas	vozes	dispersas.</p><p>Até	mesmo	o	próprio	eu	é	captado	de	fora,	com	um	estranho:	“e	quem</p><p>me	sinto	e	morre/	No	que	me	liga	a	mim”.</p><p>A	cisão	do	eu	corresponde	a	uma	visão	dialética	do	mundo	e	da	vida.	Isso</p><p>fica	explicitado	no	permanente	uso	de	paradoxos,	oximoros	e	metáforas,</p><p>metáforas	essas	que	indicam	a	passagem	de	um	estado	a	outro,	tais</p><p>como	“ponte”,	“arco”,	“pórtico”,	“sonho”	etc.</p><p>Esse	dualismo	vai	ganhando	profundidade	existencial,	em	dimensões	do	ser</p><p>em	completa	tensão,	tais	como	sonho/realidade,	fazer/querer,	sentir/pensar.</p><p>No	primeiro	grupo,	o	sonho	torna	a	realidade	diáfana,	difusa,	tão	irreal</p><p>quanto	o	próprio	sonho.</p><p>Já	a	oposição	fazer/querer	está	centrada	sobre	o	jogo	de	azar	da	vida,</p><p>em	que	satisfações	são	negadas,	numa	permanente	sequência	de</p><p>frustrações:	“querendo,	quero	o	infinito./	Fazendo,	nada	é	verdade”.</p><p>(PESSOA,	1998,	p.163.)</p><p>A	última	oposição,	aquela	entre	sentir	e	pensar,	é	germinal,	está	no</p><p>âmago	de	toda	a	obra	pessoana,	em	todos	os	heterônimos.	O	sentir</p><p>pessoano,	complexo,	deixa	de	ser	algo	que	flui	naturalmente,	para	se</p><p>tornar	um	processo	mental,	de	elaboração	reflexiva:	“o	que	em	mim	sente</p><p>’sta	pensando”.	(PESSOA,	1998,	p.100.)	Sobre	tal	elaboração	do	sentir,</p><p>afirma	-nos	Álvaro	Cardoso	Gomes:</p><p>esse	controle	do	sentimento	pela	razão	decorre	da</p><p>necessidade	que	o	poeta	tem	de	superar	o	pessoalismo</p><p>na	poesia,	em	nome	de	uma	visão	mais	abrangente	do</p><p>Universo.	[...]	A	totalidade	[...]	nasce	desse	controle	do</p><p>sentimento,	dessa	consciência	de	que	a	poesia	se	faz</p><p>através	da	motivação	do	sentimento	pelo	pensamento.</p><p>(GOMES,	1987,	p.	48.)</p><p>126 UNIUBE</p><p>Esse	controle	da	emoção	nasce	também	da	postura	do	poeta	moderno.</p><p>Com	a	crescente	especialização	da	vida	prática,	em	que	cada	técnico</p><p>atende	a	uma	parcela	cada	vez	menor	da	realidade	(o	biólogo	molecular</p><p>cuida	apenas	de	moléculas,	o	geógrafo	marítimo	pesquisa	apenas	as</p><p>formações	geológicas	do	fundo	do	mar,	o	médico	cardiologista	cuida</p><p>apenas	de	cardiopatias	etc.),	o	poeta	acaba	se	tornando,	cada	vez	mais,</p><p>um	técnico	em	seu	ofício.</p><p>Por	outro	lado,	o	escritor	da	modernidade	é	aquele	que	quer	escrever</p><p>poesia	tendo	o	total	domínio	dos	recursos	líricos.	Para	tanto,	ele	se</p><p>aprofunda	de	tal	maneira	na	pesquisa	da	tradição	e	da	linguagem	poética,</p><p>que	se	torna	um	mestre	no	assunto	(no	Brasil	tivemos	poetas	mestres,</p><p>chamados	poetas	de	poetas,	por	serem	altamente	instruídos	em	seu</p><p>ofício,	é	o	caso	de	José	Paulo	Paes,	os	irmãos	Haroldo	e	Augusto	de</p><p>Campos,	Ivan	Junqueira,	entre	outros).</p><p>Com	efeito,	na	poesia	de	Pessoa	tal	controle	do	sentimento	se	dá	também</p><p>pelo	alto	nível	técnico	e	ou	pela	precisão	de	sua	escrita,	o	que	o	tornou</p><p>exímio	artesão	do	verso,	mestre	dos	mestres	no	ofício	da	escrita	de</p><p>poemas.	Pessoa	dominou	desde	as	formas	clássicas,	como	o	soneto,	a</p><p>ode	e	a	elegia,	como	também	as	trovas	e	quadras	de	gosto	popular	e	as</p><p>formas	livres	da	poesia	moderna.</p><p>Bem,	tudo	isso	é	muito	complexo.	Mas	se	pararmos	para	pensar,	iremos</p><p>ver	que	isso	faz	parte	de	nossa	vida.	Nós	também	controlamos	nossos</p><p>sentimentos,	mergulhamos	no	trabalho	para	esquecer	as	dores.	Pois</p><p>bem,	o	poeta	da	modernidade	faz	o	mesmo.	Ele	é	cerebral,	racional</p><p>no	uso	das	formas,	a	fim	de	dar	ordem	aos	caos	de	sua	existência,	ao</p><p>tumulto	de	sua	dores.</p><p>Essa	bipartição	da	existência	é	a	grande	desgraça	da	vida	do	poeta,	pois</p><p>lhe	cerceia	a	felicidade,	o	gozo	e	o	prazer.	Ante	tal	desolação,	resta	ao</p><p>ortônimo	algumas	saídas	para	amenizar	o	sofrimento.	Essas	alternativas</p><p>UNIUBE 127</p><p>nascem	da	tentativa	de	resolução	dos	impasses	das	dualidades	do</p><p>existir.	Nesse	aspecto	são	duas	as	ações	que	salvaguardam	uma	réstia</p><p>de	contentamento	na	vida:	a	supressão	da	vontade	e	do	tempo.</p><p>A	vontade,	centelha	viva	a	impulsionar	o	homem	rumo	às	suas	conquistas,</p><p>leva	-o	também	a	buscar	o	impossível.	Uma	vez	ferindo	-se	nas	barreiras</p><p>de	sua	vontade,	resta	a	Pessoa,	como	lenitivo,	a	busca	da	ingenuidade</p><p>dos	inocentes	e	dos	pequenos	vestígios	do	real.	Por	isso,	no	Cancioneiro</p><p>o	poeta	se	deixa	envolver	pela	inocência	de	uma	mulher	a	cantar,	de	um</p><p>gato	a	brincar	na	rua,	de	uma	nuvem	que	passa.</p><p>Quanto	ao	tempo,	o	poeta	irá	suprimi	-lo	das	seguintes	maneiras:	1	—	o</p><p>gozo	de	instantes	inefáveis,	de	sonho	e	devaneio;	2	—	o	entorpecimento</p><p>dos	sentidos	e	da	razão	pela	música;	3	—	a	idealização	dos	mitos	infantis:</p><p>princesas, castelos etc.</p><p>Um	exemplo	dessa	paralisação	do	tempo	encontramos	no	poema	“Mar.</p><p>Manhã”:</p><p>E	a	minha	sensação	é	nula,</p><p>Quer	de	prazer,	quer	de	pesar...</p><p>Ébria	alheia	a	mim	ondula</p><p>Na	onda	lúcida	do	mar.</p><p>(PESSOA,	Fernando,	1998,	p.	106.)</p><p>O	tempo,	ante	a	visão	do	mar,	se	congela,	e	o	eu	lírico	fica	em	um	estado</p><p>de	latência,	em	que	os	sentimentos	ficam	suspensos.</p><p>A	gente	mesmo	tem,	no	dia	a	dia,	a	sensação	de	que	o	tempo	para,	não</p><p>progride.	É	dessa	experiência	que	nos	fala	o	poeta.</p><p>Bem,	creio	que	agora	você	conheceu	um	pouco	mais	da	poesia	do</p><p>Fernando	Pessoa	ele	mesmo.	Agora	podemos	ler	um	poema	dele,	um</p><p>famoso	poema.	Você	está	pronto	para	essa	aventura?</p><p>128 UNIUBE</p><p>“Autopsicografia”	é,	com	certeza,	o	poema	mais	famoso	de	Pessoa.</p><p>Vamos	mergulhar	nas	palavras	desse</p><p>belo	texto?</p><p>Autopsicografia</p><p>O	poeta	é	um	fingidor.</p><p>Finge	tão	completamente</p><p>Que	chega	a	fingir	que	é	dor</p><p>A	dor	que	deveras	sente.</p><p>E	os	que	lêem	o	que	escreve</p><p>Na	dor	lida	sentem	bem,</p><p>Não	as	duas	que	ele	teve,</p><p>Mas	só	a	que	eles	não	têm.</p><p>E	assim	nas	calhas	de	roda</p><p>Gira,	a	entreter	a	razão,</p><p>Esse	comboio	de	corda</p><p>Que	se	chama	coração.</p><p>(PESSOA,	Fernando	,	2010.)</p><p>Esse	poema	funciona	como	um	verdadeiro	jogo	de	espelhos.	Na	primeira</p><p>estrofe,	Pessoa	assume,	com	coragem,	a	condição	dramática	do	poeta.</p><p>Ele	sente	duas	dores,	a	verdadeira	e	a	falsa,	a	da	vida	e	a	da	obra.	A</p><p>dramatização,	por	sua	vez,	intensifica	a	dor,	tornando	-a	uma	verdade</p><p>falsa.	Esse	paradoxo	é	típico	em	Pessoa:	a	ficção	se	torna	tão	densa	que</p><p>se	presentifica	em	realidade.</p><p>Tal	estrofe,	lapidar,	serviria	como	uma	espécie	de	epígrafe	para	toda	a</p><p>poesia	de	Pessoa.	Ela	é,	com	certeza,	a	melhor	definição	de	sua	própria</p><p>obra,	do	fenômeno	da	heteronímia,	da	multiplicação	dos	eus.	Para	o</p><p>escritor	português,	a	dramaticidade	da	vida	é	uma	ficcionalização	do	real.</p><p>Tanto	tal	feito	é	levado	a	um	paroxismo	que	não	sabemos	mais	o	que	é</p><p>real	e	o	que	é	ficção.</p><p>UNIUBE 129</p><p>Esse	é	o	caso	dessa	dor	expressa	no	texto.	Nunca	saberemos	sua</p><p>origem,	se	de	fato	é	verídica	ou	se	foi	um	artifício	poético	a	intensificar</p><p>o	sofrimento	real.</p><p>Para	tornar	ainda	mais	complexo	esse	jogo	de	espelhos,	essa	pirotecnia</p><p>mágica,	o	poeta	insere	outro	personagem	no	texto:	o	leitor.	Os	paradoxos</p><p>se	multiplicam.	O	leitor	passa	a	sentir	um	sofrimento	que	ele	não	tem.</p><p>Dessa	forma,	ele	sente	e	não	sente	a	dor.</p><p>Aqui	estamos,	na	verdade,	diante	da	grande	magia	da	literatura.	A</p><p>autêntica	obra	de	arte,	em	vez	de	mentir,	insere	o	homem	no	drama</p><p>da	vida,	no	fulgor	e	terror	sinistro	do	existir.	A	literatura	não	nos	polpa,</p><p>não	mente,	não	nos	afirma	uma	existência	cor	-de	-rosa	como	nos	filmes</p><p>americanos.	E,	no	entanto	(mistério!),	sentimos	prazer	ao	travar	contato</p><p>com	tais	verdades,	porque	elas	vêm	carregadas	pela	expressão	artística,</p><p>pela	delicadeza	da	metáfora,	pela	engenhosidade	do	artista.</p><p>Por	isso	o	leitor,	conforme	o	verso	de	Pessoa,	“Na	dor	lida	sente	bem”.</p><p>Sentimos	a	mesma	forma	quando	nos	somos	tocados	pela	tragédia	de</p><p>Otelo	do		Shakespeare,	pelo	sombrio	corvo	de	Poe,	pelo	horror	sagrado	da</p><p>palavra	de	Rilke,	pela	morte	de	nossos	heróis	da	literatura:	Ana	Karenina,</p><p>os	guerreiros	de	Homero,	os	outsiders	de	Thomas	Mann	e	da	literatura</p><p>brasileira:	Diadorim,	João	Ternura,	Capitu...	Na	morte	dessas	personagens</p><p>nos	engrandecemos	e	nos	sentimos	(paradoxo!)	bem.</p><p>Você,	com	toda	certeza,	deve	ter	se	emocionado	com	seus	heróis,</p><p>mesmo	quando	eles	morrem.	Também	deve	ter	lido	poemas	em	que	o</p><p>sofrimento	do	eu	lírico	tornou	-se	lágrima	em	seus	olhos.	E,	no	entanto,</p><p>longe	de	ser	uma	dor	real,	é	uma	dor	inventada.</p><p>Pessoa,	em	seu	famoso	poema,	dá	expressão	artística	a	essa	verdade,</p><p>desvelando	-nos	o	mecanismo	secreto	da	própria	literatura.</p><p>130 UNIUBE</p><p>Assim,	o	leitor	sente	as	dores	do	poeta,	mas	as	dores,	no	entanto,	não</p><p>lhe	pertencem	e,	assim,	sofre	sem	sofrer.</p><p>Na	última	estrofe	as	imagens	são	vertiginosas,	imprimem	um	ritmo</p><p>circular,	como	um	sorvedouro	a	tragar	tudo:	o	poeta,	o	poema	e	o	leitor.	O</p><p>lexo	das	imagens	circulares	abunda:	roda,	gira,	comboio,	coração.	Tudo</p><p>se	move	em	círculos,	em	um	pulsar	sincopado	como	o	do	coração.	E</p><p>agora,	mistério	dos	mistérios,	a	quem	pertence	esse	coração?	Ao	poeta,</p><p>ao	leitor?	Aos	dois	e	de	ninguém.</p><p>No	poema,	os	corações	se	entrelaçam	pela	palavra.	O	coração	se</p><p>despersonaliza,	já	não	mais	pertence	ao	poeta	nem	ao	leitor,	mas	a</p><p>ambos.	Coração	impessoal,	ele	é	o	coração	da	humanidade	toda.</p><p>Conclusão2.8</p><p>Bem,	espero	que	você	tenha	gostado	deste	breve	passeio	pela	poesia</p><p>de Pessoa.</p><p>Como	se	trata	de	uma	obra	muito	grande	e	intensa,	esse	é	um	poeta</p><p>para	estudar	a	vida	toda.</p><p>O	convite	está	lançado.	Agora	é	só	mergulhar	nesse	mundo	de	sonhos</p><p>e	ficções.</p><p>Resumo</p><p>Ao	longo	deste	capítulo,	pudemos	observar	o	quanto	a	poesia	de	Pessoa</p><p>se	difunde	em	vários	eus	fictícios.</p><p>A	 partir	 do	 vácuo	 de	 si	 mesmo,	 o	 escritor	 realizou	 um	 feito	 raro:</p><p>multiplicou	-se	em	diversos	poetas,	os	heterônimos,	cada	qual	com	uma</p><p>dicção	peculiar,	uma	formação	existencial	distinta.</p><p>UNIUBE 131</p><p>O	primeiro	deles	analisado	por	nós,	Alberto	Caeiro,	é	o	escritor	-pastor</p><p>sempre	voltado	para	a	natureza.	Poeta	de	uma	pungente	ingenuidade,</p><p>Caeiro	se	nega	aos	exercícios	estéreis	da	razão,	preferindo,	assim,	uma</p><p>escrita	mais	próxima	do	real.</p><p>Ricardo	Reis,	o	artista	pagão	da	modernidade,	instaura	um	novo	culto</p><p>aos	deuses,	desvelando	-nos	a	crueldade	do	fado	humano.</p><p>O	último	dos	heterônimos	por	nós	analisado,	Álvaro	de	Campos,	é	o	mais</p><p>moderno	entre	os	três	e,	por	isso,	o	que	mais	se	dedica	às	vanguardas</p><p>artísticas.</p><p>Por	fim,	pudemos	analisar	um	pouco	da	poesia	do	Fernando	Pessoa</p><p>ortônimo.	Descobrimos,	com	mais	essa	ficção	pessoana,	o	quanto	a</p><p>melancolia	pode	-se	transformar	em	uma	harmoniosa	composição	poética.</p><p>Acreditamos,	portanto,	que,	ao	longo	deste	estudo,	tivemos	a	possibilidade</p><p>de	descobrir	um	pouco	mais	de	nós	e	do	outro.	Aprendemos,	enfim,	com</p><p>Pessoa	a	humildade	de	não	nos	apegarmos	a	um	eu	totalitário.</p><p>Indicamos	como	leitura	o	seguinte	texto	presente	no	site:	<http://www.revista.</p><p>agulha.nom.br/nelly01.html>.</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>132 UNIUBE</p><p>Renata de Oliveira</p><p>Introdução</p><p>Eça de Queirós e</p><p>os novos rumos da</p><p>literatura portuguesa</p><p>Capítulo</p><p>3</p><p>A	literatura	portuguesa	é	pródiga	em	dar	ao	mundo	grandes</p><p>criadores.	Do	passado	ao	presente,	nomes	como	os	de	Luís	de</p><p>Camões,	Gil	Vicente,	Padre	Antonio	Vieira,	Fernando	Pessoa,</p><p>Florbela	Espanca,	José	Saramago	e	Inês	Pedrosa	se	destacam.</p><p>A	esse	grupo	pertence	o	discreto	Eça	de	Queirós,	que,	além	de</p><p>obras	impactantes,	teve	papel	decisivo	no	desenvolvimento	da</p><p>estética	realista	em	Portugal.</p><p>Neste	capítulo,	saiba	como	se	deu	a	transição	do	Romantismo</p><p>para	o	Realismo	em	Portugal,	há	também	uma	breve	biografia</p><p>de	Eça	e	algumas	das	principais	características	de	sua	criação</p><p>literária	por	meio	da	análise	da	obra	A ilustre casa de Ramires e</p><p>da leitura do conto Singularidades de uma rapariga loura.</p><p>Após	o	estudo	deste	capítulo,	esperamos	que	você	seja	capaz	de:</p><p>• explicar	o	surgimento	da	estética	realista	em	Portugal;</p><p>• identificar	como	questões	sociais	e	históricas	são	abordadas</p><p>por	Eça	de	Queirós	em	sua	obra;</p><p>Objetivos</p><p>• reconhecer	os	recursos	literários	que	compõem	a	narrativa	eciana;</p><p>• estabelecer	paralelos	entre	a	obra	eciana	e	a	de	outros	autores.</p><p>3.1	O	Realismo	em	Portugal:	um	pouco	de	história</p><p>3.2	Ecos	de	mudança</p><p>3.3	Uma	ilustre	obra</p><p>3.4	Singularidades	de	um	conto</p><p>Esquema</p><p>O Realismo em Portugal: um pouco de história3.1</p><p>A	segunda	metade	do	século	XIX	marca	a	mudança	da	estética	romântica</p><p>para	a	estética	realista.	Essa	transição	ocorre	como	reflexo	das	mudanças</p><p>sociais	e	científicas	da	época.	Enquanto	o	restante	da	Europa	e	mesmo</p><p>o	Brasil	se	iniciam	na	nova	escola,	Portugal	resiste.	Vejamos	o	porquê.</p><p>O	início	do	século	XIX	representou	a	culminância	do	processo	de	industrialização</p><p>do	continente	europeu.	Portugal,	no	entanto,	encontrava-se	à	margem	desse</p><p>processo,	já	que	a	industrialização	ali	tinha	sido	prejudicada	pelas	invasões</p><p>napoleônicas	ocorridas	no	início	do	século	XIX,	forçando	a	fuga	da	família</p><p>real	portuguesa	para	o	Brasil	em	1808.	Somado	a	esse	fato,	instala	-se</p><p>uma	guerra	civil	no	país	iniciada	pela	disputa	sucessória	após	a	morte</p><p>de	D.	João	VI,	em	1826.</p><p>Com	poucas	indústrias,	altas	taxas	de	analfabetismo	e	influência	da	Igreja</p><p>nas	decisões	do	Estado,	a	nação	portuguesa	vivia	à	margem	de	toda	a</p><p>efervescência	econômica	e	cultural	vivenciada	por	seus	vizinhos.</p><p>No	entanto,	a	partir	de	1850,	Portugal	alcança	certa	estabilidade	política,</p><p>progresso	material	e	intercâmbio	com	o	restante	da	Europa.	Nessa	época,</p><p>destacava	-se	a	cidade	de	Coimbra,	um	centro	universitário	e	cultural,	que</p><p>se	ligava	às	demais	nações	europeias	por	meio	de	uma	estrada	de	ferro.</p><p>134 UNIUBE</p><p>Porém,	 apesar	 desses	 avanços,	 a	 literatura	 portuguesa</p><p>ainda	 se</p><p>mantinha	presa	à	tradição	romântica	e	árcade,	em	que	imperavam	o</p><p>academicismo	e	o	tradicionalismo.	Nessa	época,	o	expoente	da	literatura</p><p>portuguesa era Antonio Feliciano de Castilho,	já	idoso	e	cego.</p><p>Antonio Feliciano de Castilho (1800 -1875)</p><p>Poeta	romântico,	polemista	e	pedagogo.</p><p>SAIBA	MAIS</p><p>Certa	vez,	ao	escrever	o	posfácio	do	recém	-lançado	livro	de	um	protegido</p><p>seu,	Castilho	critica	um	grupo	de	jovens	poetas	de	Coimbra,	a	quem</p><p>acusava	de	serem	exibicionistas	e	obscurantistas.</p><p>O	 líder	do	grupo,	o	 jovem	poeta	e	estudante	Antero de Quental,</p><p>escreve	um	manifesto	criticando	a	forma	ultrapassada	de	não	só	se</p><p>fazer	literatura,	mas	também	de	pensar	e	viver.	A	tônica	do	discurso</p><p>de	Quental	era	que,	apesar	de	todo	progresso,	Portugal	ainda	era	uma</p><p>nação	conservadora,	que	precisava	acompanhar	a	evolução	alcançada</p><p>pelo	restante	do	continente.	Essa	discussão	ficou	conhecida	como	a</p><p>Questão Coimbrã,	que	perdurou	por	todo	o	segundo	semestre	do	ano</p><p>de	1865,	com	troca	de	ataques	e	acusações	entre	românticos	e	realistas.</p><p>Antero de Quental (1842 -1891)</p><p>Poeta	realista,	principal	mentor	da	“geração	de	70”.	Sua	obra	de</p><p>destaque	é	a	reunião	de	poemas	intitulada	Sonetos,	em	que	fica</p><p>evidente	a	influência	de	Camões	e	Bocage.</p><p>SAIBA	MAIS</p><p>Além	de	Quental,	os	realistas	eram	representados	por	Teófilo	Braga,</p><p>Ramalho	Ortigão,	Pinheiro	Chagas	e	Eça	de	Queirós	que,	embora	fizesse</p><p>parte	do	grupo,	não	interveio	na	polêmica.	Porém	as	obras	do	discreto</p><p>Eça	não	passaram	desapercebidas.</p><p>UNIUBE 135</p><p>Ecos de mudança3.2</p><p>No	ano	de	1845,	nasce	em	uma	tradicional	família	de	Póvoa	de	Varzim,</p><p>interior	de	Portugal,	um	menino	que,	nascido	fora	do	casamento,	é	criado</p><p>em	colégios	internos,	longe	dos	pais,	agora	casados,	e	dos	irmãos.</p><p>O	menino	assim	prossegue	até	que,	aos	16	anos,	ingressa	na	Universidade</p><p>de	Coimbra,	onde	forma	-se	em	Direito,	seguindo	a	tradição	paterna.</p><p>Nessa	época,	conhece	o	amigo	Antero	de	Quental,	que	o	apresenta	ao</p><p>revolucionário	grupo	de	Coimbra.	O	jovem	inicia	sua	carreira	literária	ao</p><p>publicar	seus	primeiros	textos	em	jornais	e	revistas.</p><p>Até	que,	em	1875,	publica	a	versão	final	do	romance	que	define	as</p><p>direções	do	Realismo	português.	O crime do padre Amaro	provoca</p><p>acaloradas	discussões,	pois	retrata	a	corrupção	da	Igreja	e	do	clero.</p><p>A	essa	obra	seguem	-se	outras	tão	marcantes	quanto:	O primo Basílio,</p><p>Os Maias, A correspondência de Fradique Mendes, A cidade e as</p><p>serras,	entre	outras,	além	de	contos,	poemas,	artigos.</p><p>De	 sua	 produção	 literária,	 emergia	 a	 temática	 social	 e	 o	 caráter</p><p>reformista	da	nação	portuguesa.	Esses	temas	se	convertiam	em	histórias</p><p>interessantes	por	meio	da	ironia,	da	polarização	de	situações,	do	uso</p><p>de	palavras	coloquiais	e	de	um	narrador	que	servia	como	porta	-voz	das</p><p>opiniões	do	autor.</p><p>Egito,	Oriente,	Cuba,	Inglaterra	e	França	são	alguns	dos	lugares	pelos</p><p>quais	passa	o	diplomata	que	viveu	como	menino	recluso	e	que	se	tornou</p><p>um	dos	maiores	artistas	da	língua	portuguesa.</p><p>No	ano	de	1900,	em	Paris,	na	França,	apaga	-se	um	gênio	da	criação</p><p>literária	lusitana,	José	Maria	Eça	de	Queirós.</p><p>136 UNIUBE</p><p>Uma ilustre obra3.3</p><p>Elegemos	o	romance	A ilustre casa de Ramires (1900) para	trazer	a</p><p>você	um	pouco	mais	do	gênio	do	autor	das	já	consagradas	O primo</p><p>Basílio e Os Maias.	Essa	obra	faz	parte	da	terceira	fase	literária	de	Eça</p><p>e	é	considerada	a	obra	que	revela	o	seu	amadurecimento	como	autor.</p><p>Antes	de	avançarmos	em	nossa	discussão,	situemos	a	história.	O</p><p>personagem	principal	desse	romance	é	Gonçalo	Mendes	Ramires,</p><p>descendente	de	uma	família	cuja	origem	remonta	ao	século	XII.	O</p><p>protagonista	é	um	jovem	orgulhoso	do	seu	passado	familiar	e	decide</p><p>escrever	uma	novela	a	fim	de	relatar	os	feitos	de	sua	família,	a	partir	do</p><p>ato	heróico	de	seu	patriarca,	Trutesindo	Ramires.	O	título	de	sua	novela</p><p>é	A torre dos Ramires,	referência	à	imponente	torre	que	se	sobressai</p><p>na	propriedade	que	pertence	à	família	há	séculos.</p><p>Porém	os	Ramires	do	século	XIX	já	não	mais	ostentam	o	mesmo	poder</p><p>e	influência	que	seus	antepassados,	vivendo	muito	mais	de	aparências,</p><p>tanto	que	precisam	arrendar	sua	propriedade.	A	torre	dos	Ramires,</p><p>outrora	 símbolo	 de	 altivez,	 agora	 em	 ruínas,	 representa	 a	 própria</p><p>decadência.</p><p>Falemos,	então,	sobre	os	significados	ocultos	nesse	texto	que	revela	a</p><p>própria	história	de	Portugal. A ilustre casa de Ramires é	uma	narrativa</p><p>que	se	constrói	em	torno	de	antíteses:	passado	versus	presente,	glória</p><p>versus	decadência,	grandeza	versus	fragilidade.</p><p>Essa	dualidade	é	a	essência	da	estrutura	da	obra,	já	que	é	composta	pelo</p><p>cruzamento	de	duas	narrativas:	a	história	de	Gonçalo	Ramires	e	a	história</p><p>de	Trutesindo	Ramires.	A	primeira	narrativa	é	conduzida	por	Eça	por	meio</p><p>de	um	narrador	em	terceira	pessoa.	Quanto	à	segunda	narrativa,	trata	-se</p><p>da	novela	escrita	por	Gonçalo,	que	passa	de	personagem	a	autor	de	uma</p><p>UNIUBE 137</p><p>Notamos	que	não	há	no	texto	recursos	gráficos,	tais	como	recuo	ou</p><p>mudança	de	fonte,	ou	um	aviso	prévio	que	alertam	o	leitor	sobre	a</p><p>passagem	de	uma	história	a	outra.	Por	outro	lado,	é	a	percepção	dos</p><p>diferentes	níveis	em	que	as	histórias	acontecem	que	nos	situa	dentro</p><p>do(s)	texto(s).</p><p>Assim,	 no	 primeiro	 parágrafo	 desse	 fragmento,</p><p>temos	um	episódio	no	qual	Gonçalo	se	prepara</p><p>para	trabalhar	em	sua	obra	a	partir	de	um	ponto	que</p><p>não	estava	de	seu	agrado.	No	entanto,	no	segundo</p><p>parágrafo,	já	passamos	à	leitura	de	sua	novela.	Essa</p><p>transição	se	dá	quando	o	narrador onisciente,</p><p>após	relatar	as	preocupações	que	afligiam	Gonçalo</p><p>e	descrever	o	ambiente	ao	seu	redor,	passa	a	nos</p><p>“contar”	a	história	que	vem	sendo	escrita	pelo	personagem	-autor.</p><p>história	dentro	da	história.	O	uso	de	tal	recurso</p><p>metalinguístico	exige	uma	leitura	mais	atenta	que</p><p>de	costume,	a	fim	de	se	fazer	a	distinção	entre	uma</p><p>e	outra	narrativa.	Vejamos	um	fragmento	da	obra:</p><p>Para	se	acalmar,	ocupar	a	noite	encerrada,	deliberou</p><p>trabalhar	na	novela.	E	realmente	agora	convinha	que</p><p>terminasse	essa	Torre de D. Ramires	antes	do	afã	da</p><p>eleição	–	para	que	em	janeiro,	ao	abrir	das	Cortes,</p><p>surgisse	na	política	com	o	seu	velho	nome	aureolado</p><p>pela	erudição	e	pela	arte.	Envergou	o	roupão	de	flanela.</p><p>E	à	banca,	com	o	costumado	bule	de	chá	inspirador,</p><p>repassou	lentamente	o	começo	do	Capítulo	II,	que	o</p><p>não	contentava.</p><p>Era	no	Castelo	de	Santa	Ireneia,	naquele	dia	de	agosto</p><p>em	que	Lourenço	Ramires	caíra	no	vale	de	Canta</p><p>Pedra,	malferido	e	cativo	do	Bastardo	de	Baião.	[...]	já</p><p>Trutesindo	Ramires	conhecia	o	desventuroso	desfecho</p><p>da	lide...	(QUEIRÓS,	2004,	p.	128)</p><p>Metalinguístico</p><p>De	uma	forma</p><p>simples,</p><p>metalinguagem</p><p>é	a	propriedade</p><p>que	tem	a	língua</p><p>de	voltar	-se	para</p><p>si	mesma.	Por</p><p>exemplo,	o	poema</p><p>Metáfora de</p><p>Gilberto	Gil,	em	que</p><p>o	texto	literário	fala</p><p>sobre	essa	figura	de</p><p>linguagem.</p><p>A	partir	da	leitura	desse	fragmento,	você	percebe	o	recurso	utilizado	por	Eça</p><p>ao	contar	a	história	da	família	Ramires?</p><p>PARADA	OBRIGATÓRIA</p><p>Narrador onisciente</p><p>Narra	a	história	em</p><p>terceira	pessoa,	sabe</p><p>tudo	sobre	o	enredo</p><p>e as personagens,</p><p>inclusive	o	que</p><p>pensam	e	sentem.</p><p>Pode	fazer</p><p>intromissões	em</p><p>primeira	pessoa.</p><p>138 UNIUBE</p><p>As	duas	narrativas	representam	a	dualidade	passado	versus presente. A</p><p>novela	de	Gonçalo	Ramires	está	ligada	à	tradição	medieval	das	novelas</p><p>de	cavalaria,	enquanto	o	romance	de	Eça	de	Queirós	se	enquadra</p><p>na	estética	realista	do	século	XIX.	Vejamos	um	pouco	mais	sobre	as</p><p>características	de	uma	e	de	outra.</p><p>A	novela	ou	romance	de	cavalaria	surge	no	século	XII	e	narra	os	feitos</p><p>heroicos	de	cavaleiros	que	prezavam	ideais	de	lealdade,	coragem	e</p><p>honra.	Outro	componente	dessa	narrativa	é	a	luta	pela	mulher	amada,</p><p>já	que	havia	algum	complicador	na	história	que	impedia	a	realização</p><p>desse	amor.</p><p>São	esses	os	ingredientes	que	compõem	a	novela	de	Gonçalo	Ramires.</p><p>Trata	-se	 da	 narrativa	 de	 um	 episódio	 ocorrido	 com	 seu	 patriarca,</p><p>Trutesindo	Ramires,	no	século	XII.	O	velho	Ramires	defende	a	honra</p><p>de	sua	família	contra	seu	oponente	Lopo	de	Baião	que,	apaixonado	por</p><p>Violante	Ramires,</p><p>tenta	invadir	a	propriedade	da	família,	a	fim	de	levar</p><p>consigo	a	donzela.	No	embate,	um	dos	Ramires,	Lourenço,	é	mortalmente</p><p>ferido.	A	partir	daí,	Trutesindo	Ramires	e	seu	grupo	perseguem	Lopo	de</p><p>Baião,	até	que	este	seja	capturado	e	morto.	Somente	dessa	forma,	a</p><p>honra	da	família	é	recuperada.</p><p>O	Realismo,	em	contrapartida,	é	uma	estética	 literária	surgida	na</p><p>segunda	metade	do	século	XIX	que	visa	à	objetividade,	ao	retratar	e</p><p>criticar	a	realidade.	Assim,	o	homem	realista,	longe	de	ser	um	herói,	é</p><p>comum	e	possui	fraquezas.</p><p>Realismo</p><p>Inicia	-se	com	a	publicação	do	romance	Madame Bovary	(1857),	do	francês</p><p>Gustave	Flaubert.</p><p>SAIBA	MAIS</p><p>UNIUBE 139</p><p>Ao	retratar	os	Ramires	do	passado	e	os	Ramires	do	presente,	Eça	nos</p><p>conduz	ao	exame	de	outra	dualidade,	a	grandeza	versus	a	fragilidade.</p><p>Enquanto	seus	antepassados	eram	homens	bravos	e	honrados,	Gonçalo</p><p>Ramires	era	um	fidalgo	acomodado,	sem	disposição	para	o	trabalho	e</p><p>incapaz	de	honrar	sua	palavra.</p><p>Em	sua	narrativa,	Gonçalo	exalta	o	caráter	dos	primeiros	Ramires	como</p><p>homens	bravos	e	destemidos,	capazes	de	enfrentar	qualquer	dificuldade.</p><p>Ao	mesmo	tempo,	vê	-se	tão	virtuoso	quanto	seus	avós,	porém	com</p><p>algumas	diferenças:</p><p>Mas	sentia	a	grandeza	e	o	préstimo	histórico	desse</p><p>arrojo,	que	outrora	impelia	os	seus	a	arrasar	solares</p><p>rivais,	a	escalar	vilas	mouriscas;	ressuscitava	pelo	Saber</p><p>e	pela	Arte,	arrojava	para	a	vida	ambiente,	esses	varões</p><p>temerosos,	com	os	seus	corações,	os	seus	trajes,	as</p><p>suas	 bravatas	 sublimes;	 dentro	 do	 espírito	 e	 das</p><p>expressões	do	seu	século	era,	pois,	um	bom	Ramires	–</p><p>um	Ramires	de	nobres	energias,	não	façanhudas,	mas</p><p>intelectuais	[...].	(QUEIRÓS,	2004,	p.	104)</p><p>Na	visão	de	Gonçalo	Ramires,	qual	é	o	traço	que	distingue	sua</p><p>geração	da	de	seus	antepassados?</p><p>Por	meio	da	reflexão	de	Gonçalo,	desenha	-se	o	perfil	das	duas	gerações.</p><p>Os	Ramires	medievais	eram	guerreiros	destemidos	que	não	se	furtavam</p><p>ante	a	qualquer	obstáculo.	Gonçalo	se	sente	 tão	nobre	quanto	os</p><p>primeiros	Ramires,	porém	ressalta	que	a	grandeza	da	família	não	mais</p><p>se	revela	pela	guerra,	mas	pela	arte	e	pelo	saber.</p><p>O	símbolo	da	transformação	do	homem	guerreiro	para	o	homem	intelectual</p><p>são	as	armas	que	cada	um	empunhava.	Enquanto,	no	passado,	os	Ramires</p><p>empunhavam	a	lança	e	a	espada,	no	presente,	a	arma	dos	Ramires	passa</p><p>a ser a pena.</p><p>Porém,	o	real	caráter	de	Gonçalo	é	revelado	ao	leitor	pelo	narrador,	que</p><p>desnuda	as	fraquezas	do	protagonista	da	história	com	ironia	e	objetividade.</p><p>140 UNIUBE</p><p>Tomemos	o	encontro	entre	Gonçalo	e	José	Casco,	com	quem	havia</p><p>firmado	compromisso	de	arrendar	sua	propriedade.	O	humilde	agricultor</p><p>interpela	o	fidalgo	em	uma	estrada,	pedindo	satisfações	sobre	o	motivo</p><p>pelo	qual	o	acordo	firmado	entre	eles	havia	sido	desfeito.	Sem	dar	uma</p><p>explicação	a	Casco,	Gonçalo	arrenda	sua	terra	a	outro	agricultor	que</p><p>oferece	um	preço	melhor	pela	terra.</p><p>Percebam	a	amostra	da	habilidade	narrativa	de	Eça	de	Queirós	contida</p><p>no	fragmento,	a	seguir.</p><p>Gonçalo	 Ramires	 levantou	 a	 cabeça	 com	 uma</p><p>dignidade	lenta	e	custosa,	como	se	levantasse	uma</p><p>maça	de	ferro:</p><p>–	Que	está	você	a	dizer,	Casco?	Faltar	à	palavra!	Em</p><p>que	lhe	faltei	eu	à	palavra?	Por	causa	do	arrendamento</p><p>da	Torre?	Essa	é	nova!	Então	houve	por	acaso	escritura</p><p>assinada	entre	nós?	Você	não	voltou,	não	apareceu...</p><p>O	Casco	emudecera,	assombrado.	Depois,	em	que	lhe</p><p>tremiam	os	beiços	brancos,	lhe	tremiam	as	secas	mãos</p><p>cabeludas,	fincadas	ao	cabo	do	varapau:</p><p>–	Se	houvesse	papel	assinado,	o	Fidalgo	não	podia</p><p>recuar!...	Mas	era	como	se	houvesse,	para	gente	de</p><p>bem!...	(QUEIRÓS,	2004,	p.	105)</p><p>O	parágrafo	se	inicia	com	a	forte	imagem	construída	a	fim</p><p>de	demonstrar	que	Gonçalo,	no	seu	íntimo,	estava	ciente</p><p>de	que	havia	agido	de	modo	desleal:	“levantou	a	cabeça</p><p>com	uma	dignidade	lenta	e	custosa,	como	se	levantasse</p><p>uma	maça	de	ferro”	(QUEIRÓS,	2004,	p.	105).</p><p>Em	seguida,	ao	responder	à	indagação	de	José	Casco,	Gonçalo	não	é</p><p>capaz	de	proferir	nenhuma	afirmativa,	ao	contrário,	devolve	perguntas</p><p>retóricas	e	exclamações	que	reforçam	as	evidências	que	diante	do	fato</p><p>não	havia	explicação	satisfatória,	talvez,	apenas	o	reconhecimento	de</p><p>sua	má	conduta.</p><p>O	homem	rural,	na	sua	simplicidade,	é	mais	digno	do	que	o	fidalgo	falido.</p><p>A	descrição	de	sua	reação	física	ante	o	assombro	da	dissimulação	de</p><p>Gonçalo	nos	revela	mais	do	que	sua	retidão	de	caráter.	Casco	representa</p><p>UNIUBE 141</p><p>o	homem	do	interior	rural	de	Portugal,	aquele	que	ostenta	um	corpo</p><p>castigado	pela	lida	diária	no	campo.	No	entanto,	essa	deterioração	física</p><p>não	lhe	diminui	o	valor,	mas	lhe	confere	dignidade,	já	que	a	imagem	de</p><p>suas	mãos	másculas	e	fortes	se	sobressai,	ao	simbolizar	a	força	capaz</p><p>de	realizar	o	pesado	trabalho	do	campo.</p><p>Outros	elementos	que	compõem	a	caracterização	do	personagem	rural</p><p>são	seu	nome,	Casco,	e	o	uso	de	palavras	como	“beiço”,	que	guardam</p><p>significados	que	não	apenas	sua	rusticidade	e	simplicidade.	A	palavra</p><p>“casco”,	ao	remeter	a	cavalo,	representa	a	força	e	a	energia	necessárias</p><p>a	um	homem	que	fosse	lavrar	sua	terra	e	dominar	seu	rebanho.	Assim,</p><p>sua	integridade	moral	era	proporcional	à	integridade	física.</p><p>Finalmente,	ao	contrário	do	discurso	fluido	de	Gonçalo,	as	palavras	de</p><p>José	Casco	são	firmes	e	certeiras,	demonstrando	que	a	palavra	do	homem</p><p>simples	é	mais	valiosa	e	digna	do	que	os	títulos	do	homem	burguês.