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<p>JOSE CLAUDINO DE UM VIAJANTE Prefácio P. M. BARDI Fotografias RÔMULO FIALDINI Ex-libris I'LL BE OK I'LL JUST GET MY ACT TOGETHER I'LL BE OK D.R.C.</p><p>PREFÁCIO Conbeço Nóbrega depois de sempre, como amigo e como instituição no setor no qual me aventurei. antiquariato, uma profissão de muitas emoções. Vocação? Não sei. Pode ser que se tome aquele por acaso, gosta-se, e por ali se vai, buscando e farejando, descobrindo e sopesando, procurando entender obras de arte e não quinquilbarias, curiosidades, vultosas ou minimidades. Dificil explicar. Se antiquário não se interessa por tudo, e um pernóstico que se restringe ao circulozinbo de uma ou outra area geográfica e, até, restrita a um setor de objetos ou talvez de um São, estes, colegas exclusivistas, não como entendo. Cada um de nós, seja dos grandes ou dos que mexem no tem sua bagagem de andanças, espertezas, vantagens, ilusões e muitas desilusões, segredos e tudo quanto partilba uma profissão. Quando fui chamado de Roma pelo Sr. Assis Chateaubriand, para dar a São Paulo Museu de Arte, era antiquário e, devo dizer, combinei com fundador que aceitava convite com a condição de continuar a exercer minha atividade, como, de resto, continuo. Vício? Pode Mais de gabinete do que de campo, ou de campo em raras No meu "Studio em Roma, salas de exposições periódicas, rica biblioteca, laboratório de restauro de pintura, escultura e gabinete de análise química, fotografia e radiografia, pode-se dizer: um antiquário executivo. Vindo ao Brasil, as primeiras visitas, naturalmente, foram para meus colegas. Em São Paulo eram poucos, para não dizer raros: Francisco, Moisés, algumas lojas de "ferro-velho". Para mim, veterano de autênticas facanhas, como a da compra da Colombia de Luca della Robbia, bronze dourado do cibório da Igreja de Peretola, desaparecido no fim do século XIX, obra que, logo depois da compra, levei ao chefe do Patrimônio de Florença, e que esta agora com meu nome de doador no "Museu del para mim, então, vindo de fatos deste que encontrava na futura era de uma diversidade tal que não digo me assustasse, mas obrigava a me entrosar com um ambiente novo, de uma antiga arte que precisava estudar, entender e justificar. Pouco se sabia do Barroco brasileiro na por falta de documentação, relegado a simplista fórmula "arte genericamente definida, eco e remanejamento das reformulações plásticas da Europa seiscentista. Como a Pinacoteca do Masp era projetada para a "arte a "arte tornou-se uma diversificação. Comprava Rafael, Ticiano, El Greco, Bosch, Velazquez, Delacroix, Manet, Picasso, Max Ernst etc. para Museu e, ao mesmo tempo, comprava para mim duas esculturas do no casarão de Florestano, na Consolação. em seus leilões, adquiria objetos curiosos para os quais dava lances, tanto que Florestano, indignado por dar lances para retrato do poeta Alberto de Oliveira, de Belmiro de Almeida, doou-me a esplêndida pintura para a Pinacoteca em formação. Poderia me alongar nestes contatos com os raros antiquários e interesse que atribui seja a arte como a vida brasileira, que tratei em vários volumes, entre os quais, me parece justo lembrar, a "História da Arte editada pela "Melboramentos" Estes breves acenos ao meu curriculum são aqui inscritos para um dizer autorizado a apresentar as do colega Nóbrega. Por outro lado, ele se dirigiu ao Bardi porque com ele transacionou muitas vezes, com a cordialidade e a amizade que e uma das suas qualidades. 5</p><p>Nóbrega é, antes de tudo, o que apelidamos de companheiro, franco, incapaz de contar uma história por outra. Se, as vezes, afirma um caso que pode ser discutível, seu rosto se orna com um dos seus sorrisos profissionais, participando da dúvida. Uma vez descubro na sua loja uma papeleira de jacaranda de nenhum estilo João ou Dona Maria: forma severa, volumosa, pingentes de ferro nas gavetas. O namoro e fulminante, certo de descobrir um móvel do Seiscentos, nordestino, maravilboso. Compro na O Nóbrega me contou então, a crônica do encontro numa aldeia do Rio Tocantins. Mas quantas coisas comprei do Amigo, e também que aprendi não se conta: seu viajar incansável pelas regiões mais antigas da Colônia que ele descreve neste livro. É uma junção a Memória, de que salvou inúmeras partilbas da arte nacional, e não sei quanta documentação preciosa, também paulista, pois, quando as famílias se desfazem das "inutilidades", chamam Nóbrega. Foi dele que comprei o bloco dos papéis, do Antônio Prado. Acabo escrevendo uma relação de negócios e não uma apresentação, confiando que o Nóbrega me substitua no descrever sua personalidade. O que transparece na sua prosa simples, acontecimentos de um antiquário que, mostrando sua vida, decifra perfeitamente seu caráter invejável, seu talento e sua P. M. Bardi 2 Busto relicário, Santa Úrsula, terracota, São Paulo, Coleção do autor. 6</p><p>POR TERRAS DE MATO GROSSO Após alguns anos de experiência no campo da compra e ven- época e pelo peso só podia ser marfim, e marfim de Goa! Dei da de tendo percorrido as cidades litorâneas do pela imagem seis contos de réis pois eu ia vendê-la, na certa, ciclo da no nordeste e palmilhado as famosas por dez. Era uma Santa Rita dos Impossíveis. vilas históricas de Minas, viajei finalmente, em 1951, para a Posso afirmar que, em casas de classe média e alta, havia pra- capital de Mato Grosso Bom Jesus de Cuiabá. Confesso taria; pelo menos uma pequena bandeja e copinhos de prata que estava um pouco amedrontado, porque o Amado, velho para servir o que era ralado em língua de pirarucu. antiquário de Santos, por conta de quem eu viajava, me O dinheiro estava acabando e o suprimento não chegava. To- aconselhara a não olhar com brejeirice para as mulheres, não dos os dias comprando 30 a 40 mil cruzeiros, passava no Ban- nadar nos rios devido às sucuris e não me afastar das cidades CO do Brasil e nada da ordem de pagamento chegar. Parei um para não ser atacado por índios. pouco de andar pela cidade e plantei-me no hotel. No dia se- Embarquei num DC-3 às sete horas da manhã, em Congo- guinte à tarde aparece-me um filho do amigo Salomão: nhas. Ao cruzar o rio Paraná, atrasei o meu relógio uma hora. "Trago aqui duas peças de D. Aquino para você ver o que Depois de pousarmos em Campo Grande, e Aqui- são, mas ele quer por escrito. Um copo de prata e uma dauana, chegamos às dezessete horas à velha cidade. salva". Examinei o copo de prata, vi que era todo batido à O hotel principal estava lotado, mas havia um novo, de pro- mão, sem contraste e a asa tinha sido aplicada posteriormen- priedade do cearense Arão Bezerra, na rua Coronel Pedro Ce- te. A salva, muito bonita, era francesa, com cabeça de Miner- lestino, antigo prédio dos Correios e Telégrafos; aí instalei-me va, do fim do século passado ou princípio deste. Escrevi então no andar. Um antiquário, chegando a uma velha cidade, para D. Aquino: "Copo de prata regional brasileira, asa pos- tem sempre ótima impressão e esperanças. Após o jantar, dei sivelmente aplicada. Salva de fino lavor, marca francesa, ca- uma volta pela Praça Alencastro; não vi índios e sim belas beça de Minerva, fim do século mulheres, fumando cigarros americanos. Povo risonho e aco- O rapaz era funcionário dos Correios e Telégrafos e pessoa lhedor, parecido com o carioca, é o cuiabano. Ali mesmo, no de confiança dos padres. Não demorou uma hora e D. jardim, fui apresentado a uma senhorita cujo pai, Salomão Aquino fazia questão de conhecer "o sábio antiquário" na Nunes Ribeiro, era neto do Barão de Poconé. No dia seguin- linguagem que a mim foi transmitida pelo portador. Segui te, fui levado à presença dele que me conduziu às casas das acompanhando o rapaz. D. Aquino, sacerdote modesto, famílias mais antigas. Fui comprando coisas preciosas: louças não morava no lindo Palácio Episcopal. Estava instalado no "Cia. das Indias", móveis, prataria. Lembro-me da casa do velho seminário, numa sala e quarto. Eu sabia diversos Odorico Tocantins, procurador do Marechal Rondon, ali bem netos de D. Aquino, de cor. Sabia ser ele o grande orador no centro, no início da rua 13 de Maio. do Estado Novo, ex-Presidente de Mato Grosso e pertencer Aluguei um depósito guardar mesas de cancela e dos es- à Academia Brasileira de Letras, mas não podia imaginar tilos D. José, D. João V D. Maria. Dias depois, telegrafei ao que fosse um homem tão modesto. Depois de cumprimen- Sr. Amado pedindo mais quinhentos mil cruzeiros. Vascu- tá-lo, beijando-lhe a mão, foi logo dizendo que comprara a lhado o centro, não precisava mais da ajuda do amigo Salo- bandeja em Paris e o copo fora de seu pai, natural da anti- mão. O povo mais humilde, da periferia, vinha à minha pro- ga Meia Ponte, em e que mandara um prateiro cura no hotel porque correra a notícia de que eu havia com- locar a asa há anos, porque era mais fácil usá-lo com água prado uma mesa velha por 10 contos de réis! para escovar os dentes. Fiquei logo muito gente, porque a maioria Disse ao grande prelado que morava em Santa Catarina, dos viajantes ia lá vender títulos de capitalização, seguros justamente em São José, terra do Cardeal Câmara. Pediu- sugar o povo. E eu era um viajante maravilhoso! Levava di- me, então, um favor: "Eu ocupo, na Academia, a ca- nheiro ao povo, em troca de objetos velhos, imprestáveis ao deira de Lauro Müller e queria que o distinto amigo colhes- ver da maioria. se para mim, em Itajai e Florianópolis, através da tradição Colheita grande fiz eu nos bairros do Baú, do Porto e da Prai- oral, dados sobre o grande estadista". nha. Estou escrevendo trinta e um anos depois e não posso es- - "Pode D. Aquino, que sua vontade será quecer certos episódios. Chamado ao bairro do Baú, uma se- cumprida fielmente" nhora foi comigo, contando-me que possuía uma cômoda bi- Foi servido um chá e em seguida D. Aquino chamou pa- secular e precisava vender a peça por necessidade premente dre-secretário para trazer umas jóias para serem avaliadas. sua mãe, com noventa anos, estava enferma e não havia di- Tratava-se de uma pesada cruz pastoral com grossa corrente nheiro nem para a farmácia... Vi a peça e fiquei encantado. e mais uma riquíssima caixa contendo um colar de ouro e Tratava-se de cômoda do meado do século XVIII, com gran- autênticas esmeraldas, com os seguintes dizeres: "A D. de influência holandesa: de 15 centímetros de al- Aquino Correia, lembrança do sempre amigo, Arrojado Lis- tura e feita dentro da própria casa; precisei mandar chamar boa - Roma, 1922" um carpinteiro e um pedreiro para tirarem os portais, a fim Depois da avaliação, fui apresentado ao distinto Padre Nel- de poder sair a peça da casa. O móvel em questão foi vendido son Pombo, diretor do seminário, e, desde então, todas as à Exma. Sra. D. Stella Ramenzoni, em São Paulo. portas estavam abertas para mim. Outra passagem muito curiosa: no Porto, uma velhinha cha- No dia seguinte, recebi a ordem de pagamento e fui visitar a mou-me para mostrar um oratório; não podia vendê-lo por Igreja de São Gonçalo, no Porto. Vi as sepulturas dos pais de ser uma recordação de família, mas "trocava" uma das ima- D. Aquino e falando com o vigário, um simpático padre po- gens, desde que o preço lhe conviesse. No primeiro olhar eu este manifestou desejo de vender-me uma lâmpada de divisei uma santa freira com resplendor e palma de ouro! Pe- prata e uns castiçais também de prata, alegando que a lâmpa- gando a imagem em minhas mãos, vi que a pintura era de da há muitos anos não era acesa, porque comprara uma pe- 9</p><p>quena, com luz vermelha, para iluminar o Divino Espírito Em vista do cumprimento da promessa, fiscal bandeou-se Santo. Portanto, a lâmpada não era mais votiva. Comprei o para o partido do Coronel Celestino, dando assim um exem- par de castiçais "Império" e também a lâmpada colonial esti- plo de obediência e gratidão. lo D. José I. O padre polonês ficou muito eufórico em pegar Mas, voltemos ao assunto das Quando regressei aquele dinheiro para aplicar num móvel para a sacristia e dis- ao hotel, tive longa conversa com Arão Bezerra, um bravo fi- se-me que na hora do almoço ia falar com seu compatriota, lho de Baturité, homem direito, mas muito violento. Ao lado Padre Wasiki, que era vigário-geral e certamente devia ter do hotel morava um velho médico que vinha sempre nos dar muita coisa fora de uso, na Matriz do Bom Jesus. um dedo de prosa. Comprei na rua Barão do Melgaço uma Efetivamente, às quinze horas estava na sacristia da Matriz, linda sala "Luiz Felipe" (os antiquários chamam esta mobília com o bom Padre Wasiki. Muito cauteloso e falando em de Pé de Cachimbo). Visitei, na parte alta da cidade, O Sr. montar um museu, como de fato o fez anos depois, vendeu- Lulu Cuiabano, homem de muita idade, mas lúcido, que me me apenas um gomil e lavanda de prata (existiam diversos), mostrou uma mesa vinda de Vila Bela, segundo ele, em lom- um belo crucifixo e uma banqueta de estanho do século bo de burro. Linda mesa de encosto com boa saia. Mas o sen- XVIII. sato velhinho jamais a venderia, alegando ser herança dos Padre Wasiki era um professor salesiano, alto, magro e de Outra família importante que possuía muitas obras de olhar penetrante. Incrível o poder da Fé! Esses salesianos, arte era, no Porto, a dos Matos. Outro homem que gostava de acostumados ao conforto europeu, altamente preparados, conservar os objetos antigos era o Coronel Baringa - mas a deixaram suas terras, seus entes queridos e vieram para cen- maioria vendia, porque a crise de dinheiro era grande e obje- tro da América do Sul catequizar índios selvagens, fundar tos de arte não se comem. igrejas e colégios, realizando o sonho de D. Bosco! Voltei a trabalhar no bairro do Baú e um senhor vendeu-me Dei ao Padre Wasiki uma orientação no sentido de escolher as um outro gomil e lavanda "D. Maria" e uma grande coleção peças mais raras para o futuro Museu de Cuiabá. Material não de moedas de cobre, sendo uma (carimbo primitivo faltava. Havia aquela grande e pesada campainha das Mis- de Pedro I) e muitas cunhadas em Cuiabá, Letra C e outras datada de 1788 com o nome do fundidor por extenso. oriundas de Goiás, letra G. Sempre tive uma sorte Havia aquela maravilhosa imagem de Santo Elesbão, impera- no Baú! Voltei muito alegre para o hotel e nova surpresa me dor da Etiópia. E um par de castiçais datado de 1803. Além esperava. O fazendeiro Albernaz, que era vizinho, chamou- dos gomís, lavandas, tocheiros de prata em quantidade e me para vender uma linda prataria. Um COCO cabo mui mais os lampadários "Sabará" e as famosas lanternas "D. comprido, um defumador, peças extremamente raras e mais João V". Era, portanto, uma grande variedade de peças de um arsenal de copos, salvas e castiçais de prata. O nome Al- primeiríssima linha que, arrumadas com gosto e bom senso, bernaz é muito comum na antiga capital de Goiás e COCO de se transformariam num belo Museu de Arte Sacra. prata, usado para tirar água do pote e encher os demais copos Despedi-me do Padre Wasiki e rumei para o Rosário. Neste de prata ou vidro, cheirava-me a prata de Goiás. Conheci local, depois da descoberta da região por Pascoal Moreira Ca- uma filha do Sr. Albernaz na Igreja do Rosário. Era professora bral, o sorocabano Miguel Sutil garimpou arrobas e arrobas e muito ligada aos padres. Dias depois, passei na Casa Laraia de ouro! Aventureiros surgiram de todos os recantos e logo e comprei um litro de para oferecer à distinta em seguida, em 1729, foi construída a Igreja N. do Rosá- professora; mas tive o cuidado de pedir licença ao Sr. Alber- rio, dedicada aos homens pardos. naz. Por falar em Casa Laraia, devo dizer, de passagem, que O atual vigário, um lusitano delicado e cerimonioso, mos- fui procurado por este senhor e esposa, esta, filha de um de- trou-me algumas peças da fundação do templo: um peque- sembargador de Pernambuco lotado no Superior Tribunal de no lampadário de prata, cujas correntes pareciam fitas, eu Mato Grosso. O casal colecionava Laraia faleceu comprei. Depois, cedeu-me alguns castiçais de madeira rica- muito moço e a viúva transferiu-se para o Rio de Janeiro. mente entalhados e dourados do século XVIII. Adquiri tam- Continuei mais uns dias em Cuiabá comprando coisas mais bém alguns paramentos comuns que, no entanto, hoje valem "uma nota": compo- Recebi outro chamado para comprar móveis na rua Barão do teiras de cristal e opalinas, manguitos em quantidade (Man- Melgaço e, ao passar ao lado da Matriz, vi a casinha humilde guito é um castiçal de 25 cm. de altura com uma pequena onde nasceu o General Dutra. Uma placa de bronze lembra: manga oval na parte de cima. Na parte alta desta, um metal "Nesta casa nasceu o Gal. Eurico Gaspar Dutra, em 1884. era fixado para sair a fumaça. Tirava-se fora a manguinha e Homenagem do povo." O Gal. Dutra insigne Ministro da punha-se a vela no castiçal; à proporção que fosse a vela gasta, Guerra e Presidente da República (1946-1950) uma mola do fundo empurrava-a para cima). era de família humilde. Seu pai, oriundo de Pilar de Goiás, Cuiabá, cidade muito católica, possuía em quase todas as ca- veio para Cuiabá tentar a vida e conseguiu um emprego de sas pequenas e preciosas imagens. As que eram do século fiscal da prefeitura. O menino Eurico, muito inteligente, es- XVIII, não deixei escapar uma só! Adquiri todas. Visitei uma tava terminando os preparatórios no Ginásio Cuiabano quan- senhora inglesa que fora companheira de um sobrinho do Ba- do Coronel Pedro Celestino, chefão político da rão de Poconé Sr. Manuel Nunes Ribeiro. Possuía pouca ca e homem de acrisoladas virtudes, deu uma passagem ao ra- coisa, mas assim mesmo vendeu-me uns pratos brasonados. paz e um cartão de recomendação para seu amigo, Barão do No dia seguinte, hospedou-se no hotel um senhor gaúcho Rio Branco, no Rio, a fim de que fosse o rapaz matriculado que comprara uma grande gleba de terra em Diamantino e ia na Escola Militar; essa era de fato a vocação de Eurico. Palavra tomar posse dela. Arão Bezerra aconselhou-me a não perder a de um Coronel não volta atrás e foi moço cuiabano matricu- oportunidade que se me oferecia em conhecer aquela cidade lado mesmo, fazendo brilhante e honrada carreira militar. do norte, pois era Anuí à vontade do hoteleiro 10</p><p>5 Coleção de oratórios de viagem, adquirida em Goiás e Mato Grosso. Vendida ao Sr. João Mós. 5 e parti com o gaúcho. Passando por Rosário Oeste, paramos Rumei para Diamantino e, ao chegar, tive a impressão de ter num cartório e o serventuário necessitava de duas horas para voltado a viver dois séculos atrás. Tudo exatamente como era fazer busca nos livros, a fim de obter as certidões que meu na Colônia. Casario muito velho! Todo antiquário adquire o companheiro de viagem necessitava. Resolvi, então, visitar a mau hábito de olhar para dentro das casas dos outros... e na igreja local e aí conheci o vigário, um velho padre passagem eu fui vendo coisas incríveis!... Mesas e oratórios Disse-lhe o motivo de minha visita e o homem foi abrindo ar- monumentais, cômodas e armários, todos de época! O cami- mários da sacristia e tirando coroas, cálices e uma rica salva de nhão ia passar três dias em Diamantino e eu já havia combi- esmolas. Acondicionei tudo numa caixa e levei para o cami- nado com o gaúcho a viagem de volta com os móveis. Fica- nhão. Toda a prataria de Mato Grosso, principalmente a cha- mos hospedados numa pensão, única existente no lugar, e mada religiosa, é do século XVIII. Somente a prataria de duas horas depois eu já era disputado por todos os habitantes adorno como salvas, castiçais, pratos, paliteiros, é que tem a da cidadezinha. Encontrei-me com um negociante paulista, o marca 10 dinheiros, do Porto ou Lisboa. maior da cidade, e este avisou-me: - "Não tome água sem 12</p><p>pingar uma gota de iodo. Repare que Diamantino é a cidade dos papudos". De fato, nunca vi tanto papudo. Havia cida- dão com três papos dependurados. Na igreja local, nada de antigo consegui, pois um incêndio, em 1906, queimara tudo. Travei conhecimento com o dele- gado de polícia que, não tendo o que fazer, dedicava-se à ca- ça de onças. Levou-me à casa de um escrivão e lá comprei uma linda papeleira de jacarandá. Diamantino deu ouro em penca no século XVIII e princípio do XIX, mas depois veio a decadência das minas e foi desco- berta outra riqueza na região o diamante ali perto, em Alto Paraguai. No segundo dia de compra, à tarde, resolvi parar, com medo de não caber a mercadoria no caminhão. Fiquei adquirindo somente moedas e santinhos lindos. No terceiro dia o gaúcho chegou com o caminhão, deixara alguns homens de sua con- fiança à testa da grande propriedade. Dormimos. No dia se- guinte recolhemos toda a pesada mercadoria e voltamos para Cuiabá. Chegando ao hotel, Arão Bezerra, ao ver o caminhão nas nu- vens, exclamou: "Eu não lhe disse?" Descarreguei no de- pósito que ficava na rua de baixo, "Antônio em ho- menagem ao herói de Dourados. Os cuiabanos chamavam Rua de Cima, a do hotel. Mas nas placas, era Pedro Celestino, grande chefe político da República e avô do grande ho- mem público de Mato Grosso Fernando Correia da Costa. Naquele dia atendi ainda a um chamado do diretor do Giná- sio Salesiano, um padre alto, bonitão, que já deve ser bispo porque além de ser uma personalidade marcante, era culto, trabalhador e muito envolvente. Certa vez, viajando comigo entre Aquidauana e o avião entrou num vácuo violento e uma pasta pesada sobre sua cabeça; foi preciso recorrer a socorros de urgência. Este padre vendeu-me várias caixas de azulejos, daqueles policromados e em alto relevo. Fui ao Expresso Cuiabano e contratei dois caminhões para levar-me a Santos com a mercadoria, mas à tarde recebi outro chamado, agora para a Prainha, a fim de comprar da família Valladares um banco "de bem colonial, uma arca e alguns lampiões. No dia seguinte parti para Santos, cheio de saudades daquela terra hospitaleira, torrão bendito do Brasil caboclo, terra de 9 um povo sem maldade, de um patriotismo sadio, que deu à nossa Pátria homens de grande valor como Joaquim Murti- nho, Antônio Azeredo, Antônio João, Paula Nei, Eurico Gaspar Dutra, D. Francisco de Aquino Correia e o incompa- rável Cândido Mariano da Silva Rondon. Na atual geração: Jânio da Silva Quadros, Felinto Müller e Roberto Campos. O caminhão da frente, em que eu viajava na boléia, aproximava-se de Rondonópolis e na minha mente rondava uma pergunta: "Voltarei a Cuiabá?". De conformidade com a crença popular, deverei voltar porque comi pacu, bebi água na Prainha e fiz outras travessuras.. Passamos por Rondonópolis, Jataí, Rio Verde, Uberaba, Ri- beirão Preto, Campinas, São Paulo e finalmente Santos, de- pois de cinco dias de viagem; saindo às sete e parando às vinte e duas para dormir. O Sr. Amado tremia de emoção ao ver os grandes caminhões lotados. A miudeza ele já havia recebido pela Cruzeiro do Sul, como carga. Levamos dois dias acertando as contas da viagem e no final lucrei cento e setenta e sete mil cruzeiros, quantia razoável para a época. Missão cumprida! 9 Armas do século XVIII. Relíquias de Cuiabá. Coleção: Família Pires Martins. 