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<p>AVENTURAS DA TÁVOLA REDONDA</p><p>- Estórias Medievais do rei Artur e seus Cavaleiros -</p><p>Ficha catalográfica</p><p>Aventuras da Távola Redonda: estórias medievais do Rei Artur e seus</p><p>cavaleiros/ organização e tradução de Antonio L. Furtado; prefácio</p><p>de Gilberto Mendonça Teles. _ Petrópolis, Vozes, 2002</p><p>Inclui bibliografia</p><p>ISBN:</p><p>1. Artur, Rei. Novelas de cavalaria 2. Graal 3. Literatura Medieval</p><p>I. Furtado, Antonio L., 1934- II. Teles, Gilberto Mendonça, 1931-</p><p>CDD: 808.803</p><p>AVENTURAS DA TÁVOLA REDONDA</p><p>- Estórias Medievais do rei Artur e seus Cavaleiros -</p><p>Organização e tradução de Antonio L Furtado</p><p>Prefácio de Gilberto Mendonça Teles</p><p>_____________</p><p>Petrópolis</p><p>2002</p><p> 2002, Editora Vozes Ltda.</p><p>Rua Frei Luís, 100</p><p>25689-900 Petrópolis, RJ</p><p>Internet: http://www.vozes.com.br</p><p>Brasil</p><p>Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou</p><p>transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico,</p><p>incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados</p><p>sem permissão escrita da Editora.</p><p>Editoração e org. literária:</p><p>Ilustração de capa: Paolo Uccello, Batalha de São Romano - museu Uffizi, Firenze.</p><p>Créditos pelas ilustrações inseridas no texto (numeradas por ordem de ocorrência):</p><p>Catedral de Winchester: 1; Biblioteca Pierpoint Morgan, New York: 2, 10;</p><p>Biblioteca Nacional de França, Paris: 3, 4, 6, 9, 12, 13, 14; Biblioteca Real da</p><p>Bélgica, Bruxelles: 5; Biblioteca Hill Monastic Manuscript, Collegeville: 7;</p><p>Biblioteca do Arsenal, Paris: 8; Museu J. Paul Getty, Los Angeles: 11.</p><p>ISBN</p><p>Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.</p><p>para os meus arcanjinhos</p><p>Miguel e Gabriela</p><p>Sumário</p><p>Prefácio de Gilberto Mendonça Teles</p><p>Apresentação</p><p>Artur e seus Cavaleiros</p><p>A Matéria da Bretanha e a Távola Redonda</p><p>Contando a Lenda de Artur</p><p>Sobre as Aventuras deste Livro</p><p>Outras Estórias Paralelas</p><p>Para Concluir</p><p>Bibliografia</p><p>As Aventuras</p><p>I O Gigante do Monte Saint-Michel</p><p>II Rei que foi, Rei que há de ser</p><p>III A Mula sem Freio</p><p>IV O Cavaleiro da Espada</p><p>V Caradoc do Braço Inchado</p><p>VI O Juramento Ambíguo de Isolda</p><p>VII A Falsa Genevra</p><p>VIII O Cortejo do Graal</p><p>IX José Libertado</p><p>X Maravilhas de Corbenic</p><p>PREFÁCIO</p><p>O que foi, o que será</p><p>Gilberto Mendonça Teles*</p><p>A antologia de narrativas (estórias) do rei Artur e de seus cavaleiros que o</p><p>professor ANTONIO L. FURTADO selecionou, traduziu e reuniu sob o título de</p><p>Aventuras da Távola Redonda, deve ser vista como uma excelente contribuição ao</p><p>estudo da cultura literária no Brasil. Despertam logo atenção a qualidade gráfica do</p><p>livro, publicado pela Editora Vozes, o critério e o bom gosto na seleção das</p><p>narrativas, o esmero na tradução e na sua expressão em língua portuguesa, além da</p><p>excelente parte introdutória e da quase exaustiva bibliografia sobre a matéria da</p><p>Bretanha, o que, por si só, dispensaria qualquer pretensão de prefácio.</p><p>Um verso de Thomas Malory, autor de textos em prosa sobre Artur na Inglaterra</p><p>(impresso por Caxton em 1485), aparece na segunda narrativa deste livro, exatamente</p><p>a que trata da morte do rei Artur. Numa frase lapidar, digna mesmo de uma lápide</p><p>num túmulo também mítico, Malory escreve em latim: "Hic iacet Arthurus, rex</p><p>quondam, rexque futurus", cuja segunda parte exprime toda a dimensão da lenda</p><p>arturiana — aquele que foi, aquele que sempre será rei, tal como a aproveitamos no</p><p>título acima. Se a história não lhe dá, ao rei Artur, a exatidão do real, o mito,</p><p>envolvendo as duas pontas imprecisas da sua vida e aventuras, inscreve-o no tempo</p><p>áureo, ucrônico, utópico e, por isso mesmo, eutópico, ou seja, o lugar que é bom para</p><p>o leitor, o que agrada, ainda que o seu maravilhoso seja por demais inverossímil na</p><p>atualidade.</p><p>Origem das narrativas medievais</p><p>No alto da Alta Idade Média, diante da tela dos universais que descortinam os</p><p>horizontes intelectuais da época, o observador inicia a sua demanda. Clica, primeiro,</p><p>no arquivo indo-europeu, em torno da família ária, no legado cultural das línguas</p><p>teutônicas, célticas, eslavas, itálicas, helênicas, iranianas e índicas (sânscritas). Foi</p><p>desta, aliás, que se irradiou o maior fundo mítico, que passou a estado de lenda, assim</p><p>como a lenda passou a conto popular oral e este acabou por ser escrito a partir do</p><p>século VIII d.C. Clica depois em outros arquivos: o de fundo chinês e mongólico; o</p><p>da Escandinávia, da Islândia e do mundo nórdico; o da herança africana; e o das</p><p>línguas arábicas, aramaicas e hebraicas.</p><p>Clica, e espera o desdobramento de camadas e mais camadas de pequenas estórias</p><p>de diferente natureza, cujos temas principais se chocam, se misturam e se modificam</p><p>em forma de mitos, lendas, gestas, sagas, fábulas, parábolas, contos, anedotas,</p><p>provérbios, chistes, enfim todos os tipos de pequenas e fragmentárias narrativas com</p><p>as mais diversas finalidades: ensinar, moralizar, comunicar, passar tempo e divertir,</p><p>além de, no fundo, passar sempre a idéia de um sentido social, gregário, capaz de</p><p>* Poeta, ensaísta e professor titular de literatura brasileira na Pontifícia Universidade Católica do Rio de</p><p>Janeiro [PUC-Rio].</p><p>reunir à boca-da-noite um grupo de gente que esteve dispersa, caçando ou guerreando,</p><p>durante o dia.</p><p>Através de cada pasta, observa então que a Europa do século XII é o lugar maior</p><p>de todos os encontros sucessivos de narrativas vindas de todas as partes do mundo,</p><p>em camadas provenientes do fundo indo-europeu, sobre as quais se foram depositando</p><p>as tradições mais recentes, como a literária (épica e trágica) e a popular (esopéica) do</p><p>mundo greco-romano; a judaico-cristã das tradições bíblicas; e as pagãs — no sentido</p><p>latino de pagus, marcos regionais, daí região — originárias da cultura céltica, do</p><p>imaginário muçulmano e, afinal, das próprias línguas e literaturas que foram surgindo</p><p>a partir do latim e da geografia anglo-germânica. Lugar e cadinho de transformações,</p><p>de apuração de novos temas, de novas formas e, também, de novas técnicas de narrar,</p><p>isto é, de saber contar e escrever uma história, uma vez que o étimo de narrar aponta</p><p>para o grego γνώσισ [gnósis], conhecimento, pois quem narra tem de "conhecer",</p><p>descrevendo o real ou imaginando-o.</p><p>No seu caminho de expansão, o conto popular partiu da Índia, passou pela Pérsia e,</p><p>através de Bagdá e de Constantinopla, chegou ao Ocidente. No século VIII, em</p><p>Bagdá, na época do califado de Almanzor, reuniu-se sob o título de Calila e Dimna</p><p>uma coleção de fábulas traduzidas do pehlvi, antiga língua da Pérsia, onde já existia</p><p>uma tradução feita cem anos antes, pelo médico Barzûyeh que foi à Índia atrás de um</p><p>"livro cheio de sabedoria", e no qual havia indicação de árvores e ervas que faziam os</p><p>mortos retornarem à vida. Barzûyeh passou um ano na Índia procurando essas plantas</p><p>milagrosas até que consultou alguns sábios do país que lhe disseram que isso de dar</p><p>nova vida devia ser tomado num sentido mais elevado e espiritual. Eram antigos</p><p>livros de moral que devolviam a vida e a saúde da alma àqueles que tinham o coração</p><p>morto na loucura e no pecado, segundo leio na fabulosa Mitologia Comparada, de</p><p>Max Müller.</p><p>Essa coleção de contos, de que se conhecem várias traduções na Europa, a começar</p><p>com a latina (século VIII), a espanhola (séc. XIII), a inglesa (séc. XVI), a francesa</p><p>(séc. XVI, retomada por Silvestre de Sacy, em 1816), é proveniente de fábulas e</p><p>parábolas extraídas do Panchatantra, os cinco livros da sabedoria, escritos em</p><p>sânscrito a partir do I século da nossa era. Esse material, de fundo</p><p>que encontra no local. Prestes a ser morto por um deles, é salvo por um galgo fiel que</p><p>o havia acompanhado desde a saída de seu palácio. Todas as noites desde então, o rei</p><p>Cipreste passa a encenar uma cerimônia: manda servir ao cão as melhores iguarias e</p><p>reduz a mulher infiel a comer as sobras que o animal rejeita (Histoire Splendide du</p><p>Prince Diamant, [22]).</p><p>f. A Rainha das Serpentes</p><p>Quem navega até uma certa ilha e lá desce a uma grota subterrânea e transpõe a porta</p><p>colossal de ferro negro, encontra um lago e, no meio do lago, uma colina de topázio</p><p>com um leito de ouro no topo, incrustado de pedras preciosas. É ali o domínio</p><p>maravilhoso da rainha das serpentes. Querendo capturá-la, Uffan fabrica uma gaiola</p><p>de ferro. Dentro dela coloca dois recipientes, um com vinho e o outro com leite. Ao</p><p>sentir o odor do leite, a rainha desce e penetra na gaiola, desliza até a copa de vinho e</p><p>se põe a beber. Mas, apenas começa a saboreá-lo, é tomada de vertigem e adormece.</p><p>Uffan se precipita e fecha a gaiola a chave. A rainha revela a Uffan e a seu</p><p>companheiro Buluqiyya onde achar a erva mágica que lhes permitirá cruzar a pé</p><p>enxuto os sete mares à cata do anel de Salomão. Muito mais tarde, Hasib Karim ad-</p><p>Din entrega a rainha a um vizir perverso do rei Karazdan, que a mata e faz ferver. Da</p><p>fervura resultam dois frascos de espuma de efeitos contrários: a do primeiro causa a</p><p>morte; a do segundo confere a sabedoria. Tendo sido previamente orientado pela</p><p>rainha, Hasib dá o primeiro ao vizir e bebe do segundo; depois serve um pedaço da</p><p>carne dela ao rei Karazdan, que sofria de lepra, e este fica curado (Histoire de la</p><p>Reine Yamlika, Princesse Souterraine, [22]).</p><p>g. O Juramento de Shriyadevi</p><p>Shriyadevi era casada com Gunakar, filho de Shalig, mas mantinha um caso de amor</p><p>com o comerciante Subuddhi. O marido de nada desconfiava, mas o sogro descobre</p><p>tudo e a acusa. Para se defender, ela se propõe a jurar inocência e depois passar por</p><p>sob as pernas da estátua do deus Yaxa, que a esmagariam se ela estivesse mentindo.</p><p>Acertada a prova, Shriyadevi avisa o amante para que se apresente disfarçado,</p><p>fingindo-se de louco. No dia aprazado, quando ela se prepara para entrar no templo de</p><p>Yaxa, o pretenso "louco" lhe põe os braços à volta do pescoço. Ela grita alarmada e</p><p>vai purificar-se em uma fonte vizinha ao templo. Logo depois, entra no recinto e diz:</p><p>"Ó deus, se alguém exceto meu marido ou esse maluco jamais me abraçou, possa eu</p><p>ser esmagada ao passar pelo arco de tuas pernas." Assim dizendo, atravessa incólume</p><p>por sob a estátua à vista de todos. É declarada piedosa e acompanhada até a casa ao</p><p>som de tambores (She Fooled a God, [24]).</p><p>h. A meia-irmã de Teji</p><p>Um rico camponês era casado com duas mulheres, tendo filhas com ambas. A mulher</p><p>mais velha odiava a outra, que era a predileta do marido, e acaba causando sua morte.</p><p>Teji, filha da esposa morta, vive sofrendo os maltratos da madrasta. Eis porém que um</p><p>dia se casa com um rei e vai morar em seu rico palácio! Ao nascer-lhe um filho,</p><p>recebe do rei, conforme era costume, permissão para visitar seu pai. Quando ela entra</p><p>em casa, a madrasta invejosa, fingindo querer pentear-lhe os cabelos, crava-lhe um</p><p>espinho mágico na cabeça que a transforma em um pássaro mainá. Em seguida, a</p><p>velha veste com as roupas de Teji sua própria filha, e a manda de volta ao palácio,</p><p>com o bebê nos braços. A meia-irmã se parecia muito com Teji, especialmente com as</p><p>roupas dela, e o rei não nota a diferença. Mas, sob a forma do pássaro mainá, ave</p><p>perita em imitar a voz humana, Teji voara junto até o palácio. O rei a escuta cantar</p><p>uns versos que falam sobre o bebê que a outra deixa a chorar, e sobre os panos que ela</p><p>não sabe costurar. Quando o rei acaricia a cabeça do pássaro, percebe o espinho e o</p><p>retira. Teji reaparece como rainha, tudo é explicado, e a impostora e a velha são</p><p>punidas de modo terrível (Teja and Teji, [25]).</p><p>i. O Jovem metade Pedra</p><p>Tentando resolver o mistério do lago surgido magicamente no país ao qual um</p><p>pescador o guiara, um Rei atravessa terreno deserto, avistando afinal um edifício de</p><p>pedra negra. Entrando, encontra um jovem suntuosamente vestido, sentado em seu</p><p>leito, o qual se excusa por não poder levantar-se para saudá-lo. O jovem, que era o rei</p><p>das Ilhas Negras, conta que ele e seu reino haviam sido encantados pela mulher com</p><p>quem se casara, e que ele surpreendera com um amante. O jovem ferira o amante a</p><p>ponto de deixá-lo semi-morto. Então, para vingar-se, a rainha convertera o corpo do</p><p>jovem em pedra da cintura para baixo, e transformara o reino em um lago com os</p><p>habitantes metamorfoseados em peixes, cada um colorido com uma dentre quatro</p><p>cores diferentes conforme a religião. Diariamente ela açoitava o jovem marido e</p><p>entrava no quarto secreto em que estava confinado o amante, levando-lhe um copo de</p><p>vinho e uma tijela de caldo. Depois de conseguir que ela faça cessar os</p><p>encantamentos, o Rei mata os dois amantes. O pescador que servira de guia é</p><p>recompensado pelos dois reis, vindo a tornar-se o homem mais rico de seu tempo (The</p><p>Tale of the Fisherman and the Jinni, [23]).</p><p>j. José, o filho de Matias</p><p>Durante a campanha romana na Judéia, José filho de Matias (Joseph bar Matthias),</p><p>misto de religioso, chefe militar e escritor, comandou uma força judia em Jotapata</p><p>que, por mais de 40 dias, resistiu ao assédio de Vespasiano, então general a serviço do</p><p>imperador Nero. Quando a derrota se configurou, os comandados de José declararam</p><p>preferir o suicídio à rendição. Ele, porém, convenceu-os a estabelecer pela sorte um</p><p>esquema em que cada um mataria outro até que só restasse um homem, o qual então</p><p>seria o único a suicidar-se. Ou por arranjo ou por boa fortuna, José ficou entre os dois</p><p>últimos, e com sua eloqüência persuadiu o companheiro a se entregarem ambos.</p><p>Vespasiano dispôs-se a mandá-lo a Nero, que certamente o faria executar. José</p><p>recorreu a um expediente engenhoso: profetizou que o romano em breve subiria ao</p><p>trono, e convenceu-o de que mais valia guardar junto a si o "profeta" de tão boas</p><p>predições. Não muito tempo depois, morre Nero e, no período de agitação que se</p><p>segue, parte do exército proclama Vespasiano imperador. Lembrado da "profecia",</p><p>Vespasiano apressou-se a libertá-lo, proclamando diante de seus homens: "É uma</p><p>vergonha que este homem que previu com antecedência minha subida ao poder</p><p>imperial, sendo portador dessa mensagem divina dirigida a mim, ainda seja mantido</p><p>na condição de cativo ou prisioneiro." Seu filho Tito prontamente apoiou essas</p><p>palavras. Na companhia de Tito, José  que latinizou seu nome para Josefo (Flavius</p><p>Josephus), como passaria a ser conhecido  assistiria mais tarde à destruição do</p><p>templo de Jerusalém e à ruína total da Judéia, que precipitaram a dispersão (diáspora)</p><p>dos judeus através do mundo [26].</p><p>k. Em vez de Raquel deu-lhe Lia</p><p>Na noite de seu casamento, Jacó foi enganado pelo sogro, Labão, para deitar-se com</p><p>Lia, a filha mais velha, crendo ter ao lado a filha mais nova, sua querida Raquel. Mais</p><p>sete anos, como a Bíblia nos conta (e como repete o célebre soneto de Camões), Jacó</p><p>trabalhou para Labão para poder casar-se também com Raquel. Anos depois,</p><p>querendo regressar à pátria, Jacó partiu secretamente com sua já numerosa família,</p><p>sendo logo perseguido e alcançado por Labão junto ao monte de Gilead.</p><p>Afortunadamente, os dois se reconciliaram e amontoaram pedras ao redor de uma</p><p>grande pedra angular, com a intenção de erguer um monumento que celebrasse sua</p><p>paz. Na prestigiosa versão latina da Bíblia, a Vulgata de S. Jerônimo — nisto seguida</p><p>por Bíblia francesa do século XIII — não só "Gilead" era escrito "Galaad", como</p><p>também esse memorial de pedra levava tal nome: "Disse Labão: este túmulo será hoje</p><p>testemunha entre mim e ti. E por isso foi chamado Galaad, isto é túmulo do</p><p>testemunho." A Bíblia francesa contém neste ponto uma glosa em que se dá sentido</p><p>profético ao monumento: "Entre os</p><p>[...] judeus e os pagãos é testemunha uma grande</p><p>pedra, que é Jesus Cristo, e um amontoado de pedras, que é a multidão daqueles que</p><p>crêem" [27, 28].</p><p>l. Télefo e a Lança de Aquiles</p><p>Sobre Télefo, filho de Hércules, diz-se que foi ferido com uma lança por Aquiles.</p><p>Depois de dias de sofrimento, recorreu ao oráculo de Apolo para que lhe aconselhasse</p><p>que remédio deveria utilizar. A resposta foi que nada poderia curá-lo exceto aquilo</p><p>que o ferira. Como, por outro lado, os gregos tinham ouvido, do mesmo oráculo, a</p><p>predição de que Tróia não poderia ser tomada sem a ajuda de Télefo, pediram eles a</p><p>Aquiles que concordasse em curá-lo. Aquiles replicou que nada sabia da arte de curar.</p><p>Então disse Ulisses: "Apolo não se refere a ti; ele chama a própria lança de autora do</p><p>ferimento." Quando rasparam sobre a chaga a ferrugem da lança, Télefo ficou curado</p><p>[29].</p><p>Para Concluir</p><p>A tradição arturiana continuou  e continua ainda  a florescer após o período</p><p>considerado, tanto na França como em diversos outros países. Em alemão, entre</p><p>várias obras importantes, cabe lembrar o Parzival, em que Wolfram von Eschenbach</p><p>recontou a estória de Persival dando ao Graal a forma de uma pedra caída do céu; e,</p><p>na era moderna, as óperas Lohengrin, Tristan und Isolde e Parsifal de Richard</p><p>Wagner. Em inglês, merecem destaque Sir Gawain and the Green Knight de autor</p><p>anônimo (que combina de forma curiosa as duas estórias sobre Galvão que aqui</p><p>traduzimos) e Le Morte d'Arthur de Thomas Malory. Na literatura moderna norte-</p><p>americana há inúmeras novas estórias, entre as quais o conto The Last Defender of</p><p>Camelot de Roger Zelazny e a série de volumes de Mary Stewart (The Crystal Cave,</p><p>The Hollow Hills, The Last Enchantment, The Wicked Day), além de produtos da</p><p>indústria cinematográfica, como o filme Excalibur de John Boorman.</p><p>A literatura portuguesa medieval é notável, incluindo um Livro de José de</p><p>Arimatéia e culminando com a Demanda do Santo Graal, a qual foi editada no Brasil</p><p>por Augusto Magne e adaptada para o português moderno por Heitor Megale. Tais</p><p>livros traduziriam obras francesas de que só restam fragmentos, constituindo o</p><p>chamado ciclo da Post-Vulgata, que os pesquisadores tentam atualmente recompor</p><p>com o apoio dos textos portugueses. Em nosso país, conforme demonstrou Heitor</p><p>Megale em ensaio apresentado em congresso internacional arturiano [47], Guimarães</p><p>Rosa estruturou seu Grande Sertão: Veredas como uma narrativa medieval bem nos</p><p>moldes da Demanda; as disputas encarniçadas pelo poder nos grupos de jagunços,</p><p>narradas em linguagem que revive inúmeros arcaísmos, refletem as intermináveis</p><p>vendetas entre a linhagem de Artur e a do rei Ban, pai de Lancelote.</p><p>Em nosso tempo, a Camelot de Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda</p><p>representa o lugar utópico em que fracos e oprimidos encontram sempre bravos</p><p>defensores. E o Graal simboliza o objetivo não-material que cada indivíduo sonha</p><p>perseguir com o melhor de seu esforço.</p><p>Bibliografia</p><p>Obras contendo os textos originais</p><p>[1] Wace. Roman de Brut - in Wace's Roman de Brut - A History of the British. J.</p><p>Weiss (ed. e trad.). Exeter: University of Exeter Press, 1999.</p><p>[2] La Mule sans Frein e Le Chevalier à l'Épée - in Two Old French Gauvain</p><p>Romances. R. C. Johnston e D. D. R. Owen (eds.). New York: Barnes & Noble,</p><p>1972.</p><p>[3] Première Continuation de Perceval. W. Roach (ed.) e C. Van Coolput-Storms</p><p>(trad.). Paris: Le Livre de Poche, 1993.</p><p>[4] Béroul. Tristan et Yseut - in Tristan et Yseut - Les Premières Versions</p><p>Européenes. C. Marchello-Nizia (ed. e trad.). Paris: Gallimard, 1995.</p><p>[5] Béroul. Tristan et Iseut - in Tristan et Iseut - Les Poèmes Français et la Saga</p><p>Norroise. D. Lacroix e P. Walter (eds. e trads.). Paris: Le Livre de Poche, 1989.</p><p>[6] Lancelot do Lac. E. Kennedy (ed.). Oxford: Oxford University Press, 1980.</p><p>[7] Chrétien de Troyes. Le Roman de Perceval. W. Roach (ed.). Genève: Librairie</p><p>Droz, 1959.</p><p>[8] Joseph d'Arimathie - in Le Livre du Graal. P. Walter (org.) e G. Gros (ed. e</p><p>trad.). Paris: Gallimard, 2001.</p><p>[9] L'Estoire del Saint Graal. J. P. Ponceau (ed.). Paris: Honoré Champion, 1997.</p><p>[10] La Queste del Saint Graal. A. Pauphilet (ed.). Paris: Honoré Champion, 1923.</p><p>Obras contendo traduções diversas</p><p>[11] Wace. Roman de Brut - in Arthurian Chronicles. E. Mason (trad.). London: J.</p><p>M. Dent, 1986.</p><p>[12] Le Chevalier à l'Épée, La Demoiselle à la Mule ou La Mule sans Frein e</p><p>Caradoc - in La Légende Arthurienne. D. Régnier-Bohler (org.). Paris: Editions</p><p>Robert Laffont, 1989.</p><p>[13] The Knight with the Sword e Caradoc - in Three Arthurian Romances. R. G.</p><p>Arthur (trad.). London: J. M. Dent, 1996.</p><p>[14] Béroul. The Romance of Tristan. A. S. Fedrick (trad.). London: Penguin, 1970.</p><p>[15] Chrétien de Troyes. El Cuento del Grial - in El Cuento del Grial de Chrétien de</p><p>Troyes y sus Continuaciones. M. Riquer (trad.). Madrid: Siruela, 1989.</p><p>[16] Chrétien de Troyes. Arthurian Romances. W. W. Kibler (trad.). London:</p><p>Penguin, 1991.</p><p>[17] Chrétien de Troyes. Arthurian Romances. D. D. R. Owen (trad). London: J. M.</p><p>Dent, 1987.</p><p>[18] Lancelot - in Lancelot-Grail. N. J. Lacy (org.). New York: Garland, 1993-1996.</p><p>[19] A Demanda do Santo Graal. H. Megale (trad.). São Paulo: T. A. Queiroz, 1989.</p><p>Obras para referência às outras estórias</p><p>[20] Plutarco. Alexander - in Plutarch's Lives, vol. VII. B. Perrin (trad.). Cambridge:</p><p>Harvard University Press, 1986.</p><p>[21] The Romances of Alexander. D. M. Kratz (trad.). New York: Garland, 1991.</p><p>[22] Les Milles et Une Nuits. J. C. Mardrus (trad.). Paris: Editions Robert Laffont,</p><p>1985.</p><p>[23] Tales from the Arabian Nights. R. Burton (trad.). New York: Washington</p><p>Square Press, 1967.</p><p>[24] Erotic Indian Tales from the Sanskrit Classic Suksaptati. G. L. Mathur (trad.).</p><p>Delhi: Hind Pocket Books, Ltd., 1971.</p><p>[25] A. K. Ramanujan. Folktales from India. New York: Pantheon, 1991.</p><p>[26] Josefo. The Jewish War. H. S. J. Thackeray (trad.). Cambridge: Harvard</p><p>Univerity Press, 1997.</p><p>[27] Biblia Sacra Juxta Vulgatam Clementinam. A. Colunga e L. Turrado (eds.).</p><p>Madrid: La Editorial Catolica, 1977.</p><p>[28] La Bible Française du XIIIe Siècle - Edition Critique de la Genèse. Michel</p><p>Quereuil (ed.). Genève: Droz, 1988.</p><p>[29] Higino. The Myths of Hyginus. M. Grant (ed. e trad.). Lawrence: University of</p><p>Kansas Publications, 1960.</p><p>Obras contendo leituras complementares</p><p>[30] Geoffrey of Monmouth. Historia Regum Britanniae - in La Légende</p><p>Arthurienne. E. Faral (ed.). Paris: Honoré Champion, 1929.</p><p>[31] Geoffrey of Monmouth. The History of the Kings of Britain. L. Thorpe (trad.).</p><p>Harmondsworth: Penguin, 1984.</p><p>[32] A. L. Furtado. Artur e Alexandre - Crônica de Dois Reis. São Paulo: Ática,</p><p>1995 (do mesmo autor: "From Alexander of Macedonia to Arthur of Britain" - in</p><p>Arthuriana, no 5.3. Dallas: Southern Methodist University, 1995).</p><p>[33] Acta Pilati e Vindicta Salvatoris - in Los Evangelios Apócrifos. A. S. Otero</p><p>(ed.). Madrid: La Editorial Católica, 1963.</p><p>[34] A. L. Furtado. "O 'José de Arimatéia' da Tradição Arturiana" - in Filologia e</p><p>Linguística Portuguesa, 4. São Paulo: Humanitas, 2002.</p><p>[35] Alberic de Briançon et alii. Le Roman d'Alexandre - in The Medieval French</p><p>Roman d'Alexandre. Elliot Monographs 36-42 da Princeton University Press. New</p><p>York: Kraus Reprint, 1965.</p><p>[36] Robert de Boron. Le Roman de l'Estoire dou Graal. W. Nitze (ed.). Paris:</p><p>Honoré Champion, 1999.</p><p>[37] Robert de Boron. Le Roman de l'histoire du Graal. A. Micha (trad.). Paris:</p><p>Honoré Champion, 1995.</p><p>[38] Robert de Boron. Merlim. H. Megale (trad.). Rio de Janeiro: Imago, 1993.</p><p>[39] Wolfram von Eschenbach. Parzival. A. T. Hatto (trad.). Harmondsworth:</p><p>Penguin, 1987.</p><p>[40] E. Jung e M-L von Franz. La Légende du Graal. M. Hagenbourger e A.</p><p>Berthoud (trads.). Paris: Albin Michel, 1988.</p><p>[41] Sir Gawain and the Green Knight. B. Stone (trad.). London:</p><p>Penguin: 1974.</p><p>[42] Thomas Malory. Le Morte d'Arthur. J. Cowen (trad.). Harmondsworth: Penguin,</p><p>1973.</p><p>[43] Andreas Capellanus. The Art of Courtly Love. J. J. Parry (trad.). New York:</p><p>Columbia University Press, 1990.</p><p>[44] Antti Aarne e Stith Thompson. The Types of the Folktale. Helsinki: Academia</p><p>Scientiarum Fennica, 1961.</p><p>[45] Junito Brandão. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis: Vozes, 1992.</p><p>[46] Heitor Megale. A Demanda do Santo Graal - das Origens ao Códice Português.</p><p>Cotia: Ateliê, 2001.</p><p>[47] Heitor Megale. “A ‘Demanda do Santo Graal’ et ‘Grande Sertão: Veredas’ – un</p><p>récit médiéval dans le sertão brésilien” - in Actes du XVIIe Congrès International</p><p>de la Société Arthurienne. Bonn: Gustav Stresemann Institut, 1993.</p><p>[48] Sílvio de Almeida Toledo Neto. "Breve Notícia da Matéria Arturiana Anterior</p><p>às Traduções Ibéricas" - in Textos Medievais Portugueses e suas Fontes. H.</p><p>Megale e H. Osakabe (eds.). São Paulo: Humanitas, 1999.</p><p>[49] Roger Zelazny. The Last Defender of Camelot - in Cosmic Knights. Isaac</p><p>Asimov et alii (eds.). New York: Signet, 1985.</p><p>[50] Mary Stewart. The Crystal Cave, The Hollow Hills, The Last Enchantment, The</p><p>Wicked Day. New York: Morrow, 1970-1983.</p><p>AS AVENTURAS</p><p>I</p><p>O Gigante do Monte Saint-Michel</p><p>Artur e seus homens navegavam alegremente, singrando o mar com vento</p><p>favorável em curso para Barfleur. Era meia noite, quando Artur sentiu-se sonolento.</p><p>Não conseguindo manter a vigília, logo adormeceu.</p><p>Enquanto dormia, apareceu-lhe numa visão um urso, que vinha voando do oriente.</p><p>Muito feio, muito forte e de tamanho enorme era o urso, seu aspecto era horrível. Do</p><p>outro lado viu voar um dragão, vindo do ocidente, que lançava chamas pelos olhos.</p><p>Terra e mar reluziam com seu esplendor. O dragão atacou o urso e este se defendeu</p><p>com vigor; atracavam-se e feriam-se de modo maravilhoso, até que o dragão agarrou</p><p>o urso e o abateu por terra.</p><p>Tendo dormido por algum tempo, Artur despertou da visão do sonho. Acordando,</p><p>ergueu-se e foi contar o que vira, na ordem certa, aos barões e aos letrados. Alguns</p><p>deles responderam que o dragão que avistara significava ele próprio, e o grande urso</p><p>anunciava algum gigante vindo de terra estranha que ele iria matar. Os demais</p><p>interpretavam de outra forma, concordando, no entanto, que tudo lhe sairia bem.</p><p>- Antes me parece, disse ele, que isso representa a guerra que será travada entre</p><p>mim e o imperador de Roma; mas só o Criador tudo sabe.</p><p>Ditas essas palavras, presenciaram o nascer do dia; fazia bom tempo ao levantar-se</p><p>o sol. Chegaram bem cedo a Barfleur na região de Cotentin. Saíram o quanto antes</p><p>das naves e se espalharam pelo terreno.</p><p>Artur aguardava aqueles de seus homens que ainda não haviam chegado, quando</p><p>lhe foi contado que um gigante muito corpulento, vindo da Espanha, havia capturado</p><p>Helena, sobrinha de Hoel. Ele a seqüestrara e a levara para a elevação que agora se</p><p>chama monte Saint Michel. Ainda não havia capela nem altar nesse lugar, guardado</p><p>pelo fluxo da maré montante. No país não havia ninguém tão ousado, camponês ou de</p><p>família nobre, que se atrevesse a combater o gigante, nem sequer a penetrar em seu</p><p>reduto.</p><p>Os do país haviam-se juntado outrora para ir ao monte combatê-lo, às vezes por</p><p>mar, outras por terra, mas de nada adiantou seu esforço guerreiro. Ele destruía seus</p><p>navios contra as pedras, a muitos feriu de morte, a muitos afogou. Finalmente o</p><p>deixaram em paz, pois não ousavam mais assediá-lo. E o gigante muito atormentava</p><p>os camponeses, deixando suas casas vazias, tomando-lhes os filhos e as mulheres,</p><p>pilhando seus rebanhos, para depois subir de volta ao monte ocultando-se na mata.</p><p>Eles se refugiavam nos bosques e terras desertas e, mesmo lá, temiam morrer. A terra</p><p>fora toda devastada e toda a gente acabara fugindo. O gigante se chamava Dinabuc </p><p>que de má morte estrebuche!, desejavam todos.</p><p>Quando Artur ouviu o que diziam dele, chamou Caio e Beduero, o primeiro seu</p><p>senescal e o segundo seu escanção; não quis falar com nenhum outro. Na primeira</p><p>vigília dessa noite, fez com que os dois e seus escudeiros pegassem suas armas e</p><p>corcéis. Não queria levar as tropas consigo nem revelar nada sobre o caso do gigante,</p><p>pois temia causar pavor se todos ficassem sabendo. E Artur era tão valoroso que</p><p>bastava ele para destruir o monstro.</p><p>Tanto viajaram noite adentro, tanto cavalgaram sem poupar as esporas, que pela</p><p>manhã chegaram à praia pela qual sabiam que teriam de passar. Sobre o monte, viram</p><p>brilhar um fogo que se podia avistar de longe. Havia outro monte menor, não muito</p><p>longe do primeiro. Em cada um dos dois ardia uma fogueira, e, por isso, Artur ficou</p><p>em dúvida: em qual monte estaria o gigante? em qual deles o encontraria? Não havia</p><p>quem soubesse dizer, nem mesmo alguém que o tivesse visto nesse dia.</p><p>Artur disse a Beduero que examinasse ambos os montes, procurando o gigante até</p><p>achá-lo, e que depois voltasse para informar-lhe. Beduero entrou em um barco e</p><p>atravessou o mar na direção do monte mais próximo; com a maré alta, não poderia</p><p>alcançá-lo de outro modo.</p><p>Ao chegar, mal tendo desembarcado, ouviu grandes vozes de pranto vindas do</p><p>monte, altos lamentos, suspiros e gritos. Teve medo, pôs-se a tremer, pois cuidava</p><p>ouvir o próprio gigante. Mas logo se tranqüilizou e, de espada em punho, seguiu</p><p>adiante. Recobrara o ânimo, era seu pensamento e intenção combater o gigante,</p><p>empreender a aventura. Não queria incorrer em covardia pelo temor de perder a vida.</p><p>Mas foi em vão que entreteve tais pensamentos. Quando atingiu o terreno plano</p><p>mais acima, viu somente uma fogueira ardendo e um túmulo recente. O cavaleiro foi</p><p>até lá, com a espada desembainhada. Deparou com uma velha mulher, em trajes rotos,</p><p>descabelada; estava prostrada junto ao túmulo, muito suspirava e se queixava, muitas</p><p>vezes lamentando por Helena, grande luto fazendo e altos brados lançando. Quando</p><p>ela viu Beduero, disse:</p><p>- Infeliz, quem és tu? Que desventura te traz? Em lástima, dor e pena te caberá</p><p>findar a vida se o gigante conseguir encontrar-te. Foge, infortunado, segue teu</p><p>caminho antes que o adversário te veja!</p><p>- Boa mulher, disse Beduero, fala comigo, deixa de chorar. Dize-me quem és, por</p><p>que choras, por que permaneces nesta ilha, quem jaz nesta sepultura? Conta-me a</p><p>aventura toda.</p><p>- Sou, disse ela, uma perdida, uma infeliz nascida sob má estrela. Choro aqui por</p><p>uma donzela que nutri em meu peito; Helena era seu nome, sobrinha de Hoel; seu</p><p>corpo jaz neste túmulo. Fui encarregada de criá-la; infeliz, por que me foi entregue?</p><p>por que tanto a alimentei para que um diabo a arrebatasse? Foi um gigante que a mim</p><p>e a ela raptou e trouxe para cá. Queria deitar-se com a donzela, mas, tenra como era,</p><p>não poderia suportá-lo. Ele era demasiado grande, enorme, pavoroso e por demais</p><p>pesado. Fez-lhe a alma partir do corpo, Helena não pôde resistir. Infeliz e doente,</p><p>minha doçura e alegria, meu deleite, meu amor foi vergonhosamente morta pelo</p><p>gigante, e eu a enterrei aqui.</p><p>- Por que, indagou o cavaleiro, não te foste embora, dado que perdeste Helena?</p><p>- Queres tu, respondeu ela, ouvir por quê? Vejo que és gentil-homem cortês; que</p><p>nada te seja escondido. Quando Helena pereceu, pelo que cuidei que perderia a razão</p><p>vendo-a morrer na vergonha, o gigante me obrigou a ficar para satisfazer em mim sua</p><p>luxúria. Pela força me reteve e pela força me violou. Tive de ceder à sua violência,</p><p>não lhe pude resistir. Que me garanta Nosso Senhor, não o fiz jamais de bom grado.</p><p>Foi por pouco que não me teve morta. Mas, quanto mais velha, mais forte me torno, e</p><p>ainda maior e mais dura, mais ousada e firme do que jamais foi minha donzela</p><p>Helena. E ainda assim é grande a minha pena, todo o meu corpo queda em sofrimento.</p><p>E se ele vier, como de hábito, para saciar sua luxúria, morto serás, não podes escapar.</p><p>Ele está lá em cima, naquele monte que</p><p>fumega. Logo virá, pois é seu costume. Foge</p><p>rápido, amigo, que queres aqui? Cá não sejas pilhado. Deixa-me a lamentar-me e</p><p>expressar minha mágoa. Morta estaria há longo tempo, segundo meu desejo. Em má</p><p>hora Helena ligou-se a mim!</p><p>Então Beduero apiedou-se dela, muito docemente a confortou, depois deixou-a e</p><p>regressou. Foi contar ao rei o que pudera ouvir e apurar: sobre a velha, como se</p><p>lamentava, sobre Helena, que estava morta, e sobre o gigante, que se acoitava no</p><p>monte mais alto de onde subia a fumaça.</p><p>Artur entristeceu-se por Helena, mas não foi covarde nem lento; na descida da</p><p>maré, fez seus companheiros aprestar-se. Foram ter ao monte maior tão logo o mar</p><p>deixou exposta a passagem. Confiaram as montarias aos escudeiros e subiram pela</p><p>encosta todos os três, Artur, Beduero e Caio.</p><p>- Irei à frente, disse Artur, para combater o gigante. Vireis atrás de mim, e atentai</p><p>bem para que nenhum de vós interfira enquanto eu mesmo me puder valer, já que de</p><p>outra ajuda não necessito. Pareceria covardia vir outro, além de mim, a combatê-lo.</p><p>Socorrei-me, porém, se perceberdes minha necessidade.</p><p>Prometeram fazer como ele indicara, e então prosseguiram juntos na escalada. O</p><p>gigante estava sentado junto ao fogo, em que assava a carne de um porco, parte presa</p><p>a um espeto e parte sobre a brasa. Tinha a barba e os bigodes sujos de carne e de</p><p>cinzas. Artur tencionava pegá-lo de surpresa, antes que ele pudesse empunhar sua</p><p>maça. Mas o gigante o notou, alvoroçou-se, pôs-se de pé e alçou a maça à altura do</p><p>pescoço; era uma arma longa e volumosa, dois camponeses não conseguiriam carregá-</p><p>la e nem levantar do chão. Artur viu erguer-se o vulto enorme, pronto a ferir. Sacou a</p><p>espada, protegeu a cabeça sob o escudo e aparou o golpe. E o gigante deu-lhe com tal</p><p>força que o ruído reboou pelo monte todo, deixando o rei atordoado. Mas Artur era</p><p>forte e não vacilou. Sentiu o peso do golpe mas não largou da espada; ergueu a</p><p>lâmina, estendeu o braço e feriu o gigante sobre a fronte, infligindo-lhe um corte no</p><p>cenho e derramando sangue sobre os dois olhos. Ter-lhe-ia irremediavelmente</p><p>rompido os miolos, deixando-o morto, se o gigante não tivesse a maça erguida para</p><p>proteger-se. Conservou a cabeça, manteve-se de pé, mas o golpe ensangüentou-lhe a</p><p>cara toda e perturbou-lhe a vista.</p><p>Quando sentiu os olhos turvar-se ficou desatinado! Tal como o javali aguilhoado,</p><p>acuado para longe pelos cães, debate-se contra o caçador com grande fúria, o gigante</p><p>lançou-se ao rei e agarrou-o nos braços e, sem se importar com a espada, não o</p><p>largou. Grande e forte como era, mantendo-o seguro pela cintura, fez com que caísse</p><p>de joelhos. Mas o rei logo recuperou o ânimo, pôs-se de pé e voltou a enfrentá-lo.</p><p>Artur era extremamente brioso e de notável engenhosidade. A despeito da ira e do</p><p>espanto, esforçou-se o mais que pôde, com aplicação e empenho; era homem de</p><p>grande coragem, nunca hesitava. Esgueirando-se de través, soltou-se do inimigo.</p><p>Logo que escapou dele e sentiu o corpo livre, meteu-se a girar em volta dele com</p><p>grande agilidade, ora de um lado, ora de outro, repetidas vezes ferindo-o com a</p><p>espada. E o gigante se agitava às cegas, tateando com as mãos, pois seus olhos cheios</p><p>de sangue não distinguiam o preto do branco. E Artur tanto o assediou, às vezes por</p><p>trás, às vezes pela frente, que com a lâmina da espada Excalibur fendeu-lhe o cérebro.</p><p>Transido e abalado ele tropeçou e caiu, gritando. Tal estrondo fez ao cair como</p><p>carvalho derrubado pelo vento.</p><p>Então Artur começou a rir, pois passara sua fúria. Afastou-se e ficou a contemplá-</p><p>lo. Mandou a seu escanção que cortasse a cabeça do gigante e a entregasse a um</p><p>escudeiro. Queria que fosse levada a seu exército para ser mostrada como maravilha.</p><p>- Tive medo, disse Artur. Jamais ouvi falar de gigante maior, fora Rithon tão</p><p>somente, que fez a desgraça de muitos reis.</p><p>Rithon tinha subjugado e vencido tantos reis que, mortos ou não, arrancando-lhes</p><p>as barbas, fizera com elas uma túnica. A muitos Rithon havia de ter matado, para</p><p>poder vestir essa túnica. Em seu grande orgulho e atrevimento, intimou o rei Artur a</p><p>que se prestasse por bem a raspar a barba e a enviasse a ele. Por ser Artur mais forte e</p><p>valoroso que os demais reis, honraria sua barba fazendo com ela a orla da túnica. E, se</p><p>Artur negasse o que Rithon lhe requeria, combateriam corpo a corpo e aquele que</p><p>matasse ou subjugasse o outro, junto com a túnica levaria sua barba como enfeite,</p><p>costurada à guisa de orla ou franja.</p><p>Artur se bateu com ele no monte de Arave e o venceu; recebeu a túnica, raspou-lhe</p><p>a barba. Nunca mais encontrara gigante que tivesse tal vigor nem que lhe causasse tal</p><p>espanto.</p><p>Uma vez morto o monstro da montanha, e tendo Beduero tomado sua cabeça,</p><p>alegres e satisfeitos deixaram o monte e voltaram ao acampamento, onde contaram</p><p>onde tinham estado e com que fim. Depois exibiram a cabeça diante de todos. Hoel</p><p>lamentou por sua sobrinha e por longo tempo sentiu-se acabrunhado; vexava-o que ela</p><p>tivesse perecido de tal modo. Fez construir sobre o monte uma capela dedicada a</p><p>Santa Maria Nossa Senhora. Dado que ali estava o túmulo em que fora posto o corpo</p><p>de Helena, tomou o lugar o nome de Tombelaine, e é assim que agora o chamam.</p><p>II</p><p>Rei que foi, Rei que há de ser</p><p>Hic iacet Arthurus, rex quondam, rexque futurus.</p><p>Thomas Malory</p><p>Artur, que ficara na Borgonha, passou ali todo o inverno, capturando e</p><p>apaziguando as cidades. Pretendia, na chegada do verão, atravessar as montanhas e</p><p>investir contra Roma. Mas Modredo o forçou a retornar. Deus, que vergonha! Deus,</p><p>que vilania! Ele era seu sobrinho, filho de sua irmã, e tinha o reino sob sua guarda;</p><p>Artur lhe entregara o reino todo e o pusera sob sua custódia. E agora Modredo queria</p><p>tirar-lhe tudo e tudo reter para seu próprio uso. Exigiu que todos os barões lhe</p><p>prestassem homenagem e tomou reféns de todos os castelos.</p><p>Além dessa grande felonia, cometeu Modredo outro ato vil: contra a lei cristã</p><p>trouxe a seu leito a mulher do rei, como traidor apossou-se da esposa de seu tio e</p><p>senhor. Artur ouviu e soube deveras que Modredo não lhe era leal  detinha sua</p><p>terra, tomara-lhe a mulher. Não lhe seria grato por tal serviço!</p><p>Repartiu seus homens com Hoel, deixando a seu cargo a França e a Borgonha,</p><p>rogando-lhe que protegesse e pacificasse todo esse território. Ele regressaria à</p><p>Bretanha, levando consigo apenas os naturais das ilhas, e se vingaria de Modredo que</p><p>tinha nas mãos sua mulher e sua honra. Pouco prezaria suas conquistas se perdesse a</p><p>Bretanha, seu próprio domínio. Preferia deixar Roma por conquistar do que perder a</p><p>terra mãe. Após curto termo retornaria, disse consigo mesmo, e invadiria Roma. Foi</p><p>assim que Artur chegou a Wissant, sempre se queixando do perjuro Modredo, que o</p><p>desviara da grande conquista, e ali aprestou sua frota.</p><p>Modredo soube do retorno de Artur. Não queria fazer a paz nem se dignou a tentar.</p><p>Mandou chamar Cheldric da Saxônia, um duque, o qual lhe trouxe oitocentas naves</p><p>bem aparelhadas, todas carregadas de cavaleiros. Pela ajuda, pelo reforço que lhe</p><p>proporcionava, Modredo lhe concedeu e legou como herança todo o território que se</p><p>estendia do rio Humber até a Escócia, mais o que Hengist obtivera em Kent quando</p><p>Vortigern se casara com sua filha. Quando Modredo agrupou sua gente, estendeu-se</p><p>vasta e imponente a massa das tropas. Providos de lorigas e corcéis, alinhavam-se,</p><p>contando pagãos e cristãos, sessenta mil cavaleiros. Modredo cuidava esperar Artur</p><p>em segurança e vedar-lhe o acesso a todos os portos. Não cogitava abdicar dos</p><p>direitos que usurpara, nem buscar a paz, nem arrepender-se. Reconhecia-se tão</p><p>culpado que, vindo dele, um pedido de paz soaria como fábula ociosa.</p><p>Artur fez equipar suas naves, tantos embarcou que não sei enumerar. Queria chegar</p><p>diretamente a Sandwich e ordenou que suas naves se dirigissem para lá, mas, antes</p><p>que pisasse em terra, Modredo precipitou-se</p><p>a seu encontro com seus homens, que se</p><p>haviam ligado a ele por juramento. Os que chegavam nas naves se esforçavam por</p><p>desembarcar e os que estavam em terra os impediam. Com muito ódio de ambos os</p><p>lados, atiravam setas e arremessavam dardos, perfurando barrigas, peitos e cabeças e</p><p>vazando olhos, quando atingiam o alvo. Os das naves estavam tão ocupados em</p><p>governá-las e levá-las a atracar que não tinham como golpear ou cobrir-se; já muitos</p><p>jaziam mortos no mar. Muitas vezes tropeçando, muitas vezes caindo, chamavam de</p><p>traidores os de fora. Para descarregar as naves na praia, Artur sofreu muitas baixas;</p><p>houve muitos troncos e cabeças mutilados. Lá foi morto Galvão, seu sobrinho. Artur</p><p>teve por ele um pesar profundo, pois nunca estimou tanto nenhum homem. Angusel,</p><p>que tinha em seu poder a Escócia, foi morto com ele. Houve muitos outros mortos,</p><p>pelos quais o rei muito lamentou e pranteou.</p><p>Enquanto suas tropas iam pela areia, Artur não teve senão perdas, mas depois que</p><p>ganharam terreno firme e ambas as forças ficaram em situação igual, não pôde durar a</p><p>resistência de Modredo, nem mesmo com a grande multidão que ele trouxera.</p><p>Modredo colecionara homens nutridos na paz e no conforto; não sabiam defender-se,</p><p>nem manobrar, nem ferir, como sabia a gente de Artur que se criara na guerra. Artur e</p><p>os seus os feriam, servindo-se das espadas; dizimavam-nos às vintenas e centenas,</p><p>mataram muitos, muitos aprisionaram. Foi grande o morticínio, e maior seria se o cair</p><p>da escuridão não os obstasse. Findo o dia e chegada a noite, Artur se deteve e</p><p>recolheu seus homens. A gente de Modredo pôs-se em fuga. Pensais que uns tenham</p><p>carregado os outros? Nenhum deles tomou conta de outro, cada qual pensava em</p><p>cuidar de si próprio.</p><p>Modredo fugiu a noite toda, procurando retiro onde pudesse achar apoio. Pensou</p><p>ficar em Londres, mas seus habitantes não o quiseram receber. Atravessou Londres e</p><p>o rio Tâmisa, não parou até Winchester. Alojou-se na cidade e convocou sua gente e</p><p>seus amigos. Tomou dos cidadãos juramento de fidelidade e homenagem pelo direito</p><p>senhorial, comprometendo-se eles a mantê-lo, como pudessem, pacífica e fielmente.</p><p>Artur não pensava em descansar, tomado de grande ódio por Modredo. Estava de</p><p>luto por Angusel e por Galvão a quem perdera; profunda era a mágoa por seu</p><p>sobrinho, não sei onde fez depositar o corpo dele. Voltou seu ressentimento e sua ira</p><p>contra Modredo  ah, se pudesse matá-lo! Veio em sua perseguição a Winchester,</p><p>convocando gente de todas as partes. Queria sitiar a cidade, acampando em volta com</p><p>suas tropas.</p><p>Quando Modredo viu Artur e seu exército cercando a cidade, deu mostras de que</p><p>se bateria e de que desejava o combate, pois, se ali ficasse imobilizado por longo</p><p>tempo, não tardaria a ser capturado, e, se isso viesse a ocorrer, não escaparia vivo de</p><p>Artur. Mandou que todos os seus homens se reunissem, pegassem em armas e se</p><p>equipassem, e então fez com que se organizassem em divisões e saíssem para o</p><p>combate. No instante em que saíram, todo o exécito de Artur correu contra eles. Logo</p><p>muitos golpes foram infligidos, com muitos homens mortos e muitos feridos. A sorte</p><p>foi desfavorável a Modredo, sua gente não lhe pôde valer. Ele, porém, só pensou em</p><p>cuidar de si; por causa de seus muitos malefícios, temia o rei. Reuniu reservadamente</p><p>todos os seus íntimos e familiares e aqueles que Artur mais odiava e fugiu, deixando</p><p>os outros a combater. Tomou um caminho para Southampton, não parando nunca até</p><p>chegar à praia. Engajou pilotos e marinheiros, com promessas e recompensas, e fez-se</p><p>ao mar com eles, para que Artur não pudesse alcançá-lo. Conduziram-no à Cornualha.</p><p>Temendo Artur, sua vontade era manter-se em fuga.</p><p>O rei Artur sitiou Winchester, dominou os habitantes, tomou a cidade. A Ivã, filho</p><p>de Uriano, muito prestigiado na corte, legou a Escócia, e Ivã lhe prestou homenagem</p><p>como vassalo. Como sobrinho de Angusel, podia afirmar seu direito à herança, já que</p><p>este não tivera nem filho nem esposa que tivessem precedência sobre ele pela posse</p><p>do reino. Ivã era de imenso valor, ganhando grande louvor e honra nesse e nos demais</p><p>confrontos dessa guerra que Modredo instigara na Inglaterra.</p><p>A rainha ouviu e soube como Modredo havia fugido tantas vezes; não lograva</p><p>resistir a Artur, nem ousava enfrentá-lo em batalha campal. Quedava-se ela em York,</p><p>cabisbaixa e entristecida. Meditava sobre a vilania com que se desonrara, por culpa de</p><p>Modredo. Envergonhara o bom rei fazendo amor com seu sobrinho. Contra a lei, ele a</p><p>desposara, com isso a aviltando ao extremo. Mais desejaria estar morta do que viva;</p><p>andava muito triste, muito pensativa. Fugiu para Caerleon e lá ingressou em uma</p><p>abadia, tomando o véu de monja, e ali se escondeu. Nunca mais foi ouvida, nem vista,</p><p>nem encontrada, e nem sequer souberam dela, por causa da vergonha pela falta e</p><p>pecado que cometera.</p><p>Modredo manteve a Cornualha, tendo perdido o restante do território. Enviou</p><p>mensagens por mar e terra, chamando pagãos e cristãos. Chamou irlandeses, saxões,</p><p>dinamarqueses, chamou os que detestavam Artur, os sem-terra que temiam Artur e</p><p>queriam servir em troca de terras. Deu, prometeu, suplicou, como faz quem é premido</p><p>pela necessidade. Artur estava desolado e irritado porque não se vingara ainda de</p><p>Modredo. Muito lhe pesava que o traidor conservasse qualquer punhado de sua terra.</p><p>Modredo já atraíra gente para a Cornualha e penava para conseguir mais. Tencionava</p><p>manter esse território e conquistar outros. Artur ficou sabendo, aborreceu-se</p><p>imensamente. Convocou suas hostes por toda parte até o rio Humber, eram muitos</p><p>homens, não sei dizer o número. Com esse grande contingente, foi buscar Modredo</p><p>onde sabia que ele estava, querendo matá-lo e destruí-lo por sua traição e perjúrio.</p><p>Modredo já não tinha desejo de fugir, preferindo meter-se na aventura e arriscar-se a</p><p>morrer, depois de ter tantas vezes abandonado o campo.</p><p>A batalha foi junto ao rio Camblan, na terra da Cornualha. A ira os reuniu e com</p><p>ira desmedida a luta foi travada. Movida pela grande ira, a obra foi empreendida.</p><p>Grande foi a massa de gente, foi grande o morticínio. Não sei dizer quem fez melhor,</p><p>nem quem perdeu, nem quem ganhou, nem quem caiu, nem quem se manteve</p><p>erguido, nem quem matou, nem quem morreu. Foi grande a perda de ambas as partes,</p><p>a planície ficou coberta de mortos e o sangue dos moribundos a deixou sangrenta. Foi</p><p>então que pereceu a bela juventude que Artur tinha colhido em diversas terras e criado</p><p>com esmero, e os da Távola Redonda de quem tal louvor corria por todo o mundo.</p><p>Modredo foi morto na refrega, assim como a maioria de sua gente, e, da gente de</p><p>Artur, a flor, os mais fortes e os melhores.</p><p>Artur, se a gesta não mente, foi ferido no corpo mortalmente. Fez-se transportar a</p><p>Avalon para medicar suas chagas. Ainda está lá, os Bretões o esperam, assim como</p><p>dizem e entendem; há de voltar, ainda pode viver. Mestre Wace, que fez este livro,</p><p>não quer dizer mais sobre seu fim do que falou o profeta Merlim. Merlim disse de</p><p>Artur, e estava certo, que sua morte permaneceria duvidosa. O profeta falou a</p><p>verdade; desde então sempre se duvidou  e se continuará duvidando, segundo creio,</p><p>por todos os dias  se ele está morto ou se está vivo. Fez-se de fato levar para</p><p>Avalon, quinhentos e quarenta e dois anos após a Encarnação. Pena é que não tivesse</p><p>filhos. A Constantino da Cornualha, filho de Cador seu primo, entregou seu reino,</p><p>dizendo-lhe que fosse rei até que ele voltasse.</p><p>III</p><p>A Mula sem Freio</p><p>O vilão diz em um provérbio que, depois de velha e posta de lado, é que uma coisa</p><p>se revela de grande serventia. Portanto, o bom senso e a razão determinam que cada</p><p>um deve dar valor ao que é seu, pois muito cedo pode tornar-se útil. Atualmente as</p><p>velhas trilhas são menos apreciadas do que as novas, porque estas são consideradas</p><p>mais belas  e assim parecem melhores. Mas ocorre muitas vezes que as antigas se</p><p>mostram as mais valiosas.</p><p>É por isso que afirma Païen de Maisières que sempre se</p><p>deve tomar as velhas trilhas de preferência às novas.</p><p>Aqui começa uma aventura sobre a donzela da mula, que veio à corte do rei Artur.</p><p>Em um dia de Pentecostes, aconteceu que o rei Artur reuniu a corte em Carduel,</p><p>como costumava. Foram muitos os cavaleiros, provenientes de todas as terras, que</p><p>compareceram à corte. As damas e donzelas vindas à corte, diversas das quais bem</p><p>bonitas, ficaram com a rainha. Conversaram até que os barões, depois de comer,</p><p>foram distrair-se na sala de cima. Contemplavam pelas janelas um prado situado</p><p>abaixo. Por pouco tempo estavam ali, quando viram chegar na direção do castelo,</p><p>sobre uma mula, em andadura veloz, uma donzela solitária muito bela e elegante. E</p><p>era assim que vinha a donzela: sua mula não levava freio e nem sequer cabresto.</p><p>Os cavaleiros se interrogaram com espanto sobre o que poderia ser isso; falaram e</p><p>discutiram muito, e comentaram que a rainha trataria de saber, se estivesse ali, que</p><p>necessidade a trazia à terra deles.</p><p>- Caio, falou Galvão, ide buscá-la; e dizei também ao rei que venha, que nenhum</p><p>contratempo o impeça de chegar até nós agora mesmo.</p><p>O senescal foi direto aonde estavam o rei e a rainha.</p><p>- Sire, falou Caio, subi para onde vos chamam vossos cavaleiros.</p><p>Ao que eles lhe perguntaram:</p><p>- Senescal, o que querem de nós?</p><p>- Vinde comigo, insistiu ele, e vos explicarei; vou mostrar-vos a aventura que todos</p><p>nós acabamos de presenciar.</p><p>Enquanto isso, a rapariga chegou e desmontou em frente à sala. Galvão foi</p><p>correndo a seu encontro, como também numerosos outros, e muito a serviram e</p><p>honraram. Mas transparecia no semblante dela que não sentia disposição para trocar</p><p>cortesias, pois passara por grandes penas. O rei a mandou chamar e a conduziram até</p><p>ele. Tão logo chegou diante do rei, ela assim o saudou:</p><p>- Sire, falou, vedes bem que estou bastante aborrecida e triste, e sempre assim</p><p>estarei, nem terei jamais um dia de contentamento, enquanto não me for devolvido</p><p>meu freio que maldosamente me foi tirado, pelo que perdi toda a minha alegria. Bem</p><p>sei que o recuperaria se aqui houvesse cavaleiro que ousasse encarregar-se disso e que</p><p>se dispusesse a enveredar por esta trilha. E, se ele o quisesse devolver a mim, eu seria</p><p>toda sua tão logo tivesse de volta meu freio, sem disputa e sem reserva. Desde logo e</p><p>sem demora, por amor a ele tanto farei que até lhe confiarei minha mula, que o irá</p><p>levar a um castelo muito bem assentado, forte e imponente. Mas, ao demandar o freio,</p><p>não o obterá de forma alguma de modo pacífico.