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<p>Contents</p><p>Nota das autoras:</p><p>COMO SE DESESPERAR ANTES DE ENCONTRAR O AMOR DA SUA VIDA - Kell</p><p>Carvalho</p><p>01</p><p>02</p><p>03</p><p>04</p><p>COMO VIVER UM CONTO DE FADAS SEM FADA MADRINHA - Maina Mattos</p><p>01</p><p>02</p><p>03</p><p>04</p><p>05</p><p>06</p><p>07</p><p>COMO SE APAIXONAR EM UMA NOITE DE INSÔNIA - Lyta Racielly</p><p>01</p><p>02</p><p>03</p><p>04</p><p>05</p><p>COMO ARRANJAR MARIDO SENDO UMA PRINCESA AMALDIÇOADA - Aline Moretho</p><p>01</p><p>02</p><p>03</p><p>04</p><p>05</p><p>06</p><p>COMO ENCONTRAR O AMOR FUGINDO NUMA NOITE - Dulci Veríssimo</p><p>01</p><p>02</p><p>03</p><p>04</p><p>05</p><p>06</p><p>COMO SOBREVIVER A UM CASAMENTO ARRANJADO COM UM VAMPIRO - Gabi</p><p>Casseta</p><p>01</p><p>02</p><p>03</p><p>04</p><p>05</p><p>06</p><p>07</p><p>08</p><p>09</p><p>Agradecimentos</p><p>Sobre as Autoras</p><p>Copyright © 2024 | Aline Moretho, Dulci Verissimo, Gabrielli Casseta, Kell Carvalho, Lyta</p><p>Racielly, Maina Mattos</p><p>Todos os direitos reservados</p><p>Criado no Brasil</p><p>CAPA | Maina Mattos</p><p>DIAGRAMAÇÃO | Lyta Racielly</p><p>REVISÃO | Clys Oliveira</p><p>Esse livro contém recurso do Canva e Freepick</p><p>Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Qualquer semelhança que</p><p>não seja expressa previamente pela parte da autora, trata-se de mera coincidência. É</p><p>expressamente proibida a reprodução, total ou parcial, ou qualquer tipo de impressão sem</p><p>prévia autorização da autora deste livro. Abre-se exceção para citações breves para resenhas</p><p>e avaliações. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº 9610/98 e punido</p><p>pelo artigo 184 do Código Penal.</p><p>Para todas as princesas imperfeitas que esperam no Senhor.</p><p>Que seu coração esteja tão guardado em Deus que apenas o</p><p>mais nobre dos cavalheiros seja capaz de encontrá-lo!</p><p>Nota das autoras:</p><p>Era uma vez, num lugar não tão distante, 6 autoras que tinham um sonho: participar da</p><p>FEFICC 2024.</p><p>Contudo, elas sabiam que para estarem presentes no grande evento, seria necessário</p><p>enfrentar muitos desafios na jornada até lá, entre eles, o gigante financeiro e o dragão da</p><p>ansiedade.</p><p>Certo dia, durante uma reunião da nobreza do cortejo, Maina deu a ideia: “E se</p><p>escrevermos um livro com um conto de cada uma para forjar nossas armas contra o gigante</p><p>financeiro?”. Como boas — e malucas — autoras, todas concordaram com a sugestão, afinal, se</p><p>estavam naquele caminho, era necessário coragem e dedicação.</p><p>Foi então que, com muito esforço, algumas milhares de palavras, um pouco de desespero</p><p>e uma pitada de loucura, este manual foi escrito.</p><p>E por que não, se tratando de autoras de cortejo, lançar um manual com dicas para</p><p>princesas não tão encantadas assim? Talvez você descubra, em cada um dos seis contos deste</p><p>manual, uma mensagem especial sobre como encontrar o amor da sua vida, nas mais diversas</p><p>situações.</p><p>Foi assim que essa história começou…</p><p>COMO SE DESESPERAR ANTES DE ENCONTRAR O AMOR DA SUA VIDA - Kell Carvalho</p><p>Dedicatória</p><p>Para as minhas princesas, Esther e Helena. Que no futuro, em cada passo dado,</p><p>vocês encontrem a serenidade para descansar nos sonhos do Senhor, confiantes</p><p>de que Ele guia cada caminho com amor e sabedoria.</p><p>“Agir sem pensar não é bom; quem se apressa erra o caminho”</p><p>Provérbio 19:2</p><p>O</p><p>01</p><p>céu, antes límpido e azul, agora se vestia de cinza, anunciando a chegada do</p><p>frio implacável do inverno. O vento cortante chicoteava meu rosto, mas eu não</p><p>sentia nada além da urgência que me impulsionava. A fina camada de roupa que</p><p>cobria meu corpo era insuficiente para proteger do frio, porém meu foco era único: alcançar a</p><p>escada de cordas suspensa que me levaria ao meu refúgio.</p><p>Com a agilidade que a necessidade aguçava, subi os degraus de corda, cada um me</p><p>aproximando da minha salvação. Finalmente, cheguei ao topo e, com um último esforço, me</p><p>puxei para cima.</p><p>Aquele era meu porto seguro e estar lá funcionava como um escudo contra os meus</p><p>dilemas. Ali, eu era apenas a Kat e não Katarina Isabella Margarete de Emberfall, sua Alteza</p><p>Real.</p><p>Empurrei a porta de madeira e o calor da casa na árvore me acolheu. Desabei de joelhos e</p><p>tampei o rosto com as mãos. Lágrimas se juntaram em meus olhos, minha garganta apertou e um</p><p>gemido escapou por entre meus lábios.</p><p>Era difícil acreditar que meu estimado pai e Rei amoroso havia me colocado na maior</p><p>cilada da minha vida. Eu bem que desconfiei quando vi todos aqueles carros luxuosos chegando</p><p>um após o outro no palácio com a desculpa de que estavam vindo para o meu baile de</p><p>primaveras, quando eu entraria na fase adulta da minha vida. Mas ao que tudo indicava, apenas</p><p>eu não sabia o que estava acontecendo.</p><p>Em meio à multidão de rostos pálidos e cabelos cor de fogo, meus olhos escuros como a</p><p>noite contrastavam com os tons azuis e verdes que dominavam o reino. Minha pele morena, fruto</p><p>da herança mestiça que eu carregava com orgulho, destoava da alvura quase translúcida dos</p><p>meus irmãos e irmãs, já que eu não era uma filha legítima. Eu não me encaixava nos padrões de</p><p>Emberfall, nem sequer era comum. Era a forasteira, a intrusa, a diferente.</p><p>Não sei quanto tempo fiquei prostrada no meio da pequena casa pensando no destino</p><p>iminente imposto a mim naquela manhã. Não poderiam me obrigar a me casar com um</p><p>desconhecido, nem me submeter ao circo que me fizeram passar na última semana. Me ver</p><p>rodeada de vários cavalheiros tão cheios de boas intenções, só me fazia pensar se eles realmente</p><p>eram tão gentis ou apenas se interessavam por minha posição. Príncipes, diplomatas,</p><p>aristocratas… Tenho certeza que se eu não tivesse sido resgatada pela rainha quando eu era</p><p>apenas um bebê, aqueles homens nunca teriam olhado para mim, porém, fui bajulada até ficar</p><p>enjoada. Mal sabia que na noite da minha primavera eu seria obrigada a firmar um compromisso</p><p>com um deles para me unir em matrimônio no futuro próximo.</p><p>Meu estômago reclamou, um lembrete cruel da minha última refeição, já longínqua. Abri o</p><p>cesto que levava comigo, revelando um banquete em miniatura: pão de mel, ainda quente do</p><p>forno matinal, exalando um aroma que me fez salivar instantaneamente. Me aconcheguei sobre o</p><p>carpete, encostei as costas na parede de madeira e enchi uma xícara com o chocolate quente</p><p>escondido em uma garrafa térmica. A rainha Charlotte teria um infarto se me visse consumindo</p><p>tanto açúcar naquele horário. Ela insistia que eu deveria perder um pouco mais de peso, apesar</p><p>de eu não estar acima do ideal. Fechei os olhos e deixei a festa de sabores tomarem conta das</p><p>minhas papilas gustativas. Eu precisava de conforto depois daquela terrível notícia e o doce era</p><p>um alento e tanto para minha alma naquele momento.</p><p>Antes que eu engolisse a primeira porção, a porta da casa da árvore se abriu, trazendo uma</p><p>lufada de ar gelado. A imagem do meu guarda-costas preencheu toda a porta quando ele se</p><p>inclinou e passou por ela.</p><p>Liam olhou para o pão de mel e o chocolate quente em minhas mãos e um sorriso travesso</p><p>puxou sua face avermelhada pelo frio.</p><p>— Sabe que terei que reportar isso à Rainha Charlotte, não é?</p><p>Indiferente ao tom de provocação, quiquei os ombros e dei outra mordida no pão de mel.</p><p>Liam colocou as mãos na cintura e me encarou como se eu fosse uma criança teimosa.</p><p>— Não olhe para mim assim, é uma ordem! — disse, farta da falta de empatia dele.</p><p>A expressão dele suavizou quando se deu conta que eu estava mesmo chateada.</p><p>— Você está bem?</p><p>Assenti e levei a xícara à boca. Concentrei minha atenção no líquido dentro dela para ele</p><p>não ver que meus olhos começavam a umedecer.</p><p>— Como sabia que eu estava aqui? — perguntei ainda sem manter contato visual.</p><p>— É o meu trabalho saber onde você está, Kat. — Levantei os olhos de repente. Liam era o</p><p>meu guarda-costas desde os meus quinze anos, quando o Conselho Real convenceu o meu pai de</p><p>que eu precisava de supervisão, e aquela era a primeira vez em cinco anos que ele falava comigo</p><p>em um tom tão informal, apesar de eu o considerar como um amigo. Não sei se foi devido a</p><p>melancolia instaurada no meu âmago ferido, mas algo se aqueceu dentro de mim por conta</p><p>daquelas três letras. — Além do mais — ele prosseguiu alheio ao meu olhar de espanto —, lá</p><p>fora está muito frio.</p><p>Crispei os olhos buscando algum outro motivo oculto em suas palavras. Frio, chuva ou sol</p><p>nunca foram pretextos para ele. Não era a primeira vez que eu dava minhas escapadas durante</p><p>climas nada</p><p>de maneira direta.</p><p>— Perdão — Eric disse. — Não queria constrangê-la com minha pergunta.</p><p>— Eu não estou constrangida!</p><p>— Tome — o príncipe pegou um pedaço de torta que estava embrulhado em um tecido de</p><p>cozinha e o entregou a ela —, é especialidade da minha tia. Você vai gostar.</p><p>Atordoada com a mudança brusca do assunto, Laíse estendeu a mão e aceitou a torta. Tirou</p><p>o tecido que a envolvia e sua boca se encheu de água quando o cheiro doce que emanava do</p><p>alimento invadiu suas narinas. Comeu um pedaço e, ao sentir a massa desmanchar na boca,</p><p>suspirou satisfeita em provar a iguaria.</p><p>— Isso é delicioso! — ela declarou ainda envolta na sensação que o doce causava em sua</p><p>boca.</p><p>— É uma receita antiga de família. — Ele não conteve o sorriso ao se lembrar das palavras</p><p>da irmã de sua mãe quando entregou a torta. — Chama-se Torta da princesa enfeitiçada.</p><p>Laíse engasgou ao ouvir o nome. Não lhe tinha passado pela cabeça que o príncipe pudesse</p><p>fazer algum mal a ela. Mas, então, a ideia não se tornou muito absurda.</p><p>— O que tem aqui? — Ela empurrou a torta para longe, chocada por ver que ele ria dela.</p><p>— Nada além de ingredientes naturais. Mas minha tia diz que uma mordida é suficiente</p><p>para fazer uma princesa se apaixonar.</p><p>— Me apaixonar? — Ela arregalou os olhos e abriu a boca ponderando se deveria sair</p><p>correndo. — O que você quer de mim?</p><p>Eric se comoveu com a reação dela. Ele ficou sério.</p><p>— Não se preocupe, não se passa de uma crendice da minha família. Não há nada que lhe</p><p>fará mal. Eu garanto!</p><p>Ela tentou encontrar algum vestígio de troça na feição dele, mas ele parecia dizer a</p><p>verdade. Aliás, algo no olhar do Príncipe passava segurança a ela, mesmo sem saber explicar o</p><p>porquê.</p><p>— Eu não sei com qual tipo de princesa está acostumado a se relacionar, mas sou uma</p><p>mulher séria. O fato de ter fugido do Baile e estar sentada aqui na companhia de um</p><p>desconhecido não significa que… — Ela fez uma pausa, pensando se deveria dar continuidade à</p><p>frase, mas achou melhor não colocar em palavras o que queria dizer. — Não sou qualquer uma!</p><p>— Eu sei. Se não tivesse notado isso, eu não a teria convidado para me fazer companhia.</p><p>Também não sou essa espécie de Príncipe que você supôs. — Ele balançou a cabeça de um lado</p><p>para o outro.</p><p>Laíse se sentiu mal, como sempre acontecia quando supunha ter magoado alguém.</p><p>Inclinou-se para frente e pegou a torta de volta. Talvez se ele a visse comendo outra vez a</p><p>perdoasse por tê-lo julgado erroneamente.</p><p>Eric observou, interessado, o movimento da princesa. Quando ela colocou um pedaço de</p><p>torta na boca, a expressão do Príncipe suavizou. A atitude mexeu com ele de tal forma que não</p><p>soube explicar porque ficou tão encantado com uma princesa. Em seus 26 anos, já tinha</p><p>convivido com as mais belas de todos os reinos e nenhuma delas chamou sua atenção como a sua</p><p>companheira de fuga fazia naquele momento.</p><p>— O que um sétimo Príncipe faz? — Laíse perguntou, disposta a afastar a tensão que se</p><p>instalou entre eles.</p><p>Eric gostou da espontaneidade da princesa ao retomar a conversa. Ele relaxou os ombros.</p><p>— Em Geodésia, todos os príncipes possuem cargos — ele disse. — O primogênito herda</p><p>o trono e se prepara a vida toda para ser o próximo rei. O segundo se torna o braço direito do</p><p>mais velho. O terceiro e o quarto herdam o governo das duas áreas produtivas. Se houver quinto,</p><p>sexto, oitavo e assim por diante, administram as grandes propriedades reais.</p><p>— Você pulou o sétimo de propósito? — Ela limpou o farelo de torta da boca sem tirar os</p><p>olhos dele.</p><p>Eric deu um tímido sorriso.</p><p>— Em Geodésia perdura a crença de que o sétimo filho, de qualquer família, sendo</p><p>homem, é considerado uma dádiva sagrada enviada para os pais. Ele se ergue como guardião da</p><p>linhagem familiar. Assim, a liberdade de seguir o próprio destino lhe é concedida, contanto que</p><p>esteja pronto para frutificar, já que sua geração se torna abençoada entre o povo.</p><p>Laíse estava com a boca e os olhos bem abertos. De todas as crendices que já ouvira, essa</p><p>era a pior, sem nenhum fundamento.</p><p>— E isso tudo só porque vocês são os sétimos a nascerem? — ela perguntou e ele</p><p>confirmou com a cabeça. — E você acredita nessa bobagem?</p><p>Eric soltou uma gargalhada. Ele poderia se sentir ofendido, afinal, era sobre a cultura de</p><p>seu reino que estavam falando. Seus pais acreditavam devotamente na crença de que ele era o</p><p>filho abençoado. Contudo, achou de uma graciosidade singular a forma autêntica como ela se</p><p>expressou.</p><p>— Não! — ele respondeu quando conseguiu se recompor. — É apenas uma falácia que foi</p><p>transmitida de geração em geração até se tornar amplamente aceita como verdade. Infelizmente,</p><p>meu reino é dado a muitas bobagens como essa. — Ele fez questão de manter seus olhos nos</p><p>dela. — Creio no Criador e no Grande Livro. Aliás, sou o único da minha família que crê na</p><p>Verdade.</p><p>Com um aceno de cabeça, Laíse assentiu.</p><p>— Talvez, então, você seja de fato abençoado, já que o Criador o alcançou.</p><p>— Nunca tinha parado para pensar por esse lado. — Ele cobriu o queixo com a mão. —</p><p>Entretanto, devo confessar que muitas vezes faço uso da crença para meu benefício. Aproveito a</p><p>liberdade concedida para me dedicar ao que me cativa. Aliás, foi desse modo que conheci os</p><p>Escritos Sagrados.</p><p>O príncipe passou a narrar, com naturalidade, como, em uma de suas viagens, acabou</p><p>hospedado, por um mês, no casebre de um senhor de idade que se autodenominava Peregrino, no</p><p>reino da Providência. Relatou como o idoso apresentou o Grande Livro, o instruiu sobre o</p><p>Criador de todas as coisas, e como Ele resgatava os perdidos.</p><p>Laíse era uma excelente ouvinte. Ela prestava atenção com interesse genuíno, fazia alguns</p><p>comentários e muitas perguntas.</p><p>Eric se deu conta do quanto estava empolgado dividindo suas descobertas com alguém sem</p><p>nenhum receio de ser menosprezado. Era a primeira vez que compartilhava essa história. As</p><p>palavras saíam desimpedidas, pois a princesa simplesmente entendia.</p><p>— Foi minha cunhada quem me doutrinou no Caminho — Laíse contou quando Eric</p><p>perguntou sobre a história dela com o Criador. — O casamento do meu irmão foi por</p><p>conveniência, os pais firmaram o acordo quando eles ainda eram bebês.</p><p>Os olhos dela brilharam à menção da história de amor do irmão.</p><p>— O Criador alcançou ambos em momentos diferentes, antes que o trato fosse cumprido.</p><p>Eu ainda era uma criança e eles resolveram que cuidariam da minha educação. Mamãe aprovou</p><p>sem saber que além dos números e letras eu estava aprendendo sobre algo muito mais</p><p>importante.</p><p>Laíse se perdeu nos pensamentos. Recordou-se das aulas que tinha e das muitas perguntas</p><p>que sua cunhada respondia com paciência e dedicação. Tinha sido abençoada também, mesmo</p><p>sendo mulher e a segunda filha.</p><p>— E qual a função da segunda princesa de Magnólia? — Eric esticou as pernas e apoiou as</p><p>duas mãos no chão, inclinando o corpo um pouco para trás de modo a obter a imagem do rosto</p><p>da princesa por inteiro.</p><p>— Fazer um bom casamento com algum nobre, de preferência um Príncipe de algum reino</p><p>aliado. — Ela passou as mãos pela saia. — Esse foi o conselho dado por minha mãe enquanto eu</p><p>me arrumava para o Baile hoje.</p><p>— E você não quer se casar? — ele perguntou com a curiosidade aflorada de quem</p><p>buscava respostas.</p><p>Ela ergueu a cabeça muito rápido.</p><p>— Quero, mas já fiz 19 anos e não tive nenhuma proposta boa o suficiente para considerar</p><p>a possibilidade.</p><p>Ele cruzou os braços tentando imaginar como uma garota como ela não recebera muitas</p><p>boas propostas. Qualquer homem com juízo a consideraria uma excelente opção.</p><p>— Não consigo acreditar, me perdoe. Você deve ser exigente demais.</p><p>Ela se indignou, mas não de modo enraivecido. Contudo, ergueu o nariz.</p><p>— Não aceitarei menos do que um homem servo do Criador e que seja fiel, leal e</p><p>companheiro. — Ela fez uma careta. — Ele nem precisa ser bonito, embora eu torça para que ao</p><p>menos tenha dentes.</p><p>Eric tentou sorrir com a brincadeira da princesa, mas não conseguiu nada além da suave</p><p>curvatura de um dos lados de seus lábios. O tópico era sensível aos seus ouvidos. Bem, ao menos</p><p>ele tinha dentes bonitos.</p><p>Laíse não percebeu o desconforto dele. Ela remexeu na cesta e encontrou uma frutamira</p><p>perdida por lá, o que a lembrou do prato típico da culinária de Romantícia.</p><p>— Minha mãe me aconselhou a não deixar de provar o filé grelhado com molho de</p><p>frutamira, porque o daqui é o melhor de todos os reinos — ela comentou.</p><p>— Ela está certa. Nunca comi nada igual. Eles são bastante disputados, é muito difícil</p><p>conseguir uma porção não estando no Baile no momento em que são servidos.</p><p>O olhar dela se tornou distante. Laíse ficou imaginando como era a distribuição do filé.</p><p>Sabia que o prato era servido em exuberantes travessas de bronze e que as mulheres recebiam</p><p>porções generosas do alimento. Havia a crença de que mulheres bem nutridas tornavam-se mais</p><p>receptivas e menos exigentes.</p><p>Eric foi fisgado pelo modo como a princesa brincava com o fio de cabelo solto, enrolando-</p><p>o no dedo. Os lábios estavam pressionados, as sobrancelhas um pouco franzidas. Quando ela</p><p>suspirou, ele compreendeu onde os pensamentos dela estavam.</p><p>Laíse não fugia pelo mesmo motivo que ele. Eric sabia que em algum momento aquela</p><p>pergunta que martelava em sua cabeça seria feita. Foi vencido pela curiosidade e adiantou o</p><p>assunto.</p><p>— Por que a senhorita fugiu do Baile? — ele perguntou e ela o encarou de imediato. —</p><p>Está na cara que gostaria de estar lá embaixo aproveitando os filés, as danças e as possíveis</p><p>oportunidades de fazer um bom casamento.</p><p>Laíse abriu a boca, mas a fechou em seguida. Pensou por um momento o que fazer. Por</p><p>fim, decidiu que diria a verdade. Eric não parecia alguém que zombaria dela. Com muito</p><p>cuidado, esticou a perna, revelando os pés calçados com uma sapatilha branca.</p><p>— Não tenho um sapatinho de cristal.</p><p>É claro que ele não entendeu a profundidade do problema. Eric estava estupefato demais</p><p>com a confissão para tentar assimilar o efeito da falta do calçado na vida da moça.</p><p>— Por favor, acho que não entendi direito. Você deixou de ir ao Baile por causa de um</p><p>sapato?</p><p>— Não é por causa de um sapato! É por causa do sapato! — Laíse recolheu os pés outra</p><p>vez e os escondeu embaixo da saia. — Todo mundo sabe que desde a princesa Cinderela, ele se</p><p>tornou um item muito cobiçado entre as solteiras. De tempos em tempos, ele volta à moda como</p><p>item indispensável do guarda-roupa de qualquer princesa. E justo este ano ele voltou a ficar em</p><p>alta!</p><p>— Laíse, você deixou de ir para o Baile dos seus sonhos por causa de um sapato? — ele</p><p>perguntou outra vez só para se certificar que tinha entendido direito.</p><p>— Claro! Se tivesse passado pelo salão notaria que todas as moças estão calçando</p><p>sapatinhos de cristal. Eu seria a única diferente!</p><p>— Na verdade, eu estive lá. E, sinceramente, para mim, são todas iguais. Mesmo vestido,</p><p>mesmo cabelo, mesmos modos, mesmas conversas, mesmos sonhos e, pelo visto, um mesmo</p><p>sapato. Não estava muito interessado nos pés das moças.</p><p>Ela abaixou a cabeça, mirou as mãos e remexeu os pés por debaixo da saia. Eric percebeu</p><p>um traço de tristeza na feição da jovem e, sem ponderar suas palavras, soltou:</p><p>— Mas talvez perceberia se a senhorita estivesse lá, porque você, Laíse, destoa das demais.</p><p>— Ele notou as bochechas vermelhas dela quando a princesa ergueu o olhar, surpresa. — E</p><p>destoa de um jeito especial, não porque usa um sapato diferente.</p><p>A princesa não soube reagir. Suspeitou que aquilo pudesse ser um flerte, mas foi dito com</p><p>tanta seriedade, que ela não soube definir a intenção dele ao se expressar daquele modo.</p><p>Evitando olhar para ele, alisou a saia com as mãos.</p><p>Eric estava ciente de ter ultrapassado o limite da cortesia entre recém-conhecidos ao deixar</p><p>as palavras serem ditas sem reservas. Porém, não se arrependeu. Foi sincero, e expressar isso foi</p><p>crucial para ele avaliar seu interesse pela princesa sem sapatinho de cristal.</p><p>Ele queria deixá-la à vontade, por isso, ficou calado, dando-lhe tempo.</p><p>— Não vai perguntar por que eu, sendo a segunda princesa do reino de Magnólia, não</p><p>tenho um sapatinho de cristal?</p><p>— Na verdade, eu não me importo com o sapatinho. Mas tenho a impressão de que há algo</p><p>mais, não é?</p><p>Laíse moveu a cabeça de modo afirmativo.</p><p>— Sapatinhos de cristal são desejados desde quando desempenharam um papel crucial no</p><p>casamento da princesa Cinderela. Foi com muito estudo que os artesãos descobriram a fórmula</p><p>perfeita para reproduzir o item para outras mulheres e passaram a ser vendidos como artigos de</p><p>luxo. Acontece que eles são produzidos até a numeração 37, afinal, toda princesa tem pés</p><p>delicados.