15</p><p>NOVAMENTE MATO GROSSO Um ano depois voltei a Mato Grosso. Desta vez, pelo sul. sa, eis que entra o cearense com um rapaz novo e moreno, ti- Desci do avião em Campo Grande e rumei para a velha Mi- po boliviano. Mandei que o garção lhes servisse o café. O cea- randa, cidade que abrigou as tropas do Exército Imperial, an- rense estava muito apressado com um negócio do outro lado tes da invasão do território paraguaio. do rio. Fiquei bem instalado no Hotel do Comércio. Cidade pobre, A família do rapaz ia mudar-se no dia seguinte cedo e preci- começava a progredir devido à exuberância das suas terras pa- sava vender um oratório com santos e coroas de ouro. Negócio ra a pecuária. Rodando pela cidadezinha, comprei do antigo tentador, pois havia também moedas de ouro! Mandei-os es- prédio da alguns lampiões com as armas da Socie- perar, fui ao quarto pegar mais dinheiro, mas, não sei por dade e dois consoles de jacarandá e mármore. Adquiri tam- quê, peguei também o revólver. Ao sair do hotel, outro ele- bém alguns santinhos e, dos poucos negociantes, consegui mento, dizendo-se dono da canoa, acompanhou-nos. Seis e patações de 960 e 640 réis. Comprei ainda vários potes de far- meia, o sol prestes a despedir-se e eu descendo a ladeira are- mácia, daqueles de palmeirinhas, desenho de um padre bra- nosa que dava para a praia, em companhia daqueles desco- sileiro que morou em Paris. Passei somente três dias em Mi- nhecidos. O cearense foi logo dando ordens ao canoeiro para randa. Viajei a seguir para Nioac, onde comprei muita louça desamarrar a canoa. As últimas lavadeiras estavam indo em- "borrão" e armas antigas, inclusive aquelas de boca de sino e bora e grandalhão da canoa não dava volta ao nó! O rio ali fuzil de pedra. Segui depois para Guia Lopes e Bela Vista. tem trezentos metros de largura e precisava ser atravessado Nesta, adquiri nova coleção de potes de farmácia, agora com ainda com o dia claro. Virei-me para o cearense e disse-lhe: desenhos alusivos a Hipócrates, Pasteur... Atravessei o rio - "Não you mais, não faço negócio de noite". E, num Apa e passei ao Paraguai. Só vi pobreza. peto, comecei a subir a rampa de areia. Quando olhei para Juntei todo o material encontrado e demandei Aquidauana, trás, os dois rapazes vinham de faca, como loucos, para cidade de mais riqueza, mas escassa de Cobri as alcançar-me. Mesmo andando depressa, saquei o 38 e dei três despesas com a aquisição de moedas. Despachei tudo para o disparos para o chão.. A areia cobriu os vultos dos dois ma- Sr. Amado pela Cruzeiro do Sul e fui a landros, que fugiram aterrorizados. Corri ao hotel, paguei a Bela e histórica cidade à margem do indolente rio conta, dizendo que ia aproveitar um caminhão para Albu- Paraguai. Cidade ocupada pelas tropas paraguaias no querque. Fui a pé até uma pobre pensão. Alegando doença, pio da guerra, mas retomada pelos brasileiros sob o comando paguei o quarto adiantado e pedi ao dono favor de comprar do Gal. Antônio Maria Coelho. Hospedei-me no Hotel Veni- para mim uma passagem aérea para Cáceres, no primeiro zellos, o melhor da cidade na época. avião da manhã. De posse da passagem, deitei-me, mas não O proprietário do hotel possuía outra casa cheia de antigüida- pude dormir. O golpe era bem bolado: quando a canoa che- des. Vendeu-me todas as peças: mesas vitorianas, opalinas, gasse ao centro do rio seria noite. O grandalhão me daria uma cadeiras inglesas "Sheraton" e peças "Cia. das Pedi bordoada com remo e outro tomava-me o dinheiro. Joga- outra ordem de pagamento, pois comprei também da família riam meu corpo no rio e, de volta ao hotel, diriam ao dono: Mangabeira móveis ricos, prataria e cristais "Baccarat". "Viemos buscar a mala do viajante e pagar a conta do ho- Fui à Base Naval de Ladário onde adquiri extenso lote de gar- tel. Ele está no caminhão esperando". Ninguém iria descon- ruchas de carregar pela boca, em vários formatos: de um, fiar, pois o cearense era tido como pessoa honesta pelo dono dois, três e até quatro canos. Belíssima coleção de armas. do hotel. Dormi regularmente e no dia seguinte, às quinze Pedi ao dono do hotel, Venizellos, que me indicasse um ra- horas, chegava a Cáceres, antiga Vila Maria. Instalei-me no paz de boa família que conhecesse bem a cidade e o povo, a hotel e ao sair à noite vi que era uma cidade média, com vida fim de facilitar o meu trabalho. Falou com um moço do Cea- noturna, sede do Batalhão de Fronteira e residência de rá, que trabalhara na portaria de seu hotel, casado, com dois prósperos fazendeiros. Passando pela rua principal vi uma filhos. O cearense foi-me apresentado e gostei do tipo, princi- enorme placa: "Ao Anjo da Caridade" palmente da maneira delicada com que se dirigia às pessoas. Informando-me, soube que a casa comercial era muito antiga Começamos a trabalhar. Descobrimos, nas famílias mais ri- e que importava tudo da Europa. O dono falecera de há mui- cas, até mesmo quadros com pinturas históricas. Nas casas po- to. Um dos filhos, Dr. Tomás Dulce, tocava a casa. No dia se- bres compramos muitas imagens. De um velho ourives, oito guinte certifiquei-me de que, de fato, a casa devia ter sido moedas brasileiras de ouro do Império e da República. En- fundada no fim do século passado, pois havia muita merca- contramos arcas, algumas de "tremidos". doria da época, como globos de todo tipo para lampiões de Mas o dinheiro acabou e fiquei três dias à espera da ordem. querosene, fechaduras para arcas, dobradiças, camas de latão, lamos ao Banco do Brasil e a resposta era sempre negativa. No filtros antigos, mangas, louças inglesas. Outro fato importan- dia seguinte, à tarde, fazia muito calor e eu tinha saído do te: a casa estava liquidando toda a mercadoria, tida como fora banho quando entrou correndo o cearense: - "O dinheiro de moda. Vesti-me e corri ao Banco do Brasil: 500 mil cruzei- Comecei bem. Percorrendo depois a cidade, não deparei ros. Reparti o dinheiro pelos bolsos e rumei para o hotel, pe- com nenhum móvel antigo. Nas casas ricas, dos Drs. Hum- dindo ao cearense que me procurasse no dia seguinte às oito berto, Tomás e Alfredo Dulce, filhos do fundador de "O da manhã. Chegando ao hotel, só encontrei a mala de rou- Anjo da havia muitas peças de Sèvres, Murano, pas, pois nos dias de folga tinha despachado tudo, bem em- Limoges, coisas do fim do século passado, que fui compran- balado. Abri a mala, tirei dela toda a roupa e coloquei um do. Adquiri de um farmacêutico, depois deputado estadual e jornal no fundo; por baixo, guardei o dinheiro, ficando só que tinha um filho moço muito simpático de nome José, di- com uns vinte e poucos mil cruzeiros no bolso. Fechei a mala versos potes de farmácia. Logo tive que solicitar mais dinhei- à chave. O jantar esperava-me. No refeitório, já na sobreme- ro. Eu ia despachando tudo, como carga, pela Cruzeiro do 17</p><p>Sul. Aguardei uns três dias pela ordem de pagamento e, "Quanto o vigário pede por esse lampião?" perguntei. mo não tinha o que fazer sem dinheiro, jogava xadrez no bar "Tem que valer, pelo menos, quatro mil cruzeiros" do bom amigo Davi, sito na praça principal e respondeu o vigário. pela elite local. Davi convidou-me para almoçar quibe e co- "Não, frei, vale mais. Tem onze quilos de prata. A 600 nheci Dom Miguel, seu pai, palestino que viera moço tentar a cruzeiros o quilo, já são seis mil e seiscentos cruzeiros. Mas vida em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. Lá se casou e tem a mão de obra, a Dou-lhe onze mil cruzei- mudou-se em 1924 para o Brasil, pois a vida da Bolívia es- ros" quentava. Montou uma padaria e foi progredindo. Consti- "Então, passe o dinheiro. Se o chamei para vendê-la é tuiu uma família admirável. porque vi seus negócios em Cáceres e já sei que é pessoa ho- Recebi a ordem de pagamento e continuei a trabalhar. Um nesta". moço chamado Marino, filho do Dr. Tomás Dulce, vendeu- Paguei os onze mil e com aquela raridade debaixo do bra- me uma peça curiosa: um pequeno canhão de bronze que servia para dar salvas, avisando à população a chegada de na- Insisto na necessidade de as autoridades eclesiásticas introdu- vios. Consegui também jóias antigas. Tive a satisfação de co- zirem em seus seminários um curso de arte. Não é possível nhecer o Sr. Alfredo Dulce, pessoa amável, grande fazendei- que um patrimônio como o da Igreja fique a mercê de pes- ro, homem de proa na cidade. soas completamente leigas! Certa feita, num subúrbio de São Passando pelo Correio, uma senhorita loira chamou-me as- Paulo, um aventureiro principiante perguntou ao vigário se sim: "O campeão de xadrez". Havia na repartição um te- não havia metais velhos para vender. O pároco levou o ho- legrama do amigo Amado: "Não compre mais potes vg não menzinho a um cômodo em cima, no coro. Lá havia um sou boticário". Fiquei contrariado, pois viajei por todo o país monte de castiçais de metal e de bronze e no meio muita coi- e nunca tinha visto potes tão bonitos! sa de prata de lei, que foi vendida a cem cruzeiros o quilo! Meu velho amigo Antônio Frutuoso Amado provinha de Voltei a Cuiabá e visitei Guia e.Coxipó da Ponte. Comprei, Coimbra. Oriundo de família modesta, foi matriculado num em Guia, um pequeno e lindo oratório de viagem. Mas eu ti- seminário mas não chegou nem ao curso de teologia. Arre- nha em mira visitar a velha Chapada dos Voltan- piou carreira logo no início da filosofia e veio aventurar no do ao hotel, encontrei à minha espera o bom amigo Salomão. Brasil, em Santos. Trabalhou afanosamente até conseguir Morava lá no alto, adiante do hospital. um seu vizinho, montar uma pequena casa de secos e molhados. Inteligente e homem de muita idade, vendeu-me um maravilhoso par de trabalhador, foi comprando ações do café. Dentro em pouco donzelas e mais um oratório mineiro de pedra-sabão. Na vol- era bom corretor. Foi comprando propriedades. Um dia, sou- ta, perto da Prainha, fui abordado por certo professor Félix, be de um leilão de objetos antigos na alfândega, por falta de que me vendeu um São Félix e moedas de prata. recolhimento de impostos em tempo hábil. Na hora do leilão Dias depois, travei conhecimento com um desembargador, lá estava o portuguesinho a arrematar tudo, sem entender na- Lenine Póvoas. Falando-lhe sobre a Chapada dos da! Foi o maior comprador do leilão. Levou a mercadoria para disse-me que possuía muitas propriedades lá, e que dentro de o escritório, enfeitou a parede com pratos e com as demais alguns dias viajaria para resolver um problema e poderia dar- adornou os móveis: vasos, relógios de porcelana.. Os com- me transporte de ida, pois voltaria logo. Aceitei o convite e, pradores de café, homens de posse, começaram a interessar-se na espera, continuei no Porto e no Baú, comprando santinhos pelas peças, mas o Amado não queria vendê-las! Ofertas ab- e umas cadeirinhas de tropeiro, que muitos chamam "cadeira surdas foram surgindo até que, um ano depois, seu capital, de de acordo com as ofertas, tinha dobrado trinta vezes! Então o Finalmente, fomos à Chapada. Encantaram-me os painéis de homem deixou o café e não quis mais outro negócio. Só anti- azulejos. A lâmpada votiva do Divino Espírito Santo, belíssi- ma. havia de ter coisas lindas nos gavetões do arcaz, mas na- E telegrama? Quando cheguei a Santos, não vi senão dois da consegui da igreja, pois vigário estava em férias e o bispo bonitos potes. da prelazia também ausente. Amado, onde estão os potes? Mandei-lhe cento e Vagueei pela cidadezinha, onde só consegui arcas coloniais, cinqüenta e só vejo dois?" santinhos e "bancos de orelha", alguns trabalhados. Voltei "O Nóbrega, vieram antiquários europeus e compraram- num caminhão, três dias depois. Não havia material para car- mos. Fiquei com estes de lembrança, mas tu vais-me aumen- ga completa, mas mesmo assim despachei setecentos quilos tar o estoque" de material pelo Expresso Cuiabano. Despedi-me de Dom "Para quê? O senhor não é boticário" Aquino. Agradeceu muito os dados que eu obtivera em Flo- Seu Amado não pôde deixar de rir. rianópolis com o historiador Henrique Fontes, assim como de Mas, voltemos a Cáceres. Conheci o convento dos francisca- pessoas de idade, em sobre a vida do estadista Lauro nos, frades franceses que, como educadores, ligaram-se de Müller. perto à população. Igreja e convento eram de uma pobreza Saindo do seminário, fui despedir-me do bom amigo Padre apropriadamente franciscana. Assim, o negócio era Cuiabá. Wasiki, na Matriz. Lá deparei com personalidades conheci- chegando, comecei a ser chamado novamente. Numa fol- das, como o acadêmico Gustavo Barroso, o historiador Marcos ga, fui a Poconé. Um frade meu conhecido de Cáceres levou- de Mendonça e o Almirante Gago Coutinho. Também o jor- me ao convento que tinha um lampião à venda. Julguei nalista, meu conterrâneo, Assis Chateaubriand. Depois das tratar-se de um lampião de teto, de querosene, do princípio apresentações de praxe, o acadêmico chamou-me de lado e do século. Quando cheguei, tratava-se de um enorme lam- disse-me que, sendo colega de D. Aquino na Academia Bra- padário de prata do século XVIII, "D. João V", pesando on- sileira de Letras, não podia, e lhe ficava mal, tratar com o ze quilos! grande prelado da aquisição daquela imagem que lá estava na 18</p><p>11 sacristia, abandonada - Santo Elesbão. Eu, como antiquário profissional, poderia comprar a imagem e revendê-la ao Mu- seu Histórico. Neguei-me. Já falara com o Arcebispo e este manifestara-se contra a venda por haver muitos devotos do Santo. Despedi-me de todos e rumei para a residência do amigo Salomão. Na passagem pelo Palácio Episcopal, teste- munhei uma reunião de D. Antônio Campelo, bispo auxi- liar, com os operários de Cuiabá. Vi trabalhadores chupando picolé e a VOZ de D. Campelo interrogando: "Quem é o homem?" Os operários em coro: - "Adhe- mar de Barros" Embarquei no dia seguinte para Goiânia. Palmilhei todo o grande território do Anhangüera, enquanto lia nos jornais que dois aviões, lotados, partiam de Cuiabá para festejar o se- gundo centenário da fundação de Vila Bela da Santíssima Trindade do Mato Grosso. A repartição dos Correios emitiu selo com a efígie de Luís de Albuquerque de Melo Pereira e 11 Santíssima Trindade e Coroação de Nossa Senhora. Cáceres - o mais famoso e o mais dinâmico Capitão-General Madeira e marfim. Fim do século XVIII. do Mato Grosso. Coleção: Prof. Cláudio Salvador 19</p><p>VIAGEM A MATO GROSSO Após alguns anos, voltei novamente a Cuiabá. Meu bom tos, disse ao Sr. Amado que a mercadoria vinha chegando pe- amigo Padre Wasiki já havia falecido. O novo vigário-geral lo Expresso Cuiabano, mas que trouxera para ele a peça máxi- era agora o Padre Osvaldo Ventoruzo. Homem de quarenta e ma que um antiquário poderia sonhar em obter. tantos anos, bem apessoado e acima de tudo muito comer- Abrindo a mala, saquei a campainha e a depositei em suas ciante, manifestou desejo de vender objetos, inclusive peças mãos. Colocando os óculos, o Amado examinou a peça e do Museu Sacro deixado por seu antecessor, uma vez que nin- sentou-se para não cair! Como hábil negociante não deu mui- guém visitava a exposição. D. Aquino, disse-me ele, fora con- ta demonstração de agrado, dizendo-me apenas: "É uma trário à fundação, como fora também contrário ao tomba- boa peça, mas é fundida, tu não me vais explorar, pois mento de obras de arte pelo governo federal. Mandou que Acertamos o preço na base de cem por cento de lucro, eu voltasse no dia seguinte: precisava refletir. pois, embora o dinheiro fosse dele, havia as despesas de ho- Comecei a visitar a residência de velhos conhecidos. Não se téis, passagens aéreas etc. Num ímpeto, o Amado levantou- esgotavam os negócios. Havia, no princípio do século, em se, embrulhou a peça em papel bom e chamou o cunhado, Cuiabá, um museu particular com o nome de D. José, em dizendo: - Francisco, leva esta peça à D. Maria e manda homenagem ao primeiro bispo de Mato Grosso. O proprietá- colocá-la debaixo da minha cama" rio desse museu fora um desembargador do Tribunal de Jus- Passei alguns dias com o Amado. Eu tinha um quarto reserva- tiça do Estado que, ao falecer, deixara todo o acervo para um do em sua residência. O antiquário era na Av. Ana Costa, filho, que também atingiu alto posto do pai no Tribunal. numa esquina, em casa própria, e bastava atravessar a rua pa- Mas achou aquilo um capital parado. O prédio, próprio, fica- ra chegar à residência do outro lado, também na Ana Costa. va lotado com aquelas sem poder ser alugado. Chegando a mercadoria, tratei de fazer contas e comprar pas- Tinha que fazer seguro anual, pagar empregados para zelar.. sagem pela TAC Transportes Aéreos Catarinenses - e eis- Resolveu vender tudo para o Rio e São Paulo. Assim, ficou me outra vez em Florianópolis. a alguns dias, recebi uma tudo liquidado, com exceção de peças que não puderam ser carta do Sr. Amado, comunicando-me a sua viagem a Portu- vendidas e que ficaram depositadas na casa de pessoa da sua gal. Que eu me virasse pelo interior de Santa Catarina até a confiança, na Prainha. Aposentando-se o desembargador, volta dele, que deveria ocorrer dentro de dois meses. Passei a que se mudou para o Rio de Janeiro, ficaram ali guardadas trabalhar em Enseada de Brito, Laguna e Imaruí, cidades an- peças de pouco valor, mas mesmo assim obtive armas, gravu- Não dispunha de mais de cento e vinte mil cru- ras de índios de Rugendas e alguns manguitos escolhidos. Pa- zeiros; mas era uma quantia regular para a época. guei e levei tudo para o depósito. Em Enseada de Brito comprei lampiões, um lustre holandês No dia seguinte, fui à presença do Padre Osvaldo Ventoruzo. e uns castiçais de madeira. Em Laguna, cidade histórica de Na sala do Museu de Arte Sacra, à direita da nave, erguia-se a Anita Garibaldi, eu havia comprado, noutras viagens, precio- grande imagem de São Jorge montado em seu cavalo, com a sidades, inclusive a coleção da saudosa Sra. D. Josefa Cabral. lança na mão, bem como outras peças. Mas o Padre Osvaldo Mas havia um senhor, de família muito rica, que possuía uma não queria dispor senão de pequenas peças que não desfalcas- papeleira. Os pais e avós mantiveram uma companhia de na- sem o museu. vegação entre Laguna e Rio de Janeiro. Abordei o homem pe- Pela manhã, disse-me ele, mandara avaliar a campainha no la terceira vez, justificando aquele ditado mole em seu ourives de confiança: oito mil cruzeiros novos. - "Foi pedra dura, tanto bate até que O homem, muito ruim uma avaliação correta, pois a peso de prata ela vale três mil, de negócio, foi logo me dizendo: - "Você sabe que eu não disse-lhe eu. "Bem, se o senhor quiser dar os oito preciso vender. Só se você me pagar trinta mil cruzeiros pe- pode levá-la". las duas Negócio fechado. Meti a mão no bolso e ti- Meu coração deu alguns pulos e confesso que tive de apoiar- rei os trinta mil cruzeiros. A outra peça era uma enorme burra me no São Jorge para não cair, enquanto o padre ia à porta de ferro com tachas grandes, usada pelos piratas nos séculos que dava para a nave ver se não havia alguém que me visse XVII e XVIII, originária de Marselha. Despachei tudo para sair com a peça. Lá estavam umas solteironas rezadeiras e o casa em São José e segui para Imaruí. Ali chegando, procurei bom padre arrumou um modo prático da peça sair sem ser o prefeito, Sr. Pedro Bitencourt, que comprara, há anos, um vista. Pegou um jornal, amassou-o entre as mãos e encheu a catálogo de moedas antigas numa livraria de Florianópolis. parte de baixo da campainha com aquele chumaço, a fim de Em 1949, publiquei esse catálogo, que era de preços para o badalo ficar imóvel.. Em seguida, levantou a batina e me- compra. Fiquei amigo do prefeito e comprei alguns objetos teu a mão no bolso segurando o cabo da campainha. Assim, como louça inglesa e um bom lote de moedas anti- atravessamos a nave e entramos na sacristia. Aí, paguei o pro- gas. Quando voltei para casa, soube que um estrangeiro, com metido, exigindo um recibo pela compra. Só que os outros sotaque espanhol, me procurava incessantemente. Soube de- padres davam o recibo: "Vendi, ao Sr. Fulano de Tal. pois que era um veterano antiquário paulista, que fora esta- nosso amigo Padre Osvaldo, não gostava da palavra "vendi", belecido na Av. Angélica com a "Casa Ouro Preto" e que ficava mal. Dava-me os recibos sempre assim: definiti- noutros tempos trabalhara com pedras preciosas em Londres e vamente, ao Sr. Fulano de dali trêmulo e até ofe- Vindo para o Brasil, casou-se com uma senhora gante! Tinha em minhas mãos, talvez a maior raridade que também israelita e montaram a "Casa Ouro Os ne- um antiquário sul-americano almejasse obter. Os dizeres da gócios progrediram, mas após alguns anos, já ricos, resolve- peça dançavam no meu cérebro: "Colônia do Sacramento, ram veranear em Poços de Caldas e ambos perderam uma for- 1788". Portanto, na esplêndida época das Missões. tuna nos cassinos. Venderam a casa e Jaime Waissman, já ve- Naquele mesmo instante cheguei ao hotel e arrumei tudo. lho, foi para Buenos Aires, onde tinha um filho do primeiro Parti para São Paulo no dia seguinte. Quando cheguei a San- matrimônio que era estabelecido com famosa casa de jóias. 20</p><p>12 Mesa e cadeira "D. com imagens brasileiras. Eng. Paschoal Carmine Grieco. 12 Ali passou dois anos consertando relógios. Não quis mais sa- ber da Argentina e voltou para São Paulo. Sua segunda espo- quirido na última viagem ao sul. Ficou entusiasmado e foi lo- sa, D. Adélia, morreu na Santa Casa de Florianópolis e foi se- go me provocando: pultada no Cemitério do Itacorobi. "Quanto o Amado te paga por este lustre holandês?" Uma noite, Jaime Waissman apareceu em minha casa e disse- "Por volta de seis mil cruzeiros." me que, depois da sua volta da Argentina, tinha procurado a A1 homenzinho berrou com toda a força dos seus pulmões: proteção do velho amigo, Ibrahim Boabaid e que este pusera "Está chupando o teu sangue!" Em resumo: deu-me vin- à sua disposição dois milhões de cruzeiros novos e que, com a te e cinco mil pelo lustre, setenta mil pela papeleira, trinta sua comprovada competência no campo de e mil pela burra dos piratas e limpou-me a sala, comprando-me pedras preciosas, já havia pago e multiplicado o capital mui- no total trezentos e tantos mil cruzeiros, à vista. No dia tas vezes, em apenas dois anos. Que vinha diato, recebeu-me no Hotel La Porta e disse-me: - "Dentro de perto, a minha trajetória através das raridades que eu de quinze dias, você terá uma casa digna em São Paulo, toda mobiliada". mandava para o Amado e ele as via em Santos e que não po- dia comprar, devido aos preços altos que o Amado pedia. Mudei-me, então, para São Paulo e fizemos uma sociedade, Veio um café e depois levei-o a ver as peças que eu havia ad- apenas com uma condição: as compras eu fazia e o Jaime era o vendedor. 21</p><p>PERCORRENDO O CENTRO DA BAHIA Na época em que trabalhava para o Amado, fui várias vezes à do animal, para não rolar serra abaixo. Fomos bem recebidos. Bahia. Fiz mais de dez viagens pelo São Francisco e levei pre- Visitamos a velha Matriz. Fiquei pasmado ante as proporções ciosidades daquela região para Santos, inclusive muitas do arcaz da sacristia. Uma verdadeira beleza! Mas como trans- procuradas pelos milionários paulistas. A casa, para portá-lo? Nem em carro de boi... Comprei então um arqui- ser "chic", precisava ter uma figura de proa na decoração. banco da Irmandade de Santa Ifigênia, datado de 1757, e Agora eu já estava trabalhando por conta própria. Precisava uma naveta do século XVIII, em formato de pomba que des- mostrar toda a minha capacidade. Comprei um jipe Willys e loca o pescoço para que seja introduzida a colher e tirado o in- rumei para Vitória da Conquista. Subi para Brumado e daí censo. Representa o Divino Espírito Santo. Tenho até hoje o para Caetité. Havia na cidade um negociante chamado Edgar recibo da peça. Villas-Boas, que mexia com mas sem muito co- Dei uma volta pelas casas da vila e deparei com imagens e nhecimento. Guiou-me alguns dias na cidade e nas velhas fa- magníficos oratórios de viagem. Móveis que, infelizmente, zendas. No primeiro dia de trabalho comprei duas mesas de não pude comprar. encosto e maravilhosas imagens. Continuamos vários dias a Dormimos em Mato Grosso. Ao amanhecer, parti com doze adquirir mesas de pé-de-lira, cômodas "Sheraton", todas fi- homens conduzindo o banco. A peça devia ter cem quilos. letadas, moedas de ouro e uma infinidade de cadeiras, feitas Dois homens de rodilha ao ombro andavam dez minutos com engenho e arte. Fui a Guanhambi, sede de uma fazenda com o banco, revezando-se com outros e assim por diante, tradicional, onde residira uma tia de Castro Alves que lá pro- dezoito quilômetros descendo aquela serra de pedra, curara refúgio com seu amor proibido, inspirando Afrânio até Rio das Contas. Paguei dez cruzeiros a cada homem e ain- Peixoto na elaboração de "Sinhazinha". Comprei a casa in- da almoço para todos. Um deles, mais afoito, chamou-me teira, inclusive a capela completa, no primeiro andar, toman- de lado e pediu-me uma camisa. Achei que era uma injustiça do todo grande salão. Chamei marceneiros, desmontei tudo dar camisa a um só, quando todos tinham feito o mesmo es- e embalei a capricho. Mandei tudo para Caetité e rumei para forço. Uma camisa de algodão para roceiro custava quatro Livramento, município de terra fértil. frente da igreja de- cruzeiros. Tirei do bolso quarenta e oito cruzeiros e comprei parei com um padre cearense, de quem logo me fiz amigo. camisas para todos. Voltaram na santa paz de Deus. Moço novo e inteligente, não se cansava de louvar o político Revelo quem comprou o arquibanco: foi o distinto coleciona- Adhemar de Barros, com quem se encontrava periodicamen- dor Lunardelli. Anos depois, quando o saudoso te em São Paulo. Arrobas Martins fundou o Museu da Casa Brasileira no Pala- Comprei muita louça "borrão" e até "Companhia das In- cete Fábio Prado, foi o banco cedido pelo e lá está, em Livramento. Mas o padre advertiu-me que aquilo velho de dois séculos, para ser visto e admirado por toda a po- era uma insignificância em vista do que me aguardava no Rio pulação de São Paulo. das Contas e no Distrito de Mato Grosso, lugares em que A naveta despachada de avião para São Paulo foi entregue também mandava como vigário e onde ia celebrar um do- pelo Jaime à Sra. Botelho, que por sua vez cedeu-a ao mingo por mês. Deu-me carta para o Sr. Júlio, negociante e Lunardelli. zelador da igreja da cidade de Rio das Contas, bem como um Cheguei da Bahia com dois caminhões. O Jaime ficou radian- cartão apresentando-me ao chefe da Irmandade de um distri- te de alegria, advertindo-me: "Quem vende sou to de Rio das Contas, chamado Mato Grosso. Com os meus botões, julguei que ele fosse convocar em pri- Cheguei a Rio das Contas depois de galgar em primeira e se- meira mão o ilustre colecionador Octales Marcondes Ferreira gunda toda uma serra tremenda! Valeu a pena. Um povo bo- ou outro colecionador de gabarito como o Dr. Heitor Portu- níssimo, mas pobre demais. Comecei a ser disputado por uns gal, ou ainda o Sr. Hélio Leite. Nada! Chamou o Dr. Fernan- e por outros, que alegavam terem me chamado em primeiro do Millan, grande negociante da rua Augusta. Em seguida, lugar; não me deixavam descansar! Só faltava ser rasgado por veio o Sr. João Alcântara Gomes, que comprou, como disse, a aquele pobre povo, carente de tudo. Da Matriz, comprei uns mesa das Missões do Rio das Contas. Depois, o Koltai, que castiçais riquíssimos de madeira e três confessionários do sécu- comprou a melhor mesa "D. João com a respectiva ca- lo XVIII. Conversando com um velho historiador local, afir- deira e os melhores castiçais de madeira. Apareceu em segui- mou-me ter sido Rio das Contas a mais antiga comarca do ser- da outro comerciante, o Sr. Saul Katap, que, ao ver a excelên- tão da Bahia. Consegui, perto da cidade, na casa de uma an- cia da mercadoria, mostrou nervosismo, fumando um cigarro tiga missão religiosa, uma mesa muito boa, depois adquirida atrás do outro Por fim, despendeu mais de quinhentos mil em São Paulo pelo Sr. João Alcântara Gomes e sua esposa D. cruzeiros, a prazo, é certo. Homem corretíssimo, pagava na Sílvia. Ao que consta, o casal gosta muito da mesa e dela não véspera do vencimento. Veio depois D. Zezé Botelho, que abre mão, apesar das reiteradas ofertas. adquiriu os três confessionários e algumas imagens preciosas. Mas, voltemos ao Rio das Contas. Ao cabo de uns cinco dias Jaime não queria chamar mais ninguém. Disse-me que preci- na cidade, localizei tudo que era antigo, e só não fiz compra sava de estoque e que a cômoda "Sheraton", as cadeiras, al- na Matriz, porque o homem que a guardava, um preto zelo- guns santos e a bela louça ficavam para ornamentação da ca- so, ignorou a carta do vigário e não liberou uma só peça de sa. Proclamou que eu já era milionário, sem precisar vender a prata. Lampadários, em número de seis, tocheiros de prata casa de Santa Catarina.. em quantidade, navetas, um grupo de lanternas Recebi a visita do escritor-antiquário José de Almeida Santos e "D. João V" e por afora. Era a igreja mais rica do sertão da senhora. Em 1944, como verdadeiro pioneiro, publicou ele o Bahia. "Mobiliário Artístico Brasileiro", obra indispensável aos anti- Arrumei bons cavalos e fui com um amigo ao distrito de Mato quários e colecionadores. Confesso que esta obra, muito bem Grosso. Outra subida que me obrigava a agarrar-me à crina ilustrada, aumentou bastante os meus conhecimentos. Anos 22</p><p>13 14 depois, publicaria o "Manual do Colecionador de Antigüida- des". que se esgotou em pouco tempo. Outro casal que marcou época com grandes compras: Francis- CO e sua digna esposa D. Magdalena, meus velhos conhecidos do tempo do Amado. O casal mantinha bem sor- tida casa de na rua Augusta, com grande fre- guesia. 13 Coleção de pesos, medidas, estribos e O arquiteto-decorador Antônio Rodrigues Foz adquiriu linda almofarizes do tempo dos mesa "D. João comprada por mim em Caetité, e colocou-a na residência do saudoso João de Souza Dantas. 14 Mesa franciscana das Missões de Rio de Contas, Bahia. Coleção: João Alcântara Gomes. 