</p><p>A essas palavras, Caio se adiantou e disse que iria em busca do freio, ainda que</p><p>estivesse na terra mais remota. Mas queria que ela o beijasse primeiro, antes que ele</p><p>partisse, e queria beijá-la nesse exato instante.</p><p>- Ah, senhor, falou ela, até que tenhais o freio, não vos quero outorgar o beijo; mas,</p><p>quando o freio for devolvido, então vos será entregue o castelo, e o beijo, e a outra</p><p>coisa.</p><p>Caio não ousou importuná-la mais. Ela lhe recomendou repetidamente que nunca</p><p>contrariasse a mula, deixando-a seguir por qualquer parte que escolhesse.</p><p>Caio não tencionava demorar-se ali com eles por mais tempo. De pronto andou até</p><p>a mula e montou-a pelo estribo. Não se preocupou com escolta. Quando a donzela viu</p><p>que ele ia sozinho, que não tinha companheiros nem levava arma afora tão somente</p><p>sua espada, ficou em prantos  percebia que não era desta vez que iria recuperar o</p><p>freio, dissesse o que dissesse aquele que ia sobre a mula, a qual partiu correndo a</p><p>passo travado.</p><p>A mula o guiou perfeitamente, de vez que aprendera bem a trilha.</p><p>Caio tanto se meteu pelo caminho que se embrenhou por uma alta e vasta floresta</p><p> ei-lo agora no mato! Mas ainda não avançara muito, quando as feras da região se</p><p>reuniram todas: havia leões, tigres e leopardos. Todas provinham do lado pelo qual</p><p>Caio deveria prosseguir. Antes que ele pudesse passar, as feras se apressaram a vir a</p><p>seu encontro. Caio teve pavor tal como nunca sentira maior; e disse que, se não se</p><p>houvesse comprometido a seguir a trilha, por razão nenhuma que soubessem dar-lhe,</p><p>ainda que insistissem por meses a fio, não entraria jamais nesse bosque. Mas as feras,</p><p>por conhecerem a dama e por respeito à mula, ao notar sua presença dobraram ao</p><p>chão os dois joelhos: assim se ajoelhavam em honra da dama, e dessa forma</p><p>significavam que era dela que provinha seu direito de abrigar-se e movimentar-se na</p><p>floresta; mais do que isso não a poderiam honrar. Mas Caio não quis demorar-se mais</p><p>e partiu dali, o mais cedo que pôde. Os leões e leopardos retiraram-se então, cada um</p><p>para sua cova.</p><p>Caio tomou um atalho estreito não muito batido, pelo qual a mula se lançou. A</p><p>mula o conhecia bem, tendo-o percorrido muitas vezes; pelo atalho levou Caio para</p><p>fora dessa floresta onde ele tanto penara. Ei-lo pois livre do mato!</p><p>Não fora muito longe quando foi dar em um vale muito largo e profundo. Muito</p><p>perigoso era o vale, tão cruel e tenebroso que não havia homem tão forte no mundo</p><p>que não sentisse pavor de morte se nele penetrasse. Caio tinha de passar nesse</p><p>instante; quisesse ou não, precisava entrar  e entrou, já que melhor coisa não podia</p><p>fazer. Tendo entrado, com certo esforço, espantou-se ao extremo ao ver ali dentro,</p><p>bem no fundo, cobras e serpentes descomunais, escorpiões e outros bichos que</p><p>lançavam fogo pelas cabeças, do que teve grande medo. Pior mal lhe fazia o fedor;</p><p>desde a hora em que nascera, nunca estivera em lugar tão fétido, por sorte não caiu,</p><p>por pouco não perdeu os sentidos. Disse que preferia ficar com os leões no bosque</p><p>onde estivera antes. Não haveria verão tão ensolarado, nem calor tão ardente que</p><p>pudessem dominar a friagem constante que lá residia como no próprio coração do</p><p>inverno, tal a malevolência hibernal que ali se instalara para sempre. E o vento norte</p><p>não cessava de soprar, intensificando ainda mais o frio, e constantemente sopravam os</p><p>outros ventos, que se entrechocavam dentro do vale. Tanta desolação reinava ali que</p><p>nem a metade vos poderia descrever.</p><p>Com muito esforço, achou a trilha para a saída. Avistou então uma planície e</p><p>tranqüilizou-se um pouco. Conseguira escapar do fogo e da fedentina quando já não</p><p>esperava ver o dia em que sairia desse lugar. Desceu à planície, tirou a sela da mula.</p><p>Enxergou água em meio ao prado, muito perto de onde estava: era uma fonte de água</p><p>clara e fresca, muito convidativa, toda rodeada de flores, pinheiros e juníperos. Deu</p><p>de beber à mula, do que ela já sentia grande necessidade. Diante da beleza da fonte,</p><p>ele próprio bebeu também para refrescar-se. Depois ajaezou a mula e retomou a</p><p>marcha. Tão longo lhe parecia o caminho, que não esperava mais ver aquilo de que</p><p>saíra à procura.</p><p>Tanto Caio cavalgou que chegou a um vasto curso d'água. Perdeu o ânimo ao vê-lo</p><p>largo e profundo, sem que achasse canoa ou barco, nem ponte, nem qualquer</p><p>passagem. Percorrendo a margem, afinal deparou, por acaso, com uma prancha de</p><p>largura mínima, mas que no entanto o agüentaria se tivesse coragem de passar por</p><p>cima dela, pois era inteiramente de ferro. Mas temeu a travessia ao ver o negrume da</p><p>água, convenceu-se de que não teria jeito de passar: mais lhe valeria retornar do que</p><p>se arriscar ali  melhor desistir, é o que seria mais avisado! Maldito fosse, disse ele,</p><p>se se metesse em perigo por uma tal ninharia, tal futilidade. A trilha pela qual viera</p><p>lhe parecera por demais perigosa, mas aquela passagem prometia ser ainda pior. Por</p><p>conseguinte, Caio virou as costas e empreendeu o caminho de volta.</p><p>Manteve-se na direção certa, exatamente por onde viera. Indo reto, chegou ao vale,</p><p>em que reencontrou a bicharia asquerosa. Não cessou de cavalgar em linha reta até</p><p>sair fora, com o corpo muito dolorido, alquebrado e abatido. Enfiou-se na floresta</p><p>onde estavam as bestas selvagens, que lhe vieram ao encontro assim que o</p><p>perceberam. Com tal ferocidade correram</p><p>contra ele que estou certo de que o</p><p>devorariam se não o poupassem por causa da mula, pela qual tinham respeito. Caio</p><p>sentiu pavor tão grande que não gostaria de ter entrado no bosque nem por dez</p><p>cidades, nem por toda a riqueza de Pávia. Fora do bosque, cruzou a pradaria e chegou</p><p>diante do castelo.</p><p>O rei Artur folgou muito ao vê-lo de volta, enquanto se debruçava à janela, junto</p><p>com Galvão, Gaeriete, meu senhor Ivã, Girflet e diversos outros cavaleiros que havia</p><p>chamado. Vendo a chegada do senescal, mandaram buscar a jovem.</p><p>- Donzela, disseram, vede: logo tereis vosso freio, pois Caio já se aproxima e</p><p>sabereis que o traz consigo.</p><p>Mas eles mentiam, ele não tinha o freio, e a donzela exclamou em voz alta:</p><p>- Por certo, se o tivesse, não teria voltado tão cedo.</p><p>Ela puxava e arrancava os cabelos. Quem suportaria ver o grande martírio e a dor</p><p>que ela demonstrava!</p><p>- Morta estaria por minha vontade, falava ela, que Deus me ajude!</p><p>E Galvão, sorrindo, lhe disse:</p><p>- Donzela, concedei-me um dom.</p><p>- Qual, senhor?</p><p>- Que não choreis, antes comei e alegrai-vos: fazeis mal vos afligindo, pois vos</p><p>devolverei vosso freio e vos ajudarei de coração.</p><p>- Senhor, disse ela, dizeis que eu terei meu freio sem falta?</p><p>- Sim, deveras.</p><p>- Então comerei e ficarei toda contente, mas só se tiver vossa promessa.</p><p>De pronto Galvão comprometeu-se; se alguém pode consegui-lo, será ele que o irá</p><p>recuperar, onde quer que esteja. Então a jovem se movimentou e veio até sua mula, no</p><p>limiar da sala.</p><p>Caio seguiu para sua morada, todo consternado, muito triste e cheio de angústia. O</p><p>rei não levou o assunto na brincadeira quando lhe foi dito e relatado o vexame que</p><p>Caio cometera, e pelo qual não ousava apresentar-se à corte. Por ora, não quero</p><p>acrescentar nenhuma palavra sobre ele; mas, quanto à donzela, escutai como ela se</p><p>dirigiu ao rei. Tais foram suas palavras: que Galvão lhe afiançava que o freio seria</p><p>trazido; ele disse que irá buscá-lo, por mais bem fortificado que seja o lugar em que</p><p>possa estar, tão logo lhe concedam permissão para partir.</p><p>- De muito bom grado a outorgo, falou o rei e também a rainha, ambos de acordo.</p><p>Ela se inclinou diante deles, e tratou de apressar meu senhor Galvão. Mas Galvão</p><p>queria abraçá-la antes de ir-se  seria justo que a beijasse! Ela de muito boa vontade</p><p>o beijou. Agora estava a jovem a seu gosto, sabendo bem que, haja o que houver, terá</p><p>garantidamente seu freio de volta. Não precisava mais reclamar seu pleito.</p><p>Galvão aproximou-se da mula e saltou por cima do arção. A donzela invocou sobre</p><p>ele mais de trinta bênçãos, e todos o encomendaram a Deus. Galvão não se demorou</p><p>mais ali, afastando-se logo. Mas não deixou de levar sua espada. Entrou na pradaria e</p><p>prosseguiu para a floresta onde as feras se emboscavam, os leões e os leopardos. Era</p><p>para aquele lado que ele agora se dirigia, e para lá, por onde Galvão deveria passar,</p><p>foram direto a seu encontro. Logo que reviram a mula, sua conhecida, dobraram os</p><p>dois joelhos à terra; humilhavam-se perante o cavaleiro, por amor e por</p><p>reconhecimento. E eis o significado de seu ato: é esse o cavaleiro que irá recuperar o</p><p>freio pela força, por mais protegido que seja o lugar em que estiver. Mas, quando</p><p>Galvão viu as feras, entendeu que Caio tivera medo ao passar, e pensou que fora por</p><p>isso que ele teria retornado. Rindo, seguiu além, entrando por um atalho que o</p><p>conduziu diretamente ao vale envenenado; foi sem se deter, pois não tinha medo de</p><p>nada, até atingir o outro lado. Desceu em meio à planície onde a formosa fonte se</p><p>encontrava. Tirou a sela da mula, esfregou-a e a aprontou novamente. Pouco ficou ali,</p><p>pois a trilha era penosa. Galvão prosseguiu por ela, todavia, até chegar à água negra,</p><p>mais barulhenta que o Loire.</p><p>Sobre essa água, quero dizer-vos o quanto antes que ninguém nunca viu tão feia,</p><p>tão horrível nem tão cruel. Não sei o que vos dizer dela, e assim vos declaro, e não é</p><p>nenhuma fábula, que esse é o rio do demônio: nele não se vê senão semblantes e</p><p>visões de diabos, e não existe passagem. Galvão tanto percorreu a margem que</p><p>encontrou a prancha, não mais larga do que um palmo, mas que era toda de ferro.</p><p>Receou um pouco essa passagem, e por isso percebeu bem que Caio não teria ousado</p><p>ir adiante, e que fora dali que iniciara o regresso. Galvão encomendou-se a Deus,</p><p>picou a mula, ela saltou sobre a prancha, que não cedeu. Mas muito freqüentemente</p><p>aconteceu que metade da pata ficava fora da extremidade da prancha. Não é maravilha</p><p>que tivesse medo, mas pavor maior lhe fazia a prancha ao vergar-se. Penou para</p><p>passar, e contudo é certo que teriam caído se a mula não soubesse o rumo. Escapara,</p><p>dessa vez.</p><p>Logo seguiu caminho. Aquele a quem a Fortuna favorecia e prometia meteu-se por</p><p>um atalho, que o conduziu a um castelo muito bem assentado, forte e belo. O castelo</p><p>era tão bem fortificado que não temia nenhum assalto, e estava todo cercado pela água</p><p>que enchia um grande fosso, largo e profundo, e tinha ainda a circundá-lo</p><p>inteiramente grandes estacas grossas e pontudas. Em cada estaca havia  só faltando</p><p>numa delas  uma cabeça de cavaleiro. Galvão não quis absolutamente desistir.</p><p>Não havia entrada nem porta. O castelo girava tão forte como mó de moinho que</p><p>mói, e como o pião que se pode impulsionar puxando o cordel. Desde logo se</p><p>dispunha a entrar, mas se espantava e perguntava a si mesmo o que significaria, o que</p><p>poderia ser tal coisa. Ansiava por saber sua natureza, mas nem por isso acovardou-se.</p><p>Por enquanto se deteria sobre a ponte levadiça, em face da porta. A audácia o</p><p>exortava a não fugir de fazer o melhor. O castelo girava incessantemente, mas ele</p><p>disse que ficaria ali até que pudesse entrar, a qualquer custo. Por repetidas vezes</p><p>aconteceu, para contrariá-lo, que, mal a porta aparecia diante dele, de repente já tinha</p><p>passado. Aguardou um momento propício e disse que entraria quando a porta lhe</p><p>estivesse em frente, desse no que desse. Nesse instante viu a porta vir, acicatou a mula</p><p>com vigor e ela pulou estimulada pela espora, arremessou-se pela porta. E contudo foi</p><p>colhida por detrás, de modo que quase metade da cauda foi cortada.</p><p>Assim entrou pela porta e a mula logo o transportou através das ruas do castelo, ela</p><p>que sentia prazer em vê-las de novo. Ele, porém, entristecia-se um pouco por não</p><p>achar ali nem mulher, nem homem, nem criança. Desceu diretamente ao pórtico de</p><p>uma casa mas, antes de desmontar, viu um anão atravessar correndo a rua, o qual o</p><p>saudou dizendo:</p><p>- Galvão, bem-vindo!</p><p>Galvão não foi lento em devolver-lhe prontamente a saudação, e lhe disse:</p><p>- Anão, quem és? Quem é tua dama e quem teu senhor?</p><p>Mas o anão nada mais lhe quis dizer; pelo contrário, partiu de imediato. Galvão</p><p>não entendia o que vira, e procurava imaginar o que poderia ser  e o anão não</p><p>queria responder! Se ele se dignasse a ir agarrar o anão, este teria de explicar-se! </p><p>mas acabou deixando que ele se fosse. Nesse ponto, apeou da mula.</p><p>Observou, sob um arco, um celeiro fundo e espaçoso, escavado bem abaixo da</p><p>terra. Decidiu que gostaria de examinar todos os redutos antes de ir embora dali; disse</p><p>que não se julgaria valer nem uma mealha se não descobrisse tudo sobre a situação.</p><p>Eis então que viu sair do celeiro, galgando uma escadaria, um vilão todo eriçado.</p><p>Qualquer um que ali se aventurasse e o visse daria por perdida a viagem. O vilão</p><p>parecia muito mau: era maior que São Marcelo, e levava sobre os ombros uma acha-</p><p>de-armas grande e larga. Galvão muito se maravilhou ao ver o vilão: parecia um</p><p>mouro da Mauritânia ou um desses rústicos da região de Champagne, curtidos pelo</p><p>sol. Deteve-se diante de Galvão e o saudou em seguida. E Galvão considerou</p><p>longamente sua expressão e sua figura:</p><p>- E tenhas tu boa sorte, falou, se é por bem que o dizes!</p><p>- Sim, por certo, mas te tenho por temerário por vires aqui. Perdeste inutilmente</p><p>teus passos, já que não poderia estar sob melhor</p><p>custódia o freio que vieste buscar,</p><p>pois há bons guardiões em torno dele. Terás de travar grandes combates, que Deus me</p><p>ajude, antes que o tenhas.</p><p>- Tu te inquietas por nada, falou Galvão, que os travarei com toda certeza, com a</p><p>ajuda de Deus. Antes morrer do que não obter o freio sem qualquer restrição.</p><p>O outro não insistiu mais. Vendo entretanto que anoitecia, ocupou-se em servi-lo e</p><p>o conduziu direto a uma habitação, e esfalfou-se para acomodá-lo a contento. Por sua</p><p>vez, a mula foi bem alojada.</p><p>Não havendo mais serviçais, o próprio vilão trouxe uma larga toalha branca e duas</p><p>bacias e as deu a Galvão para lavar as mãos. A mesa à qual se sentou para comer já</p><p>estava posta, e ele comeu, como necessitava. O outro lhe dava em abundância, servia-</p><p>o à vontade. Logo que ele terminou de comer, o vilão tirou a mesa e trouxe água.</p><p>Preparou uma grande cama, alta e larga para ele dormir, pois queria agradar-lhe como</p><p>convinha a tal cavaleiro. Voltou então para o lado dele:</p><p>- Galvão, falou, aqui neste leito deitarás sozinho por esta noite, sem qualquer</p><p>disputa. Uma coisa te peço, com toda calma, antes de ires dormir: pelo muito que te</p><p>ouvi gabar e por ter agora uma oportunidade de comprovar teu valor, vou propor-te</p><p>uma partida em que poderás jogar primeiro ou depois de mim. Faze tua escolha à</p><p>vontade.</p><p>E Galvão lhe afiançou que aceitaria a partida, fosse o que fosse.</p><p>- Dize lá, falou ele, porque, se Deus me ajudar, uma das duas alternativas eu</p><p>escolherei prontamente, e não te faltarei com a palavra, pois te considero um ótimo</p><p>hospedeiro.</p><p>- Nesta noite, falou o vilão, decepa minha cabeça com esta acha afiada; corta-a,</p><p>com a condição de que eu deceparei a tua amanhã de manhã, quando eu voltar. Agora</p><p>escolhe sem protestar se preferes assim ou se eu serei o primeiro.</p><p>- Eu seria um insensato, falou Galvão, se não soubesse qual escolha adotar. Jogarei</p><p>primeiro, aconteça o que acontecer: nesta noite cortarei a tua e de manhã te darei a</p><p>minha, se então ainda quiseres que eu a exponha a ti.</p><p>- Maldito seja quem peça melhor, falou o vilão. Vem, pois, agora mesmo!</p><p>Foi então com Galvão e, sobre um tronco, estendeu-lhe o pescoço. Galvão segurou</p><p>a acha e, sem mais esperar, cortou-lhe a cabeça de um só golpe. O vilão de imediato</p><p>se pôs de pé e foi pegar sua cabeça. Desceu em seguida ao celeiro. E Galvão retornou</p><p>e em breve foi deitar-se, dormindo em segurança até o nascer do dia.</p><p>No dia seguinte, tão logo amanheceu, Galvão se levantou e se vestiu. Nisso, eis</p><p>que o vilão voltou todo alegre e sadio, com a acha-de-armas ao ombro. Nessa hora</p><p>Galvão pôde bem considerar-se louco, quando enxergou a cabeça que havia cortado.</p><p>Mas não teve medo, de modo algum. E o vilão, sem que nada o afetasse, pôs-se a</p><p>falar.</p><p>- Galvão, disse ele, cheguei e te lembro do combinado.</p><p>- Não o contesto de forma alguma; bem vejo que é mister cumpri-lo, e nem me é</p><p>lícito propor combate.</p><p>Bem que ele preferia a luta, mas não quis cometer deslealdade. Como lhe havia</p><p>feito a promessa, disse que de bom grado a manterá.</p><p>- Pois vem logo, falou o vilão.</p><p>Galvão foi para fora da casa, estendeu o pescoço sobre o tronco. E o vilão lhe disse</p><p>então:</p><p>- Estica mais o pescoço!</p><p>- Não tenho mais que isso, protestou ele, mas, por Deus, fere! se é o que queres.</p><p>Seria uma pena e uma desgraça, que Deus me livre!, se o fizesse. Alçou bem alto a</p><p>acha à sua frente  mas assim fazia para assustá-lo, pois não tinha intenção de tocar</p><p>naquele que se mostrara leal ao extremo e mantivera bem o que lhe havia afiançado.</p><p>Galvão perguntou-lhe então como poderia obter o freio.</p><p>- Poderás saber exatamente, disse ele; mas antes que passe de meio-dia terás tal</p><p>excesso de batalhas que não terás vontade de gabar-te. Terás de combater dois leões</p><p>que vivem aqui acorrentados. O freio não é deixado abandonado; pelo contrário, está</p><p>sob guarda perversa. Maus fogos, más chamas me queimem! Se deixassem vir dez</p><p>cavaleiros para combater os dois leões, eu os reputo tão ferozes que nenhum homem</p><p>escaparia deles  mas aqui estarei a teu serviço. Convém que comas um pouco antes</p><p>de ires à luta, para que teu coração não desfaleça nem te sintas alquebrado.</p><p>- De nada adianta comer, falou Galvão, de maneira nenhuma; mas procura uma</p><p>armadura de que me possa equipar.</p><p>- Aqui há, falou ele, um bom corcel que há meses ninguém tem cavalgado. Além</p><p>disso, há arneses suficientes que te emprestarei com prazer. Mas, antes que estejas</p><p>armado, vou mostrar-te as feras; vamos ver se desanimas de combater com os leões.</p><p>- Ajude-me, São Pantaleão, falou Galvão, não os verei até que os enfrente. Arma-</p><p>me de uma vez!</p><p>E o outro o armou de imediato com boas armas, da cabeça aos pés, como sabia</p><p>fazer com perfeição, e levou-lhe um corcel. Galvão, que de nada receava, montou-o</p><p>pelo estribo. O vilão trouxe sete escudos que lhe iriam ser de enorme utilidade. Em</p><p>seguida, o vilão foi desprender um dos leões e o fez vir até o cavaleiro. Tal arrogância</p><p>demonstrava o leão, tão grande furor e raiva, que arrancava terra com as patas e roía a</p><p>corrente com os dentes. Quando saiu fora e avistou o cavaleiro, começou logo a</p><p>eriçar-se e fustigar com a cauda. Certamente, a quem combatesse com ele, conviria</p><p>saber esgrimir e não ter coração de cabra nem de lesma.</p><p>O vilão o soltou em uma esplanada em frente. Galvão não cuidou de esquivar-se, e</p><p>sim o enfrentou de espada em punho; e o leão, erguendo o focinho, atacou-o e Galvão</p><p>a ele, engalfinhando-se os dois. Em seu primeiro bote, o leão investiu de tal forma que</p><p>arrancou-lhe o escudo do braço e o tomou. O vilão lhe forneceu outro e Galvão se</p><p>cobriu com ele. Encolerizado, feriu os costados do leão com a espada, mas o couro era</p><p>duro e espesso, tão rijo que não pôde rompê-lo. O golpe só enraiveceu o leão que</p><p>voltou qual tempestade e bateu-lhe na cabeça com a cauda, tomou-lhe o segundo</p><p>escudo e o terceiro, e logo do quarto nada mais restava.</p><p>- Desse jeito, por minha barba, não chegarás à hora do jantar!, falou o vilão.</p><p>Então meu senhor Galvão feriu com vontade, de modo que enfiou a espada toda até</p><p>as entranhas, e ao leão só restou morrer.</p><p>- Agora deixa vir o outro, falou ele.</p><p>E o vilão o soltou. O leão expressou dor e raiva ao ver o companheiro morto.</p><p>Lançou-se direto ao cavaleiro e o atacou com tal violência que, ao primeiro assalto,</p><p>arrancou-lhe o escudo; e o vilão arrumou-lhe outro e o assistiu como pôde. E o leão</p><p>veio na corrida e o assediou pela frente; com as garras rompeu-lhe todas as malhas até</p><p>junto à viseira e de novo o deixou sem escudo  e o vilão deu-lhe outro. Mas aí</p><p>Galvão se deu conta de que lhe seria molesto se o leão lhe tomasse mais esse.</p><p>Acutilou-o com a espada cortante no alto da cabeça, fendendo-a até os dentes, e o leão</p><p>tombou por terra.</p><p>- Para este findou a guerra, falou Galvão, e fez-se a paz! E agora, acrescentou, dá-</p><p>me de uma vez o freio, pela fé que deves a teu pai.</p><p>- Por São Pedro, não será assim tão fácil, respondeu o outro, não terás escapatória:</p><p>verei antes a manga de tua loriga toda manchada de sangue vermelho. Se queres crer</p><p>em meu conselho, desarma-te e come bastante para recuperar tuas forças.</p><p>Mas isso ele não queria por nada, e o vilão o levou em frente, atravessando quartos</p><p>e portais, pois conhecia bem todos os redutos, até vir ao quarto em que jazia o</p><p>cavaleiro que fora ferido através do corpo.</p><p>- Galvão, sê bem-vindo, disse o cavaleiro assim que o viu. Fortuna te enviou aqui!</p><p>Para que eu seja curado, e se fores ousado o bastante, cabe-te combater comigo.</p><p>Já que não podia ser de outro modo, Galvão replicou que não se negará. Nisso, o</p><p>outro se levantou e armou-se a seu gosto. Mas deixei passar algo que não poderia</p><p>omitir, e que inclusive vale a pena contar: por qual motivo esse defensor ferido se</p><p>levantava. Havia um costume que assim dispunha: quando um cavaleiro de outra terra</p><p>vinha, em nome da donzela, em demanda do freio que estava guardado lá dentro,</p><p>o</p><p>defensor deveria combatê-lo. Se o cavaleiro de fora fosse vencido, não obteria em</p><p>troca senão que sua cabeça fosse cortada e depois fixada em uma das estacas que</p><p>cercavam o castelo. E, até que o defensor resultasse vencido, uma nova estaca seria</p><p>cravada, e sempre seria dessa forma enquanto viessem outros cavaleiros que o</p><p>defensor derrotasse em batalha.</p><p>Assim, ambos se armaram e o vilão trouxe um bom corcel para cada um; eles</p><p>saltaram para as selas sem ajuda dos estribos e penduraram os escudos ao pescoço.</p><p>Dentro em pouco ireis ouvir seus golpes! Logo que os viu montados, o vilão</p><p>providenciou e lhes deu duas grossas lanças para começarem essa batalha. Eles então</p><p>tomaram distância um do outro, depois se entrechocaram sem dó nem piedade.</p><p>Trocaram golpes com tal violência que por pouco não se derrubaram no mesmo</p><p>instante mutuamente. Partiram-se as lanças em estilhaços, fendeu-se a parte de trás</p><p>dos arções e romperam-se os estribos. Não restou correia que ainda não estivesse</p><p>cortada, já nada podia sustentar seu peso e acabaram caindo por terra.</p><p>De pronto repuseram-se de pé, erguendo os escudos com braço firme. Tentavam</p><p>ferir-se duramente, infligiam tais golpes sobre os escudos que voavam fagulhas, com</p><p>as espadas os desbastavam, arrancando pedaços. Entrebateram-se tempo bastante para</p><p>percorrer duas léguas, sem que um pudesse conquistar sobre o outro um único pé de</p><p>terreno. Galvão muito se aborrecia por demorar tanto; assediou o outro com tal vigor</p><p>que logo atingiu-lhe o elmo, cortando o aro que o encimava e fendendo-o de alto a</p><p>baixo. Deixou o vassalo tão atordoado que ele se curvou para o chão e Galvão o</p><p>puxou para si, agarrou-o com grande ira e fez menção de matá-lo. E ele agora</p><p>clamava:</p><p>- Galvão, não me mates! Louco fui ao medir-me contigo, mas nesta manhã ainda</p><p>cuidava não haver sob o céu cavaleiro que ousasse erguer-se contra mim. Tu agora me</p><p>conquistaste pela força, e isso engrandeceu o montante de teu valor. Eu imaginava</p><p>cortar tua cabeça e fixá-la neste pau em que não há nenhuma enfiada. Fui eu que</p><p>cortei todas as que estão em volta desta palissada, e que eram de cavaleiros vindos</p><p>aqui para negócio semelhante. Outro tanto contava fazer contigo, mas debaixo do céu</p><p>não há cavaleiro que te iguale.</p><p>Galvão o liberou, o outro se foi, e ele próprio desarmou-se no quarto.</p><p>- Vilão, disse Galvão, pensa agora em como poderei obter o freio.</p><p>- Galvão, respondeu ele, queres saber o que tens de fazer primeiro? Antes tens de</p><p>combater contra duas serpentes traiçoeiras e ferozes, que esguicham sangue para todo</p><p>lado e soltam fogo pela boca! Mas fica sabendo que esse teu arnês de nada te</p><p>adiantará contra elas. Vou arranjar-te outro que é mais forte e tenaz. Há cerca de</p><p>quatrocentas cotas de malha tripla aqui, reforçadas e ainda inteiras, que pertenceram</p><p>àqueles cavaleiros dos quais viste as cabeças decepadas.</p><p>O vilão cedo lhe trouxe armas de diversos tipos, escolhendo algumas para ele</p><p>equipar-se, das mais fortes e em melhor estado. Disse então Galvão:</p><p>- Vai procurar esses diabos de que falavas.</p><p>- Pois bem, replicou o vilão, mas saberás que antes que passe de meio-dia terás</p><p>muito a fazer. Não há sob o céu homem tão bravo, afora eu, que ouse aproximar-se</p><p>delas, nem mesmo olhá-las. Galvão lhe disse:</p><p>- Não te apoquentes.</p><p>O vilão foi desatar as serpentes, que eram muitíssimo ferozes e enormes, e</p><p>conduziu para cima essas bestas totalmente selvagens, que investiram contra Galvão</p><p>chamuscando seu escudo todo de alto a baixo. Ele enfrentou uma, valorosamente;</p><p>desferiu-lhe tal golpe de espada que, como o escrito testemunha, cortou-lhe a cabeça,</p><p>matou-a instantaneamente. Não sei o que mais vos contar, senão que, antes que</p><p>passasse de meio-dia, ele dera conta das duas, que acabaram mortas e despedaçadas.</p><p>O cavaleiro tinha o rosto besuntado de sangue e peçonha. O vilão retirou-lhe a</p><p>armadura com que combatera. Mas, antes que estivesse desarmado, o anãozinho</p><p>apareceu-lhe à frente, o mesmo que, no início, viera ter com ele sob o pórtico e o</p><p>saudara, sem dignar-se a dizer-lhe mais nada e indo embora com tanta impertinência.</p><p>- Galvão, falou, eu te ofereço meu serviço, de parte de minha dama, mas sob a</p><p>condição de que comerás com ela. Então farás o que quiseres, sem luta nem oposição,</p><p>com o freio que vieste buscar.</p><p>Galvão respondeu que iria, desde que o vilão o conduzisse, pois confiava muito</p><p>nele. Foram ambos de mãos dadas. O vilão o guiou muito bem; foram de quarto em</p><p>quarto, até irem dar na câmara onde a dama que mandara o anão convidar meu senhor</p><p>Galvão quedava-se reclinada sobre um leito.</p><p>Ao vê-lo entrar, ela chegou-se a ele e disse:</p><p>- Galvão, sede bem-vindo! Por vossa causa me advieram muito grandes desgostos</p><p>e pesados danos, de vez que a todas as minhas feras selvagens fostes matando em</p><p>vosso percurso. Todavia, agora vos convém comer comigo. Nunca, na verdade,</p><p>conheci cavaleiro melhor e mais bravo do que vós.</p><p>Sentaram-se ambos no leito. Mas não era, assim me parece, nem de madeira de</p><p>salgueiro nem de faia o leito em que a dama e Galvão se acomodaram, pois eram</p><p>revestidas de fina prata as quatro colunas que sustentavam o dossel, e este era</p><p>recoberto de um brocado todo trabalhado de pedrarias e outras riquezas várias. Se eu</p><p>quisesse descrevê-las para vós, logo esgotaria, com suado esforço, todo o meu tempo;</p><p>mas não será preciso falar disso.</p><p>Ela pediu água para se lavarem; o vilão prontamente a ofereceu em bacias de ouro,</p><p>e lhes trouxe uma toalha para enxugarem as mãos. A dama e meu senhor Galvão</p><p>prepararam-se então para comer. O anão os servia, com a ajuda do vilão, já que ali</p><p>não havia mais servidores. A dama estava extremamente contente e seu hóspede fazia</p><p>cara alegre. A dama, que muito o louvava e prezava, o fez postar-se a seu lado,</p><p>encostado a ela, servindo-se da mesma travessa. Não farei a descrição das iguarias</p><p>nem as comentarei mais. Após terminarem de comer, a mesa foi tirada e a dama pediu</p><p>água, que o vilão logo lhe passou.</p><p>Galvão ansiava por partir, cuidando que já demorara muito. Pediu então o freio à</p><p>dama  pois fazia jus a ele!</p><p>- Senhor, ela falou, ponho a vosso serviço meu poder e minha própria pessoa, por</p><p>terdes empreendido grandes coisas em prol de minha irmã, desde que enveredastes</p><p>por essa trilha. Sou sua irmã, minha irmã ela é, e assim vos devo honrar o mais que</p><p>possa. Se vos aprouver habitar aqui, tomar-vos-ei como esposo e vos entregarei este</p><p>castelo; e tenho ainda outros trinta e oito!</p><p>- Dama, replicou ele, não vos irriteis; já tardei demais, digo-vos por minha fé, a</p><p>apresentar-me na corte do rei conforme eu me havia comprometido. Dai-me pois sem</p><p>mais nada o freio que vim demandar. Permaneci demais nesta terra. Agora é assim:</p><p>não ficarei mais tempo, embora vos seja grato pelo bem que me ofereceis.</p><p>- Galvão, falou ela, pegai o freio, ei-lo preso àquele prego de prata.</p><p>Ele imediatamente o pegou, demonstrando grande satisfação. E o vilão trouxe a</p><p>mula, Galvão colocou nela o freio e a sela, e despediu-se da dama. Ela ordenou ao</p><p>vilão que fizesse meu senhor Galvão sair sem estorvo, fazendo o castelo parar quieto</p><p>até que ele passasse além. Meu senhor Galvão montou, contente de retomar a trilha. O</p><p>vilão mandou o castelo ficar totalmente imóvel, e este se deteve.</p><p>Galvão passou em segurança, e, após atravessar a ponte, voltou-se para contemplar</p><p>o castelo. Viu então, no meio das ruas, tantas rodas de pessoas dançando e farreando</p><p>tanto, cada qual se divertindo com o companheiro, que festa maior não poderiam</p><p>armar ainda que Deus determinasse. O vilão permanecia ainda sobre o muro acima da</p><p>porta, depois de tê-lo levado para fora. Galvão lhe perguntou que significado teria o</p><p>fato de, ao entrar, não ter visto ninguém lá dentro, nem miúdo nem grande; e agora</p><p>via ali uma tão esfuziante alegria, com todos participando dessa disputa alegre.</p><p>- Senhor, ele falou, eles se escondiam nos celeiros por causa da crueldade das</p><p>bestas que</p><p>matastes. Essas feras se agitavam com tal sanha que, quando por ventura as</p><p>pessoas saíam para alguma tarefa, não havia jeito de mantê-las presas; era preciso</p><p>soltá-las a qualquer custo, e elas saíam a destroçar todo mundo, cheias de orgulho e</p><p>raiva. Agora dizem os habitantes em sua linguagem que, por meio de vós, Deus os</p><p>livrou, e iluminou com sua graça as gentes que estavam nas trevas. Tão grande alegria</p><p>sentem pelo que vêem que maior não poderiam ter.</p><p>Sabei deveras que isso agradou muito a Galvão. Pôs-se então no caminho que</p><p>levava direto ao curso d'água em que estava a prancha de ferro, cruzando-a em</p><p>segurança. Tanto prosseguiu cavalgando, que chegou ao vale infestado de vermes.</p><p>Passou adiante, a salvo, e penetrou na floresta onde estavam os animais selvagens.</p><p>Tão logo o perceberam, foram a seu encontro e se puseram a comboiá-lo. Dobravram</p><p>os dois joelhos à terra e se compraziam em aproximar-se dele; beijaram-lhe as pernas</p><p>e os pés e fizeram outro tanto com a mula. Galvão saiu da floresta, que não tardara a</p><p>percorrer, e entrou na pradaria vizinha ao castelo.</p><p>O rei Artur e a rainha tinham ido recrear-se, com vários cavaleiros de seu séquito,</p><p>na sala do pavimento superior. Nisso, Galvão vinha chegando. A rainha o viu</p><p>primeiro e o apontou aos cavaleiros. Tanto cavaleiros quanto donzelas correram a seu</p><p>encontro. Ouvindo que meu senhor Galvão chegava, a donzela  aquela a quem</p><p>caberia o freio  ficou muito contente com as boas novas.</p><p>Meu senhor Galvão chegou e a jovem foi encontrá-lo.</p><p>- Senhor, disse ela, Deus vos dê boa acolhida e todo divertimento que se possa ter,</p><p>de dia e de noite.</p><p>E ele replicou, enquanto descia da mula pelo estribo de prata:</p><p>- E, quanto a vós, que tenhais boa sorte.</p><p>A jovem o tomou nos braços e o beijou mais de cem vezes.</p><p>- Senhor, falou ela, é perfeitamente justo que eu coloque, sem qualquer reserva,</p><p>meu corpo a vosso serviço, porquanto sei bem que não teria o freio de volta por meio</p><p>de homem algum que eu pensasse enviar ao castelo. Pois nesse afã pereceram muitos</p><p>cavaleiros, cujas cabeças foram cortadas, sem que tivessem o poder de recobrá-lo.</p><p>Então Galvão lhe contou as aventuras que achara: o grande vale e o bosque, a fonte</p><p>na espessura da mata, a água correndo negra, o castelo que girava, o pacto com o</p><p>vilão, os leões que conseguiu matar, o cavaleiro a quem venceu, a batalha das</p><p>serpentes, o anão que o saudou sem se dignar a dizer-lhe mais, e como esse anão lhe</p><p>veio de novo depois, como teve de comer no quarto da dama que era irmã dela, como</p><p>o freio lhe foi entregue, como viu danças nas ruas quando saiu do castelo, e como foi</p><p>que dele logrou sair sem impecilho nem dificuldade.</p><p>Quando Galvão acabou de contar tudo isso, a jovem despediu-se dos barões da</p><p>corte. A rainha Genevra correu para ela, e o rei e os cavaleiros também se acercaram</p><p>para pedir-lhe que passasse a morar ali com eles, e amasse um dentre os cavaleiros da</p><p>Távola Redonda.</p><p>- Sire, Nosso Senhor me confunda, falou ela, que de bom grado eu ficaria se jamais</p><p>ousasse, mas não posso a nenhum custo.</p><p>Pediu sua mula, vieram trazê-la, montou-a pelo estribo. O rei queria acompanhá-la,</p><p>mas ela disse que não queria ter escolta alguma, não deveriam incomodar-se, e que já</p><p>era bastante tarde. Despediu-se e partiu, a passo de marcha.</p><p>Da donzela da mula, que se foi sozinha, aqui termina a aventura.</p><p>IV</p><p>O Cavaleiro da Espada</p><p>Quem gosta de diversão e alegria adiante-se para ouvir uma aventura que ocorreu</p><p>com o bom cavaleiro que sustentou a lealdade, a proeza e a honra, e que jamais</p><p>apreciou homem covarde, falso ou vilão: este conto é sobre ele, meu senhor Galvão,</p><p>que era tão bem educado e que foi enaltecido por seus feitos de armas como ninguém</p><p>saberia narrar. Quem quisesse relatar todas as suas boas qualidades e as registrar por</p><p>escrito não acabaria nunca. Todavia, se não posso enumerá-las todas, não é por isso</p><p>que deva calar-me quanto a elas. A meu ver, não é razoável censurar Chrétien de</p><p>Troyes, que soube contar sobre o rei Artur, sobre sua corte e sua companhia que foi</p><p>tão louvada e prezada  assim dando conta dos feitos dos outros, ainda que nunca</p><p>dos de Galvão. Este, no entanto, foi homem valoroso demais para ser esquecido. Por</p><p>isso me agrada ser o primeiro a narrar uma aventura que sucedeu ao bom cavaleiro.</p><p>Durante o verão, estava o rei Artur em Carduel, uma de suas cidades. Com ele</p><p>tinham vindo somente a rainha, Galvão, Caio o senescal e Ivã. Como de hábito,</p><p>Galvão sentiu desejo de ir divertir-se e exercitar-se. Mandou então aprontar seu</p><p>cavalo e equipou-se com requinte. Calçou esporas de ouro sobre a meia-calça cavada,</p><p>feita de um pano de seda bem trabalhado; vestiu um culote muito branco e refinado,</p><p>uma camisa curta e larga de linho com pregas miúdas, e jogou sobre os ombros um</p><p>manto de arminho. Estava suntuosamente trajado.</p><p>Em seguida, saiu da cidade e seguiu caminho reto até entrar na floresta. Escutava o</p><p>canto dos pássaros, que gorjeavam docemente. Ficou ouvindo por tão longo tempo,</p><p>atento a essas toadas diversas, que lhe veio o pensamento de uma aventura que</p><p>lembrava ter-lhe acontecido. Tão longamente ficou absorto que se extraviou na</p><p>floresta, perdendo o rumo. O sol declinava quando começara a meditar; anoitecia</p><p>quando saiu desse devaneio, mas não sabia mais onde estava. Decidiu regressar e aí</p><p>entrou por um caminho de carroças que o levava cada vez mais adiante. E a noite</p><p>avançava sem que ele soubesse aonde ir.</p><p>Divisou à sua frente uma trilha que descia na direção de uma clareira, no meio da</p><p>qual viu uma grande fogueira acesa. Para esse lado dirigiu-se a passo lento, cuidando</p><p>encontrar alguém que o orientasse, lenhador ou carvoeiro.</p><p>Então viu junto ao fogo um corcel atado a uma árvore. Foi para perto da fogueira e</p><p>viu um cavaleiro sentado. Saudou-o prontamente:</p><p>- Que o Deus, falou ele, que fez o mundo e nos colocou as almas nos corpos vos</p><p>dê, belo senhor, uma partilha generosa.</p><p>- Amigo, respondeu ele, e Deus vos guarde. Dizei-me pois de onde vindes, que a</p><p>tal hora seguis sozinho.</p><p>E Galvão lhe contou toda a verdade, de cabo a rabo: como saíra a divertir-se e,</p><p>depois, como se extraviara na floresta por causa de um pensamento que o fizera</p><p>esquecer-se de si mesmo, e assim perdera a trilha. O cavaleiro lhe prometeu que, pela</p><p>manhã, de muito bom grado o recolocará no caminho, desde que se quede com ele e</p><p>lhe faça companhia durante essa noite. O pedido foi aceito. Galvão depôs a lança e o</p><p>escudo, desmontou do cavalo, prendeu-o a um arbusto e o cobriu com seu manto, indo</p><p>depois sentar-se ao lado do fogo. Um indagou do outro como passara o dia. Galvão</p><p>contou tudo, nunca se rebaixando a mentir; mas o cavaleiro o enganou, não lhe disse</p><p>uma só palavra verdadeira: ouvireis em breve porque o fazia. Quando já haviam</p><p>velado o bastante e conversado sobre coisas diversas, adormeceram junto ao fogo. Ao</p><p>amanhecer, meu senhor Galvão despertou primeiro e, em seguida, o cavaleiro</p><p>acordou.</p><p>- Minha casa está muito perto daqui, a não mais de duas léguas; peço-vos que vos</p><p>deixeis encaminhar para lá, sabendo que cedo achareis hospedagem acolhedora.</p><p>Montaram então sobre os corcéis, tomando de seus escudos, lanças e espadas, e se</p><p>meteram logo por um caminho pedregoso. Não tinham viajado muito longe quando</p><p>saíram da floresta e chegaram a uma planície. O cavaleiro o interpelou:</p><p>- Senhor, falou ele, escutai: sempre que um cavaleiro cortês e prudente conduz</p><p>outro com ele, é usual e costumeiro que mande avisar para que arrumem os cômodos,</p><p>pois, se não soubessem de sua chegada, ele poderia vir a encontrar coisa que lhe</p><p>desagradasse. Não tenho a quem despachar, como vedes bem, salvo a mim mesmo.</p><p>Peço-vos, e espero que isso não vos incomode, que prossigais tranqüilamente a vosso</p><p>gosto, e eu irei na frente em galope acelerado. Em um vale, diante de um cercado,</p><p>vereis minha casa.</p><p>Galvão entendeu que era sensato e de bom tom o que o cavaleiro</p><p>gnóstico e de</p><p>sabedoria popular, foi por sua vez adaptado para uma nova antologia, muito</p><p>conhecida na Índia, o Hitopadeça [ilustrações saudáveis], de que também existem</p><p>várias traduções na Europa. A tradução brasileira, de Mansour Challita, é de 1975.</p><p>Trata-se portanto de um livro possivelmente do século XI, com matéria que vinha</p><p>sendo transmitida oralmente desde o século VIII. Mas o que se conta é que essas</p><p>estórias foram traduzidas e muito lidas na Europa, "mais lidas que a Bíblia ou</p><p>qualquer outro livro". E Max Müller acrescenta que "Não somente se leram essas</p><p>traduções, como foram também introduzidas nos sermões, nas homilias e nas obras de</p><p>moral. Foram desenvolvidas, aclimatadas, localizadas e moralizadas em tais termos,</p><p>que é já quase impossível reconhecer sua fisionomia oriental sob os seus rústicos</p><p>disfarces".</p><p>É do convívio com essa tradição oriental e da mistura de elementos culturais de</p><p>origem grega, romana, céltica, germânica, escandinava, árabe e cristã, principalmente</p><p>do Novo Testamento, que começa no século XII o primeiro renascimento literário — o</p><p>dos longos poemas narrativos, de natureza épica, sobre fatos ocorridos a partir do fim</p><p>da Antigüidade, no século V. É a épica popular e anônima, de procedência merovíngia</p><p>e carolíngia, tais como os românicos Chanson de Roland e Cantar del Mío Cid; os</p><p>anglo-germânicos Das Nibelungenlied e Beowulf; a Gesta de Cuchulainn irlandesa; e</p><p>os dos povos escandinavos e finlandeses, como a Völsungasaga e o Kalevala, e</p><p>mesmo a Gesta Danorum. Ocorrências que explicam o florescimento da narrativa em</p><p>prosa e da existência dos ciclos conhecidos por carolíngio, bretão e clássico. Esses</p><p>ciclos se originaram do aproveitamento das tradições regionais, primeiro da</p><p>necessidade real de se valer das gestas e sagas para se compor a história de cada reino;</p><p>depois, da natural imaginação das novas nacionalidades, reunindo ou criando, à feição</p><p>das parábolas e narrativas bíblicas, tomadas como modelo de perfeição, as suas</p><p>próprias estórias maravilhosas, a que se foram agregando elementos hagiográficos e,</p><p>em especial, do culto da Virgem Maria.</p><p>A matéria da Bretanha ou o ciclo de lendas em torno do rei Artur constitui um</p><p>desses conjuntos temáticos, na verdade o mais admiravelmente organizado e</p><p>conhecido. Um rei nem exatamente histórico nem totalmente lendário, ARTUR, teria</p><p>existido na Bretanha, nos começos do século VI, tal como se vê mais tarde na</p><p>literatura céltica. É por intermédio de historiadores em língua latina e dos primeiros</p><p>"romancistas"1 franceses que ele (com elementos da sua saga) penetrou no imaginário</p><p>da Idade Média, chegando a influir na obra de Dante, a servir de emulação a Boccacio</p><p>nos cem contos do Decameron, a criar paralelos ideológicos nas Mil e Uma Noites e,</p><p>um pouco mais tarde, a motivar o tema central da grande obra de Cervantes.</p><p>O nome de Artur (Arthur, Arthus ou Arzur), que se estende pela Cornualha, Gales,</p><p>Armórica, ilha da Bretanha e pela Bretanha Francesa (onde se situa a floresta de</p><p>Brocéliande e, pode-se dizer, o monte Saint-Michel), está ligado a uma das mais</p><p>antigas e conhecidas raízes indo-européias — "ar" — que por sua vez está relacionada</p><p>com o sentido de agricultura (de arado, arar, ariano). Artur seria o arquétipo de um</p><p>deus agrário sobrevivente das divindades neolíticas do povo ariano no mundo céltico.</p><p>Esse arquétipo adquire atualização nas lutas contra os invasores germânicos, anglos e</p><p>saxões e, como um urso ártico (a raiz também aponta para um urso), Artur / Urso está</p><p>sujeito à hibernação ou seja, a sua "ida" para a ilha de Avalon, no mundo mágico de</p><p>Merlim e de Morgana, de onde voltará um dia. Esse retorno "messiânico" tem a ver</p><p>com a escatologia cristã que, por sua vez, se relaciona com o mito de Perséfone</p><p>(Prosérpina), a quem foi concedido passar seis meses no inferno e seis na terra, numa</p><p>bela alegoria dos solstícios. Aliás, na própria saga primitiva de Artur se encontra uma</p><p>passagem parecida, que não deixa de ter também o seu lado edipiano — o do enigma.</p><p>Trata-se do seguinte:</p><p>Numa floresta [Brocéliande?], Artur encontra um homem armado de tacape</p><p>que lhe propõe este enigma: O que as mulheres amam acima de tudo? E lhe dá</p><p>o prazo de um ano para a resposta. Artur passa o ano colecionando respostas,</p><p>cada uma diferente da outra. No último dia uma mulher velha e feia lhe oferece</p><p>a resposta certa, sob a condição de que ele se case com ela. Artur aceita e leva</p><p>a resposta ao homem do tacape: "A soberania", responde Artur. O homem fica</p><p>furioso e exclama: "Só podia ser minha própria irmã que te forneceu a</p><p>resposta". Artur junta-se à velha e, à noite, no leito, depois de amá-la, vira-lhe</p><p>1 Nessa época, "romance" denotava a língua vulgar, românica, originária do latim (como o francês, o</p><p>italiano, o espanhol, o português e o romeno ), e as obras que nela se escreviam.</p><p>as costas; ela lhe pede pelo menos um beijo; ele se volta e vê então uma bela</p><p>jovem em todo o seu esplendor. É então que a jovem lhe propõe uma escolha</p><p>— ser bela de dia e horrível de noite, ou bela de noite e horrível de dia. Mas</p><p>sabiamente Artur a deixa fazer a escolha, o que permite à mulher ser bela de</p><p>dia e de noite. Ela estava encantada por sua madrasta até que o melhor homem</p><p>do mundo lhe oferecesse ao mesmo tempo o casamento, a liberdade de escolha</p><p>e a soberania. É assim que ela se torna a segunda esposa de Artur — a</p><p>Genevra. [A primeira havia sido simbolicamente a própria ilha da Bretanha].2</p><p>Um dos temas interessantes, por si mesmo, como invenção lendária, e por sua</p><p>repercussão no futuro é o do messianismo, proveniente do sentido da volta de Cristo.</p><p>Os historiadores escreveram que Artur voltaria, tal como se deu com Frederico</p><p>Barbarossa e D. Sebastião. Há sempre alguém à espera deles, pelo menos na</p><p>imaginação literária. Ou religiosa.</p><p>*</p><p>* *</p><p>Podem-se ver três tempos na história do rei Artur: um PRÉ-HISTÓRICO, que vai do</p><p>seu nascimento no século VI ao século VIII, período em que seu nome ainda não</p><p>aparece entre os historiadores; um PROTO-HISTÓRICO, a partir de 800, quando as</p><p>batalhas e façanhas do passado lhe são atribuídas; e o propriamente HISTÓRICO, depois</p><p>da obra de Geoffrey de Monmouth, Historia Regum Britanniae, aparecida em 1136, a</p><p>qual, pouco tempo depois (1155), graças ao sucesso que teve, foi adaptada em verso</p><p>francês por um clérigo de nome Wace, natural de Jersey, que introduziu no texto não</p><p>só o tema da távola redonda, como também o sentido do amor cortês. Com ele e com</p><p>a obra de Chrétien de Troyes (os cinco livros escritos entre 1170 e 1185) e com os lais</p><p>da poetisa Maria de França (possivelmente um pouco antes de Chrétien) as narrativas</p><p>do ciclo arturiano se confundem com a literatura francesa e se espalham por toda a</p><p>Europa, contrapondo-se aos temas adaptados da guerra de Tróia.</p><p>Assim, nessa "pré-história", historiadores como Gildas (De Excidio et Conquestu</p><p>Britanniae, c.545), ainda que tratem da vitória dos bretões sobre os saxões no monte</p><p>Badon [que os futuros historiadores atribuirão a Artur], não mencionam o seu nome.</p><p>Também Bede, o Venerável (Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, c.731), não fala</p><p>do rei Artur que só aparecerá, numa "proto-história", lutando contra os saxões na</p><p>Historia Britonum, atribuída a Nennius, escrita em torno do ano 800. Ali se fala de</p><p>muitas batalhas, uma das quais, a do castelo Guinnion, na qual se descreve Artur</p><p>levando nos ombros a imagem da Virgem e matando, na décima segunda batalha, 960</p><p>inimigos, imagem hiperbólica que será retomada pelo autor da Chanson de Roland,</p><p>trezentos anos depois. Por volta de 950 os Annales Cambriae descrevem Artur, na</p><p>batalha do monte Badon, vencida pelos bretões, levando nos ombros durante três dias</p><p>e três noites a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. E fala também da batalha de</p><p>Camlann [Camelot] em 537, onde morreram Artur e Medraut [Modredo], seu</p><p>sobrinho, usurpador e traidor. Quase</p><p>dissera; por isso</p><p>seguiu a passo lento e o outro se foi velozmente.</p><p>Na direção em que ia, meu senhor Galvão deparou com quatro pastores, parados à</p><p>beira do caminho. Saudaram-no muito amavelmente, e ele, em nome de Deus,</p><p>devolveu-lhes a saudação e passou por eles sem dizer-lhes mais.</p><p>- Ai, exclamou um deles, que desgraça! Um cavaleiro tão belo, nobre e destro!</p><p>Decerto não seria direito que fosseis ferido ou maltratado.</p><p>Galvão ficou perplexo, ouvindo essas palavras. Perguntava-se, espantado, por que</p><p>razão o lamentariam, dado que não o conheciam em absoluto. Retornou até eles</p><p>rapidamente, cumprimentou-os de novo e pediu-lhes polidamente que lhe dissessem a</p><p>verdade, por que motivo falavam de desgraça.</p><p>- Senhor, disse ele, temos pena de vos ver seguir esse cavaleiro que vai lá adiante,</p><p>naquele cavalo cinza. Ele já trouxe muitos, à nossa vista, mas ainda não vimos</p><p>nenhum que depois tenha retornado.</p><p>Galvão insistiu:</p><p>- Amigo, sabes tu se ele lhes fez algo que não fosse para seu bem?</p><p>- Senhor, diz-se neste país que, se alguém o contradiz em algo em sua morada, seja</p><p>sobre que coisa for, boa ou má, ele o faz matar. Não o sabemos senão de ouvir dizer,</p><p>pois nunca se viu homem algum voltando de lá. E, se quiserdes crer em nós, não o</p><p>seguireis por nem mais um pé de distância, se tendes amor a vosso corpo. Sois tão</p><p>belo cavaleiro que seria lamentável se vos matasse.</p><p>E meu senhor Galvão lhes disse:</p><p>- Pastores, a Deus vos encomendo. Não será por essas estórias de criança que</p><p>deixarei de visitar as terras dele.</p><p>Se soubessem em seu país que Galvão teria desistido por tal ninharia, iriam para</p><p>sempre reprová-lo por isso. Ao passo lento de seu cavalo, prosseguiu pensativo em</p><p>direção ao vale que o outro lhe havia indicado. Ao lado de um grande cercado avistou,</p><p>sobre um outeiro, um belo castelo cuja fortificação tinha o aspecto de nova. Notou o</p><p>fosso largo e profundo, e viu como eram opulentas as edificações no pátio emuralhado</p><p>frontal à ponte levadiça. Nunca em sua existência observara Galvão outras mais ricas,</p><p>a não ser que fossem de príncipe ou rei. Mas não quero demorar-me a descrevê-las,</p><p>limitando-me a ressaltar sua beleza e riqueza. Veio até perto das liças, mas entrou</p><p>pelo portão e atravessou o pátio, chegando à extremidade da ponte.</p><p>O senhor acorreu a seu encontro, dando grandes mostras de estar jubiloso por sua</p><p>chegada. Um valete recolheu-lhe as armas e outro encarregou-se de seu cavalo,</p><p>Gringalet, e um terceiro lhe descalçou as esporas. Então seu hospedeiro o tomou pela</p><p>mão e o conduziu ao longo da ponte. Acharam um belo fogo aceso na sala em face da</p><p>torre, ao redor do qual havia ricas cadeiras recobertas de seda púrpura. Seu cavalo foi</p><p>metido em um estábulo à parte, mas ao alcance de sua vista, e lhe trouxeram farta</p><p>quantidade de aveia e feno. Por tudo Galvão agradecia a seu anfitrião, pois não</p><p>desejava contradizê-lo em nada.</p><p>Disse-lhe o dono da casa:</p><p>- Belo senhor, vosso jantar está sendo preparado, e sabei que os serviçais se</p><p>apressam com diligência para tê-lo pronto. Enquanto isso, diverti-vos, alegrai-vos e</p><p>ficai à vontade; se houver coisa que vos desagrade, dizei-o sinceramente.</p><p>Galvão disse que os arranjos para sua hospedagem estavam totalmente a seu gosto.</p><p>O senhor entrou no quarto para buscar uma filha sua: na terra toda não havia donzela</p><p>de seu valor. Não vos poderia nunca dizer a beleza toda (e nem metade!) de que ela</p><p>era dotada, mas também não quero ignorá-la  assim, vou contar-vos muito</p><p>brevemente: a Natureza reunira em torno dela tudo quanto jamais soube criar de</p><p>cortesia e de beleza para agradar a um homem. O anfitrião, que não era vilão, tomou-a</p><p>pela mão direita e a conduziu à sala. E Galvão, contemplando a grande beleza que</p><p>havia nela, por pouco não ficou estatelado, mas ergueu-se assim mesmo. Quanto à</p><p>donzela, quando olhou para Galvão, encantou-se ainda mais por sua elegância e</p><p>refinamento. Ele a cumprimentou, porém, com cortesia e em poucas palavras.</p><p>Logo em seguida o dono da casa a entregou pela mão a meu senhor Galvão,</p><p>dizendo:</p><p>- Eu vos apresento minha filha, que isso não vos moleste; pois não tenho diversão</p><p>mais bela para vos agradar e entreter. Ela vos saberá oferecer, se o desejar, boa</p><p>companhia, e eu quero que ela não se oponha. Há em vós tanta sensatez e valor que,</p><p>se ela se dispuser a amar-vos, nada lhe resultará senão honra. De minha parte vos</p><p>concedo um dom: que não terei ciúme de vós; pelo contrário, determino a ela, à vossa</p><p>frente para que escuteis, que não vos contrarie em nada.