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<p>Carlos Francisco de Morais</p><p>Alexandre Bonafim Felizardo</p><p>Renata de Oliveria Souza Carmo</p><p>Literatura portuguesa</p><p>Catalogação elaborada pelo Setor de Referência da Biblioteca Central Uniube</p><p>Morais, Carlos Francisco de.</p><p>M792l Literatura portuguesa / Carlos Francisco de Morais, Alexandre</p><p>Bonafim Felizardo, Renata de Oliveira Souza Carmo. – Uberaba:</p><p>Universidade de Uberaba, 2017.</p><p>256 p.</p><p>Programa de Educação a Distância – Universidade de Uberaba.</p><p>Inclui bibliografia</p><p>ISBN</p><p>1. Literatura portuguesa. 2. Poesia portuguesa. 3. Prosa portuguesa.</p><p>I. Felizardo, Alexandre Bonafim. II. Carmo, Renata de Oli-veira Souza. III.</p><p>Universidade de Uberaba. Programa de Educação a Distância. IV. Título.</p><p>CDD 869</p><p>© 2017 by Universidade de Uberaba</p><p>Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser</p><p>reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico</p><p>ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de</p><p>armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito,</p><p>da Universidade de Uberaba.</p><p>Universidade de Uberaba</p><p>Reitor</p><p>Marcelo Palmério</p><p>Pró-Reitor de Educação a Distância</p><p>Fernando César Marra e Silva</p><p>Coordenação de Graduação a Distância</p><p>Sílvia Denise dos Santos Bisinotto</p><p>Editoração e Arte</p><p>Produção de Materiais Didáticos-Uniube</p><p>Revisão textual</p><p>Erika Fabiana Mendes Salvador</p><p>Diagramação</p><p>Andrezza de Cássia Santos</p><p>Projeto da capa</p><p>Agência Experimental Portfólio</p><p>Edição</p><p>Universidade de Uberaba</p><p>Av. Nenê Sabino, 1801 – Bairro Universitário</p><p>Carlos Francisco de Morais</p><p>Doutor em Letras (Literatura Portuguesa), mestre em Letras (Literatura</p><p>Portuguesa) e bacharel e licenciado em Letras Português, pela Universidade</p><p>de São Paulo (USP). Professor Adjunto IV; professor dos cursos de Letras</p><p>(Português-Espanhol e Português-Inglês); professor permanente do</p><p>Programa de Mestrado Profissional de Letras da Universidade Federal do</p><p>Triângulo Mineiro (UFTM). Coordenador do Grupo de Pesquisa Literatura</p><p>em Diálogo.</p><p>Alexandre Bonafim Felizardo</p><p>Mestre em Estudos Literários, especialista em Fundamentos Críticos da</p><p>Literatura, pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”</p><p>(Unesp). Graduado em Letras pelo Centro Universitário Claretiano de</p><p>Batatais (Ceuclar). Tem experiência na área de letras, com ênfase em</p><p>literatura brasileira e literatura portuguesa. Professor de Literatura da</p><p>Universidade Estadual de Goiás (UEG).</p><p>Renata de Oliveira Souza Carmo</p><p>Especialista em Língua e Literatura Inglesa pela Universidade de Ribeirão</p><p>Preto (Unaerp). Licenciada em Letras Português-Inglês pela Universidade</p><p>de Uberaba (Uniube). Professora do curso de Letras Português-Inglês</p><p>da Universidade de Uberaba.</p><p>Sobre os autores</p><p>Sumário</p><p>Apresentação ......................................................................................VII</p><p>Capítulo 1 Panorama da poesia portuguesa .........................................1</p><p>1.1 A poesia de Luís de Camões ...................................................................................3</p><p>1.1.1 Camões épico: o diálogo com a tradição e a afirmação da modernidade .... 6</p><p>1.1.2 Camões lírico: uma enciclopédia da poesia ocidental ................................ 27</p><p>1.2 Panorama da poesia barroca ................................................................................36</p><p>1.3 Bocage, um poeta entre dois tempos ....................................................................39</p><p>1.4 Panorama da poesia romântica .............................................................................47</p><p>1.5 Cesário Verde e a poesia do olhar moderno .........................................................50</p><p>1.6 Panorama da poesia simbolista ............................................................................ 55</p><p>1.7 Mário de Sá-Carneiro: Orpheu entre o sonho e a revolução modernista .............61</p><p>1.8 José Régio e a poesia da Geração da presença .................................................. 66</p><p>1.9 Tendências do pós-guerra .....................................................................................70</p><p>1.10 Conclusão ............................................................................................................78</p><p>Capítulo 2 A poesia de Fernando Pessoa ...........................................83</p><p>2.1 Considerações iniciais ...........................................................................................84</p><p>2.2 Um eu que se fez inúmeros eus ............................................................................89</p><p>2.3 Pessoa ninguém? .................................................................................................. 92</p><p>2.4 Alberto Caeiro: o guardador de rebanhos ............................................................. 95</p><p>2.5 Ricardo Reis: um pagão em tempos modernos ..................................................104</p><p>2.6 Álvaro de Campos: o poeta cosmopolita da vida moderna ................................ 115</p><p>2.7 Fernando Pessoa ortônimo é ele mesmo? .........................................................124</p><p>2.8 Conclusão ............................................................................................................131</p><p>Capítulo 3 Eça de Queirós e os novos rumos da literatura portuguesa .....133</p><p>3.1 O Realismo em Portugal: um pouco de história ..................................................134</p><p>3.2 Ecos de mudança ................................................................................................136</p><p>3.3 Uma ilustre obra ...................................................................................................137</p><p>3.4 Singularidades de um conto ................................................................................146</p><p>Capítulo 4 A prosa portuguesa modernista e contemporânea ..........185</p><p>4.1 Panorama da prosa portuguesa no século XX ...................................................186</p><p>4.2 José Régio e o romance psicológico da “Geração da presença” .......................187</p><p>4.3 O Neorrealismo: literatura e ideologia .................................................................192</p><p>4.3.1 Alves Redol e a literatura como documento social ....................................194</p><p>4.3.2 Os romances neorrealistas de Fernando Namora ....................................197</p><p>4.3.3 Carlos de Oliveira e a análise psicossocial da realidade ..........................202</p><p>4.4 Agustina Bessa-Luís: a emergência da autoria feminina ....................................206</p><p>4.5 O romance filosófico de Vergílio Ferreira ............................................................212</p><p>4.6 Novas tendências ficcionais: anos 1960-1990 ....................................................220</p><p>4.7 José Saramago, romancista de Portugal e do mundo ........................................231</p><p>4.8 Conclusão ............................................................................................................244</p><p>Prezado(a) aluno(a),</p><p>Este é o livro de Literatura Portuguesa. Trata-se de uma literatura que</p><p>conta com nove séculos de existência, pois teve início no século XII, ou</p><p>seja, em plena Idade Média, e cuja importância para nós, brasileiros,</p><p>é indiscutível, não só pelas ligações existentes no passado, não só</p><p>pela língua comum, mas porque seu conhecimento é indispensável</p><p>para a compreensão de nossa própria literatura. Ora, num único livro</p><p>jamais se poderia pretender apresentar uma produção literária tão</p><p>rica e diversificada como a portuguesa, de modo completo. A única</p><p>alternativa era optar por uma visão panorâmica da poesia e da prosa</p><p>e, desta, apenas a produção mais recente. Para não ficar só nessa</p><p>visão panorâmica, optou-se também por escolher um representante de</p><p>cada um desses gêneros para um estudo um pouco mais aprofundado.</p><p>Isto explica a organização que se deu ao volume: compõe-se de quatro</p><p>capítulos: 1 – Panorama da poesia portuguesa; 2 – A poesia de</p><p>Fernando Pessoa; 3</p><p>o retrato que se</p><p>vai completando é o de alguém perfeitamente equilibrado.</p><p>Na segunda estrofe, harmoniza-se o despejo e a vergonha, sinalizando</p><p>que ela sabe quando agir sem timidez e também quando manter o</p><p>recato, traços essenciais para uma dama nas cortes renascentistas. Ao</p><p>se referir ao repouso que vê nela, ou seja, à serenidade que marca suas</p><p>atitudes, Camões selecionou dois adjetivos, “gravíssimo e modesto”;</p><p>observe que eles não se opõem quanto ao sentido, já que gravidade</p><p>e modéstia habitam o mesmo campo semântico, mas, em termos de</p><p>classificação dos graus do adjetivo, não poderiam estar mais distantes.</p><p>“Gravíssimo” está no Superlativo Absoluto Sintético, o grau máximo dos</p><p>adjetivos, usado para atribuir aos seres qualidades que eles tenham num</p><p>nível muito elevado; “modesto”, ao contrário, está no grau normal, que</p><p>indica uma característica sem lhe atribuir intensidade. O resultado disso</p><p>é mostrar como a serenidade da mulher é equilibrada, sendo intensa,</p><p>mas demonstrada de maneira normal, sem exageros que conotassem</p><p>vaidade.</p><p>Na terceira estrofe, volta a mescla de ousadia e recato: “Um encolhido</p><p>ousar”, o que, mais uma vez mostrando a equanimidade da retratada, leva</p><p>o poeta a dar a ela sua marca essencial, a “brandura”. Essa capacidade ideal</p><p>que ela demonstra de colocar em equilíbrio todas as características encontra</p><p>uma expressão perfeita no paradoxal fato de ela nutrir um “medo sem ter</p><p>34 UNIUBE</p><p>culpa”, que só se resolverá se percebermos que o poeta está dizendo que</p><p>ela, antecipadamente, receia ofender as pessoas e, por isso, age de modo</p><p>a não deixar que isso aconteça. Entendido assim, o “medo sem ter culpa”</p><p>será, simplesmente, o cuidado que a musa camoniana coloca em todas as</p><p>suas relações com as outras pessoas.</p><p>Como a moça do retrato aprendeu a ser assim? Terá ela já nascido tão</p><p>perfeita? A mesma terceira estrofe, em seu verso final, traz a informação</p><p>que desfaz esse mistério: “Um longo e obediente sofrimento”. A partir</p><p>desse verso, o leitor pode avaliar que as qualidades tão positivas</p><p>dessa mulher foram desenvolvidas ao longo do tempo, por meio das</p><p>experiências e do sofrimento. É por isso que a primeira informação que</p><p>recebemos no poema é a de que seus olhos se movem: ela não é uma</p><p>estátua colocada num pedestal, dentro de um museu; é uma pessoa viva,</p><p>que sofre e aprende com o sofrimento, pois o aprendizado é a lição que o</p><p>sofrer nos dá e que precisamos obedecer. Portanto a musa não nasceu</p><p>equilibrada por uma intervenção divina; ela se equilibrou ao longo da vida,</p><p>atingindo agora, no momento em que o poeta a observa, a serenidade</p><p>modelar que ele nos apresenta.</p><p>É essa a conclusão que se pode tirar do terceto final do poema, em que,</p><p>por meio do pronome demonstrativo “Esta”, o eu lírico resume todas as</p><p>características equilibradas da moça e as apresenta como a formosura</p><p>celestial que existe nela e que foi capaz de transformar o pensamento</p><p>dele, ou seja, de o fazer se encantar por ela. É por isso que o texto se</p><p>vale de mais uma referência ao mundo clássico, ao chamá-la de Circe, ou</p><p>seja, ao mostrar que ela tem, como a feiticeira da mitologia e da epopeia,</p><p>o dom de transformar quem se aproxima dela. A vantagem do poeta é que</p><p>ela o transformou num apaixonado, como indica o pronome possessivo de</p><p>primeira pessoa usado por ele, “minha”, e não em um porco.</p><p>UNIUBE 35</p><p>Vivaz, branda, risonha, bela, sensata, despejada, recatada, serena,</p><p>grave, modesta, bondosa, limpa, graciosa, tímida e ousada, cuidadosa,</p><p>inteligente, encantadora. A leitura deste soneto nos faz pensar em</p><p>dezoito adjetivos perfeitamente aplicáveis à mulher de quem ele fala.</p><p>A soma deles é inevitável: trata-se de uma pessoa perfeita. A base de</p><p>sua perfeição, contudo, é o aprendizado, feito longamente durante a</p><p>vida. Torna-se, então, necessário que o leitor perceba que esse poema</p><p>não é apenas um retrato de mulher, mas também uma receita de</p><p>mulher. Quem o observar com sabedoria poderá usá-lo como modelo</p><p>de comportamento no mundo, aprendendo com ela a se equilibrar em</p><p>todas as circunstâncias. Assim, um texto que, inicialmente, parecia</p><p>assumir apenas uma dimensão pictórica, descrevendo a figura de uma</p><p>bela mulher, revela-se como um exemplo de literatura filosófica, pois tudo</p><p>que há nele o torna um pequeno tratado de Ética, o ramo da Filosofia que</p><p>trata dos comportamentos humanos.</p><p>A “celeste formosura” a que se refere o poema, então, não é a beleza</p><p>física da mulher observada, mas seu equilíbrio. Este, então, domina todo</p><p>o campo de conteúdo do texto, mas, como a demonstrar o classicismo</p><p>da lírica de Camões, está presente também em toda a forma do poema.</p><p>Desde a Grécia clássica, chegou ao Renascimento a lição de que o</p><p>conteúdo de uma obra de arte precisa encontrar uma forma adequada</p><p>para se manifestar. “Um mover de olhos, brando e piedoso”, realiza</p><p>esse ideal no grau mais elevado de perfeição, porque retrata um ser</p><p>equilibrado sendo ele mesmo um texto completamente equilibrado. É o</p><p>que se vê na escolha de uma forma fixa como o soneto, que não permite</p><p>ao escritor excessos ou lacunas: tem de ter catorze versos, nem um a</p><p>mais ou a menos.</p><p>O mesmo pode ser dito da seleção de um verso, o decassílabo, que</p><p>se mantém o mesmo no poema inteiro, fale das feições ou do caráter</p><p>da musa. O esquema de rimas, neste caso, abbaabbacdecde, também</p><p>impõe aos versos a mesma disciplina que a moça demonstra em sua</p><p>36 UNIUBE</p><p>vida, pois, seguindo o exemplo dela, sabe se adaptar às mudanças</p><p>exigidas: ao passar dos quartetos para os tercetos, ou seja, das estrofes</p><p>que traçam com largas pinceladas o perfil da mulher para as que</p><p>sintetizam seu significado, as rimas se tornam outras.</p><p>A pontuação também é equilibrada, pois nela não se encontram alterações</p><p>no tom do sujeito poético, que organiza o poema inteiro como uma única</p><p>frase declarativa, como indica o único ponto final que o encerra; assim,</p><p>não há espaço para pontos de exclamação ou de interrogação, que,</p><p>ao expressar, alternadamente, momentos de exaltação ou de dúvida,</p><p>quebrariam a serenidade da linguagem do texto. Neste soneto, como</p><p>é a regra geral da literatura de Luís de Camões, conteúdo e forma</p><p>se irmanam para alcançar o mesmo objetivo: a construção de um</p><p>objeto de beleza e sabedoria, feito de palavras e estruturas poéticas</p><p>cuidadosamente escolhidas.</p><p>Todos os sonetos de Luís de Camões estão disponíveis para leitura no site</p><p>Jornal de Poesia, que contém a obra completa de muitos poetas portugueses,</p><p>brasileiros e africanos. O link para os sonetos camonianos é este:</p><p>http://www.jornaldepoesia.jor.br/camoes78.html</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>Panorama da poesia barroca1.2</p><p>No estudo da literatura portuguesa, convencionou-se chamar de Barroco</p><p>o período subsequente a 1580, ano da morte de Luís de Camões e da</p><p>perda da autonomia política de Portugal, em função da crise dinástica</p><p>havida por causa da morte do rei D. Sebastião, que não deixara herdeiros</p><p>diretos.</p><p>No contexto barroco, havia duas formas principais de circulação da</p><p>produção lírica: os serões do Paço e as antologias.</p><p>UNIUBE 37</p><p>Os serões do Paço eram as reuniões noturnas realizadas no palácio real</p><p>ou outras residências da nobreza da época. Como tal, eram a principal</p><p>forma de entretenimento das classes altas, oferecendo aos literatos a</p><p>oportunidade de apresentar, de viva voz, os seus textos diante de um</p><p>público seleto.</p><p>O ambiente palaciano exercia considerável influência sobre a escrita da poesia</p><p>barroca, pois estimulava os autores a competir pela atenção dos diletantes, entre</p><p>eles as mais famosas damas da época. Dessa forma, não se estranha que</p><p>tenham surgido nesse momento histórico estilos poéticos que se destacavam</p><p>pela depuração das formas e pela agudeza dos pensamentos expressos por</p><p>meio das mais requintadas figuras de linguagem.</p><p>Outra grande influência sobre a poesia barroca portuguesa vinha do</p><p>escritor espanhol Luís de Góngora (1561-1627), grande nome do</p><p>chamado Século de Ouro, nome dado ao auge da cultura espanhola,</p><p>entre os séculos XVI e XVII. Góngora desenvolveu um estilo marcado</p><p>pela sofisticação dos raciocínios e da linguagem, explorando tanto a</p><p>sonoridade das palavras como os jogos sintáticos. Seu refinamento</p><p>imagístico, com inúmeras alusões a cores, sons e sensações táteis,</p><p>definiu o procedimento estilístico que viria a ser chamado de gongorismo</p><p>ou cultismo, em que predominava o culto da expressão perfeita.</p><p>A importância do ambiente palaciano e da poesia de Góngora se refletiu</p><p>no caráter lúdico da lírica barroca portuguesa, entendida em seu tempo</p><p>como entretenimento. As marcas mais visíveis desse espírito são os</p><p>malabarismos verbais, na sintaxe e nas figuras de linguagens, o apuro</p><p>das rimas e da versificação, os jogos de contrastes, o gosto pelo</p><p>claro-escuro, a preferência por temas da vida cortesã (luxos, festas,</p><p>torneios esportivos, a beleza das mulheres).</p><p>O registro impresso da produção poética do Barroco português foi feito,</p><p>ao longo do século XVIII, por duas antologias: A Fénix Renascida e O</p><p>Postilhão de Apolo.</p><p>38 UNIUBE</p><p>A Fénix Renascida ou Obras Poéticas dos Melhores Engenhos</p><p>Portugueses, como era o seu título completo, foi publicada em cinco</p><p>volumes, surgidos entre os anos de 1716 e 1728. De maneira geral,</p><p>os poemas selecionados para ela são marcados pela influência da</p><p>poesia lírica e épica de Camões, pelo apego às agudezas de estilo e</p><p>pensamento da herança gongórica e pela variedade de temas. Há textos</p><p>amorosos, épicos, mitológicos, satíricos e religiosos.</p><p>O Postilhão de Apolo, cujo título completo não reproduzimos aqui</p><p>por ser formado por sessenta e duas palavras (excesso que já é uma</p><p>confissão de seu barroquismo), teve dois volumes impressos, em 1761</p><p>e 1762. Metade dos 140 poemas reunidos nessas edições já havia sido</p><p>publicada na Fénix Renascida.</p><p>Os principais autores constantes da Fénix e do Postilhão foram Jerónimo</p><p>Baía, Sóror Violante do Céu, António Barbosa Bacelar e Eusébio de</p><p>Matos. Fora dessas duas antologias, merecem destaque também na</p><p>poesia barroco os nomes de D. Francisco Manuel de Melo e Francisco</p><p>Rodrigues Lobo.</p><p>Você pode ler excertos de “Lampadário de cristal”, de Jerónimo Baía, que</p><p>é considerado o mais fiel exemplo da poesia publicada nas antologias</p><p>barrocas, neste endereço:</p><p>http://www.nicoladavid.com/literatura/jernimo-baa/lampadrio-de-cristal.</p><p>O poema toma como tema um luxuoso lustre presenteado por uma nobre</p><p>italiana, a Duquesa de Saboia, à sua irmã, que era a Rainha de Portugal.</p><p>Ele não aparece na íntegra no endereço citado, pois tem mais de trinta</p><p>páginas de extensão.</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>UNIUBE 39</p><p>Bocage, um poeta entre dois tempos1.3</p><p>A lição clássica da poesia lírica de Luís de Camões reverberou para muito</p><p>longe de sua época de vida. O interesse pela cultura da antiguidade</p><p>greco-latina e o diálogo com a herança trovadoresca e petrarquista que o</p><p>grande bardo cultivou se tornaram exemplos para várias outras gerações,</p><p>sendo visíveis na obra de outro grande sonetista, Manuel Maria Barbosa</p><p>du Bocage (1765-1805).</p><p>A literatura portuguesa do século XVIII foi marcada pelo influxo das novas</p><p>ideias iluministas, que, a partir da França, espalharam-se por todas os</p><p>meios culturais europeus. Da grande geração dos intelectuais que criaram</p><p>a Enciclopédia francesa, primeira grande tentativa moderna de organizar</p><p>e sistematizar todo o conhecimento já obtido sobre o mundo, emanaram</p><p>ideias e propostas racionalistas de reorganização da ciência, da política,</p><p>da economia, da educação, do próprio Estado. O princípio para isso era</p><p>aquele que estava no cerne do Iluminismo: o culto da ciência, da razão</p><p>e do progresso.</p><p>A primeira enciclopédia moderna foi a Encyclopédie, editada com 28</p><p>volumes, 71.818 artigos, e 2.885 ilustrações, por Jean le Rond d’Alembert</p><p>e Denis Diderot, a partir de 1772. Também colaboraram com ela filósofos</p><p>importantes como Jean-Jacques Rousseau, Voltaire e Montesquieu.</p><p>AMPLIANDO O CONHECIMENTO</p><p>Em Portugal, a época do Iluminismo coincide com o governo progressista</p><p>do Marquês de Pombal, que, como primeiro-ministro, promoveu o início</p><p>da laicização da educação, a modernização da Universidade de Coimbra</p><p>e a reurbanização da cidade de Lisboa, depois que a maior parte dela foi</p><p>destruída pelo terremoto acontecido em 1755. A efervescência cultural</p><p>desse período se traduziu na escola literária conhecida como Arcadismo,</p><p>cujo nome deriva da antiga região pastoril grega e da Arcádia Lusitana</p><p>40 UNIUBE</p><p>(fundada em 1765), uma academia literária que incorporava tanto as</p><p>ideias iluministas quanto a valorização do passado clássico, como</p><p>registra Massaud Moisés:</p><p>Tendo por norte a divisa inutilia truncat, desejam</p><p>testemunhar o repúdio às “coisas inúteis” que adornavam</p><p>pesadamente a poesia barroca. E julgando que esta</p><p>tendência estética correspondera ao desequilíbrio e</p><p>à decadência dos valores clássicos, propõem-se a</p><p>restaurar a supremacia da autêntica poesia clássica.</p><p>Para consegui-lo, empreendem uma viagem no</p><p>passado mais remoto, em busca das fontes originárias</p><p>do Classicismo. Desprezando o Barroco, detém-se no</p><p>século XVI e dele aceitam o pastoralismo e a poesia</p><p>camoniana, visto coincidirem com o ideal que eles,</p><p>os árcades, pretendem realizar. Saltando por sobre</p><p>os séculos medievais, que a seu ver tinham lançado</p><p>no esquecimento a literatura clássica, chegam</p><p>à Antiguidade greco-latina, fim da viagem: na ideal,</p><p>mitológica Arcádia, região grega de pastores e poetas</p><p>vivendo em meio a uma Natureza sempre idílica,</p><p>localizam os seus anseios de plenitude poética.</p><p>(MOISÉS, 2008, p. 145).</p><p>Entre os poetas que aderiram às propostas da Arcádia Lusitana e de sua</p><p>sucessora, a Nova Arcádia (fundada em 1790), num contexto de prestígio</p><p>do Iluminismo e de retomada do quadro de referências clássicas, tal como</p><p>o descreve Moisés, estavam alguns nomes de real valor literário, como</p><p>Nicolau Tolentino, Filinto Elísio e a Marquesa de Alorna, mas Manuel du</p><p>Bocage foi o que criou a obra de maior impacto sobre a posteridade.</p><p>A obra poética de Bocage é bastante variada, pois ele foi autor de</p><p>anedotas picantes, poesia pornográfica, satírica e lírica. Esta última</p><p>se manifestou nas vertentes elegíaca, bucólica e amorosa. Em termos</p><p>formais, escreveu odes, canções, idílios, epigramas, cantatas, elegias,</p><p>epístolas, cançonetas e, principalmente, sonetos, sendo considerado, ao</p><p>lado de Camões e de Antero de Quental, poeta do Realismo, um dos três</p><p>maiores sonetistas da língua portuguesa.</p><p>Inutiliza truncat</p><p>Cortem-se os</p><p>excessos.</p><p>Pastoralismo</p><p>Utilização da vida</p><p>de pastores como</p><p>tema poético.</p><p>UNIUBE 41</p><p>A obra sonetística de Bocage testemunha não só seu talento como</p><p>versejador, mas a complexidade da relação do autor com a cultura de seu</p><p>tempo. Isso se dá pelo fato de que, a rigor, se pode considerar que sua</p><p>lírica tem duas faces, uma ligada de maneira mais estreita ao Arcadismo</p><p>e outra que já dá sinais do Romantismo, que logo revolucionará a cultura</p><p>ocidental.</p><p>O poema a seguir apresenta de maneira clara a faceta árcade da lírica</p><p>bocageana:</p><p>Marília, nos teus olhos buliçosos</p><p>Os Amores gentis seu facho acendem;</p><p>A teus lábios voando os ares fendem</p><p>Terníssimos desejos sequiosos:</p><p>Teus cabelos sutis e luminosos</p><p>Mil vistas cegam, mil vontades prendem:</p><p>E em arte de Minerva se não rendem</p><p>Teus alvos curtos dedos melindrosos:</p><p>Resiste em teus costumes a candura,</p><p>Mora a firmeza no teu peito amante,</p><p>A razão com teus risos se mistura:</p><p>És dos céus o composto mais brilhante;</p><p>Deram-se as mãos Virtude e Formosura</p><p>Para criar tua alma e teu semblante. (BOCAGE, 1994, p. 3).</p><p>A escolha do soneto como forma já liga o poema à grande tradição lírica</p><p>de Dante Alighieri, Francesco Petrarca e Luís de Camões, que diversas</p><p>vezes se valeram de sua estrutura concisa para traçar um retrato físico</p><p>e espiritual de suas musas, consideradas como exemplos de perfeição</p><p>feminina e humana. É no contexto dos sonetos de Dante inspirados em</p><p>Buliçosos</p><p>Agitados, em</p><p>movimento.</p><p>Sequiosos</p><p>Sedentos.</p><p>Minerva</p><p>Na mitologia</p><p>latina, era a deusa</p><p>da sabedoria,</p><p>do comércio e</p><p>das artes; é este</p><p>último aspecto o</p><p>destacado pelo</p><p>poeta.</p><p>Melindrosos</p><p>Habilidosos,</p><p>talentosos.</p><p>Candura</p><p>Pureza.</p><p>42 UNIUBE</p><p>Beatriz, nos de Petrarca dirigidos à Laura e nos de Camões dedicados</p><p>à Dinamene que este de Bocage também se instala, mostrando que</p><p>sua base inicial de composição é o princípio da mimese, tal como o</p><p>Renascimento a interpretava, ou seja, como a imitação dos modelos do</p><p>passado, não no sentido da cópia de suas obras, mas do aprendizado</p><p>de sua técnica.</p><p>O nome pelo qual é identificada a mulher a quem o sujeito poético se</p><p>dirige no primeiro verso, “Marília”, já tinha, na época do Arcadismo,</p><p>uma longa tradição na poesia bucólica humanista e renascentista, na</p><p>qual se juntava a outros como Nise, Natércia e Belisa para identificar</p><p>poeticamente as belas pastoras pelas quais se apaixonava o sujeito</p><p>poético, também ele disfarçado sob a máscara de um pastor. Esse</p><p>procedimento o leitor brasileiro já reconhece a partir da poesia árcade</p><p>de Tomás António Gonzaga, autor das famosas “Liras” que Dirceu</p><p>endereçava a uma musa também chamada Marília.</p><p>O bucolismo associado tradicionalmente ao nome “Marília” é confirmado</p><p>pela ambientação do poema, feita ao ar livre, como indica o movimento</p><p>dos desejos, que atravessam os ares para buscar os lábios da moça,</p><p>assim como os Amores já haviam buscado seus olhos. A partir desses</p><p>dois elementos de natureza narrativa, o soneto passa a revelar sua</p><p>verdadeira essência, que é descritiva, pois também Bocage cultivou o</p><p>tema do retrato de mulher em sua lírica.</p><p>As duas primeiras estrofes são dedicadas, fundamentalmente, a descrever</p><p>a beleza física de Marília. Nelas, seus olhos são o foco de atenção de</p><p>Cupido, pois os Amores são, na mitologia greco-latina, uma de suas</p><p>formas de manifestação. Pela luz que emanam, os olhos de Marília,</p><p>ao ver do sujeito poético, são capazes de oferecer iluminação mesmo</p><p>a seres sobre-humanos, o que já indica a idealização que será feita da</p><p>mulher no texto. O mesmo pode ser dito de seus lábios, cabelos e mãos,</p><p>que também sempre são descritos em termos de superioridade, seja em</p><p>beleza ou talento.</p><p>UNIUBE 43</p><p>A terceira estrofe mostra as qualidades interiores de Marília: sua pureza,</p><p>fidelidade no amor, racionalidade e alegria. O leitor atento já percebeu</p><p>que a musa de Bocage tem os mesmos atributos que Leonor de Sousa</p><p>Sepúlveda, Tétis e a musa sem nome de “Um mover de olhos, brando</p><p>e piedoso”...</p><p>Na quarta estrofe vem o fecho de ouro, ou seja, a explicação definitiva</p><p>da superioridade de Marília em relação a todas as outras mulheres, dado</p><p>que ela é o resultado da união entre as qualidades morais e físicas,</p><p>personalizadas na “Virtude e Formosura” de que fala o penúltimo verso,</p><p>como se elas fossem as divindades que, presidindo ao nascimento da</p><p>moça, a abençoaram com todos esses predicados admiráveis.</p><p>Esse rápido passeio pelo nível semântico do poema serve para colocar</p><p>em relevo os procedimentos árcades de Bocage. O uso do pseudônimo, a</p><p>localização das personagens no espaço aberto da natureza, a referência</p><p>a seres da mitologia clássica e o elogio da musa como exemplo de</p><p>equilíbrio entre aspectos opostos da natureza humana o colocam numa</p><p>linha direta de descendência em relação a Dante, Petrarca e Camões.</p><p>Em relação a este último, não é exagero afirmar que este soneto de</p><p>Bocage mimetiza de maneira rigorosa “Um mover de olhos, brando e</p><p>piedoso”, pois não lhe falta nem a referência inicial ao movimento dos</p><p>olhos da mulher, representativo da riqueza de sua vida interior e seu</p><p>interesse pelo mundo e por uma existência em sociedade.</p><p>Para se aquilatar, entretanto, o grau de pertencimento do soneto</p><p>bocagiano à visão de mundo neoclássica, iluminista, que o Arcadismo</p><p>privilegiava, é preciso observar quantas referências à luz ele contém,</p><p>de maneira direta ou indireta. Assim é que o facho dos Amores, a</p><p>luminosidade do cabelo de Marília, capazes de cegar “mil vistas”, a</p><p>brancura de seus dedos, a candura, ou seja, a alvura de seus modos</p><p>de agir, o brilho com que ela é vista nos céus, que já são eles mesmos</p><p>a morada de incontáveis pontos de luz, são todos índices simbólicos da</p><p>44 UNIUBE</p><p>racionalidade que o poeta nela identifica. Essa presença metafórica da</p><p>razão no poema dá a base para a construção do caráter equilibrado da</p><p>musa, tal como já acontecera no poema de Camões com o qual mantém</p><p>relações de intertextualidade, mas isso não é tudo: é necessário ver que</p><p>ela se manifesta no próprio corpo do poema, cuja forma é totalmente</p><p>racional. É o que se conclui, novamente, ao se ver que se trata de um</p><p>soneto organizado rigorosamente dentro dos modelos tradicionais, com</p><p>o verso decassílabo, o esquema de rimas interpoladas nos quartetos e</p><p>alternadas nos tercetos, exatamente como no exemplo camoniano.</p><p>Os procedimentos acima descritos se repetem em alguns dos mais belos</p><p>e famosos poemas de Bocage, como “Ó tranças de que Amor prisões me</p><p>tece” e “Olha, Marília, as flautas dos pastores”.</p><p>Todo este panorama se altera em outros sonetos, como “Minh’alma quer</p><p>lutar com meu tormento”, “Ânsias terríveis, íntimos tormentos” ou “Meu</p><p>ser evaporei na lida insana”, dando até ao leitor a impressão de que o</p><p>Bocage lírico não é um poeta só, mas dois, tamanhas são as diferenças.</p><p>É o que se vê, por exemplo, num soneto como este:</p><p>Sobre estas duras, cavernosas fragas,</p><p>Que o marinho furor vai carcomendo,</p><p>Me estão negras paixões na alma fervendo</p><p>Como fervem no pego as crespas vagas.</p><p>Razão feroz, o coração me indagas,</p><p>De meus erros a sombra esclarecendo,</p><p>E vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo</p><p>De agudas ânsias venenosas chagas.</p><p>Cego a meus males, surdo a teu reclamo,</p><p>Mil objetos de horror co´a idéia eu corro,</p><p>Solto gemidos, lágrimas derramo.</p><p>Fragas</p><p>Penhascos.</p><p>Pego</p><p>O mar.</p><p>Vagas</p><p>As ondas.</p><p>UNIUBE 45</p><p>Razão, de que me serve o teu socorro?</p><p>Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;</p><p>Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro.</p><p>(BOCAGE, 1994, p. 33).</p><p>O primeiro aspecto a considerar é o desaparecimento da luz dos campos</p><p>lexical e semântico do poema. Ao contrário do soneto anterior, o que se</p><p>apresenta neste é a escuridão, manifestada direta e indiretamente nas</p><p>cavernas associadas aos penhascos de que fala o primeiro verso, na</p><p>negrura das paixões que acometem o eu lírico, na sombra e na cegueira</p><p>em que os erros e os males o colocam.</p><p>Todos esses índices de escuridão na natureza e no mundo interior</p><p>do sujeito poético são emanações de sua situação básica na vida: a</p><p>irracionalidade de suas ações no domínio amoroso. Assim como falta</p><p>no poema a luz, falta mais ainda Marília: observe que se fala nele do</p><p>amor, mas não de quem o inspirou, porque, no momento de elocução</p><p>representado pelos versos, o estado do eu é de solidão.</p><p>Sem musa, sem amor, sem luz, sem razão; vivendo assim, o eu lírico</p><p>experimenta a própria natureza como sua inimiga, pois aqui ela não</p><p>o acolhe tão confortavelmente como no poema anterior, mostrando a</p><p>passagem do locus amoenus (lugar ameno) típico do Arcadismo para</p><p>o locus horrendus (lugar horrendo) de que falará o Romantismo, que</p><p>entenderá o mundo essencialmente como um lugar de sofrimento para</p><p>o ser humano.</p><p>Ausente Marília, “Sobre estas duras, cavernosas fragas” apresenta ainda</p><p>um diálogo, mas com a Razão, vista como uma entidade superior, capaz</p><p>de enxergar a interioridade do eu lírico, o que lhe permite revelar a ele</p><p>mesmo seus erros, seus desejos e suas dores. Dessa forma, o poema se</p><p>converte também numa espécie de espelho, na qual o eu pode se ver e</p><p>se conhecer. Entretanto ele se recusa a escutar a voz da Razão e a ver</p><p>o que ela lhe mostra.</p><p>46 UNIUBE</p><p>É por isso que ele teme, sofre, chora, lamenta, geme e até pensa em</p><p>morrer – e é por isso que este soneto e outros semelhantes a ele,</p><p>como os citados há pouco, convertem-se numa novidade no quadro do</p><p>Arcadismo português: a cada verso, a cada estrofe, exteriorizam uma</p><p>confissão sentimental inaceitável para o pensamento</p><p>neoclássico, que</p><p>buscava a harmonia e a racionalização de todos os aspectos da vida,</p><p>inclusive os sentimentais.</p><p>No quadro da recepção crítica da obra de Bocage, há estudiosos que</p><p>tentam explicar a mudança de enfoque representada por poemas assim a</p><p>partir da biografia do poeta, observando seus muitos problemas de dinheiro,</p><p>de inimizades e amorosos, entre os quais se destaca a maior das muitas</p><p>frustrações: a de ver sua amada Gertrudes, musa a quem imortalizou em</p><p>poesia sob o pseudônimo de Gertrúria, casar-se com seu próprio irmão.</p><p>Entretanto será sempre mais seguro ir buscar, no espírito cambiante da</p><p>época em que Manuel du Bocage viveu, leu e escreveu, as raízes para as</p><p>transformações operadas em sua literatura. É o que faz Francisco Ribeiro</p><p>da Silva, da Universidade do Porto, em seu ensaio “A propósito de Bocage”,</p><p>com o qual abriu o colóquio Colóquio Internacional Leituras de Bocage</p><p>(séculos XVIII-XXI), realizado naquela instituição em 2005:</p><p>a época em que Bocage viveu foi tempo de confrontação</p><p>e de contradição entre um mundo velho, marcado</p><p>pelo autoritarismo político e cultural, pela intolerância</p><p>religiosa, pela inquisição, pela teocracia, pelo</p><p>cesaropapismo, pela submissão e um mundo novo</p><p>que se queria dirigido para e pela Liberdade, pelo livre</p><p>pensamento, pela livre criação, pelo progresso, pela fé</p><p>nas capacidades do homem. Bocage sofreu ele próprio</p><p>as contradições da época, visto que foi expulso da Nova</p><p>Arcádia por ter posto a descoberto a mediocridade de</p><p>alguns académicos e foi preso no Limoeiro às ordens</p><p>de Pina Manique pela sua iconoclastia irreverente e</p><p>anticlericalismo mordaz, muito embora se tenha</p><p>reconciliado com os princípios religiosos que aprendera</p><p>em menino e nunca tenha sido um adepto incondicional</p><p>da Revolução Francesa.</p><p>UNIUBE 47</p><p>A contradição não foi por ele experimentada apenas</p><p>no tocante aos sentimentos e às opções morais,</p><p>religiosas e filosóficas. Também ao nível dos cânones</p><p>literários e estéticos teve que saber fazer a ponte</p><p>entre o classicismo de Camões que ele idolatrava e o</p><p>romantismo individualista, solitário e sofrido que vinha</p><p>lançando raízes. (SILVA, 2006, p. 11).</p><p>A virtude dessas palavras de Francisco Ribeiro da Silva é a de colocar</p><p>em relevo o quanto a obra lírica de Bocage pode ser vista e lida como</p><p>o testemunho das mudanças que estavam acontecendo na passagem</p><p>do século XVIII para o XIX, em todos os campos de atuação humana,</p><p>entre os quais não se pode deixar de incluir o da sensibilidade e da</p><p>mentalidade. Surgiu nessa época a nova mentalidade ocidental,</p><p>alicerçada pelo Romantismo que ensaiava seus primeiros passos, na</p><p>liberdade das emoções e na sensibilidade, não na racionalidade. É</p><p>por isso que esse Bocage que fala da solidão, do sofrer de amor, da</p><p>escuridão interna das almas, e o faz abertamente, como numa confissão</p><p>sentimental, aceitando apenas o constrangimento imposto pelas regras</p><p>de metrificação, estrofação e rimas do soneto, pode ser entendido como</p><p>um Bocage pré-romântico, a ser lido ao lado do árcade, com o mesmo</p><p>destaque, mas talvez mais atenção, pois sinaliza o que autores como</p><p>Almeida Garrett, Alexandre Herculano, João de Deus e Camilo Castelo</p><p>Branco ainda esperarão cinquenta anos para poder fazer, ou seja, quando</p><p>o Romantismo propriamente dito instalar-se, finalmente, em Portugal.</p><p>Panorama da poesia romântica1.4</p><p>Vista em seu conjunto, a produção lírica portuguesa do período romântico</p><p>constituiu um paradoxo: vindo à luz na mesma época em grandes</p><p>obras no romance e no teatro revelava a qualidade e a originalidade</p><p>do Romantismo no país, nunca alcançando um nível de qualidade</p><p>equivalente.</p><p>No teatro é possível destacar a obra-prima de Almeida Garrett, Frei Luís</p><p>de Sousa (1843); na prosa, são conhecidas grandes realizações como</p><p>Viagens na minha terra (1846), do mesmo Garrett, Eurico, o presbítero</p><p>48 UNIUBE</p><p>(1844), de Alexandre Herculano e Amor de perdição (1866), de Camilo</p><p>Castelo Branco. Expressões máximas do estilo pessoal de seus</p><p>criadores, essas obras conquistaram para eles um prestígio artístico que</p><p>não se desvaneceu até os dias de hoje; são elas facilmente identificadas</p><p>pelos leitores com o espírito romântico tal como ele se deu a conhecer</p><p>em Portugal, em termos de inovações formais, expressão sentimental e</p><p>compreensão subjetiva da realidade histórica.</p><p>Na poesia, raros são os autores conhecidos naquele período que</p><p>conseguiram ultrapassar a mediocridade na exploração do sentimentalismo</p><p>e do individualismo, os quais, como características fundamentais do</p><p>Romantismo, ainda contrastavam de maneira evidente com as formas</p><p>poéticas tradicionais que muitos desses autores não conseguiram</p><p>abandonar. As poucas exceções a essa regra se veem no livro Folhas</p><p>caídas, ainda de Garrett, em parte da produção de Soares de Passos e</p><p>na lírica de João de Deus.</p><p>João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854) construiu uma</p><p>das mais sólidas obras literárias de Portugal, manifestada em verso, prosa</p><p>e drama. Foi também político, jornalista e diplomata. Em termos de poesia,</p><p>o melhor de sua criação foi seu sétimo livro, Folhas caídas, publicado em</p><p>1853. Nessa obra, chama a atenção o fato de o poeta elaborar um estilo</p><p>peculiar de romantismo, já que em seus versos a tendência geral do eu lírico</p><p>é mesclar a sondagem de sua subjetividade e a expressão de seus anseios</p><p>amorosos com uma linguagem equilibrada. Assim, a melhor imagem do</p><p>Garrett poeta romântico não é a de um ser desesperado sentimentalmente,</p><p>mas de alguém que busca, que ama e que sofre, mas que consegue se</p><p>conter racionalmente ao fazer poesia sobre tais temas.</p><p>A lírica de António Augusto Soares de Passos (1826-1860) é típica do</p><p>Ultrarromantismo, como é conhecida a segunda geração do Romantismo</p><p>português. Tuberculoso desde a juventude, fracassado sentimental e</p><p>profissionalmente, sua poesia serve como uma espécie de reflexo de sua</p><p>vida, como mostra Ana Rosa Guimarães em estudo sobre ele:</p><p>UNIUBE 49</p><p>Ainda em vida, publicou suas composições poéticas, que</p><p>alcançaram grande êxito. Soares de Passos espelhou</p><p>sua poesia na desgraça íntima, aliada à sensação</p><p>dolorosa de finitude, diante da eternidade do Cosmos e da</p><p>Natureza. Deprimido pela doença e pelos vários motivos</p><p>de padecimento de uma sensibilidade fora do comum,</p><p>debateu-se entre o desalento, o desânimo pessimista</p><p>de quem sente a morte próxima e canta o lado funéreo</p><p>das coisas em “O Noivado do Sepulcro”, e a ânsia de</p><p>gozar a vida em toda a sua plenitude, tendo por apoio</p><p>aquilo que constituía novidade para o espírito progressista</p><p>do tempo (“O Firmamento”, “O Anjo da Humanidade”).</p><p>Em suma, o negativismo a se contrapor ao anseio</p><p>angustiado de viver a vida com otimismo calcado em</p><p>crenças de fraternidade, amor ao próximo e liberalismo.</p><p>Nesse caráter ambivalente e paradoxal mora a grande</p><p>força de seu lirismo, que acaba por encarnar o instante de</p><p>depuração do Romantismo (GUIMARÃES, 2016, p. 125).</p><p>A sensibilidade incomum e o gosto mórbido pelos temas ligados à morte,</p><p>destacados pelas observações de Ana Rosa Guimarães, encontram sua</p><p>perfeita expressão ultrarromântica na obra mais conhecida de Soares de</p><p>Passos, O noivado do sepulcro. Trata-se de um longo poema narrativo,</p><p>a respeito de dois jovens amantes que tiveram impedida, por questões</p><p>familiares, a realização em vida de seu amor; depois da morte, ambos</p><p>se levantam da tumba e se reencontram, podendo, assim, dar vazão</p><p>plenamente a seu sentimento. Idolatrado desde sua primeira publicação,</p><p>em 1855, pelos admiradores do estilo do poeta, mais tarde, com o</p><p>surgimento do Realismo, o texto passaria a ser ridicularizado pelos jovens</p><p>escritores, que consideravam inaceitável a visão de mundo emotiva e</p><p>irracional presente nele.</p><p>João de Deus de Nogueira Ramos (1830-1896) foi o poeta português que</p><p>mais se aproximou da criação de uma obra autenticamente romântica.</p><p>Advogado formado em Coimbra, atuou também como jornalista e</p><p>deputado, além de, como</p><p>pioneiro da pedagogia em seu país, ter dirigido</p><p>uma campanha nacional em prol da educação das crianças, à qual teve</p><p>no centro o método de ensino de leitura criado em seu livro A cartilha</p><p>maternal (1876).</p><p>50 UNIUBE</p><p>As características que definem a lírica de João de Deus e o distinguem</p><p>dos demais românticos são a temática amorosa e sua linguagem simples,</p><p>espontânea e musical, que, pelos seus ritmos, aproxima-se da oralidade</p><p>e da fala das pessoas do povo. Em seus poemas, a figura da mulher é</p><p>apresentada com reverência, numa atitude mística do sujeito poético</p><p>que revela a influência das cantigas de amor trovadorescas. A essa</p><p>idealização, contudo, é contraposto um sensualismo, índice da vida que</p><p>animava o sentimento expresso em seus versos. Também contribuiu</p><p>para o duradouro prestígio da obra do autor a sensibilidade com que ele</p><p>tratava os temas da vida amorosa, como o desejo e a saudade.</p><p>Ao contrário de Soares de Passos, João de Deus viria a ser muito</p><p>admirado pelos jovens que dariam origem ao Realismo na literatura</p><p>portuguesa; um deles, Teófilo Braga, foi o responsável pela publicação,</p><p>em 1893, de Campo de flores, reunião de toda a obra lírica do poeta.</p><p>A leitura na íntegra de “O noivado do sepulcro” pode ser feita neste endereço:</p><p>http://reproduction-inderdite.blogspot.com.br/2009/12/analise-de-o-noivado-</p><p>do-sepulcro-de.html.</p><p>AMPLIANDO O CONHECIMENTO</p><p>Cesário Verde e a poesia do olhar moderno1.5</p><p>O período da literatura portuguesa identificado como Realismo,</p><p>predominante entre os anos de 1865 e 1890, portanto, entre o Romantismo</p><p>e o Simbolismo, marcou uma profunda alteração no contexto cultural</p><p>daquela época. Influenciados pelas consequências da Revolução</p><p>Industrial, principalmente nos avanços conquistados nos campos da</p><p>ciência, da tecnologia e da economia capitalista, os jovens realistas</p><p>tinham por propósito atualizar a cultura de Portugal, colocando-a a par</p><p>de tudo o que se discutia em centros mais desenvolvidos da Europa em</p><p>UNIUBE 51</p><p>termos também de arte, filosofia e política. Na polêmica que travaram</p><p>com os últimos românticos, conhecida como a “Questão Coimbrã”, por</p><p>ter acontecido principalmente na cidade de Coimbra, onde estudavam</p><p>os principais defensores das novas ideias, as posições cientificistas,</p><p>politicamente engajadas, republicanas e anticlericais definiriam a direção</p><p>que a literatura portuguesa trilharia por muitos anos a seguir.</p><p>Nesse contexto, surgiriam alguns dos mais duradouros talentos das</p><p>letras lusitanas, entre eles, Antero de Quental, Eça de Queirós, Ramalho</p><p>Ortigão, Guerra Junqueiro, Gomes Leal.</p><p>Embora não tenha participado dos embates ideológicos e literários que</p><p>definiriam, a partir de Coimbra, o papel da geração realista em Portugal,</p><p>o nome de Cesário Verde também deve ser acrescentado à relação dos</p><p>grandes desse tempo, pois, ao lado da poesia política e metafísica de</p><p>Antero de Quental, sua obra dá destaque a outra vertente importante na</p><p>arte dos finais dos oitocentos: a poesia do cotidiano.</p><p>Diferentemente da maioria dos autores associados ao Realismo</p><p>português, Cesário Verde (1855-1886) não estudou em Coimbra, mas</p><p>em Lisboa, em cuja universidade frequentou por algum tempo o curso</p><p>de Letras. Toda sua vida foi passada nessa cidade, onde seu pai estava</p><p>estabelecido no comércio de ferragens, no qual o filho também trabalhou</p><p>por muito tempo. Não espanta, portanto, que a vida cotidiana de Lisboa</p><p>seja o tema mais evidente da poesia que ele produziu, a qual publicou</p><p>esparsamente em jornais e outros periódicos da época e que só saiu</p><p>reunida, postumamente, em O livro de Cesário Verde, publicado por</p><p>um amigo seu em 1887.</p><p>O caráter sui generis da obra de Cesário é assim avaliado por Massaud</p><p>Moisés:</p><p>A curta e anônima existência de Cesário Verde não</p><p>conheceu qualquer reconhecimento durante o seu</p><p>transcorrer. Passou despercebida em seu tempo e</p><p>assim ficou, até que, de alguns anos a esta parte, a</p><p>crítica começou a dar-lhe a devida importância, graças</p><p>52 UNIUBE</p><p>à sua poesia, dotada de estranha força e capaz de se</p><p>pôr ao lado das mais significativas da época. É que</p><p>Cesário Verde reuniu um conjunto de fatores bastante</p><p>especiais, e suficientemente fortes para se distinguir, a</p><p>um só tempo, como autônomo e grande poeta. [...]</p><p>Dotado de um temperamento anti-“literário” por</p><p>excelência, projeta-se nas coisas exteriores (pessoas,</p><p>macadame, piche, repolho, rolhas, peixe, etc.) com</p><p>todo o peso de sua fervilhante vida interior, a fim de</p><p>apreender a imagem fugaz das coisas, em perpétuo</p><p>dinamismo. É então que nasce a poesia do cotidiano,</p><p>do trivial, pois o poeta necessita ver-se continuamente</p><p>nas coisas, para atingir o claro equilíbrio do verso, elo</p><p>entre o seu drama e a poesia. A duplicidade inicial dos</p><p>planos, com o propósito de fixar o instante que passa, e</p><p>a certeza de que o próprio poeta é que está passando,</p><p>— leva Cesário Verde a colocar-se numa zona limítrofe</p><p>de estradas que conduzem ao Impressionismo e ao</p><p>Expressionismo. (MOISÉS, 2008, p. 242-244).</p><p>Massaud Moisés faz referências a certos vocábulos que localizam a</p><p>poesia de Cesário num ambiente tipicamente urbano: as pessoas, o</p><p>macadame (mistura de brita, breu e areia) que revestia as ruas dos</p><p>bairros que estavam sendo modernizados naquele tempo, os produtos</p><p>de consumo diário, à venda no comércio lisboeta. É da relação que</p><p>o sujeito poético de seus versos estabelece com esses estímulos</p><p>exteriores que Cesário compõe sua poesia; nela, a observação da</p><p>realidade citadina é o principal motor da inspiração poética. É o que se</p><p>vê em muitos de seus poemas mais importantes, como “O sentimento</p><p>de um ocidental”, que acompanha o trajeto do eu lírico pela noite de</p><p>Lisboa, em que ele vê toda a ebulição da vida de uma cidade que se</p><p>moderniza e enriquece, ao mesmo tempo em que ainda mantém intactas</p><p>muitas estruturas de injustiça e exploração dos mais pobres. O mesmo</p><p>pode ser dito de poemas como “Esplêndida”, “Humilhações”, “Arrojos”,</p><p>“Deslumbramentos” e “Cristalizações”, nos quais o eu lírico exterioriza</p><p>sua devoção por uma mulher ao mesmo tempo ideal e fatal, pois o atrai</p><p>e o repulsa, mas sempre num quadro de vida urbana, em que a situação</p><p>sentimental do poeta é mostrada contra o pano de fundo dos hábitos</p><p>sociais, incluindo as caminhadas pelo Passeio Público, a frequência a</p><p>teatros e cafés da Baixa, o bairro comercial e boémio de Lisboa.</p><p>UNIUBE 53</p><p>Essa penetração da realidade contemporânea na lírica de Cesário</p><p>Verde se revela magistralmente em “Num bairro moderno”, poema que</p><p>pode ser lido como complementar a “O sentimento dum ocidental”, pois</p><p>também mostra o eu lírico caminhando pela cidade, mas durante o dia.</p><p>Nele, ao longo de vinte estrofes de cinco versos, o leitor acompanha o</p><p>poeta, que sai de casa às dez da manhã, ao longo de seu trajeto para</p><p>o trabalho na Baixa. A descrição das ruas, casas e hábitos burgueses</p><p>é feita de maneira sempre detalhada e precisa, temperada pela ironia</p><p>de quem observa, mas também julga, pois a realidade nunca lhe é</p><p>neutra. Cruzando com as personagens de baixa extração social que</p><p>prestam serviço aos habitantes do bairro moderno por onde passa, entre</p><p>eles vendedores, criados, padeiros, condutores de carruagens, ele vai</p><p>contrastando o trabalho deles com o luxo e o conforto das casas em que</p><p>batem, mas não podem entrar.</p><p>O clímax deste quadro de contrastes se dá quando o sujeito poético vê</p><p>parar, diante de uma mansão, uma vendedora ambulante de verduras,</p><p>legumes e frutas. Ao observá-la detidamente, ele descreve sua pobreza</p><p>e sua feiura, mas, vendo o conteúdo da grande cesta que ela carrega,</p><p>acaba por revelar o processo artístico da poesia cesariana:</p><p>Subitamente – que visão de artista! –</p><p>Se eu transformasse os simples vegetais,</p><p>À luz do Sol, o intenso colorista,</p><p>Num ser humano que se mova e exista</p><p>Cheio de belas proporções carnais?!</p><p>(...)</p><p>E eu recompunha, por anatomia,</p><p>Um novo corpo orgânico, aos bocados.</p><p>Achava os tons e as formas. Descobria</p><p>Uma cabeça numa melancia,</p><p>E nuns repolhos seios injetados. (VERDE, 2006, p. 107).</p><p>54 UNIUBE</p><p>A partir daí, será narrado como o eu lírico vai compondo em sua imaginação</p><p>uma figura de mulher, cujo corpo se vai formando daquilo que ele vê no</p><p>cesto da vendedora; o leitor atento perceberá que, ao mesmo tempo, as</p><p>estrofes do poema vão sendo escritas. A atitude do eu lírico nessas estrofes</p><p>e nas que se seguem, ou seja, a de se deixar inspirar pelos recortes da</p><p>vida real e cotidiana que tem diante dos olhos, para criar um ser de ficção,</p><p>reproduz o procedimento geral da obra de Cesário Verde, que é o de se</p><p>alimentar da realidade, em seus detalhes mais comuns, para fazer uma</p><p>poesia diferente de todas de seu tempo, em Portugal. Nisso, o autor se</p><p>mostra um herdeiro da concepção moderna de arte e poesia, inaugurada</p><p>por Charles Baudelaire, como aponta Ricardo Daunt:</p><p>Assim, ao escolher o transitório e o relativo, tornam-se</p><p>ao alcance do poeta assuntos prosaicos, ampliando-se</p><p>o espectro lírico de sua obra.</p><p>Cesário Verde aproxima-se de concepção expressa</p><p>por Baudelaire no Salon de 1846, onde defende que a</p><p>beleza absoluta e eterna não existe, não sendo mais do</p><p>que uma abstração. [...]</p><p>Atraído, contudo [...] pelo dia a dia, pelo cotidiano,</p><p>afasta-se de qualquer intuito de fazer do poema um</p><p>território filosófico, como Antero de Quental. Sua obra</p><p>atesta a presença de um sujeito lírico que deambula</p><p>pelo mundo urbano da civilização industrial capturando</p><p>os variegados recortes físicos e os múltiplos estímulos</p><p>sensoriais da cidade labiríntica. (DAUNT, 2006, p. 14).</p><p>Foi a partir dessa poesia das pequenas coisas, colhida nos instantes</p><p>fugazes da vida urbana, que se fez a poesia de Cesário Verde, a qual</p><p>passou quase anônima em sua época, mas, atualmente, faz com que</p><p>ele seja conhecido como um dos grandes líricos a ter escrito em língua</p><p>portuguesa.</p><p>Você pode baixar O livro de Cesário Verde na íntegra neste endereço:</p><p>https://www.luso-livros.net/wp-content/uploads/2013/03/O-Livro-de-</p><p>Ces%C3%A1rio-Verde.pdf</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>UNIUBE 55</p><p>Panorama da poesia simbolista1.6</p><p>O predomínio das questões científicas, tecnológicas e econômicas</p><p>na formação da visão de mundo associada ao Realismo nas últimas</p><p>décadas do século XIX esteve na base do surgimento de uma geração</p><p>de autores que marcou profundamente a história da literatura ocidental.