23</p><p>VIAGEM A MATO GROSSO Fiz outras viagens à Bahia; depois passarei a descrever. Quero, belas lanternas "D. João V", com saudoso colecionador e agora, contar a aventura que tive levando o velho Jaime a proprietário da Editora Nacional, Octales Marcondes Ferreira. Cuiabá. Cedemos a Sant' Ana ao antiquário polonês Estanislau Herstal Ele tinha medo de índios e não me adiantava assegu- e o viático ao João Marino. Os castiçais do Museu de Ar- rar-lhe que já estava tudo civilizado e as tribos de índios per- te Sacra foram adquiridos pelo médico Julio Kieffer. maneciam bem distantes de Cuiabá. Embarcamos em São Como não chegasse a mercadoria de Vila Bela, resolvemos ir a Paulo, num Scania e, às 13:30, pousamos em Campo Gran- Goiás. Fomos por terra, de jipe. Dormimos em Goiânia e no de. Após vinte minutos, decolamos e o Jaime, que lia a revis- dia seguinte já estávamos instalados na velha Vila Boa, no ta "O Cruzeiro", apesar de haver muita turbulência, levan- Hotel Municipal, bem perto do Rio Vermelho. Começamos a tou-se furioso e aos trancos veio até a minha poltrona e mos- trabalhar primeiro com os padres do Rosário, que nos vende- trou-me o retrato do Presidente da República condecorando o ram um belo arcaz de três metros de comprimento, todo poli- Che Guevara. "Veja uma coisa incrível!" disse. "O cromado, com motivos de caça. Negociamos depois com par- Presidente do Brasil condecorando esse comunista! Dou-lhe ticulares num lugar distante cinco léguas, chamado Santa Ri- um mês de prazo! Precisa ser posto fora É um desaforo!". ta. Um padre do Rosário, que nos acompanhava, incentivou Proféticas palavras! pessoal da terra a vender toda a prataria, alegando que a Depois de uns quinze minutos, uma VOZ no alto-falante avi- igreja precisava de reforma. Além do mais, se a prataria lá fi- sava: "Senhores e Senhoras: devo dar-lhes uma notícia casse, seria roubada com certeza. Pagamos oitocentos mil cru- que acabo de receber pelo rádio. Renunciou à Presidência da zeiros pelos objetos, inclusive uma madona extremamente República Sr. Jânio da Silva Quadros". Foi um alvoroço no bela e rara, que o meu amigo Dr. Pedro Sérgio Morganti, re- avião e não se falou de outro assunto até Cuiabá. cém-casado, pelejou para comprar, mas o Jaime estava em Ficamos bem instalados no novíssimo Hotel Centro América. Santa Catarina e eu não podia vender devido a cláusula con- No dia seguinte fui apresentar Jaime, meu novo sócio, ao Vi- tratual. gário-Geral. Ele conversou bastante e disse que, depois do al- Voltei novamente à Bahia, subi para Pernambuco e Paraíba, moço, aparecessemos. calcular sobre o que poderia dispor. revi parentes e fui à velha cidade de Mamanguape, compran- Almoçamos numa churrascaria e, na hora marcada, lá estáva- do duas lanternas de procissão simplesmente fantásticas. Não mos frente ao Padre Osvaldo. Já havia ele escolhido as peças eram de cabo comprido. Eram levadas nas mãos durante a transacionáveis: as lanternas "D. João V", o par de castiçais procissão e, após esta, ficavam sobre o altar, uma de cada la- datado de 1803, uma banqueta "D. João V" completa, in- do. Descendo para a Bahia, encontrei em Serrinha um belo clusive as sacras, e um pequeno lampadário "Império" (este exemplar de meia cômoda "D. João V". Despachei esta peça último para ser copiado e devolvido). Um milhão de cruzei- por um caminhão particular. Já havia comprado em Porto ros! Encaixotamos tudo e levamos para o hotel. Jaime, satis- Calvo, a cidade de Calabar, um arcaz de sacristia que, che- feitíssimo com a compra, deveria voltar a São Paulo. Quei- gando a São Paulo, foi vendido incontinenti ao antiquário xou-se de cansaço. Eu que seguisse de avião para Vila Bela, Dr. Fernando Millan, que, por sua vez, o repassou ao comprasse coisas boas e não tivesse cuidado: dentro de dois Roberto Pacheco Fernandes que até hoje o conserva como ver- dias voltaria. Eu sabia que Jaime estava ainda com um milhão dadeira relíquia. e pouco, pois já me fornecera seiscentos mil para Vila Bela. Cheguei do norte e nada das peças de Vila Bela aparecerem. Despedi-me dele no aeroporto e, à tarde, já estava na casa do Dois meses se passaram sem que essa mercadoria chegasse. O Marcelo Profeta da Cruz, meu velho conhecido, o mandão de Jaime andava mal; não era só o peso da idade, setenta e seis Vila Bela e que, na viagem anterior, me vendera uma esplên- anos. Tornara-se impertinente e insociável mesmo. Minha so- dida banqueta de prata, pesando vinte e poucos quilos. ciedade com ele, contudo, ia muito bem. Eu lhe votava gran- Agora estava ali, em plena seca, e podia comprar móveis anti- de admiração e também ao amigo Ibrahim, com quem Jaime qüíssimos, pois o próprio caminhão da prefeitura encarregar- descontava os títulos. Notei, entretanto, certa preocupação se-ia de levá-los até Cáceres, onde havia uma agência do Ex- por parte de ambos para comigo, porque o Ibrahim era sócio presso Cuiabano. Comprei uma cômoda que pertencera ao do Jaime no negócio dos brilhantes da Caixa Econômica. Jai- Palácio dos uma mesa pé-de-lira (seis pés) me não podia mais viajar sozinho para longe, como no que estava na prefeitura, uma bela mesa "D. João V", de pio fazia, trazendo muita coisa do Rio Grande, cujo lucro era um particular, e fui, dias depois, a Casalvasco, antiga residên- repartido comigo. a Santa Catarina, vendia os brilhantes e cia de repouso dos Comprava as peças voltava a São Paulo para dividir o lucro com seu amigo Ibra- desmontando-as em seguida para poder transportá-las de ca- him. E eu, num trabalho insano, pelos sertões, para depois noa pelo rio. Trabalhei empenhadamente e, em oito dias, repartir com o outro, que ficava no conforto! E, além disso, peguei um avião militar, levando um viático, muitos ex-votos eu notava que havia certa desconfiança porque a mercadoria e uma Sant' Ana um tanto danificada pelo cupim, mas de Vila Bela, onde havia empatado, na época, mais de qui- ma. Pertencera à capela de um antigo distrito do mesmo no- nhentos mil, não chegava nunca. me, onde no século XVIII se extraiu muito ouro. Rescindimos a sociedade. Fiquei com a mercadoria de Vila O viático, pequeno, é de uma beleza sem par. Obra de fino Bela, com o jipe e metade das peças depositadas em casa. Jai- lavor, servia para o sacerdote levá-lo sob a umbela, no sacra- me retirou parte da mercadoria estocada e a levou. mento da extrema-unção. Fiquei livre como um passarinho! Desfeita a sociedade, mãos Chegando a São Paulo, tive uma grande surpresa. Jaime, à obra; precisava trabalhar e só para mim. Possuía um aparta- após a minha saída de Cuiabá, comprara também o maior mento de dois quartos na rua Guarará, comprado por oito lampadário da Matriz e já o transacionara, juntamente com as milhões e meio, dinheiro este obtido em parte com a venda 24</p><p>da minha casa em Santa Catarina, por cinco. Mas, confesso 16 Pratas antigas, Mato Grosso ser um homem de sorte por não ser ambicioso e gostar de di- Coleção: Mercedes de Arruda Botelho. vidir o que é meu com os outros. Quinze dias depois do rom- 17 Papeleira. "D. Sobre a mesma um São Gonçalo, pimento da sociedade, chegou finalmente a mercadoria de de autoria de Aleijadinho e marfins de Goa. Vila Bela. O Jaime e o Ibrahim souberam e vieram à minha Coleção: Mercedes de Arruda casa felicitar-me. Na última viagem que fizemos a Cuiabá, havia no lote uma banqueta de prata "D. João V", que o Jaime vendeu à Sra. D. Maria Ferreira Gelpi. Esta distinta senhora, não querendo recorrer ao marido Dr. Gelpi, um dos construtores de Brasi- lia, pagou em libras esterlinas, que foram trocadas, posterior- mente, por cruzeiros e com lucro, devido à alta do ouro. A mercadoria de Vila Bela foi vendida, parte ao Dr. Fernando Millan, outra ao Koltai. Restaram os mochos, maravilhosos. Finalmente, comprou-os Sr. Estanislau Herstal. O mochinho alto, que servia para colocar o chapéu do capitão-general, pas- sou para as mãos do Dr. Julio Kieffer. 16</p><p>A MORTE DE D. AQUINO CORREIA Uma dor grande e muda e um clarão multicolor, seguidos de que começar a coletar peças, como essas do Piauí, que são, um retumbante trovão, Mato Grosso. E clarão foi sem dúvida, genuínas. As vezes, um móvel bonito, muito se alastrando e o trovão ribombando por rios, vales e monta- elaborado, nos deixa pode perfeitamente ser nhas, trazendo-nos a dolorosa notícia da morte do bra- uma criação de cem anos atrás sem, entretanto, ser de época. sileiro, grande homem de letras e pastor de almas, D. Francis- O artista inspirou-se no antigo. CO de Aquino Correia, Arcebispo de Cuiabá. Homem de al- Foi uma temeridade trazer essas peças desmontadas, no rebo- ma pura, dedicou toda a vida ao seu belo torrão natal e ao seu que do jipe até a cidade da Barra. Despachei-as até Januária bravo povo. Orador notabilíssimo, um êmulo de Monte Al- por navio do rio São Francisco e, já em território de Minas, verne, sem dúvida, foi escolhido para discursar nas grandes foi fácil o transporte até São Paulo. O primeiro a ver foi o Dr. datas durante o Estado Novo. Certa vez, assisti a um Fernando Millan, que em seguida saiu apressado e trouxe grande desfile da nossa gloriosa Marinha, num dia 11 de ju- Sr. Octales Marcondes, que comprou a cômoda. Em seguida, nho, no Rio. Homenagem tocante ao Almirante Marquês de veio o Dr. Cesar Kieffer, que adquiriu a mesa. D. Aquino era o orador-oficial. Eu já ouvira João Anos depois, Dr. Cesar vendeu a casa em que residiu, à rua Neves da Fontoura, Epitácio Pessoa, Irineu Machado, João e Alaska, e no apartamento não havia lugar para a mesa. Man- Otávio Mangabeira e Roberto Moreira; se todos esses oradores dou vendê-la; e quem a comprou foi Dr. João Marino. Mais estivessem em eleição meu voto seria de D. Aquino. tarde, com muita insistência e sendo o Dr. João muito amigo Embora houvesse em Cuiabá um verdadeiro Palácio Episco- do Sr. Octales Marcondes, conseguiu reunir as duas peças, pal, D. Aquino continuou morando em seu quartinho e uma que já estiveram expostas na grande exposição do "Barroco pequena sala, no velho seminário. Quem morava no palácio no Brasil", organizada pelo Museu de Arte de São era o seu bispo auxiliar, D. Antônio Campelo. Quando, em Paulo. 1958, D. Aquino comemorava seus cinqüenta anos de orde- Nessa época, recebi um telegrama de Cuiabá exigindo a mi- nação sacerdotal, figuras eminentes compareceram ao ato, in- nha presença naquela capital. Já sabia do que se tratava. E clusive o Lucas Nogueira Garcez, governador de São dinheiro, onde está o dinheiro? Só quem sabia era o meu Paulo. Outro grande vulto de São Paulo que admirava pro- conterrâneo, José Américo. Mas não disse a ninguém! Procu- fundamente D. Aquino era o digno Dr. Altino Arantes. rei, então, o Sr. João Mós, proprietário da Galeria D. Pedro II Gustavo Barroso disse-me uma vez, em Cuiabá, que D. e antigo funcionário do Sr. Geremia Lunardelli, o "Rei do Aquino era o Papa da Academia! Expressivo depoimento colhi no bairro do Porto, de uma ve- lhinha, quando D. Aquino ainda vivia: "Minha senhora, qual foi, na sua opinião, o maior governador de Mato Gros- so?" "Todos eles foram bons, nas costas de D. Aquino. Quando eles não conseguem uma coisa do Governo Federal, pedem a D. Aquino... E qual é o Governo que vai contrariar um santo como ele?" D. Aquino morreu como um justo. E o que é a morte para um poeta? É a aurora boreal da Glória! Viajei novamente do Rio para a cidade de Barra, que fica exa- tamente no local onde Rio Grande desemboca no São Fran- cisco. Da Barra segui por terra para o Piauí e fui comprando miudezas boas, pois não havia meio de transportar móveis grandes, a não ser que aparecessem peças verdadeiramente ra- ras. Estive em Parnaguá, cidade muito simpática, situada às margens da lagoa do mesmo nome. Adquiri moedas, ima- gens e copos de prata. Havia na cidade de Picos grandes pra- teiros que além de copos e salvas, faziam muito santo de pra- ta, ocado. Fui a Santo Antônio de Gilbués, cidade boa que nasceu de um garimpo de diamantes no século XVIII. Em Gilbués havia muita imagem de madeira com rosto de mar- fim. Em desci de uma jardineira e pedi a um rapa- zola para levar a minha mala ao hotel, ao que ele respondeu: "Não senhor, eu não sou ganhador". Depois verifiquei que ganhador para eles é o nosso carregador. Terra boa, o Piauí! Ganhar dinheiro é desonra! Soube depois que aquele mocinho de chinelo era bisneto do Barão e Mar- quês de Em São Paulo e Rio, eles trabalham em qualquer serviço... Mas na terra deles, não são ganhadores. Comprei em Oeiras, antiga capital, duas peças de primeira li- 20 Cômoda, madeira, amoreira (limorana ou taiúva), nha que, pelas informações que obtive, foram de um palácio com puxadores de bronze fundido. Segunda metade do ali existente no século XVIII. Se alguém no Brasil quiser século XVIII, Oeiras, antiga capital do montar um museu verdadeiro de mobiliário nacional, tem Comprimento 166 cm, profundidade 91,5 cm, altura 95 cm. Coleção: João Marino. 30</p><p>VIAGEM A MATO GROSSO De telegrama em punho, chamei o prezado amigo João Mós tintas e ligadas às artes, como D. Zulmira Martins Lunardelli, e dei-lhe um verdadeiro ultimato! Ou ele nos arranjava o di- Dr. Edmundo Vasconcellos e esposa, Dr. Julio Kieffer e os nheiro, ou eu iria arrumá-lo com outra pessoa. João Mós re- engenheiros Roberto Pacheco Fernandes e Julio Pinoti, assim fletiu e me disse: "Nóbrega, você é um visionário! Cinco como os colecionadores Heitor Portugal, Octales Marcondes milhões de cruzeiros é quantia que dá para comprar dez apar- Ferreira e D. Maria Ferreira Gelpi. tamentos de dois quartos, aqui em São Paulo". Fiz-lhe ver O caminhão do Expresso Cuiabano chegou somente oito dias que nosso comum amigo, Dr. Lunardelli, grande depois e distribuimos pelos vários cômodos da casa as ima- interessado em objetos de arte, podia nos endossar um "pa- gens menores e os entalhes dourados. Lembro-me de que a pagaio" e nós tiraríamos o dinheiro do banco. imagem de Santo Elesbão, da mais alta raridade, foi adquiri- Mós pegou o telegrama e foi diretamente ao Escritório Lunar- da pelo ilustre médico e escritor, Duilo Crispim Farina. Meu delli, ali na rua dos Ingleses. Feito o pedido, Dr. amigo João Mós fez questão de ficar com a avantajada naveta tomou conhecimento do telegrama e não teve dúvida. En- "D. João Uma senhora da família Freitas Valle ficou com cheu um "papagaio" e assinou; pediu para o seu irmão Dr. outro lampadário Sabará, e, por fim, mais uma banqueta de Santo endossar. Mós foi ao Banco de São Paulo e nem chegou prata, a maior delas (a do altar-mor) foi vendida ao Dr. Pláci- a pegar no dinheiro; transferiu-o para Cuiabá, em seu nome. do Gutierrez, do Rio de Janeiro, que levou também o belo No dia seguinte chegamos à velha cidade. Hospedamo-nos par de lanternas de Mamanguape, que era só meu. no Hotel Centro América e, logo pela encontramos Os entalhes foram vendidos aos poucos, enquanto a última Padre Osvaldo na porta do prédio dos Correios. Fomos à Ma- banqueta foi picada e comprada por diversas pessoas. triz e, Santo Deus, o que eu vi! Os padres estavam construin- Descrevi aqui, embora suscintamente, todas as compras efe- do uma igreja gótica, no lugar daquela jóia colonial! Os alta- tuadas por mim no grande estado de Mato Grosso, faltando res já tinham sido retirados para a Igreja de São José Operário. somente citar duas cidades onde fiz também boas colheitas, Só restava praticamente a fachada da Matriz. A planta era do mas nada de excepcional: Livramento e Santo Antônio de Le- meu distinto amigo, Benedito Calixto de Jesus Neto, que verger. construiu, também, a Basílica de Aparecida. Mas, a igreja gó- Lamento a demolição da igreja colonial; fiquei mesmo revol- tica no meio daquele casario colonial? Está certo que a parte tado, não com o Padre Osvaldo, porque este foi apenas um traseira do templo era irrecuperável Mas, não haveria meios instrumento que ia aos poucos executando um plano da de derrubar só a parte posterior e reconstruí-la com mais am- pula, adrede preparado, desde o falecimento do grande cató- plidão, conservando o estilo e deixando intacta a parte dian- lico e homem de altas virtudes conservadoras, desembargador teira? SANTA MISÉRIA! SANTA IGNORÂNCIA! SANTA do Tribunal de Justiça do Estado e notável Dr. ESTUPIDEZ! José Barnabé. Os de D. Aquino, que fora sepultado ali em frente ao Como católico praticante, beijo contrito as mãos generosas altar-mor, foram tirados ainda recentes para uma urna! Lem- dos abnegados padres, irmãos, professores leigos e demais brei-me do célebre terceto de Bilac: membros da grande grei Salesiana, que vieram aos confins de golpeada e insultada, eu tremerei sepulto: Mato Grosso realizar sonho de D. Bosco; mas nego o meu E os meus OSSOS no chão, como as tuas raizes, simples cumprimento ao autor da extravagante idéia de trans- Se estorcerão de dor, sofrendo o golpe e o insulto!" formar aquela jóia colonial brasileira num templo frio, de arte Mas, voltemos ao negócio. Subimos ao coro e compramos os passadiça que se adapta melhor aos holandeses e alemães. quatro lampadários Sabará, a grande naveta "D. João V", O caso da Basílica de Aparecida foi diferente. Ela foi três banquetas de prata completas, a famosa imagem de San- da fora do centro da velha cidade. A primitiva igreja da Pa- to Elesbão e os entalhes todos. Ficaram os santos que eram droeira do Brasil lá ficou, no alto, no meio do casario velho, conservados em seus altares. As colunas grandes foram retira- como um marco da Fé inquebrantável de um povo. das da Igreja de São Operário e despachadas no Expresso Desculpem-me os reverendíssimos Salesianos de Cuiabá; de- Cuiabano. No mesmo instante em que fechamos o negócio, viam seguir o exemplo dos padres de Aparecida. eu, Mós e o Padre Osvaldo, fomos ao banco e transferimos di- retamente os cinco milhões para a conta da Perguntei ao Padre Osvaldo que destino tinham dado ao belo colar de esmeraldas ofertado a D. Aquino pelo Arrojado Lis- boa, e o Vigário-Geral fez questão de levar-me à presença de um Monsenhor italiano que me deu pouca atenção, dizendo- me apenas que as peças do finado Arcebispo haviam sido doadas ao Museu de Mariana. Estava tudo consumado! Quando voltamos a São Paulo, os meios artísticos já sabiam da compra e do volume da mesma, razão pela qual ficaram alvoroçados! Tiramos tudo do avião e, em primeiro lugar, tra- tamos com a maior brevidade da venda das peças, para pagar quanto antes a nossa dívida. Os Drs. e Santo Lu- nardelli ficaram com as duas mais bonitas lâmpadas de Saba- rá. A banqueta média, ficou também com o Dr. Já na primeira noite, em minha casa, compareceram pessoas dis- 32</p><p>VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE As três vilas do ouro que serviram de sede de governo capi- tes, seguiu com toda a sua grande comitiva para a beira do tanias do Brasil central são muito minhas conhecidas: Vila Ri- ca, Vila Boa e Vila Bela, capitais, respectivamente, de Minas Mais tarde, tornaram-se públicas as secretas recomendações: Gerais, e Mato Grosso. As duas primeiras, quase intatas "Pelo que toca aos confins desse governo. devereis estar na e constantemente visitadas, foram já descritas com rara mes- inteligência de que não razão que deva fazer de tria por nossos homens de letras. Prefiro, pois, reportar-me a excesso da vossa parte; antes ao contrário e devereis, não terceira; não só por estar prestes a extinguir-se com todo seu impedir que os se adiantem, mas promover novos precioso patrimônio artístico e histórico, mas, principalmen- descobrimentos e apossar-vos do que puderdes". Era muito te, pelo fato de situar-se em região e de aces- natural, pois, que D. Antônio Rolim rumasse para oeste e to- so: Vila Bela da Santissima Trindade. masse a passagem dos Jóia colonial ao Guapore engastada, sentinela vigilante dos Chegada a comitiva a bela povoação de Pouso Alegre, o capi- capitaes-generais do Mato Grosso que dilataram as tão-general elogiou muito local, achando-o e apra- nossas fronteiras, cidade outrora rica e luxuosa, Vila Bela da zivel; mas os seus técnicos fizeram-lhe ver que terreno era Santissima Trindade é, um montão de ruínas! muito baixo, razão pela qual estava sujeito às inundações, ao Comprometo-me, embora singelamente, a focalizar aqui as que S. Excia. retrucou com autoridade, dizendo-lhes que ha- suas construções barrocas, os seus objetos de arte, os via meio de E, instalando-se sem orgulho numa costumes do seu povo, as tradicionais festas religiosas e profa- iniciou, imediatamente, a construção da cidade, nas. Para tal recorri aos documentos antigos inaugurada solenemente no dia 19 de março de 1752, com existentes nos arquivos de Vila Bela e Diamantino; nome de Vila Bela da Santissima Trindade do Mato Grosso. consultei obras indispensáveis. O restante fruto das minhas Foi escolhido um brasão para a nova cidade: um observações pessoais. triângulo em homenagem a Santissima Pelos relevantes serviços prestados a frente do governo da Ca- pitania, durante catorze anos, D. Antônio Rolim de Moura, FUNDAÇÃO no reinado de D. I, e por interferência direta do Mar- quês de Pombal, foi nomeado vice-Rei do Brasil. Depois da descoberta de por Pascoal Moreira Cabral, o sorocabano Miguel Sutil, em 1722, no Rosário, arrancava, quase da flor da terra, quatrocentas arrobas de ouro! Com es- PALÁCIO DOS se impulso econômico, Cuiabá povoou-se rapidamente, para estacionar em seguida porque outras minas surgiram mais Mais de dois séculos rodaram na do tempo. ao norte, em Diamantino e Alto Paraguai. Transportemo-nos, agora, para a imensa região do Brasil oes- A notícia dessa fabulosa riqueza atraiu aventureiros de todos te, e fixemo-nos em Vila Bela da Santissima Trindade. Visite- os quadrantes, inclusive negociantes do que subi- mos o palácio dos capitaes-generais, ainda perfeitamente con- ram Madeira e Guapore, transportando em botes suas servado, com seus salões grandiosos, suas mesas rústicas nos mercadorias. Aos paraenses uniram-se os e alguns estilos e D. João V, de proporções gigantescas, enta- Chiquitos da e fundaram um arraial de ranchos em madeira de lei, que os da terra chamam de pau-a-pique, cobertos de capim, na margem direita do rio ração de negro", e nós outros, da Observe- Guapore, ponto de fácil partida para o Jauru, afluen- mos madeirame do telhado, de linhas e terças que, desdo- te do Paraguai, e navegar ao norte pelo rio Cuiabá, ou de- bradas, se multiplicariam por quatro; os caibros que hoje ser- mandar São Paulo, pelo Paraná. viriam para segurar linhas. Dois salões forrados.. um, era Os bandeirantes, recebendo a visita dos mercadores, seguiram destinado aos despachos; o outro, menor, era a alcova dos ca- os seus rastos e aportaram no arraial do Guapore, dando-lhe pitaes-generais. As portas, com de mais de uma sugestivo nome de Pouso Alegre. Nas descobri- arroba, dão-nos a impressão de que foram feitas para a eterni- ram as minas do Brumado, Chapada de Sant Ana, dade. A mesa "D. João com quatro metros de compri- São Francisco Xavier e São Vicente, entre 1732 e 1734. mento e um metro e dez centímetros de largura, com seis Empolgado, el-Rei João V, com a prosperidade aurífera de bem arqueados, todos com abas nos lados, que representam Mato Grosso, temendo avanço iminente dos re- babados das saias (D. João V era mulherengo), termina- solveu, por decreto de 1748, desmembrá-lo da Capitania de dos, no chão, em de galo... Duas gavetas com puxadores São Paulo, dando-lhe governo próprio, nomeando seu pri- de metal, no mesmo estilo; mas, se observarmos bem, verifi- meiro dirigente D. Antônio Rolim de Moura Tavares, depois caremos que apenas um simulacro de gavetas. Se um ladrão Conde de Azambuja, com de Governador e Capitão- ali chegasse, iria puxar as gavetas e não as abriria, General das Minas do Mato Grosso e que, de fato, elas não se abrem. Existe um segredo: todas as O povo do arraial fundado por Pascoal Moreira Cabral vibrou vezes que se precisar de alguma coisa das gavetas, tem-se que de entusiasmo ao chegar a no domingo do dia 12 de levantar tampão de cima da mesa, que por sua vez ficará janeiro de 1751, seu novo governante, na convicção de ser suspenso por dois ferros laterais côncavos; para fechar, basta instalada ali a nova capital; mas tal não aconteceu. D. afastá-los para dentro. nio Rolim, trazendo do seu Rei e Senbor "recomendações O palácio foi construído por D. Antônio Rolim; as mesas ho- mui sigilosas", examinou local, tomou posse, nomeou al- landesas também são da mesma gumas autoridades e, para total decepção daqueles habitan- Quanto a mesa "D. João conhecida como a mesa dos 37</p><p>IGREJA DA SANTÍSSIMA TRINDADE despachos, ou ainda, de recepções, diz a tradição oral que a O maior monumento de arte barroca no Mato Grosso sem mesma foi feita por encomenda do famoso estadista de dúvida, a igreja da Santissima Trindade, de Vila Bela. Está Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, obedecendo as li- completamente em ruínas. Essa fabulosa construção foi feita nhas de uma outra que se encontra na Casa da Insua, berço com grossos de adobes em alicerces de pedra canga. do grande homem. A base projeta-se dois metros acima da terra; os paredões têm um metro e vinte de largura, com três de adobes. Os nichos são todos embutidos na parede, e alguns ainda conser- QUARTEL DOS DRAGÕES vam a sua ingênua pintura. Pelo dispositivo das vigas que se projetam dos conclui-se facilmente que havia ali Penetramos no palácio dos capitaes-generais pela parte poste- um coro na parte alta, dianteira, e continuava uma rior; é que seu alto muro está em ruínas. Mas, agora, vamos de camarotes de um lado e outro. Descobri, no depósito, um sair pela frente: observemos, acima da porta principal, a placa mocho alto e esguio; um perolado de marfim em torno da que ainda existe com as quinas lusitanas e a inscrição em le- parte do assento fez-me identificar o seu estilo: Maria I; pois tras quase apagadas Governo da Capitania. Estamos na perolado representa o rosário de que jamais se separou aquela calcada e não precisamos pisar no chão para nos dirigir ao rainha. Mas eu estava deveras intrigado com as dimensões do Quartel dos Dragões, a cem metros da frente; existe um pas- mocho. Como sentar-se ali uma dama num assento tão pe- seio de pedra-canga de um metro e meio de largura e um de queno, quando o gosto da era para as avanta- altura, em toda a extensão. Penetremos nas ruínas do Quartel jadas? Recorri tradição oral e um antigo professor dos Dragões. Restam apenas as paredes de adobes enormes, leigo e então agente de estatística, logo esclareceu: "Aquele de um côvado de largura. Esses são perfurados na mocho era usado num camarote, para, em cima dele, ser parte de cima, um pouco abaixo dos cachorros, para a intro- locado o chapéu do Portanto, está esclareci- dução das armas de fuzis de pedra, usadas contra os do que o andar interno do templo era mesmo no formato de e contra os indomáveis Guaicurus.. Os pesados canhões bra- ferradura; na curva desta, coro; nas partes laterais, os cama- sonados de D. e D. Maria I, estão al- rotes que eram destinados famílias mais nobres. O piso da guns, recolhidos do Forte de Coimbra, foram disparados con- nave era todo de pranchões retangulares que lou- tra os espanhóis pelo intrépido engenheiro tenente-coronel sas de Esses pranchões eram perfurados nas duas Ricardo Franco de Almeida Serra, cuja passagem pela Capita- extremidades, para que os coveiros os suspendessem e ali se- nia é um exemplo de arrojo e Comandando o For- pultassem os maiores do lugar. Somente os padres eram se- te de Coimbra, com uma guarnição de 110 homens apenas pultados entre a mesa de comunhão e altar-mor; no restan- viu-se cercado por uma poderosa esquadra espanhola de 600 te da nave, os civis. Os militares eram todos sepultados na homens, que pretendia esmagar aquele baluarte para tomar igreja de Santo Antônio dos Militares, enquanto os enforca- depois Ricardo Franco resistiu heroicamente e, num dos dormiam sono eterno em torno do cruzeiro da capela de dado momento, o fogo espanhol cessou. Foi uma ban- São Benedito. deira branca e surgiu um emissário com a seguinte intimação: O altar (alguns entalbes ainda existem) era de altura desco- "A bordo de la goleta Nuestra Señora del Carmen, 17 de Se- munal, com suas colunas retorcidas e anjos que se projeta- tembro de 1801. Ayer