</p><p>Ela desviou o olhar para o lado. Mordeu os lábios e ponderou quais palavras certas usar</p><p>para revelar a ele seu defeito.</p><p>— Então não havia nenhum par disponível para mim — seu tom de voz era tão baixo, que</p><p>Eric quase não conseguiu ouvir — , já que calço 41. — Ela mostrou os pés mais uma vez,</p><p>revelando-os sob a saia. — Eu fui tristemente castigada com a herança genética do meu pai.</p><p>Tenho essa prancha no lugar do pé.</p><p>Eric deveria se compadecer, pois Laíse demonstrou tristeza ao revelar a condição. Mas ele</p><p>se sentiu tão animado por estar na frente de uma princesa que fugia dos patéticos padrões</p><p>estéticos da sociedade, que sequer se importou em emitir palavras de solidariedade. No lugar, ele</p><p>riu.</p><p>— E quem se importa com o tamanho do pé de uma princesa? — perguntou, divertido.</p><p>— Todo mundo! — ela expressou, perplexa com a reação dele. — Toda princesa tem pés</p><p>delicados! Exceto Laíse, a princesa do pé grande!</p><p>— Isso é tão irrelevante. O que o tamanho do seu pé diz respeito a quem você é? O que ele</p><p>muda em relação ao seu caráter? — Ele balançou a cabeça. — Não quero parecer insensível ao</p><p>seu sentimento, mas isso é uma bobagem.</p><p>— Você diz isso porque não precisa lidar com os olhares julgadores como eu.</p><p>Eric mundo o semblante. O sorriso sumiu e deu espaço para a rigidez de sua face. Ah, ele</p><p>sabia, sim, o que era isso! Esse era o motivo que o levava a se esconder. Não suportava a busca</p><p>da sociedade por padrões perfeitos e o estigma enfrentado por aqueles que não se encaixam nos</p><p>moldes criados.</p><p>Apesar de não se importar com os olhares de julgamento, ele não conseguia aceitar uma</p><p>sociedade que insistia em impor uma visão estereotipada do que era considerado ideal e excluir</p><p>todos que não se adequam a ela.</p><p>Laíse imaginou ter motivado a mudança brusca de comportamento de Eric com sua</p><p>acusação. Experimentou aquela familiar sensação de desconforto ao dizer algo por impulso e ter</p><p>que arcar com as consequências depois.</p><p>— Minha mãe tentou minimizar o problema, dizendo, também, que era bobagem, mas, no</p><p>fundo, ela não acreditava nas próprias palavras — Laíse voltou a falar, na esperança de que</p><p>pudesse desfazer o clima ruim. — Até porque ela cogitou a possibilidade de ir atrás de alguma</p><p>fada madrinha para resolver meu problema.</p><p>Eric voltou a encarar a princesa.</p><p>— Eu neguei, claro. Não recorreria a uma posição tão humilhante para conseguir um</p><p>Príncipe. Não estou desesperada a esse ponto. — Ela deu de ombros. — Prefiro da maneira</p><p>tradicional. De todo modo, mamãe não encontraria alguém para fazer o serviço. Desde a</p><p>aposentadoria da Fada Madrinha, ninguém quis assumir o cargo.</p><p>O príncipe sorriu ao notar a leveza na fala de Laíse, mesmo sendo um assunto</p><p>desconfortável para ela.</p><p>— Soube que ela precisou se aposentar por conta da idade avançada — ele disse. — No</p><p>seu último trabalho, ela acabou transformando a pobre princesa em rato.</p><p>Os dois caíram na gargalhada. Então, as risadas foram se dissipando aos poucos, bem como</p><p>a tensão anterior. Eles se olharam por um tempo.</p><p>Eric ponderou como uma garota tão linda e interessante como Laíse estava perdendo tempo</p><p>com algo tão irrelevante como o tamanho do pé. Sentiu uma pontada de vergonha percebendo</p><p>que estava sendo um hipócrita, afinal, embora não se importasse com as opiniões alheias, usava</p><p>artifícios simples para evitar o falatório indesejado. Ela só queria um sapatinho de cristal visando</p><p>o mesmo fim.</p><p>Assim, a compaixão chegou e, junto com ela, um pouco mais de admiração da parte dele.</p><p>— Os melhores caminhos são trilhados por corações livres de amarras —</p><p>ele recitou e ela</p><p>voltou a encará-lo. — É um ditado popular da Geodésia que eu gosto muito. Às vezes, perdemos</p><p>tempo nos preocupando com as diferenças e esquecemos de toda a beleza que é sermos distintos</p><p>um do outro.</p><p>Ele suspirou e olhou ao redor. Embora estivesse escuro, era possível perceber a diversidade</p><p>das plantas naquele jardim.</p><p>— Já imaginou se todas as flores fossem iguais? — o Príncipe continuou. — Da mesma</p><p>forma, mesmas cores, mesmo aroma? E os pássaros, se não existissem a variedade das espécies?</p><p>Toda essa pluralidade aponta para a criatividade do Criador. Porque Ele teria errado justo quando</p><p>o assunto são os humanos?</p><p>Laíse reconheceu o esforço dele em tentar fazê-la se sentir bem, então abriu um tímido</p><p>sorriso.</p><p>— O Criador formou o teu interior, teceu você ainda no ventre de sua mãe. De modo</p><p>assombrosamente lhe formastes e as obras dele são admiráveis. Saiba disso.</p><p>Ela assentiu reconhecendo a citação. Admirou-se por ver Eric a consolando usando o</p><p>Grande Livro e as verdades do Criador. Embora ansiasse por isso, ainda não teve contato com</p><p>um jovem solteiro com a mesma fé.</p><p>— Se o seu coração estiver preso por causa de algo que é parte da singularidade de quem</p><p>você é, isso a impedirá de progredir. — Eric passou a mão na nuca. — E não deixe que</p><p>conjecturas a seu respeito embacem seus olhos, impedindo-a de enxergar o que de fato importa.</p><p>Prender-se a um complexo é perder tempo dando ênfase demais ao que não merece atenção.</p><p>Laíse poderia ter sido facilmente cativada pelas características físicas de Eric, afinal, ele</p><p>era, de fato, muito bonito. Contudo, foram as cuidadosas palavras ditas pelo Príncipe que</p><p>elevaram sua admiração por quem ele era. Foi a beleza interior que a conquistou.</p><p>— Obrigada. Levarei em conta suas palavras.</p><p>Ela tocou na mecha solta do cabelo. Sentiu-se constrangida, de repente, por ter deixado sua</p><p>alma esquecer das admiráveis obras do Criador, das quais ela se incluía. Será que estava</p><p>permitindo que sua insatisfação com o tamanho do pé afetasse seu contentamento? Era bem</p><p>provável.</p><p>Eric também estava perdido em seus pensamentos. Na verdade, pedia ao Criador que lhe</p><p>iluminasse o entendimento a despeito do que sentia naquele instante, contemplando a imagem de</p><p>uma princesa que compartilhava com ele a mesma crença. Não esperava uma resposta direta,</p><p>mas sabedoria concedida. Quando ela o encarou e sorriu, decidiu agir.</p><p>Embora soubesse que talvez pudesse se arrepender do que estava prestes a fazer, e também</p><p>o que sua atitude significaria, não apenas aos seus olhos, mas de todos os presentes, ele pouco se</p><p>importou. Naquele momento, suas emoções estavam comprometidas com a princesa à sua frente.</p><p>E, se ele não agisse de uma vez, perderia a coragem ponderando se estava mesmo disposto a dar</p><p>aquele passo.</p><p>Ele se levantou, ajustou as vestes e ofereceu a mão para a princesa.</p><p>— Vem! — o príncipe chamou.</p><p>Laíse mirou a mão estendida, completamente confusa.</p><p>— Vem! — ele repetiu. — Vamos realizar seu sonho.</p><p>— O quê? Do que você está falando?</p><p>— Vamos descer e participar do Baile. Ainda temos algum tempo para a diversão.</p><p>Os olhos dela brilharam de expectativa. Nem mesmo pensou nos sapatos. A simples ideia</p><p>de ter Eric ao seu lado dissipava todos os seus medos. Segurou sua mão e se levantou.</p><p>Laíse se apoiou na curva do braço do príncipe e teve dificuldade para seguir o ritmo dele.</p><p>Eles passaram pelos guardas, que receberam ordens de permanecerem ali, e desceram os degraus</p><p>da escada tão rápido que uma das suas sapatilhas brancas se soltou do seu pé.</p><p>— Espere! — ela pediu e interrompeu a caminhada. — Perdi meu sapato.</p><p>Eric viu a sapatilha alguns degraus acima e foi buscar o calçado. Voltou, abaixou-se diante</p><p>dela e solicitou o pé, que naquele momento estava coberto apenas pela meia.</p><p>A cena foi de puro constrangimento para Laíse. Expor o pé para um príncipe nunca foi algo</p><p>que ela planejou. Mas ele não parecia nem um pouco preocupado com o que veria. Com as</p><p>bochechas vermelhas, ela ergueu o pé o suficiente para que ele encaixasse a sapatilha ali.</p><p>Eric se levantou e sorriu.</p><p>— O sapato perfeito para uma princesa especial.</p><p>Ele ofereceu novamente o braço e dessa vez manteve o ritmo mais calmo. Eles</p><p>ultrapassaram as portas do salão do Baile após se identificarem para o mestre de cerimônias, que</p><p>não gostou nada do atraso do casal. Depois de ouvir algumas repreensões, tiveram permissão</p><p>para seguir.</p><p>Laíse sentiu o coração disparar dentro do peito quando entrou no lugar que tanto esperou</p><p>para conhecer.</p><p>N</p><p>04</p><p>enhuma descrição das que Laíse ouviu fazia jus ao que era o salão do palácio</p><p>de Romantícia: seu engenhoso formato redondo, as delicadas pinturas no teto,</p><p>iluminado por centenas, talvez milhares de velas, as enormes janelas com pesadas</p><p>cortinas douradas, tudo isso compunha o cenário de um verdadeiro conto de fadas.</p><p>Havia tanta gente que Laíse ficou atordoada. A grande maioria era jovem, e Eric estava</p><p>certo sobre todos se assemelharem. A moda era seguida à risca, tanto por homens, como por</p><p>mulheres.</p><p>Não tinha como deixar de notar as centenas de pares de sapatinhos de cristais brilhando nos</p><p>pés das mulheres. Ela sentiu um aperto no peito, mas não teve tempo de se afundar em qualquer</p><p>emoção aflitiva. Eric a levou direto para o buffet.</p><p>— Coma sem medo! — Entregou a ela um prato vazio e apontou para as muitas opções de</p><p>alimentos na grande mesa. — A maioria dos convidados mal chegam aqui, receosos em parecer</p><p>famintos. Mas a comida é maravilhosa, não desperdice a chance.</p><p>O príncipe passou a encher o próprio prato e adicionava o mesmo no dela. Comentava sem</p><p>parar sobre cada alimento, estimulando-a a experimentar.</p><p>Com pratos fartos, eles encontraram um canto reservado no salão onde poderiam comer</p><p>tranquilos sem a interferência de outras pessoas.</p><p>— É muita coisa! — ela exclamou. — Eu já tinha comido lá em cima, esqueceu?</p><p>— Prove mesmo assim! Saia daqui sem nenhum arrependimento por ter experimentado de</p><p>tudo.</p><p>Laíse acatou o conselho e fez o que ele disse. Deliciava-se com a culinária especial de</p><p>Romantícia enquanto ouvia Eric contar casos e mais casos das pessoas ao redor.</p><p>— Aquela é a princesa de Floresia. — Eric apontou com a cabeça em direção à uma</p><p>mulher com os cabelos loiros e olhos azuis como o céu. — Ela foi eleita várias vezes como a</p><p>mais bela do Baile, mas não consegue um marido.</p><p>— Por quê? — Laíse avaliou a mulher que aparentava estar próxima da casa dos 30 anos e</p><p>continuava muito bonita.</p><p>— Por dois motivos: o primeiro, porque ela é muito difícil de conviver. — Eric fez uma</p><p>careta. — Dê corda a ela e você nunca mais dirá uma palavra, entretanto, ouvirá uma infinita</p><p>conversa por horas a fio dos mais diversos e fúteis assuntos.</p><p>Ele deu uma estremecida e Laíse riu, imaginando que Eric tinha passado por aquela</p><p>experiência.</p><p>— Segundo, porque há um acordo no contrato matrimonial dela. Quem pedir sua mão</p><p>receberá um altíssimo dote e o reinado, e junto a responsabilidade de cuidar de todas as princesas</p><p>de Floresia até elas fazerem bons casamentos. — Eric se concentrou no olhar curioso de Laíse.</p><p>— São 7 mulheres, todas igual a princesa. Que homem, em sã consciência, colocará em risco sua</p><p>saúde mental em troca disso?</p><p>— Coitada — Laíse se compadeceu.</p><p>Eric tomou um gole da bebida em sua taça sem tirar os olhos da princesa. A cada minuto a</p><p>achava mais atraente a seus olhos, e não era só por causa da beleza física. Ele estava</p><p>comprometendo suas emoções sem se preocupar com isso.</p><p>Quando notou onde o olhar dela estava, pigarreou.</p><p>— O duque mais libertino da história — ele disse. — Melhor não deixá-lo se aproximar.</p><p>— Certo, vou me lembrar disso.</p><p>— Esse ao lado é o rei da zombaria. Ele espalha as maiores fofocas e piores calúnias entre</p><p>todos. — Eric não escondeu seu desgosto.</p><p>Laíse moveu os pés para se certificar de que estavam escondidos sob sua saia. Eric deixou</p><p>a taça em cima de um aparador e tirou da mão dela o prato que ainda estava cheio.</p><p>— Você terminou? Porque é melhor sairmos daqui se quiser experimentar o filé. Está</p><p>quase na hora. — Ele estendeu o braço. — É tudo</p><p>pensado de modo a favorecer os pedidos e a</p><p>última dança.</p><p>Laíse tocou no braço de Eric e deixou-se conduzir. A última dança era o momento em que</p><p>o cortejo era estabelecido e os possíveis pares se firmavam. Seu pai teve que lutar muito para</p><p>conseguir a atenção de sua mãe e levá-la para a pista de dança.</p><p>A presença dos dois despertou um sútil interesse por parte de alguns convidados. Laíse não</p><p>era conhecida ainda, afinal, aquela era sua primeira aparição. Mas Eric já havia estado ali nos</p><p>anos anteriores, sempre sozinho e com cara de poucos amigos. Era de se espantar que estivesse</p><p>com uma jovem apoiada em seu braço e com a feição aberta.</p><p>— Há alguém interessante aqui que você possa me apresentar? — Laíse perguntou.</p><p>A mandíbula de Eric travou e ele ficou tenso de repente. Não havia passado pela sua</p><p>cabeça que ela pudesse querer deixá-lo quando chegassem ao Baile. Pensou que ambos</p><p>desfrutavam da companhia um do outro.</p><p>— Talvez — respondeu e se esforçou para não demonstrar decepção. — Que tipo de</p><p>pessoa interessante? Algum possível pretendente, por exemplo?</p><p>— Não sei, fiquei pensando que…</p><p>Ela não terminou a fala. Observou a tensão no rosto de Eric e isso a fez suspeitar, pela</p><p>primeira vez, que talvez ele tivesse outras intenções além de proporcioná-la a segurança para</p><p>estar ali, vivendo seu sonho. Seu coração disparou e as bochechas esquentaram tanto que teve</p><p>medo de pegar fogo.</p><p>E, pelo acaso do destino, foi salva com a aproximação de um elegante homem mais velho</p><p>que chamava atenção com seus cabelos ruivos e o grande casaco que vestia.</p><p>— Príncipe Eric. — O homem fez uma exagerada mesura. — Que honra encontrá-lo. —</p><p>Ele olhou para Laíse com estampado interesse. — E muito bem acompanhado.</p><p>— A que devo a honra, Lorde Rick? — Eric dispensou toda aquela lisonja com um aceno</p><p>de mão. — Veio me oferecer alguma das suas quinquilharias?</p><p>Lorde Rick abriu um sorriso descarado. Ele fez uma rápida avaliação de Laíse, chegando</p><p>aos pés que a garota esquecera de esconder. A ponta de uma das sapatilhas estava à mostra.</p><p>— Tenho sapatinhos de cristal — Lorde Rick informou. — Soube que eles estavam em</p><p>falta, parece que nem toda princesa conseguiu encontrar um.</p><p>Laíse engoliu em seco, mas não disse nada.</p><p>— Todo mundo sabe que seus produtos são falsos — Eric interviu. — Devem ser de vidro</p><p>e da pior qualidade. Dispensamos.</p><p>Lorde Rick não desistiu fácil. Estava acostumado a abordar pessoas da nobreza que o</p><p>desprezavam, já sabia lidar com isso.</p><p>— Bem, tenho outros itens aqui — o contrabandista declarou. — Talvez tenha algo do seu</p><p>interesse.</p><p>Ele abriu o casaco revelando diversos produtos presos com arame dentro da vestimenta e</p><p>passou a mão em alguns frascos com líquidos coloridos dentro. Ao notar a curiosidade da</p><p>princesa, deu um pequeno passo em sua direção, porém Eric interveio colocando uma mão na</p><p>frente do homem. Lorde Rick ignorou a feição dura do príncipe, fixando sua atenção em Laíse.</p><p>— Do que precisa, minha jovem? Posso realizar todos os seus desejos, basta me dizer o</p><p>que quer e, claro, retribuir com algumas moedas de prata.</p><p>— Não preciso de nada, obrigada — ela disse buscando se livrar da presença homem.</p><p>— Tem certeza? — Lorde Rick desceu mais uma vez o olhar até os pés dela.</p><p>Eric já tinha perdido a paciência. Achava uma falta de bom senso permitir que o Lorde</p><p>continuasse frequentando o Baile. Contudo, não eram poucos os membros da realeza que</p><p>amavam seus “produtinhos especiais”.</p><p>Lorde Rick captou algo no ar com a agilidade que seus muitos anos no ramo lhe deram de</p><p>experiência. Desistiu de Laíse e voltou-se ao jovem.</p><p>— Tenho algo aqui — Lorde buscou no fundo do casaco um pequeno vidro com líquido</p><p>vermelho. — Pode te interessar. — Ele lhe entregou o frasco.</p><p>Eric prestou atenção nas pequenas letras e identificou o idioma. Para sua sorte, ele</p><p>dominava a língua de Ancelina e conhecia bem a reputação do povo por suas habilidades na</p><p>fabricação de poções mágicas, essas que o Príncipe abominava. A busca por soluções rápidas e</p><p>desesperadas não faziam parte do que o Criador havia estabelecido para suas criaturas, mas os</p><p>humanos pareciam estar sempre atrás do caminho mais fácil. Quis rir quando leu o rótulo, mas</p><p>manteve o semblante fechado e devolveu o frasco para Lorde Rick.</p><p>— Não preciso de uma poção do amor — Eric declarou e evitou olhar para Laíse.</p><p>— É, pelo visto não. — Lorde Rick sorriu irônico. Olhou rapidamente para a princesa. —</p><p>Mas e ela? Uma gotinha apenas e morrerá de amores.</p><p>Laíse se espantou com a forma que o contrabandista falava como se ela fosse invisível e</p><p>não prestasse atenção na conversa deles. Estava pronta para se manifestar, mas Eric o fez</p><p>primeiro:</p><p>— Não precisa, ela já comeu a torta da princesa enfeitiçada. — Eric ergueu um lado dos</p><p>ombros, se gabando. — Minha tia resolveu esse problema de antemão.</p><p>Eric olhou para Laíse, parte para estimulá-la a espantar o homem, parte para tentar</p><p>identificar na reação da moça algum sinal de reciprocidade.</p><p>Com as bochechas coradas, ela assentiu com um movimento de cabeça.</p><p>— Ele está certo, comi um pedaço inteiro da torta e sinto que está fazendo efeito neste</p><p>exato momento. — Ela não conseguiria olhar para o Príncipe nem que sua vida dependesse disso</p><p>naquele instante.</p><p>Eric pressionou os lábios e ofereceu o braço para ela.</p><p>— Venha, minha querida, acho que vão servir o filé.</p><p>Laíse não sabia se era possível ficar mais vermelha do que já estava. Aceitou o braço e fez</p><p>uma mesura para Lorde Rick.</p><p>— Passar bem, senhor.</p><p>O contrabandista soube que não deveria insistir. Recuperando sua elegância, se despediu</p><p>com uma reverência enfeitada.</p><p>Eric levou Laíse na hora exata da distribuição dos filés. A jovem irradiava sua expectativa</p><p>quando começaram a servir a iguaria. Logo que o primeiro serviçal saiu da cozinha com uma</p><p>bandeja cheia, Eric pegou duas travessas de bronze. É claro que ele recebeu alguns olhares</p><p>condenatórios, mas não se importou. Queria que a sua companheira fosse a primeira a provar o</p><p>prato.</p><p>— Aqui está, Alteza. — Ele lhe entregou com um sorriso aberto no rosto.</p><p>— Obrigada.</p><p>Eric observou com satisfação o semblante da moça contemplando o alimento. Os olhos</p><p>estavam iluminados. Ela pegou o talher que ele ofereceu, serviu-se com um generoso pedaço e</p><p>levou à boca com um sorriso no rosto.</p><p>Laíse esperava se deparar com uma explosão de sabores, mas a satisfação passou bem</p><p>longe do seu paladar. A comida pesou em sua língua, o sabor era terrível. Tapou a boca com a</p><p>mão e entregou a travessa com o filé para Eric, desesperada. Ela precisava se livrar da comida na</p><p>boca.</p><p>Eric demorou um pouco para assimilar a reação inusitada da jovem. Porém, quando se deu</p><p>conta do que estava acontecendo, deixou um dos pratos na mesa ao lado e procurou o lenço no</p><p>bolso.</p><p>Laíse pegou o lenço, cobriu a boca e abandonou a comida indesejada. Fez uma careta e</p><p>pediu por uma bebida, sendo atendida de imediato por Eric.</p><p>— Como, pelos raios de luz solar, vocês acham isso gostoso? É, de longe, a pior comida</p><p>que já provei!</p><p>— Você está falando sério? Não gostou? — Eric ergueu as duas sobrancelhas.</p><p>— Péssimo! Horrível! — Ela colocou a mão na barriga, temendo enjoar. — Não consigo</p><p>assimilar que passei anos da minha vida sonhando com… — Ela não queria se lembrar do gosto.</p><p>— Isso.</p><p>Eric estava se divertindo muito. Pediu licença para comer o dele e o dela, já que achava o</p><p>filé delicioso. Ela permitiu e o observou, chocada com a expressão prazerosa acompanhada pelo</p><p>som de satisfação que escapava de seus lábios a cada garfada.</p><p>— A única coisa que me importa nesse Baile é a comida — ele falou com os dois pratos</p><p>vazios e o estômago saciado.</p><p>Laíse o avaliou outra vez. Eric não tinha nenhuma barriga avantajada, o que a fez</p><p>questionar para onde ia todo o alimento que ele tinha degustado naquela horas em que estavam</p><p>juntos.</p><p>— Estou satisfeito — ele disse. — Quer ir até a varanda? De lá é possível apreciar a lua</p><p>cheia.</p><p>Laíse ficou se perguntando quais eram as intenções de Eric, uma vez que era de seu</p><p>conhecimento que o lugar criava uma atmosfera romântica aos possíveis casais.</p><p>Ele queria conquistá-la? E ela estava disposta a ser conquistada? A ideia não lhe pareceu</p><p>tão absurda, por isso, aceitou a proposta.</p><p>—</p><p>E</p><p>05</p><p>ric, tenho uma pergunta.</p><p>Enquanto contemplava a lua, sua mente trabalhava levantando tantas</p><p>suposições que a estavam deixando maluca. Laíse tinha passado os últimos</p><p>minutos analisando tudo que sabia do Príncipe, e, embora não fosse muita coisa,</p><p>ela se encontrou bastante interessada.</p><p>— Diga — ele falou.</p><p>— Você disse que é o sétimo Príncipe, por isso, não tem tantas cobranças. Certo?</p><p>— Sim.</p><p>— E também demonstrou desprezo pelo Baile e pelas pessoas aqui presentes. Exceto,</p><p>claro, pela comida. E sempre se refugia no jardim lá em cima. Não é?</p><p>Ele assentiu com a cabeça, tentando descobrir de antemão os pensamentos dela.</p><p>— Então, por que você continua comparecendo? Por que apenas não para de vir?</p><p>O príncipe desviou o olhar para a lua, relembrando quantas vezes, só naquele mês, ele tinha</p><p>ouvido sua mãe lamentar a falta de herdeiros da geração abençoada. Por um momento, pensou se</p><p>foi essa demanda de seus pais que o deixou aberto à possibilidade que passava em sua cabeça</p><p>quando voltou a encarar Laíse e seu coração disparou.