</p><p>Podem ser citados nesse contexto gigantes como Liev Tolstói e Fiodor</p><p>Dostoievski, na Rússia, Gustave Flaubert e Honoré de Balzac, na França,</p><p>Charles Dickens e William M. Thackeray, na Inglaterra, Eça de Queirós,</p><p>em Portugal, Machado de Assis, no Brasil.</p><p>Contudo o pronunciado cientificismo e apego à vida material resultantes</p><p>dos progressos técnicos produzidos pela segunda fase da Revolução</p><p>Industrial (1870-1914) foram interpretados negativamente por determinados</p><p>grupos de intelectuais, em muitas das mesmas nações citadas acima. Do</p><p>ponto de vista deles, a cultura da passagem entre os séculos XIX e XX</p><p>se distanciara dos verdadeiros valores humanos, como a sensibilidade,</p><p>a imaginação e a busca de experiências que transcendessem o cotidiano</p><p>e o mundo do trabalho. No campo das artes, essa visão de mundo</p><p>alternativa deu origem ao movimento conhecido como Simbolismo.</p><p>À fria e racionalista observação da realidade social defendida pelo</p><p>Realismo, com vistas a nela intervir como força transformadora, os</p><p>simbolistas responderão com uma arte que busca outro entendimento do</p><p>processo artístico, ao qual deviam também corresponder outras formas</p><p>de expressão, como apontam António José Saraiva e Óscar Lopes:</p><p>[...] trata-se [...] de impor a prosa rítmica, o verso livre,</p><p>e certas estruturas estróficas novas ou desusadas;</p><p>trata-se ainda de surpreender o leitor pelo ineditismo</p><p>das imagens, pelo esoterismo de um vocabulário</p><p>erudito colhido em glossários pouco manuseados e</p><p>alusivo ao um mundo deslumbrante de pedrarias raras</p><p>e alfaias litúrgicas, e pelos mais variados ingredientes</p><p>do exotismo. Tudo isso se associava a uma pretensa</p><p>degenerescência cheia de requintes na arte verbal</p><p>56 UNIUBE</p><p>dos nefelibatas (viandantes das nuvens), nome dilecto</p><p>desses poetas, que pretendiam escrever para os</p><p>raros apenas. Uma das notas dominantes na tentativa</p><p>dessa poesia é um profundo pessimismo, aliás muito</p><p>generalizado nas obras da década de 1890. (SARAIVA</p><p>& LOPES, 1985, p. 1030-1031).</p><p>O pessimismo a que se referem os autores é causado pelo desencanto</p><p>que essa nova geração tem com o progresso material e técnico como</p><p>fonte de realização humana. Para autores como Stephanne Mallarmé</p><p>e Paul Verlaine, pais do Simbolismo francês, e outros influenciados por</p><p>eles, como os brasileiros João da Cruz e Sousa e Alphonsus Guimaraens</p><p>ou os portugueses António Nobre e Camilo Pessanha, a arte se convertia</p><p>na única experiência humana verdadeiramente rica de significados. É</p><p>por isso que eles davam as costas à realidade e a tudo que fosse banal,</p><p>como indicam seu gosto pelo mundo das nuvens, quer dizer, dos sonhos,</p><p>e sua preferência por um vocabulário que só pudesse ser decifrado por</p><p>um público de iniciados, como aparece na citação acima.</p><p>Em Portugal, os primórdios da escola simbolista estão ligados às ações</p><p>do poeta Eugénio de Castro (1869-1944). Ao voltar de uma viagem à</p><p>França, ele lançou a revista Insubmissos (1889), cuja proposta básica</p><p>era renovar a literatura portuguesa; em seguida, publicou o livro</p><p>Oaristos (1890), cujos poemas dialogavam com as mais recentes</p><p>mudanças ocorridas na poesia francesa, na qual se destacavam as ideias</p><p>simbolistas de Mallarmé e Verlaine.</p><p>O prefácio do livro de Eugénio de Castro se tornou o manifesto do</p><p>Simbolismo português, pois resumia as linhas de força dessa nova escola</p><p>poética. Entre elas, estava a defesa dos ritmos livres, a preferência por</p><p>um vocabulário requintado e erudito, propício à criação de imagens</p><p>simbólicas do inconsciente do artista, a tendência a negar a realidade em</p><p>busca de uma existência mais profunda, oferecida pelo sonho e pela arte.</p><p>UNIUBE 57</p><p>Apesar de ser o introdutor do Simbolismo em seu país, Eugénio de</p><p>Castro não é o mais importante representante dessa escola literária;</p><p>esse lugar pertence a António Nobre e Camilo Pessanha.</p><p>António Nobre (1867-1900) publicou em vida um único livro: Só (1892).</p><p>Classificado pelo próprio autor como o livro mais triste que existia em</p><p>Portugal, a obra revela um poeta de rara sensibilidade. A leitura dos</p><p>poemas que a compõem deixa entrever um eu lírico cuja visão de mundo</p><p>é marcadamente subjetiva, sentimental, introspectiva e melancólica. O</p><p>símbolo máximo dessas tendências é a “torre de Anto”, moradia fictícia à</p><p>qual o sujeito poético refere-se várias vezes e que equivale ao seu gosto</p><p>pelo isolamento.</p><p>António Nobre cursou Direito na Universidade de Coimbra, mas se</p><p>frustrou muito com o ambiente da instituição, no qual destoava sua</p><p>personalidade retraída. Depois de ser reprovado duas vezes, desistiu,</p><p>optando por ir para Paris, onde conseguiu se formar em Ciências</p><p>Políticas. Já por essa época, sofria da tuberculose que o mataria antes</p><p>de completar trinta e três anos.</p><p>Foi no tempo em que viveu na França que António Nobre conheceu o</p><p>Simbolismo, que acabou por definir sua linhagem artística; é dessa altura</p><p>que vêm os poemas que formam o Só, cuja primeira publicação, aliás,</p><p>foi feita por uma editora parisiense. Um dos aspectos mais curiosos e</p><p>significativos do livro é o fato de que, escrito e publicado em Paris, seus</p><p>poemas só falam de Portugal. Esse pormenor demonstra a importância</p><p>da memória e da nostalgia na formulação da poética de Nobre.</p><p>O ensimesmamento do sujeito poético presente nos poemas de Só faz</p><p>com que ele não estabeleça relações com o mundo real e cotidiano, muito</p><p>menos com as pessoas que o habitam. Dessa forma, ele se volta para</p><p>seu interior, onde encontra todo um passado que o atrai constantemente.</p><p>É assim que, por meio da memória de uma infância em tudo parecida</p><p>com a do autor, que a viveu em províncias do interior de Portugal,</p><p>o tema</p><p>da saudade se afirma como decisivo na lírica de Nobre.</p><p>58 UNIUBE</p><p>O efeito disso é que os poemas estão repletos de referências às</p><p>paisagens rurais, a hábitos, personagens e familiares com quem o próprio</p><p>poeta conviveu em sua infância. Na sua poesia, então, o símbolo maior</p><p>é a infância, verdadeiro Paraíso perdido ao qual o eu lírico deseja voltar</p><p>como forma de fuga e resistência ao materialismo que predominava em</p><p>sua época.</p><p>Você pode baixar a primeira edição de Só a partir deste link:</p><p>http://purl.pt/125/6/l-61159-v_PDF/l-61159-v_PDF_24-C-R0072/l-61159-</p><p>v_0000_capa-guardas2_t24-C-R0072.pdf</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>Camilo Pessanha (1867-1926) é o mais acabado exemplo de poeta</p><p>simbolista no contexto português. Assim como António Nobre, teve</p><p>somente um livro publicado em vida, por iniciativa de uma amiga sua.</p><p>Trata-se de Clepsidra (1926), obra em que desenvolveu um estilo</p><p>personalíssimo de poesia, que mereceu elogios até de Fernando Pessoa,</p><p>que não era pródigo em distribui-los.</p><p>O escritor passou a maior parte de sua vida adulta em Macau, que ainda</p><p>era uma possessão portuguesa naquele tempo. Formado em Direito pela</p><p>Universidade de Coimbra, Camilo Pessanha apenas conseguiu uma</p><p>colocação profissional no Oriente, para onde foi como professor do ensino</p><p>secundário. Posteriormente, assumiu os cargos de conservador do registro</p><p>predial e de juiz de comarca. Em termos pessoais, entretanto, foi mais</p><p>importante sua imersão na cultura chinesa, evidente em seu interesse</p><p>pela língua, poesia, arte e hábitos do povo entre o qual foi viver; também</p><p>fez parte dessa integração o vício em ópio, adquirido já em Macau. Um</p><p>exemplo perfeito do impacto da cultura oriental sobre sua obra pode ser</p><p>visto no poema “Viola chinesa”; o mesmo pode ser dito da coleção de mais</p><p>de cem pinturas, porcelanas, cerâmicas, esculturas e pedras raras que o</p><p>poeta acumulou e que doou ao Estado português em 1918.</p><p>UNIUBE 59</p><p>Nos poemas de Clepsidra, há diversos procedimentos de estilo e de</p><p>temática que tornam reconhecível a influência do Simbolismo francês.</p><p>A linguagem é sumamente simbólica, repleta de metáforas e sinestesias,</p><p>de maneira a conduzir o leitor a uma realidade diferente, mais própria do</p><p>mundo dos desejos e dos sonhos.</p><p>Nesse sentido, a grande inspiração do estilo de Camilo Pessanha é a</p><p>música, pois, como na poesia de Paul Verlaine e de Stéphane Mallarmé,</p><p>o poeta português também a via como a arte suprema, em função de seu</p><p>alto poder de sugestão, que é capaz de transportar o ouvinte para longe</p><p>de seu espaço em que se encontra seu corpo. Exemplos desse apego a</p><p>uma visão da poesia como arte sugestiva no sentido musical estão em</p><p>poemas como “Fonógrafo”, “Violoncelo”, “Ao longe os barcos de flores”</p><p>e o já citado “Viola chinesa”. Neles, as referências diretas e indiretas a</p><p>melodias criam uma atmosfera sensorial, na qual as sensações sonoras</p><p>se mesclam a outras, visuais, táteis e olfativas, para criar uma experiência</p><p>abstrata, na qual o leitor pode projetar sua sensibilidade e imaginação.</p><p>O sujeito poético presente na lírica de Camilo Pessanha é dotado de</p><p>uma sensibilidade muitíssimo exacerbada. Em suas relações com o</p><p>mundo, com as outras pessoas, com a mulher e consigo mesmo, todas</p><p>as experiências se traduzem em termos de dor. As sensações de exílio,</p><p>de loucura e desespero são comuns, levando-o, frequentemente, a um</p><p>estado de absoluto desânimo.</p><p>A consequência dessa disposição de alma, em termos de expressão</p><p>poética, é a fragmentação da linguagem. Muitos poemas de Pessanha</p><p>são cumulados de reticências, que indicam, do ponto de vista do eu, a</p><p>inefabilidade da existência. Esse é o nome que se dá ao caráter de certas</p><p>experiências que desafiam os limites da linguagem: a pessoa sente,</p><p>mas não consegue traduzir em palavras o que experimentou. O melhor</p><p>exemplo desse procedimento em Clepsidra é o poema a seguir:</p><p>60 UNIUBE</p><p>Se andava no jardim,</p><p>Que cheiro de jasmim!</p><p>Tão branca do luar!</p><p>................................</p><p>................................</p><p>................................</p><p>Eis tenho-a junto a mim.</p><p>Vencida, é minha, enfim,</p><p>Após tanto a sonhar...</p><p>Porque entristeço assim?...</p><p>Não era ela, mas sim</p><p>(O que eu quis abraçar),</p><p>A hora do jardim...</p><p>O aroma de jasmim...</p><p>A onda do luar... (PESSANHA, 1989, p. 27).</p><p>Visualmente, a terceira estrofe já sugere o que a análise das demais</p><p>confirma: no processo de conquista amorosa que o poema narra, a</p><p>base da frustração final do eu lírico é o fato de que ele não desejava a</p><p>mulher concreta que viu na primeira estrofe. O que realmente o atraía</p><p>era a ambientação do encontro: o espaço do jardim, o momento em que</p><p>o luar brilhava, o perfume que a presença da moça nesse cenário de</p><p>sonho desencadeou. Em outras palavras: o que interessava ao sujeito</p><p>poético não era a mulher em si, mas tudo de impossível, inalcançável,</p><p>inapreensível que ela sugeriu. Havia, portanto, um intervalo, uma</p><p>distância entre o desejo do poeta e sua realização; é ela que é sugerida</p><p>pelas reticências, que deixam incompletos cinco dos doze versos escritos,</p><p>mais toda a terceira estrofe. A consequência é inescapável para o leitor</p><p>atento: assim como a experiência amorosa do eu lírico não se completou,</p><p>suas frases também não se completam, pois sua visão do amor é tão</p><p>fragmentada quanto sua escrita.</p><p>UNIUBE 61</p><p>No contexto da poesia simbolista, a fragmentação da linguagem</p><p>exemplificada por Camilo Pessanha converte-se num símbolo poderoso</p><p>de um mundo em deterioração, no qual nenhum valor tradicional</p><p>permanece: só a música sobrevive como linguagem válida e, por isso,</p><p>a poesia deve aspirar a ser igual a ela, ou seja, sugestiva, misteriosa,</p><p>enigmática, sutil como uma língua que só as almas podem entender.</p><p>Todos os poemas de Clepsidra estão disponíveis para leitura neste endereço:</p><p>http://c-pessanha.blogspot.com.br/</p><p>No You tube, você pode assistir ao documentário “Camilo Pessanha – um</p><p>poeta ao longe”. Produzido pela Rádio Televisão Portuguesa em 2007, o</p><p>programa apresenta a declamação de poemas, dados biográficos e análise</p><p>da obra do poeta. O endereço é este:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=phXufTQjnnA</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>1.7 Mário de Sá-Carneiro: Orpheu entre o sonho e a revolução</p><p>modernista</p><p>Nas primeiras décadas do século XX, a poesia portuguesa revelava a</p><p>influência de vertentes surgidas ainda no final do XIX, como indicam</p><p>a produção simbolista de Camilo Pessanha, a saudosista de Teixeira</p><p>de Pascoaes e Mário Beirão e a parnasiana de Gonçalves Crespo.</p><p>Essa situação contrastava com aquela em vigor nos países centrais da</p><p>Europa, nos quais a renovação completa das artes a que se daria o</p><p>nome de Modernismo já lançava suas bases por meio das experiências</p><p>das chamadas vanguardas: o Cubismo, Futurismo, Expressionismo,</p><p>Fauvismo e Dadaísmo, todas diferentes entre si, mas coincidindo no</p><p>propósito de fazer arte de maneiras nunca vistas antes na tradição</p><p>ocidental, de raiz greco-latina, que já consideravam ultrapassada e</p><p>irrelevante para o mundo surgido da Revolução Industrial.</p><p>62 UNIUBE</p><p>Em 1915, um grupo de jovens artistas e intelectuais de Lisboa se uniu</p><p>em torno do lançamento da revista Orpheu, decididos a trazer para</p><p>Portugal toda a efervescência cultural e artística que viam espalhar-</p><p>se a partir de Paris, a cidade mais importante em termos de estética</p><p>naquele momento histórico. Entre eles estavam Fernando Pessoa,</p><p>Mário de Sá-Carneiro, José de Almada-Negreiros, Luís de Montalvor e o</p><p>brasileiro Ronald de Carvalho; para todos, Orpheu deveria servir como</p><p>instrumento de divulgação de novas ideias e novas práticas artísticas,</p><p>para atualizar a cultura portuguesa conforme o que ocorria na Europa</p><p>culta. Segundo Fernando Pessoa (1966, p. 113), era preciso “Criar uma</p><p>arte cosmopolita no tempo e no espaço (...). A verdadeira arte moderna</p><p>tem de ser maximamente desnacionalizada – acumular dentro de si todas</p><p>as partes do mundo. Só assim será tipicamente moderna”.</p><p>No primeiro semestre de 1915, saíram os</p><p>dois únicos números que o grupo</p><p>de Orpheu conseguiu publicar da revista; o terceiro, suspenso porque</p><p>não havia verba para fazê-lo imprimir, seria lançado postumamente</p><p>apenas na década de 1980. Mesmo com uma carreira tão curta, Orpheu</p><p>teve um impacto decisivo na literatura portuguesa, que ficaria marcada</p><p>por seu ímpeto modernizador e espírito iconoclasta. A partir dela, os</p><p>nomes de Pessoa, Sá-Carneiro e Almada-Negreiros se eternizariam</p><p>como os de maior importância no movimento de inserção da cultura</p><p>portuguesa no mundo moderno.</p><p>Fernando Pessoa criou toda uma literatura sozinho, com a criação de</p><p>seus heterônimos Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos;</p><p>Mário de Sá-Carneiro, ao contrário, foi autor de uma obra pequena, muito</p><p>pessoal, mas também de grande significado. Tendo vivido apenas vinte e</p><p>seis anos (1890-1916), foi autor de livros de contos (Princípios, 1912, e</p><p>Céu em fogo, 1915), de novela (A confissão de Lúcio, 1914), de peça</p><p>de teatro (Amizade, 1912) e de poesia (Dispersão, 1914, e Indícios de</p><p>ouro, 1937). Apesar da variedade de gêneros, sua literatura é unificada</p><p>pela presença de um lirismo muito forte, baseado na exploração da</p><p>UNIUBE 63</p><p>subjetividade do sujeito poético ou das personagens das narrativas.</p><p>De modo geral, todos eles expressam o mesmo dilaceramento interno,</p><p>que é a forma que assume na obra do autor o problema modernista da</p><p>fragmentação do eu.</p><p>A primeira estrofe do longo poema-título de Dispersão e o curtíssimo</p><p>poema “7” de Indícios de oiro coincidem nessa tematização dos conflitos</p><p>interiores de um ser vivo num mundo em constantes transformações e</p><p>que não encontra equilíbrio nem mesmo em sua própria personalidade.</p><p>A estrofe referida diz assim:</p><p>Perdi-me dentro de mim</p><p>Porque eu era labirinto,</p><p>E hoje, quando me sinto,</p><p>É com saudades de mim. (SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 22).</p><p>A autoanálise que esses versos indicam é a tônica dominante da lírica de</p><p>Sá-Carneiro. Observe como, em quatro linhas apenas, há sete palavras</p><p>de 1ª Pessoa (perdi, me, eu, era, me, sinto, mim), mostrando que o mundo</p><p>criado na página gira em torno de um eu obcecado consigo próprio. Essa</p><p>obsessão, entretanto, não se resolve de forma positiva, pois a experiência</p><p>que o “eu” tem consigo mesmo é de perda, de descaminho e de saudade.</p><p>O retrato que ele dá de si na eloquente metáfora do labirinto deve ser</p><p>suficiente para o leitor perceber que não está diante de alguém dotado de</p><p>certezas e de realizações, mas, ao contrário, de dúvidas, de hesitações,</p><p>de frustrações. Não é assim, predominantemente, a experiência das</p><p>subjetividades no admirável mundo novo da modernidade, em que todas</p><p>as ciências e técnicas evoluem, mas as pessoas continuam se sentindo</p><p>perdidas?</p><p>64 UNIUBE</p><p>O poema “7” é composto por esta única estrofe:</p><p>Eu não sou eu nem sou o outro,</p><p>Sou qualquer coisa de intermédio:</p><p>Pilar da ponte de tédio</p><p>Que vai de mim para o Outro. (Idem, p. 44).</p><p>Nesses versos, o tema da identidade do sujeito poético, que é central na</p><p>lírica e também nas narrativas de Sá-Carneiro, é expresso em termos</p><p>de oposição, negação e vazio. A própria disposição das palavras que</p><p>forma o poema revela isso, quando o leitor atenta para o fato de que os</p><p>vocábulos “Eu” e “Outro” localizam-se nos extremos da estrofe. Essa</p><p>marca textual é muito eloquente para significar a distância que vai do eu</p><p>lírico para os outros sujeitos do mundo, ou, numa outra leitura também</p><p>possível, entre as duas partes conflitantes dele mesmo. A questão aqui</p><p>é a da incomunicabilidade entre as pessoas e de nós para nós mesmos.</p><p>Afinal, quem se daria o trabalho de atravessar uma ponte de tédio?</p><p>Nesse contexto de impossibilidades, a identidade do “eu” fica indefinida,</p><p>como atesta a expressão “qualquer coisa”, que não diz nada de definido</p><p>sobre o ser. Esse procedimento combina de maneira perfeita com a crise</p><p>de identidade de que falam todos os modernistas, pois, no século XX, já</p><p>não há mais nada que defina cabalmente uma pessoa, nem a religião,</p><p>nem o trabalho, ou a classe social ou a sexualidade. Simultaneamente a</p><p>esses exercícios frustrados de autoconhecimento, Sá-Carneiro também</p><p>escrevia textos em que o sujeito poético se voltava para os múltiplos</p><p>estímulos vindos da vida moderna, que buscava interiorizar como meio</p><p>de aplacar a dor de existir. É o que se vê em certas estrofes do longo</p><p>poema Manucure, em que todos os sentidos do poeta se voltam para</p><p>as imagens, sons, cheiros etc., que são lançados em sua direção pelo</p><p>mundo moderno dos bulevares, lojas, jornais e revistas, navios de longo</p><p>percurso, aviões, telégrafo, telefone e outras invenções recentes. É o que</p><p>se vê, por exemplo, nesta estrofe:</p><p>UNIUBE 65</p><p>– Ó beleza futurista das mercadorias!</p><p>– Sarapilheira dos fardos,</p><p>Como eu quisera togar-me de Ti!</p><p>– Madeira dos caixotes,</p><p>Como eu ansiara cravar os dentes em Ti!</p><p>E os pregos, as cordas, os aros... –</p><p>Mas, acima de tudo,</p><p>Como bailam faiscantes,</p><p>A meus olhos audazes de beleza,</p><p>As inscrições de todos esses fardos –</p><p>Negras, vermelhas, azuis ou verdes –</p><p>Gritos de actual e Comércio & Indústria</p><p>Em trânsito cosmopolita:</p><p>FRÁGIL! FRÁGIL!</p><p>843 – AG LISBON</p><p>492 – WR MADRID (Idem, p. 103).</p><p>A irregularidade métrica desses versos, que também não seguem um</p><p>esquema de rimas, assim como a pontuação baseada mais na expressão</p><p>das emoções do que na observância de regras de bom uso, mostram</p><p>a incorporação por Sá-Carneiro das inovações vanguardistas que</p><p>interessavam ao Modernismo. Essa liberdade formal é o símbolo de uma</p><p>nova geração de artistas, de um novo entendimento a respeito do que</p><p>deve ser a poesia. Também aí se mostra a relevância do poeta, como</p><p>assinala Massaud Moisés:</p><p>[...] Sá-Carneiro plasmou pela primeira vez em Língua</p><p>Portuguesa realidades até então insuspeitadas. Para</p><p>tanto, violentou a ineficaz e espartilhante gramática</p><p>tradicional e passou a usar uma sintaxe e um</p><p>vocabulário novos, que lhe permitissem manipular</p><p>Sarapilheira</p><p>Tecido grosseiro</p><p>que serve para</p><p>sacos, fardos etc.</p><p>66 UNIUBE</p><p>fórmulas expressivas pessoais, plásticas, maleáveis</p><p>e aptas a surpreender o fluxo das ondas oníricas, o</p><p>vago, o alucinado, as febres, o incêndio dos sentidos,</p><p>a desmaterialização das coisas, a materialização das</p><p>sensações, os sentimentos mais abstrusos e sutis,</p><p>as sinestesias mais inusitadas, as associações mais</p><p>inesperadas. (MOISÉS, 2008, p. 343).</p><p>Foi por meio da construção dessa nova linguagem poética, ajustada a</p><p>uma nova compreensão do que era a cultura do século XX, que Mário de</p><p>Sá-Carneiro, de vida e obra tão breves, conquistou um lugar de destaque</p><p>entre os intérpretes da vida moderna na poesia de língua portuguesa.</p><p>O livro Dispersão está disponível para download neste link:</p><p>http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/vo000005.pdf</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>José Régio e a poesia da Geração da Presença1.8</p><p>Pouco mais de dez anos depois do impacto inicial de Orpheu, uma nova</p><p>geração de jovens intelectuais se reuniu, desta vez em Coimbra, em torno</p><p>de uma revista para insistir na ideia de renovação da cultura portuguesa,</p><p>especialmente em sua literatura. Tratava-se da revista presença, que teria</p><p>uma vida bem mais longa que sua antecessora, pois publicou 56 números</p><p>entre 1927 e 1940. A ela estiveram associados escritores de peso na</p><p>tradição lírica que se formou à sombra da monumental contribuição</p><p>de Fernando Pessoa, como José Régio, Miguel Torga, Branquinho da</p><p>Fonseca e Adolfo Casais Monteiro.</p><p>Em sua linha editorial, a presença privilegiava a concepção de uma</p><p>literatura baseada na liberdade de criação e expressão, colocando no</p><p>centro do processo artístico o artista individual, e não noções de escola</p><p>literária ou ideologias sociais e políticas. Assim, os textos críticos que</p><p>UNIUBE 67</p><p>publicava atacavam o academicismo tanto quanto a literatura engajada.</p><p>Já os textos literários, estes demonstravam apego a temas subjetivos,</p><p>psicológicos, intuitivos. Além disso, como também foi intenção dos</p><p>escritores de Orpheu, seus editores inclusive</p><p>ocupavam-se da divulgação</p><p>da obra dos escritores estrangeiros mais importantes do começo do</p><p>século, como os romancistas Marcel Proust e André Gide, os poetas</p><p>Guillaume Apollinaire e Paul Valéry e o dramaturgo Luigi Pirandello.</p><p>Sobre o cosmopolitismo que unia os presencistas aos órficos, assim</p><p>traçou Márcia Seabra Neves, da Universidade de Aveiro, a sua evolução:</p><p>Uma das preocupações omnipresentes da presença</p><p>consistiu na abertura de Portugal ao mundo e na</p><p>valorização de uma arte moderna internacional,</p><p>através da recepção e divulgação das tendências e</p><p>manifestações da literatura estrangeira contemporânea,</p><p>no propósito de combater o proverbial paroquialismo do</p><p>panorama cultural português.</p><p>Antes da presença, já a vanguarda de Orpheu se</p><p>havia empenhado em «criar uma arte cosmopolita</p><p>no tempo e no espaço» (Pessoa s.d.: 113), uma arte</p><p>moderna «maximamente desnacionalizada» (ibid.: 114),</p><p>aglomerando «dentro de si todas as partes do mundo»</p><p>(ibid.: 114), ou seja, uma literatura nacional permeável</p><p>ao diálogo com outras literaturas e apetente para um</p><p>intercâmbio estético e cultural. (NEVES, 2011, p. 134).</p><p>A relação da revista com a geração de Orpheu, da qual vários autores</p><p>ainda estavam vivos, era de admiração e respeito, principalmente quanto</p><p>a Fernando Pessoa, que os presencistas consideravam seu mestre. Isso</p><p>se materializou tanto na publicação de poemas dele na presença como</p><p>no fato de alguns dos primeiros estudiosos da obra pessoana terem</p><p>pertencido aos quadros da revista, como Adolfo Casais Monteiro e João</p><p>Gaspar Simões. É por isso que a geração da presença ficou conhecida</p><p>como a do Segundo Modernismo em Portugal.</p><p>Dos poetas associados à presença, um dos que alcançaram um nível</p><p>artístico e de reconhecimento mais alto foi José Régio.</p><p>68 UNIUBE</p><p>José Régio era o pseudônimo de José Maria dos Reis Pereira (1901-1969).</p><p>Sua obra literária compreende a poesia, o teatro, o romance e o ensaio,</p><p>com quase trinta títulos publicados. O cerne de sua lírica, ou seja, a</p><p>reflexão filosófica sobre a natureza do homem e seu destino, no qual</p><p>se destaca o problema da solidão diante de uma divindade ao mesmo</p><p>tempo recusada e desejada, reflete também em seus romances e peças</p><p>de teatro.</p><p>Um de seus poemas mais famosos, “Cântico negro”, evidencia esses</p><p>temas, além de registrar outros também importantes, como a defesa</p><p>egocêntrica da liberdade do indivíduo diante dos acenos de grupos</p><p>sociais, ideologias, partidos políticos ou escolas literárias. Sua primeira</p><p>estrofe deixa claro como o sujeito poético criado por José Régio se nutre</p><p>apenas de suas próprias convicções:</p><p>“Vem por aqui” – dizem-me alguns com olhos doces,</p><p>Estendendo-me os braços, e seguros</p><p>De que seria bom que eu os ouvisse</p><p>Quando me dizem: “vem por aqui”!</p><p>Eu olho-os com olhos lassos,</p><p>(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)</p><p>E cruzo os braços,</p><p>E nunca vou por ali… (RÉGIO, 1965, p. 23).</p><p>Você pode ver uma declamação do poema completo, feita pelo ator</p><p>português Marco D’Almeida, neste endereço:</p><p>http://ensina.rtp.pt/artigo/jose-regio-poesia/</p><p>AMPLIANDO O CONHECIMENTO</p><p>UNIUBE 69</p><p>Uma imagem de alto teor simbólico da importância dada à subjetividade</p><p>na lírica de José Régio é a antítese formada pela oposição entre a</p><p>caracterização do grupo que procura atrair o eu lírico para seu âmbito e a</p><p>que é feita dele. O grupo tem olhos “doces”, expressando uma estratégia</p><p>de se mostrar como um polo positivo de atração; os do eu lírico são</p><p>“lassos”, ou seja, cansados, fatigados, entediados, exteriorizando sua</p><p>resistência a tudo o que vem de fora; os braços coletivos se estendem,</p><p>num gesto de convite e acolhimento, enquanto os do indivíduo se cruzam,</p><p>numa clara manifestação de recusa. Em resumo, essa estrofe opõe o</p><p>“não” do sujeito poético aos pedidos, escolhas e influências externas,</p><p>sinalizando como a construção da poética de Régio é feita a partir da</p><p>introjeção, que lhe permitirá ter espaço e tempo para o desenvolvimento</p><p>da reflexão e da sensibilidade, que se voltam não para o mundo relativo</p><p>da pequenez humana e cotidiana, mas para as eternidades do absoluto</p><p>metafísico, em que o poeta buscava solucionar as tensões entre sua</p><p>subjetividade e a ânsia pelo reencontro com Deus, como argumenta o</p><p>teólogo José Acácio Castro, da Universidade Católica Portuguesa:</p><p>Entre seres incompletos e fragmentos dispersos foi</p><p>José Régio percorrendo os caminhos onde a poesia</p><p>se cruza com a vida. A sua opção por uma estética</p><p>de autenticidade, onde o efeito retórico não se opõe</p><p>ao conteúdo nem ao sentido da expressão, onde</p><p>qualquer idealização colectiva do ser humano não</p><p>se opõe ao valor e ser inalienável que constitui cada</p><p>homem, fez com que o seu empreendimento literário</p><p>assumisse um carácter quase militante, e a sua</p><p>militância pelo indivíduo e pela pessoa tê-lo-á conduzido</p><p>frequentemente à solidão e mesmo à incompreensão.</p><p>[...]</p><p>Uma vida e uma experiência literária que não se</p><p>escondeu das contradições e tensões co-naturais à</p><p>condição humana encontraria nesse silêncio como</p><p>incenso a voz definitiva, capaz de o (re)conduzir Àquele</p><p>de quem sempre falou.</p><p>O combate corpo-a-corpo entre o homem e Deus e</p><p>entre o homem e ele próprio cede lugar à escuta da</p><p>Voz Inicial, lá onde todas as alteridades se diluirão na</p><p>Identidade plena entre o poeta, a palavra e o Criador de</p><p>toda a expressão. (CASTRO, 2010, p. 5.14-515).</p><p>70 UNIUBE</p><p>Como argumenta o estudioso, o desejo de uma experiência que transcendesse</p><p>a mera existência corporal e terrena trouxe para a poesia de José Régio</p><p>um dos temas mais importantes da lírica ocidental, o diálogo com os</p><p>aspectos insondáveis da divindade, o que lhe emprestou um caráter</p><p>metafísico visto raras vezes na poesia portuguesa.</p><p>Tendências do pós-guerra1.9</p><p>As décadas que se seguiram à Segunda Grande Guerra viram florescer</p><p>uma série de grandes poetas em Portugal, cujas obras continuam sendo</p><p>lidas, apreciadas e estudadas neste início de século XXI. Devem ser</p><p>mencionados nesse contexto os nomes de Vitorino Nemésio, José</p><p>Gomes Ferreira, Sophia de Mello Breyner Andresen, Jorge de Sena,</p><p>Eugénio de Andrade, Herberto Helder e Maria Teresa Horta, entre outros.</p><p>Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva (1901-1978) foi professor,</p><p>jornalista e apresentador de crônicas na televisão. Como professor</p><p>universitário, atuou em seu país e também na França, Bélgica e no</p><p>Brasil. Seus múltiplos interesses literários e culturais incluíam a poesia, o</p><p>romance, o conto, a novela, a etnografia e a História. No gênero narrativo,</p><p>sua obra mais conhecida é o romance Mau tempo no canal (1944), um</p><p>dos mais importantes da língua portuguesa no século XX.</p><p>A poesia de Vitorino Nemésio tem muitas facetas. Inicialmente marcada</p><p>pela presença da memória, principalmente interessada em sua infância e</p><p>seus contatos com a cultura popular na Ilha Terceira, do Arquipélago dos</p><p>Açores, onde nasceu, ela se ampliou para incorporar temas metafísicos e</p><p>religiosos, bem como outros ligados às culturas dos países onde o poeta</p><p>viveu, com o melhor exemplo disso sendo seu livro Poemas brasileiros,</p><p>de 1972.</p><p>UNIUBE 71</p><p>Nos últimos anos de sua produção, Nemésio também se interessou pelo</p><p>diálogo da poesia com a ciência, passando a escrever poemas inspirados</p><p>em recentes descobertas nas áreas da Microbiologia, da Química, da</p><p>Física e da Computação. Esses textos foram recolhidos no livro Limite</p><p>de idade, também de 1972, principalmente em sua seção intitulada “Cão</p><p>atómico, etc. e biopoemas”.</p><p>Reconhecido como um dos mais significativos escritores portugueses do</p><p>século XX, Vitorino Nemésio foi homenageado, em 1965, com o Prêmio</p><p>Nacional de Literatura e, em 1974, recebeu o Prémio Internacional</p><p>Montaigne, da Fundação Freiherr von Stein / Friedrich von Schiller, de</p><p>Hamburgo.</p><p>José Gomes Ferreira (1900-1985) formou-se em Direito pela Universidade</p><p>de Lisboa, mas, profissionalmente, destacou-se nas atividades de</p><p>diplomata e jornalista. Escreveu contos, crônicas e romances, mas seu</p><p>forte foi mesmo a poesia, gênero</p><p>no qual publicou uma dezena de títulos.</p><p>O poeta nunca se filiou a uma escola literária definida, mas o engajamento</p><p>de seus versos, que sempre defenderam a liberdade e a justiça social,</p><p>mesmo nas décadas que viram a ascensão do fascismo e outras formas</p><p>de totalitarismo, aproximaram-no das propostas do Neorrealismo, se</p><p>bem que ele jamais tenha militado no Partido Comunista, como era</p><p>comum neste grupo.</p><p>Em termos de linguagem, a lírica de José Gomes Ferreira incorpora</p><p>as conquistas do Modernismo, em termos de rompimento de regras de</p><p>métrica, ritmo e rimas, de forma a produzir poemas de formas variadas,</p><p>que refletissem sua interpretação dos tempos febris que vivia, em</p><p>termos políticos e sociais, numa dicção adequada. Nela, destaca-se</p><p>a liberdade absoluta dada à imaginação, que originava metáforas ao</p><p>gosto surrealista, como a do famoso verso “Entrei no Café com um rio</p><p>na algibeira”, ou seja, no bolso.</p><p>72 UNIUBE</p><p>Quanto aos temas, o autor não se dedicava ao lirismo amoroso, dando</p><p>preferência a questões ligadas à condição humana num sentido mais</p><p>geral, como a recusa a qualquer forma de tirania, a denúncia dos ridículos</p><p>da burguesia e a observação atenta da realidade cotidiana. Sua obra está</p><p>reunida nos volumes Poesia I (1948), Poesia II (1950), Poesia III (1962),</p><p>Poesia IV (1970), Poesia V (1973), Poeta Militante I, II e III (1978).</p><p>Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) construiu uma das líricas</p><p>mais importantes do século XX em Portugal. Leitora ávida de toda a</p><p>tradição lírica ocidental, soube dialogar intertextualmente tanto com Luís</p><p>de Camões quanto com Fernando Pessoa, ao mesmo tempo em que</p><p>falava em seus poemas tanto do amor quanto das questões políticas e</p><p>sociais. Formalmente, praticou tanto o rigor métrico, rímico e rítmico do</p><p>soneto como os versos livres e brancos.</p><p>A grande marca expressiva da poesia de Sophia é o entrelaçamento da</p><p>sensibilidade como a imaginação. A partir desse núcleo, são elaboradas</p><p>imagens muito originais para tratar de temas como a memória, o amor,</p><p>a liberdade e a relação do ser humano com a natureza, que, muitas</p><p>vezes, é vista como reflexo de seu interior. Dessa mesma natureza,</p><p>representada principalmente pelo mar, vem a noção de que o sagrado</p><p>habita o próprio mundo, no que se incluem as pequenas coisas que</p><p>definem o Homem.</p><p>Não se pode esquecer também da importância da cultura clássica para</p><p>a lírica da autora. Muitos são os poemas em que ela se refere à história,</p><p>à mitologia, às artes e à paisagem gregas, como que num retorno às</p><p>origens da cultura ocidental.</p><p>Portugal também é um de seus grandes temas; neste particular, destaca-se</p><p>o livro Navegações, de 1983, em que, seguindo a sua maneira o exemplo</p><p>de Camões, ela retoma a época da expansão marítima, evocando</p><p>tanto o encontro de povos acontecido naqueles tempos quanto o seu</p><p>UNIUBE 73</p><p>próprio, já que o livro lhe foi inspirado durante um voo sobre a costa</p><p>litorânea do Vietnã, numa época em que ela estava viajando para dar</p><p>uma conferência em Macau, cidade da Índia que estava ainda sob a</p><p>administração portuguesa.</p><p>Entre seus muitos livros, podem ser citados também Poesia (1944),</p><p>Dia do mar (1947), Coral (1950), No tempo dividido (1954), O Cristo</p><p>cigano (1961), Dual (1972), Ilhas (1989) e Musa (1994).</p><p>Você pode ver um documentário sobre Navegações, que inclui muitas</p><p>informações sobre a poetisa e declamações de seus versos, neste endereço:</p><p>http://ensina.rtp.pt/artigo/navegacoes-de-sophia-de-mello-breyner-andresen/</p><p>AMPLIANDO O CONHECIMENTO</p><p>Jorge de Sena, de seu nome completo Jorge Cândido Alves Rodrigues</p><p>Telles Grilo Raposo de Abreu de Sena (1919-1978), profissionalmente</p><p>um engenheiro, foi um dos mais prolíficos e influentes intelectuais</p><p>portugueses do século XX. Escreveu poesia, ficção, teatro, crítica</p><p>literária, e ensaios; além disso, manteve correspondência com alguns</p><p>dos escritores e estudiosos mais importantes de seu país, como</p><p>Sophia de Mello Breyner Andresen, Vergílio Ferreira, José Régio,</p><p>Eduardo Lourenço e João Gaspar Simões, convertendo-se num dos</p><p>principais cultivadores da epistolografia na modernidade. Além disso, foi</p><p>tradutor e professor universitário, com larga experiência em instituições</p><p>brasileiras e estadunidenses. Ao Brasil, veio como exilado do regime</p><p>ditatorial português; aos Estados Unidos, foi para fugir da ditadura militar</p><p>implantada em 1964.</p><p>Em sua poesia, cabe tanto a reflexão sobre o mundo real quanto a</p><p>idealização de um plano mítico, a expansão da subjetividade como o</p><p>intelectualismo mais rigoroso. Seus múltiplos interesses temáticos</p><p>74 UNIUBE</p><p>correspondem ao exercício de múltiplas formas de expressão; esse</p><p>caráter universalista pode ser simbolizado pela importância que assume</p><p>em sua linguagem poética a atração pelos aspectos contrastivos e</p><p>contraditórios da vida, que o sujeito poético tenta integrar em si, em</p><p>busca de uma solução para os dramas da condição humana.</p><p>Alguns de seus livros mais importantes são: Pedra Filosofal (1950);</p><p>As Evidências (1955); Poesia-I (Perseguição, Coroa da Terra, Pedra</p><p>Filosofal, As Evidências e o inédito Post-Scriptum) (1961); Metamorfoses,</p><p>seguidas de Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena (1963); Arte de</p><p>Música (1968); e Peregrinatio ad Loca Infecta (1969).</p><p>Eugénio de Andrade foi o nome literário escolhido por José Fontinhas</p><p>(1923-2005). Sua obra poética foi construída ao longo das três décadas</p><p>que trabalhou como servidor do Ministério da Saúde. Pessoa de espírito</p><p>recluso, avesso ao convívio em círculos literários ou políticos, o poeta</p><p>se expressou por meio de seus versos, que o tornaram um dos mais</p><p>respeitados literatos de seu país. São exemplos disso, os muitos prêmios</p><p>que recebeu, entre eles o Prémio da Associação Internacional de Críticos</p><p>Literários (1986), o Prémio D. Dinis da Fundação Casa de Mateus (1988),</p><p>o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores</p><p>(1989) e o Prémio Camões (2001), que é a mais relevante premiação da</p><p>literatura de língua portuguesa.</p><p>A lírica de Eugénio de Andrade é intimista, concisa, musical. Entre os</p><p>seus temas de eleição se destaca o amor, a natureza, a passagem</p><p>do tempo, a memória da infância. Sua linguagem é feita da mescla de</p><p>imaginação e sensibilidade, capaz de transfigurar os próprios elementos</p><p>da natureza em símbolos dos mais significativos aspectos da condição</p><p>humana, como a necessidade de companhia, os raros momentos de</p><p>epifania e a morte.</p><p>UNIUBE 75</p><p>Preocupado com os silêncios, as ausências, os afetos e as mudanças, o</p><p>lirismo de Eugénio é exemplo, em pleno Modernismo, da poesia pura que</p><p>outros movimentos literários, como o Simbolismo, buscaram alcançar, no</p><p>sentido de uma expressão poética concentrada nos aspectos mais sutis</p><p>da vida e da linguagem, despidas ambas das mesquinharias do cotidiano.</p><p>Dessa forma, seus poemas geralmente são curtos, ricos em metáforas</p><p>que instauram na consciência do leitor uma outra realidade que não</p><p>a física, a social, a política: a realidade da transcendência possível no</p><p>mundo das relações humanas essenciais, como o amor, a amizade e a</p><p>contemplação das belezas e verdades oferecidas pelo mundo natural.</p><p>Entre 1942 e 2001, o poeta publicou um total de 26 livros de poemas; a</p><p>maior parte deles foi reunida em três volumes, que também recolheram</p><p>sua obra em prosa: Poesia e prosa (1940-1979), dois volumes</p><p>publicados em 1980; Poesia e prosa (1940-1980), de 1981; Poesia e</p><p>prosa (1940-1986), três volumes lançados em 1987.</p><p>Herberto Helder de Oliveira (1930-2015) criou uma das obras poéticas</p><p>mais originais da língua portuguesa no contexto posterior a Fernando</p><p>Pessoa. O autor teve formação em Letras, mas atuou profissionalmente</p><p>como jornalista, bibliotecário, tradutor e radialista. Curiosamente, sempre</p><p>demonstrou uma personalidade reclusa, avessa à convivência com</p><p>grupos literários; não gostava de dar entrevistas nem de ser fotografado.</p><p>Tornou-se famoso o episódio em que, tendo sido agraciado, em 1994,</p><p>com o Prêmio Pessoa</p><p>– Eça de Queirós e os novos rumos da literatura</p><p>portuguesa; 4 – A prosa portuguesa modernista e contemporânea.</p><p>No primeiro capítulo, como o título já está dizendo, você terá uma visão</p><p>panorâmica do desenvolvimento da poesia portuguesa. O fato de se iniciar</p><p>o estudo pela poesia entende-se porque trata-se do gênero que melhor</p><p>representa o caráter profundo do povo português, acentuadamente</p><p>subjetivo. A par dessa visão ampla, você entrará em contato também,</p><p>de forma mais detida, com alguns nomes representativos da poesia</p><p>portuguesa, como Camões, nas duas vertentes épica e lírica, Bocage,</p><p>Cesário Verde, Mário de Sá-Carneiro, José Régio, para citar apenas os</p><p>mais importantes. Completa o capítulo um apanhado geral sobre alguns</p><p>poetas contemporâneos.</p><p>Apresentação</p><p>VIII UNIUBE</p><p>No capítulo 2, ainda sobre a poesia portuguesa, dedica-se uma atenção</p><p>especial à poesia de Fernando Pessoa. Aqui, você será introduzido no</p><p>vasto e complexo universo poético dos heterônimos, tendo a oportunidade</p><p>de identificar os recursos de linguagem utilizados por cada um deles, bem</p><p>como entrará em contato com a grande variedade de temas abordados</p><p>por eles. O estudo será conduzido de modo a considerar também o</p><p>contexto social e cultural em que o poeta viveu e produziu sua poesia.</p><p>No terceiro capítulo, inicia-se o estudo da prosa portuguesa, dando um</p><p>especial destaque a Eça de Queirós. Nele, você poderá acompanhar como</p><p>se deu a passagem do Romantismo ao Realismo na literatura portuguesa</p><p>e fará uma breve incursão na biografia do escritor. Em seguida, entrará em</p><p>contato com algumas das principais características da criação literária de</p><p>Eça de Queirós por meio da análise de um de seus romances, A ilustre</p><p>casa de Ramires. Uma atenção especial será dada ao conto, outro gênero</p><p>cultivado pelo autor. O conto escolhido para leitura e análise constitui uma</p><p>de suas obras primas: “Singularidades de uma rapariga loura”.</p><p>Como ocorreu com a poesia, era necessário incluir uma visão panorâmica</p><p>da prosa portuguesa. Por isso o capítulo 4 foi dedicado à prosa portuguesa</p><p>modernista e contemporânea. E aqui também procurou-se fazer um estudo</p><p>mais detido de alguns autores que se destacaram na produção literária da</p><p>primeira metade do século XX, como José Régio, Alves Redol, Fernando</p><p>Namora, Carlos de Oliveira, Agustina Bessa-Luís e Vergílio Ferreira e,</p><p>representando o vigor alcançado pela prosa portuguesa mais recente, o</p><p>escritor José Saramago.</p><p>Como se vê, trata-se de um livro concebido de forma sintética, mas sem que</p><p>isso tenha resultado numa visão empobrecedora da literatura portuguesa.</p><p>A história literária não é feita só de grandes autores e grandes obras e, por</p><p>isso, uma visão seletiva de sua trajetória não significa necessariamente uma</p><p>visão mais pobre. Pode significar que decidimos nos concentrar mais no</p><p>estudo de algumas obras e autores que demandam um estudo mais detido</p><p>e aprofundado.</p><p>Bons estudos!</p><p>Carlos Francisco de Morais</p><p>Introdução</p><p>Panorama da poesia</p><p>portuguesa</p><p>Capítulo</p><p>1</p><p>Neste capítulo, você entrará em contato com as principais linhas</p><p>de força que definiram as características e importância da poesia</p><p>portuguesa, desde a época de Camões até os nossos dias.</p><p>A literatura portuguesa, tradicionalmente, é mais lírica do que</p><p>prosaica. Num panorama iniciado em meados do século XII, já são</p><p>mais de oitocentos anos de cultivo da poesia no “jardim da Europa à</p><p>beira-mar plantado”, como Portugal foi chamado num verso de Tomás</p><p>Ribeiro, ali pela metade do século XIX. Em muitos momentos dessa</p><p>história, a poesia foi a via de expressão predominante, em termos</p><p>de prestígio, dos literatos lusitanos, como ocorreu no Trovadorismo,</p><p>Renascimento, Barroco, Arcadismo, Simbolismo e na Geração</p><p>de Orpheu, como é conhecida a primeira fase do Modernismo</p><p>português. Outros movimentos mostraram uma diversidade maior de</p><p>gêneros, mas não deixaram de seguir a tradição de produzir poesia</p><p>de grande qualidade, como o Realismo, como Antero de Quental e</p><p>Cesário Verde.</p><p>Para apresentar uma visão de conjunto dos principais cultivadores</p><p>do lirismo na literatura portuguesa, então, este capítulo selecionou</p><p>os nomes mais significativos desse percurso histórico. Começamos</p><p>por Luís de Camões, que definiu, nos tempos do Renascimento, um</p><p>2 UNIUBE</p><p>modelo de poeta com interesses universais que permaneceria por</p><p>muito tempo com a referência imediata dos poetas de outras épocas.</p><p>O roteiro se encerra com a atenção dada a poetas ainda vivos, que</p><p>representam as múltiplas vertentes que se abriram na poesia depois</p><p>da experiência transformadora que foi a obra de Fernando Pessoa.</p><p>Após o estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:</p><p>• mostrar a importância da poesia portuguesa no contexto da</p><p>tradição lírica ocidental, desde as origens da Idade Moderna</p><p>até a Contemporaneidade;</p><p>• abordar criticamente as relações estabelecidas pelos poetas</p><p>portugueses com as condições de produção artística de seu</p><p>tempo;</p><p>• explicar as linhas de força, em termos temáticos e formais,</p><p>presentes nas obras dos principais poetas portugueses,</p><p>com vistas a fundamentar a análise de sua contribuição para</p><p>o estabelecimento da tradição do gênero lírico em língua</p><p>portuguesa.</p><p>1.1 A poesia de Luís de Camões</p><p>1.1.1 Camões épico: o diálogo com a tradição e a afirmação</p><p>da modernidade</p><p>1.1.2 Camões lírico: uma enciclopédia da poesia ocidental</p><p>1.2 Panorama da poesia barroca</p><p>1.3 Bocage: um poeta entre dois tempos</p><p>1.4 Panorama da poesia romântica</p><p>1.5 Cesário Verde e a poesia do olhar moderno</p><p>1.6 Panorama da poesia simbolista</p><p>Objetivos</p><p>Esquema</p><p>UNIUBE 3</p><p>1.7 Mário de Sá-Carneiro: Orpheu entre o sonho e a revolução</p><p>modernista</p><p>1.8 José Régio e a poesia da Geração da presença</p><p>1.9 Tendências do pós-guerra</p><p>1.10</p><p>Sustentava contra ele Vênus bela,</p><p>Afeiçoada à gente Lusitana,</p><p>Por quantas qualidades via nela</p><p>Da antiga tão amada sua Romana;</p><p>Nos fortes corações, na grande estrela,</p><p>Que mostraram na terra Tingitana,</p><p>E na língua, na qual quando imagina,</p><p>Com pouca corrupção crê que é a Latina.</p><p>Luís de Camões</p><p>A poesia de Luís de Camões1.1</p><p>Luís Vaz de Camões faleceu em 10 de junho de 1580, em Lisboa. Tudo</p><p>o mais é incerteza em sua vida, pois não se registrou fidedignamente</p><p>seu ano de nascimento, que pode ter ocorrido em 1517 ou 1524 ou 1525,</p><p>dependendo da fonte consultada, ou sua naturalidade, pois Coimbra,</p><p>Santarém e Alenquer disputam com Lisboa essa honra. De sua infância,</p><p>nada ficou dito.</p><p>De sua juventude, pouco mais se sabe do que o folclore repete: os vários</p><p>amores, geralmente frustrados, o temperamento vivo, a indisciplina</p><p>nos estudos, a curiosidade inata. Se veio da frequência a cursos na</p><p>Universidade de Coimbra o seu abundante conhecimento da cultura</p><p>clássica, tanto grega quanto latina, bem como de história, geografia e</p><p>cosmografia, entre outros ramos do saber, nenhum documento existe</p><p>para provar que o poeta realmente tenha sido aluno da famosa instituição.</p><p>Homem feito, não se sabe de que ocupação tirava seu sustento,</p><p>levantando-se a hipótese de que era preceptor de filhos da nobreza.</p><p>As lendas que se repetem desde há muito contam que levava uma vida</p><p>4 UNIUBE</p><p>boêmia, amigo que era do copo e das belas mulheres. É certo que esteve</p><p>como soldado em Ceuta, cidade do Marrocos dominada em sua época</p><p>por Portugal, onde perdeu o olho direito numa batalha naval no estreito</p><p>de Gibraltar. Pode-se também afirmar com segurança que, a partir de</p><p>1553, viveu cerca de dez anos na Índia, como soldado e funcionário da</p><p>administração portuguesa nas cidades de Macau e Goa. Lá, por questões</p><p>de dívidas ou de desvios de condutas profissionais, esteve preso por</p><p>alguns períodos. Na volta a Portugal, por falta de condições de pagar a</p><p>viagem completa, ficou por mais de dois anos vivendo em Moçambique.</p><p>Foi nesses tempos de Índia e África que o poeta teria composto sua</p><p>obra-prima épica, Os Lusíadas.</p><p>O livro foi publicado em 1572, mediante a licença concedida pelo rei D.</p><p>Sebastião, a quem foi dedicado.</p><p>(que distingue a cada ano os mais relevantes</p><p>intelectuais portugueses), recusou-se a recebê-lo.</p><p>Ao longo das várias décadas em que publicou sua poesia, Herberto</p><p>Helder revelou uma concepção dessa arte como algo sempre em</p><p>evolução, mudança e adaptação, pois ele mesmo não se impedia de</p><p>reescrever os próprios textos, ainda que já fossem conhecidos do público</p><p>leitor. Isso conduz o leitor a alguns dos temas mais fortes dentro de sua</p><p>obra, como as metamorfoses, a passagem do tempo e a metapoesia,</p><p>76 UNIUBE</p><p>que produziu algumas das mais belas reflexões sobre o fazer poético</p><p>da contemporaneidade portuguesa. A esses temas devem ser somados</p><p>muitos outros, pois a lógica da lírica de Helder sempre foi a da amplitude,</p><p>como demonstram certos poemas de longa extensão, mais parecendo</p><p>sinfonias de palavras. Sobre isso, assim escreveu Massaud Moisés:</p><p>Poeta, medularmente poeta [...], Herberto Helder</p><p>impôs-se desde cedo, graças ao insólito da dicção</p><p>poética, como um dos mais altos valores de sua</p><p>geração. Seus versos, esculpidos “como quem</p><p>deixa um sinal maravilhoso”, identificam-se por uma</p><p>originalidade tensa, veiculadores dum lirismo elíptico,</p><p>sibilino, que, saturando o “eu” poético, se expande às</p><p>coisas e aos seres, como se a egolatria de raiz cedesse</p><p>a um pan-erotismo, sinônimo de animação íntima da</p><p>Natureza pela projeção da subjetividade do poeta.</p><p>(MOISÉS, 2008, p. 470).</p><p>Esse diálogo entre o sujeito poético e todo o Universo que ele incorpora</p><p>à sua linguagem lírica é exemplificado pela obra-prima de Helder, o</p><p>longuíssimo poema “O amor em visita”, no qual, a partir do desejo de</p><p>encontrar a Mulher Ideal, constrói pela palavra todo um novo mundo em</p><p>que os princípios masculino e feminino podem se harmonizar como um</p><p>novo Adão e uma nova Eva que habitam um novo Jardim do Éden.</p><p>Para conhecer “O amor em visita” na íntegra, você pode ver a declamação</p><p>dele feita pelo poeta brasileiro Basílio Miranda, usando este link:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=ZGl2NVyemYE</p><p>AMPLIANDO O CONHECIMENTO</p><p>Maria Teresa Horta é o nome literário de Maria Teresa de Mascarenhas</p><p>Horta Barros (1937), poetisa, romancista e jornalista. Sua carreira nas</p><p>letras começou nos anos 1960, quando se mostrou uma das vozes</p><p>femininas mais contundentes na defesa dos direitos da mulher na então</p><p>repressiva sociedade portuguesa, que ainda vivia sob a ditadura iniciada</p><p>por António Salazar ainda na década de 1920.</p><p>UNIUBE 77</p><p>Nesse contexto, esteve vinculada ao Movimento Feminista de Portugal,</p><p>ao lado de outras escritoras importantes, como Maria Isabel Barreno e</p><p>Maria Velho da Costa. Juntas, elas ficaram conhecidas como as “Três</p><p>Marias”, ao lançar o livro Novas Cartas Portuguesas (1972), que causou</p><p>sensação e mesmo escândalo, pois a obra denunciava temas tabu no</p><p>país naquele momento, como as várias formas de repressão à mulher,</p><p>o patriarcalismo ainda dominante na cultura e as injustiças da guerra</p><p>colonial, que o governo mantinha para impedir a independência de</p><p>Angola, Moçambique e outras possessões na África.</p><p>A poesia de Maria Teresa Horta compreende vinte e oito livros, da estreia</p><p>com Espelho inicial, de 1960, ao mais recente, Poesis, de 2017. Neles,</p><p>são tratadas todas as formas e todos os grandes temas da tradição lírica</p><p>portuguesa e universal, mas é preciso dar o destaque ao erotismo, do</p><p>qual a poetisa sempre tratou com a mais ampla liberdade. Sua produção</p><p>nessa área é tão significativa, em termos qualitativos e quantitativos,</p><p>que ela se converteu, em 2012, na primeira mulher ocidental a lançar</p><p>uma antologia de poemas eróticos de sua autoria, pois esse é o tema</p><p>exclusivo dos poemas reunidos em As palavras do corpo.</p><p>Na época, Maria Teresa Horta falou em entrevista sobre a importância</p><p>da sexualidade em sua vida e obra e sobre a novidade que seu livro</p><p>representava:</p><p>O erotismo é indissociável da sua poesia?</p><p>Sim, esse peso nota-se na dimensão do livro. A</p><p>sexualidade é a nossa vida. Ignorar isso é um preconceito,</p><p>é tapar algo que faz parte do ser humano, do ser vivo. Se</p><p>formos à poesia mais ancestral esse lado está lá. Mas</p><p>falamos de uma poesia escrita por homens.</p><p>Esta é a primeira antologia de poesia erótica</p><p>assinada por uma mulher?