a la tarde tuve el honor de contestar el vam, soprando trombetas. Bancos existiram só na sacristia; fuego que V. S. biso de ese fuerte; y habiendo reconocido eram compridos, de encosto recortado e podiam comportar que las fuerzas con que inmediatamente voy a atacarlo son seis pessoas sentadas; vi-os aos pedaços. Na nave não havia muy superiores a las de S., no puedo menos de vaticinarle bancos. Cada religiosa mandava fazer uma de el último infortunio; pero, como los vasallos de S. Majestad igreja, de assento movediço, empalhado ou mesmo encoura- Católica saben respetar las leyes de la humanidad, aún en do; a parte do espaldar era usada para a frente, sendo larga medio de la guerra, portanto pido a V. S. se rinda a las armas em cima para apoio dos braços; levantado assento empalha- del-rey mi amo, pues de lo contrario, a y a espada deci- do, aparecia uma bonita almofada de veludo para apoio dos de la suerte de Coimbra, sufriendo desgraciada guar- joelhos. Existem muitas dessas em Vila Bela, al- nición todas las extremidades de la guerra, de cuyos estragos gumas artisticamente trabalbadas, com nome da possuidora se verá libre V. S. si conveniere con mi propuesta, contestan- embutido em marfim ou Os homens não usa- do-me categoricamente esta el de una hora. D. Laza- vam essas cadeiras. Mandavam fazer genuflexório, que qua- ro de se como a cadeira, mas, sem assento. Tem somente a almofa- A resposta não se fez esperar; ei-la: da de veludo embaixo. De um lado e outro do altar-mor ain- "Forte de Coimbra, 17 de setembro de 1801. da existem duas portas que dão entrada as sacristias laterais. a bonra de responder a V. S., categoricamente, que a Numa dessas havia uma cômoda gigante ou arcaz, com seis desigualdade de forças foi sempre um elemento que muito metros de comprimento e um de largura. Está agora no animou portugueses a não desamparar seu posto e defen- cio dos capitaes-generais. Para sair da sacristia, lamentavel- dê-lo até a última extremidade: a repelir o inimigo ou sepul- mente teve de ser cortada em duas. Possui dez gavetões com tar-se debaixo das do forte que foi confiado. Nesta puxadores pesados de ferro batido, encimados por uma cruz resolução está toda a gente deste presídio que tem a distinta de malta. A parte da frente dos gavetões almofadada. Servia bonra de ver em frente a excelsa pessoa de V. Exa. a qual para guardar os paramentos. Não sei ao certo peso exato Deus guarde. Ricardo Franco de Almeida Serra". dessa mas prefeito, Sr. Bruno Profeta, disse-me que A batalba travou-se de Ri- cada gavetão pesa setenta quilos, e que foram necessários dez bera, com grandes perdas, foi obrigado a retirar-se. homens para conduzir somente corpo da cômoda, uma vez 39</p><p>AS ALFAIAS que os gavetões foram levados a parte. A madeira e putumu- As alfaias das duas igrejas de Vila Bela estão encerradas numa sendo o tampo de cima uma tabua. Eu achei um pouco pesada arca, que possui três fechaduras. Chamam-na, muito de exagero e verificar se não alguma emenda... não acertadamente, arca de valores. Cada irmão (subentende-se Calculei que esse putumuju deveria ter, pelo menos, presidente, secretário e tesoureiro), guarda em seu poder uma trinta metros de altura para que do seu toro fosse serrada uma chave. Quando convocados com antecedência, eles aparecem tabua de um metro de largura por seis de comprimento; se- e abrem a arca. É um verdadeiro tesouro. ali uma coroa de riam necessários quatro homens para abarcá-lo! ouro pesando um quilo. uma outra menor, A via sacra dessa igreja, lamentavelmente, aos pedaços! muito rica. A deve pesar mais de dez de prata Talvez não exista outra no Brasil. Não é de gravura, nem pin- e ouro, toda cinzelada. As ambulas são de prata dourada. Pe- tada a óleo. É de barro. Obra de autodidata. O artista fez as pequena, mas que chama a atenção pela sua rara beleza, e caixas, sem tampa, de sessenta centimetros por quarenta, ten- a que conduzia viático. O sacerdote, sob a umbela, colocava do de altura quinze; e dentro esculpiu, em barro, as figuras, essa peça sobre peito; em sua passagem, todas as pessoas ajoe- tampando-as com vidro. Os catorze quadros são dignos de re- respeitosamente. Chegando a casa do enfermo, o gistro; não só pelos detalbes curiosos da escultura, mas, sobre- padre, após confessá-lo, abria um lado da peça e tirava a tudo, pela dramatização que empolga e pela piedade que tia para a comunhão; caso houvesse necessidade, abriria o ou- artista soube imprimir no rosto dos personagens. tro lado onde estavam os óleos bentos para a 27 40</p><p>Os turíbulos são de prata, todos do século XVIII. As navetas grados, em em formato de gomil, que são de prata, e uma delas e do século XVII. Repre- eram usados para guardar os santos óleos. senta uma nau portuguesa, sem velas. ainda, cetros para Perguntei, certa vez, a um velho sacerdote, cujo nome decli- as diversas festas, de prata para bandeirolas, cordões no com profundo respeito João Batista Van Esse - qual de ouro, anéis etc. motivo de Santo Papa haver abolido uso do nas Vi não ai entre as peças da arca, mas num cômodo cerimônias litúrgicas, ao que ele graciosamente respondeu: de uma casa em ruínas, diversas peças de estanho para uso li- cálice grande foi abolido porque não era muito túrgico, dentre elas um cálice enorme, em cuja parte reserva- andar de boca em boca... or cálices pequenos, que vieram de- da ao cabia um litro e meio. Essa peça mais de pois, não aprovaram; por mais que lavassem, quatrocentos anos!... Na Idade Média, não era o padre quando a gente ia tomar sentia um travo e era obri- quem bebia a era Depois de con- gado a fazer uma careta. fessados, os católicos a mesa de comunhão e ai vinha o padre depositar, na lingua de cada um, a sagrada UM QUADRO, EX-VOTOS hóstia; vindo em seguida sacristão levar à boca dos cristãos aquele cálice, para cada um tomar um gole, com fim de Nesse mesmo cômodo, um quadro de um metro por ses- dissolver mais facilmente a Ali estavam dois vasos sa- senta centímetros mais ou menos, que me chamou a atenção, 28 27 Salva de esmolas, princípio do século XVIII, ainda com goldrões. Coleção: Dr. Roberto Lemos 28 Mesa "D. João em jacarandá, com abas e babados, cerca de Pertenceu ao irmão Joaquim do Livramento. Adquirida em Florianópolis, Santa Coleção: Charles Edgar 41</p><p>não pela obra de arte, e claro, mas pelo espírito de religiosida- ram novamente chamados e sino subiu para campanário. de daquela Representa a pintura de um bote em plena Na logo cedo, o pintor foi a missa. O vigário não correnteza do rio. Dois homens remando: um atacado por estava Subiu ao púlpito e, num veemente enorme sucuri que já com a boca aberta para the morder sermão, condenou os comerciantes que não bons pescoço. O companheiro, vendo perigo iminente, de pesos e boas medidas e que estavam se locupletando com mãos postas, invoca a proteção de Santo Antônio, que apare- suor do povo. Atacou os falsários que empregavam truques ce de um lado do quadro. Ato emerge da de toda a ordem para lesarem próximo. Condenou escra- um jacaré que está com os seus dentes ameacadores a vos que não sabiam cumprir seus deveres e confessou não ser morder a cobra! Escapando, assim, milagrosamente de uma contra os senhores que os Jesus expulsara do morte certa, os homens mandaram pintar quadro e expu- templo os mercadores! E terminou pateticamente: "Castigar seram na igreja. Em baixo da tela está escrito, na linguagem os que erram e obra de de origem, seguinte: Esse domingo era dia 6; na terça, seria inaugurado sino. O "Dia quatorze, mez da Sra. Santana anno 1779 ambos ir- vigário expedira carta ao governador e D. mãos & João Baptista que biam em hum bote pro Casal Antônio Rolim, convidando-o a paraninfar ato. Vasco forão salvados por do milagroso S. Antonio que O açoreano saiu da missa e não teve mais sossego! Aquela úl- mandou jacaré pegar uma tima frase do vigário no seu cérebro. estava comple- Se do Brasil desejar estudar pintura desde seus al- tamente fulminado! bores, tera de recorrer, naturalmente, a esses quadrinbos ex- De repente, uma idéia. arrumou a mala, escon- votos, do século XVIII. deu-se no mato e, 21 quando a cidade dormia, to- mou um bote e desceu Ao meio-dia da segunda-feira, estava exausto pelo esforço LENDA DOS SINOS DE VILA BELA despendido no remo e viajara só oito Com febre e cheio de inguas, resolveu ficar por ali até melhorar. Dormiu Quase todos os sinos da igreja da Santissima Trindade estão profundamente. perfeitos. Existe uma lenda a respeito do sino grande, fundi- No dia 8 de setembro de 1754, Vila Bela engala- do em 1754. nada. A banda de música dos Dragões tocara a alvorada as Vivia, em Vila Bela, um que fora contratado para quatro da As seis, a garbosa oficialidade pintar a igreja; terminado esse trabalho, o homem perdula- va que se dirigia a Santissima Trindade. A riamente gastara todo seu Sabendo que vigário praça estava repleta de povo. A banda rompeu um dobrado. estava em dificuldades para conseguir sino, arvorou-se em Procurado por toda a parte, não foi encontrado o pintor. O fundidor e foi procurar bom cura para oferecer-lhe os présti- vigário ordenou ao sacristão para desembaraçar badalo do mos. O vigário aceitou os serviços do homem, logo sino, o que foi feito. O padre, do patamar da igreja, num vi- uma quantia para obtenção dos metais para a liga. Comprado brante improviso, fez ver ao povo de Vila Bela que repre- material necessário, o falso fundidor voltou do sentava sino na vida da cristandade, simbolizando um ins- padre e que, em sua prática do domingo, pedisse trumento de Deus.. Saudou calorosamente governador, D. as e que trouxessem das minas ouro em Antônio Rolim, e toda sua guapa oficialidade defensores pó, porque assim o sino ficaria com melhor som. da e da e convidou para O padre fez apelo e povo começou a trazer ouro para inaugurar sino. D. Antônio Rolim entrou com vigário pa- acoreano; e este foi guardando. mas logo muitas linguas ra batistério, do lado direito, onde se encontrava a ponta da a comentar.. e o bom cura, não querendo ser lo- corda e impulsionou-a, diversas vezes, pausadamente. Um grado, determinou que, dali em diante, guardassem ouro som vibrante e aveludado encheu todo espaço, indo ecoar para que fosse jogado na calda do metal em ebulição. bimbalbando nas e vales distantes, acordando Vendo pintor que os seus planos estavam frustrados, resol- veu guardar ouro que havia recebido e fazer uma limalha O povo vibrou de alegria! de metal amarelo para jogar no tacho, na presença do vigário. No dia marcado, foram as da cidade e da con- vocadas para atirarem o ouro ao tacho. Organizaram-se em fi- IGREJA DE SANTO ANTÔNIO DOS MILITARES las, cantando; colocaram o pó do ouro nas barras de suas saias e, chegando a beira do tacho, atiraram ali, na frente do vigá- A legendária igreja de Santo Antônio dos Militares, também rio, as suas oferendas. O pintor trouxe seu "ouro" numa chamada Igreja dos Laranjais, está situada no cais do porto do garrafa e despejou-o, no tacho. rio Guapore, distante 300 metros do centro da cidade. Sua O agradeceu boa gente que atendera ao seu pedra fundamental foi no dia 1.° de de 1779 apelo e todos voltaram aos seus afazeres. por Luis de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, que pa- Pronto sino, o provou-o, num momento em que trocinou a sua construção. Em 1784, houve uma grande en- os escravos, seus ajudantes, tinham saído. Embora batesse le- chente no rio, as aguas a igreja e invadiram a ci- vemente para não despertar curiosidade, constatou que havia dade. João de Albuquerque, anos depois, mandou fazer fracassado! Amarrou, então, na parte inferior do badalo, a cais com enormes pedras retangulares e muito bem trabalha- corda e um pano bem dobrado, para que pudesse das, numa extensão de 300 metros. Mandou também colocar experimentá-lo antes do dia. um patamar em toda a volta da igreja, protegendo-a. Orde- A festa estava marcada para dia 8. Os escravos fo- nou, ainda, que fizessem um muro de três faces e, dentro de- 42</p><p>le, plantassem laranjeiras, o que foi executado. Mal sabia Em 1819, foi nomeado marechal Francisco de Paulo Mages- nobre que estava enfeitando seu próprio se Tavares de Carvalho, governador da Capitania. Sua esposa, mulo... muito gorda e vaidosa, fez o marido comprar novamente A imagem de Santo Antônio, padroeiro dos militares, palácio de Casalvasco, para que ela fosse veranear todo fim- chegada do Porto, teve no cais uma grande recepção. de-semana. Dias depois, na festa do batismo, foi lida uma ordem do dia A primeira dama de Vila Bela montava a cavalo, saía com sol- promovendo santo português a alferes, com ordenado de dados e escravos para ir caçar ou pescar, coisa muito natural trinta mil nos dias de mas demasiadamente liberal para os usos e Na igreja de Santo Antônio, estão sepultadas figuras notáveis costumes daquela da Capitania; entre elas, destacamos: O padre Francisco Xavier de Azevedo Tavares de Carvalbo, ir- João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, quinto mão do marechal, era secretário do governo e vigário da San- governador e sucessor de de Albuquer- tissima Trindade. Ele não ignorava os desairosos comentários que, seu irmão. O homem que construiu cais, que mandou da população endereçados à sua cunhada. plantar laranjal e que obteve, finalmente, um tratado de Procurou, todavia, um meio de redimi-la perante a opinião paz entre os portugueses e os chefes guaicurus; pública. Fez irmão comprar dele mesmo, governador, Manoel Carlos de Abreu Menezes, sexto prédio de Casalvasco, pelo mesmo preço que adquiri- governador, falecido em Vila Bela no dia 8 de novembro de do (1400$000), com bom propósito de instalar naquele pa- 1805; lácio uma escola destinada catequese. Tenente-coronel do Real Corpo de Engenheiros, Ricardo A direção do novo estabelecimento de ensino foi entregue a Franco de Almeida Serra, sucessor dos dois capitaes-generais um padre da grei jesuita, com a supervisão de da so- acima, no governo da Capitania (interinamente). ciedade, tendo a frente a esposa do próprio governador. Adriano Taunay, pintor, primeiro da Comissão A primeira dama continuou a montar, não mais para as extra- Langsdorff, falecido em 5 de janeiro de 1828 (afogado nas vagantes mas, agora, para a nobre missão de visitar as aguas revoltas do tocas e trazer crianças indigenas para a nova escola. Existe uma controversia quanto ao local em que faleceu Ricar- O padre jesuita uma velha imagem de Santo Antô- do Franco. O erudito cuiabano, de Mendonça, afian- nio... Um Santo Antônio de pescoço muito comprido e que que grande morreu no Forte de Coimbra. Escritores ele, velho catequista, obtivera de uma antiga missão, nas ter- portugueses em dúvida essa assertiva; em todo caso, ras do Paraguai. Um Santo Antônio magro, de historiador cuiabano dispunha, no próprio local, de grandes faces encovadas. Tão pobre que até a sacola que trazia fontes elucidativas. Vamos, pois, transcrever aqui a legenda costas pedindo esmolas estava furada, deixando aparecer um que existiu no do bravo oficial, segundo de pedaço de Um Santo Antônio que um só Mendonça. to, roto, de mangas bem compridas Enfim, um Santo An- "R. F. A. S. tônio esmoler e sofredor! "Cel. R. C. E. O santo foi levado para a nova escola. Quando os meninos "Que gloriosamente defendeu Coimbra 1801 & no mesmo não queriam obedecer ao mestre, bom jesuita ia ao fundo lugar faleceu em 21 de janeiro de da sala, colocava a mão esquerda a mola existente atras do ca- Essa legenda estava escrita num pranchão retangular seme- puz do hábito e perguntava: "Santo Antônio, não é peca- aos que descrevemos na igreja da Santissima Trindade. do menino atirar pedras no do vizinbo?". Santo An- O historiador de Cuiabá afirma que heroi faleceu em Coim- com seus piedosos, a afirmati- bra, no dia 21 de janeiro de 1809, e que os seus ossos foram sepultados em Vila Bela, no dia 24 de agosto de 1810. As crianças, atemorizadas, obedeciam. Estudavam mais as A tradição oral, no entanto, que Ricardo Franco faleceu em suas lições e as suas rezas. Vila Bela, sendo sepultado com sua espada de ouro... Foi pena que acontecimentos políticos tomassem outros Um oficial, general do nosso Exército, em 1948, foi a Vila Be- mos e a catequese tivesse de extinguir-se. la fazer escavações num altar lateral da igreja de que nos ocu- Falava-se em Vila Bela na mudança da capital para Cuiabá; e pamos. Encontrou ossos e botões de fardamentos; mas, marechal Magesse era favorável a essa mudança. num gesto contratou alguns homens, adquiriu te- As forgas de Coimbra e do Forte Principe da Beira amotina- e mandou cobrir para que não caissem de ram-se. E quando o marechal ordenou que as tropas de Vila uma vez. Bela partissem para abafar aquele levante, a oficialidade local A imagem de Santo Antônio, verdadeiro primor de arte reli- rebelou-se, depondo governador. giosa, foi retirada em 1908 para a Matriz. Tendo teto deste Formou-se uma junta governativa em Vila Bela e outra em templo desabado, em 1922, passou para a igreja nova, onde A rivalidade entre as duas cidades era tremenda... se encontra. Finalmente, depois da Independência, a corte de Pedro I prestigiou a junta de e, aos poucos, os se fo- ram serenando em Vila Bela, até que, em 1835, foi extinta LENDA DE SANTO ANTÔNIO DA CATEQUESE definitivamente a junta da velha capital. A catequese, por essa época, havia terminado; mas sua se- Quando de Albuquerque fundou Casalvasco, fez cons- mente fora plantada em terra Se não, vejamos: truir ali um palácio para veraneio dos capitaes-generais. Mas, Estando palácio de Casalvasco, em 1892, em ruínas, re- trinta anos depois, caiu de uso esse veraneio, sendo a proprie- solveu zelador da igreja local levar a velha imagem da cate- dade vendida. quese para a Matriz de Vila Bela. 43</p><p>Tempos depois, os índios, não vendo mais Santo Antônio, deixem abandonadas as suas para atirar-se a essa folga dirigiram-se ao zelador para que este desse conta da imagem. de trinta dias. O homenzinho, apertado por todos os lados, foi logo dizen- Eu penso diferente. Para rebater alegações dos padres, cito do: aqui as famosas romarias brasileiras muito minhas conheci- "Santo Antônio foi pra Vila Bela... das. Faço exceção, unicamente, a romaria de Nossa "Quem o levou?" Aparecida, por ser realizada numa cidade que conta com "Ora, ele foi a e acomodações suficientes. e confortáveis para abrigar um gran- Os índios arregalaram os olhos e estremeceram! Enquanto de número de peregrinos. zelador continuava: "Então vocês não sabem que Santo E Bom Jesus da Lapa no rio São Francisco? Cidade pauperri- Antônio transporta-se, sem que ninguém leve? Ora essa... ma, sem e luz, com uma população de seis mil almas e Pois ele saiu de Pádua e foi a Lisboa... como que não pode que, na festa que vai de 1 de julbo a 6 de agosto, recebe nada andar três léguas daqui a Vila Bela?' menos de duzentos mil romeiros! Dormem aconchegados na Quatro dias depois, setenta índios bem armados foram a Vila maior promiscuidade.. A gruta de Bom Jesus não comporta Bela exigir do vigário Santo Antônio. Alegaram que aquela mais de mil pessoas; ficam la duas mil de corpos colados, ho- imagem pertencera a escola onde os seus pais e avós aprende- mens e vêm caminhões e mais super- ram a rezar... a escrever as primeiras letras... que lotados, dos estados de Minas Gerais, São Paulo, Per- dormiam debaixo da terra... mas eles, os filbos, ali estavam nambuco, Alagoas, Sergipe e da própria vêm lanchas, para levar santo de qualquer jeito! canoas e botes pelo São Francisco despejando, dia e noite, O vigário, não querendo entregar aquela reliquia patrimonial gente em Bom Jesus da Lapa. As moças e as casadas da igreja, recorreu ao delegado de polícia; mas este fez ver ao estão expostas, nesta e noutras romarias, maiores tentações. que estava só com três soldados que era bem melhor Os veículos, que vêm de plagas geralmente que- entregar a imagem. bram duas ou mais vezes pelo e os seus passageiros, Determinou, então, vigário, que os levassem santo, de ambos sexos, dormem no mato aos grupos. mas que o venerassem com muito zelo. E a não menos famosa romaria da Santissima Trindade, em O indio mais pôs a imagem ao ombro e desceu com ela que reúne cento e vinte mil pessoas? E Congonbas do para cais, seguido pelo resto da tribo, na maior alegria. Campo? E Itaiussu? E Juazeiro "do meu padrinbo" padre Num dos botes, havia já um serrote adrede preparado e os in- Cicero? E Bom Jesus do Iguape? E Nossa Senhora das Neves dios deceparam os de Santo Antônio, para que ele não na E no Essas onde o jogo campeia, mais "fugisse" de Casalvasco. onde os furtos se multiplicam, onde sórdido meretrício im- pera, onde a lepra e a tuberculose se expandem assustadora- mente, onde os latrocínios se sucedem, onde os acidentes cei- FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO fam a vida de muitos de nossos patrícios; e mais uma cia de crimes de toda a natureza, muitos deles incompatíveis A tradicional festa do Divino Espírito Santo foi introduzida com de religiosidade do nosso mas essas não em Portugal no século XIII, pela rainha Isabel de Aragão a atentam a moral da Por quê? Eu respondo: só a ro- Santa Isabel, bondosa rainha que foi canonizada em 1625. maria da Lapa, rende quarenta milhões para cofres da Bar- Em quase todas as cidades do Mato Grosso e do Brasil, ra! Quando levanta a voz para dizer que a romaria festeja-se De cada sede de município, e mesmo das rende milhões e a cidade encontra-se no mais completo aban- igrejas de vilas e povoados, sai um bando de trinta a quarenta dono, sem encanada, sem esgotos, sem escola, os padres pessoas pelos sítios e fazendas, conduzindo a bandeira, a lin- holandeses respondem, aliás cheios de razão, que isso compe- da salva de prata para recolber as esmolas e os violões e pan- te aos poderes públicos. Mas volto carga: e as instituições deiros. Chegando a bandeira a uma fazenda, e beijada por pias, aonde estão? E as casas para abrigar esses romeiros, aon- todos. E os cantadores entoam versos, pedindo esmolas. Em de estão? E seminário da diocese que dez anos ficou nos seguida, a dona da fazenda segura a bandeira e percorre com alicerces em Correntina? E uma Santa Casa para cicatrizar as ela todos os cômodos da casa. O fazendeiro desmancha-se em feridas desse povo nobre e generoso, que dá tudo que tem e amabilidades. Manda abater leitoas, perus e galinbas. Ofere- chega sem ter ao menos um asilo com uma rede ou ce vinte ou trinta garrafas de pinga e a prolonga-se uma enxerga, onde possa suavemente entregar a sua alma a até alta madrugada. Dessa fazenda duas mocinhas acompa- Deus? nham a bandeira porque têm de ir mesmo a casa do tio tal, por Aos prefeitos respondo com o "nem de onde passa bando.. e assim grupo vai se avolumando. pão vive homem". Na desses festejos, roceiro já Na maior parte dos lugares, a importância das esmolas não se a sua e já fez a sua queimada. Nesses passeios ele destina igreja e nem a nenhuma casa de caridade; é gasta aproveita a oportunidade para comprar um touro de um toda em bebidas e comezainas. compadre, para reprodutor em seu sítio; vende seu milho já Os padres estrangeiros têm lutado em suas paróquias para ex- vê o modo pelo qual se processa um tratamento tinguir essa festa, alegando que, além de ser prejudicial aos novo aos animais e própria lavoura, adquirindo melhores seus interesses econômicos (da igreja, claro...), responsável conhecimentos; distrai espírito e expansão a fé. Observa por um certo número de fatos que atentam à própria moral progresso dos e volta, depois de um mês, com da Os prefeitos estão ao lado dos na argu- energias redobradas para recuperar, facilmente, a sua mentação de que a lavoura ressente-se de e eles não cia do trabalho. podem permitir que cem homens ou mais em cada comuna Como extinguir, pois, festa tão tradicional que nos legaram 44</p><p>os nossos portugueses? Nas grandes cidades cine- Lamentavelmente, tive de viajar no dia seguinte e não pude mas, clubes boates, teatros, televisão e mais uma conseguir as letras dessas interessantes canções juninas que fa- infinidade de divertimentos. Por que abolir a festa do Divino lam tão suavemente a nossa alma, máxime num sertão lon- Espírito Santo? de nossa terra, pronunciadas por gente nossa Saibam senhores padres alemães e que a nossa numa festa tão tradicional quanto evocativa, que comove pela pátria foi colonizada por um povo pequeno e que e singeleza. dominou dois continentes e ainda viveu em guerra com uma nação vizinha. Desse povo herdamos a lingua que não possui dialetos e compreendida em toda parte do nosso território, POAIEIROS do Oiapoc ao das brancas praias de Ubatuba, onde An- chieta escreveu o seu poema a Virgem, margens do Guapo- Dia que oferece oportunidade a emocionante festa em Vila re e do Bela, e a partida dos A festa do Divino não pode ser extinta porque ela e outras A poaia, planta poligalácia (polygala poaya), ou tantas, com sua graça, sua simplicidade, com seus aspectos como também chamada, emprega-se em linhas folclóricos, enfim, têm contribuído para solidificar a uni- de produtos farmacêuticos. a sua grande procura no mer- dade inquebrantável da nação brasileira, que outros povos in- vejam. No mês de maio, sertanejos fazem na igreja local as primei- ras novenas dedicadas a Virgem Maria; e começam os prepa- rativos para a viagem que se prolonga por três meses, beiran- BANHO DE SÃO JOÃO do Cabixi, afluente do Guapore. O suprimento para a viagem o seguinte: enxadões para arrancar a raiz da poaia, Na de São João, a cidade amanhece toda arborizada pólvora e cartuchos, farinba de mandioca, fósforo, fumo de artificialmente com lindas ramagens. As bandeirolas de papel rolo, bolachões de de trigo, rapadura, paus de guara- de seda, numa profusão de cores, dão-nos um ambiente ale- café em pó e Carne não levam, pois naqueles gre e festivo. As sete da noite, acendem-se as fogueiras por to- matos a caça abundantissima: a anta, o caititu, bandeira, das as ruas. Dir-se-ia que um grande incêndio faz arder toda a macaco e mais uma infinidade de caças que satisfazem to- cidade. Os rojões espocam no espaço e, cá embaixo, outros, dos os apetites, mesmo acontecendo com a pesca nos rios, menos estridentes, que são as bombinhas, os e os córregos e lagoas. traques, gozo delirante da petizada. Terminados os preparativos, marcam a partida. No dia apra- De repente, surge na rua de São Benedito um andor, todo zado, toda a população acorre ao cais do Guapore para enfeitado, conduzido por quatro bonitas moças, vestidas a ca- bota-fora. Duas ou três lanchas a motor conduzem cerca de sobre andor, linda imagem de São João esculturada 150 ou 200 homens e decididos que partem para em madeira, dourada e pintada moda antiga, dá-nos a arrancar da terra a famosa da impressão de pertencer a algum oratório colonial que se Chegada a da despedida, um guapo e belo rapaz de cor oculta nas alcovas indevassáveis dos casarões de outrora... empunha um violão com outros amigos e, com bonita voz, Cerca de cem pessoas acompanham, cantando, andor de inicia uma canção, enquanto de todos os barcos, os poaieiros São João que se dirige ao cais do Guapore: respondem em coro: "Meu