</p><p>— Tenho liberdade para escolher meu destino, mas carrego comigo o dever de casar e</p><p>gerar filhos. Sou muito cobrado a esse respeito. Faltar ao Baile mais casamenteiro da história</p><p>seria uma ofensa à benção concedida. Por isso, eu venho, faço minha presença ser notada e</p><p>depois me refugio lá em cima.</p><p>Laíse moveu a cabeça o suficiente para demonstrar sua compreensão.</p><p>— Eu tentei aproveitar pela primeira vez — Eric continuou —, mas se há um defeito que</p><p>possuo, é o de não conseguir ignorar a altivez das pessoas fazendo juízos baseado em paradigmas</p><p>de caráter desprezível.</p><p>Ele fechou as mãos e seus movimentos se tornaram mais controlados. A respiração ficou</p><p>mais lenta e profunda. Ele não queria demonstrar para ela o quanto se sentia afetado, embora</p><p>fosse difícil. Já havia superado, há tempos, a rejeição sofrida por não ser como todos os Príncipes</p><p>encantados. Mas ver Laíse passando pelo mesmo que ele na adolescência despertou outra vez sua</p><p>indignação.</p><p>Ele sabia que mais tarde precisaria lidar com aquele sentimento e tratar seu coração, mas</p><p>também acreditava que teria a ajuda do Criador para isso.</p><p>— Mas você quer se casar? — Laíse perguntou e, tarde demais, se deu conta de como soou</p><p>muito interessada.</p><p>A tensão se dissipou. Eric sentiu-se encorajado. Era o estímulo que precisava.</p><p>— Sim, quero. Mas não por imposição. Até porque, precisarei encontrar uma companheira</p><p>que compreenda as minhas viagens.</p><p>— Viagens?</p><p>— Sim. Como eu disse, tenho liberdade para escolher meu destino. Além de cuidar de</p><p>algumas demandas do povo de Geodésia, optei por viajar com a missão de levar as verdades do</p><p>Grande Livro para os reinos que o Criador me envia.</p><p>— Um propagador da Verdade! — Laíse já tinha ouvido sobre essa missão, embora não</p><p>conhecesse ninguém que a tivesse. Ficou muito interessada. — Conte-me mais sobre isso, por</p><p>favor! Deve ser maravilhoso!</p><p>— É difícil também. — Eric sorriu movido pela empolgação da princesa.</p><p>— Conte-me, Eric!</p><p>Ele passou alguns bons minutos relatando sua história. Quando conheceu a Verdade, trocou</p><p>suas longas viagens de férias, que visavam apenas sua satisfação pessoal, para viagens cuja</p><p>função era muito mais importante. Ele contava sobre o Grande Livro e também ajudava quem</p><p>precisava. Havia passado por situações que um Príncipe nunca passaria, como fome, frio e</p><p>perigos na estrada.</p><p>Laíse estava encantada demais para esconder o quanto sua admiração crescia a cada</p><p>segundo. De todas as coisas interessantes que Eric pudesse lhe contar, essa era, sem dúvidas, a</p><p>mais especial. Quando ele terminou de falar, ela quase podia enxergar corações voando ao redor</p><p>dele.</p><p>— É maravilhoso, Eric!</p><p>— Por isso eu não quero me casar apenas para cumprir um dever, sabe? Se precisar</p><p>interromper minhas viagens para construir uma família, precisa ser com uma pessoa especial, que</p><p>ame ao Criador tanto quanto eu. Não queria me casar com alguém que busca um Príncipe só pelo</p><p>que meu título pode oferecer.</p><p>— Entendo! — Laíse suspirou. — Cresci ouvindo a história da princesa Anne e do</p><p>Príncipe Edwin[3]. Sei que se trata apenas de uma lenda, uma fábula de Magnólia, mas me</p><p>encanta que o encontro deles aconteceu de modo natural e inesperado. Ela acaba no castelo e</p><p>conhece o amor da sua vida. E ele vê naquele contato fora dos padrões da realeza, a possibilidade</p><p>de se relacionar com alguém sem o interesse do título. Já sonhei em viver um romance assim!</p><p>Laíse suspirou apaixonada. Era dada a histórias românticas fictícias tanto quanto às reais.</p><p>Sonhava encontrar o amor verdadeiro e construir um lar.</p><p>— Acho que é o que você e eu queremos, não é? — Ela olhou para Eric. — Um</p><p>relacionamento com alguém que tenha a mesma visão. Viver um romance muito além de poções</p><p>e obrigações, e sim o amor verdadeiro.</p><p>Eric prendeu o ar. Encontrou no olhar de Laíse a resposta que ele precisava. Tomou</p><p>coragem. Aquela era a hora.</p><p>— Um romance como num encontro imprevisível no jardim do Baile na ocasião de uma</p><p>fuga. Seria bom o suficiente para você?</p><p>Laíse não esperava por aquilo. Sua fala não tinha a intenção de soar como uma indireta.</p><p>Porém, não podia mentir. Uma rápida avaliação foi suficiente para saber que ela já estava</p><p>envolvida.</p><p>— Sim — a princesa respondeu com dificuldade.</p><p>Eric se levantou e ofereceu a mão.</p><p>— Preciso te mostrar uma coisa. Por favor, venha comigo.</p><p>Ela ainda não tinha o controle de suas emoções, mas foi com Eric.</p><p>E</p><p>06</p><p>ric a levou para um espaço adjacente ao salão onde não havia ninguém além dos</p><p>guardas dos turnos. Teriam a privacidade necessária para o que estava prestes a</p><p>acontecer.</p><p>Ele estava nervoso e hesitante.</p><p>— Preciso te mostrar algo. Talvez você se decepcione e entenderei se isso acontecer. Mas</p><p>preciso ser verdadeiro, ainda mais… — Ele parou. Não deveria dizer nada antes de ter certeza de</p><p>que ela não se importaria.</p><p>— Tudo bem — Laíse quis demonstrar apoio, mesmo não tendo ideia do que se tratava.</p><p>Eric deu um passo para trás. Passou as mãos pelos fios de cabelos, depois seguiu até a</p><p>testa. De repente, após um ágil movimento, toda a cabeleira dele estava em suas mãos e a cabeça</p><p>completamente nua.</p><p>— Você é calvo? — ela perguntou em choque.</p><p>— Sou — ele respondeu um pouco decepcionado com a reação dela. Mas quem ele queria</p><p>enganar? Sabia que a falta dos cabelos lhe custaria uma má impressão.</p><p>— Nasceu assim?</p><p>— Não, começaram a cair quando eu tinha 12 anos e nunca mais cresceram. Não há nada</p><p>que eu possa fazer além de aceitar minha condição.</p><p>Ele pensou se deveria colocar a peruca outra vez, mas ela abriu um largo e iluminado</p><p>sorriso.</p><p>— Caiu tão bem em você! — ela disse. — Eu gostei.</p><p>— De verdade? — Ele quis pular de alegria, mas se conteve. — Mesmo?</p><p>— Mesmo.</p><p>Tudo fez sentido para Laíse. Imaginou quantas palavras depreciativas ele ouviu durante sua</p><p>adolescência, quantas cobranças. Compreendeu a motivação dele em não querer estar perto de</p><p>pessoas zombadoras e em busca de um padrão estético imposto.</p><p>Eles não eram tão diferentes, afinal. Talvez foi por isso que ele a compreendeu tão bem.</p><p>Ela crispou os olhos e cruzou os braços.</p><p>— Você é um farsante, não acha? — ela disse. — Ficou por aí dizendo que eu não deveria</p><p>me preocupar com sapatinho de cristal estando com uma peruca na cabeça! Por que não me</p><p>contou antes?</p><p>— Tive medo que me julgasse, afinal, princesas não costumam ser atraídas por um</p><p>Príncipe fora do padrão. Eu sou careca!</p><p>— E eu tenho o pé grande!</p><p>A troca de olhares precedeu a crise de risos. A risada era contagiante, dessas que tiram</p><p>lágrimas dos olhos e faz a barriga doer.</p><p>— Daríamos um casal perfeito, não daríamos? — Eric ousou perguntar.</p><p>Laíse sentiu todas as borboletas de sua barriga levantarem voo.</p><p>— Concordo — respondeu ciente de que ele esperava um incentivo.</p><p>Eric não conseguiu evitar que seus lábios dançassem ao som das batidas ritmadas de seu</p><p>coração. Estava mesmo disposto a pôr um fim nas exigências de seus pais? Pensou que sim. Já</p><p>havia passado da hora e Laíse demonstrou ser uma mulher incrível com quem ele compartilhava</p><p>muitas coisas em comum, inclusive o mais importante.</p><p>— Eu não tenho cabelo, mas ao menos tenho dentes — Eric brincou.</p><p>— Já é o suficiente.</p><p>Ele deu um passo para frente e segurou uma das mãos dela.</p><p>— Você sabe o que significa a última dança? — ele perguntou.</p><p>— Claro!</p><p>— Estaria disposta a ser meu par?</p><p>— Não só disposta, como feliz por dançar com você.</p><p>Era tudo o que ele precisava. Jogou a peruca longe e fez uma reverência.</p><p>L</p><p>07</p><p>aíse e Eric se tornaram o motivo do falatório do salão.</p><p>“Ele é careca!”</p><p>“Ela é tão sem sal!”</p><p>“Viu os sapatos? Que careta!”</p><p>“O tempo todo era uma peruca!”</p><p>“Eles fazem um par perfeito. Soube que não usa sapatinhos de cristal porque não servem</p><p>nela. Pobre coitada! Só conseguiu um calvo!”</p><p>Mas eles não estavam preocupados. Com os olhos presos um no outro, sorrisos no rosto e</p><p>corações disparados, dançaram a valsa do cortejo. Eles realmente haviam sido feitos um para o</p><p>outro.</p><p>— Acho que foi a magia do Baile — Eric disse quando recebeu Laíse de novo nos braços</p><p>após um giro.</p><p>— O quê?</p><p>— A magia do Baile me pegou. Fui fisgado pela ideia maluca de me apaixonar tão rápido e</p><p>querer casar com uma princesa.</p><p>Ela sorriu compreendendo a referência.</p><p>— Ou, talvez, seja apenas sua predisposição para viver uma história de amor — ela</p><p>provocou.</p><p>— Talvez. — Ele a girou mais uma vez. — Sabe, minha tia vai me fazer uma pergunta e</p><p>preciso tirar a prova. A torta fez efeito?</p><p>— Com perfeição. Acho que estou enfeitiçada por um Príncipe calvo!</p><p>Ele forçou um suspiro de rendição.</p><p>— Não estávamos imunes, no final das contas.</p><p>— Não. — Ela sorriu.</p><p>Eles dançaram um pouco mais. Quando os últimos acordes da música eram tocados, Eric</p><p>encarou Laíse com seriedade.</p><p>— Seus pais estarão aqui à meia noite? — ele perguntou.</p><p>— Com grandes expectativas de firmar um acordo de casamento.</p><p>Ao som da última corda, Eric parou, beijou a mão de Laíse e, ciente do passo que estava</p><p>prestes a dar, disse:</p><p>— Que o Criador nos abençoe então.</p><p>FIM!</p><p>COMO SE APAIXONAR EM UMA NOITE DE INSÔNIA - Lyta Racielly</p><p>Dedicatória</p><p>Para Vinicius, por me ensinar a me levar menos a sério e ver a vida com mais</p><p>leveza.</p><p>E para o meu pai, obrigada pelas nossas conversas (leia-se discussões)</p><p>teológicas na hora das refeições.</p><p>— Aquela estrelinha está no meio do nada e não combina com</p><p>nenhuma outra estrela no céu. Ela não tem sentido.</p><p>— Não, ela não combina. Mas não há torna sem sentido. Todas</p><p>as estrelas estão lá por alguma razão, não precisam combinar</p><p>com outras para serem importantes.</p><p>(Barbie Butterfly: A Nova Aventura em Fairytopia)</p><p>E</p><p>01</p><p>ra uma vez, um amor digno dos contos de fadas.</p><p>A bela donzela e gentil cavalheiro se apaixonaram à primeira vista. Logo quando</p><p>seus olhares se encontraram, os corações se conectaram. Ela, após tantos anos à</p><p>procura do verdadeiro amor feérico — pois já sabia ser amada pelo seu Criador —, encontrou-o</p><p>nas asas do rapaz de cabelos compridos e olhos violetas.</p><p>Ao menos era assim que deveria ser o verdadeiro amor, o que eu tanto sonhei.</p><p>O solavanco da carruagem interrompeu meus apaixonados pensamentos, voltando para a</p><p>vida real.</p><p>Da janela, eu conseguia ver os outros alunos voando, cavalgando ou se divertindo durante</p><p>o percurso. Enquanto eu, por herdar um tal de sangue azul, fui obrigada a ficar presa em uma</p><p>carruagem, proibida de abrir a janela ou respirar o ar da floresta.</p><p>O grande problema era que, para minha tristeza, outros alunos receberam a condenação</p><p>junto a mim, apesar do discurso que seria um privilégio “ir junto a alguém da realeza”.</p><p>A realidade é que a maioria deles eram da nobreza, filhos, primos ou sobrinhos de reis dos</p><p>vários reinos espalhados pelo continente. Contudo, eu precisava ter nascido justo como a</p><p>segunda na linhagem de Salam, o que levava tudo a ferro e fogo e me protegia como se fosse de</p><p>cristal.</p><p>Não me permitiram ir com as minhas amigas, os mestres alegaram que eu precisava</p><p>diversificar o meu círculo social e permitir outras fadas se aproximarem. Por isso, ao meu lado</p><p>estavam duas garotas que havia visto poucas vezes na vida, eram ainda da primeira etapa,</p><p>enquanto eu já estava na especialização. E na minha frente um rapaz da minha turma, se eu não</p><p>me enganava, seu nome era Arkyn e seu ódio por mim era claro como as águas cristalinas, o</p><p>rapaz nunca conseguia me olhar por mais de cinco segundos.</p><p>E era por isso que eu não me tinha na maior das estimas. Apesar do meu título real, as</p><p>pessoas continuam me achando insuportável, mesmo eu tentando sempre agradar aos outros.</p><p>Agora estávamos ali, indo em direção ao palácio real de Salam para o meu baile de vinte</p><p>ciclos. Após ele, ou eu arranjava um marido que fosse da realeza, ou o Conselho arranjaria ele</p><p>para mim.</p><p>Não conseguiria suportar se fosse a segunda alternativa, mas também não havia nenhuma</p><p>possibilidade de ser a primeira.</p><p>Chegar ao palácio havia sido um alívio, minhas asas não foram feitas para suportar horas</p><p>sentada em uma carruagem.</p><p>Há muitos meses não encontrava minha irmã mais velha, então, logo quando a vi, corri</p><p>para me refugiar em seus braços como tanto queria.</p><p>Katrina era a herdeira, por isso ela tinha a própria preparação para reinar em Salam,</p><p>enquanto também precisava lidar com a procura de um pretendente apto ao cargo de rei.</p><p>Para sua sorte, ou azar, ela por ser a herdeira tinha a margem de até vinte e cinco ciclos</p><p>para casar-se. Ironicamente eles se preocupavam mais com a segunda filha gerar herdeiros do</p><p>que a primeira.</p><p>Eram as consequências pelos reis não terem conseguido gerar nenhum filho homem.</p><p>Na mesma medida em que a recepção tinha sido uma benção, o jantar foi um desastre. Já</p><p>deitada em minha cama — feita com as melhores rosas do continente, diga-se de passagem —, a</p><p>chamada de atenção da minha irmã se repetia na minha mente a cada segundo, como um relógio</p><p>dando tique-taque sem parar.</p><p>Ao invés de uma refeição intimista, como eu desejava, tivemos um jantar com todos os</p><p>alunos no salão de baile. Eles sentados nas mesas comuns, e eu na separada com meus pais e</p><p>minha irmã.</p><p>— Neridah, dê um sorriso, você parece estar querendo matar todo mundo aqui — ela</p><p>sussurrou para mim no meio da refeição.</p><p>— Eu estou comendo, não posso ficar rindo, soaria falsidade.</p><p>— Mas também não precisa querer matar o carneiro que já está morto ou qualquer um do</p><p>salão. Você é uma princesa, seja simpática!</p><p>Era sempre assim. Poderia tentar o que fosse, nunca seria suficiente. Já havia perdido a</p><p>conta de quantas vezes orei ao Grande Rei para me tornar alguém naturalmente amável, que as</p><p>pessoas olhassem e gostassem de mim logo de cara.</p><p>Mas não, ele tinha que ter me feito de uma maneira que, mesmo tentando ser a fada mais</p><p>simpática possível, parecia que eu estava odiando tudo e todos.</p><p>Suspirei, desistindo de pegar no sono. Aparentemente, essa seria mais uma noite sem</p><p>dormir. Elas não eram novidade para mim, quanto mais se aproximava o baile, mais frequentes</p><p>eram as madrugadas em claro.</p><p>Saltitei até a sacada do meu quarto observando as fadas da noite trabalharem. Era nesse</p><p>momento que elas utilizavam de seus dons para ajudar no crescimento da relva, acender e apagar</p><p>as luzes da rua e também controlar a temperatura.</p><p>Meu sonho era estar daquele lado, fazendo o trabalho que deveria ser feito. Ou ser uma</p><p>Viajante de campo pregando a palavra do Grande Rei aos três mundos. Mas, no fim, eu era só</p><p>uma princesa presa em seu castelo, com um temperamento insuportável, olhos amaldiçoados e</p><p>talvez um futuro noivo não desejado.</p><p>Quando estava prestes a deitar novamente, esbarrei na estante fazendo meus olhos</p><p>encontrarem a prateleira com a minha coleção de livros preferidos, e veio a vontade de visitar um</p><p>lugar que há muito tempo não via.</p><p>Com um gesto, manipulei um raio de luz para iluminar o caminho até o meu lugar favorito</p><p>desse palácio.</p><p>Vulgo, a biblioteca.</p><p>O fogo na minha mão não era exatamente necessário, apesar de diminuir a intensidade, a</p><p>iluminação do palácio dava conta do recado. Mas era melhor prevenir do que remediar, não</p><p>seria</p><p>uma cena agradável uma fada bater nos ornamentos pelos corredores.</p><p>A minha presença lá não foi uma novidade para os guardas, quase todas as noites, antes de</p><p>ser enviada ao internato real, eu frequentava a biblioteca, por isso, tão logo entrei, eles se</p><p>retiraram, deixando-me só.</p><p>Era aparente o quanto o lugar foi pouquíssimo usado nos últimos anos. Apenas não</p><p>cheirava a poeira por causa da própria magia que limpava regularmente, mas estava tudo</p><p>estritamente organizado, apesar de estar sem vida.</p><p>Iluminei com a ponta dos dedos a estante do Continente das Fadas, onde continha todos os</p><p>livros sobre a formação dos nossos reinos. Inúmeros calhamaços estavam dispostos lado a lado</p><p>na fileira, dos mais diferentes tons e texturas, cada um contendo uma infinidade de histórias</p><p>sobre nosso mundo em seu interior.</p><p>Imediatamente fui envolvida pelo aroma único do papel envelhecido. O cheiro de papel,</p><p>misturado com o suave perfume de madeira das estantes, criava uma atmosfera acolhedora e</p><p>familiar, como se cada obra guardasse segredos sussurrados pelo tempo.</p><p>Dei um impulso para voar e alcançar as prateleiras superiores, e como se fosse um imã,</p><p>meus olhos foram atraídos para o Livro da Eternidade.</p><p>Não era para ele estar ali.</p><p>Eu deveria tê-lo levado até a ala dos Peregrinos. Entretanto, tudo o que envolvia o Grande</p><p>Rei era impossível de se afastar. Sempre foi assim, quando Ele chamava, ninguém era capaz de</p><p>dizer “não”.</p><p>Com delicadeza, puxei-o pela lombada. Com o toque dos meus dedos, o livro soltou</p><p>pequenas fagulhas brilhantes.</p><p>Aquele exemplar específico era um dos mais raros existentes, foi escrito pelo último</p><p>profeta antes da sua morte. E, desde então, passaram-se quase 400 ciclos sem nenhuma nova voz</p><p>sendo levantada.</p><p>Pousei o livro na mesa de estudos e, com a mão livre, criei uma chama para deixar a vela</p><p>acesa.</p><p>Passei as páginas com cuidado, aquele era um dos livros mais preciosos para nós. Nele</p><p>continham as histórias da origem do universo, do dia mais triste da história das espécies, de</p><p>como o Grande Rei levantou cada profeta para falar acerca da sua vinda.</p><p>E hoje estamos aqui, aguardando a vinda do seu Filho. Havia boatos de que ele viria como</p><p>um híbrido, para reconciliar consigo mesmo todas as criaturas, quer fossem as dos céus, da terra</p><p>ou dos mares.</p><p>Resolvi procurar algo no segundo pergaminho. Estava tão imersa nas leis dadas ao povo,</p><p>que só percebi a presença de outra criatura quando ela derrubou algo no chão, me assustando.</p><p>Ou melhor.</p><p>Ele.</p><p>M</p><p>02</p><p>e dignei a erguer meus olhos, encontrando um feérico estabanado com uma</p><p>mochila e sua bebida, possivelmente chá de estrelas. Imediatamente reconheci</p><p>Arkyn, o rapaz que não me suportava.</p><p>Sua aparência era única, difícil de passar imperceptível. Os cabelos negros como a noite</p><p>como a noite e os olhos e asas purpuras denunciaram sua origem de Milost’.</p><p>Aqui em Salam, a maioria das fadas nasciam com fios e asas rosas e olhos escuros, o que</p><p>era irônico, levando em conta que controlávamos o fogo e a energia. Outra ironia era a própria</p><p>princesa ter os olhos cor de gelo.</p><p>Fiquei alguns segundos o encarando com a sobrancelha erguida, aguardando alguma reação</p><p>da sua parte. Ao cansar de vê-lo me olhando estático como se estivesse diante de um humano,</p><p>comecei a guardar meus materiais, estressada. Essa definitivamente não era a minha noite.</p><p>— Hum, me perdoe, não queria atrapalhá-la, vou deixá-la sozinha.</p><p>Já atrapalhou.</p><p>A resposta passou pela ponta da minha língua, mas a segurei lembrando de toda a educação</p><p>que recebi como princesa. E a principal regra era: não seja mal educada com ninguém.</p><p>Ao menos, não de propósito.</p><p>— Não se preocupe — a ponta dos meus lábios subiu a força —, está tarde e já estava me</p><p>retirando para ir dormir.</p><p>— Alteza, desculpe a sinceridade, mas mentir é uma infração contra o Grande Rei. Seus</p><p>materiais estavam espalhados demais pela escrivaninha para estar indo embora, fora que não</p><p>sabe disfarçar sua cara de desgosto com a minha presença. Por isso, estarei me retirando. Até</p><p>mais. — Ele finalizou sua fala com uma reverência.</p><p>Eu poderia ter chamado os guardas e ordenado que o prendesse por sua petulância. Deveria</p><p>ter feito isso. Mas sua ousadia tocou um lado meu que nem sabia que existia.</p><p>Como princesa, eu era acostumada a ver todos se dobrando a mim, nunca me questionando,</p><p>nunca confrontando os meus delitos. E ali estava ele, décimo na linhagem real de um reino</p><p>minúsculo, sendo sincero com a segunda herdeira do maior reino do continente.</p><p>Por isso fiz algo que jamais pensei que faria.</p><p>— Espera! — Aprumei a coluna arrependida da atitude impensada. — A biblioteca é</p><p>grande o suficiente para duas pessoas ficarem dentro dela, você não precisa ir.</p><p>Arkyn ficou alguns segundos me analisando, um olhar que, de início, me incomodou,</p><p>entretanto, ele, por fim, assentiu.</p><p>O rapaz sentou em um dos sofás com um caderno e um livro em mãos. Enquanto ele estava</p><p>concentrado e mal piscava, eu precisei lidar com o incômodo do silêncio sepulcral.</p><p>Direcionei meus olhos para o livro, mas a mente estava longe. Ao amanhecer o dia mudaria</p><p>e então começariam as apostas para o mercado de casamento. Meus pais até poderiam ser contra,</p><p>entretanto o Conselho era bem influente quando queria, por isso já haviam enviado uma pasta</p><p>com algumas possibilidades de matrimônio dentro do nosso reino.</p><p>E eu não desejava nenhum dos rapazes da lista. Haviam levado em conta mais os poderes</p><p>políticos deles do que a fé no Grande Rei.</p><p>Ergui levemente o olhar reparando em Arkyn escrevendo algo, contudo os abaixei tão</p><p>rápido quanto um redemoinho ao encontrá-lo também me olhando.</p><p>Cinco minutos se passaram sem nenhuma palavra ser dita, até ele próprio desistir da sua</p><p>leitura e se aproximar da minha mesa.</p><p>— Fiquei curioso, qual o motivo de uma princesa estar pela madrugada na biblioteca do</p><p>palácio?