</p><p>Galvão, que não desejava contradizê-lo, agradeceu-lhe amavelmente. E ele foi</p><p>rapidamente à cozinha perguntar se poderiam jantar cedo.</p><p>Galvão sentou-se ao lado da jovem, preocupado com o anfitrião, do qual tinha</p><p>muito receio. Mesmo assim, pôs-se logo a falar com a donzela dos cabelos claros,</p><p>cortesmente e sem nada de impróprio. Não lhe disse nem de mais nem de menos:</p><p>tratou-a com discrição. Ofereceu-lhe polidamente seu serviço e tanto lhe disse sobre</p><p>seus sentimentos que ela, prendada e avisada como era, percebeu perfeitamente que</p><p>ele a amaria sobre todas as coisas, se fosse do agrado dela. Ela não sabia o que</p><p>escolher: ou recusar, ou aceitar. Tanto o ouvia falar com cortesia e tanto o via</p><p>demonstrar bons modos, que o amaria de bom amor se ousasse abrir-se com ele. Mas</p><p>por nada consentiria em dar-lhe a entender tal coisa, já que ele não poderia tirar maior</p><p>proveito. Bem sabia que faria papel de vilã se provocasse nele as penas de um amor</p><p>que ele não conseguiria levar até o fim. Mas lhe custava rejeitá-lo, tanto seu coração</p><p>se volvia para ele. Falou então, cortesmente:</p><p>- Senhor, disse ela, entendi que meu pai me proibiu de vos contrariar em qualquer</p><p>coisa que seja. Agora não sei o que vos diga; se eu concordasse em fazer vossa</p><p>vontade, jamais levaria o caso a bom termo, e vos teria traído e causado vossa morte.</p><p>Mas de uma coisa vos advirto, e o digo de boa fé: que vos guardeis de vilania. Além</p><p>disso, seja o que for que meu pai vos diga, de mau ou de bom, não queirais, por má</p><p>sina, contradizê-lo em qualquer ponto, porque sereis morto nesse instante. Até vos</p><p>seria nefasto dar mostras de terdes sido avisado.</p><p>Eis que o amo voltou de sua ida à cozinha. A refeição ficou pronta e ele pediu pela</p><p>água. Não quero alongar-me nisso. Depois de lavarem as mãos, sentaram-se e os</p><p>serviçais colocaram sobre as cobertas de mesa umas toalhas alvas e bonitas, trazendo</p><p>então os saleiros e as facas, depois o pão e, em seguida, o vinho em copos de prata e</p><p>de ouro fino. Mas não quero demorar-me a relacionar os pratos um por um; basta</p><p>dizer que tiveram muita carne e peixe, aves assadas e carne de veado, e foram</p><p>comendo alegremente. O amo repetidamente estimulava Galvão e a jovem a beber e</p><p>disse a ela que insistisse com o cavaleiro.</p><p>- Muito vos podeis orgulhar, disse a Galvão, de que eu queira que ela seja vossa</p><p>amiga.</p><p>Galvão lhe agradeceu polidamente. Quando acabaram de comer até fartar-se, os</p><p>serviçais trataram de tirar as toalhas de mesa e as cobertas e de trazer água e toalha</p><p>para enxugar as mãos. O dono da casa disse, ao fim da refeição, que pretendia ir</p><p>inspecionar seus bosques, e rogou a Galvão que permanecesse sentado e se divertisse</p><p>com a donzela. Entrementes, chamou-o e disse  mandou, de fato  que não se</p><p>fosse até que ele voltasse. E ordenou a um servidor que, se ele fizesse menção de</p><p>partir, deveriam detê-lo imediatamente. Bravo e cortês como era, Galvão percebeu</p><p>que só lhe restava ficar, não podendo ser de outra forma. Replicou prontamente que</p><p>não teria desejo de ir embora, caso o outro o quisesse hospedar. O anfitrião montou</p><p>seu corcel e se foi a galope em busca de outra aventura, já que se sentia seguro quanto</p><p>a esta, com seu hóspede cercado atrás das muralhas.</p><p>A donzela tomou Galvão pela mão e foram sentar-se à parte para discutir como ele</p><p>se poderia proteger. Ela o confortava bela e docemente, mas sentia-se agoniada e</p><p>mortificada</p><p>por não saber que intenção seu pai tinha em mente. Se soubesse,</p><p>mostraria a ele por qual artimanha escaparia, mas o pai nada quisera dizer. Que, por</p><p>ora, Galvão se guarde de contradizê-lo, se com isso puder manter-se a salvo!</p><p>- Agora deixemos isso para lá, falou ele. Vosso pai só me tratará bem. Ele me</p><p>guiou à sua casa e me fez bela acolhida. Daqui em diante, já que seus atos só me</p><p>trouxeram honra e benefício, não terei receio de nada, a não ser que saiba e veja por</p><p>qual razão deva temê-lo.</p><p>Ela lhe ponderou:</p><p>- Isso não quer dizer nada. Diz o vilão em um provérbio, e muitos ainda o repetem:</p><p>Só à noite teu dia gaba</p><p>quando vês que belo acaba.</p><p>De modo semelhante, é na manhã seguinte que se louva o hospedeiro. Que Deus,</p><p>assim como desejo, vos dê despedir-vos com alegria de vosso hospedeiro, e sem</p><p>nenhum rancor.</p><p>Quando já haviam conversado longamente, falando de uma coisa e de outra, o</p><p>dono da casa regressou. Galvão ergueu-se a seu encontro em companhia da jovem, de</p><p>mãos dadas, e o saudaram muito gentilmente. Ele lhes declarou que se apressara por</p><p>temer que, se tardasse, Galvão fosse embora antes; por isso não quisera demorar-se</p><p>mais.</p><p>Começou a anoitecer e o amo perguntou aos serviçais o que haveria para a ceia.</p><p>Disse-lhe a filha:</p><p>- Para vosso prazer, podeis pedir vinho e frutas; e nenhuma outra coisa cairia bem,</p><p>visto que comestes bastante, faz bem pouco.</p><p>Ele deu logo a ordem. Lavaram-se primeiro, depois as frutas foram colocadas à sua</p><p>frente. Os serviçais trouxeram vinho em quantidade, de várias espécies.</p><p>- Senhor, fazei pois cara alegre, falou ele a meu senhor Galvão. Estai certo de uma</p><p>coisa: com freqüência me custa e pesa quando tenho hóspede que não se diverte e que</p><p>não manifesta sua vontade.</p><p>- Senhor, sabei de verdade, falou Galvão, que eu estou contente.</p><p>Quando acabaram de comer as frutas, o dono da casa mandou fazer as camas,</p><p>dizendo:</p><p>- Eu me deitarei nesta sala e este cavaleiro em meu leito. Não o arrumeis estreito</p><p>demais, porque minha filha deitará com ele. A tão bom cavaleiro, como eu cuido que</p><p>ele é, ela estará bem entregue. Ela deve deliciar-se com o que lhes foi permitido.</p><p>Ambos lhe agradeceram e deram mostras de que muito lhes agradava. Mas Galvão</p><p>estava inquieto, por temer que, se fosse deitar-se lá, seu hospedeiro o faria esquartejar;</p><p>por outro lado, sabia que, se o contradissesse em sua própria casa, ele o mataria.</p><p>O dono da casa tinha pressa para que fossem todos deitar-se; pegou Galvão pela</p><p>mão e o levou de imediato para dentro do quarto. A jovem de rosto fresco entrou</p><p>junto com ele. O quarto era coberto de tapeçarias, e doze círios acesos, dispostos ao</p><p>redor do leito, lançavam uma claridade intensa. O leito estava lindamente adornado</p><p>com ricas colchas de fazenda branca. Mas não quero demorar-me a descrever a</p><p>riqueza dos tecidos de seda de além-mar, de Palermo e da Romanha, de que o quarto</p><p>estava repleto, e as peliças de zibelina, arminho e petigris. Para vos resumir em uma</p><p>palavra: tudo quanto convinha para vestir um cavaleiro ou para ataviar corpo de dama,</p><p>no inverno ou no verão, espalhava-se pelo quarto em grande abundância; havia ali</p><p>muito custosas vestes. Galvão se maravilhava com a riqueza do que via. E o cavaleiro</p><p>lhe disse:</p><p>- Senhor, este quarto é belo, de fato. E é nele que ficareis deitado, junto dessa</p><p>jovem; ninguém mais irá entrar. Donzela, fechai as portas e fazei como ele mandar,</p><p>pois sei que gente como ele não precisa de incentivo. Mas uma recomendação vos</p><p>faço: não apagueis as velas, pois do contrário ficarei muito zangado. Assim determino</p><p>por querer que ele veja vossa grande beleza ao reclinar-vos entre seus braços  assim</p><p>seu prazer aumentará  e para que vós mesma possais ver seu corpo gentil.</p><p>Com isso saiu do quarto e a jovem fechou as portas. Meu senhor Galvão deitou-se</p><p>e ela voltou para a cama, estendendo-se nua a seu lado sem se fazer rogar. E ela ficou</p><p>entre seus braços a noite toda. Muito docemente ele a beijava e abraçava repetidas</p><p>vezes. E deixou-se ir tão longe que estava a ponto de consumar seu desejo, quando ela</p><p>exclamou:</p><p>- Senhor, por favor! Isso não pode acontecer; não estou sem guarda aqui convosco.</p><p>Galvão olhou para todos os lados e não viu nenhuma coisa viva.</p><p>- Bela, falou ele, peço-vos dizer quem me impede de fazer convosco o que quero.</p><p>Ela respondeu:</p><p>- Eu vos direi de boa vontade o que sei. Vedes aquela espada pendurada ali, que</p><p>tem presilhas de prata e o punho e a guarda de ouro? Não estou inventando o que me</p><p>ouvireis contar, já pude comprovar com meus próprios olhos. Meu pai gosta</p><p>imensamente da espada, que, para ele, diversas vezes exterminou muitos bons</p><p>cavaleiros de valor. Sabei que somente neste local matou mais de vinte  mas não sei</p><p>onde ele a obteve. Não entrará por esta porta cavaleiro que escape vivo. Meu pai os</p><p>acolhe com simpatia mas, à menor falta, se pega quem a praticou é para matar. Quem</p><p>chega deve evitar cometer qualqer vilania, muito lhe convém andar direito, pois meu</p><p>pai o castiga no mesmo instante em que logra surpreendê-lo em qualquer falta. E</p><p>quem se cuida tão bem que não erra em nada é posto à noite para deitar comigo. Então</p><p>é aí que chega a hora de sua morte. Sabeis por que ninguém escapa? Se dá qualquer</p><p>sinal de seu desejo de possuir-me, de pronto a espada o fere em pleno corpo. E se ele</p><p>tenta ir até a espada para tomá-la e retirá-la dali, ela salta por si mesma da bainha e</p><p>investe contra seu corpo. Sabei, na verdade, que a espada é de tal maneira encantada</p><p>que ela me guarda sempre assim. Não caberia a mim prevenir-vos, mas sois tão cortês</p><p>e avisado que seria grande pena, a cada dia mais me pesaria, se por minha causa</p><p>fosseis morto.</p><p>Agora Galvão não sabia o que fazer. Em todos os dias de sua vida jamais ouvira</p><p>falar de tão grande ameaça, e receava que ela só falara para proteger-se, para que ele</p><p>não gozasse seu prazer com ela. Por outro lado, ocorreu-lhe que não havia como</p><p>esconder depois o fato, não se poderia evitar que fosse sabido em toda parte que teria</p><p>deitado com ela, completamente a sós, ambos nus na cama dela, e ele  tão somente</p><p>pelo que foi dito por ela  deixara de realizar seu prazer. Melhor lhe fora morrer com</p><p>honra do que viver longamente em tal vergonha!</p><p>- Bela, falou ele, isso não é nada. Já que cheguei a este ponto, quero por fim tornar-</p><p>me vosso amigo: não podeis passar sem isso!</p><p>- Vós é que não podeis reclamar de mim de ora em diante, retorquiu ela.</p><p>Ele foi-se achegando tanto que ela soltou um grito. E a espada saltou da bainha e o</p><p>atingiu rente ao costado, arrancando-lhe um naco de pele mas sem feri-lo seriamente.</p><p>Indo além, perfurou a coberta e todos os panos até o forro do colchão, lançando-se</p><p>depois de volta para a bainha. Galvão ficou aturdido, perdera todo o desejo, estendeu-</p><p>se ao lado dela inteiramente perplexo.</p><p>- Senhor, ela falou, por Deus peço-vos graça; cuidáveis que eu tivesse falado por</p><p>querer defender-me de vós nesta ocasião. O certo é que eu nunca o havia contado a</p><p>outro cavaleiro que não vós, e sabei que é grande maravilha que não tenhais</p><p>sucumbido irremediavelmente logo ao primeiro golpe. Por Deus, descansai agora em</p><p>paz e evitai daqui por diante tocar-me desse jeito. Para um homem sábio, é sempre</p><p>cedo para começar coisa que pode em males terminar.</p><p>Galvão quedou-se pensativo e abatido, não sabendo como comportar-se. Se Deus</p><p>permitir que ele algum dia retorne a seu país, essa coisa não ficará oculta, e saberão</p><p>por toda parte que ele passou deitado a sós com uma donzela que era tão encantadora</p><p>e bela, por uma noitada inteira, sem nunca fazer nada com ela, sem que nada o</p><p>impedisse fora a ameaça de uma espada que não era empunhada por ninguém! Ficaria</p><p>para sempre desonrado se ela lhe escapasse assim. E se aborrecia com as velas que via</p><p>a seu redor, que brilhavam com forte claridade para que ele visse a grande beleza</p><p>dela: a cabeça loura, a fronte lisa, as sombrancelhas finas,</p><p>os olhos verdes, o nariz</p><p>bem assente, o rosto fresco e corado, a boca pequena e sorridente, o pescoço</p><p>comprido e elegante, os braços longos, as mãos alvas, os flancos suaves e plenos, e,</p><p>sob as cobertas, a carne branca e tenra. Ninguém saberia o que lhe reprovar, tanto</p><p>tinha o corpo gentil e bem feito.</p><p>Ele deslizou para perto dela, bem docemente, como faz quem não é vilão. Já teria</p><p>iniciado um certo jogo, quando a espada pulou fora da bainha e lhe fez um outro</p><p>assalto: com a parte chata o golpeou no pescoço  por pouco não se deu por louco.</p><p>Mas a espada desviou-se ligeiramente e voltou-se contra o ombro direito, do qual lhe</p><p>cortou três dedos de pele; perfurou a colcha de seda, tirando um pedaço, depois</p><p>recolheu-se à bainha. Quando Galvão se sentiu ferido no ombro e no costado, e viu</p><p>que não podia levar a cabo o que pretendia, ficou muito magoado; não sabia o que</p><p>fazer, cheio de desgosto pelo contratempo.</p><p>- Senhor, perguntou ela, estais morto?...</p><p>- Donzela, respondeu, eu não; mas por esta noite vos darei um dom: tereis trégua</p><p>de mim.</p><p>- Senhor, ela replicou, por minha fé, se tais tréguas me tivessem sido dadas tão</p><p>logo foram pedidas, teria sido bem melhor para vós.</p><p>Galvão estava agoniado, e a donzela igualmente. Nem um nem outro conseguiu</p><p>dormir, permanecendo nessa vigília dolorosa a noite toda até de manhã.</p><p>Assim que nasceu o dia, o anfitrião levantou-se rapidamente, dirigindo-se em</p><p>seguida ao quarto. Não ficou calado e mudo, antes chamou em voz alta, e a donzela</p><p>prontamente abriu a porta e depois veio deitar-se nua ao lado de Galvão, enquanto o</p><p>cavaleiro entrava atrás. Viu os dois estendidos tranqüilamente e lhes perguntou como</p><p>iam, e meu senhor Galvão respondeu:</p><p>- Senhor, vamos bem, muito obrigado.</p><p>Quando o cavaleiro o ouviu falar com tal firmeza, sabei que ficou bastante</p><p>contrariado, pois era muito felão e esquivo.</p><p>- Como, exclamou, estais vivo!</p><p>- Por minha fé, falou meu senhor Galvão, eu continuo são e salvo. Sabei que não</p><p>fiz coisa pela qual deva morrer. E, se vós, em vossa casa, me impuserdes sem razão</p><p>qualquer dano ou mau trato, isso será errado.</p><p>- Mas como, insistiu ele, não estais morto? Muito me irrita o fato de ainda</p><p>viverdes.</p><p>Nisso, chegou mais perto e viu claramente como a colcha estava rasgada e os</p><p>lençóis ensangüentados.</p><p>- Vassalo, falou, contai-me agora mesmo de onde veio este sangue.</p><p>E meu senhor Galvão se conteve, pois não queria mentir-lhe; e não lhe ocorria</p><p>nenhum pretexto com o qual pudesse acobertar-se para que o outro nada percebesse.</p><p>Seu hospedeiro apressou-se a falar:</p><p>- Vassalo, disse ele, escutai bem isso. É em vão que disfarçais. Quisestes satisfazer</p><p>vossas vontades com esta donzela, mas não pudestes chegar ao ponto por causa da</p><p>espada que o impediu.</p><p>E meu senhor Galvão lhe disse:</p><p>- Senhor, dizeis a verdade: a espada me atingiu em dois lugares, mas não chegou a</p><p>ferir fundo.</p><p>E quando o cavaleiro se deu conta de que ele não estava ferido de morte, disse</p><p>então:</p><p>- Belo senhor, fez ele, a bom porto chegastes; mas agora dizei-me, se quereis</p><p>escapar incólume, vosso país e vosso nome. Podeis provir de tal gente, de tal renome</p><p>e de tal condição, que só me restará cumprir todos os vossos desejos  mas disso</p><p>quero estar bem certo.</p><p>- Senhor, falou ele, meu nome é Galvão e sou um sobrinho do bom rei Artur. Disso</p><p>podeis estar seguro, porque nunca troquei de nome.</p><p>- Por minha fé, exclamou o anfitrião, bem sei que existe em vós um muito bom</p><p>cavaleiro, não há outro de que se queira falar melhor. Não tendes par desde aqui até a</p><p>Maiorca, nem será jamais achado vosso igual em todo o reino de Logres. Sabeis como</p><p>pus à prova todos os cavaleiros do mundo que alguma vez tenham saído em busca de</p><p>aventura? Os que pudessem jazer neste leito teriam de morrer, um por um, até que</p><p>chegasse o melhor de todos. A espada o deveria eleger para mim, pois ela não deveria</p><p>matar o melhor quando ele viesse: e saiu-se a contento na prova, pois vos escolheu</p><p>como o melhor. E já que Deus vos reservou tanta honra, eu não saberia achar nem</p><p>escolher outro que mais do que vós mereça ter minha filha. Eu a outorgo e confio a</p><p>vós. Nenhuma razão tereis, daqui em diante, de manter-vos em guarda contra mim, já</p><p>que vos dou de boa fé, por todos os dias de vossa vida, a senhoria deste castelo; fazei</p><p>dele segundo vossa vontade.</p><p>Então Galvão lhe agradeceu, que com isso sentiu-se muito alegre e jubiloso.</p><p>- Senhor, ele disse, ficaria bem pago com a jovem tão somente; não tenho interesse</p><p>nem em vosso ouro e prata, nem neste castelo.</p><p>Aí, Galvão e a jovem se levantaram da cama, com a devida compostura.</p><p>Pelo país espalhou-se a notícia de que viera um cavaleiro que desejava ter a jovem,</p><p>contra o qual a espada por duas vezes se desembainhara e não lhe fizera mal nenhum.</p><p>E o quanto antes acorreram todos. Houve muita festa no castelo, com muitíssimas</p><p>damas e cavaleiros, e foi riquíssimo o banquete que o pai da jovem fez preparar. Não</p><p>quero demorar-me a enumerar as iguarias, mas comeram e beberam bastante. Quando</p><p>se fartaram de comer e as toalhas foram retiradas, cada um dos artistas que haviam</p><p>comparecido em grande número mostrou o que sabia. Um temperava sua viola, outro</p><p>soprava a flauta, outro a charamela. Outros ainda cantavam sua parte, com</p><p>acompanhamento de harpa ou rota. Este declamava romances e aquele contava</p><p>fábulas. Em separado, alguns cavaleiros jogavam gamão, ou xadrez, ou dados ou</p><p>algum outro jogo de azar. Dessa forma passaram o tempo, o dia todo, até anoitecer.</p><p>Depois cearam, divertindo-se muito; aves e frutas foram servidas com fartura, como</p><p>também bom vinho em abundância.</p><p>Terminando a alegre ceia, foram logo recolher-se. Galvão e a jovem foram, sem</p><p>mais preâmbulos, conduzidos ao quarto em que haviam permanecido deitados na</p><p>noite anterior. O dono da casa foi com eles e os casou por ato de sua vontade. Depois</p><p>deixou juntos e sem vigilância a jovem e o cavaleiro, saiu e fechou a porta. Que vos</p><p>direi mais? Nessa noite, Galvão fez o que tinha vontade de fazer e não houve espada</p><p>desembainhada. Se ele redobrou o ataque à cortês donzela, isso não me pesa, e nem</p><p>incomodou nada a ela.</p><p>Longamente meu senhor Galvão deixou-se ficar no castelo, em tal desfrute e tal</p><p>gozo. Afinal, pôs-se a refletir que estivera ali por tempo demais, que os parentes e</p><p>amigos pensariam que tivesse sido morto. Foi ter com seu hospedeiro para despedir-</p><p>se.</p><p>- Senhor, disse ele, demorei-me tão longo tempo nesta terra que meus amigos e</p><p>minha família pensarão que eu tenha perecido. Peço-vos, como um favor, vênia para</p><p>regressar. E fazei adornar de tal maneira esta donzela que a mim advenha honra por</p><p>levá-la comigo, e também a vós que a destes a mim. Quando eu chegar a meu país,</p><p>que seja dito que tenho bela namorada e que ela provém de boa origem.</p><p>O anfitrião lhe deu a permissão e Galvão partiu em companhia da donzela. Ela teve</p><p>seu palafrém ricamente ajaezado com freio e sela, foi posta sobre ele, e Galvão</p><p>montou seu cavalo. Para que alongar o conto? Ele retomou as armas que trouxera e se</p><p>foi com as despedidas de seu hospedeiro, alegre e contente com a aventura.</p><p>Mas, depois de cruzar o portão, a donzela parou de repente usando o freio, e</p><p>Galvão lhe perguntou por quê.</p><p>- Senhor, falou ela, por boa razão: esqueci uma coisa muito importante. Sabei que</p><p>eu sairia muito a contragosto deste território sem meus galgos que eu mesma criei, e</p><p>que são extremamente bons e bonitos: nunca vistes tão velozes e são mais brancos que</p><p>qualquer flor.</p><p>Lá se foi Galvão de volta a galope, à cata dos galgos. O dono da casa, ao vê-lo</p><p>chegar de longe, adiantou-se em sua direção.</p><p>- Galvão, disse, por que motivo retornastes tão cedo?</p><p>- Senhor, respondeu ele, porque vossa filha esqueceu seus galgos; ela me disse que</p><p>lhes tem muito carinho e que não irá embora sem eles.</p><p>O outro os chamou e os entregou de bom grado, e Galvão voltou rápido com os</p><p>galgos para junto</p><p>da donzela que o esperava. Então retomaram a trilha por onde</p><p>vinham seguindo e entraram na floresta.</p><p>De súbito, viram um cavaleiro que cavalgava pelo caminho em sua direção. Vinha</p><p>sozinho mas estava muito bem armado, nada lhe faltando de quanto precisa um</p><p>cavaleiro; estava sentado sobre um corcel baio, bem forte, veloz e fogoso. O cavaleiro</p><p>veio célere até chegar perto deles. Galvão tratou de saudá-lo pacificamente, para em</p><p>seguida lhe indagar quem era e de qual terra. Mas ele, que tinha outra idéia, esporeou</p><p>seu cavalo tão duramente que o fez pular para frente e, sem dizer uma só palavra,</p><p>postou-se entre Galvão e a jovem, da qual tomou as rédeas. Deu meia volta bem</p><p>ligeiro e ela, sem se fazer de rogada, foi indo embora com ele sem qualquer hesitação.</p><p>Nem é preciso perguntar se Galvão se encheu de ira e despeito quando o viu levá-</p><p>la assim. Ele não trouxera armamento algum consigo, exceto escudo, lança e espada,</p><p>enquanto o outro, que era forte, alto e arrogante, estava completamente equipado. O</p><p>jogo ia mal para seu lado. Não obstante, como homem audaz, Galvão instigou seu</p><p>cavalo na direção dele para reivindicar a jovem.</p><p>- Vassalo, falou ele, cometestes grande vilania ao vos apossardes tão rudemente de</p><p>minha amiga. Pois agora praticai um ato de coragem, tal como vos indicarei. Notais</p><p>perfeitamente que nada carrego, afora somente lança, escudo e espada à cinta. Solicito</p><p>que vos desarmeis até o ponto de ficarmos par a par  assim fareis uma cortesia. Se</p><p>vós, por feito de cavalaria, puderdes conquistá-la contra mim, seja ela vossa sem mais</p><p>disputa. Se não quiserdes proceder dessa forma, sede nobre e cortês e esperai-me sob</p><p>estes olmos. Irei pedir armas emprestadas a um amigo meu lá atrás, e, quando estiver</p><p>guarnecido delas, voltarei imediatamente; e se vós depois disso a puderdes ganhar de</p><p>mim, a vós a outorgarei sem malquerença: assim de boa fé vos afianço.</p><p>O outro respondeu de pronto:</p><p>- Não tereis licença para afastar-vos daqui e, se agi mal em alguma coisa, não será</p><p>a vós que pedirei perdão. Se me fazeis presente do que já é meu, é mesmo um bocado</p><p>grande vossa presunção. Por estardes desarmado, porém, para que não reclameis de</p><p>falta, vou propor que joguemos uma partida. Dizeis que ela é vossa namorada por ter</p><p>vindo convosco, e eu respondo que ela é minha. Vamos agora colocá-la nesta trilha, e</p><p>cada um de nós se afaste para seu lado; fique então inteiramente por conta dela</p><p>escolher a quem ela mais ama dentre nós. E se ela quiser ir convosco eu a confiarei e</p><p>outorgarei a vós; se ela quiser vir comigo, é direito pois que seja minha.</p><p>Galvão concordou de boa vontade. Tanto a amava e confiava nela que estava</p><p>verdadeiramente convencido de que ela não o deixaria nem pelo mundo todo. Nisso a</p><p>largaram e se retiraram, mantendo-se um pouco apartados.</p><p>- Bela, disseram eles, agora não há escapatória: depende de vosso bel-prazer</p><p>exclusivamente com qual de nós quereis ficar, pois assim acertamos.</p><p>Ela olhou para um e para o outro, primeiro para o cavaleiro e depois para Galvão,</p><p>que estava totalmente certo de que a teria e só se espantava de vê-la ainda refletir.</p><p>Mas a jovem, que bem sabia de que jeito Galvão podia dar conta do recado, quis</p><p>verificar quão hábil e vigoroso seria o outro cavaleiro. Aprendei todos vós, pequenos</p><p>e grandes, quer vos faça rir, quer resmungar: mulher nenhuma no mundo, seja ela</p><p>esposa e amante até mesmo do melhor cavaleiro daqui até a Índia, terá por ele amor</p><p>bastante  a não ser que ele seja valente no quarto  para dar-lhe sequer o valor de</p><p>uma pitada de sal. E sabeis bem de qual proeza se trata...</p><p>Agora escutai que feia coisa essa donzela fez. Foi colocar-se sob a guarda daquele</p><p>que absolutamente não conhecia! Quando meu senhor Galvão viu isso, sabei que</p><p>ficou muito melindrado por ela o ter abandonado de caso pensado. Mas era tão nobre</p><p>e prudente e tão cortês e razoável que não pronunciou uma só palavra, por muito que</p><p>lhe pesasse. Disse-lhe o cavaleiro;</p><p>- Senhor, falou ele, a donzela deve ser minha sem contestação.</p><p>- Que Deus não mais olhe por mim, falou Galvão, se opuser alguma objeção, ou se</p><p>me abalançar a combater por quem por mim não tem cuidado!</p><p>Com isso se foram a jovem e o cavaleiro em andadura forçada, e Galvão, com os</p><p>galgos, prosseguiu na direção de sua terra. Mas logo a jovem se deteve junto à beira</p><p>da landa, e o cavaleiro lhe perguntou por que parara.</p><p>- Senhor, respondeu ela, não serei vossa amante em dia nenhum de minha vida até</p><p>que recupere meus galgos que vejo acolá, sendo levados por aquele vassalo.</p><p>E ele retrucou:</p><p>- Vós os tereis.</p><p>Depois gritou:</p><p>- Parai, parai, dom vassalo! Eu vos proíbo de seguir adiante!</p><p>Depois precipitou-se sobre Galvão a toda brida.</p><p>- Vassalo, disse, com que pretexto levais os galgos, visto que não são vossos?</p><p>E meu senhor Galvão respondeu:</p><p>- Senhor, falou ele, tenho-os por meus, e, se alguém os reclama, cabe-me defendê-</p><p>los como coisa minha. Entretanto, se quereis jogar a partida que me propusestes</p><p>quando metestes a donzela no meio do caminho para escolher com quem queria ficar,</p><p>de boa vontade vos darei meu consentimento.</p><p>O cavaleiro declarou-se disposto a aceitar o jogo. Felão como era, refletia que, se</p><p>os galgos corressem para ele, ficariam em seu poder sem estorvo; e estava certo de</p><p>que, se preferissem Galvão, poderia facilmente tomá-los dele, assim como teria feito</p><p>agora. Foram então deixá-los no caminho.</p><p>Tendo ambos tomado distância, cada um os chamou  e eles correram direto para</p><p>Galvão, a quem conheciam bem pelo simples fato de tê-lo visto na casa do pai da</p><p>donzela. E Galvão lhes fez festas e falou com eles, muito contente por tê-los.</p><p>A jovem dirigiu-se na mesma hora ao cavaleiro:</p><p>- Senhor, falou ela, não seguirei nem mais um passo convosco, e disso Deus é</p><p>minha testemunha, até me apossar de meus galgos a que tanto amo.</p><p>E o cavaleiro respondeu:</p><p>- Sem minha permissão é que ele não pode levá-los de jeito nenhum.</p><p>Em seguida exclamou:</p><p>- Largai deles, vassalo, porque nunca os levareis!</p><p>E Galvão disse:</p><p>- É uma vilania vos desdizerdes dessa forma! Mas é minha a posse dos galgos,</p><p>vieram a mim por sua livre escolha. Que a Majestade Divina não mais me ampare se</p><p>eu desistir deles! Eu vos entreguei a donzela simplesmente porque ela vos preferiu,</p><p>ela que era minha e seguia comigo. Por conseguinte, tendes o dever de deixar-me os</p><p>galgos sem qualquer oposição, em razão de serem meus e terem vindo comigo, e</p><p>porque permaneceram comigo por seu gosto. Ficai sabendo de uma coisa, que aliás</p><p>podeis ver comprovar-se em meu caso: se quiserdes realizar todos os caprichos desta</p><p>donzela, vossa alegria com ela terá curta duração  e quero que ela me escute bem!</p><p> pois, conforme sabereis, enquanto ela foi minha eu cumpri seus desejos. Vede</p><p>agora como ela me serviu! Mas atentai ainda. Não se passa com um cão o mesmo que</p><p>acontece com mulher: aquele não trocará por um estranho o dono que o criou. Mulher</p><p>muito cedo rejeita o seu se ele não lhe satisfaz todas as vontades; e é espantosa tal</p><p>troca, em que ela deixa o que era dela por um estranho. Os galgos não me repudiaram,</p><p>donde posso provar aqui  e não serei desmentido em nada: em natureza e amor por</p><p>quem lhe quer, muito mais vale o cão do que a mulher.</p><p>- Vassalo, bradou o cavaleiro, aqui vosso pleito não vos pode resultar em nada. Se</p><p>agora mesmo não renunciais a eles, guardai-vos porque vos desafio!</p><p>Então Galvão tomou do escudo e o ajustou diante do peito. Carregaram em seguida</p><p>um contra o outro, tão vigorosamente quanto os cavalos puderam correr. E Galvão</p><p>feriu com tal ódio, atingindo o escudo acima da bossa, que o atravessou e rompeu a</p><p>ponto de alguns pedaços voarem alto e longe na distância de um arremesso de</p><p>balestra. Depois Galvão feriu contra o primeiro quartil do escudo tão duramente que,</p><p>ao que me consta, abateu cavalo e cavaleiro. Caíram em um lamaçal no meio da</p><p>estrada, com o corcel ainda entre</p><p>as pernas dele.</p><p>Galvão sacou a espada de aço e prontamente virou-se contra ele, desmontou o</p><p>quanto antes, imobilizou-o com as costas na terra. Dava-lhe grandes golpes na cara e</p><p>no crânio, deixando-o completamente atordoado. Desencadeava nos golpes toda a sua</p><p>força, pelo muito que o odiava pela desfeita e pelo desgosto que o outro lhe impusera.</p><p>Maltratou-o e feriu-o muito, e por fim levantou a aba da loriga e enfiou-lhe sua boa</p><p>espada pelo flanco. Então o largou, dando-se por vingado.</p><p>Nem se importou em dirigir sequer um olhar para o cavalo, couraça ou escudo do</p><p>vencido. Em vez disso, foi chamar os galgos de que gostava enormemente, por terem</p><p>provado tal dedicação a ele. Avistou e correu a pegar seu corcel que se extraviara no</p><p>bosque. Rapidamente o alcançou, segurou e, sem fazer uso do estribo, saltou para a</p><p>sela.</p><p>- Senhor, assim disse a donzela, por Deus e pela honra vos suplico que não me</p><p>deixeis aqui, pois isso seria grande vilania. Se fui tola e insensata, não me deveis levar</p><p>a mal; é que eu não ousava ir convosco, tal o pavor que tive quando vos vi tão</p><p>pobremente guarnecido de armas, enquanto aquele outro estava tão bem armado que</p><p>não lhe faltava coisa alguma.</p><p>- Bela, retrucou ele, isso são palavras vazias. Pouco vos adianta vosso fingimento;</p><p>nada vale esse falso pretexto. Tal fé, tal amor, tal índole pode-se com freqüência achar</p><p>em mulher. Todo aquele que quisera colher em sua terra trigo diferente do que</p><p>semeou, ou que deseja buscar em mulher o que está fora de sua natureza, está longe</p><p>de ser sábio. Tal foi sempre o costume delas desde que Deus criou a primeira. Quanto</p><p>mais alguém pena para servi-las, e mais lhes proporciona bens e honrarias, mais se</p><p>arrepende no final das contas. E quem mais as honra e serve, mais se aborrece e mais</p><p>perde. O que vos ocorreu não foi piedade na intenção de proteger meu amor e minha</p><p>vida, mas antes uma coisa bem diversa. Diz o vilão:</p><p>Na conclusão se vê bem</p><p>que valor a coisa tem.</p><p>A todo aquele que descobriu quão fingida e falsa é uma mulher, e ainda assim a quer,</p><p>ama e conserva, possa Deus não ter em sua guarda. Agora fazei companhia a vós</p><p>mesma!</p><p>Então deixou-a sozinha, e não soube mais o que foi feito dela. Retomou o caminho</p><p>certo e seguiu, meditando sobre sua aventura. Tanto viajou pela floresta que chegou</p><p>ao anoitecer a seu país. Os amigos ficaram imensamente jubilosos, pois cuidavam tê-</p><p>lo perdido. Contou a eles sua aventura, do início ao fim, exatamente como tinha sido,</p><p>e todos a escutaram com muito agrado: primeiro bela e perigosa e depois feia e</p><p>vergonhosa por causa da amiga que perdeu, e como em seguida combateu com alto</p><p>risco pelos galgos  e assim foi contando tudo até o desfecho.</p><p>V</p><p>Caradoc do Braço Inchado</p><p>O rei Artur demorava-se em seus domínios, gozando de grande paz por muitos</p><p>dias. Nesse período, celebrou o casamento de uma sobrinha sua, muito discreta. Seu</p><p>nome era Ysaive de Carahés  mais gentil não se encontraria até Rahés. Deu-a ao rei</p><p>Caradoc de Vannes, que muito se rejubilou, e a desposou sem demora. Havia na corte</p><p>um cavaleiro de nome Eliavrés, que era parente do senescal; mago encantador igual</p><p>não haverá jamais. Amava tanto a bela Ysaive como ninguém poderia amar uma</p><p>mulher mais intensamente.</p><p>Não posso e nem quero ocultar-vos, senhores, o que aconteceu no dia do</p><p>casamento. Quando o rei Caradoc foi deitar-se à noite com a mulher, aquele outro que</p><p>a amava não dormiu. De uma cadela lebrel que capturou, fez uma donzela tal e qual</p><p>Ysaive, e a deitou com o rei. E reteve consigo a amiga, estendendo-se com ela a noite</p><p>toda, com grande alegria e prazer. E é fato que Eliavrés moldou, na noite seguinte,</p><p>dessa segunda vez a partir de uma porca, uma outra donzela de mesmo semblante e</p><p>não menos formosa. Novamente, deitou-a com o rei que cuidava ter a mulher nos</p><p>braços. Na terceira noite fez de novo, por encantamento, que uma jumenta parecesse</p><p>também com a bela dama. Com o rei a deitou no lugar da esposa, e assim ele próprio</p><p>coabitou com sua amiga e conheceu seu corpo. Ela ficou nessa noite grávida de um</p><p>filho; mais tarde será descoberta e punida, assim como há de narrar o conto.</p><p>No sétimo dia, de manhã, o rei Caradoc se despediu do rei Artur, deixando-o em</p><p>grande alegria e contentamento. Separaram-se afetuosamente, levando o rei Caradoc</p><p>sua mulher. Viajou por vários dias até chegar a Vannes, sendo recebido com grande</p><p>honra. Seus homens os festejaram muito, e se deleitaram com sua dama, que era tão</p><p>bela, valorosa, prudente e nascida de tão alta linhagem.</p><p>O rei providenciou para que ela fosse servida com esmero, muito se dedicou a</p><p>tratá-la com carinho. No termo da gestação, ela deu à luz um filho muito bonito. Foi</p><p>grande a felicidade do rei, assim como a de seus barões. Deram-lhe também o nome</p><p>de Caradoc no dia do batismo. O recém-nascido Caradoc era a alegria do rei. Quando</p><p>completou quatro anos, puseram-no a estudar; logo que aprendeu a distinguir as letras</p><p>e entender o que lia, foi mandado ao tio que se maravilhou com ele, pois o donzel era</p><p>de coração gentil e belo corpo.</p><p>Por três anos inteiros após o cerco de Branlant, absteve-se o rei Artur de cingir a</p><p>coroa. Os bons e valentes cavaleiros, que por tão longo tempo tinham estado ociosos,</p><p>certa noite resolveram que na manhã seguinte, sem falta, iriam caçar com arco e</p><p>flecha em companhia do rei, em uma de suas vastas florestas. O rei mandou trazer</p><p>seus belos perdigueiros, seus cães farejadores, sentindo prazer em vê-los correr.</p><p>Durante o dia divertiram-se muito e, quando caiu a noite, tomaram todos o caminho</p><p>de volta.</p><p>O rei seguia atrás, à distância de um arremeso de flecha, solitário e pensativo. Os</p><p>cavaleiros, adiante, iam falando de seus prazeres, amores e aventuras. Como o rei se</p><p>retardava, meu senhor Galvão olhou para trás e viu como ele vinha sozinho. Logo</p><p>deteve seus companheiros, que interromperam os gracejos. O rei forçou a marcha, tão</p><p>cedo os percebeu, e veio usando a espora até se emparelhar com eles. Seu sobrinho</p><p>juntou-se a ele e lhe disse rindo:</p><p>- Sire, não é apropriado que cavalgueis assim a sós na retaguarda, nem que penseis</p><p>em coisa que não seja prazerosa. Pois não pode deixar de incomodar a estes cavaleiros</p><p>ilustres ver que não vos quisestes distrair com eles, como é vosso costume.</p><p>O rei, que era valoroso e sensato, entendeu que o que ele dizia era bom e razoável.</p><p>Pôs o braço esquerdo sobre Ivã filho de Uriano e, continuando a deslocar-se rápido,</p><p>disse-lhe:</p><p>- Senhor cavaleiro, que Deus me assista, vou dizer-vos o que eu estava pensando.</p><p>Permaneci por tempo demasiado longo sem nada fazer que ilustrasse minha proeza,</p><p>boa fortuna, ou minha generosidade, do que me arrependo  tanto mais que se</p><p>passaram assim mais de três anos. Foi pensando nisso que me ocorreu o desejo de</p><p>realizar, no próximo dia de Pentecostes, uma reunião da corte tão brilhante e tão</p><p>condigna que jamais se terá visto tão nobre festejo. Tanto pretendo distribuir do que é</p><p>meu que já não se falará do que dei no passado, senão nos dons que agora irei conferir</p><p>a barões e cavaleiros.</p><p>Galvão foi o primeiro a responder-lhe:</p><p>- Errei em reclamar, belo e caro tio, por estardes imerso em pensamentos, pois esse</p><p>é tão excelente que seria desleal quem quisesse desviar-vos dele.</p><p>O rei então lhe perguntou:</p><p>- Onde recomendais que eu reúna a corte, para que minha gente compareça em</p><p>massa?</p><p>- Sire, em Carduel, em vossas amplas salas; pois fica na fronteira entre Gales e o</p><p>reino da Inglaterra.</p><p>O rei mandou convocar os barões por todo o reino, e notificou todos os cavaleiros</p><p>dos países vizinhos para que cada um viesse com bela comitiva a Carduel no dia de</p><p>Pentecostes. Grande multidão de cavaleiros se ajuntou na data indicada pelo rei;</p><p>muitos vieram mesmo sem ter sido convidados.</p><p>O rei achou seu sobrinho Caradoc tão grande, forte e bravo que já estaria em</p><p>perfeitas condições de portar armas. Na véspera o fez cavaleiro, em</p><p>meio a uma festa</p><p>solene, bela e rica, durante a qual, para honrar ainda mais seu sobrinho, armou junto</p><p>com ele cerca de cinqüenta novos cavaleiros.</p><p>No dia seguinte, o rei, depois de cingir a coroa e ver terminado o serviço da missa,</p><p>retornou sem demora ao palácio seguido de todos, grandes e pequenos, para as</p><p>cerimônias que desejavam realizar como costumavam. O rei tomou assento sobre o</p><p>estrado mais elevado. Caio o senescal saiu de uma câmara do palácio, sem nenhuma</p><p>vestimenta exceto uma fresca túnica de arminho recoberta de um rico pano de seda,</p><p>revelando seu porte alto, belo e gentil. Passando entre os outros, apresentou-se diante</p><p>do estrado do rei empunhando um bastão. Ajoelhou-se com elegância e lhe disse</p><p>cortesmente:</p><p>- Sire, se vos apraz, podeis sem mais tardar pedir a água, porque já está pronta</p><p>vossa refeição.</p><p>- Não o farei, Caio, belo e caro amigo. Não praza a Deus que eu reúna solenemente</p><p>a corte em dia festivo em que trago a coroa na cabeça e que, em um dia assim, seja</p><p>pedida e servida a água antes que se escute alguma estranha novidade, ou que ocorra</p><p>aventura feia ou bela à vista de todos. Por toda minha vida, até aqui, tenho mantido</p><p>este costume.</p><p>Enquanto os dois assim falavam, e os demais continuavam sentados em paz, viram</p><p>cruzar as portas do palácio um cavaleiro muito alto sobre um corcel branco, vestido</p><p>de uma peliça de arminho que chegava a tocar no chão. Tinha na cabeça um capelo</p><p>encimado por um aro de ouro e levava na cinta uma espada muito comprida, cujo</p><p>punho era de ouro fino e o talabarte ostentava um precioso bordado. Veio montado até</p><p>o estrado real e disse cortesmente, falando para que todos ouvissem:</p><p>- Rei, amigo, que Deus que não mente vos dê honra e vida longa.</p><p>- Cavaleiro, Deus vos bendiga.</p><p>- Rei, falou ele, peço-vos um dom.</p><p>- Amigo, descrevei-o antes; conforme o que seja, vós o tereis.</p><p>- Rei, vais sabê-lo com toda antecedência: o que vos peço é a oportunidade de dar</p><p>um golpe de espada, sem fingir, para receber mais tarde um outro em troca.</p><p>- Amigo, o que é isso? Que coisa dizeis?</p><p>- Rei, eu vos afirmo que se existe aqui quem me possa cortar a cabeça com um só</p><p>golpe desta espada, e se eu puder depois recobrar-me, tal homem pode estar seguro de</p><p>que, sem falta, de hoje a um ano exatamente, receberá de volta o golpe, se tiver</p><p>ousadia bastante para esperá-lo.</p><p>Nisso, sem mais dizer, desmontou, desembainhou a espada e a estendeu na direção</p><p>dos presentes, mas não houve ninguém que ousasse aceitá-la. Seria antes de tudo</p><p>insensato quem o fizesse, disseram os bons cavaleiros, de vez que se meteria em</p><p>aventura que não lhe traria renome nem satisfação.</p><p>- Eia! exclamou o cavaleiro, senhores; que é isso? Nada mais fareis sobre o caso?</p><p>Agora podeis ver, rei Artur, que vossa corte não é tão rica quanto se apregoa por aí.</p><p>Não há nela nenhum cavaleiro audaz. Em verdade vos digo que espalharei por toda</p><p>parte notícias sobre vós que não serão nada bonitas.</p><p>Dispunha-se a ir embora, nesse momento, quando Caradoc adiantou-se e lançou ao</p><p>chão seu manto. Pesasse ou agradasse a quem quer que fosse, à vista de todos foi</p><p>pegar a espada, arrancando-a do punho direito do visitante. Vendo seu gesto, o rei</p><p>ficou consternado.</p><p>- Belo sobrinho, disse ele, não seria desonra para vós renunciar a essa proeza, pois</p><p>há aqui muitos cavaleiros que, se quisessem desferir o golpe, iriam sair-se tão bem ou</p><p>melhor que vós.</p><p>Ao ouvir o rei, Caradoc sentiu tanta vergonha que enrubesceu; mas, por ele, não</p><p>cederia em nada. Mal ou bem, desse no que desse, alçou a espada para ferir. O outro</p><p>voltou-se de frente para o rei, baixou a cabeça, estendeu o pescoço. Caradoc feriu tão</p><p>vigorosamente que lhe fez voar a cabeça para o centro da sala  e aquele a segurou</p><p>pelos cabelos com ambas as mãos, como se estivesse totalmente são, e a rejuntou de</p><p>imediato.</p><p>- Caradoc, falou, tu me feriste.</p><p>- É verdade, disse Caio, mas pouco vos afetou. De hoje a um ano, haja o que</p><p>houver, eu não gostaria de estar no lugar deste aqui por todo o ouro do país.</p><p>- Caradoc, falou o cavaleiro, sabei bem que de hoje a um ano, belo e caro amigo,</p><p>voltarei para cá; não deixeis por coisa alguma de encontrar-vos aqui nessa hora.</p><p>Foi-se então, não demorou mais o cavaleiro. O rei continuava muito angustiado e</p><p>muito se queixava; o mesmo se passava com todos os cavaleiros, que pouco quiseram</p><p>comer depois disso, tanto se sentiam perturbados e abatidos. A grandiosa reunião</p><p>encerrou-se tristemente; todos partiram ao mesmo tempo, regressando aos países de</p><p>origem. Antes, porém, o rei mandou divulgar que no ano seguinte a reunião se</p><p>repetiria em Carduel.</p><p>A notícia sobre Caradoc muito cedo chegou ao rei seu pai, como também à rainha</p><p>sua mãe, que se encheram de dor e desespero. Mas, quanto ao donzel, eu vos posso</p><p>dizer que se mostrava tão alegre e jubiloso que não havia no mundo homem vivo que</p><p>percebesse por seu semblante que estaria sentindo algum medo. Pelo contrário, vivia</p><p>em busca de aventuras e altos feitos de cavalaria, até que, transcorrido um ano,</p><p>chegou o dia aprazado. Seu pai não quis comparecer, pois não poderia vê-lo morrer,</p><p>nem tampouco a rainha que o carregara no ventre.</p><p>A corte voltou a reunir-se no palácio em Carduel, no dia de Pentecostes, tão</p><p>numerosa como até então nunca atraíra tanta gente. Nas terras até onde se estendia o</p><p>poder do rei, nenhum gentil-homem preferiu deixar-se ficar em casa e não assistir à</p><p>festa em que o jovem deveria perder a cabeça, à vista do rei e de seus barões. Depois</p><p>dos cortejos magníficos e da missa solene, o rico grupo de barões acompanhou o rei</p><p>de volta ao palácio; mas ele fazia cara triste, como todos os demais. No momento em</p><p>que acabavam de tomar seus lugares, entrou pela porta aquele que trazia o presente</p><p>malsinado. A cavalo, espada à cinta, atravessou a sala decorada de pinturas, chegando</p><p>ao estrado sobre o qual tinha assento o rei, que estava tomado de tristeza. Sem dizer</p><p>palavra, desmontou, sacou e exibiu a espada nua e disse alto para que o rei Artur</p><p>ouvisse:</p><p>- Caradoc, falou ele, onde estás?</p><p>- Estou aqui bem perto, respondeu Caradoc.</p><p>- Adianta-te pois, replicou logo o cavaleiro.</p><p>Caradoc com desenvoltura desatou o manto e, completamente a descoberto,</p><p>colocou-se em posição. O rei o olhava, por demais acabrunhado, mas não foi lento em</p><p>falar.</p><p>- Ah, cavaleiro! disse ele, concedei graça a meu sobrinho, não o mateis. Tereis</p><p>resgate tão rico quanto achardes por bem indicar.</p><p>- Dizei de quanto.</p><p>- Podeis apossar-vos de todos os arneses de vilões e burgueses desta corte.</p><p>Ninguém jamais deu resgate de tamanha monta.</p><p>- Rei, é pouco. Receberei mais?</p><p>- Sim, falou ele, todo o meu tesouro e as baixelas de ouro e prata que se encontram</p><p>neste palácio.</p><p>- Rei Artur, replicou, isso é ninharia. Pois não aceitarei em troca por ele nem todos</p><p>os tesouros que existem nem que algum dia existirão.</p><p>Quando o rei o escutou rompeu em lamentos, e assim também os outros, de todos</p><p>os lados.</p><p>- Cavaleiro, és um perfeito covarde, disse Caradoc, faze prontamente o que deves.</p><p>E o outro estendeu o braço e elevou para o alto a espada e visou o alvo, pronto a</p><p>desferir a cutilada. O rei nesse instante desfaleceu, e a rainha, ao saber das novas, veio</p><p>aos gritos de seus aposentos junto com damas e donzelas. Ao ver a espada nua, sentiu</p><p>todo o sangue refluir. Em tom muito comovente disse ao outro:</p><p>- Espera um instante, cavaleiro; belo e caro senhor não o mates. Ao preço dele</p><p>podes ter como amiga qualquer dama ou rapariga, a que for a mais bela dentre todas</p><p>aqui, ou mesmo todas elas se é o que te agrada.</p><p>- Rainha, dama, ainda é ninharia. Nem por todas as damas do mundo, nem pelas</p><p>raparigas todas que nele existem, estaria disposto a trocar a cabeça dele. Recolhei-vos</p><p>a toda pressa a vosso quarto, minha cara dama, e rezai a Deus por sua alma, para que</p><p>ele a ponha no paraíso.</p><p>A rainha cobriu o rosto e fugiu dali, com as outras atrás,</p><p>em prantos. O cavaleiro</p><p>alçou a espada, mirou para desferir tão tremenda cutilada que a maioria dos da casa</p><p>tombaram desmaiados. Mas ele não tinha intenção de ferir; baixou a espada e pôs a</p><p>mão sobre o jovem.</p><p>- Caradoc, falou, levanta-te. Não te farei agora mais nenhum mal, pois és por</p><p>demais um cavaleiro valente, audaz, confiante e altivo. Mas vem cá, fala comigo em</p><p>particular.</p><p>Levou-o de parte.</p><p>- Tu és meu filho, que Deus me guarde, Caradoc; digo-te a verdade.</p><p>- Antes é certo que mentis deslavadamente, belo e caro amigo como vos</p><p>pretendeis. Diante de todos estes bons cavaleiros, defendo minha mãe em face de vós.</p><p>- Não o farás. Dir-te-ei como foi que aconteceu. Ela, tua mãe, sabe muito bem; não</p><p>te mentirei em nada. Na noite em que ela se casou, quando o quarto foi liberado e seu</p><p>marido quis deitar-se com a mulher como lhe cabia, eu fiz à semelhança dela, a partir</p><p>de uma cadela lebrel, uma jovem igualmente bela; e a deitei ao lado do rei, enquanto</p><p>tua mãe estendia-se a meu lado. De uma porca, na noite seguinte, fabriquei mais uma,</p><p>que docilmente se refestelou junto com ele. Na terceira noite, outrossim, a partir de</p><p>uma jumenta arrumei outra e a coloquei entre seus braços  e a rainha jazeu comigo.</p><p>Nessa noite ela engravidou e te concebeu. Assim foste engendrado.</p><p>- Calai-vos, cavaleiro, vós mentis! Tudo isso é fantasmagoria e sonho. Contra vós</p><p>vindicarei minha mãe, agora mesmo, quanto a essa grave acusação mentirosa, se</p><p>persistirdes em dizer mais.</p><p>O cavaleiro apressadamente virou-lhe as costas e se afastou, e logo todos o viram</p><p>ir-se embora. Nunca houve tão grande júbilo como eles agora manifestavam ao vê-lo</p><p>partir. Imediatamente soaram as trombetas, chamando para a lavagem das mãos; de</p><p>pronto, a água foi trazida e distribuída e o rei e todos os seus cavaleiros tomaram</p><p>assento para a refeição, muito alegres e despreocupados. Ao encerrar-se a reunião da</p><p>corte, o rei deu tão ricos presentes a cavaleiros e barões que todos partiram satisfeitos.</p><p>Caradoc despediu-se do rei Artur, querendo ir ao rei seu pai e à rainha sua mãe.</p><p>Seguiu direto para Vannes onde estava o rei Caradoc, que lhe fez festa e o beijou sem</p><p>parar, mais de cem vezes, tanto carinho tinha por ele.</p><p>- Sire, fazeis bem em beijar-me, falou o jovem, pois não há coisa viva no mundo</p><p>que vos estime mais do que eu; mas não sou vosso filho.</p><p>- Sim, tu és decerto!</p><p>- Não sou.</p><p>- Dizes isso como gracejo?</p><p>- Belo e caro senhor, antes falo a verdade.</p><p>Contou-lhe tudo, palavra por palavra, conforme o outro lhe revelara, explicando</p><p>como sua mãe o tinha desonrado. O rei ficou tão angustiado, irado e doído que suava</p><p>de agonia. Nesse momento, a rainha veio ao encontro do filho para beijá-lo.</p><p>- Dama, falou ele, não vos quero ocultar: não vos amo, e nem deveria.</p><p>- Caro filho, por quê? Dizei-o a mim.</p><p>- Dama, fizestes por merecer.</p><p>O rei virou-se para ela:</p><p>- Fugi daqui!</p><p>E ela saiu precipitadamente e foi fechar-se em seus aposentos, chorando e se</p><p>lamentando em voz alta. Disse o rei, suspirando:</p><p>- Belo e caro amigo, aconselha-me de boa fé, tal como deves. Que farei com a</p><p>rainha? De que maneira me vingarei?</p><p>- Sire, seja quem for meu pai, a rainha é certamente minha mãe; assim não vos</p><p>devo aconselhar a matá-la ou feri-la. Mas metei-a em uma torre e cercai-a de guardas,</p><p>de modo que o outro não tenha mais poder sobre ela. Se acontecer que ela ainda</p><p>venha a ter algum herdeiro, já não se suspeitará que seja de alguém que não vós.</p><p>Na torre mais forte que possuía o rei encerrou a rainha e a fez guardar estritamente.</p><p>O jovem Caradoc não quis demorar-se; despediu-se do rei, deixou-o, e foi ter com o</p><p>rei Artur, seu tio.</p><p>E a rainha foi ficando na torre, com muito deleite e folgança, pois Eliavrés  a</p><p>quem nenhuma fechadura podia barrar  vinha, a todas as horas que queria, para</p><p>falar com ela à vontade. Tão logo o rei saía, lá vinha ele do outro lado. E então havia</p><p>ali tanta alegria que não existia no mundo instrumento musical que não soasse durante</p><p>a noite, e se ouvia cantar lais e doces cantilenas. Tão viva era a claridade espalhada</p><p>pelas velas e tochas ardentes, que toda a gente da cidade vinha a cada noite para ouvir</p><p>a alegria da torre. Os daquele país a chamavam a Torre da Farra.</p><p>Um dia o rei voltava de um de seus castelos onde tinha estado. Um camareiro lhe</p><p>contou sobre a alegria, os sons e o barulho que provinham de lá, em meio aos</p><p>divertimentos. Mas o rei não quis acreditar que a coisa fosse verdadeira, até que ele</p><p>próprio ouviu e verificou. Então enviou ordem urgente a seu filho Caradoc para que</p><p>voltasse, não se detendo por motivo algum. E ele veio o quanto antes. O rei se</p><p>queixou muito a ele, pedindo conselho sobre o que fazer. Ele disse que cedo o</p><p>vingaria devidamente, e assim fez. Tanto espreitou Eliavrés que afinal o capturou e</p><p>conduziu ao rei Caradoc. Este lealmente lhe afiançou que não o mataria, e todavia</p><p>tiraria vingança, da mesma forma como ele antes o havia tratado. E foi assim que</p><p>obrigou Eliavrés a lidar com uma cadela lebrel, quisesse ou não, na primeira noite; na</p><p>seguinte, com uma porca; na terceira, com uma jumenta. Depois, foi de fato</p><p>constatado que ele engendrara na cadela um lebréu que foi conhecido pelo nome de</p><p>Guinolac em todo o país. Na porca, ao que me consta, gerou verdadeiramente um</p><p>porco javali, que fizeram chamar Torten. Na jumenta, um potro baio a que chamaram</p><p>Levagor. Todos esses três eram assim irmãos de Caradoc Briesbras por parte de pai.</p><p>Eliavrés experimentou mágoa e vergonha extraordinárias. Logo que pôde, subiu à</p><p>torre para falar com sua amiga. A rainha, que absolutamente não o odiava, disse que</p><p>não faria amor com ele até que se vingasse do filho que o traíra e tratara tão</p><p>desonrosamente.</p><p>- Dama, falou ele, se não vos pesa, vou apressar-me a tomar dele uma vingança</p><p>requintada, pois bem vos digo em verdade que o farei viver sem nada valer! Uma</p><p>serpente horrível, negra, felã e maléfica vos deixarei, metida naquele armário. Logo</p><p>que ele vier aqui em cima, não tardeis a agir; dizei-lhe logo que vá até o armário e vos</p><p>traga vosso espelho. Assim que enfiar a mão dentro do armário, a serpente se</p><p>enroscará em seu braço em volta do cotovelo; sua carne se tornará negra e morta, pois</p><p>todo o sangue será sugado, com o que não poderá viver nem sequer dois anos.