S. João, meu padroeiro, "Poaieiro se vai, Dai-me fé, dai-me esperança.. Deixa aqui seu amô 0000 Dai-nos paz, prosperidade, Pra pedi boa viagi, Dai-nos dias de Nus de Nossu Sinhô 0000 As flautas, cavaquinbos e os pandeiros acompa- Poaieiro se vai, nham essas canções brejeiras. Chegados a beira des- Já se vai prô seu labô 0000 cem andor, tiram dele São João e um sim- Vai manda sua mensage, bólico. A desdobra uma fina de linho, com Nus bico dos maravilboso de labirinto, e enxuga a imagem que Poaieiro se vai, volta andor. Os gritos de "viva São são ensurdece- Já se vai Cabixi iiii dores, enquanto os fogos de bengala iluminam todo cais, Vai arma a sua rede, não bastasse a lua cheia que despontara da serra, projetando Num rancho de buriti jatos de luz sobre as aguas do Terminada a canção da despedida, motores começam a Aquele grupo volta ao ponto de origem, enquanto se ou- funcionar. No cais, os os beijos e as recomendações vem novas canções denunciantes de mais um São João que se finais. Afastam-se as pranchas. Movimentam-se as embarca- aproxima e assim se vão sucedendo alta noite. alcançando a forte correnteza. As redes multicores e Em volta das fogueiras as mocinhas com bacias que- avarandadas enfeitam convés dos pequenos barcos. Os rem ver a fisionomia dos seus futuros maridos... Um velho tremulam, agora balançados por uma brisa suave. Os sor- coloca numa tabua doze torrões de sal, para observar se no dia risos continuam, as lágrimas descem como pérolas, enquanto seguinte estão derretidos; se segundo torrão se derreter por os soluços param na garganta. Recomeça a canção, abafando inteiro, certamente mês de fevereiro vai invernar... Um me- ruídos dos motores: nino planta um dente de se brotado é indi- "Poaieiro se vai, cio de casamento; caso contrário.. ficará solteiro. Já se vai seu labô 0000 45</p><p>Vai mandá sua mensage, Durante um século e meio não se construiu ali uma única ca- Nus bico dos sa. Não existem aparelhos de e cinema. Não existem Os gaiolas desaparecem na curva do rio que rola para norte. Adeus poaieiros! campos de A cidade teve, em sua de esplen- dor, seis mil habitantes; tem mil e poucos. Passa-se por uma rua e vê-se a janela uma com chale cabeça e tem a gente de tomar-lhe a ao que ela res- AS LAVADEIRAS ponde, depois de levar os dedos aos lábios e estender a mão espalmada: "Deus te abençoe, meu ou então: - Quem descer ao cais a qualquer hora do dia para banhar-se, "Deus te Todas as crianças nos tomam a bên- do lado de cima, a uns setenta metros de distância, mui- e ai daquela que esquecer, porque leva logo um tabefe e tas lavadeiras "batendo roupa". Ouve-se um falatório inter- um carão na nossa frente: - "Então, menino, não sabe res- todos os acontecimentos da cidade são ali debati- peitar os mais Se duas pessoas conversam, uma ou- dos em tricas e futricas tra, mesmo adulta, para passar pelo meio, não pede licença: De vez em quando uma daquelas atira-se a abaixa muito corpo e passa. completamente Os homens, do lado de veem tudo! Durante a noite vem uma serenata frente de nossa casa e Mas e uma coisa muito natural. É um costume herdado dos mos obrigados, pela etiqueta local, a abrir a porta e servir, na Guaicurus, pois na cidade existe respeito. calcada, bebida aos seresteiros. Caso assim não se proceda e Em Vila Bela são poucas, as famílias que dão grave falta de educação que não condiz com bons costu- roupa para Geralmente aquelas mulheres lavam as mes. Sentar na igreja, a frente de uma suas próprias roupas, secando-as ali mesmo na beira do rio. falta grave. Se uma pessoa chega à cidade e não vai reza na Quem de relance para os varais, vera predomínio qua- igreja ou a um "terço" numa casa particular, considerada se total do alvi-rubro. E que noventa por cento da população nova As pessoas mais abastadas da redondeza, tra- pertence a raça negra. tam "major"; e alguns, por costume dos Um costume completamente diferente das outras cidades tratam: Dom Francisco, Dom Miguel etc. brasileiras eu notei no modo pelo qual se portam as senhoras. Por incrivel que pareça, dão-se cenas como esta: numa pales- Elas possuem em suas casas, bancos, tamboretes e, as vezes, tra noite, uma das principais figuras do lugar dirigiu-se ao cadeiras; mas dificilmente tomam assento. Arregaçam a saia, dono da casa nestes termos: - 'Cumpadre, tem uma gaze- puxando para frente entre as pernas e, torcendo-a numa ope- O homem entrou, trouxe uma folha de jornal entregan- ração muito acocoram-se, ficando com as meias coxas do-a ao visitante: - "Vou ao mato, peço E saiu. à vista. É costume generalizado. E que resistência extraordina- Chega-se a uma fazenda e perguntam logo: - "O senbor ria... podem levar dia todo de cócoras, à porta da casa, fu- trouxe rede?" E quando anoitece, a luz de uma candeia anti- mando em cachimbo de barro. ga, de azeite, vem a dona da casa com uma bacia de cobre de As lavadeiras ficam de cócoras, tendo a frente uma duas asas (não confundir com tacho). Eles chamam bacia de laje para bater a roupa. Quando batem uma rede têm de le- arame (no entanto, não estou bem certo se de cobre ou de vantar-se, embora contrafeitas. Findo trabalho, as roupas latão), contendo quente e salgada para visitante lavar são estendidas e enquanto secam, as lavadeiras jogam-se ao os Banbo não oferecem, porque falta de educação. Ba- rio, nuas, pulando umas sobre as outras, num folguedo mui- nho é lá no córrego, mas antes do café; porque se tomar café e to indigena. Saem à praia, vestem uma said branca e por cima for ao as pessoas da casa dizem que hóspede e doi- um vestido vermelbo (dizem sempre: encarnado). Calcas, do. - "Isso e coisa que se qualquer dia não usam, Em seguida penteiam-se; operação demorada, vis- istupô!" to que as mulheres cruzadas com têm cabelos longos que vêm aos joelhos; a grande maioria curto e rebel- Nos tempos das minas de havia ali um por- tuguês, Manoel Alves, muito rico e que costumava servir os de. Recolhem as roupas enxutas, colocando-as num cesto, que iam a sua casa comprar ouro, de escravas que levam a cabeça, baixando as mãos. E graciosamente, num jogo de cintura, vão equilibrando cesto, cantando. As escolhidas e completamente nuas. Esse mesmo crianças vêm mais carregando os potes de que era pretendeu fazer um grande sobrado na praça Chegadas a casa, vão passar a roupa. Colocam no fogo duas principal de Vila Bela para sua residência, mas foi barrado cunhas de ferro, uma espécie de lingüeta; quando estas ficam Sendo terreo palácio dos capitaes-generais, não ficaria bem em brasa, a passadeira, com um pegador de ferro, coloca uma que um sujeito qualquer, mesmo com muito dinheiro, fosse morar no só lingüeta em brasa dentro de um ferro de passar de metal, fechando-o. a passar a roupa e, quando ferro esti- ver esfriando, a mulber volta ao fogão, tira aquela lingüeta já UM POVO FORTE fria, trocando-a pela outra que la ficou e que encandesci- da; assim sucessivamente. Apesar do clima brusco, o povo de Vila Bela e de boa consti- tuição A afirmação de Euclides da Cunha, "o sertanejo A CIVILIZAÇÃO MODERNA NÃO PENETROU EM e antes de tudo um forte", e ali plenamente ratificada. Todos VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE os habitantes da cidade tiveram maleita, mas curaram-na com pinga. Existem ali muitos negros e negras que bebem duas Na em que a visitei, Vila Bela era a única cidade no garrafas por dia; mas não se vê nenhum Vão para a Brasil que conservava intactos todos os costumes coloniais. poaia, para os seringais, trabalham desesperadamente e vol- tam com mas enquanto este não acabar, traba- 46</p><p>não com eles! E violão, dança do cururu e serenata sob um grande globo de porcelana leitosa, tendo ao meio regada a pinga. uma bola de ferro, pesada, que servia para levantá-lo e abai- de correntes. A parte do recipiente de querose- ne, era de uma e florada, que os colecionado- BOTIJAS res chamam de majolica. De aparece velho com olhares misteriosos, sempre Em toda cidade velha do nosso país, sempre a idéia fixa de acompanhado do rapaz e, agora, de mais menores, que que existem botijas enterradas. O povo de Vila Bela me tomaram a Em seguida despejou sobre a mesa se arraigado nesta aliás muito natural, pois não ha- nada menos que trinta e duas moedas, inclusive duas de ou- vendo bancos naquela e estando a população constan- ro, de seis mil e quatrocentos réis, ambas de 1779, cunhadas temente exposta aos ataques dos índios e dos era no Rio de Janeiro com efígie de Maria I e Pedro III, fato que evidente que os possuidores de ouro e prata recorressem ao veio logo provar que cruzeiro fora erguido vinte e cinco anos "enterro". Este era feito em casa, debaixo da cama, num dos após início da construção da igreja. As moedas de prata quatro cantos da alcova, ou então no mato, na ponta de uma eram verdadeiras jóias numismáticas: 600 com letra J (nome pedra, ou ainda no tronco de alguma arvore secular. Muitos do monarca I) 300J, 150J, 75J, umas do Rio e outras da arrancaram essas botijas de sonbos que jamais foram Babia. Havia também uma peça de 640 ou duas patacas, revelados; do contrário tesouro mudaria de lugar. Mesmo como chamavam, de 1758, letra B Adquiri achado depois de arrancada a botija, beneficiado teria de do velho. durante dois anos; e ai daquele que não cumprisse que the fora determinado em pela alma do outro mundo.. Que determinações são essas? Perguntamos curiosamente e os O TESOURO DO MALUCO sertanejos nos "duas missa pra São Benedito, um terço pra Sant' Ana, um maço de É crença popular que um velho, dono de uma grande mina vela pro Santo Antônio e dez missa pras alma". de ouro em Chapada de Ana, por ocasião dos motins encontrado em Vila Bela muitos por in- nos fortes do norte do Guapore, temendo que as vies- de e intuições e a maior parte deles, por sem à Vila Bela e a saqueassem, chamou um escravo fiel e or- coincidência. Falando no assunto a um preto eu the denou que este conduzisse uma arca de ferro para a beira do disse que debaixo do cruzeiro abandonado havia de ter moe- rio. Lá chegados, puseram a arca numa canoa e remaram rio das, pois era uma usança antiga, que até hoje perdura, quan- acima, na direção de Casalvasco. No tronco de uma arvore se- do se levanta um cruzeiro ou a base de uma grande obra, as cular, escravo cavou um grande buraco e por trás, pessoas presentes costumam jogar moedas e outros objetos atirou-lhe de garrucha na nuca, enterrando-o juntamente que possuem em seus bolsos. O velho retirou-se e logo mais, com tesouro. a tarde, apareceu-me seu filbo com vontade de tentar fazer Dias depois, velho, corroído pelo remorso, enlouqueceu. que eu sugerira ao pai; mas muito temeroso, porque ser- Metido em camisa de força, morreu sem revelar família lo- havia de ser feito a noite para que visse e, cal em que ficara a arca cheia de barras e garrafas de ouro, Di- disso, as almas.. ver que não era botija de algu- zem que em sua loucura só falava no escravo que ma- ma alma do outro mundo, mas, inteligentemente ele retru- tara no tronco de uma perobeira. cou que aquelas pessoas que jogaram dinheiro no cruzeiro, Cavaram muitas perobeiras, até que se cansaram. e até estavam todas na "cidade dos Para persuadi- tesouro não apareceu. lo, eu ainda aventei que nada mais simples do que levar para local duas velas para as almas, ao que rapaz prontamente acedeu. UMA CAMADA DE SANTOS Confesso que mal pude dormir, na ansiedade de que ama- nbecesse dia, para saber resultado e assim que abri a jane- No título acima, não vai nenhuma heresia; eu explico: fui la do meu quarto para escovar os dentes la estavam minha chamado por uma que pretendia viajar para Ama- espera e Vesti-me, tomeie servi um guaraná zonas e desejava "trocar" um lote de imagens antigas. Aten- ralado em lingua de pirarucu ao pai e ao seguimos. dendo aquele chamado, fui conduzido para local onde se Dentro de cinco minutos penetramos na casa do Salão encontravam os santos: era quarto de uma das dessa grande, de frente, com enorme mesa de gavetões, As imagens estavam todas deitadas sobre a cama da com almofadas e puxadores de ferro batido com pingentes, É ou não uma camada de santos? em torno, alguns tamboretes Do outro lado, enorme Examinei as imagens, sem dúvida quase todas preciosas. Um banco de encosto ou arqui-banco. A parte do assento levanta São de pedra sabão, oriundo de Minas Gerais, de e no interior dele guardam-se roupas botas, tendo uma capa caída ao Tive impressão de brancas. Entretanto, por uma brecha, eu vi que estava cheio que a figura fora feita a semelhanga dos Uma Nossa de algodão para fiar, porque ali, no canto, estavam dois pri- Senhora da Conceição, de barro dourado, de origem portu- mitivíssimos engenbos de tecer, com suas rodas e seus pedais, guesa e com manto escultura clássica. Outras ima- aos quais dão o nome de roca. Tive curiosidade de penetrar os gens do século XIX, muito bem douradas, mas sem grande pelo corredor que comunicava com interior da casa, expressão. mas ali estava um moleque de uns dez anos que não despre- sobre oratório, divisei uns escul- gava os de mim... de relance, vi um lampião suspenso turados, de quatro a cinco de altura, que me des- 47</p><p>pertaram grande interesse. Um, era Santo Antônio, de mar- pora ou uma mula-sem-cabega, pode nesse sítio o sucum fim, furado no capuz para ser pendurado ao pescoço. São ra- pegar baio passeiro, pertencente ao seu próprio pai, que ele rissimas essas imagenzinhas e encerram uma dorida recorda- não vai; se o avisarem, na cidade, que filbo do compadre ção: durante cativeiro, um escravo era amarrado ao tronco; do tio fulano, foi banhar-se ao anoitecer e viu emergir do rio e, sob do carrasco, misero preto levava aos lábios um negro deitando fogo pela boca e com um no cen- uma dessas imagenzinbas, dependuradas ao seu pescoço, un- tro da testa, corre por todo seu corpo um calafrio; e benzen- gindo-a de lágrimas e borrifando-a com suas súplicas: do-se, logo murmura temerosamente: "Tibe, cruis, ave-Ma- São Binidito, porteigei-mi, Santo ria", e passa quinze dias sem ir ao vala-mi Nossa enquanto a chibata, implacavel- Uns estrangeiros sabidos que aportaram ao rio Cabixi, onde se mente, bramia em seu lombo!. mata muita ariranha e também jaguatiricas, cujas peles alcan- "Troquei" as imagens e guardo-as como verdadeiras cam grandes preços, fizeram correr em Vila Bela a notícia de quias. que estava aparecendo nas margens daquele rio um homem alto, semi-vestido de peles silvestres, com barba que caía ate SANTO REMÉDIO aos joelhos e unhas de vinte carregando ao om- bro uma pequena onça. Passando por uma casa completamente isolada, numa beira- Surgiram muitas conjeturas: uns diziam ser São João que vie- da da cidade, vi sobre uma velha mesa de abas, um precioso ra batizar nas do Cabixi os Outros, que oratório colonial, com suas portas de almofadas e dobradicas era Santo Onofre, por ter a barba muito comprida.. Mas um de cachimbo. Tive um desejo imenso de observar as fez ver que podia ser um lobisomem! imagens; mas como chamar a dona da casa? Depois de algu- Excusado e dizer que os estrangeiros conseguiram seu inten- ma reflexão, eu me fiz notar a moda da terra: to; levaram canoas e mais canoas cheias de fardos de peles, de casa!... de casa!..." porque nenhum filbo da terra teve coragem de ir até la. de fora. Quem "É de paz... Não susto." DANÇA DO CURURU Expliquei a essa senbora a minha curiosidade e fui pronta- mente atendido. Abri oratório e fiquei com a Dizem que, no princípio, era uma dança completamente in- linda peça. As partes internas das portas eram pintadas no digena. Mas, pelo que me foi dado observar, afro-brasileira. mais precioso barroco; a direita, um São Miguel esmagando A música das violas e dos pandeiros. Homens e mulberes um dragão com os na mão esquerda a na direita atiram-se a dança, que é de roda, em requebros e trejeitos. a espada; as asas suas costas e na cabeça um capacete como Algumas mulheres dão-nos a impressão de que estão possui- aqueles que usavam os centuriões romanos. Do lado esquerdo das de um africano como vemos nas práticas do baixo da porta, São Bento, muito bem paramentado, com sua mi- espiritismo; mas aquela gente não conhece essa seita. tra e seu báculo. Ao fundo, uma Sant' esculpida em ce- A música e e a dança, do meio para fim, vai se tor- dro, com seu manto dourado da e pintado de nando impudente. Vi alguns pretos completamente transtor- sentada em cadeira de espaldar alto e de estilo ma- nados, ou transportados para um mundo Os noelino; ao lado de Nossa Senhora pequenina, de olbos adquirem um e as faces convulsionam- apontando a sua lição num livro aberto ao colo de sua se. Os versos são atirados, já para fim, desordenados e sem mãe; a camisola que vestia era verde, recamada de ouro; ca- sentido. É bem verdade que todos, sem exceção, estão cheios belo penteado em coque, muito ao gosto dos nossos artistas de pinga; mas a dança parece que leva ao da sensuali- regionais dade. Tomei a imagem nas mãos e logo ao leve contato verifiquei Um negro na dança coloca suas mãos sobre os ombros de sua que a parte de do corpo de Sant' estava toda carcomi- amada e ficam os dois penetrantemente se olhando, enquan- da! Só havia naquela figura a fachada. to seus corpos seguem aquele ritmo "Mas esta imagem, deve ter sido estragada pelas É uma dança barbara. crianças, toda descascada a faca. "Nãão faca, não e canivete dos seu VISITA À FAZENDA JACOBINA moço. Não me dão sussego. Eles vêm pra faze Tão estragano, bem verdade... mas que e que nóis vai si a Acompanhado de um amigo do Rio Grande do Sul que fora rapa cura tudo qué duença? Castigo num a Mato Grosso adquirir terras, tive feliz ensejo de visitar a Resultado: oratório eu comprei. A imagem, não houve re- Fazenda Jacobina. Um amigo cedeu-me um cavalo tordilbo médio, mesmo porque ela em si um "remédio". bem arreado, com peitoral de moedas de novecentos e sessen- ta Na cabeça da sela dependurou um guampo de prata CRENDICES em formato de baldezinho para nos córregos e riachos eu to- mar O sertanejo do Guapore, mais do que outro qualquer caboclo Meu amigo pôs no pescoço um lenço, a moda de sua brasileiro, e cheio de crendices e atemoriza-se facilmente. terra. Eu estava de botas, mas engravatado.. Se disser que na estrada do tal, apareceu um cai- Chegamos a um sitio e pediu agua. Um menino en- 48</p><p>um caneco de lata no pote e serviu ao meu "TRIBUTO Eu estava mais e, quando me ofereceu a AO SABER E A AMIZADE. disse-lhe: "sirva-se primeiro"... Um velbo que debulbava AQUI DORME O SOMNO DOS MORTOS O DR. milho, vendo que eu me aproximava engravatado, foi logo F. SABINO DA R. VIEIRA. gritando para menino: "traga um copo de vidro pra Fallecido aos 25 de Dezembro de 1846, deixando agua ao seu doutô, minino". apoz sua morte saudosas Lembrei-me de que um deputado gaúcho deixara de tomar posse na Câmara dos Deputados por ter ido sem gravata. Mas a verdade que esse de trapo faz muito mais RAZÃO DA DECADÊNCIA DE VILA BELA DA falta nos sertões de Mato Grosso. SANTÍSSIMA TRINDADE Depois de longa chegamos a Fazenda Ja- cobina, cujo antigo proprietário, Coronel Pereira Leite, conse- A principal causa da decadência de Vila Bela foi fracasso guiu grande fama e prestígio em toda a província, quer pelos cada vez maior das minas de ouro. Depois, a da seus dotes de homem trabalbador e progressista, quer por sua capital. nobreza de caráter aliada ao poder econômico, pois Uma cidade que vive de minas de ouro uma cidade de fo- em sua propriedade agrícola mais de trezentos rasteiros. Tendo fracassado movimento revolucionário da de- As minas decrescendo, evidente que povo se retira.. Ere- nominado "Sabinada", o chefe desse motim, Dr. Sabino tirando-se também poder público com toda sua máquina Vieira, foi condenado a morte. Posteriormente, foi comutada administrativa, composta de dezenas de funcionários, ficou a essa para degredo em Vila Boa de Na terra do cidade entregue quase que totalmente aos escravos para zela- casou-se Dr. Sabino Vieira com moça muito rem as grandes propriedades. rica e bonita, de um grande negociante português. A distância de Vila Bela a de 114 léguas... A estra- Espírito forjado para as grandes lutas cívicas, eminente e da, mais da metade dentro de um pantanal, hoje humanitário médico tornou-se dentro em pouco um verda- vel. Ora, os senhores foram morrendo.. os filbos destes não deiro para aquele povo. Um dia, a população foi sur- mandaram restaurar as grandes casas; as senzalas foram cain- preendida com um pasquim que era colocado a noite debaixo do e os escravos passaram a morar nos prédios de luxo, em das portas. Esse pasquim, redigido em linguagem aspera, ata- cava violentamente as autoridades locais e regente do Em 1878, um antigo magistrado de Vila Bela escreveu longa rio. As suspeitas logo no Dr. Sabino; mas as autori- carta ao Visconde de Taunay, na qual deplorava estado de dades cautelosamente ficaram vigilantes e certa noite aquelas abandono e de ruínas em que se encontrava a cidade. suspeitas foram confirmadas. Preso, Dr. Sabino foi condena- Conforme tradição oral, sairam trezentos homens da cidade do a cumprir degredo perpétuo no Forte Principe da Beira. para combater na tomada de Corumba. Muitos morreram no Preparou-se uma escolta militar comandada por um capitão assalto e que escaparam não voltaram mais para as ativida- e, na da saída para a sogra do Dr. Sabino pediu des locais. aquele oficial para ofertar uma lembrança ao genro, E, assim, aquele pugilo de escravos ficou completamente iso- no que foi atendida. Colocou nas botas do Dr. Sabino Vieira lado nos confins de Mato Grosso e quem quisesse ver pano- um par de esporas de ouro, fato perfeitamente verídico, por- rama da civilização teria de andar 114 dentro de um que diversas pessoas antigas de me afirmaram e obtive, pantanal. Ainda hoje, quem desejar conhecer Vila Bela tera em Mato Grosso, a ratificação. Consta que presente foi ofe- que recorrer ao porque, do contrário, só pelo Amazo- recido pelo povo; mas esta afirmativa vaga. nas, Madeira, e Guapore. Em 1954, eu arrisquei fa- Chegando a escolta a depois de dezesseis dias, foi zer uma viagem via Cáceres; levei dezoito dias. preso entregue ao presidente da província. Dias depois saía A estrada que atual governo, num gesto edificante, man- outra escolta conduzindo Dr. Sabino para Vila Bela e Forte dou fazer para Acre, passa distante de Vila Bela 70 léguas; Principe da Beira. Ao passar pela Fazenda Jacobina tiveram entretanto, não fica dificil a ligação, devido terreno ser pro- de pousar e Coronel Pereira Leite ficou conhecendo Dr. pício. Sabino, que the despertou grande simpatia. No dia seguinte, Novos dias surgem para Vila Bela. Município de terras anfitrião sugeriu ao comandante da escolta que voltasse pa- simas, com abundante produção de arroz, banana, cacau e ra e deixasse preso aos seus cuidados... que levasse milho, está sendo olhado pelos e pelos paulistas. A uma carta ao presidente da província, no que foi atendido. criação de gado boa e a peste bovina nem conhecida. A em diante, várias precatórias chegaram a Cuiabá, mas produção de Vila Bela é toda escoada pelo rio em governo as engavetava... Passaram-se dias, os meses, lanchas que demandam o território de Rondônia. Atual- anos e Dr. Sabino morreu em Jacobina, sem ter ido ao Forte mente, a indústria extrativa a maior fonte de renda do Mu- Principe da Beira. Seu corpo foi sepultado sob o altar de Nos- nicípio. A borracha e a poaia são os seus principais produtos. sa do Socorro, na capela da Fazenda. As peles silvestres, muito procuradas, constituem uma grande Em 1895, o Instituto Histórico da Bahia mandou buscar fonte de renda. ossos do revolucionário; mas na capela ainda existe a No princípio deste século, notável mato-grossense, Dr. Es- (um pranchão), com a comovedora legenda: peridião da Costa Marques, apresentou ao governo um proje- 49</p><p>to ligando o rio Jauru ao Guapore, por um canal de 27 metros; verdadeira obra de brasilidade, proporcionando a li- gação das duas extraordinárias bacias da ca do Sul: - Formar-se-ia uma ilha imensa, e permitiria portenbos uma viagem ao coração do Brasil, com o seguinte itinerário: Buenos Aires, Assunção, Cáceres, Vila Bela, Porto Manaus, Belém do Pará, Carolina (Maranhão); Pedro Afonso e Porto Nacional, em Na a obra foi calculada em seus mil contos. O governo fez ver ao engenheiro que outras zonas, mais produtivas, esta- vam esperando inadiáveis, razão pela qual não podia dar andamento ao projeto em apreço. Morto o Dr. da Costa Marques, mais se lembrou da- quela idéia genial. Continua, pois, aquela sentinela marcante do nosso limite, no oeste, completamente isolada da civilização atual, guar- dando em suas ruínas apenas os vestígios de uma glo- riosa que vai longe e que, no entanto, jamais da tória, porque foi ali que os bravos lusitanos impediram o avanço dos e, caso não o fizessem, a nossa poderia, hoje, ser apenas um país de fachada, uma espécie de Chile transportado do Pacífico para o Glória eterna aos capitaes-generais do Mato Grosso que dilataram as nossas fronteiras! Quanto aos atuais habitantes de Vila Bela, sobreviverão, sem dúvida, das suas lendas e tradições, dos seus costumes simples e inocentes. Peixe abundante, caça fácil, lenha dentro da cidade, azeite de mamona para a iluminação, algodão para fiar, mandioca nos quintais e remédios no mato e na cidade com os benzedores... falta somente sal e o fósforo. Esse povo pode zombar do mundo... e independente! 