</p><p>Um	dos	pontos	fortes	da	obra	eciana	é	a	discussão	das	temáticas	sociais.</p><p>Observem	vocês	que,	aqui,	temos	mais	uma	polarização:	a	cidade	versus</p><p>o	campo.	Desprezados	na	primeira	fase	literária	do	autor,	o	campo	e</p><p>sua	gente	ressurgem	valorizados	como	os	representantes	da	tradição</p><p>portuguesa	honrada	e	edificante,	em	sua	terceira	fase	literária.</p><p>Antes	de	prosseguirmos	em	nosso	estudo	sobre	A ilustre casa de</p><p>Ramires,	façamos	uma	pausa	a	fim	de	examinar	uma	representativa</p><p>obra	da	literatura	brasileira:</p><p>Deu	estalos	com	os	dedos.	A	cachorra	Baleia,	aos</p><p>saltos,	veio	lamber	-lhe	as mãos grossas e cabeludas.</p><p>Fabiano	recebeu	a	carícia,	enterneceu	-se:</p><p>–	Você	é	um	bicho,	Baleia.</p><p>Vivia	longe	dos	homens,	só	se	dava	bem	com	animais.</p><p>Os	seus	pés duros quebravam	espinhos	e	não	sentiam</p><p>a	 quentura	 da	 terra.	 Montado,	 confundia -se com</p><p>o cavalo,	grudava	-se	a	ele.	E falava uma linguagem</p><p>cantada, monossilábica e gutural,	que	o	companheiro</p><p>142 UNIUBE</p><p>entendia.	A	pé,	não	se	aguentava	bem.	Pendia	para</p><p>um	lado,	para	o	outro	lado,	cambaio,	torto	e	feio.	Às</p><p>vezes	utilizava	nas	relações	com	as	pessoas	a	mesma</p><p>língua	com	que	se	dirigia	aos	brutos	–	exclamações,</p><p>onomatopeias.	Na	verdade	falava	pouco.	(RAMOS,</p><p>1995,	p.	19-20)</p><p>Notaram	que,	apesar	da	caracterização	semelhante,	as	descrições	do</p><p>camponês	lusitano	de	Eça	e	do	sertanejo	nordestino	de	Graciliano	nos</p><p>conduzem	a	diferentes	realidades?	Você	saberia	diferenciar	o	homem	rural</p><p>de	Eça	de	Queirós	do	de	Graciliano	Ramos?</p><p>PARADA	OBRIGATÓRIA</p><p>Fabiano,	de	Vidas secas,	apesar	da	mesma	origem	rural	de	José	Casco,</p><p>é	totalmente	desprovido	de	qualquer	caráter	humano.	Os	traços	físicos</p><p>do	nordestino	o	tornam	não	um	homem	apto	para	o	trabalho	como	o</p><p>camponês	lusitano,	mas	um	animal.	Sua	animalidade	é	ressaltada	pela</p><p>ausência	da	habilidade	exclusiva	da	raça	humana,	a	linguagem,	sendo</p><p>capaz	de	comunicar	-se	apenas	com	animais	como	a	cachorra	Baleia	ou</p><p>o	seu	cavalo.</p><p>Dessa	forma,	enquanto	Eça	reconhece	o	valor	e	a	importância	do	homem</p><p>da	terra,	Graciliano	desenvolve	a	temática	social	em	nossa	literatura,	ao</p><p>expor	as	condições	degradantes	em	que	o	sertanejo	nordestino	vivia	já</p><p>no	início	do	século	XX.</p><p>Após	um	passeio	pela	literatura	de	Graciliano,	voltemos	ao	nosso	estudo</p><p>e	vejamos	por	que	Eça	escolheu	o	interior	de	Portugal	como	cenário	de</p><p>seu	romance.</p><p>As	histórias	–	a	da	novela	e	a	do	romance	–	têm	como	cenário	as</p><p>paisagens	interioranas	de	Oliveira,	Santa	Ireneia	e	Vila	Clara	que,	no</p><p>passado,	testemunharam	grandes	lutas	contra	invasões	inimigas	e</p><p>que,	no	presente,	são	o	interior	desprezado	de	uma	nação	que	busca	a</p><p>modernidade	sem	jamais	ter	perdido	sua	essência	agrária.</p><p>UNIUBE 143</p><p>Alegoria</p><p>É	uma	sequência</p><p>de	metáforas,</p><p>associando e</p><p>aproximando</p><p>elementos,	que,</p><p>normalmente,	não</p><p>teriam	nenhum</p><p>parentesco.</p><p>Para	Eça,	a	definição	do	caráter	português	no	século	XIX	se	daria	por</p><p>meio	da	reconciliação	entre	a	identidade	urbana	e	a	identidade	rural.	A</p><p>esse	respeito,	Antonio	Candido,	citado	por	Nery,	nos	diz	que:</p><p>[...]	a	ambígua	civilização	portuguesa,	 incapaz	de</p><p>libertar	-se	do	peso	do	passado	e	de	forjar	com	estilos</p><p>tradicionais	uma	síntese	de	vida,	criou	para	Eça	um</p><p>impasse	literário	que	ele	resolve	pelo	abandono	da	linha</p><p>urbana.	(CANDIDO,	1964,	p.	51)</p><p>Porém	ainda	nos	resta	comentar	o	elemento	que	é	o	elo	entre	ambas	as</p><p>narrativas	de	A ilustre casa de Ramires:	trata	-se	da	Torre	dos	Ramires.</p><p>A	edificação	é,	na	verdade,	uma	alegoria para a</p><p>própria	nação	portuguesa,	que,	da	imponência</p><p>medieval,	passa	a	ruínas	no	século	XIX,	ou	seja,</p><p>o	país	pioneiro	das	grandes	navegações	passa</p><p>a	 península	 periférica	 durante	 a	 Revolução</p><p>Industrial.</p><p>Esse	percurso	demonstra	como	alguns	dos	problemas	que	marcaram	a</p><p>identidade	da	sociedade	portuguesa	do	século	XIX	foram	retratados	sob</p><p>a	ótica	queirosiana.</p><p>Apesar	do	caráter	específico	de	sua	temática,	Eça	não	se	eximiu	de</p><p>escrever	sobre	um	tema	caro	à	estética	realista,	as	relações	amorosas.</p><p>Em	A ilustre casa de Ramires,	o	assunto	é	tratado	tanto	na	novela</p><p>quanto	no	romance,	porém	sob	diferentes	perspectivas.</p><p>Na	primeira,	temos	o	amor	romântico	entre	Lopo	de	Baião	e	Violante</p><p>Ramires,	 que,	mesmo	 apaixonados,	 são	 impedidos	 da	 realização</p><p>amorosa.	Em	nome	de	seu	sentimento,	o	homem	medieval	era	capaz,</p><p>até	mesmo,	de	morrer	por	amor.</p><p>144 UNIUBE</p><p>No	romance	realista,	o	relacionamento	amoroso,	ao	contrário,	é	um</p><p>caminho	para	atender	a	outras	necessidades,	que	não	as	do	coração.</p><p>Ao	longo	da	história,	Gonçalo	se	interessa	por	duas	mulheres,	Dona	Ana,</p><p>uma	jovem	viúva	rica,	e	Rosinha,	filha	de	um	amigo	endinheirado.	Porém</p><p>o	fidalgo	apenas	considera	a	possibilidade	de	uma	esposa	rica	e	distinta,</p><p>e	seu	destino	amoroso	permanece	em	suspense.</p><p>A	ousadia	em	relação	ao	tema	está	em	Gracinha	Ramires,	irmã	de</p><p>Gonçalo.	Assim	como	Emma	Bovary,	a	moça,	que	vivia	no	interior,	casada</p><p>com	um	homem	cujo	único	atrativo	era	a	estabilidade	financeira,	dá</p><p>indícios	de	um	possível	adultério	ao	reencontrar	um	antigo	pretendente.</p><p>Dada	a	abrangência	da	narrativa	da	obra,	tratamos,	aqui,	daqueles</p><p>aspectos	que	julgamos	suficientes	para	atenderem	ao	propósito	de	nosso</p><p>trabalho:	destacar	Eça	de	Queirós	como	um	dos	expoentes	da	literatura</p><p>portuguesa.</p><p>A ilustre casa de Ramires	permite	a	Eça	desvendar	a	sociedade</p><p>portuguesa	de	seu	tempo.	Ao	contrário	das	críticas	da	primeira	fase,	o</p><p>autor	refaz	a	história	da	nação	e	propõe	novos	rumos	para	um	país	sem</p><p>direção.	A	reconciliação	do	cosmopolita	com	a	pátria	se	dá	por	meio	do</p><p>personagem	que	representa	o	próprio	Eça,	Gonçalo	Ramires.</p><p>O	fidalgo,	ao	final	de	sua	novela,	revê	sua	vida	e	toma	consciência	de</p><p>que	não	pode	mais	viver	preso	ao	passado,	devendo	ser	o	autor	de	sua</p><p>própria	história.	Da	mesma	forma	que	em	sua	obra,	a	trajetória	pessoal</p><p>de	Eça	comporta	 também	uma	dualidade:	a	ousadia	da	 juventude</p><p>representa	a	passagem	para	a	sensatez	da	maturidade.</p><p>Nosso	estudo	sobre	os	autores	e	as	obras	da	literatura	portuguesa	não</p><p>deve	parar	por	aqui.	Além	de	Eça	e,	claro,	Camões	e	Fernando	Pessoa,</p><p>há	outros	escritores	de	língua	portuguesa	que	merecem	ser	lidos	e</p><p>estudados.	Incluindo	-se,	nessa	relação,	autores	contemporâneos	como</p><p>José	Saramago,	o	moçambicano	Mia	Couto	e	o	angolano	José	Eduardo</p><p>Agualusa.</p><p>UNIUBE 145</p><p>Singularidades de um conto3.4</p><p>Ao	longo	dos	anos,	deparamos	com	criações	literárias	que	despertam	o</p><p>interesse	da	crítica	e	do	público	por	várias	gerações.</p><p>Isso	pode	ser	creditado	à	capacidade	artística	de	seus	criadores	que,</p><p>magistralmente,	são	capazes	de	retratar	as	diversas	facetas	humanas</p><p>sob	a	forma	de	texto	literário.</p><p>No	entanto	a	simples	captação	dos	dilemas	humanos	não	é	o	bastante</p><p>para	a	criação	de	boas	histórias.	A	utilização	inovadora	da	palavra	e	da</p><p>linguagem	é	que	serão	capazes	de	seduzir	o	leitor,	ao	criar	o	jogo	de</p><p>significados	ocultos	tão	peculiar	a	essa	forma	de	arte.</p><p>Poderíamos	citar	uma	plêiade	de	autores	que	se	eternizaram	pelo	mérito</p><p>da	criação	de	obras	-primas.	Eça	é,	indubitavelmente,	um	deles.</p><p>Mais	de	um	século	após	sua	morte,	sua	obra	continua	alvo	de	interesse</p><p>dos	meios	intelectuais	e	artísticos:	artigos,	dissertações,	teses,	peças	de</p><p>teatro,	minisséries,	filmes...</p><p>Sendo	assim,	a	fim	de	fundamentar	sua	formação	como	professor	de</p><p>literatura	da	escola	básica,	propomos	a	leitura	e	o	estudo	de	um	dos	mais</p><p>celebrados	contos	do	autor:	Singularidades de uma rapariga loura.</p><p>Em	 relação	 à	 obra	 de	 Eça,	 destacam	-se	 não	 só	 seus	 romances,</p><p>mas	também	seus	contos.	Estes	exigiam	do	autor	o	exercício	de	sua</p><p>capacidade	artística,	ao	deparar		com	a	exiguidade	do	conto,	que	impõe</p><p>ao	artista	a	economia	das	palavras	para	contar	sua	história.	Desse	modo,</p><p>para	que	você	conheça	mais	a	obra	desse	renomado	autor,	propomos	a</p><p>você	a	leitura	do	conto	Singularidades de uma rapariga loura (veja	na</p><p>seção	“Novos	conhecimentos”).	Porém,	antes	de	iniciá	-la,	considere	as</p><p>questões	que	se	seguem.</p><p>146 UNIUBE</p><p>Quem	são	os	personagens	centrais	do	conto?</p><p>A	que	“singularidades”	se	refere	o	título	do	conto?</p><p>Qual	é	o	tema	da	narrativa?</p><p>PARADA	PARA	REFLEXÃO</p><p>Singularidades de uma rapariga loura	chega	ao	leitor	por	intermédio	de</p><p>um	narrador,	de	quem	sequer	sabemos	o	nome.	É	ele	quem	nos	conta	a</p><p>história	do	infortúnio	amoroso	ocorrido	na	juventude	do	velho	Macário	e</p><p>que	determinaria	sua	trajetória	de	vida.	O	encontro	dos	dois	personagens</p><p>acontece	em	uma	estalagem	na	região	portuguesa	do	Minho.</p><p>Isso	fica	evidente	quando	o	narrador	se	volta	ao	leitor:	“Devo	dizer	que</p><p>conheci	este	homem	numa	estalagem	do	Minho”	(QUEIRÓS,	2006a,	p.</p><p>59)	ou	“Disse	-me	ele	que,	sendo	naturalmente	linfático	e	mesmo	tímido,</p><p>a	sua	vida	tinha	nesse	tempo	uma	grande	concentração”	(QUEIRÓS,</p><p>2006a,	p.	62).</p><p>Portanto,	no	conto,	deparamo	s	com	uma	categoria	distinta	de	narrador</p><p>se	comparado	ao	do	romance	A ilustre casa de Ramires.	Agora,	temos</p><p>o	chamado	narrador	heterodiegético.	Segundo	D´Onofrio	(2007,	p.	391,</p><p>grifo	nosso),	esse	narrador	pode	ser	considerado:</p><p>[...]	uma	personagem	ad hoc,	colocada	no	conto	com</p><p>a	única	função	de	transmitir	ao	leitor	o	caso	de	vida</p><p>do	 protagonista	 da	 história,</p><p>que	 o	 próprio	 Macário	 lhe</p><p>contara.	O	narrador	funciona,</p><p>então,	 como	 intermediário</p><p>entre	o	protagonista	Macário</p><p>(elemento	do	mundo	da	ficção),</p><p>de	quem	é	receptor,	e	o	leitor</p><p>virtual	 (elemento	 do	 mundo</p><p>real),	para	quem	é	transmissor	da	mensagem.	Essa</p><p>função	de	elo	de	ligação	entre	o	mundo	imaginário	e</p><p>o	mundo	real	confere	ao	narrador	uma	visão	objetiva,</p><p>pois	sua	postura	é	a	de	quem	narra	fatos	e	descreve</p><p>sentimentos,	acontecidos,	vividos	e	narrados	por	uma</p><p>terceira pessoa.</p><p>Ad hoc</p><p>Expressão	latina</p><p>que	significa	“para</p><p>isto”	ou	“para	esta</p><p>finalidade”.</p><p>UNIUBE 147</p><p>Isso	posto,	perguntamos	a	você,	caro	aluno:	quem	é	o	primeiro</p><p>narrador	da	história?</p><p>Macário	é	o	primeiro	narrador	da	história,	pois	conta	ao	seu	companheiro</p><p>de	estalagem	seu	decepcionante	caso	amoroso.	Este,	por	sua	vez,</p><p>assume	o	papel	do	narrador	que	conta	a	nós,	leitores,	a	história	ouvida:</p><p>“Macário	contou	-me	o	que	determinara	mais	precisamente	àquela</p><p>resolução	profunda	e	perpétua”	(QUEIRÓS,	2006a,	p.	71)	ou	“E	ele</p><p>explicou	-me	que	os	lucros	de	Cabo	Verde	não	podiam	constituir	um</p><p>capital	definitivo”	(QUEIRÓS,	2006a,	p.	75).</p><p>Assim,	é	a	esse	personagem	sem	nome	que	Macário,	o	protagonista	da</p><p>história,	revela	sua	história.	Mas	e	quanto	aos	personagens	principais	desse</p><p>conto,	quem	são	eles	e	como	podemos	situá	-los	diante	da	estética	realista?</p><p>PARADA	PARA	REFLEXÃO</p><p>O	primeiro	deles	é,	sem	dúvida,	o	próprio	Macário	descrito,	de	forma</p><p>breve,	na	juventude,	como	louro	de	cabelo	anelado	e	barba	curta.	Em</p><p>contrapartida,	o	homem	maduro,	que	acumula	experiências</p><p>de	vida,	é</p><p>descrito	de	modo	bastante	pormenorizado:</p><p>[...]	alto	e	grosso;	tinha	uma	calva	larga,	luzidia	e	lisa,</p><p>com	repas	brancas	que	lhe	eriçavam	em	redor;	e	os</p><p>seus	olhos	pretos,	com	a	pele	em	roda	engelhada	e</p><p>amarelada,	e	olheiras	papudas,	tinham	uma	singular</p><p>clareza	e	retidão	–	por	trás	de	seus	óculos	redondos</p><p>com	aros	de	tartaruga.	Tinha	a	barba	rapada,	o	queixo</p><p>saliente	e	resoluto.	Trazia	uma	gravata	de	cetim	negro</p><p>apertada	por	trás	com	uma	fivela;	um	casaco	comprido</p><p>cor	de	pinhão,	com	as	mangas	estreitas	e	justas	e</p><p>canhões	de	veludilho.	E	pela	longa	abertura	do	seu</p><p>colete	de	seda,	onde	reluzia	um	grilhão	antigo	–	saíam</p><p>as	pregas	moles	de	uma	camisa	bordada.	(QUEIRÓS,</p><p>2006a,	p.	59)</p><p>148 UNIUBE</p><p>O	jovem	Macário	era	de	aparência	comum,	bom	negociante,	honesto,</p><p>mas	sem	malícia	diante	de	situações	que	exigiam	senso	prático	e</p><p>esperteza,	e	não	apenas	inteligência.	Nesse	sentido,	aquele	que	tentou</p><p>alertar	Macário	para	o	exagero	que	vinha	cometendo	contra	sua	própria</p><p>vida	foi	o	tio	Francisco,	ao	dizer	ao	sobrinho	que	era	um	“estúpido,	mas</p><p>homem	de	bem”.	(QUEIRÓS,	2006a,	p.	77)</p><p>Essa	fala	do	tio	Francisco	revela	a	dualidade	que	marca	Macário	e	a	qual</p><p>o	personagem	deveria	superar	para	conseguir	viver	plenamente	sua	vida:</p><p>[...]	estúpido,	porque,	deixando	-se	levar	pela	paixão</p><p>amorosa,	renuncia	ao	emprego	que	lhe	dava	segurança</p><p>econômica;	 estúpido,	 porque	 se	 deixa	 embrulhar</p><p>pelo	“amigo	do	chapéu	de	palha”;	estúpido,	porque</p><p>não	compreende	a	doença	de	sua	noiva,	confundindo</p><p>cleptomaníaca	com	ladra	e	ameaçando	entregá	-la	à</p><p>polícia,	quando	deveria	procurar	-lhe	um	psicanalista.</p><p>Homem	de	bem,	porque	vive	de	acordo	com	seu	código</p><p>de	honra:	por	ter	beijado	Luísa,	sente	-se	obrigado	a</p><p>casar	com	ela;	por	ter	assinado	a	fiança,	assume	a</p><p>dívida	daquele	que	considerara	seu	amigo;	por	ter</p><p>descoberto	o	furto	da	noiva,	paga	o	preço	do	anel	e</p><p>abandona	a	moça,	que	era	o	motivo	de	sua	realização</p><p>existencial,	condenando	-se	a	uma	perpétua	e	infeliz</p><p>solidão.	(D´ONOFRIO,	2007,	p.	395)</p><p>Dessa	forma,	do	jovem	ingênuo	surge	o	velho	reservado,	marcado</p><p>fisicamente	pelo	tempo	–	calvo	e	de	olhos	cansados.	Além	do	mais,	o</p><p>desleixo	de	sua	aparência	–	mau	gosto	no	vestir	-se,	gravata	presa	por</p><p>uma	fivela,	casaco	de	mangas	justas,	camisa	gasta	–	nos	leva	a	crer	que</p><p>vivia	solitariamente.</p><p>Apesar	das	experiências	que	poderiam	ter	concorrido	para	o	amadurecimento</p><p>de	Macário,	aquela	que	definirá	os	rumos	de	sua	vida	é,	sem	dúvida,	a</p><p>decepção	ao	descobrir	que	Luísa	se	apossava	de	objetos	alheios.</p><p>Assim,	Luísa	é	o	segundo	personagem	central	do	enredo.	Ela	é	descrita</p><p>romanticamente	como	loura,	fresca,	de	pele	alva	e	delicada	como	porcelana.</p><p>Porém,	da	aparência	angelical	e	romântica,	surge	um	personagem	que</p><p>UNIUBE 149</p><p>revela	traços	típicos	do	Realismo.	Ao	longo	da	história,	emerge	seu</p><p>desinteresse	pelo	relacionamento	com	Macário,	já	que,	nos	“encontros</p><p>noturnos,	tinha	sono”	(QUEIRÓS,	2006a,	p.	73)	e,	de	forma	gradual,	sua</p><p>atração	por	objetos	valiosos	e	caros,	como	na	passagem	em	que	fica</p><p>hipnotizada	pela	moeda	de	ouro	a	girar	na	mesa	de	jogo.</p><p>Finalmente,	surge	Francisco	que	é	o	personagem	cuja	função	seria	ajudar</p><p>o	sobrinho	a	fazer	escolhas	equilibradas.	De	acordo	com	D´Onofrio	(2007),</p><p>à	primeira	vista,	temos	a	impressão	de	que	esse	personagem	é	um	velho</p><p>autoritário,	solteirão,	misógino.	Porém,	com	o	desenrolar	da	história,	em	um</p><p>momento	crucial	para	Macário,	o	tio	é	capaz	de	acolhê	-lo	e	apoiá	-lo,	mas</p><p>sem	eximir	-se	de	sua	franqueza.	A	oposição	ao	casamento	era	decorrente</p><p>do	pressentimento	do	homem	vivido	diante	da	escolha	da	mulher	errada</p><p>pelo	sobrinho.	Assim,	dos	três	personagens	centrais	aquele	que	demonstra</p><p>uma	mudança	de	atitude	é	Francisco.	Isso	evidencia	-se	na	passagem	em</p><p>que	ele	se	emociona	ao	fazer	as	pazes	com	Macário.</p><p>De	acordo	com	os	princípios	da	estética	realista,	o	caráter	dos	personagens</p><p>é	fortemente	determinado	pelo	ambiente,	sendo	que	“segundo	as	teorias</p><p>positivistas	e	deterministas,	o	espaço	(o	meio)	e	o	tempo	(o	momento)</p><p>são	fatores	importantíssimos	para	a	formação	do	caráter	e	elementos</p><p>indispensáveis	para	a	compreensão	da	conduta”.	(D´ONOFRIO,	2007,	p.	395)</p><p>Dois	fatos	da	história	são	antecedidos	por	uma	descrição	minuciosa</p><p>do	ambiente.	O	primeiro	deles	refere	-se	ao	episódio	inicial	do	conto,	o</p><p>encontro	entre	Macário	e	seu	conhecido,	a	quem	revela	o	episódio	mais</p><p>marcante	de	sua	vida.</p><p>Volte	ao	conto	e	observe	como	Eça	detalha	não	só	o	cenário	–	uma</p><p>estalagem	no	Minho	e	o	desenho	geográfico	da	região	que	a	abriga	–	como</p><p>também	a	época	em	que	se	deu	o	encontro	–	a	transição	do	clima	em</p><p>setembro.	Tudo	isso	serve	de	preparação	para	que	Macário	se	sentisse	à</p><p>vontade	para	revelar	sua	história.</p><p>PARADA	OBRIGATÓRIA</p><p>150 UNIUBE</p><p>Outro	episódio	marcante	da	história	é	quando	Macário	depara		com	as</p><p>figuras	femininas	da	viúva	e	da	filha	desta,	Luísa.	A	visão	das	mulheres	e</p><p>o	despertar	do	sentimento	amoroso	no	jovem	inexperiente	são	marcados</p><p>pelo	detalhamento	do	espaço	físico,	dos	ruídos	do	ambiente,	o	clima</p><p>quente	e	o	céu	limpo.</p><p>Esses	são	dois	exemplos	de	como	os	autores	alinhados	aos	preceitos</p><p>realistas	usavam	o	detalhismo	da	descrição	de	elementos	típicos	da</p><p>narração,	como	o	tempo	e	o	espaço,	com	o	intuito	de:</p><p>[...]	a	descrição	de	pormenores	é	a	técnica	específica</p><p>de	que	se	serve	a	arte	realista	para	retratar	fielmente</p><p>a	 realidade.	 Para	 descobrir	 as	 causas	 psíquicas	 e</p><p>circunstanciais	 que	 determinariam	 certas	 ações	 ou</p><p>para	alcançar	os	meandros	dos	conflitos	existenciais,	o</p><p>escritor	procede	lentamente,	analisando	cuidadosamente</p><p>elementos	espaciais	e	temporais,	posto	que	estes	são</p><p>determinantes	do	comportamento	dos	personagens.</p><p>(D´ONOFRIO,	2007,	p.	384)</p><p>Ao	mencionarmos	a	influência	do	ambiente	sobre	as	personagens,</p><p>deparamos	com	o	tema	desse	conto,	a	cleptomania.	Complementando	a</p><p>discussão	iniciada	anteriormente,	a	estética	realista	está	mais	interessada</p><p>no	retrato	fiel	das	personagens	do	que	na	sua	idealização.	Segundo	os</p><p>artistas	partidários	do	Realismo,	“as	ações	humanas	decorreriam,	então,</p><p>da	influência	de	fatores	ambientais,	hereditários	e	da	personalidade”</p><p>(D´ONOFRIO,	2007,	p.	384).</p><p>Dessa	forma,	é	assim	que	Luísa	tem	sua	singularidade	revelada	ao	final</p><p>do	conto,	quando	a	apropriação	indevida	do	anel	é	percebida	pelo	dono</p><p>da	joalheria,	e	Macário	toma	consciência	dos	hábitos	da	noiva.	A	essa</p><p>altura,	Eça	já	havia	deixado	pistas	ao	leitor,	e	ao	próprio	Macário,	dessa</p><p>particularidade,	preparando	-os	para	a	revelação	final.</p><p>Você	saberia	apontar	quais	momentos	da	narrativa	insinuam	a</p><p>cleptomania	de	Luísa?</p><p>UNIUBE 151</p><p>1)		O	primeiro	momento	é	quando	Macário	tem	a	visão	de	Luísa	à	janela</p><p>portando	um	rico	leque	do	Oriente.	O	rapaz	deduz	que	se	tratava	de</p><p>moça	de	família	de	posses	dado	o	valor	do	objeto.</p><p>2)		A	segunda	ocorrência	é	o	desaparecimento	da	caixa	de	lenços	indianos</p><p>do	armazém	do	tio	Francisco,	quando	Luísa	e	a	mãe	estavam	apenas</p><p>olhando	mercadorias.</p><p>3)		O	terceiro	momento	é	o	desaparecimento	da	moeda	de	ouro	durante</p><p>o	jogo	na	casa	de	amigos.</p><p>E	como	diferenciar,	então,	a	doença	de	Luísa	do	ato	de	roubar?</p><p>Inicialmente,	poderíamos	pensar	que	a	moça	apoderava	-se	de	objetos</p><p>alheios	já	que	não	contava	com	a	presença	do	pai	para	apoiar	a	família</p><p>financeiramente.	No	entanto,	ao	roubar	o	anel,	quando	já	estava	de</p><p>casamento	marcado	com	um	homem	capaz	de	prover	-lhe	materialmente,</p><p>revela	-se,	assim,	que	Luísa	era	incapaz	de	controlar	o	ato,	tratando	-se,</p><p>portanto,	de	uma	patologia	de	fundo	psíquico.</p><p>Assuntos	relacionados	ao	psiquismo	também	foram	bastante	explorados</p><p>pela	estética	realista,	já	que	atos	condenáveis	cometidos	pelas	personagens</p><p>poderiam	justificar	-se	pelas	descobertas	da	medicina.</p><p>A	leitura	desse	conto	permitiu	-nos	conhecer	um	pouco	da	variedade</p><p>criativa	de	Eça	de	Queirós.	O	autor	aborda	a	temática	do	relacionamento</p><p>amoroso	que	não	se	realiza,	porém,	dessa	vez,	o	motivo	é	a	rigidez	moral</p><p>de	Macário	que	o	impede	de	compreender	a	condição	psiquiátrica	da</p><p>noiva	e	ajudá	-la,	o	que	seria	a	condição	necessária	para	a	concretização</p><p>de	seu	casamento.</p><p>152 UNIUBE</p><p>Finalmente,	você	pode	inteirar	-se	um	pouco	mais	da	criação	do	autor	ao</p><p>ler	na	seção	“Novos	conhecimentos”,	a	seguir,	o	conto	Singularidades de</p><p>uma rapariga loura	(QUEIROZ,	2006),	que	explora	o	tema	da	cleptomania.</p><p>Desse	modo,	o	comportamento	humano,	influenciado	pelas	condições</p><p>ambientais	e	pelo	psiquismo,	é	retratado	pela	estética	realista.</p><p>Singularidades de uma rapariga loura</p><p>Eça de Queirós</p><p>Capítulo I</p><p>Começou	por	me	dizer	que	o	seu	caso	era	simples	–	e	que	se	chamava</p><p>Macário...</p><p>Devo	contar	que	conheci	este	homem	numa	estalagem	do	Minho.	Era	alto	e</p><p>grosso:	tinha	uma	calva	larga,	luzidia	e	lisa,	com	repas	brancas	que	se	lhe</p><p>eriçavam	em	redor:	e	os	seus	olhos	pretos,	com	a	pele	em	roda	engelhada</p><p>e	amarelada,	e	olheiras	papudas,	tinham	uma	singular	clareza	e	retidão	–</p><p>por	trás	dos	seus	óculos	redondos	com	aros	de	tartaruga.	Tinha	a	barba</p><p>rapada,	o	queixo	saliente	e	resoluto.	Trazia	uma	gravata	de	cetim	negro</p><p>apertada	por	trás	com	uma	fivela;	um	casaco	comprido	cor	de	pinhão,	com</p><p>as	mangas	estreitas	e	justas	e	canhões	de	veludilho.	E	pela	longa	abertura</p><p>do	seu	colete	de	seda,	onde	reluzia	um	grilhão	antigo	–	saíam	as	pregas</p><p>moles	de	uma	camisa	bordada.</p><p>Era	isto	em	Setembro;	já	as	noites	vinham	mais	cedo	com	uma	friagem	fina</p><p>e	seca	e	uma	escuridão	aparatosa.	Eu	tinha	descido	da	diligência,	fatigado,</p><p>esfomeado,	tiritando	num	cobrejão	de	listras	escarlates.</p><p>INDICAÇÃO	DE	LEITURA</p><p>UNIUBE 153</p><p>Vinha	de	atravessar	a	serra	e	os	seus	aspectos	pardos	e	desertos.	Eram</p><p>oito	horas	da	noite.	Os	céus	estavam	pesados	e	sujos.	E,	ou	fosse	um	certo</p><p>adormecimento	cerebral	produzido	pelo	rolar	monótono	da	diligência,	ou</p><p>fosse	a	debilidade	nervosa	da	fadiga,	ou	a	influência	da	paisagem	escarpada</p><p>e	chata,	sobre	côncavo	silêncio	noturno,	ou	a	opressão	da	eletricidade	que</p><p>enchia	as	alturas,	o	fato	é	que	eu	–	que	sou	naturalmente	positivo	e	realista</p><p>–	tinha	vindo	tiranizado	pela	imaginação	e	pelas	quimeras.	Existe	no	fundo</p><p>de	cada	um	de	nós,	é	certo	–	tão	friamente	educados	que	sejamos	–	um</p><p>resto	de	misticismo;	e	basta	às	vezes	uma	paisagem	soturna,	o	velho	muro</p><p>de	um	cemitério,	um	ermo	ascético,	as	emolientes	brancuras	de	um	luar	–</p><p>para	que	esse	fundo	místico	suba,	se	alargue	como	um	nevoeiro,	encha</p><p>a	alma,	a	sensação	e	a	ideia,	e	fique	assim	o	mais	matemático,	ou	o	mais</p><p>crítico,	tão	triste,	tão	visionário,	tão	idealista	–	como	um	velho	monge	poeta.</p><p>A	mim,	o	que	me	lançara	na	quimera	e	no	sonho	fora	o	aspecto	do	Mosteiro</p><p>de	Restelo,	que	eu	tinha	visto,	na	claridade	suave	e	outonal	da	tarde,	na	sua</p><p>doce	colina.	Então,	enquanto	anoitecia,	a	diligência	rolava	continuamente</p><p>ao	trote	esgalgado	dos	seus	magros	cavalos	brancos,	e	o	cocheiro,	com</p><p>o	capuz	do	gabão	enterrado	na	cabeça,	ruminava	no	seu	cachimbo	–	eu</p><p>pus	-me	elegiacamente,	ridiculamente,	a	considerar	a	esterilidade	da	vida:	e</p><p>desejava	ser	um	monge,	estar	num	convento,	tranquilo,	entre	arvoredos,	ou</p><p>na	murmurosa	concavidade	de	um	vale,	e	enquanto	a	água	da	cerca	canta</p><p>sonoramente	nas	bacias	de	pedra,	ler	a	«Imitação»,	e,	ouvindo	os	rouxinóis</p><p>nos	loureirais,	ter	saudades	do	Céu.	–	Não	se	pode	ser	mais	estúpido.	Mas</p><p>eu	estava	assim,	e	atributo	a	esta	disposição	visionária	a	falta	de	espírito	–	a</p><p>sensação	–	que	me	fez	a	história	daquele	homem	dos	canhões	de	veludinho.</p><p>A	minha	curiosidade	começou	à	ceia,	quando	eu	desfazia	o	peito	de	uma</p><p>galinha	afogado	em	arroz	branco,	com	fatias	escarlates	de	paio	–	e	a</p><p>criada,	uma	gorda	e	cheia	de	sardas,	fazia	espumar	o	vinho	verde	no	copo,</p><p>fazendo-o	cair	de	alto	de	uma	caneca	vidrada:	o	homem	estava	de	fronte</p><p>de	mim,	comendo	tranquilamente	a	sua	geleia:	perguntei	-lhe,	com	a	boca</p><p>cheia,	o	meu	guardanapo	de	linho	de	Guimarães	suspenso	nos	dedos	–	se</p><p>ele	era	de	Vila	Real.</p><p>154 UNIUBE</p><p>—	Vivo	lá.	Há	muitos	anos	–	disse	-me	ele.</p><p>—	Terra	de	mulheres	bonitas,	segundo	me	consta	–	disse	eu.</p><p>O	homem	calou	-se.</p><p>—	Heim?	–	tornei.</p><p>O	homem	contraiu	-se	num	silêncio	saliente.	Até	aí	estivera	alegre,	rindo</p><p>dilatadamente;	loquaz	e	cheio	de	bonomia.	Mas	então	imobilizou	o	seu</p><p>sorriso	fino.</p><p>Compreendi	que	tinha	tocado	a	carne	viva	de	uma	lembrança.	Havia	de	certo</p><p>no	destino	daquele	velho	uma	“mulher”.	Aí	estava	o	seu	melodrama	ou	a	sua</p><p>farsa,	porque	inconscientemente	estabeleci	-me	na	ideia	de	que	o	“fato”,	o</p><p>«caso»	daquele	homem,	devera	ser	grotesco	e	exalar	escárnio.</p><p>De	sorte	que	lhe	disse:</p><p>—	A	mim	têm	-me	afirmado	que	as	mulheres	de	Vila	Real	são	as	mais	bonitas</p><p>do	Minho.	Para	olhos	pretos	Guimarães,	para	corpos	Santo	Aleixo,	para</p><p>tranças	os	Arcos:	é	lá	que	se	vêem	os	cabelos	claros	cor	de	trigo.</p><p>O	homem	estava	calado,	comendo,	com	os	olhos	baixos.</p><p>—	Para	cinturas	finas	Viana,	para	boas	peles	Amarante	–	e	para	isto	tudo</p><p>Vila	Real.	Eu	tenho	um	amigo	que	veio	casar	a	Vila	Real.	Talvez	conheça.</p><p>O	Peixoto,	um	alto,	de	barba	loura,	bacharel.</p><p>—	O	Peixoto,	sim	–	disse	-me	ele,	olhando	gravemente	para	mim.</p><p>—	Veio	casar	a	Vila	Real	como	antigamente	se	ia	casar	à	Andaluzia	–</p><p>questão	de	arranjar	a	fina	flor	da	perfeição.</p><p>—	À	sua	saúde.</p><p>UNIUBE 155</p><p>Eu	evidentemente	constrangia	-o,	porque	se	ergueu,	foi	à	janela	com	um</p><p>passo	pesado,	e	eu	reparei	então	nos	seus	grossos	sapatos	de	casimira</p><p>com	sola	forte	e	atilhos	de	couro.	E	saiu.</p><p>Quando	eu	pedi	o	meu	castiçal,	a	criada	trouxe	-me	um	candeeiro	de	latão</p><p>lustroso	e	antigo	e	disse;</p><p>—	O	senhor	está	com	outro.	E	no	no 3.</p><p>Nas	estalagens	do	Minho,	às	vezes,	cada	quarto	é	um	dormitório	impertinente.</p><p>—	Vá	–	disse	eu.</p><p>O	no	3	era	no	fundo	do	corredor.	Às	portas	dos	lados	os	passageiros	tinham</p><p>posto	o	seu	calçado	para	engraxar:	estavam	umas	grossas	botas	de	montar,</p><p>enlameadas,	com	esporas	de	correia;	os	sapatos	brancos	de	um	caçador,</p><p>botas	de	proprietário,	de	altos	canos	vermelhos;	as	botas	de	um	padre,	altas,</p><p>com	a	sua	borla	de	retrós;	os	botins	cambados	de	bezerro,	de	um	estudante;</p><p>e	a	uma	das	portas,	o	no	15,	havia	umas	botinas	de	mulher,	de	duraque,</p><p>pequeninas	e	finas,	e	ao	lado	as	pequeninas	botas	de	uma	criança,	todas</p><p>coçadas	e	batidas,	e	os	seus	canos	de	pelica	-mor	caíam	-lhe	para	os	lados</p><p>com	os	atacadores	desatados.	Todos	dormiam.	Defronte	do	no	3	estavam</p><p>os	sapatos	de	casimira	com	atilhos:	e	quando	abri	a	porta	vi	o	homem	dos</p><p>canhões	de	veludilho,	que	amarrava	na	cabeça	um	lenço	de	seda	estava</p><p>com	uma	jaqueta	curta	de	ramagens,	uma	meia	de	lã,	grossa	e	alta,	e	os</p><p>pés	metidos	nuns	chinelos	de	ourelo.</p><p>—	O	senhor	não	repare	–	disse	ele.</p><p>—	À	vontade.	–	E	para	estabelecer	intimidade	tirei	o	casaco.</p><p>Não	direi	os	motivos	por	que	ele	daí	a	pouco,	já	deitado,	me	disse	a	sua</p><p>história.	Há	um	provérbio	eslavo	da	Galícia	que	diz:	«O	que	não	contas</p><p>à	tua	mulher,	o	que	não	contas	ao	teu	amigo,	contá	-lo	a	um	estranho,	na</p><p>estalagem.»	Mas	ele	teve	raivas	inesperadas	e	dominantes	para	a	sua</p><p>larga	e	sentida	confidência.	Foi	a	respeito	do	meu	amigo,	do	Peixoto,	que</p><p>156 UNIUBE</p><p>fora	casar	a	Vila	Real.	Vi	-o	chorar,	àquele	velho	de	quase	sessenta	anos.</p><p>Talvez	a	história	seja	julgada	trivial:	a	mim,	que	nessa	noite	estava	nervoso</p><p>e	sensível,	pareceu	-me	terrível	–	mas	conto	-a	apenas	como	um	acidente</p><p>singular	da	vida	amorosa...</p><p>Começou	pois	por	me	dizer	que	o	seu	caso	era	simples	e	que	se	chamava</p><p>Macário.</p><p>Perguntei	-lhe	então	se	era	de	uma	família	que	eu	conhecera,	que	tinha	o</p><p>apelido	de	«Macário».	E	como	ele	me	respondeu	que	era	primo	desses,</p><p>eu	tive	logo	do	seu	caráter	uma	ideia	simpática,	porque	os	Macários	eram</p><p>uma	antiga	família,	quase	uma	dinastia	de	comerciantes,	que	mantinham</p><p>com	uma	severidade	religiosa	a	sua	velha	tradição	de	honra	e	de	escrúpulo.</p><p>Macário	disse	-me	que	nesse	tempo,	em	1823	ou	33,	na	sua	mocidade,	seu</p><p>tio	Francisco	tinha,	em	Lisboa,	um	armazém	de	panos,	e	ele	era	um	dos</p><p>caixeiros.	Depois	o	tio	compenetrara	-se	de	certos	instintos	inteligentes	e	do</p><p>talento	prático	e	aritmético	de	Macário,	e	deu	-lhe	a	escrituração.	Macário</p><p>tornou</p><p>-se	o	seu	“guarda	-livros”.