</p><p>Foi à procura da serpente, que afinal meteu dentro do armário, e depois foi embora</p><p>apressadamente. Não demorou muito que Caradoc viesse à torre ver sua mãe, que na</p><p>ocasião segurava um pente e estava sentada sobre uma cama. Ao vê-lo, a dama lhe</p><p>disse que fosse ao armário e lhe trouxesse seu espelho. E ele foi ligeiro. A serpente de</p><p>natureza perversa, quando Caradoc introduziu a mão, lançou-se de imediato contra</p><p>ele, enlaçando-se em torno de seu braço. Ele pulou para trás no meio do quarto,</p><p>clamando em altos brados. A rainha lhe disse secamente que agora ele tinha o que</p><p>merecia pela humilhação que impusera ao pai.</p><p>- Por tua causa fui posta em prisão; ora terás a retribuição devida. Vai-te, que te</p><p>digo francamente que não viverás senão dois anos. Confessa-te e arrepende-te dos</p><p>males que fizeste a teu pai e a mim, que sou tua mãe.</p><p>Tendo Caradoc ouvido o que ela disse, que ele viveria por tão pouco tempo, sem</p><p>mais dizer desceu da torre. Confiou-se e entregou-se a Nosso Senhor e pôs-se a</p><p>caminho completamente só, nem homem nem mulher a acompanhá-lo. Através de</p><p>florestas e campos cultivados foi procurando algum eremitério para fazer sua</p><p>confissão. Não faltavam retiros nem abadias na Bretanha onde homens de bem</p><p>levavam vida piedosa; com algum deles Caradoc queria falar e, chorando, pedir</p><p>perdão do grande dano e da ofensa que cometera contra o pai e a mãe; por tudo isso já</p><p>sofria cruel penitência.</p><p>Tais novas sem demora chegaram aos ouvidos do rei Artur seu tio, que demonstrou</p><p>um profundo pesar, assim como todos os seus bons cavaleiros que gostavam dele</p><p>imensamente. Porém, sem dúvida,</p><p>era Cador da Cornualha aquele que acima de todos</p><p>os demais lhe tinha afeto, pois eram companheiros de armas. Pegou um bastão de um</p><p>pé e meio, tosou os cabelos, e saiu descalço em um traje de lã. Jamais, disse ele,</p><p>comeria ou dormiria mais de uma noite em uma mesma cidade até que encontrasse</p><p>Caradoc de quem tanto gostava. Foi seguindo à sua procura por muitos países, até</p><p>que, numa tarde, veio hospedar-se em uma abadia situada em um prado. Dentro dela</p><p>encontrou Caradoc, e chorou de contentamento e de piedade. Alegrou-se muito ao vê-</p><p>lo, mas ele piorara tanto que mal se mantinha de pé.</p><p>- Companheiro, se podeis suportar o golpe, falou Cador, matarei esta serpente que</p><p>vos faz emagrecer e definhar.</p><p>- Amigo, respondeu ele, de jeito nenhum eu agüentaria; eu vos garanto que a</p><p>serpente, ao sofrer o mais leve toque, no mesmo instante faria partir-se meu coração.</p><p>Passaram ali a noite e no dia seguinte, pela manhã, deixaram a abadia. Tomaram o</p><p>caminho mais curto para Vannes e viajaram até chegar lá. Cador entrou na cidade,</p><p>após deixar o companheiro em um um cercado pertencente à morada de um vassalo.</p><p>Subiu à torre em que estava a rainha. Quando ela o viu, caiu desmaiada sobre um</p><p>leito. Cador a tomou em seus braços e a reergueu com cuidado. Quando a rainha</p><p>voltou a si e viu Cador a ampará-la, quis beijá-lo, mas ele não fez caso e a repreendeu</p><p>com desmesura:</p><p>- Caradoc está à morte, falou ele, por grande pecado vosso e grande crime.</p><p>- Belo e caro amigo, o que dizeis é verdade. Não tenho mais forças nem posso</p><p>mais; adoeci por causa do mal dele.</p><p>Com essas palavras, recaiu no desmaio. Cador a susteve nos braços, até que ela se</p><p>restabelecesse, e depois lhe perguntou:</p><p>- Rainha, dama, não haveria no mundo homem, nem mulher, nem remédio, nem</p><p>outra coisa qualquer que o curasse ou lhe fizesse algum bem?</p><p>- Amanhã o sabereis, respondeu ela, desde que volteis a procurar-me.</p><p>Nisso, Cador a deixou e se retirou para junto de Caradoc. À noite, Eliavrés voltou,</p><p>como era sempre seu costume, para visitar sua amiga no alto da torre.</p><p>- Amigo, ela falou, em nada no mundo consigo achar alívio ou conforto. Aquele</p><p>que é meu filho e também vosso perece por vosso ardil e traição; cometemos uma</p><p>enorme falta, toda a gente agora nos execra porque ele enlanguece e morre dessa</p><p>forma.</p><p>- Dama, eu o fiz dominado pela ira.</p><p>- Ora dizei-me, belo e caro amigo, se nada mais lhe poderá valer.</p><p>- Sim, minha dama; mas, a meu ver, ninguém neste mundo lhe daria o remédio que</p><p>o curaria.</p><p>- Belo e caro amigo, explicai-me.</p><p>- Dama, se junto a si ele encontrasse uma donzela tão nobre quanto ele e</p><p>igualmente bela, e ela o amasse tão lealmente que fizesse tudo que ele rogasse, essa o</p><p>poderia curar. Cumpriria que ele fizesse encher duas cubas, uma com leite e a outra</p><p>com o mais fino vinagre que pudesse achar. Faria a jovem entrar no leite e ele próprio</p><p>no vinagre. Ela mostraria o seio sobre a borda da cuba à serpente felã  e, se a</p><p>donzela então a conjurasse, por Deus que não falha nem engana, a largar Caradoc</p><p>imediatamente, a serpente o deixaria de pronto, pois não poderia suportar o vinagre.</p><p>Farejaria a doçura do leite e o odor da carne alva. Abandonando de uma vez o braço</p><p>dele, seco e descorado como está, em que nada resta senão nervos e ossos, saltaria</p><p>para o seio. Assim poderia ainda sarar aquele que o diabo faz enlanguecer.</p><p>A rainha não se esqueceu do remédio que ele indicou. Cador voltou no dia seguinte</p><p>de manhã bem cedo para falar-lhe, e ela lhe contou como medicar Caradoc para que</p><p>ele se recuperasse de fato e em definitivo. Com isso, Cador a deixou para voltar na</p><p>mesma hora a Caradoc; levou-o consigo para seu país.</p><p>Sei que Cador tinha uma irmã, bela e valorosa ao extremo, que amava tanto a</p><p>Caradoc como por coisa alguma alguém poderia ter amor maior. Ela fora a uma igreja</p><p>clamar a Deus por seu amigo, para que tivesse piedade dele e lhe desse vida e saúde; e</p><p>não esqueceu de pedir por seu irmão. A jovem tinha o nome de Guignier. Cador</p><p>entrou na capela e, logo que a irmã o viu, correu a ele, beijou-o e disse-lhe assim:</p><p>- Belo e caro amigo, belo e doce irmão, pela fé que deveis a mim e a minha mãe,</p><p>ouvistes notícias recentes de Caradoc? Dizei-me todas elas!</p><p>- Por que perguntais, minha doce irmã? Já não o amais em vosso coração.</p><p>- Irmão, sabei que neste mundo nada há, afora vós, que eu tanto ame. Se agora</p><p>houvesse aqui um fogo ardente, eu não hesitaria covardemente em entrar junto com</p><p>ele; até, pelo contrário, nada me seria tão grato.</p><p>Cador notou bem o que sua irmã dissera.</p><p>- Bela, falou, que Deus me ajude, agora se verá se o amais.</p><p>Então lhe revelou como ela o curaria se consentisse em sofrer por ele.</p><p>- Belo e caro irmão, mandai encher as cubas e temperar os banhos; estou</p><p>inteiramente pronta para meter-me dentro.</p><p>Arranjaram cubas, em que foram preparados os banhos, sendo então dispostas</p><p>como Cador indicou. Cada um dos dois penetrou na sua. Prontamente a jovem apoiou</p><p>sobre a beirada o seio direito, que era muito branco, belo e tenro, e disse:</p><p>- Serpente, sem mais esperar deixa Caradoc! Eu te comando da parte de Deus, rei</p><p>todo-poderoso, que fez tudo quanto há no alto e cá em baixo!</p><p>A serpente não podia agüentar-se mais por causa do vinagre que a molestava;</p><p>quando sentiu o aroma do leite, logo desenroscou-se e desfez o garrote em torno do</p><p>braço. Toda esticada, lançou-se logo à carne branca que lhe era estendida. Mas Cador,</p><p>que se postara perto deles, segurava na mão a espada nua. Cuidando ferir em cheio a</p><p>serpente, acabou ferindo também sua irmã, cortando o bico do seio por sobre a borda</p><p>da cuba. A serpente caiu por terra entre as cubas, com o mamilo entre os dentes. E</p><p>Cador não foi lento em prontamente despedaçá-la toda, com isso vingando seu</p><p>companheiro.</p><p>Depois fez com que a irmã fosse tratada com muito cuidado e gentileza. Caradoc</p><p>banhou-se e repousou até a recuperação do braço e a cura da enfermidade. O braço</p><p>melhorou muito e a dor foi-se aliviando, mas ficou sempre um inchaço.</p><p>Com o passar do tempo, aconteceu que o rei Caradoc veio a falecer. Como é de</p><p>praxe, o reino passou a seu filho Caradoc que, desde então, o manteve em paz. Tomou</p><p>como mulher sua amiga Guignier, a irmã de Cador, a nobre dama. Fez-se coroar em</p><p>Vannes e a fez consagrar como sua rainha, pois a amava sobre todas as coisas. Ouso</p><p>dizer que Caradoc nunca conseguiu curar-se tão completamente do braço que este não</p><p>ficasse mais inchado do que o outro. Por isso recebeu o nome de Caradoc Briesbras.</p><p>Reinou sempre com grande benevolência, foi muito valente, generoso e cortês.</p><p>Um dia, o novo rei Caradoc foi caçar no bosque, levando várias matilhas de cães</p><p>para traquejar cervos e javalis. Logo os caçadores os soltaram no rastro de um cervo</p><p>já bem crescido que avistaram. Ao soarem as cornetas, o rei precipitou-se sozinho por</p><p>uma trilha enviezada. Mas, de súbito, uma tal tormenta se armou, com chuva tão forte,</p><p>que o rei se refugiou sob um grande carvalho de espessa folhagem que se inclinava</p><p>para o solo. Ali ficou para abrigar-se. Veio-lhe então a lembrança de como a rainha</p><p>perdera a extremidade do seio. Enquanto estava imerso nesse pensamento, viu uma</p><p>grande claridade vindo fulgurante da floresta em sua direção, e ouviu um gorjeio</p><p>lindíssimo de muitas espécies de pássaros que vinham dentro da claridade. Assim</p><p>como na entrada do verão, cada pássaro cantava segundo sua natureza, com som alto e</p><p>claro e muito docemente. O rei observou atentamente a claridade que se vinha</p><p>aproximando. Mantendo-se quieto, espiou e percebeu em meio à claridade um</p><p>cavaleiro alto que chegava, conduzindo uma donzela sobre uma mula toda branca.</p><p>Acima dele, iam os pássaros, saltitando de galho em galho e cantando cantos tão</p><p>doces como ninguém já escutou. O cavaleiro passou diante de Caradoc, à distância do</p><p>comprimento de uma espada, e o rei disse sem demora:</p><p>- Senhor cavaleiro, Deus vos salve.</p><p>Ele não disse palavra,</p><p>nem em voz alta nem baixa, antes passou além rapidamente.</p><p>O rei de imediato seguiu veloz atrás dele, picando esporas. O outro ia adiante em</p><p>meio à claridade e aos doces sons, e o rei atrás, na chuva e no vento incessantes, na</p><p>esperança de alcançá-lo. Mas por mais que fustigasse e esporeasse não conseguia</p><p>penetrar na claridade. Por umas boas três léguas, quase quatro, o rei o perseguiu</p><p>esporeando através da floresta, desabaladamente, sempre na chuva e no vento,</p><p>enquanto o outro continuava alegremente na claridade e nos doces trinados dos</p><p>pássaros canoros. Afinal o cavaleiro saiu fora da floresta, com o rei sem parar em seu</p><p>encalço. Entraram por uma longa passagem pavimentada, larga e elevada, batida dos</p><p>dois lados por grande massa de água negra, profunda e ruidosa. Na extremidade da</p><p>passagem, havia uma grande sala, toda assoalhada da madeira mais bem trabalhada</p><p>que já existiu. No interior havia uma centena de cavaleiros sentados em volta de</p><p>tabuleiros, jogando xadrez, gamão e outros jogos prazerosos.</p><p>O cavaleiro desmontou e, sem perda de tempo, veio sorridente ao encontro do rei,</p><p>pois o estimava e queria recebê-lo com muita honra.</p><p>- Caradoc, falou, sede bem-vindo.</p><p>- Senhor, tende boa sorte, falou o rei. Muito me fatigastes.</p><p>- Caradoc, sire, bem o sei, mas queria atrair-vos até aqui; por isso não falei</p><p>convosco, pois de outra forma não lograria meu intento.</p><p>Dois valetes saíram para segurar seus estribos.</p><p>- Caradoc, falou o cavaleiro, desmontai.</p><p>- Cavaleiro, já que sois vós a comandar, direis primeiro vosso nome.</p><p>- Por certo o sabereis agora mesmo, belo e caro senhor; meus vizinhos me chamam</p><p>Aalardin del Lac.</p><p>- Agora desmontarei com prazer, pois sois o cavaleiro que eu mais desejava ver.</p><p>Caradoc desmontou e o cavaleiro o fez sentar-se; dois valetes lhe removeram as</p><p>esporas e os trajes de caça. Aalardin fez então que o vestissem muito ricamente, e</p><p>depois o tomou pela mão e o levou aos quartos. Muito se esforçava para lhe fazer</p><p>honra. Lá havia uma fartura de damas e donzelas de grande beleza. Quando ele</p><p>entrou, uma por uma foi-se erguendo e dizendo:</p><p>- Caradoc, bem-vindo.</p><p>E ele respondia educadamente a cada uma, como devia. Havia uma ilustre dama,</p><p>bela à maravilha, vestida com um manto de seda vermelha forrada de arminho.</p><p>Aproximou-se de Caradoc e o abraçou e beijou, dizendo com doçura:</p><p>- Sire, sede bem-vindo.</p><p>- Dama, que o verdadeiro Rei Todo-Poderoso vos dê grande alegria e grande</p><p>honra.</p><p>Sentou-se ao lado da dama, sobre um precioso estofo colorido de seda sarjada.</p><p>- Caradoc, ela perguntou, belo amigo, como está a rainha Guignier? Como vai seu</p><p>seio? É sabido que por vós perdeu uma pequena parte dele.</p><p>- Doce dama, dissestes a verdade; ela fez muito por mim, como amiga leal. Por</p><p>todos os dias de minha vida eu a amarei sobre todas as coisas.</p><p>- Caradoc, sei muito bem que a amais, e assim deveis fazer, pois ela é de alta</p><p>estirpe e de boa índole.</p><p>Conversaram e se distraíram até que começou a anoitecer e Aalardin voltou para</p><p>perto dele; trazia um cavaleiro pela mão.</p><p>- Caradoc, falou, erguei-vos; vossa refeição está pronta.</p><p>Tomou-o pela mão e o reconduziu à grande sala, que estava cheia de cavaleiros e</p><p>outras gentes. O repasto foi saboroso e refinado, comeram a gosto; o dono da casa os</p><p>fez servir ricamente. Quando acabaram de comer, os leitos foram preparados e o rei</p><p>Caradoc deitou-se, fatigado e exausto como estava, e dormiu até o dia seguinte. Assim</p><p>que viu despontar o dia, vestiu-se, calçou-se e foi despedir-se. Dentro em pouco,</p><p>Aalardin lhe disse:</p><p>- Caradoc, ficai certo de que não há deleite nem riqueza no mundo que aqui não</p><p>exista em abundância, e tudo isso está à vossa disposição. Há magníficos corcéis, cães</p><p>de caça e belos galgos. Há toda espécie de pássaros de esplêndida plumagem. Tomai</p><p>tanto quanto vos agradar, pois isso me honraria.</p><p>Mandou trazer seu escudo; era de fino ouro atravessado por uma banda azul, sendo</p><p>a tira de um caro estofo azulado.</p><p>- Caradoc, tereis este escudo. Jamais encontrareis artesão que possa reproduzir a</p><p>bossa que lhe adorna o centro; ela tem uma propriedade que vos deve agradar, pois,</p><p>assim como o ouro vale mais do que a prata, a meu ver vale mais ainda o ouro da</p><p>bossa deste escudo, de vez que possui uma grande virtude: se um cavaleiro tiver o</p><p>nariz decepado pela metade, se então puser ali este ouro em igual porção, este se</p><p>prenderá ao local de imediato. Se vos apraz, dar-vos-ei o escudo.</p><p>- Levarei a bossa, respondeu ele, e vos rendo muitíssimas graças.</p><p>- Caradoc, replicou Aalardin, dizeis bem; sei perfeitamente para que vos servirá.</p><p>Fez com que a bossa fosse prontamente arrancada e a entregou a ele. Em seguida,</p><p>Caradoc se despediu e retornou à sua gente, que muito se lamentava porque o dava</p><p>por perdido. A rainha ficou muito contente; ele a tomou por seu manto de arminho e a</p><p>levou para um quarto.</p><p>- Dama, falou, mostrai-me o seio em que fostes ferida.</p><p>E ela o mostrou alegremente. Caradoc contemplou o seio e então, sem tardar,</p><p>pegou a bossa pela ponta e com muita delicadeza e suavidade a aplicou sobre a chaga</p><p>no seio. À carne que era tenra e bela, o ouro se ajustou imediatamente e aquele seio</p><p>assumiu todo o mesmo feitio do outro. Ao ver isso, o rei Caradoc sentiu imenso júbilo</p><p>em seu coração.</p><p>- Dama, enquanto ninguém souber que tendes um mamilo de ouro, saberei eu, bela</p><p>amiga, que não cometestes nenhuma falta em relação a mim. Mas uma coisa vos digo</p><p>em verdade: se alguém, além de nós dois, ficar sabendo, meu coração vos odiará para</p><p>sempre, pois que então teríeis transgredido meu comando e minha vontade expressa.</p><p>- Belo senhor, por Deus, dizei-me, eu vos rogo de fé leal, como me guardarei para</p><p>que tal não suceda?</p><p>- Dama, respondeu ele, eu vos direi. Envolvereis o peito em uma faixa de vossa</p><p>própria feitura; atentareis para que, a nenhum pretexto, alguma aia ou serviçal que</p><p>tenhais, ou alguma donzela, vos veja ocupada com a faixa, nem ao vos deitar nem ao</p><p>vos levantar. À noite, eu a desenrolarei de vosso corpo, por grande amor e por prazer,</p><p>e a reporei de manhã, com muita fineza e doçura. A rainha lhe agradeceu.</p><p>Agora voltaremos a falar do rei Artur, que enviou mensagem a Caradoc, mandando</p><p>que viesse sem falta à sua presença e trouxesse consigo a rainha. E ele assim fez</p><p>incontinenti. O bom e cortês rei Artur havia convocado, por todo o seu reino, os</p><p>cavaleiros e barões para que acorressem a ele na festa de Pentecostes. A mais alta</p><p>cavalaria juntou-se nesse dia em Caerleon. Depois da grande procissão e da missa</p><p>solene, foi o gentil rei tomar assento no alto do estrado principal, no salão repleto de</p><p>cavaleiros, raparigas e damas prendadas e belas. Saindo sem manto de um quarto,</p><p>Caio veio apresentar-se diante do rei, e assim se dirigiu a ele:</p><p>- Sire, sire, Deus me ajude, farei soar as trombetas para o lava-mãos, se vos apraz,</p><p>pois tudo está pronto para vosso banquete.</p><p>- Não o fareis, Caio, belo e caro amigo; não faleis já de passar a água. Conheceis</p><p>de há muito meu costume: nunca me ocorreu  e assim não se dará agora, se estiver</p><p>em meu poder  começar a comer em assembléia da corte antes que visse acontecer</p><p>estranha maravilha ou aventura.</p><p>Mal dissera isso, entrou na sala precipitadamente sobre um grande cavalo um</p><p>cavaleiro de espada à cinta, a cabeça descoberta. Com muita riqueza e elegância,</p><p>vestia-se de escarlate de tintura sanguínea. Pendurado ao pescoço, levava um corno de</p><p>marfim branco, com bandas douradas incrustadas de pedras preciosas de alto preço e</p><p>virtude. Ao chegar diante do rei, desmontou, e disse para que todos os presentes</p><p>ouvissem:</p><p>- Artur, sire, eu vos presenteio este corno, cujo nome é Bonec, de rico ouro e da</p><p>melhor fabricação. Mas é ainda mais precioso por outra coisa. Digo-vos deveras,</p><p>podeis crer-me: fazei-o encher de água da fonte, ou de outra água que seja doce e</p><p>salutar; logo se transmutará no melhor e mais fino vinho que</p><p>jamais se viu no mundo,</p><p>e todos que aqui estão poderão beber por sua vez, e todos terão vinho</p><p>incessantemente.</p><p>- Por aquele Senhor que não mente, falou Caio, eis aqui um belíssimo presente!</p><p>- Rei Artur, interpôs o cavaleiro, sabeis o que mais, belo e caro senhor? Nenhum</p><p>cavaleiro nele beberá, se sua amiga o tiver traído  ou sua mulher, igualmente </p><p>sem que o vinho se derrame sobre ele.</p><p>- Olá! exclamou Caio o senescal, assim me ajude Deus, dom vassalo; isso estraga</p><p>vosso presente!</p><p>O rei, diante de toda sua gente, mandou encher o corno de água da fonte. A rainha</p><p>Genevra não conseguiu conter-se que nesse momento não dissesse ao rei:</p><p>- Belo e caro senhor, não bebais nada, pela fé que me deveis. Seríeis enfeitiçado,</p><p>pois isso está ligado a algum encantamento.</p><p>O rei não foi lento em responder, dizendo que o fará assim mesmo. E a rainha</p><p>suspirou, depois disse na frente de todos os barões:</p><p>- Se jamais dirigi oração ou súplica a Nosso Senhor que lhe agradasse e o tornasse</p><p>propício, agora lhe peço que sejais molhado se tentardes beber, sire, contra meu</p><p>desejo.</p><p>Ditas essas palavras, quis o rei beber, mas o vinho lhe respingou em cima. E Caio</p><p>lhe disse, todo sorridente:</p><p>- Sire, sire, vai de mal a pior!</p><p>O rei sentiu vergonha e se inflamou, respondendo:</p><p>- Caio, belo amigo, parece-me que assim é. Para que eu não seja o único a provar</p><p>desta poção, por aquela fé que me deveis, tomai aqui, bebei em seguida a mim.</p><p>- Sire, pela fé que vos devo, se não temesse irritar-vos, por coisa nenhuma eu</p><p>experimentaria.</p><p>Entrementes o rei lhe estendeu o corno e ele muito aborrecido o segurou. Tentou</p><p>beber mas fracassou, porque o vinho esguichou sobre ele. O rei, regozijando-se, lhe</p><p>disse de pronto:</p><p>- Senescal, não vos enojeis de fazer-me companhia.</p><p>Retomando o corno, passou-o a Yonet, dizendo-lhe em tom firme:</p><p>- Ao rei Caradoc agora! E dize-lhe que eu ordeno que ele beba, que não deixe de</p><p>fazê-lo.</p><p>Yonet pegou o corno e andou direto até Caradoc, fazendo-lhe a entrega; transmitiu-</p><p>lhe cortesmente tudo o que o rei lhe mandava. Ele segurou o corno, olhou para</p><p>Guignier sua mulher, que se mantinha à parte.</p><p>- Senhor, falou ela, não tenhais receio; bebei com toda confiança.</p><p>E o rei bebeu tão limpamente que não derramou uma gota sequer.</p><p>- Guignier, ele exclamou, graças a vós!</p><p>E se inclinou docemente, acrescentando:</p><p>- Muito gentilmente me servistes, pois, antes de vós, nenhuma dama proporcionou</p><p>jamais a seu marido uma tão grande honra.</p><p>Depois disso não houve cavaleiro no palácio que não bebesse do corno. Quer lhes</p><p>agradasse ou pesasse, não houve um que não se molhasse. Em sua maioria ficaram</p><p>muito agastados. Tão somente Caradoc ficou de fora, pois não se encharcou como</p><p>eles. As damas tiveram tal inveja da rainha Guignier, e a encararam com tanto ódio</p><p>por ter dito "com toda confiança", que passaram a detestá-la mortalmente.</p><p>Soaram então as trombetas e foi trazida e distribuída a água. O rei e todos os</p><p>cavaleiros sentaram-se em seguida para a refeição. Não quero demorar-me aqui a</p><p>enumerar e descrever os pratos. Mas, sem mentira, a corte durou oito dias e, no</p><p>momento de encerrar-se, o rei deu tão ricos dons aos cavaleiros e barões que todos</p><p>saíram satisfeitos. Ele permaneceu lá com os de sua casa, retendo também Caradoc.</p><p>Este enviou sua mulher Guignier de volta a sua terra, pos bem sabia que a rainha</p><p>Genevra a odiava. Sucedeu que assim se detiveram, por muitos dias, em tranqüilo</p><p>repouso, o rei Artur e sua alegre companhia que era tão reputada pelo mundo. Tendo</p><p>os de fora partido, apenas com os seus, como vos dizia, o rei Artur acabou passando o</p><p>inverno todo.</p><p>VI</p><p>O Juramento Ambíguo de Isolda</p><p>Em Tintagel, à frente da torre, o rei Marcos desmontou e entrou no castelo.</p><p>Ninguém soube da chegada nem percebeu sua presença. Penetrou no quarto, com a</p><p>espada à cinta. Isolda veio em sua direção, tomou-lhe a espada, depois sentou-se aos</p><p>pés do rei. Este a pegou pela mão e a fez erguer-se. A rainha inclinou-se e, em</p><p>seguida, voltou os olhos para seu rosto. Vendo-lhe a expressão dura e ameaçadora,</p><p>percebeu que ele estava perturbado ao extremo; e reparou que chegara sem escolta.</p><p>- Infeliz de mim, meu amigo foi descoberto, meu marido o prendeu!</p><p>Isso disse ela baixinho, entre os dentes. O sangue não tardou a afluir à face, sentiu</p><p>gelar o coração no peito; diante do rei caiu para trás, desmaiou, perdeu a cor.</p><p>Tomando-a nos braços, o rei a abraçou e beijou, pensando que alguma doença a</p><p>afligia. Quando ela voltou a si, ele perguntou:</p><p>- Minha cara amiga, que tens?</p><p>- Senhor, tenho medo.</p><p>- Não temas.</p><p>Ouvindo como ele a confortava, sua cor voltou, foi recobrando o ânimo. Agora</p><p>sentia-se tranqüila, e dirigiu-se gentilmente ao rei:</p><p>- Senhor, vejo por teu aspecto que teus ajudantes de caça te contrariaram. Não te</p><p>deves aborrecer por causa de uma caçada!</p><p>Ouvindo isso, o rei sorriu e a abraçou. Falou-lhe então:</p><p>- Amiga, tenho comigo, desde muito tempo, três felões que reprovam minha</p><p>clemência. Se desde logo não os desminto, rechaçando-os para fora de minha terra, os</p><p>traidores não temerão mais minha autoridade. Eles me experimentaram bastante e eu</p><p>lhes consenti em demasia; no que dizem nada mais há senão fingimento. Por causa de</p><p>suas falas, por causa de suas mentiras, afastei de mim meu sobrinho. Não tenho mais</p><p>interesse nas barganhas deles; em breve Tristão voltará e me vingará dos três felões:</p><p>ainda vão ser enforcados por ele.</p><p>A rainha entendeu suas palavras. Teria respondido em voz alta, mas não ousava.</p><p>Foi prudente, acalmou-se e disse consigo mesma:</p><p>- Deus operou um milagre, fazendo com que meu marido se enfurecesse contra os</p><p>que levantaram a acusação. Peço a Deus que eles sejam cobertos de vergonha.</p><p>Disse-o baixinho, para que ninguém ouvisse. A bela Isolda, que sabia como falar,</p><p>disse simplesmente ao rei:</p><p>- Sire, que mal disseram de mim? Cada um pode dizer o que pensa. Afora vós, não</p><p>tenho quem me defenda. Por isso eles vão buscando meu mal. Tenham eles a pior</p><p>maldição de Deus, nosso pai espiritual! Já tantas vezes me deixaram arrepiada de</p><p>medo!</p><p>- Dama, falou o rei, ouve-me agora: três dos meus barões mais prezados acabam de</p><p>deixar-me, por despeito.</p><p>- Senhor, por quê? por qual razão?</p><p>- Espalham censuras contra ti.</p><p>- Senhor, mas por quê?</p><p>- Eu te direi, disse o rei: não te justificaste quanto a Tristão.</p><p>- Estou pronta a fazê-lo!</p><p>- E quando o farás? ainda hoje?</p><p>- Tu me concedes um prazo curto.</p><p>- Mas longo o bastante.</p><p>- Senhor, em nome de Deus, ouve-me, aconselha-me. Que querem eles? É</p><p>espantoso que não me deixem em paz uma hora sequer. Que Nosso Senhor preserve</p><p>meu corpo, não me prestarei por eles a nenhuma justificação, exceto nas condições</p><p>que vou descrever. Se lhes fizesse um juramento em tua corte, senhor, à vista de tua</p><p>gente, em no máximo três dias viriam reclamar que precisariam de alguma outra</p><p>forma de comprovação. Rei, não tenho família neste país que, em minha defesa, possa</p><p>querelar ou rebelar-se. Mas está bem para mim, não faço caso dos insultos deles. Quer</p><p>exijam meu juramento, quer prefiram um juízo legal, não encontrarão forma de prova</p><p>tão difícil que eu não enfrente  basta que indiquem a data. No dia aprazado farei</p><p>com que estejam no local o rei Artur e seus homens. Se for inocentada perante ele, e</p><p>ainda houver depois quem queira caluniar-me, aqueles que testemunharam os</p><p>procedimentos virão em minha defesa, seja o caluniador cornualhês ou saxão. Eis</p><p>porque me agradaria que Artur e os seus estivessem presentes e vissem com seus</p><p>próprios olhos minha justificação. Se ali estiverem o rei Artur, Galvão seu sobrinho, o</p><p>mais cortês dos homens, Girflet e Caio o senescal, e mais a centena de vassalos que</p><p>tem o rei, não mentirão quanto a nada que ouvirem e se baterão contra as calúnias.</p><p>Rei, é por isso que é bom que meus direitos sejam vindicados diante deles.</p><p>duzentos anos depois, Guillaume de</p><p>Malmesbury, na sua Gesta Regum Anglorum, de 1125, escreve que o romano</p><p>2 Em uma prestigiosa versão inglesa, The Weddynge of Sir Gawen and Dame Ragnell, é Galvão que se</p><p>casa para salvar o rei, seu tio. Ainda mais popular é a versão incluída por Chaucer em The</p><p>Canterbury Tales.</p><p>Ambrosius Aurelianus, sucessor de Vortigern, apelou para "o valente guerreiro</p><p>Artur", vencedor da batalha de Badon, para ajudar na expulsão dos anglos e saxões.</p><p>É aí, no século XII, que entra em cena o período verdadeiramente histórico das</p><p>narrativas em torno do rei Artur, inaugurado com a já mencionada Historia Regum</p><p>Britanniae e com a Vita Merlini, ambas de Geoffrey de Monmouth, que inventou ou</p><p>atualizou outras situações e personagens fabulosas, como a ilha de Avalon, Uter</p><p>Pendragão, Genevra, Merlim e Morgana, que interferiram no imaginário medieval e</p><p>acabaram eclipsando a matéria narrativa dos outros ciclos. A partir das estórias e</p><p>aventuras atribuídas ao rei Artur e à sua corte, rompe-se o limite entre a lenda e a</p><p>literatura, misturando-se o maravilhoso cristão com as emoções de um cavalheirismo</p><p>cortesão, responsável pela melhor literatura da época.</p><p>O exame de todo esse material de origem lendária, proveniente tanto das narrativas</p><p>épicas (principalmente de Homero e Virgílio) como dos contos e "romances" de</p><p>cavalaria, e, também, a leitura crítica das narrativas que se publicaram a partir das</p><p>coletâneas de Boccacio e Chaucer põem à disposição do estudioso um riquíssimo</p><p>universo de temas e de idéias que constituem tanto o ponto de chegada do imaginário</p><p>antigo, como o ponto de partida para muitas das altas especulações no pensamento e</p><p>na imaginação do homem ocidental.</p><p>Expressa em línguas que mal acabavam de formar-se, que não haviam ainda</p><p>adquirido a maleabilidade sintática e a beleza estilística só mais tarde alcançadas,</p><p>essas narrativa (estórias, lendas, sagas, gestas, contos e "romances") constituem um</p><p>corpus especial para a ciência da literatura — a Poética, no sentido de estudo ou</p><p>teoria geral da literatura, tal como este termo vem sendo mais usado na atualidade,</p><p>abrangendo, nesta acepção, o estudo de todos os gêneros, não somente o da poesia.</p><p>Sem a leveza dos textos modernos, as narrativas daquela pré-história das lendas em</p><p>torno do rei Artur, a partir do latim, eram mesmo um aglomerado de episódios que se</p><p>deixavam alinhavar entre a realidade quase mítica e a imaginação do cronista,</p><p>interessado mais em fazer uma história mais fabulosa que real. A imaginação estava</p><p>verticalmente presa ao símbolo, ao modelo hagiográfico e cristão e, portanto, distante</p><p>da horizontalidade do signo: era mais imitativa que criadora. Mas, com o tempo, foi-</p><p>se soltando, ficando mais humana, criando personagens religiosas mas principalmente</p><p>humanas, como Genevra, Lancelote, Isolda, Persival, Galvão e o próprio rei Artur</p><p>que, a despeito de suas relações com Merlim e Morgana, era um homem que atuava</p><p>no nível dos direitos humanos.</p><p>As aventuras de um novo cavaleiro</p><p>ANTONIO L. FURTADO é um autêntico cavaleiro arturiano. Não importa se Galaad</p><p>ou D. Quixote: a linhagem e a pureza de intenções na demanda do melhor são as</p><p>mesmas. Professor titular no Departamento de Informática da PUC-Rio, com</p><p>doutorado em Ciência da Computação na Universidade de Toronto e trabalhando com</p><p>sistemas de informação e análise de textos — contos principalmente — , ele tem tudo</p><p>para ser um cientista fechado na sua lógica cibernética. No entanto, pertence por</p><p>direito e aventuras ao seleto grupo da Sociedade Internacional Arturiana; publica</p><p>artigos na revista Arthuriana, da Southern Methodist University; participa de um site</p><p>para discutir temas e problemas arturianos; traduz textos de seus companheiros da</p><p>Távola Redonda, como os desta antologia e como os dos Lais de Maria de França</p><p>(Vozes, 2001), estórias de amor e cavalaria da primeira escritora francesa da Idade</p><p>Média. A respeito desse livro fiz uma resenha para o caderno Idéias do Jornal do</p><p>Brasil, na qual escrevi que Antonio L. Furtado, conhecedor dos estudos sobre a teoria</p><p>do conto popular, como a Morfologia do Conto, de Propp, pôde compreender bem o</p><p>sentido formal do conto (lai), e a função protocolar das fórmulas de abertura e</p><p>fechamento de cada texto, como em “Lanval”, o cavaleiro estrangeiro que servia na</p><p>corte do rei Artur.</p><p>Pois bem, estas estórias do rei Artur e de seus cavaleiros — As Aventuras da</p><p>Távola Redonda — que aqui se lêem contam, desde agora, com mais um [ou dois...]</p><p>cavaleiros, que saem à luta diária tentando desfazer os tortos, afrontando as invejas e</p><p>injúrias, lutando em favor dos necessitados e até das donzelas "desonradas", mas</p><p>cautelosos com as mulheres astuciosas como Genevra e Isolda que, tal como a</p><p>Shriyadevi do conto sânscrito3, sabem muito bem como passar os seus maridos para</p><p>trás, como se vê em alguns dos contos aqui reunidos. Aliás, o tema da astúcia</p><p>feminina, cujo exemplo mais remoto deve ser mesmo o da maçã de Eva, já se vê</p><p>documentado em Calila e Dimna, na história do "nariz decepado" em que entram um</p><p>Eremita, um Ladrão, uma Raposa e a Mullher do Sapateiro. E, depois do ciclo</p><p>arturiano, nas novelas do Decameron e do Heptameron da Rainha de Navarra. Os</p><p>contos em torno do rei Artur são formados de longas narrativas desconchavadas no</p><p>original, com um maravilhoso totalmente inverossímil, um feminismo que mais</p><p>parece um antifeminismo (o narrador passa a ilusão de que está louvando a mulher,</p><p>quando na verdade a está criticando pelos seus atos), tais contos, dizíamos, são</p><p>bastante diferentes daquilo que hoje se tem como conto. A concentração e a tensão</p><p>unitária de hoje estão bem distantes do sentido de uma narrativa que se queria "épica",</p><p>que se alongava indefinidamente, numa sintagmática passível de interpolação, como</p><p>se deu aliás com os livros da Odisséia.</p><p>E no entanto, apesar dessa visão crítica, é possível afirmar que as narrativas</p><p>medievais, especialmente as que foram criadas à volta do rei Artur, continuam ainda</p><p>fascinantes para o leitor moderno. A própria noção de "aventura" — de amor cortês,</p><p>de cavalaria, de magia, de religiosidade — em que tudo pode acontecer, é um dos</p><p>elementos determinantes dessa atração. Outro desses elementos é o de um tempo, se</p><p>não romântico avant la lettre, pelo menos ucrônico, povoado de damas, donzelas,</p><p>cavaleiros, reis e rainhas, num ambiente de castelos e florestas encantadas, como a de</p><p>Brocéliande na Bretanha francesa. Mas é sem dúvida a demanda do santo Graal, nas</p><p>três últimas narrativas, o tema que mais provoca a nossa imaginação, tocado que está</p><p>por sugestões místicas, por milagres fabulosos, dignos ancestrais do nosso realismo</p><p>mágico e que, diga-se de passagem, possuem muito mais sentido artístico e literário.</p><p>A presente obra presta uma boa contribuição a respeito. Nela é fácil perceber o</p><p>fascínio dessa literatura nascente no século XII, quando a maioria das nacionalidades</p><p>se faziam. E perceber também o esforço do tradutor na manutenção do sabor rústico e</p><p>refinado daquela sociedade meio nômade, uma vez que, apesar de suas cortes, viviam</p><p>de aventuras em aventuras. Embora alguns desses textos tenham sido compostos em</p><p>verso, adotou-se no livro a opção de traduzir todos em prosa, de modo a manter a</p><p>3 Um resumo desse conto, o qual faz parte do Sukasaptati, é apresentado na parte introdutória deste</p><p>livro (g. O Juramento de Shriyadevi).</p><p>máxima fidelidade à redação original. Além disso, por incluir também comparação</p><p>com narrativas de procedências diversas, como as das Mil e Uma Noites e os motivos</p><p>do folclore universal, esta antologia se inscreve obrigatoriamente nos nossos</p><p>programas de ensino de literatura e de história. E o que for, será, como diz algum</p><p>ditado, possivelmente dos tempos áureos de Camelot ou Avalon.</p><p>Os</p><p>cornualheses são maledicentes e capazes de todo tipo de trapaça. Fixa uma data,</p><p>anuncia que queres que na Landa Branca estejam todos, pobres e ricos. Quem não</p><p>vier, deves declarar expressamente, terá os bens confiscados: assim ficarás quite com</p><p>eles. Eu mesma estou segura de que o rei Artur, vendo minha mensagem, virá ter</p><p>aqui; de há muito conheço seus sentimentos.</p><p>O rei respondeu:</p><p>- Disseste bem.</p><p>Foi então marcada para dali a quinze dias a data da justificação de Isolda, sendo</p><p>logo anunciada por todo o país. O rei a comunicou aos três que haviam partido da</p><p>corte mal dispostos: ficaram contentes com o sucedido, desse afinal no que desse.</p><p>Todos na região ficaram sabendo da data aprazada para a assembléia, e que lá</p><p>estaria o rei Artur e, com ele, a maioria dos cavaleiros de sua casa. Isolda não perdeu</p><p>tempo; enviando-lhe Perinis, fez lembrar a Tristão todo o afã e todas as penas que</p><p>nesse ano sofrera por ele  que agora retribua a bondade dela! Ele tem o poder, se</p><p>quiser, de colocá-la a salvo:</p><p>- Dize-lhe que deve lembrar-se de um pântano, nas proximidades de uma ponte de</p><p>tábuas, localizado no Mau Passo. Ali já me aconteceu de sujar um pouco minhas</p><p>vestes. Que se dirija à colina que se situa no final da ponte, um pouco antes da Landa</p><p>Branca. Que esteja vestido com trajes de leproso, tendo na mão uma cuia de madeira,</p><p>com uma garrafa por cima, presa pelo nó de uma correia, e carregue na outra mão</p><p>uma bengala; e que trate de aprender bem o seu papel! Esteja aboletado na colina no</p><p>dia marcado. Que tenha a cara bem encaroçada. Que estenda a cuia à altura da testa e</p><p>peça esmola humildemente aos passantes. Eles lhe darão ouro e prata; que guarde para</p><p>mim as moedas, até que eu o veja a sós em um quarto sossegado.</p><p>Respondeu Perinis:</p><p>- Dama, por minha fé, eu lhe passarei tal e qual a confidência.</p><p>Perinis despediu-se da rainha; entrou no bosque, sozinho, atravessando um</p><p>matagal. Ao entardecer chegou ao recesso de uma bela gruta, em que Tristão se</p><p>abrigava. Acabara de levantar-se da mesa de refeição. Tristão alegrou-se com sua</p><p>chegada, certo de que o nobre valete lhe trazia notícias de sua querida. Dando-se as</p><p>mãos, os dois foram sentar-se em um banco alto. Perinis lhe relatou a mensagem</p><p>completa da rainha. Tristão curvou-se para o chão e jurou por tudo que lhe veio à</p><p>mente: para seu próprio mal haviam tramado aqueles três  mas não irá ficar assim;</p><p>eles serão pendurados bem alto na forca e ainda perderão as cabeças.</p><p>- Dize à rainha, palavra por palavra: lá estarei na data certa, que ela não duvide.</p><p>Que ela se alegre e confie! Não me banharei em água quente enquanto minha espada</p><p>não tirar vingança daqueles que lhe causaram pesar. São vis traidores comprovados.</p><p>Dize-lhe que será tudo arranjado para que ela se safe do juramento. Eu a verei</p><p>brevemente. Vai, dize-lhe que não se aflija, nem tema que eu não vá ao pleito,</p><p>travestido de mendigo. O rei Artur me verá sentado à beira do Mal Passo, mas não me</p><p>reconhecerá. Ganharei sua esmola, se puder extrair dele alguma coisa. Tu podes</p><p>relatar à rainha o que te disse nesta cova de pedra que ela tão belamente arrumou para</p><p>mim. Leva-lhe de minha parte mais cumprimentos do que haverá na hora caroços</p><p>miúdos em minha pele.</p><p>- Bem lhe direi, retrucou Perinis.</p><p>Começando a descer os degraus para sair, acrescentou.</p><p>- Estou indo ao rei Artur, belo senhor. Cabe-me dizer-lhe esta mensagem: que ele</p><p>venha ouvir o juramento, trazendo junto com ele cem cavaleiros que depois prestarão</p><p>garantia se o felões rosnarem suspeitas quanto à lealdade da dama. Não está bem</p><p>assim?</p><p>- Pois então vai com Deus agora mesmo!</p><p>Perinis desceu um por um os degraus restantes, montou a cavalo e se foi. Não</p><p>deixou em paz as esporas até chegar a Caerleon. Muito penava para servir, deveria ser</p><p>ainda melhor sua recompensa. Tanto inquiriu notícias do rei que lhe deram a boa</p><p>informação de que ele estava em Isneldone. Pelo caminho que vai dar lá, seguiu o</p><p>valete de Isolda a Bela. Perguntou a um pastor que tocava charamela:</p><p>- Onde está o rei?</p><p>- Senhor, respondeu ele, senta-se à mesa. Logo ireis ver a Távola Redonda, que</p><p>gira como o mundo. Os de sua casa sentam-se em volta.</p><p>- Vou já para lá, disse Perinis.</p><p>O valete desmontou no pátio e entrou prontamente. Lá estavam muitos filhos de</p><p>condes e filhos de ricos vassalos, todos os quais serviam para receber armas e se</p><p>tornarem cavaleiros. Um deles se afastou furtivamente, passando pelo rei, e este o</p><p>chamou:</p><p>- Ei, donde vens?</p><p>- Trago novidades. Há lá fora alguém a cavalo, procurando por ti com grande</p><p>urgência.</p><p>Eis que nesse momento entrou Perinis. Com vários marqueses a observá-lo,</p><p>apresentou-se ao rei, diante do estrado em que ele se sentava com todos os barões. O</p><p>valete disse, com convicção:</p><p>- Que Deus salve o rei Artur, a ele e a toda a sua companhia, da parte da bela</p><p>Isolda, sua amiga!</p><p>O rei ergueu-se da mesa:</p><p>- E que Deus que é espírito, falou ele, a salve e guarde, e também a ti, amigo!</p><p>Deus! acrescentou o rei, quanto eu desejava receber dela uma só mensagem que fosse!</p><p>Valete, à vista destes meus barões, outorgo a ela o quanto requeira. E tu serás nesta</p><p>reunião da corte o terceiro a ser armado cavaleiro, por seres o mensageiro da mais</p><p>bela que existe daqui até Tudele.</p><p>- Senhor, replicou Perinis, eu vos agradeço! Escutai porque vim aqui; e ouçam</p><p>também estes barões, e meu senhor Galvão principalmente. A rainha se pôs de acordo</p><p>com seu senhor, isso não é segredo. Sire, onde os dois se reconciliaram, estavam</p><p>presentes todos os barões do reino. Tristão se ofereceu para livrar a rainha de culpa e</p><p>comprovar, diante do rei, a lealdade dela. Mas ninguém quis pegar em armas para</p><p>contestá-la. Sire, agora fazem o rei Marcos pensar que deve exigir dela uma</p><p>justificação. Não há na corte do rei homem nobre, nem francês nem saxão, que seja da</p><p>linhagem dela e assim se disponha a dar-lhe o apoio de que tanto precisa  pois ouço</p><p>dizer o povo que "podes nadar com desleixo se alguém te segura o queixo". Sire, se</p><p>estou mentindo, tratai-me como vil adulador. O rei não tem uma disposição constante,</p><p>às vezes quer isso, às vezes aquilo. A bela Isolda lhe respondeu que se justificará</p><p>diante de vós. Ela vos requer, suplicando por vossa mercê como vossa amiga querida,</p><p>que estejais no prazo fixado diante do Vau Aventuroso, com cem de vossos amigos.</p><p>Nessa ocasião seja leal vossa corte, vossos companheiros sinceros. Diante de vós seja</p><p>ela inocentada, e que Deus a guarde para que não se malogre! Depois, vós lhe</p><p>servireis de garante  portanto não falteis de maneira nenhuma. A justificação foi</p><p>aprazada para de hoje a oito dias.</p><p>Essas palavras fizeram os presentes chorar profusamente, não houve um só que não</p><p>tivesse a face molhada com as lágrimas de pena que escorriam dos olhos.</p><p>- Deus, cada um falava, que exigem dela? O rei Marcos faz o que eles mandam,</p><p>Tristão se vai para fora do país. Que não alcance o paraíso quem lá não for, se nosso</p><p>rei determinar, e quem não a ajudar como é direito.</p><p>Galvão se pôs de pé, falou e disse como homem bem educado:</p><p>- Tio, se tenho tua permissão, a justificação que está combinada terminará mal para</p><p>os três felões. O mais dissimulado é Ganelon: conheço-o bem e ele a mim. Já o</p><p>derrubei em um lamaçal, durante uma justa forte e encarniçada. Se o pego de novo,</p><p>por São Richier, Tristão não precisará mais vir. Se puder agarrá-lo com as mãos, farei</p><p>nele bastante estrago e o enforcarei no alto de um morro.</p><p>Girflet levantou-se após Galvão e assim caminharam de mãos dadas.</p><p>- Rei, foi Girflet dizendo, Denoalan, Godoïne e Ganelon odeiam muitíssimo a</p><p>rainha desde muito longo tempo. Que Deus não me conserve o juízo se, ao ir contra</p><p>Godoïne, o ferro de minha grande lança de freixo não o varar  e que nunca mais me</p><p>seja dado abraçar sob o manto as belas damas, atrás do cortinado.</p><p>Perinis o ouviu, inclinou a cabeça em sua direção. Disse Ivã, filho de Uriano:</p><p>-</p><p>Conheço Denoalan o bastante: usa tudo o que sabe para montar acusações, é</p><p>entendido em engambelar o rei. Tantas lhe direi que haverá de acreditar: se o encontro</p><p>em meu caminho, como já fiz de outra vez, e ele não puder defender-se de mim, que</p><p>nem lei nem fé me impeçam de enforcá-lo com minhas duas mãos. Deve-se castigar</p><p>severamente os felões, esses aduladores que fazem do rei um joguete.</p><p>Disse Perinis ao rei Artur:</p><p>- Sire, estou certo de que levarão uma sova esses felões que quiseram querela com</p><p>a rainha. Nunca foi alguém ameaçado em vossa corte, fosse do reino mais longínquo,</p><p>sem que o tivésseis posto completamente a salvo. E, no final das contas, acabam</p><p>punidos por vós todos os que tenham merecido.</p><p>O rei Artur ficou contente, enrubesceu um pouco:</p><p>- Dom valete, ide comer. Estes cavaleiros pensarão em como vingá-la.</p><p>O rei sentia grande alegria no coração. Falou, desejando que Perinis o escutasse:</p><p>- Companheiros nobres e honrados, providenciai para que na ocasião da reunião</p><p>vossos cavalos estejam bem nutridos, vossos escudos como novos, ricos vossos trajes.</p><p>Justaremos diante da bela de quem todos vós ouvistes as notícias. Muito pouco há de</p><p>estimar sua vida quem se escusar de portar armas.</p><p>O rei convocou a todos. E eles reclamavam por estar tão distante o termo aprazado,</p><p>gostariam que fosse no dia seguinte. Quanto a Perinis, tendo esse rapaz de berço</p><p>nobre pedido vênia para partir, o rei montou seu corcel Passelande, pois queria fazer-</p><p>lhe escolta. Foram tagarelando pelo caminho, versando toda as falas sobre a bela que</p><p>logo fará com que lanças sejam partidas. Antes de encerrar a conversa, o rei ofereceu</p><p>a Perinis o equipamento que usaria para tornar-se cavaleiro, mas ele não o quis aceitar</p><p>ainda. O rei o escoltou por um trecho do caminho, na intenção da bela fidalga de</p><p>cabeça loura, na qual não havia maldade. Muito falavam dela enquanto seguiam. Rica</p><p>escolta teve o valete, com os cavaleiros e o nobre rei; com grande relutância se</p><p>separaram. O rei ainda lhe bradou:</p><p>- Belo amigo, não demoreis. Saudai vossa dama da parte deste seu servidor</p><p>devotado, que virá a ela para tranqüilizá-la. Farei todas as suas vontades. Por causa do</p><p>que ela já fez em meu favor, não me deixarei desalentar. Lembrai-lhe da lança de</p><p>arremesso que foi cravar-se na estaca: ela saberá bem onde foi isso. Rogo-vos que lhe</p><p>digais assim.</p><p>- Rei, prometeu Perinis, assim farei, eu vos afianço.</p><p>Então fustigou o cavalo, enquanto o rei retomava o caminho de volta.</p><p>Perinis seguia para casa, comunicara as mensagens, ele que tanta fadiga enfrentara</p><p>a serviço da rainha. Caminhava o mais rápido que podia, não se deteve por um dia</p><p>sequer até chegar ao lugar de que saíra. Contou sobre suas cavalgadas a Isolda, que</p><p>muito se regozijou ao ouvir sobre o rei Artur e sobre Tristão. Passaram aquela noite</p><p>em Lidan.</p><p>Chegara a noite da décima lua. Que vos direi? Aproximava-se o dia de a rainha</p><p>livrar-se da acusação. Tristão, seu amigo, não faltou. Vestia-se de um jeito bem</p><p>variegado: roupa de lã, sem camisa; de um feio burel era sua túnica, suas botas</p><p>remendadas. Mandara talhar uma larga capa de burel, negra de fumaça. Estava</p><p>ataviado a capricho: parecia o pior dos doentes. E no entanto levava sua espada</p><p>apertada ao flanco. Tristão pôs-se em marcha, saiu da habitação disfarçadamente, com</p><p>Governal a fazer-lhe recomendações, dizendo:</p><p>- Senhor Tristão, não sejais afoito. Ficai atento à rainha, porque ela não deixará</p><p>nada transparecer nem fará sinal.</p><p>- Mestre, farei tudo certo. Cuidai vós igualmente de agir em meu proveito. Temo</p><p>que me percebam. Tomai e trazei meu escudo e minha lança, mestre Governal, junto</p><p>com meu cavalo inteiramente ajaezado. Se eu precisar, quero que estejais pronto, de</p><p>tocaia, à beira da passagem. Conheceis bem a passagem certa, faz tempo que</p><p>soubestes dela. Meu cavalo é branco como farinha: tratai de cobri-lo todo, para que</p><p>não seja notado nem reconhecido por ninguém. Lá estará Artur com sua gente e</p><p>também o rei Marcos. Os cavaleiros vindos de fora justarão para ganhar louvor. Eu,</p><p>por amor a Isolda, minha amiga, logo farei uma investida. No alto de minha lança</p><p>esteja o pendão de que a bela me fez presente. Mestre, ide agora, insisto convosco</p><p>para que procedais com cautela.</p><p>Tristão pegou a caneca e a bengala e despediu-se. Governal o deixou ir e então</p><p>voltou à sua habitação, reuniu os arneses e, sem mais, pôs-se logo a caminho. Tomou</p><p>cuidado para que não o vissem. Viajou até chegar a seu destino, indo emboscar-se</p><p>perto de Tristão, o qual já se encontrava junto ao Mau Passo.</p><p>Sobre a colina, à beira do pântano, postou-se Tristão sem mais delonga. Fincou no</p><p>chão, à sua frente, o bordão que prendera com um cordão ao pescoço. Em torno</p><p>estendia-se o chão mole do lamaçal, enquanto ele se mantinha firme sobre a elevação.</p><p>Não parecia um aleijado, pois era alto e corpulento; anão é que não era, nem disforme,</p><p>nem corcunda. Ouviu chegar a tropa, sentado permaneceu. Quando alguém passava</p><p>diante dele, lamentando-se dizia:</p><p>- Desgraçado de mim! Não imaginava tornar-me um pedinte, nem prestar-me um</p><p>dia a este ofício. Mas nada mais me resta.</p><p>Tristão os levava a sacar das bolsas, tanto fazia que cada um lhe presenteava. E ele</p><p>recebia, sem protesto. Muita gente com sete anos de meretrício nunca soube arrecadar</p><p>tão bem. Mesmo aos peões e aos meninos menos favorecidos, que iam mendigando</p><p>pelo caminho, Tristão, sempre de cabeça baixa, pedia esmola pelo amor de Deus.</p><p>Alguns davam, outros lhe batiam. Os canalhas, os desclassificados o chamavam de</p><p>devasso e de vadio. Tristão escutava, sem resmungar; perdoava-os em nome de Deus,</p><p>segundo dizia. Esses corvos enraivecidos o aborreciam, e ele ficava calmo. Até que de</p><p>vagabundo o chamaram e de patife  e aí ele os pôs a correr com a bengala, deixando</p><p>mais de quatorze sangrando sem parar.</p><p>Os valetes nobres de boa família lhe deram alguns vinténs e mealhas de cobre. Ele</p><p>recebeu as moedas e lhes disse que as usará para beber à saúde deles todos, pois tão</p><p>grande ardência tinha por dentro, que mal podia botar para fora. Todos os que o</p><p>ouviam assim falar punham-se a chorar de piedade. De nenhuma forma suspeitavam</p><p>os que o viam que pudesse não ser um leproso.</p><p>Valetes e escudeiros se apressavam em descarregar a bagagem e armar as tendas,</p><p>os pavilhões multicoloridos, para seus senhores; não havia homem rico que não</p><p>tivesse sua própria tenda. A galope, por caminhos e atalhos, os cavaleiros chegaram</p><p>em seguida. Havia uma grande multidão nesse pântano; abalaram o solo, a lama</p><p>amoleceu. Os cavalos afundavam até os flancos, vários caíram, desvencilhava-se</p><p>quem podia. Ria-se Tristão, nem se perturbava; pelo contrário, dizia a todos:</p><p>- Segurai as rédeas pelos nós, acicatai bem com as esporas; por Deus, picai</p><p>esporas, que logo adiante não há mais atoleiro.</p><p>Quando iam tentar, dissolvia-se o pântano sob seus pés. Cada um que entrava</p><p>ficava atolado, quem não tinha botas sofria dificuldades. O leproso estendia a mão;</p><p>quando via algum se espojando no atoleiro então agitava a matraca com fúria. A quem</p><p>via afundar mais na lama o leproso dizia:</p><p>- Pensai em mim para que Deus vos tire fora do Mau Passo! Ajudai-me a renovar</p><p>meu guarda-roupa.</p><p>Chocava sua garrafa contra a caneca. Estranho lugar para lhes pedir esmola, mas</p><p>ele o fazia por deboche; quando vir passar sua amiga Isolda dos cabelos louros, que</p><p>isso lhe ponha alegria no coração. Havia grande tumulto no Mau Passo. Os que</p><p>passavam sujavam suas vestes, de longe podia-se ouvir os urros dos que se</p><p>emporcalhavam no palude. Quem passava não se sentia seguro.</p><p>Nisso, chegou o rei Artur. Veio acompanhar a travessia do vau, trazendo consigo</p><p>vários de seus barões. Eles temiam afundar no pântano. Todos os da Távola Redonda</p><p>tinham vindo ao Mau Passo com escudos novos e cavalos bem nutridos, marcados</p><p>com suas armas. Todos estavam vestidos da cabeça aos pés, muito pano de seda ali se</p><p>consumira. Puseram-se</p><p>a justar diante do vau.</p><p>Tristão reconheceu o rei Artur e lhe chamou a atenção:</p><p>- Senhor meu rei Artur, sou um enfermo, chagado, leproso, desfigurado e fraco.</p><p>Pobre é meu pai, jamais possuiu terra. Vim aqui para pedir esmola. Muito bem tenho</p><p>ouvido falar de ti, não me deves repelir. Estás ataviado de belo forro pardo de</p><p>Ratisbonne, sob o tecido de Reims tua pele é branca e lisa. Vejo em tuas pernas calças</p><p>de rica seda em malhas verdes e polainas escarlates. Rei Artur, vês como me coço e</p><p>arranho? Sinto um frio enorme enquanto os outros escaldam  dá-me, por Deus,</p><p>essas polainas.