</p><p>— Essa pergunta deveria ser minha. O que você está fazendo aqui? — Fechei a cara para</p><p>tentar passar alguma seriedade com a minha fala.</p><p>Não que fosse difícil. As pessoas diziam que meu olhar era de condenação em noventa e</p><p>nove por cento do tempo, que tinham medo de chegar perto de mim e serem desprezadas, quando</p><p>para mim eu estava sendo super simpática e querendo criar amizade sincera.</p><p>— Estava sem sono e amo bibliotecas — ele respondeu sem se intimidar —, então</p><p>perguntei aos guardas e eles me falaram daqui. Aliás, espera só um minuto, por favor?</p><p>Apenas balancei a cabeça automaticamente, confusa com sua mudança repentina de</p><p>expressão. Em um voo, ele foi até a porta e sumiu. Não muitos minutos depois, retornou</p><p>acompanhado da presença de um guarda.</p><p>— O quê?</p><p>— Não é prudente ficarmos a sós, Alteza — respondeu em um tom cuidadoso.</p><p>O oficial foi para o outro lado do salão, longe o suficiente para não ouvir as conversas, mas</p><p>perto o bastante para ser testemunha que não aconteceu nada demais.</p><p>E foi ali que tudo começou a desandar dentro de mim.</p><p>Quantos homens não fariam de tudo para ficar a sós comigo e conseguirem uma falsa</p><p>afirmação para casarem? Mas ele não, se preocupou em garantir que a minha reputação ficasse</p><p>intacta.</p><p>Não poderia afirmar que me apaixonaria por ele, nem queria ter um envolvimento</p><p>romântico por agora, além do fato de que essa era a primeira vez que tínhamos um diálogo que</p><p>durasse mais de um minuto. Porém, aquilo era pelo que eu tanto orava, me apaixonar de forma</p><p>natural por alguém que demonstrava os mesmos princípios do Grande Rei.</p><p>— Bom, e se hoje formos apenas dois colegas se conhecendo em uma biblioteca? Pode me</p><p>chamar de Neridah, sem títulos por hoje.</p><p>— Alteza, eu preciso te alertar que…</p><p>— Eu sei, eu sei, você é apenas um colega de estudos e deveríamos manter a formalidade.</p><p>Mas, poxa, será apenas por uma madrugada, só quero alguns minutos normais.</p><p>— Ainda acho que você deveria saber…</p><p>— Que é errado? Não, não é.</p><p>— Princesa…</p><p>— Então, se prefere assim, eu o proíbo de usar qualquer título real para mim, também farei</p><p>o mesmo contigo, sem comentar sobre cargos ou funções. Somos apenas dois Peregrinos</p><p>conversando sobre o Grande Rei, o que acha?</p><p>Mesmo com a discordância</p><p>explícita em seus olhos, ele assentiu aceitando a minha</p><p>proposta.</p><p>Eu só queria um pouco de normalidade, era pedir muito?</p><p>— Alteza. Neridah — ele se corrigiu diante do meu olhar —, como soube que eu era um</p><p>Peregrino?</p><p>— Por que eu estudo com você? Além do mais, você fez uma palestra defendendo a</p><p>Peregrinação na aula de cosmologia dos mundos.</p><p>Arkyn balançou a cabeça, rindo da própria falha.</p><p>— E aparentemente alguém está estudando o Livro da Eternidade. — Ele apontou de volta.</p><p>— Está em qual parte?</p><p>— Na verdade, eu estou procurando uma resposta e lendo trechos específicos dele. —</p><p>Apontei para outro livro de ajuda temática ao meu lado. — No momento, estou no segundo livro</p><p>do Piacik.</p><p>Abri o livro mostrando uma das gravuras. Era o desenho de um cordeiro sendo amolado</p><p>para a morte.</p><p>— Sacrifício pascoal, correto? — Assenti. — Eu acho incrível o fato do Grande Rei ter nos</p><p>tirado da escravidão mesmo sem merecermos, cumprindo a promessa feita aos nossos</p><p>antepassados.</p><p>— Eu também, é uma maneira dEle nos mostrar que não é pela força dos seres e sim dEle.</p><p>Arkyn pediu licença para pegar o Livro. Após passar para ele, fiquei observando o rapaz</p><p>folhear com todo o cuidado e respeito até encontrar a passagem que desejava.</p><p>— Uma dúvida, você crê na existência do Híbrido?</p><p>— Quem não crê? — rebati, mas já sabia a resposta.</p><p>Muita gente.</p><p>A Promessa estava demorando tantos anos para se cumprir que muitas fadas desistiram de</p><p>acreditar, preferiam confiar na própria força e odiar as outras raças do que crer na reconciliação.</p><p>— Porque um ser nos nasceu, um filho se nos deu. O governo está sobre os seus ombros, e</p><p>o seu nome será: "Maravilhoso Conselheiro", "Pai da Eternidade", "Príncipe da Paz" — Arkyn</p><p>finalizou a leitura do texto. — Eu oro pelo dia que Ele virá, que irá restaurar a relação de todas as</p><p>criaturas, seja as dos céus, da terra ou dos mares.</p><p>— As fadas, os humanos e as sereias — completei.</p><p>Ficamos alguns segundos em silêncio, refletindo ainda sobre aquilo.</p><p>Após a rebelião das sereias, o Grande Rei as condenou ao fundo dos oceanos. Não havia</p><p>mais sinais da sua existência há séculos, alguns diziam que haviam sido aniquiladas como forma</p><p>de “lição” para as outras espécies.</p><p>Entretanto, lá estava os seres humanos, a cada dia se matando mais sobre a superfície da</p><p>terra. Esquecendo-se da sua origem e de quem os criou.</p><p>E então só restavamos nós, as fadas, tentando se manter vivas da ganância humana e</p><p>precisando fazer o trabalho de propagar o Evangelho do Grande Rei a todas as criaturas e crer em</p><p>uma Promessa feita há muito tempo.</p><p>Porém, até mesmo elas estavam começando a duvidar.</p><p>A maioria dos reinos já haviam renegado-se, Milost’ apostatou poucos anos antes do meu</p><p>nascimento. Salam era um dos poucos que ainda tinham o Livro da Eternidade como seu estatuto</p><p>jurídico.</p><p>— As vezes — fiz uma pausa organizando meus pensamentos —, eu me pergunto se Ele</p><p>realmente existe. Eu sei que sim, é impossível duvidar, mas não sei explicar, só tenho a dúvida.</p><p>Ou também se Ele só não se esqueceu de nós.</p><p>— É difícil crer em algo que não vemos, não é? — ele disse e fiz um leve balançar com a</p><p>cabeça. — Mas é tão triste a vida sem esperança. Além do mais, Ele é eterno, não muda, se</p><p>prometeu, irá cumprir.</p><p>— Só não no nosso mero tempo feérico. Quem somos nós, pobres criaturas minúsculas,</p><p>para querer mandar no nosso Criador? — Refleti. — Nossa, o clima está muito mórbido, credo.</p><p>— Bati as mãos como se estivesse dissipando poeira. — Mas me conta, você tem um chamado</p><p>para ser um Viajante?</p><p>O sorriso de Arkyn murchou no mesmo instante, e a cor dos seus olhos se escureceram,</p><p>como se a tristeza navegasse por eles.</p><p>— Bem que eu queria. Meu irmão recebeu a Convocação, porém, digamos que o Grande</p><p>Rei nunca me deu opção de escolha. E você?</p><p>— Bom, sou uma princesa presa em seu palácio com a condenação de ser amaldiçoada —</p><p>apontei para os meus olhos —, não é como se eu fosse ser bem recebida lá fora. Também nunca</p><p>pude nem ao menos ver uma cerimônia de Envio. Só me restou sonhar.</p><p>— Não vejo problemas nos seus olhos, lendas são superstições que apenas idiotas</p><p>acreditam. E se algum dia você for para Milost’, posso te levar em uma, lá as festividades são</p><p>abertas e perto do palácio.</p><p>— Hum, já estamos assim, então? Recebi até convite para um passeio — brinquei com a</p><p>cara dele.</p><p>Toda a animação do príncipe sumiu no mesmo instante, o vi tossindo algumas vezes em</p><p>busca de se corrigir.</p><p>— É, não quis dizer bem isso, só um comentário sobre e…</p><p>— Relaxa, estava brincando com você — tentei acalmá-lo ao ver seu rosto tão vermelho</p><p>quanto uma rosa. — Mas me conte mais sobre Milost’, então. Não sabia que após o reino</p><p>apostatar eles continuavam com as festividades.</p><p>Ali eu percebi que estava encrencada.</p><p>O feérico passou os próximos minutos falando sobre o Imperador Amir, o atual</p><p>governante, quando ele encontrou o Livro da Eternidade escondido em meio aos entulhos do</p><p>velho templo e começou a buscar a restauração do reino.</p><p>Os olhos de Arkyn brilhavam falando do Grande Rei, como Ele havia alcançado toda a</p><p>família real e, aos poucos, a redenção estava alcançando o seu povo.</p><p>— Nossa, eu não fazia ideia. Mas toda a família real hoje é Peregrina? Ou apenas você e</p><p>seu irmão? Se você não se sentir à vontade para falar, tudo bem, talvez seja algo pessoal — me</p><p>corrigi quando vi que o assunto era delicado.</p><p>— Infelizmente não, nem todos os filhos de meu pai foram alcançados pela graça. Esses</p><p>continuam debochando do Rei com suas palavras e ações.</p><p>— Compreendo — sussurrei sem saber o que falar. — Quer andar? Minhas pernas já estão</p><p>doendo pelas horas sentada.</p><p>— Claro, aproveite e me conte mais sobre Salam.</p><p>Há uma distância segura, começamos a caminhar lado a lado pela biblioteca, passeando</p><p>pelos inúmeros escritos do reino. Uma das coisas que eu amava ali era que tinha vida própria,</p><p>não era apenas um lugar para guardar livros, como a do internato, mas um ambiente de histórias</p><p>e memórias.</p><p>Para uma conversa mais tranquila, escolhemos caminhar ao invés de voar. E a cada passo</p><p>viamos livros indo e vindo das estantes, folhas se descolando e outros sendo escritos pelas penas</p><p>mágicas.</p><p>— Aqui em Salam, todo o nosso estatuto é baseado no Livro da Eternidade, por isso todas</p><p>as leis são levadas muito a sério. Se descumprirmos uma, todas estão condenadas também.</p><p>— Isso explica a sua rigidez — ele comentou segurando um dos livros que passou ao seu</p><p>lado.</p><p>Meus pés cravaram no chão no mesmo instante.</p><p>— Como assim?</p><p>— Bom, Neridah, você não pode negar o quanto leva as regras a sério e, perdão a</p><p>sinceridade, é autoritária em muitos momentos sem necessidade.</p><p>— Eu não sou autoritária, sempre tento ser simpática! — Nesse momento, meus braços já</p><p>estavam cruzados e eu estava prestes a dar meia volta para ir embora.</p><p>— Então desculpe, mas não é a imagem que passa a todos no colégio. Você leva as regras a</p><p>sério demais — ele tentou se explicar enquanto devolvia o livro flutuante a corrente de ar.</p><p>— Regras foram feitas para serem cumpridas! — Arqueei as sobrancelhas, ou ao menos</p><p>tentei, nunca consegui ficar apenas com uma delas levantadas.</p><p>— Só não precisam ser da sua maneira!</p><p>— Okay — voltamos a andar devagar —, me diga uma situação em que eu deturpei uma</p><p>regra para colocá-la nos meus moldes. Afinal, para quem me odiava até uma hora atrás, está</p><p>acompanhando muito a minha vida.</p><p>E dessa vez foi Arkyn quem parou. O príncipe franziu as sobrancelhas, me encarando.</p><p>— Eu te o quê?</p><p>— Me odiava, detestava, ou o que queira usar. Você não conseguia ficar nem cinco</p><p>minutos perto de mim.</p><p>Uma luz brincou em seus olhos e vi um sorriso irônico surgir de lado. Imediatamente</p><p>também desviei a atenção para a estante ao lado, não sabendo explicar o turbilhão sentido.</p><p>Seria essa a sensação das famosas “fadinhas no estomago”?</p><p>— Primeiro, eu não te odiava, nunca seria capaz de conseguir isso. Segundo, você gosta</p><p>muito de estar certa, sabia Alteza?</p><p>— Ou seja, você não consegue citar nenhum exemplo.</p><p>Ignorei de propósito a primeira parte da sua fala, a parte curiosa de mim até tentou falar</p><p>mais alto,</p><p>mas o lado temoroso e responsável não quis ir a fundo para descobrir.</p><p>— Como estou no seu palácio, darei uma colher de chá e não citarei seus defeitos. Mas nós</p><p>dois sabemos que você é rígida, e isso nem sempre é ruim, só depende da maneira como é</p><p>administrado.</p><p>Dei de ombros, não tinha argumentos para respondê-lo, mas também não me renderia. Na</p><p>verdade, aquela conversa despertou gatilhos internos, lutas que eu travava diariamente contra o</p><p>meu próprio ser.</p><p>Mas também foi um puxão necessário, afinal, eu não podia culpar os outros por</p><p>comportamentos que partiam apenas de mim.</p><p>Eu até queria possuir tais atitudes naturais, como em tantas outras fadas, garotas que de</p><p>maneira espontânea conquistavam os outros e todos elogiavam sua simpatia. Mas não era tão</p><p>fácil para mim, então só me restava orar ao Grande Rei pedindo ajuda para mudar.</p><p>E também entender que seria um processo, não da noite para o dia.</p><p>— Quem disse?</p><p>Arkyn me encarou diante da minha fala repentina após minutos em silêncio.</p><p>— Quem disse o quê?</p><p>— Que eu gosto de todas as regras? Só me responde se sim ou não para uma aventura.</p><p>Olhei para trás à procura do guarda que nos acompanhava. O feérico estava há uns vinte</p><p>passos de distância, se mantendo atento à “princesa querida”.</p><p>— Não sei o que é, mas óbvio que sim.</p><p>E com um sorriso travesso, segurei sua mão e voei o mais rápido que conseguia.</p><p>E</p><p>03</p><p>u conhecia aquela biblioteca como os desenhos da minha asa, e talvez até mais.</p><p>Mesmo sem fazer ideia do que estávamos fazendo, Arkyn se manteve firme comigo</p><p>a cada estante que desviavamos. Obviamente o guarda nos seguia desesperado</p><p>tentando entender o que aconteceu.</p><p>— Só confia e vem atrás de mim, okay?</p><p>— Neridah, isso é uma parede, você vai bater e se machucar.</p><p>— Quem é a pessoa rígida e cabeça fechada mesmo?</p><p>Após debochar da cara dele, soltei da sua mão aumentando a velocidade, atravessando</p><p>direto pelo quadro do meu tataravô. Não muitos segundos depois o príncipe chegou, mas, ao</p><p>contrário de mim, que já estava acostumada, ele perdeu o controle e saiu escorregando até bater</p><p>na balaustrada da sacada.</p><p>Deixei meu corpo apoiado na parede enquanto o via tentando fazer a dignidade voltar ao</p><p>corpo.</p><p>— Belo pouso, o mestre Yong iria se sentir honrado.</p><p>— Você. Nunca. Comente. Isso. Com. Ninguém! Está ouvindo?</p><p>Jonie Yong era nosso professor de Estratégias de Voô, e Arkyn era o melhor aluno da</p><p>turma na matéria.</p><p>— Vou pensar com carinho na sua petição.</p><p>Caminhei até a mureta, me permitindo admirar a paisagem à minha frente. Estávamos na</p><p>torre oposta a do meu quarto. Enquanto lá via-se os jardins, aqui a vista eram as montanhas de</p><p>Olam e o Lago dos Amores.</p><p>O céu noturno de Salam era um dos mais belos que eu já havia visto, incontáveis estrelas</p><p>dos mais diversos tons brilhavam roubando nossa atenção, e também iluminavam o jardim de</p><p>tulipas em volta do lago.</p><p>— O que é isso aqui? Como foi possível atravessarmos o quadro? — o príncipe questionou</p><p>parando ao meu lado e ficando na mesma posição.</p><p>— Ele é um objeto mágico, uma das últimas heranças das fadas celestes antes delas serem</p><p>dizimadas pelos humanos. Apenas feéricos com sangue real podem atravessá-lo. Antigamente foi</p><p>usado como um portal de fuga dos rebeldes para o abrigo, mas após a paz de Salam, meu</p><p>tataravô resolveu disfarçá-lo como se fosse apenas o próprio retrato na biblioteca. É, falei muito,</p><p>desculpa.</p><p>— Como você mesma diz, relaxa! Gosto de ver as pessoas animadas contando sobre</p><p>coisas. Mas então, todo mundo sabe do quadro ou continua sendo um segredo?</p><p>— Digamos que eu descobri em uma das minhas aventuras com a minha irmã mais velha.</p><p>Estava fugindo dela quando me distraí com um dos livros voadores, perdi o equilíbrio e pronto,</p><p>me preparei para o maior tombo da minha vida. Foi uma bela surpresa quando, ao invés de</p><p>ganhar um osso quebrado por bater contra a parede, me encontrei nessa sacada com uma das</p><p>vistas mais belas do palácio.</p><p>— Interessante, Vossa Alteza. Temos alguém com segredos aqui também.</p><p>Dei um tapa nele de brincadeira, ganhando um leve empurrão de volta.</p><p>Virei o rosto para frente escondendo o sorriso bobo que teimava em querer surgir. Aquela</p><p>noite estava boa demais, não queria que acabasse. Aos poucos, e de maneira teimosa, um</p><p>sentimento tentava brotar no meu coração, algo bom, puro e belo, e eu nunca o tinha sentido até</p><p>então.</p><p>— Eu sei que a pessoa das regras é você, mas não existe nenhum perigo em estarmos a sós</p><p>aqui? — Arkyn questionou quebrando o silêncio que ficou.</p><p>— Sou tão a fada das regras que quem insistiu para deixar de usarmos termos foi você,</p><p>certo? — zombei. — Agora sobre a sua pergunta.</p><p>Ergui o dedo mostrando os dois guardas voando há poucos metros de nós.</p><p>— Além disso, também temos câmeras escondidas apontando especificamente para esse</p><p>lugar.</p><p>Aquela era uma tecnologia inspirada no mundo humano. De alguma maneira, que eu não</p><p>conseguia compreender, aqueles pequenos objetos quadrados conseguiam captar imagens e</p><p>transmiti-las para uma outra tela no escritório do Chefe da Guarda. Claro que, como não</p><p>pudemos contar com a ajuda da raça humana, também foi necessário um pouco de magia para</p><p>fazê-la funcionar.</p><p>Mas ainda sim era surreal ver uma evolução daquele nível.</p><p>— Milost’ também está estudando para implementar algumas dessas. Eu acho incrível</p><p>como o Grande Rei deu diferentes dons para cada um. Enquanto nós recebemos a magia, eles</p><p>ganharam a sabedoria da tecnologia.</p><p>— Seria mais incrível ainda se pudéssemos unir mais ainda as duas coisas, se eles não</p><p>fossem tão gananciosos em querer toda a glória para si.</p><p>— Pois é. Meu irmão Hendrick contou sobre o mundo deles, como lá é diferente das fadas,</p><p>ao mesmo tempo que tudo parece mais morto, ele disse que também existe uma energia diferente</p><p>daqui, um certo toque do Rei dado apenas a eles. Queria sentir isso também.</p><p>Há muitos milênios, após o exílio das sereias, as fadas e os humanos firmaram diversos</p><p>acordos de trocas de conhecimentos. Vivíamos todos juntos, no mesmo ambiente,</p><p>compartilhando do mesmo ar.</p><p>Até um de seus reis deixar a soberba apossar do seu ser e começar a nos perseguir.</p><p>Desde então as fadas tiveram que fugir, se escondendo em ambientes ainda não explorados</p><p>por eles, torcendo para nunca chegarem. Mas mesmo assim eles chegavam, e quando acontecia,</p><p>era luto por toda parte.</p><p>Foi um dos motivos do surgimento de um antigo tratado para dividir os reinos feéricos.</p><p>Dessa forma, caso um fosse encontrado, o outro ainda teria possibilidade de crescer e se</p><p>multiplicar.</p><p>O último reino que foi destruído havia sido o das Fadas Celestes, habilidosas artesãs</p><p>dominadoras dos antigos dons para manipular objetos. E após seu extermínio, nunca mais foi</p><p>encontrado ninguém com um poder parecido.</p><p>E também haviam lendas que diziam que o motivo de seu poder fora do normal era por</p><p>causa da magia proibida, e por isso o Grande Rei permitiu que sua localização fosse encontrada,</p><p>outros falavam que elas ficaram tão gananciosas com seu poder que foram enfrentar os humanos.</p><p>— Como é o mundo humano? Toda a história que ouço deles não termina de forma</p><p>agradável.</p><p>— Hendrick diz que eles são diferentes. Ao mesmo tempo que possuem a maldade em</p><p>níveis fora do aceitável, também existem laços únicos, um tipo de amor indescritível que os</p><p>fazem lutar apesar deles próprios. Não são tão diferentes de nós.</p><p>— Discordo, olha tudo o que fizeram a nós!</p><p>— E o que nós fazemos a nós mesmos? A maldade é intrínseca em todas as raças, não</p><p>existe ninguém cem por cento bom ou mal, porém é muito mais fácil apontar para o umbigo dos</p><p>humanos do que reconhecê-los como iguais.</p><p>Fechei a cara. Ele estava certo, os feéricos não eram flores cheirosas o tempo todo, mas</p><p>não fomos nós que começamos a guerra.</p><p>— Além disso, ele contou sobre os avanços tecnológicos. Sabia que eles deram o próprio</p><p>jeito para conseguirem voar? — O príncipe mudou para outro assunto.</p><p>— Como assim?</p><p>Arkyn começou a falar sobre um tal de avião, um objeto de metal em que os humanos</p><p>entram e os levam de um lado ao outro do mundo extremamente rápido. Também sobre outros</p><p>itens, como carros</p><p>e até mesmo um objeto portátil para assistir filmes.</p><p>— E como Hendrick não foi morto?</p><p>— Viajantes recebem o dom para se disfarçar, podem remover suas asas quando bem</p><p>entendem. — Deu de ombros como se fosse algo lógico, e devia ser mesmo, devido à</p><p>convivência com o irmão. — Ah, lembrei de mais uma coisa, você já ouviu sobre a lenda dos</p><p>olhos azuis?</p><p>Ergui a sobrancelha, incrédula, com sua pergunta. Era óbvio que conhecia, inclusive havia</p><p>comentado há poucas horas sobre isso. Eu cresci escutando que eu era amaldiçoada e seria a</p><p>destruição da minha família por causa da cor dos meus olhos, que eu estava condenada ao fogo</p><p>eterno e outros mil xingamentos que não suportava ouvir.</p><p>— Perdão, acho que a resposta é óbvia. Mas, enfim, Hendrick me contou que lá é o</p><p>contrário, pessoas com olhos azuis são consideradas as mais belas, muitos tem inveja e usam até</p><p>de meios artificiais para consegui-los.</p><p>— Impossível, isso é mentira.</p><p>— Eu lá mentiria sobre algo assim, Neridah? Quando eu falo que essa é apenas uma</p><p>superstição das fadas, é porque é verdade. Você carrega algo raro e as pessoas não sabem lidar</p><p>com isso.</p><p>Foquei meu olhar no movimento das flores ao lado do lago. Ao mesmo tempo que sentia</p><p>raiva por tudo o que sofri, também havia um certo conforto por ver Arkyn tratando como algo</p><p>tão banal, simples e sem complicações.</p><p>— Ou seja, agora tenho ainda mais inveja dos Viajantes, lá eu pelo menos poderia ser</p><p>famosa — brinquei para quebrar o clima.</p><p>Para ajudar, naquele momento passou uma corrente de ar me fazendo estremecer. Por</p><p>instinto, levei a mão aos braços. Mas antes que eu pudesse criar uma chama para nos aquecer,</p><p>senti uma capa sendo colocada em cima de mim.</p><p>— De onde você tirou isso? — O príncipe apontou para a bolsa que carregava. — Você</p><p>também está com frio, eu não preciso, posso…</p><p>— Fique tranquila, eu não estou, não quero vê-la resfriada no baile amanhã.</p><p>Se a capa não havia me aquecido o suficiente, sem dúvidas a sua fala terminou o trabalho.</p><p>Era perceptível que ele estava congelando de frio, os pelos dos braços estavam arrepiados, e</p><p>mesmo assim tentou me proteger, logo eu, uma fada do fogo.</p><p>Coloquei a mão em cima do concreto da mureta tentando aquecê-la para levar um pouco de</p><p>calor a ele. Não iria ferir o seu ato gentil para provar o quanto eu era poderosa e podia dar conta</p><p>de mim mesma.</p><p>Pelo contrário, ali eu vi como sentia falta de ser cuidada, mimada e apenas poder ser eu</p><p>mesma. A todo tempo tentava me mostrar forte as outras fadas, uma princesa sem falhas.