</p><p>Disse	-me	ele	que	sendo	naturalmente	linfático	e	mesmo	tímido,	a	sua	vida</p><p>tinha	nesse	tempo	uma	grande	concentração.	Um	trabalho	escrupuloso	e	fiel,</p><p>algumas	raras	merendas	no	campo,	um	apuro	saliente	de	fato	e	de	roupas</p><p>brancas,	era	todo	o	interesse	da	sua	vida.	A	existência,	nesse	tempo,	era</p><p>caseira	e	apertada.	Uma	grande	simplicidade	social	aclarava	os	costumes:</p><p>os	espíritos	eram	mais	ingênuos,	os	sentimentos	menos	complicados.</p><p>Jantar	alegremente	numa	horta,	debaixo	das	parreiras,	vendo	correr	a	água</p><p>das	regas	–	chorar	com	os	melodramas	que	rugiam	entre	os	bastidores	do</p><p>Salitre,	alumiados	a	cera,	eram	contentamentos	que	bastavam	à	burguesia</p><p>cautelosa.	Além	disso,	os	tempos	eram	confusos	e	revolucionários:	e	nada</p><p>torna	o	homem	recolhido,	conchegado	à	lareira,	simples	e	facilmente	feliz</p><p>–	como	a	guerra.	E	a	paz	que,	dando	os	vagares	da	imaginação,	causa	as</p><p>impaciências	do	desejo.</p><p>UNIUBE 157</p><p>Macário,	aos	vinte	e	dois	anos,	ainda	não	tinha	–	como	lhe	dizia	uma	velha</p><p>tia,	que	fora	querida	do	desembargador	Curvo	Semedo,	da	Arcádia	–</p><p>“sentido	Vênus”.</p><p>Mas	por	esse	tempo	veio	morar	para	defronte	do	armazém	dos	Macários,</p><p>para	um	terceiro	andar,	uma	mulher	de	quarenta	anos,	vestida	de	luto,	uma</p><p>pele	branca	e	baça,	o	busto	bem	feito	e	redondo	e	um	aspecto	desejável.</p><p>Macário	tinha	a	sua	carteira	no	primeiro	andar	por	cima	do	armazém,	ao</p><p>pé	de	uma	varanda,	e	dali	viu	uma	manhã	aquela	mulher	com	o	cabelo</p><p>preto	solto	e	anelado,	um	chambre	branco	e	braços	nus,	chegar	-se	a	uma</p><p>pequena	janela	de	peitoril,	a	sacudir	um	vestido.	Macário	afirmou	-se,	e,	sem</p><p>mais	intenção,	dizia	mentalmente	aquela	mulher,	aos	vinte	anos,	devia	ter</p><p>sido	uma	pessoa	cativante	e	cheia	de	domínio:	por	que	os	seus	cabelos</p><p>violentos	e	ásperos,	o	sobrolho	espesso,	o	lábio	forte,	perfil	aquilino	e	firme,</p><p>revelam	um	temperamento	ativo	e	imaginações	apaixonadas.	No	entanto,</p><p>continuou	serenamente	alinhando	as	suas	cifras.	Mas	à	noite	estava	sentado</p><p>fumando	à	janela	do	seu	quarto,	que	abria	sobre	o	pátio:	era	em	Julho	e	a</p><p>atmosfera	estava	elétrica	e	amorosa:	a	rabeca	de	um	vizinho	gemia	uma</p><p>chácara	mourisca,	que	então	sensibilizava,	e	era	de	um	melodrama;	o	quarto</p><p>estava	numa	penumbra	doce	e	cheia	de	mistério	–	Macário,	que	estava</p><p>em	chinelas,	começou	a	lembrar	-se	daqueles	cabelos	negros	e	fortes	e</p><p>daqueles	braços	que	tinham	a	cor	dos	mármores	pálidos:	espreguiçou	-se,</p><p>rolou	morbidamente	a	cabeça	pelas	costas	da	cadeira	de	vime,	como	os</p><p>gatos	sensíveis	que	se	esfregam,	e	decidiu	bocejando	que	a	sua	vida	era</p><p>monótona.	E	ao	outro	dia,	ainda	impressionado,	sentou	-se	à	sua	carteira</p><p>com	a	janela	toda	aberta,	e	olhando	o	prédio	fronteiro,	onde	viviam	aqueles</p><p>cabelos	grandes	–	começou	a	aparar	vagarosamente	a	sua	pena	de	rama.</p><p>Mas	ninguém	se	chegou	à	janela	do	peitoril,	com	caixilhos	verdes.	Macário</p><p>estava	enfastiado,	pesado	–	e	o	trabalho	foi	lento.	Pareceu	-lhe	que	havia	na</p><p>rua	um	sol	alegre,	e	que	nos	campos	as	sombras	deviam	ser	mimosas	e	que</p><p>se	estaria	bem	vendo	o	palpitar	das	borboletas	brancas	nas	madressilvas!	E</p><p>quando	fechou	a	carteira	sentiu	defronte	correr	-se	a	vidraça;	eram	de	certo</p><p>158 UNIUBE</p><p>os	cabelos	pretos.	Mas	apareceram	uns	cabelos	louros.	Oh!	E	Macário	veio</p><p>logo	salientemente	para	a	varanda	aparar	um	lápis.	Era	uma	rapariga	de</p><p>vinte	anos,	talvez	–	fina,	fresca,	loura	como	uma	vinheta	inglesa:	a	brancura</p><p>da	pele	tinha	alguma	coisa	de	transparência	das	velhas	porcelanas,	e	havia</p><p>no	seu	perfil	uma	linha	pura,	como	de	uma	medalha	antiga	e	os	velhos</p><p>poetas	pitorescos	ter	-lhe	-iam	chamado	–	pomba,	arminho,	neve	e	ouro.</p><p>Macário	disse	consigo:</p><p>—	É	filha.</p><p>A	outra	vestia	de	luto,	mas	esta,	a	loura	tinha	um	vestido	de	cassa	com	pintas</p><p>azuis,	um	lenço	de	cambraia	trespassado	sobre	o	peito,	as	mangas	pendidas</p><p>com	rendas,	e	tudo	aquilo	era	asseado,	moço,	fresco,	flexível	e	tenro.</p><p>Macário,	nesse	tempo,	era	louro,	com	barba	curta.	O	cabelo	era	anelado	e</p><p>a	sua	figura	devia	ter	aquele	ar	seco	e	nervoso	que	depois	do	século	XVIII</p><p>e	da	revolução	foi	tão	vulgar	nas	raças	plebeias.</p><p>A	rapariga	loura	reparou	naturalmente	em	Macário,	mas	naturalmente</p><p>desceu	a	vidraça	correndo	por	trás	uma	cortina	de	cassa	bordada.	Estas</p><p>pequenas	cortinas	datam	de	Goethe	e	elas	têm	na	vida	amorosa	um</p><p>interessante	destino:	revelam.	Levantar	-lhe	uma	ponta	e	espreitar,	franzi	-la</p><p>suavemente,	revela	um	fim;	corrê	-la,	pregar	nela	uma	flor,	agitá	-la	fazendo</p><p>sentir	que	por	trás	um	rosto	atento	se	move	e	espera	–	são	velhas	maneiras</p><p>com	que	na	realidade	e	na	arte	começa	o	romance.	A	cortina	ergueu	-se</p><p>devagarinho	e	o	rosto	louro	espreitou.</p><p>Macário	não	me	contou	por	pulsações	–	a	história	minuciosa	do	seu	coração.</p><p>Disse	singelamente	que	daí	a	cinco	dias	–	“estava	louco	por	ela”.	O	seu</p><p>trabalho	tornou	-se	logo	vagaroso	e	infiel	e	o	seu	belo	cursivo	inglês,	firme</p><p>e	largo,	ganhou	curvas,	ganchos,	rabiscos,	onde	estava	todo	o	romance</p><p>impaciente	dos	seus	nervos.	Não	a	podia	ver	pela	manhã:	o	sol	mordente</p><p>UNIUBE 159</p><p>de	Julho	batia	e	escaldava	a	pequena	janela	de	peitoril.	Só	pela	tarde,	a</p><p>cortina	se	franzia,	se	corria	a	vidraça,	e	ela,	estendendo	uma	almofadinha</p><p>no	rebordo	do	peitoril,	vinha	encostar	-se	mimosa	e	fresca	com	o	seu	leque.</p><p>Leque	que	preocupou	Macário:	era	uma	ventarola	chinesa,	redonda,	de</p><p>seda	branca	com	dragões	escarlates	bordados	à	pena,	uma	cercadura	de</p><p>plumagem	azul,	fina	e	trêmula	como	uma	penugem,	e	o	seu	cabo	de	marfim,</p><p>donde	pendiam	duas	borlas	de	fio	de	ouro,	tinha	incrustações	de	nácar	à</p><p>linda	maneira	persa.</p><p>Era	um	leque	magnífico	e	naquele	tempo	inesperado	nas	mãos	de	plebeias</p><p>de	uma	rapariga	vestida	de	cassa.	Mas	como	ela	era	loura	e	a	mãe	tão</p><p>meridional,	Macário,	com	intuição	interpretativa	dos	namorados,	disse	à</p><p>sua	curiosidade:	“Será	filha	de	um	inglês”.	O	inglês	vai	à	China,	à	Pérsia,</p><p>a	Ormuz,	à	Austrália	e	vem	cheio	daquelas	joias	dos	luxos	exóticos,	e	nem</p><p>Macário	sabia	por	que	é	que	aquela	ventarola	de	mandarina	o	preocupava</p><p>assim:	mas	segundo	ele	me	disse	–	“aquilo	deu	-lhe	no	goto”.</p><p>Tinha	-se	passado	uma	semana,	quando	um	dia	Macário	viu,	da	sua	carteira,</p><p>que	ela,	a	loura,	saía	com	a	mãe,	porque	se	acostumara	a	considerar	mãe</p><p>dela	aquela	magnífica	pessoa,	magnificamente	pálida	e	vestida	de	luto.</p><p>Macário	veio	à	janela	e	viu	-as	atravessar	a	rua	e	a	entrarem	no	armazém!</p><p>Desceu	logo	trêmulo,	sôfrego,	apaixonado	e	com	palpitações.	Estavam	elas</p><p>já	encostadas	ao	balcão	e	um	caixeiro	desdobrava	-lhes	defronte	casimiras</p><p>pretas.	Isto	comoveu	Macário.	Ele	mesmo	mo	disse.</p><p>—	Porque,	enfim,	meu	caro,	não	era	natural	que	elas	viessem	comprar,	para</p><p>si,	casimiras	pretas.</p><p>E	não:	elas	não	usavam	“amazonas”,	não	queriam	decerto	estofar	cadeiras</p><p>com	casimiras	pretas,	não	havia	homens	em	casa	delas;	portanto	aquela</p><p>vinda	ao	armazém	era	um	meio	delicado	de	o	ver	de	perto,	de	lhe	falar,	e</p><p>160 UNIUBE</p><p>tinha	o	encanto	penetrante	de	uma	mentira	sentimental.	Eu	disse	a	Macário</p><p>que,	sendo	assim,	ele	deveria	de	estranhar	aquele	movimento	amoroso,</p><p>porque	denotava	na	mãe	uma	cumplicidade	equívoca.	Ele	confessou	-se	“que</p><p>nem	pensava	em	tal”.	O	que	fez	foi	chegar	ao	balcão	e	dizer	estupidamente:</p><p>—	Sim,	senhor,	vão	bem	servidas,	estas	casimiras	não	encolhem.</p><p>E	a	loura	ergueu	para	ele	o	seu	olhar	azul	e	foi	como	se	Macário	se	sentisse</p><p>envolvido	na	doçura	de	um	céu.</p><p>Mas	quando	ele	ia	a	dizer	-lhe	uma	palavra	reveladora	e	veemente,	apareceu</p><p>ao	fundo	do	armazém	o	tio	Francisco,	com	o	seu	comprido	casaco	de	pinhão,</p><p>de	botões	amarelos.	Como	era	singular	e	desusado	achar	-se	o	senhor</p><p>guarda-livros	vendendo	ao	balcão	e	o	tio	Francisco,	com	a	sua	crítica	estreita</p><p>e	celibatária,	escandalizar	-se,	Macário	começou	a	subir	vagarosamente	a</p><p>escada	de	caracol	que	levava	ao	escritório,	e	ainda	ouviu	a	voz	delicada	da</p><p>loura	dizer	brandamente:</p><p>—	Agora	queria	ver	lenços	da	Índia.</p><p>E	o	caixeiro	foi	buscar	um	pequenino	pacote	daqueles	lenços,	acamados	e</p><p>apertados	numa	tira	de	papel	dourado.</p><p>Macário	tinha	visto	naquela	visita</p><p>uma	revelação	de	amor,	quase	uma</p><p>«declaração»,	esteve	todo	o	dia	entregue	às	impaciências	amargas	da</p><p>paixão.	Andava	distraído,	abstrato,	pueril,	não	deu	atenção	à	escrituração,</p><p>jantou	calado,	sem	escutar	o	tio	Francisco	que	exaltava	as	almôndegas,	mal</p><p>reparou	no	seu	ordenado	que	lhe	foi	pago	em	pintos	às	três	horas	e	não</p><p>entendeu	bem	a	recomendações	do	tio	e	a	preocupação	dos	caixeiros	sobre</p><p>o	desaparecimento	de	um	pacote	de	lenços	da	Índia.</p><p>—	É	o	costume	de	deixar	entrar	pobres	no	armazém	–	tinha	dito	no	seu</p><p>laconismo	majestoso	o	tio	Francisco.	–	São	doze	mil	réis	de	lenços.	Lance</p><p>à	minha	conta.</p><p>UNIUBE 161</p><p>Macário,	no	entanto,	ruminava	secretamente	uma	carta,	mas	sucedeu</p><p>que	ao	outro	dia,	estando	ele	à	varanda,	a	mãe,	a	de	cabelos	pretos,	veio</p><p>encostar	-se	ao	peitoril	da	janela,	e	neste	momento	passava	na	rua	um	amigo</p><p>de	Macário,	que,	vendo	aquela	senhora,	afirmou	-se	e	tirou	-lhe,	como	uma</p><p>cortesia	toda	risonha,	o	seu	chapéu	de	palha.	Macário	ficou	radioso:	logo</p><p>nessa	noite	procurou	o	seu	amigo,	e	abruptamente,	sem	meia	-tinta:</p><p>—	Quem	é	aquela	mulher	que	tu	hoje	cumprimentaste	defronte	do	armazém?</p><p>—	É	a	Vilaça.	Bela	mulher.</p><p>—	É	a	filha?</p><p>—	A	filha?</p><p>—	Sim,	uma	loura,	clara,	com	um	leque	chinês.</p><p>—	Ah!	sim.	É	filha.</p><p>—	É	o	que	eu	dizia...</p><p>—	Sim	e	então?</p><p>—	É	bonita.</p><p>—	É	bonita.</p><p>—	É	gente	de	bem,	heim?</p><p>—	Sim	gente	de	bem.</p><p>—	Está	bom!	Tu	conhece	-las	muito?</p><p>—	Conheço	-as.	Muito	não.	Encontrava	-as	dantes	em	casa	de	D.	Cláudia.</p><p>—	Bem,	ouve	lá.</p><p>162 UNIUBE</p><p>E	Macário,	contando	a	história	do	seu	coração	acordado	e	exigente	e</p><p>falando	do	amor	com	as	exaltações	de	então,	pediu	-lhe	como	a	glória	da</p><p>sua	vida	«que	achasse	um	meio	de	o	encaixar	lá».	Não	era	difícil.	As	Vilaças</p><p>costumavam	ir	aos	sábados	a	casa	de	um	tabelião	muito	rico	na	Rua	dos</p><p>Calafates:	eram	assembléias	simples	e	pacatas,	onde	se	cantavam	motetes</p><p>ao	cravo,	se	glosavam	motes	e	havia	jogos	de	prendas	do	tempo	da	senhora</p><p>D.	Maria	I,	e	às	nove	horas	a	criada	servia	a	orchata.	Bem.	Logo	no	primeiro</p><p>sábado	Macário,	de	casaca	azul,	calças	de	ganga	com	presilhas	de	trama</p><p>de	metal,	gravata	de	cetim	roxo,	curvava	-se	diante	da	esposa	do	tabelião,</p><p>Sr.ª	D.	Maria	da	Graça,	pessoa	seca	e	aguçada,	com	um	vestido	bordado</p><p>a	matiz,	um	nariz	adunco	uma	enorme	luneta	de	tartaruga,	a	pluma	de</p><p>marabout	nos	seus	cabelos	grisalhos.	A	um	canto	da	sala	já	lá	estava,	entre</p><p>um	frufru	de	vestidos	enormes,	a	menina	Vilaça,	a	loura,	vestida	de	branco,</p><p>simples,	fresca,	com	o	seu	ar	de	gravura	colorida.	A	mãe	Vilaça,	a	soberba</p><p>mulher	pálida,	cochichava	com	um	desembargador	de	figura	apopléctica.</p><p>O	tabelião	era	homem	letrado,	latinista,	e	amigo	da	musas;	escrevia	num</p><p>jornal	de	então,	a	“Alcofa	das	Damas”:	porque	era	sobretudo	galante,	e</p><p>ele	mesmo	se	intitulava,	numa	ode	pitoresca,	“moço	escudeiro	de	Vênus”.</p><p>Assim,	as	suas	reuniões	eram	ocupadas	pelas	belas	-artes	–	e,	numa	noite,</p><p>um	poeta	do	tempo	devia	vir	ler	um	poemeto	intitulado	“Elmira	ou	a	Vingança</p><p>do	Venesiano”!...	Começavam	então	a	aparecer	as	primeiras	audácias</p><p>românticas...	As	revoluções	da	Grécia	principiavam	a	atrair	os	espíritos</p><p>romanescos	e	saídos	da	mitologia	para	os	países	maravilhosos	do	oriente.</p><p>Por	toda	a	parte	se	falava	no	paxá	de	Janina.	E	a	poesia	apossava	-se</p><p>vorazmente	deste	mundo	novo	e	virginal	de	minaretes,	serralhos,	sultanas</p><p>cor	de	âmbar,	piratas	do	Arquipélago,	e	salas	rendilhadas,	cheias	do	perfume</p><p>do	aloés	onde	paxás	decrépitos	acariciam	leões.	De	sorte	que	a	curiosidade</p><p>era	grande	–	e	quando	o	poeta	apareceu	com	os	cabelos	compridos,	o	nariz</p><p>adunco	e	fatal,	o	pescoço	entalado	na	alta	gola	do	seu	fraque	à	Restauração</p><p>e	um	canudo	de	lata	na	mão	–	o	Sr.	Macário	é	que	não	teve	sensação</p><p>alguma,	porque	lá	estava	todo	absorvido,	falando	com	a	menina	Vilaça.	E</p><p>dizia	-lhe	meigamente:</p><p>UNIUBE 163</p><p>—	Então,	noutro	dia,	gostou	das	casimiras?</p><p>—	Muito	–	disse	ela	baixo.</p><p>E,	desde	esse	momento,	envolveu	-os	um	destino	nupcial.</p><p>No	entanto,	na	larga	sala,	a	noite	passava	-se	espiritualmente.	Macário</p><p>não	pôde	dar	todos	os	pormenores	históricos	e	característicos	daquela</p><p>assembleia.	Lembrava	-se	apenas	que	um	corregedor	de	Leiria	recitava</p><p>o	“Madrigal	a	Lídia”:	lia	-o	de	pé,	com	uma	luneta	redonda	aplicada	sobre</p><p>o	papel,	a	perna	direita	lançada	para	diante,	a	mão	na	abertura	do	colete</p><p>branco	de	gola	alta,	e	em	redor,	formando	círculo,	as	damas,	com	vestidos</p><p>de	ramagens,	cobertas	de	plumas,	as	mangas	estreitas,	terminadas	num	fofo</p><p>de	rendas,	mitenes	de	retrós	cheias	da	cintilação	dos	anéis,	tinham	sorrisos</p><p>ternos,	cochichos,	doces	murmurações,	risinhos,	e	um	brando	palpitar	de</p><p>leques	recamados	de	lantejoulas.	“Muito	bonito”,	diziam,	“muito	bonito!”	E	o</p><p>corregedor,	desviando	a	luneta,	cumprimentava	sorrindo	–	e	via	-se	-lhe	um</p><p>dente podre.</p><p>Depois,	a	preciosa	D.	Jerônima	da	Piedade	e	Sande,	sentando	-se	com	maneiras</p><p>comovidas	ao	cravo,	cantou	a	sua	voz	roufenha	a	antiga	ária	de	Sully:</p><p>Oh	Ricardo,	oh	meu	rei,</p><p>O	mundo	te	abandona.</p><p>O	que	obrigou	o	terrível	Gaudêncio,	democrata	de	20	e	admirador	de</p><p>Robespierre,	a	rosnar	rancorosamente	junto	de	Macário:</p><p>—	Reis	-víboras!...</p><p>Depois	o	cônego	Saavedra	cantou	uma	modinha	de	Pernambuco	muito</p><p>usada	no	tempo	do	senhor	D.	João	VI:	“Lindas	moças,	lindas	moças”.	E	a</p><p>noite	ia	assim	correndo,	literária,	pachorrenta	erudita,	requintada	e	toda	cheia</p><p>de	musas.	Oito	dias	depois,	Macário	era	recebido	em	casa	da	Vilaça,	num</p><p>domingo.	A	mãe	convidara	-o	dizendo	-lhe:</p><p>164 UNIUBE</p><p>—	Espero	que	o	vizinho	honre	esta	choupana.</p><p>E	até	o	desembargador	apopléctico,	que	estava	ao	lado,	exclamou:</p><p>—	Choupana!	Diga	alcançar!	Formosa	dama!</p><p>Estavam,	nesta	noite,	o	amigo	do	chapéu	de	palha,	um	velho	cavaleiro	de</p><p>Malta,	trôpego,	estúpido	e	surdo,	um	beneficiado	da	Sé,	ilustre	pela	sua</p><p>voz	tiple,	e	as	manas	Hilárias,	a	mais	velha	das	quais,	tendo	assistido,</p><p>como	aia	de	uma	senhora	da	Casa	da	Mina,	à	tourada	de	Salva	–	terra,</p><p>em	que	morreu	o	conde	dos	Arcos,	nunca	deixara	de	narrar	os	episódios</p><p>pitorescos	daquela	tarde:	a	figura	do	conde	dos	Arcos	de	cara	rapada	e	uma</p><p>fita	de	cetim	escarlate	no	rabicho;	o	soneto	que	um	magro	poeta,	parasita</p><p>da	Casa	de	Vimioso,	recitou	quando	o	conde	entrou,	fazendo	ladear	o	seu</p><p>cavalo	negro,	arreado	à	espanhola,	com	um	xairel	onde	as	suas	armas</p><p>estavam	lavradas	em	prata;	o	tombo	que	nesse	momento	um	frade	de	S.</p><p>Francisco	deu	na	trincheira	alta,	e	a	hilaridade	da	corte,	que	até	a	senhora</p><p>condessa	de	Povolide	apertava	as	mãos	nas	ilhargas;	depois	el	-rei,	o	senhor</p><p>D.	José	I,	vestido	de	veludo	escarlate,	recamado	de	ouro,	todo	encostado</p><p>ao	rebordo	do	seu	palanque,	fazendo	girar	entre	os	dedos	a	sua	caixa	de</p><p>rapé	cravejada,	e	atrás,	imóveis,	o	físico	Lourenço	e	o	frade	seu	confessor;</p><p>depois	o	rico	aspecto	da	praça	cheia	de	gente	de	Salvaterra,	maiorais,</p><p>mendigos	dos	arredores,	frades,	lacaios,	e	o	grito	que	houve	quando	D.</p><p>José	I	entrou:	–	Viva	el	-rei,	nosso	senhor!	–	E	o	povo	ajoelhou,	e	el	-rei</p><p>tinha	-se	sentado,	comendo	doces,	que	um	criado	trouxe	num	saco	de	veludo</p><p>atrás	dele.	Depois	a	morte	do	conde	dos	Arcos,	os	desmaios,	e	até	el	-rei</p><p>todo	debruçado,	batendo	com	a	mão	no	parapeito,	gritava	na	confusão,	e	o</p><p>capelão	da	Casa	dos	Arcos	que	tinha	corrido	a	buscar	a	extrema	-unção.	Ela,</p><p>Hilária	ficara	atarracada	de	pavor:	sentia	os	urros	dos	bois,	os	gritos	agudos</p><p>das	mulheres,	os	ganidos	dos	flatos,	e	vira	então	um	velho,	todo	vestido</p><p>de	veludo	preto,	com	a	fina	espada	na	mão,...	debater	-se	entre	fidalgos</p><p>e	damas	que	o	seguravam,	e	querer	atirar	-se	à	praça,	bradando	cheio	de</p><p>raiva!	“É	o	pai	do	conde.”	Ela	então	desmaia	nos	braços	de	um	padre	da</p><p>UNIUBE 165</p><p>Congregação.	Quando	veio	a	si,	achou	-se	junto	da	praça;	a	berlinda	real	está</p><p>à	porta	com	os	boleeiros	emplumados,	os	machos	cheios	de	guizos,	e	os</p><p>batedores	com	pampilhos:	el	-rei	já	estava	dentro,	escondido	no	fundo,	pálido,</p><p>sorvendo	febrilmente	rapé,	todo	encolhido	com	o	confessor;	e	defronte,	com</p><p>uma	das	mãos	apoiadas	à	alta	bengala,	forte,	espadaúdo,</p><p>com	o	aspecto</p><p>carregado	o	Marquês	de	Pombal	 falando	devagar	e	 intimativamente,</p><p>e	gesticulando	com	a	luneta:	mas	os	batedores	picaram,	os	estalos	dos</p><p>postilhões	retiniram,	e	a	berlinda	partiu	a	galope,	enquanto	o	povo	gritava:</p><p>–	Viva	el	-rei,	nosso	senhor!	–	e	o	sino	da	porta	da	capela	do	paço	tocava	a</p><p>finados!	Era	uma	honra	que	el	-rei	concedia	à	Casa	dos	Arcos.</p><p>Quando	D.	Hilária	acabou	de	contar,	suspirando,	estas	desgraças	passadas,</p><p>começou	-se	a	jogar.	Era	singular	que	Macário	não	se	lembrava	o	que	tinha</p><p>jogado	nessa	noite	radiosa.	Só	se	recordava	que	ele	tinha	ficado	ao	lado	da</p><p>menina	Vilaça,	que	se	chamava	Luísa,	que	reparara	muito	na	sua	fina	pele</p><p>rosada,	tocada	de	luz,	e	na	meiga	e	amorosa	pequenez	da	sua	mão,	com</p><p>uma	unha	mais	polida	que	o	marfim	de	Diepa.	E	lembrava	-se	também	de</p><p>um	acidente	excêntrico,	que	determinara	nele,	desde	esse	dia,	uma	grande</p><p>hostilidade	ao	clero	da	Sé.	Macário	estava	sentado	à	mesa,	e	ao	pé	dele</p><p>Luísa:	Luísa	estava	toda	voltada	para	ele,	com	uma	das	mãos	apoiando	a</p><p>sua	fina	cabeça	loura	e	amorosa,	e	a	outra	esquecida	no	regaço.	Defronte</p><p>estava	o	beneficiado,	com	o	seu	barrete	preto,	os	seus	óculos	na	ponta</p><p>aguda	do	nariz,	o	tom	azulado	da	forte	barba	rapada,	e	as	suas	duas	grandes</p><p>orelhas,	complicadas	e	cheias	de	cabelo,	separadas	do	crânio	como	dois</p><p>postigos	abertos.	Ora	como	era	necessário	no	fim	do	jogo	pagar	uns	tentos</p><p>ao	cavaleiro	de	Malta,	que	estava	ao	lado	do	beneficiado,	Macário	tirou</p><p>da	algibeira	uma	peça,	e	quando	o	cavaleiro,	todo	curvado	e	com	um	olho</p><p>pisco,	fazia	a	soma	dos	tentos	nas	costas	de	um	ás,	Macário	conversava</p><p>com	Luísa,	e	fazia	girar	sobre	o	pano	verde	a	sua	peça	de	ouro,	com	um</p><p>bilro	ou	um	pião.	Era	uma	peça	nova	que	luzia,	faiscava,	rodando	e	fazia</p><p>à	vista	como	uma	bola	de	névoa	dourada.	Luísa	sorria	vendo	-a	girar,	girar,</p><p>e	parecia	a	Macário	que	todo	o	céu,	a	pureza,	a	bondade	das	flores	e	a</p><p>166 UNIUBE</p><p>castidade	das	estrelas	estavam	naquele	claro	sorriso	distraído,	espiritual,</p><p>arcangélico,	com	que	ela,	gira,	gira,	seguia	o	giro	da	peça	de	ouro	nova.</p><p>Mas,	de	repente,	a	peça,	correndo	até	à	borda	da	mesa,	caiu	para	o	lado	do</p><p>regaço	de	Luísa,	e	desapareceu,	sem	se	ouvir	no	soalho	de	tábuas	o	seu</p><p>ruído	metálico.	O	beneficiado	abaixou	-se	logo	cortesmente:	Macário	afastou</p><p>a	cadeira,	olhando	para	debaixo	da	mesa:	a	mãe	Vilaça	alumiou	com	um</p><p>castiçal,	e	Luísa	ergueu	-se	e	sacudiu	com	pequenina	pancada	o	seu	vestido</p><p>de	cassa.	A	peça	não	apareceu.</p><p>—	É	célebre	–	disse	o	amigo	de	chapéu	de	palha.	–	Eu	não	ouvi	tinir	no	chão.</p><p>—	Nem	eu,	nem	eu	–	disseram.</p><p>O	beneficiado,	curvado	como	um	F,	buscava	tenazmente,	e	Hilária	mais	nova</p><p>rosnava	o	responso	de	Santo	Antônio.</p><p>—	Pois	a	casa	não	tem	buracos	–	dizia	a	mãe	Vilaça.</p><p>No	entanto	Macário	exalava	-se	em	exclamações	desinteressadas:</p><p>—	Pelo	amor	de	Deus!	Ora	que	tem!	Amanhã	aparecerá!	Tenham	a	bondade!</p><p>Por	quem	são!	Então	Sr.ª	D.	Luísa!	pelo	amor	de	Deus!	Não	vale	nada.</p><p>Mas	mentalmente	estabeleceu	que	houvera	uma	subtração	–	e	atribui-a	ao</p><p>beneficiado.	A	peça	rolara,	decerto,	até	junto	dele,	sem	ruído,	ele	pusera	-lhe</p><p>em	cima	o	seu	vasto	sapato	eclesiástico	e	tachado,	depois,	no	movimento</p><p>brusco	e	curto	que	 tivera,	empolgara	-a	vilmente.	E	quando	saíram,	o</p><p>beneficiado,	todo	embrulhado	no	seu	vasto	capote	de	camelão,	dizia	a</p><p>Macário	pela	escada:</p><p>—	Ora	o	sumiço	da	peça,	heim?	Que	brincadeira!</p><p>—	Acha,	senhor	beneficiado?	–	disse	Macário	parando,	absorto	de	impudência.</p><p>—	Ora	essa!	Se	acho!	Se	lhe	parece!	Uma	peça	de	sete	mil	réis!	Só	se	o</p><p>Senhor	as	semeia!	Safa!	eu	dava	em	doudo!</p><p>UNIUBE 167</p><p>Macário	teve	tédio	daquela	astúcia	fria.	Não	lhe	respondeu.	O	beneficiado</p><p>é	que	acrescentou:</p><p>—	Amanhã	mande	lá	pela	manhã,	homem.	Que	diabo...	Deus	me	perdoe!</p><p>Que	diabo!	Uma	peça	não	se	perde	assim.	Que	bolada,	heim!</p><p>E	Macário	tinha	vontade	de	lhe	bater.</p><p>Foi	neste	ponto	que	Macário	me	disse,	com	a	voz	singularmente	sentida:</p><p>—	Enfim,	meu	amigo,	para	encurtarmos	razões	resolvi	-me	casar	com	ela.</p><p>—	Mas	a	peça?</p><p>—	Não	pensei	mais	nisso!	Pensava	eu	lá	na	peça!	resolvi	-me	casar	com	ela!</p><p>Capítulo II</p><p>Macário	contou	-me	o	que	o	determinara	mais	precisamente	àquela	resolução</p><p>profunda	e	perpétua.	Foi	um	beijo.	Mas	esse	caso,	casto	e	simples,	eu	colo	-o</p><p>–	mesmo	porque	a	única	testemunha	foi	uma	imagem	em	gravura	da	Virgem,</p><p>que	estava	pendurada	no	seu	caixilho	de	pau	-preto,	na	saleta	escura	que</p><p>abria	para	a	escada...	Um	beijo	fugitivo,	superficial,	efêmero.	Mas	isso	bastou</p><p>ao	espírito	reto	e	severo	para	o	obrigar	a	tomá	-la	como	esposa,	a	dar	-lhe</p><p>uma	fé	imutável	e	a	posse	da	sua	vida.	Tais	foram	os	seus	esponsais.	Aquela</p><p>simpática	sombra	de	janelas	vizinhas	tornara	-se	para	ele	um	destino,	o	fim</p><p>moral	da	sua	vida	e	toda	a	ideia	dominante	do	seu	trabalho.	E	esta	história</p><p>toma,	desde	logo,	um	alto	caráter	de	santidade	e	de	tristeza.</p><p>Macário	falou	-me	muito	do	caráter	e	da	figura	do	tio	Francisco;	a	sua	possante</p><p>estatura,	os	seus	óculos	de	ouro,	a	sua	barba	grisalha,	em	colar,	por	baixo	do</p><p>queixo,	um	tique	nervoso	que	tinha	numa	asa	do	nariz,	a	dureza	da	sua	voz,	a</p><p>sua	austera	e	majestosa	tranquilidade,	os	seus	princípios	antigos,	autoritários</p><p>e	tirânicos	e	a	brevidade	telegráfica	das	suas	palavras.</p><p>168 UNIUBE</p><p>Quando	Macário	lhe	disse,	uma	manhã,	ao	almoço,	abruptamente,	sem</p><p>transições	emolientes:	 “Peço	-lhe	 licença	para	casar”,	o	 tio	Francisco,</p><p>que	deitava	o	açúcar	no	seu	café,	ficou	calado,	remexendo	com	a	colher,</p><p>devagar,	majestoso	e	terrível:	e	quando	acabou	de	solver	pelo	pires,	com</p><p>grande	ruído,	tirou	do	pescoço	o	guardanapo,	dobrou	-o,	aguçou	com	a	faca	o</p><p>seu	palito,	meteu	-o	na	boca	e	saiu:	mas	à	porta	da	sala	parou,	e	voltando-se</p><p>para	Macário,	que	estava	de	pé,	junto	da	mesa,	disse	secamente:</p><p>—	Não.</p><p>—	Perdão,	tio	Francisco!</p><p>—	Não.</p><p>—	Mas	ouça,	tio	Francisco...</p><p>—	Não.</p><p>Macário	sentiu	uma	grande	cólera.</p><p>—	Nesse	caso,	faço	-o	sem	licença.</p><p>—	Despedido	de	casa.</p><p>—	Sairei.	Não	haja	dúvida.</p><p>—	Hoje.</p><p>—	Hoje.</p><p>E	o	tio	Francisco	ia	a	fechar	a	porta,	mas	voltando	-se:</p><p>—	Olá!	–	disse	ele	a	Macário,	que	estava	exasperado,	apopléctico,	raspando</p><p>nos	vidros	da	janela.</p><p>Macário	voltou	-se	com	uma	esperança.</p><p>—	Dê	-me	daí	a	caixa	do	rapé	–	disse	o	tio	Francisco.</p><p>Tinha	-lhe	esquecido	a	caixa!	Portanto	estava	perturbado.</p><p>—	Tio	Francisco...	–	começou	Macário.</p><p>UNIUBE 169</p><p>—	Basta.	Estamos	a	doze.	Receberá	o	seu	mês	por	inteiro.	Vá.</p><p>As	antigas	educações	produziam	estas	situações	insensatas.	Era	brutal	e</p><p>idiota.	Macário	afirmou	-me	que	era	assim.</p><p>Nessa	tarde	Macário	achava	-se	no	quarto	de	uma	hospedaria	da	Praça</p><p>da	Figueira	com	seis	peças,	o	seu	baú	de	roupa	branca	e	a	sua	paixão.</p><p>No	 entanto	 estava	 tranquilo.	 Sentia	 o	 seu	 destino	 cheio	 de	 apuros.</p><p>Tinha	relações	e	amizades	no	comércio.	Era	conhecido	vantajosamente:</p><p>a	nitidez	do	seu	trabalho,	a	sua	honra	tradicional,	o	nome	da	família,	o</p><p>seu	tacto	comercial,	o	seu	belo	cursivo	inglês,	abriam	-lhe,	de	par	em	par,</p><p>respeitosamente,	todas	as	portas	dos	escritórios.	No	outro	dia	foi	procurar</p><p>alegremente	o	negociante	Faleiro,	antiga	relação	comercial	da	sua	casa.</p><p>—	De	muito	boa	vontade,	meu	amigo	–	disse	-me	ele.	–	Quem	mo	dera	cá.</p><p>Mas,	se	o	recebo,	fico	de	mal	com	o	seu	tio,	meu	velho	amigo	de	vinte	anos.</p><p>Ele	declarou	-mo	categoricamente.	Bem	vê.	Força	maior.	Eu	sinto,	mas...</p><p>E	todos	a	quem	Macário	se	dirigiu,	confiado	em	relações	sólidas,	receavam</p><p>“ficar	de	mal	com	seu	tio,	meu	velho	amigo	de	vinte	anos”.</p><p>E	todos	“sentiam,	mas...”.</p><p>Macário	dirigiu	-se	então	a	negociantes	novos,	estranhos	à	sua	casa	e	à</p><p>sua	família,	e	sobretudo	aos	estrangeiros:	esperava	encontrar	gente	livre	da</p><p>amizade	de	vinte	anos	do	tio.	Mas,	para	esses,	Macário	era	desconhecido,</p><p>e	desconhecidos	por	igual	a	sua	dignidade	e	o	hábil	trabalho.	Se	tomavam</p><p>informações,	sabiam	que	ele	fora	despedido	de	casa	do	tio	repentinamente,</p><p>por	causa	de	uma	rapariga	loura,	vestida	de	cassa.	Esta	circunstância	tirava</p><p>as	simpatias	a	Macário.	O	comércio	evita</p><p>por	Camões.</p><p>Você	pode	baixar	o	texto	completo	de	Os Lusíadas	a	partir	da	Biblioteca</p><p>Digital	do	Instituto	Camões,	de	Portugal.	O	endereço	é	este:</p><p>http://cvc.instituto-camoes.pt/conhecer/biblioteca-digital-camoes/explorar-</p><p>por-autor.html?aut=182.</p><p>AMPLIANDO	O	CONHECIMENTO</p><p>Os	dez	cantos	estão	englobados	em	cinco	partes:</p><p>1.	PROPOSIÇÃO:	Canto	I,	estrofes	de		1	a	3.	Apresenta	os	grandes</p><p>temas	do	poema,	todos	eles	ligados	de	alguma	forma	à	viagem	de	Vasco</p><p>da	Gama:	os	feitos	de	armas,	a	importância	da	história	portuguesa,	a</p><p>propagação	da	fé	católica		e	o	herói	coletivo,	que	vai	muito	além	do	Gama</p><p>para	incluir	todo	o	povo	português.</p><p>2.	INVOCAÇÃO:	Canto	I,	estrofes	4	e	5.	Contém	o	pedido	que	o	poeta</p><p>faz	às	Tágides,	ninfas	do	rio	Tejo,	para	inspirarem	seu	canto.</p><p>3.	DEDICATÓRIA:	Canto	I,	estrofes	de		6	a	18.	Aqui,	o	poeta	se	dirige	a</p><p>D.	Sebastião,	dedicando-lhe	o	poema	e	mostrando-lhe	toda	a	extensão</p><p>do	império	português.</p><p>4.	NARRAÇÃO:	do	Canto	I,	estrofe	19,	até	o	Canto	X,	estrofe	144.	Nesta</p><p>parte	está	a	maior	parte	do	livro,	que	vai	entremeando	o	relato	da	viagem</p><p>à	Índia	com	a	história	de	Portugal,	de	suas	origens	medievais	até	a	época</p><p>das	navegações.</p><p>5.	EPÍLOGO:	Canto	X,	estrofes	de	145	a	156.	Nas	últimas	estrofes	do	texto,</p><p>aparece	a	voz	do	próprio	Camões,	que	lamenta	a	decadência	de	seu	país,</p><p>que	já	não	produz	nem	grandes	homens	nem	grandes	feitos	como	no</p><p>UNIUBE 9</p><p>passado;	diante	disso,	o	livro	termina	com	um	desafio	a	D.	Sebastião	e</p><p>às	novas	gerações,	para	que	se	lancem	de	novo	às	aventuras	marítimas</p><p>e	reconquistem	o	prestígio	de	que	Portugal	havia	gozado	por	tantos</p><p>séculos.</p><p>Na	variedade	temática	de	Os Lusíadas,	vários	episódios	se	destacaram</p><p>na	recepção	que	o	poema	foi	tendo	ao	longo	dos	séculos.	Alguns	deles</p><p>podem	ser	listados	aqui:</p><p>a.	 o	episódio	de	Inês	de	Castro	(Canto	III,	estrofes	118-137),	que	recria</p><p>o	infeliz	caso	amoroso	da	dama	espanhola	com	o	príncipe	D.	Pedro,</p><p>que	seria	mais	tarde	o	rei	D.	Pedro	I,	o	Cru,	que	recebeu	esse	apelido</p><p>pela	maneira	como	se	vingou	dos	que	mataram	sua	amada,	a	quem</p><p>fez	rainha	depois	de	morta;</p><p>b.	 o	episódio	do	Velho	do	Restelo	(Canto	IV,	est.	94-104),	no	qual,</p><p>durante	o	embarque	da	armada	de	Vasco	da	Gama,	surge	na	praia</p><p>do	Restelo	um	personagem	fictício,	de	longas	barbas	brancas,	que</p><p>profere	um	longo	discurso	contra	as	navegações	e	toda	a	ambição</p><p>humana	de	fazer	grandes	conquistas;	no	contexto	do	poema,	a	fala	do</p><p>Velho	do	Restelo	representa	as	preocupações	dos	que	viam	o	país	se</p><p>dedicar	à	expansão	marítima	sem	cuidar	da	situação	dos	que	ficavam</p><p>em	Portugal;</p><p>c.	 o	episódio	dos	Doze	de	Inglaterra	(Canto	VI,	est.	42-68),	que	conta</p><p>como	cavaleiros	medievais	portugueses	foram	até	a	Inglaterra	para</p><p>defender	um	grupo	de	damas	que	haviam	sido	ofendidas	por	nobres</p><p>de	lá;	Camões	utiliza	esse	enredo	semilendário	para	realçar	o	caráter</p><p>heroico	dos	portugueses	e	a	veracidade	de	suas	façanhas;</p><p>d.	 o	episódio	da	Ilha	dos	Amores	(Canto	IX,	est.	52-84),	localizado	já</p><p>na	viagem	de	volta	a	Portugal,	vale-se	da	mitologia	para	premiar	os</p><p>marinheiros:	a	deusa	Vênus	faz	surgir	do	mar	uma	ilha	maravilhosa,	com</p><p>uma	paisagem	deslumbrante	e	acolhedora,	na	qual	os	portugueses	são</p><p>recebidos	por	ninfas	de	beleza	supraterrena,	que		atendem	a		todos	os</p><p>desejos	dos	portugueses;</p><p>10 UNIUBE</p><p>e.	 o	episódio	da	Máquina	do	Mundo	(Canto	X,	est.	77-142),	no	qual	Tétis,</p><p>a	deusa	que	atendeu		Vasco	da	Gama	na	Ilha	dos	Amores,		leva-o		até	o</p><p>cume	da	mais	alta	montanha,	onde	lhe	mostra	no	céu	um	imenso	globo</p><p>translúcido,	que	é	uma	representação	do	Universo,	destacando-se	o</p><p>papel	central	de	Portugal	na	geografia	e	na	história	do	mundo.