</p><p>Sim, no mundo ocidental, pelo menos, o outro não</p><p>conheço tão bem. Quando o David Mourão Ferreira, de</p><p>quem era muita amiga, lançou o livro Música de Cama,</p><p>disse-lhe: “Lindo!” E ele respondeu: “Não, lindo será um</p><p>dia a Teresa fazer uma antologia destas.” Isso ficou quase</p><p>como uma promessa a mim própria e ao meu amigo. Era</p><p>um dos meus três projetos de vida. (HORTA, 2012).</p><p>78 UNIUBE</p><p>A maneira livre como a autora aborda a questão da sexualidade nas</p><p>palavras acima é bem representativa da forma como toda sua carreira</p><p>literária tem sido construída. No exercício de suas liberdades formais</p><p>e temáticas, aliado ao seu exercício de conquista da autonomia como</p><p>cidadã durante as décadas mais decisivas da história de seu país no</p><p>século XX, a literatura de Maria Teresa Horta exemplificou – e ainda</p><p>exemplifica – de modo exemplar as transformações da sociedade, da</p><p>cultura e da arte portuguesas na contemporaneidade.</p><p>Conclusão1.10</p><p>O percurso da poesia portuguesa, tal como apresentado nas seções</p><p>acima, revela as linhas de força que sustentaram o cultivo do gênero</p><p>lírico em Portugal ao longo dos séculos. Entre elas estão, primeiro, o</p><p>diálogo com a tradição clássica greco-latina, exemplificada por Luís de</p><p>Camões e Manuel du Bocage; em seguida, as relações mantidas com</p><p>a cultura francesa, como mostram as influências de Charles Baudelaire</p><p>sobre Cesário Verde e de Paul Verlaine e Stéphanne Mallarmé sobre os</p><p>simbolistas; por fim, o ímpeto renovador, traduzido nas experimentações</p><p>com novas formas e temas praticados por Mário de Sá-Carneiro, os</p><p>presencistas ou a poetisa contemporânea Maria Teresa Horta.</p><p>Resumo</p><p>Neste capítulo, você pôde ver como a poesia portuguesa evoluiu ao</p><p>longo dos tempos, passando por diversas transformações que lhe</p><p>permitiram absorver as mudanças estéticas e sociais que alimentaram</p><p>a manifestação lírica de diversos movimentos e um grande número de</p><p>poetas de alto gabarito.</p><p>Inicialmente, foram focalizados escritores associados a escolas literárias</p><p>que desenvolviam um ideário coletivo definido, como o Renascimento,</p><p>Barroco, Arcadismo etc. Posteriormente, como mostra do impacto da</p><p>revolução que o Modernismo introduziu em termos de concepção da</p><p>UNIUBE 79</p><p>arte como constante mudança, passaram a ser objeto de atenção os</p><p>poetas que, no século XX, construíram estilos totalmente pessoais,</p><p>desvinculados de grupos ou filosofias marcadas rigidamente.</p><p>Em seu conjunto, a poesia portuguesa é definida por seu aspecto</p><p>enciclopédico, pois engloba todos os grandes temas épicos e líricos</p><p>da tradição, como, por um lado, a aventura, o heroísmo, a definição</p><p>da nacionalidade e, por outro, o amor, a constituição da subjetividade,</p><p>os mistérios da existência. Essa amplitude do campo semântico se</p><p>harmonizou com a variada gama de formas poéticas empregadas, desde</p><p>as formas fixas clássicas e renascentistas, como as odes e os sonetos,</p><p>até a explosão de liberdade iniciada pelo Romantismo e completada pelo</p><p>Modernismo. Nesse sentido, a lírica portuguesa caminhou paralelamente</p><p>às demais veiculadas nas línguas modernas, principalmente a francesa.</p><p>Leituras</p><p>Para você aprofundar o conhecimento a respeito da poesia épica de Luís</p><p>de Camões, é importante a leitura do livro Estudos sobre os Lusíadas,</p><p>organizado por José Maria Rodrigues e editado pela Academia Brasileira</p><p>de Letras. Ele pode ser baixado neste endereço:</p><p>http://www.academia.org.br/sites/default/files/publicacoes/arquivos/</p><p>cams-09-estudos_sobre_os_lusiadas-miolo-para_internet.pdf</p><p>Especificamente em relação à lírica portuguesa escrita a partir do advento</p><p>do Modernismo, recomenda-se a leitura do artigo “A poesia portuguesa</p><p>do século XX”, de Cleonice Berardinelli, da Universidade Federal do Rio</p><p>de Janeiro. Ele está disponível neste link:</p><p>http://revistas.ufpr.br/letras/article/viewFile/19471/14770</p><p>Para conhecer os desenvolvimentos da poesia portuguesa a partir dos</p><p>anos 1960, principalmente em suas vertentes mais experimentais, a</p><p>leitura sugerida é a do e-book Poesia experimental portuguesa. Cadernos</p><p>e catálogos. Vol. 1. Enquadramento teórico e contexto crítico da PO.EX.</p><p>O download pode ser feito neste endereço: http://www.po-ex.net/pdfs/</p><p>ebook1_poex.pdf</p><p>80 UNIUBE</p><p>Referências</p><p>BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Soneto e outros poemas. São Paulo: FTD, 1994.</p><p>Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv</p><p>000059.pdf>. Acesso em 03 de set. 2017.</p><p>CAMÕES, Luís de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.</p><p>CASTRO, José Acácio. José Régio – Para uma Poética do Absoluto. Theologica,</p><p>2.ª Série, 45, 2,2010, p. 503-515. Disponível em: <http://repositorio.</p><p>ucp.pt/bitstream/10400.14/13306/1/castro.pdf>. Acesso em: 07 set. 2017.</p><p>DAUNT, Ricardo. Apresentação. In: VERDE, Cesário. Obra integral de Cesário Verde.</p><p>Organização de Ricardo Daunt. São Paulo: Landy, 2006, p. 11-18.</p><p>GUIMARÃES, Ana Rosa. Os elementos ultrarromânticos em Soares de Passos e</p><p>em Álvares de Azevedo. Linguagens & Letramentos. Campina Grande: UFCG, v.1,</p><p>nº2, 2016. Disponível em: <http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.</p><p>php/linguagensletramentos/article/view/49/pdf>. Acesso em:03 set. 2017.</p><p>HORTA, Maria Teresa. A poesia erótica de Maria Teresa Horta. Máxima, 2012.</p><p>Disponível em: <http://www.maxima.pt/celebridades/detalhe/amp/maria-teresa-horta</p><p>-a-colecionadora-de-palavras.html>. Acesso em: 18 set. 2017.</p><p>LINHARES FILHO, José. O lirismo em Os lusíadas. Revista de Letras. Fortaleza,</p><p>n. 3/4, jul./dez. 1980/1981, p. 88-101. Disponível em: <http://www.repositorio.ufc.</p><p>br/handle/riufc/3158?locale=es>. Acesso em:10 set. 2017.</p><p>MARTINS, Cristiano. Camões. Temas e motivos da obra lírica. São Paulo: EDUSP; Belo</p><p>Horizonte: Itatiaia, 1981.</p><p>MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2008.</p><p>NEVES, Márcia Seabra. A revista presença e a consumação de um projecto de</p><p>cosmopolitismo estético-literário. Limite. Extremadura: Universidade da Extremadura,</p><p>nº 5, 2011, p. 133-152. Disponível em: <http://www.revistalimite.es/volumen</p><p>%205/09marci.pdf>. Acesso em: 07 set.2017.</p><p>PESSANHA, Camilo. Clepsidra. São Paulo: Núcleo, 1989. Disponível em: <http://www.</p><p>dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000065.pdf>. Acesso em: 02 set.2017.</p><p>UNIUBE 81</p><p>PESSOA, Fernando. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. (Textos estabelecidos</p><p>e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.</p><p>RÉGIO, José. Poemas de Deus e do Diabo. Lisboa: Portugália, 1965.</p><p>SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.</p><p>SALGADO JUNIOR, António. O lirismo inicial. In: CAMÕES, Luís. Obra completa.</p><p>Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p. LXXX-LXXXV.</p><p>SARAIVA, António J. & LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. Porto:</p><p>Porto Editora, 1985.</p><p>SILVA, Francisco R. da. A propósito de Bocage. Leituras de Bocage (séculos XVIII-XXI).</p><p>Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. Disponível em:</p><p><https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/7056/3/</p><p>nobracompletaleituras000118970.pdf>. Acesso em 21 set. 2017.</p><p>VERDE, Cesário. Obra integral de Cesário Verde. Organização de Ricardo Daunt.</p><p>São Paulo: Landy, 2006.</p><p>Alexandre Bonafim Felizardo</p><p>Introdução</p><p>A poesia de</p><p>Fernando Pessoa</p><p>Capítulo</p><p>2</p><p>No percurso desta unidade didática, iremos nos aventurar na obra</p><p>de um dos maiores poetas de língua portuguesa: Fernando Pessoa.</p><p>Poeta de faces múltiplas, de rostos distorcidos, ele criou, a partir de</p><p>sua angústia existencial, do vazio de seu ser, um jogo de espelhos,</p><p>de ficções. Desse processo nasceram os seus heterônimos:</p><p>Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, poetas quase</p><p>existentes em carne e osso, tamanha a verossimilhança de suas</p><p>vidas inventadas.</p><p>O escritor português também assinou textos com o próprio nome.</p><p>Todavia, longe de ser um expoente de sua condição concreta de</p><p>humano, esse ortônimo também se tornou invenção.</p><p>Resta -nos a angústia de um pergunta: quem é Pessoa? Talvez uma</p><p>boa resposta seria a do escritor italiano Pirandelo: “Pessoa é um,</p><p>nenhum, cem mil”.</p><p>84 UNIUBE</p><p>Ao final deste capítulo esperamos que você seja capaz de:</p><p>• identificar os recursos líricos da linguagem e a gama de temas</p><p>abordados por Pessoa;</p><p>• explicar o contexto social e cultural do poeta;</p><p>• esclarecer os significados profundos dos poemas analisados;</p><p>• indicar e comentar as principais características da obra de</p><p>Pessoa.</p><p>2.1 Considerações iniciais</p><p>2.2 Um eu que se fez em inúmeros eus</p><p>2.3 Pessoa ninguém?</p><p>2.4 Alberto Caeiro: o guardador de rebanhos</p><p>2.5 Ricardo Reis: um pagão em tempos modernos</p><p>2.6 Álvaro de Campos: o poeta cosmopolita da vida moderna</p><p>2.7 Fernando Pessoa ortônimo é ele mesmo?</p><p>2.8 Conclusão</p><p>Objetivos</p><p>Esquema</p><p>Considerações iniciais2.1</p><p>Vamos começar uma viagem pela obra de um grande poeta: Fernando</p><p>Pessoa!</p><p>Poeta modernista, Pessoa foi um artista que mudou os rumos de toda a</p><p>poesia não só de língua portuguesa, mas também de outras línguas. Ele</p><p>instituiu uma nova forma de nos perceber e de percebermos o mundo.</p><p>Depois de Pessoa o homem jamais foi o mesmo.</p><p>Você está preparado para mergulhar nesse universo insólito e</p><p>fascinante? Temos certeza que esse poeta irá mexer com seu</p><p>sentimento, com a sua forma de ver o mundo.</p><p>Depois de conhecer um pouquinho da obra desse tão importante autor,</p><p>você voltará à realidade com uma alma maior, como um ser humano</p><p>mais fecundo e intenso.</p><p>Basta lembrarmos as palavras de Ricardo Reis, uma das criaturas inventadas</p><p>por Pessoa: “Para ser grande sê inteiro”. Depois de Pessoa, estamos</p><p>fadados a ser grandes e inteiros.</p><p>Fernando Pessoa não foi somente um grande autor, mas um escritor</p><p>paradigmático, um poeta maior entre os poetas maiores.</p><p>Você sabe o que significa paradigmático? Tal adjetivo advém do</p><p>substantivo paradigma. Paradigma representa uma ordem, um modelo,</p><p>um pensamento peculiar a um determinado tempo histórico.</p><p>Vamos ver um exemplo?</p><p>Antes do renascimento, na era medieval, o homem acreditava que</p><p>Deus era o centro do universo. A esse modelo de pensamento, a esse</p><p>paradigma, convencionou -se chamar de teocentrismo.</p><p>Com o advento do renascimento e a paulatina abertura do homem</p><p>medieval ao humanismo e à redescoberta dos valores greco -romanos,</p><p>passou -se a inserir o homem como a medida e o centro do mundo. A</p><p>esse novo paradigma deu -se o nome de “antropocentrismo”.</p><p>Pois bem, Pessoa revolucionou a poesia de tal maneira que, após</p><p>o advento de sua obra, uma nova sensibilidade, uma nova forma de</p><p>perceber, de pensar o mundo e o homem foram instituídas.</p><p>UNIUBE 85</p><p>Antes de iniciarmos o nosso passeio pela escrita do poeta lisboeta, vamos</p><p>compreender um pouco o contexto social e alguns dados biográficos da</p><p>vida do autor?</p><p>Nascido em Lisboa, em 1888, Fernando Pessoa perde o pai ainda</p><p>criança, aos cinco anos de idade. Logo em seguida sua mãe casa -se</p><p>novamente e muda -se com o filho e o novo marido para Durban, na África</p><p>do Sul. Esse incidente biográfico é de suma importância para a formação</p><p>lírica do poeta.</p><p>Na África, Pessoa trava contato com uma língua que lhe será íntima,</p><p>o inglês. Convivendo entre dois universos linguísticos, entre duas</p><p>culturas, duas línguas, a inglesa e a portuguesa, inicia -se, talvez, aqui,</p><p>um processo de cisão, de divisão do ser, do eu. Isso com toda certeza</p><p>influirá na formação da sensibilidade do poeta.</p><p>Em 1905, de volta a Lisboa, Pessoa cursa as faculdades de letras e de</p><p>filosofia, não terminando, porém, tais cursos. Começa a trabalhar como</p><p>correspondente comercial, emprego que lhe garantirá o sustento por</p><p>toda a vida.</p><p>O início do século XX foi um período de grande ebulição cultural em</p><p>Portugal. A república portuguesa havia sido proclamada. Intelectuais de</p><p>grande importância passaram a formular uma série de reflexões sobre</p><p>a cultura e o pensamento portugueses. Jaime Cortesão, Teixeira de</p><p>Pascoais, entre</p><p>outros, irão formular, por meio de uma importante revista</p><p>chamada A águia, o conceito de saudade para os portugueses. Conforme</p><p>o crítico e historiador literário Massaud Moisés (1977), a saudade é a</p><p>base do espírito português. Vejamos o que esse importante pensador</p><p>tem a nos dizer?</p><p>86 UNIUBE</p><p>Passando para o exame da alma portuguesa, chega finalmente ao seu</p><p>destino: a Saudade, que “é o próprio sangue espiritual da Raça; o seu</p><p>estigma divino, o seu perfil eterno. Claro que é a saudade no seu sentido</p><p>profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento -ideia, a emoção</p><p>refletida, onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria, amor e</p><p>desejo, terra e céu, atinge a sua unidade divina. Eis a Saudade vista na</p><p>sua essência religiosa, e não no seu aspecto superficial e anedótico de</p><p>simples gosto amargo dos infelizes”. (MOISÉS, 1977, p. 291.)</p><p>Para mais informações sobre Jaime Cortesão, consulte o site: <http://</p><p>pt.wikipedia.org/wiki/Jaime_Cortes%C3%A3o>.</p><p>Se quiser conhecer um pouco mais sobre esse importante poeta português</p><p>acesse o site: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Teixeira_de_Pascoaes>.</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>Você sabia que a saudade é um sentimento muito importante para</p><p>Portugal? Povo navegante, viajante, os portugueses sempre guardaram</p><p>uma doce melancolia ante as despedidas, ante a perda de um chão, de</p><p>uma pátria.</p><p>E quem nunca sentiu saudade? Aposto que você, com toda certeza, já</p><p>se viu na situação de se despedir de alguém querido, de se entregar a</p><p>novas viagens, deixando para trás um passado sempre vivo no coração.</p><p>Pois bem, os portugueses fizeram de tal sentimento uma sensibilidade</p><p>artística.</p><p>Prosseguindo em nosso estudo, os intelectuais de A águia irão formular</p><p>uma espécie de teoria sobre a saudade que influenciará toda a poesia</p><p>de língua portuguesa, inclusive a de Pessoa.</p><p>UNIUBE 87</p><p>Após o furor de A águia, surgirá outra revista chamada Orfeu. Em</p><p>torno dessa publicação, irão se reunir inúmeros poetas, liderados</p><p>pela genialidade de Fernando Pessoa: Mário de Sá-carneiro, Almada-</p><p>Negreiros, Raul Leal, entre outros. Esse grupo de jovens estava antenado</p><p>com o que acontecia de novo no mundo das artes em todo o mundo.</p><p>Vamos conhecer um pouco mais sobre essa geração? Faça uma pesquisa</p><p>na Internet e descubra a biografia e a obra desses poetas.</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>Eles se aproximaram de diversas vanguardas estéticas que renovaram</p><p>e deram um novo influxo às artes de Portugal: o futurismo, o cubismo, o</p><p>expressionismo, entre outras.</p><p>Você deve estar se perguntando o que seria uma vanguarda, não é</p><p>mesmo? As vanguardas foram movimentos de renovação das artes. Toda</p><p>vanguarda tem como proposta trazer algo de inovador, propor mudanças</p><p>e novos preceitos para a arte.</p><p>Nesse sentido, o artista vanguardista faz uma leitura crítica do passado,</p><p>negando o que essa tradição tem de retrógrada e ultrapassada.</p><p>Um exemplo disso seria o surrealismo. A novidade dessa vanguarda foi</p><p>explorar o inconsciente como fonte de criação. Os surrealistas praticavam</p><p>a escrita automática, pela qual o autor se tornava uma espécie de</p><p>médium, abrindo -se para o seu eu profundo e deixando as palavras virem</p><p>naturalmente, libérrimas, à página.</p><p>Todo esse processo se dava sem nenhuma aparente intervenção incisiva</p><p>e marcante do pensamento racional. O resultado disso é o surgimento de</p><p>uma escrita caótica, ilógica, semelhante aos sonhos absurdos, loucos.</p><p>88 UNIUBE</p><p>Você já viu alguma tela do artista espanhol Salvador Dalí? Faça uma</p><p>pesquisa na Internet e veja algumas das telas desse artista. Você terá a</p><p>noção de uma arte do absurdo, uma arte onírica, feita de sonho e pesadelo.</p><p>Pessoa irá atuar na revista Orfeu, publicando ensaios e poemas</p><p>esparsos. Tal revista, entretanto, teria vida curta. Logo o grupo da</p><p>inovadora publicação se dissolve. Após esse fato, Fernando Pessoa</p><p>irá se recolher a uma vida reclusa, solitária. É nesse sigilo que o poeta</p><p>irá elaborar uma obra poética estrondosa, de grande inovação, poesia</p><p>visionária, a congregar toda a tradição da lírica tanto mundial como</p><p>portuguesa.</p><p>Nesse sentido, o poeta foi praticamente, em vida, um autor inédito.</p><p>Publicou apenas uma coletânea de poemas intitulada Mensagem. Seus</p><p>inéditos foram guardados em um baú e até hoje não se publicou tudo o</p><p>que poeta escreveu. Dessa famosa arca de tesouros irromperam escritos</p><p>preciosos, palavras de grande contundência, a marcar nossa alma para</p><p>todo o sempre.</p><p>Vamos nos debruçar sobre esse fantástico mundo de Fernando</p><p>Pessoa?</p><p>Um eu que se fez inúmeros eus2.2</p><p>A genialidade de Pessoa está no fato de ele ter criado, a partir de sua</p><p>sensibilidade poética, inúmeros outros eus, seres fictícios que, por</p><p>serem coerentes e convincentes, quase chegam a ganhar um estatuto</p><p>de realidade.</p><p>O poeta de Mensagem, portanto, criou personagens tão verossímeis, tão</p><p>concretos e vivos, que se tornaram, aparentemente, pessoas de carne e</p><p>osso. A esses seres inventados, com identidade própria, convencionou-se</p><p>chamar de heterônimos.</p><p>UNIUBE 89</p><p>São três os heterônimos mais famosos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e</p><p>Álvaro de Campos. Afirmamos serem os mais famosos porque esses</p><p>são os mais representativos, os de maior atuação no interior da obra do</p><p>poeta. Todavia, há inúmeros outros. Estima -se que o escritor português</p><p>tenha criado dezenas de heterônimos. Haja imaginação, não é mesmo?</p><p>Vamos tentar entender o que seria um heterônimo? Muita gente, quando</p><p>criança ou até mesmo na fase adulta, deve ter inventado personagens,</p><p>amigos fictícios. Pois bem, esses seres possuíam uma vida própria,</p><p>uma biografia, uma personalidade. Tais criaturas, feitas de sonho e</p><p>imaginação, são, na verdade, ficções carregadas de marcas do nosso</p><p>próprio eu. Esses seres mágicos são heterônimos, atores de uma</p><p>ficção que nós inventamos, que nós compomos, para inserir, em nossa</p><p>realidade tão pobre, uma aura de fantasia, de encanto e mistério.</p><p>Creio que, a partir de agora, você deve ter uma noção mais elaborada do</p><p>que seja um heterônimo. Vamos prosseguir em nosso estudo?</p><p>Evidentemente que todos esses seres fictícios, criados pelo genial poeta</p><p>português, são representações de poetas. Tais escritores fictícios são tão</p><p>singulares, possuem cada qual uma escrita tão peculiar, que chegam a</p><p>nos causar assombro. Como uma pessoa física, concreta, o Fernando</p><p>Pessoa, como ser empírico, foi capaz de inventar e escrever uma poesia</p><p>peculiar para cada heterônimo?</p><p>Talvez você deva estar em dúvida sobre o significado de uma palavra usada</p><p>no parágrafo anterior. Empírico significa a experiência viva, real, concreta.</p><p>Dessa maneira, como o autor encarnado, Pessoa, conseguiu ser tão</p><p>diferente de si e, ao mesmo tempo, tão fiel ao seu projeto poético?</p><p>É verdadeiramente assombroso. Tal empreendimento revela -nos a</p><p>genialidade desse escritor tão fascinante.</p><p>90 UNIUBE</p><p>Além dos heterônimos, o autor português também assinou o próprio</p><p>nome em diversos poemas. O Fernando Pessoa por ele mesmo,</p><p>diferentemente dos demais heterônimos, é comumente chamado de</p><p>ortônimo.</p><p>O ortônimo representaria o Fernando Pessoa como poeta a coincidir, pelo</p><p>menos aparentemente, com a pessoa empírica do escritor.</p><p>Seria, entretanto, o ortônimo mais legítimo ou mais real que os demais?</p><p>Haveria entre o poeta Pessoa e o homem Pessoa maior aproximação,</p><p>ao ponto de podermos descansar nossa curiosidade e aceitar tal paralelo</p><p>como uma verdade incontestável?</p><p>De uma coisa podemos ter certeza: na obra desse lisboeta nada é simples,</p><p>tudo é um jogo de espelhos, uma construção de palavras labirínticas.</p><p>A crítica literária Leyla Perrone -Moisés (2001) elucida -nos a esse respeito.</p><p>Ela afirma -nos que também a poesia de Fernando Pessoa por ele mesmo</p><p>transformou -se em obra de um ser fictício. Não há mais realidade no</p><p>ortônimo do que nos heterônimos. De tal modo o poeta finge ao ser ele</p><p>mesmo, que a face do ortônimo torna -se vazia de um conteúdo autêntico,</p><p>de uma verdade enraizada na existência do poeta.</p><p>Difícil? Vamos tentar explicar melhor.</p><p>O Fernando Pessoa ortônimo</p><p>não tem existência física, concreta, palpável. Como os heterônimos,</p><p>ele também é uma máscara. Dessa forma, o poeta, como ser físico,</p><p>representativo, é inapreensível. Nunca encontraremos a verdadeira</p><p>biografia desse escritor, nunca sua existência palpável, concreta, será</p><p>refratada em sua escrita. A pessoa de Pessoa, sua verdade humana, será</p><p>para seus leitores um completo mistério, porque o autor criou uma série</p><p>de máscaras nas quais seu rosto se confundiu e se apagou.</p><p>Sobre tal questão, vamos aprofundar nossa análise. Para tanto, iremos</p><p>recorrer ao importante estudo de Leyla Perrone -Moysés.</p><p>UNIUBE 91</p><p>Pessoa ninguém?2.3</p><p>Bem, acreditamos que é difícil imaginar uma pessoa que, em vida, é</p><p>ninguém. Você deve estar se perguntando como tal loucura pode acontecer.</p><p>Calma, vamos tentar compreender tal fenômeno com maior precisão.</p><p>Você já deve ter ouvido a famosa frase do filósofo francês Descartes:</p><p>“Penso, logo existo”. Pois bem, nossa filosofia, nossa razão e cultura</p><p>foram moldadas, ao longo de séculos, pela certeza e confiança na</p><p>existência de um eu íntegro, totalizante.</p><p>Conheça um pouco da vida de Descartes no seguinte site: <http://</p><p>pt.wikipedia.org/wiki/Ren%C3%A9_Descartes>.</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>Esse ser que pensa, que existe, é uma voz completa, é o nosso ser, o</p><p>nosso espírito ou alma. Tal preceito está na raiz do pensamento ocidental</p><p>e permaneceu como um paradigma durante séculos.</p><p>O cristianismo, por sua vez, pautou -se nessa crença, legando aos</p><p>homens uma alma, um eu inteiro, vivo, de realidade quase concreta,</p><p>que transcende a vida terrena e adquire, com a morte, a eternidade.</p><p>Somente com o advento do século XX tal preceito foi posto em dúvida.</p><p>As ciências e a filosofia questionaram esse ser total, sem fissuras, sem</p><p>cortes, redondo.</p><p>Você mesmo, enquanto lê esse texto, sente -se como um ser verdadeiro,</p><p>consciente, sente -se como uma pessoa concreta, presente no mundo</p><p>das coisas palpáveis. Mas, para muitos, isso não é tão verdadeiro assim.</p><p>92 UNIUBE</p><p>Em vários segmentos do saber tal preceito vai se desintegrando.</p><p>Na linguística, por exemplo, o pensamento de Benveniste (1991) quebra</p><p>essa certeza. Para esse pensador da linguagem, o eu só acontece quando</p><p>ele enuncia. O eu é um recurso textual. Só existe no ato da fala. Se assim</p><p>pensarmos, nós somos apenas texto cursivo, em decurso permanente, mas</p><p>como todo texto, finitos. Há sempre um ponto final, um silêncio lacunar, a</p><p>morte, que margeia o nosso eu, o nosso ser feito de palavras.</p><p>Sobre Benveniste, acesse o site: <http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89mile_</p><p>Benveniste>.</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>A psicanálise, por sua vez, contribuiu para a quebra e a cisão desse</p><p>eu total. Para Freud (apud RAPPAPORT; FIORI; DAVIS, 1991), o</p><p>eu, a psique, se dividiria em três instâncias: id, ego e superego. O id</p><p>representaria as pulsões do irracional e do desejo; o ego, as operações</p><p>da razão, os recursos do consciente aptos a nos orientar, a nos proteger</p><p>dos perigos do mundo externo; o superego seria a instância moral, a voz</p><p>de nossa consciência.</p><p>Além dessa quebra do eu em fragmentos, a psicanálise trouxe à tona</p><p>outro universo em nós, obscuro, submerso, uma verdadeira personalidade</p><p>oculta a nos guiar, sem que notemos tal presença. Esse eu escondido</p><p>seria o inconsciente. Portanto, para a psicanálise, já não existe uma</p><p>psique completa, mas um feixe, um amontoado de cacos, de vozes, que</p><p>dão forma ao nosso eu.</p><p>Poderíamos elencar uma série de outros pensadores que contribuíram para</p><p>a quebra da certeza de um eu: Foucault, Lacan, Derrida, Wittgenstein, entre</p><p>outros.</p><p>UNIUBE 93</p><p>Bem, talvez agora fique mais fácil para você imaginar o nosso eu</p><p>como uma peça não coesa, um objeto incompleto, múltiplo. Há em nós</p><p>inúmeros impulsos, contradições que quebram a integridade de um eu</p><p>global. Além do mais, em cada situação a gente sempre é de um jeito.</p><p>Nunca somos idênticos a nós mesmos durante todo o tempo, por todos</p><p>os espaços e na diversidade das situações.</p><p>Pessoa levou tal condição existencial ao seu extremo, vivenciou isso</p><p>dramaticamente, ao ponto de se partir em vários outros eus. Conforme</p><p>Leyla Perrone -Moisés, o horror de Pessoa foi “considerar a máscara um</p><p>vício, e sentir -se condenado à máscara”. (2001, p. 26.) O homem Pessoa,</p><p>dessa forma, fez de seu vazio existencial, da falta de um eu totalizador,</p><p>uma multiplicação de máscaras, pelas quais conseguiu expressar suas</p><p>diversas vertentes e características subjetivas. Esse deserto do ser, do</p><p>íntimo, fica patente na seguinte citação de um texto em prosa de Pessoa:</p><p>Ficarei no Inferno de ser Eu, a Limitação Absoluta,</p><p>Expulsão–Ser do Universo longínquo! Ficarei nem Deus,</p><p>nem homem, nem mundo, mero vácuo -pessoa, infinito</p><p>de Nada consciente, pavor sem nome, exilado do próprio</p><p>mistério, da própria Vida. Habitarei eternamente o deserto</p><p>morto de mim, erro abstracto da criação que me deixou</p><p>atrás. Arderá em mim eternamente, inutilmente, a ânsia</p><p>(estéril) do regressar a ser.</p><p>(PESSOA apud PERRONE -MOISÉS, 2001, 28 -29.)</p><p>Esse fragmento nos causa arrepio, não é mesmo? Estamos diante de</p><p>um ser vazio, perdido em si e de si mesmo, um homem despencado no</p><p>completo vácuo, abandonado por Deus e pelos demais homens.</p><p>Podemos não ter vivido tal experiência nessa profundidade, mas com</p><p>certeza já sentimos uma angústia, um vazio interior, muitas vezes sem</p><p>uma causa específica. Pois bem, como o poeta vive tudo intensamente,</p><p>esse vazio existencial é, para ele, mais agudo, é uma experiência</p><p>visceral.</p><p>94 UNIUBE</p><p>Bem, agora talvez fique mais fácil pensarmos o eu de pessoa a partir de</p><p>certa ausência do ser, uma ausência que, contraditoriamente, se torna</p><p>plena de outras presenças, de outras vozes.</p><p>De acordo com a teoria de Perrone -Moisés, Pessoa fez -se muito para</p><p>preencher o seu ser vazio. É desse deserto que nasce o deslumbrante</p><p>universo dos heterônimos.</p><p>Vamos agora conhecer um pouquinho de cada um dos heterônimos do</p><p>nosso grande poeta? Claro que também iremos passear pela poesia</p><p>de Fernando Pessoa ortônimo. Vamos lá, então, apreender mais um</p><p>pouquinho desse mundo?</p><p>Alberto Caeiro: o guardador de rebanhos2.4</p><p>Alberto Caeiro será o heterônimo que exercerá a tarefa de mestre sobre</p><p>os demais. De todas as criações de Pessoa, Caeiro é aquele que está</p><p>mais próximo da natureza, de uma vida primitiva, não permeada pelo</p><p>raciocínio lógico, pelo império da razão.</p><p>Fernando Pessoa chegou a criar a biografia de todos os seus heterônimos.</p><p>Caeiro, por exemplo, nasceu em Lisboa, em 1889, e morreu de tuberculose</p><p>na mesma cidade, em 1915. Passou a vida toda no campo, em companhia</p><p>de uma tia. Teve instrução apenas primária, o que talvez explique sua recusa</p><p>por uma poesia filosofante.</p><p>SAIBA MAIS</p><p>Para o heterônimo, portanto, o espaço da natureza é privilegiado; torna -se</p><p>sua enseada e seu motivo poético. Conforme Álvaro Cardoso Gomes, a</p><p>natureza para Caeiro “constitui o espaço vivo e original, espaço da integração</p><p>entre homem e cosmo”. (GOMES, 1987, p.14.)</p><p>UNIUBE 95</p><p>Todo o esforço de Caeiro, portanto, é o de retornar a um mundo original,</p><p>não conspurcado pelo processo civilizatório, paraíso perdido que o poeta</p><p>intenta recuperar pela palavra poética.</p><p>Aliás, como você deve saber, tal desejo é natural no homem moderno,</p><p>estafado pela vida corrida do dia a dia. Uma casa no campo, por exemplo,</p><p>é o sonho de consumo de muitas pessoas que vivem na cidade grande.</p><p>Para esse heterônimo, a existência do homem se justifica na natureza, em</p><p>uma vida de simplicidade, em que as coisas são somente o que elas são,</p><p>despidas de toda metafísica, de toda elucubração do pensamento lógico.</p><p>Para esse poeta, as pedras, os caminhos, as árvores, os rios, são belos por</p><p>serem coisas simples, despidas de qualquer transcendência. Afirma Caeiro:</p><p>“O que nós vemos das cousas são as cousas”. (PESSOA, 1998, p. 217.)</p><p>Veja que, nesse sentido, o poeta não segue o postulado platônico, pelo</p><p>qual o mundo é invenção de outro, perfeito, sublime, o mundo</p><p>das ideias.</p><p>Dessa forma, não há necessidade de nenhum discurso poético para</p><p>tornar o mundo belo. A beleza do mundo é que afeta a palavra e permite</p><p>ao homem vislumbrar uma existência humilde, campesina, livre de todo</p><p>peso de uma vida artificial.</p><p>Se a palavra não é responsável pela beleza das coisas, a poesia nasce,</p><p>para esse mestre, despida de recursos retóricos inflamados, de processos</p><p>estéticos floreados. O poema se faz com palavras despidas, simples como</p><p>as coisas, os objetos: “A espantosa realidade das cousas/ é a minha</p><p>descoberta de todos os dias”. (PESSOA, 1998, p. 234.)</p><p>Com efeito, a estética desse guardador de rebanhos é objetivista, centra -se</p><p>com maior ênfase no mundo dos objetos, e não nos sobressaltos da alma.</p><p>96 UNIUBE</p><p>Conforme Cardoso Gomes, o poeta pretende atingir “a coisidade das</p><p>coisas”. (GOMES, 1987, p. 15.) Nesse sentido, não cabe no discurso</p><p>a busca de verdades eternas, místicas, pertencentes a mundos</p><p>transcendentes, imaginários: “O único sentido íntimo das coisas/ É elas</p><p>não terem sentido íntimo nenhum”. (PESSOA, 1998, p. 223.)</p><p>A grande paixão de Caeiro, portanto, é o real concreto, é o nosso mundo</p><p>palpável. Uma pessoa tão encantada pela superfície física do mundo só</p><p>poderia rejeitar todo tipo de fuga a esse concreto imediato: “eu nunca</p><p>passo para além da realidade imediata/ Para além da realidade imediata</p><p>não há nada”. (PESSOA, 1998, p. 277.)</p><p>Creio que você já deve ter experimentado tal situação. Às vezes nós</p><p>amamos tanto ver alguma coisa, algum acontecimento, um pôr do sol, por</p><p>exemplo, uma flor, um pássaro, que sentimos, pelo menos brevemente,</p><p>que todo paraíso além da terra está na própria terra. Para Caeiro esse</p><p>encanto faz -se no aqui e agora, jamais em um eterno além.</p><p>Nesse sentido, Caeiro é um poeta sensualista. Ele a todo o momento</p><p>exalta os sentidos, principalmente o olhar. Contemplar o mundo, doar -se</p><p>a ele pelos olhos, eis a grande aventura desse poeta em permanente</p><p>estado de encantamento pelas coisas. Afirma o poeta: “A nossa única</p><p>riqueza é ver”. (p. 208), “Vi como um danado”. (PESSOA, 1998, p. 275.)</p><p>De acordo com Álvaro Cardoso Gomes, a visão aproxima</p><p>a subjetividade do mundo: “A visão é o mais objetivo dos</p><p>órgãos dos sentidos: vendo, o sujeito elide o próprio</p><p>sujeito e entrega -se ao mundo objetivo”. (1987, p.16.)</p><p>O que significaria isso que Álvaro nos afirma? Quando a gente olha</p><p>as coisas, a gente não se sente nelas, próxima a elas? Pois bem, o</p><p>crítico nos afirma justamente essa verdade, a de que o nosso eu, nossa</p><p>subjetividade, ao ver, se entrega ao mundo ao redor.</p><p>Elidir</p><p>Eliminar,</p><p>suprimir.</p><p>UNIUBE 97</p><p>Daí nasce em Caeiro a necessidade de um olhar que ilumina o mundo.</p><p>A luz é metáfora de uma busca de precisão, de exatidão, de tudo o que</p><p>é contemplado: “Às vezes, em dia de luz perfeita e exata,/ [...] as coisas</p><p>têm toda a realidade que podem ter”. (PESSOA, 1998, p. 218.)</p><p>Dessa forma, um poeta tão confiante nos sentidos físicos, só poderia</p><p>desconfiar de processos psíquicos como a imaginação e o pensamento.</p><p>Tais ações do intelecto afastam o homem da natureza e da realidade</p><p>imediata do mundo.</p><p>Dessa entrega aos sentidos, nasce também uma desconfiança do tempo</p><p>retilíneo, linear e histórico. Como sabemos, o tempo que se estende</p><p>como uma linha, como uma flecha que sempre voa, envelhece em</p><p>demasia o presente, tornando -o, com rapidez estúpida, passado. Essa</p><p>concepção de tempo ocidental, acelerada pelo consumo desenfreado</p><p>(o que é moda agora amanhã já está obsoleto), pelo frenesi da vida</p><p>capitalizada, é totalmente rejeitada pelo mestre Caeiro.</p><p>Daí o heterônimo valorizar apenas o presente e desprezar passado e</p><p>futuro. Ademais, como o olhar só acontece no ato da ação, o instante do</p><p>agora é a única realidade verídica do homem. Daí nasce o sentimento</p><p>de atemporalidade do presente, de concretude física do tempo, ao ponto</p><p>das coisas estarem fora do próprio tempo:</p><p>O que é o presente?</p><p>É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.</p><p>É uma cousa que existe em virtude de outras cousas</p><p>existirem.</p><p>Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.</p><p>Não quero incluir o tempo no meu esquema.</p><p>(PESSOA, Fernando, 1998, p. 304.)</p><p>O presente perde sua realidade, torna -se mero espaço entre o ontem e</p><p>o amanhã. No caso de Caeiro, funciona com mais eficácia substituirmos</p><p>a noção de presente pela de momento.</p><p>98 UNIUBE</p><p>O momento seria o átimo, a curta duração, em que a percepção apreende</p><p>o objeto, anterior a todo reconhecimento e trabalho da razão.</p><p>Esse instante mágico torna -se único e jamais se repete. Em consequência,</p><p>também as coisas tornam -se únicas, singulares. Nunca uma flor, por</p><p>exemplo, pertence a uma espécie geral de flores. Uma rosa não é jamais</p><p>uma rosa, mas a rosa, irrepetível, inigualável às demais.</p><p>Nesse sentido, Caeiro (PESSOA, 1998, p. 204) apreende as coisas como</p><p>se sempre as visse pela primeira vez, com olhos de eterna criança:</p><p>Sei ter o pasmo essencial</p><p>Que tem uma criança se, ao nascer,</p><p>Reparasse que nascera deveras...</p><p>Sinto -me nascido a cada momento</p><p>Para a eterna novidade do mundo...</p><p>Você já viu uma criança fazer uma observação inédita do mundo? As</p><p>crianças, em sua ingenuidade, guardam uma profunda sabedoria, a</p><p>sabedoria despida dos processos da lógica racional. É esse pensamento</p><p>que Caeiro persegue.</p><p>A linguagem, a razão, tenta agrupar as coisas em esquemas, em estruturas</p><p>generalizantes. Desse procedimento, nascem as ciências naturais a</p><p>organizarem os elementos químicos em tabelas periódicas, os objetos físicos</p><p>em estados (sólido, líquido ou gasoso), os animais em espécies.</p><p>Para Caeiro, isso não é possível, porque cada coisa é singular. Daí o</p><p>respeito que o poeta tem pela multiplicidade e diversidade das cosias.</p><p>Com efeito, a linguagem poética tenta também acompanhar esse estado</p><p>caótico da diversidade. Em versos soltos, na falta de disciplina poética,</p><p>numa produção lírica de formas múltiplas como a vida, nasce essa busca</p><p>de uma linguagem capaz de exprimir a desorganização das coisas.</p><p>Sonetos perfeitos com rimas perfeitas não seriam eficazes ao espelharem</p><p>o caos de um mundo imperfeito, desigual.</p><p>UNIUBE 99</p><p>Agora que vimos algumas características da poesia de Caeiro, vamos</p><p>fazer a análise de um poema desse heterônimo?</p><p>Vamos ler o poema número XLIX do livro O guardador de rebanhos?</p><p>Meto -me para dentro, e fecho a janela.</p><p>Trazem o candeeiro e dão as boas noites,</p><p>E a minha voz contente dá as boas noites.</p><p>Oxalá a minha vida seja sempre isto:</p><p>O dia cheio de sol, ou suave de chuva,</p><p>Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,</p><p>A tarde suave e os ranchos que passam</p><p>Fitados com interesse da janela,</p><p>O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,</p><p>E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,</p><p>Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,</p><p>Sentir a vida correr por mim com um rio por seu leito,</p><p>E lá fora um grande silêncio como um Deus que dorme.</p><p>(PESSOA, 1998, p. 227-229.)</p><p>O eu lírico, logo no primeiro verso, busca a intimidade do lar, o descanso,</p><p>o repouso. Daí o ato enfático de fechar a janela. No interior da casa,</p><p>temos, portanto, a segurança, a paz, a serenidade. Bachelard (1996),</p><p>importante teórico do espaço, afirma que a casa é o centro do cosmos.</p><p>Nela, encontramos um ninho, uma concha, onde o universo todo repousa,</p><p>adormece. O eu poético busca justamente esse conforto.</p><p>Você já deve ter sentido a imensa necessidade de conforto, de descanso.</p><p>Nesses momentos, nossa casa é um verdadeiro oásis. É justamente</p><p>essa busca de recanto, de paz, que leva o eu lírico do poema a fechar</p><p>a janela da casa.</p><p>100 UNIUBE</p><p>Essa ideia de fechamento é acompanhada, no plano</p><p>sonoro, pela inserção de aliterações fechadas, de</p><p>con soantes que se travam: “MeTo -me Para DenTro”.</p><p>Essas aliterações exprimem a sonoridade da própria</p><p>janela que se fecha, o eco surdo desse gesto a soar</p><p>pela intimidade da casa.</p><p>No interior desse recinto, há outras pessoas, não identificadas, referidas apenas</p><p>pelos verbos na terceira pessoa do plural. Pelo ato de cumprimentarem-</p><p>se, podemos</p><p>inferir que há entre o eu poético e essas pessoas uma</p><p>relação amistosa de cordialidade. Isso é reforçado pelo adjetivo “contente”</p><p>ligado ao substantivo “voz”.</p><p>O ato de trazerem o candeeiro nos faz pensar que é noite. A luminosidade</p><p>desse lustre, arcaico, ligado ao mundo campesino, realça a sensação de</p><p>aconchego: estamos em um lar levemente iluminado.</p><p>O quarto verso é de suma importância. Ele funciona como uma linha</p><p>divisória, um limite: a cisão entre o mundo íntimo da casa e o espaço</p><p>externo da natureza.</p><p>Nesse aspecto, apesar do eu lírico estar no aconchego</p><p>da casa, sua vida inteira se volta e se identifica</p><p>com o espaço externo. Temos assim uma antítese</p><p>entre o interior e o exterior. É como se também o</p><p>espaço do lar fosse regido pela natureza.</p><p>Esse quarto verso também nos desvela, de forma quase cinematográfica,</p><p>o gesto do eu lírico, no momento tênue, frágil, anterior ao fechamento</p><p>da janela e o seu fecundo olhar estendido pelo que se revela lá fora. A</p><p>duração desse olhar é composta pela sequência dos versos quinto ao</p><p>oitavo.</p><p>Aliteração</p><p>É uma figura sonora</p><p>que consiste na</p><p>repetição de alguns</p><p>sons consonantais. Um</p><p>exemplo são os trava-</p><p>línguas, como aquele</p><p>“O rato roeu a roupa do</p><p>rei de Roma”.</p><p>Antítese</p><p>É a figura de</p><p>linguagem pautada</p><p>pelas oposições.</p><p>Exemplo: “A saudade</p><p>é um fogo que nos</p><p>gela o peito”. Fogo</p><p>e gelo formam uma</p><p>antítese.</p><p>UNIUBE 101</p><p>Nessa série de versos, temos a descrição do espaço da natureza.</p><p>Entretanto, longe de ser uma descrição objetiva, temos uma sequência</p><p>insólita, pois o eu lírico não sabe definir a situação do dia: se faz chuva ou</p><p>sol, se a tarde é suave ou tempestuosa. Temos uma verdadeira mistura</p><p>de estados físicos. Enfim, o olhar, aqui, não é límpido, fiel à descrição</p><p>do visto.</p><p>Também nós, em alguns momentos, embaralhamos nossa razão, nosso</p><p>olhar. Perdemos a realidade concreta dos fatos e inserimos nossos</p><p>anseios, nossos sonhos no mundo. Você já passou por uma experiência</p><p>em que o seu pensamento nublou a realidade? Isso faz parte de nossa</p><p>existência: a capacidade de transfigurar os fatos pela imaginação.</p><p>Entretanto aqui se abre uma contradição entre o poema e as crenças</p><p>professadas pelo mestre Caeiro. Conforme já notamos, apesar desse</p><p>pastor -poeta privilegiar uma poética do objeto e negar a todo instante</p><p>a interferência da imaginação no olhar contemplativo, temos aqui uma</p><p>descrição impressionista, marcada pelo estado anímico da voz poética.</p><p>Essa confusão de estados temporais do clima dá -se no íntimo desse</p><p>observador que não se atenta para o fato em si, mas</p><p>para a imaginação do visto.</p><p>Essa confusão de estados temporais é realçada</p><p>pela luz do dia em oposição à luz do candeeiro. A</p><p>luminosidade da lamparina deveria estar associada</p><p>à noite e, no entanto, o eu lírico nos desvela um dia</p><p>luminoso. Podemos pensar que, apesar do dia de</p><p>sol, o interior da casa seja sombrio, ato realçado pelo</p><p>gesto de acender a lâmpada. De qualquer forma, o</p><p>que o poema nos traz é um cenário todo marcado</p><p>pela luz, como se o olhar desse contemplador,</p><p>hiperbolicamente, tivesse o dom de iluminar tudo.</p><p>Estado</p><p>anímico</p><p>É o estado de</p><p>alma de uma</p><p>pessoa.</p><p>Hipérbole</p><p>É a figura de</p><p>linguagem</p><p>que consiste</p><p>no exagero.</p><p>Exemplo:</p><p>“Corto -me no teu</p><p>olhar.” É claro</p><p>que a pessoa</p><p>não se corta</p><p>em um olhar.</p><p>Há um exagero</p><p>e, portanto,</p><p>hipérbole.</p><p>102 UNIUBE</p><p>Por outro lado, se o dia é tempestuoso ou chuvoso, a luz da lamparina</p><p>funcionaria como um norteador ante as sombras da casa, realçadas pelo</p><p>tempo fechado.</p><p>Não temos, em relação ao tempo físico, meteorológico, nenhuma certeza. O</p><p>que realça a transfiguração do real pelo filtro da imaginação do sujeito poético.</p><p>De qualquer forma, dessa mistura entre subjetividade e realidade, entre</p><p>imaginação e mundo físico, temos um elo de grande eloquência: o sujeito</p><p>poético, metaforicamente, identifica -se com a natureza: “Oxalá minha</p><p>vida seja sempre isto...”, ou seja, o existir humano é a própria natureza.</p><p>Talvez agora se aclare a confusão de tempos e de situações climáticas do</p><p>espaço externo. Esse cenário é uma metáfora do ser humano, com suas</p><p>contradições, com suas incertezas, oscilações e vacilações. Como uma</p><p>natureza louca, a fazer chuva e sol, tempestade e tempo de bonança,</p><p>com árvores em sossego, a vida humana é marcada por um ritmo</p><p>absurdo, ilógico, disparatado em relação à ordem do cosmos.</p><p>Perceba, trata -se de um poema atípico na obra do mestre Caeiro e um</p><p>texto que depõe contra a harmonia de seu pensamento, sempre voltado</p><p>para descrição fiel do mundo e a fuga das oscilações da subjetividade.</p><p>Talvez, nesse poema, já se esboce, nesse amante da natureza, o advento</p><p>dos demais heterônimos, marcados pelo tumulto dos sentimentos humanos.</p><p>No plano sonoro, também podemos vislumbrar uma oscilação de ritmos</p><p>a permearem essa confusão das emoções do eu lírico.</p><p>No quinto verso, temos aliterações sibilantes e chiantes, numa perfeita</p><p>homologia com o som da chuva ou do dia límpido: “O dia Cheio de Sol,</p><p>ou Suave de Chuva”. Já o verso sexto, temos aliterações travadas:</p><p>“TemPesTuoso -aCaBasse -muDo”, desvelando -nos o mal tempo.</p><p>UNIUBE 103</p><p>Em seguida, a partir do verso nono, o eu lírico prepara -se para o sono.</p><p>Aliás, a ausência de determinadas ações, como o ato de ler, de pensar,</p><p>levam justamente à estagnação, ao repouso.</p><p>A voz poética se deita na cama e passa a sentir a vida como um rio a</p><p>percorrer -lhe por inteiro. Essa metáfora, entretanto, longe de ser dinâmica</p><p>(afinal, o rio significa movimento, fluxo), revela -nos o oposto, ou seja, a</p><p>paralisação, a ausência de movimento.</p><p>O último verso, lapidar e de grande beleza, inspira -nos um sossego</p><p>pleno, como se todo o universo a circundar a casa dormisse juntamente</p><p>com o eu lírico.</p><p>Dessa maneira, permeando o jogo contraditório, o eu lírico parte das</p><p>oscilações do mundo exterior para o aconchego do sono. Uma vez</p><p>alcançado esse estado de dormência, o mundo se torna sereno, como</p><p>um Deus a dormir. Chama -nos a atenção essa imagem do divino. A</p><p>natureza ainda guarda a presença do sagrado, como uma força a realçar</p><p>o encanto do mundo.</p><p>Bem, espero que o poema tenha se aclarado aos seus olhos. Vamos</p><p>continuar nosso estudo? Passemos agora para o mais pagão dos</p><p>heterônimos de Pessoa: Ricardo Reis.</p><p>Ricardo Reis: um pagão em tempos modernos2.5</p><p>Ricardo Reis representará, entre os heterônimos de Pessoa, a feição</p><p>clássica e pagã. Diferentemente de Caeiro, Reis cultiva a forma lírica</p><p>bem acabada, em poemas de estruturas harmoniosas.</p><p>104 UNIUBE</p><p>De acordo com a biografia inventada por Pessoa, Ricardo Reis nasceu na</p><p>cidade do Porto, no dia 19 de setembro de 1887. Estudou em um colégio</p><p>jesuíta, tornando -se médico e monarquista. Em determinada fase da vida,</p><p>exilou -se no Brasil. Não se tem notícias de sua morte, tendo o poeta um fim</p><p>obscuro.</p><p>SAIBA MAIS</p><p>Nesse aspecto, o poeta poupa todo o derramamento emotivo gratuito,</p><p>adquirindo uma postura olímpica, aristocrática perante a vida.</p><p>Ricardo Reis, dessa forma, acumula em sua escrita a experiência dos</p><p>antigos, da tradição dos escritores greco -romanos: Horácio, Platão,</p><p>Epicuro etc. Por ser um neo pagão, um ser em permanente inquirição</p><p>perante os deuses, Reis rejeita o cristianismo e toda a sentimentalidade</p><p>a ele ligada. Vejamos o que o crítico Álvaro Cardoso Gomes nos elucida</p><p>a respeito desse heterônimo:</p><p>a poesia de Reis se oferece como um reflexão sobre as</p><p>coisas, mediada pela frieza e pelo controle emocional,</p><p>controle este que se dá pela linguagem contida,</p><p>pausada e pelo espartilho da forma poética escolhida,</p><p>a ode. Como se sabe, essa composição poética,</p><p>de origem greco -latina, apesar das transformações</p><p>históricas, “resguardou sempre a sua atmosfera grave,</p><p>solene, próxima do drama e da poesia épica”. (GOMES,</p><p>1987, p. 27.)</p><p>Como Caeiro, Reis cultiva o apreço pela natureza e também valoriza</p><p>as sensações físicas. Entretanto, diversamente do mestre Caeiro, Reis</p><p>exercita permanentemente seu racionalismo, numa constante inquirição</p><p>do sentido da vida.</p><p>Dessa forma, não temos nesse heterônimo a ingenuidade e a pureza de</p><p>Caeiro, sempre despido de qualquer pretensão reflexiva e intelectual.</p><p>Nessa alma pagã, há, pelo contrário, um substrato filosófico, de cunho</p><p>helenista. Tal postura do pensamento caracteriza -se pela impotência do</p><p>homem ante a inexorabilidade de seu fado, de sua condição de ser no</p><p>tempo e, portanto, mortal.</p><p>UNIUBE 105</p><p>Bem, você deve estar achando muitas diferenças entre Caeiro e Reis,</p><p>não é mesmo? Você acredita que Caeiro era mestre de Reis? Percebe -se</p><p>o quanto o aprendiz vai se distanciando de seu mentor poético, criando</p><p>um universo próprio e singular.</p><p>A imitação dos antigos se dá tanto no nível formal como temático.</p><p>Caeiro resgata a tradição de palavras do léxico poético antigo (“álacre”,</p><p>“ergástulo”, “ínvio” etc.), em um tom solene, sublime, semelhante ao dos</p><p>poetas como Ovídio e Homero. Também são usados recursos retóricos</p><p>como a inversão do adjetivo em relação ao substantivo, o uso da segunda</p><p>pessoa, inserindo no discurso a presença de um interlocutor, bem como</p><p>a citação de figuras mitológicas.</p><p>Também no nível temático, Reis herdará dos antigos o tom professoral,</p><p>pragmático da poesia. O texto lírico, como um discurso pedagógico,</p><p>tem de administrar um ensinamento ao leitor. A arte, dessa forma, está</p><p>intimamente associada a uma postura ética. A voz lírica de seus poemas</p><p>sempre se dirige a um interlocutor com a solenidade de um mestre,</p><p>administrando ao outro ensinamentos sobre a vida. Podemos notar tal</p><p>tom de solenidade, tal discurso professoral, no seguinte poema:</p><p>Para ser grande, sê inteiro: nada</p><p>Teu exagera ou exclui.</p><p>Sê todo em cada coisa. Põe o quanto é</p><p>No mínimo que fazes.</p><p>Assim em cada lago a lua toda</p><p>Brilha, porque alta vive.</p><p>(PESSOA, Fernando, 1998, p. 414.)</p><p>Aqui, nesse poema, podemos vislumbrar um preceito</p><p>dos antigos, o do viver heroico, estoico, postura</p><p>a elevar o homem acima das vicissitudes. Esse</p><p>mesmo preceito podemos encontrar na obra de</p><p>Homero, em que os heróis cultivavam a coragem</p><p>como valor máximo.</p><p>Estoico</p><p>Vem de</p><p>estoicismo,</p><p>corrente da</p><p>filosofia grega,</p><p>pela qual o homem</p><p>deveria ser forte</p><p>e impoluto ante</p><p>as dores, numa</p><p>postura heroica e</p><p>altiva.</p><p>106 UNIUBE</p><p>Enfim, você já deve ter vivenciado situações em que teve de ser forte e</p><p>aguentar as tristezas e azares da vida. Pois bem, Reis transformou tal</p><p>atitude em ato poético.</p><p>Vamos continuar nossa viagem pela poesia desse escritor neo clássico?</p><p>Continuemos.</p><p>O neopaganismo de Reis caracteriza -se pela postura de um poeta</p><p>da modernidade que, descrente e desencantado com seu tempo,</p><p>volta -se para o passado, em um gesto de isolamento de cunho crítico e</p><p>subversivo. Ao voltar -se para os deuses, Reis critica o cristianismo, bem</p><p>como toda a civilização cristã decadente, corrompida pelo capitalismo e</p><p>pelo consumismo desumanizado.</p><p>Paralelo ao neopaganimo, o culto à realidade imediata e à natureza também</p><p>são vertentes de grande importância na poesia desse heterônimo: “A</p><p>natureza é só uma superfície/ Na sua superfície ela é profunda”. (PESSOA,</p><p>1998, p. 430.)</p><p>Dessa forma, o homem deve voltar -se para as coisas visíveis e cultivá-las.</p><p>Com efeito, o objeto é privilegiado em detrimento da subjetividade.</p><p>Conforme Cardoso Gomes, em Reis, “o homem precisa aprender a ver</p><p>as coisas em sua complexa simplicidade”. (1987, p. 30.)</p><p>Essa busca da realidade imediata desvela -se como um respeito aos</p><p>deuses. Se as divindades não deram ao homem a capacidade de</p><p>ver além do concreto, temos de nos resignar e aceitar o mundo tal</p><p>como ele é. Querer ir além, numa sede de transcendência, seria um</p><p>desrespeito aos deuses: “A noção de limite se oferece porque o pagão</p><p>fia -se no que está acessível e próximo, pois crer no vago, ou naquilo</p><p>que não se vê, implica abraçar um dado produzido pela imaginação —</p><p>consequentemente, privilegiar o sujeito sobre o objeto, a realidade interior</p><p>sobre a exterior”. (GOMES, 1987, p. 31.)</p><p>UNIUBE 107</p><p>Com efeito, Reis privilegia a natureza por ela ser plural como os deuses:</p><p>“Esta realidade os Deuses deram/ E para bem real a deram externa”.</p><p>(PESSOA, 1998, p. 330.) A variedade do mundo natural, com suas</p><p>nuanças múltiplas, corresponde à variedade dos deuses. Temos inúmeras</p><p>deidades, porque o cosmos também é rico de matizes.</p><p>Difícil, em nossa sociedade, encontrar um pagão. Você já ouviu falar de</p><p>alguém que cultua os deuses gregos em nossos dias? Reis, assim, erigiu</p><p>uma religiosidade muito singular e especial. Por isso teve uma visão de</p><p>mundo também muito peculiar e, por isso, rica de sentidos novos para o</p><p>homem de nossa era.</p><p>Por conseguinte, dessa visão pagã da natureza nasce uma concepção</p><p>mecanicista do universo. Também tal legado vem da cultura dos gregos,</p><p>para os quais o universo era um “conjunto de seres que não tendem a um</p><p>fim, mas que são inteiramente movidos por uma causalidade mecânica”.</p><p>(LALANDE, 1967, p. 674.)</p><p>Com efeito, o universo se revela para Reis como um jogo cíclico, tal</p><p>como as estações do ano que sempre passam, mas também sempre</p><p>retornam. Na natureza, portanto, “tudo se repete sempre de modo</p><p>idêntico”. (GOMES, 1987, p. 32.)</p><p>Podemos perceber isso nos seguintes versos de Reis: “No ciclo eterno</p><p>das mudáveis coisas/ Novo inverno após novo outono volve/ À diferente</p><p>terra/ Com a mesma maneira”. (PESSOA, 1998, p. 364.)</p><p>Entretanto, apesar da renovação do cosmos, tudo é regido por um</p><p>destino fatalista. Os homens, a natureza, até mesmo os deuses, estão</p><p>acorrentados ao fado, à inexorável consumição e efemeridade de tudo</p><p>o que existe.</p><p>108 UNIUBE</p><p>É emblemático, nessa visão, a figura mítica de Cronos a comer os próprios</p><p>filhos. Para os gregos antigos, Cronos, deus do tempo, alimentou -se dos</p><p>próprios filhos para garantir sua hegemonia e poder.