50</p><p>RUMO AO SUL DA BAHIA Estava na Zona da Mata, em Minas, quando resolvi visitar seiscentista que foi queimada de um lado. Vi na Igreja de uma região antiga do sul da Bahia. Fui primeiro a Prado, por- Nossa Senhora da Pena um São Francisco de barro do Frei to do cacau com bom movimento de navios. Cidade do sécu- Agostinho. A Santa Custódia é do século XVII, a naveta é lo XVIII, seu maior progresso foi no século passado, pelo que uma caravela portuguesa, também seiscentista; mesmo pude observar através dos móveis encontrados e das alfaias da acontecendo com um cálice enorme de estanho e outro de igreja, todas do princípio a meados de 1800. prata. Comprei lindos cadeirões "Império" sofás, marquesas, cô- Atravessando a barra de Porto Seguro, vai-se em dez minutos modas e consoles "Beranger", estes últimos trazidos do Reci- de canoa para o Ajuda, onde se ergue a bela e rica Igreja de fe, certamente. Havia muita cadeira de jacarandá, de verda- Nossa Senhora da Ajuda. Vi ali uma magistral banqueta de deiros mestres da marcenaria. O vigário local vendeu-me al- prata e lanternas porém tudo tombado. guma prataria fora de uso e uma banqueta de estanho. Com- Um pouco ao sul de Porto Seguro, está Trancoso. comprei prei algumas mesas de pau-brasil, madeira hoje já escassa. de um velho cartório de Registro Civil uma mesa "D. João Deixei tudo guardado num depósito e segui para Alcobaça, V" muito boa. Na igreja local mostraram-me lindas peças, mais ao norte. Cidade maior e mais antiga, calculei ter maiores mas a Irmandade reune-se só aos domingos e eu não podia oportunidades, como de fato aconteceu. Conheci um homem esperar. Voltei a Porto Seguro e continuei trabalhando e en- muito bom e muito acolhedor, formado em direito aqui nas chendo a barcaça. Numa manhã aparece-me um homem que Arcadas, da mesma turma do Dr. Cyrilo Júnior. Prefeito da ci- morava num sítio dez quilômetros ao norte, na direção de dade várias vezes, não era pessoa rica: tinha apenas o suficiente Santa Cruz de Cabrália; perguntou se eu comprava ferro ve- para viver e comprar livros, sua maior paixão. tinha lho e respondi-lhe negativamente. Mas o homenzinho descre- uma irmã em São Paulo e quando vinha aqui, visitava-me veu-me uma grande cruz semi-enterrada a cerca de duzentos sempre e eu presenteava com muitos livros antigos. metros da praia, dentro de uma mata, e que tinha fora uma Homem de oitenta anos, era um estudioso do Império do bola toda trançada de ferros. Compreendi logo que se tratava Brasil e monarquista convicto, Dr. José Nunes. Este, apresen- de uma cruz com globo armilar. tou-me ao Cura e fiz belas aquisições. Acompanhei o homem e viajamos mais de uma hora até seu Negociei bastante com o digno prefeito, comprando-lhe uma sítio. Lá pegou enxadões e dois camaradas com fim de de- bela mesa "Manuelina" e diversos pratos da "Companhia senterrar a cruz. Chegando ao local, certifiquei-me do que das Transacionando com o padre e o prefeito, todas havia previsto. Tratava-se de uma grande cruz com o pé e um as portas estão abertas em qualquer cidade brasileira. Come- lado enterrados. Como terreno era arenoso, a parte mais vo- cei a ser chamado pelos coronéis e as moedas de "pau-nas- lumosa, o globo armilar, ficou de fora. Depois de mais de costas" foram aparecendo. Mesas-cavalete em quantidade, uma hora, a cruz estava fora da terra e é que eu vi que a salvas e bacias de prata também encontrei. mesma era oscilante. Lembro-me de ter vendido a D. Anita Marques da Costa uma Passou pela minha cabeça o seguinte: os navegantes portu- bela mesa de Alcobaça. gueses deviam trazer a bordo algumas dessas cruzes. Ao des- Não havia nessa época estrada litorânea para Porto Seguro. cobrir a terra, eles atracavam e, num alto, enterravam a cruz Dr. José Nunes arrumou um homem de confiança para levar- oscilante com as armas de Portugal. Teria sido Gonçalo Coe- me por mar numa boa barcaça, alugada por dia, podendo a lho, em 1503? Aqui fica uma pergunta para ser respondida dita embarcação ficar à minha disposição alguns dias. A mer- pelos estudiosos. cadoria comprada em Alcobaça ficou bem guardada e segui Levei a cruz para Porto Seguro e depositei-a na barcaça. por mar. Saimos às 6 da manhã com vento favorável e às 16 Depois fui de lancha a Santa Cruz de Cabrália, no fundo da horas estávamos entrando na célebre barra de Porto Seguro. baía. Dizem que foi que aportou Cabral. Cidade antiga e Passamos perto do Monte Pascoal e notei que tem semelhan- pobre, possui uma igreja muito rica com alfaias de alto valor, ça com o Pico do mas tudo tombado. Comprei de particulares imagens valio- Disse-me o barqueiro que a barra de Porto Seguro é infestada sas: séculos XVII e XVIII. de tubarões e ai daquele que cair n'água; não volta mais à to- Voltamos a Porto Seguro, carregamos mais algumas coisas e na! Aportamos facilmente e homem não quis ir jantar no depois, Alcobaça. Um dia de descanso e fui com a mesma hotel. Disse-me que jamais abandonaria sua barcaça e que barcaça ao Prado. Carreguei um caminhão FNM e voltei: Vi- podia cozinhar ali mesmo, dormir e ficava esperando pela mi- tória, Rio e São Paulo. nha carga. Chegando a São Paulo, vendi muitas peças ao antiquário Fer- Instalei-me no hotel e, já no dia seguinte, procurei o padre, nando Milan, inclusive as imagens preciosas de barro. A mesa que era um homem de cor e muito amável. Apresentou-me "D. João V" quem comprou foi saudoso negociante Nico- ao tesoureiro-geral das igrejas e comprei coisas lau Koltai. Uma mesa de Alcobaça ficou com D. Anita Mar- imagens de barro do século XVII do antigo convento em ruí- ques da Costa. Um belo armário ficou com Dr. César Kieffer, nas, bancos fora de série, cômodas e armários. Tive a impres- enquanto que a grande cruz quinhentista foi adquirida pelo são de que Porto Seguro, por estar isolada, nunca havia sido Dr. Lunardelli que era, na época, o maior compra- visitada por antiquários; o transporte era só por mar e em pe- dor. Um ano depois, o Dr. doou essa cruz ao Mu- quenas embarcações. seu de Bertioga, cuja diretora é a eficiente e talentosa D. Lú- Na parte baixa, não existe nenhuma igreja. Em compensação, cia Figueira de Melo Falkenberg. D. Zezé Botelho comprou na cidade alta há quatro grandes templos. O mais importan- um lote de miudezas, enquanto a Sra. Rotman, famosa anti- te, sem dúvida, é o de Nossa Senhora da Pena, com inúmeras quária do Rio, ficou com as poltronas e umas cadeiras. Outra raridades. A cadeia é um prédio suntuoso e lá existe uma arca senhora que adquiria sempre muita coisa, D. Isabel Moraes 51</p><p>O VELHO CHICO Barros, colecionadora que sabia escolher com um gosto incrí- O lendário São Francisco, chamado Nilo brasileiro, Rio de In- vel, ficou com bela arca. tegração Nacional ou Velho Chico, na denominação carinho- Lembro-me de que em 1960 aparecia sempre em minha casa sa do povo, nasce na Serra da Canastra, no Triângulo Minei- uma ótima freguesa que montara casa de antigüidades de so- ro. Percorre todo estado de Minas Gerais e segue para nor- ciedade com o Sr. João Alcântara Gomes - D. Maria Baruel. te; atravessa o estado da Bahia e vai até Juazeiro e Petrolina, Recém-formado em direito e também recém-casado, fre- limitando Pernambuco com a Bahia; daí vem para a direção qüentava muito a minha casa o Dr. Paulo Vasconcellos, que sudoeste e separa estado de Alagoas do de Sergipe, lançan- iniciou seu gosto pela arte colecionando balancinhas e pe- do-se no Atlântico, depois de percorrer dois mil e novecentos quenos pesos ingleses (um dentro do outro) e veio a tornar-se quilômetros. um dos grandes antiquários de São Paulo, com freguesia sele- muito rico o vale do rio São Francisco. Suas terras são ferti- cionada. líssimas e poderiam produzir, através de irrigação apropriada, Na mesma época, travei conhecimento com o antiquário e alimentação para todos os habitantes do Brasil. Mas este é um depois grande construtor Hugo de Pacce, que até hoje é óti- estudo para especialistas, e devo voltar ao meu assunto. mo freguês. Em 1947 embarquei no navio "Barão de Cotegipe" em Ja- Um médico, exigente freguês de coisas verdadeiramente ra- nuária, bela cidade de Minas, minha velha conhecida. Desci ras, era o Dr. Isaías Melshon. Comprou-me umas imagens ex- o rio e o primeiro porto foi a cidade de Manga; depois veio cepcionais vindas da antiga Palma, hoje Paranã, em Goiás. Carinhanha, primeiro porto no estado da Bahia. No dia se- Ausentou-se uns anos para Londres, mas já está de volta espe- guinte, chegamos a Bom Jesus da Lapa e desci do navio rando por outras raridades. Lindas peças vendi ao arquiteto e porque era uma cidade escolhida no meu itinerário. A via- decorador Antônio Rodrigues Foz. Outro que sabia escolher gem proporcionou-me relativo conforto. Beliche bom e refei- era o meu amigo Paulo Arena, um dos mais dinâmicos anti- ções regulares, nas quais predominava o peixe. quários de São Paulo e tão cedo desaparecido. Era competen- Bom Jesus da Lapa remonta ao século XVII. Uma lenda po- te gemólogo. pular lembra que, no princípio de 1650, religiosos da capital da Bahia contrataram um jovem pintor em Portugal e este, ao chegar, ganhou dinheiro enquanto havia serviço; mas, um ano depois, o trabalho foi escasseando e moço, muito per- dulário, esbanjara todo o produto do seu trabalho com mu- lheres e farras. Viu-se numa situação desesperadora, sem ami- gos e sem crédito. Pegou uma imagem do Bom Jesus e inter- nou-se no mato, alimentando-se de frutas silvestres e pássaros chamuscados. Aproveitava as veredas e para poente quando, no meio de uma pequena clareira, viu uma grande onça deitada sobre um lagedo, soltando urros de dor. O pintor levou o Bom Jesus à frente do animal e verificou que uma pata dianteira do felino estava muito inchada devido a um estrepe de madeira. Cautelosamente foi se aproximando, levou a mão direita e puxou aquele espinho horrendo! A fera estrebuchou enquanto o carnegão corria de sua pata. Ato contínuo, moço embrenhou-se pela mata e encontrou uma erva cicatrizante, mascando-a e voltando a curar a ferida do animal que então já era dócil. E continuou seu caminho. Três dias depois, começava a subir uma serra, quando viu que a onça acompanhava como um cão fiel. Gostou da compa- nhia, meditou e compreendeu que até as feras têm o senti- mento da gratidão. Mas adiante descortinou-se à sua frente paisagem maravilhosa com grande rio de água límpida cor- tando uma mata verde, tão verde como as penas dos papa- gaios da floresta que Aí, a fera correu sedenta para a margem do rio, enquanto o moço ia aos poucos se abeirando ao barranco que descia para a praia arenosa. Bebe- ram aquela deliciosa água e moço, ao voltar os olhos para trás, viu aquele morro com uma grande abertura e mais que depressa pegou sua imagem e, sempre bem acompanhado pela onça, penetrou na grande gruta. Viu ao fundo três aber- turas, sendo uma à direita e duas à esquerda. Viu também uma cavidade na pedra em formato de um nicho e para lá se dirigiu a fim de colocar seu Bom Jesus; mas uma enorme serpente saiu da cova do lado direito e, de dentes afiados, pa- recia ameaçar pescoço do rapaz. A onça investiu ferocíssima e a serpente recolheu-se à sua cova. 52</p><p>Posto Bom Jesus no nicho, o moço visitou as duas covas do Fiquei em Paratinga alguns dias. Lembro-me de ter compra- lado esquerdo e viu que eram verdadeiras alcovas. O pintor do duas moringas com a coroa Imperial e muitas imagens de escolheu a primeira e a onça ficou na segunda. A1 dormiam e valor, algumas com tanga de índio! saiam pela manhã, pintor à procura de alimentos silvestres e Prossegui a viagem para o norte, agora no "Barão de Cotegi- a onça em busca de paca, caititu e antas. A serpente também pe". Ouvi uma citação a bordo: um moço estava jogando se- saía e voltava para sua morada pacificamente. te e meio e, ao sair da mesa de jogo, uma moça exclamou: Havia perto um pequeno povoado, talvez o mais antigo das "Pela cara do João, vê-se que ficou limpo como a Igreja de margens do São Francisco. Os canoeiros que navegavam pelo tio do Fiquei deveras intrigado e quis saber a origem rio viam na margem direita uma grande árvore seca, clara e do tal dito, que ficou comum em outras conversas. Passando um urubu pousado nela; então, como existia no local a fazen- por Sítio do Mato, vi uma grande igreja descoberta e jumen- da de um desbravador denominada Santo Antônio, começa- tos pastando lá dentro. Perguntei ao velho escrivão Malaquias ram a chamar local: Santo Antônio do Urubu. de Aguiar verdadeiro significado do rifão e homem foi re- Alguns vaqueiros viram moço todo barbado e de longas lembrando um passado bem distante... Que lá para o início unhas, acompanhado pela onça, e esparramaram a notícia de 1700, Sítio do Mato era um povoado florescente. Já existia pelas margens do rio. Desde então, começaram a surgir os cu- pequena capela, a população aumentava e o padre, que vinha riosos e alguns viram o Bom Jesus da Lapa. Foi começo da de Olinda, Pernambuco, uma vez por ano, lançou a idéia da romaria. Por essa época moço, recebendo poderes do Bom construção de um templo grandioso, pois lugar progredia. Jesus, dominava e fazia inofensivas a onça e a serpente. Ficou o homem mais respeitado da terra encarregado de rece- Pessoa caridosa trouxe ao eremita uma tesoura, instrumento ber as esmolas para erigir a igreja, e em poucos meses as pare- com que cortou as unhas, os cabelos e um pouco da barba. E des estavam altas e num ano toda coberta. as promessas foram surgindo e muita gente foi se curando e Chegando outra vez o padre, achou a obra bem feita e deu obtendo graças, até que o homem, agora com quarenta anos, ordens para que a rebocassem e depois a pintassem, que voltou para Salvador, ordenou-se padre e assumiu o posto de mandaria de Pernambuco a imagem da Padroeira. Após mui- vigário-colado no lugar que descobrira. Quem for a Bom Je- tos casamentos e batizados, regressou bom padre e O povo sus da Lapa, verá em frente à gruta sua estátua, segurando a tratou de acabar a igreja. imagem. Observará ainda a onça com o busto e as patas es- Três meses decorreram e velho encarregado da obra, agora tampadas na pedra e bem assim, as voltas da serpente na cova pronta, recebia carta do padre, dizendo que a imagem fora em que se recolhia. despachada num navio, mas que este naufragara. Seria con- Na alcova em que dormia o eremita, nasceu água milagrosa veniente, ele mesmo como fabriqueiro, mandar um portador que é usada por milhares de romeiros que visitam Bom Jesus por terra à capital da Bahia e do Brasil, a fim de trazer outra da Lapa, segunda romaria brasileira. imagem, que foi feito. Visitei os padres holandeses e estes venderam-me muito ouro O animal que conduzia a nova imagem rodou por uma ri- e muita prata, oferendas dos visitantes que pagavam promes- banceira do rio, voltando o portador desolado e a população sas. Comprei inúmeros ex-votos, caixas cheias que não cabiam católica entristecida. mais no grande Salão dos Milagres. Ao abrir as caixas que es- O encarregado escreveu ao padre comunicando-lhe aconte- tavam em depósito há anos, deparei com cabeças de todos os cido e o bom cura mandou que ele, um homem estimado pe- tipos e formatos, esculturas em madeira de todos os membros lo povo de Sítio do Mato, inaugurasse a igreja com uma nove- do corpo humano. Os padres jamais pensaram em apurar di- na, enquanto ele, vigário, providenciaria outra imagem. nheiro com aqueles pedaços de madeira. Foi feita a novena em cumprimento às ordens recebidas e Outra riqueza que com os padres da Lapa foi a quantidade povo lotou templo. Num intervalo, o bom homem foi fabulosa de pedras semi-preciosas: ametistas, águas-marinhas, agradecer ao povo assim: "Meus bons amigos de Sítio do berilos, turmalinas e mais uma variedade interminável de pe- Mato, eu agradeço a todos os habitantes e moradores da re- dras brutas e muitas já lapidadas. dondeza os valiosos óbulos a mim enviados para erguer a nos- Passei a comprar de casas particulares móveis rústicos de pri- sa grande obra" E numa linguagem bem simples: "Pois meiríssima ordem e, depois de oito dias, peguei outro navio é, amigos, a igreja está pronta" e a cabeça: "Ago- de volta, o "Governador que me levou a Januá- ra o Santo é que é o diabo..." ria. Cheguei em Santos de caminhão e entreguei tudo para Escusado é dizer que ninguém mais foi igreja. O teto antiquário Amado. caiu, suas telhas foram quebradas e as madeiras apodrecidas. Estava outra vez na Lapa, quarenta dias depois. Um dos pa- E com esse adubo vegetal nasceu um belo pasto para os je- dres levou-me de canoa a motor a Paratinga, antiga Santo gues. Antônio do Urubu. A igreja de Santo Antônio é do século Eis o motivo pelo qual muita gente anda limpa como a igreja XVII e comprei duas peças da época de fundação do templo: de Sítio do Mato. um cálice de comunhão geral e uma naveta, em formato de Recomecei a viagem pelo São Francisco; tomei uma barca ser- nau portuguesa. Comprei também uma grande imagem do gipana movida a óleo, que é menor mas, em compensação, é século XVIII, Madona segurando uma criança contra o peito, muito mais veloz que os navios. Foram sergipanos os introdu- e dir-se-ia que estava protegendo o filho de um animal feroz, tores dessas lanchas no grande rio. tal a fisionomia e o gesto de terror que artista imprimiu à Cheguei a Ibotirama, na margem direita. Lugar risonho e escultura. Paguei as peças ao padre e vi na sacristia um armá- próspero. Comprei muitos lampiões de teto, porque a eletri- rio holandês também de época, mas não o comprei: ia ficar cidade chegara há pouco e estavam os lampiões de querosene na cidade e não sabia se ia conseguir uma lotação. em disponibilidade. Encontrei três de porcelana americana 53</p><p>com globos florados que eram importados até 1915. Os gran- vendo e todos cobiçam comprá-lo. Cidade do século XVIII, des, de teto, geralmente eram de majólica, com globo branco ponto chave do rio São Francisco, Barra era, portanto, lugar e de origem belga ou Imagens também comprei, re- em que circulava a riqueza. Vários titulares do Império eram gulares. filhos da Barra, inclusive o famoso Barão de Cotegipe e o Ba- Depois de três dias em Ibotirama, fui à Barra, na margem es- rão da Vila da Barra. querda. Uma boa cidade, sede de bispado e muito movimen- A maior riqueza do município é a carnaúba e depois a pecuá- tada, porque recebe os visitantes do Piauí, bem perto; é ainda ria. A exportação de peixe seco é muito grande, devido ao ex- ponto de convergência do rio Grande que é navegável e vem celente surubim, que alcança altos preços. da rica cidade de Barreiras, e também o rio Preto, navegável e Da Barra fui a Santa Rita, velha cidade onde comprei ima- que vai à boa cidade de Santa Rita. Barra possui filial do Ban- gens preciosas e louças muito antigas. CO do Brasil e de outros. Voltando à Barra, comprei um jogo "Companhia das Fui mais de cinco vezes a essa linda cidade. Comprei, só aí, Indias", de descendentes do Barão de Cotegipe e encontrei mais de cem carrancas. Geralmente estavam em galinheiros e com um juiz, filho da terra, que era escultor e fez presente ao precisavam ser lavadas. Além do famoso Guarany, de Santa prefeito de grande escultura de São Francisco que foi colocada Maria da Vitória, que eu visitei, havia um outro tereuta em na entrada da Barra, justamente na confluência do rio Gran- Santo Sé, que mandava vender suas carrancas ali, um ponto de com o São Francisco. Bela obra de brilhante escultor! mais movimentado; entretanto, os barqueiros não queriam Travei conhecimento com um médico de muita idade, mas mais usá-las em seus barcos e as do São Francisco perfeitamente lúcido, filho do estado do Pará, Dr. Fabricia- passaram ser cobiçadas como objetos de decoração. No tem- no, grande filósofo. É muito extenso o anedotário a seu res- po dos barcos à vela, diziam que a carranca significava bons peito. Recém-formado, destinava-se à Santa Rita, quando ares, bons ventos e, ainda, boa viagem. Sobre o assunto existe passou pela Barra e foi convidado, como médico que era, para um belo livro "Carrancas do Rio São Francisco" - escrito fazer uma visita ao bispo local, D. Augusto Álvaro da Silva, por Paulo Pardal, profundo pesquisador. que se encontrava gravemente enfermo. A receita do jovem No tempo em que a cidade da Barra, o bispo vivia médico curou grande prelado, que depois foi Cardeal Pri- sempre doente com uma úlcera no duodeno e praticamente maz. O povo não deixou prosseguir viagem para Santa Rita quase todos os negócios da diocese eram resolvidos pelo vigá- e ali ficou curando aquela população e enriqueceu; mas sem- rio-geral, moço novo, muito simpático e desportista. Treinava pre dizia que estava de passagem, apesar de morar na Barra um quadro de futebol e era muito querido na cidade. Com- há quarenta e tantos anos. No Estado Novo, foi nomeado In- prei uma boa prataria da Matriz, inclusive uma naveta "D. terventor no município da Barra e construiu aquele cais por- João V". Minha maior compra, no entanto, fi-la do Coronel tentoso com muralha gigantesca que protege a cidade das en- Guerreiro, que era casado na família Mariani. Homem auste- chentes. De uma honestidade a qualquer prova, contam que ro, que havia sido oficial da nossa gloriosa Marinha de Guer- um pobre homem levou a mulher à presença do Dr. Fabricia- ra e vivia ali em sua mansão bem de frente para a Matriz. Pos- no, ali mesmo na prefeitura, em hora de expediente. Estando suía diversas fazendas e muito gado. a dita senhora em estado grave, o médico viu que ela precisa- Conheci, também, a família Camandaroba. Um deles era far- va de socorro urgente e Quando o casal saiu, Dr. macêutico e foi prefeito da cidade, ótima pessoa. Um outro Fabriciano tocou uma campainha e chamou o tesoureiro da era grande negociante e D. Joana era professora pública. prefeitura; tirando uma moeda do bolso, fez questão de pa- D. Joana prestava muita atenção aos objetos que eu compra- gar 200 réis da folha de papel timbrado que havia utilizado va, e, da última vez que fui à Barra, encontrei em sua casa na receita. boa coleção de arte, inclusive gomil e lavanda do século XVIII. Visitou-me em São Paulo, na rua Mathias Aires. Contam que, certa feita, foi procurado por um morador que lhe levava uma carta de recomendação de um prefeito vizi- Quando o Dr. João Marino, anos depois, empreendeu uma nho, pedindo-lhe para empregar o portador, que tinha práti- viagem de recreio pelo São Francisco, pedi-lhe que procurasse ca em tocar rebanhos de ovelhas. Ora, Dr. Fabriciano possuía a professora D. Joana; esta apenas mostrou os pertences, deli- uma grande fazenda de capoeira e campo, onde só criava ove- cadamente, mas não quis vender nada. lhas. Contratou, pois, o morador. Dias depois, aparece o ho- Foi muito grande a quantidade de objetos antigos que bal- mem querendo uma espingarda e muita munição, alegando deei da Barra para Santos e São Paulo. Muitas jarras, salvas, ter visto rastro de onça na propriedade. Dr. Fabriciano estra- copos, castiçais, grampos e espevitadeiras. nhou o pedido por não haver serras na região, mas o homem No hotel em que eu ficava, morava um médico que tinha insistiu que em agosto e setembro as onças ficam alvoroçadas grande clínica na cidade. Vendo comigo libras esterlinas, e tornam-se andarilhas. biçou uma para mandar fazer um Precisava dar O pedido do morador foi atendido e, logo no mês seguinte, presente à pessoa amada. Disse-lhe que era fácil obter uma de voltou o homem à presença do médico dizendo que a onça ti- mim, desde que obtivesse uma moeda de 1000 réis de prata nha comido quatro cabeças do rebanho. Toda semana o ho- de 1849, peça que faltava em minha coleção. Não demorou mem dava outra notícia desagradável; a onça comera mais duas horas e o nosso homem estava com a moeda solicitada. cinco ovelhas e assim por diante. O tempo foi correndo até Levou a de ouro e deu-me uma de prata que guardo até hoje. que chegou o morador e deu a notícia fatal: a onça havia ter- Ficou radiante de alegria; mas a libra esterlina que lhe dei, no minado o rebanho! Dr. Fabriciano soltou uma gargalhada e câmbio atual, vale cem mil cruzeiros, enquanto a moeda de exclamou: "Então o senhor está despedido". Dr. Fabricia- 1000 réis de 1849, vale 300 mil cruzeiros! no nunca viu a onça de dois pés... Mas elas andam por Possuo um anel "D. João V", comprado na Barra. Não o Palestrei muitas vezes com o Dr. Fabriciano e uma vez per- 54</p><p>guntei-lhe porque não reformava as casas de sua propriedade Que saudade dos barranqueiros do São Francisco! Que povo que estavam em ruínas nas ruas da cidade. Ele respondeu bom e hospitaleiro! com outra pergunta: "Para alugar a quem?" Vendeu-me Nunca vi gente tão simples e tão inteligente. Uma senhora muitas moedas de prata e poucas de ouro. Tinha muitos fi- queria vender-me um par de castiçais de prata e eu, fazendo- lhos, mas era solteiro.. me de bobo, perguntei-lhe: "Esses castiçais são antigos?" Perguntei ao médico qual o motivo de a Bahia, grande terra e a resposta veio espontânea: "São do tempo em que in- de talentos e com ótimo eleitorado, nunca ter dado um presi- ventaram a cuspida!" dente da República, ao que ele respondeu: "Não existe unidade O maior inimigo da Bahia, é o próprio Barra é uma cidade de belos edifícios, destacando-se entre eles o Mercado Municipal, em puro estilo Manuelino, a Pre- feitura Municipal, o Palácio Episcopal e o Teatrinho, de sau- dosa memória. Deixei a mercadoria comprada num depósito e segui para Xique-Xique e Remanso. Nesta última cidade comprei prata- ria, louça, carranças e muita moeda de 960, que eles chama- vam "pau nas costas". De Remanso fui, por terra, a São Rai- mundo Nonato (Piauí). Vi nessa cidade piauiense uma extraordinária obra de levange- lização por parte dos norte-americanos, filiados à Igreja Batis- ta. Digo sem medo de errar que setenta por cento daquela população aderiu ao protestantismo devido à gigantesca obra social que os pastores desenvolvem naquela região. Mantêm, por conta própria, hospital para o povo e avião para conduzir doentes para hospitais de outras cidades mais adiantadas, caso o médico local assim o exija. Distribuem roupas e mantimen- tos para os pobres e montaram escolas para crianças e adultos. Tentei comprar imagens e fi-lo com grande facilidade. Famí- lias mais ricas, davam-nas de presente! Voltei a Remanso e embarquei para Pilão Arcado, outro por- to do São Francisco. A mercadoria era: móveis rús- ticos, louças inglesas borradas e moedas antigas. 30 Fui a Juazeiro, porto que fica em frente a Petrolina, esta já em Pernambuco; voltei a Santo Sé, e, em cada porto que chega- va, ia recolhendo a mercadoria e trazia para a Barra. Fui de navio até Santa Maria da Vitória, terra do escultor Guarany, onde fabricam muita rapadura e segui para Corren- tina, mais ao norte, município que fica na divisa de Goiás. Voltei à Barra, deixei tudo num depósito e fui a Brejinho de Oliveira, por terra. Consegui pouca coisa ali e voltei nova- mente à Barra para tomar um navio para Barreiras, grande ci- dade da zona, porto fluvial do rio Grande, que é o grande afluente do São Francisco, pela margem esquerda. Achei Bar- reiras uma cidade muito bonita e terra de talentosos baianos, como Antônio Balbino e Tarcísio Vieira de Mello. Comprei muita mercadoria na cidade e despachei tudo como carga pela Panair do Brasil. Barreiras tinha, na época, grande movimento aéreo. Peguei outro navio e voltei para Barra. Em conversa com o prefeito local, este convidou-me para ir ao depósito da prefei- tura, pois havia lá algumas coisas antigas. Fui no dia seguinte e comprei muitos lustres valiosos, ainda do tempo do carbu- reto; e o que chamou mais a minha atenção foi uma grande e completa coleção de medidas antigas com brasões do rio. Era presente de D. Pedro II aos municípios brasileiros. 29 Papeleira mineira do século XVIII, policromada. Vasos e travessas da "Companhia das Indias" Comprei o lote e vendi em São Paulo ao conhecido banqueiro Coleção: Hélio Leite. e homem de grandes negócios, Dr. Francisco Munhoz Filho. Finalmente voltei de navio carregado até Januária e depois de 30 Moringas com o brasão do Império. Adquiridas em Paratinga (antiga Santo Antônio do Urubu-Bahia). caminhão superlotado até São Paulo. Coleção: Maria Yolanda de Arruda Botelho. 56</p><p>ESTADO DE SANTA CATARINA GABINETE GOVERNADOR Fpolis, 12/9/72. Caro Senhor Jose Claudino da Nobrega, Trazido pela cortezia do Excelen Senhor Presidente do Tribunal de Contas do Estado, Conselheiro Nilton Cherem, recebi,agra davelmente surpreso, o quadro do pintor Belmonte,re tratando o bandeirante Francisco de Brito Peixoto , que Vossa Senhoria tão magnanimamente ao Museu de Laguna. Como catarinense, Lagunense e Go- vernador me e to grato saber que seu convívio en tre nossa gente colocou Santa Catarina num nicho es pecial do seu bem querer. Determinei o tombamento da pintu ra e seu posterior envio ao Museu de Laguna. Nêle, junto com nota indicativa de procedência e o seu no me, como doador, ficará ela como parte do acêrvo.Fi carei feliz se, no futuro, vier Vossa Senhoria pes- soalmente Muito grato e cordialmente, 39 39 Carta do Governador Colombo Salles, agradecendo o retrato do bandeirante Francisco de Brito Peixoto, enviado pelo autor ao Museu de Laguna, Santa Catarina. 