</p><p>O nobre rei sentiu pena: dois pagens o descalçaram, e o doente pegou as polainas e</p><p>com elas se foi rapidamente, para de novo sentar-se sobre o montículo. O leproso não</p><p>poupou nenhum dos que passaram diante dele. Reuniu panos em abundância, além</p><p>das polainas do rei Artur.</p><p>Tristão continuava sentado junto ao pântano, quando o rei Marcos, altivo e</p><p>dominador, chegou ali a galope. Tristão o abordou para tentar obter alguma coisa</p><p>dele. Soou com força sua barulhenta matraca de leproso, clamou penosamente com</p><p>voz rouca, a respiração sibilante através do nariz:</p><p>- Por Deus, rei Marcos, um pouco de caridade!</p><p>O rei tirou seu gorro de camurça e lhe disse:</p><p>- Toma, irmão, mete na cabeça; já muitas vezes o mau tempo te fez mal.</p><p>- Senhor, eu vos agradeço! Agora me curastes do frio.</p><p>Enfiou o gorro sob a capa, tratando de escondê-lo o melhor que pôde.</p><p>- De onde és, ó leproso? indagou o rei.</p><p>- De Caerleon, filho de um galês.</p><p>- Por quantos anos tens vivido segregado?</p><p>- Senhor, já lá vão três anos, não é mentira. Enquanto eu gozava saúde, tive uma</p><p>amiga muito cortês. Foi por causa dela que peguei esses caroços; e sou obrigado a</p><p>soar noite e dia esta matraca de pau liso, ensurdecendo com o ruído a todos a quem</p><p>peço algo do que possuem, pelo amor de Deus nosso criador.</p><p>Disse-lhe o rei:</p><p>- Não me escondas nada: como foi que tua amiga te passou a lepra?</p><p>- Dom Marcos, meu rei, seu marido era leproso; eu me deliciava com ela e acabei</p><p>pegando este mal através de nossas relações. Jamais houve outra mais bela, salvo</p><p>uma.</p><p>- E quem seria?</p><p>- A bela Isolda. Esta se veste tal qual aquela.</p><p>Ouvindo isso, o rei saiu rindo.</p><p>Pelo outro lado, chegou o rei Artur, que vinha justando, alegre a mais não poder.</p><p>Artur indagou sobre a rainha.</p><p>- Ela vem pelo bosque, real senhor, explicou Marcos; ela vem com André que se</p><p>encarregou de conduzi-la.</p><p>Diziam uns aos outros:</p><p>- Não sei como ela sairá deste Mau Passo. Fiquemos aqui, prestando atenção.</p><p>Os três felões (que em mal fogo ardam!) chegaram ao vau; perguntaram ao doente</p><p>por onde haviam passado os que menos se enlamearam. Tristão, apontando com a</p><p>bengala, direcionou-os para o lugar mais mole:</p><p>- Vedes aquela turfeira depois do lodo? Aquela é a direção correta; vi passar</p><p>diversos por ali.</p><p>Os felões penetraram no lodaçal. Lá onde o leproso lhes indicara encontraram uma</p><p>massa incrível de lodo, chegando aos arções das selas. Todos os três caíram ao mesmo</p><p>tempo. O enfermo, postado sobre a elevação, lhes gritava:</p><p>- Picai forte as esporas se a porcaria do lodo vos vexa. Vamos, senhores! Pelo</p><p>santo apóstolo, cada um me dê do que é vosso!</p><p>Os cavalos afundavam no atoleiro, eles perdiam o ânimo por não encontrarem nem</p><p>margem nem apoio firme no fundo. Os que justavam sobre o monte acorreram</p><p>rapidamente. Ouvi como o leproso mentia:</p><p>- Senhores, falou aos barões, segurai-vos firmes em vossos arções. Mal haja esse</p><p>lodo que é tão mole! Tirai os mantos dos ombros para poder dar braçadas através do</p><p>atoleiro. Digo-vos bem (porque sei bem) que aí vi gente passar hoje.</p><p>Ah, se pudessem vê-lo bimbalhar a caneca! Quando o leproso agitava a caneca, ela</p><p>se chocava contra a garrafa presa à correia, e com a outra mão ele soava a matraca.</p><p>Nisso, eis que chegava Isolda a Bela. Viu no atoleiro seus inimigos, sobre o elevado</p><p>estava seu amigo. Com tudo isso ficou muito alegre, ria e se divertia. Desmontou</p><p>sobre a falésia. Do outro lado estavam os reis e os barões que vinham com eles.</p><p>Observavam os que se mexiam no atoleiro, virados de costas ou chafurdando sobre o</p><p>ventre. E o enfermo os interpelava:</p><p>- Senhores, a rainha chegou para fazer sua justificação; ide assistir ao julgamento!</p><p>Poucos houve que não acharam graça. Mas escutai a desfaçatez do leproso,</p><p>orientando Denoalan:</p><p>- Pega na mão meu bastão e puxa forte com os dois punhos.</p><p>E ao mesmo tempo o estendia para ele. O leproso largou de súbito o bastão, o outro</p><p>caiu para trás, mergulhou completamente; nada se via dele fora o cabelo arrepiado. E,</p><p>quando o homem foi tirado do atoleiro, falou o doente:</p><p>- Não posso mais. Tenho as juntas e os nervos dormentes, as mão entorpecidas</p><p>pelo mal de Acres, os pés inchados pela gota. Os males deterioram minha força, meus</p><p>braços ficaram secos como uma casca.</p><p>Dinas estava com a rainha. Percebendo o que ocorria, piscou-lhe os olhos. Bem</p><p>sabia que era Tristão quem estava sob a capa. Viu os três felões presos na armadilha;</p><p>pareceu-lhe ótimo e muito lhe agradou que eles estivessem em feia encrenca. Com</p><p>grande martírio e dor, os acusadores saíram fora do atoleiro. Com certeza não ficarão</p><p>limpos sem um banho. À vista do povo se despiram, largando as roupas e vestindo</p><p>outras. Mas agora escutai as palavras do nobre Dinas, que, do mesmo modo que a</p><p>rainha, estava do lado oposto do Passo. Ele assim ponderou a ela:</p><p>- Dama, disse ele, esse vosso manto vai ficar bem maltratado. O terreno está cheio</p><p>de um barro vermelho; eu ficaria incomodado, muito me pesaria, se viesse a grudar</p><p>em vossa roupa.</p><p>Isolda riu-se, ela que não era covarde. Encarou-o, fazendo um sinal com os olhos, e</p><p>ele adivinhou seus pensamentos. Um pouco abaixo, próximo a um espinheiro, Dinas</p><p>dobrou para um vau, por onde atravessou a salvo com André. Isolda permanecia,</p><p>sozinha, no lado errado. Diante da saída do vau era grande a multidão formada pelos</p><p>dois reis e seus barões.</p><p>Ouvi como Isolda foi esperta! Bem sabia que os que estavam postados além do</p><p>Mau Passo a contemplavam. Ela se aproximou de seu palafrém, pegou as franjas do</p><p>xairel sob a sela e deu um nó por cima do arreio; nenhum escudeiro ou valete as teria</p><p>levantado e preparado melhor para protegê-las da lama. Enfiou então as correias em</p><p>baixo da sela. Isolda a Bela, ela mesma, tirou o peitoral e o freio do palafrém. Com</p><p>uma das mãos segurou o vestido e com a outra o chicote. Levou até o vau o palafrém,</p><p>bateu-lhe com o chicote, e ele cruzou sozinho o palude.</p><p>A rainha atraía os olhares dos que estavam do outro lado. Os ilustres reis se</p><p>pasmavam, bem como todos os demais que assistiam. A rainha vestia trajes de seda de</p><p>Bagdá, forrados de arminho branco. O manto e a túnica tinham cauda. Os cabelos</p><p>caíam sobre as espáduas, trançados com fios de fino ouro. Um diadema de ouro</p><p>cingia-lhe a cabeça, contornando-a toda; de cor rosada era seu rosto, a pele clara e</p><p>fresca. Andou até a ponte de tábuas e dirigiu-se ao leproso:</p><p>- Quero tratar de um assunto contigo.</p><p>- Nobre rainha benfazeja  irei a ti sem reservas, mas não sei o que queres dizer-</p><p>me.</p><p>- Não quero enlamear minhas vestes. Servirás de asno para carregar-me</p><p>suavemente sobre a prancha.</p><p>- Alto lá! exclamou ele. A nobre rainha não deve requerer de mim tal pleito: sou</p><p>leproso, bossudo, desfigurado.</p><p>- Depressa, falou ela, toma teu lugar! Cuidas que teu mal me contamine? Não</p><p>tenhas medo, tal não acontecerá.</p><p>- Ah, Deus! pensou ele, que será isso? Mas não me desagrada falar com ela.</p><p>E ali ficou, apoiado à bengala.</p><p>- Vamos! és um doente muito graúdo! Vira a cara para lá e tuas costas para cá: vou</p><p>montar-te como se eu fosse um valete.</p><p>E então o enfermo sorriu, curvou as costas e ela montou. Todos os fitavam, reis e</p><p>condes. Ele apoiou as pernas contra a bengala, ergueu um pé, pisou com o outro, a</p><p>todo momento dava impressão de tropeçar, fazia cara</p><p>de sentir dor. Isolda a Bela o</p><p>cavalgava, uma perna de um lado, uma perna do outro.</p><p>Os circunstantes diziam entre si:</p><p>- Vede agora, vede a rainha cavalgar esse doente que segue mancando. Está prestes</p><p>a cair da ponte, mal firma a bengala contra as ancas. Vamos ao encontro do leproso na</p><p>saída do atoleiro.</p><p>Os jovens todos acorreram. O rei Artur seguiu atrás, e logo os demais, um após o</p><p>outro. O leproso, mantendo o rosto voltado para baixo, atingiu afinal solo firme do</p><p>outro lado. Isolda deixou-se escorregar. O leproso se dispôs a retornar, pedindo na</p><p>despedida à bela Isolda alimento para essa noite. Artur disse:</p><p>- Bem o mereceu. Ah, rainha! dai-lhe o que pede!</p><p>Isolda a Bela respondeu ao rei:</p><p>- Pela fé que vos devo, forte truão é o que esse é. Tem o bastante, não dá para</p><p>comer hoje tudo o que tem. Sob sua capa senti-lhe as correias. Rei, a bolsa que leva à</p><p>cinta não diminuiu. Os pães partidos e inteiros, os bons pedaços e os quartis pude</p><p>sentir dentro do saco. Mantimentos não lhe faltam, está bem vestido. Com vossas</p><p>polainas, se as quiser vender, poderá apurar cinco escudos esterlinos. Ora! Com o</p><p>gorro de meu marido vá comprar carneiros e tornar-se pastor, ou compre um asno</p><p>para atravessar o pântano. É um patife, pelo que vejo. Hoje teve bom pasto, encontrou</p><p>gente do jeito que queria. De mim não levará coisa que valha nem um só vintém nem</p><p>tostão.</p><p>Os dois reis se divertiam com isso. O palafrém de Isolda foi trazido, fizeram-na</p><p>montar e se foram dali. Os que dispunham de armas então justaram.</p><p>Tristão afastou-se da aglomeração, chegou a seu mestre Governal, que o esperava.</p><p>Trouxera dois ricos cavalos de Castela, com freio e sela, e duas lanças e dois escudos.</p><p>Disfarçara-os muito bem para torná-los irreconhecíveis. Sobre os dois cavaleiros, que</p><p>vos direi? Governal enfaixara a cabeça com uma banda branca de seda, não deixando</p><p>de jeito algum aparecer mais que os olhos. Retornou a passo sobre seu cavalo belo e</p><p>gordo. Tristão cavalgava Belo Jogador: melhor não se poderia achar. Cota, sela,</p><p>corcel e escudo ele levava recobertos de uma sarja negra. Cobrira o rosto com um véu</p><p>negro, ocultando toda a cabeça e os cabelos. Prendera na lança a insígnia que a bela</p><p>lhe remetera. Cada um dos dois cavaleiros ia montado sobre seu corcel, cada um</p><p>afivelara à cinta uma espada de aço. Assim armados, sobre seus cavalos, indo através</p><p>de um verde prado entre dois vales, foram surgir na Landa Branca.</p><p>Galvão, o sobrinho de Artur, perguntou a Girflet:</p><p>- Vês acolá vir dois a rédea solta? Não os conheço: sabes tu quem são?</p><p>- Conheço-os bem, respondeu Girflet. Um tem cavalo e insígnia negros: há de ser o</p><p>Negro da Montanha. Reconheço o outro pelas armas multicoloridas, como neste país</p><p>não há nada semelhante. São enfeitiçados, não tenho dúvida.</p><p>Eles chegaram deixando a estrada, com os escudos à frente, as lanças erguidas, os</p><p>pendões presos aos ferros. Tão bem vestiam as armaduras como se tivessem nascido</p><p>dentro delas. O rei Marcos e o rei Artur falavam bem mais dos dois do que sobre os</p><p>homens de suas próprias companhias, que ocupavam ambas a vasta planície.</p><p>Os dois se engajavam muitas vezes nos renques de justa, foram notados por muita</p><p>gente. Investiram juntos contra a vanguarda, mas não acharam quem os enfrentasse. A</p><p>rainha os reconheceu perfeitamente; ela e Brengain se mantinham de um dos lados</p><p>dos renques. Veio André sobre seu corcel, empunhando armas, lança erguida, escudo</p><p>firme, e assaltou Tristão visando a face. Não sabia absolutamente com quem lidava,</p><p>mas Tristão o reconheceu bem. Feriu-o sobre o escudo, abateu-o no meio da pista e</p><p>partiu-lhe o braço. Jazia de costas, sem poder levantar-se, aos pés da rainha. Governal</p><p>avistou, saindo da tenda sobre um corcel, o mateiro que tinha querido causar a morte</p><p>de Tristão, quando este outrora dormira profundamente na floresta de que aquele era o</p><p>guarda. Dirigiu-se contra ele com veloz andadura  já estava o outro desgraçado.</p><p>Meteu-lhe corpo a dentro o ferro afiado, com o aço lhe atravessou a couraça. Ele caiu</p><p>morto, nenhum padre lhe veio a tempo e nem podia. Isolda, que era livre e sincera,</p><p>riu-se discretamente por trás de seu véu. Girflet, Cinglor, Ivã, Tolas, Coris e Galvão</p><p>viram os companheiros levar a pior.</p><p>- Senhores, exclamou Galvão, que faremos? O mateiro jaz lá de boca aberta. Ficai</p><p>sabendo que esses dois estão enfeitiçados. Nem um pouco os conhecemos e agora eles</p><p>nos tem como poltrões. Corramos contra eles, vamos pegá-los.</p><p>- Quem os puder entregá-los a nós, falou um dos reis, há de prestar-nos serviço</p><p>muito grato.</p><p>Tristão e Governal desceram em direção ao vau e o atravessaram. Os outros não</p><p>ousaram persegui-los, ficaram todos parados, encolhidos; pensavam que fossem</p><p>fantasmas. Preferiram voltar para os acampamentos, deixando de justar.</p><p>Artur seguiu, ladeando a rainha pela direita, e o percurso lhe parecia breve. A trilha</p><p>se alongava para a direita. Desmontaram todos, por fim, diante de suas tendas. Muitas</p><p>havia na landa, com cordames de preço. Em vez de junco e de caniço, todas as tendas</p><p>estavam assoalhadas com gladíolos. As gentes acorriam por caminhos e atalhos; a</p><p>Landa Branca se vestia de muitas cores, muito cavaleiro trouxera ali sua amada.</p><p>Quem esteve na pradaria ouviu o som das trompas dos que caçavam os numerosos</p><p>grandes cervos.</p><p>Passaram a noite na landa. Cada um dos reis tomou assento para escutar pedidos.</p><p>Quem tinha riquezas não foi lento em trocar presentes.</p><p>Depois da refeição, o rei Artur foi visitar a tenda do rei Marcos, levando os de sua</p><p>casa. Poucos trajes de lã havia ali, a maioria era de seda. Dos forros, que direi? Se</p><p>eram de lã, eram lãs de tecido escarlate, tingidas com cochonila. Havia muita gente</p><p>com ricos adornos, ninguém jamais viu duas cortes mais ricas, nada de que se</p><p>precisasse faltava ali. Nos pavilhões, festejavam alegremente.</p><p>Nessa noite, os presentes discutiram sobre o caso a ser julgado: como a rainha</p><p>nobre e gentil iria desempenhar-se na prova, à vista dos reis e de seus séquitos. O rei</p><p>Artur foi dormir ao mesmo tempo que seus barões e seus íntimos. Quem estava na</p><p>floresta ouviu soar, tocadas nos pavilhões, muitas flautas e muitas trombetas. Antes</p><p>do amanhecer, pôs-se a trovejar: com certeza faria calor. Os vigias cornetearam</p><p>anunciando o dia. Por toda parte começavam a despertar, todos se levantaram sem</p><p>demora. O sol esquentou desde a hora prima; a neblina e a geada desvaneceram.</p><p>Os cornualheses se reuniram junto às tendas dos dois reis. Nenhum cavaleiro do</p><p>reino deixou de vir com sua mulher à corte. Um tapete de seda de um brocado cinza</p><p>foi posto diante da tenda real, estendido na erva verde; o pano, finamente bordado</p><p>com figuras de animais, fora comprado na Nicéia. Não houve então relíquia na</p><p>Cornualha, guardada em tesouro, ou filactério, ou armário, ou cofre, ou escrínio, ou</p><p>caixa, ou em cruzeiros de ouro ou prata, ou em qualquer tipo de relicário, que não</p><p>fosse colocada sobre o tapete, alinhada e disposta em ordem. Os reis se retiraram à</p><p>parte; queriam combinar um procedimento justo. Impaciente, o rei Artur falou</p><p>primeiro:</p><p>- Rei Marcos, disse ele, quem te aconselha tal ultraje causa espanto. E, de fato,</p><p>acrescentou, se outros cometem deslealdade, tu és leviano ao te deixares levar; não</p><p>deves crer em palavras falsas. Preparou-te um caldo bem amargo quem te fez reunir</p><p>esta assembléia. Muito lhe deveria custar, deveria sofrer no corpo por ter querido</p><p>fazer tal coisa. A nobre e bondosa Isolda não quer demora nem adiamento. Disso</p><p>podem estar seguros aqueles que virão questioná-la: ainda hei de enforcar os que, por</p><p>despeito, a continuarem acusando de má conduta depois de seu desmentido  farão</p><p>por merecer a morte! Verificai agora, ó rei, quem terá errado: a rainha se adiantará, de</p><p>modo que a vejam grandes e pequenos, e jurará ao rei celeste, com a mão direita sobre</p><p>as relíquias, que jamais teve relação amorosa com teu sobrinho, nem uma vez sequer,</p><p>que se pudesse</p><p>tomar por vilania, nem se deu ao amor por luxúria. Dom Marcos, isso</p><p>já durou tempo demais: quando ela tiver acabado de jurar, dize a teus barões para se</p><p>irem em paz.</p><p>- Ah! sire Artur, como eu poderia? Tu me repreendes e com razão, pois louco é</p><p>quem crê em invejoso. Neles acreditei, a contragosto. Se neste prado for inocentada,</p><p>não haverá jamais quem ouse, depois das evidências, dizer coisa desonrosa que não</p><p>tenha punição. Deveis saber, Artur, nobre rei: se tem sido assim, foi para meu pesar.</p><p>Que agora se cuidem eles, de hoje em diante!</p><p>Com isso encerraram a discussão. Todos se sentaram formando fileiras, exceto os</p><p>dois reis, e por bom motivo: Isolda estava entre os dois, ao alcance deles. Galvão se</p><p>postou junto às relíquias. Os ilustres membros da casa de Artur se agrupavam à volta</p><p>do tapete. Artur, que era o mais próximo a Isolda, tomou a palavra:</p><p>- Ouvi-me, Isolda a Bela, ouvi de quê vos questionam: se Tristão não terá tido por</p><p>vós amor de luxúria nem de insensatez, senão tão somente aquela afeição que ele</p><p>deveria dedicar a seu tio e à consorte deste.</p><p>- Senhores, respondeu ela, pela mercê de Deus, vejo aqui santas relíquias. Agora</p><p>escutai como aqui juro e asseguro ao rei: assim me ajude Deus e Santo Hilário, juro</p><p>sobre estas relíquias e sobre este santuário, bem como sobre todas as relíquias que não</p><p>estão aqui, sobre todas as que estão espalhadas pelo mundo, que entre minhas coxas</p><p>jamais entrou homem, fora o leproso que se fez de montaria e me carregou através do</p><p>vau, e o rei Marcos meu esposo. A esses dois eu excluo de meu juramento, mas não</p><p>excluo mais ninguém dentre todos os homens. O leproso esteve entre minhas pernas</p><p>(assim se deu diante de vossos olhos!). Se alguém quiser que eu ainda acrescente algo</p><p>mais, estou pronta a fazê-lo aqui mesmo.</p><p>Todos os que a ouviram jurar não puderam mais conter-se:</p><p>- Deus! diziam, com que firmeza ela jurou! E o fez na melhor forma de direito!</p><p>Incluiu mais do que os felões alegavam e requeriam. Não lhe cumpre refutar mais</p><p>nada além do que nós, grandes ou pequenos, já ouvimos  ressalvado o juízo do rei</p><p>Artur e de seu sobrinho. Ela jurou e fez voto de que entre suas coxas ninguém entrou,</p><p>senão o leproso que a carregou ontem, por volta da hora terça, através do vau, e o rei</p><p>Marcos, seu esposo. Maldito seja quem jamais duvidar disso!</p><p>O sobrinho de Artur, o nobre Galvão, se pôs de pé e advertiu o rei Marcos, de</p><p>maneira que todos os barões ouvissem:</p><p>- Rei, assistimos à justificação, e a ouvimos e compreendemos bem. Agora atentem</p><p>os três felões, Denoalan, Ganelon e o pérfido Godoïne, para que nunca mais ousem</p><p>dizer uma só palavra. Enquanto estiverem nesta terra, nem paz nem guerra me reterão:</p><p>assim que eu ouvir o chamado da rainha Isolda a Bela, viremos todos a galope para</p><p>vindicar seus direitos.</p><p>- Senhor, exclamou ela, muito grata vos sou!</p><p>Entre os cortesãos, os três foram muito odiados. As duas cortes se separaram e se</p><p>foram. Isolda, a bela dos cabelos louros, agradeceu muito ao rei Artur.</p><p>- Dama, disse ele, eu vos asseguro: enquanto eu tiver vida e saúde, não achareis</p><p>jamais quem fale de vós com desamor. Os felões tramaram para seu próprio mal.</p><p>Ainda há pouco, eu pedia ao rei vosso marido, sinceramente e movido apenas pela</p><p>amizade, que não desse mais crédito a felonias ditas sobre vós.</p><p>Disse o rei Marcos:</p><p>- Se eu o fizer de ora em diante, culpai-me por isso.</p><p>Separaram-se então um do outro, voltando cada qual a seu reino, o rei Artur</p><p>dirigindo-se a Durelme e o rei Marcos permanecendo na Cornualha. Tristão ficou por</p><p>ali, sem ser molestado.</p><p>VII</p><p>A Falsa Genevra</p><p>O conto diz que o rei Artur veio a Carduel em Gales, e com ele grande parte dos</p><p>barões de seu reino. Ali estavam também meu senhor Galvão e seus outros</p><p>companheiros. O rei desejava que nenhum deles se ausentasse antes do Natal, que se</p><p>aproximava, pois tencionava reunir a corte em sua plena força e riqueza.</p><p>Um dia, sentava-se o rei à mesa para o desjejum. Ao final da refeição, entrou uma</p><p>donzela muito formosa, acompanhada de um cavaleiro de idade avançada, de</p><p>aparência envelhecida e cabeça branca. Apresentaram-se ambos diante do rei Artur, e</p><p>o cavaleiro falou em voz tão alta que o escutaram por toda a sala, dizendo ao rei:</p><p>- Senhor, aqui nos envia a pessoa a quem mais vos caberia amar no mundo:</p><p>Genevra, a filha do rei Leodagan de Camelide, que deveria ser rainha coroada da</p><p>Bretanha, se Deus tivesse querido preservar sua honra; pois vós a desposastes</p><p>conforme a lei e prometestes a Deus, como rei ungido e consagrado, conservá-la tão</p><p>honradamente como deve um rei a sua rainha. Muito mal tendes agido para com Deus</p><p>e os homens, tanto que, se as demais gentes soubessem dos fatos tão bem como eu,</p><p>não mais encontraríeis fidalgo que vos tivesse afeto, pois não existe gentil-homem</p><p>que honre e aprecie quem é desleal perante seu Criador. E tal sois vós por terdes</p><p>abandonado e posto de lado a lei que vos foi dada pela Santa Igreja, pela qual</p><p>devemos conquistar a grande alegria do paraíso. Não obstante, tenho ouvido</p><p>testemunhar que sois tal homem de bem que, como realmente penso, se soubésseis a</p><p>verdade sobre este assunto, não teríeis demorado tanto a corrigi-lo.</p><p>- Decerto, respondeu o rei, se me desse conta de ser tal como aqui me haveis</p><p>exposto, odiaria a mim mesmo de todo o coração.</p><p>- Senhor, falou o cavaleiro, vou fazer-vos saber que sois tachado de tais coisas, e</p><p>vos explicarei como isso se deu. Verdade é que, quando desposastes a filha do rei de</p><p>Camelide, ela era jovem e donzela, como vós mesmo sabeis. Não há homem ou</p><p>mulher, por nobre que seja, a quem muitos que não lhe querem bem procurem causar</p><p>sofrimento e dano. E assim adveio à minha dama. Quando vos deitastes com ela na</p><p>primeira noite de vossa união, aconteceu que vos levantastes. E então entraram os</p><p>inimigos de minha dama, pegaram-na e a retiraram do leito onde se deitara convosco.</p><p>Cuidando que fosse por vosso mando, ela não ousou opor-se. E então aquela  disse</p><p>ele, apontando a rainha  que se faz chamar de Genevra, foi trazida e os que haviam</p><p>confabulado a cilada a deitaram no lugar de minha dama. Voltando-se contra</p><p>Genevra, levaram-na para fora da terra e a aprisionaram em uma abadia onde esteve</p><p>até agora, muito a contragosto; tão bem a encerraram os traidores que nada se soube</p><p>dela. Mas, graças a Deus, agora está livre e vos faz saber que essa Genevra que ali</p><p>está não tem direito a portar coroa, antes merece morrer vergonhosamente. E se</p><p>houver cavaleiro que queira negar que seja verdadeira minha acusação, estou pronto a</p><p>demonstrá-la contra seu corpo, ou agora mesmo ou no dia que vos convier.</p><p>Ao ouvir essas palavras, a rainha ficou muito angustiada, e olhou em volta. Logo</p><p>adiantou-se meu senhor Galvão e declarou que defenderia a rainha, sua dama, desta</p><p>traição que o cavaleiro lhe imputava.</p><p>- Deus me ajude, meu senhor Galvão, exclamou Dodinel o Selvagem. Deus não</p><p>permita que vos rebaixeis a combater com ele. Mas o rei meu senhor mandará buscar</p><p>Dô de Carduel, que é tão velho quanto este homem, e o combate será entre os dois;</p><p>não seria honroso para vós enfrentar tal ancião.</p><p>Bertelai (como se chamava o idoso visitante) respondeu não existir no mundo tão</p><p>bravo cavaleiro que ele não enfrentasse audazmente, pois, ao manter a justiça,</p><p>nenhum homem de bem será jamais confundido. Então a donzela que viera com ele</p><p>tomou a palavra e entregou ao rei uma carta, dizendo que sua dama a enviava. O rei a</p><p>recebeu e passou a um de seus clérigos, mandando que a lesse. E ele começou a ler e</p><p>disse:</p><p>- Senhor, saúda-vos a rainha Genevra, filha do rei de Camelide, e quer que saibais</p><p>que, tendo sido primeiro retirada de seu reino por vós, foi depois, dessa vez pelos</p><p>traidores que abrigais em vossa casa, por longo tempo espoliada de seus direitos. Mas</p><p>agora vos pede e requer que repareis o malefício que lhe fizestes no passado. Por não</p><p>poder escrever tudo que vos gostaria de comunicar,</p><p>quer que creiais no que esta</p><p>donzela vos dirá de boca.</p><p>Então a donzela retomou a palavra e disse:</p><p>- Senhor, minha dama vos recomenda, a vós que ela tem como marido pela</p><p>convenção do casamento, que a retomeis assim como vos compete. E se não a quereis</p><p>aceitar, que lhe envieis a Távola Redonda, tão bem guarnecida de bons cavaleiros</p><p>como estava quando a obtivestes por dote. No dia em que recebestes minha dama do</p><p>rei Leodagan, seu pai, não havia no mundo távola redonda que não essa somente, nem</p><p>jamais haverá outra. Muito se aflige minha dama porque a deserdaram da flor da</p><p>cavalaria que, por justa razão, deveria estar em seu castelo. Portanto minha dama vos</p><p>solicita que lhe devolvais essa sua herança ou a tomeis, a ela própria, de volta. Se não</p><p>quiserdes fazer nem uma coisa nem outra, minha dama providenciou para que seja</p><p>mostrado por este cavaleiro que os fatos são como ela indica. Sabei bem que, se ela</p><p>não tivesse o direito a seu lado, não teria enviado homem de tanta idade, pois</p><p>facilmente acharia cavaleiros jovens que de bom grado empreenderiam esta tarefa, se</p><p>ela quisesse ordenar-lhes. Minha dama vos envia  disse ela  como sinal, o anel</p><p>que lhe destes ao desposá-la.</p><p>Tirou da sacola um anel precioso e o entregou ao rei. Ele o pegou e contemplou</p><p>longamente, e depois o mostrou à rainha e disse que estava convencido de que se</p><p>tratava do anel que lhe dera no casamento. Mas ela bem sabia que não era; ergueu-se</p><p>e foi buscar seu anel. Quando ela o trouxe, todos os cavaleiros o examinaram com</p><p>estupefação, pois tinham ambos o mesmo formato, com os mesmos lavores. A</p><p>donzela tomou de volta o anel que trouxera, e disse ao rei que desejava partir, de vez</p><p>que, diante do rei, o cavaleiro de sua dama já se oferecera devidamente para sustentar</p><p>a causa.</p><p>- Além disso, acrescentou ela, devo admoestar-vos de parte de minha dama para</p><p>que eviteis que ela resulte injustiçada; que seja aprazado um dia em vossa corte para a</p><p>decisão por batalha, ou que lhe concedam um julgamento.</p><p>O rei disse que assim fará de bom grado, que não iria querer que a coisa ficasse</p><p>nisso. Marcou-lhe o rei a data da véspera de Natal, em Camelot.</p><p>- Pois lá estarão, disse ele, todos os barões de minha terra; quero que este assunto</p><p>seja levado a termo perante eles.</p><p>- Senhor, interveio Bertelai, eu vos asseguro que virei nesse dia para vindicar a</p><p>honra de minha dama. E quero que saibais que, se não houver quem se apreste a lutar</p><p>comigo para contestá-la, nossa pretensão é que a causa de minha dama seja dada</p><p>como ganha.</p><p>O rei considerou isso razoável, e lhe prometeu que se procederia dessa maneira. O</p><p>cavaleiro e a donzela se despediram e partiram da corte, deixando o rei muito</p><p>perturbado com as novas que haviam trazido. Mas a rainha estava desolada mais do</p><p>que todos, e meu senhor Galvão e os demais cavaleiros a confortavam como podiam.</p><p>E a aconselhavam a não desesperar-se, pois não faltará quem a defenda da deslealdade</p><p>que lhe fora imputada.</p><p>Enquanto assim discutiam o incidente na casa do rei Artur, Bertelai e a donzela</p><p>cavalgaram sem cessar até chegar a Camelide. Ao vê-los, a donzela que se fazia</p><p>passar por Genevra lhes pediu notícias, e indagou como haviam desempenhado a</p><p>tarefa. "Bem", eles responderam, e contaram como tinham conseguido uma data para</p><p>a comprovação da demanda.</p><p>- E sabei bem, falou Bertelai, que, se consentirdes em agir como aconselho,</p><p>arranjarei para que tenhais o rei sob vosso domínio. Mas é preciso que antes me</p><p>jureis, em nome dos santos, que fareis o que eu recomendar e não deixareis que me</p><p>desmascarem.</p><p>Ela se disse pronta a jurar.</p><p>- Sabei ainda, ajuntou ela, que se fordes capaz de fazer com que o rei Artur me</p><p>queira tomar, farei de vós homem de alta posição, coberto de honrarias, por todos os</p><p>dias de vossa vida.</p><p>Jurou então como ele prescrevera, e, logo após, ele se despediu dela e saiu.</p><p>Procurou os barões e lhes contou essa aventura, e tratou de convocá-los para uma</p><p>discussão. Uma vez reunidos, Bertelai tomou a palavra e disse que o rei Artur os</p><p>aviltara e tanto fizera em seu prejuízo que não deveriam mais amá-lo. Se ele fosse</p><p>homem de bem, não teria aprisionado sua mulher, dama gentil e de alta linhagem, e</p><p>sim a conservaria honrosamente como rainha.</p><p>- E ele a confinou em tal lugar, falou ele, que só lhe coube tristeza e desconforto.</p><p>Expostas estas razões, perguntou-lhes o que fariam. Houve quem dissesse que</p><p>refletiriam antes de qualquer ação e tentariam apurar a verdade, pois não acreditavam</p><p>que o rei Artur, o maior gentil-homem que existia, tivesse cometido felonia</p><p>semelhante. Mas, se verificassem que ele os afrontara a tal ponto, arriscariam o corpo</p><p>e a vida para vingar a humilhação.</p><p>- Por minha fé, falou Bertelai, visto que nada mais quereis fazer, voltarei para dizer</p><p>à minha dama que, de ora em diante, faça o melhor que pode, de vez que falhou em</p><p>obter vosso socorro!</p><p>Dito isso, afastou-se dali, e atrás dele seguiram uns vinte cavaleiros, declarando</p><p>que irão com ele aonde lhe aprouver e executarão suas ordens sem hesitação. Bertalai</p><p>lhes agradeceu e disse que os verdadeiros gentis-homens se revelam onde quer que</p><p>estejam.</p><p>- Mas, disse ele, se Deus quiser consentir que minha dama venha a superar um dia</p><p>a situação dolorosa em que se encontra, serão amargamente galardoados esses que lhe</p><p>faltaram na adversidade.</p><p>Cavalgaram, ele e sua companhia, até chegar aonde estava a donzela. Bertelai</p><p>contou-lhe como tantos dentre seus homens haviam falhado desta feita em relação a</p><p>ela.</p><p>- Mas faríeis mal em vos afligir por isso, falou ele, pois, se agradar a Deus, estareis</p><p>ainda em posição tão honrosa como estiveram vossos antepassados.</p><p>Durante a noite os cavaleiros permaneceram com a donzela. Terminada a ceia,</p><p>Bertelai os chamou e lhes perguntou se podia revelar-lhes suas intenções em</p><p>confiança. Responderam que manifestasse com segurança sua vontade, pois nunca a</p><p>porão a descoberto onde cuidem que possa prejudicá-lo.</p><p>- Direi pois, falou ele, o que pensei fazer sobre este caso. Na verdade não temos</p><p>recursos militares nem poder para guerrear contra o rei Artur; em nossas ações mais</p><p>nos valerá o engenho do que a força. E cuido, prosseguiu ele, que colocarei o rei em</p><p>tal ponto que nos apossaremos dele sem grande luta. Em seguida o traremos para esta</p><p>terra, sem que homem algum de sua casa fique sabendo. E então, quando o tivermos</p><p>como nosso prisioneiro, já não estará em condições de recusar-se a fazer a paz com</p><p>minha dama. Agora dizei-me, concluiu, o que vos parece, pois gostaria, desde agora,</p><p>de nada fazer sem vosso consentimento, pois que prezais a honra de minha dama tanto</p><p>quanto eu.</p><p>Eles replicaram que concordavam inteiramente que assim se fizesse.</p><p>- Empreendei decididamente tudo que vos agradar, acentuaram, pois até a morte</p><p>não vos faltaremos.</p><p>Ficou nisso a conversa. No dia seguinte, Bertelai disse à donzela que se aprontasse.</p><p>- Pois ireis conosco, explicou.</p><p>- De boa vontade, respondeu ela.</p><p>Ele mandou trazer um palafrém, em que montaram ele próprio e a donzela que</p><p>levara a carta à corte. Da mesma forma, montaram os demais cavaleiros e partiram,</p><p>seguindo atrás de Bertelai, para onde ele os quis conduzir. Após dias de caminhada</p><p>chegaram às cercanias de Carduel, onde pediram notícias do rei Artur. Foi-lhes dito</p><p>que ainda estava na cidade. Ouvindo isso, Bertelai ficou muito satisfeito e disse que</p><p>não poderiam encontrar o rei em lugar em que tão facilmente poderiam executar seu</p><p>propósito.</p><p>Naquela noite repousaram em um abrigo religioso situado na orilha da floresta.</p><p>Acobertaram-se o quanto podiam para passarem despercebidos. Na manhã seguinte,</p><p>levantaram-se ao nascer do dia e foram direto à floresta, sob o comando de Bertelai.</p><p>Vagaram até atingir um dos locais mais selvagens que ainda existiam na terra.</p><p>Bertelai os fez desmontar ali e disse que enviaria a Carduel um mensageiro.</p><p>- As palavras de que o farei portador vão atrair</p><p>o rei até aqui, sozinho, sem</p><p>companhia alguma. E vós estareis, ordenou aos cavaleiros, guarnecidos de vossas</p><p>armaduras; agarrai-o logo que esbarrar convosco.</p><p>Eles afirmaram que não temiam senão que o rei não viesse.</p><p>- Na verdade, falou ele, sei com certeza que ele virá assim que ouvir o que lhe</p><p>pretendo comunicar.</p><p>Chamou um escudeiro e lhe ordenou ir a toda pressa à corte do rei Artur.</p><p>- Dize-lhe, instruiu Bertelai, que nesta floresta há um javali, o maior do mundo, tão</p><p>feroz e temível que ninguém ousa vir a esta região, pois já feriu e matou numerosos</p><p>homens. Se ficar aqui muito tempo, devastará toda a mata. Por isso apelam para ele</p><p>todos os do país e lhe pedem ajuda, para que os venha livrar dessa besta, senão</p><p>fugirão do território. Eu sei bem, observou, que ele virá tão logo escutar a notícia. Tu</p><p>o conduzirás diretamente até nós e dirás, quando estiverem perto, que o javali ronda</p><p>por este vale e que tu o mostrarás. Mas deves preveni-lo de que lhe convirá, se quiser</p><p>realmente ver o animal, vir sozinho, pois o javali não se deteria para enfrentar mais de</p><p>dois homens juntos.</p><p>- Senhor, retrucou o valete, de bom grado assim farei.</p><p>Subiu em sua montaria e se despachou, sem poupar as esporas, até chegar a</p><p>Carduel; lá encontrou o rei, que acabara de ouvir missa, saudou-o e disse:</p><p>- Rei Artur, recorro a vós por motivo de grande premência, para pedir-vos um</p><p>socorro que não me podeis negar.</p><p>- De que se trata? perguntou o rei.</p><p>- Eis que existe nesta floresta um javali selvagem, esclareceu o valete, o mais</p><p>graúdo que jamais foi visto. Devastou de tal modo a região em torno de seu refúgio</p><p>que ninguém se atreve mais a morar ali. Por isso me enviam os do país, implorando a</p><p>vós, pelo amor de Deus, que atenteis para o que vos cabe fazer, já que conseguimos</p><p>descobrir o lugar em que o javali se acoita. Se desejardes vir comigo, irei conduzir-</p><p>vos aonde o avistamos estendido na relva.</p><p>- Está certo, declarou o rei, irei de muito boa vontade.</p><p>Chamou então meu senhor Galvão, meu senhor Ivã, Caio o senescal, Beduero o</p><p>condestável e outros mais de sua escolha, para dizer-lhes que desejava ir à caça e que</p><p>deverão ir com ele. E eles assentiram com prazer.</p><p>Sentaram-se para o desjejum, e, ao acabar de comer, o rei se pôs a caminho, e com</p><p>ele bastantes cavaleiros, indo à frente o valete que os conduzia aonde cuidavam</p><p>surpreender o javali. Tanto andaram que chegaram a menos de três tiros de flecha dos</p><p>homens que os esperavam na floresta. E então o valete disse ao rei:</p><p>- Senhor, falta pouco para o lugar onde está o javali. E tende certeza de que é o</p><p>mais extraordinário que vossos olhos ainda verão. Mas, se quiserdes vê-lo, é preciso</p><p>que deixeis vossa escolta, pois não irá deter-se para fazer frente a tanta gente reunida.</p><p>Disse o rei que bem podia ser como ele dizia. Tomou seu arco e suas setas e se foi</p><p>com o valete, recomendando aos cavaleiros que não se movessem dali antes de vê-lo</p><p>de volta. E eles lhe asseguraram que não o fariam. Mas por muito longo tempo teriam</p><p>de permanecer ali se quisessem aguardar sua volta, pois o escudeiro o conduziu até o</p><p>vale onde Bertelai e seus companheiros estavam emboscados. Vendo-o aproximar-se</p><p>desse jeito, ficaram satisfeitos, sabendo que ele não teria como escapar de ser</p><p>capturado. Ele, todavia, foi seguindo o escudeiro, sem desconfiar de nada, até tombar</p><p>no meio deles. E, de súbito, eles se precipitaram de todos os lados e o pegaram antes</p><p>que pudesse resguardar-se. Quando percebeu a situação, assustou-se ao extremo e lhes</p><p>pediu, por Deus, que não o matassem. Para tanto, eles advertiram, o rei deveria dar</p><p>sua palavra de que não tentaria fugir. Ele assim lhes afiançou. Logo montaram a</p><p>cavalo e rumaram de volta a seu país, tendo acabado com sucesso sua missão.</p><p>Os cavaleiros do rei o esperaram até noite fechada, tentando imaginar o que estaria</p><p>acontecendo, e temendo que aquele escudeiro que o guiava o houvesse traído.</p><p>Partiram então à sua procura na direção em que o tinham visto seguir, e vasculharam</p><p>por todo lado, de cima a baixo. Vendo que não o encontravam, voltaram cheios de</p><p>angústia. Na casa do rei Artur, a noite foi de grande aflição para damas e cavaleiros.</p><p>Já a donzela que levava o rei não estava nem um pouco contrariada, antes alegre,</p><p>acima de todas as que jamais provaram a felicidade, porque contava ter agora como</p><p>arranjar para tornar-se a rainha coroada da Bretanha, de vez que tinha o rei em seu</p><p>poder.</p><p>Foram assim cavalgando até atingir a abadia de que a donzela saíra. Não é preciso</p><p>perguntar se o rei foi honrado nessa noite, pois todos se esmeraram em lhe</p><p>proporcionar tudo que havia de bom. Na hora da refeição, sentaram-se à mesa, mas o</p><p>rei se alimentou muito mal, desalentado com o que lhe acontecera. A donzela e</p><p>Bertelai haviam preparado uma bebida, da qual o rei bebeu enquanto comia. Assim</p><p>que bebeu, esfriou-se a ira que lhe escaldava o corpo, e ele tornou-se tão eufórico</p><p>quanto o mais alegre dos convivas. A donzela ficou muito contente e pensou consigo</p><p>mesma que muito haveria de conquistar se pudesse fazer com que o rei a acolhesse</p><p>em seu amor. Terminada a refeição, chegada a hora de dormir, levaram o rei a um</p><p>quarto onde tinham arrumado um leito tão ricamente como convinha a tal</p><p>personagem. Chegou então a donzela diante dele, com sua grande beleza, e lhe disse</p><p>que deitariam juntos nesse leito. E o rei, já apaixonado por causa da bebida que ela lhe</p><p>dera, respondeu que isso lhe agradaria muito.</p><p>- Deveras, senhor, falou ela, se sois gentil-homem, deveria agradar-vos bastante. E</p><p>deveríeis sentir grande alegria no coração por Deus nos reunir, depois de tão</p><p>longamente terdes vivido em adultério. Mas, praza a Deus, ainda terá sua retribuição</p><p>aquela que maquinou para nos separar. E se ela não pagar por isso neste mundo,</p><p>pagará no outro, se Deus dá a cada um o que merece, conforme promete a Escritura.</p><p>Pois, na medida em que o homem desfaz por seu arbítrio o que Deus estabeleceu</p><p>através da Santa Igreja, torna-se inimigo de Jesus Cristo e deverá perder a parcela que</p><p>lhe caberia da felicidade eterna.</p><p>O rei declarou que, se puder descobrir a verdade, tomará tão grande vingança que</p><p>dela falarão para todo o sempre.</p><p>Com isso se deitaram juntos, viveram bons momentos nessa noite. Antes que</p><p>nascesse o dia, a donzela havia de tal forma seduzido o rei, que ele a amava acima de</p><p>qualquer outro ser vivente. Mas ela não queria ainda revelar a ele seu intento, por ser</p><p>cedo demais; dissimulou seus pensamentos, enquanto surgia o novo dia. Levantaram-</p><p>se, foram à missa. Depois de ouvi-la cantar, voltaram ao quarto da donzela e se</p><p>sentaram na cama em que haviam passado a noite. O rei a contemplava com muito</p><p>gosto. E, quanto mais a olhava, melhor lhe parecia, pois era linda.</p><p>E contudo voltava a lembrar-se daquela que por tão longo tempo fora sua</p><p>companheira, e que era tão cortês e valorosa, bem como de meu senhor Galvão e dos</p><p>outros cavaleiros de sua casa, os quais já não esperava rever. Seu coração se condoeu</p><p>e não pôde evitar de fazer cara triste nesse momento. Mas a donzela o reconfortou,</p><p>dizendo que não deveria ter medo de ser desonrado nem rebaixado.</p><p>- Se agradar a Deus, falou ela, sereis ainda mais exaltado diante de Deus e do</p><p>mundo do que não fostes nunca.</p><p>Demorou-se o rei ali, por quinze dias, com a donzela, e foi muito servido e</p><p>honrado por todos e por todas. E todos os dias a donzela lhe dava a beber da poção</p><p>que fabricara com a ajuda de Bertelai; lidou com ele de tal modo que, antes que os</p><p>quinze dias tivessem passado, ela era a coisa viva que ele mais amava. E o grande</p><p>amor que sentia por ela o fazia dizer que era verdadeiramente com ela que se havia</p><p>casado, e queria que, de ora em diante, fosse aclamada rainha da Bretanha.</p><p>- Por demasiado tempo, dizia ele, a coroa foi usada com deslealdade, pois, quem a</p><p>trazia na cabeça, foi por ato criminoso e traiçoeiro que se apossou dela.</p><p>- Bem podeis imaginar,</p><p>senhor, falou a donzela, quão longa foi minha dor,</p><p>enquanto sabia deveras que permanecia despojada da mais alta dignidade do mundo,</p><p>da qual uma outra se assenhoreava sem direito nem razão. Mas até há pouco não havia</p><p>achado alguém que, por Deus ou por piedade, fosse clamar diante de vós; sabia bem</p><p>que, gentil-homem como sois, de boa vontade iríeis emendar o erro desde que</p><p>soubésseis a verdade.</p><p>O rei replicou que não teria persistido tão longamente em tão vil pecado se</p><p>soubesse tanto como agora lhe fora revelado.</p><p>- Mas atentai bem, falou, que eu não supunha que mulher alguma do mundo se</p><p>pudesse equiparar àquela que me desonrou na terra com seus ardis e me tornou desleal</p><p>em face de meu Criador, o que grandemente me aflige o coração. Nenhuma dama,</p><p>continuou dizendo, foi tão sensata como ela nem de tão grande cortesia, nem tão doce,</p><p>nem tão afável. Quanto à generosidade, nada eram, comparadas com ela, todas as</p><p>mulheres que jamais viveram. Tão bons sinais a distinguiam e, por seu grande valor,</p><p>ganhara a tal ponto os corações dos ricos e dos pobres por todo o reino da Bretanha,</p><p>que a proclamavam a esmeralda de todas as damas que existem. Mas eu cuido,</p><p>concluiu ele, que tudo isso que ela fez foi para enganar a mim e aos outros, de modo</p><p>que ninguém se apercebesse de sua felonia e impostura.</p><p>- Senhor, falou a donzela, é sempre costume daqueles que se dão à malvadeza</p><p>serem mais enganadores do que quaisquer outros.</p><p>- Decerto, retrucou o rei, pode bem ser assim. Mas muito me surpreendo de que um</p><p>coração desleal pudesse ser tão marcado por todas as boas qualidades como era o seu.</p><p>E contudo, ressalvou, não o digo por amor que sinta por ela, antes a odeio desde agora</p><p>de tão grande ódio que não conhecerei alegria enquanto haja vida em seu corpo. Se</p><p>não perdi corpo e alma, graças a ela é que não foi.</p><p>Assim falava o rei da rainha, teimando em louvar suas virtudes perante aquela que</p><p>procurava seu dano e vergonha. Ele demorou-se dessa maneira com a donzela até que</p><p>ela se certificasse de que ele a amava de bom amor, o que muito a satisfez e a todos os</p><p>seguidores dela. Bertelai veio então procurar o rei e lhe disse:</p><p>- Senhor, falou, é grande o júbilo quando apraz a Nosso Senhor dar-vos ânimo para</p><p>vos arrepender de vosso pecado e deixar a má vida que leváveis. Se for essa vossa</p><p>vontade, minha dama convocará os cavaleiros através de sua terra e lhes fará saber da</p><p>paz e do amor que reinam entre vós e ela, pois já tarda muito que conheçam a honra</p><p>que lhe adveio.</p><p>O rei respondeu que isso muito lhe agradaria e que, de ora em diante, queria que a</p><p>considerassem qual dama e com todas as honrarias em todos os lugares a que se</p><p>estendia seu domínio. Para tanto, Bertelai pediu vênia ao rei e à sua donzela, e partiu</p><p>para ir contar aos mais ilustres barões do reino de Camelide como o rei fizera acordo</p><p>com sua senhora. Tanto fez que logrou trazer consigo parte deles para onde estavam o</p><p>rei e a donzela. Ao avistarem o rei, esses barões o festejaram e muito penaram para</p><p>servi-lo e honrá-lo; não o viam no país desde que desposara a rainha Genevra.</p><p>Disseram-lhe que não deveria ter-se mantido tão ausente, mas ele explicou que tivera</p><p>tanto a fazer que não o culpariam se soubessem das grandes vicissitudes que</p><p>enfrentara após partir da Bretanha.</p><p>Foi grande o regozijo dos barões de Camelide na reunião com o rei Artur.</p><p>Finalmente, o rei partiu do lugar em que estivera morando e percorreu o território,</p><p>cavalgando com vasta companhia de cavaleiros. E a donzela seguia junto, pois o rei já</p><p>não podia passar sem ela. Vieram-lhes ao encontro todas as damas do país,</p><p>convencidas de que se tratava verdadeiramente de sua dama e senhora, dado que o</p><p>próprio rei Artur como tal a confirmava. Ela foi assaz honrada em todas as</p><p>importantes cidades por onde passou, e os que a queriam homenagear lhe deram</p><p>muitos presentes ricos.</p><p>Depois de percorrer os vários cantos do reino, o rei tornou a hospedar-se onde a</p><p>donzela o trouxera antes, pois a casa era muito confortável e prazerosa. Disse aos</p><p>cavaleiros que estavam com ele que desejava mandar buscar meu senhor Galvão, seu</p><p>sobrinho, e os outros companheiros de sua casa.</p><p>- Bem sei, falou, que muito se inquietam por achar que me perderam.</p><p>Chamou Bertelai e lhe perguntou a quem poderia enviar a seu país. Ele lhe trouxe</p><p>um escudeiro, que o rei encarregou de sua mensagem, dando-lhe credenciais escritas</p><p>para que dessem ouvidos ao que iria dizer em seu nome. Após receber suas instruções,</p><p>o escudeiro partiu e se pôs a caminho. E o rei se deixou ficar, cercado de alegria e se</p><p>entretendo com as damas e cavaleiros.</p><p>Mas a rainha, que ele deixara na Bretanha, nenhuma disposição tinha para alegrar-</p><p>se. Ao contrário, a cada dia tanto se condoía que era surpreendente que pudesse</p><p>resistir. Por sua vez, todos os cavaleiros da casa real se sentiam desconfortados ao</p><p>extremo e diziam que não se contentariam enquanto não ouvissem alguma nova.</p><p>Saíram a procurar o rei por toda parte, e com freqüência retornavam à corte para saber</p><p>se a rainha já teria ouvido algo.</p><p>O valete que o rei expedira empreendeu apressado sucessivas jornadas até chegar à</p><p>Bretanha, onde inquiriu notícias da rainha. Foi informado de que estaria em Camelot,</p><p>pois para lá se dirigira à espera do Natal que se aproximava. Ela queria dar</p><p>cumprimento às promessas que Artur fizera aos cavaleiros estrangeiros: o rei deveria</p><p>reunir sua corte e havia ordenado que a ela comparecessem homens de todas as terras.</p><p>Haja o que houver, afirmou a rainha, ela fará como puder as honras aos gentis-</p><p>homens. Irá presidir a corte em lugar de seu marido, por cuja ausência sentia grande</p><p>pesar no coração. Fará isso para manter a honra da Bretanha; ficaria desolada se a</p><p>visse diminuída desta feita.</p><p>Quando o escudeiro que levava as novas do rei soube que a rainha estava na</p><p>cidade, acorreu o mais cedo que pôde e, com ela, encontrou meu senhor Galvão, que</p><p>nesse mesmo dia regressara de sua busca. Ali estavam também Caio o senescal e</p><p>diversos outros cavaleiros. Vendo aproximar-se o valete, meu senhor Galvão disse à</p><p>rainha que dessa vez teriam notícias. Aquele apresentou-se, mas não saudou a rainha,</p><p>antes a encarou com malícia, e dirigiu-se a meu senhor Galvão:</p><p>- Senhor, o rei vosso tio vos manda saudações.</p><p>Mal disse isso, meu senhor Galvão precipitou-se em sua direção e o abraçou</p><p>efusivamente, para logo lhe perguntar onde estava seu tio.</p><p>- Com toda certeza, respondeu o escudeiro, está em Camelide com minha dama a</p><p>rainha. E vos conclama, pela fé que lhe deveis como seu súdito e seu sobrinho, para</p><p>que venhais a ele, trazendo todos os barões do reino de Logres, porquanto, neste</p><p>Natal, cingirá a coroa na terra de minha dama e reunirá a corte com grande pompa.</p><p>Deseja que, diante de todos os seus barões, minha dama seja ungida e consagrada e</p><p>receba a honra da coroa da Bretanha.</p><p>- Como? exclamou meu senhor Galvão. É essa a donzela que no outro dia enviou</p><p>aqui o velho cavaleiro ao rei meu senhor, para requerer que a aceitasse?</p><p>- Senhor, respondeu o escudeiro, é ela sem dúvida. Tanto ela o quis e se empenhou</p><p>que, por vontade de Deus, o rei a reconheceu, percebendo que era ela de fato a mulher</p><p>que havia desposado, e através da qual detém a posse da Távola Redonda e o domínio</p><p>de toda a terra que fora do rei Leodagan. E levai convosco, acrescentou o valete,</p><p>porque assim determina o rei vosso tio, aquela dama que ali está, que tanto mal quis e</p><p>realizou. Receberá a retribuição devida pela traição que cometeu contra minha dama e</p><p>que lhe permitiu ser mantida, até aqui, com grande honra.</p><p>Vendo meu senhor Galvão os sinais que o rei lhe enviara, e constatando que ele</p><p>estava são e salvo, não é preciso perguntar se exultou de alegria; nunca ficou tão feliz</p><p>com coisa que lhe acontecesse. Todos os demais tiveram também a maior alegria que</p><p>se possa imaginar. Mas, se a rainha já sofria, agravou-se sua dor nesse momento, pois</p><p>assaltou-a o temor de que, por</p><p>algum pecado passado, Nosso Senhor a quisesse ver</p><p>humilhada e desonrada na terra. Tão atormentada estava que ninguém a podia</p><p>confortar ou acalmar. O valete pediu licença a meu senhor Galvão para ir-se, mas este</p><p>lhe disse que não partisse ainda.</p><p>- Em vez disso, falou Galvão, ficarás comigo até que cheguem os barões deste país.</p><p>Aí então nos conduzirás, todos juntos, até onde sabes que está o rei meu senhor.</p><p>- Senhor, retrucou, ficarei o quanto vos aprouver, pois bem sei que nunca serei</p><p>censurado por algo que faça por vós.</p><p>Assim quedou-se o mensageiro com meu senhor Galvão. Este enviou recado a</p><p>todos os barões do reino, ordenando que todos se reunissem a ele o mais rapidamente</p><p>que pudessem, dado que ele tinha obtido notícias autênticas do rei. Muitos foram os</p><p>que se alegraram, quando antes haviam experimentado inquietações. E a rainha, com</p><p>o coração tomado de aflição, decidiu mandar chamar Galehaut e Lancelote, segura de</p><p>que eles a aconselhariam sobre seus apuros no que fosse preciso. Chamou uma de</p><p>suas servidoras e a enviou, insistindo para que partisse logo. A donzela foi o mais</p><p>rapidamente que pôde, e seguiu jornada até chegar aonde Galehaut e Lancelote</p><p>estavam. Transmitiu sua mensagem do começo ao fim.</p><p>- E sabei, concluiu, que se esperardes até o Natal para vir, já não vereis mais minha</p><p>dama. Portanto vos peço e rogo: vinde socorrê-la nesta hora de necessidade. Se</p><p>alguma vez ela fez coisa de vosso agrado, é agora que muito carece de que</p><p>recompensem seus serviços. E vós, senhor cavaleiro, falou ela a Lancelote, deveis</p><p>penar e labutar mais do que qualquer um para garantir a honra de minha dama. Se ela</p><p>for desonrada à vossa frente, quando vos seria possível defendê-la, tereis por justiça</p><p>perdido vossa honra.</p><p>- Certamente, respondeu ele, estando eu vivo ela não será jamais desonrada  que</p><p>eu antes perca a vida a defendê-la!  se puder apresentar-me onde quer que deva ser</p><p>justificada em combate singular. Mais de uma noite não passarei em cidade alguma</p><p>antes que chegue aonde ela estiver.</p><p>- Senhor, disse a donzela, ela tem grande confiança em vós, e sabe que, ainda que</p><p>lhe falhem todos os demais, vós a assistireis até a morte.</p><p>- Deus me ajude, exclamou ele, assim farei; e é meu dever que o faça, pois nunca</p><p>tive alegria que não viesse dela.