</p><p>Como sabemos, esse medo da finitude, da morte e, portanto, do passar</p><p>do tempo é típico do homem. Quem nunca foi sacudido por um tremor ao</p><p>pensar em tais questões? A lucidez do poeta faz dessas preocupações</p><p>um fundamento de sua poesia.</p><p>Com efeito, somos, de acordo com Reis, todos filhos de Cronos e,</p><p>por conseguinte, é nosso destino ser consumido por sua voracidade:</p><p>“Não se resiste/ Ao deus atroz/ Que os próprios filhos/ Devora sempre”.</p><p>(PESSOA, 1998, p.310.) Com efeito, essa “é a melhor imagem de um</p><p>Universo, onde todos os seres se submetem ao Destino cíclico das</p><p>coisas, onde as individualidades se anulam em prol de forças maiores</p><p>e desconhecidas, onde o poeta não passa de um hábil artesão, a</p><p>manipular, de modo diverso, ideias alheias”. (GOMES, 1987, p. 32.)</p><p>É importante salientar que, nessa visão cósmica, também os deuses</p><p>perecem, numa visão fatalista na qual o homem se vê em total abandono.</p><p>Fantoche, mero marionete, o ser humano, perecível em sua condição</p><p>mortal, está à mercê dos caprichos dos deuses, que, por sua vez,</p><p>tal como o homem, também são mortais. Com efeito, o homem está</p><p>completamente desprotegido, não apenas por estar sob o domínio dos</p><p>caprichos divinos, mas por ser guiado por seres arbitrários e mortais,</p><p>frágeis como o próprio humano.</p><p>A morte, assim, irrompe como a terrível sentença a ceifar a vida, em um</p><p>sorvedouro do qual ninguém escapa: “a vida/ Passa e não fica, nada</p><p>deixa e nunca regressa”. (PESSOA, 1998.) Nesse movimento, nos</p><p>tornamos o próprio nada. O existir humano, assim, é um mero rastro,</p><p>leve, sutil, que, ao ser impresso na areia, logo se esvai, como algo que</p><p>nunca existiu. Daí surge a imagem terrível da vida, criada por Reis, como</p><p>um “eco que o oco coa”. (PESSOA, 1998.)</p><p>UNIUBE 109</p><p>Por sua vez, a sucessão do tempo não permite a unidade do ser.</p><p>Esse, como já vimos, é o drama central de toda a obra pessoana: a</p><p>fragmentação do eu, a dispersão da identidade oca, caduca, em vários</p><p>eus. Se nunca nos repetimos ao longo do tempo, se sempre nos</p><p>modificamos a cada etapa da vida, por conseguinte nunca temos acesso</p><p>ao que somos. Assim, a morte não se faz como um fim, um limite a ser</p><p>conquistado, mas como uma realidade sempre</p><p>presente, uma companhia</p><p>a nos aniquilar a cada passagem dos segundos. Para configurar essa</p><p>visão de mundo, Reis recorre à imagem do rio: “vem sentar comigo, Lídia,</p><p>à beira do rio,/ Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos”.</p><p>(PESSOA, 1998, p. 315.)</p><p>Bem, isso tudo com certeza nos faz sofrer.</p><p>Leyla Perrone -Moisés alega -nos, porém, que, a</p><p>despeito de toda a dor das verdades pessoanas,</p><p>elas são compensadas pelo jogo de espelho de</p><p>suas máscaras. Há sempre por detrás de tudo</p><p>certo ar de ator pirotécnico, apto a nos encantar</p><p>com suas múltiplas personificações.</p><p>Nem tudo também é insólito nessa poética. Há no</p><p>fundo desse poço, desse pessimismo, alguns lenitivos.</p><p>Isso, com certeza, trará alívio ao seu coração.</p><p>Vamos ver quais são as alternativas a essa visão</p><p>crua do existir?</p><p>Para não cair em um niilismo total, o que</p><p>corresponderia a um gesto pessimista sem</p><p>remissão, o poeta encontra algumas saídas para</p><p>essa situação existencial sem saídas. Reis irá</p><p>eleger o gozo, os prazeres da vida, da boa mesa,</p><p>a arte da delicadeza, como forma de compensar</p><p>esse destino fatalista. Ante essa visão epicurista</p><p>Niilismo</p><p>É a quebra de toda</p><p>ordem, de todos</p><p>os valores de um</p><p>tempo, de uma</p><p>sociedade. Nesse</p><p>aspecto, longe de</p><p>ser constitutiva,</p><p>tal perspectiva</p><p>é altamente</p><p>pessimista, não</p><p>vê saída para os</p><p>diversos problemas</p><p>do mundo. Daí o</p><p>caráter corrosivo do</p><p>niilismo.</p><p>Epicurismo</p><p>É a corrente</p><p>filosófica grega, na</p><p>qual os prazeres</p><p>têm importante</p><p>papel. De acordo</p><p>com os epicuristas,</p><p>a morte não nos</p><p>permite a perda de</p><p>tempo. Por isso,</p><p>temos de desfrutar a</p><p>beleza e o gozo da</p><p>vida com a urgência</p><p>de um carpe diem</p><p>(expressão latina</p><p>que significa</p><p>“viver o momento</p><p>presente”).</p><p>110 UNIUBE</p><p>da vida, o heterônimo também adota uma postura estoica, ou seja, uma</p><p>indiferença em relação à dor, uma firmeza de espírito a se antepor aos</p><p>desacertos do viver.</p><p>Entretanto o poeta não se entrega aos prazeres desregrados, mas,</p><p>seguindo as ponderações dos gregos antigos, sorve o prazer com</p><p>comedimento, resgatando pequenos e delicados gestos como o de colher</p><p>flores ou de repousar à beira do rio. Daí nascem poemas, como esse, em</p><p>que o momento se dá com um carpe diem: “feliz o a quem, por ter em</p><p>coisas mínimas/ Seu prazer posto, nenhum dia nega/ A natural ventura”.</p><p>(PESSOA, 1998, p. 416.)</p><p>Agora que observamos as principais linhas de força da poesia de Reis,</p><p>vamos ler um poema desse heterônimo?</p><p>Eis o texto:</p><p>Segue o teu destino,</p><p>Rega as tuas plantas,</p><p>Ama as tuas rosas.</p><p>O resto é sombra</p><p>De árvores alheias.</p><p>A realidade</p><p>Sempre é mais ou menos</p><p>Do que nós queremos.</p><p>Só nós somos sempre</p><p>Iguais a nós próprios.</p><p>Suave é viver só.</p><p>Grande e nobre é sempre</p><p>Viver simplesmente</p><p>Deixa a dor nas aras</p><p>Como ex -voto aos deuses.</p><p>UNIUBE 111</p><p>Vê de longe a vida.</p><p>Nunca a interrogues.</p><p>Ela nada pode</p><p>Dizer -te. A resposta</p><p>Está além dos deuses.</p><p>Mas serenamente</p><p>Imita o Olimpo</p><p>no teu coração.</p><p>Os deuses são deuses</p><p>Porque não se pensam.</p><p>(PESSOA, Fernando, 1998, p. 270.)</p><p>Esse poema lapidar, de construção bem elaborada, centra -se em um</p><p>ritmo sincopado, pautado pela redondilha menor, ou seja, em versos de</p><p>cinco sílabas poéticas. Já aqui podemos observar a diferença de Reis</p><p>em relação a Caeiro. Este último tinha um ritmo mais frouxo, expresso</p><p>por uma métrica irregular.</p><p>A primeira estrofe inicia -se com verbos no imperativo. Aqui podemos</p><p>vislumbrar aquele caráter pedagógico, ético, no qual se inspira Reis.</p><p>Os três primeiros versos são, portanto, paralelísticos e formam, por sua</p><p>vez, uma enumeração cadenciada de ações no imperativo: Segue, Rega,</p><p>Ama. De atos concretos, atingimos um sentimento, o amor, no caso, afeto</p><p>doado às coisas simples da existência: as rosas.</p><p>Nos dois últimos versos da primeira estrofe, temos uma metáfora a</p><p>representar o destino trágico do homem: a sombra das árvores é a</p><p>sombra da morte, da passagem do tempo, da escuridão que circunda a</p><p>luminosidade diáfana da vida.</p><p>112 UNIUBE</p><p>Esses dois últimos versos, portanto, iluminam o significado dos anteriores.</p><p>Poderíamos traduzir essa estrofe, em linguagem corrente, denotativa, da</p><p>seguinte maneira: usufrua da vida, pois somos mortais.</p><p>Você consegue identificar, nas escolas literárias já estudadas ao longo do</p><p>seu curso, a recorrência dessa temática? Pois bem, você se lembra do</p><p>famoso carpe diem dos árcades? Aqui temos esse mesmo efeito do carpe</p><p>diem: gozar a vida com avidez, justamente por sermos finitos e mortais.</p><p>Vejam que aqui podemos perceber a atitude estoica de seguir o caminho</p><p>apesar das sombras. Também podemos notar a busca do prazer, de</p><p>fundo epicurista, quando eu lírico incita o ato de colher rosas. São ações,</p><p>gestos singelos ante o terror da morte.</p><p>A estrofe seguinte principia -se com dois versos magnânimos, de uma</p><p>verdade contundente: “A realidade/ Sempre é mais ou menos/ Do que</p><p>nós queremos”. Tais versos desvelam a condição contraditória do homem</p><p>que, por estar vivo, é sempre movido pelo desejo, pela vontade. Todavia</p><p>nunca encontramos repouso, pois a realidade nos dá mais ou menos do</p><p>que o ideal.</p><p>Os versos que encerram essa estrofe (Só nós somos</p><p>sempre/ iguais a nós próprios”) proporcionam -nos a</p><p>visão de nosso ser íntegro, aquele que permanece,</p><p>a despeito das mudanças, inalterável, perfeito em</p><p>sua estaticidade. Seria uma feição ontológica,</p><p>atávica, o nosso eu profundo, íntegro, além de toda</p><p>oscilação do tempo e da vida.</p><p>Veja que, apesar de toda a transmutação de</p><p>personali dades em Pessoa, há nele e em seus</p><p>heterônimos um desejo de imutabilidade, de raiz</p><p>platônica e cristã. Todavia o seu projeto literário vai contra tal preceito. Temos</p><p>aqui mais uma das inúmeras contradições de seu pensamento lírico.</p><p>Ontológico</p><p>É aquilo que faz</p><p>parte de nossa</p><p>essência, de nosso</p><p>ser verdadeiro,</p><p>portanto,</p><p>corresponde à parte</p><p>de nossa alma</p><p>imutável, inalterável.</p><p>Atávico</p><p>É o que herdamos,</p><p>por toda a vida, em</p><p>nosso nascimento;</p><p>são as marcas de</p><p>nossos ancestrais</p><p>mais antigos.</p><p>UNIUBE 113</p><p>E não poderia ser diferente, você não concorda? Afinal, um pensamento</p><p>tão complexo, tão cheio de reflexões contundentes, não poderia deixar</p><p>de ser contraditório.</p><p>A terceira estrofe está carregada de verdades, de receitas, para o bem</p><p>viver. Assim, a solidão desponta como um oásis, um reduto de conforto.</p><p>Isso demonstra a busca daquele viver ameno, comedido, pregado pelos</p><p>gregos. Dessa forma, a solidão irrompe como um remédio, uma saída,</p><p>ante os vendavais do amor e da paixão. Estar só é, portanto, encontrar</p><p>o sossego distante das angústias em face do contato social.</p><p>Você mesmo já deve ter sentido a imensa vontade de estar só, de ficar</p><p>apenas com os próprios pensamentos. O poeta, mais uma vez, faz dessa</p><p>vontade tão natural um tema de seu lirismo meditativo.</p><p>Por isso o viver simples torna -se vida compulsória. Ao deixar -se viver, a</p><p>vida nos guia. Assim deixamos de ordená -la. Tal experiência é expressa</p><p>em nosso dia a dia pelo seguinte clichê: “vou deixar a vida me levar”.</p><p>Com isso, nos furtamos da responsabilidade de guiar o nosso fado,</p><p>somos direcionados pelo fluxo da existência.</p><p>De certa forma, ao tirarmos de nós o império de nosso destino, furtamo-</p><p>-nos da responsabilidade do que nos acontece. Isso se torna um</p><p>lenitivo, uma paz ante as dores: elas não nascem de nossos gestos,</p><p>mas da fatalidade de uma vontade superior, desígnio de um destino</p><p>incompreensível.</p><p>Dessa verdade, surgem os versos finais dessa estrofe: “Deixa a dor nas</p><p>aras/ Como ex -voto aos deuses”. A dor assim fica ara (cruz, o que denota</p><p>uma crítica ao cristianismo, doutrina afeita à dor), como um ex -voto, como</p><p>um voto que não se faz mais aos deuses. Aqui há uma crítica mordaz</p><p>de Reis à noção de dor como submissão a uma divindade, como uma</p><p>oferenda a Deus.</p><p>114 UNIUBE</p><p>A penúltima estrofe é típica do pensamento de Reis. Ela expressa um</p><p>distanciamento da vida, como se viver verdadeiramente seria estar à</p><p>margem, na plateia, e não no palco.</p><p>Por fim, na ultima estrofe, podemos notar</p><p>novamente aquele espírito</p><p>estoico a suportar as dores. É preciso aparentar -se com os deuses, ser</p><p>digno como eles, para suportar os entraves da vida: “Mas serenamente/</p><p>Imita o Olimpo/ no teu coração”.</p><p>Desse feito surge a vingança contra os deuses. Por sermos mortais,</p><p>somos pensantes, temos o dom de existir. Os deuses estão em um nível</p><p>de abstração, acima dos desacertos e desastres e, por isso, não vivem</p><p>genuinamente.</p><p>Espero que você tenha gostado do poema. Nossa viagem é longa, ainda</p><p>temos mais ficções para apreciarmos. Agora que a gente conhece mais</p><p>um heterônimo, vamos para o próximo?</p><p>Álvaro de Campos: o poeta cosmopolita da vida moderna2.6</p><p>Álvaro de Campos é a mais moderna de todas as ficções de Pessoa.</p><p>Suas odes cantam a perplexidade ante um mundo marcado por um</p><p>tempo ultraveloz, por um ritmo estrondoso, pontuado pelo frenesi das</p><p>máquinas, dos carros e das fábricas.</p><p>Álvaro de Campos nasceu em 1890 e faleceu em 1935. Foi engenheiro.</p><p>Sobre ele afirma o próprio Fernando Pessoa: “Nasceu em Tavira, teve uma</p><p>educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar</p><p>engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem</p><p>ao Oriente de onde resultou o Opiário. Agora está aqui em Lisboa em</p><p>inactividade”.</p><p>SAIBA MAIS</p><p>UNIUBE 115</p><p>Sua escrita é movida por dois ritmos em oposição, em tensão: um</p><p>exaltado, elétrico, de tom arrogante e soberano, e outro magoado,</p><p>melancólico, expresso pelo tédio da vida nas cidades.</p><p>Sua dicção é solta, derramada. Nela imperam a fala coloquial e o verso livre,</p><p>polimétrico, desigual como o desenho do sismógrafo. Ao escrever, Campos</p><p>grita, gesticula, brada, imitando, em muitas passagens, a estridência das</p><p>máquinas.</p><p>Você agora poderá perceber a distância imensa entre Caeiro e Campos.</p><p>O primeiro está ligado à natureza e o segundo, ao mundo artificial. Veja</p><p>o quanto o poeta Pessoa soube se desmembrar, em perfeição, em seres</p><p>tão distintos. Isso nos revela, mais uma vez, a grande inteligência poética</p><p>desse lisboeta.</p><p>Surge em sua obra um novo conceito de belo, aquele insuspeito até</p><p>então: o encanto das ruas sujas, das fábricas, dos carros barulhentos,</p><p>do frenesi dos cafés e tabacarias.</p><p>Essa nova beleza tangencia em vários momentos o grotesco e o feio. O</p><p>que não é belo é alçado à categoria do sublime, desvelando -nos uma</p><p>sedução oculta, secreta. Essa nova concepção da beleza está associada</p><p>às poéticas da modernidade que, desde Baudelaire, apregoavam a busca</p><p>de um novo conceito estético.</p><p>Podemos notar tal efeito no seguinte poema:</p><p>À dolorosa luz das grandes lâmpadas da fábrica</p><p>Tenho febre e escrevo,</p><p>Escrevo rangendo os dentes para a beleza disto,</p><p>Para a beleza disso totalmente desconhecida dos</p><p>antigos.</p><p>(PESSOA, Fernando, 1998, p. 311.)</p><p>116 UNIUBE</p><p>Já não temos mais aqui o espaço harmônico da natureza. A vida sublime,</p><p>campesina, foi substituída pelo ambiente grotesco, claustrofóbico da fábrica.</p><p>Nesse espaço não mais iluminado pelo sol, mas pela luz elétrica, o escritor</p><p>compõe o seu poema forjando -o no ritmo das máquinas, no som dissonante</p><p>das engrenagens, no ruído estridente do ranger dos dentes.</p><p>Outro espaço de destaque é o da metrópole, da cidade industrializada</p><p>e moderna. Como um estrangeiro, o poeta percorre as ruas em busca</p><p>de aventuras, numa solidão pungente, cortante, ébrio de experiências</p><p>insólitas que possam libertá -lo do tédio. Conforme Gomes: o poeta “é o</p><p>homem tomado por excessos, pela demoníaca loucura, cujo espasmo</p><p>louco é fruto da imagem que se tem do poeta nos tempos modernos”.</p><p>(GOMES, 1987, p. 56.)</p><p>Campos, atento à era de reificação que se insurgia, rastreia na voz dos</p><p>futuristas uma metáfora recorrente da desumanidade de nossos tempos:</p><p>o homem -máquina. O poeta se metamorfoseia</p><p>em um motor, em um carro, tornando -se um ser</p><p>despido de toda aura sublime e sagrada: “Ah, poder</p><p>exprimir -me todo como um motor se exprime!/ Ser</p><p>completo como uma máquina!/ Poder ir na vida</p><p>triunfante como um automóvel último modelo!”.</p><p>Conforme Álvaro Cardoso Gomes: “o poeta metamorfoseia -se numa máquina,</p><p>isso porque a máquina, deusa dos tempos modernos, caracteriza-se pela</p><p>impiedade do ‘Útil’ e do ‘Progressivo’, ela é feita para fazer manufaturados</p><p>impessoalmente, de um modo rápido e preciso”. (1987, p. 56). Assim, a</p><p>máquina desvela o nosso tempo de indigência e miséria humana, em que o</p><p>objeto passa a ter mais valor que o próprio homem.</p><p>Por conseguinte, o poeta compõe poemas como uma máquina. Isso</p><p>dessacraliza a noção de vate inspirado, tomado pelo furor de uma</p><p>inspiração. O poema nasce com um produto.</p><p>Reificação</p><p>Deriva da expressão</p><p>latina res, rei =</p><p>coisa. Homem</p><p>tornado coisa,</p><p>objeto. É sinônimo</p><p>de desumanização.</p><p>UNIUBE 117</p><p>Por sua vez, a sonoridade poética é totalmente prosaica. Não temos aqui</p><p>a limpidez dos versos de Ricardo Reis, textos lapidados e engendrados</p><p>para serem harmônicos, perfeitos como um sistema solar. Pelo contrário,</p><p>a poesia de Campos é um ranger, um atrito de ferros, uma sirene em</p><p>altos brados. O ritmo da poesia imita o estertor frenético das ruas, dos</p><p>carros, das fábricas: “tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,/</p><p>De vos ouvir demasiadamente de perto”. (PESSOA, 1998, p. 315.)</p><p>Em outros momentos, porém, insurge um ritmo novo, lento, movido pela</p><p>melancolia e pela dor. Nesses raros instantes, o poema adquire um ritmo</p><p>fluido, doce, como se as palavras intentassem espelhar o íntimo desse</p><p>sofrimento. A dicção lenta “é o resultado não só do verso longo, mas</p><p>também da entonação que se requer esticada, demorada, preenchendo</p><p>um espaço que vai do presente ao passado”. (GOMES, 1987, p. 57.)</p><p>Podemos notar tal efeito nos seguintes versos: “gostaria de ter outra vez</p><p>ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira./ De não saber</p><p>doutra vida, marítima que a antiga vida dos mares!/ Porque os mares</p><p>antigos são a Distância Absoluta”. (PESSOA, 1998, p. 325.)</p><p>Essa melancolia recrudesce, quando o poeta se vê, no mundo, como um</p><p>pária, um exilado, um ser inadaptado ao mundo. Se no capitalismo são</p><p>valorizadas as mercadorias, a poesia deixa de ser um objeto de consumo</p><p>e, lentamente, vai se tornando uma atividade para excluídos, para seres</p><p>especiais que, ao perceberem o horror de nossa civilização, assumem</p><p>a postura heroica de profetas, de guerreiros, criando um mundo à parte,</p><p>isolado da balbúrdia do mundo.</p><p>Todavia, longe de ser uma atitude alienada, esse ato torna -se subversivo,</p><p>pois é um verdadeiro não à massificação e à reificação.</p><p>O poeta, portanto, vive esse ostracismo. A ele cabe apenas a náusea da</p><p>vida: “O tique -taque estalado das máquinas de escrever./ Que náusea da</p><p>vida!/ Que abjeção essa regularidade!” (PESSOA, 1998, p. 302.)</p><p>118 UNIUBE</p><p>Você, em diversos momentos, deve ter vivenciado o mal -estar de nosso</p><p>tempo. Quem nunca se sentiu em desprestígio, em um mundo em que a</p><p>matéria e o dinheiro são os valores absolutos? É sobre tal questão que</p><p>o poeta trabalha, legando -nos seus textos repletos de lucidez e vida.</p><p>Entretanto esse asco pela civilização é acompanhado,</p><p>contraditoriamente, por um fascínio, como se</p><p>da podridão de um mundo em crise, perdido,</p><p>irrompesse uma epifania de salvação, de alento.</p><p>A sujeira e a sordidez das máquinas, das cidades,</p><p>também carregam um lastro de encanto, dissonante,</p><p>a povoar e renovar a tradição lírica.</p><p>O poeta, nesse contexto, se torna um solitário. Não</p><p>encontra interlocutores para a sua mensagem.</p><p>Sente -se plenamente só, abandonado pelas musas,</p><p>por Deus, pelo amor e pela sociedade.</p><p>Desse efeito nasce a sensação de vazio existencial. Esse vazio, conforme</p><p>acontece com Reis, leva o poeta a se multiplicar em vários eus. O eu do</p><p>poeta vai se tornando uma ficção.</p><p>É importante notar que não é apenas Pessoa, homem empírico, que</p><p>se desmembrou em vários eus fictícios. Suas criações também se</p><p>alastraram em um jogo de espelhos infinito, no qual a essência de uma</p><p>individualidade se perdeu. Sobre tal feito, afirma -nos Álvaro Cardoso</p><p>Gomes: “Um jogo de espelhos é</p><p>que a poesia de Álvaro de Campos nos</p><p>oferece: ele que é sonhado por alguém fora dele, de repente, põe -se a</p><p>sonhar e inventa a criatura alucinada que fala”. (1987, p. 63.)</p><p>Eis um poema em que podemos vislumbrar esse processo: “Multipliquei-me,</p><p>para me sentir,/ Para me sentir, precisarei sentir tudo,/ Transbordei, não</p><p>fiz senão extravasar -me” (PESSOA, 1998, p. 350.) O poeta se multiplica</p><p>para sentir o mundo e a si mesmo. Porém, nessa busca, ele só encontra</p><p>o eco de um vazio inescrutável.</p><p>Epifania</p><p>É a revelação</p><p>do sagrado. Na</p><p>literatura, tal termo</p><p>se torna metáfora.</p><p>Representa os</p><p>momentos de</p><p>vivência profunda,</p><p>de iluminação.</p><p>Podemos encontrar</p><p>inúmeras epifanias</p><p>na obra de Clarice</p><p>Lispector. Suas</p><p>personagens vivem</p><p>instantes febris, nos</p><p>quais o mundo e</p><p>o eu se desvelam</p><p>em profundidade e</p><p>complexidade.</p><p>UNIUBE 119</p><p>Agora que já conhecemos um pouquinho da obra de Álvaro de Campos,</p><p>vamos ler um poema desse heterônimo?</p><p>Leiamos o poema “Ah, um soneto” para verificarmos o quanto esse</p><p>heterônimo também sabe usar, com exímio trato, as formas clássicas</p><p>como o soneto.</p><p>Ah, um soneto</p><p>Meu coração é um almirante louco</p><p>que abandonou a profissão do mar</p><p>e que a vai relembrando pouco a pouco</p><p>em casa a passear, a passear...</p><p>No movimento (eu mesmo me desloco</p><p>nesta cadeira, só de o imaginar)</p><p>o mar abandonado fica em foco</p><p>nos músculos cansados de parar.</p><p>Há saudades nas pernas e nos braços.</p><p>Há saudades no cérebro por fora.</p><p>Há grandes raivas feitas de cansaços.</p><p>Mas — esta é boa — era do coração</p><p>que eu falava... e onde diabo estou eu agora</p><p>com almirante em vez de sensação?...</p><p>(PESSOA, Fernando, 2010.)</p><p>Trata -se de um soneto clássico, modulado por versos decassílabos (de</p><p>dez sílabas poéticas).</p><p>Na primeira estrofe, a metonímia “coração” insere -nos no âmbito dos</p><p>sentimentos do eu lírico. Como veremos, esse é um soneto em que o</p><p>sentimento e a saudade ditam o tom confessional, memorialístico.</p><p>120 UNIUBE</p><p>Como na metáfora, na metonímia um termo substitui outro, guardando com</p><p>esse termo oculto uma relação de contiguidade: a parte pelo todo, o lugar</p><p>pelo ser, a cor pelo objeto etc. Exemplo: “Suas mãos escreveram um poema</p><p>com maestria”. Veja, as mãos (a parte) substituem o poeta (o todo).</p><p>RELEMBRANDO</p><p>Quando iniciamos este estudo, você deve estar lembrado do quanto</p><p>a saudade representa um sentimento de amplos valores para os</p><p>portugueses. Vamos ver os sentidos que tal sentimento adquire nesse</p><p>poema?</p><p>A metonímia “coração” logo se transforma em uma metáfora: “um</p><p>almirante louco”. Veja que, ao personalizar o coração, tornando -o um</p><p>ser dos mares, um marujo, um almirante, dois espaços se entrecruzam:</p><p>o do íntimo, de dimensões reduzidas, espaço emotivo do “coração”, e o</p><p>do mar, infinito.</p><p>A pequenez humana é espelhada no infinito dos mares. Veja que aqui</p><p>temos uma antítese, em que duas dimensões se antepõem: o espaço</p><p>pequeno do coração versus a imensidão do mar.</p><p>Como veremos, o poema todo se pauta nessa oposição. Tal antítese, por</p><p>sua vez, irá germinar outras, em um jogo de claro e escuro, de imensidão</p><p>e pequenez, de sentimentalidade e objetividade.</p><p>Em relação a esse sentimento do coração -almirante, creio que você já</p><p>deve ter sentido algo semelhante, um sentimento tão grande, tão imenso,</p><p>que se assemelha a um mar, a um céu infinito. Pois bem, o poeta quer,</p><p>ao usar essas imagens, especificar justamente essa dimensão imensa</p><p>dos sentimentos.</p><p>UNIUBE 121</p><p>Outra antítese se desvela nessa estrofe. O espaço do mar (imenso,</p><p>ilimitado), por outro lado, está ligado ao da casa (ínfimo, limitado). Com</p><p>efeito, a casa, longe de ser um ambiente de conforto, torna -se espaço do</p><p>desassossego. Podemos inferir isso pela ação do eu lírico: ele perambula</p><p>pela casa, de um lado para o outro, como se não encontrasse o seu lugar</p><p>verdadeiro.</p><p>Na estrofe seguinte, esse perambular cessa. Encontramos o eu lírico</p><p>sentado. Todavia, mesmo parado, tal voz poética ainda se exercita,</p><p>movimenta. Só que, agora, em pensamento.</p><p>O desassossego desse marujo fica ainda mais evidente por essa</p><p>oposição entre ação corporal e mental. Aqui temos, portanto, outra</p><p>antítese: estaticidade versus movimento. Podemos observar que o eu</p><p>lírico, sentado, busca o movimento do mar. Esse movimento seria uma</p><p>metáfora do seu desassossego. Como correntezas, como ondas em</p><p>rebentação, seus sentimentos são exaltados, incontidos.</p><p>Tal antítese torna -se mais patente, quando, nos dois últimos versos</p><p>dessa estrofe, o lírico nos afirma que o mar reside nos seus músculos.</p><p>Tais músculos (agitados pelo movimento do mar) estão cansados pela</p><p>paralisia. Essa belíssima antítese mostra -nos o tédio de um velho</p><p>marujo, envelhecido, distante de sua antiga morada, os mares. A velhice,</p><p>expressa pelos músculos inertes, cansados, levou esse aventureiro a se</p><p>aposentar de sua profissão, de sua antiga vida de liberdade.</p><p>Aqui chegamos ao clímax do texto, explicitada por outra antítese: a</p><p>oposição entre liberdade e aprisionamento. O mar representa toda uma</p><p>existência livre, aventureira, ao passo que a casa, verdadeira prisão,</p><p>metaforiza a vida sem êxtase, sem arrebatamento, existência morna,</p><p>despida de encanto.</p><p>Todos nós já sentimos essa vontade de viajar, de correr mundo. Pois</p><p>bem, é esse sentimento que motiva esse coração -marujo e o torna</p><p>melancólico.</p><p>122 UNIUBE</p><p>Na terceira estrofe podemos vislumbrar, em</p><p>belíssimos versos, a expressão do sentimento</p><p>da saudade. Veja que o poeta usa a anáfora e o</p><p>paralelismo sintático, figuras sonoras pautadas</p><p>pela repetição. Essa constante reincidência</p><p>sonora da anáfora e do paralelismo têm como</p><p>função ressaltar a intensidade da saudade. Esse</p><p>sentimento é tão forte que ele parece martelar</p><p>no coração, pulsando em dor, em pancadas</p><p>surdas, vivas.</p><p>O corpo do eu lírico é inteiro saudade. Quem não sentiu uma saudade</p><p>como essa, a transbordar pelo nosso corpo inteiro, com pungente força?</p><p>O poeta explicita -nos essa intensidade desse sentimento tão importante</p><p>para os portugueses.</p><p>Na derradeira estrofe, os versos finais quebram, em um viés bem</p><p>moderno, o tom romântico do texto. Trata -se de uma dissonância. O eu</p><p>lírico, em um viés irônico, afirma sua dúvida e, de certa forma, satiriza a</p><p>si próprio: “Mas — esta é boa — era do coração/ que eu falava...”. Ele</p><p>falava do coração e, no entanto, começou a expressá -lo pela metáfora do</p><p>almirante. Esse procedimento causa -lhe espanto. A dúvida final quebra o</p><p>idílio da metáfora e traz o coração ao terra a terra da realidade. Trata -se</p><p>de um coração apenas, não de um almirante. Fica no ar, por meio dessa</p><p>dúvida, a validade da melancolia e da saudade.</p><p>Bem, espero que você tenha gostado desse poema. Vamos continuar o</p><p>nosso passeio pela poesia de Pessoa?</p><p>Agora iremos estudar a poesia do ortônimo, ou seja, do Pessoa ele mesmo.</p><p>Anáfora</p><p>É figura de linguagem</p><p>sonora. Ocorre</p><p>quando inúmeros</p><p>versos iniciam -se com</p><p>a mesma expressão</p><p>ou palavra.</p><p>Paralelismo</p><p>sintático</p><p>Ocorre quando duas</p><p>ou mais orações</p><p>possuem a mesma</p><p>construção sintática.</p><p>UNIUBE 123</p><p>Fernando Pessoa ortônimo é ele mesmo?2.7</p><p>Conforme já notamos, o Fernando Pessoa ortônimo ironicamente se</p><p>perde e se confunde com os demais heterônimos, formando ele mesmo</p><p>outro heterônimo.</p><p>Com efeito, a obra do ortônimo é marcada, como a dos demais, pela</p><p>cisão entre o ser e o mundo.</p><p>Essa cisão, por sua vez, encontra no ortônimo a peça-chave para a</p><p>dilaceração do eu em vários outros eus. Também Fernando Pessoa ele</p><p>mesmo é ninguém, é nada, é vazio e, por isso, é todos e tudo.</p><p>Nesse sentido, no Cancioneiro, obra central do ortônimo, é recorrente a</p><p>ideia de queda. O eu lírico despenca de uma região alta, plena, estatelando</p><p>em um solo sem glória. De início temos as alturas: “Aconteceu -me do alto</p><p>do infinito/ Esta vida...”, para depois advir o deserto: “Hoje sei -me o deserto”.</p><p>Nesse deserto, o poeta se perde, se dilacera, deixa de ter a proteção de um</p><p>Deus, de uma transcendência.</p><p>O resultado dessa queda é a sensação de solidão, de abandono.</p><p>O rei também lhe outorgou uma pensão</p><p>de quinze mil réis por ano, quantia bastante considerável para a época,</p><p>apesar de ter sido paga de maneira irregular. Depois de sua morte, a</p><p>pensão passou para sua mãe. Não se sabe se Camões foi enterrado no</p><p>cemitério do hospital onde faleceu vítima da peste, segundo se diz, ou</p><p>se numa campa da Igreja de Santa Rita, mas isso não importa, pois o</p><p>terremoto que destruiu quase toda Lisboa em 1755 tornou impossível a</p><p>recuperação de seus despojos.</p><p>Todas as dúvidas desaparecem, entretanto, quando se trata da obra</p><p>poética de Luís de Camões. São patentes e universalmente reconhecidas</p><p>sua mestria no versejar e a profundidade de seu pensamento. É ponto</p><p>pacífico o alcance de seu impacto sobre toda a literatura de língua</p><p>portuguesa que veio depois dele, como demonstra Cristiano Martins ao</p><p>colocá-lo entre os gigantes da cultura ocidental:</p><p>Um país faz sua a voz solitária que se levantou</p><p>em acentos expressivos e proféticos. Se não lhe</p><p>reconhece de pronto o valor simbólico, chega pouco</p><p>a pouco à consciência de que essa mensagem traduz</p><p>a alma essencial da coletividade. Assim, na obra de</p><p>Dante Alighieri revê-se a fisionomia medieval italiana,</p><p>mística, dissimulada e obscura; na de Shakespeare</p><p>entremostra-se o sentido trágico e passional da vida</p><p>UNIUBE 5</p><p>inglesa no século XVI, e de um modo que pode granjear</p><p>valor de generalidade, mais evidente a cada dia; na de</p><p>Montaigne espelham-se as nuanças do temperamento</p><p>gaulês – o senso da proporção e da beleza, de que</p><p>é dotado, a amarga e irônica sabedoria, de que se</p><p>penetra; na de Cervantes, projeta-se a vocação do bom</p><p>povo espanhol para o ideal, a sua ânsia de perfeição,</p><p>uma e outra acentuadas pelas reivindicações da razão</p><p>prática, que as contrastavam; na de Goethe, de eu</p><p>apenas nos separa distância de pouco mais de um</p><p>século, objetiva-se o drama da luta pelo conhecimento</p><p>intelectual ilimitado, bem como o das forças misteriosas</p><p>da alma humana agitada por todas as inquietudes.</p><p>E o que foram, com efeito, estes artistas e poetas senão</p><p>pontos culminantes no panorama da criação lírica, ou</p><p>romanesca, dos tempos modernos? [...]</p><p>Entre estes artistas tem Luís de Camões, pela significação</p><p>solar de sua obra, posição destacada. A língua</p><p>portuguesa, a seu turno, alçou-se a nível idêntico aos</p><p>dos outros idiomas em que se vazaram as grandes</p><p>obras-primas do pensamento da humanidade, pois</p><p>coube-lhe – na expressão camoniana – traduzir acentos</p><p>dos mais eloquentes que já se formularam para definir</p><p>a natureza da experiência humana em face da beleza</p><p>fugaz e transitória das coisas aparentes. [...]</p><p>A sua atualidade é, assim, comprovada sobre a</p><p>transitoriedade das escolas e modas literárias; enquanto</p><p>estas passam e se apagam, ela se eleva no horizonte</p><p>do pensamento e da arte, a estender sua influência às</p><p>tendências nascentes. (MARTINS, 1981, p. 17-19).</p><p>O panorama traçado por Cristiano Martins faz referência à contribuição</p><p>dos autores que definiram o papel dos idiomas de suas nações como</p><p>as principais línguas de cultura no Ocidente e que assumiram depois</p><p>da Renascença, marco inicial da Modernidade, o papel que Homero,</p><p>Sófocles e Safo, entre os gregos, e Plauto, Virgílio e Horácio entre os</p><p>latinos desempenhavam na Antiguidade clássica: o de definir toda uma</p><p>cultura a partir de uma obra literária. Sem dúvida, é graças a Camões que</p><p>o português alcançou sua relevância artística e, por isso, é natural vê-lo</p><p>na companhia de Dante, Shakespeare, Montaigne, Cervantes e Goethe.</p><p>6 UNIUBE</p><p>O alcance da esfera de influência da poesia camoniana pode ser</p><p>representado por uma lista de alguns dos principais poetas brasileiros</p><p>de todos os tempos: Gregório de Matos, Cláudio Manoel da Costa,</p><p>Gonçalves Dias, Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Carlos Drummond</p><p>de Andrade, Décio Pignatari, Augusto de Campos. Mesmo grandes</p><p>prosadores brasileiros se referem a Camões em suas obras, como é o</p><p>caso de Machado de Assis e Graciliano Ramos.</p><p>A importância de Camões em vários aspectos da cultura brasileira, incluindo</p><p>a literatura de cordel, pode ser vista no artigo “O mito camoniano”, de</p><p>Gilberto Mendonça Teles”. Ele está disponível neste link:</p><p>http://repositorio.ufc.br/ri/bitstream/riufc/3035/1/1980_Art_GMTeles.pdf</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>A obra de Camões é marcada pela variedade em muitos sentidos, a</p><p>começar pelos gêneros que cultivou: poesia épica, lírica e dramaturgia.</p><p>A épica está representada pelo único livro que publicou em vida, Os</p><p>Lusíadas; a lírica contém formas clássicas (como a ode, a eclóga e a elegia),</p><p>medievais (exemplificadas pelas redondilhas menor e maior e o vilancete)</p><p>e renascentistas (como o soneto e o verso decassílabo); no teatro, compôs</p><p>peças de inspiração tanto clássica quanto popular. Neste capítulo, você</p><p>terá a oportunidade de ler e refletir sobre alguns aspectos essenciais de Os</p><p>Lusíadas e da lírica, principalmente as redondilhas e os sonetos.</p><p>1.1.1 Camões épico: o diálogo com a tradição e a afirmação da</p><p>modernidade</p><p>Os Lusíadas são a expressão máxima da época do Renascimento em</p><p>Portugal. Isso se torna evidente já a partir de sua temática, pois o livro</p><p>tem como fio condutor a narração da viagem que a armada de Vasco da</p><p>Gama fez à Índia, partindo de Lisboa em oito de julho de 1497 e chegando</p><p>UNIUBE 7</p><p>a Calcutá em 20 de maio de 1498. É importante observar que, ao contrário</p><p>da Itália, com Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael, ou da França, com</p><p>a Escola da Borgonha (grande centro de florescimento musical) e os castelos</p><p>de Chambord e d’Amboise, ou da Alemanha, com o sistema mecânico</p><p>de tipos móveis de imprensa de Gutemberg e a Reforma Protestante de</p><p>Martinho Lutero, a grande realização portuguesa na época do Renascimento</p><p>aconteceu fora de seu próprio território. O movimento que colocou o país</p><p>no contexto da modernização da Europa acontecida entre os séculos XV</p><p>e XVI foi sua expansão marítima, que levou os lusitanos a estabelecer</p><p>um domínio político e comercial sobre grandes extensões da Ásia, África</p><p>e América. Usando a viagem de Vasco da Gama como mote desse feito</p><p>que colocaria Portugal no centro da economia, da política e da sociedade</p><p>europeia, Camões retrata em seu poema épico todo um quadro de intensa</p><p>relevância cultural, marcado, ao mesmo tempo, pela renovação do interesse</p><p>pelo mundo antigo grego e latino, daí vindo o nome de Renascença, e pela</p><p>invenção do mundo moderno.</p><p>O duplo aspecto, clássico e moderno, de Os Lusíadas se reflete já</p><p>em sua estrutura. Seu pertencimento ao gênero épico, invenção grega</p><p>fundamental na cultura ocidental desde a Ilíada e a Odisseia, atribuídas</p><p>a Homero desde o século VIII a.C., é afirmado pelo fato de ser um longo</p><p>poema narrativo a respeito de um grande tema. Com seus 8.816 versos,</p><p>formando 1102 estrofes, que contam, além da viagem do Gama, toda</p><p>a história da constituição do reino de Portugal, da Idade Média até a</p><p>época de D. Sebastião, acrescida de muitos episódios, mitológicos e</p><p>amorosos, certamente o livro se encaixa na definição de uma epopeia.</p><p>Sua modernidade, entretanto, também é visível, já que seu tema central</p><p>é um fato histórico, acontecido no mundo real e num tempo recente, ao</p><p>contrário do que os antigos diziam ser o correto para o gênero épico, ou</p><p>seja, a escolha de fatos tão antigos que já tivessem assumido um caráter</p><p>de lenda. Além disso, a todo momento, aparecem em Os Lusíadas</p><p>referências a descobertas científicas contemporâneas da época de seu</p><p>enredo, principalmente aquelas que dizem respeito a novos métodos</p><p>de navegação, ramo do conhecimento em que os portugueses estavam</p><p>assumindo um papel de pioneiros.</p><p>8 UNIUBE</p><p>O poema é dividido em dez cantos; suas estrofes são todas em oitava</p><p>rima, ou seja, de oito versos, seguindo o esquema de rimas abababcc;</p><p>os versos são decassílabos heroicos, com a acentuação caindo sempre</p><p>nas 6ª e 10ª sílabas. Como tal, é um monumento de equilíbrio formal,</p><p>pois a mesma estrutura serve à imensa variedade de assuntos tratados</p><p>O eu</p><p>torna -se, como em Álvaro de Campos, um estrangeiro, não encontrando</p><p>no mundo o seu verdadeiro lugar.</p><p>Entretanto no poeta ainda resiste a sensação de que o escritor ainda</p><p>possui um grande destino, uma missão elevada em relação à sociedade.</p><p>Essa missão faz com o poeta se isole numa torre de marfim, de onde ele</p><p>destila o seu desprezo “por este humano povo entre quem lido”.</p><p>Essa missão vem acrescida de um mito: a de que o poeta resguarda</p><p>as instruções de uma voz além, transcendente. Se o escritor se sente</p><p>abandonado por Deus, em outro momento ele é o emissário de um ser</p><p>supremo, desconhecido (Deus?); “emissário de um rei desconhecido,/</p><p>Eu cumpro informes instruções de além”.</p><p>124 UNIUBE</p><p>A solidão, por sua vez, vem acompanhada do sentimento da perda</p><p>do belo, do sublime. Conforme Cardoso Gomes: “Quem alguma vez</p><p>contemplou a Beleza, não pode aceitar a realidade bruta e sombria que</p><p>o circunda e que não comporta a perfeição”. (1987, p. 50.)</p><p>Podemos vislumbrar tal feito nos seguintes versos: “nem defini -la, nem</p><p>achá -la, a ela/ A Beleza. No mundo não existe./ Ai de quem com a alma</p><p>inda mais triste/ Nos seres transitórios quer colhê -la!”. Ao enfrentar a</p><p>Beleza ou a ausência dela, o poeta só faz recrudescer a sensação de</p><p>inadaptação ao mundo. A realidade, sem a aura de encanto, torna -se</p><p>insuportável, terrível. Aqui podemos rastrear resquícios de um platonismo.</p><p>Conforme sabemos, para Platão esse nosso mundo é sombrio, imperfeito,</p><p>é uma cópia de outro universo, superior, sublime, o mundo das ideias.</p><p>A sensação de que existe esse além supremo leva ao que Pessoa</p><p>chama de “horror de conhecer”. Tal horror nasce somente naquele que</p><p>pressente, pela imaginação poética, uma prévia desse absoluto. O poeta</p><p>sente saudade desse universo pleno, mesmo sem saber exatamente</p><p>o que ele representa. Com efeito, o sentimento de frustração se torna</p><p>imenso, pois sem conhecer o que busca, o poeta não possui nem sequer</p><p>instrumentos para apreender tal perfeição.</p><p>Enfim, no dia a dia a gente percebe o quanto a beleza é passageira. Como</p><p>tudo o que viceja nesse mundo, ela está fadada ao perecimento. Aquele</p><p>que busca a perfeição, a beleza, forçosamente encontrará o fracasso.</p><p>Você já experimentou, com certeza, a frustração perante os empecilhos</p><p>do mundo. O poeta transforma em poesia tais aborrecimentos.</p><p>Todas essas problemáticas levam à cisão do eu, como se a única</p><p>alternativa para a impossibilidade de existir, de atingir o sublime, fosse</p><p>se fragmentar, como se tal processo de retalhamento do eu trouxesse</p><p>lenitivo à dor do ser. Estar imerso em um mundo precário leva o poeta a</p><p>se sentir uma ficção, um sonho, um pesadelo: “Entre o sono e o sonho,/</p><p>UNIUBE 125</p><p>Entre mim e o que em mim/ É o quem eu me suponho,/ Corre um rio sem</p><p>fim”. (PESSOA, 1998, p.130.) A realidade assim só pode ser conhecida</p><p>pela diáspora desses contrários, pela dispersão dessas vozes dispersas.</p><p>Até mesmo o próprio eu é captado de fora, com um estranho: “e quem</p><p>me sinto e morre/ No que me liga a mim”.</p><p>A cisão do eu corresponde a uma visão dialética do mundo e da vida. Isso</p><p>fica explicitado no permanente uso de paradoxos, oximoros e metáforas,</p><p>metáforas essas que indicam a passagem de um estado a outro, tais</p><p>como “ponte”, “arco”, “pórtico”, “sonho” etc.</p><p>Esse dualismo vai ganhando profundidade existencial, em dimensões do ser</p><p>em completa tensão, tais como sonho/realidade, fazer/querer, sentir/pensar.</p><p>No primeiro grupo, o sonho torna a realidade diáfana, difusa, tão irreal</p><p>quanto o próprio sonho.</p><p>Já a oposição fazer/querer está centrada sobre o jogo de azar da vida,</p><p>em que satisfações são negadas, numa permanente sequência de</p><p>frustrações: “querendo, quero o infinito./ Fazendo, nada é verdade”.</p><p>(PESSOA, 1998, p.163.)</p><p>A última oposição, aquela entre sentir e pensar, é germinal, está no</p><p>âmago de toda a obra pessoana, em todos os heterônimos. O sentir</p><p>pessoano, complexo, deixa de ser algo que flui naturalmente, para se</p><p>tornar um processo mental, de elaboração reflexiva: “o que em mim sente</p><p>’sta pensando”. (PESSOA, 1998, p.100.) Sobre tal elaboração do sentir,</p><p>afirma -nos Álvaro Cardoso Gomes:</p><p>esse controle do sentimento pela razão decorre da</p><p>necessidade que o poeta tem de superar o pessoalismo</p><p>na poesia, em nome de uma visão mais abrangente do</p><p>Universo. [...] A totalidade [...] nasce desse controle do</p><p>sentimento, dessa consciência de que a poesia se faz</p><p>através da motivação do sentimento pelo pensamento.</p><p>(GOMES, 1987, p. 48.)</p><p>126 UNIUBE</p><p>Esse controle da emoção nasce também da postura do poeta moderno.</p><p>Com a crescente especialização da vida prática, em que cada técnico</p><p>atende a uma parcela cada vez menor da realidade (o biólogo molecular</p><p>cuida apenas de moléculas, o geógrafo marítimo pesquisa apenas as</p><p>formações geológicas do fundo do mar, o médico cardiologista cuida</p><p>apenas de cardiopatias etc.), o poeta acaba se tornando, cada vez mais,</p><p>um técnico em seu ofício.</p><p>Por outro lado, o escritor da modernidade é aquele que quer escrever</p><p>poesia tendo o total domínio dos recursos líricos. Para tanto, ele se</p><p>aprofunda de tal maneira na pesquisa da tradição e da linguagem poética,</p><p>que se torna um mestre no assunto (no Brasil tivemos poetas mestres,</p><p>chamados poetas de poetas, por serem altamente instruídos em seu</p><p>ofício, é o caso de José Paulo Paes, os irmãos Haroldo e Augusto de</p><p>Campos, Ivan Junqueira, entre outros).</p><p>Com efeito, na poesia de Pessoa tal controle do sentimento se dá também</p><p>pelo alto nível técnico e ou pela precisão de sua escrita, o que o tornou</p><p>exímio artesão do verso, mestre dos mestres no ofício da escrita de</p><p>poemas. Pessoa dominou desde as formas clássicas, como o soneto, a</p><p>ode e a elegia, como também as trovas e quadras de gosto popular e as</p><p>formas livres da poesia moderna.</p><p>Bem, tudo isso é muito complexo. Mas se pararmos para pensar, iremos</p><p>ver que isso faz parte de nossa vida. Nós também controlamos nossos</p><p>sentimentos, mergulhamos no trabalho para esquecer as dores. Pois</p><p>bem, o poeta da modernidade faz o mesmo. Ele é cerebral, racional</p><p>no uso das formas, a fim de dar ordem aos caos de sua existência, ao</p><p>tumulto de sua dores.</p><p>Essa bipartição da existência é a grande desgraça da vida do poeta, pois</p><p>lhe cerceia a felicidade, o gozo e o prazer. Ante tal desolação, resta ao</p><p>ortônimo algumas saídas para amenizar o sofrimento. Essas alternativas</p><p>UNIUBE 127</p><p>nascem da tentativa de resolução dos impasses das dualidades do</p><p>existir. Nesse aspecto são duas as ações que salvaguardam uma réstia</p><p>de contentamento na vida: a supressão da vontade e do tempo.</p><p>A vontade, centelha viva a impulsionar o homem rumo às suas conquistas,</p><p>leva -o também a buscar o impossível. Uma vez ferindo -se nas barreiras</p><p>de sua vontade, resta a Pessoa, como lenitivo, a busca da ingenuidade</p><p>dos inocentes e dos pequenos vestígios do real. Por isso, no Cancioneiro</p><p>o poeta se deixa envolver pela inocência de uma mulher a cantar, de um</p><p>gato a brincar na rua, de uma nuvem que passa.</p><p>Quanto ao tempo, o poeta irá suprimi -lo das seguintes maneiras: 1 — o</p><p>gozo de instantes inefáveis, de sonho e devaneio; 2 — o entorpecimento</p><p>dos sentidos e da razão pela música; 3 — a idealização dos mitos infantis:</p><p>princesas, castelos etc.</p><p>Um exemplo dessa paralisação do tempo encontramos no poema “Mar.</p><p>Manhã”:</p><p>E a minha sensação é nula,</p><p>Quer de prazer, quer de pesar...</p><p>Ébria alheia a mim ondula</p><p>Na onda lúcida do mar.</p><p>(PESSOA, Fernando, 1998, p. 106.)</p><p>O tempo, ante a visão do mar, se congela, e o eu lírico fica em um estado</p><p>de latência, em que os sentimentos ficam suspensos.</p><p>A gente mesmo tem, no dia a dia, a sensação de que o tempo para, não</p><p>progride. É dessa experiência que nos fala o poeta.</p><p>Bem, creio que agora você conheceu um pouco mais da poesia do</p><p>Fernando Pessoa ele mesmo. Agora podemos ler um poema dele, um</p><p>famoso poema. Você está pronto para essa aventura?</p><p>128 UNIUBE</p><p>“Autopsicografia” é, com certeza, o poema mais famoso de Pessoa.</p><p>Vamos mergulhar nas palavras desse</p><p>belo texto?</p><p>Autopsicografia</p><p>O poeta é um fingidor.</p><p>Finge tão completamente</p><p>Que chega a fingir que é dor</p><p>A dor que deveras sente.</p><p>E os que lêem o que escreve</p><p>Na dor lida sentem bem,</p><p>Não as duas que ele teve,</p><p>Mas só a que eles não têm.</p><p>E assim nas calhas de roda</p><p>Gira, a entreter a razão,</p><p>Esse comboio de corda</p><p>Que se chama coração.</p><p>(PESSOA, Fernando , 2010.)</p><p>Esse poema funciona como um verdadeiro jogo de espelhos. Na primeira</p><p>estrofe, Pessoa assume, com coragem, a condição dramática do poeta.</p><p>Ele sente duas dores, a verdadeira e a falsa, a da vida e a da obra. A</p><p>dramatização, por sua vez, intensifica a dor, tornando -a uma verdade</p><p>falsa. Esse paradoxo é típico em Pessoa: a ficção se torna tão densa que</p><p>se presentifica em realidade.</p><p>Tal estrofe, lapidar, serviria como uma espécie de epígrafe para toda a</p><p>poesia de Pessoa. Ela é, com certeza, a melhor definição de sua própria</p><p>obra, do fenômeno da heteronímia, da multiplicação dos eus. Para o</p><p>escritor português, a dramaticidade da vida é uma ficcionalização do real.</p><p>Tanto tal feito é levado a um paroxismo que não sabemos mais o que é</p><p>real e o que é ficção.</p><p>UNIUBE 129</p><p>Esse é o caso dessa dor expressa no texto. Nunca saberemos sua</p><p>origem, se de fato é verídica ou se foi um artifício poético a intensificar</p><p>o sofrimento real.</p><p>Para tornar ainda mais complexo esse jogo de espelhos, essa pirotecnia</p><p>mágica, o poeta insere outro personagem no texto: o leitor. Os paradoxos</p><p>se multiplicam. O leitor passa a sentir um sofrimento que ele não tem.</p><p>Dessa forma, ele sente e não sente a dor.</p><p>Aqui estamos, na verdade, diante da grande magia da literatura. A</p><p>autêntica obra de arte, em vez de mentir, insere o homem no drama</p><p>da vida, no fulgor e terror sinistro do existir. A literatura não nos polpa,</p><p>não mente, não nos afirma uma existência cor -de -rosa como nos filmes</p><p>americanos. E, no entanto (mistério!), sentimos prazer ao travar contato</p><p>com tais verdades, porque elas vêm carregadas pela expressão artística,</p><p>pela delicadeza da metáfora, pela engenhosidade do artista.</p><p>Por isso o leitor, conforme o verso de Pessoa, “Na dor lida sente bem”.</p><p>Sentimos a mesma forma quando nos somos tocados pela tragédia de</p><p>Otelo do Shakespeare, pelo sombrio corvo de Poe, pelo horror sagrado da</p><p>palavra de Rilke, pela morte de nossos heróis da literatura: Ana Karenina,</p><p>os guerreiros de Homero, os outsiders de Thomas Mann e da literatura</p><p>brasileira: Diadorim, João Ternura, Capitu... Na morte dessas personagens</p><p>nos engrandecemos e nos sentimos (paradoxo!) bem.</p><p>Você, com toda certeza, deve ter se emocionado com seus heróis,</p><p>mesmo quando eles morrem. Também deve ter lido poemas em que o</p><p>sofrimento do eu lírico tornou -se lágrima em seus olhos. E, no entanto,</p><p>longe de ser uma dor real, é uma dor inventada.</p><p>Pessoa, em seu famoso poema, dá expressão artística a essa verdade,</p><p>desvelando -nos o mecanismo secreto da própria literatura.</p><p>130 UNIUBE</p><p>Assim, o leitor sente as dores do poeta, mas as dores, no entanto, não</p><p>lhe pertencem e, assim, sofre sem sofrer.</p><p>Na última estrofe as imagens são vertiginosas, imprimem um ritmo</p><p>circular, como um sorvedouro a tragar tudo: o poeta, o poema e o leitor. O</p><p>lexo das imagens circulares abunda: roda, gira, comboio, coração. Tudo</p><p>se move em círculos, em um pulsar sincopado como o do coração. E</p><p>agora, mistério dos mistérios, a quem pertence esse coração? Ao poeta,</p><p>ao leitor? Aos dois e de ninguém.</p><p>No poema, os corações se entrelaçam pela palavra. O coração se</p><p>despersonaliza, já não mais pertence ao poeta nem ao leitor, mas a</p><p>ambos. Coração impessoal, ele é o coração da humanidade toda.</p><p>Conclusão2.8</p><p>Bem, espero que você tenha gostado deste breve passeio pela poesia</p><p>de Pessoa.</p><p>Como se trata de uma obra muito grande e intensa, esse é um poeta</p><p>para estudar a vida toda.</p><p>O convite está lançado. Agora é só mergulhar nesse mundo de sonhos</p><p>e ficções.</p><p>Resumo</p><p>Ao longo deste capítulo, pudemos observar o quanto a poesia de Pessoa</p><p>se difunde em vários eus fictícios.</p><p>A partir do vácuo de si mesmo, o escritor realizou um feito raro:</p><p>multiplicou -se em diversos poetas, os heterônimos, cada qual com uma</p><p>dicção peculiar, uma formação existencial distinta.</p><p>UNIUBE 131</p><p>O primeiro deles analisado por nós, Alberto Caeiro, é o escritor -pastor</p><p>sempre voltado para a natureza. Poeta de uma pungente ingenuidade,</p><p>Caeiro se nega aos exercícios estéreis da razão, preferindo, assim, uma</p><p>escrita mais próxima do real.</p><p>Ricardo Reis, o artista pagão da modernidade, instaura um novo culto</p><p>aos deuses, desvelando -nos a crueldade do fado humano.</p><p>O último dos heterônimos por nós analisado, Álvaro de Campos, é o mais</p><p>moderno entre os três e, por isso, o que mais se dedica às vanguardas</p><p>artísticas.</p><p>Por fim, pudemos analisar um pouco da poesia do Fernando Pessoa</p><p>ortônimo. Descobrimos, com mais essa ficção pessoana, o quanto a</p><p>melancolia pode -se transformar em uma harmoniosa composição poética.</p><p>Acreditamos, portanto, que, ao longo deste estudo, tivemos a possibilidade</p><p>de descobrir um pouco mais de nós e do outro. Aprendemos, enfim, com</p><p>Pessoa a humildade de não nos apegarmos a um eu totalitário.</p><p>Indicamos como leitura o seguinte texto presente no site: <http://www.revista.</p><p>agulha.nom.br/nelly01.html>.</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>132 UNIUBE</p><p>Renata de Oliveira</p><p>Introdução</p><p>Eça de Queirós e</p><p>os novos rumos da</p><p>literatura portuguesa</p><p>Capítulo</p><p>3</p><p>A literatura portuguesa é pródiga em dar ao mundo grandes</p><p>criadores. Do passado ao presente, nomes como os de Luís de</p><p>Camões, Gil Vicente, Padre Antonio Vieira, Fernando Pessoa,</p><p>Florbela Espanca, José Saramago e Inês Pedrosa se destacam.</p><p>A esse grupo pertence o discreto Eça de Queirós, que, além de</p><p>obras impactantes, teve papel decisivo no desenvolvimento da</p><p>estética realista em Portugal.</p><p>Neste capítulo, saiba como se deu a transição do Romantismo</p><p>para o Realismo em Portugal, há também uma breve biografia</p><p>de Eça e algumas das principais características de sua criação</p><p>literária por meio da análise da obra A ilustre casa de Ramires e</p><p>da leitura do conto Singularidades de uma rapariga loura.</p><p>Após o estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:</p><p>• explicar o surgimento da estética realista em Portugal;</p><p>• identificar como questões sociais e históricas são abordadas</p><p>por Eça de Queirós em sua obra;</p><p>Objetivos</p><p>• reconhecer os recursos literários que compõem a narrativa eciana;</p><p>• estabelecer paralelos entre a obra eciana e a de outros autores.</p><p>3.1 O Realismo em Portugal: um pouco de história</p><p>3.2 Ecos de mudança</p><p>3.3 Uma ilustre obra</p><p>3.4 Singularidades de um conto</p><p>Esquema</p><p>O Realismo em Portugal: um pouco de história3.1</p><p>A segunda metade do século XIX marca a mudança da estética romântica</p><p>para a estética realista. Essa transição ocorre como reflexo das mudanças</p><p>sociais e científicas da época. Enquanto o restante da Europa e mesmo</p><p>o Brasil se iniciam na nova escola, Portugal resiste. Vejamos o porquê.</p><p>O início do século XIX representou a culminância do processo de industrialização</p><p>do continente europeu. Portugal, no entanto, encontrava-se à margem desse</p><p>processo, já que a industrialização ali tinha sido prejudicada pelas invasões</p><p>napoleônicas ocorridas no início do século XIX, forçando a fuga da família</p><p>real portuguesa para o Brasil em 1808. Somado a esse fato, instala -se</p><p>uma guerra civil no país iniciada pela disputa sucessória após a morte</p><p>de D. João VI, em 1826.