</p><p>— Olha! — Apontei para acima das montanhas.</p><p>Em silêncio, com os ombros encostados um ao outro, ficamos observando os primeiros</p><p>raios luminosos aparecerem. Eles começaram de forma tímida, criando um belo degradê dos</p><p>mais diversos tons, mas em poucos minutos o sol já dominava todo o céu, removendo qualquer</p><p>vestígio da escuridão noturna.</p><p>— Acho que passamos um pouco do horário — Arkyn brincou.</p><p>— Talvez.</p><p>Eu não queria ir embora, e desconfiava que ele também não. Contudo, não tínhamos</p><p>escolha, dali há poucas horas iriam começar as atividades para a preparação do baile.</p><p>— Precisamos ir!</p><p>Respirando fundo, tomei a difícil iniciativa e fiz um sinal para sairmos dali. Encostei a mão</p><p>em um tijolo específico da parede, que abria uma escadaria de volta à biblioteca.</p><p>Como eu estava com a capa, caminhamos devagar e em silêncio até a porta. O guarda já</p><p>havia ido embora, e eu esperava que tivesse sido avisado pelos antigos colegas, afinal, eu fazia</p><p>muito isso quando era mais nova.</p><p>Nem eu nem Arkyn desejávamos cortar aquele momento, parecia que ao nos despedirmos,</p><p>iríamos perder o laço que havia sido construído naquela noite. Eu esperava do fundo do meu</p><p>coração que não.</p><p>— Até logo! — Fui a primeira a falar, indo para o lado do corredor destinado aos</p><p>aposentos reais.</p><p>— Até! Aliás, feliz aniversário, Neridah, que o Grande Rei te abençoe!</p><p>O príncipe fez uma reverência, me deixando plantada no chão. Com a conversa das últimas</p><p>horas, eu havia esquecido totalmente que eu estava completando vinte ciclos naquela manhã.</p><p>Apertei a capa nos ombros caminhando devagar para o meu quarto, sem conseguir tirar o</p><p>sorriso bobo do rosto ou esfriar o calor em meu peito.</p><p>P</p><p>04</p><p>ara as fadas plebeias, a idade mais importante eram os dezesseis ciclos; mas para</p><p>as fadas da realeza, os vinte era uma divisão na sua vida.</p><p>Ela passa os quatro anos estudando em colégios especializados, onde aprendem</p><p>tudo sobre a história dos continentes, deveres para a monarquia, políticas públicas e também a</p><p>sua especialização.</p><p>E então, quando completava seu vigésimo aniversário, era jogada ao mundo para exercer a</p><p>função predestinada pelo seu sangue azul.</p><p>Deslizei os dedos pelo vestido vermelho vinho, a cor de Salam. O corpete descia rente ao</p><p>corpo, aderindo ao contorno do busto, enquanto a saia abria em camadas fluidas, movimentando-</p><p>se com o vento ao redor. As mangas eram bufantes, adornadas com babados que acrescentaram</p><p>um toque romântico e gracioso. Além disso, ele também tinha tulipas bordadas por todo o tecido,</p><p>era a flor oficial de Salam.</p><p>Nas mãos e braços eu utilizava mais pulseiras e anéis do que achei que seria possível, além</p><p>de um colar de pérolas no pescoço.</p><p>Olhar para a minha imagem refletida no espelho era ver uma Neridah confiante, bem</p><p>diferente da pessoa por baixo de todas aquelas camadas de tecido, mas sim a princesa que todos</p><p>ansiavam ver.</p><p>No entanto, precisei reconhecer que a reação de apenas uma pessoa importava para mim.</p><p>Fechei os olhos, me censurando por aquele pensamento. Haviam sim sido horas muito</p><p>agradáveis ao lado de Arkyn, contudo, era apenas aquilo, não significava que evoluiria para um</p><p>romance e um futuro casamento.</p><p>— Neridah?</p><p>Estava tão perdida em meus pensamentos que só percebi a entrada de meu pai quando ele</p><p>já estava ao meu lado.</p><p>— Como você está, minha princesa?</p><p>— Nervosa — confessei, soltando o ar.</p><p>— E muito linda também. Tão bela que todos os rapazes solteiros do reino competiriam</p><p>pela sua mão. — Ele se posicionou atrás de mim no reflexo do espelho. — Porém, um passarinho</p><p>rosa me contou que talvez já exista alguém querendo esse posto.</p><p>Por alguns segundos, ou talvez minutos, meus batimentos cardíacos pararam. Do que ele</p><p>estava falando? Será que Arkyn o havia procurado para conversar sobre algo? Não era possível</p><p>ele ter tomado uma atitude daquelas sem antes falar comigo.</p><p>Tudo bem que eu era a primeira a ser a favor do rapaz ir primeiro ao meu pai pedir a minha</p><p>mão antes de se declarar, afinal, se não fosse autorizado, pelo menos eu não sairia defraudada da</p><p>situação. Contudo, foi tudo muito rápido para chegar nesse estágio.</p><p>— Do que você está falando? — questionei tentando ao máximo não ser transparente.</p><p>— Eu tinha jogado verde, mas aparentemente colhi maduro. — O sorriso de lado</p><p>denunciou que eu não consegui disfarçar. — É claro que Jon foi reportar a mim o fato de você ter</p><p>passado a madrugada conversando com o príncipe de Milost’. Não se preocupe, confio na sua fé</p><p>e sei que não fizeram nada de errado, apesar de eu também ter verificado todas as câmeras por</p><p>segurança dele não ter te machucado.</p><p>— Pai, não aconteceu nada, somos só amigos!</p><p>— Eu e sua mãe também éramos apenas amigos! — O rei Leon soltou uma piscadela em</p><p>minha direção.</p><p>Revirei os olhos, ignorando sua indireta. Eu já estava neurótica o suficiente com tudo o que</p><p>vinha sentindo em menos de vinte e quatro horas, não precisava que colocassem mais lenha na</p><p>fogueira.</p><p>— Filha, eu estou brincando, e também deixando claro que acompanho sua vida de perto</p><p>— acrescentou o final em um tom mais baixo. — Você é nova, caso escolha se casar, serei</p><p>imensamente feliz em vê-la amando e sendo amada. Contudo, se preferir passar mais tempo</p><p>servindo ao Grande Rei, não irei contrariá-la. Só quero que saiba que oro pelo seu futuro.</p><p>— O Conselho discorda disso.</p><p>— Deixa que eu lido com eles depois, sua vida é mais importante que uma lei. Aproveite</p><p>seus vinte ciclos!</p><p>Pisquei algumas vezes para não permitir que as lágrimas escapassem, não seria agradável</p><p>uma maquiagem borrada. Apenas assenti,</p><p>favoráveis. Pela janela da casa da árvore eu o via nos arredores, um vigilante atento</p><p>a qualquer intempérie. Meu coração mole se compadecia pelo pobre coitado e eu nunca me</p><p>demorava a descer. Mas naquele dia, não o vi me seguir, e pretendia ficar ali tempo suficiente até</p><p>que todos aqueles pretendentes patéticos fossem embora.</p><p>— Já perceberam minha ausência? — perguntei sondando os ânimos no palácio.</p><p>— Quando você não desceu para o café da manhã e, após encontrarem o seu quarto vazio,</p><p>o caos foi instaurado.</p><p>Encolhi ao imaginar minha mãe colocando todos os funcionários atrás de mim, meu pai</p><p>cogitando um sequestro e a coitada da Joana tentando contornar a situação.</p><p>— Você ficou muito encrencado? — perguntei com um pedido de desculpas estampado no</p><p>rosto.</p><p>— Se fiquei ou não, isso não importará depois dessa noite.</p><p>Olhei para Liam cheia de indignação, mas ele abaixou e se sentou ao meu lado no chão.</p><p>— O que está fazendo? — perguntei quando ele abriu o meu cesto e pegou um pão de mel.</p><p>— Por sua causa eu não tomei café da manhã. Estou morrendo de fome.</p><p>Um sorriso se formou em seus lábios, colorindo sua face com um tom que realçava as</p><p>sardas espalhadas pela pele alva. Seus cabelos ruivos e despenteados pelo vento minutos antes,</p><p>emolduravam um rosto com traços fortes. As bochechas rosadas, agora acaloradas pelo sorriso,</p><p>davam-lhe um ar de candura que contrastava com sua habitual fisionomia fechada, o que não</p><p>afastava seus modos corteses comigo, sempre pronto a me proteger. Era assim que eu me sentia</p><p>com Liam por perto e só havia sobrevivido àquela semana porque ele não me abandonou em</p><p>momento algum.</p><p>Ele era um homem admirável, com qualidades difíceis de encontrar. Ao contrário dos</p><p>homens que tentavam me cortejar e falavam apenas de si mesmos, enaltecendo suas qualidades</p><p>que, cá entre nós, não possuíam nenhum atrativo. Eu não queria saber em qual centro</p><p>educacional conseguiram seus diplomas ou quais eram seus títulos e o que já haviam conquistado</p><p>graças a eles.</p><p>Importava se eram homens de verdade, piedosos e tementes ao mesmo Deus que eu servia</p><p>e amava. Aquele que iria me suportar em meus piores momentos. Eu poderia ser bem</p><p>insuportável, tanto que até mesmo eu, se pudesse, tiraria um tempo de mim. Mas Liam sempre</p><p>estava lá. Eu poderia inventar qualquer peraltice, ele estaria lá para livrar a minha pele. Porém,</p><p>sua fala começava a me perturbar.</p><p>— O que você quis dizer com nada importará depois de hoje à noite?</p><p>Liam interrompeu o percurso do pão de mel até sua boca e pigarrou.</p><p>— Você não será mais a minha responsabilidade, Alteza. Estará casada muito em breve e</p><p>com um marido para protegê-la a partir de então. E daí poderei finalmente seguir os passos do</p><p>meu pai e aceitar o meu legado. Acho que já fugi demais, está na hora de assumir o posto que fui</p><p>treinado desde criança.</p><p>O observei pegar a minha xícara vazia e servir um pouco de chocolate quente para ele.</p><p>Liam era uma incógnita para mim. Filho do General do exército de Emberfall, mantinha sua vida</p><p>pessoal bem guardada apenas para si e eu já havia aprendido após uma discussão entre nós que</p><p>esse era um assunto que ele odiava mencionar. Puxei os meus joelhos em direção ao tórax e</p><p>abracei as minhas pernas.</p><p>— Você fala como se estivesse aliviado por se ver livre de mim. — Ele sorriu e levou a</p><p>xícara aos lábios, evitando responder o meu comentário. — Você também acha que eu devo me</p><p>casar com um desses homens? — perguntei, tombando a cabeça para olhar para ele.</p><p>— Você não vai querer ouvir a minha opinião, Alteza. — Ele me olhou de relance antes de</p><p>desviar o olhar para a cesta e pegar outro pão de mel.</p><p>— Acho que não vou ter para onde correr, não é? — Deduzi que ele estava evitando dizer</p><p>que concordava com meu pai. — O rei não vai me permitir, ele já elegeu os cavalheiros. —</p><p>Suspirei. — Então acho que terei que usar esse dia para avaliar a situação e, no final, seguir o</p><p>meu coração e ver no que vai dar.</p><p>— Faça isso se quiser se decepcionar.</p><p>Liam limpou a boca com um guardanapo e se levantou de repente. Eu fiz o mesmo, ficando</p><p>de frente para ele. Ele era bem mais alto que eu, fazendo-me sentir pequena e vulnerável diante</p><p>de sua imponência.</p><p>— E o que você sugere? — perguntei controlando a vontade de gritar com ele.</p><p>— Você não aprendeu nada com a Joana? — Arqueei as sobrancelhas tentando entender o</p><p>que a minha mentora e melhor amiga tinha a ver com o assunto. — Não se deve confiar em seu</p><p>coração, ainda mais em um assunto tão sério quanto esse. Acredito que o casamento está no topo</p><p>das decisões mais importantes que precisamos tomar ao longo da vida. Não dá apenas para seguir</p><p>seu próprio entendimento. Ele é perverso, deveria saber disso.</p><p>— Na teoria tudo é lindo, Liam. No entanto, como saberei a forma de agir se eu nunca me</p><p>apaixonei? Meu pai me protege como se eu fosse uma boneca de porcelana dentro daquele</p><p>castelo! Ele até já escolheu com quem eu devo me casar! Eu não sei o que fazer, como fazer…</p><p>— minha voz embargou e minha garganta travou quando quis prosseguir.</p><p>— Eu também não sei, Kat — ele abaixou seu tom de voz. — Mas, como seu amigo, posso</p><p>te ajudar a encontrar uma solução.</p><p>Levantei os olhos e encontrei os deles fixado no meu rosto. Parecia ter pena de mim e</p><p>aquilo me fez querer chorar.</p><p>— O que você sugere?</p><p>Segui para janela e passei a observar o vale coberto pela fina neblina.</p><p>— Não há outra forma se não conhecê-los. Você vai ter que baixar a guarda, despir da</p><p>armadura que vestiu desde que soube porque todos eles vieram.</p><p>— Em outras palavras, me tornar vulnerável? — perguntei cética.</p><p>— Não, porque você saberá o que está fazendo. Não estará deixando se levar pelos</p><p>galanteios.</p><p>Olhei para Liam, sem tentar esconder meus temores.</p><p>— E se eu me deixar levar? E se eu me machucar?</p><p>— Quando você perder o foco, eu estarei atento por você.</p><p>Ele disse com tanta convicção, que eu acreditei que não deveria temer, porém, esse</p><p>sentimento só durou até pisarmos outra vez no palácio.</p><p>L</p><p>02</p><p>iam guiou-me pelos corredores secretos usados pelos funcionários para evitar</p><p>serem percebidos durante o frenesi das suas tarefas. Aproveitei aquele trajeto para</p><p>clarear meus pensamentos. Meu pai havia convidado diversos cavalheiros para uma</p><p>estadia no palácio, selecionando pessoalmente aqueles que julgava mais compatíveis comigo.</p><p>Naquela manhã, ele revelou suas intenções, deixando-me atônita. Agora, restavam apenas</p><p>algumas horas para eu conhecer melhor o homem destinado a ser meu esposo, aquele que,</p><p>naquela mesma noite, no meu baile de vinte e um anos, iria me colocar um anel no dedo.</p><p>Joana se levantou da poltrona em que repousava à minha espera assim que adentrei em</p><p>meus aposentos.</p><p>— Onde vocês dois estavam? — indagou, seus olhos faiscando com um misto de fúria e</p><p>preocupação, direcionando-se a Liam.</p><p>— Eu precisava organizar meus pensamentos antes de obedecer às ordens de meu pai —</p><p>respondi por ele, tentando acalmar as tensões no ambiente.</p><p>— Você concordou com a proposta do Rei?</p><p>— E eu tenho escolha? — repliquei, seguindo sozinha para o closet com Joana, minha</p><p>mentora e confidente.</p><p>— Não. — Joana me olhou com pena. — Mas pode haver alguém entre aqueles rapazes</p><p>que seja do seu agrado — tentou infundir otimismo na situação.</p><p>— É loucura me obrigar a tomar uma decisão tão rápida assim. Ele deveria ter me avisado</p><p>há uma semana, quando todos eles chegaram aqui.</p><p>— O que pretende fazer?</p><p>— Há um dossiê de cada um deles esperando pela minha análise. — Suspirei</p><p>profundamente, uma pontada de dor surgindo no lado esquerdo da cabeça. — Preciso da sua</p><p>ajuda, Joana, e também da do Liam.</p><p>— Entendo você querer a minha ajuda, mas por que o Liam? Ele só é o seu guarda-</p><p>costas…</p><p>— Não para mim! — falei rápido demais.</p><p>Joana pareceu sondar o terreno antes de perguntar.</p><p>— Vocês…?</p><p>— Não, Joana. E fale baixo, ele pode escutar esse disparate.</p><p>— Vamos supor que ele goste de você.</p><p>Ela insinuou e eu ignorei o tom de interesse.</p><p>— Não acho que seja o caso. Liam é um amigo. Um amigo leal, cuidadoso, compassivo,</p><p>piedoso e… — Parei de repente, me dando conta que estava elencando as qualidades</p><p>com um bolo na garganta impedindo de falar qualquer</p><p>coisa.</p><p>Meu pai fez um sinal para virar de volta ao espelho, então ele foi até a capa pegando uma</p><p>caixa que eu não havia visto sendo colocada. A madeira de nogueira possuía arabescos dourados</p><p>e floridos em sua superfície, protegendo a mais antiga das tradições de Salam.</p><p>Com cuidado, ele puxou de lá um dos objetos mais valiosos do nosso reino.</p><p>Forjada em ouro reluzente, a coroa era adornada com filigranas intrincadas que remetiam</p><p>as folhas e flores, enquanto seus arcos estavam entrelaçados com ramos das árvores originárias.</p><p>Pedras preciosas incrustadas, como safiras azuis e esmeraldas verdes, capturavam a luz,</p><p>conferindo à coroa um brilho como a noite estrelada. No centro dela, repousava uma joia</p><p>também feita de safira, seus reflexos multicoloridos dançavam conforme a luz batia nela.</p><p>Cada peça era única, feita com exclusividade no nascimento da princesa que a portaria,</p><p>sendo revelada apenas no momento de colocar em sua cabeça, quando ela completasse os vinte</p><p>ciclos.</p><p>Uma das mais antigas e belas tradições de Salam.</p><p>Senti o peso dela quando meu pai a colocou gentilmente em mim. Não era ruim de</p><p>carregar, apenas diferente. Tinha o lado físico, contudo também havia a carga da</p><p>responsabilidade que aquilo significava.</p><p>Com um toque em minhas asas entendi o recado para subi-las, deixando-as à mostra. Algo</p><p>que cresci ouvindo era que uma princesa nunca perdia a postura, e essa começava com suas asas</p><p>sempre eretas.</p><p>— Pronta?</p><p>— Não. Mas vamos lá!</p><p>D0 5</p><p>a ponta do mezanino, observei o salão à procura de olhos específicos e</p><p>falhei miseravelmente. Fadas eram beneficiadas com uma excelente visão,</p><p>exceto quando nervosas, pois nessas horas não conseguíamos controlar</p><p>nossos sentimentos e todos os instintos se bagunçavam.</p><p>Eu insistiria mais uma vez na busca, até ver o sinal de minha mãe para me aproximar.</p><p>Iriam anunciar a minha chegada.</p><p>— Filha, que o Grande Rei a abençoe! — ela falou deixando um casto beijo em minha</p><p>testa. — Aproveite sua noite!</p><p>Com cuidado, ela jogou algumas gramas de pó mágico na saia do vestido para dar vida ao</p><p>tecido e que ele flutuasse conforme o meu movimento, não ficando com apenas um caimento</p><p>reto.</p><p>Deslizei o dedo pelo busto mais uma vez antes de assentir ao sacerdote, dando-lhe</p><p>permissão para me anunciar.</p><p>— Princesa Neridah Ysys Salam, filha do rei Leon e da rainha Ysys, segunda na linha de</p><p>sucessão e agora herdeira do fogo!</p><p>Foi impossível não sorrir diante do título recebido. Cada vez que um príncipe ou princesa</p><p>completava seus vinte ciclos, no baile de anúncio, ele receberia um dom de acordo com o</p><p>elemento de seu reino. Os dons podiam repetir-se, e os de Salam variavam nos mais diferentes</p><p>tipos, poderiam ser chama, calor, brasas, cinzas.</p><p>E fogo, o mais raro deles.</p><p>Fechei a mão, sentindo o calor familiar correndo ainda mais forte dentro de mim.</p><p>Ergui a cabeça, descendo em um lento voo até o centro do local. Era muito fácil deixar os</p><p>olhares me intimidarem, lembrar de quanto boa parte das fadas ali presentes me desprezavam no</p><p>dia a dia, ou ignoravam.</p><p>Mas ali eu escolhi perdoar e fazer a minha parte: viver.</p><p>Tão logo meus pés tocaram o chão, o quarteto de cordas começou a tocar, dando início ao</p><p>baile. Em poucos minutos, a pista já estava lotada de casais, ou quase, rindo e se divertindo.</p><p>Meu objetivo era me permitir apreciar sem lamentar ou invejar, contudo quando estava me</p><p>afastando à procura do meu grupo de amigas, senti um leve toque no braço.</p><p>Segurei a respiração ao ver Arkyn em seus trajes reais à minha frente. Não era a primeira</p><p>vez que o via assim, mas agora era diferente, já estava mais ciente de quem ele era por trás da</p><p>máscara de fechado.</p><p>— Alteza, me daria a honra de uma dança? — O príncipe fez uma reverência e estendeu a</p><p>mão.</p><p>Juntei meus dedos com cuidado aos dele, grata pela luva proteger do toque de nossas peles.</p><p>Embalados ao som do violino, ficamos alguns segundos em silêncio até eu resolver interromper.</p><p>— O que tínhamos conversado sobre títulos?</p><p>— Proibidos? Eu sei. Entretanto, estou em um baile, não fechado em uma biblioteca. Não</p><p>pretendo tomar nenhuma atitude antes da hora.</p><p>Ergui o rosto para tentar decifrar sua fala e encontrei olhos violetas fixos em mim. Nosso</p><p>contato visual foi interrompido quando ele me girou, foi inevitável não agradecer por aquilo.</p><p>— O que você quer dizer com isso? — questionei quando voltamos à posição normal.</p><p>— Que eu não pretendo descumprir o tempo já predestinado pelo Grande Rei, tudo se</p><p>encaminhará no momento certo.</p><p>Para a minha desolação a música acabou, interrompendo, por consequência, nosso confuso</p><p>diálogo. O príncipe fez uma reverência, depositando um beijo no dorso da minha mão antes de se</p><p>afastar.</p><p>Até teria ido atrás dele, se não fosse as normas sociais me impedindo. Eu estava no meu</p><p>baile, não poderia ignorar toda a conduta exigida para aquele momento; e tentar resolver meu</p><p>interesse amoroso não estava incluso na lista.</p><p>Me salvando em meio ao turbilhão de sentimentos, Katrina enganchou seu braço ao meu</p><p>começando a andar pelo salão devagar.</p><p>— Irmã, não consegui dizer antes, mas você está estonteante! Tenho muito orgulho de</p><p>você, Neri.</p><p>Nossas semelhanças se mantinham apenas no sangue real, em todo o resto divergimos,</p><p>fosse em personalidade, comigo sendo a estourada, e ela, a pacífica, ou nas características físicas.</p><p>Ambas tínhamos o cabelo em coque, mas os fios dela eram escuros, por pouco não se tornando</p><p>vermelhos, enquanto os meus puxavam para um rosa mais suave, e é claro nossos olhos também.</p><p>— É normal essa sensação? — questionei quando paramos perto da janela.</p><p>A noite estrelada reluzia lá fora, era o dia perfeito para comemorar aniversário.</p><p>— De estar deslocada? Sem rumo? Sim! Mas o Grande Rei vai te guiar.</p><p>— Assim espero — sussurrei baixo o bastante para ela não me ouvir.</p><p>Estava prestes a fazer mais uma pergunta sobre o futuro, até todos vermos o Livro das</p><p>Peregrinações brilhar, e aquilo só poderia significar uma coisa.</p><p>Após as vozes proféticas se calarem, o objeto passou a ser a maneira como o Grande Rei</p><p>falava aos seus sacerdotes. Ele sempre ficava em local público, para que todos pudessem ver</p><p>quando Ele chamava.</p><p>E aquele brilho era sinônimo de convocação.</p><p>Segurei o ar, vendo o velho Kadosh se posicionar em frente ao livro e aguardar. Cada vez</p><p>que um novo Viajante era chamado, seu nome era escrito pelo Grande Rei e o sacerdote</p><p>comunicava a todos os presentes.</p><p>Todos os olhos voltaram-se a ele, aguardando sua fala.</p><p>Alguns eram céticos, achavam tudo apenas uma encenação e que utilizavam de magia para</p><p>realizar a peça teatral. Mas eu não. Eu acreditava com todas as minhas forças e segurei o ar na</p><p>expectativa do que viria a seguir.</p><p>Após ler com calma, o sacerdote fechou o livro, olhou em cada parte do salão e anunciou</p><p>os nomes da noite:</p><p>— Arkyn Einar As de Milost’ e Neridah Ysys Salam!</p><p>FIM!</p><p>COMO ARRANJAR MARIDO SENDO UMA PRINCESA AMALDIÇOADA - Aline Moretho</p><p>Dedicatória</p><p>Ao Senhor, por ter dito “não” aos “príncipes encantados” que tentei escolher.</p><p>Isso me rendeu muito material para os meus enredos.