</p><p>As notícias trazidas deixaram Galehaut e Lancelote por demais perturbados, muito</p><p>lhes tardava estar com a rainha para apurar melhor a verdade. Saíram de manhã, logo</p><p>que viram nascer o dia, e viajaram por longas jornadas até chegar a Camelot. Ao vê-</p><p>los, a rainha sentiu-se mais tranqüila que antes, e meu senhor Galvão e todos os outros</p><p>lhes fizeram grande festa. A rainha os levou ao quarto dela, querendo queixar-se a</p><p>eles de seu infortúnio. Primeiro lhes contou como a donzela tinha enviado Bertelai à</p><p>corte, como dali partira, e através de que espécie de traição haviam cativado o rei.</p><p>- Foi assim que ele se enamorou da donzela, falou a rainha, e então mandou dizer a</p><p>meu senhor Galvão, seu sobrinho, e a todos os barões de seu reino que viessem a ele;</p><p>pois, neste Natal, desejava reunir a corte em Camelide e coroar a donzela, que a tal</p><p>ponto o enganou com sua astúcia. E determinou que eu deverei ser presa e trazida a</p><p>essa grande festa para ser destituída, diante de todos, pelo julgamento dos traidores</p><p>que arranjaram a coisa. Por causa disso, falou ela, pedi que viésseis e vos suplico que</p><p>me aconselheis quanto ao que poderei fazer, pois estou muito atemorizada.</p><p>- Dama, disse Galehaut, não vos desespereis. Deveis conter firmemente vossa</p><p>emoção, pois senão iríeis parecer culpada da impostura da qual aquela donzela vos</p><p>acusa. Mas vos direi, acrescentou, o que fareis. Seguireis acompanhada de meu senhor</p><p>Galvão, vosso sobrinho, e com outros gentis-homens que vos amam e que a</p><p>contragosto vos veriam tratar injustamente. Também nós, eu e Lancelote, iremos</p><p>convosco, e sabei que levarei todas as minhas forças. Se eles considerarem que deve</p><p>haver combate judiciário, estará completamente equipado aquele que se baterá por</p><p>vós. E, se de outra forma vos quiserem fazer morrer, teremos tal companhia que vos</p><p>poderemos socorrer e tirar à força, já não serão eles homens tais que nos ousem</p><p>resistir. Em seguida, falou Galehaut, eu vos trarei a meu país e darei a vós e a meu</p><p>companheiro o reino de Sorelois, que é muito rico e bonito; ele será rei e vós rainha, e</p><p>levareis uma vida feliz, juntos, como seres que mutuamente se amam.</p><p>- Senhor, falou ela, grata vos sou por vosso oferecimento. Não o recuso, que sois,</p><p>abaixo de Lancelote que aqui está, o homem no mundo em que mais confio para</p><p>salvar minha honra e minha vida.</p><p>- Dama, disse Galehaut, estai segura de que vos guardarei como puder e ficarei ao</p><p>vosso lado contra todos os homens, nem que deva afrontar o rei Artur, a quem devo</p><p>vassalagem.</p><p>Nisso, saíram os três do quarto e, com eles, a dama de Malohaut. Passaram à sala,</p><p>onde meu senhor Galvão e muitos outros cavaleiros os aguardavam. Galehaut pediu a</p><p>opinião deles sobre as intenções do rei quanto à rainha. Responderam que ainda não</p><p>sabiam quais eram, mas que ela não tenha medo, pois a protegerão como puderem</p><p>contra todos que se dispuserem a maltratá-la ou causar-lhe dano. Assim se apressaram</p><p>todos a lhe oferecer socorro e proteção.</p><p>Demoraram-se em Camelot até que chegaram os barões que meu senhor Galvão</p><p>convocara, e então se puseram a caminho para alcançar Camelide. Houve bom</p><p>número de damas e donzelas a acompanhar a rainha, enquanto as que ficaram muito</p><p>se lamentavam, por acharem que não mais a veriam. E Galehaut mandou mensagem a</p><p>sua terra, ordenando a todos os seus cavaleiros que se juntassem a ele, o mais</p><p>fortemente armados que lhes fosse possível, e que estivessem na data do Natal no</p><p>lugar em que o rei Artur pretendia reunir sua corte, pois tinha grande necessidade</p><p>deles.</p><p>Ele próprio, Lancelote e a rainha seguiram viagem, e viveriam momentos</p><p>agradáveis se não fosse pela desdita da rainha. Cavalgando por curtas etapas a cada</p><p>dia, chegaram por fim à terra de Camelide. Avisado de sua presença, o rei ficou muito</p><p>contente e veio ao encontro deles com grande escolta de cavaleiros e fez muita festa a</p><p>meus senhores Galvão e Ivã e a todos os demais. Mas nem sequer voltou os olhos</p><p>para a rainha. Depois de confraternizar com todos, retornou a Galehaut e Lancelote,</p><p>de quem gostava muito. Abraçando Lancelote pelo pescoço, disse-lhe:</p><p>- Senhor cavaleiro, acima de todos os outros cavaleiros sede benvindo!</p><p>Mas Lancelote não lhe retribuiu o abraço de boa vontade, pois passara a detestá-lo</p><p>mais do que a qualquer outro, e estaria disposto a renegar seu compromisso de</p><p>homenagem sem a menor hesitação. Mas receava que tal ato fosse tido como vilania,</p><p>e por isso escondeu o que pensava, não querendo que descobrissem seus sentimentos.</p><p>Aparentou então cara mais alegre do que lhe ditava o coração. Todavia ele e Galehaut</p><p>se mantiveram próximos à rainha. Dessa maneira foram cavalgando até atingir a</p><p>habitação em que o rei morava desde sua chegada à terra. Lá acharam uma multidão</p><p>de cavaleiros, damas e donzelas, bem como de burgueses e outras gentes vindas de</p><p>todas as partes do país para ver o que seria feito da rainha.</p><p>Todos que acompanhavam Artur foram recebidos com todas as honras, exceto</p><p>apenas a rainha; esta não encontrou entre os circunstantes quem a encarasse com</p><p>amabilidade, pois todos os habitantes da região a odiavam a tal ponto que nenhum</p><p>deixaria de fazer o que pudesse para causar-lhe a morte. O rei nem sequer consentiu</p><p>que ela se instalasse na morada que ele ocupava. Ela, muito magoada, abrigou-se em</p><p>uma acomodação próxima. Sabei que junto a ela se alojaram todos os homens mais</p><p>ilustres do reino de Logres. A despeito do pedido do rei, não quiseram deixar sua</p><p>companhia, dizendo inclusive que ele lhes infligia grande vergonha ao recusar-se a</p><p>recebê-la estando ela sob a escolta deles, e dado que nada se provara ainda contra ela.</p><p>- Na realidade,</p><p>falou o rei, apurei tanto sobre ela que, se soubésseis a verdade dos</p><p>fatos tão bem quanto eu, vós a odiaríeis de todo o coração, pois é a criatura mais</p><p>desleal que existe.</p><p>Eles replicaram que quem a acusava de deslealdade poderá no fim arrepender-se</p><p>amargamente. Ouvindo essas palavras, o rei ficou muito irado, ciente de que era a eles</p><p>que competiria o julgamento da rainha. Percebeu que ela contava com gente em sua</p><p>companhia que ousaria contradizer, com ou sem razão, aquilo de que a queria</p><p>inculpar. Mas, se puder, logo irá tratar de impedir que algum desses gentis-homens</p><p>empreenda sua defesa.</p><p>Nisso, os que apoiavam a rainha afastaram-se do rei. Embora ele insistisse com</p><p>Galehaut e Lancelote para que ficassem, eles não se sentiam inclinados a permanecer</p><p>com ele, achando-se mais à vontade em outro lugar. Disseram que não se deteriam, de</p><p>vez que todos os outros tinham ido embora, partindo dali. Muito surpreso ficou o rei</p><p>de ser assim abandonado por todos os gentis-homens. Nos alojamentos da rainha</p><p>Genevra foi grande a alegria, com Galehaut e Lancelote se divertindo muito,</p><p>entretidos com suas damas até por volta da meia noite. Foram então as damas deitar-</p><p>se em um quarto, enquanto os cavaleiros se acomodaram na sala.</p><p>De manhã, levantou-se o rei tão logo viu nascer o dia. Mandou vir Galehaut,</p><p>Lancelote e parte dos demais gentis-homens, para comunicar-lhes seu desejo de que</p><p>fosse dado andamento rápido ao assunto:</p><p>- Pois muito me incomodaria se isso atrasasse a reunião de minha corte, que tenho</p><p>intenção de celebrar com pompa.</p><p>Eles responderam que a rainha estava pronta para submeter-se aos barões de sua</p><p>casa.</p><p>- E quero, falou o rei, que o julgamento tenha lugar daqui a três dias na cidade de</p><p>Camelide, que é a capital deste reino. Trarei a coroa na cabeça no dia de Natal,</p><p>acrescentou ele, e reunirei a corte com toda a magnificência, e será coroada naquela</p><p>cidade a dama que, por direito de herança, deve possuir a terra e as honrarias.</p><p>Eles disseram que não tinham qualquer temor de que fosse deserdada aquela que,</p><p>até então, as detivera com a máxima grandeza, pois, no dia em que a espoliassem,</p><p>toda alegria haveria de cessar.</p><p>- E isso causaria grande dor em todo o mundo, advertiram eles.</p><p>Nesse ponto ficou a discussão e o rei foi ouvir missa, enquanto os outros foram</p><p>buscar a rainha e a conduziram à igreja. Dita a missa, como eram curtos os dias de</p><p>inverno, apressaram-se a voltar à habitação para comer e logo selar os cavalos e</p><p>montá-los. Puseram-se então todos a caminho e viajaram de modo a chegar no dia</p><p>seguinte a Camelide.</p><p>Os da cidade fizeram uma grande festa, enfeitando as ruas muito ricamente, por</p><p>amor ao rei e à rainha. Não obstante não saberem ainda qual delas seria a rainha</p><p>verdadeira, a maioria preferia aquela que o rei tinha em sua companhia, que foi muito</p><p>mais honrada do que a rainha Genevra. Mas esta não se importou, já que tinha</p><p>consigo a flor de toda a cavalaria do mundo.</p><p>Houve à noite muito regozijo na morada do rei Artur, lá estando todos os barões do</p><p>reino de Camelide, que muito se esfalfavam para honrá-lo e, outrossim, à donzela, a</p><p>quem consideravam verdadeiramente como sua dama. E não era de admirar, já que o</p><p>próprio rei concordava. No entanto a donzela não se sentia à vontade; em vez disso</p><p>sofria profundo mal-estar em seu íntimo, com grande pavor de que lhe adviesse uma</p><p>desgraça por ter-se metido em tão grande traição. Fazia cara bem mais alegre do que</p><p>sentia por dentro. Quando se queixava a Bertelai, ele a confortava e reassegurava,</p><p>dizendo que não desanimasse, pois ele faria todo o necessário para que ela fosse</p><p>coroada diante de todos que agora pretendiam opor-se. Assim Bertelai tranqüilizava a</p><p>donzela.</p><p>De sua parte, a rainha, em sua morada, muito se alegrava de assim terem vindo</p><p>todos os gentis-homens como seus aliados. Quando à noite estavam sentados para</p><p>comer, lá entrou um valete e disse a Galehaut que o Rei dos Cem Cavaleiros o</p><p>saudava, e Galehaut de pronto lhe indagou onde estava aquele rei.</p><p>- Senhor, falou o valete, ele vos informa que seguramente estará pela manhã nesta</p><p>cidade, antes de soar a hora prima do dia, pois o local em que o deixei não está a mais</p><p>de duas léguas de distância. E com ele estão vindo vossos cavaleiros, assim como</p><p>mandastes.</p><p>Satisfeito com o que ouvira, Galehaut disse à rainha que dali em diante não tivesse</p><p>receio, pois que seus cavaleiros tinham chegado; cuidava que a podia proteger muito</p><p>bem em face de todos os seus inimigos, fossem eles em número ainda maior do que</p><p>agora. A rainha lhe agradeceu muito e disse que ele mais fazia por ela nesta provação</p><p>do que ela jamais poderia retribuir.</p><p>- Dama, falou ele, tanto fizestes por mim no passado que, pelo amor que vos tenho,</p><p>exporei meu corpo ao perigo até a morte, tanto eu como todos aqueles que de mim</p><p>dependem.</p><p>- Senhor, ela replicou, demonstrais bem que muito fareis por mim, ao convocar e</p><p>trazer vossas forças a esta terra para me socorrer e livrar das mãos de meus inimigos.</p><p>Tiradas as mesas, reuniram-se os cavaleiros, sentando-se ao redor da rainha, e</p><p>começaram a conversar sobre muitas coisas. Disseram todos que ela agora terá</p><p>recompensados os serviços que sempre lhes prestou; não haverá dentre eles quem não</p><p>prefira perder a vida do que, por sua omissão, vê-la decaída e desonrada. E ela</p><p>agradeceu a todos, dizendo com isso esperar que Deus lhe seja propício, dado que não</p><p>fora jamais culpada do que a acusavam.</p><p>Assim se entretiveram longamente até a hora de dormir, quando a rainha se</p><p>recolheu e os cavaleiros foram deitar-se, parte na sala e os demais em seus</p><p>alojamentos. No dia seguinte ergueram-se cedo, indo a rainha ouvir missa na mesma</p><p>capela em que o rei Artur se casara com ela. Rezou a Nosso Senhor de todo o coração</p><p>para que a defendesse da vergonha nesse dia, tanto era verdade que, nessa mesma</p><p>capela em que agora estava, o rei a recebera outrora como mulher. Cantada a missa,</p><p>ela chamou de parte o capelão e fez-lhe a confissão de todos os pecados que</p><p>acreditava ter cometido. Depois saiu da capela e foi, acompanhada por muitos gentis-</p><p>homens, à morada que pertencera a seu pai e onde se hospedava o rei Artur. Não veio</p><p>porém empobrecida nem como mulher sujeita a ser condenada à morte, pois vinham</p><p>com ela os mais fidalgos homens do mundo.</p><p>O rei já chegara da igreja com a donzela e estavam ambos na sala de cima, repleta</p><p>de cavaleiros e outras gentes. Quando a rainha lá entrou, foi encarada por muitos que</p><p>verdadeiramente a odiavam. Sabei que seu coração muito se angustiou ao ver, ao lado</p><p>de seu senhor, sentar-se aquela que, por felonia, causava seu atual sofrimento. E a</p><p>donzela não se sentiu segura ao vê-la aproximar-se tão honrosamente, sentindo</p><p>enorme pavor de ter de pagar pela traição perpetrada; se pudesse, ela se arrependeria</p><p>abertamente de ter dado ouvidos ao conselho de Bertelai. A rainha se apresentou</p><p>diante do rei e o saudou, e contudo ele não lhe devolveu a saudação, mas a fitou com</p><p>hostilidade, como quem não a via com bons olhos. E ela sentou-se à parte, com</p><p>Galehaut ao lado e perto de Lancelote e numerosos outros cavaleiros. Nessa mesma</p><p>hora entravam na cidade os homens de Galehaut, levantando tão grande ruído que os</p><p>cidadãos se assustaram. Mesmo o rei ficou muito inquieto e perguntou quem eram</p><p>esses. Explicou Galehaut que era gente sua.</p><p>- Pois eu tinha ouvido dizer, falou Galehaut, que éreis prisioneiro nesta terra, e por</p><p>isso chamei os meus para vos acudir e socorrer.</p><p>O rei lhe agradeceu e determinou que os homens fossem acolhidos com honra, e</p><p>que se providenciasse para eles hospedagem e tudo o mais. Eles se instalaram a seu</p><p>gosto e, em seguida, vieram à corte o mais depressa que puderam. As salas se</p><p>encheram quando entraram todos os cavaleiros.</p><p>Então Galehaut apresentou-se diante do rei e falou pela rainha, em voz tão alta que</p><p>boa parte dos cavaleiros o escutaram claramente, e disse:</p><p>- Senhor, minha dama requer</p><p>Rio de Janeiro, 17 de agosto de 2002.</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>A Idade Média que gostamos de imaginar é a época romântica das aventuras de</p><p>cavalaria. É quando a Europa cantava os feitos heróicos do rei Artur, do imperador</p><p>Carlos Magno, de Ricardo Coração de Leão, de Robin Hood, do Cid Campeador,</p><p>entre tantos outros. Embora muitas lendas tenham sido acrescentadas aos fatos</p><p>históricos comprovados, sabemos que vários desses homens realmente existiram.</p><p>E o rei Artur, especificamente? Quanto a ele a discussão prossegue até hoje! Mas,</p><p>tenha ou não existido, o certo é que numerosos autores medievais, alguns anônimos,</p><p>produziram em diversas línguas uma quantidade considerável de estórias sobre esse</p><p>rei e seus bravos cavaleiros. São aventuras repletas de elementos fantásticos, primeiro</p><p>movidas pela glória militar ou pelo amor de damas e donzelas, e depois inspiradas</p><p>pela busca do Santo Graal.</p><p>Este livro se dedica ao extraordinário florescimento na França da literatura</p><p>arturiana, no período compreendido pelos séculos XII e XIII. A primeira parte da obra</p><p>começa apresentando a tradição literária criada em torno de Artur, conhecida como</p><p>Matéria da Bretanha, através das três fases pelas quais passou durante o período</p><p>considerado. A cada fase, renova-se o significado da Távola Redonda, emblema da</p><p>famosa companhia de cavaleiros a serviço do rei. É então narrada uma breve biografia</p><p>de Artur, composta a partir de visões diferentes que foram surgindo ao longo do</p><p>tempo. Esse relato serve de pano de fundo para enquadrar as dez aventuras que</p><p>recolhi como amostra da Matéria da Bretanha, de modo a cobrir as três fases. Junto</p><p>com a caracterização de cada aventura, são indicados possíveis elos com algumas</p><p>estórias de origem diversa que tocam em temas correlatos; resumos dessas outras</p><p>estórias figuram em seguida. Finalmente, é relacionada a bibliografia utilizada.</p><p>A segunda e mais extensa parte do livro consiste na tradução em prosa dos textos</p><p>em francês antigo das dez aventuras selecionadas. Ao traduzir, esforcei-me em manter</p><p>o máximo de fidelidade ao estilo e conteúdo dos originais.</p><p>ARTUR E SEUS CAVALEIROS</p><p>A Matéria da Bretanha e a Távola Redonda</p><p>Para os nobres barões que o rodeavam,</p><p>clamando: "-Eu sou o melhor!", "-Eu é que sou!",</p><p>a Távola Redonda Artur criou</p><p>de que os bretões mil fábulas contavam.</p><p>Wace</p><p>Durante a Idade Média, a Bretanha insular (a Grã-Bretanha ou Inglaterra de hoje)</p><p>foi sucessivamente ocupada por três povos: bretões, saxões e normandos. No século</p><p>VI, os bretões ainda dominavam a ilha, mas resistiam com dificuldade cada vez maior</p><p>aos ataques dos saxões. Um dos líderes dos bretões teria sido Artur, rei segundo</p><p>alguns, chefe militar ou "senhor da guerra" segundo outros. Ou talvez pura ficção, na</p><p>opinião de muitos. Seja como for, depois da época em que ele teria vivido, os saxões</p><p>acabaram prevalecendo.</p><p>No século XII, quando os normandos já haviam por sua vez subjugado os saxões, o</p><p>bretão Geoffrey of Monmouth propôs em sua História dos Reis da Bretanha a</p><p>primeira biografia detalhada de Artur, rei sem dúvida alguma segundo ele. Escrito por</p><p>Geoffrey em latim (Historia Regum Britanniae), o livro foi logo traduzido em</p><p>diversas línguas, destacando-se a tradução francesa em versos de Wace, concluída em</p><p>1155, intitulada Roman de Brut. E outros autores vieram acrescentar novas narrativas</p><p>sobre o já famoso rei e seus bravos homens, inaugurando-se assim uma rica tradição</p><p>literária conhecida como Matéria da Bretanha.</p><p>Este livro focaliza o florescimento na França da Matéria da Bretanha no período</p><p>notavelmente criativo abrangido pelos séculos XII e XIII. Durante esse período, o</p><p>tratamento dado à tradição arturiana evoluiu de modo marcante, passando por três</p><p>fases distintas. Na primeira, que chamaremos fase das crônicas pseudo-históricas, os</p><p>textos tomavam a aparência de relatos verdadeiros. Mas o "pseudo" se justifica</p><p>porque, mesmo que Artur tenha de fato existido, tal não se poderia dizer de figuras</p><p>como a de Merlim, capaz de operar encantos e magias. E o duvidoso fim do rei, ferido</p><p>de morte em guerra contra o sobrinho traidor e levado para a misteriosa ilha de</p><p>Avalon, de onde poderia voltar um dia para reinar novamente, ajudou a transformar a</p><p>história de Artur em lenda.</p><p>Uma das principais contribuições de Wace ao traduzir Geoffrey, foi a invenção da</p><p>Távola Redonda, mesa em redor da qual se sentavam os nobres barões subordinados a</p><p>Artur. A Távola Redonda serve de emblema dessa companhia heróica, e o que se dizia</p><p>sobre ela reflete e ajuda a caracterizar a evolução da própria Matéria Arturiana ao</p><p>longo das três fases. Afirma Wace que a forma redonda da mesa, sem cabeceira, com</p><p>todos os lugares igualmente importantes, teria sido adotada para evitar disputas de</p><p>precedência entre esses homens orgulhosos ([1], p. 244):</p><p>Pur les nobles baruns qu'il out,</p><p>Dunt chescuns mieldre estre quidout,</p><p>Chescuns se teneit al meillur,</p><p>Ne nuls n'en saveit le peiur,</p><p>Fist Artur la Runde Table</p><p>Dunt Bretun dient mainte fable.</p><p>[Para os nobres barões que teve, cada um dos quais cuidava ser melhor do que os</p><p>demais  cada um se considerava o melhor e ninguém saberia quem fosse o pior </p><p>Artur mandou fazer a Távola Redonda da qual os Bretões contam muitas fábulas].</p><p>E, no entanto, embora as crônicas já falassem de vários de seus guerreiros, como</p><p>seu sobrinho Galvão (em latim: Walwanius ou Galwainus, em francês: Gauvain, em</p><p>inglês: Gawain), Modredo (latim: Modredus, francês: Modret ou Mordret, inglês:</p><p>Mordred, nos textos portugueses medievais: Morderete), Caio (latim: Kaius, francês:</p><p>Keu, inglês: Kay) e Beduero (latim: Beduerus, francês: Beduer ou Bedoier, inglês:</p><p>Bedivere), nenhum deles se comparava ao próprio rei. Ele não era apenas o líder da</p><p>resistência aos saxões, era um conquistador do mundo, comparável a Alexandre e a</p><p>César. Assim como Alexandre derrotara o Império Persa, Artur teria vencido batalhas</p><p>contra o Império Romano, chegando a planejar a invasão de Roma! Os textos dessa</p><p>primeira fase de narrativas em torno de Artur falam principalmente de guerras entre</p><p>nações, decididas em grandes batalhas campais.</p><p>Numa segunda fase, a dos romances de cavalaria, o foco se deslocou de Artur</p><p>para seus homens, que se tornavam os protagonistas, enquanto o papel do rei parecia</p><p>reduzido a servir de pólo em torno do qual gravitava o que havia de mais nobre. Com</p><p>sua fama atraía os melhores cavaleiros para o reino de Logres  que constituiria a</p><p>parte da Grã-Bretanha sob sua jurisdição direta  coordenando e recompensando</p><p>suas ações. As instituições da cavalaria e da organização feudal já estavam elaboradas</p><p>em detalhe e cada vez mais passavam a prevalecer no mundo europeu. E tornava-se</p><p>comum medir o "valor" de um cavaleiro por sua participação em torneios, justas e</p><p>todas as formas de combates singulares, bem como por sua "largueza", sua</p><p>generosidade em presentear, oferecer hospedagem e gastar sem reservas. O poeta</p><p>francês Chrétien de Troyes é a figura dominante dessa fase; cinco de seus romances</p><p>nos chegaram: Érec et Énide, Cligès (ou a Falsa Morta), Lancelot (ou o Cavaleiro da</p><p>Carreta), Yvain (ou o Cavaleiro do Leão), Perceval (ou o Conto do Graal). Ao</p><p>retomar a Távola Redonda no Érec et Énide, Chrétien aproveita a oportunidade para</p><p>enumerar uma lista impressionante de cavaleiros, vários deles mencionados pela</p><p>primeira vez, da qual reproduzimos o começo ([16], p. 58):</p><p>Mas eu sei dizer-vos bem os nomes de alguns dos melhores barões, os da</p><p>Távola Redonda, que eram os melhores do mundo. Antes de todos os bons</p><p>cavaleiros, Galvão deve ser considerado o primeiro, o segundo Erec o filho de</p><p>Lac, e o terceiro Lancelote do Lago.</p><p>Os cavaleiros da Távola Redonda, presidida pelo rei, a todo momento partiam da</p><p>corte para meter-se em aventuras. Nelas, o objetivo não se relacionava mais com os</p><p>conflitos entre nações como era o caso na primeira fase, e sim com sentimentos</p><p>de vós  ouvidos todos os vossos barões  que</p><p>reconheçais seus direitos diante de todos, de tal maneira que vossa honra seja salva;</p><p>pois de corte real não deve sair julgamento onde se possa perceber qualquer</p><p>deslealdade. Por isso vos requer minha dama que lhe façais justiça em vossa corte,</p><p>pronta como está a provar sua inocência quanto à traição de que esta donzela a acusa,</p><p>na forma como vós e vossos barões decidireis julgar.</p><p>O rei respondeu ser sua vontade que ela tenha julgamento.</p><p>Tomou então Bertelai pela mão e chamou uma parte dos barões do reino de</p><p>Camelide; e declarou que era por eles que desejava que a rainha fosse julgada! Levou-</p><p>os para longe dos outros, em um quarto, e lá se reuniram demoradamente. Tendo</p><p>permanecido até se colocarem todos de acordo, saíram e vieram ao centro da sala. Ali,</p><p>muitos bons cavaleiros os aguardavam, indo comprimir-se em torno deles, cada um</p><p>querendo ouvir o que tinham decidido. O próprio rei relatou o veredito, dizendo:</p><p>- Senhores, ouvistes bem como esta donzela me pediu que a retomasse como sendo</p><p>aquela com quem me casei. Quero que saibais que a reconheci e sei verdadeiramente</p><p>que é aquela que me foi dada pela mão do rei Leodagan. Julgamos por conseguinte,</p><p>falou ele, que aquela Genevra que ali está deverá ter suas tranças cortadas juntamente</p><p>com o couro cabeludo, porque se fez de rainha e portou a coroa na cabeça sem ter</p><p>direito. E depois, acrescentou, terá as palmas das mãos escorchadas, porque foram</p><p>consagradas e ungidas, como não devem ser mãos de mulher que não for</p><p>legitimamente desposada por rei dentro da Santa Igreja. E depois, falou ainda, será</p><p>arrastada através desta cidade que é a capital do reino, porque criminosa e</p><p>traiçoeiramente revestiu-se de tão grande honra. E, depois de tudo, será queimada e</p><p>suas cinzas espalhadas ao vento, de modo que se propague por todas as terras o</p><p>anúncio da justiça que terá sido feita, e que nenhuma outra seja mais tão atrevida que</p><p>empreenda tal enormidade. E porque, concluiu, sabemos deveras que ela é culpada e</p><p>que ninguém deveria ser seu garante, decidimos e especificamos que quem a quiser</p><p>defender desta impostura terá de combater sozinho contra três cavaleiros, os melhores</p><p>que esta dama aqui possa encontrar em toda a sua terra.</p><p>Então saltou à frente meu senhor Galvão e disse que estava preparado para</p><p>defender sua dama, que ela não merecia morrer de tal maneira, e que provará serem</p><p>desleais os que pronunciaram esse julgamento. Outro tanto fez Caio o senescal, e se</p><p>ofereceu vigorosamente para a batalha. Mas Lancelote, ali presente, que ouvira a</p><p>condenação à morte daquela que amava de todo o coração, suportaria muito a</p><p>contragosto que outros se armassem para livrá-la. Tanto o inflamavam ira e amor que</p><p>acreditava firmemente que seu corpo poderia levar a bom termo o quanto seu coração</p><p>ousasse tentar. Adiantou-se e disse a Caio para recuar.</p><p>- Pois nesta batalha, falou, não vos metereis. Procurai outra que vos convenha.</p><p>- Como? exclamou Caio; estais disposto a combater por minha dama contra três</p><p>cavaleiros?</p><p>- Por certo que sim, respondeu ele. Eu me baterei seguramente. E sabei que</p><p>gostaria de estar em ainda maior desvantagem, à condição de que um rei de tal espécie</p><p>como este aqui seja o quarto. Assim verdadeiramente, que Deus me ajude, ele nunca</p><p>mais carregaria coroa.</p><p>Disse isso na intenção do rei Artur, a quem agora não amava de grande amor.</p><p>Assim foi sobre Lancelote que recaiu o encargo, já que não houve depois quem</p><p>ousasse asumi-lo, tomando-lhe a vez. Do lado oposto, vieram ao rei três cavaleiros,</p><p>dizendo-se prontos a mostrar que a rainha cometera a traição que sua dama lhe</p><p>imputava, e que deveria ser punida tal como fora sentenciado pelo rei e pelos barões.</p><p>Em sinal de que disso dariam prova, depuseram nas mãos do rei suas garantias, e</p><p>Lancelote entregou as suas, como contestante. O rei então ordenou que eles fossem</p><p>armar-se sem mais demora, desejando que a batalha fosse logo travada até o fim.</p><p>Lancelote se afastou do rei e voltou a seu alojamento para armar-se. Rapidamente</p><p>fez atar os calções e vestiu a couraça; muito lhe tardava meter-se na peleja. Uma vez</p><p>completamente armado, exceto a cabeça e as mãos, montou um palafrém e se foi a</p><p>galope. Seguiram com ele Galehaut, o Rei dos Cem Cavaleiros, meu senhor Galvão e</p><p>uma quantidade de cavaleiros. Ao lado de Lancelote seguiu seu primo Lionel, levando</p><p>seu escudo e seu elmo, enquanto um outro escudeiro trazia sua lança e conduzia pela</p><p>mão direita seu corcel de batalha. De regresso à corte, desmontaram e subiram à sala</p><p>de cima. Contudo os oponentes, que não se haviam apressado tanto quanto Lancelote,</p><p>ainda não tinham chegado. Este dirigiu-se aonde avistara a rainha, e lhe disse que se</p><p>considerasse totalmente segura. Ela respondeu que assim se sentia, e disse que não</p><p>tinha medo de não ser libertada nesse dia de hoje, pelo direito que tinha e pela grande</p><p>proeza que ela sabia residir nele.</p><p>Enquanto assim se entretinham, chegaram os três cavaleiros diante do rei. Estavam</p><p>armados, afora a cabeça e as mãos, e eram todos belos cavaleiros, de grande estatura.</p><p>Vendo-os, Lancelote adiantou-se, conduzindo-se com a segurança de homem que da</p><p>força de seu amor tirava coragem e firmeza. O rei mandou trazer as imagens dos</p><p>santos. Sobre elas, em primeiro lugar, os cavaleiros juraram que sabiam que a rainha</p><p>havia cometido a traição em causa. E Lancelote jurou em seguida, que assim Deus e</p><p>os santos o ajudassem, que eles perjuravam ao afirmar tal falsidade. Foi pedir vênia à</p><p>rainha e ela o tomou nos braços e o beijou, à vista de todos que quiseram ver, e o</p><p>recomendou àquele que nasceu da Virgem, para que o protegesse da morte e lhe desse</p><p>força e poder para livrá-la do perigo em que se achava. E então pôs-se a chorar muito</p><p>ternamente.</p><p>Ele a deixou muito emocionado e desceu ao pátio inferior. Revestiu a cabeça e as</p><p>mãos e atou o elmo. Depois suspendeu o escudo ao pescoço e montou seu cavalo, que</p><p>estava ajaezado muito ricamente, e recebeu a lança do escudeiro que a trouxera.</p><p>Apresentou-se então, maravilhando a todos com sua beleza e galanteria.</p><p>Após os três cavaleiros adversários acabarem de armar-se, esvaziou-se o pátio e</p><p>subiram todos às janelas e às ameias, e ao topo das casas aqueles que não puderam</p><p>entrar nas salas.</p><p>Logo montou um dos cavaleiros. Ao notá-lo, Lancelote meteu a lança em riste,</p><p>bem firme sob a axila, e tomou distância, cobrindo o peito com o escudo, e o mesmo</p><p>fez o outro. De pronto, ambos esporearam os cavalos e correram um contra o outro,</p><p>com todo ímpeto, e desferiram sobre os escudos os maiores golpes que puderam. O</p><p>cavaleiro que combatia pela donzela partiu sua lança, enquanto Lancelote o feriu tão</p><p>duramente que o fez voar por sobre a garupa do cavalo e o jogou ao chão. Passou</p><p>adiante e depois voltou a passo rápido. Desmontou, pôs a mão na espada, correu sobre</p><p>o adversário. E este, que se levantara e igualmente puxara da espada, defendeu-se com</p><p>muito vigor e ofereceu grande resistência a Lancelote. Mas não pôde agüentar por</p><p>longo tempo, começou a ceder terreno, vendo que levava a pior. Lancelote o</p><p>assediava tanto que ele não podia retomar o alento nem achar espaço, foi recuando até</p><p>cair. Lancelote saltou-lhe sobre o corpo, rompeu sem demora os laços do elmo e</p><p>abaixou-lhe a viseira. Ele pediu clemência, suplicando que não o matasse. Mas</p><p>Lancelote disse querer que Deus não mais o ajudasse se poupasse a ele ou aos outros</p><p>quando os tivesse à sua mercê.</p><p>- Pois não se deve ter pena de um traidor, falou ele.</p><p>Ergueu a espada e lhe feriu a cabeça, fendendo-a até os dentes. Ao vê-lo morto,</p><p>recolocou a espada na bainha e tomou da lança que ainda estava inteira, recuperou seu</p><p>cavalo, montou e preparou-se para a justa seguinte.</p><p>Então o segundo cavaleiro lançou-se por sua vez à rédea solta sobre Lancelote, e</p><p>ele a seu encontro, a toque de espora. Tão duro foi o entrechoque das fortes lanças que</p><p>ambas voaram em pedaços. Mas o</p><p>companheiro daquele que fora o primeiro a morrer</p><p>esvaziou a sela e caiu por terra, aturdido pelo rijo embate que sofrera. Nem por isso</p><p>deixou-se ficar estendido, mas logo que pôde pôs-se de pé e sacou da espada, fazendo</p><p>grande alarde de se defender. Lancelote desceu do cavalo e ergueu na frente o escudo,</p><p>correu-lhe em cima muito ousadamente, espada na mão. Os dois trocaram grandes</p><p>golpes de todo lado, visando onde podiam causar mais dano. Infligiram ferimentos</p><p>através dos elmos e escudos, sobre os braços e espáduas, e onde mais puderam atingir.</p><p>Tanto se prolongou a peleja que Lancelote já se envergonhava. E então partiu para</p><p>cima dele, ardendo em fúria, e lhe desferiu uma grande cutilada sobre o elmo, e outra</p><p>e mais outra, repetidamente. De tal sorte o crivou de golpes que o cavaleiro não</p><p>conseguiu resistir, foi cedendo mais e mais espaço, enquanto Lancelote ganhava</p><p>vantagem. O cavaleiro tentava escapar como podia, mas nada lhe adiantou porque era</p><p>grande a pressão. Todos perceberam que estava levando a pior, em grande</p><p>inferioridade. Continuaria a defender-se, se pudesse, mas sua defesa de nada valeu,</p><p>pois tanto Lancelote o assediou que resvalou ao chão apoiado sobre uma das mãos.</p><p>Quando quis erguer-se, Lancelote precipitou-se para impedi-lo e chocou-se com ele</p><p>com tanta violência que o deitou de corpo inteiro por terra. Abatendo-se sobre ele,</p><p>arrancou-lhe o elmo da cabeça e deu com o punho da espada em pleno rosto, na testa,</p><p>sobre o crânio, a ponto de as malhas que protegiam a cabeça se enfiarem na carne.</p><p>Ficou com os olhos tão cheios de sangue que não enxergava mais e compreendeu que</p><p>sua resistência era inútil. Clamou por clemência a Lancelote, e este lhe respondeu que</p><p>irá ter a mesma que seu companheiro, e o feriu com a espada entre os olhos, cortando</p><p>tudo até os miolos. E de novo montou a cavalo.</p><p>Olhou então para as janelas no alto e disse a Caio o senescal, que se debruçava a</p><p>uma delas:</p><p>- Meu senhor Caio, falou, ainda acho que não gostaríeis de ser o quarto, ainda que</p><p>o prêmio a ganhar fosse o reino de Logres!</p><p>Então deslocou-se o terceiro cavaleiro, que com muito receio o foi enfrentar. Se</p><p>tivesse engenho e arte para encontrar um modo de eximir-se, iria aplicá-los com muito</p><p>gosto. Mas, sabendo com certeza que não podia escapar à morte, preferia morrer pela</p><p>mão de um gentil-homem do que desistir do combate, sem estar ferido ou</p><p>incapacitado, para depois sofrer execução infamante diante da multidão. Esporeou o</p><p>cavalo e arremeteu contra o adversário o mais velozmente que pôde. E Lancelote lhe</p><p>veio ao encontro, com a espada na mão. O cavaleiro partiu a lança contra ele e passou</p><p>adiante, e depois voltou em sentido inverso a galope, com a espada desembainhada.</p><p>Começada a luta corpo a corpo, ainda a cavalo, o cavaleiro atacava abertamente,</p><p>como se não se importasse com a vida, pois via que não tinha como garanti-la. No</p><p>fim, Lancelote o matou, tal como fizera com os outros dois.</p><p>Os cavaleiros que assistiam do alto então desceram ao pátio, e a rainha veio a</p><p>Lancelote como quem está tão feliz que mais não poderia. Ela mesma desatou os</p><p>laços de seu elmo, e o beijou muito docemente. E disse:</p><p>- Senhor, bendita a hora em que nascestes como o mais valoroso dos homens do</p><p>mundo. Sois o cavaleiro na terra a quem eu mais deveria amar, pois me devolvestes</p><p>honra e alegria.</p><p>Assim, Lancelote livrou sua dama, para grande júbilo de todos os fidalgos. Estes se</p><p>apresentaram então diante do rei, e lhe requereram que exercesse a justiça face à</p><p>donzela, de vez que fora achada culpada e seu crime ficara provado. O rei, que nada</p><p>mais ousava tentar, admitiu voluntariamente que assim fosse feito. Mandou que a</p><p>buscassem, juntamente com Bertelai, e os fizessem comparecer, porque agora</p><p>desejava que sem tardança fossem ambos julgados e recebessem a retribuição que</p><p>merecessem. Os dois foram trazidos diante do rei, a donzela chorando perdidamente,</p><p>pois percebia que sua malvadeza não podia mais ser escondida. Colocando-se na</p><p>frente da rainha, reconheceu sua impostura, à vista de todos. Ouvindo o que ela dizia,</p><p>o rei ficou muito perturbado e, olhando para Bertelai, perguntou como ele se atrevera</p><p>a tramar a consumação de tal felonia. E Bertelai respondeu que agora irá fazê-lo</p><p>conhecer a verdade do início ao fim.</p><p>- Na verdade, falou ele, achei esta donzela em uma casa religiosa. Pela grande</p><p>beleza que vi nela, andei inquirindo e investigando quem era, pois parecia ser de</p><p>origem muito nobre. Mas nunca encontrei quem me soubesse dizer a verdade. Nem</p><p>ela mesma sabia algo, salvo que havia permanecido longo tempo naquela casa. Senti</p><p>muita pena, por ser ela de tão grande beleza. E lhe disse que, sem dúvida, se ela</p><p>quisesse seguir meus conselhos e fazer o que lhe indicasse, arranjaria para que se</p><p>tornasse a mais ilustre mulher do mundo. Ela me perguntou como, e expliquei que</p><p>tantas eu faria que vós a tomaríeis como mulher, expulsando a rainha aqui presente.</p><p>Ouvindo minhas palavras, ela declarou que, se eu o pudesse fazer, ela cumpriria</p><p>minha vontade à risca. E me jurou sobre os santos que, por todos os dias de minha</p><p>vida, eu seria senhor sobre os domínios dela.</p><p>Desse modo, Bertelai reconheceu diante do rei toda a sua traição, e como levou a</p><p>mensagem e fez fabricar o anel falso que a mensageira exibiu na corte, e como fez</p><p>com que o rei fosse capturado e lhe deu de beber uma poção por força da qual se</p><p>enamorou da donzela. Revelou-lhe suas ações de cabo a rabo, sem nada omitir. E o rei</p><p>ficou muito envergonhado e irado por ter sido assim enganado por semelhante</p><p>tramóia. Disse a Bertelai que ele teria sua recompensa como traidor e desleal, e que</p><p>homem de sua idade não deveria meter-se a perpetrar tão grande traição como acabara</p><p>de reconhecer e confessar diante dele. Imediatamente, Bertelai foi preso por ordem do</p><p>rei e arrastado por toda a cidade.</p><p>Ainda postada em face da rainha, a donzela lhe pediu uma mercê: que ela lhe</p><p>perdoasse o pecado criminoso, embora não para salvar-lhe a vida, pois, que Deus a</p><p>ajudasse, não desejava que a deixassem viver depois desse momento; jamais, em dia</p><p>nenhum, teria qualquer alegria. Pelo contrário, queria ser executada vergonhosamente</p><p>como quem fez por merecer. Sentiu o rei tão grande piedade que não a podia encarar,</p><p>indo fechar-se em um quarto, com os barões seguindo atrás a perguntar o que fariam</p><p>com a donzela. Ele lhes disse para agir à vontade, conforme achassem que se deveria</p><p>proceder. E os barões declararam que, portanto, a farão matar segundo o mesmo</p><p>julgamento que fora imposto à rainha, pois eram de opinião que ela deveria perecer de</p><p>igual morte, tendo sido provada culpada desse mesmo crime, assim como Bertelai e</p><p>ela haviam reconhecido por suas próprias bocas. Declarou o rei que isso lhe parecia</p><p>justo e razoável.</p><p>Assim foi a donzela julgada pelo arbítrio dos barões do rei, e logo conduzida para</p><p>fora da cidade. Prepararam a fogueira para queimá-la. Era de tão grande beleza que</p><p>diziam todos nunca ter visto mulher tão formosa. Podeis imaginar que muitas</p><p>lágrimas foram derramadas, e houve muitos que dificilmente aceitariam sua morte se</p><p>tivessem o poder de impedi-la. Mas assim não pôde ser; foi amarrada à fogueira logo</p><p>após confessar-se. E com ela estava Bertelai que arquitetara a traição. Disseram todos</p><p>que era doloroso ao extremo que, pelo aconselhamento de um tal velho, tão bela</p><p>mulher se desgraçasse. E houve muitos deles que partiram do local antes que o fogo</p><p>fosse aceso, pois não encontraram coragem para vê-la morrer. Muito foi a donzela</p><p>chorada e lamentada por muita gente.</p><p>VIII</p><p>O Cortejo do Graal</p><p>Durante o dia todo o jovem cavaleiro continuou em seu caminho sem encontrar</p><p>nenhuma criatura terrena, nem cristão nem cristã, que lhe soubesse apontar por onde</p><p>ir. Não parava de suplicar a Nosso Senhor, o pai soberano, para que, se fosse essa sua</p><p>vontade, lhe concedesse encontrar a mãe. Enquanto durava essa oração, avistou um</p><p>rio junto à encosta</p><p>de um outeiro. Olhando a água torrencial e profunda, não ousou</p><p>meter-se nela, e disse:</p><p>- Ah! Senhor todo poderoso, se eu puder atravessar esta água, penso que acharei</p><p>minha mãe do outro lado, cheia de vida e saúde.</p><p>Assim prosseguiu ao longo da margem, até que se aproximou de uma rocha batida</p><p>pela água, que o impedia de ir adiante. Nesse instante, viu passar descendo o rio um</p><p>barco que vinha da região montanhosa. Havia dois homens a bordo. Ele se deteve e</p><p>esperou, cuidando que viriam navegando até onde ele estava. Os dois pararam no</p><p>meio da torrente, mantendo imóvel o barco depois de o deixarem muito bem</p><p>ancorado. O que estava na frente pescava com linha e punha como isca em seu anzol</p><p>um peixinho um pouco maior que um vairão. Ele, que não sabia o que fazer nem em</p><p>que ponto achar passagem, saudou-os e perguntou:</p><p>- Informai-me, senhor, falou ele, se há neste rio alguma ponte.</p><p>E aquele que pescava lhe respondeu:</p><p>- Absolutamente nenhuma, irmão, por minha fé; nem, segundo creio, há barco</p><p>maior do que este em que estamos, que não levaria sequer cinco homens. Por vinte</p><p>léguas rio acima ou abaixo não se pode atravessar a cavalo, pois não há balsa, nem</p><p>ponte, nem vau.</p><p>- Então indicai-me, ele insistiu, por Deus, onde poderei encontrar pousada.</p><p>E aquele respondeu:</p><p>- Disso e de outras coisas tereis necessidade, penso eu. Eu vos albergarei esta noite.</p><p>Galgai por aquela fraga formada na rocha e, quando chegardes em cima, vereis diante</p><p>de vós em um vale a casa em que eu habito, perto do rio e do bosque.</p><p>Na mesma hora ele iniciou a subida até atingir o cume do monte. Chegado ao topo,</p><p>examinou tudo em volta e nada viu afora céu e terra, e disse:</p><p>- O que vim procurar? Tolice e insensatez! Que Deus dê hoje vergonha ruim</p><p>àquele que me enviou até aqui. Bem me desencaminhou ao me dizer que encontraria</p><p>uma casa quando chegasse cá em cima. Pescador que disseste isso, cometeste grande</p><p>deslealdade se assim falaste por mal!</p><p>Foi então que viu adiante, em um vale, aparecer o cimo de uma torre. Não se</p><p>acharia até Beirute nenhuma tão bonita nem tão bem assentada. Era quadrada, de</p><p>pedra cinzenta, ladeada por duas torrelas. A sala se situava na frente da torre e as</p><p>galerias diante da sala.</p><p>O rapaz desceu para aquele lado, dizendo que bem o guiara quem o havia enviado</p><p>para lá; louvava o pescador, não o chamava mais de traidor, nem de desleal ou</p><p>mentiroso, posto que encontrara onde abrigar-se. Assim, foi indo em direção ao</p><p>portão, diante do qual achou uma ponte levadiça que estava abaixada. Entrou pela</p><p>ponte e vieram a seu encontro quatro valetes. Dois deles o desarmaram e o terceiro</p><p>levou seu cavalo e lhe deu feno e aveia. O quarto cobriu o rapaz com um manto</p><p>escarlate fresco e novo. Em seguida o conduziram às galerias, e sabei que quem</p><p>vasculhasse até Limoges não depararia com outras tão belas. Ele ficou nas galerias até</p><p>que chegou o momento de apresentar-se ao senhor, que expediu dois servidores para</p><p>chamá-lo. Com eles foi ter à sala, que era de forma quadrangular, tão comprida</p><p>quanto larga.</p><p>Bem no centro da sala, viu sentado sobre um leito um belo gentil-homem de cabelo</p><p>grisalho, tendo na cabeça um chapéu de zibelina negra como amora, com a copa</p><p>envolta em pano púrpura; e a roupa toda era de igual feitura. Apoiava-se sobre o</p><p>cotovelo. Ardia diante dele o clarão de um fogaréu de lenha seca, aceso entre quatro</p><p>colunas. Uns bons quatrocentos homens poderiam sentar-se à volta do fogo, e cada</p><p>um acharia lugar confortável. As colunas eram muito rijas, tendo de sustentar uma</p><p>vasta e comprida chaminé de bronze maciço.</p><p>Apresentaram-se diante do senhor aqueles que lhe conduziam seu hóspede, um de</p><p>cada lado do rapaz. Ao vê-lo aproximar-se, o senhor o saudou prontamente, dizendo:</p><p>- Amigo, não seja para vós motivo de agravo que eu não me levante a vosso</p><p>encontro, pois não estou apto a fazê-lo.</p><p>- Por Deus, senhor, calai-vos quanto a isso, falou ele, que não é nenhum incômodo</p><p>para mim, enquanto Deus me der alegria e saúde.</p><p>O gentil-homem se preocupava tanto por ele que se soergueu o quanto pôde, e</p><p>disse:</p><p>- Amigo, chegai para cá. Não vos espanteis comigo, sentai aqui tranqüilamente a</p><p>meu lado, que assim vos determino.</p><p>O rapaz sentou-se ao lado dele e o gentil-homem lhe indagou;</p><p>- Amigo, de que parte viestes hoje?</p><p>- Senhor, respondeu, hoje de manhã muito cedo saí de Beaurepaire, que é como se</p><p>chama o lugar.</p><p>- Ajude-me Deus, falou o gentil-homem, fizestes hoje uma jornada mais do que</p><p>longa; nesta manhã deveis ter saído antes que a sentinela anunciasse a alvorada.</p><p>- Pelo contrário, a hora prima já havia soado, falou o rapaz, eu vos afianço.</p><p>Enquanto assim falavam, um valete entrou pela porta da casa, trazendo uma espada</p><p>suspensa ao pescoço, que entregou ao rico homem. E este a desembainhou pela</p><p>metade, de modo que viu bem onde ela fora feita, tal como estava gravado na espada.</p><p>Além disso, viu que era de tão bom aço que não poderia partir-se, salvo em uma única</p><p>circunstância perigosa da qual ninguém sabia afora aquele que a havia forjado e</p><p>temperado. O valete que a trouxera disse:</p><p>- Senhor, a donzela ruiva, vossa sobrinha, que é tão formosa, vos enviou este</p><p>presente. Jamais vistes uma espada que fosse mais esplêndida do que esta, com tal</p><p>comprimento e largura. Vós a dareis a quem vos agradar, mas minha dama ficaria</p><p>muito feliz se ela fosse bem empregada lá onde será dada. Quem forjou a espada</p><p>nunca fez mais do que três, e morrerá sem forjar nenhuma outra depois desta.</p><p>De imediato, o senhor revestiu com as tiras da espada, que valiam um tesouro,</p><p>aquele que era um estrangeiro ali. O punho era do melhor ouro da Arábia ou da</p><p>Grécia, a bainha tinha um bordado a fios de ouro de Veneza. Ricamente adornada</p><p>como estava, o senhor a presenteou ao rapaz, e disse:</p><p>- Belo irmão, esta espada vos é votada e destinada, e quero muito que a tenhais.</p><p>Mas prendei-a à cinta, experimentai desembainhá-la.</p><p>Ele lhe agradeceu, cingiu a espada, mas sem apertá-la muito à cintura, e então a</p><p>sacou nua da bainha. Após admirá-la um pouco, colocou-a de volta na bainha. E sabei</p><p>que se adaptava de maneira excelente a seu flanco e ainda melhor ao punho. E bem</p><p>pareceu que na hora da necessidade ele se serviria dela como um bravo. Viu atrás</p><p>alguns valetes postados em volta do fogo, que ardia claro. Distinguiu entre eles o que</p><p>guardava suas armas e lhe confiou a espada, e ele a guardou. Logo sentou-se de novo</p><p>ao lado do senhor, que lhe fazia grande honra. Lá a iluminação era tão viva como se</p><p>pode obter em uma habitação com o uso de velas.</p><p>Enquanto falavam de uma coisa e outra, um valete veio de um quarto, empunhando</p><p>uma lança branca, segura pelo meio; passou assim entre o fogo e os que se sentavam</p><p>no leito. E todos ali viam a lança branca e o ferro branco; uma gota de sangue saía da</p><p>ponta do ferro da lança e essa gota vermelha escorria até a mão do valete. O rapaz</p><p>recém-chegado ali nessa noite viu essa maravilha, mas se absteve de perguntar como</p><p>tal coisa acontecia, porque se lembrava da advertência daquele que o fizera cavaleiro,</p><p>que lhe havia ensinado e instruído para que se guardasse de falar demais. E temia que,</p><p>se perguntasse, iriam interpretar como vilania. Eis porque nada perguntou.</p><p>Então vieram dois outros valetes que carregavam nas mãos candelabros de ouro</p><p>fino, trabalhado em nigela. Os valetes que traziam os candelabros eram muito</p><p>formosos. Em cada candelabro ardiam pelo menos dez velas.</p><p>Uma donzela que vinha com os valetes, bela, gentil e bem ataviada, sustentava</p><p>entre as duas mãos um graal. Quando ela entrou segurando o graal, surgiu uma tão</p><p>grande claridade que as velas perderam o brilho, assim como sucede com as estrelas</p><p>quando se ergue o sol ou a lua. Em seguida a ela, veio outra, segurando um trincho de</p><p>prata. O graal que ia adiante era de fino ouro esmerilhado; era cravejado de pedras</p><p>preciosas de diversas espécies, as mais ricas e mais caras que existem</p><p>no mar e na</p><p>terra. As jóias do graal, sem dúvida, superavam todas as demais pedras.</p><p>Assim mesmo como passara a lança, eles passaram diante do leito, indo de um</p><p>quarto a outro. E o rapaz os viu passar e nem ousou de modo algum perguntar a quem</p><p>serviam o graal, já que tinha sempre no coração a palavra do sábio gentil-homem.</p><p>Temo que lhe resulte prejuízo, porque ouvi contar que às vezes tanto se pode calar</p><p>demais como falar demais. Fosse para seu bem ou para seu mal, não sei qual, nada</p><p>perguntou.</p><p>O senhor mandou os valetes distribuir água e trazer toalhas. Assim fizeram os que</p><p>deviam fazê-lo, como estavam acostumados. O senhor e o rapaz lavaram as mãos em</p><p>água aquecida. Dois valetes trouxeram uma larga mesa de marfim; como testemunha</p><p>a estória, era feita de uma só peça. Mantiveram-na por um momento diante do senhor</p><p>e do rapaz, até que dois outros valetes vieram trazendo dois suportes. A madeira da</p><p>qual eram feitos os suportes tinha duas ótimas qualidades, graças às quais as peças</p><p>fabricadas com ela duravam para sempre: sendo de ébano, que nunca se espera que</p><p>apodreça nem queime, não há risco dessas duas coisas. A mesa foi montada sobre</p><p>esses suportes e a toalha foi estendida. Mas que direi da toalha? Nem legado, nem</p><p>cardeal, nem papa comeu jamais sobre uma tão alva. A primeira iguaria foi uma coxa</p><p>de cervo na gordura quente com pimenta. Não lhes faltou vinho claro para beber em</p><p>copas de ouro. O valete que trouxera a coxa de cervo apimentada retalhou-a à frente</p><p>deles, usando o trincho de prata, e lhes ofereceu os pedaços sobre uma fatia inteira de</p><p>pão.</p><p>Entrementes o graal voltou a passar diante deles, e nem nesse momento o rapaz</p><p>perguntou a quem o serviam. Continha-se por causa do gentil-homem que o advertira</p><p>docemente a não falar em demasia, e ele guardava isso no coração, lembrava-se</p><p>sempre. Mas calava-se mais do que lhe convinha, porquanto, a cada alimento que era</p><p>servido, via passar diante dele o graal totalmente descoberto, e não sabia a quem era</p><p>servido embora quisesse saber. Mas antes de partir dali perguntará na certa a um dos</p><p>valetes da corte, é o que pensava e dizia a si mesmo. Mas esperará até de manhã,</p><p>quando se despedir do senhor e de todos os de sua casa. Assim adiou a coisa e</p><p>ocupou-se com a bebida e a comida.</p><p>Não eram mesquinhos ao trazer para a mesa vinhos e alimentos, que eram</p><p>agradáveis e deliciosos. A comida era apetitosa e da melhor qualidade. De todas as</p><p>iguarias próprias para condes, reis ou imperadores foi o gentil-homem servido nessa</p><p>noite, e o rapaz junto com ele. Depois da refeição, conversaram noite adentro. Os</p><p>valetes prepararam os leitos e frutas para a ceia, das quais havia das mais escolhidas:</p><p>damascos, figos, nozes moscadas, cravos-da-índia e romãs; e, por fim, eleituários,</p><p>gengibre alexandrino, pliris archonticum, ressuntivos e estomáticos. Depois disso</p><p>beberam várias bebidas: vinho condimentado, sem mel nem pimenta, velho vinho de</p><p>amora e claro xarope. De tudo isso o rapaz se maravilhava ao extremo, pois nunca</p><p>ouvira falar de tais coisas. E o gentil-homem disse:</p><p>- Belo amigo, é tempo de deitar por esta noite. Vou afastar-me, não tomeis como</p><p>ofensa, para deitar-me em meus aposentos. E, quando vos aprouver, recostai-vos aqui</p><p>fora. Não tenho nenhum poder sobre meu corpo, e assim é preciso que me carreguem.</p><p>Quatro serviçais decididos e fortes saíram nessa hora do quarto, tomaram das</p><p>quatro pontas da cobertura estendida sobre o leito em que o gentil-homem se</p><p>assentava, e o levaram aonde deviam. Com o rapaz ficaram outros valetes, que o</p><p>serviram e o atenderam em tudo quanto lhe foi necessário. Quando ele quis, eles o</p><p>descalçaram, despiram e acomodaram em delgados lençóis brancos.</p><p>Ele dormiu até o dia seguinte, quando rompeu a alvorada e a criadagem se</p><p>levantou. Mas ali não viu ninguém quando olhou em torno. Teve de levantar-se por</p><p>sua conta, por mais que lhe devesse desagradar. Ergueu-se e arrumou-se o melhor que</p><p>pôde, quando se viu obrigado, e calçou-se sem esperar ajuda. Em seguida, foi buscar</p><p>suas armas, e as encontrou na cabeceira de uma mesa, aonde as haviam trazido para</p><p>ele. Quando acabou de armar seus membros, foi até as portas dos quartos, que de</p><p>noite vira abertas. Mas se movimentou por nada, porque as encontrou muito bem</p><p>fechadas. Assaz chamou, bateu e forçou: ninguém lhe abriu nem disse palavra. Depois</p><p>de ter chamado bastante, chegou à porta da sala. Encontrando-a aberta, desceu pelos</p><p>degraus; achou seu cavalo selado e viu sua lança e seu escudo encostados em um</p><p>muro do outro lado.