62</p><p>EM SANTA CATARINA Os primeiros descobridores de Santa Catarina foram os ban- ção: Nereu Ramos (Presidente da República), Ministro Luís deirantes de São Vicente. Brito Peixoto ancorou numa peque- Galoti (Presidente do Supremo Tribunal Federal) e Carlos na enseada ao sul e instalou uma povoação no fim do século Gomes de Oliveira (Presidente do Senado). XVII. Os índios, porém, não lhe deram trégua. Navegou No terreno das artes, muito deve estado a Victor Meirelles mais para o sul e fundou Laguna, em 1696. de Lima, glória da pintura clássica do Brasil. Seus fabulosos Simultaneamente, Dias Velho ancorou na ilha, no lugar cha- quadros "Primeira Missa" e "Batalha dos Guararapes" são mado Lagoa, e foi seu povoador; mas a região era de dignos de figurar nas mais dotadas pinacotecas. Na arte mo- corsários. Anos depois, valente bandeirante foi assassinado derna, salienta-se Martinho de Haro como um dos maiores por piratas. pintores contemporâneos. Seu filho, Rodrigo de Haro, prepa- Laguna progrediu e Brito Peixoto foi povoar o Rio Grande do ra-se para grandes no campo pictórico. Sul, deixando um filho à testa do povoado. Foi lenta a coloni- Na literatura, destaca-se o poeta negro Cruz e Souza, epígono zação de Santa Catarina. Somente em 1748 chegaram os aço- do simbolismo no Brasil, e Luís Delfino, parnasiano de pri- rianos à ilha; e, em 1750, povoaram São José, no continente. meira grandeza. Na prosa, Virgílio Várzea. No terreno Pouco depois, os espanhóis invadiram a ilha, sob comando rico, Osvaldo Rodrigues Cabral. de D. Pedro de Ceballos. Após encarniçadas lutas com os No início de 1945, palmilhei a ilha em busca de antigüida- portugueses, retiraram-se, depois da assinatura do Tratado de des. Santo Antônio, Lagoa, Ingleses, Ribeitão, Barra do Sul 1777. etc.. Encontrei móveis do século XVIII, principalmente cô- Refizeram-se os ânimos, o trabalho aumentou e já havia pro- modas, oratórios com imagens originais e camas de Aveiro, gresso nas florescentes vilas de Laguna e Vila Nova, ao sul, e trazidas pelos açorianos. Os móveis rústicos da ilha têm sabor Desterro, Porto Belo e São Francisco, ao norte. diferente das peças de Minas e Goiás. Os móveis encontrados Em 1829 iniciou-se a colonização alemã em São Pedro de Al- na cidade de Florianópolis caracterizavam-se pelo estilo cântara e Angelina. Somente em 1850 chegou Dr. Blume- rio, século XIX. Comprei uma única mesa "D. João V", do nau, que iniciou a colonização do Vale do hoje a região século XVIII, de José Guilhon, outrora de propriedade do be- mais próspera do estado. nemérito Irmão Joaquim, que viveu nos séculos XVIII e XIX Não podemos, honestamente, estabelecer um paralelo entre e que herdara de sua família Livramento. Esta mesa deve os dois grupos colonizadores. Os alemães vieram um século encontrar-se em poder do industrial Charles Edgar Moritz, depois, com novas técnicas e aperfeiçoamentos. notório comprador. Vive hoje em Florianópolis um cidadão Pessoas menos avisadas menosprezam os descendentes açoria- que entende de arte a fundo e possui, talvez, a maior coleção nos do litoral catarinense ao cotejarem-no com as realizações do sul do país: o Dr. Tom Wildi, que "bebeu água limpa" e introduzidas em Blumenau, Joinville, Brusque e Rio do Sul conseguiu comprar o que havia de melhor na ilha e também alemães. Entretanto, esse conceito precipitado cai por no continente: móveis do século XVIII, como mesas de en- terra ao analisarmos o isolamento em que permaneceu o gru- costo "D. e "D. João V"; imagens escolhidas e do mais po açoriano vindo cem anos antes, lutando com o índio e o alto valor artístico; louça "Macau" e "Companhia das espanhol, e conservando a língua, a religião e os costumes da Indias"; além de prataria e cadeiras de jacarandá da Bahia, brava gente portuguesa. todas de época. Durante o Império, Santa Catarina teve uma fase de desen- Quando eu morava em Florianópolis e depois em São José, volvimento e Imperador Pedro II, recém-casado, visitou trabalhava para antiquário de Santos, Antônio Frutuoso Desterro, em 1845. Depois foi a São José e Caldas. O coman- Amado, que sempre financiou minhas viagens através de to- dante do navio que conduzia o Imperador e a Imperatriz Te- do o país. Mas, de vez em quando, o Amado ia à Europa e eu reza Cristina era o catarinense Almirante Lamego, depois Ba- continuava trabalhando em Santa Catarina, sozinho. Vendia rão de Laguna. Já nos estertores da Monarquia, D. Pedro II as peças encontradas lá mesmo. Os fregueses, amantes de an- nomeou o grande tribuno Gaspar da Silveira Martins, Presi- tiguidades, eram, entre outros: Tom Wildi, Charles Edgar dente do Conselho de Ministros. Era demasiadamente tarde; Moritz, Hercílio Pedro da Luz Medeiros e sua esposa D. Riso- ao passar por Desterro o navio que trazia grande gaúcho, as leta, Newton Leoberto Leal, Othon Gama tropas do Exército, solidárias com a República, prenderam-no João Ribas Ramos e Senhora, Pereira Oliveira, Gilberto Guer- na manhã de 16 de novembro de 1889. reiro, Jorge Lacerda e Senhora, Aujor da Luz e Parigot Em 1893, Santa Catarina sofreu as maiores atrocidades. A Ar- de Souza. Também Jau Guedes da Fonseca e sua esposa D. mada revoltada contava com o apoio de grandes homens, Paula, Djalma Moelman e Sra., Rudi Schnorr e esposa, Mi- monarquistas da terra barriga-verde. A energia de Floriano guel Leal e Sra. Lalau Boabaid, Sra. Aurea Leal de Moura e Peixoto exasperou-se na conduta de Moreira César, quando tantos outros. catarinenses foram barbaramente fuzilados, inclusive o Barão Recebia também, periodicamente, a visita dos Srs. Francisco do Batovi, que governara a província de Mato Grosso. Mais e Lauro Roberto Müller, ambos de Curitiba, bem como Após a vitória do Marechal de Ferro, mudou-se o nome da ca- casais de ilustres catarinenses residentes no Rio, das famílias pital para Florianópolis, que ainda hoje constrange os cata- Galoti e Ramos. rinenses. Não resta dúvida de que Laguna foi a cidade que mais pos- Neste século, por força da exuberância da terra e do patriotis- suiu em Santa Catarina. Mantinha um comércio mo de seus governantes, Santa Catarina marcha acelerada- ativo desde o tempo da Colônia com o, Rio, Pernambuco e mente para o posto que merece entre os grandes estados da Bahia. Suas embarcações de diferentes companhias de nave- Federação. gação percorriam todo o litoral brasileiro. Em 1955, catarinenses assumiram os mais altos postos da Na- Comprei em Laguna valiosas peças do século XVIII, das prin- 63</p><p>cipais famílias. Adquiri também na Matriz gigantes tocheiros piões de opalina, de teto (majólica) com correntes e peso, ha- de madeira dourada e uma grande coleção de crisólitos via muitos. Na Praia Comprida, comprei dos irmãos Sandim uma caixa de sapatos cheia! E móveis do século XIX, como algumas peças trazidas da Europa por seus Certo dia consoles de mármore e jacarandá, mesas e cadeiras "Luis Feli- fui chamado pelo pintor Martinho de Haro que me apresen- sofás, cômodas e poltronas "Beranger" tou à Sra. Hofmann que enviuvara há pouco, em Florianópo- Louça havia muita, mas só "borrão" e "pombinho". Quem lis. Adquiri, então, linda coleção de paliteiros de prata, três possui em São Paulo verdadeiras relíquias de Laguna é o pin- espevitadeiras e muitos pares de castiçais, quase todos de pra- tor Nelson Nóbrega. Comprou-as em Santos, do Amado. ta dez dinheiros. Comprei também um belo relógio Patek Outra cidade rica em era São Francisco do Sul. Philipe de ouro, que vendi ao bom amigo Benjamin Gerlach, Comprei, certa vez, quatro mochos de jacarandá da igreja grande negociante em São Outras senhoras de famílias principal; peças autênticas do século XVIII. Entretanto, nas antigas como as venerandas irmãs Aducci, venderam-me casas ricas havia também muita abundância de móveis, todos muita coisa. O Raul Wendausen, casado com uma das irmãs, "Luis Felipe" e "Império" A cidade de Tijucas possuía era cavalheiro levava uma vida social intensa e igualmente muito "Império" que baldeei para San- gostava de negociar comigo. tos. Raras peças comprei em Uma vez fui visitar o convento de Santo Amaro e fiquei mui- Havia muita cômoda "Sheraton" e bastante miudeza de ori- to amigo dos padres. Um deles marcou o domingo seguinte gem canecos de chope, pratos e jarros de Saxe. para que eu o procurasse em Enseada de Brito. No dia marca- Quem comprou também muitos móveis na ilha, foi o colega do, lá estava eu, firme. Após a Santa Missa, o padre começou Salomé, que morava nos Coqueiros. vezes eu comprava a tirar uma prataria enorme de dentro dos gavetões e vendeu- todo o estoque do bom Salomé e levava para Santos porque o me tudo! O mesmo religioso pediu que eu fosse a Garopaba Amado tinha uma freguesia enorme e exigia mercadoria no primeiro domingo do mês seguinte. Trabalhei muito em constantemente. Palhoça e no dia marcado fui ao encontro do bom padre e da casa de meus amigos Gentil e Ibrantina e mudei-me comprei os maravilhosos móveis da velha igreja do século para São José. Lá comprei uma mesa de encosto do século XVIII: um arcaz rico e um par de credências "D. Um XVIII, na casa de um pobre coveiro do cemitério. Todas as dia fui à Vila Nova, comprei, de família herdeira de um pa- antigas famílias de São José possuíam objetos antigos. Lam- dre, dois tocheiros do século XVIII e um aparelho de chá, de 40 40 Pratos chineses da dinastia Khan-Shi. Coleção: Dr. Roberto Pacheco Fernandes. 64</p><p>prata do Porto 1830! Por falar em Vila Nova, tenho elemen- Santa Catarina alinha requintados colecionadores de moedas tos para provar que esta cidade antiga de Santa Catarina era e selos, não só em Florianópolis, como em Blumenau, Joinvi- um entreposto de animais no princípio do século passado. Os lle, Brusque, Lages e outras cidades. Para congregar to- tropeiros de Sorocaba levavam animais para Viamão no Rio dos os elementos amantes da filatelia e da numismática, foi Grande e traziam outros de lá para Sorocaba, Itararé, Faxina e fundada a Associação Filatélica e Numismática de Santa Ca- Itapetininga, cidades antigas do estado de São Paulo. tarina, com sede em Florianópolis. Meu saudoso amigo Dr. Aujor da Luz, médico em São No meu tempo, vivia o famoso colecionador de moedas, Er- Paulo, descobriu que sua família, por parte de mãe, era origi- nesto Xavier, estabelecido com armazém de secos e molhados nária de Faxina, hoje Itapeva. na rua João Pinto. Homem bom e modesto, era detentor de Mas falemos de São José, daquele mirante onde desembarcou grande coleção de ouro e prata. Após anos, foi chegando a ve- o Imperador. Que paisagem! Quando não tinha o que fazer, e com ela a doença; e o bom amigo Ernesto foi dispondo postava-me extasiado diante daquela baía mansa, que a Im- do seu último patrimônio a coleção. peratriz D. Tereza Cristina comparou à de Nápoles, sua terra. Entusiastas das moedas eram o Dr. Paulo Tavares e o coman- Empolgante também em São José, é o luar. Morei primeira- dante Arnaldo Vecchetti; também os amigos Feres, Moura e mente numa casa alugada, na rua do Fogo. Em seguida, Moelman. comprei um sobradão na rua principal. Do alto da sacada, Notáveis filatelistas: Félix Schmieglow, João Carlos Ramos, admirava aquelas noites enluaradas. Mais tarde, vendi a casa a Joel Vieira de Souza e Raul Bastos. Grandes colecionadores: um casal de amigos, Jaú Guedes e D. Paula; fiz questão de Alfredo Campos, Tiago de Castro, Rudi Schnorr, Jurandir Li- construir um sobradinho, porque não podia perder aquele es- nhares, João Steudel Areão, Tenente Alfeu F. Linhares e petáculo inesquecível. Adolfo Boettcher. Um dia, visitou-me em São José o Desembargador Pedrosa, A Sociedade Filatélica e Numismática editava bem impresso de antiga família originária de Pernambuco. Em sua compa- boletim, no qual escrevi artigos sobre numismática. A direção nhia, o Dr. Vicente de Paulo Vicente de Azevedo, também do boletim foi confiada ao Dr. João Carlos Ramos, na época desembargador em São Paulo e talentoso homem de letras, promotor público em São José. O juiz de direito da mesma que já me conhecia da casa do Amado, em Santos. No mo- comarca era o íntegro Dr. Pereira e Oliveira, desaparecido mento eu não dispunha de estoque, mas cedi para o ilustre prematuramente. desembargador paulista uma tigela com o brasão Imperial, a preço razoável. Visitou-me também o Sr. José Benedito Mou- ra, em 1948. Grande numismata e atual presidente da Socie- dade Numismática Brasileira. Registro também a visita do Sr. Francisco Roberto, emérito colecionador de imagens. Por falar em desembargadores, conheci alguns em Florianó- polis: o Dr. Pedrosa, o Dr. Hercílio Medeiros e o Dr. Osmun- do Nóbrega. Este último, paraibano de Patos, como eu. Os outros, conheci só de vista. Mas, vivendo muitos anos em Santa Catarina, tomei conhecimento dos acórdãos e, sobretu- do, da independência do soberano Tribunal. Diz o adágio: "Quando falha a beca, leva tudo a breca". Tal não acontece no Tribunal de Justiça, que se constituiu no orgulho maior do povo catarinense. Outra personalidade de São Paulo que me procurou em Sta. Catarina, foi o insigne conferencista Dr. Pe- dro de Oliveira Ribeiro Neto, oriundo de família sergipana e que foi o organizador e primeiro diretor do Museu de Arte Sacra de São Paulo. DUYN TABAC Vejamos agora as igrejas de Florianópolis: a Matriz possui va- KERKEN liosa relíquia, a imagem de Nossa Senhora do Desterro, ou D'OLANDE "Fuga para o Egito". A de São Francisco possui quadros im- portantes e móveis de época. A Lagoa ostenta o lampadário doado por D. Pedro II e bem assim o lindo ostensório com dedicatória. Peças de 1845. A mais rica e original era a de Santo Antônio, na Ilha. Era to- da dourada em folha de ouro do século XVIII. Restaurada, desfigurou-se. A igreja de São José passou por várias reformas, mas conserva 41 imagens belíssimas, inclusive um São Lucas, trazido pelas tro- pas josefenses, como troféu de guerra, do Paraguai. A igreja de Armação da Piedade conta com relíquias do sécu- lo XVIII. Outra igreja digna de nota é a de Laguna, onde se encontra Nossa Senhora da Conceição, obra de Victor Meire- 41 "Delft", potes para tabaco, século XVIII. lles. As alfaias, os entalhes e os lustres são preciosos. Coleção: Dr. Roberto Pacheco Fernandes. 65</p><p>PÃO POR DEUS As festas religiosas nas cidades litorâneas contam obrigatoria- barcaças ou canoas. Os descendentes de açorianos são muito mente com uma quermesse, onde circula um correio amoro- francos e o que têm que falar, desembucham na hora. Fran- São escolhidas quatro ou cinco moças com cestas à cintura, cos e leais. Dizem os nutricionistas que a farinha de mandioca vendendo corações de papel com bordados e fitinhas multico- é alimentação muito fraca. O povo das praias come só pirão res. Aberto, o coração mostra espaço para o "pão por com peixe; e, no entanto, rema o dia inteiro. O que se Os versinhos são em quadras, e os mais comuns são estes: come nas praias tem cheiro e gosto de peixe. É que o alimen- to da galinha também é o peixe. Vou te pedir pão por Deus Espetáculo que enche os olhos é o da pesca da tainha. Fica na Por meio de um coração praia, de plantão, um velho e experimentado pescador. A relembrar um passado Quando ele nota um grande cardume, dá sinal e logo saem os Dos tempos que já lá vão pescadores mais jovens, uns remando e outros jogando a rede Atende o meu coração da canoa na água. Dão uma grande volta e cercam o peixe. Que ora vai te visitar na praia, vêm mulheres, homens e crianças ajudar a puxar Esperando um pão por Deus a rede. Quando esta se acha a vinte metros da praia, muitas Se tu me quiseres dar pessoas vão enfiando a cesta na água e trazendo-a à tona cheia de tainhas. Repetem a operação, para aliviar a rede. Vi lances Lá vai meu coração de cincoenta e cinco mil tainhas em Garopaba. Arreiam-se os Todo cheio de bordado animais às carroças e carrega-se o peixe para a cidade. O que Mandai-me o pão por Deus sobrar, vai para o saladeiro. Se eu for do teu agrado Lá vai meu coração Passeando num jardim Vai pedir o pão por Deus A quem não esquece de mim Lá vai meu coração Neste papel recortado Vai pedir um pão por Deus A quem é do meu agrado lindo como um cravo Bonito como um botão Mandai-me o pão por Deus Jovem do meu coração. Contou-me D. Marta Simas que, há anos, chegara a Florianó- polis certo padre do norte, relativamente jovem. Uma soltei- rona bonita, zeladora da igreja, apaixonou-se pelo novo sacer- dote, a ponto de mandar uma outra moça, que era levar para o padre um coraçãozinho recortado. O padre, recebendo o objeto e não sabendo o seu verdadeiro significado, foi perguntar a D. Marta Simas. Ela explicou ao sacerdote tratar-se de costumes dos açorianos. Que a moça queria um presente ou então outro coração com versinho de amor. Um rubor subiu às face do padre que imediatamente chamou outra moça, também "correio", comprou um coração todo recortado e escreveu a quadrinha: O pão por Deus que me pedes, É uma flor do meu jardim Pega nas contas e reza Que é um pão que não tem fim. O catarinense geralmente fala um pouco cantado e usa certos termos que os de fora não compreendem. Por exemplo: tio está com a mala!" é a mesma coisa que dissesse: Meu tio está com o dinheiro. Também vocábulos em desuso: certo rapaz declarou-se a uma moça: "Isaura, eu te e a moça respondeu-lhe: "Tu mofas". Sempre lidei com gente humilde nas praias, onde alugava 49 70</p><p>RENDEIRAS Em frente ao Hotel La Porta, no meu tempo, reuniam-se as tanto fez que me comprou o quadro. O segundo representava rendeiras. Quem passava por ali até às 16 horas via uma ver- São José no Centenário da Colonização Açoriana. Uma dadeira feira de rendas e bordados. Essas rendeiras vinham do paisagem verdejante pintada do alto do Morro das Piteiras, interior da ilha e levavam ali seus trabalhos. Os nomes das descortinando a Matriz, a praça e, em último plano, a igreji- rendas eram variadíssimos. Gravei alguns: Renda de Arco, nha do Bonfim e a histórica casa com a grande figueira que Sobrancelha de Moça, Renda de Bonequinho, Perna Cheia, aparece na "Primeira Missa", de Victor Meirelles. Renda Miudinha, Olho Grande, Olho de Mula, Céu Estrela- Santa Catarina é uma terra privilegiada em beleza natural. A do, Salpique, Entremeio de Rosinhas, Trancelim, Toalha de ilha, um verdadeiro encanto; porém aprecio mais São José e Peixinho, Renda de Escadinha, Penca de Rosas, Trepadeira, Porto Belo. Regalada, Barriga de Cobra, Boca de Sino, Biquinho de Fes- Ando longe de São José há vinte e dois anos e muitos dos ta, Sardinha, Bico e Canto, Aplicação de Girassol e o famoso meus amigos já se foram. Mas às vezes transporto-me até lá e Crivo e suas variedades. revejo o belo mirante. Volto para o sobradão, onde hoje mora Saí de Santa Catarina em 1958 e vim para São Paulo. Voltei D. Paula, e contemplo, de longe, a ilha. Espero sair a lua que um ano depois com o velho amigo Jaime Waisseman. Sua se- é, e sempre foi, a minha Ave Maria cheia de graça de São Jo- gunda esposa, D. Adélia, falecera lá em 1953. Foi assim: ela sé. Que prodígio é o pensamento! ficara em São Paulo, enquanto Jaime seguia para a Argenti- na. Vendo-se já sem recursos, viajou para o sul, à procura do marido. Ao passar por Florianópolis adoeceu e internou-se no Hospital de Caridade, em quarto particular. Terminando seus recursos, ia já para a enfermaria, quando escreveu uma carta para o grande homem de Santa Catarina, Dr. Aderbal Ramos da Silva, que noutros tempos comprara muita coisa do Jaime. Desde então, nada mais faltou, até falecer. E agora ali estava eu com o Jaime no cemitério, com maços de velas, sem que vento deixasse acendê-las. Jaime chorava piosamente e lamentava-se por não ter assistido aos últimos momentos da companheira a quem tanto amara. Dois dias depois, para o Cemitério Israelita os de D. Adélia. Voltei outra vez a Santa Catarina para vender o sobradinho que construíra na rua principal. Quem o comprou foi o ge- rente do Banco Inco, em São José. Recordo-me de vários amigos em São José: as professoras Ma- rina Freislebem, Iracema Matos, D. Glória Matos, D. Herta Ramos, Ester Vieira da Rosa e Lucy Sandim, beneméritas edu- cadoras. O professor Aldo Câmara, os ricos negociantes Benja- mim Gerlach, Heriberto Schmitt e os bons irmãos Filomeno. As famílias Domingues, Botti, D. Tide e seu filho Dr. Cons- tâncio. As distintas famílias Petri, Köerich. O amigo Raulino Gerlach (Lola) e família. D. Diba, de saudosa memória e sua família, Ermelinda Bianchini e seus caros irmãos, bem como os amigos Arnoldo e Arnaldo Souza e tantos outros, mo os irmãos Platt, o João Matos e João Adalgísio. Foi meu vizinho e pessoa muito amiga o agente do Correio em São José, José Pisani Neto, o Zico. Sua esposa gostava muito de arte e, ao visitar-me, adquiria e bibe- lôs. Zico era muito curioso. vezes, me arrumava alguns ne- gócios. Foi aprendendo a negociar e, após a minha saída para São Paulo, tornou-se antiquário e vai prosperando, mesmo porque tem tempo de sobra: aposentou-se. Conheci em Florianópolis, ainda menino, Aldo Domingues. Ele subiu para o Rio, cursou decoração e viajou para São Pau- lo. Conheceu o grande decorador portenho-paulista Miguel Sojo; tem sido um êxito o trabalho da dupla. Em Florianópolis conheci, ainda no tempo do seu saudoso pai, Acelon de Souza, a jovem Alicinha, que depois se casou com um moço da família Damiani. Tornou-se notável deco- radora e antiquária. Adquiri, certa vez, dois quadros do pintor Martinho de Haro. O primeiro retratava o Cais Rita Maria. Charles Edgar Moritz 73</p><p>Vermo de ac quanto linha as Pauloe // do de cente dias da data que clau do. precedente. 41 / lendo da. que a accordo de rink a dias do come accordado, proper asduridas de defini a para trime de equal com nha li laudes laudes a a cada a uma de que do poder das a definition da de reselverant Residente Brasil. de Washington do a Augus line stade do de the 1919 the requise handy a linha de que das di que uma liuha 52 52 Termo arbitral para fixação definitiva dos limites entre São Paulo e Assinaram o compromisso por São Paulo o Dr. Altino Arantes e Washington Luiz Pereira de Souza e pelo Paraná os Drs. João Moreira Garcez, Afonso Alves de Camargo e Ermelino Agostinho de Leão. Coleção: João Moreira Garcez Filho. 74</p><p>all de de de 75</p><p>Alerta, Numismatas! Muitos colecionadores, ultimamente, têm sido procurados moedas em pequenos envelopes, ao passo que alguns usam o por pessoas da mesma cidade e de condição modesta, que antigo processo de estojo. oferecem um lote de moedas antigas. Esse lote é sempre O numismata logrado, que é cardiologista, após a compra, composto, de seis a oito moedas do colocou o saquinho numa gaveta e atendeu os clientes às pres- rio, e mais uma peça qualquer da famosa série dos Cruzados. sas, num desejo ardente de ver as moedas limpas, para con- Ora, uma moeda de cruzado, mesmo de data comum, chama templá-las com lente. Muito pouco se preocupa com o cora- a atenção em qualquer lote; o interesse que desperta aos ção dos outros! Precisava deixar o consultório mais cedo. pequenos colecionadores do interior, menos experimentados dezoito horas, despachou os três últimos clientes para o dia nas lides da numismática e que nunca viram uma peça de 800 seguinte e rumou para casa. Levou consigo as moedas. Estava ou 1200! satisfeitíssimo! Levava em seu espírito tanta ansiedade, como O ingênuo indivíduo que momentos antes fora contratado e um noivo na véspera do enlace... Comprara uma raridade! rigorosamente "ensaiado" pelo forasteiro espertalhão que o Que inveja iriam ter os colecionadores amigos! E que "gali- aguarda na esquina mais próxima, entra em cena: "Dou- nha morta" Comprara muito mais em conta que ao Her- tor, vim procurá-lo porque sei que coleciona moedas. Quan- mann Porchar; muito mais barato que ao Prober ou mesmo do fui batizado, há quarenta anos, ganhei algumas de meu ao Santos Leitão! Aquele sujeito fora um achado!.. Caíra padrinho e Conservei-as, sempre, religiosamente. Cer- mesmo do céu! Chegando em casa, não era mais aquela cria- ta vez, o Dr. Moacir (conhecido numismata de uma cidade tura ríspida e sempre preocupada com a clientela em atraso.. vizinha), ofereceu-me por uma só, oitocentos cruzeiros. Não Trazia esboçado em seus lábios um sorriso inocente. Beijou a quis vender por ser uma lembrança de Mas agora estou esposa e acariciou os filhinhos. Estava num grande dia de necessitando de dinheiro, vendo-as todas. Meu padrinho e numismática! lá do céu, que me desculpe". E tirando da algibeira um Tinha em seu poder um 400 réis de 1844! saquinho muito sujo para denotar despeja-o nu- Após o jantar, começou a limpar as moedas. Primeiro, as co- ma mesa. muns. 2000 de 1856. Mergulhou a moeda no amoníaco e es- O colecionador, ansioso, lança um olhar. Moedas sujas, bolo- fregou-a, depois, com um pano. Perfeito! 