</p><p>Ao meu futuro marido, se eu tiver algum. Que nossa história seja tão divertida e</p><p>clichê quanto as deste livro.</p><p>“Moça, aplique-se em obedecer ao Senhor em pureza e</p><p>santidade, e não em "garantir o seu homem". Deus tem seus</p><p>próprios planos para que você e seu esposo se conheçam. Não</p><p>precisa de sua ajuda, nem de seus conselhos.”</p><p>Elisabeth Elliot.</p><p>F</p><p>01</p><p>ui amaldiçoada.</p><p>Sim, tal como ocorreu no passado com inúmeras princesas que se viram obrigadas a</p><p>beijar sapos, dormir por cem anos ou serem mantidas em cativeiro por homens</p><p>peludos, cheguei à conclusão de que eu, Mabel, também não escapei desse destino tão trágico.</p><p>Não é engraçado que isso aconteça com quase todas as princesas e as garotinhas ainda</p><p>sonhem em ser como elas?</p><p>O fato é que nenhuma menina desejaria uma coisa dessas se estivesse na minha pele.</p><p>Modéstia a parte, minha vida — e a maldição que eu carregava — era digna de um conto</p><p>de fadas. Entretanto, ninguém jamais escreveria</p><p>minha história. Até porque é de conhecimento</p><p>geral que o tal “felizes para sempre” só acontece depois do casamento com um príncipe</p><p>encantado, cheio de pompas e muitas frescuras.</p><p>A verdade?</p><p>Não há príncipes para todo mundo e os poucos por quem você se apaixona provavelmente</p><p>acabarão casados com uma de suas belas irmãs.</p><p>Isso aconteceu comigo. Seis vezes, para ser mais exata. E a cada coração quebrado, eu</p><p>ficava dividida entre continuar esperando por um homem que não se importasse com meus</p><p>quilinhos a mais, o jeito desengonçado e os cabelos encaracolados difíceis de domar, ou me</p><p>conformar com as palavras da minha tia solteirona Morgana: eu jamais seria capaz de conquistar</p><p>um pretendente.</p><p>Meu caso era sério. Até meu pai, o Rei Magno de Saint, concordou e decidiu tomar uma</p><p>medida drástica.</p><p>— O senhor não contou para as minhas irmãs sobre a viagem, não é, papai? — perguntei</p><p>em um tom estarrecido, porém não tão alto. Eu não queria ser ouvida pelos criados de prontidão</p><p>nos acompanhando em minha última caminhada vespertina pelo jardim de tulipas do palácio,</p><p>antes de minha partida. — Não sei porque concordei com essa ideia humilhante.</p><p>Ele parou de andar e se virou em minha direção. Qualquer um que estivesse tão perto de</p><p>um homem tão alto e impotente tremeria de medo. Comigo e minhas irmãs não era assim. Nós o</p><p>respeitávamos pelo Rei justo que era, claro, porém tínhamos o privilégio de termos o seu</p><p>tratamento terno e especial.</p><p>— Humilhante? — Ele me encarou, preocupado. — O Torneio de Cortejo é um evento</p><p>milenar, Mabel. Todos os reis das sete nações pertencentes ao Grande Reino uniam seus filhos</p><p>assim. Perdeu um pouco de encanto aos olhos dos jovens da realeza, é verdade, porém continua</p><p>sendo muito útil para donzelas como você, minha filha.</p><p>— O senhor quer dizer donzelas desiludidas e desesperadas como eu? — questionei e senti</p><p>minha barriga doer. — Ah, papai, estou prestes a desistir dessa loucura. Será uma vergonha</p><p>quando descobrirem que conheci meu futuro marido em uma competição para solteirões. Se bem</p><p>que, com a minha sorte, ou volto solteira ou como babá de algum Rei velhote.</p><p>Papai deu uma risada e me entregou uma tulipa rosa muito bonita.</p><p>— Não confia em mim, Mabel? Até onde sei, ajudei quatro de suas irmãs a encontrarem</p><p>bons maridos. As outras duas, que foram precipitadas e não quiseram aceitar minhas instruções,</p><p>me mandam inúmeras cartas se queixando de seus companheiros. — Ele uniu os lábios e</p><p>acariciou meu rosto. — Não quero te ver sofrer ou se machucar, por isso decidi te ajudar.</p><p>— O senhor tem mesmo esperança que algum bom rapaz será capaz de se interessar por</p><p>mim? — perguntei, cabisbaixa e nós voltamos a caminhar, dessa vez seguindo para a área de</p><p>carruagens do palácio. Já estava quase na hora de ir. — Todos os príncipes querem as princesas</p><p>mais encantadoras. De preferência as que são magras, delicadas, conversam com os animais ou</p><p>são caçadas por serem bonitas de morrer. Eu não sou assim. Sou gordinha, vivo suja de tinta das</p><p>minhas pinturas ou terra pelos cuidados da horta medicinal. Não sou muito delicada, desconheço</p><p>limites quando o assunto é rocambole de morango e carrego o péssimo hábito de pisar no pé dos</p><p>cavalheiros quando danço com eles. Quem se casaria com uma mulher assim?</p><p>— E eu acrescentaria a essa sua lista de defeitos que você ronca quando dorme — papai</p><p>provocou e depois me lançou um olhar terno. — Já não lhe disse uma vez que se comparar a</p><p>outras mulheres não te leva a lugar algum? — Expirou e de longe vi uma de minhas criadas</p><p>auxiliando com minha bagagem. — Você é bela, sim, Mabel. Só gerei filhas belas. Nenhuma de</p><p>vocês é perfeita e todas possuem peculiaridades. Eu me alegro e amo cada uma de vocês por</p><p>isso.</p><p>Meu coração foi consolado. Papai sempre sabia o que dizer para recuperar meu ânimo</p><p>abatido.</p><p>— Perdão, papai. — Cocei o nariz. — Eu deveria confiar mais no senhor. — Suspirei. —</p><p>Seria bom se nesse torneio vergonhoso houvesse ao menos um príncipe peculiar como eu.</p><p>— Se te consola, estive presente na escolha dos candidatos. Todos eles fazem parte do</p><p>Grande Reino e qualquer um que você escolher já terá passado pelo meu crivo antes.</p><p>Aquilo era mesmo um alívio. Não deixava todo o evento menos constrangedor, porém era</p><p>bom saber que papai não estava me mandando aos lobos e se importava comigo o bastante para</p><p>cuidar dos pequenos detalhes daquele show de horrores.</p><p>Já próximos à carruagem branca e dourada que me levaria, fomos saudados por uma</p><p>pequena comitiva. Dentre eles estava Florence, minha dama de companhia. Ela se aproximou e</p><p>prestou uma reverência.</p><p>— Pronta para ir, Alteza? — sondou em um tom de voz suave.</p><p>Soltei todo o ar de uma vez e encarei papai, como se quisesse ver em seu rosto mais uma</p><p>vez que ele tinha certeza de suas escolhas sobre o meu futuro. Seu olhar era sereno e seu afeto foi</p><p>demonstrado naquele beijo que depositou em minha testa.</p><p>— Vá, querida.</p><p>Pedi sua benção também beijando sua mão.</p><p>— Não fique triste se o seu futuro genro tiver o triplo da sua idade — brinquei e estava</p><p>pronta para seguir com Florence, quando senti a mão de papai envolver meu braço. — Pois não,</p><p>papai?</p><p>O sábio Rei sorriu para mim.</p><p>— Não é nada demais. Apenas tenho um último conselho de pai para lhe dar.</p><p>— Diga.</p><p>— Caso conheça um rapaz piedoso nessa sua aventura, dê a ele o privilégio de notar quão</p><p>valiosa você é, por fora e por dentro, certo? — Ele acariciou minha pele com o polegar. — Seu</p><p>coração é como um tesouro. Não é correto entregar a localização dele a qualquer um, porém</p><p>também não há necessidade de complicar a vida de um explorador honrado, dando a ele um</p><p>mapa impossível de ser desvendado.</p><p>Fiz uma careta, sem entender bem a segunda parte. Mesmo assim, apenas concordei e lhe</p><p>dei mais um abraço antes de me unir à comitiva.</p><p>Me acomodei no assento acolchoado da carruagem na companhia de minha dama e de</p><p>Susan, minha criada pessoal. Eu queria ficar calma e confiar que tudo daria certo, segundo os</p><p>planos do meu pai, porém, foi só os cavalos começarem a trotar para que eu sentisse ânsia de</p><p>vômito.</p><p>Naquele instante de desespero, fechei meus olhos e desejei com todas as forças não</p><p>precisar passar por mais uma decepção amorosa</p><p>E</p><p>02</p><p>ra isso.</p><p>Estávamos há mais de três horas de distância do reino de Saint, seguindo rumo a</p><p>província do Reino Unificado, sem a menor chance de voltar.</p><p>Confesso que até fiz planos para desenhar as belíssimas paisagens durante o caminho,</p><p>contudo bastou ouvir minhas companheiras contarem algumas histórias horríveis sobre casais</p><p>esquisitos formados através do Torneio de Cortejo que usei dos meus conhecimentos medicinais</p><p>e preparei um chá de ervas da lua, um potente remédio contra insônia.</p><p>Apaguei tão logo que sorvi o líquido sob a desculpa de estar enjoada e, como efeito</p><p>colateral, tive um sonho bastante esquisito, onde ficava presa em uma torre, era salva por um</p><p>ogro mau-humorado e, como recompensa, papai dava minha mão a ele em casamento. Por sorte,</p><p>fui despertada com um tranco forte na carruagem antes do “pode beijar a noiva”.</p><p>Encontrei minha dama agitada e o ribombar de um trovão, me fez perceber que o mundo</p><p>desabava em água do lado de fora. Florence tentava manter as janelas de madeira fechadas e,</p><p>Susan, do lado de fora, falava com um dos cocheiros.</p><p>— O que aconteceu? — perguntei a Florence. — Alguém se machucou? — Alcancei</p><p>minha pequena maleta de emergências. Ali havia todos os itens necessários para situações de</p><p>risco, desde linha e agulha para rasgos inesperados em vestidos, a talas e artigos medicinais.</p><p>— Fomos pegos por uma tempestade. A roda da carruagem atolou no lamaçal — Florence</p><p>contou, aflita. — Ninguém se feriu, que eu saiba.</p><p>Engoli em seco e me levantei para ajudar Florence com as janelas. Eu jamais me perdoaria</p><p>se toda aquela loucura de encontrar um marido colocasse meus criados em risco.</p><p>Pouco depois, Susan surgiu alarmada e nos informou da mudança de planos. Deveríamos</p><p>deixar a carruagem com urgência e nos abrigar em uma estalagem localizada, por providência, a</p><p>alguns metros de onde havíamos atolado.</p><p>Peguei minha</p><p>maleta indispensável e fui escoltada com parte da minha comitiva às pressas</p><p>para dentro do local seguro, sem conseguir evitar me molhar ou me sujar com lama. Reparei no</p><p>caminho que aquela tempestade trouxe o verdadeiro caos para aquele vilarejo e eu esperava que</p><p>minha maldição não tivesse nada a ver com isso.</p><p>Quando entramos no estabelecimento, a dona do local nos levou ao único quarto disponível</p><p>no andar superior para que eu o dividisse com minha dama e a criada. Ali pude trocar minhas</p><p>roupas e ficar aquecida. Florence e Susan estavam apreensivas com a parada fora dos planos e</p><p>temiam que não chegássemos dentro do prazo. Eu as tranquilizei, mesmo que a ideia de</p><p>participar daquele torneio não me agradasse, e sugeri que aproveitássemos para comer e</p><p>descansar, pois tudo ocorreria no tempo devido.</p><p>O jantar seria servido em breve, mas eu estava inquieta demais no quarto para esperar</p><p>sentada como um enfeite, ainda mais com tantas pessoas em risco. Alguém poderia precisar dos</p><p>meus conhecimentos médicos.</p><p>Florence não gostou muito da minha ideia, mas me acompanhou sem contestar quando</p><p>prometi não perder o jantar.</p><p>— E não se esqueça do combinado, Alteza. É melhor que não saibam que a senhorita é</p><p>uma princesa em Saint. É o melhor para a sua segurança.</p><p>— Tudo bem, Florence. Farei isso!</p><p>Deixamos os aposentos, descemos as escadas e seguimos por um corredor que dava para a</p><p>entrada. O plano era seguir para a área de convivência, porém quando estávamos quase próximas</p><p>da porta principal, ela foi aberta de um modo bruto.</p><p>O barulho me pegou de surpresa, mas não mais do que me deparar com o responsável por</p><p>aquela entrada triunfal.</p><p>Um rapaz alto e forte. Ele era uma bagunça ambulante. Estava ofegante, ensopado, com as</p><p>roupas cobertas por lama até a altura da sua cintura e os cabelos escuros cobriam parte de sua</p><p>face.</p><p>Balancei a cabeça e estava decidida seguir meu caminho quando Susan soltou:</p><p>— Oh! Pelos céus! Ainda bem que ele está bem! Pensei que acabaria morrendo.</p><p>— E quem é ele? — questionei baixinho, sem esconder meu interesse na voz.</p><p>— É o rapaz sem juízo que estava ajudando nosso cocheiro a desatolar a carruagem. Nunca</p><p>vi um nobre se arriscar tanto para fazer o trabalho da criadagem.</p><p>Meu queixo caiu. Eu só podia ser doida, porque achei aquilo muito, muito másculo!</p><p>Perdi o interesse em muitos príncipes quando os ouvi reclamar de tarefas “indignas”,</p><p>apenas porque não eram coisa de nobre.</p><p>Eu o analisei mais uma vez e quase morri do coração quando, de repente, ele olhou para</p><p>nós e pareceu alarmado. Em seguida, colocou os braços para trás e se moveu em nossa direção.</p><p>Paralisei no lugar e, por alguma razão, fantasiei que ele falaria comigo. Isso, é claro, não</p><p>aconteceu e o belo rapaz másculo ajudador de cocheiros apenas fez uma mesura com a cabeça.</p><p>Ele estava prestes a sair quando Florence notou:</p><p>— Ei, senhor, sua mão está sangrando!</p><p>Não sei porque, mas fiquei animada em ouvir aquilo. Até segurei mais firme em minha</p><p>maleta antes de me virar para averiguar a situação.</p><p>— Está tudo bem. São feridas por conta do atrito das cordas. Fiz muita força para não</p><p>perdermos a carruagem ou os cavalos — o rapaz respondeu com um ar sério e nos mostrou uma</p><p>de suas mãos. — Aposto que nem vai deixar cicatriz.</p><p>— Mas pode ser fatal, senhor! — exclamei mais alto do que deveria e, tomada por uma</p><p>coragem repentina, dei alguns passos até estar de frente ao rapaz, sem deixar de reparar, pela</p><p>proximidade, quão lindos eram seus olhos castanhos estreitos. — Ajudo na enfermaria do palácio</p><p>e já vi ferimentos menores do que esses complicando a vida dos soldados de Saint. Alguns deles</p><p>até perderam os dedos.</p><p>Ele arregalou os olhos, alarmado e escondeu a mão.</p><p>— Não sei se é para tanto, mas confio na senhorita. Parece entender do assunto —</p><p>concordou comigo e aquilo sim me surpreendeu. — O que recomenda?</p><p>Abri minha maleta e separei alguns materiais bem úteis naquele caso.</p><p>— Talas, faixas e esse destilado feito com uvas colhidas no reino de Celestina para a</p><p>limpeza. Faça um curativo após lavar bem a região com água e sabão! — falei empolgada, já</p><p>estendendo alguns dos itens. — É bem fácil! Pode pegar.</p><p>O rapaz assentiu, parecendo confuso. Achei que estava me saindo bem naquela conversa,</p><p>até sentir a mão de Florence envolver meu cotovelo gentilmente.</p><p>— Querida, o jovem deve estar cansado. Por que não o ajuda com os curativos? — minha</p><p>dama sugeriu e isso fez o meu coração disparar. — Mabel tem a delicadeza de uma fada para</p><p>cuidar dos feridos. O senhor não sentirá nada.</p><p>Os olhos do rapaz encontraram os meus e notei que ele parecia inquieto com a situação,</p><p>assim como eu.</p><p>— Tem certeza? — Ele uniu as sobrancelhas. — Não quero incomodar a senhorita. Estou</p><p>todo sujo. E se eu sujá-la também?</p><p>— Está tudo bem, senhor. Será um prazer retribuir o favor que fez pela minha comitiva.</p><p>Não me importo com o seu estado. Sempre fico suja de terra quando trabalho na minha horta.</p><p>Ele sorriu, contido, e coçou a nuca.</p><p>— Então, se é assim, eu apreciaria receber ajuda. Isso se a dama não se incomodar em</p><p>esperar que eu troque essas roupas molhadas antes, assim não te molho também!</p><p>Admirei a preocupação dele comigo e concordei com sua proposta, pedindo que me</p><p>encontrasse na ala de convivência.</p><p>Ele saiu em direção às escadas e só então voltei a respirar tranquilamente.</p><p>O misto de emoções passou e eu arregalei meus olhos.</p><p>O que foi que eu fiz? Por que me coloquei naquela situação sabendo quão fácil eu me</p><p>encantava por rapazes?</p><p>Certo que nunca antes um nobre chamou tanto a minha atenção por sua disposição em</p><p>servir. Mesmo assim, eu não podia me iludir, já conheci muitos nobres que a princípio pareciam</p><p>seres fantásticos e, no fim das contas, não eram tão encantados assim ou não me levavam a sério</p><p>o bastante para propor um compromisso.</p><p>Oh, céus! Não era fácil ser uma princesa solteirona.</p><p>— Florence, mudei de ideia! Vou para o meu quarto — declarei, aflita, e me virei. — Você</p><p>já esteve comigo na enfermaria, sabe bem como fazer curativos. Ajude o pobre coitado no meu</p><p>lugar!</p><p>Minha dama adiantou alguns passos e colocou-se em meu caminho.</p><p>— Sei o que está fazendo e, pela primeira vez, vou me opor ao seu desejo, minha querida.</p><p>— Florence segurou uma de minhas mãos. — Se quer se casar, precisa estar disposta a conhecer</p><p>os rapazes. Ser agradável e sociável. Não pode esperar que eles te encontrem, se está tentando se</p><p>esconder.</p><p>Meus ombros caíram.</p><p>— E de que adianta, Florence? Fui amaldiçoada. Tenho certeza que vou conhecê-lo, me</p><p>apaixonar e então ele vai embora ter o seu “felizes para sempre” com outra donzela.</p><p>— É um risco. Pode ser diferente dessa vez. Não saberá se ele é bom ou ruim para o</p><p>casamento sem conhecê-lo. Precisa tentar — insistiu. — Além disso, deu para ver que ele</p><p>também é peculiar. Tem isso em comum com a senhorita, com todo o respeito.</p><p>Perfeito!</p><p>Para se casar comigo, só sendo doido como eu.</p><p>— Tudo bem. Já tive meu coração partido tantas vezes que ele está calejado. Tenho certeza</p><p>que não doerá se o quebrarem novamente.</p><p>Florence uniu os lábios em uma linha fina.</p><p>— Eu tenho um bom pressentimento desta vez.</p><p>Fiz uma careta.</p><p>Eu não estava tão segura assim.</p><p>S</p><p>03</p><p>entada em uma cadeira de balanço velha, próxima à lareira, tive uma crise de</p><p>nervos, enquanto esperava pelo rapaz em um espaço mais reservado da ala de</p><p>convivência.</p><p>Eu tive muitas dúvidas e receios, ainda que não estivesse fazendo nada além de oferecer</p><p>cuidados a alguém que se machucou após ajudar minha comitiva. Precisei repetir o conselho</p><p>sábio de Florence em minha cabeça: conhecer pretendentes era sempre um risco, porém, se meu</p><p>desejo era o casamento, eu deveria tentar.</p><p>Tomei ar e contei até dez. Já estava até pensando em preparar um chá calmante ou fugir</p><p>dali quando o vi outra vez.</p><p>Meu queixo caiu.</p><p>Ele não parecia apenas ter trocado de roupas, pois havia se transformado de modo radical.</p><p>O cabelo agora estava alinhado, ele usava uma camisa branca limpa, um colete de couro preto e</p><p>calça e botas da mesma cor. Estava ainda mais bonito, como um verdadeiro príncipe encantado,</p><p>mas não sei se isso me agradou muito.</p><p>Assim que me avistou, o rapaz acenou com a cabeça e cruzou toda a ala, desviando dos</p><p>hóspedes, até chegar onde eu estava.</p><p>Me levantei para recebê-lo e fiz uma mesura.</p><p>— Está diferente, senhor — comentei, me esforçando para não denunciar a decepção em</p><p>meu tom de voz. — Parece outra pessoa.</p><p>Ele coçou a cabeça e abriu o primeiro botão da gola da camisa para aliviar o aperto em seu</p><p>pescoço.</p><p>— Perdão pela demora, meu escudeiro insistiu que eu não me apresentasse à senhorita</p><p>naquele estado e me obrigou a tomar um banho — contou rápido e em seguida sorriu nervoso. —</p><p>Devo ter passado a impressão de ser um porco, porém tomo banhos com frequência. Só me</p><p>incomodei, pois não queria deixá-la esperando.</p><p>Uh!</p><p>Que diferente!</p><p>Curioso!</p><p>Eu apontei a cadeira, pedindo a ele que se assentasse.</p><p>— Não te achei um porco — confessei e após vê-lo sentar, tomei uma das mantas e,</p><p>pedindo licença, a coloquei em seus ombros. — Serei eternamente grata por sua ajuda ao meu</p><p>cocheiro, mesmo não sabendo o seu nome ou de onde veio.</p><p>— Me chamo Tae-Lyon, mas os íntimos me chamam de Tae. Sou do reino-porto de Kor.</p><p>— Estendeu a mão e, quando se lembrou das feridas, recolheu com pressa, ficando sem graça. —</p><p>E a senhorita se chama Mabel, certo?</p><p>Não acreditei que ele lembrou meu nome.</p><p>— Sim. Mabel, do reino de Saint.</p><p>— Mabel, reino de Saint, nobre, trabalha na enfermaria — ele repetiu as informações e</p><p>encarou meu rosto, o que me deixou bastante ansiosa. — Vou anotar essas informações. Não</p><p>posso me esquecer do dia em que quase morri e testemunhei uma mulher nobre se oferecendo</p><p>para tratar minhas feridas quando eu ainda estava sujo de lama.</p><p>Minhas bochechas queimaram e eu fiquei com medo de estar vermelha como tomate, por</p><p>isso dei uma risadinha, disfarcei e fui ao trabalho. Trouxe a maleta para perto e me sentei na</p><p>cadeira ao lado dele.</p><p>Com a proximidade, pude sentir o aroma do sabão de limão emanando dele, bem como o</p><p>nervosismo que o fazia balançar as pernas sem parar.</p><p>— Está com medo? — Estendi um pano em meu colo e pedi com um sinal para que ele me</p><p>desse sua mão. Notei sua relutância. — Pode ficar tranquilo, minha dama falou a verdade quando</p><p>afirmou que sou delicada. Não doerá nada.</p><p>— Não é isso, senhorita. — Ele umedeceu os lábios e olhou para os lados, como se</p><p>estivesse procurando algo. — Sou corajoso para esse tipo de experiência, garanto.</p><p>Pisquei algumas vezes, sem entender o que havia de errado com ele. Será que era algum</p><p>tipo de fugitivo?</p><p>— Bem, não precisa me provar nada, e sentir um pouquinho de medo dos médicos é</p><p>normal. — Reforcei meu sinal, pedindo a ele que colocasse a mão ali. — Confie nas minhas</p><p>capacidades.</p><p>— Não duvido das suas habilidades, senhorita Mabel. — Ele prendeu o ar por alguns</p><p>segundos. — É que tenho um problema. Algo constrangedor que pode fazê-la fugir correndo</p><p>daqui.</p><p>Fiz uma careta e não entendi bulhufas. Será que aquele meu sonho com o ogro era um sinal</p><p>para me alertar que eu encontraria uma criatura mística? E se ele fosse metade homem e metade</p><p>sapo-cururu? Já ouvi lendas assim.</p><p>Era só o que me faltava.</p><p>— Eu não me assusto fácil — confessei com uma voz trêmula que, talvez, desmentisse</p><p>minha coragem.</p><p>Ele mordeu o lábio e se aproximou.</p><p>— Nem se eu te contasse que sou amaldiçoado? — sussurrou, e eu, óbvio, levei um susto.</p><p>Ele também?</p><p>— Quem o amaldiçoou? — questionei, preocupada, e ainda considerando minha teoria do</p><p>Homem-Cururu.</p><p>— Veja — pediu e logo depois, em uma atitude suspeita, o rapaz, que eu antes considerava</p><p>normal, enfim me entregou sua mão esquerda.</p><p>A princípio não compreendi sua atitude, mas foi só olhar para os seus dedos para que eu</p><p>reparasse em um pequeno detalhe.</p><p>Onde o dedo anelar foi parar?