</p><p>Com poucas indústrias, altas taxas de analfabetismo e influência da Igreja</p><p>nas decisões do Estado, a nação portuguesa vivia à margem de toda a</p><p>efervescência econômica e cultural vivenciada por seus vizinhos.</p><p>No entanto, a partir de 1850, Portugal alcança certa estabilidade política,</p><p>progresso material e intercâmbio com o restante da Europa. Nessa época,</p><p>destacava -se a cidade de Coimbra, um centro universitário e cultural, que</p><p>se ligava às demais nações europeias por meio de uma estrada de ferro.</p><p>134 UNIUBE</p><p>Porém, apesar desses avanços, a literatura portuguesa</p><p>ainda se</p><p>mantinha presa à tradição romântica e árcade, em que imperavam o</p><p>academicismo e o tradicionalismo. Nessa época, o expoente da literatura</p><p>portuguesa era Antonio Feliciano de Castilho, já idoso e cego.</p><p>Antonio Feliciano de Castilho (1800 -1875)</p><p>Poeta romântico, polemista e pedagogo.</p><p>SAIBA MAIS</p><p>Certa vez, ao escrever o posfácio do recém -lançado livro de um protegido</p><p>seu, Castilho critica um grupo de jovens poetas de Coimbra, a quem</p><p>acusava de serem exibicionistas e obscurantistas.</p><p>O líder do grupo, o jovem poeta e estudante Antero de Quental,</p><p>escreve um manifesto criticando a forma ultrapassada de não só se</p><p>fazer literatura, mas também de pensar e viver. A tônica do discurso</p><p>de Quental era que, apesar de todo progresso, Portugal ainda era uma</p><p>nação conservadora, que precisava acompanhar a evolução alcançada</p><p>pelo restante do continente. Essa discussão ficou conhecida como a</p><p>Questão Coimbrã, que perdurou por todo o segundo semestre do ano</p><p>de 1865, com troca de ataques e acusações entre românticos e realistas.</p><p>Antero de Quental (1842 -1891)</p><p>Poeta realista, principal mentor da “geração de 70”. Sua obra de</p><p>destaque é a reunião de poemas intitulada Sonetos, em que fica</p><p>evidente a influência de Camões e Bocage.</p><p>SAIBA MAIS</p><p>Além de Quental, os realistas eram representados por Teófilo Braga,</p><p>Ramalho Ortigão, Pinheiro Chagas e Eça de Queirós que, embora fizesse</p><p>parte do grupo, não interveio na polêmica. Porém as obras do discreto</p><p>Eça não passaram desapercebidas.</p><p>UNIUBE 135</p><p>Ecos de mudança3.2</p><p>No ano de 1845, nasce em uma tradicional família de Póvoa de Varzim,</p><p>interior de Portugal, um menino que, nascido fora do casamento, é criado</p><p>em colégios internos, longe dos pais, agora casados, e dos irmãos.</p><p>O menino assim prossegue até que, aos 16 anos, ingressa na Universidade</p><p>de Coimbra, onde forma -se em Direito, seguindo a tradição paterna.</p><p>Nessa época, conhece o amigo Antero de Quental, que o apresenta ao</p><p>revolucionário grupo de Coimbra. O jovem inicia sua carreira literária ao</p><p>publicar seus primeiros textos em jornais e revistas.</p><p>Até que, em 1875, publica a versão final do romance que define as</p><p>direções do Realismo português. O crime do padre Amaro provoca</p><p>acaloradas discussões, pois retrata a corrupção da Igreja e do clero.</p><p>A essa obra seguem -se outras tão marcantes quanto: O primo Basílio,</p><p>Os Maias, A correspondência de Fradique Mendes, A cidade e as</p><p>serras, entre outras, além de contos, poemas, artigos.</p><p>De sua produção literária, emergia a temática social e o caráter</p><p>reformista da nação portuguesa. Esses temas se convertiam em histórias</p><p>interessantes por meio da ironia, da polarização de situações, do uso</p><p>de palavras coloquiais e de um narrador que servia como porta -voz das</p><p>opiniões do autor.</p><p>Egito, Oriente, Cuba, Inglaterra e França são alguns dos lugares pelos</p><p>quais passa o diplomata que viveu como menino recluso e que se tornou</p><p>um dos maiores artistas da língua portuguesa.</p><p>No ano de 1900, em Paris, na França, apaga -se um gênio da criação</p><p>literária lusitana, José Maria Eça de Queirós.</p><p>136 UNIUBE</p><p>Uma ilustre obra3.3</p><p>Elegemos o romance A ilustre casa de Ramires (1900) para trazer a</p><p>você um pouco mais do gênio do autor das já consagradas O primo</p><p>Basílio e Os Maias. Essa obra faz parte da terceira fase literária de Eça</p><p>e é considerada a obra que revela o seu amadurecimento como autor.</p><p>Antes de avançarmos em nossa discussão, situemos a história. O</p><p>personagem principal desse romance é Gonçalo Mendes Ramires,</p><p>descendente de uma família cuja origem remonta ao século XII. O</p><p>protagonista é um jovem orgulhoso do seu passado familiar e decide</p><p>escrever uma novela a fim de relatar os feitos de sua família, a partir do</p><p>ato heróico de seu patriarca, Trutesindo Ramires. O título de sua novela</p><p>é A torre dos Ramires, referência à imponente torre que se sobressai</p><p>na propriedade que pertence à família há séculos.</p><p>Porém os Ramires do século XIX já não mais ostentam o mesmo poder</p><p>e influência que seus antepassados, vivendo muito mais de aparências,</p><p>tanto que precisam arrendar sua propriedade. A torre dos Ramires,</p><p>outrora símbolo de altivez, agora em ruínas, representa a própria</p><p>decadência.</p><p>Falemos, então, sobre os significados ocultos nesse texto que revela a</p><p>própria história de Portugal. A ilustre casa de Ramires é uma narrativa</p><p>que se constrói em torno de antíteses: passado versus presente, glória</p><p>versus decadência, grandeza versus fragilidade.</p><p>Essa dualidade é a essência da estrutura da obra, já que é composta pelo</p><p>cruzamento de duas narrativas: a história de Gonçalo Ramires e a história</p><p>de Trutesindo Ramires. A primeira narrativa é conduzida por Eça por meio</p><p>de um narrador em terceira pessoa. Quanto à segunda narrativa, trata -se</p><p>da novela escrita por Gonçalo, que passa de personagem a autor de uma</p><p>UNIUBE 137</p><p>Notamos que não há no texto recursos gráficos, tais como recuo ou</p><p>mudança de fonte, ou um aviso prévio que alertam o leitor sobre a</p><p>passagem de uma história a outra. Por outro lado, é a percepção dos</p><p>diferentes níveis em que as histórias acontecem que nos situa dentro</p><p>do(s) texto(s).</p><p>Assim, no primeiro parágrafo desse fragmento,</p><p>temos um episódio no qual Gonçalo se prepara</p><p>para trabalhar em sua obra a partir de um ponto que</p><p>não estava de seu agrado. No entanto, no segundo</p><p>parágrafo, já passamos à leitura de sua novela. Essa</p><p>transição se dá quando o narrador onisciente,</p><p>após relatar as preocupações que afligiam Gonçalo</p><p>e descrever o ambiente ao seu redor, passa a nos</p><p>“contar” a história que vem sendo escrita pelo personagem -autor.</p><p>história dentro da história. O uso de tal recurso</p><p>metalinguístico exige uma leitura mais atenta que</p><p>de costume, a fim de se fazer a distinção entre uma</p><p>e outra narrativa. Vejamos um fragmento da obra:</p><p>Para se acalmar, ocupar a noite encerrada, deliberou</p><p>trabalhar na novela. E realmente agora convinha que</p><p>terminasse essa Torre de D. Ramires antes do afã da</p><p>eleição – para que em janeiro, ao abrir das Cortes,</p><p>surgisse na política com o seu velho nome aureolado</p><p>pela erudição e pela arte. Envergou o roupão de flanela.</p><p>E à banca, com o costumado bule de chá inspirador,</p><p>repassou lentamente o começo do Capítulo II, que o</p><p>não contentava.</p><p>Era no Castelo de Santa Ireneia, naquele dia de agosto</p><p>em que Lourenço Ramires caíra no vale de Canta</p><p>Pedra, malferido e cativo do Bastardo de Baião. [...] já</p><p>Trutesindo Ramires conhecia o desventuroso desfecho</p><p>da lide... (QUEIRÓS, 2004, p. 128)</p><p>Metalinguístico</p><p>De uma forma</p><p>simples,</p><p>metalinguagem</p><p>é a propriedade</p><p>que tem a língua</p><p>de voltar -se para</p><p>si mesma. Por</p><p>exemplo, o poema</p><p>Metáfora de</p><p>Gilberto Gil, em que</p><p>o texto literário fala</p><p>sobre essa figura de</p><p>linguagem.</p><p>A partir da leitura desse fragmento, você percebe o recurso utilizado por Eça</p><p>ao contar a história da família Ramires?</p><p>PARADA OBRIGATÓRIA</p><p>Narrador onisciente</p><p>Narra a história em</p><p>terceira pessoa, sabe</p><p>tudo sobre o enredo</p><p>e as personagens,</p><p>inclusive o que</p><p>pensam e sentem.</p><p>Pode fazer</p><p>intromissões em</p><p>primeira pessoa.</p><p>138 UNIUBE</p><p>As duas narrativas representam a dualidade passado versus presente. A</p><p>novela de Gonçalo Ramires está ligada à tradição medieval das novelas</p><p>de cavalaria, enquanto o romance de Eça de Queirós se enquadra</p><p>na estética realista do século XIX. Vejamos um pouco mais sobre as</p><p>características de uma e de outra.</p><p>A novela ou romance de cavalaria surge no século XII e narra os feitos</p><p>heroicos de cavaleiros que prezavam ideais de lealdade, coragem e</p><p>honra. Outro componente dessa narrativa é a luta pela mulher amada,</p><p>já que havia algum complicador na história que impedia a realização</p><p>desse amor.</p><p>São esses os ingredientes que compõem a novela de Gonçalo Ramires.</p><p>Trata -se da narrativa de um episódio ocorrido com seu patriarca,</p><p>Trutesindo Ramires, no século XII. O velho Ramires defende a honra</p><p>de sua família contra seu oponente Lopo de Baião que, apaixonado por</p><p>Violante Ramires,</p><p>tenta invadir a propriedade da família, a fim de levar</p><p>consigo a donzela. No embate, um dos Ramires, Lourenço, é mortalmente</p><p>ferido. A partir daí, Trutesindo Ramires e seu grupo perseguem Lopo de</p><p>Baião, até que este seja capturado e morto. Somente dessa forma, a</p><p>honra da família é recuperada.</p><p>O Realismo, em contrapartida, é uma estética literária surgida na</p><p>segunda metade do século XIX que visa à objetividade, ao retratar e</p><p>criticar a realidade. Assim, o homem realista, longe de ser um herói, é</p><p>comum e possui fraquezas.</p><p>Realismo</p><p>Inicia -se com a publicação do romance Madame Bovary (1857), do francês</p><p>Gustave Flaubert.</p><p>SAIBA MAIS</p><p>UNIUBE 139</p><p>Ao retratar os Ramires do passado e os Ramires do presente, Eça nos</p><p>conduz ao exame de outra dualidade, a grandeza versus a fragilidade.</p><p>Enquanto seus antepassados eram homens bravos e honrados, Gonçalo</p><p>Ramires era um fidalgo acomodado, sem disposição para o trabalho e</p><p>incapaz de honrar sua palavra.</p><p>Em sua narrativa, Gonçalo exalta o caráter dos primeiros Ramires como</p><p>homens bravos e destemidos, capazes de enfrentar qualquer dificuldade.</p><p>Ao mesmo tempo, vê -se tão virtuoso quanto seus avós, porém com</p><p>algumas diferenças:</p><p>Mas sentia a grandeza e o préstimo histórico desse</p><p>arrojo, que outrora impelia os seus a arrasar solares</p><p>rivais, a escalar vilas mouriscas; ressuscitava pelo Saber</p><p>e pela Arte, arrojava para a vida ambiente, esses varões</p><p>temerosos, com os seus corações, os seus trajes, as</p><p>suas bravatas sublimes; dentro do espírito e das</p><p>expressões do seu século era, pois, um bom Ramires –</p><p>um Ramires de nobres energias, não façanhudas, mas</p><p>intelectuais [...]. (QUEIRÓS, 2004, p. 104)</p><p>Na visão de Gonçalo Ramires, qual é o traço que distingue sua</p><p>geração da de seus antepassados?</p><p>Por meio da reflexão de Gonçalo, desenha -se o perfil das duas gerações.</p><p>Os Ramires medievais eram guerreiros destemidos que não se furtavam</p><p>ante a qualquer obstáculo. Gonçalo se sente tão nobre quanto os</p><p>primeiros Ramires, porém ressalta que a grandeza da família não mais</p><p>se revela pela guerra, mas pela arte e pelo saber.</p><p>O símbolo da transformação do homem guerreiro para o homem intelectual</p><p>são as armas que cada um empunhava. Enquanto, no passado, os Ramires</p><p>empunhavam a lança e a espada, no presente, a arma dos Ramires passa</p><p>a ser a pena.</p><p>Porém, o real caráter de Gonçalo é revelado ao leitor pelo narrador, que</p><p>desnuda as fraquezas do protagonista da história com ironia e objetividade.</p><p>140 UNIUBE</p><p>Tomemos o encontro entre Gonçalo e José Casco, com quem havia</p><p>firmado compromisso de arrendar sua propriedade. O humilde agricultor</p><p>interpela o fidalgo em uma estrada, pedindo satisfações sobre o motivo</p><p>pelo qual o acordo firmado entre eles havia sido desfeito. Sem dar uma</p><p>explicação a Casco, Gonçalo arrenda sua terra a outro agricultor que</p><p>oferece um preço melhor pela terra.</p><p>Percebam a amostra da habilidade narrativa de Eça de Queirós contida</p><p>no fragmento, a seguir.</p><p>Gonçalo Ramires levantou a cabeça com uma</p><p>dignidade lenta e custosa, como se levantasse uma</p><p>maça de ferro:</p><p>– Que está você a dizer, Casco? Faltar à palavra! Em</p><p>que lhe faltei eu à palavra? Por causa do arrendamento</p><p>da Torre? Essa é nova! Então houve por acaso escritura</p><p>assinada entre nós? Você não voltou, não apareceu...</p><p>O Casco emudecera, assombrado. Depois, em que lhe</p><p>tremiam os beiços brancos, lhe tremiam as secas mãos</p><p>cabeludas, fincadas ao cabo do varapau:</p><p>– Se houvesse papel assinado, o Fidalgo não podia</p><p>recuar!... Mas era como se houvesse, para gente de</p><p>bem!... (QUEIRÓS, 2004, p. 105)</p><p>O parágrafo se inicia com a forte imagem construída a fim</p><p>de demonstrar que Gonçalo, no seu íntimo, estava ciente</p><p>de que havia agido de modo desleal: “levantou a cabeça</p><p>com uma dignidade lenta e custosa, como se levantasse</p><p>uma maça de ferro” (QUEIRÓS, 2004, p. 105).</p><p>Em seguida, ao responder à indagação de José Casco, Gonçalo não é</p><p>capaz de proferir nenhuma afirmativa, ao contrário, devolve perguntas</p><p>retóricas e exclamações que reforçam as evidências que diante do fato</p><p>não havia explicação satisfatória, talvez, apenas o reconhecimento de</p><p>sua má conduta.</p><p>O homem rural, na sua simplicidade, é mais digno do que o fidalgo falido.</p><p>A descrição de sua reação física ante o assombro da dissimulação de</p><p>Gonçalo nos revela mais do que sua retidão de caráter. Casco representa</p><p>UNIUBE 141</p><p>o homem do interior rural de Portugal, aquele que ostenta um corpo</p><p>castigado pela lida diária no campo. No entanto, essa deterioração física</p><p>não lhe diminui o valor, mas lhe confere dignidade, já que a imagem de</p><p>suas mãos másculas e fortes se sobressai, ao simbolizar a força capaz</p><p>de realizar o pesado trabalho do campo.</p><p>Outros elementos que compõem a caracterização do personagem rural</p><p>são seu nome, Casco, e o uso de palavras como “beiço”, que guardam</p><p>significados que não apenas sua rusticidade e simplicidade. A palavra</p><p>“casco”, ao remeter a cavalo, representa a força e a energia necessárias</p><p>a um homem que fosse lavrar sua terra e dominar seu rebanho. Assim,</p><p>sua integridade moral era proporcional à integridade física.</p><p>Finalmente, ao contrário do discurso fluido de Gonçalo, as palavras de</p><p>José Casco são firmes e certeiras, demonstrando que a palavra do homem</p><p>simples é mais valiosa e digna do que os títulos do homem burguês.</p><p>Um dos pontos fortes da obra eciana é a discussão das temáticas sociais.</p><p>Observem vocês que, aqui, temos mais uma polarização: a cidade versus</p><p>o campo. Desprezados na primeira fase literária do autor, o campo e</p><p>sua gente ressurgem valorizados como os representantes da tradição</p><p>portuguesa honrada e edificante, em sua terceira fase literária.</p><p>Antes de prosseguirmos em nosso estudo sobre A ilustre casa de</p><p>Ramires, façamos uma pausa a fim de examinar uma representativa</p><p>obra da literatura brasileira:</p><p>Deu estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos</p><p>saltos, veio lamber -lhe as mãos grossas e cabeludas.</p><p>Fabiano recebeu a carícia, enterneceu -se:</p><p>– Você é um bicho, Baleia.</p><p>Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais.</p><p>Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam</p><p>a quentura da terra. Montado, confundia -se com</p><p>o cavalo, grudava -se a ele. E falava uma linguagem</p><p>cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro</p><p>142 UNIUBE</p><p>entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para</p><p>um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às</p><p>vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma</p><p>língua com que se dirigia aos brutos – exclamações,</p><p>onomatopeias. Na verdade falava pouco. (RAMOS,</p><p>1995, p. 19-20)</p><p>Notaram que, apesar da caracterização semelhante, as descrições do</p><p>camponês lusitano de Eça e do sertanejo nordestino de Graciliano nos</p><p>conduzem a diferentes realidades? Você saberia diferenciar o homem rural</p><p>de Eça de Queirós do de Graciliano Ramos?</p><p>PARADA OBRIGATÓRIA</p><p>Fabiano, de Vidas secas, apesar da mesma origem rural de José Casco,</p><p>é totalmente desprovido de qualquer caráter humano. Os traços físicos</p><p>do nordestino o tornam não um homem apto para o trabalho como o</p><p>camponês lusitano, mas um animal. Sua animalidade é ressaltada pela</p><p>ausência da habilidade exclusiva da raça humana, a linguagem, sendo</p><p>capaz de comunicar -se apenas com animais como a cachorra Baleia ou</p><p>o seu cavalo.</p><p>Dessa forma, enquanto Eça reconhece o valor e a importância do homem</p><p>da terra, Graciliano desenvolve a temática social em nossa literatura, ao</p><p>expor as condições degradantes em que o sertanejo nordestino vivia já</p><p>no início do século XX.</p><p>Após um passeio pela literatura de Graciliano, voltemos ao nosso estudo</p><p>e vejamos por que Eça escolheu o interior de Portugal como cenário de</p><p>seu romance.</p><p>As histórias – a da novela e a do romance – têm como cenário as</p><p>paisagens interioranas de Oliveira, Santa Ireneia e Vila Clara que, no</p><p>passado, testemunharam grandes lutas contra invasões inimigas e</p><p>que, no presente, são o interior desprezado de uma nação que busca a</p><p>modernidade sem jamais ter perdido sua essência agrária.</p><p>UNIUBE 143</p><p>Alegoria</p><p>É uma sequência</p><p>de metáforas,</p><p>associando e</p><p>aproximando</p><p>elementos, que,</p><p>normalmente, não</p><p>teriam nenhum</p><p>parentesco.</p><p>Para Eça, a definição do caráter português no século XIX se daria por</p><p>meio da reconciliação entre a identidade urbana e a identidade rural. A</p><p>esse respeito, Antonio Candido, citado por Nery, nos diz que:</p><p>[...] a ambígua civilização portuguesa, incapaz de</p><p>libertar -se do peso do passado e de forjar com estilos</p><p>tradicionais uma síntese de vida, criou para Eça um</p><p>impasse literário que ele resolve pelo abandono da linha</p><p>urbana. (CANDIDO, 1964, p. 51)</p><p>Porém ainda nos resta comentar o elemento que é o elo entre ambas as</p><p>narrativas de A ilustre casa de Ramires: trata -se da Torre dos Ramires.</p><p>A edificação é, na verdade, uma alegoria para a</p><p>própria nação portuguesa, que, da imponência</p><p>medieval, passa a ruínas no século XIX, ou seja,</p><p>o país pioneiro das grandes navegações passa</p><p>a península periférica durante a Revolução</p><p>Industrial.</p><p>Esse percurso demonstra como alguns dos problemas que marcaram a</p><p>identidade da sociedade portuguesa do século XIX foram retratados sob</p><p>a ótica queirosiana.</p><p>Apesar do caráter específico de sua temática, Eça não se eximiu de</p><p>escrever sobre um tema caro à estética realista, as relações amorosas.</p><p>Em A ilustre casa de Ramires, o assunto é tratado tanto na novela</p><p>quanto no romance, porém sob diferentes perspectivas.</p><p>Na primeira, temos o amor romântico entre Lopo de Baião e Violante</p><p>Ramires, que, mesmo apaixonados, são impedidos da realização</p><p>amorosa. Em nome de seu sentimento, o homem medieval era capaz,</p><p>até mesmo, de morrer por amor.</p><p>144 UNIUBE</p><p>No romance realista, o relacionamento amoroso, ao contrário, é um</p><p>caminho para atender a outras necessidades, que não as do coração.</p><p>Ao longo da história, Gonçalo se interessa por duas mulheres, Dona Ana,</p><p>uma jovem viúva rica, e Rosinha, filha de um amigo endinheirado. Porém</p><p>o fidalgo apenas considera a possibilidade de uma esposa rica e distinta,</p><p>e seu destino amoroso permanece em suspense.</p><p>A ousadia em relação ao tema está em Gracinha Ramires, irmã de</p><p>Gonçalo. Assim como Emma Bovary, a moça, que vivia no interior, casada</p><p>com um homem cujo único atrativo era a estabilidade financeira, dá</p><p>indícios de um possível adultério ao reencontrar um antigo pretendente.</p><p>Dada a abrangência da narrativa da obra, tratamos, aqui, daqueles</p><p>aspectos que julgamos suficientes para atenderem ao propósito de nosso</p><p>trabalho: destacar Eça de Queirós como um dos expoentes da literatura</p><p>portuguesa.</p><p>A ilustre casa de Ramires permite a Eça desvendar a sociedade</p><p>portuguesa de seu tempo. Ao contrário das críticas da primeira fase, o</p><p>autor refaz a história da nação e propõe novos rumos para um país sem</p><p>direção. A reconciliação do cosmopolita com a pátria se dá por meio do</p><p>personagem que representa o próprio Eça, Gonçalo Ramires.</p><p>O fidalgo, ao final de sua novela, revê sua vida e toma consciência de</p><p>que não pode mais viver preso ao passado, devendo ser o autor de sua</p><p>própria história. Da mesma forma que em sua obra, a trajetória pessoal</p><p>de Eça comporta também uma dualidade: a ousadia da juventude</p><p>representa a passagem para a sensatez da maturidade.</p><p>Nosso estudo sobre os autores e as obras da literatura portuguesa não</p><p>deve parar por aqui. Além de Eça e, claro, Camões e Fernando Pessoa,</p><p>há outros escritores de língua portuguesa que merecem ser lidos e</p><p>estudados. Incluindo -se, nessa relação, autores contemporâneos como</p><p>José Saramago, o moçambicano Mia Couto e o angolano José Eduardo</p><p>Agualusa.</p><p>UNIUBE 145</p><p>Singularidades de um conto3.4</p><p>Ao longo dos anos, deparamos com criações literárias que despertam o</p><p>interesse da crítica e do público por várias gerações.</p><p>Isso pode ser creditado à capacidade artística de seus criadores que,</p><p>magistralmente, são capazes de retratar as diversas facetas humanas</p><p>sob a forma de texto literário.</p><p>No entanto a simples captação dos dilemas humanos não é o bastante</p><p>para a criação de boas histórias. A utilização inovadora da palavra e da</p><p>linguagem é que serão capazes de seduzir o leitor, ao criar o jogo de</p><p>significados ocultos tão peculiar a essa forma de arte.</p><p>Poderíamos citar uma plêiade de autores que se eternizaram pelo mérito</p><p>da criação de obras -primas. Eça é, indubitavelmente, um deles.</p><p>Mais de um século após sua morte, sua obra continua alvo de interesse</p><p>dos meios intelectuais e artísticos: artigos, dissertações, teses, peças de</p><p>teatro, minisséries, filmes...</p><p>Sendo assim, a fim de fundamentar sua formação como professor de</p><p>literatura da escola básica, propomos a leitura e o estudo de um dos mais</p><p>celebrados contos do autor: Singularidades de uma rapariga loura.</p><p>Em relação à obra de Eça, destacam -se não só seus romances,</p><p>mas também seus contos. Estes exigiam do autor o exercício de sua</p><p>capacidade artística, ao deparar com a exiguidade do conto, que impõe</p><p>ao artista a economia das palavras para contar sua história. Desse modo,</p><p>para que você conheça mais a obra desse renomado autor, propomos a</p><p>você a leitura do conto Singularidades de uma rapariga loura (veja na</p><p>seção “Novos conhecimentos”). Porém, antes de iniciá -la, considere as</p><p>questões que se seguem.</p><p>146 UNIUBE</p><p>Quem são os personagens centrais do conto?</p><p>A que “singularidades” se refere o título do conto?</p><p>Qual é o tema da narrativa?</p><p>PARADA PARA REFLEXÃO</p><p>Singularidades de uma rapariga loura chega ao leitor por intermédio de</p><p>um narrador, de quem sequer sabemos o nome. É ele quem nos conta a</p><p>história do infortúnio amoroso ocorrido na juventude do velho Macário e</p><p>que determinaria sua trajetória de vida. O encontro dos dois personagens</p><p>acontece em uma estalagem na região portuguesa do Minho.</p><p>Isso fica evidente quando o narrador se volta ao leitor: “Devo dizer que</p><p>conheci este homem numa estalagem do Minho” (QUEIRÓS, 2006a, p.</p><p>59) ou “Disse -me ele que, sendo naturalmente linfático e mesmo tímido,</p><p>a sua vida tinha nesse tempo uma grande concentração” (QUEIRÓS,</p><p>2006a, p. 62).</p><p>Portanto, no conto, deparamo s com uma categoria distinta de narrador</p><p>se comparado ao do romance A ilustre casa de Ramires. Agora, temos</p><p>o chamado narrador heterodiegético. Segundo D´Onofrio (2007, p. 391,</p><p>grifo nosso), esse narrador pode ser considerado:</p><p>[...] uma personagem ad hoc, colocada no conto com</p><p>a única função de transmitir ao leitor o caso de vida</p><p>do protagonista da história,</p><p>que o próprio Macário lhe</p><p>contara. O narrador funciona,</p><p>então, como intermediário</p><p>entre o protagonista Macário</p><p>(elemento do mundo da ficção),</p><p>de quem é receptor, e o leitor</p><p>virtual (elemento do mundo</p><p>real), para quem é transmissor da mensagem. Essa</p><p>função de elo de ligação entre o mundo imaginário e</p><p>o mundo real confere ao narrador uma visão objetiva,</p><p>pois sua postura é a de quem narra fatos e descreve</p><p>sentimentos, acontecidos, vividos e narrados por uma</p><p>terceira pessoa.</p><p>Ad hoc</p><p>Expressão latina</p><p>que significa “para</p><p>isto” ou “para esta</p><p>finalidade”.</p><p>UNIUBE 147</p><p>Isso posto, perguntamos a você, caro aluno: quem é o primeiro</p><p>narrador da história?</p><p>Macário é o primeiro narrador da história, pois conta ao seu companheiro</p><p>de estalagem seu decepcionante caso amoroso. Este, por sua vez,</p><p>assume o papel do narrador que conta a nós, leitores, a história ouvida:</p><p>“Macário contou -me o que determinara mais precisamente àquela</p><p>resolução profunda e perpétua” (QUEIRÓS, 2006a, p. 71) ou “E ele</p><p>explicou -me que os lucros de Cabo Verde não podiam constituir um</p><p>capital definitivo” (QUEIRÓS, 2006a, p. 75).</p><p>Assim, é a esse personagem sem nome que Macário, o protagonista da</p><p>história, revela sua história. Mas e quanto aos personagens principais desse</p><p>conto, quem são eles e como podemos situá -los diante da estética realista?</p><p>PARADA PARA REFLEXÃO</p><p>O primeiro deles é, sem dúvida, o próprio Macário descrito, de forma</p><p>breve, na juventude, como louro de cabelo anelado e barba curta. Em</p><p>contrapartida, o homem maduro, que acumula experiências</p><p>de vida, é</p><p>descrito de modo bastante pormenorizado:</p><p>[...] alto e grosso; tinha uma calva larga, luzidia e lisa,</p><p>com repas brancas que lhe eriçavam em redor; e os</p><p>seus olhos pretos, com a pele em roda engelhada e</p><p>amarelada, e olheiras papudas, tinham uma singular</p><p>clareza e retidão – por trás de seus óculos redondos</p><p>com aros de tartaruga. Tinha a barba rapada, o queixo</p><p>saliente e resoluto. Trazia uma gravata de cetim negro</p><p>apertada por trás com uma fivela; um casaco comprido</p><p>cor de pinhão, com as mangas estreitas e justas e</p><p>canhões de veludilho. E pela longa abertura do seu</p><p>colete de seda, onde reluzia um grilhão antigo – saíam</p><p>as pregas moles de uma camisa bordada. (QUEIRÓS,</p><p>2006a, p. 59)</p><p>148 UNIUBE</p><p>O jovem Macário era de aparência comum, bom negociante, honesto,</p><p>mas sem malícia diante de situações que exigiam senso prático e</p><p>esperteza, e não apenas inteligência. Nesse sentido, aquele que tentou</p><p>alertar Macário para o exagero que vinha cometendo contra sua própria</p><p>vida foi o tio Francisco, ao dizer ao sobrinho que era um “estúpido, mas</p><p>homem de bem”. (QUEIRÓS, 2006a, p. 77)</p><p>Essa fala do tio Francisco revela a dualidade que marca Macário e a qual</p><p>o personagem deveria superar para conseguir viver plenamente sua vida:</p><p>[...] estúpido, porque, deixando -se levar pela paixão</p><p>amorosa, renuncia ao emprego que lhe dava segurança</p><p>econômica; estúpido, porque se deixa embrulhar</p><p>pelo “amigo do chapéu de palha”; estúpido, porque</p><p>não compreende a doença de sua noiva, confundindo</p><p>cleptomaníaca com ladra e ameaçando entregá -la à</p><p>polícia, quando deveria procurar -lhe um psicanalista.</p><p>Homem de bem, porque vive de acordo com seu código</p><p>de honra: por ter beijado Luísa, sente -se obrigado a</p><p>casar com ela; por ter assinado a fiança, assume a</p><p>dívida daquele que considerara seu amigo; por ter</p><p>descoberto o furto da noiva, paga o preço do anel e</p><p>abandona a moça, que era o motivo de sua realização</p><p>existencial, condenando -se a uma perpétua e infeliz</p><p>solidão. (D´ONOFRIO, 2007, p. 395)</p><p>Dessa forma, do jovem ingênuo surge o velho reservado, marcado</p><p>fisicamente pelo tempo – calvo e de olhos cansados. Além do mais, o</p><p>desleixo de sua aparência – mau gosto no vestir -se, gravata presa por</p><p>uma fivela, casaco de mangas justas, camisa gasta – nos leva a crer que</p><p>vivia solitariamente.</p><p>Apesar das experiências que poderiam ter concorrido para o amadurecimento</p><p>de Macário, aquela que definirá os rumos de sua vida é, sem dúvida, a</p><p>decepção ao descobrir que Luísa se apossava de objetos alheios.</p><p>Assim, Luísa é o segundo personagem central do enredo. Ela é descrita</p><p>romanticamente como loura, fresca, de pele alva e delicada como porcelana.</p><p>Porém, da aparência angelical e romântica, surge um personagem que</p><p>UNIUBE 149</p><p>revela traços típicos do Realismo. Ao longo da história, emerge seu</p><p>desinteresse pelo relacionamento com Macário, já que, nos “encontros</p><p>noturnos, tinha sono” (QUEIRÓS, 2006a, p. 73) e, de forma gradual, sua</p><p>atração por objetos valiosos e caros, como na passagem em que fica</p><p>hipnotizada pela moeda de ouro a girar na mesa de jogo.</p><p>Finalmente, surge Francisco que é o personagem cuja função seria ajudar</p><p>o sobrinho a fazer escolhas equilibradas. De acordo com D´Onofrio (2007),</p><p>à primeira vista, temos a impressão de que esse personagem é um velho</p><p>autoritário, solteirão, misógino. Porém, com o desenrolar da história, em um</p><p>momento crucial para Macário, o tio é capaz de acolhê -lo e apoiá -lo, mas</p><p>sem eximir -se de sua franqueza. A oposição ao casamento era decorrente</p><p>do pressentimento do homem vivido diante da escolha da mulher errada</p><p>pelo sobrinho. Assim, dos três personagens centrais aquele que demonstra</p><p>uma mudança de atitude é Francisco. Isso evidencia -se na passagem em</p><p>que ele se emociona ao fazer as pazes com Macário.</p><p>De acordo com os princípios da estética realista, o caráter dos personagens</p><p>é fortemente determinado pelo ambiente, sendo que “segundo as teorias</p><p>positivistas e deterministas, o espaço (o meio) e o tempo (o momento)</p><p>são fatores importantíssimos para a formação do caráter e elementos</p><p>indispensáveis para a compreensão da conduta”. (D´ONOFRIO, 2007, p. 395)</p><p>Dois fatos da história são antecedidos por uma descrição minuciosa</p><p>do ambiente. O primeiro deles refere -se ao episódio inicial do conto, o</p><p>encontro entre Macário e seu conhecido, a quem revela o episódio mais</p><p>marcante de sua vida.</p><p>Volte ao conto e observe como Eça detalha não só o cenário – uma</p><p>estalagem no Minho e o desenho geográfico da região que a abriga – como</p><p>também a época em que se deu o encontro – a transição do clima em</p><p>setembro. Tudo isso serve de preparação para que Macário se sentisse à</p><p>vontade para revelar sua história.</p><p>PARADA OBRIGATÓRIA</p><p>150 UNIUBE</p><p>Outro episódio marcante da história é quando Macário depara com as</p><p>figuras femininas da viúva e da filha desta, Luísa. A visão das mulheres e</p><p>o despertar do sentimento amoroso no jovem inexperiente são marcados</p><p>pelo detalhamento do espaço físico, dos ruídos do ambiente, o clima</p><p>quente e o céu limpo.</p><p>Esses são dois exemplos de como os autores alinhados aos preceitos</p><p>realistas usavam o detalhismo da descrição de elementos típicos da</p><p>narração, como o tempo e o espaço, com o intuito de:</p><p>[...] a descrição de pormenores é a técnica específica</p><p>de que se serve a arte realista para retratar fielmente</p><p>a realidade. Para descobrir as causas psíquicas e</p><p>circunstanciais que determinariam certas ações ou</p><p>para alcançar os meandros dos conflitos existenciais, o</p><p>escritor procede lentamente, analisando cuidadosamente</p><p>elementos espaciais e temporais, posto que estes são</p><p>determinantes do comportamento dos personagens.</p><p>(D´ONOFRIO, 2007, p. 384)</p><p>Ao mencionarmos a influência do ambiente sobre as personagens,</p><p>deparamos com o tema desse conto, a cleptomania. Complementando a</p><p>discussão iniciada anteriormente, a estética realista está mais interessada</p><p>no retrato fiel das personagens do que na sua idealização. Segundo os</p><p>artistas partidários do Realismo, “as ações humanas decorreriam, então,</p><p>da influência de fatores ambientais, hereditários e da personalidade”</p><p>(D´ONOFRIO, 2007, p. 384).</p><p>Dessa forma, é assim que Luísa tem sua singularidade revelada ao final</p><p>do conto, quando a apropriação indevida do anel é percebida pelo dono</p><p>da joalheria, e Macário toma consciência dos hábitos da noiva. A essa</p><p>altura, Eça já havia deixado pistas ao leitor, e ao próprio Macário, dessa</p><p>particularidade, preparando -os para a revelação final.</p><p>Você saberia apontar quais momentos da narrativa insinuam a</p><p>cleptomania de Luísa?</p><p>UNIUBE 151</p><p>1) O primeiro momento é quando Macário tem a visão de Luísa à janela</p><p>portando um rico leque do Oriente. O rapaz deduz que se tratava de</p><p>moça de família de posses dado o valor do objeto.</p><p>2) A segunda ocorrência é o desaparecimento da caixa de lenços indianos</p><p>do armazém do tio Francisco, quando Luísa e a mãe estavam apenas</p><p>olhando mercadorias.</p><p>3) O terceiro momento é o desaparecimento da moeda de ouro durante</p><p>o jogo na casa de amigos.</p><p>E como diferenciar, então, a doença de Luísa do ato de roubar?</p><p>Inicialmente, poderíamos pensar que a moça apoderava -se de objetos</p><p>alheios já que não contava com a presença do pai para apoiar a família</p><p>financeiramente. No entanto, ao roubar o anel, quando já estava de</p><p>casamento marcado com um homem capaz de prover -lhe materialmente,</p><p>revela -se, assim, que Luísa era incapaz de controlar o ato, tratando -se,</p><p>portanto, de uma patologia de fundo psíquico.</p><p>Assuntos relacionados ao psiquismo também foram bastante explorados</p><p>pela estética realista, já que atos condenáveis cometidos pelas personagens</p><p>poderiam justificar -se pelas descobertas da medicina.</p><p>A leitura desse conto permitiu -nos conhecer um pouco da variedade</p><p>criativa de Eça de Queirós. O autor aborda a temática do relacionamento</p><p>amoroso que não se realiza, porém, dessa vez, o motivo é a rigidez moral</p><p>de Macário que o impede de compreender a condição psiquiátrica da</p><p>noiva e ajudá -la, o que seria a condição necessária para a concretização</p><p>de seu casamento.</p><p>152 UNIUBE</p><p>Finalmente, você pode inteirar -se um pouco mais da criação do autor ao</p><p>ler na seção “Novos conhecimentos”, a seguir, o conto Singularidades de</p><p>uma rapariga loura (QUEIROZ, 2006), que explora o tema da cleptomania.</p><p>Desse modo, o comportamento humano, influenciado pelas condições</p><p>ambientais e pelo psiquismo, é retratado pela estética realista.</p><p>Singularidades de uma rapariga loura</p><p>Eça de Queirós</p><p>Capítulo I</p><p>Começou por me dizer que o seu caso era simples – e que se chamava</p><p>Macário...</p><p>Devo contar que conheci este homem numa estalagem do Minho. Era alto e</p><p>grosso: tinha uma calva larga, luzidia e lisa, com repas brancas que se lhe</p><p>eriçavam em redor: e os seus olhos pretos, com a pele em roda engelhada</p><p>e amarelada, e olheiras papudas, tinham uma singular clareza e retidão –</p><p>por trás dos seus óculos redondos com aros de tartaruga. Tinha a barba</p><p>rapada, o queixo saliente e resoluto. Trazia uma gravata de cetim negro</p><p>apertada por trás com uma fivela; um casaco comprido cor de pinhão, com</p><p>as mangas estreitas e justas e canhões de veludilho. E pela longa abertura</p><p>do seu colete de seda, onde reluzia um grilhão antigo – saíam as pregas</p><p>moles de uma camisa bordada.</p><p>Era isto em Setembro; já as noites vinham mais cedo com uma friagem fina</p><p>e seca e uma escuridão aparatosa. Eu tinha descido da diligência, fatigado,</p><p>esfomeado, tiritando num cobrejão de listras escarlates.</p><p>INDICAÇÃO DE LEITURA</p><p>UNIUBE 153</p><p>Vinha de atravessar a serra e os seus aspectos pardos e desertos. Eram</p><p>oito horas da noite. Os céus estavam pesados e sujos. E, ou fosse um certo</p><p>adormecimento cerebral produzido pelo rolar monótono da diligência, ou</p><p>fosse a debilidade nervosa da fadiga, ou a influência da paisagem escarpada</p><p>e chata, sobre côncavo silêncio noturno, ou a opressão da eletricidade que</p><p>enchia as alturas, o fato é que eu – que sou naturalmente positivo e realista</p><p>– tinha vindo tiranizado pela imaginação e pelas quimeras. Existe no fundo</p><p>de cada um de nós, é certo – tão friamente educados que sejamos – um</p><p>resto de misticismo; e basta às vezes uma paisagem soturna, o velho muro</p><p>de um cemitério, um ermo ascético, as emolientes brancuras de um luar –</p><p>para que esse fundo místico suba, se alargue como um nevoeiro, encha</p><p>a alma, a sensação e a ideia, e fique assim o mais matemático, ou o mais</p><p>crítico, tão triste, tão visionário, tão idealista – como um velho monge poeta.</p><p>A mim, o que me lançara na quimera e no sonho fora o aspecto do Mosteiro</p><p>de Restelo, que eu tinha visto, na claridade suave e outonal da tarde, na sua</p><p>doce colina. Então, enquanto anoitecia, a diligência rolava continuamente</p><p>ao trote esgalgado dos seus magros cavalos brancos, e o cocheiro, com</p><p>o capuz do gabão enterrado na cabeça, ruminava no seu cachimbo – eu</p><p>pus -me elegiacamente, ridiculamente, a considerar a esterilidade da vida: e</p><p>desejava ser um monge, estar num convento, tranquilo, entre arvoredos, ou</p><p>na murmurosa concavidade de um vale, e enquanto a água da cerca canta</p><p>sonoramente nas bacias de pedra, ler a «Imitação», e, ouvindo os rouxinóis</p><p>nos loureirais, ter saudades do Céu. – Não se pode ser mais estúpido. Mas</p><p>eu estava assim, e atributo a esta disposição visionária a falta de espírito – a</p><p>sensação – que me fez a história daquele homem dos canhões de veludinho.</p><p>A minha curiosidade começou à ceia, quando eu desfazia o peito de uma</p><p>galinha afogado em arroz branco, com fatias escarlates de paio – e a</p><p>criada, uma gorda e cheia de sardas, fazia espumar o vinho verde no copo,</p><p>fazendo-o cair de alto de uma caneca vidrada: o homem estava de fronte</p><p>de mim, comendo tranquilamente a sua geleia: perguntei -lhe, com a boca</p><p>cheia, o meu guardanapo de linho de Guimarães suspenso nos dedos – se</p><p>ele era de Vila Real.</p><p>154 UNIUBE</p><p>— Vivo lá. Há muitos anos – disse -me ele.</p><p>— Terra de mulheres bonitas, segundo me consta – disse eu.</p><p>O homem calou -se.</p><p>— Heim? – tornei.</p><p>O homem contraiu -se num silêncio saliente. Até aí estivera alegre, rindo</p><p>dilatadamente; loquaz e cheio de bonomia. Mas então imobilizou o seu</p><p>sorriso fino.</p><p>Compreendi que tinha tocado a carne viva de uma lembrança. Havia de certo</p><p>no destino daquele velho uma “mulher”. Aí estava o seu melodrama ou a sua</p><p>farsa, porque inconscientemente estabeleci -me na ideia de que o “fato”, o</p><p>«caso» daquele homem, devera ser grotesco e exalar escárnio.</p><p>De sorte que lhe disse:</p><p>— A mim têm -me afirmado que as mulheres de Vila Real são as mais bonitas</p><p>do Minho. Para olhos pretos Guimarães, para corpos Santo Aleixo, para</p><p>tranças os Arcos: é lá que se vêem os cabelos claros cor de trigo.</p><p>O homem estava calado, comendo, com os olhos baixos.</p><p>— Para cinturas finas Viana, para boas peles Amarante – e para isto tudo</p><p>Vila Real. Eu tenho um amigo que veio casar a Vila Real. Talvez conheça.</p><p>O Peixoto, um alto, de barba loura, bacharel.</p><p>— O Peixoto, sim – disse -me ele, olhando gravemente para mim.</p><p>— Veio casar a Vila Real como antigamente se ia casar à Andaluzia –</p><p>questão de arranjar a fina flor da perfeição.</p><p>— À sua saúde.</p><p>UNIUBE 155</p><p>Eu evidentemente constrangia -o, porque se ergueu, foi à janela com um</p><p>passo pesado, e eu reparei então nos seus grossos sapatos de casimira</p><p>com sola forte e atilhos de couro. E saiu.</p><p>Quando eu pedi o meu castiçal, a criada trouxe -me um candeeiro de latão</p><p>lustroso e antigo e disse;</p><p>— O senhor está com outro. E no no 3.</p><p>Nas estalagens do Minho, às vezes, cada quarto é um dormitório impertinente.</p><p>— Vá – disse eu.</p><p>O no 3 era no fundo do corredor. Às portas dos lados os passageiros tinham</p><p>posto o seu calçado para engraxar: estavam umas grossas botas de montar,</p><p>enlameadas, com esporas de correia; os sapatos brancos de um caçador,</p><p>botas de proprietário, de altos canos vermelhos; as botas de um padre, altas,</p><p>com a sua borla de retrós; os botins cambados de bezerro, de um estudante;</p><p>e a uma das portas, o no 15, havia umas botinas de mulher, de duraque,</p><p>pequeninas e finas, e ao lado as pequeninas botas de uma criança, todas</p><p>coçadas e batidas, e os seus canos de pelica -mor caíam -lhe para os lados</p><p>com os atacadores desatados. Todos dormiam. Defronte do no 3 estavam</p><p>os sapatos de casimira com atilhos: e quando abri a porta vi o homem dos</p><p>canhões de veludilho, que amarrava na cabeça um lenço de seda estava</p><p>com uma jaqueta curta de ramagens, uma meia de lã, grossa e alta, e os</p><p>pés metidos nuns chinelos de ourelo.</p><p>— O senhor não repare – disse ele.</p><p>— À vontade. – E para estabelecer intimidade tirei o casaco.</p><p>Não direi os motivos por que ele daí a pouco, já deitado, me disse a sua</p><p>história. Há um provérbio eslavo da Galícia que diz: «O que não contas</p><p>à tua mulher, o que não contas ao teu amigo, contá -lo a um estranho, na</p><p>estalagem.» Mas ele teve raivas inesperadas e dominantes para a sua</p><p>larga e sentida confidência. Foi a respeito do meu amigo, do Peixoto, que</p><p>156 UNIUBE</p><p>fora casar a Vila Real. Vi -o chorar, àquele velho de quase sessenta anos.</p><p>Talvez a história seja julgada trivial: a mim, que nessa noite estava nervoso</p><p>e sensível, pareceu -me terrível – mas conto -a apenas como um acidente</p><p>singular da vida amorosa...</p><p>Começou pois por me dizer que o seu caso era simples e que se chamava</p><p>Macário.</p><p>Perguntei -lhe então se era de uma família que eu conhecera, que tinha o</p><p>apelido de «Macário». E como ele me respondeu que era primo desses,</p><p>eu tive logo do seu caráter uma ideia simpática, porque os Macários eram</p><p>uma antiga família, quase uma dinastia de comerciantes, que mantinham</p><p>com uma severidade religiosa a sua velha tradição de honra e de escrúpulo.</p><p>Macário disse -me que nesse tempo, em 1823 ou 33, na sua mocidade, seu</p><p>tio Francisco tinha, em Lisboa, um armazém de panos, e ele era um dos</p><p>caixeiros. Depois o tio compenetrara -se de certos instintos inteligentes e do</p><p>talento prático e aritmético de Macário, e deu -lhe a escrituração. Macário</p><p>tornou</p><p>-se o seu “guarda -livros”.</p><p>Disse -me ele que sendo naturalmente linfático e mesmo tímido, a sua vida</p><p>tinha nesse tempo uma grande concentração. Um trabalho escrupuloso e fiel,</p><p>algumas raras merendas no campo, um apuro saliente de fato e de roupas</p><p>brancas, era todo o interesse da sua vida. A existência, nesse tempo, era</p><p>caseira e apertada. Uma grande simplicidade social aclarava os costumes:</p><p>os espíritos eram mais ingênuos, os sentimentos menos complicados.</p><p>Jantar alegremente numa horta, debaixo das parreiras, vendo correr a água</p><p>das regas – chorar com os melodramas que rugiam entre os bastidores do</p><p>Salitre, alumiados a cera, eram contentamentos que bastavam à burguesia</p><p>cautelosa. Além disso, os tempos eram confusos e revolucionários: e nada</p><p>torna o homem recolhido, conchegado à lareira, simples e facilmente feliz</p><p>– como a guerra. E a paz que, dando os vagares da imaginação, causa as</p><p>impaciências do desejo.</p><p>UNIUBE 157</p><p>Macário, aos vinte e dois anos, ainda não tinha – como lhe dizia uma velha</p><p>tia, que fora querida do desembargador Curvo Semedo, da Arcádia –</p><p>“sentido Vênus”.</p><p>Mas por esse tempo veio morar para defronte do armazém dos Macários,</p><p>para um terceiro andar, uma mulher de quarenta anos, vestida de luto, uma</p><p>pele branca e baça, o busto bem feito e redondo e um aspecto desejável.</p><p>Macário tinha a sua carteira no primeiro andar por cima do armazém, ao</p><p>pé de uma varanda, e dali viu uma manhã aquela mulher com o cabelo</p><p>preto solto e anelado, um chambre branco e braços nus, chegar -se a uma</p><p>pequena janela de peitoril, a sacudir um vestido. Macário afirmou -se, e, sem</p><p>mais intenção, dizia mentalmente aquela mulher, aos vinte anos, devia ter</p><p>sido uma pessoa cativante e cheia de domínio: por que os seus cabelos</p><p>violentos e ásperos, o sobrolho espesso, o lábio forte, perfil aquilino e firme,</p><p>revelam um temperamento ativo e imaginações apaixonadas. No entanto,</p><p>continuou serenamente alinhando as suas cifras. Mas à noite estava sentado</p><p>fumando à janela do seu quarto, que abria sobre o pátio: era em Julho e a</p><p>atmosfera estava elétrica e amorosa: a rabeca de um vizinho gemia uma</p><p>chácara mourisca, que então sensibilizava, e era de um melodrama; o quarto</p><p>estava numa penumbra doce e cheia de mistério – Macário, que estava</p><p>em chinelas, começou a lembrar -se daqueles cabelos negros e fortes e</p><p>daqueles braços que tinham a cor dos mármores pálidos: espreguiçou -se,</p><p>rolou morbidamente a cabeça pelas costas da cadeira de vime, como os</p><p>gatos sensíveis que se esfregam, e decidiu bocejando que a sua vida era</p><p>monótona. E ao outro dia, ainda impressionado, sentou -se à sua carteira</p><p>com a janela toda aberta, e olhando o prédio fronteiro, onde viviam aqueles</p><p>cabelos grandes – começou a aparar vagarosamente a sua pena de rama.</p><p>Mas ninguém se chegou à janela do peitoril, com caixilhos verdes. Macário</p><p>estava enfastiado, pesado – e o trabalho foi lento. Pareceu -lhe que havia na</p><p>rua um sol alegre, e que nos campos as sombras deviam ser mimosas e que</p><p>se estaria bem vendo o palpitar das borboletas brancas nas madressilvas! E</p><p>quando fechou a carteira sentiu defronte correr -se a vidraça; eram de certo</p><p>158 UNIUBE</p><p>os cabelos pretos. Mas apareceram uns cabelos louros. Oh! E Macário veio</p><p>logo salientemente para a varanda aparar um lápis. Era uma rapariga de</p><p>vinte anos, talvez – fina, fresca, loura como uma vinheta inglesa: a brancura</p><p>da pele tinha alguma coisa de transparência das velhas porcelanas, e havia</p><p>no seu perfil uma linha pura, como de uma medalha antiga e os velhos</p><p>poetas pitorescos ter -lhe -iam chamado – pomba, arminho, neve e ouro.</p><p>Macário disse consigo:</p><p>— É filha.</p><p>A outra vestia de luto, mas esta, a loura tinha um vestido de cassa com pintas</p><p>azuis, um lenço de cambraia trespassado sobre o peito, as mangas pendidas</p><p>com rendas, e tudo aquilo era asseado, moço, fresco, flexível e tenro.</p><p>Macário, nesse tempo, era louro, com barba curta. O cabelo era anelado e</p><p>a sua figura devia ter aquele ar seco e nervoso que depois do século XVIII</p><p>e da revolução foi tão vulgar nas raças plebeias.</p><p>A rapariga loura reparou naturalmente em Macário, mas naturalmente</p><p>desceu a vidraça correndo por trás uma cortina de cassa bordada. Estas</p><p>pequenas cortinas datam de Goethe e elas têm na vida amorosa um</p><p>interessante destino: revelam. Levantar -lhe uma ponta e espreitar, franzi -la</p><p>suavemente, revela um fim; corrê -la, pregar nela uma flor, agitá -la fazendo</p><p>sentir que por trás um rosto atento se move e espera – são velhas maneiras</p><p>com que na realidade e na arte começa o romance. A cortina ergueu -se</p><p>devagarinho e o rosto louro espreitou.</p><p>Macário não me contou por pulsações – a história minuciosa do seu coração.</p><p>Disse singelamente que daí a cinco dias – “estava louco por ela”. O seu</p><p>trabalho tornou -se logo vagaroso e infiel e o seu belo cursivo inglês, firme</p><p>e largo, ganhou curvas, ganchos, rabiscos, onde estava todo o romance</p><p>impaciente dos seus nervos. Não a podia ver pela manhã: o sol mordente</p><p>UNIUBE 159</p><p>de Julho batia e escaldava a pequena janela de peitoril. Só pela tarde, a</p><p>cortina se franzia, se corria a vidraça, e ela, estendendo uma almofadinha</p><p>no rebordo do peitoril, vinha encostar -se mimosa e fresca com o seu leque.</p><p>Leque que preocupou Macário: era uma ventarola chinesa, redonda, de</p><p>seda branca com dragões escarlates bordados à pena, uma cercadura de</p><p>plumagem azul, fina e trêmula como uma penugem, e o seu cabo de marfim,</p><p>donde pendiam duas borlas de fio de ouro, tinha incrustações de nácar à</p><p>linda maneira persa.</p><p>Era um leque magnífico e naquele tempo inesperado nas mãos de plebeias</p><p>de uma rapariga vestida de cassa. Mas como ela era loura e a mãe tão</p><p>meridional, Macário, com intuição interpretativa dos namorados, disse à</p><p>sua curiosidade: “Será filha de um inglês”. O inglês vai à China, à Pérsia,</p><p>a Ormuz, à Austrália e vem cheio daquelas joias dos luxos exóticos, e nem</p><p>Macário sabia por que é que aquela ventarola de mandarina o preocupava</p><p>assim: mas segundo ele me disse – “aquilo deu -lhe no goto”.</p><p>Tinha -se passado uma semana, quando um dia Macário viu, da sua carteira,</p><p>que ela, a loura, saía com a mãe, porque se acostumara a considerar mãe</p><p>dela aquela magnífica pessoa, magnificamente pálida e vestida de luto.</p><p>Macário veio à janela e viu -as atravessar a rua e a entrarem no armazém!</p><p>Desceu logo trêmulo, sôfrego, apaixonado e com palpitações. Estavam elas</p><p>já encostadas ao balcão e um caixeiro desdobrava -lhes defronte casimiras</p><p>pretas. Isto comoveu Macário. Ele mesmo mo disse.</p><p>— Porque, enfim, meu caro, não era natural que elas viessem comprar, para</p><p>si, casimiras pretas.</p><p>E não: elas não usavam “amazonas”, não queriam decerto estofar cadeiras</p><p>com casimiras pretas, não havia homens em casa delas; portanto aquela</p><p>vinda ao armazém era um meio delicado de o ver de perto, de lhe falar, e</p><p>160 UNIUBE</p><p>tinha o encanto penetrante de uma mentira sentimental. Eu disse a Macário</p><p>que, sendo assim, ele deveria de estranhar aquele movimento amoroso,</p><p>porque denotava na mãe uma cumplicidade equívoca. Ele confessou -se “que</p><p>nem pensava em tal”. O que fez foi chegar ao balcão e dizer estupidamente:</p><p>— Sim, senhor, vão bem servidas, estas casimiras não encolhem.</p><p>E a loura ergueu para ele o seu olhar azul e foi como se Macário se sentisse</p><p>envolvido na doçura de um céu.</p><p>Mas quando ele ia a dizer -lhe uma palavra reveladora e veemente, apareceu</p><p>ao fundo do armazém o tio Francisco, com o seu comprido casaco de pinhão,</p><p>de botões amarelos. Como era singular e desusado achar -se o senhor</p><p>guarda-livros vendendo ao balcão e o tio Francisco, com a sua crítica estreita</p><p>e celibatária, escandalizar -se, Macário começou a subir vagarosamente a</p><p>escada de caracol que levava ao escritório, e ainda ouviu a voz delicada da</p><p>loura dizer brandamente:</p><p>— Agora queria ver lenços da Índia.</p><p>E o caixeiro foi buscar um pequenino pacote daqueles lenços, acamados e</p><p>apertados numa tira de papel dourado.</p><p>Macário tinha visto naquela visita</p><p>uma revelação de amor, quase uma</p><p>«declaração», esteve todo o dia entregue às impaciências amargas da</p><p>paixão. Andava distraído, abstrato, pueril, não deu atenção à escrituração,</p><p>jantou calado, sem escutar o tio Francisco que exaltava as almôndegas, mal</p><p>reparou no seu ordenado que lhe foi pago em pintos às três horas e não</p><p>entendeu bem a recomendações do tio e a preocupação dos caixeiros sobre</p><p>o desaparecimento de um pacote de lenços da Índia.</p><p>— É o costume de deixar entrar pobres no armazém – tinha dito no seu</p><p>laconismo majestoso o tio Francisco. – São doze mil réis de lenços. Lance</p><p>à minha conta.</p><p>UNIUBE 161</p><p>Macário, no entanto, ruminava secretamente uma carta, mas sucedeu</p><p>que ao outro dia, estando ele à varanda, a mãe, a de cabelos pretos, veio</p><p>encostar -se ao peitoril da janela, e neste momento passava na rua um amigo</p><p>de Macário, que, vendo aquela senhora, afirmou -se e tirou -lhe, como uma</p><p>cortesia toda risonha, o seu chapéu de palha. Macário ficou radioso: logo</p><p>nessa noite procurou o seu amigo, e abruptamente, sem meia -tinta:</p><p>— Quem é aquela mulher que tu hoje cumprimentaste defronte do armazém?</p><p>— É a Vilaça. Bela mulher.</p><p>— É a filha?</p><p>— A filha?</p><p>— Sim, uma loura, clara, com um leque chinês.</p><p>— Ah! sim. É filha.</p><p>— É o que eu dizia...</p><p>— Sim e então?</p><p>— É bonita.</p><p>— É bonita.</p><p>— É gente de bem, heim?</p><p>— Sim gente de bem.</p><p>— Está bom! Tu conhece -las muito?</p><p>— Conheço -as. Muito não. Encontrava -as dantes em casa de D. Cláudia.</p><p>— Bem, ouve lá.