</p><p>Para	dar	exemplo	da	maestria	camoniana	na	composição	de	sua	epopeia,</p><p>apresentaremos	a	seguir	alguns	aspectos	que	fazem	do	episódio	do</p><p>Gigante	Adamastor	um	dos	mais	significativos	e	importantes	do	livro.</p><p>Como	acontece	em	outras	passagens	do	livro,	o	episódio	do	Adamastor</p><p>mescla	a	realidade	histórica	com	a	fantasia	mitológica,	usada	sempre</p><p>que	Camões	pretende	adicionar	a	seu	enredo	o	aspecto	sobrenatural,</p><p>que	é	essencial	em	toda	epopeia.	Nesse	caso,	trata-se	da	chegada	dos</p><p>navios	de	Vasco	da	Gama	ao	Cabo	das	Tormentas,	ponto	mais	ao	sul	da</p><p>África,	que	representava	o	ponto	médio	da	viagem	até	a	Índia.	Sendo	ali</p><p>um	lugar	de	difícil	navegação,	em	que	muitas	embarcações	portuguesas</p><p>naufragariam	ao	longo	de	toda	aquela	época,	o	poeta	faz	com	que	o</p><p>acidente	 geográfico	 seja	 personificado	 por	 um	 ser	 de	 dimensões</p><p>gigantescas	e	associado	à	mitologia	grega.	Assim,	o	Adamastor	acaba</p><p>simbolizando	tanto	os	perigos	inerentes	à	aventura	portuguesa	nos</p><p>mares	quanto	a	penetração	do	quadro	cultural	da	Antiguidade	Clássica</p><p>no	poema.</p><p>O	episódio	está	localizado	entre	as	estrofes	37	e	60	do	Canto	V.	Ele</p><p>pode	ser	dividido	em	três	partes:	a	primeira	(est.	37-40)	contém	o	relato</p><p>do	momento	em	que	os	marinheiros	avistam	o	Adamastor	dentro	de</p><p>uma	ameaçadora	nuvem	de	tempestade	e	a	descrição	de	seu	corpo</p><p>descomunal;	a	segunda	(est.	41-49)	mostra	as	profecias	que	o	Adamastor</p><p>faz	a	respeito	dos	naufrágios	que	outras	armadas	lusitanas	sofrerão	ao</p><p>tentar	passar	por	ele;	a	terceira	(est.	50-60)	traz	o	Adamastor	contando</p><p>a	história	de	sua	paixão	infeliz	pela	ninfa	Tétis,	causa	de	seu	exílio	no</p><p>ponto	mais	remoto	da	África.</p><p>UNIUBE 11</p><p>Você	pode	ver	no	Youtube	uma	animação	em	3D	com	a	declamação	dos</p><p>principais	trechos	do	episódio.	É	diversão	e	conhecimento	garantidos!	Basta</p><p>usar	este	link:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=K9Xm8s2dXgk.</p><p>Para	ler	as	estrofes	na	íntegra	e	desfrutar	de	muitas	outras	informações</p><p>sobre	elas,	visite:</p><p>http://oportugues.freehostia.com/espacomais/websitlusiadas/</p><p>websiteineseadamastor/ogiganteeines/adamastortextoeparafrase.htm</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>Desde	seu	início,	o	episódio	já	vai	mostrando	por	que	é	um	excelente</p><p>símbolo	da	escrita	épica	de	Camões	e	de	seu	pertencimento	ao	contexto</p><p>renascentista.	Vejamos	como	isso	se	manifesta	na	primeira	estrofe,	que</p><p>traz	o	anúncio	do	aparecimento	do	Adamastor:</p><p>Porém	já	cinco	Sóis	eram	passados</p><p>Que	dali	nos	partíramos,	cortando</p><p>Os	mares	nunca	d'outrem	navegados,</p><p>Prosperamente	os	ventos	assoprando,</p><p>Quando	uma	noite,	estando	descuidados</p><p>Na	cortadora	proa	vigiando,</p><p>Uma	nuvem	que	os	ares	escurece,</p><p>Sobre	nossas	cabeças	aparece.	(CAMÕES,	2008,	p.	122).</p><p>Os	“Sóis”	do	primeiro	verso	são	uma	metáfora	para	os	dias	passados</p><p>desde	que	os	portugueses	tinham	deixado	a	Baía	de	Santa	Helena,</p><p>um	porto	natural	que	fica	na	costa	ocidental	da	atual	África	do	Sul.</p><p>Ali,	eles	haviam	interrompido	sua	navegação	para	recarregar	as	naus</p><p>de	água	potável	e	outros	víveres	e	feito;	além	disso,	por	nove	dias,</p><p>12 UNIUBE</p><p>exploraram	a	região	costeira	e	fizeram	os	primeiros	contatos	com	habitantes</p><p>de	povoações	próximas.	Essas	atividades	são	registradas	em	estrofes</p><p>anteriores,	as	quais	trazem	informações	sobre	a	data	em	que	os	portugueses</p><p>avistaram	a	Baía	e	quando	fundearam	perto	dela.	Acrescentando	a	elas</p><p>os	 cinco	 dias	 referidos,	 pode-se	 concluir	 que	 o	 episódio	 do	Gigante</p><p>Adamastor	acontece	em	Os Lusíadas	no	dia	22	de	novembro	de	1497,	o</p><p>que	corresponde	à	verdade	histórica,	pois	esse	foi	mesmo	o	dia	em	Vasco</p><p>da	Gama	e	seus	comandados	dobraram	o	Cabo	das	Tormentas,	como	ficou</p><p>registrado	no	diário	de	bordo	da	armada,	do	qual	uma	cópia	existe	até	hoje</p><p>na	Biblioteca	Pública	Municipal	da	cidade	do	Porto.</p><p>A	metáfora	elaborada	por	Camões,	então,	precisa	ser	entendida	como</p><p>a	forma	poética	encontrada	por	ele	para	registrar	um	fato	histórico,</p><p>reforçando	a	veracidade	das	façanhas	portuguesas.	Essa	preocupação</p><p>com	a	datação	precisa	dos	fatos	é	própria	do	historiador;	a	base	lexical</p><p>da	metáfora,	em	que	se	usa		um	corpo	celeste	para	marcar	a	passagem</p><p>do	tempo,	vem	da	linguagem	da	Astrologia,	como	era	conhecida	a</p><p>Astronomia	na	época	de	escritura	de	Os Lusíadas.	Somando-se	o</p><p>significado	desses	procedimentos	do	poeta,	revela-se	uma	das	facetas</p><p>tanto	dele	quanto	de	seu	texto:	o	cientificismo,	ou	seja,	a	defesa	da</p><p>incorporação	da	ciência	pela	arte.	Como	se</p><p>o	guarda-livros	sentimental.	De	sorte</p><p>que	Macário	começou	a	sentir	-se	num	momento	agudo.	Procurando,	pedindo,</p><p>rebuscando,	o	tempo	passava,	sorvendo,	pinto	a	pinto,	as	suas	seis	peças.</p><p>170 UNIUBE</p><p>Macário	mudou	para	uma	estalagem	barata,	e	continuou	farejando.	Mas,</p><p>como	fora	sempre	de	temperamento	recolhido,	não	criara	amigos.	De	modo</p><p>que	se	encontrava	desamparado	e	solitário	–	e	a	vida	aparecia	-lhe	como</p><p>um	descampo.</p><p>As	peças	findaram.	Macário	entrou,	pouco,	na	tradição	antiga	da	miséria.</p><p>Ela	tem	solenidades	fatais	e	estabelecidas:	começou	por	empenhar.	Depois</p><p>vendeu.	Relógio,	anéis,	casaca	azul,	cadeia,	paletó	de	alamares,	tudo	foi</p><p>levando	pouco	a	pouco,	embrulhado	debaixo	do	xale,	uma	velha	seca	e</p><p>cheia	de	asma.</p><p>No	entanto	via	Luísa	de	noite,	na	saleta	escura	que	dava	para	o	patamar:</p><p>uma	lamparina	ardia	em	cima	da	mesa;	era	feliz	ali	naquela	penumbra,</p><p>todo	sentado	castamente:	não	a	via	de	dia	porque	trazia	já	a	roupa	usada,</p><p>as	botas	cambadas	e	não	queria	mostrar	à	fresca	Luísa,	toda	mimosa</p><p>nas	suas	cambraias	assentadas,	a	sua	miséria	remendada:	ali,	àquela	luz</p><p>tênue	e	esbatida,	ele	exaltava	a	sua	paixão	crescente	e	escondia	o	seu	fato</p><p>decadente.	Segundo	me	disse	Macário	–	era	muito	singular	o	temperamento</p><p>de	Luísa.	Tinha	o	caráter	louro	como	o	cabelo	–	se	é	certo	que	o	louro	é	uma</p><p>cor	fraca	e	desbotada:	falava	pouco,	sorria	sempre	com	os	seus	brancos</p><p>dentinhos,	dizia	a	tudo	“pois	sim”;	era	mais	simples,	quase	indiferente,	cheia</p><p>de transigências.</p><p>Amava	decerto	Macário,	mas	com	todo	o	amor	que	podia	dar	a	sua	natureza</p><p>débil,	aguada,	nula.	Era	como	uma	estriga	de	linho,	fiava	-se	como	se	queria:</p><p>e	às	vezes,	naqueles	encontros	noturnos,	tinha	sono.</p><p>Um	dia,	porém,	Macário	encontrou	-a	excitada:	estava	com	pressa,	o	xale</p><p>traçado	à	toa,	olhando	sempre	para	a	porta	interior.</p><p>—	A	mamãe	percebeu	–	disse	ela.</p><p>UNIUBE 171</p><p>E	contou	-lhe	que	a	mãe	desconfiava,	ainda	rabugenta	e	áspera,	e	que</p><p>decerto	farejava	aquele	plano	nupcial	tramado	como	uma	conjuração.</p><p>—	Por	que	não	me	vens	pedir	à	mamã?</p><p>—	Mas,	filha,	se	eu	não	posso!	Não	tenho	arranjo	nenhum.	Espera.	É	mais	um</p><p>mês	talvez.	Tenho	agora	aí	um	negócio	em	bom	caminho.	Morríamos	de	fome.</p><p>Luísa	calou	-se,	torcendo	a	ponta	do	xale,	com	os	olhos	baixos.</p><p>—	Mas	ao	menos	–	disse	ela	–	enquanto	eu	te	não	fizer	sinal	da	janela,	não</p><p>subas	mais,	sim?</p><p>Macário	rompeu	a	chorar,	os	soluços	saíam	violentos	e	desesperados.</p><p>—	Chut!	–	dizia	-lhe	Luísa.	–	Não	chores	alto!...</p><p>Macário	contou	-me	a	noite	que	passou,	ao	acaso	pelas	ruas,	ruminando</p><p>febrilmente	a	sua	dor,	e	lutando,	sob	a	nudenta	friagem	de	Janeiro,	na	sua</p><p>quinzena	curta.	Não	dormiu,	e	logo	pela	manhã,	ao	outro	dia,	entrou	como</p><p>uma	rajada	no	quarto	do	tio	Francisco	e	disse	-lhe	abruptamente,	secamente:</p><p>—	É	tudo	o	que	tenho.	–	E	mostrava	-lhe	três	pintos.	–	Roupa,	estou	sem	ela.</p><p>Vendi	tudo.	Daqui	a	pouco	tenho	fome.</p><p>O	tio	Francisco,	que	fazia	a	barba	à	janela,	com	o	lenço	da	Índia	amarrado</p><p>na	cabeça,	voltou	-se	e,	pondo	os	óculos,	fitou	-o.</p><p>—	A	sua	carteira	lá	está.	Fique	–	e	acrescentou	com	um	gesto	decisivo	–</p><p>solteiro.</p><p>—	Tio	Francisco,	ouça	-me!...</p><p>172 UNIUBE</p><p>—	Solteiro,	disse	eu	–	continuou	o	tio	Francisco,	dando	o	fio	à	navalha	numa</p><p>tira de sola.</p><p>—	Não	posso.</p><p>—	Então,	rua!</p><p>Macário	saiu,	estonteado.	Chegou	a	casa,	deitou	-se,	chorou	e	adormeceu.</p><p>Quando	saiu,	à	noitinha,	não	tinha	resolução,	nem	ideia.	Estava	como	uma</p><p>esponja.	Deixava	-se	ir.</p><p>De	repente	uma	voz	disse	de	dentro	de	uma	loja:</p><p>—	Eh!	psit!	olá!</p><p>Era	o	amigo	do	chapéu	de	palha:	abriu	grandes	braços	pasmados.</p><p>—	Que	diacho!	Desde	manhã	que	te	procuro.</p><p>E	contou	-lhe	que	tinha	chegado	da	província,	tinha	sabido	a	sua	crise	e</p><p>trazia	-lhe	um	desenlace.</p><p>—	Queres?</p><p>—	Tudo.</p><p>Uma	casa	comercial	queria	um	homem	hábil,	resoluto,	e	duro,	para	ir	numa</p><p>comissão	difícil	e	de	grande	ganho	a	Cabo	Verde.</p><p>—	Pronto!	–	Disse	Macário.	–	Pronto!	Amanhã.</p><p>UNIUBE 173</p><p>E	foi	logo	escrever	a	Luísa,	pedindo	-lhe	uma	despedida,	um	último	encontro,	aquele</p><p>em	que	os	braços	desolados	e	veementes	tanto	custam	a	desenlaçar-se.	Foi.</p><p>Encontrou	-a	toda	embrulhada	no	seu	xale,	tiritando	de	frio.	Macário	chorou.	ela,</p><p>com	a	sua	passiva	e	loura	doçura,	disse	-lhe:</p><p>—	Fazes	bem.	Talvez	ganhes.</p><p>E	ao	outro	dia	Macário	partiu.</p><p>Conheceu	as	viagens	trabalhosas	nos	mares	inimigos,	o	enjoo	monótono</p><p>num	beliche	abafado,	os	duros	sóis	das	colônias,	a	brutalidade	tirânica</p><p>dos	fazendeiros	ricos,	o	peso	dos	fardos	humilhantes,	as	dilacerações</p><p>da	ausência,	as	viagens	ao	interior	das	terras	negras	e	melancolia	das</p><p>caravanas	que	o	costeiam	por	violentas	noites,	durante	dias	e	dias,	o	rios</p><p>tranquilos,	donde	exala	a	morte.</p><p>Voltou.</p><p>E	logo	nessa	tarde	a	viu	a	ela,	Luísa,	clara,	fresca,	repousada,	serena,</p><p>encostada	ao	peitoril	da	janela,	com	a	sua	ventarola	chinesa.	E,	ao	outro	dia,</p><p>sofregamente,	foi	pedi	-la	à	mãe.	Macário	tinha	feito	um	ganho	saliente	–	e</p><p>a	mãe	Vilaça	abriu	-lhe	uns	grandes	braços	amigos,	cheia	de	exclamações.</p><p>O	casamento	decidiu	-se	para	daí	a	um	ano.</p><p>—	Por	quê?	–	disse	eu	a	Macário.</p><p>E	ele	explicou	-me	que	os	lucros	de	Cabo	Verde	não	podiam	constituir	um</p><p>capital	definitivo:	eram	apenas	um	capital	de	habilitação:	trazia	de	Cabo</p><p>Verde	elementos	de	poderosos	negócios:	trabalharia,	heroicamente,	e	ao</p><p>fim	poderia,	sossegadamente,	criar	uma	família.</p><p>174 UNIUBE</p><p>E	trabalhou:	pôs	naquele	trabalho	a	força	criadora	da	sua	paixão.	Erguia	-se</p><p>de	madrugada,	comia	à	pressa,	mal	falava.	À	tardinha	ia	visitar	Luísa.	Depois</p><p>voltava	sofregamente	para	a	fadiga,	como	um	avaro	para	o	seu	cofre.	Estava</p><p>grosso,	forte,	duro,	fero:	servia	-se	com	o	mesmo	ímpeto	das	ideias	e	dos</p><p>músculos;	vivia	numa	tempestade	de	cifras.	Às	vezes	Luísa	de	passagem,</p><p>entrava	no	seu	armazém:	aquele	pousar	de	ave	fugitiva	dava	-lhe	alegria,</p><p>valor,	fé,	reconforto	para	todo	o	mês	cheiamente	trabalhado.</p><p>Por	esse	tempo	o	amigo	do	chapéu	de	palha	veio	pedir	a	Macário	que</p><p>fosse	seu	fiador	por	uma	grande	quantia,	que	ele	pedira	para	estabelecer</p><p>uma	loja	de	ferragens	em	grande.	Macário,	estava	no	vigor	do	seu	crédito,</p><p>cedeu	com	alegria.	O	amigo	do	chapéu	de	palha	é	que	lhe	dera	o	negócio</p><p>providencial	de	Cabo	Verde.	Faltavam	então	seis	meses	para	o	casamento.</p><p>Macário	já	sentia,	por	vezes,	subirem	-lhe	ao	rosto	as	febris	vermelhidões	da</p><p>esperança.	Já	começava	a	tratar	dos	banhos	mas	um	dia	o	amigo	do	chapéu</p><p>de	palha	desapareceu	com	a	mulher	de	um	alferes.	O	seu	estabelecimento</p><p>estava	em	começo.	Era	uma	confusa	aventura	não	se	pôde	nunca	precisar</p><p>nitidamente	aquele	imbróglio	doloroso.	O	que	era	positivo	é	que	Macário</p><p>era	fiador,	Macário	devia	reembolsar.	Quando	o	soube,	empalideceu	e	disse</p><p>simplesmente:</p><p>—	Liquido	e	pago.</p><p>E	quando	liquidou,	ficou	outra	vez	pobre.	Mas	nesse	mesmo	dia,	como	o</p><p>desastre	tivera	uma	grande	publicidade,	e	a	sua	honra	estava	santificada	na</p><p>opinião,	a	casa	Peres	&	C.ª,	que	o	mandara	a	Cabo	Verde,	veio	propor	-lhe</p><p>uma	outra	viagem	outros	ganhos.</p><p>—	Faz	outra	vez	fortuna,	homem.	O	senhor	é	o	Diabo!	–	disse	o	Sr.	Eleutério</p><p>Peres.</p><p>UNIUBE 175</p><p>—	Suba	–	disse	o	tio.</p><p>Macário	ia	calado,	cosido	com	o	corrimão.</p><p>Quando	chegou	ao	quarto,	o	tio	Francisco	pousou	o	candeeiro	sobre	uma	larga</p><p>mesa	de	pau	-santo,	e	de	pé,	com	as	mãos	nos	bolsos,	esperou.</p><p>Macário	estava	calado,	anediando	a	barba.</p><p>—	Que	quer?	–	gritou	-lhe	o	tio.</p><p>—	Vinha	dizer	-lhe	adeus;	volto	para	Cabo	Verde.</p><p>—	Boa	viagem.</p><p>E	o	tio	Francisco,	voltando	-se	as	costas,	foi	rufar	na	vidraça.</p><p>Macário	ficou	imóvel,	deu	dois	passos	no	quarto,	todo	revoltado,	e	ia	sair.</p><p>—	Onde	vai,	seu	estúpido?	–	gritou	-lhe	o	tio.</p><p>—	Vou	-me.</p><p>—	Sente	-se	ali!	E	o	tio	Francisco	falava,	com	grandes	passadas	pelo	quarto:</p><p>—	O	seu	amigo	é	um	canalha!	Loja	de	ferragens!	Não	está	má!	O	senhor	é</p><p>um	homem	de	bem.	Estúpido,	mas	homem	de	bem.	Sente	-se	ali!	Sente	-se!</p><p>O	seu	amigo	é	um	canalha!	O	senhor	é	um	homem	de	bem!	Foi	a	Cabo</p><p>Verde!	Bem	sei!	Pagou	tudo.	Está	claro!</p><p>Também	sei!	Amanhã	faz	favor	de	ir</p><p>para	a	sua	carteira,	lá	para	baixo.	Mandei	pôr	palhinha	nova	na	cadeira.	Faz</p><p>favor	de	pôr	na	fatura	Macário	&	Sobrinho.	E	case.	Case,	e	que	lhe	preste!</p><p>Levante	dinheiro.	O	senhor	precisa	de	roupa	branca	e	de	mobília.	E	meta</p><p>na	minha	conta.	A	sua	cama	lá	está	feita.</p><p>176 UNIUBE</p><p>Macário	queria	abraçá	-lo,	estonteado,	com	lágrimas	nos	olhos,	radioso.</p><p>—	Bem,	bem.	Adeus!</p><p>Macário	ia	sair.</p><p>—	Oh!	burro,	pois	quer	-se	ir	desta	sua	casa?</p><p>E	indo	a	um	pequeno	armário	trouxe	geleia,	um	covilhete	de	doce,	uma</p><p>garrafa	antiga	de	Porto	e	biscoitos.</p><p>—	Coma.</p><p>E	sentando	-se	ao	pé	dele,	e	tornando	a	chamar	-lhe	estúpido,	tinha	uma</p><p>lágrima	a	correr	-lhe	pelo	engelhado	da	pele.</p><p>De	sorte	que	o	casamento	foi	decidido	para	dali	a	um	mês.	E	Luísa	começou</p><p>a	tratar	do	seu	enxoval.</p><p>Macário	estava	então	na	plenitude	do	amor	e	da	alegria.</p><p>Via	o	fim	da	sua	vida	preenchido,	completo,	radioso.	Estava	quase	sempre</p><p>em	casa	da	noiva,	e	um	dia	andava	-a	acompanhando,	em	compras,	pelas</p><p>lojas.	Ele	mesmo	lhe	quisera	fazer	um	pequeno	presente,	nesse	dia.	A	mãe</p><p>tinha	ficado	numa	modista,	num	primeiro	andar	da	Rua	do	Ouro,	e	eles</p><p>tinham	descido,	alegremente,	rindo,	a	um	ourives	que	havia	em	baixo,	no</p><p>mesmo	prédio,	na	loja.</p><p>O	dia	estava	de	Inverno,	claro,	fino,	frio,	com	um	grande	céu	azul	-ferrete,</p><p>profundo,	luminoso,	consolado.</p><p>—	Que	bonito	dia!	–	disse	Macário.</p><p>UNIUBE 177</p><p>E	com	a	noiva	pelo	braço,	caminhou	um	pouco,	ao	comprido	do	passeio.</p><p>—	Está!	–	disse	ela.	–	Mas	podem	reparar;	nós	sós...</p><p>—	Deixa,	está	tão	bom...</p><p>—	Não,	não.</p><p>E	Luísa	arrastou	-o	brandamente	para	a	loja	do	ourives.	Estava	apenas	um</p><p>caixeiro,	trigueiro,	de	cabelo	hirsuto.</p><p>Macário	disse	-lhe:</p><p>—	Queria	ver	anéis.</p><p>—	Com	pedras	–	disse	Luísa	–	e	o	mais	bonito.</p><p>—	Sim,	com	pedras	–	disse	Macário.	–	Ametista,	granada.	Enfim,	o	melhor.</p><p>E,	no	entanto,	Luísa	ia	examinando	as	montras	forradas	de	veludo	azul,</p><p>onde	reluziam	as	grossas	pulseiras	cravejadas,	os	grilhões,	os	colares	de</p><p>camafeus,	os	anéis	de	armas,	as	finas	alianças	frágeis	como	o	amor,	e	toda</p><p>a	cintilação	de	pesada	ourivesaria.</p><p>—	Vê,	Luísa	–	disse	Macário.</p><p>O	caixeiro	tinha	estendido,	na	outra	extremidade	do	balcão,	em	cima	do	vidro</p><p>da	montra,	um	reluzente	espalhado	de	anéis	de	ouro,	de	pedras,	lavrados,</p><p>esmaltados;	e	Luísa,	tomando	-os	e	deixando	-os	com	a	ponta	dos	dedos,</p><p>ia	-os	correndo	e	dizendo:</p><p>—	É	feio.	É	pesado.	É	largo.</p><p>178 UNIUBE</p><p>—	Vê	este	–	disse	-lhe	Macário.</p><p>Era	um	anel	de	pequenas	pérolas.</p><p>—	É	bonito	–	disse	ela.	–	É	lindo!</p><p>—	Deixa	ver	se	serve	–	disse	Macário.</p><p>E	tomando	-lhe	a	mão,	meteu	-lhe	o	anel	devagarinho,	docemente,	no	dedo;</p><p>e	ela	ria,	com	os	seus	brancos	dentinhos	finos,	todos	esmaltados.</p><p>—	É	muito	largo	–	disse	Macário.	–	Que	pena!</p><p>—	Aperta	-se,	querendo.	Deixe	a	medida.	Tem	-no	pronto	amanhã.</p><p>—	Boa	ideia	–	disse	Macário	–	sim	senhor.	Porque	é	muito	bonito.	Não	é</p><p>verdade?	As	pérolas	muito	iguais,	muito	claras.	Muito	bonito!	E	esses	brincos?</p><p>–	acrescentou,	indo	ao	fundo	do	balcão,	a	outra	montra.	–	Estes	brincos	com</p><p>uma	concha?</p><p>—	Dez	moedas	–	disse	o	caixeiro.</p><p>E,	no	entanto,	Luísa	continuava	examinando	os	anéis,	experimentando	-os</p><p>em	todos	os	dedos,	revolvendo	aquela	delicada	montra,	cintilante	e	preciosa.</p><p>Mas,	de	repente,	o	caixeiro	fez	-se	muito	pálido,	e	afirmou	-se	em	Luísa,</p><p>passando	vagarosamente	a	mão	pela	cara.</p><p>—	Bem	–	disse	Macário,	aproximando	-se	–	então	amanhã	temos	o	anel</p><p>pronto.	A	que	horas?</p><p>O	caixeiro	não	respondeu	e	começou	a	olhar	fixamente	para	Macário.</p><p>UNIUBE 179</p><p>—	A	que	horas?</p><p>—	Ao	meio	-dia.</p><p>—	Bem,	adeus	–	disse	Macário.	E	iam	sair.	Luísa	trazia	um	vestido	de	lã</p><p>azul,	que	arrastava	um	pouco,	dando	uma	ondulação	melodiosa	ao	seu</p><p>passo,	e	as	suas	mãos	pequenas	estavam	escondidas	num	regalo	branco.</p><p>—	Perdão!	–	disse	de	repente	o	caixeiro.</p><p>Macário	voltou	-se.</p><p>—	O	senhor	não	pagou.</p><p>Macário	olha	para	ele	gravemente.</p><p>—	Está	claro	que	não.	Amanhã	venho	buscar	o	anel,	pago	amanhã.</p><p>—	Perdão!	–	disse	o	caixeiro.–	Mas	o	outro...</p><p>—	Qual	outro?	–	disse	Macário	com	uma	voz	surpreendida,	adiantando	-se</p><p>para	o	balcão.</p><p>—	Essa	senhora	sabe	–	disse	o	caixeiro.	–	Essa	senhora	sabe.</p><p>Macário	tirou	a	carteira	lentamente.</p><p>—	Perdão,	se	há	uma	conta	antiga...</p><p>O	caixeiro	abriu	o	balcão,	e	com	aspecto	resoluto:</p><p>180 UNIUBE</p><p>—	Nada,	meu	caro	Senhor,	é	de	agora.	É	um	anel	com	dois	brilhantes	que</p><p>aquela	senhora	leva.</p><p>—	Eu?!	–	disse	Luísa,	com	a	voz	baixa,	toda	escarlate.</p><p>—	Que	é?	Que	está	a	dizer?</p><p>E	Macário,	 pálido,	 com	 dentes	 cerrados,	 contraído,	 fitava	 o	 caixeiro</p><p>colericamente.	O	caixeiro	disse	então:</p><p>—	Essa	senhora	tirou	dali	o	anel.	–	Macário	ficou	imóvel,	encarando	-o.	–	Um</p><p>anel	com	dois	brilhantes.	Vi	perfeitamente.	–	O	caixeiro	estava	tão	excitado,</p><p>que	a	sua	voz	gaguejava,	prendia	-se	espessamente.	–	Essa	senhora	não</p><p>sei	quem	é.	E	tirou	-o	dali...</p><p>Macário,	maquinalmente,	agarrou	-lhe	o	braço,	e	voltando	-se	para	Luísa	com</p><p>a	palavra	abafada,	gotas	de	suor	na	testa,	lívido:</p><p>—	Luísa,	dize...	–	Mas	a	voz	cortou	-se	-lhe.</p><p>—	Eu...	–	disse	ela.	Mas	estava	trêmula,	assombrada,	enfiada,	descomposta.</p><p>E	tinha	deixado	cair	o	regalo	ao	chão.</p><p>Macário	veio	para	ela,	agarrou	-lhe	o	pulso	fintando	-a:	e	o	seu	aspecto	era</p><p>tão	resoluto	e	tão	imperioso	que	ela	meteu	a	mão	no	bolso,	bruscamente,</p><p>apavorada,	e	mostrando	o	anel:</p><p>—	Não	me	faça	mal	–	disse,	encolhendo	-se	toda.</p><p>Macário	ficou	com	os	braços	caídos,	o	ar	abstrato,	os	beiços	brancos;	mas</p><p>de	repente,	dando	um	puxão	ao	casaco,	recuperando	-se,	disse	ao	caixeiro:</p><p>UNIUBE 181</p><p>—	Mas	houve,	Jesus	–	disse	ela.</p><p>—	Vai	-te!	–	E	fez	um	gesto,	com	o	punho	cerrado.</p><p>—	Pelo	amor	de	Deus,	não	me	batas	aqui	–	disse	ela,	sufocada.</p><p>—	Vai	-te,	podem	reparar.	Não	chores.	Olha	que	veem.	Vai	-te.</p><p>E,	chegando	-se	para	ela,	disse	baixo:</p><p>—	És	uma	ladra!</p><p>E,	voltando	-lhe	as	costas,	afastou	-se,	devagar,	riscando	o	chão	com	a</p><p>bengala.</p><p>À	distância,	voltou	-se:	ainda	viu,	através	dos	vultos,	o	seu	vestido	azul.</p><p>Como	partiu	nessa	tarde	para	a	província,	não	soube	mais	daquela	rapariga	loura.</p><p>Resumo</p><p>Neste	capítulo,	você	conheceu	o	contexto	histórico	determinante	para	a</p><p>passagem	da	estética	romântica	para	a	estética	realista	em	Portugal,	a</p><p>Questão	Coimbrã.	Esse	evento	foi	o	marco	da	introdução	da	estética	que</p><p>já	predominava	em	toda	a	Europa.</p><p>Ao	publicar	O crime do padre Amaro,	em	1875,	Eça	de	Queirós	inaugura</p><p>a	nova	estética	ao	abordar,	de	forma	objetiva	e	crítica,	a	corrupção	da</p><p>Igreja	e	do	clero.</p><p>182 UNIUBE</p><p>Este	capítulo	trouxe	uma	breve	análise	da	obra	A ilustre casa de Ramires,</p><p>pertencente	à	terceira	fase	do	autor,	na	qual	destaca	-se	a	presença	de:	figuras	de</p><p>linguagem	como	a	antítese,	a	metáfora,	a	alegoria	e	a	ironia;a	aproximação	entre</p><p>cidade versus	campo,	passado	versus	presente,	glória	versus	decadência,	grandeza</p><p>versus	fragilidade;crítica	aos	relacionamentos	por	interesse	–	inclusive	ao	casamento.</p><p>Essas	características	foram	demonstradas	a	partir	da	análise	do	texto</p><p>de	Eça	de	Queirós,	com	base	na	estética	realista	e	em	comparação</p><p>com	textos	de	autores	representativos	como	Vidas secas, de</p><p>Graciliano	Ramos,	e	Madame Bovary,	de	Gustave	Flaubert.</p><p>Referências</p><p>ABDALA	JÚNIOR,	Benjamin;	PASCHOALIN,	Maria	Aparecida. História social</p><p>da literatura portuguesa.	São	Paulo:	Ática,	1982.</p><p>CEREJA,	William	Roberto;	MAGALHÃES,	Thereza	Cochar. Português: linguagens.</p><p>3.	ed.	São	Paulo:	Atual,	1999.	v.	2.</p><p>CANDIDO,	Antonio.	Formação da literatura brasileira.	v.1.	São	Paulo:	Martins,	1964.</p><p>D´ONOFRIO,	Salvatore. Literatura ocidental:	autores	e	obras	fundamentais.	2.</p><p>ed.	São	Paulo:	Ática,	2007.</p><p>GARMES,	Hélder;	SIQUEIRA,	José	Carlos.	Eça	de	Queiros	–	Cenas	da	vida	portuguesa.</p><p>In:	FERRAZ,	Heitor	(Org.).	Entrelivros: Literatura	portuguesa,	São	Paulo:</p><p>Duetto	Editorial,	2008,	v.	5,	p.	43.</p><p>GOLDSTEIN,	Norma.	Versos, sons e ritmos.	13.	ed.	São	Paulo:	Ática,	2002.</p><p>QUEIRÓS,	Eça	de.	A ilustre casa de Ramires.	São	Paulo:	Martin	Claret,</p><p>2004.</p><p>______.	Contos.	São	Paulo:	Martin	Claret,	2006a.</p><p>______. Singularidades	de	uma	rapariga	loura. In	______.	Contos.	2006b.	Disponível</p><p>em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua00088a.pdf>.	Acesso	em:</p><p>13.	maio	2010.</p><p>UNIUBE 183</p><p>RAMOS,	Graciliano.	Vidas Secas. 70.	ed.	Rio	de	Janeiro:	Record,	1995.</p><p>WIKIPEDIA.	Eça de Queirós.	Disponível	em:	<http://pt.wikipedia.org/wiki/Eça-</p><p>de-Queiros>.	Acesso	em:	4	mar.	2010.</p><p>WIKIPEDIA.	Torre medieval.	Disponível	em:	<http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Torre_</p><p>de_Alcofra.JPG>.	Acesso	em:	4	mar.	2010.</p><p>184 UNIUBE</p><p>Carlos Francisco de Morais</p><p>Introdução</p><p>A prosa portuguesa</p><p>modernista e</p><p>contemporânea</p><p>Capítulo</p><p>4</p><p>Neste	capítulo,	você	entrará	em	contato	com	os	principais	autores</p><p>da	ficção	portuguesa	no	século	XX.	As	décadas	que	se	seguiram</p><p>à	eclosão	do	Modernismo	da	“Geração	de	Orpheu”	revelaram</p><p>uma	multiplidade	de	autores,	tendências	e	movimentos,	os	quais</p><p>elevaram	a	prosa	portuguesa	a	um	nível	antes	alcançado	apenas</p><p>na	época	do	Realismo.</p><p>Serão	 objeto	 de	 atenção	 neste	 capítulo	 tanto	 os	 autores	 que</p><p>escreveram	no	contexto	de	um	determinado	movimento	literário,	caso</p><p>de	José	Régio,	em	relação	à	“Geração	da	presença”,	ou	de	Fernando</p><p>Namora	e	Carlos	de	Oliveira	em	relação	ao	Neorrealismo,	quanto</p><p>aqueles	que	desenvolveram	seu	estilo	de	modo	completamente</p><p>independente,	como	Agustina	Bessa-Luís	e	Vergílio	Ferreira.</p><p>Após	o	estudo	deste	capítulo,	esperamos	que	você	seja	capaz	de:</p><p>• mostrar	a	importância	da	prosa	de	ficção	portuguesa	no</p><p>contexto	da	literatura	modernista	e	contemporânea;</p><p>• abordar	 criticamente	 as	 relações	 estabelecidas	 pelos</p><p>romancistas	portugueses	do	século	XX	com	suas	condições</p><p>de	 produção,	 principalmente	 o	 contexto	 sócio-político-</p><p>econômico	de	Portugal	durante	a	ditadura	do	Estado	Novo</p><p>(1926-1974)	e	depois	da	Revolução	dos	Cravos	(1974);</p><p>Objetivos</p><p>186 UNIUBE</p><p>4.1	Panorama	da	prosa	portuguesa	no	século	XX</p><p>4.2	José	Régio	e	o	romance	psicológico	da	“Geração	da	presença”</p><p>4.3	O	Neorrealismo:	literatura	e	ideologia</p><p>4.3.1	Alves	Redol	e	a	literatura	como	documento	social</p><p>4.3.2	Os	romances	neorrealistas	de	Fernando	Namora</p><p>4.3.3	Carlos	de	Oliveira	e	a	análise	psicossocial	da	realidade</p><p>4.4	Agustina	Bessa-Luís:	a	emergência	da	autoria	feminina</p><p>4.5	O	romance	filosófico	de	Vergílio	Ferreira</p><p>4.6	Novas	tendências	ficcionais:	anos	1960-1990</p><p>4.7	José	Saramago,	romancista	de	Portugal	e	do	mundo</p><p>4.8	Conclusão</p><p>A novelística portuguesa contemporânea é, sobretudo, a</p><p>novelística que a partir dos anos 50 (...) abre caminhos</p><p>diversos a partir de uma atitude essencialmente crítica e</p><p>mesmo de autocrítica.</p><p>Álvaro Manuel Machado</p><p>Esquema</p><p>• explicar	as	linhas	de	força,	em	termos	temáticos	e	formais,</p><p>presentes	nas	obras	dos	principais	ficcionistas	portugueses,</p><p>com	vistas	a	fundamentar	a	análise	de	sua	contribuição	para</p><p>o	panorama	atual	do	romance	em	língua	portuguesa.</p><p>Panorama da prosa portuguesa no século XX4.1</p><p>Um	breve	exame	da	história	da	literatura	portuguesa	anterior	ao	século</p><p>XX	 demonstrará	 uma	 notável	 desproporção	 entre	 os	 números	 de</p><p>poetas	e	ficcionistas	de	destaque.	Em	movimentos	mais	antigos,	como</p><p>o	Trovadorismo,	Humanismo,	Renascimento,	Barroco	e	Arcadismo,	o</p><p>lirismo	é	quase	que	a	marca	exclusiva,	legando	à	tradição	do	país	nomes</p><p>como	os	de	D.	Dinis,	Francisco	de	Sá	de	Miranda,	Luís	de	Camões,	D.</p><p>Francisco	Manuel	de	Melo	e	Manuel	du	Bocage.	A	partir	do	Romantismo</p><p>UNIUBE 187</p><p>e	a	ascensão	do	romance	como	gênero	de	maior	relevância	literária,</p><p>começam	 a	 surgir	 os	 autores	 que,	 realmente,	 lançarão	 as	 bases</p><p>para	uma	tradição	narrativa	constante	em	Portugal,	como	Alexandre</p><p>Herculano,	Almeida	Garrett,	Camilo	Castelo	Branco	e	Eça	de	Queirós,</p><p>mas,	em	termos	de	números	e	de	variedade	de	perspectivas,	somente</p><p>com	a	chegada	do	Modernismo	é	que	se	verá	o	florescimento	da	prosa</p><p>em	condições	de	equilíbrio	com	a	poesia.	No	século	XX,	para	cada</p><p>Fernando	Pessoa,	surgirá	um	José	Saramago;	para	Sophia	de	Mello</p><p>Breyner	Andresen,	haverá	Agustina	Bessa	Luís;	para	José	Gomes</p><p>Ferreira,	Fernando	Namora;	para	Herberto	Helder,	Vergílio	Ferreira.</p><p>Neste	capítulo,	portanto,	daremos	destaque	aos	autores	que	fizeram	a</p><p>história	recente	da	prosa	portuguesa,	começando	com	aqueles	que,	nas</p><p>décadas	de	1930	e	1940,	identificaram-se	com	as	propostas	coletivas</p><p>da	“Geração	da	presença”	e	do	Neorrealismo,	seguindo,	depois,	para</p><p>a	observação	das	propostas	individuais	que	predominaram	desde	os</p><p>anos	1950,	como	a	exploração	do	mundo	feminino	feito	por	Agustina</p><p>Bessa-Luís,	o	romance	filosófico	de	Vergílio	Ferreira,	as	experimentações</p><p>formais	de	Almeida	Faria	e	a	literatura	de	consciência	social	praticada</p><p>por	José	Saramago.</p><p>José Régio e o romance psicológico da “Geração da presença”4.2</p><p>Como	está	registrado	no	capítulo	sobre	a	poesia	portuguesa,	José	Régio</p><p>(1901-1969)	foi	um	dos	fundadores	da	revista	presença,	que,	entre	1927</p><p>e	1940,	aglutinou	os	escritores	da	segunda	fase	do	Modernismo	naquele</p><p>país.	Como	diretor	da	revista	e	formulador	de	suas	principais	propostas,	a</p><p>produção	literária	de	Régio	ficou	identificada	como	uma	das	mais	relevantes</p><p>dentro	do	Presencismo,	seja	em	sua	lírica	ou	sua	prosa	de	ficção.</p><p>A	obra	romanesca	de	José	Régio	é	composta	pelos	dez	títulos,	entre</p><p>os	quais	se	destaca	o	primeiro,	Jogo da cabra-cega	(1934),	o	ciclo	A</p><p>velha casa,	com	cinco	romances	lançados	entre	1945	e	1966,	e	Há mais</p><p>mundos,	que	recebeu	o	Grande	Prémio	de	Novelística	da	Sociedade</p><p>Portuguesa	de	Escritores	em	1963.