</p><p>Montou então e foi procurando por toda parte, mas não encontrou homem vivo,</p><p>nem viu escudeiro ou valete. Assim seguiu direto para o portão e achou a ponte</p><p>baixada, como a haviam deixado em sua intenção para que nada o detivesse a</p><p>qualquer hora que ali fosse dar, de modo que ele passasse sem obstáculo. Pensou,</p><p>vendo a ponte descida, que todos os valetes tivessem ido à floresta inspecionar laços e</p><p>armadilhas. Não teve desejo de quedar-se mais, e disse que iria atrás deles saber, se</p><p>possível, a qualquer custo, se algum lhe falaria a respeito da lança explicando porque</p><p>sangrava e, quanto ao graal, aonde o levavam. Então saiu pelo portão mas, antes que</p><p>tivesse acabado de cruzar a ponte, sentiu que as patas de seu cavalo se elevavam para</p><p>o alto. E o cavalo deu um pulo tão grande que, tanto o próprio animal como quem lhe</p><p>estava em cima, estariam ambos mal-parados se não tivesse saltado tão bem. O rapaz</p><p>virou para trás o rosto para ver o que ocorria, e percebeu que haviam levantado a</p><p>ponte. Chamou e ninguém lhe respondeu.</p><p>- Dize lá! falou ele, tu que levantaste a ponte, fala pois comigo. Onde estás que não</p><p>te vejo? Chega-te à frente, que assim te verei e te indagarei notícias sobre outra coisa</p><p>que gostaria de saber.</p><p>Assim se esgoelava tolamente, que ninguém lhe queria responder.</p><p>Embrenhando-se pela floresta, entrou por um caminho em que encontrou rastros</p><p>recentes de cavalos que haviam passado por ali.</p><p>- Cuido, falou ele, que tenham ido por aqui aqueles que estou procurando.</p><p>Então se precipitou através do bosque por onde continuavam as pegadas, até que</p><p>calhou de ver uma jovem sob um carvalho, que chorava, gemia e se desesperava como</p><p>dolorosa infortunada, exclamando:</p><p>- Infeliz, desventurada,</p><p>em má hora fui gerada,</p><p>em dia infausto nasci.</p><p>Nunca, até hoje, sofri</p><p>dor maior, pior castigo!</p><p>Ter nos braços, morto, o amigo,</p><p>por Deus, eu não deveria,</p><p>pois com certeza seria</p><p>melhor ele vivo e eu morta.</p><p>Depois dele, nada importa:</p><p>sem a coisa mais querida,</p><p>meu corpo não quer a vida.</p><p>Vem, Morte, meu pranto acalma!</p><p>Leva até a sua esta alma</p><p>que o haverá de acompanhar</p><p>qual serva, se ele deixar.</p><p>Assim ela se lamentava por um cavaleiro que segurava, cuja cabeça fora cortada. O</p><p>rapaz, quando a viu, não se deteve até chegar a ela. Ao aproximar-se, saudou-a, e ela a</p><p>ele, de cabeça baixa, nem por isso deixando de manifestar seu luto. E o rapaz lhe</p><p>indagou:</p><p>- Donzela, quem matou esse cavaleiro que jaz sobre vosso regaço?</p><p>- Belo senhor, falou a donzela, um cavaleiro o matou hoje de manhã. Mas</p><p>grandemente me espanto de uma coisa que estou notando. Que Deus me guarde,</p><p>poder-se-ia cavalgar, disso sou testemunha, quarenta léguas seguidas nesse sentido em</p><p>que vindes, sem encontrar hospedagem que fosse boa, honesta e decente; e no entanto</p><p>vosso cavalo tem os flancos plenos e o pelo lustroso. Se o tivessem lavado e escovado</p><p>e forrassem seu abrigo com aveia e feno, não teria a barriga mais cheia nem o pelo</p><p>mais liso. E vós mesmo, me parece, estivestes nesta noite bem provido e repousado.</p><p>- Bela, por minha fé, falou ele, tive nesta noite o máximo conforto que poderia, e,</p><p>se dá para notar, é com boa razão. Mas se alguém, daqui onde estamos, gritasse bem</p><p>alto agora, seria ouvido muito claramente onde me recolhi nesta noite. Vejo que não</p><p>conheceis bem este país nem o percorrestes todo, pois tive albergue que foi, sem</p><p>dúvida alguma, o melhor que</p><p>jamais consegui.</p><p>- Ah! senhor, vós vos deitastes portanto na casa do rico Rei Pescador.</p><p>- Jovem, pelo Salvador, não sei se ele é pescador nem rei, mas é muito sábio e</p><p>cortês. Nada mais vos sei dizer, salvo que encontrei dois homens na tarde de ontem,</p><p>em hora avançada, que navegavam placidamente em um barco. Um dos dois homens</p><p>remava e o outro pescava com anzol; e este me ensinou o caminho para sua casa,</p><p>ontem à tarde, e me albergou.</p><p>E a jovem disse:</p><p>- Belo senhor, rei ele é, bem vos posso dizer; mas foi ferido e mutilado de fato em</p><p>uma batalha, de modo que desde então não se pôde valer, pois foi ferido por um dardo</p><p>através de ambas as coxas, e isso ainda o angustia tanto que não pode montar a</p><p>cavalo. Mas quando quer exercitar-se ou entreter-se com alguma recreação, faz com</p><p>que o metam em um barco e sai a pescar com anzol. Por isso tem o nome de Rei</p><p>Pescador. E assim se distrai porque outro divertimento não poderia por nada suportar.</p><p>Não pode caçar no mato nem no rio, mas tem seus batedores de rios, arqueiros e</p><p>caçadores que vão disparar flechas em suas florestas. E porque lhe agrada habitar ali</p><p>mesmo naquele sítio, que em todo o mundo não poderia achar retiro mais a seu jeito,</p><p>fez lá construir tal casa como convém a um rico rei.</p><p>- Donzela, por minha fé, é verdade o que vos ouço dizer; ontem ao anoitecer</p><p>experimentei grande maravilha desde o momento em que cheguei diante dele. Eu me</p><p>mantinha um pouco afastado e ele me disse que viesse sentar-me a seu lado, e que não</p><p>tomasse como orgulho o fato de não se erguer a meu encontro, que ele não tinha nem</p><p>capacidade nem poder de fazê-lo. E eu fui sentar-me junto dele.</p><p>- Decerto vos fez grande honra quando vos sentou a seu lado. E agora dizei-me se</p><p>vistes, enquanto estivestes sentado com ele, a lança cuja ponta sangra, embora nela</p><p>não haja nem carne nem veia.</p><p>- Se a vi? Sim, por minha fé.</p><p>- E perguntastes por que ela sangrava?</p><p>- Não falei nunca, que Deus me ajude.</p><p>- Pois sabei agora que agistes muito mal. E vistes o graal?</p><p>- Sim, vi bem.</p><p>- E quem o levava?</p><p>- Uma donzela.</p><p>- E de onde vinha?</p><p>- De um quarto.</p><p>- E para onde foi?</p><p>- Entrou em um outro quarto.</p><p>- Alguém caminhava à frente do graal?</p><p>- Sim.</p><p>- Quem?</p><p>- Dois valetes apenas.</p><p>- E que carregavam nas mãos?</p><p>- Candelabros cheios de velas.</p><p>- E, depois do graal, quem vinha?</p><p>- Uma outra donzela.</p><p>- E que coisa levava?</p><p>- Um pequeno trincho de prata.</p><p>- Perguntastes àquela gente a que parte iam assim?</p><p>- Nunca me saiu nada da boca.</p><p>- Ajude-me Deus, vai de mal a pior. Qual é vosso nome, amigo?</p><p>E aquele que não sabia seu nome adivinhou e disse que seu nome era Persival o</p><p>Galês. Não sabia se dizia ou não a verdade, mas dizia sim, e não o soube. Quando a</p><p>donzela o escutou, pôs-se de pé à sua frente e lhe disse zangada:</p><p>- Teu nome mudou, belo amigo.</p><p>- Como?</p><p>- Persival o Desditoso! Ah! infortunado Persival, quão malaventurado foste por</p><p>tudo que não perguntaste! Porque tanto terias socorrido o bom rei que está paralítico</p><p>que ele logo recobraria o uso de seus membros e governaria sua terra, e assim grandes</p><p>bens te resultariam! Mas fica agora sabendo que muitos males advirão a ti e a outros.</p><p>Isso te ocorreu, deverás saber, pelo pecado que cometeste contra tua mãe, pois ela</p><p>morreu de tristeza por ti. Conheço-te melhor do que tu a mim, que não sabes quem</p><p>sou. Fui criada junto contigo, em casa de tua mãe, por longo tempo: sou tua prima</p><p>irmã e tu és meu primo irmão. Não me pesa menos pelo que te sucedeu de mal por</p><p>não teres apurado o que era feito com o graal nem onde o levavam, do que por tua</p><p>mãe que está morta, e por este cavaleiro que eu amava e queria muito porque me</p><p>chamava de sua amiga querida e me amava como franco cavaleiro leal.</p><p>- Ah! prima, falou Persival, se é verdade o que me haveis dito, explicai-me como o</p><p>sabeis.</p><p>- Eu o sei, falou a donzela, com a certeza de quem a viu ser enterrada.</p><p>- Que ora tenha Deus piedade de sua alma, por sua bondade, falou Persival. Felão</p><p>conto me contastes. E já que foi sepultada na terra, que irei eu mais buscar? Pois não</p><p>seguia por aí por nenhum motivo afora querer vê-la. Convém que eu tome outro</p><p>caminho. E se quiserdes vir comigo, gostarei muito; eis que esse que aí jaz morto não</p><p>vos servirá mais de nada, eu vos previno. Os mortos com os mortos, os vivos com os</p><p>vivos. Vamos embora juntos, eu e vós. Parece-me grande loucura vossa que, sozinha,</p><p>fiqueis aqui a velar esse morto. Mas sigamos quem o matou, e vos prometo e garanto:</p><p>ou ele me fará render-me ou eu a ele, se o puder alcançar.</p><p>E ela que não podia refrear a grande dor que tinha no coração, disse-lhe:</p><p>- Belo amigo, por nenhum preço iria embora convosco, nem me separaria deste até</p><p>que o tenha enterrado. Se credes em mim, seguireis, naquela direção, por esse</p><p>caminho empedrado. Foi por ele que se foi o cavaleiro cruel e estulto que matou meu</p><p>doce amigo. Não vos disse tudo isso senão por querer, Deus me ajude, que sigais atrás</p><p>dele; quero seu dano tanto como se ele me tivesse matado. Mas onde foi obtida essa</p><p>espada que pende de vosso flanco esquerdo, que nunca derramou sangue de homem,</p><p>nem nunca foi desembainhada em combate? Sei bem onde foi feita e sei bem quem a</p><p>forjou. Guardai-vos, não vos fieis nela, de vez que vos trairá sem falha quando</p><p>entrardes em grande batalha, pois ela voará em pedaços.</p><p>- Bela prima, uma das sobrinhas de meu bom hospedeiro lhe enviou a espada</p><p>ontem à noite, e ele a deu a mim, e me tenho por bem pago. Mas me surpreendeis</p><p>muito com isso, se é verdade o que me dissestes. Dizei-me agora, se o sabeis: se</p><p>acontecer que ela se parta, poderá ser refeita?</p><p>- Sim, mas passará por duras penas quem souber seguir o caminho que leva ao lago</p><p>que se situa ao pé de Cothoatre. Lá a podereis fazer malhar novamente e retemperar e</p><p>restaurar, se alguma aventura até lá vos conduzir. Não vos dirijais senão à casa de</p><p>Triboët, um ferreiro que assim se chama, pois ele a fez e só ele a poderá refazer, o que</p><p>jamais conseguirá qualquer homem que tente. Guardai-vos de que outro lhe ponha a</p><p>mão, pois não saberia completar o trabalho.</p><p>- Por certo me seria muito molesto, falou Persival, se ela se partisse.</p><p>Foi-se então e ela ficou, não querendo separar-se do corpo daquele por cuja morte</p><p>lhe doía o coração.</p><p>***</p><p>Persival, pelo que nos diz a estória, perdera a tal ponto a memória que não se</p><p>lembrava mais de Deus. Abril e maio passaram cinco vezes, nisso se foram cinco anos</p><p>inteiros, sem que entrasse em igreja nem adorasse a Deus nem sua cruz. Assim</p><p>permaneceu por cinco anos, mas nem por isso deixou de buscar cavalaria; foi</p><p>procurando estranhas aventuras, traiçoeiras e duras, e tantas encontrou que muito bem</p><p>provou seu valor. Durante os cinco anos enviou como cativos à corte do rei Artur</p><p>sessenta cavaleiros de escol. Assim se ocupou por cinco anos sem recordar-se de</p><p>Deus.</p><p>Ao cabo dos cinco anos aconteceu que ia caminhando por um deserto, armado com</p><p>todas as armas, como costumava, quando encontrou três cavaleiros com dez damas,</p><p>tendo as cabeças cobertas de capuzes. Iam todos a pé, em hábitos de estamenha e</p><p>descalços.</p><p>As damas, que, pela salvação de suas almas, faziam a pé sua penitência pelos</p><p>pecados que haviam cometido, surpreenderam-se muito com aquele que vinha</p><p>armado. E um dos três cavaleiros o deteve e disse:</p><p>- Belo e caro amigo, acaso não credes em Jesus Cristo que escreveu a nova lei e a</p><p>deu aos cristãos? Decerto não é razoável nem bom portar armas, antes é grande erro,</p><p>no dia em que Jesus Cristo foi morto.</p><p>E ele que não tinha nenhuma noção de dia nem de hora nem de tempo, tão</p><p>perturbado estava seu coração, redarguiu:</p><p>- Mas que dia é hoje?</p><p>- Que dia, senhor? Não o sabeis? É a sexta-feira santa, o dia em que se deve adorar</p><p>a cruz e chorar pelos pecados, pois hoje foi pendurado na cruz aquele que foi vendido</p><p>por trinta dinheiros. Aquele que era limpo de</p><p>todos os pecados viu os pecados em que</p><p>o mundo todo estava enleado e manchado, e assim se tornou homem por nossos</p><p>pecados. Verdade é que ele foi Deus e homem, um filho nascido da Virgem que o</p><p>concebeu pelo Espírito Santo, e dessa forma Deus recebeu carne e sangue; assim foi a</p><p>divindade coberta por carne de homem, é coisa certa. E quem assim não acreditar não</p><p>o verá face a face. Ele nasceu da senhora Virgem e tomou forma e alma de homem</p><p>com sua santa divindade, ele que verdadeiramente, em dia tal como é hoje, foi posto</p><p>na cruz e tirou do inferno todos os seus amigos. Santíssima foi essa morte que salvou</p><p>os vivos, e aos mortos ressucitou da morte para a vida. Os judeus falsos, que deveriam</p><p>ser mortos como cães, por sua inveja fizeram a eles próprios mal e a nós grande bem</p><p>quando o levantaram na cruz: perderam-se e nos salvaram. Todos aqueles que nele</p><p>têm crença devem recolher-se hoje em penitência. Hoje um homem que crê em Deus</p><p>não deve carregar armas nem no campo nem na estrada.</p><p>- E de onde vindes agora assim? falou Persival.</p><p>- Senhor, de perto daqui, de um homem virtuoso, um santo ermitão que habita</p><p>nesta floresta. É homem tão santo que não vive senão da glória de Deus.</p><p>- Por Deus, senhor, que fizestes lá? Que pedistes? Que procurastes?</p><p>- O que, senhor? falou uma das damas, pedimos a ele conselho sobre nossos</p><p>pecados e fizemos nossa confissão. Fizemos o mais importante que possa fazer um</p><p>cristão que deseje reconciliar-se com Deus.</p><p>O que Persival ouviu o fez chorar, e se dispôs a ir falar com o homem virtuoso.</p><p>- Gostaria bem de ir lá, falou, se soubesse qual caminho e direção tomar.</p><p>- Senhor, quem quiser ir lá deve seguir sempre em frente por este caminho pelo</p><p>qual viemos, através do bosque espesso e cerrado, e atentar para os ramos que atamos</p><p>com nossas próprias mãos quando viemos. Deixamos tais sinais para que ninguém</p><p>que fosse ao santo eremita se extraviasse.</p><p>Com isso, encomendaram-se mutuamente a Deus, sem perguntar mais nada. E</p><p>Persival entrou pelo caminho, suspirando do fundo do coração por sentir-se em falta</p><p>para com Deus, do que muito se arrependia. Atravessou chorando todo o bosque.</p><p>Quando chegou ao eremitério, desmontou e desarmou-se, amarrou o cavalo a uma</p><p>bétula e depois entrou na morada do eremita. Em uma pequena capela encontrou o</p><p>eremita com um padre e um acólito, os quais, na verdade, iniciavam o serviço mais</p><p>alto e mais doce que pode ser celebrado na santa igreja. Persival pôs-se de joelhos</p><p>logo que entrou na capela, e o bom homem o chamou a si, vendo-o muito simples e</p><p>em prantos, as lágrimas escorrendo dos olhos até o queixo. E Persival que muito</p><p>receava ter ofendido Nosso Senhor, inclinou-se diante dele, abraçou-se a seus pés; de</p><p>mãos juntas lhe implorou que lhe desse conselho, do que tinha grande necessidade. E</p><p>o bom homem o mandou dizer sua confissão, de vez que não teria remissão a não ser</p><p>depois de confesso e arrependido.</p><p>- Senhor, falou ele, há bem cinco anos que não sei por onde ando, nem amei a</p><p>Deus nem acreditei nele, e desde então não fiz senão o mal.</p><p>- Eia! belo amigo, disse o homem virtuoso, dize-me por que assim fizeste, e roga a</p><p>Deus que tenha piedade da alma de seu pecador.</p><p>- Senhor, estive um dia na casa do Rei Pescador e, sem dúvida, vi a lança cujo</p><p>ferro sangra, e nada perguntei sobre a gota de sangue que vi pender da ponta do ferro</p><p>branco. Mesmo depois, é certo que não emendei meu erro. E, sobre o graal que vi ali,</p><p>não sei a quem é servido. Por isso sofri desde então uma aflição tão grande que por</p><p>meu querer estaria morto; esqueci de Nosso Senhor, nem lhe pedi perdão nem fiz</p><p>nada, que eu saiba, para que algum dia recebesse perdão.</p><p>- Eh! belo amigo, disse o homem virtuoso, dize-me agora qual é teu nome.</p><p>E ele respondeu:</p><p>- Persival, senhor.</p><p>Ao ouvir essa palavra o homem virtuoso suspirou, tendo reconhecido o nome, e</p><p>disse:</p><p>- Irmão, muito te foi nocivo um pecado de que nada sabes: foi a dor que tua mãe</p><p>sentiu por tua causa quando te separaste dela, e caiu por terra desmaiada na</p><p>extremidade da ponte em frente ao portão, e dessa dor ela foi morta. Foi pelo pecado</p><p>em que incorreste por isso que vieste a não perguntar nada da lança nem do graal, e</p><p>assim te sucederam muitos males. Nem terias sobrevivido tanto, é bom que o saibas,</p><p>se ela não te houvesse encomendado a Nosso Senhor. O pecado te travou a língua</p><p>quando viste diante de ti o ferro em que o sangue nunca estancou e não indagaste o</p><p>motivo. E foste acometido de insensatez, não apurando a quem serviam o graal.</p><p>Aquele a quem o servem é meu irmão, tua mãe era irmã dele e minha. E, quanto ao</p><p>rico Pescador, podes crer que ele é filho daquele rei que se faz servir desse graal. Mas</p><p>não cuides que lhe tragam lúcio, lampréia nem salmão; de uma só hóstia o servem,</p><p>que lhe é levada nesse graal e sua vida sustenta e conforta  tão santa coisa é o graal.</p><p>E ele, que é espiritual a ponto de que para sua vida nada precisa afora a hóstia que</p><p>vem no graal, tem estado assim por doze anos, sem sair do quarto em que viste o graal</p><p>entrar. Agora te quero prescrever e dar penitência por teu pecado.</p><p>- Belo tio, assim quero eu, falou Persival, de todo o coração. Como minha mãe foi</p><p>vossa irmã, é justo que me chameis de sobrinho, e eu a vós de tio, e que ainda mais</p><p>vos ame.</p><p>- É verdade, belo sobrinho, mas agora escuta: se tens piedade de tua alma, assume</p><p>o verdadeiro arrependimento e vai cada manhã à igreja, em nome da penitência, antes</p><p>de qualquer outro lugar, porque isso te trará proveito; não deixes de ir por nenhum</p><p>motivo. Se fores a um lugar onde haja igreja, capela ou paróquia, vai ter ali quando</p><p>soar o sino, ou antes, se já tiveres levantado. Isso não te prejudicará, antes muito fará</p><p>avançar tua alma. Iniciada a missa, o melhor a fazer é assisti-la, aguardando até que o</p><p>sacerdote tenha dito tudo e cantado tudo. Se assim fizeres por tua vontade, ainda</p><p>poderás elevar teu mérito, ganharás honra e alcançarás o paraíso. Ama a Deus, crê em</p><p>Deus, adora a Deus, honra aos homens e mulheres de valor, ergue-te na presença de</p><p>padres. É um serviço que pouco custa e que Deus verdadeiramente aprecia porque</p><p>provém da humildade. Se uma jovem te pedir ajuda, ou uma mulher viúva ou uma</p><p>órfã, ajuda-as, que é melhor para ti. Essa é uma esmola muito eficaz, ajuda-as, assim</p><p>farás bem; esforça-te para não deixares por nada de assim proceder. Tudo isso quero</p><p>que faças por teus pecados, se queres recuperar todas as graças de que costumavas</p><p>gozar. Agora dize-me se queres fazê-lo.</p><p>- Sim, senhor, de muito bom grado.</p><p>- Agora te peço que fiques aqui comigo dois dias inteiros, e que, como penitência,</p><p>comas da mesma comida que eu.</p><p>Persival lhe outorgou tudo. E o ermitão lhe segredou no ouvido uma oração,</p><p>insistindo até que ele a decorasse. Nessa oração havia numerosos nomes de Nosso</p><p>Senhor, pois ali estavam os nomes supremos, que não devem ser expressos por boca</p><p>humana a não ser sob ameaça de morte. Quando acabou de ensinar-lhe a oração,</p><p>proibiu-lhe que de modo algum os pronunciasse, salvo em grande perigo.</p><p>- Não o farei, senhor, prometeu ele.</p><p>Assim deixou-se ficar, e ouviu o serviço da missa e se regozijou. Depois do</p><p>serviço, adorou a cruz e chorou seus pecados. Naquela noite, teve para comer o que o</p><p>aprouve ao santo ermitão. Não teve senão beterrabas, cerefólio, alface e agrião, milho,</p><p>e pão de cevada e de aveia e água clara da fonte. E seu cavalo teve uma bacia cheia de</p><p>palha e cevada. Foi assim que Persival reconheceu que Deus recebeu a morte na</p><p>sexta-feira ao ser crucificado. Na Páscoa, Persival comungou muito dignamente.</p><p>IX</p><p>José Libertado</p><p>No dia em que o Salvador do mundo sofreu a morte, nossa própria morte foi</p><p>destruída, e nossa alegria restaurada. Naqueles dias, havia muito pouca gente que</p><p>acreditava nele, afora seus discípulos; e se havia outros crentes além deles, eram</p><p>muito poucos.</p><p>Quando Nosso Senhor foi posto na cruz, na condição</p><p>de homem mortal, temeu a</p><p>morte e disse:</p><p>- Belo Pai, não permitas esta Paixão, a não ser que eu possa garantir os meus</p><p>contra a morte.</p><p>Não o afligia tanto a angústia do corpo, quanto ver que não tinha ainda conquistado</p><p>ninguém, salvo o ladrão que lhe suplicara mercê na cruz. Disse Jesus Cristo na</p><p>Escritura que era como aquele que colhe o restolho no tempo da messe  isto é, com</p><p>sua morte não resgatara senão o ladrão, que nada era diante das outras pessoas. Ainda</p><p>assim, entre os pecadores, havia já quem tivesse um começo de fé. Mais do que a</p><p>respeito de todos os outros, fala o conto de um cavaleiro de nome José de Arimatéia, a</p><p>qual era uma cidade muito bonita na terra de Ramathe.</p><p>José nascera nessa cidade. Mas tinha vindo para Jerusalém sete anos antes de</p><p>Nosso Senhor ser pregado na cruz, e recebera a crença em Jesus Cristo, mas não</p><p>ousava revelá-la na frente dos judeus traiçoeiros. Era cheio de sabedoria, isento de</p><p>inveja e de orgulho, socorria os pobres; todas essas boas marcas estavam presentes</p><p>nele. É dele que fala o primeiro dos salmos: "Bem-aventurado aquele que não se alia</p><p>ao conselho dos felões." Esse José residia pois em Jerusalém com a mulher e o filho,</p><p>chamado Josefes. Josefes acabou mais tarde levando consigo a linhagem de seu pai,</p><p>conduzindo-a para além mar a uma terra que antes se chamava Grã Bretanha e agora é</p><p>denominada Inglaterra; transportou sua gente sobre o pano de sua camisa, sem usar</p><p>remo!</p><p>José teve muita tristeza com a morte de Jesus Cristo. Pensou como poderia honrá-</p><p>lo. Não o teria amado se não fosse pela graça do Espírito Santo, nada podia deter seu</p><p>amor leal. Vendo na cruz aquele que ele, José, acreditava ser o Filho de Deus, não se</p><p>sentiu nem perturbado nem descrente por vê-lo perecer, mas manteve esperança na</p><p>santa ressurreição. Já não podendo tê-lo vivo, pensou em obter coisas que ele</p><p>houvesse tocado corporalmente em sua vida.</p><p>Foi à casa onde Deus fizera a Ceia, ali comendo com seus discípulos um cordeiro</p><p>no dia de Páscoa. Ao chegar, José pediu para ver o lugar onde ele comera, e</p><p>mostraram-lhe a parte onde às vezes se faziam as refeições, no andar mais alto da</p><p>casa. Aí José encontrou a escudela de que o Filho de Deus se servira. Tomou-a</p><p>consigo e levou-a a sua morada, indo colocá-la no lugar mais limpo que pôde achar.</p><p>Consumada a morte do Salvador, não quis esperar que os incréus o despregassem,</p><p>preferindo vir a Pilatos, de quem era cavaleiro feudatário; estivera a seu soldo por oito</p><p>anos inteiros. Apresentando-se a Pilatos, requereu, como galardão por tudo o que</p><p>fizera, um dom que muito pouco custaria a ele. Pilatos, que muito apreciava seu</p><p>serviço, concordou, sem saber o que de fato estava concedendo: pois cuidava estar</p><p>dando o corpo de um pobre pescador, quando lhe dava o salvador dos pecadores e o</p><p>pão da vida. Foi o dom mais rico que jamais homem mortal concedeu, e José, que o</p><p>reconhecia, muito se alegrou, pois se deu por melhor pago do que a Pilatos pagara</p><p>antes com seu esforço.</p><p>Diante da cruz de que ele pendia, pôs-se a chorar perdidamente pelas grandes dores</p><p>que Jesus Cristo tinha sofrido preso a ela. Acabando de desprendê-lo, entre suspiros e</p><p>lágrimas, deitou-o em um sepulcro que fizera cavar em uma rocha, em que ele mesmo</p><p>deveria ser depositado ao morrer. Depois foi aonde morava buscar a escudela.</p><p>Voltando para junto do corpo, recolheu dentro dela as gotas de sangue, o melhor que</p><p>pôde, tornando em seguida a levá-la para sua casa. Desde então, Deus manifestou</p><p>através dela muitas maravilhas na Terra Prometida.</p><p>Tendo-a reposto no local mais puro de que sabia, tomou de seus panos mais ricos e</p><p>retornou diretamente ao sepulcro, onde enfaixou o corpo da melhor forma possível.</p><p>Terminando, depositou-o no sepulcro, colocando uma pesada pedra na entrada, para</p><p>impedir que tocassem nele.</p><p>Ao verem os judeus que ele soltara Jesus da cruz a que o haviam condenado a</p><p>morrer, e que o sepultara tão dignamente, ficaram enfurecidos. Deliberaram entre eles</p><p>e declararam que era justo que José expiasse pelo que tinha feito contra Deus e contra</p><p>a lei deles. Combinaram que o agarrariam de noite na hora de iniciar o sono, e o</p><p>meteriam em lugar tal que nunca mais se ouviria falar dele. E assim fizeram!</p><p>Chegando a sua casa, um dos homens bateu à porta e José veio abrir. Eles entraram e</p><p>o prenderam, levando-o para uma casa fortificada que pertencia ao bispo Caifás, a</p><p>cinco léguas de Jerusalém. Na casa havia uma pilastra que era ôca, embora parecesse</p><p>ser maciça. Dentro dela havia um catre malsão, que ninguém perceberia a não ser que</p><p>tivesse estado lá ou ouvisse falar de antemão. Tendo-o tirado de Jerusalém, juraram</p><p>que, no que dependesse deles, jamais se ouviria notícias de José. Puseram-no no catre</p><p>e proibiram que tivesse mais do que um pedaço de pão por dia e uma bilha d'água.</p><p>Regressaram e, em seguida, espalharam o rumor de que José estava desaparecido.</p><p>Quando soube, Pilatos se entristeceu. Nada podia fazer, bem sabendo que os judeus</p><p>agiam conforme o conselho dos mestres da lei.</p><p>Chegado o domingo, Jesus Cristo ressuscitou e os guardas o disseram aos judeus,</p><p>que assim souberam que o haviam perdido. Eles então afirmaram que fariam isso</p><p>custar muito caro a José. Determinaram a Caifás que nada mais lhe desse para comer,</p><p>que o deixasse morrer de vez. Mas o Senhor, por quem ele sofria esse tormento, não o</p><p>quis tolerar, mas veio ter com ele logo que logrou escapar do sepulcro e trouxe a José,</p><p>para seu consolo, a escudela que ele havia posto a salvo. José se rejubilou ao vê-lo,</p><p>compreendendo então que ele era Deus. E já não tinha de que se arrepender; ao</p><p>contrário, só lhe comprazia o que fizera.</p><p>Desta forma, apareceu o Salvador do mundo a José antes que a outro qualquer.</p><p>Reconfortou-o muito e lhe disse que podia estar seguro de que não morreria na prisão,</p><p>mas sairia são e salvo, e que estaria sempre em sua companhia. E que, quando saísse,</p><p>todos o encarariam com espanto. Mas o termo não chegara ainda, demoraria tanto que</p><p>todo o mundo o imaginaria morto. Quando o vissem sair, louvariam e glorificariam o</p><p>nome de Jesus.</p><p>Assim, José permaneceu tanto tempo na prisão que todos o esqueceram, ninguém</p><p>mais falava dele. Sua mulher ficou abandonada, bem como seu filho que não tinha</p><p>sequer um ano e meio no dia em que o pai foi posto na prisão. A mulher foi pedida em</p><p>casamento muitas vezes; mas disse que jamais teria companhia de homem até saber</p><p>ao certo sobre seu marido, a quem amava acima de toda criatura. Atingindo o filho a</p><p>idade de casar-se, exortaram-no os familiares para que o fizesse. Mas fora tomado de</p><p>tal amor por Jesus Cristo, por causa dos ensinamentos da mãe, que dizia que jamais se</p><p>casaria senão com a Santa Igreja. E recebera o batismo das mãos de São Jacques o</p><p>Menor. Mas, por enquanto, deixaremos de falar do menino e de sua mãe e voltaremos</p><p>a falar de José seu senhor; e o conto nos dirá como e de que maneira ele foi libertado</p><p>pela mão de Vespasiano, imperador de Roma, por decisão deste.</p><p>Diz o conto, nesta parte, que, na época em que Jesus Cristo foi crucificado, Tibério</p><p>César exercia o império de Roma; após a crucificação, manteve-o por mais dez anos.</p><p>Depois dele reinou Gaio, seu sobrinho, que não viveu senão um ano. Depois de Gaio</p><p>reinou Cláudio por quatorze anos. Depois de Cláudio reinou Nero, sob cujo poder São</p><p>Pedro foi crucificado e São Paulo decapitado, durante quatorze anos. Depois de Nero</p><p>reinaram Tito e Vespasiano seu filho, que foi leproso. No terceiro ano do reinado de</p><p>Tito, José foi tirado da prisão. Assim, podeis calcular quarenta e dois anos desde a</p><p>crucificação de Jesus Cristo até o livramento de José. E aqui ouvireis em que</p><p>circunstâncias foi libertado.</p><p>Aconteceu, no primeiro ano em que Tito reinava, que seu filho Vespasiano estava</p><p>tão mal da lepra que ninguém podia suportar sua presença. Seu pai, tão aflito que não</p><p>achava consolo, disse que, se houvesse alguém que pudesse deter e curar a lepra do</p><p>filho, ele lhe daria</p><p>o que pedisse.</p><p>Foi aí que se apresentou a ele um homem de Cafarnaum, dizendo saber de algo</p><p>que, se pudessem obter, devolveria a saúde de seu filho. O imperador logo o</p><p>encaminhou ao quarto em que estava Vespasiano. Este chegou a uma janela e pôs a</p><p>cabeça para fora, e o cavaleiro o examinou e percebeu que estava bem pior da lepra</p><p>do que outros que vira até então. O filho do imperador perguntou-lhe se sabia de</p><p>alguma coisa que lhe pudesse ser útil. O cavaleiro respondeu:</p><p>- De certo, senhor, pois, se vim a vossa presença, foi porque eu próprio fui leproso</p><p>em minha infância.</p><p>- Ah, belo senhor, e como vos curastes?</p><p>- Certamente, senhor, por um profeta que os incréus mataram muito injustamente.</p><p>- E por que meio ele vos curou? indagou Vespasiano.</p><p>- Na verdade nada fez senão tocar-me; e, se tivésseis alguma coisa dele, sabei que</p><p>ficaríeis curado.</p><p>Ao ouvir essas palavras, Vespasiano sentiu muita alegria e chamou seu pai, a quem</p><p>fez repetirem a conversa, pois ele já pouco conseguia falar, e seu pai disse que</p><p>mandaria averiguar. Disse Vespasiano:</p><p>- Senhor, instai com este cavaleiro e dai-lhe do que é vosso o bastante para que ele</p><p>se disponha a ir até lá. E, se com isso lograr curar-me, prometo ao profeta que</p><p>vingarei sua morte!</p><p>Tito insistiu tanto com o cavaleiro que ele concordou, e o imperador lhe confiou</p><p>seu selo, a fim de assegurar que fosse feito conforme ele desejasse em toda parte. Na</p><p>época em que o cavaleiro chegou à Judéia, os romanos mantinham guarnições sobre o</p><p>território que haviam conquistado. O cavaleiro foi ter com Félix, que comandava os</p><p>romanos em nome do imperador, enviado por este para submeter a região ao jugo de</p><p>Roma. A ele entregou o cavaleiro o selo imperial. E, quando Félix leu as cartas, disse-</p><p>lhe para ordenar o que lhe aprouvesse, que assim seria feito. E o cavaleiro fez</p><p>proclamar em todos os lugares que aqueles que possuíssem qualquer objeto que</p><p>tivesse tocado em Jesus deveriam trazê-lo; e quem retivesse um tal objeto e o</p><p>sonegasse seria executado logo que o pegassem. Assim como determinara foi feita a</p><p>proclamação, começando por Jerusalém.</p><p>Entretanto ninguém se apresentou para falar do assunto, afora uma mulher de idade</p><p>avançada, de nome Verônica. Compareceu diante de Félix, trazendo uma toalha que</p><p>vinha guardando por longo tempo, desde a crucificação de Jesus Cristo. Disse ela:</p><p>- Senhor, no dia em que o Santo Profeta foi levado para ser crucificado, passei</p><p>diante dele tendo na mão esta toalha, e ele me pediu que secasse seu rosto, todo</p><p>banhado de suor. Depois de enxugá-lo, embrulhei a toalha e a levei para casa. Ao</p><p>estendê-la, vi a face de Nosso Senhor como se tivesse sido pintada. Nunca mais estive</p><p>tão doente que não sarasse assim que a visse.</p><p>Assim dizendo, desdobrou a toalha: tinha aspecto de recém-tecida, e a face</p><p>aparecia como que desenhada sobre ela.</p><p>O cavaleiro levou a toalha a Roma. Na noite anterior à sua chegada, Vespasiano</p><p>sonhou que um leão vinha do céu e o tomava nas garras, e o escorchava todo; e todos</p><p>iam gritando atrás dele: "Vinde ver o homem morto que ressuscitou!"</p><p>De manhã, quando se levantou, seu pai veio ter com ele. Ao vê-lo, Vespasiano lhe</p><p>disse:</p><p>- Belo pai, alegrai-vos: pois acabo de ver que serei curado!</p><p>Nisso, chegou o cavaleiro. Logo que Vespasiano o avistou, começou a sentir um</p><p>alívio imenso em seus membros, e disse a ele:</p><p>- Senhor, sede bem-vindo, porque me devolvestes a saúde!</p><p>O cavaleiro desenrolou a toalha e a ofereceu a Vespasiano. E ele olhou a face</p><p>pintada, e assim que a viu ficou inteiramente curado. Quando o pai e os demais</p><p>perceberam isso, foi tão grande o júbilo que não se poderia contar.</p><p>Prontamente, Vespasiano se equipou e foi para a Judéia, onde fez perecer todos os</p><p>que participaram da crucificação do Profeta. A mulher de José soube de sua vinda;</p><p>veio a ele, com o filho, e contou de que maneira perdera o marido. Ao ouvi-la,</p><p>Vespasiano prendeu todos os envolvidos e jurou que faria queimá-los se não</p><p>dissessem onde José se encontrava. Eles replicaram que os sacrificaria em vão, porque</p><p>ele estava morto havia mais de quinze anos. Vespasiano continuou a atormentá-los,</p><p>até que disseram que haviam encarregado dois dentre eles de aprisioná-lo, dos quais</p><p>sobrara um, pois o outro foi decapitado na semana em que José foi preso; o próprio</p><p>carcereiro caiu do alto dos muros no dia seguinte àquele em que deixou de dar de</p><p>comer ao prisioneiro. Assim só restava um: Caifás, que era bispo dos judeus no ano</p><p>em que Cristo foi pregado na cruz. Fizesse agora Vespasiano o que bem entendesse:</p><p>haviam metido José na prisão, mas só Caifás sabia os detalhes, "e se não os informar,</p><p>jamais se terá notícia daquele".</p><p>Então Vespasiano mandou trazer Caifás sob guarda rigorosa; quanto aos outros,</p><p>manteve-os presos e os fez arder na fogueira. Sendo interrogado, Caifás alegou que</p><p>não saberia como ajudá-lo ainda que o esquartejassem; mesmo que todos no mundo se</p><p>empenhassem não conseguiriam recuperar José vivo, salvo intervenção de Deus. Mas,</p><p>embora nada soubesse de sua vida, poderia mostrar o lugar em que fora encerrado.</p><p>Disse Vespasiano que não queria outra coisa, e Caifás se dispôs a guiá-lo mediante a</p><p>promessa de que não seria nem queimado nem enforcado. Vespasiano lhe outorgou o</p><p>pedido.</p><p>Com essa condição, Caifás o conduziu à torre e disse:</p><p>- Eis o lugar em que ficou preso; quando ele foi encarcerado, eu, que continuo</p><p>vivo, não tinha mais de vinte e três anos!</p><p>Ao que Vespasiano contrapôs:</p><p>- Não te espantes, pois aquele pelo qual aí foi posto é poderoso o bastante para</p><p>salvá-lo, tanto mais que a mim  que nunca o servira  ele curou do pior dos males</p><p>que jamais existiu.</p><p>Ordenou pois a Caifás que entrasse no cárcere. Ele replicou que não entraria,</p><p>mesmo ao preço de o esquartejarem vivo. E Vespasiano lhe deu razão, pois seria</p><p>motivo de pena e desgosto se Caifás, vil pecador como era, ousasse tocar em José; ele</p><p>próprio entraria, portanto.</p><p>Então determinou que o descessem ao cárcere. Atingindo a parte mais baixa,</p><p>deparou com a maior claridade do mundo. Manteve-se afastado, quieto, por um longo</p><p>momento, e afinal chamou José pelo nome e este respondeu:</p><p>- Quem me chama?</p><p>- Sou Vespasiano, o filho do imperador de Roma, que vos vem buscar.</p><p>E José começou a se indagar quem seria esse Vespasiano, pois não cuidava ter</p><p>permanecido na prisão mais do que de sexta-feira a domingo. Perguntou a Vespasiano</p><p>o que faria dele, e o outro lhe disse que viera para vingar seu Salvador e, quanto a ele,</p><p>para tirá-lo dessa prisão. Ouvindo isso, José rendeu graças a Nosso Senhor, enquanto</p><p>Vespasiano se fazia içar para fora, indo logo contar o grande prodígio.</p><p>Nesse ínterim, José escutou uma voz que o exortava a não se inquietar, pois o</p><p>vingador terreal tinha chegado:</p><p>- Ele te fará justiça contra todos os teus inimigos. E após vires que vingança terá</p><p>tirado, mostrar-te-ei quão grandes provações te caberá sofrer para levar meu nome por</p><p>terras estranhas.</p><p>E José respondeu:</p><p>- Senhor, sou vosso servo, pronto a fazer o que vos aprouver comandar. Senhor,</p><p>que farei com vossa escudela? pois gostaria que permanecesse oculta.</p><p>E a voz lhe disse:</p><p>- Não te preocupes com a escudela: quando chegares à tua casa, irás achá-la no</p><p>mesmo lugar em que a tinhas depositado, e de onde eu a trouxe para aqui dentro.</p><p>Agora vai-te, porque eu te guardo e conduzo.</p><p>Aí calou-se a voz, e Vespasiano, que já estava em cima, o fez guindar. Vendo-o</p><p>Caifás, que ainda estava lá, não achou que tivesse envelhecido, antes declarou que</p><p>jamais o vira tão guapo. José, por outro lado, ao vê-lo não o pôde reconhecer, tanto</p><p>ele envelhecera. Nem tampouco reconheceu o próprio filho que veio beijá-lo;</p><p>perguntou quem seria, disseram-lhe que era seu filho e ele não acreditou. Em seguida,</p><p>correu a mulher a beijá-lo. Ele pôs-se a olhá-la e lhe pareceu pelo rosto que era sua</p><p>esposa, mas a achava muito mudada. E ela lhe disse:</p><p>- Senhor, não me reconheceis? Sou Eliap, vossa mulher, e este é vosso filho</p><p>Josefes.</p><p>E ele disse que não acreditaria, a menos que ela fornecesse sinais comprovando a</p><p>verdade. Vespasiano então inquiriu:</p><p>- José, por quanto tempo cuidais ter passado na prisão?</p><p>E José lhe respondeu:</p><p>- Senhor, creio ter-me demorado de sexta-feira até hoje!</p><p>Então puseram-se todos a rir, pois achavam que estivesse um tanto perturbado.</p><p>Mas Caifás se surpreendia ainda mais pelo fato de ele ter vivido tanto sem comer, e</p><p>exclamou:</p><p>- Por minha fé, dão-me a entender que já se cumpriram quarenta e dois anos desde</p><p>então.</p><p>Ouvindo isso, José muito se maravilhou. Vespasiano fez Caifás aproximar-se dele</p><p>e lhe perguntou se o reconhecia e José disse que não. O próprio José lhe indagou</p><p>quem era ele, e ele lhe disse que era aquele Caifás que o encerrara na prisão com a</p><p>ajuda de um outro, e que restava um sinal do fato: porque o deixaram cair, ficara com</p><p>uma ferida na testa. Com tais indícios, José se convenceu.</p><p>Quando José voltou a Jerusalém, o povo lhe fez muita festa, mas ele reconheceu</p><p>bem poucos. Vespasiano mandou prender todos os que tiveram parte na morte de</p><p>Jesus Cristo, que José lhe assinalou dentre os que reconhecera. Depois realizou-se o</p><p>julgamento de Caifás, a quem fora afiançado que não seria queimado ou enforcado.</p><p>Alguns afirmaram que seria justo que fosse confinado na prisão em que José estivera:</p><p>lá o fariam morrer de fome e sede. Outros observaram a Vespasiano que ele poderia</p><p>perfeitamente fazê-lo morrer, sem quebra de promessa, pois não tinha garantia salvo</p><p>contra fogueira e forca. Se o afogasse, não o estaria queimando nem enforcando.</p><p>- Senhor, disse José, está em vosso arbítrio fazer dele o que vos agradar. Mas, por</p><p>Deus, não o façais morrer assim; mas fazei-o colocar em tal lugar que não morra se se</p><p>dispuser a emendar sua vida, e que não possa escapar. Pois Nosso Senhor lhe</p><p>reservará talvez alguma aventura, e não desejaria que fosse morto neste ponto.</p><p>E Vespasiano disse:</p><p>- Este vosso conselho será acatado.</p><p>De imediato, mandou equipar um barco e fez Caifás entrar nele. Fez com que o</p><p>barco se afastasse mar afora e rumasse aonde o acaso o impelisse.</p><p>Assim, Vespasiano vingou a Jesus Cristo corporalmente de seus inimigos; e não foi</p><p>apenas ele a vingar-se, mas também Jesus Cristo por meio dele  isso serviu de</p><p>exemplo aos povos: para tanto Deus o havia curado de tão vilã doença como a lepra.</p><p>Pois os que mais dedicaram afeição a Nosso Senhor foram os gentios, e fizeram mais</p><p>por ele do que aqueles que ele chamava de filhos, de vez que os judeus felões o</p><p>penduraram na cruz e os pagãos o vingaram.</p><p>X</p><p>Maravilhas de Corbenic</p><p>No dia seguinte, após ouvir missa, Galaad partiu daquele lugar, encomendando os</p><p>frades a Deus, e tomou seu caminho, e assim cavalgou por cinco anos inteiros antes</p><p>que lograsse chegar à casa do Rei Paralítico. Em todos os cinco anos, Persival lhe fez</p><p>companhia, por onde quer que andasse. E, durante esse período, levaram a cabo de tal</p><p>modo as aventuras do reino de Logres que bem poucas foram vistas desde então, e</p><p>essas somente por manifestação milagrosa de Nosso Senhor. Nunca, em todos os</p><p>lugares em que estiveram, por mais gente que houvesse a guarnecê-los, houve jamais</p><p>quem pudesse derrotá-los ou sequer intimidá-los.</p><p>Um dia lhes ocorreu passar por uma floresta vasta e maravilhosa. Aí cruzaram com</p><p>Boors, que cavalgava sozinho. Quando o reconheceram, nem me pergunteis se</p><p>ficaram alegres e jubilosos, pois por muito tempo tinham estado sem ele e muito o</p><p>desejavam rever. Felicitaram-no e lhe desejaram honra e boa sorte, e ele lhes retribuiu</p><p>tais votos. Depois perguntaram-lhe como se estava saindo; ele lhes disse a verdade</p><p>sobre o que lhe sucedia: transcorridos cerca de cinco anos, não se deitara quatro vezes</p><p>em cama, nem se hospedara em lugar habitado, mas apenas em florestas estranhas e</p><p>montanhas longínquas, onde teria morrido mais de cem vezes se não fosse a graça do</p><p>Espírito Santo que o reconfortava e socorria em todas as suas tribulações.</p><p>- E encontrastes enfim o que buscamos? perguntou Persival.</p><p>- Por certo não, respondeu ele, mas creio que não nos separaremos antes de</p><p>alcançar aquilo por que esta busca foi começada.</p><p>- Deus assim nos conceda! exclamou Galaad. E quanto a vós, Deus me salve, não</p><p>sei de coisa que tanto me possa alegrar como vossa vinda, que por demais desejava</p><p>pelo muito que vos estimo.</p><p>Assim o acaso reuniu os três companheiros que havia antes separado. Cavalgaram</p><p>muito tempo, até que lhes aconteceu um dia virem ter ao castelo de Corbenic. Quando</p><p>lá chegaram e o rei os reconheceu, foi extraordinário o regozijo, pois todos sabiam</p><p>bem que com sua vinda terminariam as aventuras do castelo, que tão longamente</p><p>haviam durado. A notícia correu de cima a baixo, todos os do lugar vieram vê-los. O</p><p>rei Peles chorou junto de Galaad, seu sobrinho, e assim fizeram os outros que não o</p><p>viam desde criança.</p><p>Uma vez desarmados, Eliezer, filho do rei Peles, trouxe-lhes a Espada Partida, de</p><p>que o conto já falou de outra vez, aquela com a qual José fora ferido através da coxa.</p><p>Quando o rei a retirou da bainha e lhes contou como fora partida, Boors pôs-lhe a mão</p><p>para saber se a poderia rejuntar; mas assim não pôde ser. Quando viu que falhara,</p><p>passou-a a Persival e disse:</p><p>- Senhor, tentai levar ao fim esta aventura.</p><p>- De bom grado, respondeu ele.</p><p>Tomou da espada, tal qual estava, e colocou juntos os dois pedaços; mas não pôde</p><p>reuni-los de nenhum modo. Quando viu isso, disse a Galaad:</p><p>- Senhor, falhamos nesta aventura. Agora vos resta tentar, e, se vós também</p><p>falhais, não cuido que ela seja acabada por homem mortal.</p><p>Então Galaad segurou os dois pedaços da espada e ajustou-os um ao outro. E nesse</p><p>momento ficaram os pedaços tão maravilhosamente emendados que homem algum no</p><p>mundo poderia perceber a fissura que existia antes, e nem mesmo que a espada jamais</p><p>estivera quebrada. Ao verem isso, seus companheiros disseram que Deus lhes</p><p>propiciara um belo começo, e acreditaram que realizariam facilmente as outras</p><p>aventuras, dado que esta se cumprira. E quando os circunstantes viram acabada a</p><p>aventura da espada, rejubilaram-se ao extremo. Deram a espada a Boors, dizendo que</p><p>não poderia ser mais bem empregada, entregue a tão bom cavaleiro e gentil-homem.</p><p>Chegada a hora das vésperas, o tempo começou a escurecer e a mudar, e ergueu-se</p><p>uma ventania, cujas rajadas invadiam a sala; seu calor era tal que vários deles</p><p>temeram ser abrasados, e alguns desfaleceram pelo pavor que sentiam. E então</p><p>ouviram uma voz que dizia:</p><p>- Aqueles que não devem sentar-se à mesa de Jesus Cristo saiam agora, pois</p><p>chegou a hora de os cavaleiros verdadeiros serem saciados com a vianda do céu.</p><p>Ouvindo essas palavras, retiraram-se todos sem tardar, exceto o rei Peles, muito</p><p>nobre e de vida santa, seu filho Eliezer e uma donzela, sobrinha do rei, que era a mais</p><p>santa e religiosa que se poderia encontrar então em qualquer parte da terra. Com esses</p><p>três, ficaram os três companheiros, para ver o que Nosso Senhor lhes queria</p><p>demonstrar. Pouco depois, viram entrar pela porta nove cavaleiros armados, que</p><p>tiraram os elmos e armaduras e dirigiram-se a Galaad; curvaram-se e disseram:</p><p>- Senhor, muito pressurosos estávamos por acorrer convosco à mesa, onde o</p><p>manjar excelso será repartido.</p><p>E ele lhes replicou que vinham no momento certo, pois também ele próprio e seus</p><p>companheiros haviam chegado pouco antes. Sentaram-se todos ao centro da sala, e</p><p>Galaad lhes indagou de que lugar vinham. Três declararam ser da Gália, outros três da</p><p>Irlanda, e os três restantes da Dinamarca.</p><p>Enquanto assim conversavam, viram sair de um dos quartos um leito de madeira</p><p>levado por quatro donzelas. Nele se deitava um gentil-homem de semblante</p><p>enfermiço, com uma coroa de ouro na cabeça. Chegando ao meio da sala, elas</p><p>depuseram o leito no chão e se retiraram.</p><p>Erguendo a fronte, disse o gentil-homem a</p><p>Galaad:</p><p>- Senhor, sede benvindo! Muito vos desejava ver e por muito esperei vossa vinda,</p><p>em tal pena e em tal angústia que outro qualquer não agüentaria tão longo tempo.</p><p>Mas, praza a Deus, chegou agora o momento em que minha dor será aliviada, e</p><p>deixarei este mundo, como há muito me foi prometido.</p><p>Enquanto soavam estas palavras, ouviram uma voz que disse:</p><p>- Os que não participam da busca do Santo Graal partam daqui, pois não é lícito</p><p>que se demorem mais.</p><p>A essas palavras, saíram o rei Peles, seu filho e a donzela. E, quando a sala ficou</p><p>vazia, salvo pelos que se tinham por companheiros da busca, a esses que</p><p>permaneceram pareceu baixar do céu um homem em trajes de bispo, com um cruzeiro</p><p>na mão e mitra na cabeça; era transportado por quatro anjos em uma cadeira suntuosa,</p><p>que depositaram junto à mesa em que estava o Santo Graal. Aquele que fora trazido à</p><p>maneira de bispo tinha uma inscrição na fronte: "Aqui vedes Josefes, o primeiro bispo</p><p>dos cristãos, aquele mesmo que Nosso Senhor sagrou na cidade de Sarras, no palácio</p><p>espiritual." E os cavaleiros que o contemplavam entenderam as palavras, mas se</p><p>surpreenderam de que assim fosse, pois o Josefes de que falavam estava morto havia</p><p>mais de trezentos anos. O homem então se voltou para eles e lhes disse:</p><p>- Ah! cavaleiros de Deus, servidores de Jesus Cristo, não vos espanteis de me ver</p><p>diante de vós, em face deste santo vaso; pois assim como servi enquanto ser terreno,</p><p>sirvo agora na condição espiritual.</p><p>Dito isso, chegou-se à mesa de prata e se ajoelhou diante do altar, prostrando-se até</p><p>encostar as mãos no chão; após um longo intervalo, ouviu-se a porta do quarto abrir-</p><p>se e em seguida bater ruidosamente. Ele voltou o olhar naquela direção, e o mesmo</p><p>fizeram os demais: eis que viram passar os anjos que haviam trazido Josefes, dois dos</p><p>quais portavam círios e o terceiro uma toalha de seda branca, e o quarto uma lança</p><p>que sangrava tão profusamente que as gotas refluiam para uma caixa que o anjo</p><p>levava na outra mão. Os dois primeiros colocaram os círios sobre a mesa e o terceiro a</p><p>toalha junto ao santo Vaso; o quarto veio com a lança, mantendo-a firme, na vertical,</p><p>bem sobre o santo Vaso, de modo que o sangue que escorria pela haste fosse cair</p><p>dentro dele. Logo que os anjos terminaram, Josefes ergueu-se e elevou a lança um</p><p>pouco mais para cima, afastando-a do santo Vaso, ao qual cobriu então com a toalha.</p><p>Em seguida, Josefes procedeu como se iniciasse o sacramento da missa. Estando</p><p>nisso por uns poucos instantes, tomou de dentro do santo Vaso uma oblata em forma</p><p>de pão. No momento da elevação, desceu do céu uma figura com aspecto de criança,</p><p>com a face rubra e ardente como fogo; e uniu-se ao pão, de sorte que os que estavam</p><p>na sala viram abertamente que o pão tomava a forma de homem carnal. E Josefes,</p><p>depois de mantê-la no alto por longo tempo, recolocou a oblata no santo Vaso.</p><p>Tendo Josefes concluído esse serviço, semelhante ao da missa que é reservado aos</p><p>sacerdotes, veio a Galaad e o beijou e lhe disse que por sua vez beijasse todos os</p><p>outros  e ele o fez. E quando assim foi feito, disse a eles:</p><p>- Servos de Jesus Cristo, que trabalhastes e penastes para ver parte das maravilhas</p><p>do Santo Graal, sentai-vos diante desta mesa, onde sereis saciados com o mais alto e</p><p>melhor alimento que algum cavaleiro possa provar, e pela mão mesma de vosso</p><p>Salvador. Bem podeis dizer que trabalhastes com proveito, pois recebereis hoje a mais</p><p>alta retribuição que jamais um cavaleiro ganhou.</p><p>Ao dizer isso, desapareceu de suas vistas, e não souberam nunca o que foi feito</p><p>dele. Sentaram-se então à mesa muito temerosos e choraram tão sentidamente que</p><p>ficaram com os rostos úmidos. Então, enquanto contemplavam o santo Vaso, os</p><p>companheiros viram sair dele um homem completamente despido, tendo as mãos, os</p><p>pés e o corpo a sangrar; e o homem lhes disse:</p><p>- Meus cavaleiros e meus servidores e meus filhos leais, que no curso da vida</p><p>mortal vos tornastes espirituais, que me haveis buscado tanto que já não posso</p><p>ocultar-me de vós  convém que vejais parte de meus mistérios e segredos, pois</p><p>tanto haveis obrado que agora vos sentais à minha mesa, onde meus cavaleiros não</p><p>comiam desde o tempo de José de Arimatéia. Houve sempre quem recebesse as sobras</p><p>da mesa, como cabe aos servos. Assim é que os cavaleiros daqui e vários outros têm</p><p>sido alimentados pela graça do santo Vaso, mas nunca ocuparam o mesmo lugar em</p><p>que agora estais. Recebei pois e comei a alta vianda que tão longamente desejastes e</p><p>pela qual trabalhastes tanto.</p><p>Então ele próprio tomou do santo Vaso e veio a Galaad. E este se ajoelhou e o</p><p>outro lhe deu seu Salvador. E Galaad o recebeu jubiloso, de mãos postas. O mesmo</p><p>fizeram os dois outros, e a cada um pareceu ter em sua boca a peça com aspecto de</p><p>pão. Após receberem todos a alta vianda, que tanto lhes pareceu doce e maravilhosa</p><p>que sentiam como se todos os deleites imagináveis estivessem dentro de seus corpos,</p><p>aquele que assim os alimentara disse a Galaad:</p><p>- Filho tão limpo e puro como homem terreal pode ser, sabes tu o que tenho entre</p><p>minhas mãos?</p><p>- Não, respondeu ele, a não ser que mo digais.</p><p>- Esta é, disse ele, a escudela em que Jesus Cristo comeu o cordeiro com seus</p><p>discípulos no dia da Páscoa. É a escudela que serviu com agrado a todos os que se</p><p>acharam a meu serviço; é a escudela que jamais homem incrédulo viu que não o</p><p>vexasse muito. E porque assim tem agradado a todas as gentes, deve ser chamada de</p><p>Santo Graal. Agora viste o que tanto desejavas e cobiçavas ver. Mas não viste tão</p><p>abertamente como ainda verás. E sabes onde isso será? Na cidade de Sarras, no</p><p>palácio espiritual; e por isso te convém ir lá e terás por companhia este santo Vaso,</p><p>que naquela noite partirá do reino de Logres de tal modo que jamais nele será visto,</p><p>nem daqui por diante acontecerão aventuras dele. E sabes por que ele parte? Porque</p><p>não é servido nem honrado, como de direito, nesta terra. Pois seus habitantes se</p><p>entregaram à vida má e aos afazeres mundanos, a despeito de tantas vezes terem sido</p><p>saciados pela graça deste santo Vaso. E, diante de tão ruim retribuição, eu os desvisto</p><p>da honra que lhes concedera. Quero portanto que te vás de manhã até o mar, onde</p><p>encontrarás a nave em que pegaste a espada da estranha cinta. Para não ires só, quero</p><p>que leves contigo Persival e Boors. Contudo, já que não desejo que te vás deste país</p><p>sem que aconteça a cura do Rei Paralítico, quero que tomes do sangue desta lança e</p><p>com ele lhe untes as pernas: é a única coisa que pode curá-lo, outro modo não há.