1000 réis de 1876, rentas mesmo. Não havia dúvida, estavam guardadas há qua- comum, mas soberba! A barba do Imperador não estava des- renta anos. Estavam quase cobertas de fuligem. Depara com gastada. Outra e outra... Tudo às mil maravilhas! Restava, uma moeda de 400 réis de prata, do ano de 1844! Nunca vi- porém, a peça rara. Um cruzado de 1844! Esta, teria de ficar ra, mas sabe que é rara... Não a fixa bem, porque é muito mesmo para o fim. Seria mais sensacional! Um cardiologista prejudicial ao negócio; vendedor é leigo e pode não pode temer as grandes emoções; ao contrário, é partidário desconfiar.. Grava a data, e, a pretexto de qualquer aviso pa- delas. ra o interior da casa, deixa ali as moedas, pede licença e au- Finalmente, a peça é mergulhada no líquido e esfregada em senta-se para outro compartimento. Não sabe precisar o pre- seguida. Adquire uma coloração mais viva que as outras moe- Torna-se necessário consultar uma lista do Porchar. Vol- das do lote. Repetida a operação, vai se tornando um pouco ta e agora não tem mais sobrosso do negócio. Mil e oitocentos mais escura. A lente entra em ação. Há, tanto no anverso co- cruzeiros, é quanto pede o Hermann Porchar. Pergunta ao mo no reverso, uma certa porosidade, que, com auxílio da sujeito quanto quer por todo o lote. Este pede mil e quinhen- lente, é, agora, incontestável! A moeda é batida e o tinido tos cruzeiros e acaba deixando por mil. Negócio fechado. O não parece o mesmo das demais peças do lote. Já há descon- homenzinho recebe o dinheiro e vai ao encontro do sabido fiança... A lente entra novamente em ação e o colecionador malandro que o espreita de longe (caso houvesse "bronca" e descobre uns riscos grossos de buril, como se fosse a moeda seu contratado viesse acompanhado, daria o "pira"). Mas, "trabalhada" para esconder qualquer defeito oculto. Célere, não havia perigo, vinha sozinho e sua fisionomia era alegre... o nosso homem corre ao numismatógrafo mais autorizado da Não havia de que se arrecear. Recebe o ingênuo, ali mesmo, cidade, que é também o detentor da maior coleção. Grande, na esquina, que, por sua vez, dá-lhe conta da missão de que porém, foi sua surpresa ao chegar em casa do colega. Lá esta- se incumbira. Passa-lhe os mil cruzeiros e recebe os cinqüenta vam nada menos de cinco vítimas, inclusive o dono da casa. de gratificação. insignificante, para um papel tão Um com 800 de 1835; outro, com 1200 de 1840; e os demais, bem representado! O malandro manda-o a outro coleciona- com mesmo 400 réis de... 1844! dor com mais um saquinho sujo. Não podia perder tempo. Já havia sido descoberto todo o embuste. As moedas eram Qualquer delonga seria prejudicial. Bastaria um só coleciona- fundidas, não no gesso, que não se presta para cópias tão níti- dor descobrir o embuste para avisar a polícia e os demais cole- das, e sim numa areia prodigiosa, finíssima, mesmo. Após a gas. Desceram a esquina e foram em busca da nova vítima fundição, o artífice, hábil, burilou-as, para disfarçar a peque- um boticário. na porosidade. É sabido que a prata com título elevado, como Os numismatas, em geral, estão ocupadíssimos durante o dia. é a do Império, esfria tão rapidamente que, quando entra no São médicos, militares, advogados, engenheiros, boticários, canal para a forma, não chega a Foram, pois, fundi- funcionários e homens de negócio. Não dispõem de tempo das em prata 700 ou 800, que conserva mais calor. Para enco- para contemplar moedas durante o dia. Uma vez procurados brir os riscos do buril e ao mesmo tempo para que adquiris- para assunto relacionado com moedas, atendem com grande sem a mesma coloração das peças do Império, foram banha- solicitude, mesmo diante das maiores ocupações. Mas, desde das em prata de título 950. Em seguida, foram levadas numa que realizem negócio, deixam as moedas para serem limpas chama para pegarem fuligem. durante a noite, ou mesmo num dia feriado. Após a limpeza, Estava desvendada a ladroagem toda. Era necessário apresen- operação que nenhum colecionador confia a outra pessoa, é tar queixa naquela hora mesmo! que se dá a classificação e catalogação. A maioria guarda as Foram, no mesmo instante, ao delegado regional de polícia 76</p><p>e apresentaram queixa crime contra o atrevido patife que ou- sara lográ-los. O vendedor era um pobre bilheteiro. A polícia arrancou-o da cama... Van Loon afirmou que "não existe ira semelhante à do colecionador logrado!" Chegando à Polícia, o humilde homem contou a verdade. Travara conhecimento com um "viajante" que, estando sem dinheiro e possuindo vários lotes de moedas, desejava vendê- las. Dizendo-lhe que conhecia os colecionadores da cidade, pedira para que ele, bilheteiro, as colocasse. Dissera que eram presentes de batismo por sugestão do "viajante" Trabalhara a soldo, é verdade; mas ignorava que nos lotes vendidos houvesse moedas falsas. Agira de boa fé. Nesse momento, recebia o delegado um telefonema do pro- prietário do hotel para onde, momentos antes, havia ligado, comunicando-lhe que o "viajante" em questão havia muda- do de ares... O bilheteiro, em vista de seus bons antecedentes, foi posto em liberdade sem maior constrangimento, enquanto os nu- mismatas logrados saíram dali possessos, cada um ficando com a amarga recordação de um "vivo nosso contemporâneo, que se diverte, nas horas vagas, em transfor- mar moedas de 1000 réis de 1913, em peças de 1844! Essa areia de Ponta Grossa tem feito coisas... Publicado em "Sta. Catarina agosto de 1949 1900 53 77</p><p>VIAGEM A BELÉM DO PARÁ, MARANHÃO E PIAUÍ UM COMPRADOR DE ANTIGÜIDADES Fui por terra numa Rural Willys. Em 1948, estava em Alfenas, no sul de Minas, terminando Atravessei Minas e bem ao norte de Goiás visitei Tocantinó- uma viagem, quando fui procurado por um antiquário do polis, em frente a Porto Franco, Maranhão, e fui penetrando Rio de Janeiro. Insistiu em que eu lhe mostrasse tudo que ha- para Carolina e São Adquiri miudezas boas. Voltei a via comprado e satisfiz sua vontade. Por fim queria adquirir Porto Franco e segui para Belém. Depois de Paragominas, todos os meus objetos e eu fiz-lhe ver que trabalhava para veio o Morro do Sabão e lá fiquei plantado! A Rural enterrou Amado e não desviaria uma só peça. o diferencial no barro. Veio um trator e com seu auxílio pude Comecei a embalar as compras e, no dia seguinte, homem prosseguir. voltou à minha presença dizendo que eu havia limpado a ci- Chegando a Belém, hospedei-me num bom hotel na avenida dade, que eu era um "pente fino" e que não sobrara nada Presidente Vargas. para ele. Resolvi levá-lo a algumas famílias. Apresentei-o pri- Belém do Pará é um encanto de capital. É pena que na época meiro à senhora de um fazendeiro que estava ausente e que em que lá estive, a cidade era muito suja. Achei o cais "Ver- possuía algumas raridades. Quando entramos, uma mocinha o-Peso" uma verdadeira sensação. de uns quinze anos ensaiava ao piano. Sobre este, um belo Um antiquário meu amigo, do Rio de Janeiro, José Abressor, par de castiçais de saia. O homem insistiu: também conhecido por Zé dos Bichos, explorou Belém du- "Senhora, venda-me o piano...' rante muitos anos, mas deixou para mim as belas figuras de "Quanto o senhor oferece?" Devezas ou Santo Antônio do Porto. Enchi um caminhão "Dou-lhe cem mil com essas figuras e despachei para São Paulo. Comprei tam- Eu estremeci! O piano não valia mais de vinte mil. bém caixas e caixas de azulejos na cidade velha. A senhora disse-lhe que dependia da chegada do marido. Vendi minha Rural Willys e voltei de avião para Alto Por um ângulo, o homem viu grande armário na sala de jan- ba, no Maranhão. Muito interessante Alto fica na tar, repleto de miudezas de linha. Foi penetrando e rogou beira do rio Parnaíba, navegável. Do outro lado, a velha ci- à senhora que lhe vendesse o armário. Dava-lhe sessenta mil dade de Santa Filomena, Piauí, onde viveu o barão do mes- cruzeiros! Desconfiei das ofertas do homem e já estava arre- mo nome, que era irmão do Marquês de Paranaguá. pendido de o apresentar, pois o móvel era do fim do século Aluguei um teco-teco por dez mil cruzeiros para levar-me a passado e eu não o quereria nem por cinco mil. São Gonçalo do Amarante. Tão perto e não conhecer a terra Então a senhora resolveu vender armário e perguntou-lhe: do sublime poeta Da Costa e Silva, seria para mim imperdoá- "E a miudeza onde a coloco?" "Bem, eu também a vel. Fui e fiquei feliz ao ver "as barbas brancas alongando, compro, mas são coisas de pouco valor". mugido dos bois da minha terra". Ouvi o canto do caboré e Resumindo, o homem comprou de Sèvres, pratos agora precisava satisfazer outra curiosidade; conhecer a terra "Companhia das "borrão" e "Macau", bichinhos do pintor Lucílio de Albuquerque Barras. Mas, que pena! "Copenhagen" e dois paliteiros de prata por oito mil cruzei- Ninguém conhecia o meu Apenas uma pequena praça ros! E na saída comprou castiçais do século XVIII por dois mil lembra o nome do notável pintor. cruzeiros! Disse para a senhora que desocupasse armário e O Piauí é berço de grandes talentos; acontece, porém, que resolvesse sobre o piano que sua oferta era magnífica. quase todos saem para o sul, como Félix Pacheco e muitos ou- Saímos com duas cestas cheias daquelas miudezas e, ao che- tros que o Piauí nos mandou neste período revolucionário, e a garmos ao hotel, tirou mil cruzeiros do bolso para pagar-me a terra fica mesmo a ouvir o mugido dos bois, quando chove... comissão de Eu agradeci mas não aceitei porque não Voltei, via Parnaíba, Fortaleza, Natal, Recife e São Paulo. gosto de meter-me em rolos. No dia imediato, a empregada Aqui chegando, ainda esperei uns dias pelo caminhão de Be- daquela casa veio pegar as cestas vazias e dar ao homem o re- lém do Pará. cado da patroa de que armário estava desocupado e que po- Lembro-me de que a estátua mais bonita foi vendida a D. dia pegar também o piano. O nosso homem mandou outro Bernadete Nascimento. Muitas miudezas interessantes a D. recado dizendo que comprara muito, que já pedira uma or- Maria Vitória Prada. A grande quantidade de moedas com- dem de pagamento e que assim que esta chegasse, iria pagar pradas no Piauí foi vendida ao Carioca e uma coleção de ar- armário e o piano. mas antigas ao Sr. José Benedito de Moura. Tratei de o caminhão e ir para Poços de Caldas, en- Um casal simpático que me visitava nessa ocasião, era o Dr. vergonhado que estava de permanecer na cidade. Alexandre da Silveira Médicis e esposa. Uma garotinha filha Garanto que o homenzinho viajou logo depois. Que tapea- do casal, depois de adulta, tornou-se uma boa freguesa de an- dor! A mercadoria que aquela senhora não me quis vender, alegando a ausência do marido e que foi transacionada por Rendo aqui minhas homenagens à distinta senhora D. Vera dez mil cruzeiros, valia, já na época, mil! Mendonça. Ela e sua saudosa mãe muito me incentivaram no ramo que abracei, dando-me sábios conselhos. Outra figura feminina de alta sensibilidade artística é D. Lau- rita de Lara Mesquita, muito digna esposa do Dr. Ruy Mes- quita, talentoso jornalista de "O Estado de São Paulo" e "Jornal da Tarde". 83</p><p>PARAÍBA, PEQUENA MAS GLORIOSA Quase todos os anos eu ia ao meu estado natal - Paraíba SO por suspeitas, no ato em que vendia as próprias condecora- pela Rio-Bahia. Visitava minha mãe, em Patos, e revia os ções de ouro a um antiquário; mas, chegando à delegacia, amigos e parentes em São Mamede e Santa Luzia do Sabogí. provou que eram suas as medalhas e condecorações, fato que Em se tratando da Paraíba, como de outros estados do nor- causou espanto às autoridades policiais. deste, é difícil a tarefa de enumerar talentos. Augusto dos O irmão de Pedro Américo, Aurélio Figueiredo, brilhou no Anjos já dizia: campo pictórico. Suas paisagens são hoje disputadíssimas en- infinita como os próprios números, a tua conta tre os maiores colecionadores. não acaba mais... Santa Rosa (Tomás) nascido em João Pessoa, foi cenógrafo, Quanto à Paraíba, vejamos: pintor, ilustrador, professor e crítico de arte. Já na infância José Américo de Almeida, nascido em Areia, pertenceu à pintava estandartes religiosos. Foi também grande incentiva- fase do Modernismo. Com sua obra "A Bagaceira" podemos dor do teatro, tendo fundado o grupo "Os Comediantes". dizer que o romance modernista ganhou popularidade. Esse Faleceu na India, quando representava o Brasil numa confe- livro é o ponto de partida dos prosadores que surgiram poste- rência internacional da Unesco. riormente. Nas ciências destacaram-se: Arruda Câmara, Pe. Azevedo e José Lins do Rego, natural do Engenho do Corredor (Pilar), Carneiro da Cunha. Na oratória: Epitácio Pessoa, João da Ma- em 1932, pertencendo, portanto, à fase do Moder- ta Correia Lima e Cônego Pedro Anísio. nismo. Seus romances constituem a literatura do chamado Estadistas e políticos: Aristides Lobo, Venâncio Neiva, Castro da "Menino do Engenho", "Doidi- Pinto, Camilo de Holanda, Epitácio Pessoa, Tavares Caval- nho", "Moleque Ricardo", "Usina". cante, João Pessoa, Ruy Carneiro, José Pereira Lyra, João "Pedra Bonita", "Fogo "Eurídice", Agripino, Simeão Leal, José Américo de Almeida, Solon de "Os Cangaceiros". Lucena, João Machado, Assis Chateaubriand e Ernani Segundo Tristão de Athayde, Lins do Rego "refletiu no seu Grande herói da Vidal de Negreiros. Outros enorme mural um problema social tipicamente nosso: a ago- talentos: Cônego Matias Freire, Eudes Barros, Tavares Caval- nia de uma casta, o fim do patriarcado rural, o desmorona- cante, Orris Soares, Raul Machado, Isidro Gomes, Padre Ma- mento de um mundo". noel Otaviano, Generino Maciel, Irineu Joffily, Arthur Aqui- Na poesia, temos Augusto dos Anjos, nascido no Engenho les, Coriolano de Medeiros, Eliseu César, Maximiliano Ma- Pau d'Arco. Constitui um caso isolado na literatura brasileira chado, o culto Gal. Lira Tavares e ainda D. Fernando Gomes, devido aos temas de sua poesia, onde impera o pessimismo. É Arcebispo de Goiânia. muito criança do nordeste e fui pa- parnasiano em alguns aspectos, simbolista em outros. Publi- ra o Rio de Janeiro, onde fiz curso primário na antiga Escola cou o livro "Eu" em 1912. Dizem que este foi um dos livros Rodrigues Alves, ali ao lado do Palácio do Catete. Mais tarde de poesia mais lidos no Brasil. fui para o internato do Colégio Pedro II. Lembro-me de al- Outros: Américo Falcão, Perilo de Oliveira, Rodrigues de guns colegas de classe: José Maria Alkimin, Ary Pitombo, Carvalho. Sylvio da Silva Paranhos do Rio Branco, Eduardo Rodocanach Nas artes, avulta a figura de Pedro Américo Figueiredo e Me- Bething e outros, nos anos de 1924 a 1926. lo, nascido em Areias. Espírito eclético e curioso, interessou-se Quando entrei para o Pedro II, tive de fazer exame de admis- por vários ramos da ciência. Estudou na Europa, onde faleceu são no externato. Compunham a banca examinadora José Oi- (Florença). ticica, português; Honório Sylvestre, geografia; Pedro do Seus principais quadros: "Batalha do exposto pela pri- Couto, história do Brasil, e Arthur aritmética. meira vez em Florença, acha-se no Museu Nacional de Belas Entretanto, no velho casarão do Campo de São se- Artes. Sua obra "O Grito do Ipiranga" lhe valeu o título de de do internato, como aluno 247, conheci excelentes pro- "Grande do "Carioca" acha-se no Museu Nacio- fessores que jamais esquecerei: José Júlio da Silva nal de Belas Artes. drático de português; que tinha como substituto o então jo- Afirmam os entendidos que, até hoje, não apareceu no Brasil vem Hanemann Guimarães, depois Ministro do Supremo um desenhista tão perfeito como Pedro Américo. Seu quadro Tribunal Federal. Falecendo o velho professor Arthur Thiré, "Batalha do é considerado modelo de técnica. Outras substituiu-o o filho, Cecil Thiré, ótimo mestre de matemáti- maravilhas: "O Grito do "David e Abissag", e ca. Geografia, Honório Sylvestre; francês, Floriano de Brito; "Carioca". Este último quadro foi pintado na Europa e man- história do Brasil, Pedro do Couto; corografia do Brasil, Mário dado de presente para o Imperador Pedro II. Trata-se de bela da Veiga Cabral; latim, Dr. história universal, nada morena carioca, nua, banhando-se na Cascatinha da Tijuca. menos do que João Ribeiro. O chefe de disciplina era Dr. Verdadeira obra de arte e bom gosto. No entanto, o mordo- Quintino do Valle e o sub-chefe, Salatiel de Almeida. mo da Casa Imperial considerou o motivo licencioso para fi- Recordo-me de que por duas vezes, na parada militar, desfilei gurar na Galeria de Sua Majestade. O quadro foi devolvido e ante o Presidente Bernardes, que assistia ao 7 de Setembro da o grande pintor, ferido em seus brios, ofertou-o a Guilherme sacada do Palácio do Catete. I, Imperador da Alemanha. Pelo gesto foi condecorado com Existia na época grande rivalidade entre Pedro II e o Colégio medalha de ouro. No governo de Epitácio Pessoa, foi o qua- Militar. dro readquirido por dois mil contos de réis, quantia vultosa Nós, do Pedro II, ostentávamos seis botões no dólman, na para a época. parte traseira. Os alunos do Colégio Militar portavam farda- Pedro Américo foi muito protegido por D. Pedro II, mas, de- mento azul e uma parte bem vermelha, por isso nós os apeli- vido a seu brilhantismo, foi alvo de inveja e de intrigas. Hou- damos de "Diabos Rubros". Mas, quando menos se espera- ve momento em que o artista empobreceu a ponto de ser pre- va, num dobrar de esquina, vinha aquele grito: seis 84</p><p>A resposta estava na ponta da língua: "Três para o na pertencia à família do Conselheiro João Alfredo Correia de pai, três para a mãe!" Oliveira, que foi, anos depois, primeiro-ministro de D. Pedro Eu residia na rua Silveira Martins, esquina da rua do Catete, II. Por morte de seu pai, Manoel Alves da Nóbrega, jovem na pensão de D. Chiquinha. Lembro-me de alguns estudan- João, recém-casado, tornou-se maior latifundiário do sertão tes do norte que lá se hospedavam: Assis e o filho paraibano. Dizem ter sido homem muito justo. Adhemar; Antenor Navarro, Costa Pereira, Clóvis e Antônio Falecido João Alves da Nóbrega, D. Joana Francisca de Oli- Catunda, dois irmãos do Ceará, depois grandes médicos. De veira, da Fazenda Trincheiras, apesar de viúva, fez-se chefe São Paulo, recordo-me de Francisco Armando, Renato Pen- política de Patos, por muitos anos. Sua filha Marcolina, mi- teado Abate, Pascoal Gaioto e Félix de Moraes Sarmento. nha casou-se com o primo José Claudino da Nóbrega, Recordo-me do dia 15 de novembro de 1922, quando o pa- proprietário de diversas fazendas, e que morava na sede cha- raibano Epitácio Pessoa entregou o governo ao Presidente mada Barra Verde, motivo pelo qual era chamado de Capitão eleito, Arthur Bernardes. Contava doze anos de idade, mas Zezinho da Barra Verde. Seu irmão Januário Nóbrega chefia- lembro-me do boato de que no Rio não havia mais apitos pa- va o Partido Liberal em Santa Luzia e construiu sobradão ra vender. Pretendia o povo carioca dar uma grande vaia no que ainda lá existe. "Seu como era apelidado o Presidente. Tal não aconte- Já neste século, as fortunas mudaram de mão e passaram a ceu. Vi quando o Presidente Bernardes desceu do carro e pe- parentes e a outras famílias. Saliento o fazendeiro Cândido netrou na porta principal do Palácio. Minutos depois, apare- Epaminondas da Nóbrega, avô doDesembargador Osmundo cia na sacada já com a faixa presidencial; foi pouco aplaudido. Wanderley da Nóbrega, do tribunal de Santa Catarina. Tam- Em seguida, Dr. Epitácio Pessoa desceu a escadaria do Catete bém Cel. Francisco Antônio da Nóbrega, de Santa Luzia, e tomou o carro que esperava, debaixo de grandes ovações e pai doDesembargador José Flósculo da Nóbrega, jurista e ho- foguetório. Os nortistas, da minha varanda, aplaudiam deli- mem de letras (aos dezesseis anos joguei muito xadrez com o rantemente o ex-Presidente. futuro desembargador). Outro homem que se destacou em Em 1922, assisti à chegada de Sacadura Cabral e Gago Couti- Patos foi o Major Miguel Formou todos os filhos, in- nho. Verdadeira loucura! Testemunhei, no mesmo ano, a Ex- clusive o ex-Governador hoje figura de relevo posição do Centenário, e, em 1923, o fantástico enterro de na Câmara dos Deputados. Ruy Barbosa. O Major Miguel homem rico, sereno e de acrisoladas Mas, voltemos à Paraíba em 1927. Quem mandava virtudes era um verdadeiro pai para o povo sertanejo. Epitácio Pessoa. Na presidência do Estado figurava um seu Conta meu cunhado, Arthur Carneiro Bastos que, certa vez, correligionário, João Suassana, chamado de Presidente da o Major Miguel perdeu a calma. Havia uma grande seca no Mocidade. No alto sertão mandava o famoso chefe Coronel sertão e a prefeitura abriu cacimbas no rio Espinharas, para o Pereira Lima. Em Patos, outro grande chefe da situação, Ma- povo não morrer de sede. Um empregado do major saiu com jor Miguel Sátyro. Em Santa Luzia do Sabugí, sediava-se o jegues para suprir de água a casa do patrão. Chegando à ca- boníssimo Coronel Manoel Emiliano de Medeiros, cujo ir- cimba, um outro carregador d'água queria passar na sua fren- mão, João Maurício, era prefeito da Capital. Em Soledade, te e o empregado do major meteu o funil na cabeça do rapaz, pompeava o Coronel Claudino da Nóbrega, homem de in- a ponto de lhe tirar sangue. O soldado incumbido da fila, fluência. No Brejo, o tribuno paraibano, Tavares Cavalcante, bradou-lhe: "Está preso!" Ao que o empregado respon- e o ex-Presidente do Estado, Solon de Lucena, davam as or- deu: - "Estou preso, sim senhor, mas por favor, eu sou em- dens. Ainda no interior, registrava-se influência dos Queiro- pregado do Major Miguel e sua casa está sem uma gota ga, Gadelha, José Gaudêncio, João Agripino de Vasconcelos d'água. Deixe-me encher as latas e senhor pode até me Maia e Franklin Dantas, este, chefe de Taperoá-Teixeira, e os acompanhar até "Está bem, eu espero", respondeu o poderosos usineiros João Úrsulo Ribeiro e família. soldado. Chegando a casa, este esperou que fossem esvaziadas Na época, 1927, os mais brilhantes advogados da Paraíba as latas. Mas o major recomendou ao empregado que voltas- eram João da Mata Correia Lima, José Américo de Almeida, se imediatamente porque quase todas as vasilhas ainda esta- Antônio Sá, Irineu Joffily, Francisco Seráphico da Nóbrega, vam abaixo da metade e precisava água para o banho. O ra- Generino Maciel, Antônio Boto de Menezes e Genésio Gam- paz pediu desculpas: não podia voltar ao rio, pois estava preso barra. No jornalismo, Adherbal Piragibe e Antônio Boto de por um soldado que o aguardava ali na porta. Ouvido o sol- Menezes. dado, o major disse-lhe: "Pode voltar para a delegacia e Quem fazia oposição ao Governo? O chefe da oposição na diga ao delegado que mais tarde o rapaz se apresenta. Eu não Paraíba era, acima de tudo, um homem íntegro - o desem- quero relaxar a sua prisão, mas minha casa precisa de água". bargador Heráclito Cavalcante Carneiro Monteiro. Aguardou O soldado ficou furioso e disse ao Major Miguel que ordem é muitos anos, sempre preterido, até que foi para Senado, em para ser cumprida. O rapaz estava preso e ia com ele para a 1929, mas sobreveio a revolução de 30 e ele voltou ao ostracis- delegacia. o major perdeu a calma: "Quer saber de mo. uma coisa? O senhor não é mais soldado, não!" Escreveu Deixemos a política e voltemos aos velhos tempos, em Patos. umas linhas ao comandante do batalhão, e deu-as ao mili- No século passado, meu João Alves da Nóbrega, que ciano: "Leve esta carta a seu comandante, para senhor fazia seus preparatórios em Recife, ao passar por Goiana aprender a respeitar os chefes!" nheceu bonita moça pernambucana chamada Joana Francisca Lembro-me de São Mamede, quando Frei Martinho convo- de Oliveira. Paixão ardente entre os jovens. Como existisse cou o povo para carregar tijolos, pedras e areia para a constru- oposição da família, meu antepassado roubou a moça e le- ção da Igreja Matriz. Fiz a primeira comunhão com Frei Mar- vou-a para Patos, onde foi celebrado o casamento. Dona Joa- tinho e, por isso, julgo-me um homem feliz. Nasci em Patos, 85</p><p>bem em frente à Matriz. Vim para São Mamede com seis dadeiro primor de arte, atribuída ao mestre escultor Machado anos, depois para Santa Luzia e voltei para São Mamede. de Castro, glória dos tereutas lusos. Recordo-me do Coronel Zé Paulo, dos seus netos Júlio e Ze- Passo a descrever agora as igrejas da capital paraibana João zé, meus companheiros de brinquedo, juntamente com Na- O Convento de São Francisco, com a maravilhosa en- poleão, filho do Januncinho, fazendeiro ligado a seu tio, Se- trada de painéis de azulejos que José Mojica, homem de sen- ráphico da Nóbrega. Meu tio Josias da Nóbrega era sibilidade, disse ser a mais bela da América do Sul. homem pacato e por isso muito estimado. Seu filho, Padre Seminário: na sacristia existem os contadores do século XVIII, Luis Laíres da Nóbrega, é hoje o vigário-geral de Patos. De verdadeiras obras de arte. Bonitas alfaias e valiosos entalhes. vez em quando, visita-me em São Paulo. Na igreja ao lado do Palácio Episcopal encontra-se rico púl- Seria injusto concluir este trabalho sem focalizar as figuras da pito onde pregava Padre Antônio Vieira. Há anos, o humil- grande educadora de Santa Luzia do Sabugí, Luzia Araújo de de Padre José Coutinho, figura apostolar da Paraíba, Medeiros, e do fazendeiro Coronel João Simplício, de saudosa mostrou-me o gigantesco arcaz da sacristia - outra obra de memória, chefe de uma família exemplar. espetacular. As imagens são do século XVII. Noutros tempos, as reuniões das cidades do interior davam-se A Matriz é muito bonita. Nela é que se acha sepultado D. nas boticas. Em Santa Luzia, não: no cartório do Major Inácio Adauto de Miranda Henriques, primeiro arcebispo da Machado é que se reuniam o Juiz Municipal, Dr. Joaquim de ba. Lembro-me de que todos os domingos ouvia ali os ser- Medeiros, o Padre Dantas e o Prefeito Dr. Nino, parceiro de do Cônego Pedro Anísio, fulgurante talento da Felipéa. gamão do cartorário. Eu costumava jogar xadrez com estu- A Igreja de Frei Martinho é moderna e contém o ossário com dante José Flósculo da Nóbrega e com o Juiz Municipal. grandes vultos da Paraíba. Nessa época, todos os grandes paraibanos de hoje e ontem João Pessoa ostenta uma lagoa no centro da cidade alta e eram estudantes: Rui Carneiro, Fernando Nóbrega e Ernâni uma linda avenida que leva para Tambaú e outras praias encantadoras. Em 1930 eu andava por São Paulo, de onde acompanhei os Referi-me ao Padre José Coutinho. Comove-me lembrar de acontecimentos da Paraíba. Dois parentes meus, o Dr. Fene- que ele, numa cadeira de rodas, ia ao cinema todas as noites, lon Nóbrega, juiz de direito de Patos, foi aposentado a con- não para assistir ao filme, e sim para estender a mão, pedindo tragosto, e Juiz Federal Gouveia Nóbrega preferiu licenciar- a cada pessoa uma esmola para atender aos seus pobres alunos se. Este último era pai do Dr. Fernando Carneiro da Cunha de datilografia, costura etc. Essas esmolas socorriam mais de Nóbrega, ministro de Juscelino. cem pessoas! Viajei para Mamanguape a velha cidade paraibana on- O benemérito padre já se foi, mas sua fundação continua, es- de consegui comprar muitas coisas para meu comércio. O perando alguém que tenha a humildade de estender a mão Cônego Beltrão vendeu-me um belo lampadário de prata que como ele. estava fora de uso. Noutra viagem, comprei, já do Padre José, Homens como Padre José Coutinho são predestinados e duas lindas lanternas de altar, logo adquiridas pelo Dr. Pláci- aparecem raramente. Tenho-o na conta dos maiores vultos da do Gutierrez. minha terra, pelo sublime exemplo de humildade e de verda- Havia muita imagem e móvel estilo "Béranger". Este artista deiro amor ao próximo. francês chegou ao Recife em 1820 e faleceu em 1866. Seu único filho trabalhou bastante no mesmo estilo do pai, mas recomenda-se cuidado na aquisição desses móveis, muito CO- piados em Pernambuco e Bahia. Recentemente, vendi uma mobília dessas ao Dr. Mário Pimenta Camargo, mas tanto pe- la procedência como pelo entalhe, a autenticidade era irrecu- O filho de Béranger faleceu no fim do século passado. Todas as vezes que passo em Mamanguape fico muito como- vido. Bem perto, mais ao norte, está a Baía da Traição, onde de- sembarcaram os Nóbregas, portugueses de Coimbra e de Lei- ria. Um deles, nos meados do século XVIII, foi com cem in- dios domesticados até a capital, para como mem- bro da Primeira Junta Governativa da Paraíba. Um seu neto, em 1760, casou-se em Santa Luzia; chamava-se Manoel res da Nóbrega. Eis que recebo uma notícia triste: faleceu em Recife meu pre- zado amigo e companheiro de infância, Dr. Napoleão Abdon da Deputado estadual várias vezes, Secretário da Segurança Pública no governo Pedro Gondim, Napoleão era um veterano advogado do povo sertanejo. O Dr. Napoleão 63 "Mulher dos Banhos de Lucca". deixou viúva e um casal de filhos. Formara-se pela Faculdade sobre tela. Pedro Américo. Datado de 1882. de Direito do Recife, em 1933. Seu filho, também advogado, A modelo é a própria filha do pintor, que deve seguir as pegadas do pai bondade e tolerância. se casou com o nosso embaixador em Lisboa, Dr. J. M. Cardoso de Oliveira. Adquiri, em Alagoa Grande, uma imagem de Sant' Ana, ver- Coleção do autor. 86</p>