</p><p>188 UNIUBE</p><p>Em	linhas	gerais,	a	ficção	associada	à	“Geração	da	presença”	confirma</p><p>os	interesses	pela	exploração	do	mundo	das	psicologias	individuais</p><p>que	marcam	a	poesia	do	movimento.	Dessa	forma,	são	mais	relevantes</p><p>em	suas	narrativas	as	questões	ligadas	à	sensibilidade,	à	criatividade</p><p>e	à	originalidade,	em	contextos	ficcionais	em	que	a	reflexão	sobre	a</p><p>condição	humana	e	o	lugar	da	arte	nela	suplanta	a	preocupação	com	os</p><p>problemas	sociais.	No	primeiro	número	da	revista,	José	Régio	assinou</p><p>um	editorial	que	revela	sua	adesão	a	esses	princípios	artísticos,	como</p><p>registra	Eugénio	Lisboa	em	seu	estudo	sobre	o	escritor:</p><p>Logo	no	primeiro	número	da	presença,	e	com	invulgar</p><p>firmeza,	Régio	desencadeia	o	seu	ataque	à	literatura</p><p>a	que	chama	“livresca”,	defendendo	uma	arte	viva</p><p>contra	uma	arte	de	meras	astúcias	linguísticas	que</p><p>dá,	em	grande	parte,	o	“treino	de	escrever”:	“Em	Arte”,</p><p>proclama,	“é	vivo	tudo	o	que	é	original.	É	original	tudo</p><p>o	que	provém	da	parte	mais	virgem,	mais	verdadeira</p><p>e	mais	íntima	duma	personalidade	artística”.	Defende</p><p>a	originalidade	genuína,	que	nada	tem	a	ver	com	a</p><p>excentricidade	rebuscada.	(LISBOA,	1992,	p.	40-41).</p><p>A	busca	pela	originalidade	genuína,	que	Lisboa	destaca	na	proposta</p><p>inicial	de	Régio	para	seus	companheiros	e	os	leitores	da	presença, deixa</p><p>traços	visíveis	nos	romances	do	autor.	O	melhor	exemplo	disso	é	Jogo</p><p>da cabra-cega,	considerado	uma	das	obras-primas	de	sua	ficção.</p><p>Conhecer-se	em	suas	peculiaridades	mais	íntimas	é	o	ponto	de	partida</p><p>das	experiências	que	Pedro	Serra,	o	jovem	narrador-protagonista	do</p><p>romance,	vive	ao	longo	do	enredo.	Desse	ponto	de	vista,	o	livro	pode</p><p>ser	entendido	como	um	romance	de	formação,	pois	o	leitor	acompanha,</p><p>ao	longo	dele,	a	formação	da	personalidade	de	Pedro.	Isso,	entretanto,</p><p>passa	pela	questão	de	conhecer	o	outro,	já	que	ninguém	vive	sozinho</p><p>e	ele,	particularmente,	encontra-se	convivendo	num	grupo	de	rapazes,</p><p>cada	um	com	suas	idiossincrasias,	sendo	que	um	deles,	Jaime	Franco,</p><p>destaca-se	por	sua	independência	de	pensamento	e	capacidade	de</p><p>elaborar	as	mais	profundas	e	originais	teorias	a	respeito	da	condição</p><p>humana	e	das	relações	entre	as	pessoas.</p><p>UNIUBE 189</p><p>Conforme	Pedro	Serra	vai	vivendo	e	registrando	sua	convivência	com</p><p>os	rapazes	e	sua	fascinação	pelas	ideias	de	Jaime	Franco,	o	leitor	vai</p><p>percebendo	que	há	entre	eles	um	jogo	de	luz	e	sombra,	em	que	as</p><p>atitudes	de	um	espelham	as	do	outro,	sempre	em	sentido	contrário.</p><p>Desse	modo,	a	conclusão	que	se	forma	aos	poucos</p><p>é	a	de	que	Jaime</p><p>Franco	é	uma	espécie	de	alter ego	de	Pedro	Serra,	ou	seja,	o	retrato	que</p><p>a	narrativa	nos	dá	dele	é	resultado	das	projeções	do	rapaz	mais	novo,</p><p>que	admira	em	Jaime	justamente	o	que	gostaria	de	ser.	Internamente,	na</p><p>composição	do	livro,	essa	identificação	se	exemplifica	por	um	livro	que</p><p>Pedro	Serra	escreve	sobre	Jaime,	que	é	recebida	pelo	homenageado</p><p>apenas	como	uma	das	muitas	histórias	que	se	poderiam	contar	sobre</p><p>ele,	o	que	deixa	claro	que	o	Jaime	escrito	é	produto	do	olhar	de	Pedro</p><p>sobre	ele,	não	de	sua	existência	concreta.</p><p>No	mundo	psicológico,	 intuitivo	e	sensível	das	relações	mostradas</p><p>e	analisadas	em	Jogo da cabra cega,	as	existências	concretas	são</p><p>inapreensíveis,	pois	nele	o	olhar	de	uma	pessoa	 jamais	consegue</p><p>captar	a	verdade	da	vida	de	outra.	Por	colocar	em	relevo	esse	tipo	de</p><p>questão	de	fundo	filosófico,	que	se	reflete	em	longos	diálogos	em	que</p><p>as	personagens	debatem	o	sentido	da	vida,	em	âmbito	geral,	mas,</p><p>principalmente,	no	espaço	de	suas	personalidades	em	gestação,	o</p><p>romance	assume	um	aspecto	ensaístico	que	o	marca	como	uma	exceção</p><p>no	panorama	da	ficção	portuguesa	dos	anos	1930.</p><p>Em	Jogo da cabra cega,	a	literatura	se	nutre	tanto	da	Psicologia	quanto</p><p>da	Filosofia.	Na	fortuna	crítica	da	obra,	já	se	firmou	a	interpretação</p><p>segundo	a	qual	o	contexto	do	enredo	é	o	mundo	psicológico,	não	o</p><p>das	ações	práticas,	sociais	ou	políticas.	Essa	interpretação	se	deve</p><p>à	própria	organização	do	livro,	no	qual	a	ação	não	avança	com	base</p><p>em	estímulos	externos,	ou	seja,	não	depende	de	peripécias	vividas	no</p><p>mundo	exterior	para	que	existam	os	conflitos	que	movem	as	personagens</p><p>em	sua	vida	interior	e	na	interação	com	os	outros.	O	mesmo	pode	ser</p><p>dito	a	respeito	do	papel	exercido	pela	memória	na	narrativa,	pois	ela	é</p><p>190 UNIUBE</p><p>um	recurso	do	qual	o	narrador	se	vale	com	muita	frequência,	como	se</p><p>para	ele	muito	mais	importante	que	o	mundo	visível	que	se	apresenta</p><p>diante	de	seus	olhos	fosse	o	invisível	que	se	guarda	no	fundo	da	mente,</p><p>produto	mais	das	lembranças	do	que	das	experiências.	Dessa	forma,	o</p><p>tempo	que	importa	na	narrativa	não	é	o	cronológico,	das	ações	vividas,</p><p>mas	o	psicológico,	das	memórias,	impressões	e	intuições,	capaz	de	tirar	a</p><p>importância	do	presente	para	evidenciar	o	valor	do	passado	mais	distante.</p><p>Outro	aspecto	importante	a	se	considerar	em	Jogo da cabra cega	é	o</p><p>das	influências	literárias	que	ele	revela,	num	diálogo	que	se	aproxima</p><p>da intertextualidade.</p><p>Um	primeiro	exemplo	disso	é	o	tom	memorialístico	do	relato	em	primeira</p><p>pessoa	de	Pedro	Serra,	o	que	aproxima	o	livro	do	ciclo	de	romances</p><p>Em busca do tempo perdido,	de	Marcel	Proust,	autor	francês	que,	no</p><p>início	do	século	XX,	revolucionou	a	escrita	dos	romances	com	seu	estilo</p><p>em	que	a	memória	é	a	base	de	tudo;	na	direção	da	revista	presença,</p><p>José	Régio	foi	um	fervoroso	admirador	e	divulgador	da	obra	de	Proust</p><p>em	Portugal.</p><p>Também	deve	ser	lembrada	a	influência	de	Fiódor	Dostoievski,	autor	de</p><p>clássicos	como	Os irmãos Karamazov, Crime e castigo e O idiota,	que</p><p>era	um	dos	escritores	prediletos	de	Régio.	Como	tal,	ele	incorporou	em</p><p>seu	romance	conflitos	essenciais	da	obra	do	grande	escritor	russo,	como</p><p>aqueles	entre	o	Bem	e	o	Mal,	Deus	e	o	Diabo,	o	indivíduo	e	a	sociedade</p><p>e,	também,	o	indivíduo	e	ele	mesmo.</p><p>Além	disso,	a	maneira	como	a	amizade	entre	Pedro	Serra	e	Jaime	Franco</p><p>é	relatada	no	romance,	em	termos	de	proximidade	e	idealização	que</p><p>levam	o	primeiro	a	se	identificar	com	o	segundo	de	um	modo	que	beira</p><p>o	excesso,	levou	a	crítica	especializada	a	ver	nisso	uma	semelhança</p><p>com	o	que	acontece	na	novela	A confissão de Lúcio,	de	Mário	de</p><p>Sá-Carneiro,	um	dos	autores	da	Geração	de	Orpheu	que	a	presença</p><p>UNIUBE 191</p><p>mais	prestigiou.	Na	narrativa	lançada	em	1914,	Sá-Carneiro	apresentava,</p><p>em	tons	enigmáticos,	que	incluíam	o	uso	de	episódios	sobrenaturais,	o</p><p>caso	obsessivo	de	amizade	do	escritor	Lúcio	Vaz	pelo	poeta	Ricardo</p><p>de	Loureiro,	que,	mediada	pela	misteriosa	Marta,	esposa	deste	último,</p><p>terminará	em	tragédia.	Se	o	leitor	perceber	que	Marta	é	uma	espécie	de</p><p>sombra	de	Ricardo,	não	terá	impressão	muito	diferente	de	Jaime	Franco</p><p>em	relação	a	Pedro	Serra.</p><p>Jogo da cabra cega	se	tornou	um	dos	romances	mais	admirados	da</p><p>moderna	literatura	portuguesa	por	ter	encontrado	uma	forma	nova	de</p><p>desenvolver	um	dos	temas	mais	caros	à	cultura	ocidental:	a	da	busca</p><p>ou	construção	da	verdade	de	cada	pessoa.	É	a	essa	aventura	filosófica</p><p>e	psicológica	que	se	lança	Pedro	Serra,	levando	consigo	o	leitor,	como</p><p>evidencia	Eugénio	Lisboa	em	seus	comentários	sobre	um	trecho	do	livro:</p><p>Assim,	ao	longo	da	lenta	e	longa	leitura	da	obra	de</p><p>Régio,	vamos	tendo	a	impressão	de	uma	interminável</p><p>viagem	 por	 cima	 de	 terreno	 minado	 (embora</p><p>com	 letreiros	 avisando	 que	 há	minas)	 e	 de	 uma</p><p>progressiva	mas	sinuosa	caminhada,	cheia	de	desvios</p><p>e	retrocessos,	no	sentido	de	uma	difícil	e	demorada</p><p>aproximação	da	verdade.	É	esse	o	seu	método.	A</p><p>verdade	não	se	alcança	a	não	ser	aos	poucos.	Mesmo</p><p>quando	ocasionalmente	nos	é	oferecido	um	“flash”</p><p>brutal	dela,	não	a	vemos,	ou	a	vemos	deformada,	ou</p><p>não	acreditamos	nela.	É	preciso	paciência.	Já	que</p><p>amadurecer	para	ela.	Há	que	merecê-la.	 “Quanto</p><p>ao	senhor...”,	diz	Jaime	Franco	ao	seu	interlocutor</p><p>privilegiado,	“ir-me-á	aceitando	pouco	a	pouco.	Não</p><p>tenha	pressa,	querido	amigo!	Simplificamos	sempre</p><p>tudo	o	que	julgamos	compreender	depressa.	E	tais</p><p>simplificações	 são	 verdadeiras	 calúnias”.	 E	 mais</p><p>adiante:	“Coragem,	mais	um	passo”.	É,	no	fundo,	o</p><p>respeito	pela	complexidade	do	real,	que	dita	o	ritmo	da</p><p>“demarche”.	(LISBOA,	1992,	p.	69-70).</p><p>Jogo da cabra cega,	como	se	vê	pelas	palavras	de	Eugénio	Lisboa,	é</p><p>uma	leitura	exigente,	mas	recompensa	quem	o	percorre	com	uma	visão</p><p>ficcional,	claro,	mas	complexa	e	profunda	da	vida	real	das	subjetividades.</p><p>Como	tal,	representa	perfeitamente	os	ideais	estéticos	e	culturais	da</p><p>“Geração	da	presença”.</p><p>192 UNIUBE</p><p>O Neorrealismo: literatura e ideologia4.3</p><p>A	 concentração	 exclusiva	 nos	 aspectos	 intrinsecamente	 estéticos</p><p>da	literatura	que	os	autores	ligados	à	revista	presença	defendiam	e</p><p>praticavam	não	era	uma	unanimidade	nos	meios	culturais	portugueses</p><p>dos	 anos	 1930.	 Nessa	 época,	 marcada	 pelos	 efeitos	 da	 Grande</p><p>Depressão,	pela	ascensão	do	fascismo	na	Alemanha,	Itália	e	Espanha,</p><p>de	intensificação	da	ditadura	salazarista	em	Portugal	mesmo,	surgiu	uma</p><p>geração	que	se	propunha	à		prática	de	uma	arte	baseada	no	combate</p><p>aos	problemas	sociais	a	partir	de	uma	perspectiva	ideológica	esquerdista.</p><p>Coletivamente,	esses	autores	viriam	a	constituir	o	movimento	conhecido</p><p>como	Neorrealismo.</p><p>Uma	das	fontes	de	estímulo	para	a	formulação	do	ideário	neorrealista</p><p>foi	a	descoberta,	por	parte	da	nova	geração,	de	literatos	lusitanos,	da</p><p>ficção	norte-americana	de	inspiração	social,	como	a	praticada	por	John</p><p>Steinbeck,	Upton	Sinclair,	Sinclair	Lewis	e	John	dos	Passos.	Estes</p><p>literatos	mostravam	em	seus	romances	uma	visão	crua	de	seu	país,</p><p>destacando	os	imensos	problemas	enfrentados	pelos	trabalhadores</p><p>pobres	na	crise	causada	pela	quebra	da	Bolsa	de	Nova	Iorque,	em	1929.</p><p>Outra	foi	a	divulgação	em	Portugal	da	literatura	social	escrita	por	autores</p><p>brasileiros	como	Graciliano	Ramos,	José	Lins	do	Rego,	Raquel	de</p><p>Queirós	e	Jorge	Amado,	que,	na	década	de	1930,	colocaram	no	centro</p><p>da	produção	brasileira	os	problemas	causados	pelas	constantes	secas</p><p>ocorridas	na	região	Nordeste	do	Brasil,	que	tinham	como	consequências</p><p>a	fome,	o	desemprego,	o	êxodo	rural	e	a	exacerbação	dos	aspectos	mais</p><p>agudos da luta de classes.</p><p>Problemas	desse	tipo,	mesmo	que	com	causas	diferentes,	também</p><p>existiam	em	Portugal,	de	maneira	que	muitos	jovens	escritores	não</p><p>aceitavam	a	ideia	de	uma	arte	“pura”,	desligada	do	contexto	em	que	a</p><p>maioria	vivia	e	preocupada	apenas	com	a	depuração	de	seu	estilo,	como</p><p>acusavam	os	presencistas	de	fazer.</p><p>UNIUBE 193</p><p>Os	principais	autores	ligados	ao	Neorrealismo	foram	Alves	Redol,	Soeiro</p><p>Pereira	Gomes,	Manuel	Fonseca,	Carlos	Oliveira	e	Fernando	Namora.</p><p>Suas	propostas	básicas</p><p>podem	ser	resumidas	em	três	pontos	que</p><p>Alves	Redol	apresentou	como	essências	para	o	fazer	artístico	numa</p><p>conferência	que	proferiu	em	1938:</p><p>1ª.	A	arte	pela	arte	é	uma	ideia	tão	extravagante	em</p><p>nossos	tempos	como	a	de	riqueza	pela	riqueza,	ou	de</p><p>ciência	pela	ciência;</p><p>2ª.	Todos	os	assuntos	devem	servir	em	proveito	do</p><p>homem,	se	não	querem	ser	uma	vã	e	ociosa	ocupação;</p><p>a	riqueza	existe	para	que	toda	a	humanidade	goze;	a</p><p>ciência	para	guia	do	homem;	a	arte	deve	servir	também</p><p>para	algum	proveito	essencial	e	não	deve	ser	apenas</p><p>um	prazer	estéril;</p><p>3ª.	A	arte	deve	contribuir	para	o	desenvolvimento	da</p><p>consciência	e	para	melhorar	a	ordem	social.	(REDOL</p><p>apud	TORRES,	1983,	p.	32).</p><p>A	literatura	produzida	por	Alves	Redol	e	seus	companheiros	de	geração</p><p>reflete	os	três	princípios	acima	em	sua	caracterização	como	uma	arte</p><p>engajada,	a	serviço	da	libertação	dos	trabalhadores	mais	humildes,</p><p>fossem	do	campo	ou	da	cidade,	vistos	todos	eles	como	vítimas	da</p><p>exploração	do	sistema	capitalista.	O	grande	risco	enfrentado	por	esses</p><p>escritores	foi	criar	uma	literatura	que	não	se	confundisse	com	um	panfleto</p><p>de	propaganda	política,	o	que,	para	seus	opositores	da	“Geração	da</p><p>presença”,	nem	sempre	eles	conseguiram	fazer.</p><p>Ao	longo	de	toda	a	década	de	trinta,	travou-se	a	polêmica	entre	as</p><p>concepções	presencista	e	neorrealista	de	arte	e	literatura.	Do	lado	do</p><p>Neorrealismo,	seus	principais	meios	de	divulgação	foram	o	jornal	O	Diabo</p><p>(1934-1940)	e	a	revista	Sol	Nascente	(1937-1940),	os	quais	viriam	a	ser</p><p>fechados	pelo	governo	por	causa	de	sua	doutrina	política	esquerdista.</p><p>Também	colaborou	para	essa	divulgação	o	grupo	de	jovens	opositores	da</p><p>ditadura	que,	sob	o	título	geral	de	Novo Cancioneiro,	lançou,	entre	1941</p><p>e	1944,	uma	série	de	volumes	de	poesia	de	índole	contestatória.	Alguns</p><p>desses	poetas,	posteriormente,	passaram	a	produzir	prosa	de	ficção,</p><p>despontando	como	nomes	muito	importantes	dentro	do	Neorrealismo;</p><p>foi	o	caso	de	Fernando	Namora	e	Carlos	de	Oliveira.</p><p>194 UNIUBE</p><p>Na	cidade	de	Vila	Franca	de	Xira,	próxima	a	Lisboa,	existe,	desde	1990,</p><p>o	Museu	do	Neorrealismo,	dedicado	a	preservar	a	memória	e	a	divulgar	a</p><p>produção	literária	desse	movimento.	Você	pode	assistir	a	um	curta-metragem</p><p>sobre	a	instituição	no	Youtube,	usando	este	link:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=mSzOxHeVtV8</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>4.3.1 Alves Redol e a literatura como documento social</p><p>António	Alves	Redol	(1911-1969)	foi	o	pioneiro	do	romance	neorrealista,</p><p>com	sua	obra	Gaibéus,	lançada	em	1940.	Sua	origem	social	humilde,</p><p>que	o	privou	de	uma	formação	universitária,	cedo	o	levando	ao	mundo	do</p><p>trabalho,	como	contabilista,	e	à	emigração,	já	que	aos	dezesseis	anos	foi</p><p>se	empregar	em	Angola,	de	onde	só	voltaria	a	Portugal	com	trinta	anos,</p><p>despertou	nele	uma	aguda	consciência	dos	problemas	sociais.</p><p>Aliada	a	suas	circunstâncias	de	vida,	também	a	leitura	dos	romancistas</p><p>brasileiros	do	Nordeste,	como	Jorge	Amado	e	Graciliano	Ramos,	bem	como</p><p>dos	ficcionistas	estadunidenses	que	tomavam	como	tema	os	problemas</p><p>econômicos	e	políticos	causados	pela	crise	de	1929,	contribuiu	para	seu</p><p>interesse	na		criação	de	uma	literatura	engajada.	Essa	compreensão	da</p><p>arte	como	uma	arma	de	combate	em	prol	da	conscientização	das	classes</p><p>desfavorecidas	em	seu	país	está	presente	nos	três	gêneros	literários	que	o</p><p>autor	cultivou:	o	romance,	o	conto	e	o	teatro.</p><p>A	obra	romanesca	de	Alves	Redol	reúne	quinze	títulos,	mas	o	mais</p><p>significativo,	em	termos	de	repercussão	e	influência	sobre	outros	autores,</p><p>é	mesmo	o	primeiro	Gaibéus.</p><p>A	palavra	que	dá	título	ao	livro	era	o	termo	popular	que,	naquela	época,</p><p>servia	para	designar	os	camponeses	que	trabalhavam	na	colheita	do</p><p>arroz	nas	províncias	do	Ribatejo	e	Beira	Baixa,	sempre	em	condições</p><p>UNIUBE 195</p><p>precárias,	por	ser	um	trabalho	sazonal,	sem	estabelecimento	de	qualquer</p><p>vínculo	empregatício	ou	conquista	de	direitos.	Como	tal,	os	gaibéus	se</p><p>assemelhavam	aos	trabalhadores	brasileiros	conhecidos	como	“boias-frias”.</p><p>O	romance	de	Alves	Redol	acompanha	o	cotidiano	de	um	grupo	de</p><p>gaibéus	durante	uma	época	de	colheita,	revelando	seus	dramas	na</p><p>luta	pela	sobrevivência.	A	própria	epígrafe	escolhida	pelo	escritor	para</p><p>apresentar	seu	livro	já	revela	a	intenção	de	se	fazer	ficção	a	partir	da</p><p>observação	da	realidade	social:	“Este	romance	não	pretende	ficar	na</p><p>literatura	como	obra	de	arte.	Quer	ser,	antes	de	tudo,	um	documentário</p><p>humano	fixado	no	Ribatejo.	Depois	disso,	será	o	que	os	outros	entenderem.”</p><p>(REDOL,	apud	TORRES,	1983,	p.	9).</p><p>Essa	observação	do	autor	revela	o	que	para	ele	predomina	na	escritura	do</p><p>romance:	a	preocupação	com	o	conteúdo	social,	não	com	o	estilo	artístico.</p><p>Essa	é	uma	das	marcas	mais	fortes	do	Neorrealismo	e	também	a	crítica</p><p>mais	forte	que	lhe	fazem	seus	opositores,	principalmente	aqueles	associados</p><p>à	revista	presença,	que	defendia	o	conceito	da	“arte	pela	arte”.</p><p>O	primado	da	intenção	conscientizadora	no	livro	pode	ser	observado</p><p>na	maneira	pela	qual	ele	aborda	a	construção	das	personagens,	como</p><p>observa	Altamir	Botoso:</p><p>No	 romance	 Gaibéus,	 as	 personagens	 não	 são</p><p>individualizadas,	não	existem	personagens	protagonistas.</p><p>Elas	 são	 tratadas	 como	 elementos	 homogêneos</p><p>e	 equivalentes,	 ocorrendo	 a	 inexistência	 do	 herói</p><p>protagonista,	não	existe	evolução	das	personagens</p><p>na	obra,	pois	o	individual	desaparece	no	aglomerado</p><p>populacional.</p><p>O	herói	do	romance	Gaibéus	é	um	herói	coletivo,</p><p>formado	por	uma	classe	social	desfavorecida	e,	com</p><p>exceção	do	ceifeiro	rebelde,	todas	estão	conformadas</p><p>com	o	seu	destino.</p><p>Os	eventos	ocorridos	com	as	personagens	buscam</p><p>refletir	 e	 enfatizar	 situações	 plurais,	 pois	 o	 que</p><p>acontece	com	uma	personagem	repete-se	também</p><p>com	as	demais.	Dessa	maneira,	com	o	relato	desses</p><p>acontecimentos	plurais,	o	social,	o	coletivo	ressalta-se</p><p>na	obra.	(BOTOSO,	2012,	p.	215).</p><p>196 UNIUBE</p><p>Apesar	dessa	concentração	no	coletivo	e	não	nos	 indivíduos,	que</p><p>se	deve,	como	aponta	Botoso,	a	uma	preponderância	de	aspectos</p><p>ideológicos	de	promoção	da	perspectiva	coletiva,	o	que	se	explica	pela</p><p>aderência	ao	marxismo	da	maior	parte	dos	neorrealistas,	a	leitura	de</p><p>Gaibéus	revela	traços	de	elaboração	artística	que	o	fizeram	sobreviver</p><p>para	 além	 do	 contexto	 de	 sua	 época	 de	 surgimento.	 Isso	 se	 dá,</p><p>principalmente,	pelo	lirismo	com	o	que	o	narrador	transmite	ao	leitor	as</p><p>vivências	do	grupo	de	trabalhadores	que	acompanha	no	enredo.	Se,		de</p><p>início,	o	leitor	percebe	que	o	relato	do	cotidiano	dos	gaibéus,	que	é	a</p><p>essência	do	livro,	assemelha-se	a	uma	reportagem	de	jornal,	aos	poucos</p><p>vai	percebendo	que	há	algo	de	poético	na	linguagem	com	que	se	faz	o</p><p>registro	daquelas	vidas	tão	difíceis.	Como	exemplo	desse	procedimento,</p><p>podem	ser	observadas	as	constantes	comparações	e	metáforas	usadas</p><p>pelo	escritor	para	mostrar	o	imenso	calor	que	os	trabalhadores	tinham</p><p>de	suportar	durante	os	meses	de	colheita	do	arroz:</p><p>Pareciam	cercados	no	trabalho	pelo	braseiro	de	um</p><p>fogo	que	alastrasse	na	Lezíria	Grande.	Como	se	da</p><p>Ponta	de	Erva	ao	Vau	a	 leiva	se	consumisse	nas</p><p>labaredas	de	um	incêndio	que	irrompesse	ao	mesmo</p><p>tempo	por	toda	a	parte.	O	ar	escaldava;	lambia-lhes</p><p>de	febre	os	rostos	corridos	pelo	suor	e	vincados	por</p><p>esgares	que	o	esforço	da	ceifa	provocava.	O	Sol</p><p>desaparecera	há	muito,	envolvido	pela	massa	cinzenta</p><p>das	nuvens	cerradas.	Os	ceifeiros	não	o	sentiam</p><p>penetrar-lhes	a	carne	abalada	pela	 fadiga.	Lento,</p><p>mas	persistente,	parecia	ter-se	dissolvido	no	ar	que</p><p>respiravam,	pastoso	e	espesso.	Trabalhavam	à	porta</p><p>de	uma	fornalha	que	lhes	alimentava	os	pulmões	com</p><p>metal	em	fusão.</p><p>Quase	exaustos,	os	peitos	arfavam	num	ritmo	de</p><p>máquinas	velhas	saturadas	de	movimento.	(REDOL,</p><p>1965,	p.	155).</p><p>A	última	imagem	da	citação	também	indica	o	lirismo	da	prosa	de	Alves</p><p>Redol,	pois	se	vale	de	uma	metáfora	para	impressionar	o	leitor	com	a</p><p>redução	dos	trabalhadores	a	uma	situação	de	máquinas	de	colheita,</p><p>numa	denúncia	da	alienação	que	o	trabalho	em	condições	extremamente</p><p>adversas	impõe	ao	ser	humano.</p><p>UNIUBE 197</p><p>Um	documentário	sobre	a	vida</p><p>e	a	obra	de	Alves	Redol	está	disponível	no</p><p>You	tube.	Ele	foi	produzido	por	ocasião	das	comemorações	do	centenário</p><p>de	nascimento	do	autor,	transcorrido	em	2011.	O	vídeo	pode	ser	encontrado</p><p>neste	endereço:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=h9Di3UzW_IY</p><p>AMPLIANDO	O	CONHECIMENTO</p><p>4.3.2 Os romances neorrealistas de Fernando Namora</p><p>Fernando	Namora	(1919-1989)	dividiu-se,	por	décadas,	entre	a	medicina</p><p>e	a	literatura.	Formado	pela	Universidade	de	Coimbra,	clinicou	por	muito</p><p>tempo	em	regiões	rurais	do	país,	até	se	fixar,	na	década	de	cinquenta,</p><p>em	Lisboa.	Ao	mesmo	tempo,	foi	construindo	uma	extensa	obra	literária,</p><p>a	qual	dialogaria	com	vários	estilos,	sendo	o	Neorrealismo,	entretanto,</p><p>aquele	com	o	qual	sua	escrita	está	mais	identificada	entre	o	público	leitor.</p><p>A	estreia	literária	de	Fernando	Namora	se	deu	simultaneamente	na	poesia</p><p>e	no	romance,	em	1938,	com	os	livros	Relevos e As sete partidas do</p><p>mundo,	respectivamente.	Ambos	revelavam	uma	abordagem	artística	ainda</p><p>influenciada	pela	“Geração	da	presença”,	principalmente	pela	importância</p><p>que	neles	se	dá	à	análise	psicológica	do	ser	humano,	mas	também	já	traziam</p><p>marcas	do	compromisso	com	a	crítica	social,	defendido	pelo	Neorrealismo,</p><p>que	estava	surgindo	naquele	momento	histórico.</p><p>Vários	dos	mais	conhecidos	romances	de	Namora	podem	ser	enquadrados</p><p>dentro	da	visão	que	o	Neorrealismo	tinha	da	arte	e	de	seu	papel	social,	mas</p><p>o	autor	sempre	produziu	sua	obra	a	partir	de	uma	posição	de	independência</p><p>intelectual;	ao	contrário	de	muitos	dos	seus	companheiros	de	geração,	não</p><p>foi	militante	do	Partido	Comunista	Português,	nem	reduzia	sua	análise	da</p><p>realidade	portuguesa	exclusivamente	a	causas	econômicas.</p><p>198 UNIUBE</p><p>Em	suas	narrativas,	a	crise	portuguesa	também	é	vista	a	partir	das	questões</p><p>individuais,	psicológicas	e	culturais.	Isso	tem	influência	inclusive	no	quadro</p><p>de	personagens	criados	em	seus	livros,	que	não	são	apenas	camponeses</p><p>ou	trabalhadores	urbanos	das	camadas	mais	humildes	da	sociedade.</p><p>Em	O homem disfarçado	(1957),	por	exemplo,	o	protagonista	João</p><p>Eduardo	é	um	jovem	médico	do	interior	que	ascende	socialmente	em</p><p>Lisboa	por	meio	de	uma	série	de	ações	escusas,	o	que	o	levará	a	uma</p><p>derrocada	moral	inevitável,	ao	perceber	que	o	dinheiro	não	lhe	garante	a</p><p>realização	pessoal	que	buscava	inconscientemente.	Esse	livro	é	exemplar</p><p>na	maneira	como	ilustra	a	abordagem	feita	por	Namora	da	alienação</p><p>da	burguesia	ascendente	no	Portugal	comandado	ditatorialmente	por</p><p>António	Salazar,	o	que	será	causa	de	muitos	dos	males	sociais	retratados</p><p>em	seus	romances.</p><p>A	obra	em	prosa	de	Fernando	Namora	consiste	em	doze	romances	e</p><p>diversos	volumes	de	crônicas	romanceadas	e	relatos	de	viagens.	Esse</p><p>conjunto	pode	ser	dividido	em	quatro	ciclos:</p><p>a)	o	estudantil,	cujos	temas	vêm	da	época	em	que	o	autor	fez	o	curso</p><p>secundário	em	Lisboa	e,	em	seguida,	os	estudos	de	Medicina	em</p><p>Coimbra.	Pertence	a	essa	época	Fogo na noite escura	(1938).</p><p>b)	o	rural,	em	que	os	enredos	das	narrativas	refletem	as	experiências	e</p><p>observações	que	o	autor	fez	da	vida	no	interior	do	país	na	época	em	que</p><p>foi	médico	de	província	em	diversas	regiões	portuguesas.	São	exemplos</p><p>desse ciclo Casa da malta, O trigo e o joio e Retalhos da vida de um</p><p>médico,	escritos	entre	1943	e	1950.</p><p>c)	o	urbano,	em	que	a	temática	se	localiza	em	Lisboa,	cidade	para	a	qual</p><p>se	mudou.	O homem disfarçado (1957) e Domingo à tarde	(1961)</p><p>são	dessa	época.</p><p>d)	o	cosmopolita,	representado	pelos	Cadernos de um escritor,	que</p><p>reúnem	os	relatos	das	viagens	internacionais	feitas	por	Namora	no	final</p><p>dos	anos	1960	e	1970.</p><p>UNIUBE 199</p><p>Casa da malta	(1945)	é	um	dos	mais	emblemáticos	romances	neorrealistas</p><p>de	Fernando	Namora.	Segundo	testemunho	do	autor,	o	livro	foi	escrito</p><p>em	apenas	oito	dias,	tendo	como	estímulo	inicial	a	observação	de	um</p><p>casebre	próximo	ao	consultório	que	ele	mantinha	em	Tinalhas,	vila</p><p>da	região	da	Beira	Baixa,	no	leste	de	Portugal,	na	época	em	que	era</p><p>recém-formado,	ou	seja,	no	início	dos	anos	1940.	Esse	casebre	era</p><p>habitado	pelas	pessoas	marginalizadas	do	lugar,	aquelas	que	não	tinham</p><p>outro	recurso	para	se	abrigar.</p><p>No	romance,	a	casa	a	que	se	refere	o	título	é	uma	espécie	de	galpão</p><p>usado	por	pessoas	sem	 recursos	econômicos	na	vila	de	Penedo,</p><p>no	interior	de	Portugal.	Ali	se	recolhem	os	que	não	têm	para	onde	ir,</p><p>nem	perspectivas	de	melhora	de	vida,	vítimas	que	são	de	todo	tipo	de</p><p>opressão	social.	É	preciso	lembrar	que	“malta”,	num	uso	comum	na</p><p>época	de	redação	do	livro,	tinha	o	sentido	geral	de	“grupo	de	pessoas”</p><p>ou	“turma”,	mas	também	era	usado	com	o	sentido	especificamente</p><p>pejorativo	de	“ralé”	ou	“escória”,	sendo	que	assim	deve	ser	interpretado</p><p>no	contexto	da	narrativa,	dada	a	condição	social	das	personagens.</p><p>No	enredo	do	livro,	são	destacadas	seis	pessoas	que	convivem	na	casa</p><p>da	malta:		Abílio,	Ricocas,	Graça,	Troupas,	Manel	e	Carminda,	todos	eles</p><p>vivendo	um	momento	de	dificuldades	pessoais	ou	familiares.	A	cada	um</p><p>é	dedicado	um	dos	seis	capítulos	que	compõem	a	obra,	que	consistem,</p><p>principalmente,	no	esclarecimento	do	passado	de	cada	um	para	o	leitor,</p><p>que	fica	sabendo	por	que	foram	parar	na	casa	da	malta.	Isso	permite</p><p>ao	narrador	traçar	um	panorama	dos	problemas	enfrentados	pelas</p><p>pessoas	pobres	do	país,	como	o	desemprego,	a	violência,	a	ruptura	de</p><p>relações	familiares	e	a	fome.	Esse	recurso	também	é	importante	para	a</p><p>caracterização	interna	de	cada	personagem,	mostrando	como	a	narrativa</p><p>de	Namora	não	se	esgota	no	plano	da	observação	da	realidade	social,</p><p>pois	sua	análise	penetra	até	o	nível	da	constituição	de	cada	uma	das</p><p>pessoas	que	convivem	na	casa.	Mesmo	sendo	narrativa	centrada	em</p><p>uma	habitação	coletiva,	vê-se	então	que	a	Casa da Malta	abre	espaço</p><p>para	as	individualidades.</p><p>200 UNIUBE</p><p>Além	do	quadro	de	personagens,	formado	dos	desvalidos	da	sociedade</p><p>daquele	tempo,	outro	aspecto	revelador	da	perspectiva	neorrealista	em</p><p>Casa da Malta	é	a	abordagem	extremamente	realista	do	problema	da</p><p>fome,	como	ressalta	Ana	Carla	Pacheco	Lourenço	Ferri	em	sua	tese	de</p><p>doutorado	sobre	Fernando	Namora:</p><p>A	questão	da	fome	perpassa	muitas	cenas	de	Casa</p><p>da	Malta	e	já	nas	primeiras	páginas,	o	leitor	se	depara</p><p>com	a	dura	realidade	não	só	de	camponeses,	ciganos,</p><p>“ratinhos”,	vadios;	também	conhece	a	miserável	vida</p><p>de	pequenos	artistas	saltimbancos,	como	a	troupe	que</p><p>formava	o	circo	com	que	Abílio	fugira	da	vila	tempos</p><p>atrás.	A	transcrição	a	seguir	poderia	fazer	parte	de	um</p><p>romance	naturalista	pelo	grotesco	da	situação,	que</p><p>aposta	nas	tintas	fortes	com	a	clara	intenção	política	de</p><p>chocar	o	leitor:</p><p>O	circo	acabara	numa	aldeia	escura	da	Beira.	Quando</p><p>chegaram	a	esses	sítios	amaldiçoados	em	penedias	e</p><p>estevas	já	o	grupo	tinha	minguado:	as	raparigas	gordas</p><p>fugidas	na	companhia	de	meliantes,	a	velha	e	duas</p><p>crianças	mortas	de	doença	e	miséria.</p><p>A	velha	arrastara	ainda	por	um	ano	uma	perna	ulcerada</p><p>e	imunda.	Ia	aos	médicos	das	terras	onde	paravam	e</p><p>eles	diziam:</p><p>–	Só	cortando	esse	trambolho.</p><p>E	ela	abanava	furiosamente	a	cabeça.</p><p>Mas	era	ainda	a	velha	que	cozinhava	umas	sopas</p><p>para	o	grupo,	apesar	do	nojo	dessa	mistura	de	chagas,</p><p>trapos	purulentos	e	de	comida.	Depois	que	ela	morrera,</p><p>o	chefe	tinha	vendido	o	carro	e	as	mulas;	tinha-os</p><p>bebido,	e	ninguém	mais	pensara	em	comer	um	caldo.</p><p>Pedaço	de	pão,	chouriço,	fruta	roubada	nos	pomares</p><p>das	estradas.	(CM,	p.75)	(FERRI,	2016,	p	73).</p><p>O	circo	mencionado	na	citação	do	livro	escolhida	pela	estudiosa	é	aquele</p><p>que	Abílio	abandonou	ao	voltar	para	Penedo,	sua	terra	natal.	Três	anos</p><p>antes,	ele	havia	se	juntado	à	trupe	circense	na	esperança	de	ter	uma</p><p>vida	melhor	e	cheia	de	aventuras,	mas	logo	chegou	a	decepção,	diante</p><p>do	cotidiano	de	penúrias	que	passou	a	enfrentar,	devido	à	crescente</p><p>decadência	do	circo.	Ao	voltar	para	Penedo,	entretanto,	suas	esperanças</p><p>de	recomeço	se	frustram	rapidamente	e	é	por	isso	que	ele	vai	entrar	em</p><p>contato	com	os	habitantes	da	casa	da	malta.</p><p>UNIUBE 201</p><p>A	volta	de	Abílio	a	Penedo	desencadeia	as	narrativas	que	estruturam	o</p><p>livro,	mas	há	outro	fato	que	também	assume	nele	um	caráter</p><p>simbólico:	o</p><p>nascimento	do	filho	de	uma	cigana	que,	de	passagem	por	ali,	se	abriga	com</p><p>toda	sua	família	na	casa	da	malta	para	ter	a	criança.	