</p><p>- Ah! Senhor, falou Galaad, por que não consentis que venham todos comigo?</p><p>- Porque tal não é meu desígnio, respondeu, antes vos farei à imagem e semelhança</p><p>de meus apóstolos. Pois assim como aqueles comeram comigo no dia da Ceia, comeis</p><p>agora comigo na mesa do Santo Graal. E sois doze, assim como doze foram os</p><p>apóstolos. E eu sou o décimo-terceiro, acima de vós, eu que devo ser vosso mestre e</p><p>pastor. Assim como os espalhei e fiz andar pelo mundo inteiro a pregar a verdadeira</p><p>fé, da mesma forma vos envio, uns ali, outros acolá. Morrereis todos nesse serviço,</p><p>com exceção de um apenas.</p><p>Com isso, deu-lhes sua benção e desapareceu de tal maneira que, após vê-lo subir</p><p>ao céu, nada mais souberam dele.</p><p>Galaad foi até a lança posta sobre a mesa e tocou no sangue que emanava dela. Foi</p><p>em seguida ao Rei Paralítico e ungiu-lhe as pernas no local em que fora ferido. Ele de</p><p>pronto saltou do leito e vestiu-se, sadio e vigoroso. Rendeu graças a Nosso Senhor por</p><p>tê-lo contemplado com essa cura súbita. Viveu depois por muito tempo, mas não no</p><p>mundo secular: uniu-se a uma congregação de monjes brancos. Nosso Senhor operou</p><p>desde então muitos belos milagres por amor dele, dos quais o conto não fala aqui, por</p><p>não haver necessidade.</p><p>Em torno da meia-noite, quando haviam estado a orar a Nosso Senhor por longo</p><p>tempo, para</p><p>e</p><p>aspirações pessoais, muitas vezes para servir damas e donzelas desprotegidas. Era um</p><p>serviço alegre, inspirado nas regras do chamado amor cortês, proclamadas por André</p><p>o Capelão [43] e adotadas nas cantigas dos trovadores. Com isso, a Matéria da</p><p>Bretanha começava a tornar-se internacional. Os motivos folclóricos, os lugares</p><p>fantásticos em que tudo podia acontecer, contribuíam para tornar fascinantes as</p><p>aventuras. Elas retêm o interesse do leitor até quando a missão do herói parece a mais</p><p>frívola que se possa imaginar, tal como devolver a uma donzela um freio de mula</p><p>perdido.</p><p>Vimos que, de início, Chrétien colocou Galvão em primeiro lugar, deixando</p><p>Lancelote em terceiro. No entanto não fez de Galvão o protagonista de nenhum de</p><p>seus romances, lacuna que seria suprida por outros autores que, para nós, permanecem</p><p>anônimos. Lancelote, amante da esposa de Artur, a rainha Genevra (latim:</p><p>Guennevera, francês: Guenièvre, inglês: Guinevere), ganha a primazia no Lancelot</p><p>do Lac, obra em prosa de autor anônimo, escrita possivelmente entre 1215 e 1225. Os</p><p>amores do cavaleiro Tristão e de Isolda a Bela aparecem em muitas versões, sendo o</p><p>Tristan et Iseut de Béroul (circa 1180) uma das mais antigas que foram preservadas,</p><p>infelizmente de forma incompleta. O cavaleiro Persival (francês e inglês: Perceval)</p><p>deu nome à última obra de Chrétien (circa 1182), que a morte do poeta deixou</p><p>inacabada e que diversos autores se dedicaram a continuar. Na Primeira Continuação</p><p>do Persival, do final do século XII, o cavaleiro Caradoc participa de estranhas</p><p>aventuras, ligadas talvez à manifestação de símbolos do inconsciente.</p><p>Missões mais sérias vieram caracterizar uma terceira fase, a das estórias</p><p>exemplares, que começa de fato com o francês Robert de Boron, primeiro em verso,</p><p>para depois expandir-se em longos textos em prosa. O mais importante destes últimos</p><p>é o vasto ciclo do Lancelot-Graal, composto entre 1215 e 1235 aproximadamente,</p><p>também conhecido como a Vulgata Arturiana. O ciclo é constituído de cinco</p><p>romances, todos de autor desconhecido, embora já tenham sido atribuídos a Gautier</p><p>Map: L'Estoire del Saint Graal, L'Estoire de Merlin, Le Livre de Lancelot del Lac, La</p><p>Queste del Saint Graal, e La Mort le Roi Artus.</p><p>Nessa fase, as aventuras são muitas vezes alegorias, pois o que nelas acontece são</p><p>"coisas que mostrarão aos homens bons o significado das outras coisas", como</p><p>podemos ler na versão portuguesa da Demanda do Santo Graal ([19], p. 136).</p><p>Concentram-se principalmente em torno do tema do Graal, tratado de início por</p><p>Chrétien de Troyes em seu romance inacabado sobre Persival.</p><p>A palavra "graal" fizera seu primeiro aparecimento na literatura medieval no</p><p>Roman d'Alexandre, longo poema narrativo em que vários autores franceses</p><p>colaboraram sucessivamente, começando com Albéric de Briançon. Em português,</p><p>graal se traduz como "escudela", travessa larga em que se serve comida. Quando o</p><p>dono de um castelo queria honrar especialmente um hóspede que se sentasse à sua</p><p>mesa, convidava-o para comer a seu lado e compartilhar de um único prato ou</p><p>escudela. Em uma das primeiras versões do poema, um senescal recebe um viajante,</p><p>que se lembra dele com gratidão: "Contigo comi ontem à noite de teu graal."</p><p>Para Chrétien, "graal" continuava designando uma escudela e não um cálice, como</p><p>seria representado mais tarde. E era ainda substantivo comum, iniciado com letra</p><p>minúscula, embora repleto de um significado que o falecimento do poeta deixou sem</p><p>explicação. Desde então muitas interpretações foram surgindo, e continuam até hoje a</p><p>surgir, algumas de cunho místico e outras baseadas em noções filosóficas ou</p><p>psicológicas [40]. A interpretação que prevaleceu na Idade Média, adotada nas</p><p>Continuações do Persival e por Robert de Boron, foi provavelmente inspirada pelas</p><p>cruzadas e pela busca na Terra Santa dos objetos ligados à Paixão.</p><p>Para Robert de Boron, a Távola Redonda já existiria desde o tempo do pai de</p><p>Artur, o rei Uter Pendragão, e seria obra do mago Merlim, que a propôs como terceira</p><p>de uma seqüência notável, pois a primeira seria a mesa da santa ceia e a segunda a</p><p>mesa do Graal. Eis as palavras de Merlim a Uter Pendragão ([38], p. 123):</p><p>E, se quiserdes seguir meu conselho, instituireis a terceira mesa, em nome da</p><p>Trindade, cujas três pessoas estarão representadas nessas três mesas.</p><p>depois endereçadas a Artur ([38], p. 194):</p><p>Ora  continuou dizendo Merlim ao rei , sabei que Nosso Senhor fez a</p><p>primeira mesa e José [de Arimatéia], a segunda e eu, no tempo de</p><p>Uterpendragão, vosso pai, fiz a terceira, que muito será exaltada e de que se</p><p>falará por todo o mundo, pela boa cavalaria que em vosso tempo haverá.</p><p>Um lugar na Távola Redonda  o assento perigoso  ficou reservado para aquele</p><p>que levaria plenamente a cabo a busca do Graal. Na Vulgata Arturiana, este seria</p><p>Galaad (inglês: Galahad), filho de Lancelote.</p><p>Porque somente três cavaleiros, dentre os cento e cinqüenta da Távola Redonda,</p><p>mostram-se dignos durante as aventuras espirituais, o Graal é arrebatado para o céu</p><p>após a morte de Galaad. Deixado sem a proteção dessa "santa coisa", começa o</p><p>crepúsculo do mundo arturiano. Assim fecha-se o círculo, sendo dado um significado</p><p>quase apocalíptico, ausente nas primeiras crônicas, à morte de Artur na guerra interna</p><p>que leva à devastação final do reino de Logres.</p><p>Não cabe falar de uma única versão coerente da vida e dos feitos de Artur e seus</p><p>cavaleiros. Há muitas versões, algumas parciais e outras bastante abrangentes como a</p><p>da Vulgata Arturiana, com profundas diferenças e inconsistências entre elas. Tão</p><p>somente para colocar em perspectiva as dez aventuras que constituem a parte</p><p>principal deste livro, vou propor a seguir um relato que não tem de modo algum a</p><p>pretensão de arvorar-se em versão "oficial", nem quanto à descrição dos eventos nem</p><p>quanto a sua ordem de ocorrência. As crônicas da primeira fase forneceram o ponto</p><p>de partida, sobre o qual foram feitas em seguida adaptações e interpolações sugeridas</p><p>por obras das duas outras fases. Contam-se entre os principais acréscimos a</p><p>participação de Lancelote, inexistente nas crônicas iniciais, e o interlúdio místico</p><p>induzido pela demanda do Graal.</p><p>Contando a Lenda de Artur</p><p>Uter Pendragão, um rei bretão, apaixona-se por Igerna, mulher do duque Gorlois.</p><p>Faz guerra contra o duque para arrebatar-lhe Igerna, mas a cidadela de Tintagel onde</p><p>ela está encerrada resiste a todos os ataques.</p><p>Uter recorre ao sábio Merlim. Misto de homem de ciência  fora ele que realizara</p><p>a milagrosa obra de engenharia de trazer da Irlanda pedras gigantescas e de montá-las</p><p>com arte em Stonehenge  e também profeta e encantador, Merlim tem uma solução:</p><p>transformar a aparência do rei para que o confundam com o duque e assim possa</p><p>entrar livremente no castelo de Tintagel. Assim é feito, Igerna se deixa enganar e Uter</p><p>passa uma noite com ela, engendrando um filho. Gorlois logo morre em combate e</p><p>Uter casa-se com sua amada.</p><p>Mas a existência do filho é mantida em segredo. Merlim exige, como preço de seu</p><p>serviço, que o entreguem em suas mãos logo que nasça. Ele então passa a criança, que</p><p>recebe o nome de Artur, a um fiel vassalo de Uter chamado Heitor. Artur é criado ao</p><p>lado de um filho dele, Caio, que é desmamado precocemente para que Artur possa ser</p><p>amamentado. Tal seria, na opinião de alguns, o motivo de uma certa revolta e</p><p>mesquinhez que Caio iria demonstrar como adulto. Todos acreditam que Artur é</p><p>verdadeiramente filho de Heitor, sem o que sua vida estaria em perigo no período de</p><p>lutas que se segue à morte de Uter.</p><p>Na época em que Artur completava quinze anos, os homens ilustres do reino</p><p>pedem a Merlim que os ajudem a escolher um rei que ponha fim às guerras entre eles.</p><p>Merlim lhes propõe uma prova. Será rei quem puder sacar uma espada cravada em</p><p>pedra que de súbito aparece no pátio de uma igreja. Todos tentam, sem sucesso. Por</p><p>algum tempo interrompem</p><p>que, por sua piedade, resguardasse suas almas aonde quer que fossem,</p><p>baixou sobre eles uma voz que lhes disse:</p><p>- Meus filhos e não meus enteados, meus amigos e não meus adversários, deixai</p><p>este lugar e ide aonde cuideis fazer melhor, assim como a aventura vos conduzir.</p><p>Ouvindo isso, responderam todos a uma voz:</p><p>- Pai dos céus, sede bendito por vos dignardes a nos ter por filhos e amigos vossos!</p><p>Agora vemos bem que não foram vãs nossas penas.</p><p>Nesse instante, desceram dos alojamentos ao pátio inferior, onde acharam armas e</p><p>cavalos; aí se equiparam e montaram. Uma vez a cavalo, saíram do castelo,</p><p>conversando entre si e indagando de onde vinham, para que cada um pudesse</p><p>conhecer os outros. Descobriram que três eram da Gália, sendo um deles Claudim,</p><p>filho do rei Claudas; quanto aos demais, de onde quer que fossem, eram todos gentis-</p><p>homens de alta linhagem. No momento de se separarem, trocaram beijos como irmãos</p><p>e choraram com muita ternura, dizendo todos a Galaad:</p><p>- Senhor, sabei que na verdade nunca tivemos tão grande alegria como na hora em</p><p>que nos foi dito que deveríamos acompanhar-vos, nem tão grande mágoa como a de</p><p>deixar-vos tão cedo. Mas percebemos que esta separação é do agrado de Nosso</p><p>Senhor; e portanto convém que partamos sem queixa.</p><p>- Belos senhores, replicou Galaad, se gostais de minha companhia, igualmente me</p><p>apraz a vossa. Mas vedes bem que não nos é dado prosseguir juntos. Por isso vos</p><p>encomendo a Deus, e vos peço, se chegardes à corte do rei Artur, que saudeis por</p><p>mim meu senhor Lancelote, meu pai, e aos da Távola Redonda.</p><p>E eles responderam que, se forem àquela parte, não esquecerão de fazê-lo.</p><p>Nisso, separaram-se uns dos outros. Galaad seguiu caminho com seus</p><p>companheiros, e tanto cavalgaram os três que atingiram o mar em menos de quatro</p><p>dias. Mais depressa poderiam ter chegado, mas não tinham tomado a via mais curta,</p><p>não conhecendo muito bem os caminhos. Chegando à beira do mar, acharam na praia</p><p>a nave, aquela mesma em que a espada da estranha cinta fora encontrada, e viram a</p><p>inscrição na amurada da nave que dizia que ninguém entrasse se não cresse</p><p>firmemente em Jesus Cristo. Ao subirem a bordo e examinarem o que havia dentro,</p><p>viram, sobre o leito que existia na nave, a mesa de prata que tinham visto na casa do</p><p>Rei Paralítico. E o Santo Graal estava em cima dela, coberto com um pano de seda</p><p>vermelha. Quando viram o que ocorrera, os companheiros se felicitaram mutuamente,</p><p>de vez que, para seu benefício, o que eles mais amavam e desejavam lhes faria</p><p>companhia enquanto durasse a viagem. Benzeram-se, então, e entraram na nave,</p><p>encomendando-se a Nosso Senhor. Mal tinham embarcado, o vento que antes se</p><p>mantinha quieto e sereno, enfunou a vela com tal força que fez a nave desatracar da</p><p>praia e ganhar o alto mar, logo atingindo grande velocidade, à medida que o vento a</p><p>impelia mais e mais.</p><p>Desta maneira vagaram pelo mar por tão longo tempo que não sabiam aonde Deus</p><p>os conduzia. Todas as vezes que Galaad se deitava ou levantava, fazia suas orações a</p><p>Nosso Senhor para que, na hora em que solicitasse, lhe concedesse o passamento</p><p>deste mundo. Tanto repetiu esta prece, manhãs e noites, que uma voz divina lhe disse:</p><p>- Não te aflijas, Galaad, pois Nosso Senhor atenderá tua súplica: na hora em que</p><p>pedires a morte do corpo, tu a terás e receberás a vida da alma e a alegria duradoura.</p><p>Persival ouvira esse pedido tantas vezes feito por Galaad. Admirava-se muito, não</p><p>atinando qual motivo ele teria. Rogou-lhe, pelo companheirismo e confiança que</p><p>deveriam existir entre eles, que lhe explicasse por que pedia tal coisa.</p><p>- Direi com prazer, falou Galaad. Anteontem, vimos parte das maravilhas do Santo</p><p>Graal que Nosso Senhor nos mostrou por sua santa piedade, nas quais me foi dado</p><p>enxergar coisas ocultas que não são reveladas a ninguém, afora somente aos ministros</p><p>de Jesus Cristo. No ponto em que vi essas coisas que pensamento de hommem terreno</p><p>não poderia imaginar nem língua humana descrever, foi meu coração tomado de tão</p><p>grande suavidade e alegria que, se fosse então morrer para este mundo, bem sei que</p><p>jamais alguém pereceria em tal bem-aventurança como eu naquele instante. Pois havia</p><p>diante de mim tão grande companhia de anjos e tal plenitude de coisas espirituais que</p><p>eu teria sido então transportado da vida terrena para a celeste, na alegria dos gloriosos</p><p>mártires e dos amigos de Nosso Senhor. E porque cuido que estarei de novo em ponto</p><p>tão bom quanto aquele em que estive, ou ainda melhor, para contemplar essa grande</p><p>alegria, eu fiz este pedido que escutastes. É assim que imagino deixar o século, pela</p><p>vontade de Nosso Senhor, olhando as maravilhas do Santo Graal.</p><p>Assim Galaad anunciou a Persival a chegada de sua morte, tal como a resposta</p><p>divina lhe ensinara. Da maneira como eu vos havia indicado, os habitantes do reino de</p><p>Logres perderam, por causa de seus pecados, o Santo Graal que tantas vezes os havia</p><p>refeito e saciado. E assim como Nosso Senhor o havia enviado a Galaad, bem como a</p><p>José e seus demais descendentes, por causa da bondade de seus corações, por outro</p><p>lado despojou os herdeiros ruins, pela maldade e nulidade que achou neles. Com isso</p><p>tornou-se patente que os maus herdeiros acabaram perdendo por sua perversidade o</p><p>que os homens de bem vinham mantendo por seu mérito.</p><p>Muito tempo demoraram os companheiros no mar, até que um dia disseram a</p><p>Galaad:</p><p>- Senhor, neste leito que, conforme lemos um dia, foi preparado para vós, ainda</p><p>não vos reclinastes. Entretanto deveis fazê-lo, pois a carta dizia que nele iríeis</p><p>repousar.</p><p>E ele respondeu que ali repousaria. Deitou-se e dormiu longamente. Quando</p><p>despertou, olhou à frente e avistou a cidade de Sarras. Então soou uma voz que lhes</p><p>disse:</p><p>- Saí fora da nave, cavaleiros de Jesus Cristo, e segurai todos os três essa mesa de</p><p>prata e carregai-a até aquela cidade, do jeito que está, não a depositando no chão até</p><p>chegardes ao palácio espiritual, lá onde Nosso Senhor primeiro sagrou Josefes como</p><p>bispo.</p><p>Enquanto se ocupavam em retirar a mesa, olhando na direção do mar, viram</p><p>aproximar-se a nave em que, já passara longo tempo, tinham colocado o corpo da</p><p>irmã de Persival. Ao ver a nave, disse um deles:</p><p>- Em nome de Deus, esta donzela cumpriu fielmente o combinado, seguindo-nos</p><p>até aqui.</p><p>Então pegaram a mesa de prata e a removeram da nave. Em seguida, Boors e</p><p>Persival a seguraram pela frente e Galaad por trás, e se puseram a caminhar para a</p><p>cidade. Mas, quando chegaram à porta, Galaad sentiu-se cansado de carregar a mesa,</p><p>que pesava muito. Notou um homem de muletas junto à porta, que pedia esmola aos</p><p>passantes, os quais muitas vezes o atendiam pelo amor de Jesus Cristo. Ao aproximar-</p><p>se dele, Galaad o chamou e lhe disse:</p><p>- Bom homem, vem aqui e me ajuda para que consigamos colocar esta mesa lá em</p><p>cima no palácio.</p><p>- Ah! por Deus, senhor, falou ele, que dizeis? Faz bem dez anos que não posso</p><p>caminhar sem ajuda alheia.</p><p>- Não te importes com isso, disse Galaad, levanta-te e não duvides, pois estás</p><p>curado.</p><p>No instante em que Galaad disse estas palavras, o outro tentou erguer-se; e, ao</p><p>tentar, achou-se tão lépido e fagueiro como se nunca tivesse estado mal em toda a</p><p>vida. Correu então para a mesa e a segurou, ao lado de Galaad. Ao entrarem na</p><p>cidade, ele ia dizendo a todos que encontrava o milagre que Deus fizera em seu favor.</p><p>Chegando ao palácio no alto, viram a cadeira que Nosso Senhor tinha outrora</p><p>preparado para Josefes assentar-se. Logo acorreram maravilhados os da cidade, para</p><p>ver o paralítico que estava de novo em pé. Terminando os companheiros de cumprir o</p><p>que lhes fora ordenado, retornaram à praia e entraram na nave em que estava a irmã</p><p>de Persival. Ergueram-na, com o leito e tudo, e levaram-na ao palácio onde a</p><p>sepultaram tão ricamente como era devido a uma filha de rei.</p><p>Quando o rei da cidade, chamado Escorant, viu os três companheiros, perguntou-</p><p>lhes de onde</p><p>as tentativas, para divertir-se, iniciando um torneio. Vendo</p><p>o irmão impedido de participar, por estar sem sua espada, Artur se lembra daquela que</p><p>vira espetada na pedra. Retira-a com facilidade e a entrega a Caio, que diante do povo</p><p>confessa tê-la recebido do meio-irmão, o verdadeiro autor da proeza. Mas, surpresos e</p><p>relutantes por não saberem que se trata de filho de rei, bem como por sua pouca idade,</p><p>os nobres resistem a reconhecer Artur como soberano.</p><p>Artur obtém a adesão de alguns barões e derrota os outros pelas armas. Tem ainda</p><p>de enfrentar os saxões, que renovam os ataques confiados na juventude e</p><p>inexperiência do novo rei. Mas Artur vence a todos, e ainda parte para a conquista de</p><p>outras terras. Domina a ilha toda, inclusive o território escocês. Restabelecida a paz</p><p>no reino, casa-se com Genevra, de nobre descendência romana embora educada na</p><p>casa de Cador, duque da Cornualha. Invade as terras da Irlanda, Islândia, Gotlândia, e</p><p>Órcadas. Seguem-se doze anos de paz, durante os quais reúne os melhores homens à</p><p>sua volta e torna sua corte a mais brilhante do mundo pela cortesia, dignidade e</p><p>generosidade, invejada por todos. Dentre esses homens que compõem a nobre</p><p>companhia da Távola Redonda, o mais valoroso é Galvão seu sobrinho. Por outro</p><p>lado, um irmão de Galvão, Modredo, acabaria sendo o causador da desgraça do reino;</p><p>segundo alguns, Modredo não era sobrinho, e sim filho incestuoso de Artur com uma</p><p>meia-irmã. Outros bons cavaleiros eram Ivã filho de Uriano, Beduero o escanção,</p><p>portador da taça do rei, Caio o condestável, Hoel, Boors e Persival. Alguns, como</p><p>Caradoc, eram reis eles próprios, mas se orgulhavam de também sentar-se à Távola</p><p>Redonda, e acorriam prontamente quando Artur os convocava.</p><p>Um jovem é recebido na corte, destinado a tornar-se o primeiro cavaleiro do rei.</p><p>Seu pai, o rei Ban de Benoic, fora morto durante o período conturbado entre a morte</p><p>de Uter e a subida de Artur ao trono. O menino teria também sucumbido ao massacre</p><p>se não fosse arrebatado por Niniane, a Dama do Lago, que o criou em seus domínios,</p><p>ocultos por encantamento no fundo de um lago. Atingindo a idade adulta, o jovem,</p><p>com o nome de Lancelote do Lago, é armado cavaleiro na corte de Artur em Camelot</p><p>e recebe a espada das mãos de Genevra; daí em diante será sempre o cavaleiro da</p><p>rainha. Por amizade a Lancelote, o rei Galehaut, inimigo de Artur, faz as pazes com</p><p>ele. Galehaut revela depois a Genevra que Lancelote a ama sem ousar confessar seus</p><p>sentimentos. Lancelote e Genevra trocam o primeiro beijo. Tornam-se amantes,</p><p>conseguindo no início manter em segredo seus encontros. Quando Genevra é raptada</p><p>por Meleagant, é Lancelote quem vai salvá-la. Chega à terra do vilão atravessando</p><p>penosamente um rio de águas negras e traiçoeiras, agarrado à lâmina cortante da</p><p>Ponte da Espada, para logo depois derrotar o raptor em combate.</p><p>Durante o longo período de paz externa, os cavaleiros se dedicam a aventuras a</p><p>serviço de damas e donzelas. Um dia, porém, ocorre um chamado mais premente.</p><p>Reunidos à mesa no salão do castelo real em Camelot, Artur e seus cavaleiros vêem</p><p>entrar o Santo Graal. À medida que cruza o salão, sua presença faz aparecer diante de</p><p>cada homem o alimento que ele mais deseja. Ficam todos sem voz até que o santo</p><p>vaso sai sem que percebam para onde. Primeiro Galvão e depois todos os demais</p><p>companheiros da Távola Redonda juram partir em sua busca, inclusive um que só</p><p>recentemente tomara assento nela: Tristão, sobrinho do traiçoeiro rei Marcos da</p><p>Cornualha. Trazido, muitos séculos antes, à Grã-Bretanha por José de Arimatéia, o</p><p>miraculoso objeto permanecia guardado em um castelo cujo caminho ninguém sabia</p><p>achar. A demanda do Santo Graal consome vários anos e são muitos os que morrem</p><p>tentando. Somente Galaad, filho de Lancelote, leva plenamente a cabo essa aventura</p><p>suprema, tendo como companheiros Persival e Boors. Com a morte de Galaad, o</p><p>Santo Graal é retirado da terra, ficando o reino de Artur sem sua proteção.</p><p>Termina essa era de paz, em que o tempo parecia ter-se imobilizado. O rei Artur,</p><p>notando como o temem todos os povos, e não satisfeito com a vitória sobre os saxões</p><p>e a unificação do reino sob seu domínio, resolve empreender a conquista do mundo.</p><p>Ocupa a Noruega e a Dinamarca, e se prepara para atacar a Gália, ainda vinculada a</p><p>Roma. A vitória decisiva contra a Gália é conquistada pelo próprio Artur em combate</p><p>singular contra o rei Flolo, homem de porte gigantesco.</p><p>Voltando em triunfo para o reino, Artur celebra em Caerleon uma esplêndida corte</p><p>plenária, em que usa a coroa e reúne todos os numerosos barões submissos a ele.</p><p>Durante as festividades, chegam emissários do imperador de Roma. Irritado com a</p><p>perda da Gália, ele mandava intimar Artur a devolvê-la e a restabelecer o envio de</p><p>tributos que os antigos reis bretões pagavam a Roma. Se não obedecer, invadirá sua</p><p>terra. Artur responde desafiando o império. Em vez de esperar a invasão, confia o</p><p>reino e a rainha Genevra a seu sobrinho Modredo e se prepara para cruzar o canal da</p><p>Mancha e enfrentar o inimigo em seu próprio solo. Afinal, as profecias sibilinas</p><p>anunciavam que um homem de seu sangue estaria fadado a conquistar Roma.</p><p>Cada lado convoca seus aliados. O exército romano incorpora uma vasta e exótica</p><p>multidão enviada pelos "reis do Oriente"; comparecem homens da Grécia, África,</p><p>Espanha, Pártia, Média, Líbia, Itúria, Egito, Babilônia, Bitínia, Frígia, Síria, Beócia,</p><p>Creta... Esse enorme exército é comandado por Lúcio Hibério, ora apresentado como</p><p>procurador da república, ora como imperador, e por um grupo de senadores romanos.</p><p>Logo após atravessar o canal, Artur mata um gigante no monte Saint Michel, o que</p><p>seus homens interpretam como bom presságio. Depois de emboscadas e escaramuças</p><p>preliminares, trava-se a batalha decisiva entre as tropas de Artur e Lúcio, perto de um</p><p>certo vale de Siésia. Artur é vitorioso, Lúcio é morto e seu corpo é enviado a Roma à</p><p>guisa de tributo  é esse o único pagamento que receberão!  manda dizer aos</p><p>romanos o vencedor orgulhoso.</p><p>Agora só resta marchar contra Roma. É aí porém que chega a notícia terrível: o</p><p>regente Modredo traíra o tio, usurpando a coroa e trazendo a rainha para seu leito.</p><p>Artur deixa Hoel no comando de parte do exército e, com as tropas restantes, volta à</p><p>Grã-Bretanha para retomá-la do traidor. As forças de Artur e de Modredo se</p><p>enfrentam várias vezes, sempre com vantagem para Artur. A rainha Genevra ouve</p><p>sobre as derrotas e fugas seguidas de Modredo; tomada de remorso por ter-se deixado</p><p>seduzir por ele, recolhe-se a um convento, de onde nunca sairá.</p><p>Mas há quem diga que ela jamais cedeu às propostas de Modredo. Ela fora antes</p><p>condenada à morte por Artur, diante da denúncia de sua ligação com Lancelote. Este a</p><p>salvou da fogueira e exilou-se junto com ela, sofrendo então o assédio militar de</p><p>Artur. Foi necessária a intervenção do Papa, que fez cessar as hostilidades,</p><p>determinando que o rei aceitasse Genevra de volta como rainha. Quando Modredo</p><p>tentou seduzi-la, ela escapou dele, refugiando-se em uma torre. De lá teria saído para</p><p>ingressar no convento, já durante o conflito entre Artur e Modredo, no curso do qual a</p><p>falta de Lancelote é grandemente sentida. Ele deverá sobreviver ao rei e à rainha,</p><p>transcorrendo seus útimos dias em penitência e orações em um eremitério.</p><p>Por fim, os exércitos de Artur e Modredo se encontram junto ao rio Camblan.</p><p>Conta-se que o desejo de ambas as partes era de parlamentar para impedir a luta</p><p>fratricida. Mas uma cobra ataca um cavaleiro, não importa de qual dos lados, e ele</p><p>saca a espada para se defender. O brilho da espada tirada da bainha é visto por todos e</p><p>interpretado como sinal para iniciar a matança. Morrem todos, exceto Artur e dois de</p><p>seus homens e o traidor Modredo. Os dois chefes inimigos se ferem mutuamente. O</p><p>corpo de Modredo é vazado e no instante de sua morte vê-se um raio de sol passar</p><p>através do ferimento.</p><p>Artur,</p><p>também ferido mortalmente, pede a seu cavaleiro Beduero que vá até um</p><p>lago próximo e atire na água sua espada Excalibur. Beduero por duas vezes chega à</p><p>margem do lago e não encontra ânimo para jogar fora tão famosa arma. Volta a Artur,</p><p>sempre dizendo que cumprira a ordem, e que nada de extraordinário acontecera. Artur</p><p>ordena pela terceira vez e é finalmente obedecido. Beduero arremessa a espada e vê a</p><p>mão estendida que se ergue do lago para segurá-la pelo punho e de pronto mergulhar</p><p>com ela. Retornando ao lugar em que Artur ficara caído, Beduero já não o encontra</p><p>ali. Vê seu corpo deitado no interior de um barco que se afasta, e ao lado do rei três</p><p>vultos de mulher, uma das quais Morgana sua irmã. O barco o transporta para Avalon,</p><p>terra das fadas, onde seus ferimentos serão medicados e de onde voltará um dia para</p><p>de novo reinar sobre a Inglaterra.</p><p>Sobre as Aventuras deste Livro</p><p>O presente livro oferece uma amostra da Matéria da Bretanha, passando pelas três</p><p>fases que descrevemos. São dez narrativas, todas traduzidas em prosa a partir de</p><p>diferentes originais escritos em francês antigo, em verso ou em prosa, durante o</p><p>período abrangido pelos séculos XII e XIII. O leitor encontrará, a seguir, breves notas</p><p>sobre cada narrativa.</p><p>Nessas notas iremos mencionar outros textos, alguns de tradições bem diversas,</p><p>tais como os contos das Mil e Uma Noites, que contêm motivos ou temas em comum,</p><p>além de analogias esclarecedoras, com as aventuras arturianas. Ligações assim não</p><p>são surpreendentes, de vez que a existência de motivos universais recorrentes é</p><p>amplamente reconhecida pelos apreciadores de literatura comparada [44]. Resumos de</p><p>várias dessas estórias figuram no capítulo seguinte, sendo referenciados aqui por seus</p><p>títulos (sublinhados, entre parênteses).</p><p>As duas primeiras narrativas traduzidas pertencem à fase das crônicas pseudo-</p><p>históricas, em que o próprio rei Artur desempenha o principal papel. Ambas figuram</p><p>no Roman de Brut de Wace. Na primeira, "O Gigante do Monte Saint-Michel",</p><p>Artur enfrenta um gigante que raptara a filha de um de seus barões. O rei se encarrega</p><p>pessoalmente da aventura, tanto por sua vocação de herói como para inspirar bravura</p><p>nos homens de seu exército. E a luta com o gigante lembra ao rei seu confronto</p><p>anterior em um certo monte Arave com outro gigante, que Wace aproveita para contar</p><p>também. Na carreira do rei Alexandre da Macedônia, de que Geoffrey parece ter</p><p>tirado muitos elementos para compor sua biografia de Artur [32], existem igualmente</p><p>cenas de combates individuais, uma das quais durante expedição contra tribos árabes</p><p>que habitavam a montanha do Anti-Líbano. Tal como no caso de Artur, tais façanhas</p><p>serviam para levantar o ânimo dos soldados de Alexandre, mostrando a eles como seu</p><p>rei estava sempre disposto a compartilhar dos perigos que enfrentavam (a. Os</p><p>Bárbaros da Montanha).</p><p>A segunda passagem extraída de Wace, "Rei que foi, Rei que há de ser", narra a</p><p>seqüência final de batalhas travadas entre as tropas de Artur e as de seu sobrinho</p><p>traidor Modredo. Termina com a morte de muitos dos maiores guerreiros de Artur,</p><p>inclusive Galvão, e, finalmente, com os dois líderes sendo também feridos de morte.</p><p>Nesse "dia perverso do destino", nas palavras de Thomas Malory ([42], vol. 2, p.</p><p>514), morre efetivamente Modredo, enquanto Artur é transportado para a ilha de</p><p>Avalon que, para Geoffrey, é o domínio da fada Morgana e de suas irmãs, e de onde</p><p>se espera que voltará um dia. De modo semelhante, narrativas lendárias atribuem a</p><p>Alexandre uma tentativa de desaparecer, de modo que ninguém pudesse ter certeza de</p><p>sua morte (b. Morte em Babilônia). Exemplos históricos de reis desaparecidos cujo</p><p>retorno seus súditos teimavam em aguardar foram Frederico Barbarossa, da</p><p>Alemanha, e D. Sebastião, de Portugal.</p><p>A fase de romances de cavalaria reúne o maior número de narrativas deste volume.</p><p>E começa com Galvão, o galante sobrinho do rei Artur, seu substituto nas façanhas</p><p>heróicas quando o tio parece recolher-se a um segundo plano. A primeira narrativa,</p><p>"A Mula sem Freio" (La Mule sans Frein), é obra de um autor anônimo do final do</p><p>século XII ou início do século XIII que, provavelmente numa sátira a Chrétien de</p><p>Troyes, assume o pseudônimo de "Païen de Maisières": "Pagão" contrasta com</p><p>"Cristão", e Maisières (hoje Charleville-Mezières) é, como Troyes, uma cidade da</p><p>região de Champagne. A estória conta como Galvão parte em viagem arriscada e</p><p>enfrenta sucessivas provas em um castelo, para merecer como prêmio um certo freio</p><p>que fora tirado da mula de uma donzela. Nos contos folclóricos, tais provas costumam</p><p>ligar-se a encantamentos que protegem um tesouro e têm de ser quebrados para que o</p><p>herói possa penetrar no local em que estão as riquezas. No Perceval, Chrétien já fizera</p><p>Galvão passar por provas desse gênero no episódio do Leito da Maravilha. Nas Mil e</p><p>Uma Noites, o pescador Judar também deve quebrar encantamentos muito</p><p>semelhantes para ter acesso a um tesouro. Visto que Galvão é assistido por um vilão</p><p>que “parecia um mouro da Mauritânia”, é interessante ver que Judar é auxiliado por</p><p>um mago que é efetivamente um mouro. A maior riqueza que Judar deve encontrar</p><p>nesse tesouro não consiste em pedras ou metais preciosos  mas sim em amuletos</p><p>mágicos (c. O Tesouro de Al-Shamardal). E um freio aparece como amuleto em um</p><p>outro conto das Mil e Uma Noites, tendo o poder de impedir uma bruxa transmutada</p><p>em mula de retomar forma humana (d. A Feiticeira com Freio).</p><p>Galvão é igualmente o protagonista de "O Cavaleiro da Espada" (Le Chevalier à</p><p>l'Épée), outra obra de autor anônimo da mesma época que a anterior. O herói é</p><p>acolhido por um sinistro cavaleiro que atrai hóspedes para seu castelo e os mata se o</p><p>contrariam em qualquer coisa, por insignificante que seja. E os que não o contrariam</p><p>são induzidos a deitar-se com sua filha. Bela como ela é, todos tentam seduzi-la, mas</p><p>a espada do título da estória vem então, sozinha, sem que ninguém a maneje, ferir de</p><p>morte o imprudente. Galvão passa com ferimentos mínimos pela prova da espada e a</p><p>jovem lhe é dada em casamento  caso raro na carreira desse alegre adepto do amor</p><p>cortês, que se habituara a manter-se livre de tais compromissos e, portanto, sempre</p><p>disponível para atender aos pedidos de ajuda e à sedução de damas e donzelas. Logo a</p><p>fogosa esposa procura outro parceiro para satisfazer seus impulsos eróticos e Galvão</p><p>acaba por abandoná-la. Mas não sem antes comparar a inconstância das mulheres à</p><p>fidelidade dos cães, também nisso repetindo o infortúnio do rei Cipreste com a</p><p>beldade da espécie volúvel dos gênios que esse rei teve a imprudência de desposar nas</p><p>Mil e Uma Noites (e. O rei Cipreste e a rainha Pinha).</p><p>Mais bem sucedido com a constância feminina do que Galvão foi outro sobrinho</p><p>do rei Artur, no episódio de "Caradoc do Braço Inchado" (ou "do Braço Curto", em</p><p>tradução mais literal, porém menos fiel ao sentido do texto), extraído da Primeira</p><p>Continuação do Persival, cujo autor desconhecido é designado por alguns estudiosos</p><p>como o Pseudo-Wauchier. O cavaleiro Caradoc é educado como se fosse filho de um</p><p>rei do mesmo nome. Mas, na noite do casamento do rei, um mago havia tomado seu</p><p>lugar no leito nupcial, e era dele que o cavaleiro era filho. O jovem Caradoc é o único</p><p>na corte de Artur a aceitar o desafio lançado por um visitante, para que lhe cortem a</p><p>cabeça com a promessa de que, dali a um ano, voltará para retribuir o golpe. O</p><p>estranho visitante retorna no dia aprazado, parecendo disposto a cumprir a ameaça,</p><p>mas poupa a vida de Caradoc  e lhe revela que é seu verdadeiro pai. Preferindo</p><p>manter-se leal ao pai adotivo, Caradoc contribui para que a mãe e o mago sejam</p><p>punidos, e eles se vingam por meio de uma serpente que se enrosca em seu braço e lhe</p><p>suga lentamente a energia vital. Ele só pode ser salvo por uma mulher que o ame e</p><p>arrisque o corpo por ele, o que por fim acontece. O ardil empregado para atrair a</p><p>serpente</p><p>lembra o da estória de uma Rainha das Serpentes, nas Mil e Uma Noites, na</p><p>qual qual figura um certo rei Karazdan (f. A Rainha das Serpentes). Caradoc toma a</p><p>valorosa jovem como esposa, e ela comprova depois sua perfeita fidelidade ao</p><p>marido.</p><p>As duas estórias seguintes falam de duas rainhas, cada uma delas infiel ao rei seu</p><p>marido, mas lealmente apaixonada pelo principal cavaleiro dele: Isolda, esposa do rei</p><p>Marcos, e Tristão; Genevra, esposa de Artur, e Lancelote. Chrétien já incluía "Tristão,</p><p>aquele que nunca ria"  "o triste", portanto, embora alguns estudiosos atribuam</p><p>origem céltica ao nome  entre os cavaleiros da Távola Redonda. Tristão seria um</p><p>desses heróis nascidos sob má estrela, fadados a uma existência infeliz. Seu pai</p><p>morreu antes de seu nascimento e a mãe em resultado do parto. Servindo na corte do</p><p>tio, rei da Cornualha, encarregou-se de trazer-lhe a noiva da Irlanda; na viagem</p><p>marítima, o cavaleiro e a bela Isolda bebem sem saber de um filtro mágico e iniciam</p><p>um caso de amor que terminará com a morte de ambos. No entanto o episódio de "O</p><p>Juramento Ambíguo de Isolda", tirado do Tristan et Iseut de Béroul, introduz um</p><p>momento de comicidade em meio à narrativa trágica. Nele, a rainha se propõe a</p><p>afirmar sua fidelidade ao rei com a mão posta sobre relíquias  o que lhe atrairia</p><p>terrível castigo se jurasse em falso. Tal como no conto sânscrito sobre a esperta</p><p>Shriyadevi no Sukasaptati (g. O Juramento de Shriyadevi), Isolda encena uma farsa</p><p>com o amante, que é assistida e interpretada pelos presentes da maneira que convém a</p><p>ela...</p><p>Lancelote é criação de Chrétien de Troyes, bem como sua paixão por Genevra, mas</p><p>foram textos posteriores em prosa que ergueram Lancelote à posição de primeiro</p><p>cavaleiro do rei. Veremos o episódio "A Falsa Genevra" conforme aparece no livro</p><p>Lancelot do Lac (dito não-cíclico, para distingui-lo do que faz parte do ciclo da</p><p>Vulgata Arturiana). Instigada por um cavaleiro enganador, que inspira confiança por</p><p>sua idade avançada, uma impostora afirma ser a mulher que fora dada a Artur em</p><p>casamento; ela teria sido trocada no leito, na noite de núpcias, por aquela que agora</p><p>cingia a coroa e estaria usurpando o nome de Genevra. Artur, confundido por uma</p><p>poção que o fazem beber, deixa-se enganar e permite que a Genevra verdadeira seja</p><p>condenada a um suplício bárbaro. Lancelote acorre para defender sua amada rainha</p><p>em um duelo judicial, em que derrota e mata três cavaleiros sucessivamente, e a</p><p>condenação acaba recaindo sobre a impostora. A versão do episódio contida em Le</p><p>Livre de Lancelot del Lac, que pertence à Vulgata Arturiana, justifica o engano pela</p><p>semelhança das duas mulheres, que seriam meias-irmãs ([18], vol. II, p. 262):</p><p>A verdade é que o rei Leodagan de Camelide tinha um senescal a quem muito</p><p>apreciava e que era casado com uma das mulheres mais bonitas do mundo. O</p><p>rei se apaixonou por ela e, segundo conta a estória, ela teve com ele uma bela</p><p>filha, aquela mesma que mais tarde foi exigir da rainha Genevra a devolução da</p><p>Távola Redonda, e que também se chamava Genevra. As duas meias-irmãs</p><p>pareciam-se tanto que aqueles que as criaram dificilmente conseguiam</p><p>distingui-las; e quando a rainha Genevra deixou o lar para tornar-se a</p><p>prometida de Artur, a outra viajou com ela e planejou aquela impostura que</p><p>depois iria perpetrar.</p><p>A noiva falsa (ou noiva substituída) aparece no folclore de muitos povos. Constitui</p><p>o motivo K1911 de Aarne e Thompson [44], figurando, por exemplo, em narrativas</p><p>do tipo AT 403. Ocorre tanto nos contos de fadas de Grimm (ex: "Os Três</p><p>Homenzinhos da Floresta") quanto na Índia (h. A meia-irmã de Teji), onde a</p><p>permissão dada ao homem de manter múltiplas esposas levava naturalmente à</p><p>proliferação de meias-irmãs, como seriam as duas Genevras na versão da Vulgata</p><p>Arturiana.</p><p>A Távola Redonda tem em ambas as versões um papel importante. A mesa,</p><p>juntamente com os ilustres cavaleiros associados a ela, teria estado sob a guarda do</p><p>pai de Genevra, sendo presenteada a Artur como dote de casamento.</p><p>O Perceval de Chrétien de Troyes pertence ainda à fase dos romances de cavalaria,</p><p>embora sirva de precursor à fase das estórias exemplares. Para manter o menino</p><p>Persival totalmente ignorante da vida perigosa de cavaleiro, em que o pai e os irmãos</p><p>haviam perecido, a mãe se dedicara a criá-lo em ambiente retirado. Sua inclinação</p><p>natural logo o atrai para a cavalaria e, através de sucessivos encontros com homens e</p><p>mulheres de rara qualidade, ele vai-se transformando, por etapas, de rude campesino</p><p>galês em gentil-homem. No episódio "O Cortejo do Graal", Persival, já armado</p><p>cavaleiro, chega à morada do Rico Rei Pescador, paralítico em conseqüência de um</p><p>ferimento; e ali assiste a um cortejo em que três objetos  uma lança que goteja</p><p>sangue, um graal de ouro cravejado de pedras preciosas, um trincho (travessa em que</p><p>se fatia carne) de prata  são levados a um quarto ocupado não se sabe por quem. A</p><p>caminhada até o misterioso castelo de pedra escura e o encontro com o anfitrião que</p><p>não pode erguer-se para saudar o hóspede ocorrem no conto do pescador e do gênio</p><p>nas Mil e Uma Noites (i. O Jovem metade Pedra).</p><p>O ainda ingênuo Persival perde a oportunidade de perguntar o significado desses</p><p>objetos. Uma prima lhe fala em seguida sobre as tristes conseqüências de seu silêncio.</p><p>Numa passagem que aparece bem mais adiante no texto, e que acrescentamos</p><p>(precedida de asteriscos) como complemento ao episódio, um ermitão, tio do jovem,</p><p>explica-lhe que a falha teria sido causada pelo pecado de abandonar a mãe para</p><p>tornar-se cavaleiro, deixando-a morrer de aflição. O tio declara ainda que o graal é</p><p>uma "santa coisa", na qual uma hóstia é servida ao homem, também tio de Persival,</p><p>que habita há anos no quarto e mantém-se vivo apenas por esse alimento.</p><p>No episódio "José Libertado", pertencente à estória exemplar sobre José de</p><p>Arimatéia, contida no livro L'Estoire del Saint Graal da Vulgata Arturiana, já se fala</p><p>em Santo Graal. Este seria a escudela usada por Jesus na última ceia, na qual José de</p><p>Arimatéia teria recolhido seu sangue. O próprio José, em exemplo típico de</p><p>anacronismo medieval, é apresentado como cavaleiro vassalo de Pilatos. O texto</p><p>apócrifo do Evangelho de Nicodemo conta que os judeus aprisionaram José de</p><p>Arimatéia por ele ter retirado da cruz e sepultado o corpo de Cristo, que o livraria</p><p>logo após sua ressurreição. O "José Libertado" segue neste ponto o apócrifo,</p><p>estendendo porém a prisão de José por quarenta e dois anos, durante os quais é</p><p>sustentado pela presença do Graal. E atribui sua libertação a Vespasiano, cuja ida à</p><p>Judéia  e aqui se revela a influência de outro apócrifo, o da Vingança do Salvador</p><p> teria o objetivo de punir os culpados pela crucificação.</p><p>O episódio contém erros históricos, um dos mais evidentes sendo o de apresentar</p><p>Vespasiano como filho de Tito, quando é sabido que este era filho daquele. Entretanto</p><p>ainda mais curiosa é a conflação em um único personagem de dois indivíduos</p><p>distintos mas de nomes semelhantes: José de Arimatéia (Joseph ab Arimathia) e o</p><p>sacerdote, general e historiador judeu Josefo (Joseph bar Matthias), de fato libertado</p><p>por Vespasiano (j. José, o filho de Matias). Tal conflação é de certa forma</p><p>contrabalançada por um fenômeno inverso de desdobramento: é atribuído um filho a</p><p>José, de nome Josefes. Ao apresentar o filho do homem de Arimatéia, uma das</p><p>versões do livro nos adverte para não confundi-lo com uma outra pessoa ([9], vol. 1,</p><p>p. 23):</p><p>Esse homem, José de Arimatéia, vivia em Jerusalém com a mulher e um filho</p><p>chamado Josefes, não aquele em que a Escritura tanto se baseia como</p><p>testemunha, mas outro não menos letrado.</p><p>o que bem se aplica ao Josefo historiador, frequentemente citado como autoridade por</p><p>Eusébio e outros antigos padres da Igreja (para uma discussão detalhada, ver [34]).</p><p>A lamentar, como também no trecho de Chrétien, são as alusões hostis ao povo</p><p>judeu,</p><p>bem características da Idade Média. A própria noção de que a campanha</p><p>militar romana contra os judeus, iniciada por Vespasiano e mais tarde consumada</p><p>pelas forças de Tito, visaria a uma "vingança" de Jesus não apenas falseia a realidade</p><p>histórica, mas é também contrária ao espírito cristão.</p><p>Levado à Inglaterra por Josefes, o Santo Graal será redescoberto no tempo do rei</p><p>Artur. Mas apenas três cavaleiros alcançam sucesso na aventura: Galaad, Persival e</p><p>Boors. Destes, somente Galaad tem uma antevisão dos mistérios celestes, conforme</p><p>conta o episódio "Maravilhas de Corbenic", culminância do livro La Queste del</p><p>Saint Graal da Vulgata Arturiana. No texto, que nisso repete Robert de Boron, uma</p><p>etimologia fantasiosa é atribuída ao nome da maravilhosa escudela, para significar</p><p>que o Graal teria o dom de a-gra-dar a todas as gentes: "Et por ce que ele a si servi a</p><p>gré toutes genz doit ele estre apelee le Saint Graal" [E porque assim tem servido com</p><p>agrado a todas as gentes, deve ser chamada de Santo Graal].</p><p>Galaad é descendente de José de Arimatéia e filho de Lancelote, cavaleiro supremo</p><p>nas coisas do mundo mas indigno quanto ao lado espiritual. Modelo perfeito de</p><p>virtude cristã, Galaad fora engendrado de forma espúria, o que, à primeira vista,</p><p>poderia desqualificá-lo para sua alta missão. Lancelote, que amava unicamente a</p><p>rainha, é levado pelo efeito de uma poção a acreditar tê-la nos braços, quando</p><p>realmente a filha do rei Peles é que fora posta em seu leito. Entretanto o mesmo</p><p>artifício aparece no livro do Gênesis, em que Labão manda colocar Lia no leito de</p><p>Jacó, fazendo-o crer que tinha Raquel a seu lado. Ainda no Gênesis, vê-se como</p><p>Labão e Jacó encontram-se mais tarde junto a uma montanha e erguem um</p><p>monumento para celebrar a paz entre eles. Na influente tradução latina da Bíblia</p><p>devida a S. Jerônimo, tanto a montanha como esse memorial tem o nome de Galaad, o</p><p>que comprova a origem bíblica do episódio arturiano (k. Em vez de Raquel deu-lhe</p><p>Lia).</p><p>Galaad cura o Rei Paralítico ungindo-lhe a ferida com o sangue que flui da lança</p><p>que sangra, que vimos antes como parte do cortejo do Graal. As Continuações do</p><p>Persival já a identificavam como sendo a lança com que o romano Longino feriu o</p><p>flanco de Cristo na cruz. Se o Rei Paralítico, tal como o Rei Pescador de Chrétien,</p><p>recebeu de uma lança o golpe que o imobilizou, há possibilidade de que a lança do</p><p>ferimento e a lança da cura tenham sido originalmente o mesmo objeto. Neste caso, é</p><p>interessante lembrar o mito de Télefo, filho de Hércules, ferido pela lança de Aquiles</p><p>e curado pela ferrugem  semelhante ao sangue, pela cor  raspada da ponta dessa</p><p>mesma lança (l. Télefo e a Lança de Aquiles).</p><p>Outras Estórias Paralelas</p><p>Seguem-se os resumos de trechos de obras de origens diversas, que vinham sendo</p><p>citados por se relacionarem de alguma forma, em maior ou menor grau, com as</p><p>estórias traduzidas. No final de cada resumo, é feita referência aos respectivos textos</p><p>completos (itens [20] a [29] da Bibliografia).</p><p>a. Os Bárbaros da Montanha</p><p>Alexandre conduziu tropas contra as tribos árabes que habitavam na montanha do</p><p>Anti-Líbano. Durante a expedição, arriscou a vida para resgatar seu tutor Lisímaco.</p><p>Antes que percebesse, viu-se separado do corpo principal de suas forças, com apenas</p><p>um punhado de homens. Foi então forçado a passar a noite de muito frio em um</p><p>terreno que não lhe oferecia abrigo. Por fim, viu ao longe algumas fogueiras esparsas</p><p>que pertenciam ao inimigo. Era sempre seu hábito em uma crise encorajar os</p><p>macedônios, compartilhando seus perigos. Assim, confiando em sua rapidez e</p><p>agilidade, correu ao local da fogueira mais próxima, despachou com a adaga os dois</p><p>bárbaros sentados em redor e, tomando uma tocha, retornou para junto de seu grupo.</p><p>Com ela acenderam uma enorme fogueira que os aquecia e ajudava a afugentar os</p><p>inimigos [20].</p><p>b. Morte em Babilônia</p><p>Alexandre deixara Antipater como regente, ao partir com seu exército para enfrentar o</p><p>Império Persa e depois penetrar na Índia. Enquanto ele regressava, Antipater tramava</p><p>sua morte. Sábios caldeus haviam profetizado que o destino do rei era morrer quando</p><p>chegasse à Babilônia, e é lá que Antipater faz com que lhe sirvam veneno misturado</p><p>ao vinho durante um banquete. Tomado de convulsões, Alexandre sente a morte</p><p>aproximar-se. No meio da noite, resolve lançar-se ao rio Eufrates para que,</p><p>desaparecendo ao invés de morrer à vista de todos, possa manter viva a crença em sua</p><p>divindade. Ergue-se do leito e vai rastejando em direção ao rio, a fim de afogar-se</p><p>nele e ser levado pela corrente, de modo a não ser achado. Eis que sua mulher,</p><p>Roxana, corre em seu encalço e o abraça em prantos. Ele implora que ela o deixe ir,</p><p>para que ninguém saiba de seu fim, mas Roxana o leva de volta para o leito [21].</p><p>c. O Tesouro de Al-Shamardal</p><p>Judar, um pobre pescador, era o único homem a que o destino reservara o poder de</p><p>quebrar os encantos que protegiam o tesouro do mago Al-Shamardal. Um mago</p><p>mouro convida Judar a executar o feito, e o transporta ao local no lombo de uma mula</p><p>que era de fato um gênio transformado. O mouro faz baixar a água que circunda a</p><p>entrada do palácio submerso e Judar entra sozinho. Os encantamentos são diferentes</p><p>tipos de figuras ameaçadoras: um homem com uma espada para cortar-lhe a cabeça,</p><p>um cavaleiro com lança, um arqueiro, um enorme leão, duas serpentes por trás de uma</p><p>porta indicada por um escravo negro, e, finalmente, uma mulher que assume a forma</p><p>de sua mãe. Se ele se expuser aos homens e feras que o atacarem, sem resistir, cada</p><p>um cairá por terra sem fazer-lhe mal. Quanto à figura com a aparência de sua mãe, ele</p><p>deverá mandar que ela tire todas as roupas, depois do que também ela cairá, pois se</p><p>trata de um fantasma sem vida como todos os demais. Judar tem sucesso em todos os</p><p>confrontos, menos no último, pois se deixa comover pelas súplicas da falsa mãe.</p><p>Quase o matam mas, tentando de novo um ano depois, obtém sucesso, e, desprezando</p><p>as mil outras riquezas do tesouro, chega a Al-Shamardal que jazia em sono encantado</p><p>sobre seu leito dourado, tomando dele para entregar ao mouro seus quatro talismãs.</p><p>Ouve-se música, tocando em sua homenagem, e as vozes dos guardiões que agora</p><p>passam a saudá-lo (Histoire de Jouder le Pêcheur ou le Sac Enchanté, [22]).</p><p>d. A Feiticeira com Freio</p><p>A rainha Lab, uma feiticeira que convertia os ex-amantes em animais, quer repetir o</p><p>malefício no final de seu mais recente caso de amor, o jovem rei Badr Basim.</p><p>Instruído pelo sábio Abdala, Badr Basim não apenas resiste mas converte a própria</p><p>Lab em mula e lhe coloca um freio muito especial. O rapaz não deverá deixar que</p><p>ninguém toque no freio  que acaba sendo confiado justamente à mãe da feiticeira, e</p><p>a megera logo o retira da boca da filha, com o efeito de fazê-la reverter à forma</p><p>humana (Julnar the Sea-born and her Son King Badr Basim of Persia, [23]).</p><p>e. O rei Cipreste e a rainha Pinha</p><p>Tendo saído um dia de seu palácio para caçar, o rei Cipreste perde o caminho. Com</p><p>sede, vai ter a um poço em que estavam presas três velhas cegas da raça dos gênios.</p><p>Cipreste as liberta e cura da cegueira, seguindo as instruções delas, e, como</p><p>recompensa, elas o transportam ao palácio de um rei dos gênios com cuja filha, a</p><p>princesa Pinha, passa a fazer amor secretamente. Descoberto, Cipreste é condenado à</p><p>fogueira mas, protegido por um ungüento mágico que as velhas lhe passam no corpo,</p><p>é encontrado são e salvo depois que as chamas se extinguem. Proclamando que o fato</p><p>de ele ter sobrevivido o qualifica como o melhor dos seres humanos, o rei dos gênios</p><p>decide casá-lo com a filha. Depois de alguns dias, Cipreste obtém permissão do sogro</p><p>para voltar a sua terra com a jovem esposa. Mas ele acaba percebendo que a mulher</p><p>lhe dava toda noite uma poção para dormir. Seguindo-a sem ser visto, surpreende-a na</p><p>companhia de amantes brutais, a quem ele enfrenta armado apenas com um porrete</p>

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