</p><p>162 UNIUBE</p><p>E Macário, contando a história do seu coração acordado e exigente e</p><p>falando do amor com as exaltações de então, pediu -lhe como a glória da</p><p>sua vida «que achasse um meio de o encaixar lá». Não era difícil. As Vilaças</p><p>costumavam ir aos sábados a casa de um tabelião muito rico na Rua dos</p><p>Calafates: eram assembléias simples e pacatas, onde se cantavam motetes</p><p>ao cravo, se glosavam motes e havia jogos de prendas do tempo da senhora</p><p>D. Maria I, e às nove horas a criada servia a orchata. Bem. Logo no primeiro</p><p>sábado Macário, de casaca azul, calças de ganga com presilhas de trama</p><p>de metal, gravata de cetim roxo, curvava -se diante da esposa do tabelião,</p><p>Sr.ª D. Maria da Graça, pessoa seca e aguçada, com um vestido bordado</p><p>a matiz, um nariz adunco uma enorme luneta de tartaruga, a pluma de</p><p>marabout nos seus cabelos grisalhos. A um canto da sala já lá estava, entre</p><p>um frufru de vestidos enormes, a menina Vilaça, a loura, vestida de branco,</p><p>simples, fresca, com o seu ar de gravura colorida. A mãe Vilaça, a soberba</p><p>mulher pálida, cochichava com um desembargador de figura apopléctica.</p><p>O tabelião era homem letrado, latinista, e amigo da musas; escrevia num</p><p>jornal de então, a “Alcofa das Damas”: porque era sobretudo galante, e</p><p>ele mesmo se intitulava, numa ode pitoresca, “moço escudeiro de Vênus”.</p><p>Assim, as suas reuniões eram ocupadas pelas belas -artes – e, numa noite,</p><p>um poeta do tempo devia vir ler um poemeto intitulado “Elmira ou a Vingança</p><p>do Venesiano”!... Começavam então a aparecer as primeiras audácias</p><p>românticas... As revoluções da Grécia principiavam a atrair os espíritos</p><p>romanescos e saídos da mitologia para os países maravilhosos do oriente.</p><p>Por toda a parte se falava no paxá de Janina. E a poesia apossava -se</p><p>vorazmente deste mundo novo e virginal de minaretes, serralhos, sultanas</p><p>cor de âmbar, piratas do Arquipélago, e salas rendilhadas, cheias do perfume</p><p>do aloés onde paxás decrépitos acariciam leões. De sorte que a curiosidade</p><p>era grande – e quando o poeta apareceu com os cabelos compridos, o nariz</p><p>adunco e fatal, o pescoço entalado na alta gola do seu fraque à Restauração</p><p>e um canudo de lata na mão – o Sr. Macário é que não teve sensação</p><p>alguma, porque lá estava todo absorvido, falando com a menina Vilaça. E</p><p>dizia -lhe meigamente:</p><p>UNIUBE 163</p><p>— Então, noutro dia, gostou das casimiras?</p><p>— Muito – disse ela baixo.</p><p>E, desde esse momento, envolveu -os um destino nupcial.</p><p>No entanto, na larga sala, a noite passava -se espiritualmente. Macário</p><p>não pôde dar todos os pormenores históricos e característicos daquela</p><p>assembleia. Lembrava -se apenas que um corregedor de Leiria recitava</p><p>o “Madrigal a Lídia”: lia -o de pé, com uma luneta redonda aplicada sobre</p><p>o papel, a perna direita lançada para diante, a mão na abertura do colete</p><p>branco de gola alta, e em redor, formando círculo, as damas, com vestidos</p><p>de ramagens, cobertas de plumas, as mangas estreitas, terminadas num fofo</p><p>de rendas, mitenes de retrós cheias da cintilação dos anéis, tinham sorrisos</p><p>ternos, cochichos, doces murmurações, risinhos, e um brando palpitar de</p><p>leques recamados de lantejoulas. “Muito bonito”, diziam, “muito bonito!” E o</p><p>corregedor, desviando a luneta, cumprimentava sorrindo – e via -se -lhe um</p><p>dente podre.</p><p>Depois, a preciosa D. Jerônima da Piedade e Sande, sentando -se com maneiras</p><p>comovidas ao cravo, cantou a sua voz roufenha a antiga ária de Sully:</p><p>Oh Ricardo, oh meu rei,</p><p>O mundo te abandona.</p><p>O que obrigou o terrível Gaudêncio, democrata de 20 e admirador de</p><p>Robespierre, a rosnar rancorosamente junto de Macário:</p><p>— Reis -víboras!...</p><p>Depois o cônego Saavedra cantou uma modinha de Pernambuco muito</p><p>usada no tempo do senhor D. João VI: “Lindas moças, lindas moças”. E a</p><p>noite ia assim correndo, literária, pachorrenta erudita, requintada e toda cheia</p><p>de musas. Oito dias depois, Macário era recebido em casa da Vilaça, num</p><p>domingo. A mãe convidara -o dizendo -lhe:</p><p>164 UNIUBE</p><p>— Espero que o vizinho honre esta choupana.</p><p>E até o desembargador apopléctico, que estava ao lado, exclamou:</p><p>— Choupana! Diga alcançar! Formosa dama!</p><p>Estavam, nesta noite, o amigo do chapéu de palha, um velho cavaleiro de</p><p>Malta, trôpego, estúpido e surdo, um beneficiado da Sé, ilustre pela sua</p><p>voz tiple, e as manas Hilárias, a mais velha das quais, tendo assistido,</p><p>como aia de uma senhora da Casa da Mina, à tourada de Salva – terra,</p><p>em que morreu o conde dos Arcos, nunca deixara de narrar os episódios</p><p>pitorescos daquela tarde: a figura do conde dos Arcos de cara rapada e uma</p><p>fita de cetim escarlate no rabicho; o soneto que um magro poeta, parasita</p><p>da Casa de Vimioso, recitou quando o conde entrou, fazendo ladear o seu</p><p>cavalo negro, arreado à espanhola, com um xairel onde as suas armas</p><p>estavam lavradas em prata; o tombo que nesse momento um frade de S.</p><p>Francisco deu na trincheira alta, e a hilaridade da corte, que até a senhora</p><p>condessa de Povolide apertava as mãos nas ilhargas; depois el -rei, o senhor</p><p>D. José I, vestido de veludo escarlate, recamado de ouro, todo encostado</p><p>ao rebordo do seu palanque, fazendo girar entre os dedos a sua caixa de</p><p>rapé cravejada, e atrás, imóveis, o físico Lourenço e o frade seu confessor;</p><p>depois o rico aspecto da praça cheia de gente de Salvaterra, maiorais,</p><p>mendigos dos arredores, frades, lacaios, e o grito que houve quando D.</p><p>José I entrou: – Viva el -rei, nosso senhor! – E o povo ajoelhou, e el -rei</p><p>tinha -se sentado, comendo doces, que um criado trouxe num saco de veludo</p><p>atrás dele. Depois a morte do conde dos Arcos, os desmaios, e até el -rei</p><p>todo debruçado, batendo com a mão no parapeito, gritava na confusão, e o</p><p>capelão da Casa dos Arcos que tinha corrido a buscar a extrema -unção. Ela,</p><p>Hilária ficara atarracada de pavor: sentia os urros dos bois, os gritos agudos</p><p>das mulheres, os ganidos dos flatos, e vira então um velho, todo vestido</p><p>de veludo preto, com a fina espada na mão,... debater -se entre fidalgos</p><p>e damas que o seguravam, e querer atirar -se à praça, bradando cheio de</p><p>raiva! “É o pai do conde.” Ela então desmaia nos braços de um padre da</p><p>UNIUBE 165</p><p>Congregação. Quando veio a si, achou -se junto da praça; a berlinda real está</p><p>à porta com os boleeiros emplumados, os machos cheios de guizos, e os</p><p>batedores com pampilhos: el -rei já estava dentro, escondido no fundo, pálido,</p><p>sorvendo febrilmente rapé, todo encolhido com o confessor; e defronte, com</p><p>uma das mãos apoiadas à alta bengala, forte, espadaúdo,</p><p>com o aspecto</p><p>carregado o Marquês de Pombal falando devagar e intimativamente,</p><p>e gesticulando com a luneta: mas os batedores picaram, os estalos dos</p><p>postilhões retiniram, e a berlinda partiu a galope, enquanto o povo gritava:</p><p>– Viva el -rei, nosso senhor! – e o sino da porta da capela do paço tocava a</p><p>finados! Era uma honra que el -rei concedia à Casa dos Arcos.</p><p>Quando D. Hilária acabou de contar, suspirando, estas desgraças passadas,</p><p>começou -se a jogar. Era singular que Macário não se lembrava o que tinha</p><p>jogado nessa noite radiosa. Só se recordava que ele tinha ficado ao lado da</p><p>menina Vilaça, que se chamava Luísa, que reparara muito na sua fina pele</p><p>rosada, tocada de luz, e na meiga e amorosa pequenez da sua mão, com</p><p>uma unha mais polida que o marfim de Diepa. E lembrava -se também de</p><p>um acidente excêntrico, que determinara nele, desde esse dia, uma grande</p><p>hostilidade ao clero da Sé. Macário estava sentado à mesa, e ao pé dele</p><p>Luísa: Luísa estava toda voltada para ele, com uma das mãos apoiando a</p><p>sua fina cabeça loura e amorosa, e a outra esquecida no regaço. Defronte</p><p>estava o beneficiado, com o seu barrete preto, os seus óculos na ponta</p><p>aguda do nariz, o tom azulado da forte barba rapada, e as suas duas grandes</p><p>orelhas, complicadas e cheias de cabelo, separadas do crânio como dois</p><p>postigos abertos. Ora como era necessário no fim do jogo pagar uns tentos</p><p>ao cavaleiro de Malta, que estava ao lado do beneficiado, Macário tirou</p><p>da algibeira uma peça, e quando o cavaleiro, todo curvado e com um olho</p><p>pisco, fazia a soma dos tentos nas costas de um ás, Macário conversava</p><p>com Luísa, e fazia girar sobre o pano verde a sua peça de ouro, com um</p><p>bilro ou um pião. Era uma peça nova que luzia, faiscava, rodando e fazia</p><p>à vista como uma bola de névoa dourada. Luísa sorria vendo -a girar, girar,</p><p>e parecia a Macário que todo o céu, a pureza, a bondade das flores e a</p><p>166 UNIUBE</p><p>castidade das estrelas estavam naquele claro sorriso distraído, espiritual,</p><p>arcangélico, com que ela, gira, gira, seguia o giro da peça de ouro nova.</p><p>Mas, de repente, a peça, correndo até à borda da mesa, caiu para o lado do</p><p>regaço de Luísa, e desapareceu, sem se ouvir no soalho de tábuas o seu</p><p>ruído metálico. O beneficiado abaixou -se logo cortesmente: Macário afastou</p><p>a cadeira, olhando para debaixo da mesa: a mãe Vilaça alumiou com um</p><p>castiçal, e Luísa ergueu -se e sacudiu com pequenina pancada o seu vestido</p><p>de cassa. A peça não apareceu.</p><p>— É célebre – disse o amigo de chapéu de palha. – Eu não ouvi tinir no chão.</p><p>— Nem eu, nem eu – disseram.</p><p>O beneficiado, curvado como um F, buscava tenazmente, e Hilária mais nova</p><p>rosnava o responso de Santo Antônio.</p><p>— Pois a casa não tem buracos – dizia a mãe Vilaça.</p><p>No entanto Macário exalava -se em exclamações desinteressadas:</p><p>— Pelo amor de Deus! Ora que tem! Amanhã aparecerá! Tenham a bondade!</p><p>Por quem são! Então Sr.ª D. Luísa! pelo amor de Deus! Não vale nada.</p><p>Mas mentalmente estabeleceu que houvera uma subtração – e atribui-a ao</p><p>beneficiado. A peça rolara, decerto, até junto dele, sem ruído, ele pusera -lhe</p><p>em cima o seu vasto sapato eclesiástico e tachado, depois, no movimento</p><p>brusco e curto que tivera, empolgara -a vilmente. E quando saíram, o</p><p>beneficiado, todo embrulhado no seu vasto capote de camelão, dizia a</p><p>Macário pela escada:</p><p>— Ora o sumiço da peça, heim? Que brincadeira!</p><p>— Acha, senhor beneficiado? – disse Macário parando, absorto de impudência.</p><p>— Ora essa! Se acho! Se lhe parece! Uma peça de sete mil réis! Só se o</p><p>Senhor as semeia! Safa! eu dava em doudo!</p><p>UNIUBE 167</p><p>Macário teve tédio daquela astúcia fria. Não lhe respondeu. O beneficiado</p><p>é que acrescentou:</p><p>— Amanhã mande lá pela manhã, homem. Que diabo... Deus me perdoe!</p><p>Que diabo! Uma peça não se perde assim. Que bolada, heim!</p><p>E Macário tinha vontade de lhe bater.</p><p>Foi neste ponto que Macário me disse, com a voz singularmente sentida:</p><p>— Enfim, meu amigo, para encurtarmos razões resolvi -me casar com ela.</p><p>— Mas a peça?</p><p>— Não pensei mais nisso! Pensava eu lá na peça! resolvi -me casar com ela!</p><p>Capítulo II</p><p>Macário contou -me o que o determinara mais precisamente àquela resolução</p><p>profunda e perpétua. Foi um beijo. Mas esse caso, casto e simples, eu colo -o</p><p>– mesmo porque a única testemunha foi uma imagem em gravura da Virgem,</p><p>que estava pendurada no seu caixilho de pau -preto, na saleta escura que</p><p>abria para a escada... Um beijo fugitivo, superficial, efêmero. Mas isso bastou</p><p>ao espírito reto e severo para o obrigar a tomá -la como esposa, a dar -lhe</p><p>uma fé imutável e a posse da sua vida. Tais foram os seus esponsais. Aquela</p><p>simpática sombra de janelas vizinhas tornara -se para ele um destino, o fim</p><p>moral da sua vida e toda a ideia dominante do seu trabalho. E esta história</p><p>toma, desde logo, um alto caráter de santidade e de tristeza.</p><p>Macário falou -me muito do caráter e da figura do tio Francisco; a sua possante</p><p>estatura, os seus óculos de ouro, a sua barba grisalha, em colar, por baixo do</p><p>queixo, um tique nervoso que tinha numa asa do nariz, a dureza da sua voz, a</p><p>sua austera e majestosa tranquilidade, os seus princípios antigos, autoritários</p><p>e tirânicos e a brevidade telegráfica das suas palavras.</p><p>168 UNIUBE</p><p>Quando Macário lhe disse, uma manhã, ao almoço, abruptamente, sem</p><p>transições emolientes: “Peço -lhe licença para casar”, o tio Francisco,</p><p>que deitava o açúcar no seu café, ficou calado, remexendo com a colher,</p><p>devagar, majestoso e terrível: e quando acabou de solver pelo pires, com</p><p>grande ruído, tirou do pescoço o guardanapo, dobrou -o, aguçou com a faca o</p><p>seu palito, meteu -o na boca e saiu: mas à porta da sala parou, e voltando-se</p><p>para Macário, que estava de pé, junto da mesa, disse secamente:</p><p>— Não.</p><p>— Perdão, tio Francisco!</p><p>— Não.</p><p>— Mas ouça, tio Francisco...</p><p>— Não.</p><p>Macário sentiu uma grande cólera.</p><p>— Nesse caso, faço -o sem licença.</p><p>— Despedido de casa.</p><p>— Sairei. Não haja dúvida.</p><p>— Hoje.</p><p>— Hoje.</p><p>E o tio Francisco ia a fechar a porta, mas voltando -se:</p><p>— Olá! – disse ele a Macário, que estava exasperado, apopléctico, raspando</p><p>nos vidros da janela.</p><p>Macário voltou -se com uma esperança.</p><p>— Dê -me daí a caixa do rapé – disse o tio Francisco.</p><p>Tinha -lhe esquecido a caixa! Portanto estava perturbado.</p><p>— Tio Francisco... – começou Macário.</p><p>UNIUBE 169</p><p>— Basta. Estamos a doze. Receberá o seu mês por inteiro. Vá.</p><p>As antigas educações produziam estas situações insensatas. Era brutal e</p><p>idiota. Macário afirmou -me que era assim.</p><p>Nessa tarde Macário achava -se no quarto de uma hospedaria da Praça</p><p>da Figueira com seis peças, o seu baú de roupa branca e a sua paixão.</p><p>No entanto estava tranquilo. Sentia o seu destino cheio de apuros.</p><p>Tinha relações e amizades no comércio. Era conhecido vantajosamente:</p><p>a nitidez do seu trabalho, a sua honra tradicional, o nome da família, o</p><p>seu tacto comercial, o seu belo cursivo inglês, abriam -lhe, de par em par,</p><p>respeitosamente, todas as portas dos escritórios. No outro dia foi procurar</p><p>alegremente o negociante Faleiro, antiga relação comercial da sua casa.</p><p>— De muito boa vontade, meu amigo – disse -me ele. – Quem mo dera cá.</p><p>Mas, se o recebo, fico de mal com o seu tio, meu velho amigo de vinte anos.</p><p>Ele declarou -mo categoricamente. Bem vê. Força maior. Eu sinto, mas...</p><p>E todos a quem Macário se dirigiu, confiado em relações sólidas, receavam</p><p>“ficar de mal com seu tio, meu velho amigo de vinte anos”.</p><p>E todos “sentiam, mas...”.</p><p>Macário dirigiu -se então a negociantes novos, estranhos à sua casa e à</p><p>sua família, e sobretudo aos estrangeiros: esperava encontrar gente livre da</p><p>amizade de vinte anos do tio. Mas, para esses, Macário era desconhecido,</p><p>e desconhecidos por igual a sua dignidade e o hábil trabalho. Se tomavam</p><p>informações, sabiam que ele fora despedido de casa do tio repentinamente,</p><p>por causa de uma rapariga loura, vestida de cassa. Esta circunstância tirava</p><p>as simpatias a Macário. O comércio evita</p><p>por Camões.</p><p>Você pode baixar o texto completo de Os Lusíadas a partir da Biblioteca</p><p>Digital do Instituto Camões, de Portugal. O endereço é este:</p><p>http://cvc.instituto-camoes.pt/conhecer/biblioteca-digital-camoes/explorar-</p><p>por-autor.html?aut=182.</p><p>AMPLIANDO O CONHECIMENTO</p><p>Os dez cantos estão englobados em cinco partes:</p><p>1. PROPOSIÇÃO: Canto I, estrofes de 1 a 3. Apresenta os grandes</p><p>temas do poema, todos eles ligados de alguma forma à viagem de Vasco</p><p>da Gama: os feitos de armas, a importância da história portuguesa, a</p><p>propagação da fé católica e o herói coletivo, que vai muito além do Gama</p><p>para incluir todo o povo português.</p><p>2. INVOCAÇÃO: Canto I, estrofes 4 e 5. Contém o pedido que o poeta</p><p>faz às Tágides, ninfas do rio Tejo, para inspirarem seu canto.</p><p>3. DEDICATÓRIA: Canto I, estrofes de 6 a 18. Aqui, o poeta se dirige a</p><p>D. Sebastião, dedicando-lhe o poema e mostrando-lhe toda a extensão</p><p>do império português.</p><p>4. NARRAÇÃO: do Canto I, estrofe 19, até o Canto X, estrofe 144. Nesta</p><p>parte está a maior parte do livro, que vai entremeando o relato da viagem</p><p>à Índia com a história de Portugal, de suas origens medievais até a época</p><p>das navegações.</p><p>5. EPÍLOGO: Canto X, estrofes de 145 a 156. Nas últimas estrofes do texto,</p><p>aparece a voz do próprio Camões, que lamenta a decadência de seu país,</p><p>que já não produz nem grandes homens nem grandes feitos como no</p><p>UNIUBE 9</p><p>passado; diante disso, o livro termina com um desafio a D. Sebastião e</p><p>às novas gerações, para que se lancem de novo às aventuras marítimas</p><p>e reconquistem o prestígio de que Portugal havia gozado por tantos</p><p>séculos.</p><p>Na variedade temática de Os Lusíadas, vários episódios se destacaram</p><p>na recepção que o poema foi tendo ao longo dos séculos. Alguns deles</p><p>podem ser listados aqui:</p><p>a. o episódio de Inês de Castro (Canto III, estrofes 118-137), que recria</p><p>o infeliz caso amoroso da dama espanhola com o príncipe D. Pedro,</p><p>que seria mais tarde o rei D. Pedro I, o Cru, que recebeu esse apelido</p><p>pela maneira como se vingou dos que mataram sua amada, a quem</p><p>fez rainha depois de morta;</p><p>b. o episódio do Velho do Restelo (Canto IV, est. 94-104), no qual,</p><p>durante o embarque da armada de Vasco da Gama, surge na praia</p><p>do Restelo um personagem fictício, de longas barbas brancas, que</p><p>profere um longo discurso contra as navegações e toda a ambição</p><p>humana de fazer grandes conquistas; no contexto do poema, a fala do</p><p>Velho do Restelo representa as preocupações dos que viam o país se</p><p>dedicar à expansão marítima sem cuidar da situação dos que ficavam</p><p>em Portugal;</p><p>c. o episódio dos Doze de Inglaterra (Canto VI, est. 42-68), que conta</p><p>como cavaleiros medievais portugueses foram até a Inglaterra para</p><p>defender um grupo de damas que haviam sido ofendidas por nobres</p><p>de lá; Camões utiliza esse enredo semilendário para realçar o caráter</p><p>heroico dos portugueses e a veracidade de suas façanhas;</p><p>d. o episódio da Ilha dos Amores (Canto IX, est. 52-84), localizado já</p><p>na viagem de volta a Portugal, vale-se da mitologia para premiar os</p><p>marinheiros: a deusa Vênus faz surgir do mar uma ilha maravilhosa, com</p><p>uma paisagem deslumbrante e acolhedora, na qual os portugueses são</p><p>recebidos por ninfas de beleza supraterrena, que atendem a todos os</p><p>desejos dos portugueses;</p><p>10 UNIUBE</p><p>e. o episódio da Máquina do Mundo (Canto X, est. 77-142), no qual Tétis,</p><p>a deusa que atendeu Vasco da Gama na Ilha dos Amores, leva-o até o</p><p>cume da mais alta montanha, onde lhe mostra no céu um imenso globo</p><p>translúcido, que é uma representação do Universo, destacando-se o</p><p>papel central de Portugal na geografia e na história do mundo.</p><p>Para dar exemplo da maestria camoniana na composição de sua epopeia,</p><p>apresentaremos a seguir alguns aspectos que fazem do episódio do</p><p>Gigante Adamastor um dos mais significativos e importantes do livro.</p><p>Como acontece em outras passagens do livro, o episódio do Adamastor</p><p>mescla a realidade histórica com a fantasia mitológica, usada sempre</p><p>que Camões pretende adicionar a seu enredo o aspecto sobrenatural,</p><p>que é essencial em toda epopeia. Nesse caso, trata-se da chegada dos</p><p>navios de Vasco da Gama ao Cabo das Tormentas, ponto mais ao sul da</p><p>África, que representava o ponto médio da viagem até a Índia. Sendo ali</p><p>um lugar de difícil navegação, em que muitas embarcações portuguesas</p><p>naufragariam ao longo de toda aquela época, o poeta faz com que o</p><p>acidente geográfico seja personificado por um ser de dimensões</p><p>gigantescas e associado à mitologia grega. Assim, o Adamastor acaba</p><p>simbolizando tanto os perigos inerentes à aventura portuguesa nos</p><p>mares quanto a penetração do quadro cultural da Antiguidade Clássica</p><p>no poema.</p><p>O episódio está localizado entre as estrofes 37 e 60 do Canto V. Ele</p><p>pode ser dividido em três partes: a primeira (est. 37-40) contém o relato</p><p>do momento em que os marinheiros avistam o Adamastor dentro de</p><p>uma ameaçadora nuvem de tempestade e a descrição de seu corpo</p><p>descomunal; a segunda (est. 41-49) mostra as profecias que o Adamastor</p><p>faz a respeito dos naufrágios que outras armadas lusitanas sofrerão ao</p><p>tentar passar por ele; a terceira (est. 50-60) traz o Adamastor contando</p><p>a história de sua paixão infeliz pela ninfa Tétis, causa de seu exílio no</p><p>ponto mais remoto da África.</p><p>UNIUBE 11</p><p>Você pode ver no Youtube uma animação em 3D com a declamação dos</p><p>principais trechos do episódio. É diversão e conhecimento garantidos! Basta</p><p>usar este link:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=K9Xm8s2dXgk.</p><p>Para ler as estrofes na íntegra e desfrutar de muitas outras informações</p><p>sobre elas, visite:</p><p>http://oportugues.freehostia.com/espacomais/websitlusiadas/</p><p>websiteineseadamastor/ogiganteeines/adamastortextoeparafrase.htm</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>Desde seu início, o episódio já vai mostrando por que é um excelente</p><p>símbolo da escrita épica de Camões e de seu pertencimento ao contexto</p><p>renascentista. Vejamos como isso se manifesta na primeira estrofe, que</p><p>traz o anúncio do aparecimento do Adamastor:</p><p>Porém já cinco Sóis eram passados</p><p>Que dali nos partíramos, cortando</p><p>Os mares nunca d'outrem navegados,</p><p>Prosperamente os ventos assoprando,</p><p>Quando uma noite, estando descuidados</p><p>Na cortadora proa vigiando,</p><p>Uma nuvem que os ares escurece,</p><p>Sobre nossas cabeças aparece. (CAMÕES, 2008, p. 122).</p><p>Os “Sóis” do primeiro verso são uma metáfora para os dias passados</p><p>desde que os portugueses tinham deixado a Baía de Santa Helena,</p><p>um porto natural que fica na costa ocidental da atual África do Sul.</p><p>Ali, eles haviam interrompido sua navegação para recarregar as naus</p><p>de água potável e outros víveres e feito; além disso, por nove dias,</p><p>12 UNIUBE</p><p>exploraram a região costeira e fizeram os primeiros contatos com habitantes</p><p>de povoações próximas. Essas atividades são registradas em estrofes</p><p>anteriores, as quais trazem informações sobre a data em que os portugueses</p><p>avistaram a Baía e quando fundearam perto dela. Acrescentando a elas</p><p>os cinco dias referidos, pode-se concluir que o episódio do Gigante</p><p>Adamastor acontece em Os Lusíadas no dia 22 de novembro de 1497, o</p><p>que corresponde à verdade histórica, pois esse foi mesmo o dia em Vasco</p><p>da Gama e seus comandados dobraram o Cabo das Tormentas, como ficou</p><p>registrado no diário de bordo da armada, do qual uma cópia existe até hoje</p><p>na Biblioteca Pública Municipal da cidade do Porto.</p><p>A metáfora elaborada por Camões, então, precisa ser entendida como</p><p>a forma poética encontrada por ele para registrar um fato histórico,</p><p>reforçando a veracidade das façanhas portuguesas. Essa preocupação</p><p>com a datação precisa dos fatos é própria do historiador; a base lexical</p><p>da metáfora, em que se usa um corpo celeste para marcar a passagem</p><p>do tempo, vem da linguagem da Astrologia, como era conhecida a</p><p>Astronomia na época de escritura de Os Lusíadas. Somando-se o</p><p>significado desses procedimentos do poeta, revela-se uma das facetas</p><p>tanto dele quanto de seu texto: o cientificismo, ou seja, a defesa da</p><p>incorporação da ciência pela arte. Como se</p><p>o guarda-livros sentimental. De sorte</p><p>que Macário começou a sentir -se num momento agudo. Procurando, pedindo,</p><p>rebuscando, o tempo passava, sorvendo, pinto a pinto, as suas seis peças.</p><p>170 UNIUBE</p><p>Macário mudou para uma estalagem barata, e continuou farejando. Mas,</p><p>como fora sempre de temperamento recolhido, não criara amigos. De modo</p><p>que se encontrava desamparado e solitário – e a vida aparecia -lhe como</p><p>um descampo.</p><p>As peças findaram. Macário entrou, pouco, na tradição antiga da miséria.</p><p>Ela tem solenidades fatais e estabelecidas: começou por empenhar. Depois</p><p>vendeu. Relógio, anéis, casaca azul, cadeia, paletó de alamares, tudo foi</p><p>levando pouco a pouco, embrulhado debaixo do xale, uma velha seca e</p><p>cheia de asma.</p><p>No entanto via Luísa de noite, na saleta escura que dava para o patamar:</p><p>uma lamparina ardia em cima da mesa; era feliz ali naquela penumbra,</p><p>todo sentado castamente: não a via de dia porque trazia já a roupa usada,</p><p>as botas cambadas e não queria mostrar à fresca Luísa, toda mimosa</p><p>nas suas cambraias assentadas, a sua miséria remendada: ali, àquela luz</p><p>tênue e esbatida, ele exaltava a sua paixão crescente e escondia o seu fato</p><p>decadente. Segundo me disse Macário – era muito singular o temperamento</p><p>de Luísa. Tinha o caráter louro como o cabelo – se é certo que o louro é uma</p><p>cor fraca e desbotada: falava pouco, sorria sempre com os seus brancos</p><p>dentinhos, dizia a tudo “pois sim”; era mais simples, quase indiferente, cheia</p><p>de transigências.</p><p>Amava decerto Macário, mas com todo o amor que podia dar a sua natureza</p><p>débil, aguada, nula. Era como uma estriga de linho, fiava -se como se queria:</p><p>e às vezes, naqueles encontros noturnos, tinha sono.</p><p>Um dia, porém, Macário encontrou -a excitada: estava com pressa, o xale</p><p>traçado à toa, olhando sempre para a porta interior.</p><p>— A mamãe percebeu – disse ela.</p><p>UNIUBE 171</p><p>E contou -lhe que a mãe desconfiava, ainda rabugenta e áspera, e que</p><p>decerto farejava aquele plano nupcial tramado como uma conjuração.</p><p>— Por que não me vens pedir à mamã?</p><p>— Mas, filha, se eu não posso! Não tenho arranjo nenhum. Espera. É mais um</p><p>mês talvez. Tenho agora aí um negócio em bom caminho. Morríamos de fome.</p><p>Luísa calou -se, torcendo a ponta do xale, com os olhos baixos.</p><p>— Mas ao menos – disse ela – enquanto eu te não fizer sinal da janela, não</p><p>subas mais, sim?</p><p>Macário rompeu a chorar, os soluços saíam violentos e desesperados.</p><p>— Chut! – dizia -lhe Luísa. – Não chores alto!...</p><p>Macário contou -me a noite que passou, ao acaso pelas ruas, ruminando</p><p>febrilmente a sua dor, e lutando, sob a nudenta friagem de Janeiro, na sua</p><p>quinzena curta. Não dormiu, e logo pela manhã, ao outro dia, entrou como</p><p>uma rajada no quarto do tio Francisco e disse -lhe abruptamente, secamente:</p><p>— É tudo o que tenho. – E mostrava -lhe três pintos. – Roupa, estou sem ela.</p><p>Vendi tudo. Daqui a pouco tenho fome.</p><p>O tio Francisco, que fazia a barba à janela, com o lenço da Índia amarrado</p><p>na cabeça, voltou -se e, pondo os óculos, fitou -o.</p><p>— A sua carteira lá está. Fique – e acrescentou com um gesto decisivo –</p><p>solteiro.</p><p>— Tio Francisco, ouça -me!...</p><p>172 UNIUBE</p><p>— Solteiro, disse eu – continuou o tio Francisco, dando o fio à navalha numa</p><p>tira de sola.</p><p>— Não posso.</p><p>— Então, rua!</p><p>Macário saiu, estonteado. Chegou a casa, deitou -se, chorou e adormeceu.</p><p>Quando saiu, à noitinha, não tinha resolução, nem ideia. Estava como uma</p><p>esponja. Deixava -se ir.</p><p>De repente uma voz disse de dentro de uma loja:</p><p>— Eh! psit! olá!</p><p>Era o amigo do chapéu de palha: abriu grandes braços pasmados.</p><p>— Que diacho! Desde manhã que te procuro.</p><p>E contou -lhe que tinha chegado da província, tinha sabido a sua crise e</p><p>trazia -lhe um desenlace.</p><p>— Queres?</p><p>— Tudo.</p><p>Uma casa comercial queria um homem hábil, resoluto, e duro, para ir numa</p><p>comissão difícil e de grande ganho a Cabo Verde.</p><p>— Pronto! – Disse Macário. – Pronto! Amanhã.</p><p>UNIUBE 173</p><p>E foi logo escrever a Luísa, pedindo -lhe uma despedida, um último encontro, aquele</p><p>em que os braços desolados e veementes tanto custam a desenlaçar-se. Foi.</p><p>Encontrou -a toda embrulhada no seu xale, tiritando de frio. Macário chorou. ela,</p><p>com a sua passiva e loura doçura, disse -lhe:</p><p>— Fazes bem. Talvez ganhes.</p><p>E ao outro dia Macário partiu.</p><p>Conheceu as viagens trabalhosas nos mares inimigos, o enjoo monótono</p><p>num beliche abafado, os duros sóis das colônias, a brutalidade tirânica</p><p>dos fazendeiros ricos, o peso dos fardos humilhantes, as dilacerações</p><p>da ausência, as viagens ao interior das terras negras e melancolia das</p><p>caravanas que o costeiam por violentas noites, durante dias e dias, o rios</p><p>tranquilos, donde exala a morte.</p><p>Voltou.</p><p>E logo nessa tarde a viu a ela, Luísa, clara, fresca, repousada, serena,</p><p>encostada ao peitoril da janela, com a sua ventarola chinesa. E, ao outro dia,</p><p>sofregamente, foi pedi -la à mãe. Macário tinha feito um ganho saliente – e</p><p>a mãe Vilaça abriu -lhe uns grandes braços amigos, cheia de exclamações.</p><p>O casamento decidiu -se para daí a um ano.</p><p>— Por quê? – disse eu a Macário.</p><p>E ele explicou -me que os lucros de Cabo Verde não podiam constituir um</p><p>capital definitivo: eram apenas um capital de habilitação: trazia de Cabo</p><p>Verde elementos de poderosos negócios: trabalharia, heroicamente, e ao</p><p>fim poderia, sossegadamente, criar uma família.</p><p>174 UNIUBE</p><p>E trabalhou: pôs naquele trabalho a força criadora da sua paixão. Erguia -se</p><p>de madrugada, comia à pressa, mal falava. À tardinha ia visitar Luísa. Depois</p><p>voltava sofregamente para a fadiga, como um avaro para o seu cofre. Estava</p><p>grosso, forte, duro, fero: servia -se com o mesmo ímpeto das ideias e dos</p><p>músculos; vivia numa tempestade de cifras. Às vezes Luísa de passagem,</p><p>entrava no seu armazém: aquele pousar de ave fugitiva dava -lhe alegria,</p><p>valor, fé, reconforto para todo o mês cheiamente trabalhado.</p><p>Por esse tempo o amigo do chapéu de palha veio pedir a Macário que</p><p>fosse seu fiador por uma grande quantia, que ele pedira para estabelecer</p><p>uma loja de ferragens em grande. Macário, estava no vigor do seu crédito,</p><p>cedeu com alegria. O amigo do chapéu de palha é que lhe dera o negócio</p><p>providencial de Cabo Verde. Faltavam então seis meses para o casamento.</p><p>Macário já sentia, por vezes, subirem -lhe ao rosto as febris vermelhidões da</p><p>esperança. Já começava a tratar dos banhos mas um dia o amigo do chapéu</p><p>de palha desapareceu com a mulher de um alferes. O seu estabelecimento</p><p>estava em começo. Era uma confusa aventura não se pôde nunca precisar</p><p>nitidamente aquele imbróglio doloroso. O que era positivo é que Macário</p><p>era fiador, Macário devia reembolsar. Quando o soube, empalideceu e disse</p><p>simplesmente:</p><p>— Liquido e pago.</p><p>E quando liquidou, ficou outra vez pobre. Mas nesse mesmo dia, como o</p><p>desastre tivera uma grande publicidade, e a sua honra estava santificada na</p><p>opinião, a casa Peres & C.ª, que o mandara a Cabo Verde, veio propor -lhe</p><p>uma outra viagem outros ganhos.</p><p>— Faz outra vez fortuna, homem. O senhor é o Diabo! – disse o Sr. Eleutério</p><p>Peres.</p><p>UNIUBE 175</p><p>— Suba – disse o tio.</p><p>Macário ia calado, cosido com o corrimão.</p><p>Quando chegou ao quarto, o tio Francisco pousou o candeeiro sobre uma larga</p><p>mesa de pau -santo, e de pé, com as mãos nos bolsos, esperou.</p><p>Macário estava calado, anediando a barba.</p><p>— Que quer? – gritou -lhe o tio.</p><p>— Vinha dizer -lhe adeus; volto para Cabo Verde.</p><p>— Boa viagem.</p><p>E o tio Francisco, voltando -se as costas, foi rufar na vidraça.</p><p>Macário ficou imóvel, deu dois passos no quarto, todo revoltado, e ia sair.</p><p>— Onde vai, seu estúpido? – gritou -lhe o tio.</p><p>— Vou -me.</p><p>— Sente -se ali! E o tio Francisco falava, com grandes passadas pelo quarto:</p><p>— O seu amigo é um canalha! Loja de ferragens! Não está má! O senhor é</p><p>um homem de bem. Estúpido, mas homem de bem. Sente -se ali! Sente -se!</p><p>O seu amigo é um canalha! O senhor é um homem de bem! Foi a Cabo</p><p>Verde! Bem sei! Pagou tudo. Está claro!</p><p>Também sei! Amanhã faz favor de ir</p><p>para a sua carteira, lá para baixo. Mandei pôr palhinha nova na cadeira. Faz</p><p>favor de pôr na fatura Macário & Sobrinho. E case. Case, e que lhe preste!</p><p>Levante dinheiro. O senhor precisa de roupa branca e de mobília. E meta</p><p>na minha conta. A sua cama lá está feita.</p><p>176 UNIUBE</p><p>Macário queria abraçá -lo, estonteado, com lágrimas nos olhos, radioso.</p><p>— Bem, bem. Adeus!</p><p>Macário ia sair.</p><p>— Oh! burro, pois quer -se ir desta sua casa?</p><p>E indo a um pequeno armário trouxe geleia, um covilhete de doce, uma</p><p>garrafa antiga de Porto e biscoitos.</p><p>— Coma.</p><p>E sentando -se ao pé dele, e tornando a chamar -lhe estúpido, tinha uma</p><p>lágrima a correr -lhe pelo engelhado da pele.</p><p>De sorte que o casamento foi decidido para dali a um mês. E Luísa começou</p><p>a tratar do seu enxoval.</p><p>Macário estava então na plenitude do amor e da alegria.</p><p>Via o fim da sua vida preenchido, completo, radioso. Estava quase sempre</p><p>em casa da noiva, e um dia andava -a acompanhando, em compras, pelas</p><p>lojas. Ele mesmo lhe quisera fazer um pequeno presente, nesse dia. A mãe</p><p>tinha ficado numa modista, num primeiro andar da Rua do Ouro, e eles</p><p>tinham descido, alegremente, rindo, a um ourives que havia em baixo, no</p><p>mesmo prédio, na loja.</p><p>O dia estava de Inverno, claro, fino, frio, com um grande céu azul -ferrete,</p><p>profundo, luminoso, consolado.</p><p>— Que bonito dia! – disse Macário.</p><p>UNIUBE 177</p><p>E com a noiva pelo braço, caminhou um pouco, ao comprido do passeio.</p><p>— Está! – disse ela. – Mas podem reparar; nós sós...</p><p>— Deixa, está tão bom...</p><p>— Não, não.</p><p>E Luísa arrastou -o brandamente para a loja do ourives. Estava apenas um</p><p>caixeiro, trigueiro, de cabelo hirsuto.</p><p>Macário disse -lhe:</p><p>— Queria ver anéis.</p><p>— Com pedras – disse Luísa – e o mais bonito.</p><p>— Sim, com pedras – disse Macário. – Ametista, granada. Enfim, o melhor.</p><p>E, no entanto, Luísa ia examinando as montras forradas de veludo azul,</p><p>onde reluziam as grossas pulseiras cravejadas, os grilhões, os colares de</p><p>camafeus, os anéis de armas, as finas alianças frágeis como o amor, e toda</p><p>a cintilação de pesada ourivesaria.</p><p>— Vê, Luísa – disse Macário.</p><p>O caixeiro tinha estendido, na outra extremidade do balcão, em cima do vidro</p><p>da montra, um reluzente espalhado de anéis de ouro, de pedras, lavrados,</p><p>esmaltados; e Luísa, tomando -os e deixando -os com a ponta dos dedos,</p><p>ia -os correndo e dizendo:</p><p>— É feio. É pesado. É largo.</p><p>178 UNIUBE</p><p>— Vê este – disse -lhe Macário.</p><p>Era um anel de pequenas pérolas.</p><p>— É bonito – disse ela. – É lindo!</p><p>— Deixa ver se serve – disse Macário.</p><p>E tomando -lhe a mão, meteu -lhe o anel devagarinho, docemente, no dedo;</p><p>e ela ria, com os seus brancos dentinhos finos, todos esmaltados.</p><p>— É muito largo – disse Macário. – Que pena!</p><p>— Aperta -se, querendo. Deixe a medida. Tem -no pronto amanhã.</p><p>— Boa ideia – disse Macário – sim senhor. Porque é muito bonito. Não é</p><p>verdade? As pérolas muito iguais, muito claras. Muito bonito! E esses brincos?</p><p>– acrescentou, indo ao fundo do balcão, a outra montra. – Estes brincos com</p><p>uma concha?</p><p>— Dez moedas – disse o caixeiro.</p><p>E, no entanto, Luísa continuava examinando os anéis, experimentando -os</p><p>em todos os dedos, revolvendo aquela delicada montra, cintilante e preciosa.</p><p>Mas, de repente, o caixeiro fez -se muito pálido, e afirmou -se em Luísa,</p><p>passando vagarosamente a mão pela cara.</p><p>— Bem – disse Macário, aproximando -se – então amanhã temos o anel</p><p>pronto. A que horas?</p><p>O caixeiro não respondeu e começou a olhar fixamente para Macário.</p><p>UNIUBE 179</p><p>— A que horas?</p><p>— Ao meio -dia.</p><p>— Bem, adeus – disse Macário. E iam sair. Luísa trazia um vestido de lã</p><p>azul, que arrastava um pouco, dando uma ondulação melodiosa ao seu</p><p>passo, e as suas mãos pequenas estavam escondidas num regalo branco.</p><p>— Perdão! – disse de repente o caixeiro.</p><p>Macário voltou -se.</p><p>— O senhor não pagou.</p><p>Macário olha para ele gravemente.</p><p>— Está claro que não. Amanhã venho buscar o anel, pago amanhã.</p><p>— Perdão! – disse o caixeiro.– Mas o outro...</p><p>— Qual outro? – disse Macário com uma voz surpreendida, adiantando -se</p><p>para o balcão.</p><p>— Essa senhora sabe – disse o caixeiro. – Essa senhora sabe.</p><p>Macário tirou a carteira lentamente.</p><p>— Perdão, se há uma conta antiga...</p><p>O caixeiro abriu o balcão, e com aspecto resoluto:</p><p>180 UNIUBE</p><p>— Nada, meu caro Senhor, é de agora. É um anel com dois brilhantes que</p><p>aquela senhora leva.</p><p>— Eu?! – disse Luísa, com a voz baixa, toda escarlate.</p><p>— Que é? Que está a dizer?</p><p>E Macário, pálido, com dentes cerrados, contraído, fitava o caixeiro</p><p>colericamente. O caixeiro disse então:</p><p>— Essa senhora tirou dali o anel. – Macário ficou imóvel, encarando -o. – Um</p><p>anel com dois brilhantes. Vi perfeitamente. – O caixeiro estava tão excitado,</p><p>que a sua voz gaguejava, prendia -se espessamente. – Essa senhora não</p><p>sei quem é. E tirou -o dali...</p><p>Macário, maquinalmente, agarrou -lhe o braço, e voltando -se para Luísa com</p><p>a palavra abafada, gotas de suor na testa, lívido:</p><p>— Luísa, dize... – Mas a voz cortou -se -lhe.</p><p>— Eu... – disse ela. Mas estava trêmula, assombrada, enfiada, descomposta.</p><p>E tinha deixado cair o regalo ao chão.</p><p>Macário veio para ela, agarrou -lhe o pulso fintando -a: e o seu aspecto era</p><p>tão resoluto e tão imperioso que ela meteu a mão no bolso, bruscamente,</p><p>apavorada, e mostrando o anel:</p><p>— Não me faça mal – disse, encolhendo -se toda.</p><p>Macário ficou com os braços caídos, o ar abstrato, os beiços brancos; mas</p><p>de repente, dando um puxão ao casaco, recuperando -se, disse ao caixeiro:</p><p>UNIUBE 181</p><p>— Mas houve, Jesus – disse ela.</p><p>— Vai -te! – E fez um gesto, com o punho cerrado.</p><p>— Pelo amor de Deus, não me batas aqui – disse ela, sufocada.</p><p>— Vai -te, podem reparar. Não chores. Olha que veem. Vai -te.</p><p>E, chegando -se para ela, disse baixo:</p><p>— És uma ladra!</p><p>E, voltando -lhe as costas, afastou -se, devagar, riscando o chão com a</p><p>bengala.</p><p>À distância, voltou -se: ainda viu, através dos vultos, o seu vestido azul.</p><p>Como partiu nessa tarde para a província, não soube mais daquela rapariga loura.</p><p>Resumo</p><p>Neste capítulo, você conheceu o contexto histórico determinante para a</p><p>passagem da estética romântica para a estética realista em Portugal, a</p><p>Questão Coimbrã. Esse evento foi o marco da introdução da estética que</p><p>já predominava em toda a Europa.</p><p>Ao publicar O crime do padre Amaro, em 1875, Eça de Queirós inaugura</p><p>a nova estética ao abordar, de forma objetiva e crítica, a corrupção da</p><p>Igreja e do clero.</p><p>182 UNIUBE</p><p>Este capítulo trouxe uma breve análise da obra A ilustre casa de Ramires,</p><p>pertencente à terceira fase do autor, na qual destaca -se a presença de: figuras de</p><p>linguagem como a antítese, a metáfora, a alegoria e a ironia;a aproximação entre</p><p>cidade versus campo, passado versus presente, glória versus decadência, grandeza</p><p>versus fragilidade;crítica aos relacionamentos por interesse – inclusive ao casamento.</p><p>Essas características foram demonstradas a partir da análise do texto</p><p>de Eça de Queirós, com base na estética realista e em comparação</p><p>com textos de autores representativos como Vidas secas, de</p><p>Graciliano Ramos, e Madame Bovary, de Gustave Flaubert.</p><p>Referências</p><p>ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social</p><p>da literatura portuguesa. São Paulo: Ática, 1982.</p><p>CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: linguagens.</p><p>3. ed. São Paulo: Atual, 1999. v. 2.</p><p>CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. v.1. São Paulo: Martins, 1964.</p><p>D´ONOFRIO, Salvatore. Literatura ocidental: autores e obras fundamentais. 2.</p><p>ed. São Paulo: Ática, 2007.</p><p>GARMES, Hélder; SIQUEIRA, José Carlos. Eça de Queiros – Cenas da vida portuguesa.</p><p>In: FERRAZ, Heitor (Org.). Entrelivros: Literatura portuguesa, São Paulo:</p><p>Duetto Editorial, 2008, v. 5, p. 43.</p><p>GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons e ritmos. 13. ed. São Paulo: Ática, 2002.</p><p>QUEIRÓS, Eça de. A ilustre casa de Ramires. São Paulo: Martin Claret,</p><p>2004.</p><p>______. Contos. São Paulo: Martin Claret, 2006a.</p><p>______. Singularidades de uma rapariga loura. In ______. Contos. 2006b. Disponível</p><p>em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua00088a.pdf>. Acesso em:</p><p>13. maio 2010.</p><p>UNIUBE 183</p><p>RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 70. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.</p><p>WIKIPEDIA. Eça de Queirós. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Eça-</p><p>de-Queiros>. Acesso em: 4 mar. 2010.</p><p>WIKIPEDIA. Torre medieval. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Torre_</p><p>de_Alcofra.JPG>. Acesso em: 4 mar. 2010.</p><p>184 UNIUBE</p><p>Carlos Francisco de Morais</p><p>Introdução</p><p>A prosa portuguesa</p><p>modernista e</p><p>contemporânea</p><p>Capítulo</p><p>4</p><p>Neste capítulo, você entrará em contato com os principais autores</p><p>da ficção portuguesa no século XX. As décadas que se seguiram</p><p>à eclosão do Modernismo da “Geração de Orpheu” revelaram</p><p>uma multiplidade de autores, tendências e movimentos, os quais</p><p>elevaram a prosa portuguesa a um nível antes alcançado apenas</p><p>na época do Realismo.</p><p>Serão objeto de atenção neste capítulo tanto os autores que</p><p>escreveram no contexto de um determinado movimento literário, caso</p><p>de José Régio, em relação à “Geração da presença”, ou de Fernando</p><p>Namora e Carlos de Oliveira em relação ao Neorrealismo, quanto</p><p>aqueles que desenvolveram seu estilo de modo completamente</p><p>independente, como Agustina Bessa-Luís e Vergílio Ferreira.</p><p>Após o estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:</p><p>• mostrar a importância da prosa de ficção portuguesa no</p><p>contexto da literatura modernista e contemporânea;</p><p>• abordar criticamente as relações estabelecidas pelos</p><p>romancistas portugueses do século XX com suas condições</p><p>de produção, principalmente o contexto sócio-político-</p><p>econômico de Portugal durante a ditadura do Estado Novo</p><p>(1926-1974) e depois da Revolução dos Cravos (1974);</p><p>Objetivos</p><p>186 UNIUBE</p><p>4.1 Panorama da prosa portuguesa no século XX</p><p>4.2 José Régio e o romance psicológico da “Geração da presença”</p><p>4.3 O Neorrealismo: literatura e ideologia</p><p>4.3.1 Alves Redol e a literatura como documento social</p><p>4.3.2 Os romances neorrealistas de Fernando Namora</p><p>4.3.3 Carlos de Oliveira e a análise psicossocial da realidade</p><p>4.4 Agustina Bessa-Luís: a emergência da autoria feminina</p><p>4.5 O romance filosófico de Vergílio Ferreira</p><p>4.6 Novas tendências ficcionais: anos 1960-1990</p><p>4.7 José Saramago, romancista de Portugal e do mundo</p><p>4.8 Conclusão</p><p>A novelística portuguesa contemporânea é, sobretudo, a</p><p>novelística que a partir dos anos 50 (...) abre caminhos</p><p>diversos a partir de uma atitude essencialmente crítica e</p><p>mesmo de autocrítica.</p><p>Álvaro Manuel Machado</p><p>Esquema</p><p>• explicar as linhas de força, em termos temáticos e formais,</p><p>presentes nas obras dos principais ficcionistas portugueses,</p><p>com vistas a fundamentar a análise de sua contribuição para</p><p>o panorama atual do romance em língua portuguesa.</p><p>Panorama da prosa portuguesa no século XX4.1</p><p>Um breve exame da história da literatura portuguesa anterior ao século</p><p>XX demonstrará uma notável desproporção entre os números de</p><p>poetas e ficcionistas de destaque. Em movimentos mais antigos, como</p><p>o Trovadorismo, Humanismo, Renascimento, Barroco e Arcadismo, o</p><p>lirismo é quase que a marca exclusiva, legando à tradição do país nomes</p><p>como os de D. Dinis, Francisco de Sá de Miranda, Luís de Camões, D.</p><p>Francisco Manuel de Melo e Manuel du Bocage. A partir do Romantismo</p><p>UNIUBE 187</p><p>e a ascensão do romance como gênero de maior relevância literária,</p><p>começam a surgir os autores que, realmente, lançarão as bases</p><p>para uma tradição narrativa constante em Portugal, como Alexandre</p><p>Herculano, Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós,</p><p>mas, em termos de números e de variedade de perspectivas, somente</p><p>com a chegada do Modernismo é que se verá o florescimento da prosa</p><p>em condições de equilíbrio com a poesia. No século XX, para cada</p><p>Fernando Pessoa, surgirá um José Saramago; para Sophia de Mello</p><p>Breyner Andresen, haverá Agustina Bessa Luís; para José Gomes</p><p>Ferreira, Fernando Namora; para Herberto Helder, Vergílio Ferreira.</p><p>Neste capítulo, portanto, daremos destaque aos autores que fizeram a</p><p>história recente da prosa portuguesa, começando com aqueles que, nas</p><p>décadas de 1930 e 1940, identificaram-se com as propostas coletivas</p><p>da “Geração da presença” e do Neorrealismo, seguindo, depois, para</p><p>a observação das propostas individuais que predominaram desde os</p><p>anos 1950, como a exploração do mundo feminino feito por Agustina</p><p>Bessa-Luís, o romance filosófico de Vergílio Ferreira, as experimentações</p><p>formais de Almeida Faria e a literatura de consciência social praticada</p><p>por José Saramago.</p><p>José Régio e o romance psicológico da “Geração da presença”4.2</p><p>Como está registrado no capítulo sobre a poesia portuguesa, José Régio</p><p>(1901-1969) foi um dos fundadores da revista presença, que, entre 1927</p><p>e 1940, aglutinou os escritores da segunda fase do Modernismo naquele</p><p>país. Como diretor da revista e formulador de suas principais propostas, a</p><p>produção literária de Régio ficou identificada como uma das mais relevantes</p><p>dentro do Presencismo, seja em sua lírica ou sua prosa de ficção.</p><p>A obra romanesca de José Régio é composta pelos dez títulos, entre</p><p>os quais se destaca o primeiro, Jogo da cabra-cega (1934), o ciclo A</p><p>velha casa, com cinco romances lançados entre 1945 e 1966, e Há mais</p><p>mundos, que recebeu o Grande Prémio de Novelística da Sociedade</p><p>Portuguesa de Escritores em 1963.</p><p>188 UNIUBE</p><p>Em linhas gerais, a ficção associada à “Geração da presença” confirma</p><p>os interesses pela exploração do mundo das psicologias individuais</p><p>que marcam a poesia do movimento. Dessa forma, são mais relevantes</p><p>em suas narrativas as questões ligadas à sensibilidade, à criatividade</p><p>e à originalidade, em contextos ficcionais em que a reflexão sobre a</p><p>condição humana e o lugar da arte nela suplanta a preocupação com os</p><p>problemas sociais. No primeiro número da revista, José Régio assinou</p><p>um editorial que revela sua adesão a esses princípios artísticos, como</p><p>registra Eugénio Lisboa em seu estudo sobre o escritor:</p><p>Logo no primeiro número da presença, e com invulgar</p><p>firmeza, Régio desencadeia o seu ataque à literatura</p><p>a que chama “livresca”, defendendo uma arte viva</p><p>contra uma arte de meras astúcias linguísticas que</p><p>dá, em grande parte, o “treino de escrever”: “Em Arte”,</p><p>proclama, “é vivo tudo o que é original. É original tudo</p><p>o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira</p><p>e mais íntima duma personalidade artística”. Defende</p><p>a originalidade genuína, que nada tem a ver com a</p><p>excentricidade rebuscada. (LISBOA, 1992, p. 40-41).</p><p>A busca pela originalidade genuína, que Lisboa destaca na proposta</p><p>inicial de Régio para seus companheiros e os leitores da presença, deixa</p><p>traços visíveis nos romances do autor. O melhor exemplo disso é Jogo</p><p>da cabra-cega, considerado uma das obras-primas de sua ficção.</p><p>Conhecer-se em suas peculiaridades mais íntimas é o ponto de partida</p><p>das experiências que Pedro Serra, o jovem narrador-protagonista do</p><p>romance, vive ao longo do enredo. Desse ponto de vista, o livro pode</p><p>ser entendido como um romance de formação, pois o leitor acompanha,</p><p>ao longo dele, a formação da personalidade de Pedro. Isso, entretanto,</p><p>passa pela questão de conhecer o outro, já que ninguém vive sozinho</p><p>e ele, particularmente, encontra-se convivendo num grupo de rapazes,</p><p>cada um com suas idiossincrasias, sendo que um deles, Jaime Franco,</p><p>destaca-se por sua independência de pensamento e capacidade de</p><p>elaborar as mais profundas e originais teorias a respeito da condição</p><p>humana e das relações entre as pessoas.</p><p>UNIUBE 189</p><p>Conforme Pedro Serra vai vivendo e registrando sua convivência com</p><p>os rapazes e sua fascinação pelas ideias de Jaime Franco, o leitor vai</p><p>percebendo que há entre eles um jogo de luz e sombra, em que as</p><p>atitudes de um espelham as do outro, sempre em sentido contrário.</p><p>Desse modo, a conclusão que se forma aos poucos</p><p>é a de que Jaime</p><p>Franco é uma espécie de alter ego de Pedro Serra, ou seja, o retrato que</p><p>a narrativa nos dá dele é resultado das projeções do rapaz mais novo,</p><p>que admira em Jaime justamente o que gostaria de ser. Internamente, na</p><p>composição do livro, essa identificação se exemplifica por um livro que</p><p>Pedro Serra escreve sobre Jaime, que é recebida pelo homenageado</p><p>apenas como uma das muitas histórias que se poderiam contar sobre</p><p>ele, o que deixa claro que o Jaime escrito é produto do olhar de Pedro</p><p>sobre ele, não de sua existência concreta.</p><p>No mundo psicológico, intuitivo e sensível das relações mostradas</p><p>e analisadas em Jogo da cabra cega, as existências concretas são</p><p>inapreensíveis, pois nele o olhar de uma pessoa jamais consegue</p><p>captar a verdade da vida de outra. Por colocar em relevo esse tipo de</p><p>questão de fundo filosófico, que se reflete em longos diálogos em que</p><p>as personagens debatem o sentido da vida, em âmbito geral, mas,</p><p>principalmente, no espaço de suas personalidades em gestação, o</p><p>romance assume um aspecto ensaístico que o marca como uma exceção</p><p>no panorama da ficção portuguesa dos anos 1930.</p><p>Em Jogo da cabra cega, a literatura se nutre tanto da Psicologia quanto</p><p>da Filosofia. Na fortuna crítica da obra, já se firmou a interpretação</p><p>segundo a qual o contexto do enredo é o mundo psicológico, não o</p><p>das ações práticas, sociais ou políticas. Essa interpretação se deve</p><p>à própria organização do livro, no qual a ação não avança com base</p><p>em estímulos externos, ou seja, não depende de peripécias vividas no</p><p>mundo exterior para que existam os conflitos que movem as personagens</p><p>em sua vida interior e na interação com os outros. O mesmo pode ser</p><p>dito a respeito do papel exercido pela memória na narrativa, pois ela é</p><p>190 UNIUBE</p><p>um recurso do qual o narrador se vale com muita frequência, como se</p><p>para ele muito mais importante que o mundo visível que se apresenta</p><p>diante de seus olhos fosse o invisível que se guarda no fundo da mente,</p><p>produto mais das lembranças do que das experiências. Dessa forma, o</p><p>tempo que importa na narrativa não é o cronológico, das ações vividas,</p><p>mas o psicológico, das memórias, impressões e intuições, capaz de tirar a</p><p>importância do presente para evidenciar o valor do passado mais distante.</p><p>Outro aspecto importante a se considerar em Jogo da cabra cega é o</p><p>das influências literárias que ele revela, num diálogo que se aproxima</p><p>da intertextualidade.</p><p>Um primeiro exemplo disso é o tom memorialístico do relato em primeira</p><p>pessoa de Pedro Serra, o que aproxima o livro do ciclo de romances</p><p>Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, autor francês que, no</p><p>início do século XX, revolucionou a escrita dos romances com seu estilo</p><p>em que a memória é a base de tudo; na direção da revista presença,</p><p>José Régio foi um fervoroso admirador e divulgador da obra de Proust</p><p>em Portugal.</p><p>Também deve ser lembrada a influência de Fiódor Dostoievski, autor de</p><p>clássicos como Os irmãos Karamazov, Crime e castigo e O idiota, que</p><p>era um dos escritores prediletos de Régio. Como tal, ele incorporou em</p><p>seu romance conflitos essenciais da obra do grande escritor russo, como</p><p>aqueles entre o Bem e o Mal, Deus e o Diabo, o indivíduo e a sociedade</p><p>e, também, o indivíduo e ele mesmo.</p><p>Além disso, a maneira como a amizade entre Pedro Serra e Jaime Franco</p><p>é relatada no romance, em termos de proximidade e idealização que</p><p>levam o primeiro a se identificar com o segundo de um modo que beira</p><p>o excesso, levou a crítica especializada a ver nisso uma semelhança</p><p>com o que acontece na novela A confissão de Lúcio, de Mário de</p><p>Sá-Carneiro, um dos autores da Geração de Orpheu que a presença</p><p>UNIUBE 191</p><p>mais prestigiou. Na narrativa lançada em 1914, Sá-Carneiro apresentava,</p><p>em tons enigmáticos, que incluíam o uso de episódios sobrenaturais, o</p><p>caso obsessivo de amizade do escritor Lúcio Vaz pelo poeta Ricardo</p><p>de Loureiro, que, mediada pela misteriosa Marta, esposa deste último,</p><p>terminará em tragédia. Se o leitor perceber que Marta é uma espécie de</p><p>sombra de Ricardo, não terá impressão muito diferente de Jaime Franco</p><p>em relação a Pedro Serra.