A	dificuldade	do	parto</p><p>faz	com	que	todos	se	envolvam	no	drama	da	mulher	e	a	queiram	ajudar,</p><p>o	que	culmina	com	o	fato	de	ser	Graça,	uma	jovem	prostituta	que	mora	lá</p><p>depois	de	uma	existência	muito	sofrida,	quem	traz	o	bebê	ao	mundo.</p><p>Para	comemorar	o	nascimento,	todos	se	juntam	para	preparar	uma</p><p>refeição,	ato	que	se	torna	uma	espécie	de	metáfora	das	possibilidades</p><p>que	a	superação	do	egoísmo	traz	para	toda	a	sociedade.	A	partilha	da</p><p>comida	se	torna	praticamente	uma	festa,	que	culmina	com	o	discurso	do</p><p>velho	Troupas,	um	mendigo	que	também	vive	na	casa;	observe-se	como</p><p>ele	coloca	em	destaque	a	felicidade	que	todos	estão	experimentando</p><p>naquele	momento:</p><p>–	Eu	queria	morrer	hoje,	aqui	mesmo	–	disse	o	velho.</p><p>Todos	se	voltaram	para	aquela	face	ressequida,	onde</p><p>o	brilho	súbito	dos	olhos	punha	qualquer	coisa	de</p><p>anormal,	de	transfigurado.	–	Queria	morrer	mesmo.</p><p>Hoje	morria	de	barriga	cheia	e	sem	odiar	ninguém.</p><p>Tenho	medo	de	morrer	com	o	fel	no	coração;	sinto	que</p><p>ele	me	entrou	nas	veias	e	que	certas	vezes	me	chega</p><p>aqui	no	peito.	[...]	Às	vezes,	tenho	vontade	de	ir	por	aí</p><p>matar	gente.	Mas	hoje,	não.	Vocês	são	todos	amigos</p><p>e	eu	vi	esta	rapariga	vir	do	carro	e	juntar-se	a	este</p><p>pessoal	desgraçado.	Foi	uma	coisa	bonita.	E	comi	e	vou</p><p>comer	mais	ainda	com	vocês	todos.	Estou	de	coração</p><p>puro.	(NAMORA,	1978,	p.	174-175).</p><p>A	fala	do	velho	evidencia	os	valores	positivos	vivenciados	coletivamente</p><p>nessa	ocasião,	como	a	sensação	de	plenitude,	a	amizade,	a	beleza,</p><p>a	pureza,	contrapostos	ao	ódio	e	à	fome	de	outros	momentos.	Dessa</p><p>forma,	originando-se	na	voz	de	uma	das	personagens,	não	na	do</p><p>narrador,	tem	a	utilidade	de	comunicar	ao	leitor,	de	maneira	sutil,	todo	o</p><p>projeto	do	Neorrealismo	que	lhe	está	subjacente:	a	defesa	do	papel	da</p><p>arte	no	despertar	da	consciência	da	sociedade	para	a	importância	da</p><p>solidariedade.</p><p>202 UNIUBE</p><p>Um	dos	mais	importantes	romances	do	ciclo	urbano	de	Fernando	Namora,</p><p>Domingo à tarde,	publicado	em	1961,	foi	adaptado	para	o	cinema	pelo</p><p>diretor	António	de	Macedo,	em	1966.	A	película	fez	parte	do	movimento</p><p>chamado	de	Novo	Cinema,	que	procurou	renovar	a	linguagem	cinematográfica</p><p>portuguesa,	sob	a	influência	do	cinema	experimental	francês	dos	anos	50	e</p><p>60.	Ele	pode	ser	visto	na	íntegra	neste	endereço:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=AY_1fqEV8iU</p><p>AMPLIANDO	O	CONHECIMENTO</p><p>4.3.3 Carlos de Oliveira e a análise psicossocial da realidade</p><p>O	terceiro	grande	nome	dentro	da	prosa	neorrealista	é	o	de	Carlos	de</p><p>Oliveira	(1921-1981).	Filho	de	imigrantes	portugueses,	o	autor	nasceu</p><p>em	Belém	do	Pará,	no	Brasil,	mas	ainda	na	primeira	infância	voltou	com</p><p>os	pais	para	a	terra	natal	deles.	Licenciou-se	em	Ciências	Histórico-</p><p>Filosóficas	pela	Universidade	de	Coimbra.</p><p>Em	1942,	 quando	estava	 com	apenas	 vinte	e	um	anos	de	 idade,</p><p>publicou	seu	primeiro	livro,	uma	coletânea	de	poemas	que	contava	com</p><p>ilustrações	de	Fernando	Namora,	seu	amigo	desde	a	adolescência.	Já</p><p>no	ano	seguinte,	foi	lançado	Casa na duna,	seu	primeiro	romance,	que</p><p>apresenta	características	que	permitem	seu	enquadramento	no	contexto</p><p>do	Neorrealismo.</p><p>O	enredo	de	Casa na duna	se	passa	na	zona	da	Gândara,	pertencente</p><p>à	inserida	na	Beira	Litoral,	da	Região	Centro	de	Portugal.	O	quadro	de</p><p>personagens	é	composto	pelos	decadentes	fidalgos	do	lugar	e	pelos</p><p>camponeses	que	trabalham	por	jornadas	nas	propriedades	dos	arredores.</p><p>A	grande	questão	enfrentada	por	todos	é	a	necessidade	de	mecanização</p><p>das	lavouras,	que	causa	tanto	despesas	enormes	para	os	patrões	quanto</p><p>o	desemprego	para	os	trabalhadores.	Dessa	forma,	o	pano	de	fundo</p><p>UNIUBE 203</p><p>da	narrativa	é	a	crise	econômica	portuguesa	no	contexto	da	Grande</p><p>Depressão	e	da	II	Guerra	Mundial.	Por	meio	da	denúncia	da	exploração</p><p>econômica	e	da	concentração	de	renda	causada	pela	predominância	dos</p><p>interesses	da	minoria	proprietária	de	terras,	o	livro	indica	a	absorção	pela</p><p>escritura	de	Carlos	de	Oliveira	dos	preceitos	básicos	do	Neorrealismo,</p><p>entendido	como	a	criação	de	obras	ficcionais	baseadas	na	observação</p><p>crítica	da	realidade	social.</p><p>Na	sequência	de	sua	carreira	literária,	o	autor	publicou	mais	quatro</p><p>romances:	Alcateia	(1945),	Pequenos burgueses	(1948),	Uma abelha</p><p>na chuva	(1953)	e	Finisterra	(1978).	Deles,	o	que	mais	contribui	para</p><p>solidificar	o	reconhecimento	de	Carlos	de	Oliveira	como	um	dos	mais</p><p>importantes	ficcionistas	portugueses	modernos	foi	o	terceiro.</p><p>Uma abelha na chuva	concentra	suas	ações	no	povoado	do	Montouro,</p><p>na	região	da	Gândara,	que	aparece	em	outras	narrativas	do	autor.	Sua</p><p>ambientação	social,	destacando	as	diferenças	de	classe	num	mundo	rural</p><p>dominado	pelo	poder	absoluto	do	dinheiro,	pelos	grandes	proprietários</p><p>e	pela	tradição	de	obediência	a	que	eles	submetem	seus	empregados	e</p><p>dependentes,	permite	ao	leitor	perceber	a	filiação	neorrealista	do	livro.</p><p>Entretanto	à	análise	da	realidade	social	a	obra	alia	uma	profunda	análise</p><p>psicológica	das	motivações	dos	personagens,	aprofundando,	assim,	a</p><p>construção	literária	de	suas	individualidades,	de	forma	a	evitar	a	criação</p><p>de	estereótipos,	seja	dos	ricos,	seja	dos	pobres.	Nessa	narrativa,	cada</p><p>personagem	é	estruturada	de	maneira	a	ser	vista	pelo	leitor	como	uma</p><p>pessoa	individual,	não	a	representante	de	uma	classe	social.</p><p>O	romance	traz	no	núcleo	de	seu	enredo	a	contraposição	entre	dois	casais:</p><p>de	um	lado,	Maria	dos	Prazeres	e	Álvaro	Silvestre,	do	outro,	Clara	e	Jacinto.</p><p>Maria	 dos	 Prazeres	 descende	 de	 tradicional	 família	 fidalga,	 mas</p><p>empobrecida.	Por	isso	foi	levada	pelos	pais	a	casar-se	com	Álvaro,</p><p>de	origem	burguesa,	mas	que	desfruta	de	condição	socioeconômica</p><p>204 UNIUBE</p><p>privilegiada,	pela	posse	de	largas	extensões	de	terra	pelos	constantes</p><p>roubos	que	comete,	contra	a	herança	de	seu	irmão,	os	salários	e	direitos</p><p>de	seus	próprios	empregados	e	até	as	obras	de	caridade	da	igreja	local.</p><p>Sendo	assim,	o	casamento	é	um	arranjo	de	base	monetária,	feito	por</p><p>pura	conveniência	de	parte	a	parte:	Maria	dos	Prazeres	precisava	de</p><p>um	marido	rico,	Álvaro	queria	se	enobrecer.	A	narrativa	segue	de	perto</p><p>o	cotidiano	do	casal,	mostrando	como	seu	relacionamento	é	despedido</p><p>de	intimidade	e	de	sinceridade,	o	que	os	faz	viver	em	constante	tensão</p><p>e	infelicidade.	Simbolicamente,	todo	o	vazio	do	casamento	dos	dois	é</p><p>representado	pelo	fato	de	não	terem	tido	filhos,	mesmo	após	muitos	anos</p><p>de	matrimônio</p><p>Nos	trechos	dedicados	a	analisar	a	interioridade	do	casal,	a	escritura	de</p><p>Carlos	de	Oliveira	demonstra	de	maneira	magistral	sua	capacidade	de</p><p>examinar,	como	se	sob	uma	lupa,	os	sonhos,	os	desejos	e	as	frustrações</p><p>de	duas	pessoas	presas	num	laço	que	só	faz	sentido	no	que	se	refere</p><p>ao	dinheiro	e	aos	bens	materiais.</p><p>Clara	é	uma	jovem	simples,	filha	de	um	santeiro	cego	do	povoado,	que</p><p>sonha	em	casá-la	com	um	senhor	de	terras	para	escapar	à	pobreza.	Na</p><p>pureza	e	honestidade	de	sentimentos	que	caracterizam	sua	presença	no</p><p>livro,	Clara,	entretanto,	se	apaixona	por	Jacinto,	rapaz	humilde	também,</p><p>que	trabalha	como	cocheiro	do	casal	Silvestre.</p><p>O	relacionamento	dos	jovens	pobres	é	sincero,	desinteressado	e	feliz,</p><p>apesar	da	oposição	do	pai	da	moça.	Dessa	forma,		revela-se		como</p><p>a	imagem	invertida	daquele	dos	patrões,	o	que	permite	ao	narrador</p><p>explorar	os	contrastes	entre	as	relações	originadas	nos	corações	e	as</p><p>que	se	definem	pelos	interesses	materiais.</p><p>A	positividade	da	união	de	Clara	e	Jacinto	se	materializa	na	fecundidade</p><p>negada	a	Maria	dos	Prazeres	e	Álvaro.	Ao	saberem	da	gravidez	da	moça,</p><p>eles	fazem	planos	de	fugir	do	povoado	para	construírem	uma	vida	juntos</p><p>UNIUBE 205</p><p>em	outra	parte.	Contudo	é	exatamente	daí	que	virá	o	problema	que</p><p>levará	o	romance	ao	seu	desfecho	dramático,	aparentemente	inevitável,</p><p>se	forem	levadas	em	consideração	as	diferenças	entre	os	casais,	como</p><p>aponta	Carlos	Reis:</p><p>Jacinto	e	Clara	[são]	susceptíveis	de	uma	indesmedível</p><p>aproximação	com	a	abelha,	com	seu	labor	e	com	o	que</p><p>dele	deflui.	Caracterizado</p><p>pela	fecundidade	de	uma</p><p>relação	produtiva	a	vários	níveis	(a	gravidez,	os	projetos</p><p>futuros,	o	vigor	com	que	são	esboçados),	bem	se	pode</p><p>dizer	que	é	deles	que	será	destilado	um	“mel”	que	não</p><p>está	ao	alcance	dos	Silvestres;	referimo-nos	ao	estado</p><p>social	que,	superando	no	fluir	do	tempo	histórico	as</p><p>contradições	do	presente,	atinja	a	doçura	(o	mel)	das</p><p>relações	despidas	de	conflito	(de	fel),	de	tensões	e	de</p><p>contrastes.	(REIS,	1983,	P.	626).</p><p>Além	de	mostrar	o	pano	de	fundo	humano	e	social	que	estará	por	trás	do</p><p>desenlace	da	narrativa,	as	palavras	de	Carlos	Reis	também	auxiliam	no</p><p>entendimento	do	título	da	obra.	Como	é	indicado	na	citação,	o	estudioso</p><p>interpreta	a	sociedade	portuguesa	descrita	por	Carlos	de	Oliveira	como</p><p>uma	colmeia,	na	qual	as	personagens	são	metáfora	de	um	papel	social:</p><p>Jacinto	e	Clara	são	as	abelhas	produtoras	de	mel,	Álvaro	Silvestre,	o</p><p>zangão	dominado	pela	abelha-rainha,	Maria	dos	Prazeres.	Toda	a</p><p>tragédia	que	encerrará	o	livro	vem	da	inversão	de	uma	das	funções</p><p>fundamentais	dentro	de	uma	colmeia,	ou	seja,	o	deslocamento	do	papel</p><p>de	mãe	da	abelha-rainha	para	uma	das	abelhas	humildes.</p><p>Ocorre	que,	numa	madrugada	em	que	Jacinto	e	Clara	estão	conversando,</p><p>no	curral	da	propriedade	de	Silvestre,	sobre	o	filho	que	terão	e	os	planos</p><p>de	ir	para	longe,	são	ouvidos,	por	acaso,	pelo	patrão.	Além	de	se	inteirar</p><p>da	condição	da	moça,	Álvaro	Silvestre	também	escuta	Jacinto	falar</p><p>dos	olhares	que	Maria	dos	Prazeres	lançava	em	sua	direção.	O	rapaz</p><p>também	faz	comentários	negativos	sobre	o	patrão,	considerando-o</p><p>tão	fraco	que	nem	consegue	engravidar	a	própria	esposa,	que,	aliás,</p><p>o	domina	em	tudo.	A	partir	daí,	o	patrão	procura	meios	de	se	vingar,</p><p>envolvendo	o	pai	da	moça	numa	trama	que	culmina	com	a	morte	de</p><p>Jacinto	e	o	suicídio	de	Clara.</p><p>206 UNIUBE</p><p>Desde	 seu	 lançamento,	Uma abelha na chuva	 foi	 recebido	 com</p><p>entusiasmo	pelo	público	e	pela	crítica,	tanto	que	edições	sucessivas	dele</p><p>têm	sido	lançadas	desde	os	anos	1950.	Já	de	há	muito,	o	livro	se	tornou</p><p>referência	quando	se	trata	da	ficção	portuguesa	moderna,	motivo	pelo</p><p>qual	faz	parte	do	currículo	escolar	nos	níveis	médio	e	superior.	A	obra	já</p><p>foi	adaptada	para	o	teatro	e	o	cinema,	o	que	também	contribuiu	para	o</p><p>reconhecimento	de	Carlos	de	Oliveira	como	um	de	seus	mais	importantes</p><p>escritores	de	seu	país.</p><p>Você	pode	assistir	à	adaptação	cinematográfica	de	Uma abelha na chuva,</p><p>dirigida	em	1971	por	Fernando	Lopes,	com	os	atores	Laura	Soveral,	João</p><p>Guedes,	Zita	Duarte	e	Adriano	Reis	nos	papéis	principais.	Ele	está	disponível</p><p>nesta	página	do	Youtube:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=XYXUi-imbbM</p><p>AMPLIANDO	O	CONHECIMENTO</p><p>Agustina Bessa-Luís: a emergência da autoria feminina4.4</p><p>Como	já	havia	acontecido	ao	longo	das	eras	anteriores,	nas	primeiras</p><p>décadas	do	século	XX	era	muito	rara	a	prosa	de	ficção	de	autoria	feminina.</p><p>Assim	como	foi	Florbela	Espanca	na	poesia,	Irene	Lisboa	(1892-1958)</p><p>constituiu	uma	das	raras	exceções	nesse	panorama,	pois,	ao	lado	de	sua</p><p>obra	lírica,	publicou	também	alguns	volumes	de	novelas,	contos	e	crônicas.</p><p>Um	dos	temas	mais	presentes	em	suas	narrativas	era	a	situação	da</p><p>mulher	portuguesa,	que	precisava	lutar	por	sua	liberdade	num	fechado</p><p>mundo	pequeno-burguês,	dominado	por	uma	visão	atrasada	a	respeito</p><p>do	lugar	feminino	no	mundo.	É	o	que	acontece	na	novela	Começa uma</p><p>vida	(1940),	em	que	é	narrada	a	vida	de	uma	jovem	até	a	altura	de	seus</p><p>dezoito	anos,	destacando-se	as	experiências	que	a	levaram	a	ser	uma</p><p>pessoa	solitária	e	agressiva,	sendo	que,	no	fundo,	era	alguém	aberta</p><p>para	o	que	o	mundo	pode	oferecer	nessa	fase	da	vida.</p><p>UNIUBE 207</p><p>Para	se	entender	as	barreiras	de	dificuldades	e	preconceitos	que	uma</p><p>escritora	precisava	enfrentar	no	Portugal	daquela	época,	é	sintomático</p><p>o	fato	de	que	Irene	Lisboa	precisou	publicar	alguns	de	seus	livros	sob</p><p>pseudônimos	masculinos,	como	aconteceu	com	Solidão – Notas do</p><p>punho de uma mulher	(1939),	atribuído	a	João	Falco.	Mesmo	fora	da</p><p>literatura,	a	escritora,	que	também	era	professora	e	pedagoga,	usava</p><p>nomes	masculinos	em	seus	livros,	como	Manuel	Soares,	que	assinou</p><p>Froebel e Montessori/ O trabalho manual na escola (duas conferências</p><p>pedagógicas),	de	1937,	e	O primeiro ensino, I e II,	de	1938.</p><p>Passados	setenta	anos	da	publicação	de	Começa uma vida,	o	panorama</p><p>da	prosa	de	autoria	feminina	em	Portugal	é	muito	diferente	do	que	ocorria</p><p>na	época	de	Irene	Lisboa.	Um	rápido	exame	dos	mais	conceituados</p><p>romancistas	das	últimas	décadas	revela	nomes	femininos	de	peso</p><p>assinando	livros	elogiados	pela	crítica	especializada,	como	acontece	com</p><p>Maria	Judite	de	Carvalho	(Sete despedidas,	Grande	Prémio	de	Conto</p><p>Camilo	Castelo	Branco	de	1995),	Lídia	Jorge	(O vale da paixão,	Prémio</p><p>Máxima	de	1998),	Teolinda	Gersão	(A Casa da Cabeça de Cavalo,</p><p>Grande	Prémio	de	Romance	e	Novela	da	Associação	Portuguesa	de</p><p>Escritores	de	1995)	e	Maria	Teresa	Horta	(As luzes de Leonor,	Prémio</p><p>D.	Dinis	2011	e	Prémio	Máxima	de	Literatura	2012).</p><p>Para	explicar	a	origem	da	transformação	do	estatuto	da	mulher	como	autora</p><p>de	ficção	em	Portugal,	é	preciso	reconhecer	o	marco	inicial	desse	novo</p><p>tempo,	representado	pelas	autoras	que	acabamos	de	citar.	Essa	honraria</p><p>cabe	ao	romance	A sibila,	publicado	por	Agustina	Bessa-Luís	em	1954.</p><p>Nascida	em	1922,	a	autora	tem	uma	das	mais	longas	e	fecundas	carreiras</p><p>literárias	 do	 século	 XX,	 exemplificada	 por	 seus	 quarenta	 romances</p><p>publicados.	A	eles	devem	ser	somados	também	diversos	volumes	de	contos,</p><p>biografias,	crônicas,	ensaios	e	textos	memorialísticos,	peças	de	teatro.	São</p><p>inúmeros	também	os	prêmios	que	Agustina	já	recebeu,	entre	eles	o	Prêmio</p><p>Camões	e	o	Prémio	Vergílio	Ferreira,	da	Universidade	de	Évora,	ambos</p><p>208 UNIUBE</p><p>dados	em	2004	pelo	conjunto	de	sua	obra.	Podem	ser	citados	também	os</p><p>prêmios	Delfim	Guimarães	(1953)	e	Eça	de	Queirós	(1954),	vencidos	por	A</p><p>sibila,	e	o	Grande	Prémio	de	Romance	e	Novela	da	Associação	Portuguesa</p><p>de	Escritores	(2001),	que	consagrou	Joia de família.</p><p>A	principal	marca	da	produção	romanesca	de	Agustina	Bessa-Luís,	que</p><p>explica	sua	longevidade	artística	e	seu	impacto	sobre	o	público	leitor,	é</p><p>seu	estilo	próprio,	que	não	se	confunde	com	o	de	outros	autores	nem	se</p><p>filia	a	nenhuma	escola	literária;	a	base	dele	é	uma	fertilíssima	imaginação,</p><p>como	aponta	Massaud	Moisés:</p><p>As	obras	da	autora	 têm	causado	uma	 impressão</p><p>unanimemente	aceita:	trata-se	de	aparelhagem	nova	de</p><p>romancista,	forte	a	ponto	de	constituir	um	momento	de</p><p>alta	voltagem,	no	grande	“caso”,	dentro	do	panorama	da</p><p>ficção	moderna	em	Portugal.	Romancista	privilegiada,</p><p>sua	poderosa	imaginação	tudo	transfigura	e	vivifica</p><p>a	um	só	tempo,	conferindo	aos	seres	e	aos	objetos</p><p>um	halo	de	verdade	e	autenticidade	provavelmente</p><p>apenas	 possível	 no	 âmbito	 da	 arte.	 Impelida	 por</p><p>essa	imaginação	criadora	e	recriadora,	a	ficcionista</p><p>não	só	arquiteta	o	plano	suposto	em	que	a	narrativa</p><p>se	desenrola,	como	também	lhe	empresta	sucessivos</p><p>dados	da	observação	da	 realidade	que	 lhes	está</p><p>intimamente	conectada.	Opera-se,	assim,	a	identidade</p><p>entre	o	ideal	e	o	real,	de	molde	que	toda	noção	de</p><p>espaço	 e	 de	 tempo	 desaparece	 em	 favor	 duma</p><p>multiplicidade	ou	ubiquidade	e	ucronia,	que	assinala	a</p><p>perenidade	dos	dramas	focalizados.	(MOISÉS,	2008,	p.</p><p>516).</p><p>É	essa	imaginação	destacada	por	Moisés	que	permite	ao	leitor	entender</p><p>por	que	a	literatura	de	Agustina,	surgida	no	final	dos	anos	1930,	quando</p><p>a	“Geração	da	presença”	e	o	Neorrealismo	disputavam	a	definição</p><p>do	que	devia	ser	a	literatura	portuguesa,	desvencilha-se	de	qualquer</p><p>identificação	com	escolas	ou	ideologias.	Como	se	observa	em	A sibila,</p><p>a	autora	ao	mesmo	tempo	se	volta	para	a	realidade	social	portuguesa</p><p>e	a	transcende,	por	obra	de	seu	estilo	individual	e	pela	liberdade	de</p><p>que	a	imaginação	desfruta	na	composição	das	personagens	e	de	seus</p><p>destinos.</p><p>UNIUBE 209</p><p>Os	prêmios	que	A sibila recebeu	já	em	sua	época	de	lançamento	foram	o</p><p>início	de	seu	reconhecimento	como	um	dos	romances	centrais	da	língua</p><p>portuguesa	na	era	moderna.	As	razões	para	isso</p><p>podem	ser	encontradas	no</p><p>fato	de	ser,	naquele	momento,	uma	obra	realmente</p><p>sui generis:	sua	autora,	narradora	e	personagens</p><p>principais	são	todas	mulheres	e	o	mundo	é	examinado</p><p>por	meio	de	seus	pontos	de	vistas.</p><p>O	romance	organiza	seu	enredo	em	torno	de	uma	família	da	região	de</p><p>Entre	Douro	e	Minho,	no	norte	de	Portugal.	Cobrindo	um	tempo	que</p><p>vai	de	cerca	de	1850	a	1950,	seu	foco	é	a	história	de	três	gerações</p><p>da	 família	Teixeira,	 antigos	proprietários	 rurais	que	 lutam	contra	a</p><p>decadência	econômica.	A	narrativa	é	mais	movida	pelas	impressões</p><p>que	os	problemas	vividos	causam	sobre	o	interior	das	personagens	do</p><p>que	sobre	suas	ações	e	peripécias,	o	que	permite	à	escritora	aprofundar</p><p>a	construção	psicológica	das	pessoas	que	habitam	seu	mundo	ficcional.</p><p>O	mote	para	o	início	da	narrativa	é	o	retorno	de	Germana,	apelidada	de</p><p>Germa,	da	terceira	geração,	à	casa	da	Vessada,	moradia	ancestral	da</p><p>família.	Vendo-se	no	mesmo	espaço	em	que	ocorreram	fatos	decisivos</p><p>da	saga	dos	Teixeiras,	Germa	reconstrói,	pela	memória,	toda	a	história</p><p>de	sua	tia	Joaquina,	chamada	por	todos	de	Quina.</p><p>Quina	é	a	sibila	de	que	fala	o	título	do	romance.	Aos	olhos	dos	familiares	e</p><p>dos	moradores	dos	arredores,	sua	personalidade	é	enigmática	e	misteriosa</p><p>ou	dissimulada	e	fingida.	Dotada	de	inteligência	e	sensibilidade	fora	do</p><p>comum,	consegue	penetrar	nas	razões	que	explicam	as	ações	das	outras</p><p>pessoas,	de	uma	tal	maneira	que	muitos	dos	vizinhos	começam	a	ver</p><p>nela	talentos	de	bruxa	ou	de	adivinha;	a	partir	daí,	passam	a	chamá-la</p><p>de	sibila,	usando	a	palavra	que,	na	Antiguidade	greco-latina,	denominava</p><p>as	profetisas.</p><p>Sui generis</p><p>Único	em	seu</p><p>gênero;	dotado	de</p><p>estilo	próprio.</p><p>210 UNIUBE</p><p>Ao	longo	dos	cem	anos	que,	cronologicamente,	a	narrativa	cobre,	vão</p><p>sendo	mostrados	os	mais	variados	aspectos	da	vida	da	família	Teixeira,</p><p>os	quais	servem	como	pano	de	fundo	para	a	elaboração	da	biografia</p><p>de	Quina,	tal	como	ela	se	representa	nas	lembranças	de	Germana.</p><p>Nesse	processo,	é	fundamental	observar	o	papel	central	que	Quina</p><p>desempenhou	na	recuperação	da	casa	da	Vessada	e	nas	propriedades</p><p>da	família,	que	quase	chegaram	a	ser	perdidas	por	causa	das	muitas</p><p>aventuras	extraconjugais	de	seu	pai,	Francisco	Teixeira.	Por	meio	dessa</p><p>atenção	dupla	dedicada	às	questões	sociais	implicadas	na	decadência</p><p>das	propriedades	rurais	na	mudança	do	século	e	à	representação	de</p><p>um	mundo	em	que	as	mulheres	começam	a	abalar	as	regras	rígidas	do</p><p>patriarcalismo	português,	o	romance	oferece	ao	leitor	todo	um	panorama</p><p>da	cultura	portuguesa	pelos	olhos	femininos,	como	argumenta	Simone</p><p>Pereira	Schmidt:</p><p>A Sibila	pode	assim	ser	considerado	um	marco	na</p><p>ruptura	da	tradição	romanesca	em	Portugal,	propondo</p><p>novos	temas	e	novo	tratamento	estilístico	ao	romance.</p><p>Seu	 tempo	 diegético	 abarca,	 numa	 perspectiva</p><p>diacrônica,	a	sociedade	portuguesa	agrária	e	patriarcal</p><p>desde	os	fins	do	século	XIX	até	meados	do	nosso</p><p>século.	Nele	desfilam	episódios	marcantes	da	história</p><p>do	 pais	 e	 do	mundo	 nesse	 período,	 tais	 como	 o</p><p>advento	da	República	em	Portugal	e	a	Primeira	Grande</p><p>Guerra,	abordados	secundariamente	à	trama	principal.</p><p>Nesta,	ao	contrário	dos	"grandes	fatos"	que	marcam</p><p>a	história	recente,	o	que	importa	são	os	pequenos</p><p>acontecimentos	da	vida,	as	histórias	que	dizem	respeito</p><p>à	comunidade	basicamente	feminina	que	sustenta	o</p><p>patriarcado	 rural,	 e	 que	 parecem	 configurar,	 nas</p><p>palavras	de	Oscar	Lopes,	"um	dom	peculiar	de	gineceu</p><p>ou	de	intimidade	feminina".	(SCHMIDT,	1997,	p.	54-55).</p><p>O	gineceu	a	que	se	referiu	Óscar	Lopes,	na	frase	incorporada	na	citação</p><p>de	Simone	Schmidt,	era,	na	Grécia	antiga,	o	espaço	reservado	para	as</p><p>mulheres	nas	casas.	Ali,	a	senhora	da	casa	passava	seu	tempo	livre</p><p>em	companhia	das	mulheres	solteiras	da	família	e	das	escravas,	já</p><p>que	a	nenhuma	delas	era	permitida	a	convivência	com	os	homens	que</p><p>viessem	visitar	seu	marido.	Metaforicamente,	o	termo	serve	para	ilustrar</p><p>Diegético</p><p>Relacionado	ao</p><p>mundo	ficcional</p><p>criado	em	uma</p><p>narrativa.</p><p>Diacrônico</p><p>relativo	à	passagem</p><p>do	tempo</p><p>UNIUBE 211</p><p>a	situação	vivida	nos	tempos	de	juventude	de	Quina,	quando	todo	o</p><p>poder	estava	reservado	aos	homens,	mesmo	que	eles	não	estivessem</p><p>preparados	para	exercê-lo	corretamente,	como	era	o	caso	de	seu	pai.</p><p>Nessa	época,	as	mulheres	viviam	praticamente	isoladas	socialmente,</p><p>o	que	lhes	permitia	cultivar	uma	intimidade	que,	no	livro,	se	refletirá	na</p><p>proximidade,	em	termos	de	personalidade	e	expectativas	de	vida,	entre</p><p>Quina	e	sua	sobrinha	Germa.</p><p>Quando	o	romance	se	inicia,	Germa	está	voltando	da	capital,	onde	foi</p><p>estudar	e	se	fixou.	Sua	infância	e	adolescência	foram	passadas	no</p><p>mundo	rural,	o	único	a	ser	conhecido	intimamente	por	Quina.	O	laço</p><p>que	as	uniu	nessa	época	se	manteve,	mesmo	com	toda	a	distância,	por</p><p>toda	a	vida,	e	é	ele	que	permite	a	Germa,	agora	dotada	de	uma	cultura</p><p>citadina	com	a	qual	a	tia	jamais	sonhara,	a	entender	toda	a	complexa</p><p>personalidade	de	Quina.	O	símbolo	máximo	da	identificação	entre	elas</p><p>é	o	fato	de	que,	ao	morrer,	a	sibila	deixa	a	casa	da	Vessada	e	todas</p><p>as	propriedades	familiares	como	herança	para	Germa,	fazendo	com</p><p>que	ambas,	então,	fiquem	definitivamente	ligadas.	Outro	símbolo	disso,</p><p>entretanto,	manifesta-se	na	narrativa,	tendo	também	a	função	de	estímulo</p><p>inicial	para	a	volta	de	todas	as	memórias	de	Quina	acumuladas	por</p><p>Germa;	é	a	cadeira	de	balanço	que	a	tia	deixou	na	casa,	como	aponta</p><p>Maristela	Kirst	de	Lima	Girola:</p><p>As	recordações	de	Germa	são	estimuladas	pelo	espaço</p><p>exterior,	pela	casa	e	seus	móveis	antigos.	Um	objeto</p><p>em	especial	ganha	destaque,	trata-se	de	uma	rocking-</p><p>chair,	a	cadeira	de	balanço	que	muito	embalara	sua	tia,</p><p>Quina.	Essa	cadeira	serve	para	evocar	lembranças	e</p><p>sustentar	a	memória,	tecendo	ligações	entre	o	passado</p><p>e	o	presente.	Pode-se	dizer	que	Germa,	ao	balançar-se</p><p>na	velha	cadeira,	aciona	a	memória	acerca	de	sua	tia:</p><p>“Ela	balançava-se	activamente	(...)	Tal	como	Quina”</p><p>(p.	8).	Repetindo	tal	movimento,	ela	entra	em	um	tipo</p><p>de	transe	em	que	o	espírito	de	Quina	se	faz	presente,</p><p>provocando	uma	transfiguração	do	espaço	que	se</p><p>humaniza:</p><p>212 UNIUBE</p><p>Germa	estava	nesse	momento	totalmente	desligada</p><p>e	ausente	de	si,	e	que	subitamente	o	ambiente	ficara</p><p>repleto	doutra	presença	viva,	intensa,	familiar,	e	que</p><p>aquela	sala,	de	tecto	baixo,	onde	pairava	um	cheiro</p><p>de	pragana	e	de	maçã,	se	enchia	duma	expressão</p><p>humana	e	calorosa,	como	quando	alguém	regressa	e</p><p>pousa	o	olhar	nos	antigos	lugares	onde	viveu,	e	o	seu</p><p>coração	derrama	à	sua	volta	uma	vigilante	evocação.</p><p>E,	bruscamente,	Germa	começou	a	falar	de	Quina.</p><p>(BESSA-LUÍS,	2003,	p.	9	apud	GIROLA,	2008,	p.	64).</p><p>Assim	como	acontece	na	passagem	do	livro	selecionada	por	Maristela</p><p>Girola,	todo	o	romance	A sibila	é	o	testemunho	da	presença	de	Quina	na</p><p>vida	de	Germa,	representando,	literariamente,	a	continuidade	do	passado</p><p>no	presente	da	personagem	e	da	história	familiar	e	nacional	em	sua</p><p>atualidade	individual.	A	cadeira	de	balanço,	parte	material	da	herança</p><p>que	a	tia	deixou	para	a	sobrinha,	tem	no	livro	o	papel	de	metonímia	de</p><p>toda	a	casa	da	Vessada.	Essa	propriedade,	por	sua	vez,	é	uma	espécie</p><p>de	metáfora	de	todo	o	passado	de	luta	de	Quina	para	recuperar	os	bens</p><p>e	os	valores	da	família	que	os	homens	dela	não	souberam	manter;	desse</p><p>ponto	de	vista,	a	casa	é	o	índice	material	de	uma	vida	feminina	digna	de</p><p>ser	vivida	e	lembrada.</p><p>Está	disponível	no	Youtube	o	documentário	“Nasci	adulta	e	morrerei	criança”,</p><p>sobre	a	vida	e	a	obra	de	Agustina	Bessa-Luís.	O	filme	inclui	uma	entrevista</p><p>com	a	escritora,	que	conta	episódios	interessantes	e	engraçados	de	sua</p><p>experiência	como	escritora.	Você	pode	encontrá-lo	neste	link:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=BrvDXCBtPlo.</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>O romance filosófico de Vergílio Ferreira4.5</p><p>Vergílio	Ferreira	é	considerado	um	dos	mais	importantes	romancistas</p><p>portugueses	do	século	XX,	tendo	sido	agraciado,	por	exemplo,	com	o</p><p>Prêmio	Camões,	o	Europália,	o	Grande	Prêmio	de	Romance	e	Novela	da</p><p>UNIUBE 213</p><p>Associação	Portuguesa	de	Escritores	e	o</p><p>Prêmio	Camilo	Castelo	Branco</p><p>da	Sociedade	Portuguesa	dos	Escritores;	recebeu,	também,	o	prêmio</p><p>francês	“Femina”.	Vários	de	seus	romances	foram	traduzidos	para	o</p><p>espanhol	e	o	francês.	Vergílio	Ferreira	nasceu	em	1916,	em	Melo,	Serra</p><p>da	Estrela,	e	morreu	em	1996,	em	Lisboa.	Escreveu	a	vida	inteira.</p><p>De	família	católica,	esteve	num	seminário	dos	dez	aos	dezesseis	anos,</p><p>experiência	depois	tomada	como	referência	no	romance	Manhã submersa,</p><p>de	1953.	Entrou	depois	para	o	liceu	e,	finalmente,	licenciou-se	em	Filologia</p><p>Clássica	pela	Universidade	de	Coimbra.	Foi,	por	muito	tempo,	professor	de</p><p>grego,	latim	e	português	em	liceus	de	várias	regiões	do	país.</p><p>Tendo	publicado	também	ensaios	críticos	e	filosóficos	e	diários,	o	autor</p><p>se	notabilizou	mesmo	como	romancista.	Inicialmente,	trilhou	vertente</p><p>aproximada	 ao	 Neorrealismo,	 tematizando</p><p>as	 urgências	 políticas	 e	 sociais	 da	 realidade</p><p>portuguesa	sob	o	Estado	Novo	de	Oliveira	Salazar,</p><p>como	podem	atestar	os	títulos	O caminho fica</p><p>longe	(1943),	Onde tudo foi morrendo	(1944)</p><p>e Vagão J	(1946).	A	partir	de	Mudança	(1949),</p><p>entretanto,	a	escritura	de	Vergílio	Ferreira	sofre</p><p>alterações	 de	 mundividência	 que	 acarretam</p><p>importantes	transformações	em	sua	realização,</p><p>fazendo	surgir	uma	literatura	mais	marcadamente</p><p>pessoal,	 ainda	 que	 sob	 a	 influência	 do</p><p>pensamento	existencialista	de	André	Malraux	e</p><p>Jean-Paul	Sartre.</p><p>Em	Mudança,	a	exploração	da	temática	social,</p><p>representada	 pelas	 atividades	 e	 interesses</p><p>políticos	de	alguns	de	seus	personagens,	vai</p><p>abandonando	o	primeiro	plano	da	narrativa,	vai	sendo,	como	diz	Eduardo</p><p>Lourenço	no	prefácio	que	escreveu	para	uma	edição	de	1968,	“já	quase</p><p>Existencialista</p><p>Relativo	ao</p><p>Existencialismo,</p><p>corrente	filosófica</p><p>originada	no	final</p><p>do	século	XIX,	mas</p><p>muito	em	voga	nas</p><p>décadas	de	1950-</p><p>60,	que	concebia	o</p><p>ser	humano	como	o</p><p>único	responsável</p><p>pelo sentido dado</p><p>à	sua	vida,	a</p><p>qual	só	podia	ser</p><p>definida	ao	longo</p><p>de sua existência,</p><p>por	não	ter	uma</p><p>história	prévia	ao</p><p>seu	nascimento</p><p>nem	posterior	à</p><p>sua	morte.	O	mais</p><p>importante	filósofo</p><p>desta corrente,</p><p>além	de	Malraux</p><p>e	Sartre,	foi	Soren</p><p>Kierkegaard.</p><p>214 UNIUBE</p><p>espuma	à	flor	da	vaga	resplandecente	e	tenebrosa	da	Existência”.	Mais</p><p>importa,	agora,	o	constante	embate	das	personalidades	de	Carlos	e</p><p>Berta,	os	principais	personagens	do	romance;	mais	importam,	agora,</p><p>também,	o	tempo	e	sua	passagem,	a	mudança	do	mundo	e	dos	destinos</p><p>pessoais,	envolvidos	pelo	silêncio	da	natureza.</p><p>A	partir	desse	livro,	o	escritor	produz	uma	obra	romanesca	caracteristicamente</p><p>una,	em	que	pese	a	diferença	interna	dos	títulos.	