</p><p>— Na minha cultura, os mais velhos afirmam que os homens amputados na guerra são</p><p>amaldiçoados e perdem sua força masculina. — Ele fez uma careta e em seguida deu uma risada</p><p>desconfortável, quebrando o clima tenso. — Ou seja, também sou visto como amaldiçoado.</p><p>Que crença cruel!</p><p>— Então, mesmo se o homem perder a perna depois de se sacrificar por cinquenta</p><p>criancinhas, ainda assim, será visto como amaldiçoado? — questionei, em choque.</p><p>— Ele seria honrado pelo rei e ganharia muitas recompensas, porém ainda seria mal visto</p><p>por um grupo específico de pessoas — lamentou. — É triste.</p><p>Me compadeci da situação e observei a mão dele, me perguntando que tipo de ato heroico</p><p>o havia levado ao destino cruel de ser mal visto em meio ao seu povo.</p><p>— Perdeu seu dedo em alguma guerra também? — sondei.</p><p>Ele fez uma careta e negou com a cabeça.</p><p>— Seria mais honroso, não é? — Ele suspirou. — Mas, não. No meu caso, eu mesmo me</p><p>amaldiçoei porque era um pestinha. Segui meu irmão durante uma caçada, sem autorização do</p><p>meu pai. E querendo provar que também era útil, resolvi montar uma armadilha, mesmo sem</p><p>saber direito. Fiquei impaciente porque não consegui atrair nenhum coelho e suspeitei que tinha</p><p>montado errado. Por isso, decidi testar usando o dedo que eu considerava mais inútil. Por</p><p>castigo, acabei ficando sem ele, mas aprendi minha lição.</p><p>Fiz uma careta e tentei permanecer séria diante daqueles fatos, porém o bom-humor dele</p><p>em contar aquela história me fez rir.</p><p>— Não ria, senhorita. — Ele pediu em tom de brincadeira. — Depois disso descobri da</p><p>pior forma que nunca conseguirei me casar com as mulheres do meu reino, pois elas ainda</p><p>acreditam piamente nessa história de força masculina.</p><p>— Está brincando! Por conta de um dedo o senhor não poderá se casar?</p><p>— Isso depende. — Suspirou. — Há anos, venho tentando provar que meu dedo, ou a falta</p><p>dele, não me faz menos homem. Porém, já fui dispensado por todas as pretendentes a quem meu</p><p>pai me apresentou para iniciar o cortejo.</p><p>— E fala isso com tanta naturalidade. Não se sente mal? — Ergui uma sobrancelha.</p><p>Fiquei tão entretida com os relatos dele que me esqueci da razão porque fui chamada ali.</p><p>Com cautela, usei alguns tecidos e o destilado de uva para, enfim, começar a limpar a ferida.</p><p>Tae mordeu o lábio com a dor da ardência e eu pedi desculpa.</p><p>— Na verdade, eu nem me preocupava com isso — ele respondeu após eu concluir minha</p><p>tarefa de higienizar. — Quando estourou uma guerra nas terras além dos limites do Grande</p><p>Reino, fui designado pelo rei como Resgatador para buscar refugiados. Fiquei fora por alguns</p><p>anos.</p><p>Aquilo me impressionou.</p><p>Eu nunca estive tão longe do meu próprio reino como estava naquele momento e ele viajou</p><p>para o outro lado do mundo? Que incrível!</p><p>— E o que mudou? — perguntei enquanto preparava um emplastro de sálvia.</p><p>Ele fez alguns segundos de silêncio e isso me obrigou a contemplá-lo. Seu semblante ficou</p><p>bem triste.</p><p>— Meu irmão faleceu e eu precisei assumir o posto dele — revelou em um tom de voz</p><p>desanimado. — O posto dele exige que eu tenha uma esposa virtuosa.</p><p>Eu não estava esperando ouvi-lo compartilhar algo pessoal no meio de uma conversa tão</p><p>descontraída e agradável.</p><p>— Sinto muito. — Usei o momento de espalhar o emplastro como uma desculpa para tocar</p><p>com mais firmeza em seus dedos, tentando lhe dar algum consolo. — Pelo seu irmão, por ter</p><p>perdido o dedo e por seu fracasso em conseguir uma esposa.</p><p>Tae agradeceu.</p><p>— Ainda não desisti por completo. Só das mulheres do meu reino e do meu dedo perdido</p><p>— confessou baixinho e, após expirar, deu um sorriso, em uma tentativa de recuperar o tom</p><p>animado de nossa conversa. — Agora recebi a missão do meu pai de ir buscar uma esposa fora</p><p>de Kor. Pode ser qualquer moça, desde que faça parte do Grande Reino.</p><p>Meu coração disparou. O fato de ele pertencer ao reino de Kor já era um bom indício sobre</p><p>o seu caráter, agora ter sido um Resgatador e ser alguém que se preocupava em casar apenas com</p><p>moças do Grande Reino, aumentaram ainda mais meu apreço por ele.</p><p>— Perdão. Acabei falando mais de mim do que deveria — ele disse quando eu já enfaixava</p><p>sua mão. — Quero saber mais da senhorita que me ouviu tagarelar tão pacientemente.</p><p>Balancei os ombros.</p><p>Que comentário estranho o dele. Por que gostaria de saber mais sobre mim?</p><p>— Não há muito o que saber, Tae</p><p>— respondi, tímida. — Sou bem sem graça. Digo, não</p><p>tenho nenhuma história mirabolante como o senhor.</p><p>— Discordo. — Ele estreitou os olhos. — Com toda certeza, despertou minha curiosidade.</p><p>Pisquei várias vezes.</p><p>— Eu? Euzinha? Despertei sua curiosidade?</p><p>— Por que o espanto? — Tae rebateu, preocupado. — Há algo errado com a senhorita?</p><p>Perdeu algum dedo, por acaso?</p><p>Neguei em meio a um sorriso e lhe mostrei minhas mãos.</p><p>— Estão todos os dez aqui. — Olhei para baixo. — Como disse, não há nada demais em</p><p>mim. Passe mais algum tempo ao meu lado e verá que eu não sou tão interessante, comparada a</p><p>outras moças.</p><p>Ele recolheu a primeira mão tratada e depois me ofereceu a outra para que eu fizesse o</p><p>mesmo processo.</p><p>— Hum! Disso eu duvido.</p><p>— Duvida?</p><p>— Não me entenda mal, mas desde o primeiro momento em que a vi, reparei em como é</p><p>diferente de outras donzelas do Grande Reino — respondeu. — Há algo incomum na senhorita.</p><p>Já ouvi aquelas palavras antes. Primeiro, os príncipes me achavam diferente, contudo o</p><p>encanto logo era direcionado para aquelas com grande beleza, delicadeza ou traquejo social;</p><p>atributos normais em outras moças, mas que eu não possuía.</p><p>— É mais introvertida do que imaginei — ele comentou invadindo meus pensamentos. —</p><p>Bem, antes de entrar nessa sala perguntei a seu respeito a sua dama de companhia e ela me</p><p>contou alguns fatos sobre sua personalidade.</p><p>Fiquei em choque e, no mesmo momento, cogitei se Florence revelaria informações</p><p>comprometedoras. Boa parte de mim cria que não, mas uma pequena parcela temeu a</p><p>possibilidade.</p><p>— Ela não mencionou nada sobre a minha maldição, não é? — Cocei a nuca e, quando o</p><p>encarei, reparei que se assustou.</p><p>— Não. Ela me contou sobre seu amor incondicional por rocambole de morango, sua</p><p>imensa coleção de livros e a habilidade em tocar harpa, meu instrumento favorito — explicou,</p><p>franzindo o cenho, e eu acelerei o meu processo com o curativo. — Maldição?</p><p>Minhas bochechas queimaram.</p><p>— O senhor não vai querer saber. É vergonhoso demais. — Tossi e percebi que trazer</p><p>aquele assunto à tona me lembrou quão dolorosas foram as minhas experiências amorosas. Por</p><p>mais calejado que o meu coração estivesse, eu não queria passar por mais uma ferida.</p><p>— Pior do que ser rejeitado por não ter um dedo?</p><p>Reuni meus materiais na bolsa com toda a pressa.</p><p>— Muito mais.</p><p>O que eu estava fazendo? Me abrindo com tanta facilidade aos encantos de um rapaz só</p><p>porque ele me revelou que não tinha um dedo?</p><p>Balancei a cabeça.</p><p>Eu sabia que não poderia ficar ali.</p><p>— Meu trabalho aqui está feito, Sr. Tae-Lyon. — Sorri. — Nos vemos por aí.</p><p>E, como uma covarde, eu o deixei.</p><p>F</p><p>04</p><p>lorence não entendeu quando deixei Tae para trás e pedi a ela que retornássemos</p><p>ao quarto.</p><p>Ela quis me perguntar sobre o que havia acontecido, por medo de o rapaz ter me</p><p>ofendido, porém pedi a ela que me desse algum tempo em silêncio para organizar meus</p><p>pensamentos e tentar desvendar os mistérios do meu coração.</p><p>Me senti mal por ter julgado que minha dama, sempre tão disposta a me ajudar com os</p><p>rapazes ou consolar quando eu me feria, contaria a qualquer um sobre minha maldição.</p><p>Se eu tivesse confiado em Florence, não teria revelado a Tae aquele fato tão constrangedor</p><p>sobre mim.</p><p>Respirei fundo.</p><p>Qual era o meu problema? Estraguei tudo.</p><p>Chateada, eu nem quis jantar. Apenas dei boa noite a todos e fui me deitar, mesmo que</p><p>estivesse ansiosa demais para pegar no sono ou fazer outra coisa além de ficar rolando de um</p><p>lado ao outro na cama.</p><p>Quem dormiria direito depois de ter conhecido o rapaz mais incrível, gentil, engraçado e</p><p>fofo do mundo?</p><p>Toda a minha conversa com o Tae ficou se repetindo em minha mente. A cada detalhe</p><p>lembrado, eu ficava mais encantada com um aspecto de sua personalidade.</p><p>Oh, céus!</p><p>Eu nem dei a ele a chance de me ouvir.</p><p>Fechei meus olhos e dessa vez recordei do conselho esquisito do papai sobre não complicar</p><p>a vida de um rapaz honrado, caso ele quisesse me conhecer e todo aquele papo de tesouros</p><p>escondidos e exploradores determinados.</p><p>Agora era tarde demais.</p><p>Muito provavelmente Tae partiria na manhã seguinte bem cedinho e eu nunca mais o veria.</p><p>Muito bem, Mabel!</p><p>Que bela contribuição você deu ao seu grande sonho de casar!</p><p>Será que havia esperança?</p><p>Florence, certa vez, me fez perceber que fazer um pouco de “charme” e não bancar a</p><p>desesperada podia deixar um rapaz ainda mais interessado.</p><p>Naquele momento, eu não tinha certeza alguma sobre Tae, exceto por aquilo que ele havia</p><p>mencionado.</p><p>Só o tempo diria.</p><p>Depois de tanto pensar em quão complicado era fazer escolhas certas naquela fase da</p><p>minha vida, acabei caindo no sono, dessa vez sem sonhos fantásticos.</p><p>Na manhã seguinte, a primeira visão que tive ao abrir os olhos foi da minha dama me</p><p>olhando com um sorriso que, de tão aberto, chegava a ser assustador, enquanto segurava uma</p><p>bandeja de prata contendo nada além de um papel.</p><p>— Ai, que susto, Florence! — Toquei meu peito, sentindo o coração acelerado. — Que</p><p>refeição matinal diferenciada é essa? Não me lembro de ter começado alguma dieta nova para</p><p>perder peso.</p><p>— Tenho algo para a senhorita — ela cantarolou, e eu, não sendo uma pessoa muito</p><p>matinal, apenas bocejei. — Seu café da manhã te espera lá embaixo, na companhia de certo</p><p>rapaz.</p><p>Arregalei os olhos e as bochechas mais uma vez ficaram quentes.</p><p>Sem demora, peguei o papelzinho, desdobrei e li:</p><p>“Querida Mabel,</p><p>Devo minhas sinceras desculpas por tê-la ofendido na noite de ontem.</p><p>Sua presença encantadora e simpatia me deixaram à vontade, como se eu estivesse</p><p>passando as horas mais especiais ao lado de uma amiga de longa data.</p><p>Reconheço que passei dos limites com minhas perguntas, porém mantenho meu desejo de</p><p>conhecê-la.</p><p>Caso me perdoe por tê-la incomodado com minha falta de bom senso e cavalheirismo,</p><p>queira se unir a mim para o desjejum ou passeie comigo antes da minha partida pela tarde.</p><p>Com devoção,</p><p>Tae-Lyon, do reino de Kor.</p><p>Abri um largo e esperançoso sorriso, sem nem me importar com o fato de Tae ter sido um</p><p>pouco mais formal naquela carta em comparação a nossa interação no dia anterior.</p><p>Quanto ao conteúdo, também me senti mal por ter deixado tão claro que fiquei incomodada</p><p>com o rumo da nossa conversa. Cheguei a fazer uma revisão mental de todas as minhas atitudes e</p><p>acabei concluindo que eu, mesmo com um bom motivo, fui uma pessoa desagradável e era um</p><p>milagre que ele ainda estivesse disposto a insistir, me convidando para uma refeição matinal.</p><p>— E então? Vai se arrumar ou deixar o rapaz esperando? — Florence questionou tão</p><p>animada quanto criança comendo doce.</p><p>— Está mesmo torcendo para que algo aconteça entre Tae e eu? — averiguei, sem entender</p><p>porque minha dama parecia tão a favor daquele rapaz.</p><p>— É um moço agradável, mostrou interesse na senhorita e, sobretudo, todos que o</p><p>conhecem dão um bom testemunho a seu respeito. Mandei que Susan fosse atrás dos membros de</p><p>sua comitiva e todos foram unânimes quanto ao bom caráter e a fidelidade dele ao Grande Reino</p><p>— explicou. — Não há porque não gostar dele.</p><p>— Não acha que seria precipitado corresponder? — ponderei. — Digo, eu ainda nem</p><p>cheguei ao tal Torneio de Cortejo e já estou a um fio de me apaixonar.</p><p>Florence deixou a bandeja de lado, pegou alguns produtos e veio cuidar dos meus cachos</p><p>volumosos.</p><p>— O amor no tempo certo é uma caixinha de surpresas, não uma receita de rocambole. Te</p><p>conhecendo bem, talvez você nem se daria ao trabalho de ouvir o rapaz, caso o conhecesse em</p><p>uma competição para solteiros. — Ela expirou. — Além disso, já pensou que o desejo do seu pai</p><p>com o Torneio de Cortejo talvez fosse apenas te forçar a deixar o conforto do Palácio de Saint</p><p>para conhecer outros rapazes, além dos príncipes engomadinhos que te rejeitaram?</p><p>— É, você tem um ponto — refleti, encabulada.</p><p>— Agora, princesa, darei um último conselho. — Ela segurou em meus ombros e eu prestei</p><p>muita atenção. — Mantenha a calma! Tente se preocupar apenas em se tornar amiga dele, não</p><p>em ouvir um pedido de casamento. Faça uma amizade com a intenção de conhecê-lo melhor.</p><p>Essa é sua missão.</p><p>Concordei.</p><p>Ela estava certa. Se eu enxergasse Tae, antes de tudo, como um amigo, seria</p><p>mais fácil não surtar a cada palavra dita por ele.</p><p>Amizade intencional, certo.</p><p>Depois de escolher um vestido verde oliva florido, colocar os sapatos e os adereços de</p><p>cabelo, deixei o quarto com Florence. Dessa vez eu estava disposta a ser mais aberta e sociável,</p><p>com o objetivo de conquistar sua amizade, não o seu coração.</p><p>Pensei que minha dama me conduziria até a ala de refeições, porém, ao invés disso, ela</p><p>desviou no meio do caminho e nós fomos parar na cozinha. Perguntei a Florence o que aquilo</p><p>significava, porém ela se recusou a explicar, apenas avisou que era uma ideia do Tae.</p><p>Quando passamos pelas portas duplas, eu me impressionei ao encontrar o rapaz auxiliando</p><p>uma senhorinha, a cozinheira, a cortar cebolas. Florence me pediu para ir até ele sozinha e avisou</p><p>que também estaria ali dando suporte de longe, tal como fez no dia anterior.</p><p>Me aproximei meio acanhada e sorri ao notar que Tae secava os olhos.</p><p>— Não precisa chorar, Tae. Nosso mal entendido foi resolvido com suas palavras</p><p>eloquentes naquele bilhete — brinquei chegando de surpresa e ele tomou um susto quase</p><p>acertando um de seus dedos com a faca. — Cuidado!</p><p>— Mabel, você veio! — ele pronunciou em meio a um sorriso contido. — Fiquei tão feliz</p><p>agora que não ligaria de perder outro dedo.</p><p>Preocupada, me aproximei da bancada de madeira, retirei a faca das mãos dele e dei uma</p><p>espiada, a fim de checar se a mão havia se recuperado. Ele já não usava curativo e não havia</p><p>marcas ou cicatrizes. Estava perfeito, ainda sem um dedo, mas perfeito. Esse era o poder dos</p><p>remédios produzidos pela minha horta medicinal.</p><p>— É melhor nem brincar com uma coisa dessas. Posso cortar em seu lugar. Não quero que</p><p>as mulheres do seu reino te expulsem de lá.</p><p>Ele estreitou os olhos para mim, negou minha oferta e voltou a pegar a faca.</p><p>— Caso me expulsassem, haveria espaço para um solteirão como eu no reino de Saint?</p><p>— O senhor se daria muito bem lá. Há mulheres solteiras de sobra. Tenho certeza de que</p><p>conseguiria uma esposa nos primeiros dias, ainda mais tendo alguma proximidade comigo —</p><p>comentei com um ar melancólico. Mal sabia Tae o quanto minha maldição poderia ser</p><p>abençoadora para os rapazes por quem eu me interessava. — E então, posso saber por que</p><p>estamos aqui?</p><p>— Bem, porque, além de agradecer pelo atendimento médico e me retratar com a senhorita</p><p>pelos meus modos, eu também queria te mostrar meu dom oculto. — Fez uma careta e com mais</p><p>cuidado agora, voltou a cortar as cebolas. — Mais cedo subornei a cozinheira para que me</p><p>deixasse utilizar esse espaço, pois queria preparar algo para uma garota especial. Ela permitiu</p><p>com a condição de que eu a ajudasse. Como já havia alguém lavando a louça, me prontifiquei em</p><p>cortar todas essas cebolas, com cuidado, claro. Já chorei como um condenado, porém valeu a</p><p>pena. Minha surpresa está pronta.</p><p>— Não precisava fazer nada para se retratar, Tae. Fui eu quem exagerei em minhas reações</p><p>— expliquei, arrependida, e evitei olhar o rosto dele. — Eu não deveria ter saído daquela forma.</p><p>Peço perdão.</p><p>Ele deu uma risadinha.</p><p>— Confesso que o fato de vê-la sair correndo perto da meia-noite, após mencionar uma</p><p>maldição, me fez cogitar a possibilidade de a senhorita se transformar em alguma criatura</p><p>mágica, como uma fada ou um unicórnio. — Apoiou as mãos na bancada, agora sem medo de</p><p>mostrar seu defeito. — Não que eu acredite nessas coisas.</p><p>Sorri de forma tensa e ajustei meu vestido. Trazer a tal maldição à tona me deixou ansiosa,</p><p>mas também me fez encarar o fato de que eu precisava esclarecer a verdade o quanto antes.</p><p>— Se fosse algo assim, eu estaria mais para um cúpido. — Mordi o canto interno da boca.</p><p>— Essa é minha maldição. Vivo à sombra do “felizes para sempre” de pretendentes que me</p><p>rejeitaram porque escolheram outras moças, sendo minhas irmãs a maioria delas.</p><p>— Nossa! — exclamou e eu o encarei a tempo de ver seu semblante assustado. — E quem</p><p>te amaldiçoou?</p><p>— Tudo começou com minha tia solteirona, Morgana — contei e cruzei os braços,</p><p>tentando esconder quão vulnerável eu me sentia com aquele assunto. — É costume do meu povo</p><p>que as meninas da família, ao nascerem, recebam uma visita da mulher mais velha da família</p><p>para serem abençoadas. Todas as minhas seis irmãs foram visitadas por nossas madrinhas</p><p>queridas, Tinker e Bell, duas excelentes casamenteiras. Quando nasci, porém, elas contraíram a</p><p>Doença do Esquilo Raivoso e ficaram indispostas para virem me abençoar. Mesmo assim, para</p><p>não deixar o costume morrer, Tia Morgana, com sua boa vontade, veio no lugar delas e, ao invés</p><p>de bênção, pronunciou:</p><p>“Doce Mabel, não tão bela de se olhar</p><p>Como sua tia, quero muito te abençoar,</p><p>Mas com seu rosto esquisito,</p><p>Nenhum pretendente irá conquistar”.</p><p>Tae abriu a boca algumas vezes, mas nada disse naquele momento. Talvez estivesse</p><p>chocado demais.</p><p>— Anos depois a maldição fez efeito e minha vida amorosa se resumiu a fracassos. —</p><p>Suspirei. — Vergonhoso, né?</p><p>Ele balançou a cabeça e me encarou, indignado</p><p>— Com todo respeito, mas não sei como uma moça tão inteligente como a senhorita pôde</p><p>dar ouvidos a palavras tão sem sentido.</p><p>Contemplei a face dele e ergui minhas sobrancelhas.</p><p>— Ora, você me entende e sabe bem como uma maldição pode atrapalhar nossos planos ou</p><p>sonhos. Minha tia repete essa maldição sempre que me vê, por isso acreditei que ela estava certa.</p><p>A postura dele ficou mais rígida.</p><p>— Minha maldição não atrapalhou meus planos, Mabel, apenas me mostrou quão</p><p>superficial pode ser o julgamento de algumas mulheres quando encontram algum rapaz que não é</p><p>perfeito, ainda que se esforce para ser melhor a cada dia — ele rebateu, mantendo um tom gentil.</p><p>— No seu caso, acredito que sua maldição é criar barreiras por acreditar que, de fato, não</p><p>conquistará nenhum rapaz, graças a sua aparência. Estou errado?</p><p>— Não está. Essa é a verdade.</p><p>— É o que você acredita, mas não são os fatos.</p><p>— Tae, as moças te julgaram por não ter um dedo, acha que os rapazes não me julgariam</p><p>por ser assim? — Apontei para o meu rosto e corpo.</p><p>— Assim como? — Ele semicerrou os olhos.</p><p>— Assim, como você está vendo — respondi e senti as bochechas arderem com o modo</p><p>como ele ficou me encarando. — Não sou bonita, falo bobagens demais quando estou nervosa e</p><p>sou tão interessante quanto uma batata.</p><p>Ele bufou.</p><p>— Vou te mostrar como eu a vejo — declarou e me entregou uma cebola.</p><p>Fiz uma careta.</p><p>Ele me via como uma cebola? Por quê? Será que me achava fedorenta e cheia de camadas?</p><p>Isso me deixou bastante chocada.</p><p>— Segure essa cebola, volto em um instante.</p><p>Assim que ele saiu, soltei um suspiro de alívio, esperando que não voltasse trazendo outra</p><p>comida peculiar, como um queijo parmesão.</p><p>Sendo mais surpreendente do que imaginei, Tae retornou alguns minutos depois segurando</p><p>um prato contendo algo que eu amava.</p><p>— Rocambole de morango!</p><p>— E não qualquer rocambole de morango, mas um feito pelas mãos de um cozinheiro</p><p>talentoso, vulgo, eu mesmo. É a minha obra-prima!</p><p>Ele colocou a sobremesa na bancada e encheu meus olhos com a beleza daquela iguaria. A</p><p>massa era fofa e delicadamente enrolada em torno de um recheio generoso de creme e morangos</p><p>frescos. Por fora, havia uma fina camada de açúcar e mais morangos. Fiquei salivando, ansiosa</p><p>para experimentar.</p><p>— É assim que eu a vejo, Mabel.</p><p>Uni as sobrancelhas.</p><p>— Fofinha e meio azeda como um rocambole?</p><p>— Não. — Tae riu. — É agradável aos olhos e sua presença é doce e leve. Assim como o</p><p>rocambole tem suas camadas, a senhorita também se revela aos poucos. Cada parte é única e</p><p>encantadora. À medida que vou descobrindo algo sobre a senhorita, desejo tê-la conhecido antes</p><p>ou ter mais tempo ao seu lado para te ouvir falar mais e descobrir mais camadas. — Ele cortou</p><p>um pedaço do doce e me entregou uma colher. — Ainda assim, sabe de uma coisa? Minha</p><p>opinião não importa muito.</p><p>Meu coração batia tão acelerado, como se eu estivesse em uma competição de dança.</p><p>Ninguém nunca havia me falado palavras tão belas.</p><p>— Não? — sussurrei.</p><p>— Não. Posso tecer mil</p><p>elogios e a senhorita continuar se vendo como uma garota feia e</p><p>sem graça, o que é uma mentira. Uma mentira que te forçaram a engolir e a senhorita não apenas</p><p>acreditou, como também tem vivido como se essa fosse a verdade, mas não é — declarou sério.