</p><p>Jogo da cabra cega se tornou um dos romances mais admirados da</p><p>moderna literatura portuguesa por ter encontrado uma forma nova de</p><p>desenvolver um dos temas mais caros à cultura ocidental: a da busca</p><p>ou construção da verdade de cada pessoa. É a essa aventura filosófica</p><p>e psicológica que se lança Pedro Serra, levando consigo o leitor, como</p><p>evidencia Eugénio Lisboa em seus comentários sobre um trecho do livro:</p><p>Assim, ao longo da lenta e longa leitura da obra de</p><p>Régio, vamos tendo a impressão de uma interminável</p><p>viagem por cima de terreno minado (embora</p><p>com letreiros avisando que há minas) e de uma</p><p>progressiva mas sinuosa caminhada, cheia de desvios</p><p>e retrocessos, no sentido de uma difícil e demorada</p><p>aproximação da verdade. É esse o seu método. A</p><p>verdade não se alcança a não ser aos poucos. Mesmo</p><p>quando ocasionalmente nos é oferecido um “flash”</p><p>brutal dela, não a vemos, ou a vemos deformada, ou</p><p>não acreditamos nela. É preciso paciência. Já que</p><p>amadurecer para ela. Há que merecê-la. “Quanto</p><p>ao senhor...”, diz Jaime Franco ao seu interlocutor</p><p>privilegiado, “ir-me-á aceitando pouco a pouco. Não</p><p>tenha pressa, querido amigo! Simplificamos sempre</p><p>tudo o que julgamos compreender depressa. E tais</p><p>simplificações são verdadeiras calúnias”. E mais</p><p>adiante: “Coragem, mais um passo”. É, no fundo, o</p><p>respeito pela complexidade do real, que dita o ritmo da</p><p>“demarche”. (LISBOA, 1992, p. 69-70).</p><p>Jogo da cabra cega, como se vê pelas palavras de Eugénio Lisboa, é</p><p>uma leitura exigente, mas recompensa quem o percorre com uma visão</p><p>ficcional, claro, mas complexa e profunda da vida real das subjetividades.</p><p>Como tal, representa perfeitamente os ideais estéticos e culturais da</p><p>“Geração da presença”.</p><p>192 UNIUBE</p><p>O Neorrealismo: literatura e ideologia4.3</p><p>A concentração exclusiva nos aspectos intrinsecamente estéticos</p><p>da literatura que os autores ligados à revista presença defendiam e</p><p>praticavam não era uma unanimidade nos meios culturais portugueses</p><p>dos anos 1930. Nessa época, marcada pelos efeitos da Grande</p><p>Depressão, pela ascensão do fascismo na Alemanha, Itália e Espanha,</p><p>de intensificação da ditadura salazarista em Portugal mesmo, surgiu uma</p><p>geração que se propunha à prática de uma arte baseada no combate</p><p>aos problemas sociais a partir de uma perspectiva ideológica esquerdista.</p><p>Coletivamente, esses autores viriam a constituir o movimento conhecido</p><p>como Neorrealismo.</p><p>Uma das fontes de estímulo para a formulação do ideário neorrealista</p><p>foi a descoberta, por parte da nova geração, de literatos lusitanos, da</p><p>ficção norte-americana de inspiração social, como a praticada por John</p><p>Steinbeck, Upton Sinclair, Sinclair Lewis e John dos Passos. Estes</p><p>literatos mostravam em seus romances uma visão crua de seu país,</p><p>destacando os imensos problemas enfrentados pelos trabalhadores</p><p>pobres na crise causada pela quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929.</p><p>Outra foi a divulgação em Portugal da literatura social escrita por autores</p><p>brasileiros como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Raquel de</p><p>Queirós e Jorge Amado, que, na década de 1930, colocaram no centro</p><p>da produção brasileira os problemas causados pelas constantes secas</p><p>ocorridas na região Nordeste do Brasil, que tinham como consequências</p><p>a fome, o desemprego, o êxodo rural e a exacerbação dos aspectos mais</p><p>agudos da luta de classes.</p><p>Problemas desse tipo, mesmo que com causas diferentes, também</p><p>existiam em Portugal, de maneira que muitos jovens escritores não</p><p>aceitavam a ideia de uma arte “pura”, desligada do contexto em que a</p><p>maioria vivia e preocupada apenas com a depuração de seu estilo, como</p><p>acusavam os presencistas de fazer.</p><p>UNIUBE 193</p><p>Os principais autores ligados ao Neorrealismo foram Alves Redol, Soeiro</p><p>Pereira Gomes, Manuel Fonseca, Carlos Oliveira e Fernando Namora.</p><p>Suas propostas básicas</p><p>podem ser resumidas em três pontos que</p><p>Alves Redol apresentou como essências para o fazer artístico numa</p><p>conferência que proferiu em 1938:</p><p>1ª. A arte pela arte é uma ideia tão extravagante em</p><p>nossos tempos como a de riqueza pela riqueza, ou de</p><p>ciência pela ciência;</p><p>2ª. Todos os assuntos devem servir em proveito do</p><p>homem, se não querem ser uma vã e ociosa ocupação;</p><p>a riqueza existe para que toda a humanidade goze; a</p><p>ciência para guia do homem; a arte deve servir também</p><p>para algum proveito essencial e não deve ser apenas</p><p>um prazer estéril;</p><p>3ª. A arte deve contribuir para o desenvolvimento da</p><p>consciência e para melhorar a ordem social. (REDOL</p><p>apud TORRES, 1983, p. 32).</p><p>A literatura produzida por Alves Redol e seus companheiros de geração</p><p>reflete os três princípios acima em sua caracterização como uma arte</p><p>engajada, a serviço da libertação dos trabalhadores mais humildes,</p><p>fossem do campo ou da cidade, vistos todos eles como vítimas da</p><p>exploração do sistema capitalista. O grande risco enfrentado por esses</p><p>escritores foi criar uma literatura que não se confundisse com um panfleto</p><p>de propaganda política, o que, para seus opositores da “Geração da</p><p>presença”, nem sempre eles conseguiram fazer.</p><p>Ao longo de toda a década de trinta, travou-se a polêmica entre as</p><p>concepções presencista e neorrealista de arte e literatura. Do lado do</p><p>Neorrealismo, seus principais meios de divulgação foram o jornal O Diabo</p><p>(1934-1940) e a revista Sol Nascente (1937-1940), os quais viriam a ser</p><p>fechados pelo governo por causa de sua doutrina política esquerdista.</p><p>Também colaborou para essa divulgação o grupo de jovens opositores da</p><p>ditadura que, sob o título geral de Novo Cancioneiro, lançou, entre 1941</p><p>e 1944, uma série de volumes de poesia de índole contestatória. Alguns</p><p>desses poetas, posteriormente, passaram a produzir prosa de ficção,</p><p>despontando como nomes muito importantes dentro do Neorrealismo;</p><p>foi o caso de Fernando Namora e Carlos de Oliveira.</p><p>194 UNIUBE</p><p>Na cidade de Vila Franca de Xira, próxima a Lisboa, existe, desde 1990,</p><p>o Museu do Neorrealismo, dedicado a preservar a memória e a divulgar a</p><p>produção literária desse movimento. Você pode assistir a um curta-metragem</p><p>sobre a instituição no Youtube, usando este link:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=mSzOxHeVtV8</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>4.3.1 Alves Redol e a literatura como documento social</p><p>António Alves Redol (1911-1969) foi o pioneiro do romance neorrealista,</p><p>com sua obra Gaibéus, lançada em 1940. Sua origem social humilde,</p><p>que o privou de uma formação universitária, cedo o levando ao mundo do</p><p>trabalho, como contabilista, e à emigração, já que aos dezesseis anos foi</p><p>se empregar em Angola, de onde só voltaria a Portugal com trinta anos,</p><p>despertou nele uma aguda consciência dos problemas sociais.</p><p>Aliada a suas circunstâncias de vida, também a leitura dos romancistas</p><p>brasileiros do Nordeste, como Jorge Amado e Graciliano Ramos, bem como</p><p>dos ficcionistas estadunidenses que tomavam como tema os problemas</p><p>econômicos e políticos causados pela crise de 1929, contribuiu para seu</p><p>interesse na criação de uma literatura engajada. Essa compreensão da</p><p>arte como uma arma de combate em prol da conscientização das classes</p><p>desfavorecidas em seu país está presente nos três gêneros literários que o</p><p>autor cultivou: o romance, o conto e o teatro.</p><p>A obra romanesca de Alves Redol reúne quinze títulos, mas o mais</p><p>significativo, em termos de repercussão e influência sobre outros autores,</p><p>é mesmo o primeiro Gaibéus.</p><p>A palavra que dá título ao livro era o termo popular que, naquela época,</p><p>servia para designar os camponeses que trabalhavam na colheita do</p><p>arroz nas províncias do Ribatejo e Beira Baixa, sempre em condições</p><p>UNIUBE 195</p><p>precárias, por ser um trabalho sazonal, sem estabelecimento de qualquer</p><p>vínculo empregatício ou conquista de direitos. Como tal, os gaibéus se</p><p>assemelhavam aos trabalhadores brasileiros conhecidos como “boias-frias”.</p><p>O romance de Alves Redol acompanha o cotidiano de um grupo de</p><p>gaibéus durante uma época de colheita, revelando seus dramas na</p><p>luta pela sobrevivência. A própria epígrafe escolhida pelo escritor para</p><p>apresentar seu livro já revela a intenção de se fazer ficção a partir da</p><p>observação da realidade social: “Este romance não pretende ficar na</p><p>literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário</p><p>humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem.”</p><p>(REDOL, apud TORRES, 1983, p. 9).</p><p>Essa observação do autor revela o que para ele predomina na escritura do</p><p>romance: a preocupação com o conteúdo social, não com o estilo artístico.</p><p>Essa é uma das marcas mais fortes do Neorrealismo e também a crítica</p><p>mais forte que lhe fazem seus opositores, principalmente aqueles associados</p><p>à revista presença, que defendia o conceito da “arte pela arte”.</p><p>O primado da intenção conscientizadora no livro pode ser observado</p><p>na maneira pela qual ele aborda a construção das personagens, como</p><p>observa Altamir Botoso:</p><p>No romance Gaibéus, as personagens não são</p><p>individualizadas, não existem personagens protagonistas.</p><p>Elas são tratadas como elementos homogêneos</p><p>e equivalentes, ocorrendo a inexistência do herói</p><p>protagonista, não existe evolução das personagens</p><p>na obra, pois o individual desaparece no aglomerado</p><p>populacional.</p><p>O herói do romance Gaibéus é um herói coletivo,</p><p>formado por uma classe social desfavorecida e, com</p><p>exceção do ceifeiro rebelde, todas estão conformadas</p><p>com o seu destino.</p><p>Os eventos ocorridos com as personagens buscam</p><p>refletir e enfatizar situações plurais, pois o que</p><p>acontece com uma personagem repete-se também</p><p>com as demais. Dessa maneira, com o relato desses</p><p>acontecimentos plurais, o social, o coletivo ressalta-se</p><p>na obra. (BOTOSO, 2012, p. 215).</p><p>196 UNIUBE</p><p>Apesar dessa concentração no coletivo e não nos indivíduos, que</p><p>se deve, como aponta Botoso, a uma preponderância de aspectos</p><p>ideológicos de promoção da perspectiva coletiva, o que se explica pela</p><p>aderência ao marxismo da maior parte dos neorrealistas, a leitura de</p><p>Gaibéus revela traços de elaboração artística que o fizeram sobreviver</p><p>para além do contexto de sua época de surgimento. Isso se dá,</p><p>principalmente, pelo lirismo com o que o narrador transmite ao leitor as</p><p>vivências do grupo de trabalhadores que acompanha no enredo. Se, de</p><p>início, o leitor percebe que o relato do cotidiano dos gaibéus, que é a</p><p>essência do livro, assemelha-se a uma reportagem de jornal, aos poucos</p><p>vai percebendo que há algo de poético na linguagem com que se faz o</p><p>registro daquelas vidas tão difíceis. Como exemplo desse procedimento,</p><p>podem ser observadas as constantes comparações e metáforas usadas</p><p>pelo escritor para mostrar o imenso calor que os trabalhadores tinham</p><p>de suportar durante os meses de colheita do arroz:</p><p>Pareciam cercados no trabalho pelo braseiro de um</p><p>fogo que alastrasse na Lezíria Grande. Como se da</p><p>Ponta de Erva ao Vau a leiva se consumisse nas</p><p>labaredas de um incêndio que irrompesse ao mesmo</p><p>tempo por toda a parte. O ar escaldava; lambia-lhes</p><p>de febre os rostos corridos pelo suor e vincados por</p><p>esgares que o esforço da ceifa provocava. O Sol</p><p>desaparecera há muito, envolvido pela massa cinzenta</p><p>das nuvens cerradas. Os ceifeiros não o sentiam</p><p>penetrar-lhes a carne abalada pela fadiga. Lento,</p><p>mas persistente, parecia ter-se dissolvido no ar que</p><p>respiravam, pastoso e espesso. Trabalhavam à porta</p><p>de uma fornalha que lhes alimentava os pulmões com</p><p>metal em fusão.</p><p>Quase exaustos, os peitos arfavam num ritmo de</p><p>máquinas velhas saturadas de movimento. (REDOL,</p><p>1965, p. 155).</p><p>A última imagem da citação também indica o lirismo da prosa de Alves</p><p>Redol, pois se vale de uma metáfora para impressionar o leitor com a</p><p>redução dos trabalhadores a uma situação de máquinas de colheita,</p><p>numa denúncia da alienação que o trabalho em condições extremamente</p><p>adversas impõe ao ser humano.</p><p>UNIUBE 197</p><p>Um documentário sobre a vida</p><p>e a obra de Alves Redol está disponível no</p><p>You tube. Ele foi produzido por ocasião das comemorações do centenário</p><p>de nascimento do autor, transcorrido em 2011. O vídeo pode ser encontrado</p><p>neste endereço:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=h9Di3UzW_IY</p><p>AMPLIANDO O CONHECIMENTO</p><p>4.3.2 Os romances neorrealistas de Fernando Namora</p><p>Fernando Namora (1919-1989) dividiu-se, por décadas, entre a medicina</p><p>e a literatura. Formado pela Universidade de Coimbra, clinicou por muito</p><p>tempo em regiões rurais do país, até se fixar, na década de cinquenta,</p><p>em Lisboa. Ao mesmo tempo, foi construindo uma extensa obra literária,</p><p>a qual dialogaria com vários estilos, sendo o Neorrealismo, entretanto,</p><p>aquele com o qual sua escrita está mais identificada entre o público leitor.</p><p>A estreia literária de Fernando Namora se deu simultaneamente na poesia</p><p>e no romance, em 1938, com os livros Relevos e As sete partidas do</p><p>mundo, respectivamente. Ambos revelavam uma abordagem artística ainda</p><p>influenciada pela “Geração da presença”, principalmente pela importância</p><p>que neles se dá à análise psicológica do ser humano, mas também já traziam</p><p>marcas do compromisso com a crítica social, defendido pelo Neorrealismo,</p><p>que estava surgindo naquele momento histórico.</p><p>Vários dos mais conhecidos romances de Namora podem ser enquadrados</p><p>dentro da visão que o Neorrealismo tinha da arte e de seu papel social, mas</p><p>o autor sempre produziu sua obra a partir de uma posição de independência</p><p>intelectual; ao contrário de muitos dos seus companheiros de geração, não</p><p>foi militante do Partido Comunista Português, nem reduzia sua análise da</p><p>realidade portuguesa exclusivamente a causas econômicas.</p><p>198 UNIUBE</p><p>Em suas narrativas, a crise portuguesa também é vista a partir das questões</p><p>individuais, psicológicas e culturais. Isso tem influência inclusive no quadro</p><p>de personagens criados em seus livros, que não são apenas camponeses</p><p>ou trabalhadores urbanos das camadas mais humildes da sociedade.</p><p>Em O homem disfarçado (1957), por exemplo, o protagonista João</p><p>Eduardo é um jovem médico do interior que ascende socialmente em</p><p>Lisboa por meio de uma série de ações escusas, o que o levará a uma</p><p>derrocada moral inevitável, ao perceber que o dinheiro não lhe garante a</p><p>realização pessoal que buscava inconscientemente. Esse livro é exemplar</p><p>na maneira como ilustra a abordagem feita por Namora da alienação</p><p>da burguesia ascendente no Portugal comandado ditatorialmente por</p><p>António Salazar, o que será causa de muitos dos males sociais retratados</p><p>em seus romances.</p><p>A obra em prosa de Fernando Namora consiste em doze romances e</p><p>diversos volumes de crônicas romanceadas e relatos de viagens. Esse</p><p>conjunto pode ser dividido em quatro ciclos:</p><p>a) o estudantil, cujos temas vêm da época em que o autor fez o curso</p><p>secundário em Lisboa e, em seguida, os estudos de Medicina em</p><p>Coimbra. Pertence a essa época Fogo na noite escura (1938).</p><p>b) o rural, em que os enredos das narrativas refletem as experiências e</p><p>observações que o autor fez da vida no interior do país na época em que</p><p>foi médico de província em diversas regiões portuguesas. São exemplos</p><p>desse ciclo Casa da malta, O trigo e o joio e Retalhos da vida de um</p><p>médico, escritos entre 1943 e 1950.</p><p>c) o urbano, em que a temática se localiza em Lisboa, cidade para a qual</p><p>se mudou. O homem disfarçado (1957) e Domingo à tarde (1961)</p><p>são dessa época.</p><p>d) o cosmopolita, representado pelos Cadernos de um escritor, que</p><p>reúnem os relatos das viagens internacionais feitas por Namora no final</p><p>dos anos 1960 e 1970.</p><p>UNIUBE 199</p><p>Casa da malta (1945) é um dos mais emblemáticos romances neorrealistas</p><p>de Fernando Namora. Segundo testemunho do autor, o livro foi escrito</p><p>em apenas oito dias, tendo como estímulo inicial a observação de um</p><p>casebre próximo ao consultório que ele mantinha em Tinalhas, vila</p><p>da região da Beira Baixa, no leste de Portugal, na época em que era</p><p>recém-formado, ou seja, no início dos anos 1940. Esse casebre era</p><p>habitado pelas pessoas marginalizadas do lugar, aquelas que não tinham</p><p>outro recurso para se abrigar.</p><p>No romance, a casa a que se refere o título é uma espécie de galpão</p><p>usado por pessoas sem recursos econômicos na vila de Penedo,</p><p>no interior de Portugal. Ali se recolhem os que não têm para onde ir,</p><p>nem perspectivas de melhora de vida, vítimas que são de todo tipo de</p><p>opressão social. É preciso lembrar que “malta”, num uso comum na</p><p>época de redação do livro, tinha o sentido geral de “grupo de pessoas”</p><p>ou “turma”, mas também era usado com o sentido especificamente</p><p>pejorativo de “ralé” ou “escória”, sendo que assim deve ser interpretado</p><p>no contexto da narrativa, dada a condição social das personagens.</p><p>No enredo do livro, são destacadas seis pessoas que convivem na casa</p><p>da malta: Abílio, Ricocas, Graça, Troupas, Manel e Carminda, todos eles</p><p>vivendo um momento de dificuldades pessoais ou familiares. A cada um</p><p>é dedicado um dos seis capítulos que compõem a obra, que consistem,</p><p>principalmente, no esclarecimento do passado de cada um para o leitor,</p><p>que fica sabendo por que foram parar na casa da malta. Isso permite</p><p>ao narrador traçar um panorama dos problemas enfrentados pelas</p><p>pessoas pobres do país, como o desemprego, a violência, a ruptura de</p><p>relações familiares e a fome. Esse recurso também é importante para a</p><p>caracterização interna de cada personagem, mostrando como a narrativa</p><p>de Namora não se esgota no plano da observação da realidade social,</p><p>pois sua análise penetra até o nível da constituição de cada uma das</p><p>pessoas que convivem na casa. Mesmo sendo narrativa centrada em</p><p>uma habitação coletiva, vê-se então que a Casa da Malta abre espaço</p><p>para as individualidades.</p><p>200 UNIUBE</p><p>Além do quadro de personagens, formado dos desvalidos da sociedade</p><p>daquele tempo, outro aspecto revelador da perspectiva neorrealista em</p><p>Casa da Malta é a abordagem extremamente realista do problema da</p><p>fome, como ressalta Ana Carla Pacheco Lourenço Ferri em sua tese de</p><p>doutorado sobre Fernando Namora:</p><p>A questão da fome perpassa muitas cenas de Casa</p><p>da Malta e já nas primeiras páginas, o leitor se depara</p><p>com a dura realidade não só de camponeses, ciganos,</p><p>“ratinhos”, vadios; também conhece a miserável vida</p><p>de pequenos artistas saltimbancos, como a troupe que</p><p>formava o circo com que Abílio fugira da vila tempos</p><p>atrás. A transcrição a seguir poderia fazer parte de um</p><p>romance naturalista pelo grotesco da situação, que</p><p>aposta nas tintas fortes com a clara intenção política de</p><p>chocar o leitor:</p><p>O circo acabara numa aldeia escura da Beira. Quando</p><p>chegaram a esses sítios amaldiçoados em penedias e</p><p>estevas já o grupo tinha minguado: as raparigas gordas</p><p>fugidas na companhia de meliantes, a velha e duas</p><p>crianças mortas de doença e miséria.</p><p>A velha arrastara ainda por um ano uma perna ulcerada</p><p>e imunda. Ia aos médicos das terras onde paravam e</p><p>eles diziam:</p><p>– Só cortando esse trambolho.</p><p>E ela abanava furiosamente a cabeça.</p><p>Mas era ainda a velha que cozinhava umas sopas</p><p>para o grupo, apesar do nojo dessa mistura de chagas,</p><p>trapos purulentos e de comida. Depois que ela morrera,</p><p>o chefe tinha vendido o carro e as mulas; tinha-os</p><p>bebido, e ninguém mais pensara em comer um caldo.</p><p>Pedaço de pão, chouriço, fruta roubada nos pomares</p><p>das estradas. (CM, p.75) (FERRI, 2016, p 73).</p><p>O circo mencionado na citação do livro escolhida pela estudiosa é aquele</p><p>que Abílio abandonou ao voltar para Penedo, sua terra natal. Três anos</p><p>antes, ele havia se juntado à trupe circense na esperança de ter uma</p><p>vida melhor e cheia de aventuras, mas logo chegou a decepção, diante</p><p>do cotidiano de penúrias que passou a enfrentar, devido à crescente</p><p>decadência do circo. Ao voltar para Penedo, entretanto, suas esperanças</p><p>de recomeço se frustram rapidamente e é por isso que ele vai entrar em</p><p>contato com os habitantes da casa da malta.</p><p>UNIUBE 201</p><p>A volta de Abílio a Penedo desencadeia as narrativas que estruturam o</p><p>livro, mas há outro fato que também assume nele um caráter</p><p>simbólico: o</p><p>nascimento do filho de uma cigana que, de passagem por ali, se abriga com</p><p>toda sua família na casa da malta para ter a criança. A dificuldade do parto</p><p>faz com que todos se envolvam no drama da mulher e a queiram ajudar,</p><p>o que culmina com o fato de ser Graça, uma jovem prostituta que mora lá</p><p>depois de uma existência muito sofrida, quem traz o bebê ao mundo.</p><p>Para comemorar o nascimento, todos se juntam para preparar uma</p><p>refeição, ato que se torna uma espécie de metáfora das possibilidades</p><p>que a superação do egoísmo traz para toda a sociedade. A partilha da</p><p>comida se torna praticamente uma festa, que culmina com o discurso do</p><p>velho Troupas, um mendigo que também vive na casa; observe-se como</p><p>ele coloca em destaque a felicidade que todos estão experimentando</p><p>naquele momento:</p><p>– Eu queria morrer hoje, aqui mesmo – disse o velho.</p><p>Todos se voltaram para aquela face ressequida, onde</p><p>o brilho súbito dos olhos punha qualquer coisa de</p><p>anormal, de transfigurado. – Queria morrer mesmo.</p><p>Hoje morria de barriga cheia e sem odiar ninguém.</p><p>Tenho medo de morrer com o fel no coração; sinto que</p><p>ele me entrou nas veias e que certas vezes me chega</p><p>aqui no peito. [...] Às vezes, tenho vontade de ir por aí</p><p>matar gente. Mas hoje, não. Vocês são todos amigos</p><p>e eu vi esta rapariga vir do carro e juntar-se a este</p><p>pessoal desgraçado. Foi uma coisa bonita. E comi e vou</p><p>comer mais ainda com vocês todos. Estou de coração</p><p>puro. (NAMORA, 1978, p. 174-175).</p><p>A fala do velho evidencia os valores positivos vivenciados coletivamente</p><p>nessa ocasião, como a sensação de plenitude, a amizade, a beleza,</p><p>a pureza, contrapostos ao ódio e à fome de outros momentos. Dessa</p><p>forma, originando-se na voz de uma das personagens, não na do</p><p>narrador, tem a utilidade de comunicar ao leitor, de maneira sutil, todo o</p><p>projeto do Neorrealismo que lhe está subjacente: a defesa do papel da</p><p>arte no despertar da consciência da sociedade para a importância da</p><p>solidariedade.</p><p>202 UNIUBE</p><p>Um dos mais importantes romances do ciclo urbano de Fernando Namora,</p><p>Domingo à tarde, publicado em 1961, foi adaptado para o cinema pelo</p><p>diretor António de Macedo, em 1966. A película fez parte do movimento</p><p>chamado de Novo Cinema, que procurou renovar a linguagem cinematográfica</p><p>portuguesa, sob a influência do cinema experimental francês dos anos 50 e</p><p>60. Ele pode ser visto na íntegra neste endereço:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=AY_1fqEV8iU</p><p>AMPLIANDO O CONHECIMENTO</p><p>4.3.3 Carlos de Oliveira e a análise psicossocial da realidade</p><p>O terceiro grande nome dentro da prosa neorrealista é o de Carlos de</p><p>Oliveira (1921-1981). Filho de imigrantes portugueses, o autor nasceu</p><p>em Belém do Pará, no Brasil, mas ainda na primeira infância voltou com</p><p>os pais para a terra natal deles. Licenciou-se em Ciências Histórico-</p><p>Filosóficas pela Universidade de Coimbra.</p><p>Em 1942, quando estava com apenas vinte e um anos de idade,</p><p>publicou seu primeiro livro, uma coletânea de poemas que contava com</p><p>ilustrações de Fernando Namora, seu amigo desde a adolescência. Já</p><p>no ano seguinte, foi lançado Casa na duna, seu primeiro romance, que</p><p>apresenta características que permitem seu enquadramento no contexto</p><p>do Neorrealismo.</p><p>O enredo de Casa na duna se passa na zona da Gândara, pertencente</p><p>à inserida na Beira Litoral, da Região Centro de Portugal. O quadro de</p><p>personagens é composto pelos decadentes fidalgos do lugar e pelos</p><p>camponeses que trabalham por jornadas nas propriedades dos arredores.</p><p>A grande questão enfrentada por todos é a necessidade de mecanização</p><p>das lavouras, que causa tanto despesas enormes para os patrões quanto</p><p>o desemprego para os trabalhadores. Dessa forma, o pano de fundo</p><p>UNIUBE 203</p><p>da narrativa é a crise econômica portuguesa no contexto da Grande</p><p>Depressão e da II Guerra Mundial. Por meio da denúncia da exploração</p><p>econômica e da concentração de renda causada pela predominância dos</p><p>interesses da minoria proprietária de terras, o livro indica a absorção pela</p><p>escritura de Carlos de Oliveira dos preceitos básicos do Neorrealismo,</p><p>entendido como a criação de obras ficcionais baseadas na observação</p><p>crítica da realidade social.</p><p>Na sequência de sua carreira literária, o autor publicou mais quatro</p><p>romances: Alcateia (1945), Pequenos burgueses (1948), Uma abelha</p><p>na chuva (1953) e Finisterra (1978). Deles, o que mais contribui para</p><p>solidificar o reconhecimento de Carlos de Oliveira como um dos mais</p><p>importantes ficcionistas portugueses modernos foi o terceiro.</p><p>Uma abelha na chuva concentra suas ações no povoado do Montouro,</p><p>na região da Gândara, que aparece em outras narrativas do autor. Sua</p><p>ambientação social, destacando as diferenças de classe num mundo rural</p><p>dominado pelo poder absoluto do dinheiro, pelos grandes proprietários</p><p>e pela tradição de obediência a que eles submetem seus empregados e</p><p>dependentes, permite ao leitor perceber a filiação neorrealista do livro.</p><p>Entretanto à análise da realidade social a obra alia uma profunda análise</p><p>psicológica das motivações dos personagens, aprofundando, assim, a</p><p>construção literária de suas individualidades, de forma a evitar a criação</p><p>de estereótipos, seja dos ricos, seja dos pobres. Nessa narrativa, cada</p><p>personagem é estruturada de maneira a ser vista pelo leitor como uma</p><p>pessoa individual, não a representante de uma classe social.</p><p>O romance traz no núcleo de seu enredo a contraposição entre dois casais:</p><p>de um lado, Maria dos Prazeres e Álvaro Silvestre, do outro, Clara e Jacinto.</p><p>Maria dos Prazeres descende de tradicional família fidalga, mas</p><p>empobrecida. Por isso foi levada pelos pais a casar-se com Álvaro,</p><p>de origem burguesa, mas que desfruta de condição socioeconômica</p><p>204 UNIUBE</p><p>privilegiada, pela posse de largas extensões de terra pelos constantes</p><p>roubos que comete, contra a herança de seu irmão, os salários e direitos</p><p>de seus próprios empregados e até as obras de caridade da igreja local.</p><p>Sendo assim, o casamento é um arranjo de base monetária, feito por</p><p>pura conveniência de parte a parte: Maria dos Prazeres precisava de</p><p>um marido rico, Álvaro queria se enobrecer. A narrativa segue de perto</p><p>o cotidiano do casal, mostrando como seu relacionamento é despedido</p><p>de intimidade e de sinceridade, o que os faz viver em constante tensão</p><p>e infelicidade. Simbolicamente, todo o vazio do casamento dos dois é</p><p>representado pelo fato de não terem tido filhos, mesmo após muitos anos</p><p>de matrimônio</p><p>Nos trechos dedicados a analisar a interioridade do casal, a escritura de</p><p>Carlos de Oliveira demonstra de maneira magistral sua capacidade de</p><p>examinar, como se sob uma lupa, os sonhos, os desejos e as frustrações</p><p>de duas pessoas presas num laço que só faz sentido no que se refere</p><p>ao dinheiro e aos bens materiais.</p><p>Clara é uma jovem simples, filha de um santeiro cego do povoado, que</p><p>sonha em casá-la com um senhor de terras para escapar à pobreza. Na</p><p>pureza e honestidade de sentimentos que caracterizam sua presença no</p><p>livro, Clara, entretanto, se apaixona por Jacinto, rapaz humilde também,</p><p>que trabalha como cocheiro do casal Silvestre.</p><p>O relacionamento dos jovens pobres é sincero, desinteressado e feliz,</p><p>apesar da oposição do pai da moça. Dessa forma, revela-se como</p><p>a imagem invertida daquele dos patrões, o que permite ao narrador</p><p>explorar os contrastes entre as relações originadas nos corações e as</p><p>que se definem pelos interesses materiais.</p><p>A positividade da união de Clara e Jacinto se materializa na fecundidade</p><p>negada a Maria dos Prazeres e Álvaro. Ao saberem da gravidez da moça,</p><p>eles fazem planos de fugir do povoado para construírem uma vida juntos</p><p>UNIUBE 205</p><p>em outra parte. Contudo é exatamente daí que virá o problema que</p><p>levará o romance ao seu desfecho dramático, aparentemente inevitável,</p><p>se forem levadas em consideração as diferenças entre os casais, como</p><p>aponta Carlos Reis:</p><p>Jacinto e Clara [são] susceptíveis de uma indesmedível</p><p>aproximação com a abelha, com seu labor e com o que</p><p>dele deflui. Caracterizado</p><p>pela fecundidade de uma</p><p>relação produtiva a vários níveis (a gravidez, os projetos</p><p>futuros, o vigor com que são esboçados), bem se pode</p><p>dizer que é deles que será destilado um “mel” que não</p><p>está ao alcance dos Silvestres; referimo-nos ao estado</p><p>social que, superando no fluir do tempo histórico as</p><p>contradições do presente, atinja a doçura (o mel) das</p><p>relações despidas de conflito (de fel), de tensões e de</p><p>contrastes. (REIS, 1983, P. 626).</p><p>Além de mostrar o pano de fundo humano e social que estará por trás do</p><p>desenlace da narrativa, as palavras de Carlos Reis também auxiliam no</p><p>entendimento do título da obra. Como é indicado na citação, o estudioso</p><p>interpreta a sociedade portuguesa descrita por Carlos de Oliveira como</p><p>uma colmeia, na qual as personagens são metáfora de um papel social:</p><p>Jacinto e Clara são as abelhas produtoras de mel, Álvaro Silvestre, o</p><p>zangão dominado pela abelha-rainha, Maria dos Prazeres. Toda a</p><p>tragédia que encerrará o livro vem da inversão de uma das funções</p><p>fundamentais dentro de uma colmeia, ou seja, o deslocamento do papel</p><p>de mãe da abelha-rainha para uma das abelhas humildes.</p><p>Ocorre que, numa madrugada em que Jacinto e Clara estão conversando,</p><p>no curral da propriedade de Silvestre, sobre o filho que terão e os planos</p><p>de ir para longe, são ouvidos, por acaso, pelo patrão. Além de se inteirar</p><p>da condição da moça, Álvaro Silvestre também escuta Jacinto falar</p><p>dos olhares que Maria dos Prazeres lançava em sua direção. O rapaz</p><p>também faz comentários negativos sobre o patrão, considerando-o</p><p>tão fraco que nem consegue engravidar a própria esposa, que, aliás,</p><p>o domina em tudo. A partir daí, o patrão procura meios de se vingar,</p><p>envolvendo o pai da moça numa trama que culmina com a morte de</p><p>Jacinto e o suicídio de Clara.</p><p>206 UNIUBE</p><p>Desde seu lançamento, Uma abelha na chuva foi recebido com</p><p>entusiasmo pelo público e pela crítica, tanto que edições sucessivas dele</p><p>têm sido lançadas desde os anos 1950. Já de há muito, o livro se tornou</p><p>referência quando se trata da ficção portuguesa moderna, motivo pelo</p><p>qual faz parte do currículo escolar nos níveis médio e superior. A obra já</p><p>foi adaptada para o teatro e o cinema, o que também contribuiu para o</p><p>reconhecimento de Carlos de Oliveira como um de seus mais importantes</p><p>escritores de seu país.</p><p>Você pode assistir à adaptação cinematográfica de Uma abelha na chuva,</p><p>dirigida em 1971 por Fernando Lopes, com os atores Laura Soveral, João</p><p>Guedes, Zita Duarte e Adriano Reis nos papéis principais. Ele está disponível</p><p>nesta página do Youtube:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=XYXUi-imbbM</p><p>AMPLIANDO O CONHECIMENTO</p><p>Agustina Bessa-Luís: a emergência da autoria feminina4.4</p><p>Como já havia acontecido ao longo das eras anteriores, nas primeiras</p><p>décadas do século XX era muito rara a prosa de ficção de autoria feminina.</p><p>Assim como foi Florbela Espanca na poesia, Irene Lisboa (1892-1958)</p><p>constituiu uma das raras exceções nesse panorama, pois, ao lado de sua</p><p>obra lírica, publicou também alguns volumes de novelas, contos e crônicas.</p><p>Um dos temas mais presentes em suas narrativas era a situação da</p><p>mulher portuguesa, que precisava lutar por sua liberdade num fechado</p><p>mundo pequeno-burguês, dominado por uma visão atrasada a respeito</p><p>do lugar feminino no mundo. É o que acontece na novela Começa uma</p><p>vida (1940), em que é narrada a vida de uma jovem até a altura de seus</p><p>dezoito anos, destacando-se as experiências que a levaram a ser uma</p><p>pessoa solitária e agressiva, sendo que, no fundo, era alguém aberta</p><p>para o que o mundo pode oferecer nessa fase da vida.</p><p>UNIUBE 207</p><p>Para se entender as barreiras de dificuldades e preconceitos que uma</p><p>escritora precisava enfrentar no Portugal daquela época, é sintomático</p><p>o fato de que Irene Lisboa precisou publicar alguns de seus livros sob</p><p>pseudônimos masculinos, como aconteceu com Solidão – Notas do</p><p>punho de uma mulher (1939), atribuído a João Falco. Mesmo fora da</p><p>literatura, a escritora, que também era professora e pedagoga, usava</p><p>nomes masculinos em seus livros, como Manuel Soares, que assinou</p><p>Froebel e Montessori/ O trabalho manual na escola (duas conferências</p><p>pedagógicas), de 1937, e O primeiro ensino, I e II, de 1938.</p><p>Passados setenta anos da publicação de Começa uma vida, o panorama</p><p>da prosa de autoria feminina em Portugal é muito diferente do que ocorria</p><p>na época de Irene Lisboa. Um rápido exame dos mais conceituados</p><p>romancistas das últimas décadas revela nomes femininos de peso</p><p>assinando livros elogiados pela crítica especializada, como acontece com</p><p>Maria Judite de Carvalho (Sete despedidas, Grande Prémio de Conto</p><p>Camilo Castelo Branco de 1995), Lídia Jorge (O vale da paixão, Prémio</p><p>Máxima de 1998), Teolinda Gersão (A Casa da Cabeça de Cavalo,</p><p>Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de</p><p>Escritores de 1995) e Maria Teresa Horta (As luzes de Leonor, Prémio</p><p>D. Dinis 2011 e Prémio Máxima de Literatura 2012).</p><p>Para explicar a origem da transformação do estatuto da mulher como autora</p><p>de ficção em Portugal, é preciso reconhecer o marco inicial desse novo</p><p>tempo, representado pelas autoras que acabamos de citar. Essa honraria</p><p>cabe ao romance A sibila, publicado por Agustina Bessa-Luís em 1954.</p><p>Nascida em 1922, a autora tem uma das mais longas e fecundas carreiras</p><p>literárias do século XX, exemplificada por seus quarenta romances</p><p>publicados. A eles devem ser somados também diversos volumes de contos,</p><p>biografias, crônicas, ensaios e textos memorialísticos, peças de teatro. São</p><p>inúmeros também os prêmios que Agustina já recebeu, entre eles o Prêmio</p><p>Camões e o Prémio Vergílio Ferreira, da Universidade de Évora, ambos</p><p>208 UNIUBE</p><p>dados em 2004 pelo conjunto de sua obra. Podem ser citados também os</p><p>prêmios Delfim Guimarães (1953) e Eça de Queirós (1954), vencidos por A</p><p>sibila, e o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa</p><p>de Escritores (2001), que consagrou Joia de família.</p><p>A principal marca da produção romanesca de Agustina Bessa-Luís, que</p><p>explica sua longevidade artística e seu impacto sobre o público leitor, é</p><p>seu estilo próprio, que não se confunde com o de outros autores nem se</p><p>filia a nenhuma escola literária; a base dele é uma fertilíssima imaginação,</p><p>como aponta Massaud Moisés:</p><p>As obras da autora têm causado uma impressão</p><p>unanimemente aceita: trata-se de aparelhagem nova de</p><p>romancista, forte a ponto de constituir um momento de</p><p>alta voltagem, no grande “caso”, dentro do panorama da</p><p>ficção moderna em Portugal. Romancista privilegiada,</p><p>sua poderosa imaginação tudo transfigura e vivifica</p><p>a um só tempo, conferindo aos seres e aos objetos</p><p>um halo de verdade e autenticidade provavelmente</p><p>apenas possível no âmbito da arte. Impelida por</p><p>essa imaginação criadora e recriadora, a ficcionista</p><p>não só arquiteta o plano suposto em que a narrativa</p><p>se desenrola, como também lhe empresta sucessivos</p><p>dados da observação da realidade que lhes está</p><p>intimamente conectada. Opera-se, assim, a identidade</p><p>entre o ideal e o real, de molde que toda noção de</p><p>espaço e de tempo desaparece em favor duma</p><p>multiplicidade ou ubiquidade e ucronia, que assinala a</p><p>perenidade dos dramas focalizados. (MOISÉS, 2008, p.</p><p>516).</p><p>É essa imaginação destacada por Moisés que permite ao leitor entender</p><p>por que a literatura de Agustina, surgida no final dos anos 1930, quando</p><p>a “Geração da presença” e o Neorrealismo disputavam a definição</p><p>do que devia ser a literatura portuguesa, desvencilha-se de qualquer</p><p>identificação com escolas ou ideologias. Como se observa em A sibila,</p><p>a autora ao mesmo tempo se volta para a realidade social portuguesa</p><p>e a transcende, por obra de seu estilo individual e pela liberdade de</p><p>que a imaginação desfruta na composição das personagens e de seus</p><p>destinos.</p><p>UNIUBE 209</p><p>Os prêmios que A sibila recebeu já em sua época de lançamento foram o</p><p>início de seu reconhecimento como um dos romances centrais da língua</p><p>portuguesa na era moderna. As razões para isso</p><p>podem ser encontradas no</p><p>fato de ser, naquele momento, uma obra realmente</p><p>sui generis: sua autora, narradora e personagens</p><p>principais são todas mulheres e o mundo é examinado</p><p>por meio de seus pontos de vistas.</p><p>O romance organiza seu enredo em torno de uma família da região de</p><p>Entre Douro e Minho, no norte de Portugal. Cobrindo um tempo que</p><p>vai de cerca de 1850 a 1950, seu foco é a história de três gerações</p><p>da família Teixeira, antigos proprietários rurais que lutam contra a</p><p>decadência econômica. A narrativa é mais movida pelas impressões</p><p>que os problemas vividos causam sobre o interior das personagens do</p><p>que sobre suas ações e peripécias, o que permite à escritora aprofundar</p><p>a construção psicológica das pessoas que habitam seu mundo ficcional.</p><p>O mote para o início da narrativa é o retorno de Germana, apelidada de</p><p>Germa, da terceira geração, à casa da Vessada, moradia ancestral da</p><p>família. Vendo-se no mesmo espaço em que ocorreram fatos decisivos</p><p>da saga dos Teixeiras, Germa reconstrói, pela memória, toda a história</p><p>de sua tia Joaquina, chamada por todos de Quina.</p><p>Quina é a sibila de que fala o título do romance. Aos olhos dos familiares e</p><p>dos moradores dos arredores, sua personalidade é enigmática e misteriosa</p><p>ou dissimulada e fingida. Dotada de inteligência e sensibilidade fora do</p><p>comum, consegue penetrar nas razões que explicam as ações das outras</p><p>pessoas, de uma tal maneira que muitos dos vizinhos começam a ver</p><p>nela talentos de bruxa ou de adivinha; a partir daí, passam a chamá-la</p><p>de sibila, usando a palavra que, na Antiguidade greco-latina, denominava</p><p>as profetisas.</p><p>Sui generis</p><p>Único em seu</p><p>gênero; dotado de</p><p>estilo próprio.</p><p>210 UNIUBE</p><p>Ao longo dos cem anos que, cronologicamente, a narrativa cobre, vão</p><p>sendo mostrados os mais variados aspectos da vida da família Teixeira,</p><p>os quais servem como pano de fundo para a elaboração da biografia</p><p>de Quina, tal como ela se representa nas lembranças de Germana.</p><p>Nesse processo, é fundamental observar o papel central que Quina</p><p>desempenhou na recuperação da casa da Vessada e nas propriedades</p><p>da família, que quase chegaram a ser perdidas por causa das muitas</p><p>aventuras extraconjugais de seu pai, Francisco Teixeira. Por meio dessa</p><p>atenção dupla dedicada às questões sociais implicadas na decadência</p><p>das propriedades rurais na mudança do século e à representação de</p><p>um mundo em que as mulheres começam a abalar as regras rígidas do</p><p>patriarcalismo português, o romance oferece ao leitor todo um panorama</p><p>da cultura portuguesa pelos olhos femininos, como argumenta Simone</p><p>Pereira Schmidt:</p><p>A Sibila pode assim ser considerado um marco na</p><p>ruptura da tradição romanesca em Portugal, propondo</p><p>novos temas e novo tratamento estilístico ao romance.</p><p>Seu tempo diegético abarca, numa perspectiva</p><p>diacrônica, a sociedade portuguesa agrária e patriarcal</p><p>desde os fins do século XIX até meados do nosso</p><p>século. Nele desfilam episódios marcantes da história</p><p>do pais e do mundo nesse período, tais como o</p><p>advento da República em Portugal e a Primeira Grande</p><p>Guerra, abordados secundariamente à trama principal.</p><p>Nesta, ao contrário dos "grandes fatos" que marcam</p><p>a história recente, o que importa são os pequenos</p><p>acontecimentos da vida, as histórias que dizem respeito</p><p>à comunidade basicamente feminina que sustenta o</p><p>patriarcado rural, e que parecem configurar, nas</p><p>palavras de Oscar Lopes, "um dom peculiar de gineceu</p><p>ou de intimidade feminina". (SCHMIDT, 1997, p. 54-55).</p><p>O gineceu a que se referiu Óscar Lopes, na frase incorporada na citação</p><p>de Simone Schmidt, era, na Grécia antiga, o espaço reservado para as</p><p>mulheres nas casas. Ali, a senhora da casa passava seu tempo livre</p><p>em companhia das mulheres solteiras da família e das escravas, já</p><p>que a nenhuma delas era permitida a convivência com os homens que</p><p>viessem visitar seu marido. Metaforicamente, o termo serve para ilustrar</p><p>Diegético</p><p>Relacionado ao</p><p>mundo ficcional</p><p>criado em uma</p><p>narrativa.</p><p>Diacrônico</p><p>relativo à passagem</p><p>do tempo</p><p>UNIUBE 211</p><p>a situação vivida nos tempos de juventude de Quina, quando todo o</p><p>poder estava reservado aos homens, mesmo que eles não estivessem</p><p>preparados para exercê-lo corretamente, como era o caso de seu pai.</p><p>Nessa época, as mulheres viviam praticamente isoladas socialmente,</p><p>o que lhes permitia cultivar uma intimidade que, no livro, se refletirá na</p><p>proximidade, em termos de personalidade e expectativas de vida, entre</p><p>Quina e sua sobrinha Germa.</p><p>Quando o romance se inicia, Germa está voltando da capital, onde foi</p><p>estudar e se fixou. Sua infância e adolescência foram passadas no</p><p>mundo rural, o único a ser conhecido intimamente por Quina. O laço</p><p>que as uniu nessa época se manteve, mesmo com toda a distância, por</p><p>toda a vida, e é ele que permite a Germa, agora dotada de uma cultura</p><p>citadina com a qual a tia jamais sonhara, a entender toda a complexa</p><p>personalidade de Quina. O símbolo máximo da identificação entre elas</p><p>é o fato de que, ao morrer, a sibila deixa a casa da Vessada e todas</p><p>as propriedades familiares como herança para Germa, fazendo com</p><p>que ambas, então, fiquem definitivamente ligadas. Outro símbolo disso,</p><p>entretanto, manifesta-se na narrativa, tendo também a função de estímulo</p><p>inicial para a volta de todas as memórias de Quina acumuladas por</p><p>Germa; é a cadeira de balanço que a tia deixou na casa, como aponta</p><p>Maristela Kirst de Lima Girola:</p><p>As recordações de Germa são estimuladas pelo espaço</p><p>exterior, pela casa e seus móveis antigos. Um objeto</p><p>em especial ganha destaque, trata-se de uma rocking-</p><p>chair, a cadeira de balanço que muito embalara sua tia,</p><p>Quina. Essa cadeira serve para evocar lembranças e</p><p>sustentar a memória, tecendo ligações entre o passado</p><p>e o presente. Pode-se dizer que Germa, ao balançar-se</p><p>na velha cadeira, aciona a memória acerca de sua tia:</p><p>“Ela balançava-se activamente (...) Tal como Quina”</p><p>(p. 8). Repetindo tal movimento, ela entra em um tipo</p><p>de transe em que o espírito de Quina se faz presente,</p><p>provocando uma transfiguração do espaço que se</p><p>humaniza:</p><p>212 UNIUBE</p><p>Germa estava nesse momento totalmente desligada</p><p>e ausente de si, e que subitamente o ambiente ficara</p><p>repleto doutra presença viva, intensa, familiar, e que</p><p>aquela sala, de tecto baixo, onde pairava um cheiro</p><p>de pragana e de maçã, se enchia duma expressão</p><p>humana e calorosa, como quando alguém regressa e</p><p>pousa o olhar nos antigos lugares onde viveu, e o seu</p><p>coração derrama à sua volta uma vigilante evocação.</p><p>E, bruscamente, Germa começou a falar de Quina.</p><p>(BESSA-LUÍS, 2003, p. 9 apud GIROLA, 2008, p. 64).</p><p>Assim como acontece na passagem do livro selecionada por Maristela</p><p>Girola, todo o romance A sibila é o testemunho da presença de Quina na</p><p>vida de Germa, representando, literariamente, a continuidade do passado</p><p>no presente da personagem e da história familiar e nacional em sua</p><p>atualidade individual. A cadeira de balanço, parte material da herança</p><p>que a tia deixou para a sobrinha, tem no livro o papel de metonímia de</p><p>toda a casa da Vessada. Essa propriedade, por sua vez, é uma espécie</p><p>de metáfora de todo o passado de luta de Quina para recuperar os bens</p><p>e os valores da família que os homens dela não souberam manter; desse</p><p>ponto de vista, a casa é o índice material de uma vida feminina digna de</p><p>ser vivida e lembrada.</p><p>Está disponível no Youtube o documentário “Nasci adulta e morrerei criança”,</p><p>sobre a vida e a obra de Agustina Bessa-Luís. O filme inclui uma entrevista</p><p>com a escritora, que conta episódios interessantes e engraçados de sua</p><p>experiência como escritora. Você pode encontrá-lo neste link:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=BrvDXCBtPlo.</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>O romance filosófico de Vergílio Ferreira4.5</p><p>Vergílio Ferreira é considerado um dos mais importantes romancistas</p><p>portugueses do século XX, tendo sido agraciado, por exemplo, com o</p><p>Prêmio Camões, o Europália, o Grande Prêmio de Romance e Novela da</p><p>UNIUBE 213</p><p>Associação Portuguesa de Escritores e o</p><p>Prêmio Camilo Castelo Branco</p><p>da Sociedade Portuguesa dos Escritores; recebeu, também, o prêmio</p><p>francês “Femina”. Vários de seus romances foram traduzidos para o</p><p>espanhol e o francês. Vergílio Ferreira nasceu em 1916, em Melo, Serra</p><p>da Estrela, e morreu em 1996, em Lisboa. Escreveu a vida inteira.</p><p>De família católica, esteve num seminário dos dez aos dezesseis anos,</p><p>experiência depois tomada como referência no romance Manhã submersa,</p><p>de 1953. Entrou depois para o liceu e, finalmente, licenciou-se em Filologia</p><p>Clássica pela Universidade de Coimbra. Foi, por muito tempo, professor de</p><p>grego, latim e português em liceus de várias regiões do país.</p><p>Tendo publicado também ensaios críticos e filosóficos e diários, o autor</p><p>se notabilizou mesmo como romancista. Inicialmente, trilhou vertente</p><p>aproximada ao Neorrealismo, tematizando</p><p>as urgências políticas e sociais da realidade</p><p>portuguesa sob o Estado Novo de Oliveira Salazar,</p><p>como podem atestar os títulos O caminho fica</p><p>longe (1943), Onde tudo foi morrendo (1944)</p><p>e Vagão J (1946). A partir de Mudança (1949),</p><p>entretanto, a escritura de Vergílio Ferreira sofre</p><p>alterações de mundividência que acarretam</p><p>importantes transformações em sua realização,</p><p>fazendo surgir uma literatura mais marcadamente</p><p>pessoal, ainda que sob a influência do</p><p>pensamento existencialista de André Malraux e</p><p>Jean-Paul Sartre.</p><p>Em Mudança, a exploração da temática social,</p><p>representada pelas atividades e interesses</p><p>políticos de alguns de seus personagens, vai</p><p>abandonando o primeiro plano da narrativa, vai sendo, como diz Eduardo</p><p>Lourenço no prefácio que escreveu para uma edição de 1968, “já quase</p><p>Existencialista</p><p>Relativo ao</p><p>Existencialismo,</p><p>corrente filosófica</p><p>originada no final</p><p>do século XIX, mas</p><p>muito em voga nas</p><p>décadas de 1950-</p><p>60, que concebia o</p><p>ser humano como o</p><p>único responsável</p><p>pelo sentido dado</p><p>à sua vida, a</p><p>qual só podia ser</p><p>definida ao longo</p><p>de sua existência,</p><p>por não ter uma</p><p>história prévia ao</p><p>seu nascimento</p><p>nem posterior à</p><p>sua morte. O mais</p><p>importante filósofo</p><p>desta corrente,</p><p>além de Malraux</p><p>e Sartre, foi Soren</p><p>Kierkegaard.</p><p>214 UNIUBE</p><p>espuma à flor da vaga resplandecente e tenebrosa da Existência”. Mais</p><p>importa, agora, o constante embate das personalidades de Carlos e</p><p>Berta, os principais personagens do romance; mais importam, agora,</p><p>também, o tempo e sua passagem, a mudança do mundo e dos destinos</p><p>pessoais, envolvidos pelo silêncio da natureza.</p><p>A partir desse livro, o escritor produz uma obra romanesca caracteristicamente</p><p>una, em que pese a diferença interna dos títulos. As histórias contadas,</p><p>a construção de personagens, o foco narrativo, as formas e modos</p><p>inventados para contar podem variar e variam, sendo óbvio que Aparição</p><p>(1959) e Apelo da noite (1963) são romances diferentes; também o são,</p><p>entre si e entre os outros, Estrela polar (1962) e Rápida, a sombra</p><p>(1974), Manhã submersa (1953) e Para sempre (1983). No entanto, ao</p><p>longo da leitura dessas e outras obras, constata-se a presença manifesta</p><p>de um interesse de Vergílio Ferreira por escrever sobre um tema singular,</p><p>ainda que vasto e complexo: o homem, visto como um ser que procura</p><p>construir sua existência num tempo flagrantemente limitado pela morte.</p><p>Ao menos desde Mudança, chegando a Cartas a Sandra, de 1996, o</p><p>ano em que morreu, numa obra romanesca que inclui vinte e cinco títulos,</p><p>é esse o grande eixo da escritura ficcional de Vergílio Ferreira.</p><p>Talvez tenha acontecido com o autor algo parecido com o que sucede</p><p>a um de seus personagens mais conhecidos do público leitor, o Alberto</p><p>Soares de Aparição. Em determinada altura da narrativa, refletindo sobre</p><p>sua vida, ele pensa o seguinte: “Portanto eu tinha um problema: justificar</p><p>a vida em face da inverosimilhança da morte. E nunca mais até hoje eu</p><p>soube inventar outro.” (FERREIRA, 1983, p. 43)</p><p>De qualquer forma, é o Homem que encontramos na obra de Vergílio</p><p>Ferreira: a narração de vivências fundamentais da condição humana e</p><p>a reflexão sobre ela, em busca de uma experiência de plenitude, a ser</p><p>alcançada apenas em termos humanos. No volume Um escritor apresenta-</p><p>se, de 1982, que é uma recolha de setenta entrevistas concedidas por V.</p><p>UNIUBE 215</p><p>F. ao longo de sua carreira literária, ele faz uma importante afirmação</p><p>a respeito do escritor francês André Malraux, um dos autores de sua</p><p>predileção e a respeito de cujo pensamento publicou André Malraux –</p><p>Interrogação ao destino (1963): “O longo itinerário de Malraux é uma</p><p>grandiosa tentativa de criar para o homem uma transcendência saída de</p><p>suas próprias mãos”. (FERREIRA, 1981, p. 71).</p><p>Uma preocupação assemelhada a essa anima os romances vergilianos,</p><p>por meio de suas principais personagens, como pode ser comprovado</p><p>por manifestações como a de Alberto Soares, há pouco reproduzida, e</p><p>pela seguinte frase do autor, presente no mesmo volume de entrevistas</p><p>citado, se bem que “transcendência”, evidentemente, não seja sinônimo</p><p>de “humanismo”: “O grande tema de toda a minha obra é o humanismo,</p><p>ou seja, a possibilidade de fundar em dignidade e plenitude a vida do</p><p>homem.” (FERREIRA, 1981, p. 37).</p><p>Na longa lista dos romances de Vergílio Ferreira, alguns títulos se destacam,</p><p>como Aparição (1959), Cântico final (1960) e Para sempre (1983).</p><p>Aparição é o romance mais famoso do escritor português. Desde seu</p><p>lançamento, em 1959, é sua obra que mais tem encontrado eco junto ao</p><p>público leitor, tendo recebido, da Sociedade Portuguesa de Escritores,</p><p>o Prêmio Camilo Castelo Branco; é, também, um dos poucos romances</p><p>vergilianos a ter uma edição brasileira.