As	histórias	contadas,</p><p>a	construção	de	personagens,	o	foco	narrativo,	as	formas	e	modos</p><p>inventados	para	contar	podem	variar	e	variam,	sendo	óbvio	que	Aparição</p><p>(1959)	e	Apelo da noite (1963)	são	romances	diferentes;	também	o	são,</p><p>entre si e entre os outros, Estrela polar (1962)	e	Rápida, a sombra</p><p>(1974),	Manhã submersa	(1953)	e	Para sempre	(1983).	No	entanto,	ao</p><p>longo	da	leitura	dessas	e	outras	obras,	constata-se	a	presença	manifesta</p><p>de	um	interesse	de	Vergílio	Ferreira	por	escrever	sobre	um	tema	singular,</p><p>ainda	que	vasto	e	complexo:	o	homem,	visto	como	um	ser	que	procura</p><p>construir	sua	existência	num	tempo	flagrantemente	limitado	pela	morte.</p><p>Ao	menos	desde	Mudança,	chegando	a	Cartas a Sandra,	de	1996,	o</p><p>ano	em	que	morreu,	numa	obra	romanesca	que	inclui	vinte	e	cinco	títulos,</p><p>é	esse	o	grande	eixo	da	escritura	ficcional	de	Vergílio	Ferreira.</p><p>Talvez	tenha	acontecido	com	o	autor	algo	parecido	com	o	que	sucede</p><p>a	um	de	seus	personagens	mais	conhecidos	do	público	leitor,	o	Alberto</p><p>Soares	de	Aparição.	Em	determinada	altura	da	narrativa,	refletindo	sobre</p><p>sua	vida,	ele	pensa	o	seguinte:	“Portanto	eu	tinha	um	problema:	justificar</p><p>a	vida	em	face	da	inverosimilhança	da	morte.	E	nunca	mais	até	hoje	eu</p><p>soube	inventar	outro.”	(FERREIRA,	1983,	p.	43)</p><p>De	qualquer	forma,	é	o	Homem	que	encontramos	na	obra	de	Vergílio</p><p>Ferreira:	a	narração	de	vivências	fundamentais	da	condição	humana	e</p><p>a	reflexão	sobre	ela,	em	busca	de	uma	experiência	de	plenitude,	a	ser</p><p>alcançada	apenas	em	termos	humanos.	No	volume	Um escritor apresenta-</p><p>se,	de	1982,	que	é	uma	recolha	de	setenta	entrevistas	concedidas	por	V.</p><p>UNIUBE 215</p><p>F.	ao	longo	de	sua	carreira	literária,	ele	faz	uma	importante	afirmação</p><p>a	respeito	do	escritor	francês	André	Malraux,	um	dos	autores	de	sua</p><p>predileção	e	a	respeito	de	cujo	pensamento	publicou	André Malraux –</p><p>Interrogação ao destino	(1963):	“O	longo	itinerário	de	Malraux	é	uma</p><p>grandiosa	tentativa	de	criar	para	o	homem	uma	transcendência	saída	de</p><p>suas	próprias	mãos”.	(FERREIRA,	1981,	p.	71).</p><p>Uma	preocupação	assemelhada	a	essa	anima	os	romances	vergilianos,</p><p>por	meio	de	suas	principais	personagens,	como	pode	ser	comprovado</p><p>por	manifestações	como	a	de	Alberto	Soares,	há	pouco	reproduzida,	e</p><p>pela	seguinte	frase	do	autor,	presente	no	mesmo	volume	de	entrevistas</p><p>citado,	se	bem	que	“transcendência”,	evidentemente,	não	seja	sinônimo</p><p>de	“humanismo”:	“O	grande	tema	de	toda	a	minha	obra	é	o	humanismo,</p><p>ou	seja,	a	possibilidade	de	fundar	em	dignidade	e	plenitude	a	vida	do</p><p>homem.”	(FERREIRA,	1981,	p.	37).</p><p>Na	longa	lista	dos	romances	de	Vergílio	Ferreira,	alguns	títulos	se	destacam,</p><p>como	Aparição	(1959),	Cântico final (1960)	e	Para sempre	(1983).</p><p>Aparição	é	o	romance	mais	famoso	do	escritor	português.	Desde	seu</p><p>lançamento,	em	1959,	é	sua	obra	que	mais	tem	encontrado	eco	junto	ao</p><p>público	leitor,	tendo	recebido,	da	Sociedade	Portuguesa	de	Escritores,</p><p>o	Prêmio	Camilo	Castelo	Branco;	é,	também,	um	dos	poucos	romances</p><p>vergilianos	a	ter	uma	edição	brasileira.</p><p>Aparição	é	um	livro	habitado	pelo	mundo	mental.	Com	isso,	quer-se</p><p>dizer	que	nessa	obra	encontramos	não	o	domínio	das	peripécias,	mas</p><p>o	da	reflexão.	Certamente,	nele	está	presente	um	enredo,	que	mostra,</p><p>por	 um	 lado	 a	 convivência	 problemática	 de	 um	 professor,	Alberto</p><p>Soares,	recém-chegado	à	cidade	de	Évora,	com	as	pessoas	com	quem</p><p>estabelece	relações,	a	partir	do	contato	com	a	família	do	Doutor	Moura,</p><p>renomado	médico	do	lugar;	por	outro,	a	reelaboração	das	memórias</p><p>daquela	época	num	texto	que	Alberto	escreve	muitos	anos	depois,</p><p>216 UNIUBE</p><p>durante	uma	noite	de	inverno.	Contudo		Alberto,	o	narrador-protagonista</p><p>desse	enredo,		é,	fundamentalmente,	alguém	que	reflete	sobre	o	homem,</p><p>sua	essência	e	existência,	seu	destino	e	suas	escolhas.</p><p>Numa	aferição	da	passagem	do	tempo	que	leve	em	conta	as	mecânicas</p><p>internas	da	obra	romanesca	do	autor,	Alberto	está	muito	distante	das</p><p>personagens	dos	livros	iniciais,	ainda	enredadas,	de	alguma	forma,	na</p><p>luta	social	e	na	preocupação	com	os	estômagos	vazios.	A	reflexão	de</p><p>Alberto	busca	outro	alvo:	saber	o	homem	e	instaurá-lo	numa	harmonia</p><p>apenas	humana,	saber	o	homem	e	justificá-lo	diante	da	evidência	da</p><p>morte.	Como	diz,	a	certa	altura:</p><p>Portanto	eu	tinha	um	problema:	justificar	a	vida	em</p><p>face	da	inverosimilhança	da	morte.	(...)	Eis-me	aqui</p><p>escrevendo	pela	noite	fora,	devastado	de	inverno.</p><p>Eis-me	procurando	a	verdade	primitiva	de	mim,	verdade</p><p>não	contaminada	ainda	da	indiferença.	(FERREIRA,</p><p>1983,	p.	43).</p><p>Talvez	pela	presença	tão	evidente	da	reflexão	sobre	a	condição	humana,</p><p>Aparição,	desde	o	lançamento,	vem	sendo	considerado,	por	alguns</p><p>críticos	e	estudiosos,	um	romance-ensaio,	ou	romance-tese.	Com	essa</p><p>ideia,	não	concorda	seu	autor,	por	crer	que	as	personagens	que	cria	não</p><p>são	meros	suportes	para	conceitos	teóricos,	mas	personagens	vivas;</p><p>como	ele	mesmo	afirmou	em	entrevista,	acredita	que	na	filosofia	teoriza-</p><p>se,	enquanto	no	romance	vive-se.</p><p>Tanto	isso	é	verdade	no	romance	que	não	é	das	muitas	discussões</p><p>sobre	política,	religião,	dinheiro	e	sexo	que	se	origina	a	mais	intensa</p><p>experiência	humana	narrada	no	livro,	mas	das	ações	da	menina	pianista</p><p>Cristina,	personagem	que	passa	fugazmente	pela	vida	de	Alberto,	mas</p><p>que,	com	sua	música,	marca-o	indelevelmente,	pois	representa	para	ele</p><p>a	importância	da	arte.	Para	Alberto,	em	comparação	com	todas	as	outras</p><p>experiências	humanas,	só	a	arte	é	capaz</p><p>sabe,	essa	é	uma	das	marcas</p><p>mais	visíveis	da	cultura	do	Renascimento,	que	valorizava	extremamente</p><p>o	conhecimento	científico	e	propunha	que	ele	fosse	usado	em	todos	os</p><p>campos	da	atividade	humana.</p><p>O	melhor	e	mais	conhecido	exemplo	dessa	atitude	renascentista	foi</p><p>Leonardo	da	Vinci	(1452-1519).	Leonardo	não	pintou	apenas	a	Mona</p><p>Lisa,	quadro	mais	famoso	da	arte	ocidental.	Também	foi	cientista,	inventor,</p><p>matemático,	engenheiro,	anatomista,	pintor,	escultor,	arquiteto,	botânico,</p><p>poeta	e	músico,	além	de	ser	considerado	o	precursor	da	aviação	e	da</p><p>balística;	 tamanha	versatilidade	expressa	o	caráter	universalista	do</p><p>UNIUBE 13</p><p>Renascimento,	visível	também	na	multiplicidade	de	ciências	mencionadas</p><p>em	Os Lusíadas,	com	a	Geografia,	Zoologia,	Botânica,	Náutica,	além	das</p><p>já	mencionadas	História	e	Astronomia,	o	que	dá	ao	poema	de	Camões	um</p><p>aspecto	de	enciclopédia	poética	do	conhecimento	científico	de	seu	tempo.</p><p>A	importância	da	ciência	também	se	manifesta	na	sequência	da	estrofe,</p><p>pois,	ao	se	referir	aos	“mares	nunca	doutrem	navegados”,	o	episódio	se</p><p>junta	às	muitas	referências	que	o	poema	como	um	todo	faz	ao	pioneirismo</p><p>dos	portugueses,	que	foram	capazes,	antes	dos	outros	povos	europeus,</p><p>de	navegar	em	alto	mar.	Esse	pioneirismo	é	a	base	do	retrato	da	cultura</p><p>portuguesa	que	o	leitor	atento	perceberá	que	Camões	elabora	ao	longo</p><p>de	todo	o	livro	e	que	será	tema	de	várias	outras	estrofes	do	relato	sobre</p><p>o	encontro	com	o	Adamastor.	Aqui,	é	importante	destacar	que	a	ciência</p><p>foi	um	dos	sustentáculos	da	expansão	marítima	lusitana,	pois	muitos</p><p>foram	os	instrumentos	náuticos	inventados	ou	desenvolvidos	pelos	seus</p><p>marinheiros	para	enfrentar	os	desafios	da	navegação	oceânica.	São</p><p>exemplos	disso	o	astrolábio,	o	quadrante,	a	bússola,	a	balestilha;	a	própria</p><p>caravela	usada	nas	viagens	à	Índia	e	ao	Brasil	foi	um	desenvolvimento</p><p>que	os	portugueses	fizeram	de	embarcações	mais	antigas.</p><p>Os	mais	importantes	instrumentos	náuticos	inventados	ou	desenvolvidos</p><p>pelos	marinheiros	portugueses	são	descritos	numa	reportagem	disponível</p><p>neste	endereço:</p><p>http://osdescobridoresbiju.blogspot.com.br/p/instrumentos-nauticos.html</p><p>AMPLIANDO	O	CONHECIMENTO</p><p>A	extensão	de	Os Lusíadas,	com	seus	milhares	de	versos,	não	deve</p><p>enganar	o	leitor:	não	se	trata	de	uma	obra	marcada	por	excessos	de</p><p>linguagem,	em	que	tudo	é	dito	com	sobras	de	palavras.	O	Renascimento</p><p>aprendeu	com	a	Antiguidade	Clássica	a	produzir	obras	de	arte	baseadas</p><p>na	concisão,	no	equilíbrio	e	na	economia	de	recursos,	de	modo	a	fazer</p><p>muito	com	pouco.</p><p>14 UNIUBE</p><p>Um	 perfeito	 exemplo	 disso	 é	 a	maneira	 encontrada	 por	Camões,</p><p>ainda	nesta	estrofe	37,	para	mostrar	a	vinculação	de	seu	poema	com</p><p>as	epopeias	antigas.	Um	dos	traços	essenciais	do	gênero	épico	é	a</p><p>presença	do	inesperado;	sendo	uma	narrativa	de	aventuras,	uma	epopeia</p><p>precisa	conter	fatos	que	acontecem	sem	que	seus	heróis	os	antecipem.</p><p>Isso	ocorre,	principalmente,	com	os	riscos	e	perigos	que	surgem	no</p><p>caminho	das	personagens,	movimentando	a	narração,	surpreendendo</p><p>também	o	leitor	e	servindo	para	que	o	herói	demonstre	sua	coragem,</p><p>sua	astúcia	e	seu	valor.	Na	estrofe	mencionada,	todo	a	ligação	de	Os</p><p>Lusíadas	com	essa	tradição	literária	é	feita	por	meio	de	duas	palavras:</p><p>“estando	descuidados”.	No	trecho	em	que	elas	aparecem,	é	relatado	que,</p><p>no	momento	em	que	surge	a	nuvem	da	qual	o	Adamastor	aparecerá,</p><p>os	marinheiros	portugueses	estavam	na	proa	do	navio,	conversando</p><p>descuidadamente,	ou	seja,	despreocupadamente.	Desse	modo,	não</p><p>tiveram	como	antecipar	a	chegada	do	gigante	e	tiveram	que	tratar	disso</p><p>da	maneira	como	foi	possível.</p><p>O	inesperado	aparecerá	muitas	vezes	no	poema,	trazendo	para	a	viagem</p><p>de	Vasco	da	Gama	os	elementos	de	perigo	essenciais	a	uma	aventura</p><p>nos	mares,	como,	no	plano	da	realidade,	as	tempestades	e	suas	opostas,</p><p>as	calmarias,	os	riscos	de	naufrágio,	a	falta	de	víveres	ou	água;	no	plano</p><p>mitológico,	o	principal	perigo	é	a	interferência	do	deus	Baco,	que,	na</p><p>fantasia	camoniana,	rivaliza	com	a	deusa	Vênus:	enquanto	ela	protege	os</p><p>navegadores	portugueses,	ele	os	persegue,	por	não	querer	que	levem	a</p><p>religião	católica	para	a	Índia,	lugar	de	muitos	centros	de	culto	em	honra	dele.</p><p>Você	pode	 ler	um	 interessante	estudo	sobre	a	presença	dos	deuses</p><p>mitológicos	em	Os Lusíadas usando este link:</p><p>http://www.unisalesiano.edu.br/encontro2009/trabalho/aceitos/</p><p>CC33961136831.pdf</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>UNIUBE 15</p><p>Nas	estrofes	38,	39	e	40,	o	episódio	mostra	a	descrição	do	Gigante</p><p>Adamastor,	caracterizado	como	um	ser	descomunal	em	seu	tamanho,</p><p>feiúra	e	aspecto	ameaçador,	como	convém	a	um	ser	sobrenatural	presente</p><p>numa	 epopeia.	 Esse	 elemento	 também	 serve	 para	 caracterizar	Os</p><p>Lusíadas	como	uma	obra	renascentista,	pois	se	deve	ao	conhecimento</p><p>que	Camões	tinha	das	regras	do	gênero	épico,	que	sempre	pede	a</p><p>intervenção	de	seres	de	outro	mundo	na	narrativa;	é	o	que	se	chama</p><p>de	presença	do	maravilhoso,	ou	seja,	do	sobrenatural.	Além	disso,	toda</p><p>a	repugnância	vista	pelos	portugueses	no	monstro	é	simbólica	de	outra</p><p>característica	da	epopeia:	o	contato	dos	heróis	com	o	desconhecido.	Nos</p><p>textos	clássicos,	os	gregos	de	Aquiles	e	Ulisses	e	os	troianos	de	Enéas</p><p>fazem	longas	viagens	para	lugares	que	nunca	tinham	visto	antes,	lá</p><p>encontrando	povos,	hábitos,	perigos	e	culturas	diferentes.	O	mesmo	se</p><p>dá	com	Vasco	da	Gama	e	seus	marinheiros;	nesse	contexto,	o	Adamastor</p><p>é	símbolo	também	de	todo	o	mundo	desconhecido	que	os	portugueses</p><p>colocariam	em	contato	com	a	cultura	europeia.</p><p>Também	 é	 digna	 de	 nota	 nessas	 estrofes	 a	 comparação	 feita	 do</p><p>Adamastor	com	o	Colosso	de	Rodes,	uma	imensa	estátua	do	deus</p><p>Apolo	que	existia	na	entrada	do	porto	de	Rodes,	uma	das	ilhas	gregas.</p><p>O	Colosso	era	uma	das	sete	maravilhas	do	mundo	antigo	e,	desse	modo,</p><p>evidencia	que		o	quadro	de	referências	culturais	usado	por	Camões	em</p><p>seu	livro	é	mesmo	a	Antiguidade	Clássica,	o	que	é	corroborado	pela</p><p>importância	dos	deuses	Vênus	e	Baco	na	narrativa.</p><p>Você	pode	ver	uma	representação	do	Colosso	de	Rodes	e	mais	informações</p><p>sobre	ele	e	as	outras	seis	maravilhas	do	mundo	antigo	neste	site:</p><p>https://funchalnoticias.net/2016/01/24/as-sete-maravilhas-do-mundo-antigo-</p><p>o-colosso-de-rodes/</p><p>AMPLIANDO	O	CONHECIMENTO</p><p>16 UNIUBE</p><p>As	estrofes	de	41	a	49	contêm	um	dos	trechos	mais	importantes	do</p><p>episódio	e	de	 todo	o	poema,	pois	apresentam	as	profecias	que	o</p><p>Adamastor	 faz	 a	 respeito	 dos	 naufrágios	 que	 navios	 portugueses</p><p>sofreriam,	depois	da	viagem	de	Vasco	da	Gama,	na	região	do	Cabo	das</p><p>Tormentas.	Nelas,	ele	se	refere	aos	acidentes	ocorridos	com	armadas</p><p>lideradas	por	Bartolomeu	Dias	(que	tinha	sido	o	primeiro	navegante</p><p>europeu	a	passar	por	ali,	em	1488,	pelo	que	ficou	conhecido	como	o</p><p>descobridor	do	caminho	marítimo	para	a	Índia),	D.	Francisco	de	Almeida</p><p>(primeiro	vice-rei	português	da	Índia)	e	Manuel	de	Sousa	Sepúlveda.</p><p>A	sequência	desses	desastres	tem	a	utilidade	de	lembrar	ao	leitor	a</p><p>persistência	da	ousadia	lusitana,	que	não	se	deixa	abater	mesmo	diante</p><p>de	derrotas	tão	graves	e	custosas,	tanto	em	termo	material	quanto	de</p><p>vidas	humanas.</p><p>Dos	relatos	que	o	Adamastor	faz	nesse	trecho,	o	mais	impressionante</p><p>é	certamente	o	do	acontecido	com	Sepúlveda.	Esse	fidalgo	e	militar</p><p>foi	servir	ao	rei	na	Índia	por	vários	anos	e,	em	1552,	numa	viagem	de</p><p>retorno	a	Portugal	em	que	estava	acompanhado	de	sua	mulher,	dos</p><p>filhos	e	de	mais	quinhentas	pessoas,	naufragou	no	Cabo	das	Tormentas.</p><p>Tendo	sobrevivido	ao	naufrágio,	ele,	a	família	e	outros	compatriotas	foram</p><p>aprisionados	por	um	tempo	por	indígenas	daquela	região,	terminando	por</p><p>morrer	de	fome,	sede,	doenças	e	ataques	de	animais	ferozes	durante	a</p><p>longa	marcha	que	tentaram	fazer	até	Moçambique,	onde	já	se	haviam</p><p>estabelecidos	alguns	postos	comercias	portugueses.</p><p>A	partir	desses	fatos	terríveis,	Luís	de	Camões	elabora	três	das	estrofes</p><p>mais	bonitas	e	complexas	de	seu	poema,	entrelaçando	os	temas	épicos</p><p>do	heroísmo	e	do	sacrifício	aos	líricos	do	amor	e	da	idealização	da	beleza</p><p>feminina.	Com	esse	procedimento,	ele	prepara</p><p>de	nos	conduzir	a	um	estado</p><p>de transcendência.</p><p>UNIUBE 217</p><p>Cântico final,	escrito	em	1956,	mas	publicado	apenas	em	1960,	é,	ao</p><p>nível	da	escritura,	um	dos	mais	belos	romances	de	Vergílio	Ferreira,	em</p><p>função	da	maneira	como	o	narrador	impõe-lhe	um	ritmo	narrativo	em</p><p>tudo	correspondente	à	lentidão	com	que	os	fatos	se	sucedem	na	vida</p><p>das personagens.</p><p>Os	temas	e	episódios	se	desenrolam	lentamente,	marcados,	ao	nível</p><p>da	escritura,	por	uma	profusão	de	vírgulas	e	travessões,	que	a	todo</p><p>momento	a	cadenciam,	da	mesma	maneira	dando-se	a	conhecer	ao</p><p>leitor,	que,	assim,	vai	sendo	enredado	na	trama.	Nela	avulta	a	importância</p><p>para	a	vida	do	homem,	da	obra	de	arte,	já	que	seu	personagem	central,</p><p>Mário,	é	um	pintor,	mas	não	há	apenas	isso.	Temos	também	o	frágil</p><p>estado	de	saúde	de	Mário	e	sua	preparação	para	a	morte;	a	vida	diária</p><p>das	amizades	que	o	cercam;	os	serões	que	os	reúnem;	as	reticências,</p><p>mentiras	e	ausências	de	Elsa,	a	mulher	que	ele	amou;	o	mundo	particular</p><p>de	cada	personagem	sendo,	mais	que	descrito,	sugerido	ao	leitor.</p><p>A	prosa	de	Vergílio	Ferreira	se	acopla	muito	bem	à	fase	de	vida	de	Mário</p><p>tematizada	na	obra,	experimentada	e	transfigurada	num	ritmo	lento,	de</p><p>reflexão,	de	silêncio	e	de	fim.	Tudo	isso	são	marcas	da	escritura	do	autor</p><p>português	e,	nessa	obra,	a	sua	capacidade	de	compor	e	contar	uma</p><p>história	densa	de	humanos	em	busca	de	um	sentido	que	justifique	suas</p><p>vidas	pode	ser	confirmada	no	seguinte	trecho,	retirado	de	um	passo	do</p><p>romance	em	que	mais	um	serão	dos	amigos	de	Mário	se	desenrola.	Foi</p><p>pedido	a	Paula,	dona	da	casa,	pianista	afastada	dos	concertos	por	causa</p><p>da	vida	em	família,	que	tocasse	um	pouco:</p><p>Sentava-se	 ao	 piano	 —	 um	 pouco	 afastado	 —,</p><p>esperava	ainda,	em	silêncio,	que	todos	se	aquietassem,</p><p>e	 finalmente	 tocava.	 Então	 os	 gênios	 do	 silêncio</p><p>recuperavam	para	cada	um,	esse	mundo	submerso	da</p><p>plenitude,	—	verdade	sem	margens	de	uma	comoção</p><p>de	origens,	onde,	como	num	oceano,	vogavam	os</p><p>destroços	das	palavras,	das	razões,	de	tudo	o	que</p><p>falha	e	é	efêmero	e	se	gasta	na	mecânica	da	vida	e</p><p>da	grande	loucura.	Quem	cantava	entre	os	dedos	de</p><p>Paula?	Nem	todos	o	sabiam,	—	e	Mário	quase	sempre</p><p>218 UNIUBE</p><p>preferia	não	sabê-lo.	Havia	apenas	a	aparição	do</p><p>mistério,	e	um	desejo	sufocante	de	tocar	o	halo	do	seu</p><p>nada;	—	e	a	presença,	sim,	de	um	corpo	de	mulher	que</p><p>o	situava	na	terra	dos	homens	através	do	lineamento	do</p><p>seu	pescoço	nu,	da	sagração	do	seu	olhar,	do	impulso</p><p>invencível	do	seu	busto	solene	até	a	uma	memória	de</p><p>estrelas	imóveis	na	noite...	(FERREIRA,	1975,	p.	42-43).</p><p>A	reação	sensível	de	Mário	diante	da	música	tocada	por	Paula	ao	piano</p><p>é	a	mesma	sentida	por	Alberto	ao	ver	Cristina	tocar	o	mesmo	instrumento</p><p>em	Aparição.	Não	se	trata	de	coincidência;	ocorre	que	a	arte	musical</p><p>ocupa	um	espaço	central	na	vida	dos	protagonistas	de	vários	romances</p><p>de	Vergílio	Ferreira,	a	tal	ponto	que	se	converte	no	símbolo	de	uma	vida</p><p>mais	elevada	e	mais	profunda,	como	se	apenas	a	arte	conseguisse	fazer</p><p>as	pessoas	transcenderem	as	mesquinharias	da	vida	cotidiana.</p><p>Para sempre	foi	publicado	em	1983,	mesmo	ano	em	que	foi	agraciado	com</p><p>o	prêmio	de	ficção	do	Pen	Clube	português.	Quando	o	preparava,	o	escritor</p><p>chegou	a	vê-lo	como	uma	espécie	de	ápice	de	sua	obra	romanesca,	um</p><p>ponto	de	culminância	dos	conteúdos	e	formas	experimentados	ao	longo	de</p><p>várias	décadas.	Assim	ele	se	referiu	ao	livro:</p><p>Tenho	um	novo	romance	entre	mãos.	Chama-se	(talvez)</p><p>Para	sempre.	Várias	vezes	me	prometi	dar	por	finda	a</p><p>aventura	e	encerrar	a	loja.	Desta	vez	creio	que	é	certo	—	e</p><p>o	título	é	premonitório.	(FERREIRA,	1981,	p.	271).</p><p>Em	Para sempre,	as	peripécias	pertencem	ao	passado,	quase	que</p><p>totalmente.	O	que	ocupa	o	presente	da	narrativa	feita	pelo	narrador-</p><p>protagonista	Paulo,	o	bibliotecário	recentemente	aposentado	que	está</p><p>de	volta	à	aldeia	e	à	casa	em	que	viveu	na	infância,	é	a	memória	e	tudo</p><p>que	nela	cabe:	as	esperanças,	as	frustrações,	os	fantasmas	familiares,</p><p>o	Paulo	da	infância	e	aquele	da	juventude,	a	mulher	morta,	a	filha</p><p>desaparecida,	o	amor,	a	vida	e	a	morte.</p><p>Tudo	isso	chega	ao	leitor	na	forma	de	um	longuíssimo	monólogo	interior,</p><p>transcorrido	numa	única	tarde	de	agosto,	auge	do	Verão	no	hemisfério</p><p>norte.	Tal	monólogo,	na	verdade,	engloba	outras	vozes,	vindas	da	memória.</p><p>UNIUBE 219</p><p>Além	disso,	ele	mistura	variados	tempos,	numa	prosa	que	possui	a	calma,</p><p>resignada	e	algo	amarga,	da	situação	de	vida	atual	da	personagem.</p><p>Nesse	contexto	de	humanidade	solitária	e	transitória,	o	monólogo	de</p><p>Paulo	na	tarde	de	agosto	em	que	consiste	o	romance	se	apresenta	como</p><p>uma	busca	empreendida	pelo	personagem,	a	busca	de	uma	verdade</p><p>que	esclareça	e	justifique,	que	resuma	e	comunique,	para	ele	mesmo,	o</p><p>“percurso	de	humanidade”.	Representada,	acima	de	tudo,	pelo	próprio</p><p>debruçar-se	sobre	o	passado,	que	é	o	que	dá	forma	ao	romance,	essa</p><p>demanda	é	declarada	inúmeras	vezes	em	Para sempre.	Uma	das	mais</p><p>explícitas	é	a	seguinte,	em	que	a	busca	metafórica	de	Paulo	em	sua	vida</p><p>é	associada	ao	seu	ato	de,	ao	chegar	de	volta	à	casa	antiga,	percorrê-la</p><p>toda,	entrando	em	todos	os	aposentos,	como	o	romance	entra	em	todas</p><p>as	partes	de	sua	vida,	a	começar	pelas	diversas	fases	dela,	infância,</p><p>juventude,	maturidade	e	velhice:</p><p>Dou	a	volta	à	casa	toda,	dou	à	volta	à	vida	toda	e	é</p><p>como	se	um	desejo	de	a	totalizar,	a	ter	na	mão.	Ter	a</p><p>imagem	visível	de	tudo	quanto	a	construiu,	rever-me</p><p>nela	para	a	levar	comigo.	Morrer	todo	no	que	fui	—</p><p>para	quê	restos	atrás	de	mim?	ser	perfeito	na	minha</p><p>totalização.	(FERREIRA,	1985,	p.	43).</p><p>Essa	“imagem	visível”	de	tudo	que	construiu	sua	vida	toma	a	forma	de</p><p>uma	palavra	que	Paulo	busca	incessantemente,	voltando-se	para	sua	vida</p><p>enquanto	o	sol	atravessa	a	paisagem	lá	fora.	A	mais	definitiva	caracterização</p><p>dessa	palavra	que	a	personagem	procura	sem	descanso,	como	se	ela	fosse</p><p>a	chave	de	todos	os	mistérios	da	vida,	aparece,	significativamente,	na	página</p><p>que	está	colocada	exatamente	na	metade	do	livro:</p><p>Estás	só,	agora,	bilhões	de	palavras	se	transformaram	na</p><p>vida	—	uma	só	que	soubesses,	a	única,	a	absoluta,	a	que</p><p>te	dissesse	inteiro	nos	despojos	de	ti.	(...)	A	que	redimisse</p><p>tudo	o	que	enche	um	viver	e	nada	deixasse	de	fora	como</p><p>inútil	ou	desperdício.	A	que	tivesse	em	si	um	significado	tão</p><p>amplo	que	tudo	nela	significasse	e	não	fosse	coisa	vã.	A</p><p>que	reunisse	em	si	um	homem	inteiro	sem	deixar	de	fora</p><p>o	animal	que	também	tem	de	ir	vivendo.	A	palavra	final,</p><p>a	palavra	total.	A	única.	A	absoluta.	(FERREIRA,	1985,	p.</p><p>152).</p><p>220 UNIUBE</p><p>Essa	busca	de	Paulo	por	uma	palavra	que	signifique	toda	a	vida	remete	ao</p><p>projeto	de	Alberto	Soares	em	Aparição,	o	de	justificar	a	vida	diante	da	morte.</p><p>Sendo	incessante	em	seu	monólogo,	tal	anseio	é	também	incessante	em</p><p>sua	vida,	desde	a	infância,	o	que	se	percebe	pela	verdadeira	obsessão	que</p><p>ele	demonstra,	desde	sempre,	por	conseguir	descobrir	o	que	sua	mãe	lhe</p><p>disse	no	leito	de	morte,	há	mais	de	sessenta	anos.</p><p>A	tarde	quente	de	agosto,	tempo	exterior	que	contém	um	imensamente</p><p>maior	tempo	interior	em	Para sempre,	na	qual	a	música	também	se</p><p>manifesta	com	um	poder	que	supera	os	limites	do	tempo	em	que	foi</p><p>executada,	resume	não	só	a	vida	de	Paulo.	De	certa	maneira,	resume</p><p>também	a	obra	romanesca	de	Vergílio	Ferreira,	por	sua	figuração	trazer,</p><p>ao	mesmo	tempo,	a	linguagem	reflexiva	que	é	registro	peculiar	do	autor</p><p>e	as	experiências	de	vida	que	espelham,	nas	personagens,	a	condição</p><p>humana,	matéria-prima	por	excelência	de	sua	literatura.</p><p>O	programa	“Grandes	livros”	da	RTP	(Rádio	Televisão	Portuguesa)	apresenta</p><p>semanalmente	as	grandes	produções	literárias	de	todos	os	tempos	no	país.</p><p>A	respeito	da	obra	de	Vergílio	Ferreira,	foi	produzido	um	episódio	sobre</p><p>Aparição,	com	a	dramatização	de	algumas	das	cenas	mais	importantes	e</p><p>a	participação	de	especialistas	que	analisam	as	principais	características</p><p>do	livro	e	do	estilo	do	autor.	Você	pode	vê-lo	no	Youtube,	usando	este	link:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=ibwWGCW6Jdg.</p><p>AMPLIANDO	O	CONHECIMENTO</p><p>Novas tendências ficcionais: anos</p><p>o	que	ocorrerá	logo	a</p><p>seguir,	quando	o	Adamastor	contar	sua	história	de	amor:	a	transição</p><p>do	poema	do	gênero	épico	para	o	lírico,	que	é	uma	das	novidades	que</p><p>torna Os Lusíadas	uma	epopeia	moderna,	mesmo	que	modelada	nas</p><p>clássicas.</p><p>UNIUBE 17</p><p>A	estrofe	46	traça	o	perfil	de	Manuel	de	Sousa	Sepúlveda	contra	o	pano</p><p>de	fundo	da	desgraça	que	a	família	conhecerá:</p><p>Outro	também	virá,	de	honrada	fama,</p><p>Liberal,	cavaleiro,	enamorado,</p><p>E	consigo	trará	a	formosa	dama</p><p>Que	Amor	por	grão	mercê	lhe	terá	dado.</p><p>Triste	ventura	e	negro	fado	os	chama</p><p>Neste	terreno	meu,	que,	duro	e	irado,</p><p>Os	deixará	dum	cru	naufrágio	vivos,</p><p>Pera	verem	trabalhos	excessivos.	(Idem,	p.	124).</p><p>Como	se	vê,	nessa	estrofe	o	herói	português	é	descrito	exclusivamente</p><p>em	termos	positivos:	sua	fama,	que	é	merecida,	já	que	é	honrada;	sua</p><p>generosidade;	sua	linhagem	nobre,	já	que,	naqueles	tempos,	para	se</p><p>pertencer	às	ordens	cavalheirescas,	era	preciso	ter	nascimento	na</p><p>aristocracia.	Entretanto	a	essas	qualidades,	que	descrevem	heróis	épicos</p><p>de	todos	os	tempos,	acrescenta-se	outra,	ligada	ao	gênero	lírico:	a	paixão</p><p>amorosa	nutrida	por	Sepúlveda	em	relação	à	sua	esposa,	cujo	nome	era</p><p>Leonor.	Essa	dimensão	sentimental	completa	de	maneira	harmoniosa</p><p>a	construção	da	personagem,	que	pode	ser	vista	como	um	modelo	do</p><p>português,	por	causa	de	sua	nobreza,	coragem,	liberalidade	e	capacidade</p><p>de	amar.	Além	disso,	a	estrofe	também	caracteriza	positivamente	a</p><p>esposa,	pois	a	descreve	como	bela	e	nobre,	marcas	essenciais	para	que</p><p>uma	mulher	mereça		ser	chamada	de	“dama”	naquele	contexto	social	e</p><p>cultural.	Essa	simetria	de	qualidades	admiráveis	faz	do	casal	um	exemplo</p><p>de	equilíbrio,	o	que	mostra,	novamente,	a	faceta	renascentista	do	poema,</p><p>pois	a	simetria	e	o	equilíbrio	são	características	da	maior	importância	na</p><p>arte	greco-latina,	fonte	na	qual	a	Renascença	foi	beber	sua	inspiração.</p><p>A	estrofe	47	desenvolve	mais	o	perfil	de	Leonor,	já	no	contexto	das</p><p>consequências	do	naufrágio:</p><p>18 UNIUBE</p><p>Verão	morrer	com	fome	os	filhos	caros,</p><p>Em	tanto	amor	gerados	e	nascidos;</p><p>Verão	os	Cafres,	ásperos	e	avaros,</p><p>Tirar	à	linda	dama	seus	vestidos;</p><p>Os	cristalinos	membros	e	perclaros</p><p>À	calma,	ao	frio,	ao	ar,	verão	despidos,</p><p>Depois	de	ter	pisada,	longamente,</p><p>Cos	delicados	pés	a	areia	ardente.	(Idem,	p.	124)</p><p>É	importante	observar	como	Camões	faz	contrastar	os	índices	clássicos</p><p>da	figura	da	mulher,	ou	seja,	sua	beleza,	nobreza,	elegância,	brancura,</p><p>delicadeza	 e	 sensibilidade	 amorosa	 de	 mãe,	 com	 as	 vicissitudes</p><p>enfrentadas	em	função	do	acidente.	Desse	contraste,	ressalta	o	valor</p><p>da	mulher	portuguesa	que	Leonor	simboliza,	totalmente	em	sincronia	com</p><p>aqueles	representados	por	seu	marido,	o	que	reforça	o	equilíbrio	do	casal</p><p>e	o	interesse	da	poética	camoniana	nesse	efeito,	que	também	é	causado</p><p>pela	estrutura	perfeitamente	harmônica	do	poema,	que	usa	sempre	o</p><p>mesmo	tipo	de	verso,	de	estrofe,	de	métrica	e	de	esquema	de	rimas.</p><p>Os	aspectos	renascentistas,	épicos	e	líricos	desta	parte	do	episódio</p><p>culminam	na	estrofe	48:</p><p>E	verão	mais	os	olhos	que	escaparem</p><p>De	tanto	mal,	de	tanta	desventura,</p><p>Os	dois	amantes	míseros	ficarem</p><p>Na	férvida,	implacável	espessura.</p><p>Ali,	depois	que	as	pedras	abrandarem</p><p>Com	lágrimas	de	dor,	de	mágoa	pura,</p><p>Abraçados,	as	almas	soltarão</p><p>Da	formosa	e	misérrima	prisão.	(Idem,	p.	124).</p><p>Cafres</p><p>Nome	usado,	na</p><p>época	de	Camões,</p><p>para	os	habitantes</p><p>originais	do	território</p><p>que	é	hoje	a	África</p><p>do	Sul.</p><p>Perclaros</p><p>Nobres,	ilustres,</p><p>belos.</p><p>UNIUBE 19</p><p>A	imagem	do	casal	a	morrer	abraçado,	depois	ter	experimentado	o	pior</p><p>acontecimento	possível	para	os	pais,	a	morte	dos	filhos,	é	uma	das	mais</p><p>ricas	da	poesia	camoniana.	Ela	mostra	que	o	casal	se	manteve	fiel	a</p><p>seu	amor	e	a	seu	compromisso	mesmo	depois	de	todos	os	males	e</p><p>derrotas	que	teve	de	enfrentar,	sem	recriminações	ou	desentendimentos.</p><p>A	profundidade	inesgotável	desses	sofrimentos	pode	ser	bem	entendida	a</p><p>partir	da	magistral	metáfora	feita	por	Camões,	a	das	lágrimas	tão	sentidas</p><p>que	são	capazes	de	amolecer	as	pedras.	Entretanto	o	que	há	de	mais</p><p>rico	na	estrofe	é	a	visão	que	ela	apresenta	da	vida	humana.</p><p>Nessa	estrofe,	o	ser	humano	é	constituído	de	duas	dimensões.	A	primeira</p><p>é	a	física,	a	do	corpo	que	é	descrito	como	uma	prisão,	bela,	porém	muito</p><p>miserável.	Naturalmente,	essa	classificação	se	justifica	pelo	fato	de	o</p><p>corpo	ser	mortal.	A	segunda	é	a	espiritual,	vista	como	eterna,	já	que,</p><p>livres	do	corpo,	as	almas	do	casal,	presumivelmente,	continuarão	a</p><p>existir	em	outro	plano	de	vida.	Justamente	aí	está	a	riqueza	da	linguagem</p><p>camoniana,	que,	com	poucas	palavras,	sintetiza	toda	a	concepção	da</p><p>vida	humana	presente	na	filosofia	platônica,	que	é	a	base	do	pensamento</p><p>renascentista.</p><p>Na	concepção	platônica,	a	vida	humana	se	dividia	em	dois	planos</p><p>distintos:	o	espiritual,	divino	e	celestial,	no	qual	 	se	originavam	as</p><p>almas,	e	o	material,	humano	e	terreno,	no	qual	elas	tomavam	corpos</p><p>e	experimentavam	uma	vida	diminuída,	degradada	e	sombria.	Toda	a</p><p>aspiração	de	felicidade	humana,	desse	modo,	deveria	ser	dirigida	ao</p><p>plano	espiritual	da	existência,	a	ser	alcançado	apenas	depois	da	morte</p><p>física.	Essa	noção	platônica	pode	ser	encontrada	em	quase	todas	as</p><p>religiões	ocidentais,	que,	apesar	de	todas	as	suas	diferenças,	comungam</p><p>da	ideia	de	que	este	mundo	material	é	um	“vale	de	lágrimas”,	no	qual</p><p>vivemos	 uma	 experiência	 de	 exílio,	 enquanto	 aguardamos	 nossa</p><p>passagem	para	uma	vivência	espiritual	plenamente	positiva.