</p><p>Aparição é um livro habitado pelo mundo mental. Com isso, quer-se</p><p>dizer que nessa obra encontramos não o domínio das peripécias, mas</p><p>o da reflexão. Certamente, nele está presente um enredo, que mostra,</p><p>por um lado a convivência problemática de um professor, Alberto</p><p>Soares, recém-chegado à cidade de Évora, com as pessoas com quem</p><p>estabelece relações, a partir do contato com a família do Doutor Moura,</p><p>renomado médico do lugar; por outro, a reelaboração das memórias</p><p>daquela época num texto que Alberto escreve muitos anos depois,</p><p>216 UNIUBE</p><p>durante uma noite de inverno. Contudo Alberto, o narrador-protagonista</p><p>desse enredo, é, fundamentalmente, alguém que reflete sobre o homem,</p><p>sua essência e existência, seu destino e suas escolhas.</p><p>Numa aferição da passagem do tempo que leve em conta as mecânicas</p><p>internas da obra romanesca do autor, Alberto está muito distante das</p><p>personagens dos livros iniciais, ainda enredadas, de alguma forma, na</p><p>luta social e na preocupação com os estômagos vazios. A reflexão de</p><p>Alberto busca outro alvo: saber o homem e instaurá-lo numa harmonia</p><p>apenas humana, saber o homem e justificá-lo diante da evidência da</p><p>morte. Como diz, a certa altura:</p><p>Portanto eu tinha um problema: justificar a vida em</p><p>face da inverosimilhança da morte. (...) Eis-me aqui</p><p>escrevendo pela noite fora, devastado de inverno.</p><p>Eis-me procurando a verdade primitiva de mim, verdade</p><p>não contaminada ainda da indiferença. (FERREIRA,</p><p>1983, p. 43).</p><p>Talvez pela presença tão evidente da reflexão sobre a condição humana,</p><p>Aparição, desde o lançamento, vem sendo considerado, por alguns</p><p>críticos e estudiosos, um romance-ensaio, ou romance-tese. Com essa</p><p>ideia, não concorda seu autor, por crer que as personagens que cria não</p><p>são meros suportes para conceitos teóricos, mas personagens vivas;</p><p>como ele mesmo afirmou em entrevista, acredita que na filosofia teoriza-</p><p>se, enquanto no romance vive-se.</p><p>Tanto isso é verdade no romance que não é das muitas discussões</p><p>sobre política, religião, dinheiro e sexo que se origina a mais intensa</p><p>experiência humana narrada no livro, mas das ações da menina pianista</p><p>Cristina, personagem que passa fugazmente pela vida de Alberto, mas</p><p>que, com sua música, marca-o indelevelmente, pois representa para ele</p><p>a importância da arte. Para Alberto, em comparação com todas as outras</p><p>experiências humanas, só a arte é capaz</p><p>sabe, essa é uma das marcas</p><p>mais visíveis da cultura do Renascimento, que valorizava extremamente</p><p>o conhecimento científico e propunha que ele fosse usado em todos os</p><p>campos da atividade humana.</p><p>O melhor e mais conhecido exemplo dessa atitude renascentista foi</p><p>Leonardo da Vinci (1452-1519). Leonardo não pintou apenas a Mona</p><p>Lisa, quadro mais famoso da arte ocidental. Também foi cientista, inventor,</p><p>matemático, engenheiro, anatomista, pintor, escultor, arquiteto, botânico,</p><p>poeta e músico, além de ser considerado o precursor da aviação e da</p><p>balística; tamanha versatilidade expressa o caráter universalista do</p><p>UNIUBE 13</p><p>Renascimento, visível também na multiplicidade de ciências mencionadas</p><p>em Os Lusíadas, com a Geografia, Zoologia, Botânica, Náutica, além das</p><p>já mencionadas História e Astronomia, o que dá ao poema de Camões um</p><p>aspecto de enciclopédia poética do conhecimento científico de seu tempo.</p><p>A importância da ciência também se manifesta na sequência da estrofe,</p><p>pois, ao se referir aos “mares nunca doutrem navegados”, o episódio se</p><p>junta às muitas referências que o poema como um todo faz ao pioneirismo</p><p>dos portugueses, que foram capazes, antes dos outros povos europeus,</p><p>de navegar em alto mar. Esse pioneirismo é a base do retrato da cultura</p><p>portuguesa que o leitor atento perceberá que Camões elabora ao longo</p><p>de todo o livro e que será tema de várias outras estrofes do relato sobre</p><p>o encontro com o Adamastor. Aqui, é importante destacar que a ciência</p><p>foi um dos sustentáculos da expansão marítima lusitana, pois muitos</p><p>foram os instrumentos náuticos inventados ou desenvolvidos pelos seus</p><p>marinheiros para enfrentar os desafios da navegação oceânica. São</p><p>exemplos disso o astrolábio, o quadrante, a bússola, a balestilha; a própria</p><p>caravela usada nas viagens à Índia e ao Brasil foi um desenvolvimento</p><p>que os portugueses fizeram de embarcações mais antigas.</p><p>Os mais importantes instrumentos náuticos inventados ou desenvolvidos</p><p>pelos marinheiros portugueses são descritos numa reportagem disponível</p><p>neste endereço:</p><p>http://osdescobridoresbiju.blogspot.com.br/p/instrumentos-nauticos.html</p><p>AMPLIANDO O CONHECIMENTO</p><p>A extensão de Os Lusíadas, com seus milhares de versos, não deve</p><p>enganar o leitor: não se trata de uma obra marcada por excessos de</p><p>linguagem, em que tudo é dito com sobras de palavras. O Renascimento</p><p>aprendeu com a Antiguidade Clássica a produzir obras de arte baseadas</p><p>na concisão, no equilíbrio e na economia de recursos, de modo a fazer</p><p>muito com pouco.</p><p>14 UNIUBE</p><p>Um perfeito exemplo disso é a maneira encontrada por Camões,</p><p>ainda nesta estrofe 37, para mostrar a vinculação de seu poema com</p><p>as epopeias antigas. Um dos traços essenciais do gênero épico é a</p><p>presença do inesperado; sendo uma narrativa de aventuras, uma epopeia</p><p>precisa conter fatos que acontecem sem que seus heróis os antecipem.</p><p>Isso ocorre, principalmente, com os riscos e perigos que surgem no</p><p>caminho das personagens, movimentando a narração, surpreendendo</p><p>também o leitor e servindo para que o herói demonstre sua coragem,</p><p>sua astúcia e seu valor. Na estrofe mencionada, todo a ligação de Os</p><p>Lusíadas com essa tradição literária é feita por meio de duas palavras:</p><p>“estando descuidados”. No trecho em que elas aparecem, é relatado que,</p><p>no momento em que surge a nuvem da qual o Adamastor aparecerá,</p><p>os marinheiros portugueses estavam na proa do navio, conversando</p><p>descuidadamente, ou seja, despreocupadamente. Desse modo, não</p><p>tiveram como antecipar a chegada do gigante e tiveram que tratar disso</p><p>da maneira como foi possível.</p><p>O inesperado aparecerá muitas vezes no poema, trazendo para a viagem</p><p>de Vasco da Gama os elementos de perigo essenciais a uma aventura</p><p>nos mares, como, no plano da realidade, as tempestades e suas opostas,</p><p>as calmarias, os riscos de naufrágio, a falta de víveres ou água; no plano</p><p>mitológico, o principal perigo é a interferência do deus Baco, que, na</p><p>fantasia camoniana, rivaliza com a deusa Vênus: enquanto ela protege os</p><p>navegadores portugueses, ele os persegue, por não querer que levem a</p><p>religião católica para a Índia, lugar de muitos centros de culto em honra dele.</p><p>Você pode ler um interessante estudo sobre a presença dos deuses</p><p>mitológicos em Os Lusíadas usando este link:</p><p>http://www.unisalesiano.edu.br/encontro2009/trabalho/aceitos/</p><p>CC33961136831.pdf</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>UNIUBE 15</p><p>Nas estrofes 38, 39 e 40, o episódio mostra a descrição do Gigante</p><p>Adamastor, caracterizado como um ser descomunal em seu tamanho,</p><p>feiúra e aspecto ameaçador, como convém a um ser sobrenatural presente</p><p>numa epopeia. Esse elemento também serve para caracterizar Os</p><p>Lusíadas como uma obra renascentista, pois se deve ao conhecimento</p><p>que Camões tinha das regras do gênero épico, que sempre pede a</p><p>intervenção de seres de outro mundo na narrativa; é o que se chama</p><p>de presença do maravilhoso, ou seja, do sobrenatural. Além disso, toda</p><p>a repugnância vista pelos portugueses no monstro é simbólica de outra</p><p>característica da epopeia: o contato dos heróis com o desconhecido. Nos</p><p>textos clássicos, os gregos de Aquiles e Ulisses e os troianos de Enéas</p><p>fazem longas viagens para lugares que nunca tinham visto antes, lá</p><p>encontrando povos, hábitos, perigos e culturas diferentes. O mesmo se</p><p>dá com Vasco da Gama e seus marinheiros; nesse contexto, o Adamastor</p><p>é símbolo também de todo o mundo desconhecido que os portugueses</p><p>colocariam em contato com a cultura europeia.</p><p>Também é digna de nota nessas estrofes a comparação feita do</p><p>Adamastor com o Colosso de Rodes, uma imensa estátua do deus</p><p>Apolo que existia na entrada do porto de Rodes, uma das ilhas gregas.</p><p>O Colosso era uma das sete maravilhas do mundo antigo e, desse modo,</p><p>evidencia que o quadro de referências culturais usado por Camões em</p><p>seu livro é mesmo a Antiguidade Clássica, o que é corroborado pela</p><p>importância dos deuses Vênus e Baco na narrativa.</p><p>Você pode ver uma representação do Colosso de Rodes e mais informações</p><p>sobre ele e as outras seis maravilhas do mundo antigo neste site:</p><p>https://funchalnoticias.net/2016/01/24/as-sete-maravilhas-do-mundo-antigo-</p><p>o-colosso-de-rodes/</p><p>AMPLIANDO O CONHECIMENTO</p><p>16 UNIUBE</p><p>As estrofes de 41 a 49 contêm um dos trechos mais importantes do</p><p>episódio e de todo o poema, pois apresentam as profecias que o</p><p>Adamastor faz a respeito dos naufrágios que navios portugueses</p><p>sofreriam, depois da viagem de Vasco da Gama, na região do Cabo das</p><p>Tormentas. Nelas, ele se refere aos acidentes ocorridos com armadas</p><p>lideradas por Bartolomeu Dias (que tinha sido o primeiro navegante</p><p>europeu a passar por ali, em 1488, pelo que ficou conhecido como o</p><p>descobridor do caminho marítimo para a Índia), D. Francisco de Almeida</p><p>(primeiro vice-rei português da Índia) e Manuel de Sousa Sepúlveda.</p><p>A sequência desses desastres tem a utilidade de lembrar ao leitor a</p><p>persistência da ousadia lusitana, que não se deixa abater mesmo diante</p><p>de derrotas tão graves e custosas, tanto em termo material quanto de</p><p>vidas humanas.</p><p>Dos relatos que o Adamastor faz nesse trecho, o mais impressionante</p><p>é certamente o do acontecido com Sepúlveda. Esse fidalgo e militar</p><p>foi servir ao rei na Índia por vários anos e, em 1552, numa viagem de</p><p>retorno a Portugal em que estava acompanhado de sua mulher, dos</p><p>filhos e de mais quinhentas pessoas, naufragou no Cabo das Tormentas.</p><p>Tendo sobrevivido ao naufrágio, ele, a família e outros compatriotas foram</p><p>aprisionados por um tempo por indígenas daquela região, terminando por</p><p>morrer de fome, sede, doenças e ataques de animais ferozes durante a</p><p>longa marcha que tentaram fazer até Moçambique, onde já se haviam</p><p>estabelecidos alguns postos comercias portugueses.</p><p>A partir desses fatos terríveis, Luís de Camões elabora três das estrofes</p><p>mais bonitas e complexas de seu poema, entrelaçando os temas épicos</p><p>do heroísmo e do sacrifício aos líricos do amor e da idealização da beleza</p><p>feminina. Com esse procedimento, ele prepara</p><p>de nos conduzir a um estado</p><p>de transcendência.</p><p>UNIUBE 217</p><p>Cântico final, escrito em 1956, mas publicado apenas em 1960, é, ao</p><p>nível da escritura, um dos mais belos romances de Vergílio Ferreira, em</p><p>função da maneira como o narrador impõe-lhe um ritmo narrativo em</p><p>tudo correspondente à lentidão com que os fatos se sucedem na vida</p><p>das personagens.</p><p>Os temas e episódios se desenrolam lentamente, marcados, ao nível</p><p>da escritura, por uma profusão de vírgulas e travessões, que a todo</p><p>momento a cadenciam, da mesma maneira dando-se a conhecer ao</p><p>leitor, que, assim, vai sendo enredado na trama. Nela avulta a importância</p><p>para a vida do homem, da obra de arte, já que seu personagem central,</p><p>Mário, é um pintor, mas não há apenas isso. Temos também o frágil</p><p>estado de saúde de Mário e sua preparação para a morte; a vida diária</p><p>das amizades que o cercam; os serões que os reúnem; as reticências,</p><p>mentiras e ausências de Elsa, a mulher que ele amou; o mundo particular</p><p>de cada personagem sendo, mais que descrito, sugerido ao leitor.</p><p>A prosa de Vergílio Ferreira se acopla muito bem à fase de vida de Mário</p><p>tematizada na obra, experimentada e transfigurada num ritmo lento, de</p><p>reflexão, de silêncio e de fim. Tudo isso são marcas da escritura do autor</p><p>português e, nessa obra, a sua capacidade de compor e contar uma</p><p>história densa de humanos em busca de um sentido que justifique suas</p><p>vidas pode ser confirmada no seguinte trecho, retirado de um passo do</p><p>romance em que mais um serão dos amigos de Mário se desenrola. Foi</p><p>pedido a Paula, dona da casa, pianista afastada dos concertos por causa</p><p>da vida em família, que tocasse um pouco:</p><p>Sentava-se ao piano — um pouco afastado —,</p><p>esperava ainda, em silêncio, que todos se aquietassem,</p><p>e finalmente tocava. Então os gênios do silêncio</p><p>recuperavam para cada um, esse mundo submerso da</p><p>plenitude, — verdade sem margens de uma comoção</p><p>de origens, onde, como num oceano, vogavam os</p><p>destroços das palavras, das razões, de tudo o que</p><p>falha e é efêmero e se gasta na mecânica da vida e</p><p>da grande loucura. Quem cantava entre os dedos de</p><p>Paula? Nem todos o sabiam, — e Mário quase sempre</p><p>218 UNIUBE</p><p>preferia não sabê-lo. Havia apenas a aparição do</p><p>mistério, e um desejo sufocante de tocar o halo do seu</p><p>nada; — e a presença, sim, de um corpo de mulher que</p><p>o situava na terra dos homens através do lineamento do</p><p>seu pescoço nu, da sagração do seu olhar, do impulso</p><p>invencível do seu busto solene até a uma memória de</p><p>estrelas imóveis na noite... (FERREIRA, 1975, p. 42-43).</p><p>A reação sensível de Mário diante da música tocada por Paula ao piano</p><p>é a mesma sentida por Alberto ao ver Cristina tocar o mesmo instrumento</p><p>em Aparição. Não se trata de coincidência; ocorre que a arte musical</p><p>ocupa um espaço central na vida dos protagonistas de vários romances</p><p>de Vergílio Ferreira, a tal ponto que se converte no símbolo de uma vida</p><p>mais elevada e mais profunda, como se apenas a arte conseguisse fazer</p><p>as pessoas transcenderem as mesquinharias da vida cotidiana.</p><p>Para sempre foi publicado em 1983, mesmo ano em que foi agraciado com</p><p>o prêmio de ficção do Pen Clube português. Quando o preparava, o escritor</p><p>chegou a vê-lo como uma espécie de ápice de sua obra romanesca, um</p><p>ponto de culminância dos conteúdos e formas experimentados ao longo de</p><p>várias décadas. Assim ele se referiu ao livro:</p><p>Tenho um novo romance entre mãos. Chama-se (talvez)</p><p>Para sempre. Várias vezes me prometi dar por finda a</p><p>aventura e encerrar a loja. Desta vez creio que é certo — e</p><p>o título é premonitório. (FERREIRA, 1981, p. 271).</p><p>Em Para sempre, as peripécias pertencem ao passado, quase que</p><p>totalmente. O que ocupa o presente da narrativa feita pelo narrador-</p><p>protagonista Paulo, o bibliotecário recentemente aposentado que está</p><p>de volta à aldeia e à casa em que viveu na infância, é a memória e tudo</p><p>que nela cabe: as esperanças, as frustrações, os fantasmas familiares,</p><p>o Paulo da infância e aquele da juventude, a mulher morta, a filha</p><p>desaparecida, o amor, a vida e a morte.</p><p>Tudo isso chega ao leitor na forma de um longuíssimo monólogo interior,</p><p>transcorrido numa única tarde de agosto, auge do Verão no hemisfério</p><p>norte. Tal monólogo, na verdade, engloba outras vozes, vindas da memória.</p><p>UNIUBE 219</p><p>Além disso, ele mistura variados tempos, numa prosa que possui a calma,</p><p>resignada e algo amarga, da situação de vida atual da personagem.</p><p>Nesse contexto de humanidade solitária e transitória, o monólogo de</p><p>Paulo na tarde de agosto em que consiste o romance se apresenta como</p><p>uma busca empreendida pelo personagem, a busca de uma verdade</p><p>que esclareça e justifique, que resuma e comunique, para ele mesmo, o</p><p>“percurso de humanidade”. Representada, acima de tudo, pelo próprio</p><p>debruçar-se sobre o passado, que é o que dá forma ao romance, essa</p><p>demanda é declarada inúmeras vezes em Para sempre. Uma das mais</p><p>explícitas é a seguinte, em que a busca metafórica de Paulo em sua vida</p><p>é associada ao seu ato de, ao chegar de volta à casa antiga, percorrê-la</p><p>toda, entrando em todos os aposentos, como o romance entra em todas</p><p>as partes de sua vida, a começar pelas diversas fases dela, infância,</p><p>juventude, maturidade e velhice:</p><p>Dou a volta à casa toda, dou à volta à vida toda e é</p><p>como se um desejo de a totalizar, a ter na mão. Ter a</p><p>imagem visível de tudo quanto a construiu, rever-me</p><p>nela para a levar comigo. Morrer todo no que fui —</p><p>para quê restos atrás de mim? ser perfeito na minha</p><p>totalização. (FERREIRA, 1985, p. 43).</p><p>Essa “imagem visível” de tudo que construiu sua vida toma a forma de</p><p>uma palavra que Paulo busca incessantemente, voltando-se para sua vida</p><p>enquanto o sol atravessa a paisagem lá fora. A mais definitiva caracterização</p><p>dessa palavra que a personagem procura sem descanso, como se ela fosse</p><p>a chave de todos os mistérios da vida, aparece, significativamente, na página</p><p>que está colocada exatamente na metade do livro:</p><p>Estás só, agora, bilhões de palavras se transformaram na</p><p>vida — uma só que soubesses, a única, a absoluta, a que</p><p>te dissesse inteiro nos despojos de ti. (...) A que redimisse</p><p>tudo o que enche um viver e nada deixasse de fora como</p><p>inútil ou desperdício. A que tivesse em si um significado tão</p><p>amplo que tudo nela significasse e não fosse coisa vã. A</p><p>que reunisse em si um homem inteiro sem deixar de fora</p><p>o animal que também tem de ir vivendo. A palavra final,</p><p>a palavra total. A única. A absoluta. (FERREIRA, 1985, p.</p><p>152).</p><p>220 UNIUBE</p><p>Essa busca de Paulo por uma palavra que signifique toda a vida remete ao</p><p>projeto de Alberto Soares em Aparição, o de justificar a vida diante da morte.</p><p>Sendo incessante em seu monólogo, tal anseio é também incessante em</p><p>sua vida, desde a infância, o que se percebe pela verdadeira obsessão que</p><p>ele demonstra, desde sempre, por conseguir descobrir o que sua mãe lhe</p><p>disse no leito de morte, há mais de sessenta anos.</p><p>A tarde quente de agosto, tempo exterior que contém um imensamente</p><p>maior tempo interior em Para sempre, na qual a música também se</p><p>manifesta com um poder que supera os limites do tempo em que foi</p><p>executada, resume não só a vida de Paulo. De certa maneira, resume</p><p>também a obra romanesca de Vergílio Ferreira, por sua figuração trazer,</p><p>ao mesmo tempo, a linguagem reflexiva que é registro peculiar do autor</p><p>e as experiências de vida que espelham, nas personagens, a condição</p><p>humana, matéria-prima por excelência de sua literatura.</p><p>O programa “Grandes livros” da RTP (Rádio Televisão Portuguesa) apresenta</p><p>semanalmente as grandes produções literárias de todos os tempos no país.</p><p>A respeito da obra de Vergílio Ferreira, foi produzido um episódio sobre</p><p>Aparição, com a dramatização de algumas das cenas mais importantes e</p><p>a participação de especialistas que analisam as principais características</p><p>do livro e do estilo do autor. Você pode vê-lo no Youtube, usando este link:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=ibwWGCW6Jdg.</p><p>AMPLIANDO O CONHECIMENTO</p><p>Novas tendências ficcionais: anos</p><p>o que ocorrerá logo a</p><p>seguir, quando o Adamastor contar sua história de amor: a transição</p><p>do poema do gênero épico para o lírico, que é uma das novidades que</p><p>torna Os Lusíadas uma epopeia moderna, mesmo que modelada nas</p><p>clássicas.</p><p>UNIUBE 17</p><p>A estrofe 46 traça o perfil de Manuel de Sousa Sepúlveda contra o pano</p><p>de fundo da desgraça que a família conhecerá:</p><p>Outro também virá, de honrada fama,</p><p>Liberal, cavaleiro, enamorado,</p><p>E consigo trará a formosa dama</p><p>Que Amor por grão mercê lhe terá dado.</p><p>Triste ventura e negro fado os chama</p><p>Neste terreno meu, que, duro e irado,</p><p>Os deixará dum cru naufrágio vivos,</p><p>Pera verem trabalhos excessivos. (Idem, p. 124).</p><p>Como se vê, nessa estrofe o herói português é descrito exclusivamente</p><p>em termos positivos: sua fama, que é merecida, já que é honrada; sua</p><p>generosidade; sua linhagem nobre, já que, naqueles tempos, para se</p><p>pertencer às ordens cavalheirescas, era preciso ter nascimento na</p><p>aristocracia. Entretanto a essas qualidades, que descrevem heróis épicos</p><p>de todos os tempos, acrescenta-se outra, ligada ao gênero lírico: a paixão</p><p>amorosa nutrida por Sepúlveda em relação à sua esposa, cujo nome era</p><p>Leonor. Essa dimensão sentimental completa de maneira harmoniosa</p><p>a construção da personagem, que pode ser vista como um modelo do</p><p>português, por causa de sua nobreza, coragem, liberalidade e capacidade</p><p>de amar. Além disso, a estrofe também caracteriza positivamente a</p><p>esposa, pois a descreve como bela e nobre, marcas essenciais para que</p><p>uma mulher mereça ser chamada de “dama” naquele contexto social e</p><p>cultural. Essa simetria de qualidades admiráveis faz do casal um exemplo</p><p>de equilíbrio, o que mostra, novamente, a faceta renascentista do poema,</p><p>pois a simetria e o equilíbrio são características da maior importância na</p><p>arte greco-latina, fonte na qual a Renascença foi beber sua inspiração.</p><p>A estrofe 47 desenvolve mais o perfil de Leonor, já no contexto das</p><p>consequências do naufrágio:</p><p>18 UNIUBE</p><p>Verão morrer com fome os filhos caros,</p><p>Em tanto amor gerados e nascidos;</p><p>Verão os Cafres, ásperos e avaros,</p><p>Tirar à linda dama seus vestidos;</p><p>Os cristalinos membros e perclaros</p><p>À calma, ao frio, ao ar, verão despidos,</p><p>Depois de ter pisada, longamente,</p><p>Cos delicados pés a areia ardente. (Idem, p. 124)</p><p>É importante observar como Camões faz contrastar os índices clássicos</p><p>da figura da mulher, ou seja, sua beleza, nobreza, elegância, brancura,</p><p>delicadeza e sensibilidade amorosa de mãe, com as vicissitudes</p><p>enfrentadas em função do acidente. Desse contraste, ressalta o valor</p><p>da mulher portuguesa que Leonor simboliza, totalmente em sincronia com</p><p>aqueles representados por seu marido, o que reforça o equilíbrio do casal</p><p>e o interesse da poética camoniana nesse efeito, que também é causado</p><p>pela estrutura perfeitamente harmônica do poema, que usa sempre o</p><p>mesmo tipo de verso, de estrofe, de métrica e de esquema de rimas.</p><p>Os aspectos renascentistas, épicos e líricos desta parte do episódio</p><p>culminam na estrofe 48:</p><p>E verão mais os olhos que escaparem</p><p>De tanto mal, de tanta desventura,</p><p>Os dois amantes míseros ficarem</p><p>Na férvida, implacável espessura.</p><p>Ali, depois que as pedras abrandarem</p><p>Com lágrimas de dor, de mágoa pura,</p><p>Abraçados, as almas soltarão</p><p>Da formosa e misérrima prisão. (Idem, p. 124).</p><p>Cafres</p><p>Nome usado, na</p><p>época de Camões,</p><p>para os habitantes</p><p>originais do território</p><p>que é hoje a África</p><p>do Sul.</p><p>Perclaros</p><p>Nobres, ilustres,</p><p>belos.</p><p>UNIUBE 19</p><p>A imagem do casal a morrer abraçado, depois ter experimentado o pior</p><p>acontecimento possível para os pais, a morte dos filhos, é uma das mais</p><p>ricas da poesia camoniana. Ela mostra que o casal se manteve fiel a</p><p>seu amor e a seu compromisso mesmo depois de todos os males e</p><p>derrotas que teve de enfrentar, sem recriminações ou desentendimentos.</p><p>A profundidade inesgotável desses sofrimentos pode ser bem entendida a</p><p>partir da magistral metáfora feita por Camões, a das lágrimas tão sentidas</p><p>que são capazes de amolecer as pedras. Entretanto o que há de mais</p><p>rico na estrofe é a visão que ela apresenta da vida humana.</p><p>Nessa estrofe, o ser humano é constituído de duas dimensões. A primeira</p><p>é a física, a do corpo que é descrito como uma prisão, bela, porém muito</p><p>miserável. Naturalmente, essa classificação se justifica pelo fato de o</p><p>corpo ser mortal. A segunda é a espiritual, vista como eterna, já que,</p><p>livres do corpo, as almas do casal, presumivelmente, continuarão a</p><p>existir em outro plano de vida. Justamente aí está a riqueza da linguagem</p><p>camoniana, que, com poucas palavras, sintetiza toda a concepção da</p><p>vida humana presente na filosofia platônica, que é a base do pensamento</p><p>renascentista.</p><p>Na concepção platônica, a vida humana se dividia em dois planos</p><p>distintos: o espiritual, divino e celestial, no qual se originavam as</p><p>almas, e o material, humano e terreno, no qual elas tomavam corpos</p><p>e experimentavam uma vida diminuída, degradada e sombria. Toda a</p><p>aspiração de felicidade humana, desse modo, deveria ser dirigida ao</p><p>plano espiritual da existência, a ser alcançado apenas depois da morte</p><p>física. Essa noção platônica pode ser encontrada em quase todas as</p><p>religiões ocidentais, que, apesar de todas as suas diferenças, comungam</p><p>da ideia de que este mundo material é um “vale de lágrimas”, no qual</p><p>vivemos uma experiência de exílio, enquanto aguardamos nossa</p><p>passagem para uma vivência espiritual plenamente positiva.</p><p>20 UNIUBE</p><p>Sobre a importância do platonismo na poesia de Camões, veja o que</p><p>diz Cristiano Martins:</p><p>Se a sua poesia se revela, sob tantos aspectos,</p><p>representativa dos sentidos e acepções líricas da</p><p>Renascença, com mais feliz oportunidade, talvez, que</p><p>a de Petrarca ou Sannazaro, Torquato Tasso, Ariosto</p><p>ou mesmo Shakespeare, não seria estranhável que</p><p>ele tivesse assimilado intimamente as formas de</p><p>pensamento peculiares à época.</p><p>O retorno à antiguidade clássica fazia-se, então, por</p><p>um caminho único, uma estrada real: a obra de Platão.</p><p>Sempre que esse conhecimento não se fez diretamente</p><p>pelos textos do filósofo dos Diálogos, processou-se</p><p>indiretamente, mediante o estudo de Plotino e as</p><p>contribuições dos neoplatonistas.</p><p>Entre todas as influências ocorrentes em sua obra</p><p>essa do platonismo é sem dúvida a mais acentuada.</p><p>Poucos líricos terão compreendido tão finamente os</p><p>acidentes da doutrina platônica, cujo sentido interior</p><p>é investigar e ordenar os problemas da vida espiritual</p><p>ou contemplativa. Ele foi bem um aluno da Academia</p><p>ateniense, pela aplicação com que meditou as</p><p>passagens do Mestre e a forma como a este se referia</p><p>algumas vezes, chamando-o divino Platão. [...] Mais</p><p>que grande aluno, foi verdadeiramente discípulo eleito</p><p>do mestre, um platônico por temperamento; longe de</p><p>residir nas ásperas lutas da vida ordinária, em que não</p><p>raro se encontrava envolvido, a sua legítima vocação</p><p>consistiria no sonho e contemplação das formas</p><p>espirituais, com aquelas incompatíveis. (MARTINS,</p><p>1981, p. 49-50).</p><p>Para saber mais a respeito das ideias de Platão e de sua importância</p><p>fundamental para toda a cultura ocidental, visite esta página da internet:</p><p>http://www.filosofia.com.br/historia_show.php?id=28</p><p>PESQUISANDO NA WEB</p><p>As estrofes em que o Adamastor profetiza a respeito dos riscos inerentes</p><p>às navegações portuguesas começaram plenamente épicas, pois</p><p>tratavam de perigos, imprevistos, naufrágios, heroísmos, sacrifícios e</p><p>UNIUBE 21</p><p>a persistente ousadia dos portugueses. Quando surgiram nelas Manuel</p><p>de Sousa Sepúlveda e sua esposa Leonor, o amor que nutriam um pelo</p><p>outro inseriu na narrativa um aspecto lírico, que se destaca dentro do</p><p>poema como um todo. Camões já havia adotado esse procedimento</p><p>antes, no Canto III, com o relato sobre Inês de Castro; fará novamente</p><p>quase ao final do livro, com o episódio da Ilha dos Amores. Essa</p><p>experiência camoniana, de mesclar com muito destaque o lirismo na</p><p>estrutura épica de Os Lusíadas, é uma autêntica inovação renascentista,</p><p>pois as epopeias</p><p>clássicas não fazem isso, dedicando-se de maneira</p><p>praticamente exclusiva a uma sucessão de episódios de aventuras. Mas</p><p>o amor de Manuel e Leonor não é o único a estar presente no episódio</p><p>do Gigante Adamastor, pois tem ainda mais relevância nele a desventura</p><p>amorosa do próprio monstro. É disso que tratam as estrofes de 50 a 60,</p><p>que fecham o episódio.</p><p>As estrofes 50 e 51 trazem uma apresentação que o Adamastor faz de</p><p>si mesmo; ao contrário da primeira vez em que falou no poema (estrofes</p><p>41 e seguintes), dessa vez ele não se limita a falar dos portugueses,</p><p>como se estivesse cumprindo no poema apenas o papel de destacar</p><p>as qualidades heroicas dos lusíadas. O que o Adamastor conta de si é</p><p>não só a sua identificação simbólica com o Cabo das Tormentas, mas</p><p>também sua origem como um dos Titãs da mitologia greco-latina, ou</p><p>seja, a raça de gigantes que dominava a Terra antes do aparecimento</p><p>dos deuses olímpicos (Júpiter, Netuno, Plutão, Vênus, Apolo, Marte etc.).</p><p>Como narram as lendas antigas, depois que Júpiter, seus irmãos e filhos</p><p>tomaram o lugar dos Titãs, estes moveram contra eles uma guerra, na</p><p>qual foram derrotados de maneira definitiva.</p><p>É a partir da estrofe 52 que o Adamastor passa a explicar por que motivo</p><p>ele se identifica como um capitão do mar, cuja parte na guerra de seus</p><p>irmãos contra os deuses era combater a armada de Netuno, o deus dos</p><p>mares; nela, já se anuncia que seus propósitos verdadeiros não eram os</p><p>épicos, mas os líricos:</p><p>22 UNIUBE</p><p>Amores da alta esposa de Peleu</p><p>Me fizeram tomar tamanha empresa.</p><p>Todas as Deusas desprezei do céu,</p><p>Só por amar das águas a princesa.</p><p>Um dia a vi coas filhas de Nereu</p><p>Sair nua na praia, e logo presa</p><p>A vontade senti de tal maneira</p><p>Que inda não sinto cousa que mais queira. (Idem, p. 126).</p><p>Na mitologia grega, Peleu foi um rei da região da Tessália; de seu</p><p>casamento com a ninfa Tétis, nasceu Aquiles, o mais importante herói</p><p>da Ilíada, de Homero. Tétis se casou com Peleu, um humano, por</p><p>decisão de Júpiter e Netuno, que a cortejavam e disputavam sua mão</p><p>até serem avisados por Prometeu que o filho dela seria maior que o pai.</p><p>Como se pode concluir, Tétis possuía uma beleza deslumbrante, que foi</p><p>responsável pela súbita paixão que o Adamastor sentiu ao vê-la saindo</p><p>do mar junto com as demais nereidas, suas irmãs.</p><p>O impacto que Tétis teve sobre o gigante na estrofe acima deve ser</p><p>entendido não apenas como uma particularidade da vida dele. Em seu</p><p>aspecto simbólico, esse impacto mostra a força dos temas ligados ao</p><p>gênero lírico, principalmente a idealização da mulher e a força superior</p><p>do sentimento em relação à razão. Observe como a ninfa é descrita</p><p>como a “alta esposa” de Peleu: a anteposição do adjetivo mostra que</p><p>seu sentido no verso é moral, não físico. Não é que Tétis seja de grande</p><p>estatura física, mas sim alguém ilustre, admirável, encantadora. É</p><p>isso que faz com que o Adamastor inverta todas as hierarquias para</p><p>expressar seu sentimento por ela, pois, se raciocinasse friamente, veria</p><p>que as deusas, na mitologia, estão acima das princesas, assim como</p><p>o céu está acima das águas. No entanto, para ele, vale muito mais a</p><p>princesa das águas do que as deusas do céu. O que aconteceu com</p><p>ele? Como se pode ver em poemas líricos de todas as línguas e todas</p><p>as épocas, quando o amor é despertado, a razão é abandonada. A isso</p><p>UNIUBE 23</p><p>chamamos sentimentalismo, o predomínio das emoções sobre o lado</p><p>racional da pessoa. Uma observação atenta da estrofe mostrará que o</p><p>Adamastor pode estar passando a simbolizar mais do que os perigos das</p><p>navegações, assumindo o papel de modelo do apaixonado irracional, do</p><p>tipo que continua existindo séculos depois da publicação do livro. Está aí,</p><p>então, um belo índice da atualidade da poesia de Camões.</p><p>Nas próximas estrofes, o relato da paixão se aprofundará, mas mantendo</p><p>constante a definição dos sentimentos do Adamastor e o retrato</p><p>idealizado que ele faz de Tétis. Assim, o amor aparece como uma prisão</p><p>em que o apaixonado entra voluntariamente; uma relação assimétrica,</p><p>pois permite a atração entre desiguais (ele é um gigante, ela é uma ninfa;</p><p>não apenas suas estaturas são diferentes, mas suas próprias naturezas);</p><p>um engano, que promete abundâncias de felicidade, esperanças de</p><p>satisfação e desejos de realização, mas depois revela que tudo isso é</p><p>apenas ilusão; em suma, uma loucura.</p><p>Quanto à Tétis, ela aparece, nas palavras do gigante, como mulher</p><p>de beleza imensa, dotada não só de atributos físicos, mas também de</p><p>inteligência, bom humor e sagacidade; aos olhos dele, ela é a “branca</p><p>Tétis, única”, a ninfa mais formosa do oceano. Sendo o Oceano um dos</p><p>símbolos mais tradicionais da totalidade do universo, o leitor pode fazer</p><p>uma ideia de quanto o Adamastor a considera alguém especial, diferente</p><p>de todos os outros seres do belo sexo. Essa descrição exaltada introduz</p><p>um tema bastante presente em Os Lusíadas: o perfil da mulher clássica,</p><p>ao qual corresponde também, neste mesmo episódio, Leonor de Sousa</p><p>Sepúlveda, que, recorde, era bela, ilustre, nobre, especial. Nesse sentido,</p><p>Camões está se juntando a outros grandes artistas da Renascença,</p><p>que, a partir de uma personagem específica, fosse mitológica ou</p><p>real, simbolizavam a perfeição feminina. É o caso de pinturas como</p><p>O nascimento de Vênus e o Perfil de donzela (Retrato de Simonetta</p><p>Vespucci), de Sandro Botticelli (1445-1510), a Dama do arminho, de</p><p>Leonardo da Vinci, ou a Madona do prado, de Rafael (1483-1520). Todas</p><p>24 UNIUBE</p><p>elas, na sua beleza, brancura, nobreza, doçura, serenidade e ilustração,</p><p>são devedoras do ideal de mulher presente nas esculturas gregas da</p><p>antiguidade, como a Vênus de Milo, a mais famosa delas.</p><p>É pena, para o Adamastor, que ele se tenha deixado levar pela paixão,</p><p>pois isso o fez se esquecer do fato fundamental: Tétis era casada e fiel ao</p><p>marido. Assim, nas estrofes finais do episódio, o leitor fica sabendo que,</p><p>diante das ameaças que ele mandou, de chegar até a raptar a ninfa, ela</p><p>trata de iludi-lo com a promessa de que se encontrará com ele. Na noite</p><p>prometida, o que acontece é o seguinte:</p><p>Ó que não sei de nojo como o conte!</p><p>Que, crendo ter nos braços quem amava,</p><p>Abraçado me achei com um duro monte</p><p>De áspero mato e de espessura brava.</p><p>Estando com um penedo fronte a fronte,</p><p>Que eu pelo rosto angélico apertava</p><p>Não fiquei homem não, mas mudo e quedo,</p><p>E junto dum penedo outro penedo. (Idem, p. 127).</p><p>Este é o ponto final na teoria do amor que Camões foi tecendo por meio</p><p>da aventura lírica do Gigante Adamastor: a descoberta de que tudo em</p><p>que se investiram os sentimentos e a própria personalidade não passou</p><p>de uma ilusão. Em lugar da ninfa, Adamastor encontrou um penedo, ou</p><p>seja, uma enorme pedra. Quem já amou quem não devia saber do que</p><p>se trata...</p><p>A resposta do Adamastor à sua desilusão é transformar-se ele também</p><p>em uma pedra, como se vê nos últimos dois versos transcritos. Essa</p><p>metamorfose será mais detalhada na estrofe 59, na qual o gigante explica</p><p>para o Gama como os deuses o transformaram no Cabo das Tormentas:</p><p>UNIUBE 25</p><p>Converte-se-me a carne em terra dura,</p><p>Em penedos os ossos se fizeram,</p><p>Estes membros que vês e esta figura</p><p>Por estas longas águas se estenderam;</p><p>Enfim, minha grandíssima estatura</p><p>Neste remoto cabo converteram</p><p>Os Deuses, e por mais dobradas mágoas,</p><p>Me anda Tétis cercando destas águas. (Idem, p. 128).</p><p>Essa estrofe oferece diferentes possibilidades interpretativas.</p><p>A primeira opção é a de vê-la como um testemunho da influência da</p><p>mitologia grega sobre a arte do Renascimento. Essa leitura é válida,</p><p>pois a estrofe trata de uma metamorfose, fenômeno do qual há muitas</p><p>referências nas lendas gregas, como a que conta como Júpiter se</p><p>converteu numa chuva de ouro para conseguir chegar até a alta torre</p><p>de bronze em que a linda princesa Dânae era prisioneira do própria pai,</p><p>que pretendia mantê-la virgem para sempre, pois ouvira uma profecia</p><p>segundo a qual seu neto o mataria. Desse encontro, nasceu</p><p>Perseu, que</p><p>mais tarde mataria não só o avô, mas também a Medusa.</p><p>Outra opção é entender a transformação do Adamastor em pedra como a</p><p>paralisia sentimental à qual, por vezes, se entregam pessoas que sofreram</p><p>uma desilusão amorosa. Enganados por alguém e desenganadas do amor,</p><p>elas acabam assumindo, simbolicamente, as propriedades das pedras:</p><p>se tornam frias, duras e imóveis. Assim, o texto de Camões pode servir de</p><p>alerta para seus leitores de todas as épocas, avisando-os para tomarem</p><p>cuidado com as ilusões que a paixão promete, pois o pagamento por elas</p><p>pode ser a esterilidade interna. Como se isso não bastasse, no final da</p><p>estrofe o amor ainda revela sua face irônica e cruel, pois o Adamastor,</p><p>agora mudado no Cabo das Tormentas, se vê eternamente cercado</p><p>pelas águas que o lembram de Tétis, ninfa que ela era. Não está na</p><p>mesma situação quem nutre um amor impossível por alguém que lhe</p><p>seja próximo, mas intocável?</p><p>26 UNIUBE</p><p>Essas últimas reflexões e indagações conduzem o leitor a perceber o</p><p>percurso que atravessou na leitura do episódio do Gigante Adamastor,</p><p>o qual é muito representativo de Os Lusíadas e de toda a obra de Luís</p><p>de Camões. Iniciando-se por referências a navegações, tempestades,</p><p>perigos, gigantes ameaçadores e profecias terríveis, o texto nos coloca</p><p>no pleno domínio do gênero épico. Depois da introdução de Manuel e</p><p>Leonor Sepúlveda, entretanto, o poema vai derivando para o gênero</p><p>lírico, embora mantenha exatamente a mesma estrutura geral: oitava</p><p>rima, versos decassílabos, rimas em abababcc. Esse procedimento</p><p>mostra como, na compreensão do poeta, os gêneros não precisam se</p><p>manter tão estanques como a antiguidade preconizava, o que faz dele,</p><p>de certa forma, um precursor da abolição das fronteiras entre os gêneros</p><p>à qual, muito tempo depois, irão se devotar tanto o Romantismo como</p><p>o Modernismo.</p><p>Na fortuna crítica do grande poema, há estudiosos que, diante da mescla</p><p>de características épicas e líricas no episódio do Adamastor, veem nele</p><p>também uma representação do próprio Luís de Camões e de todo o</p><p>povo português, já que o poeta, que também foi soldado, simbolizaria</p><p>os aspectos guerreiros e sentimentais de sua pátria. É o que diz, por</p><p>exemplo, Linhares Filho, apoiando-se também na interpretação de</p><p>Cleonice Berardinelli:</p><p>Quanto ao Adamastor, vemos uma identificação</p><p>épica e lírica dele com o poeta Camões e com o povo</p><p>português, como bem nos mostra a excelente análise</p><p>de Cleonice Berardinelli, “Uma leitura do Adamastor”, no</p><p>livro Estudos Camonianos. Depois de focalizar as duas</p><p>faces do gigante, escreve a analista:</p><p>Será demais insistir nas semelhanças entre o gigante</p><p>e o povo que o afronta? Ambos são capitães do mar,</p><p>ambos defendem com bravura o próprio solo, ambos</p><p>sabem fazer a crua guerra, mas também são ambos</p><p>sensíveis à beleza feminina, capazes de amar com</p><p>extremos e contentar-se com enganos de amor.</p><p>(LINHARES FILHO, 1980/1981, p. 95, grifos do autor).</p><p>UNIUBE 27</p><p>1.1.2 Camões lírico: uma enciclopédia da poesia ocidental</p><p>Assim como Os Lusíadas, a obra lírica de Camões revela um aspecto</p><p>enciclopédico, pois nela podem ser encontradas todas as formas poéticas</p><p>cultivadas desde a antiguidade grega até o Renascimento, assim como todos</p><p>os grandes temas desenvolvidos na poesia de todos os tempos e culturas.</p><p>A variedade formal da lírica camoniana é evidente a um primeiro olhar.</p><p>Nela, estão tanto as formas clássicas, antigas, como as medievais e as</p><p>mais recentes, identificadas com as inovações renascentistas.</p><p>Da Antiguidade Clássica, Camões utiliza formas como a ode, a elegia e a</p><p>écloga. Numa descrição sucinta, pode-se dizer que a ode é essencialmente</p><p>um poema cantado, o qual tem como tema a exaltação de uma pessoa,</p><p>uma ideia ou um acontecimento; seu tom é sempre alegre e cheio de</p><p>entusiasmo. A elegia, ao contrário, foi concebida como um canto fúnebre,</p><p>adequado para lamentar a morte de alguém ou qualquer tipo de perda</p><p>significativa; por isso seu tom costuma ser terno e triste. Já a écloga é</p><p>um tipo de poema dialogado, ambientado em ambiente campestre, no</p><p>qual pastores conversam, geralmente, sobre o amor. Na obra camoniana,</p><p>pode ser destacada a ode “Tão suave, tão fresca e tão fermosa”, a</p><p>respeito da beleza inigualável de uma ninfa; a elegia “À morte de D.</p><p>Miguel de Meneses, filho de D. Henrique de Meneses, governador</p><p>da Casa Cível, que morreu na Índia”; a écloga “Frondoso e Duriano,</p><p>pastores”.</p><p>A Idade Média também influenciou a escritura de Camões, como podem</p><p>atestar exemplos de formas que ele cultivou, como os versos redondilhos</p><p>maior (com sete sílabas poéticas) e menor (com cinco sílabas), o</p><p>vilancete (tipo de poema que parte de um mote, ou tema, retirado de</p><p>outro texto). Sobre essa faceta da lírica camoniana, que deve ter sido</p><p>elaborada à luz do aproveitamento que já tinha sido feito das práticas</p><p>poéticas tradicionais galego-portuguesas pelos poetas publicados no</p><p>28 UNIUBE</p><p>Cancioneiro Geral, que reuniu a produção da época do Humanismo, que</p><p>serviu de transição para o Renascimento, António Salgado Júnior diz que:</p><p>é constituída essencialmente pelo conjunto de poesias</p><p>que é costume classificar como consequência da</p><p>experiência poética tradicional portuguesa. Diz-se estar</p><p>na linha de desenvolvimento duma evolução que vem</p><p>dos cancioneiros trovadorescos, com passagem pelo</p><p>labor dos palacianos do Cancioneiro de Resende.</p><p>Assim parece. Certas poesias em que atuam pastoras</p><p>parecem reproduzir algo da pastorela primitiva. Aquela</p><p>outra da moça que quer ser marinera parece estar</p><p>na linha das cantigas de amigo de Martim Codax, por</p><p>exemplo. (SALGADO JÚNIOR, 2008, p. LXXXI).</p><p>As formas típicas do Renascimento mais importantes presentes na</p><p>lírica de Camões são o soneto e o verso decassílabo, que com ele se</p><p>identificou intimamente. Ambos são invenções da poesia italiana dos</p><p>séculos XIII e XIV e, já presentes na obra de Dante Alighieri e Francesco</p><p>Petrarca, exemplos máximos da época do Humanismo, foram adotados</p><p>fervorosamente pelos poetas associados ao Renascimento. Além de</p><p>Camões, talvez baste lembrar que William Shakespeare também</p><p>escreveu sonetos, sendo autor de uma série de 154 deles; quanto ao</p><p>verso decassílabo, trazido a Portugal por Francisco de Sá de Miranda,</p><p>que o conheceu numa temporada passada na Itália, tornou-se o estímulo</p><p>inicial para o estabelecimento da Renascença nas letras lusitanas, em</p><p>cujo contexto ficou conhecido como a “medida nova”, para diferenciá-lo</p><p>da “medida velha”, como era conhecida a redondilha, identificada pelos</p><p>novos autores com a Idade Média.</p><p>Sendo, seguramente, a mais conhecida das partes da lírica, os sonetos</p><p>de Camões, ao longo dos séculos, foram penetrando na consciência</p><p>letrada e mesmo na popular, que reconhecem como seus e dão o devido</p><p>valor a peças como “Amor é um fogo que arde sem se ver”, “Sete anos</p><p>de pastor Jacó servia”, “Transforma-se o amador na cousa amada”,</p><p>“Manda-me amor que cante docemente” e tantos outros. Nestes e outros</p><p>sonetos, Camões mostra seu magistral domínio da técnica sonetística e</p><p>Cancioneiro Geral</p><p>Coletânea da</p><p>poesia portuguesa</p><p>da época do</p><p>Humanismo e do</p><p>Renascimento,</p><p>organizada pelo</p><p>poeta Garcia</p><p>de Resende e</p><p>publicada em 1516.</p><p>UNIUBE 29</p><p>do verso decassílabo, moldando-os de tal forma à sua visão universalista</p><p>da arte, que servem de apoio para o desenvolvimento dos grandes</p><p>temas da poesia de todos os tempos. Entre eles, podem ser citados o</p><p>amor, a solidão, o exílio, a natureza e o destino humanos, a beleza da</p><p>mulher e da natureza, além do próprio fazer poético.</p><p>Um dos mais belos exemplos de sonetos de Camões é o de primeiro</p><p>verso “Um mover de olhos, brando e piedoso”, que passamos agora a</p><p>examinar.</p><p>Um mover de olhos, brando e piedoso,</p><p>Sem ver de quê; um riso brando e honesto,</p><p>Quase forçado; um doce e humilde gesto,</p><p>De qualquer alegria duvidoso;</p><p>Um despejo quieto e vergonhoso;</p><p>Um repouso gravíssimo e modesto;</p><p>Uma pura bondade, manifesto</p><p>Indício da alma, limpo e gracioso;</p><p>Um encolhido</p><p>ousar; uma brandura;</p><p>Um medo sem ter culpa; um ar sereno;</p><p>Um longo e obediente sofrimento:</p><p>Esta foi a celeste formosura</p><p>Da minha Circe, e o mágico veneno</p><p>Que pôde transformar meu pensamento.</p><p>(Idem, p. 301).</p><p>O primeiro aspecto a ser considerado na análise desse soneto é o</p><p>tema, que o liga a toda a grande arte renascentista. A razão disso é o</p><p>fato de que o poema é integralmente descritivo, tendo como objeto de</p><p>sua atenção uma mulher. Ele se torna, assim, um retrato de mulher,</p><p>Gesto</p><p>Na poesia do</p><p>Humanismo e do</p><p>Renascimento, a</p><p>palavra significa</p><p>“rosto”, “feições”.</p><p>Despejo</p><p>Ausência de pejo ou</p><p>pudor</p><p>Circe</p><p>Na mitologia grega,</p><p>era uma feiticeira,</p><p>especialista em</p><p>poções mágicas;</p><p>na Odisseia,</p><p>transformou</p><p>marinheiros que</p><p>acompanhavam</p><p>Ulisses em porcos.</p><p>O feitiço só foi</p><p>revertido quando,</p><p>ajudado pelo deus</p><p>Hermes, Ulisses</p><p>conseguiu obrigá-la</p><p>a libertá-los.</p><p>30 UNIUBE</p><p>que é uma das marcas mais evidentes da poesia e da pintura daquele</p><p>tempo. Para ficarmos apenas nas artes plásticas, observe que algumas</p><p>das obras pictóricas mais significativas da Renascença são retratos de</p><p>mulher, a começar pela mais famosa de todos os tempos, a Mona Lisa, de</p><p>Leonardo. Também devem ser citadas A dama do arminho, Ginevra Benci</p><p>e Beatriz d’Este, todas também de Leonardo; Retrato de Maddalena Doni,</p><p>Retrato de Elisabetta Gonzaga e La Fornarina, de Rafael; Retrato de uma</p><p>donzela e La bella Simonetta, de Botticelli. Excetuando-se as referências</p><p>a seus olhos, ao rosto e ao sorriso, a mulher retratada nas palavras de</p><p>Camões aparece principalmente por meio de suas qualidades morais</p><p>e intelectuais. Esse procedimento do poeta também coloca o texto</p><p>em diálogo com as pinturas citadas, nas quais os aspectos físicos das</p><p>retratadas devem ser interpretados também no sentido simbólico, já que</p><p>elas se tornam um modelo do ideal de mulher cultivado naquele tempo:</p><p>bela, nobre, justa, racional, serena, equilibrada. É o caso de o leitor se</p><p>lembrar de que esse é o mesmo perfil de mulher clássica atribuído à</p><p>Leonor de Sousa Sepúlveda e Tétis no episódio do Gigante Adamastor.</p><p>A pintura de um retrato, seja com tintas ou palavras, parte de um</p><p>procedimento básico: a observação de quem se deseja retratar. Essa</p><p>atitude, fundamental no soneto em exame, já serve também para revelar</p><p>um elemento constitutivo da poesia lírica camoniana, se bem que já</p><p>estava presente em sua epopeia o dom da observação. Na pena de</p><p>Camões, a poesia é uma atividade nutrida em larga escala pelo poder</p><p>de observação, tanto das pessoas, seus traços físicos e atitudes, mas</p><p>também da natureza, da cultura, da religião, da moral e de todas as</p><p>vicissitudes que acompanham o ser humano em sua passagem pelo</p><p>mundo. Nesse poema, todo o poder de observação do sujeito poético se</p><p>concentra sobre um indivíduo em particular, mas saberá destacar nele</p><p>elementos de utilidade universal. Esse diálogo entre o individualismo e</p><p>o universalismo, ou seja, entre a valorização de cada ser humano como</p><p>um mundo particular, entrelaçada com um interesse pelas condições que</p><p>se apresentam nas vidas de todos nós, faz parte da essência da visão</p><p>de mundo da Renascença.</p><p>UNIUBE 31</p><p>É preciso que o leitor se atente também para o que atrai o olhar do eu</p><p>lírico em primeiro lugar. Ao compor uma descrição, o pintor ou o poeta</p><p>precisam escolher um ponto de partida, ou uma direção segundo a qual</p><p>ela será organizada; pode ser de cima para baixo, ou da direita para</p><p>a esquerda, ou vice-versa. No caso do poema, claramente Camões</p><p>escolheu partir dos aspectos físicos, passando em seguida para os</p><p>morais. É por isso que aparecem na primeira estrofe alusões aos olhos,</p><p>ao rosto e ao sorriso de sua musa. A primazia, contudo, é dada ao olhar.</p><p>“Um mover de olhos, brando e piedoso”, portanto, começa com o poeta</p><p>olhando o olhar da moça. Assim como o retrato de mulher, o olhar é um</p><p>dos motivos artísticos mais importantes na retratística renascentista. É</p><p>claro que todos comentam o sorriso da Mona Lisa, mas ele só assume</p><p>sua força de mistério e ambiguidade por ser acompanhado por um olhar</p><p>que tem as mesmas características; além disso, Leonardo utilizou uma</p><p>técnica de composição, baseada na divisão da tela em áreas de mesma</p><p>extensão geométrica, que resultou na posição dos olhos da mulher numa</p><p>posição ao mesmo tempo elevada e central na pintura, o que causa</p><p>sobre o espectador a sensação de que ela o acompanha quando ele se</p><p>movimenta. Dessa forma, também na Mona Lisa o olhar da mulher se</p><p>torna um ponto focal de atenção, como ocorre, aliás, com todas as outras</p><p>pinturas renascentistas citadas anteriormente neste capítulo.</p><p>O olhar da mulher retratada no soneto de Camões é movente e “sem</p><p>ver de que”, ou seja, interessado em tudo que está ao seu alcance,</p><p>sem que ela o lance a partir de noções preconcebidas. Dessa forma,</p><p>ele simboliza a vida interna da personagem, pois, como diz a cultura</p><p>popular, “os olhos são o espelho da alma”, isto é, se os olhos dela se</p><p>movem, é porque sua alma se move, se agita, se interessa pelo mundo</p><p>e pelas pessoas. A maneira como isso é feito, entretanto, também chama</p><p>a atenção, pois o poeta usa dois adjetivos que oferecem ao leitor a visão</p><p>de alguém cheio de experiências humanas, de tal forma que aprendeu a</p><p>olhar para tudo com brandura, ou seja, com temperança, com equilíbrio e</p><p>32 UNIUBE</p><p>também com piedade. Já de início, portanto, a musa camoniana é descrita</p><p>em termos positivos, mostrando que o poeta está articulando a descrição</p><p>de um ser ideal.</p><p>O mesmo equilíbrio dado ao olhar é atribuído ao riso da mulher,</p><p>o que, significativamente, é feito por meio da seleção do mesmo</p><p>adjetivo “brando”. Como Camões é um poeta de vastíssimos recursos</p><p>vocabulares, o fato de repetir uma mesma escolha num poema tão breve</p><p>quanto um soneto não pode passar despercebido ao leitor; certamente,</p><p>trata-se de uma questão de ênfase, o que se confirma na terceira estrofe,</p><p>em que o substantivo “brandura” aparece para apresentar de maneira</p><p>clara essa característica essencial da retratada. Além disso, o riso</p><p>dela mostra sua natureza expansiva, pois, ao contrário do sorriso, que</p><p>é apenas uma expressão facial muda, o riso emite sons, marcando a</p><p>presença de alguém num ambiente. Como se vê, assim como Tétis, que</p><p>riu das ameaças do Adamastor, também a moça deste poema é capaz</p><p>de se manifestar no mundo com bom humor e expansividade, o que só</p><p>reforça o seu encanto.</p><p>Quanto ao seu rosto, é descrito de maneira a dar uma definição precisa,</p><p>se bem que concisa, de sua personalidade como um todo. Sendo</p><p>ao mesmo tempo “doce e humilde”, sintetiza harmoniosamente duas</p><p>qualidades que, no nosso mundo, raramente andam juntas: a beleza e a</p><p>humildade. Nós nos acostumamos a pensar que, quanto mais atraente</p><p>for uma pessoa, menos humilde será; não é assim a musa do soneto.</p><p>O fundamento desse seu proceder pode ser encontrado na sequência</p><p>da descrição do rosto, pois ele é apresentado como “de qualquer alegria</p><p>duvidoso”. Nessas poucas palavras, Camões consegue indicar ao leitor</p><p>a sabedoria que acompanha a beleza da moça, pois, certamente, o que</p><p>está dizendo é que ela já aprendeu a duvidar das alegrias humanas, por</p><p>ver que elas são passageiras, inconstantes. Nesse sentido, o soneto</p><p>dialoga com toda a poesia camoniana, na qual a efemeridade de tudo o</p><p>que se refere ao ser humano é um dos temas mais presentes.</p><p>UNIUBE 33</p><p>Como se vê, todas as referências a aspectos físicos da mulher nos levam</p><p>a perceber características interiores dela, pois a lírica camoniana não se</p><p>interessa por mulheres que sejam apenas bonitas; é preciso que elas</p><p>sejam também profundamente humanas, em termos de sensibilidade,</p><p>moralidade e inteligência, para atrair o olhar do sujeito poético.</p><p>Esse panorama se amplia nas próximas estrofes, dedicadas a descrever</p><p>o comportamento da musa no mundo. A técnica preferida pelo poeta</p><p>para fazer isso, na segunda e na terceira estrofes, é da antítese, que lhe</p><p>permite harmonizar dados contrários, de tal modo que</p>