</p><p>20 UNIUBE</p><p>Sobre	a	importância	do	platonismo	na	poesia	de	Camões,	veja		o	que</p><p>diz	Cristiano	Martins:</p><p>Se	 a	 sua	 poesia	 se	 revela,	 sob	 tantos	 aspectos,</p><p>representativa	dos	sentidos	e	acepções	 líricas	da</p><p>Renascença,	com	mais	feliz	oportunidade,	talvez,	que</p><p>a	de	Petrarca	ou	Sannazaro,	Torquato	Tasso,	Ariosto</p><p>ou	mesmo	Shakespeare,	não	seria	estranhável	que</p><p>ele	 tivesse	 assimilado	 intimamente	 as	 formas	 de</p><p>pensamento	peculiares	à	época.</p><p>O	retorno	à	antiguidade	clássica	fazia-se,	então,	por</p><p>um	caminho	único,	uma	estrada	real:	a	obra	de	Platão.</p><p>Sempre	que	esse	conhecimento	não	se	fez	diretamente</p><p>pelos	textos	do	filósofo	dos	Diálogos,	processou-se</p><p>indiretamente,	mediante	o	estudo	de	Plotino	e	as</p><p>contribuições	dos	neoplatonistas.</p><p>Entre	todas	as	influências	ocorrentes	em	sua	obra</p><p>essa	do	platonismo	é	sem	dúvida	a	mais	acentuada.</p><p>Poucos	líricos	terão	compreendido	tão	finamente	os</p><p>acidentes	da	doutrina	platônica,	cujo	sentido	interior</p><p>é	investigar	e	ordenar	os	problemas	da	vida	espiritual</p><p>ou	contemplativa.	Ele	foi	bem	um	aluno	da	Academia</p><p>ateniense,	 pela	 aplicação	 com	 que	 meditou	 as</p><p>passagens	do	Mestre	e	a	forma	como	a	este	se	referia</p><p>algumas	vezes,	chamando-o	divino	Platão.	[...]	Mais</p><p>que	grande	aluno,	foi	verdadeiramente	discípulo	eleito</p><p>do	mestre,	um	platônico	por	temperamento;	longe	de</p><p>residir	nas	ásperas	lutas	da	vida	ordinária,	em	que	não</p><p>raro	se	encontrava	envolvido,	a	sua	legítima	vocação</p><p>consistiria	 no	 sonho	 e	 contemplação	 das	 formas</p><p>espirituais,	com	aquelas	incompatíveis.	(MARTINS,</p><p>1981,	p.	49-50).</p><p>Para	saber	mais	a	respeito	das	ideias	de	Platão	e	de	sua	importância</p><p>fundamental	para	toda	a	cultura	ocidental,	visite	esta	página	da	internet:</p><p>http://www.filosofia.com.br/historia_show.php?id=28</p><p>PESQUISANDO	NA	WEB</p><p>As	estrofes	em	que	o	Adamastor	profetiza	a	respeito	dos	riscos	inerentes</p><p>às	 navegações	 portuguesas	 começaram	 plenamente	 épicas,	 pois</p><p>tratavam	de	perigos,	imprevistos,	naufrágios,	heroísmos,	sacrifícios	e</p><p>UNIUBE 21</p><p>a	persistente	ousadia	dos	portugueses.	Quando	surgiram	nelas	Manuel</p><p>de	Sousa	Sepúlveda	e	sua	esposa	Leonor,	o	amor	que	nutriam	um	pelo</p><p>outro	inseriu	na	narrativa	um	aspecto	lírico,	que	se	destaca	dentro	do</p><p>poema	como	um	todo.	Camões	já	havia	adotado	esse	procedimento</p><p>antes,	no	Canto	III,	com	o	relato	sobre	Inês	de	Castro;	fará	novamente</p><p>quase	ao	final	do	 livro,	com	o	episódio	da	 Ilha	dos	Amores.	Essa</p><p>experiência	camoniana,	de	mesclar	com	muito	destaque	o	lirismo	na</p><p>estrutura	épica	de	Os Lusíadas,		é	uma	autêntica	inovação	renascentista,</p><p>pois	as	epopeias</p><p>clássicas	não	fazem	isso,	dedicando-se	de	maneira</p><p>praticamente	exclusiva	a	uma	sucessão	de	episódios	de	aventuras.	Mas</p><p>o	amor	de	Manuel	e	Leonor	não	é	o	único	a	estar	presente	no	episódio</p><p>do	Gigante	Adamastor,	pois	tem	ainda	mais	relevância	nele	a	desventura</p><p>amorosa	do	próprio	monstro.	É	disso	que	tratam	as	estrofes	de	50	a	60,</p><p>que	fecham	o	episódio.</p><p>As	estrofes	50	e	51	trazem	uma	apresentação	que	o	Adamastor	faz	de</p><p>si	mesmo;	ao	contrário	da	primeira	vez	em	que	falou	no	poema	(estrofes</p><p>41	e	seguintes),	dessa	vez	ele	não	se	limita	a	falar	dos	portugueses,</p><p>como	se	estivesse	cumprindo	no	poema	apenas	o	papel	de	destacar</p><p>as	qualidades	heroicas	dos	lusíadas.	O	que	o	Adamastor	conta	de	si	é</p><p>não	só	a	sua	identificação	simbólica	com	o	Cabo	das	Tormentas,	mas</p><p>também	sua	origem	como	um	dos	Titãs	da	mitologia	greco-latina,	ou</p><p>seja,	a	raça	de	gigantes	que	dominava	a	Terra	antes	do	aparecimento</p><p>dos	deuses	olímpicos	(Júpiter,	Netuno,	Plutão,	Vênus,	Apolo,	Marte	etc.).</p><p>Como	narram	as	lendas	antigas,	depois	que	Júpiter,	seus	irmãos	e	filhos</p><p>tomaram	o	lugar	dos	Titãs,	estes	moveram	contra	eles	uma	guerra,	na</p><p>qual	foram	derrotados	de	maneira	definitiva.</p><p>É	a	partir	da	estrofe	52	que	o	Adamastor	passa	a	explicar	por	que	motivo</p><p>ele	se	identifica	como	um	capitão	do	mar,	cuja	parte	na	guerra	de	seus</p><p>irmãos	contra	os	deuses	era	combater	a	armada	de	Netuno,	o	deus	dos</p><p>mares;	nela,	já	se	anuncia	que	seus	propósitos	verdadeiros	não	eram	os</p><p>épicos,	mas	os	líricos:</p><p>22 UNIUBE</p><p>Amores	da	alta	esposa	de	Peleu</p><p>Me	fizeram	tomar	tamanha	empresa.</p><p>Todas	as	Deusas	desprezei	do	céu,</p><p>Só	por	amar	das	águas	a	princesa.</p><p>Um	dia	a	vi	coas	filhas	de	Nereu</p><p>Sair	nua	na	praia,	e	logo	presa</p><p>A	vontade	senti	de	tal	maneira</p><p>Que	inda	não	sinto	cousa	que	mais	queira.	(Idem,	p.	126).</p><p>Na	mitologia	grega,	Peleu	foi	um	rei	da	região	da	Tessália;	de	seu</p><p>casamento	com	a	ninfa	Tétis,	nasceu	Aquiles,	o	mais	importante	herói</p><p>da	Ilíada,	de	Homero.	Tétis	se	casou	com	Peleu,	um	humano,	por</p><p>decisão	de	Júpiter	e	Netuno,	que	a	cortejavam	e	disputavam	sua	mão</p><p>até	serem	avisados	por	Prometeu	que	o	filho	dela	seria	maior	que	o	pai.</p><p>Como	se	pode	concluir,	Tétis	possuía	uma	beleza	deslumbrante,	que	foi</p><p>responsável	pela	súbita	paixão	que	o	Adamastor	sentiu	ao	vê-la	saindo</p><p>do	mar	junto	com	as	demais	nereidas,	suas	irmãs.</p><p>O	impacto	que	Tétis	teve	sobre	o	gigante	na	estrofe	acima	deve	ser</p><p>entendido	não	apenas	como	uma	particularidade	da	vida	dele.	Em	seu</p><p>aspecto	simbólico,	esse	impacto	mostra	a	força	dos	temas	ligados	ao</p><p>gênero	lírico,	principalmente	a	idealização	da	mulher	e	a	força	superior</p><p>do	sentimento	em	relação	à	razão.	Observe	como	a	ninfa	é	descrita</p><p>como	a	“alta	esposa”	de	Peleu:	a	anteposição	do	adjetivo	mostra	que</p><p>seu	sentido	no	verso	é	moral,	não	físico.	Não	é	que	Tétis	seja	de	grande</p><p>estatura	 física,	mas	sim	alguém	 ilustre,	admirável,	encantadora.	É</p><p>isso	que	faz	com	que	o	Adamastor	inverta	todas	as	hierarquias	para</p><p>expressar	seu	sentimento	por	ela,	pois,	se	raciocinasse	friamente,	veria</p><p>que	as	deusas,	na	mitologia,	estão	acima	das	princesas,	assim	como</p><p>o	céu	está	acima	das	águas.	No	entanto,	para	ele,	vale	muito	mais	a</p><p>princesa	das	águas	do	que	as	deusas	do	céu.	O	que	aconteceu	com</p><p>ele?	Como	se	pode	ver	em	poemas	líricos	de	todas	as	línguas	e	todas</p><p>as	épocas,	quando	o	amor	é	despertado,	a	razão	é	abandonada.	A	isso</p><p>UNIUBE 23</p><p>chamamos	sentimentalismo,	o	predomínio	das	emoções	sobre	o	lado</p><p>racional	da	pessoa.	Uma	observação	atenta	da	estrofe	mostrará	que	o</p><p>Adamastor	pode	estar	passando	a	simbolizar	mais	do	que	os	perigos	das</p><p>navegações,	assumindo	o	papel	de	modelo	do	apaixonado	irracional,	do</p><p>tipo	que	continua	existindo	séculos	depois	da	publicação	do	livro.	Está	aí,</p><p>então,	um	belo	índice	da	atualidade	da	poesia	de	Camões.</p><p>Nas	próximas	estrofes,	o	relato	da	paixão	se	aprofundará,	mas	mantendo</p><p>constante	 a	 definição	 dos	 sentimentos	 do	Adamastor	 e	 o	 retrato</p><p>idealizado	que	ele	faz	de	Tétis.	Assim,	o	amor	aparece	como	uma	prisão</p><p>em	que	o	apaixonado	entra	voluntariamente;	uma	relação	assimétrica,</p><p>pois	permite	a	atração	entre	desiguais	(ele	é	um	gigante,	ela	é	uma	ninfa;</p><p>não	apenas	suas	estaturas	são	diferentes,	mas	suas	próprias	naturezas);</p><p>um	engano,	que	promete	abundâncias	de	felicidade,	esperanças	de</p><p>satisfação	e	desejos	de	realização,	mas	depois	revela	que	tudo	isso	é</p><p>apenas	ilusão;	em	suma,	uma	loucura.</p><p>Quanto	à		Tétis,	ela	aparece,	nas	palavras	do	gigante,	como	mulher</p><p>de	beleza	imensa,	dotada	não	só	de	atributos	físicos,	mas	também	de</p><p>inteligência,	bom	humor	e	sagacidade;	aos	olhos	dele,	ela	é	a	“branca</p><p>Tétis,	única”,	a	ninfa	mais	formosa	do	oceano.	Sendo	o	Oceano	um	dos</p><p>símbolos	mais	tradicionais	da	totalidade	do	universo,	o	leitor	pode	fazer</p><p>uma	ideia	de	quanto	o	Adamastor	a	considera	alguém	especial,	diferente</p><p>de	todos	os	outros	seres	do	belo	sexo.	Essa	descrição	exaltada	introduz</p><p>um	tema	bastante	presente	em	Os Lusíadas:	o	perfil	da	mulher	clássica,</p><p>ao	qual	corresponde	também,	neste	mesmo	episódio,	Leonor	de	Sousa</p><p>Sepúlveda,	que,	recorde,	era	bela,	ilustre,	nobre,	especial.	Nesse	sentido,</p><p>Camões	está	se	juntando	a	outros	grandes	artistas	da	Renascença,</p><p>que,	 a	 partir	 de	 uma	 personagem	 específica,	 fosse	mitológica	 ou</p><p>real,	simbolizavam	a	perfeição	feminina.	É	o	caso	de	pinturas	como</p><p>O nascimento de Vênus e o Perfil de donzela (Retrato de Simonetta</p><p>Vespucci),	de	Sandro	Botticelli	(1445-1510),	a	Dama	do	arminho,	de</p><p>Leonardo	da	Vinci,	ou	a	Madona	do	prado,	de	Rafael	(1483-1520).	Todas</p><p>24 UNIUBE</p><p>elas,	na	sua	beleza,	brancura,	nobreza,	doçura,	serenidade	e	ilustração,</p><p>são	devedoras	do	ideal	de	mulher	presente	nas	esculturas	gregas	da</p><p>antiguidade,	como	a	Vênus	de	Milo,	a	mais	famosa	delas.</p><p>É	pena,	para	o	Adamastor,	que	ele	se	tenha	deixado	levar	pela	paixão,</p><p>pois	isso	o	fez	se	esquecer	do	fato	fundamental:	Tétis	era	casada	e	fiel	ao</p><p>marido.	Assim,	nas	estrofes	finais	do	episódio,	o	leitor	fica	sabendo	que,</p><p>diante	das	ameaças	que	ele	mandou,	de	chegar	até	a	raptar	a	ninfa,	ela</p><p>trata	de	iludi-lo	com	a	promessa	de	que	se	encontrará	com	ele.	Na	noite</p><p>prometida,	o	que	acontece	é	o	seguinte:</p><p>Ó	que	não	sei	de	nojo	como	o	conte!</p><p>Que,	crendo	ter	nos	braços	quem	amava,</p><p>Abraçado	me	achei	com	um	duro	monte</p><p>De	áspero	mato	e	de	espessura	brava.</p><p>Estando	com	um	penedo	fronte	a	fronte,</p><p>Que	eu	pelo	rosto	angélico	apertava</p><p>Não	fiquei	homem	não,	mas	mudo	e	quedo,</p><p>E	junto	dum	penedo	outro	penedo.	(Idem,	p.	127).</p><p>Este	é	o	ponto	final	na	teoria	do	amor	que	Camões	foi	tecendo	por	meio</p><p>da	aventura	lírica	do	Gigante	Adamastor:	a	descoberta	de	que	tudo	em</p><p>que	se	investiram		os	sentimentos	e	a	própria	personalidade	não	passou</p><p>de	uma	ilusão.	Em	lugar	da	ninfa,	Adamastor	encontrou	um	penedo,	ou</p><p>seja,	uma	enorme	pedra.	Quem	já	amou	quem	não	devia	saber	do	que</p><p>se trata...</p><p>A	resposta	do	Adamastor	à		sua	desilusão	é	transformar-se	ele	também</p><p>em	uma	pedra,	como	se	vê	nos	últimos	dois	versos	transcritos.	Essa</p><p>metamorfose	será	mais	detalhada	na	estrofe	59,	na	qual	o	gigante	explica</p><p>para	o	Gama	como	os	deuses	o	transformaram	no	Cabo	das	Tormentas:</p><p>UNIUBE 25</p><p>Converte-se-me	a	carne	em	terra	dura,</p><p>Em	penedos	os	ossos	se	fizeram,</p><p>Estes	membros	que	vês	e	esta	figura</p><p>Por	estas	longas	águas	se	estenderam;</p><p>Enfim,	minha	grandíssima	estatura</p><p>Neste	remoto	cabo	converteram</p><p>Os	Deuses,	e	por	mais	dobradas	mágoas,</p><p>Me	anda	Tétis	cercando	destas	águas.	(Idem,	p.	128).</p><p>Essa	estrofe	oferece	diferentes	possibilidades	interpretativas.</p><p>A	primeira	opção	é	a	de	vê-la	como	um	testemunho	da	influência	da</p><p>mitologia	grega	sobre	a	arte	do	Renascimento.		Essa	leitura	é	válida,</p><p>pois	a	estrofe	trata	de	uma	metamorfose,	fenômeno	do	qual	há	muitas</p><p>referências	nas	lendas	gregas,	como	a	que	conta	como	Júpiter	se</p><p>converteu	numa	chuva	de	ouro	para	conseguir	chegar	até	a	alta	torre</p><p>de	bronze	em	que	a	linda	princesa	Dânae	era	prisioneira	do	própria	pai,</p><p>que	pretendia	mantê-la	virgem	para	sempre,	pois	ouvira	uma	profecia</p><p>segundo	a	qual	seu	neto	o	mataria.	Desse	encontro,	nasceu</p><p>Perseu,	que</p><p>mais	tarde	mataria	não	só	o	avô,	mas	também	a	Medusa.</p><p>Outra	opção	é	entender	a	transformação	do	Adamastor	em	pedra	como	a</p><p>paralisia	sentimental	à	qual,	por	vezes,	se	entregam	pessoas	que	sofreram</p><p>uma	desilusão	amorosa.	Enganados	por	alguém	e	desenganadas	do	amor,</p><p>elas	acabam	assumindo,	simbolicamente,	as	propriedades	das	pedras:</p><p>se	tornam	frias,	duras	e	imóveis.	Assim,	o	texto	de	Camões	pode	servir	de</p><p>alerta	para	seus	leitores	de	todas	as	épocas,	avisando-os	para	tomarem</p><p>cuidado	com	as	ilusões	que	a	paixão	promete,	pois	o	pagamento	por	elas</p><p>pode	ser	a		esterilidade	interna.	Como	se	isso	não	bastasse,	no	final	da</p><p>estrofe	o	amor	ainda	revela	sua	face	irônica	e	cruel,	pois	o	Adamastor,</p><p>agora	mudado	no	Cabo	das	Tormentas,	se	vê	eternamente	cercado</p><p>pelas	águas	que	o	lembram	de	Tétis,	ninfa	que	ela	era.	Não	está	na</p><p>mesma	situação	quem	nutre	um	amor	impossível	por	alguém	que	lhe</p><p>seja	próximo,	mas	intocável?</p><p>26 UNIUBE</p><p>Essas	últimas	reflexões	e	indagações	conduzem	o	leitor	a	perceber	o</p><p>percurso	que	atravessou	na	leitura	do	episódio	do	Gigante	Adamastor,</p><p>o	qual	é	muito	representativo	de	Os Lusíadas	e	de	toda	a	obra	de	Luís</p><p>de	Camões.	Iniciando-se	por	referências	a	navegações,	tempestades,</p><p>perigos,	gigantes	ameaçadores	e	profecias	terríveis,	o	texto	nos	coloca</p><p>no	pleno	domínio	do	gênero	épico.	Depois	da	introdução	de	Manuel	e</p><p>Leonor	Sepúlveda,	entretanto,	o	poema	vai	derivando	para	o	gênero</p><p>lírico,	embora	mantenha	exatamente	a	mesma	estrutura	geral:	oitava</p><p>rima,	versos	decassílabos,	rimas	em	abababcc.	Esse	procedimento</p><p>mostra	como,	na	compreensão	do	poeta,	os	gêneros	não	precisam	se</p><p>manter	tão	estanques	como	a	antiguidade	preconizava,	o	que	faz	dele,</p><p>de	certa	forma,	um	precursor	da	abolição	das	fronteiras	entre	os	gêneros</p><p>à	qual,	muito	tempo	depois,	irão	se	devotar	tanto	o	Romantismo	como</p><p>o	Modernismo.</p><p>Na	fortuna	crítica	do	grande	poema,	há	estudiosos	que,	diante	da	mescla</p><p>de	características	épicas	e	líricas	no	episódio	do	Adamastor,	veem	nele</p><p>também	uma	representação	do	próprio	Luís	de	Camões	e	de	todo	o</p><p>povo	português,	já	que	o	poeta,	que	também	foi	soldado,	simbolizaria</p><p>os	aspectos	guerreiros	e	sentimentais	de	sua	pátria.	É	o	que	diz,	por</p><p>exemplo,	Linhares	Filho,	apoiando-se	também	na	 interpretação	de</p><p>Cleonice	Berardinelli:</p><p>Quanto	 ao	 Adamastor,	 vemos	 uma	 identificação</p><p>épica	e	lírica	dele	com	o	poeta	Camões	e	com	o	povo</p><p>português,	como	bem	nos	mostra	a	excelente	análise</p><p>de	Cleonice	Berardinelli,	“Uma	leitura	do	Adamastor”,	no</p><p>livro	Estudos Camonianos.	Depois	de	focalizar	as	duas</p><p>faces	do	gigante,	escreve	a	analista:</p><p>Será demais insistir nas semelhanças entre o gigante</p><p>e o povo que o afronta? Ambos são capitães do mar,</p><p>ambos defendem com bravura o próprio solo, ambos</p><p>sabem fazer a crua guerra, mas também são ambos</p><p>sensíveis à beleza feminina, capazes de amar com</p><p>extremos e contentar-se com enganos de amor.</p><p>(LINHARES	FILHO,	1980/1981,	p.	95,	grifos	do	autor).</p><p>UNIUBE 27</p><p>1.1.2 Camões lírico: uma enciclopédia da poesia ocidental</p><p>Assim	como	Os Lusíadas,	a	obra	lírica	de	Camões	revela	um	aspecto</p><p>enciclopédico,	pois	nela	podem	ser	encontradas	todas	as	formas	poéticas</p><p>cultivadas	desde	a	antiguidade	grega	até	o	Renascimento,	assim	como	todos</p><p>os	grandes	temas	desenvolvidos	na	poesia	de	todos	os	tempos	e	culturas.</p><p>A	variedade	formal	da	lírica	camoniana	é	evidente	a	um	primeiro	olhar.</p><p>Nela,	estão	tanto	as	formas	clássicas,	antigas,	como	as	medievais	e	as</p><p>mais	recentes,	identificadas	com	as	inovações	renascentistas.</p><p>Da	Antiguidade	Clássica,	Camões	utiliza	formas	como	a	ode,	a	elegia	e	a</p><p>écloga.	Numa	descrição	sucinta,	pode-se	dizer	que	a	ode	é		essencialmente</p><p>um	poema	cantado,	o	qual	tem	como	tema	a	exaltação	de	uma	pessoa,</p><p>uma	ideia	ou	um	acontecimento;	seu	tom	é	sempre	alegre	e	cheio	de</p><p>entusiasmo.	A	elegia,	ao	contrário,	foi	concebida	como	um	canto	fúnebre,</p><p>adequado	para	lamentar	a	morte	de	alguém	ou	qualquer	tipo	de	perda</p><p>significativa;	por	isso	seu	tom	costuma	ser	terno	e	triste.	Já	a	écloga	é</p><p>um	tipo	de	poema	dialogado,	ambientado	em	ambiente	campestre,	no</p><p>qual	pastores	conversam,	geralmente,	sobre	o	amor.	Na	obra	camoniana,</p><p>pode	ser	destacada	a	ode	“Tão	suave,	tão	fresca	e	tão	fermosa”,	a</p><p>respeito	da	beleza	inigualável	de	uma	ninfa;	a	elegia	“À	morte	de	D.</p><p>Miguel	de	Meneses,	filho	de	D.	Henrique	de	Meneses,	governador</p><p>da	Casa	Cível,	que	morreu	na	Índia”;	a	écloga	“Frondoso	e	Duriano,</p><p>pastores”.</p><p>A	Idade	Média	também	influenciou	a	escritura	de	Camões,	como	podem</p><p>atestar	exemplos	de	formas	que	ele	cultivou,	como	os	versos	redondilhos</p><p>maior	 (com	sete	sílabas	poéticas)	e	menor	 (com	cinco	sílabas),	o</p><p>vilancete	(tipo	de	poema	que	parte	de	um	mote,	ou	tema,	retirado	de</p><p>outro	texto).	Sobre	essa	faceta	da	lírica	camoniana,	que	deve	ter	sido</p><p>elaborada	à	luz	do	aproveitamento	que	já	tinha	sido	feito	das	práticas</p><p>poéticas	tradicionais	galego-portuguesas	pelos	poetas	publicados	no</p><p>28 UNIUBE</p><p>Cancioneiro	Geral,	que	reuniu	a	produção	da	época	do	Humanismo,	que</p><p>serviu	de	transição	para	o	Renascimento,	António	Salgado	Júnior	diz	que:</p><p>é	constituída	essencialmente	pelo	conjunto	de	poesias</p><p>que	é	costume	classificar	como	consequência	da</p><p>experiência	poética	tradicional	portuguesa.	Diz-se	estar</p><p>na	linha	de	desenvolvimento	duma	evolução	que	vem</p><p>dos	cancioneiros	trovadorescos,	com	passagem	pelo</p><p>labor	dos	palacianos	do	Cancioneiro	de	Resende.</p><p>Assim	parece.	Certas	poesias	em	que	atuam	pastoras</p><p>parecem	reproduzir	algo	da	pastorela	primitiva.	Aquela</p><p>outra	da	moça	que	quer	ser	marinera parece estar</p><p>na	linha	das	cantigas	de	amigo	de	Martim	Codax,	por</p><p>exemplo.	(SALGADO	JÚNIOR,	2008,	p.	LXXXI).</p><p>As	formas	típicas	do	Renascimento	mais	importantes	presentes	na</p><p>lírica	de	Camões	são	o	soneto	e	o	verso	decassílabo,	que	com	ele	se</p><p>identificou	intimamente.	Ambos	são	invenções	da	poesia	italiana	dos</p><p>séculos	XIII	e	XIV	e,	já	presentes	na	obra	de	Dante	Alighieri	e	Francesco</p><p>Petrarca,	exemplos	máximos	da	época	do	Humanismo,	foram	adotados</p><p>fervorosamente	pelos	poetas	associados	ao	Renascimento.	Além	de</p><p>Camões,	 talvez	 baste	 lembrar	 que	William	 Shakespeare	 também</p><p>escreveu	sonetos,	sendo	autor	de	uma	série	de	154	deles;	quanto	ao</p><p>verso	decassílabo,	trazido	a	Portugal		por	Francisco	de	Sá	de	Miranda,</p><p>que	o	conheceu	numa	temporada	passada	na		Itália,	tornou-se	o	estímulo</p><p>inicial	para	o	estabelecimento	da	Renascença	nas	letras	lusitanas,	em</p><p>cujo	contexto	ficou	conhecido	como	a	“medida	nova”,	para	diferenciá-lo</p><p>da	“medida	velha”,	como	era	conhecida	a	redondilha,	identificada	pelos</p><p>novos	autores	com	a	Idade	Média.</p><p>Sendo,	seguramente,	a	mais	conhecida	das	partes	da	lírica,	os	sonetos</p><p>de	Camões,	ao	longo	dos	séculos,	foram	penetrando	na	consciência</p><p>letrada	e	mesmo	na	popular,	que	reconhecem	como	seus	e	dão	o	devido</p><p>valor	a	peças	como	“Amor	é	um	fogo	que	arde	sem	se	ver”,	“Sete	anos</p><p>de	pastor	Jacó	servia”,	“Transforma-se	o	amador	na	cousa	amada”,</p><p>“Manda-me	amor	que	cante	docemente”	e	tantos	outros.	Nestes	e	outros</p><p>sonetos,	Camões	mostra	seu	magistral	domínio	da	técnica	sonetística	e</p><p>Cancioneiro Geral</p><p>Coletânea	da</p><p>poesia portuguesa</p><p>da	época	do</p><p>Humanismo	e	do</p><p>Renascimento,</p><p>organizada	pelo</p><p>poeta	Garcia</p><p>de	Resende	e</p><p>publicada	em	1516.</p><p>UNIUBE 29</p><p>do	verso	decassílabo,	moldando-os	de	tal	forma	à		sua	visão	universalista</p><p>da	arte,	que		servem	de	apoio	para	o	desenvolvimento	dos	grandes</p><p>temas	da	poesia	de	todos	os	tempos.	Entre	eles,	podem	ser	citados	o</p><p>amor,	a	solidão,	o	exílio,	a	natureza	e	o	destino	humanos,	a	beleza	da</p><p>mulher	e	da	natureza,	além	do	próprio	fazer	poético.</p><p>Um	dos	mais	belos	exemplos	de	sonetos	de	Camões	é	o	de	primeiro</p><p>verso	“Um	mover	de	olhos,	brando	e	piedoso”,	que	passamos	agora	a</p><p>examinar.</p><p>Um	mover	de	olhos,	brando	e	piedoso,</p><p>Sem	ver	de	quê;	um	riso	brando	e	honesto,</p><p>Quase	forçado;	um	doce	e	humilde	gesto,</p><p>De	qualquer	alegria	duvidoso;</p><p>Um	despejo	quieto	e	vergonhoso;</p><p>Um	repouso	gravíssimo	e	modesto;</p><p>Uma	pura	bondade,	manifesto</p><p>Indício	da	alma,	limpo	e	gracioso;</p><p>Um	encolhido</p><p>ousar;	uma	brandura;</p><p>Um	medo	sem	ter	culpa;	um	ar	sereno;</p><p>Um	longo	e	obediente	sofrimento:</p><p>Esta	foi	a	celeste	formosura</p><p>Da	minha	Circe,	e	o	mágico	veneno</p><p>Que	pôde	transformar	meu	pensamento.</p><p>(Idem,	p.	301).</p><p>O	primeiro	aspecto	a	ser	considerado	na	análise	desse	soneto	é	o</p><p>tema,	que	o	liga	a	toda	a	grande	arte	renascentista.	A	razão	disso	é	o</p><p>fato	de	que	o		poema	é	integralmente	descritivo,	tendo	como	objeto	de</p><p>sua	atenção	uma	mulher.	Ele	se	torna,	assim,	um	retrato	de	mulher,</p><p>Gesto</p><p>Na	poesia	do</p><p>Humanismo	e	do</p><p>Renascimento,	a</p><p>palavra	significa</p><p>“rosto”,	“feições”.</p><p>Despejo</p><p>Ausência	de	pejo	ou</p><p>pudor</p><p>Circe</p><p>Na	mitologia	grega,</p><p>era	uma	feiticeira,</p><p>especialista	em</p><p>poções	mágicas;</p><p>na	Odisseia,</p><p>transformou</p><p>marinheiros	que</p><p>acompanhavam</p><p>Ulisses	em	porcos.</p><p>O	feitiço	só	foi</p><p>revertido	quando,</p><p>ajudado	pelo	deus</p><p>Hermes,	Ulisses</p><p>conseguiu	obrigá-la</p><p>a	libertá-los.</p><p>30 UNIUBE</p><p>que	é	uma	das	marcas	mais	evidentes	da	poesia	e	da	pintura	daquele</p><p>tempo.	Para	ficarmos	apenas	nas	artes	plásticas,	observe	que	algumas</p><p>das	obras	pictóricas	mais	significativas	da	Renascença	são	retratos	de</p><p>mulher,	a	começar	pela	mais	famosa	de	todos	os	tempos,	a	Mona	Lisa,	de</p><p>Leonardo.	Também	devem	ser	citadas	A dama do arminho, Ginevra Benci</p><p>e Beatriz d’Este,	todas	também	de	Leonardo;	Retrato de Maddalena Doni,</p><p>Retrato de Elisabetta Gonzaga e La Fornarina,	de	Rafael;	Retrato de uma</p><p>donzela e La bella Simonetta,	de	Botticelli.	Excetuando-se	as	referências</p><p>a	seus	olhos,	ao	rosto	e	ao	sorriso,	a	mulher	retratada	nas	palavras	de</p><p>Camões	aparece	principalmente	por	meio	de	suas	qualidades	morais</p><p>e	intelectuais.	Esse	procedimento	do	poeta	também	coloca	o	texto</p><p>em	diálogo	com	as	pinturas	citadas,	nas	quais	os	aspectos	físicos	das</p><p>retratadas	devem	ser	interpretados	também	no	sentido	simbólico,	já	que</p><p>elas	se	tornam	um	modelo	do	ideal	de	mulher	cultivado	naquele	tempo:</p><p>bela,	nobre,	justa,	racional,	serena,	equilibrada.	É	o	caso	de	o	leitor	se</p><p>lembrar	de	que	esse	é	o	mesmo	perfil	de	mulher	clássica	atribuído	à</p><p>Leonor	de	Sousa	Sepúlveda	e	Tétis	no	episódio	do	Gigante	Adamastor.</p><p>A	pintura	de	um	retrato,	seja	com	 tintas	ou	palavras,	parte	de	um</p><p>procedimento	básico:	a	observação	de	quem	se	deseja	retratar.	Essa</p><p>atitude,	fundamental	no	soneto	em	exame,	já	serve	também	para	revelar</p><p>um	elemento	constitutivo	da	poesia	lírica	camoniana,	se	bem	que	já</p><p>estava	presente	em	sua	epopeia	o	dom	da	observação.	Na	pena	de</p><p>Camões,	a	poesia	é	uma	atividade	nutrida	em	larga	escala	pelo	poder</p><p>de	observação,	tanto	das	pessoas,	seus	traços	físicos	e	atitudes,	mas</p><p>também	da	natureza,	da	cultura,	da	religião,	da	moral	e	de	todas	as</p><p>vicissitudes	que	acompanham	o	ser	humano	em	sua	passagem	pelo</p><p>mundo.	Nesse	poema,	todo	o	poder	de	observação	do	sujeito	poético	se</p><p>concentra	sobre	um	indivíduo	em	particular,	mas	saberá	destacar	nele</p><p>elementos	de	utilidade	universal.	Esse	diálogo	entre	o	individualismo	e</p><p>o	universalismo,	ou	seja,	entre	a	valorização	de	cada	ser	humano	como</p><p>um	mundo	particular,	entrelaçada	com	um	interesse	pelas	condições	que</p><p>se	apresentam	nas	vidas	de	todos	nós,	faz	parte	da	essência	da	visão</p><p>de	mundo	da	Renascença.</p><p>UNIUBE 31</p><p>É	preciso	que	o	leitor	se	atente	também	para	o	que	atrai	o	olhar	do	eu</p><p>lírico	em	primeiro	lugar.	Ao	compor	uma	descrição,	o	pintor	ou	o	poeta</p><p>precisam	escolher	um	ponto	de	partida,	ou	uma	direção	segundo	a	qual</p><p>ela	será	organizada;	pode	ser	de	cima	para	baixo,	ou	da	direita	para</p><p>a	esquerda,	ou	vice-versa.	No	caso	do	poema,	claramente	Camões</p><p>escolheu	partir	dos	aspectos	físicos,	passando	em	seguida	para	os</p><p>morais.	É	por	isso	que	aparecem	na	primeira	estrofe	alusões	aos	olhos,</p><p>ao	rosto	e	ao	sorriso	de	sua	musa.	A	primazia,	contudo,	é	dada	ao	olhar.</p><p>“Um	mover	de	olhos,	brando	e	piedoso”,	portanto,	começa	com	o	poeta</p><p>olhando	o	olhar	da	moça.	Assim	como	o	retrato	de	mulher,	o	olhar	é	um</p><p>dos	motivos	artísticos	mais	importantes	na	retratística	renascentista.	É</p><p>claro	que	todos	comentam	o	sorriso	da	Mona	Lisa,	mas	ele	só	assume</p><p>sua	força	de	mistério	e	ambiguidade	por	ser	acompanhado	por	um	olhar</p><p>que	tem	as	mesmas	características;	além	disso,	Leonardo	utilizou	uma</p><p>técnica	de	composição,	baseada	na	divisão	da	tela	em	áreas	de	mesma</p><p>extensão	geométrica,	que	resultou	na	posição	dos	olhos	da	mulher	numa</p><p>posição	ao	mesmo	tempo	elevada	e	central	na	pintura,	o	que	causa</p><p>sobre	o	espectador	a	sensação	de	que	ela	o	acompanha	quando	ele	se</p><p>movimenta.	Dessa	forma,	também	na	Mona	Lisa	o	olhar	da	mulher	se</p><p>torna	um	ponto	focal	de	atenção,	como	ocorre,	aliás,	com	todas	as	outras</p><p>pinturas	renascentistas	citadas	anteriormente	neste	capítulo.</p><p>O	olhar	da	mulher	retratada	no	soneto	de	Camões	é	movente	e	“sem</p><p>ver	de	que”,	ou	seja,	interessado	em	tudo	que	está	ao	seu	alcance,</p><p>sem	que	ela	o	lance	a	partir	de	noções	preconcebidas.	Dessa	forma,</p><p>ele	simboliza	a	vida	interna	da	personagem,	pois,	como	diz	a	cultura</p><p>popular,	“os	olhos		são	o	espelho	da	alma”,	isto	é,	se	os	olhos	dela	se</p><p>movem,	é	porque	sua	alma	se	move,	se	agita,	se	interessa	pelo	mundo</p><p>e	pelas	pessoas.	A	maneira	como	isso	é	feito,	entretanto,	também	chama</p><p>a	atenção,	pois	o	poeta	usa	dois	adjetivos	que	oferecem	ao	leitor	a	visão</p><p>de	alguém	cheio	de	experiências	humanas,	de	tal	forma	que	aprendeu	a</p><p>olhar	para	tudo	com	brandura,	ou	seja,	com	temperança,	com	equilíbrio	e</p><p>32 UNIUBE</p><p>também	com	piedade.	Já	de	início,	portanto,	a	musa	camoniana	é	descrita</p><p>em	termos	positivos,	mostrando	que	o	poeta	está	articulando	a	descrição</p><p>de	um	ser	ideal.</p><p>O	mesmo	 equilíbrio	 dado	 ao	 olhar	 é	 atribuído	 ao	 riso	 da	mulher,</p><p>o	 que,	 significativamente,	 é	 feito	 por	meio	 da	 seleção	 do	mesmo</p><p>adjetivo	“brando”.	Como	Camões	é	um	poeta	de	vastíssimos	recursos</p><p>vocabulares,	o	fato	de	repetir	uma	mesma	escolha	num	poema	tão	breve</p><p>quanto	um	soneto	não	pode	passar	despercebido	ao	leitor;	certamente,</p><p>trata-se	de	uma	questão	de	ênfase,	o	que	se	confirma	na	terceira	estrofe,</p><p>em	que	o	substantivo	“brandura”	aparece	para	apresentar	de	maneira</p><p>clara	essa	característica	essencial	da	retratada.	Além	disso,	o	riso</p><p>dela	mostra	sua	natureza	expansiva,	pois,	ao	contrário	do	sorriso,	que</p><p>é	apenas	uma	expressão	facial	muda,	o	riso	emite	sons,	marcando	a</p><p>presença	de	alguém	num	ambiente.	Como	se	vê,	assim	como	Tétis,	que</p><p>riu	das	ameaças	do	Adamastor,	também	a	moça	deste	poema	é	capaz</p><p>de	se	manifestar	no	mundo	com	bom	humor	e	expansividade,	o	que	só</p><p>reforça	o	seu	encanto.</p><p>Quanto	ao	seu	rosto,	é	descrito	de	maneira	a	dar	uma	definição	precisa,</p><p>se	bem	que	concisa,	de	sua	personalidade	como	um	todo.	Sendo</p><p>ao	mesmo	tempo	“doce	e	humilde”,	sintetiza	harmoniosamente	duas</p><p>qualidades	que,	no	nosso	mundo,	raramente	andam	juntas:	a	beleza	e	a</p><p>humildade.	Nós	nos	acostumamos	a	pensar	que,	quanto	mais	atraente</p><p>for	uma	pessoa,	menos	humilde	será;	não	é	assim	a	musa	do	soneto.</p><p>O	fundamento	desse	seu	proceder	pode	ser	encontrado	na	sequência</p><p>da	descrição	do	rosto,	pois	ele	é	apresentado	como	“de	qualquer	alegria</p><p>duvidoso”.	Nessas	poucas	palavras,	Camões	consegue	indicar	ao	leitor</p><p>a	sabedoria	que	acompanha	a	beleza	da	moça,	pois,	certamente,	o	que</p><p>está	dizendo	é	que	ela	já	aprendeu	a	duvidar	das	alegrias	humanas,	por</p><p>ver	que	elas	são	passageiras,	inconstantes.	Nesse	sentido,	o	soneto</p><p>dialoga	com	toda	a	poesia	camoniana,	na	qual	a	efemeridade	de	tudo	o</p><p>que	se	refere	ao	ser	humano	é	um	dos	temas	mais	presentes.</p><p>UNIUBE 33</p><p>Como	se	vê,	todas	as	referências	a	aspectos	físicos	da	mulher	nos	levam</p><p>a	perceber	características	interiores	dela,	pois	a	lírica	camoniana	não	se</p><p>interessa	por	mulheres	que	sejam	apenas	bonitas;	é	preciso	que	elas</p><p>sejam	também	profundamente	humanas,	em	termos	de	sensibilidade,</p><p>moralidade	e	inteligência,	para	atrair	o	olhar	do	sujeito	poético.</p><p>Esse	panorama	se	amplia	nas	próximas	estrofes,	dedicadas	a	descrever</p><p>o	comportamento	da	musa	no	mundo.	A	técnica	preferida	pelo	poeta</p><p>para	fazer	isso,	na	segunda	e	na	terceira	estrofes,	é	da	antítese,	que	lhe</p><p>permite	harmonizar	dados	contrários,	de	tal	modo	que</p>

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