</p><p>— Seus pretendentes apenas te rejeitaram porque não eram os homens certos. — Ele uniu os</p><p>lábios. — Se eu fosse o homem certo, ou tivesse uma filha que estivesse passando por dilemas</p><p>semelhantes aos seus, diria a ela para repetir a si mesma todos os dias: “Sou mais bela que o</p><p>rocambole de morango do Tae”.</p><p>Tola como eu era, senti meus olhos marejarem.</p><p>— Meu pai sempre me diz palavras assim, porém sempre acreditei que fazia isso por sua</p><p>obrigação paterna de consolar sua única filha solteira. — Ergui a cabeça e enxuguei o canto do</p><p>olho. — Obrigada pelos conselhos.</p><p>— Seu pai a conhece bem mais do que eu. Se estamos alinhados nos conselhos, então, por</p><p>favor, acredite em nós. — Ele tocou em minha mão e isso fez meu coração acelerar uma vez. —</p><p>Eu não compararia qualquer moça a uma das minhas obras-primas.</p><p>Abri um sorriso e, sem perder mais tempo, dei uma colherada no tal rocambole, já de cara</p><p>sentindo o aroma doce e fresco dos morangos. A primeira mordida foi recheada de uma explosão</p><p>de sabores em minha boca. A textura macia e fofinha da massa se misturava com o recheio</p><p>cremoso frutado. O perfeito equilíbrio entre a doçura da massa e a acidez daquelas frutinhas</p><p>deliciosas.</p><p>— Bendito rocambole! — exprimi e fechei os olhos, apreciando aqueles sabores. — Oh,</p><p>Tae! Como aprendeu a fazer algo tão maravilhoso assim? As cozinheiras do palácio me perdoem,</p><p>mas nunca experimentei nada igual.</p><p>— Minha mãe gostava de cozinhar para a nossa família, mesmo com toda a criadagem à</p><p>nossa disposição. Eu gostava de observá-lá na cozinha, era quase como assistir a uma</p><p>apresentação artística — explicou parecendo nostálgico e triste ao mesmo tempo. — Era a receita</p><p>favorita dela. De tanto vê-la fazendo, acabei aprendendo e isso foi muito útil, pois após a morte</p><p>do meu irmão, ela ficou arrasada. Foi através desse rocambole que eu trouxe um pouco de</p><p>consolo ao seu coração.</p><p>Saber de sua atitude me deixou ainda mais sentimental. Era lindo ouvir do carinho dele por</p><p>seus pais e isso me fez pensar em um antigo provérbio que os anciãos do meu reino ensinavam:</p><p>“Em casa, filho amoroso, no casório, marido virtuoso”. Eu cria que aquele seria o caso de Tae.</p><p>— Você é mesmo cheio de nuances. Um dia fará uma mulher agradecer por tê-lo como</p><p>marido — comentei, impressionada, mas em seguida me arrependi de trazer o assunto “marido”</p><p>à tona e resolvi tomar uma atitude para não morrer de vergonha. — Também tenho um talento</p><p>oculto.</p><p>— Verdade? — Ele franziu a testa e coçou o queixo. — Há algo além de ser excelente</p><p>lidando com feridas, saber tocar harpa e ser ótima ouvinte?</p><p>Sorri e fiz um gesto agradecendo pelos elogios.</p><p>— Sim. Sou imbatível no jogo Labirinto dos Bisões — me gabei. Aquele era um dos</p><p>talentos que eu vinha aperfeiçoando desde a infância. — Ninguém me vence.</p><p>— Uh! É mesmo? — Ele cruzou os braços. — Conheço o jogo e te garanto que eu era</p><p>muito, muito bom. Meu bisão não só chegava primeiro, como também era o melhor na</p><p>pontuação.</p><p>Estreitei os olhos e dei de ombros.</p><p>— Pode ser bom, mas te garanto que eu sou a melhor do meu reino. — Pisquei. — Já até</p><p>ganhei uma harpa novinha depois de competir com meu pai, que era o melhor antes de eu nascer.</p><p>Ele estendeu a mão para mim.</p><p>— Eu vi um tabuleiro na ala de convivência, que tal uma partida? — Me encarou,</p><p>competitivo. — Para aumentar a competição, o vencedor realiza um desejo do ganhador. O que</p><p>acha?</p><p>Senti uma animação crescendo dentro de mim.</p><p>— Pode ir se preparando para perder, Tae.</p><p>— Eu não contaria vitória tão cedo!</p><p>L</p><p>05</p><p>abirinto dos Bisões era um jogo tático, cujo objetivo consistia em que cada</p><p>jogador guiasse seu bisão pelo labirinto, evitando os obstáculos e resolvendo os</p><p>enigmas para alcançar o final com o máximo de pontos.</p><p>Era um jogo complexo, embora não parecesse. Os enigmas eram difíceis de se desvendar e</p><p>resolvê-los exigia bastante concentração.</p><p>A pergunta era: Como eu me concentraria quando meu oponente sabia cativar toda a minha</p><p>atenção?</p><p>Aproveitamos a melhora do clima e levamos o tabuleiro para a área externa, no jardim nos</p><p>fundos da estalagem. Sentamos em duas cadeiras antigas ao redor de uma mesa velha, Tae se</p><p>acomodou de um lado, e eu do outro; entre nós, montamos o tabuleiro de madeira.</p><p>De início, ele provou seu ponto de ser bom no jogo. Porém, eu não ficava atrás; se tratando</p><p>de lógica para desvendar os enigmas propostos, eu me saía melhor. Já em questão de sorte, o</p><p>rapaz se dava muito bem, sempre tirando números altos nos dados ou caindo em casas especiais</p><p>que davam vantagens ao seu bisão, o qual ele apelidou de Bartolomeu. Por isso, e só por isso, ele</p><p>estava na frente. Mas eu ainda não havia desistido.</p><p>— Então, quando minha última irmã se casou e apenas eu fiquei no palácio, meu pai</p><p>afirmou que eu poderia adotar um coelhinho, contanto que cumprisse minha missão nessa</p><p>viagem — compartilhei após mais uma de minhas jogadas. — Talvez você não acredite, mas</p><p>algumas mulheres do meu reino já me falaram que, moças com o meu status, deveriam ter um</p><p>animal de estimação com quem pudessem conversar. Minha prima Cindy tinha dois</p><p>camundongos e até colocava roupinhas neles.</p><p>— Conversar com animais? No meu reino, chamamos isso de “loucura”. — Ele riu e pegou</p><p>uma carta do baralho. Pelo contentamento em seu rosto, era uma carta boa. — “Seu bisão comeu</p><p>os pergaminhos do Sábio Allazard e agora ele não pode ler o enigma. Avance uma casa”. Muito</p><p>bem, Bartô! — Ele movimentou a peça no tabuleiro. — Posso saber qual é a sua missão ou o seu</p><p>cargo no palácio? Estou curioso.</p><p>— Minha missão é retornar casada — expliquei e suspirei. Eu até já havia me esquecido do</p><p>Torneio de Cortejo. Seria tão bom não precisar participar de algo tão vergonhoso. — E para</p><p>saber o meu cargo você precisará ganhar e me desafiar a te contar.</p><p>— Eu não desperdiçaria meu desafio. — Ele me espiou por cima das cartas. — Está óbvio</p><p>qual o seu cargo, eu apenas gostaria de confirmar, Alteza.</p><p>Fiz uma careta. Eu não estava tentando esconder, apenas não podia sair dando a</p><p>informação de que eu era uma princesa sem mais nem menos.</p><p>— Perdão por não revelar tal fato. Teria dito antes, caso tivesse me perguntado.</p><p>Joguei os dados no tabuleiro e, pela primeira vez, consegui uma vantagem sobre o bisão</p><p>dele ao responder um enigma difícil, cuja resposta era “As barbas do profeta Calixto” .</p><p>— Entendo seus motivos, não se preocupe. — Ajustou a postura na cadeira e pegou os</p><p>dados mais uma vez. — Mas agora que sei do seu parentesco com o Rei Magno de Saint, me</p><p>sinto honrado por sua amizade. Tenho uma grande admiração pelo seu pai. Ele é um homem</p><p>conhecido por sua bravura.</p><p>— Por isso, tenho certeza que gostaria de você — completei com graça. — Ele ficará</p><p>admirado quando eu contar sobre seu ato corajoso de ontem. Talvez até te chame para ser</p><p>recompensado em Saint.</p><p>Tae assentiu e refletiu por alguns segundos.</p><p>— E a senhorita ficaria feliz, caso eu, quem sabe, fizesse uma visita ao reino de Saint?</p><p>— Claro! O senhor foi a melhor surpresa que tive nessa viagem. — Sorri, mas voltei minha</p><p>concentração ao tabuleiro quando ele tirou um número alto, ficando próximo da última volta do</p><p>labirinto.</p><p>— Posso saber o que fará para retornar casada? — ele perguntou baixinho e eu me senti</p><p>inquieta. — Digo, eu também tenho pensado em uma estratégia, pois também preciso me casar.</p><p>Podemos unir forças. — Balançou a cabeça e notei suas faces ficando rubras. — Ou melhor, é só</p><p>olhar para o jogo. Com a sua mente e a minha sorte, podemos dar um jeito nessa solteirice</p><p>juntos.</p><p>Sem saber o que responder em um primeiro momento, eu apenas sorri e coloquei uma</p><p>mecha dos meus cachos atrás da orelha. Mesmo lisonjeada com o jeito atrapalhado dele de tentar</p><p>resolver o impasse entre nós, pensei em algo sério.</p><p>— Você vai embora em breve — constatei e tirei a sorte grande ao jogar os dados e pegar e</p><p>uma carta</p><p>dourada que colocou meu bisão na mesma casa que a de Tae. — Não é possível</p><p>resolver um problema tão grande sem estarmos perto um do outro. Como daríamos o próximo e</p><p>mais importante passo, que é encontrar alguém de acordo com nossos princípios?</p><p>— É simples: deixarei com sua dama minha lista de requisitos para que a senhorita me</p><p>ajude a encontrar uma mulher que se encaixe neles. Quanto ao seu caso, tenho apenas um</p><p>pretendente para apresentar e a senhorita já o conhece — ele declarou tão rápido que mal pude</p><p>acompanhá-lo em seu raciocínio. Planejei questioná-lo, mas ele virou a cabeça na hora e</p><p>informou: — Veja, meu escudeiro está vindo. Creio que minha partida tenha sido adiantada.</p><p>“Oh, não!”, lamentei e olhei para o tabuleiro. Ainda faltavam cerca de duas jogadas.</p><p>— É a sua vez. — Peguei os dados e coloquei nas mãos dele. Ele segurou minhas mãos e</p><p>demorou alguns segundos antes de soltar. Mal me lembrei como respirar.</p><p>Ele se levantou, para o meu desespero, e colocou os dados sobre a mesa.</p><p>— Sinto muito, Alteza, mas preciso mesmo ir. Tenho um compromisso e já o adiei por</p><p>muito tempo. — Ele me olhou com ternura. — Não sei se teremos outra oportunidade de jogar</p><p>Labirinto dos Bisões, mas foi uma alegria passar essas horas com a senhorita.</p><p>Também me levantei em um sobressalto.</p><p>— Não, o senhor não pode fazer isso. É injusto. O seu bisão ficará perdido no labirinto</p><p>para sempre com o meu! — Senti o nervosismo tomar conta de mim e eu não saberia explicar o</p><p>motivo com certeza. Talvez eu apenas não quisesse que ele partisse. — Apenas lance os dados</p><p>mais uma vez. Eu tenho uma pergunta muito importante para te fazer, caso eu ganhe.</p><p>— Nossa! Eu não sabia desse seu lado competitivo. Quer mesmo ganhar tanto assim? —</p><p>Ele sorriu e pegou os dados mais uma vez. — Tudo bem.</p><p>O silêncio pairou no ar quando os dados foram lançados. Nossos olhares se fixaram no</p><p>tabuleiro enquanto esperávamos para saber o resultado. Prendi a respiração e fiquei tensa para</p><p>descobrir o número final: se ele tirasse qualquer número maior que três, ganharia. E então, em</p><p>um momento de clímax, o dado parou e eu mordi o lábio, sem acreditar no resultado: dois. A</p><p>casa onde parou exigia que pegasse uma carta e assim ele fez, sorrindo para mim ao ler:</p><p>— “Seu bisão acaba de ficar atolado em um lamaçal, mas seu oponente decidiu ajudá-lo.</p><p>O bisão do jogador ao lado deve avançar duas casas” — declarou e apontou para o baralho. —</p><p>Tire sua carta. Vamos ver se a senhorita tem mesmo um dom.</p><p>Fiz como ele mandou, peguei a carta e meu sorriso foi de um canto ao outro. Era um</p><p>problema lógico sobre bisões e que eu já tinha ouvido, por isso sabia como responder.</p><p>— Posso avançar três casas e ganhar o jogo! — Bati palmas, animada com aquela vitória.</p><p>— Agora posso fazer minha pergunta?</p><p>Tae estava pronto para confirmar com a cabeça quando seu escudeiro se aproximou.</p><p>— Alteza, precisamos partir agora mesmo. O senhor já está muito atrasado!</p><p>Espera! Alteza?</p><p>Tae era príncipe?</p><p>— O quê? — eu questionei.</p><p>— Adeus, Mabel. — Fez uma mesura com a cabeça e, sem me dar um aperto de mão</p><p>sequer, saiu às pressas.</p><p>N</p><p>06</p><p>unca me senti tão triste depois de ganhar uma partida de Labirinto dos Bisões.</p><p>Da janela do meu quarto e segurando as lágrimas, assisti à comitiva de Tae partir,</p><p>levando consigo todos os momentos maravilhosos que compartilhamos.</p><p>Por que eu não desconfiei da origem dele como um príncipe?</p><p>Se eu tivesse suspeitado, eu não teria ficado tão vulnerável, nem me sentiria tão desolada,</p><p>como se tivesse acabado de perder um amigo da vida inteira.</p><p>Ah! Como ele pôde me encantar tão rápido e depois ir embora sem me dar uma fagulha de</p><p>esperança de que nos reencontraríamos? Como ele pôde agir como todos os outros príncipes?</p><p>Será que era a maldição fazendo efeito outra vez?</p><p>Não.</p><p>Por pior que fosse o desfecho da minha história com Tae, eu seguiria seus conselhos e não</p><p>mais me deixaria levar por aquela falsa crença.</p><p>Eu não era amaldiçoada coisa nenhuma. Só era uma solteirona que afastava os</p><p>pretendentes, e tinha feito o mesmo com aquele simpático rapaz que tão depressa fugiu de mim.</p><p>Fim da história.</p><p>— Alteza, está me ouvindo? — Florence chamou minha atenção, estalando os dedos em</p><p>frente ao meu rosto.</p><p>Já havíamos deixado a estalagem e estávamos acomodadas na carruagem, rumo ao meu</p><p>inevitável destino. Com meus pensamentos longe, eu observava as colinas verdes em derredor da</p><p>estrada de terra que nos levaria até o Torneio. Já até imaginava meu casamento com um rei velho</p><p>que jamais seria tão belo, doce ou forte como Tae-Lyon.</p><p>Balancei a cabeça. Pelo meu próprio bem, eu deveria esquecê-lo.</p><p>— O que deseja, Florence? — questionei sem muito ânimo.</p><p>— Sei que está triste, mas Tae me pediu para lhe entregar isso. — Ela revirou seus</p><p>pertences, até que encontrou uma caixinha pequena. — Pegue, senhorita.</p><p>O nome dele saltou aos meus ouvidos e eu precisei me segurar para conter a agitação</p><p>dentro de mim.</p><p>Incerta, tomei a caixa delicada em minhas mãos e a abri, me deparando com minha</p><p>imagem no espelho. Até me lembrei de seu conselho motivacional me mandando repetir todas as</p><p>manhãs: “Sou mais bela que o rocambole de morango do Tae”.</p><p>Que bobagem!</p><p>— Parece que esse espelho pertencia à sua mãe. Quando estava partindo, ele me contou</p><p>que a senhorita precisaria dele para ajudá-lo com a missão que lhe deu — Florence explicou.</p><p>Missão?</p><p>A única missão dada por ele foi que eu encontrasse uma moça de acordo com sua lista de</p><p>requisitos. Ali não havia lista alguma, apenas eu refletida no espelho…</p><p>Será que eu tinha entendido direito?</p><p>Engoli em seco.</p><p>Só podia ser brincadeira dele.</p><p>Se eu era a pretendente, por que ele partiu?</p><p>Chateada, pedi a Florence que mantivesse aquela caixa longe de minha vista e, para aplacar</p><p>a tristeza em meu coração, resolvi me entregar ao mundo dos sonhos, onde poderia não pensar</p><p>em tudo o que vivi.</p><p>Minha estratégia deu certo e só acordei com o toque de Florence me avisando que já</p><p>estávamos entrando no Reino Unificado e apenas alguns minutos nos distanciavam do palácio</p><p>onde ocorreria o Torneio.</p><p>Quanto mais perto do local, mais deprimida eu ficava. Mesmo assim, pensei em papai,</p><p>decidida a fazer o necessário para abrir mão da minha paixão e apenas tentar ser amiga de algum</p><p>possível pretendente, caso conhecesse um no torneio.</p><p>Ao cruzarmos os portões do gigantesco castelo, me deparei com uma multidão de súditos</p><p>alegres nos esperando na entrada. Todos queriam acompanhar a formação de novos casais reais.</p><p>Demorou alguns minutos antes dos cavalos pararem em frente a uma grande escadaria,</p><p>com guardas de prontidão em cada degrau.</p><p>— Tenho algo que precisa saber sobre os participantes do torneio — Florence começou</p><p>após pararmos. Eu estava prestes a descer, porém me obriguei a virar em sua direção, com um</p><p>olhar confuso. — Não há vários príncipes e princesas. Apenas dois. A senhorita é a princesa e o</p><p>seu pai escolheu o príncipe.</p><p>Abri a boca, sem saber como reagir àquela notícia. Eu quis questionar, porém as batidas na</p><p>porta da carruagem chamaram minha atenção.</p><p>— Vá encontrá-lo. — Florence fez um sinal com as mãos.</p><p>Com medo de dar de cara com um rei velhote, abri a porta devagar, mas tive a maior das</p><p>surpresas.</p><p>— Tae! — exclamei e saí correndo quando contemplei aquele belo príncipe vindo ao meu</p><p>encontro. Vê-lo ali levou toda minha tristeza e indignação.</p><p>— Mabel! — Ele parou em minha frente e fez uma mesura formal, talvez levando em</p><p>consideração que estávamos diante de tantas pessoas. — Nos reencontramos outra vez, Alteza.</p><p>— Sim, Tae-Lyon, Príncipe de Kor — enfatizei e o vi dar um sorriso sem graça.</p><p>— Sinto muito não ter contado. Sua dama me disse que você se fecharia, caso eu contasse</p><p>de imediato sobre minha posição e participação neste torneio. — Ele umedeceu os lábios. —</p><p>Segui as instruções dela e de seu pai.</p><p>Tapei minha boca, suprimindo meu grito de espanto.</p><p>— Espera! Todo o encontro foi armado por aqueles dois?</p><p>— Nem tudo. Nós nos encontraríamos no Torneio, mas a chuva e uma carroça atolada</p><p>acabaram adiantando o processo. — Tae deu um passo em minha direção, segurou</p><p>minha mão e</p><p>depositou um beijo entre meus dedos. — Eu estava ansioso para conhecer a mulher a quem eu</p><p>deveria provar o meu valor.</p><p>Dei uma risadinha.</p><p>— Acredito que burlamos as regras do torneio — afirmei, constrangida. — Se houvesse</p><p>outros príncipes, você teria uma grande vantagem, ainda que não tenha um dedo.</p><p>Ele acariciou minha mão com o polegar.</p><p>— Fico feliz em ouvir isso. É um sinal de que causei boa impressão.</p><p>— Foi o rocambole de morango e o fato de ter esperado só para me ver ganhar no Labirinto</p><p>dos Bisões.</p><p>Tae me olhou mais sério.</p><p>— E, por falar nisso, princesa, o que gostaria tanto de me perguntar mais cedo? Fiquei</p><p>morrendo de curiosidade.</p><p>— É só uma dúvida boba que está me consumindo desde que fiz o curativo em suas mãos.</p><p>— Mordi o lábio e cocei a nuca. — Não precisa me responder se não se sentir à vontade.</p><p>— Não se acanhe. Prometo tentar responder.</p><p>— Certo. — Olhei para os lados, conferi se havia muitas pessoas por perto e, para não</p><p>constrangê-lo, me inclinei para sussurrar: — Se o senhor perdeu o dedo anelar esquerdo, como</p><p>fará para usar aliança quando se casar?</p><p>Tae me encarou e em seguida caiu na risada.</p><p>— Minha dúvida é válida, Tae. Não vou conseguir dormir se não souber a resposta.</p><p>— Tudo bem, se é para aplacar sua aflição, vou responder. — Maneou a cabeça. — É</p><p>muito simples, basta eu…</p><p>FIM!</p><p>COMO ENCONTRAR O AMOR FUGINDO NUMA NOITE - Dulci Veríssimo</p><p>Dedicatória</p><p>Para minha sobrinha, Eloize, que ela sempre carregue no coração que suas</p><p>diferenças fazem parte da Criatividade do Criador e O glorifique por isso.</p><p>“Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a</p><p>eternidade no coração do homem.”</p><p>Eclesiastes 3.11a</p><p>O</p><p>01</p><p>sino das 18 horas tocou pela terceira vez quando os portões de ferro da larga e</p><p>alta muralha de pedra, que cercava o palácio de Lírian, abriram-se e um cavalo,</p><p>galopando em alta velocidade, saiu porta afora com uma menina montada.</p><p>O vento forte fazia as tranças finas dos cabelos chicotearem-lhe o rosto. A adrenalina da</p><p>corrida refletia bem o turbilhão de pensamentos que levaram Naomi a tomar a decisão de fugir</p><p>de seu lar. Não queria ter que lidar com aquela situação. Não mesmo.</p><p>Após percorrer uma longa distância, a égua da jovem parou abruptamente, relinchou e</p><p>jogou o corpo para trás, levando Naomi ao chão. O animal começou a se balançar para todos os</p><p>lados, e a moça, caída na terra, fechou os olhos, esperando levar um coice e voar para longe.</p><p>Contudo, antes em lugar disso, uma voz ressoou no ar:</p><p>— Uoouuu!</p><p>Quando abriu os olhos, Naomi sentiu o ambiente sacolejar e sua visão estava embaçada.</p><p>Tudo ao redor pareceu muito confuso, porém, em meio ao seu estado entre delírio e lucidez, ela</p><p>enxergou a silhueta de alguém alto e vestido com uma roupa escura se aproximando de sua égua,</p><p>acalmando-a. Por um tempo breve, captou aquele corpo se movimentando em sua direção, mas</p><p>não conseguiu discernir suas feições, pois a escuridão finalmente a tomou.</p><p>— Moça? Moça?</p><p>A voz parecia ecoar dentro de um funil, pois começou forte e foi se distanciando.</p><p>— Moça? — A chamada foi mais forte, mas ela não conseguia responder.</p><p>— Desculpe-me pela ação, mas é para o seu bem!</p><p>Um ardor começou a percorrer pelo rosto de Naomi, então abriu os olhos. Na tentativa de</p><p>compreender o que havia acontecido, pôs a mão sobre a bochecha e franziu o cenho, sentindo</p><p>ainda o calor emanado do tapa. UM TAPA!</p><p>— Você me bateu? — A pergunta saiu ríspida.</p><p>— Ah! Desculpe-me pelo modo tão brutal, mas foi necessário. Você não acordava de jeito</p><p>nenhum — o homem disse com naturalidade.</p><p>Naomi se sentou e piscou rapidamente, pondo a mão no rosto outra vez. Ainda estava</p><p>incrédula sobre o tapa que recebeu. Ela ponderou sobre a masmorra ser um bom lugar para</p><p>aquele sujeito tão audacioso. Quem bateria no rosto de uma mulher? Entretanto, outro lado seu</p><p>refletiu sobre ser a chance de voltar à “vida”, e talvez o homem merecesse um agradecimento.</p><p>Seus sentimentos estavam conturbados.</p><p>Olhou ao redor e notou estar debaixo de uma árvore frondosa ao lado da estrada de barro.</p><p>Sua égua estava presa numa outra árvore junto com um cavalo de cor marrom. Ela tinha se</p><p>acalmado. O homem que a ajudou estava parado, olhando-a com seriedade.</p><p>— Não acredito que bater numa dama seja recomendável. — Ela passou a mão no rosto</p><p>ainda magoada.</p><p>— Nunca é. — Ele quicou os ombros. — Porém, mais vale isso do que deixá-la desmaiada.</p><p>Não acha? — disse o homem, ainda perscrutando-a.</p><p>— Por que está me olhando como se eu fosse um ser de outro lugar? — perguntou com o</p><p>cenho franzido. — Por algum motivo estou desfigurada? — Ela arregalou os olhos. — Juvelina</p><p>conseguiu me acertar?</p><p>O homem abriu a boca e uma careta se formou no rosto. Naomi não soube discernir entre o</p><p>espanto ou uma risada querendo escapar dos lábios.</p><p>— Juvelina? — Ele olhou para a bela égua de pelagem de cor creme.</p><p>— Eu queria um nome diferente! — Naomi revirou os olhos. — E por que ainda está me</p><p>olhando assim? Parece um meliante pronto a atacar sua vítima.</p><p>— É só para avaliar se sua condição está realmente bem. — Ele colocou dois dedos na</p><p>frente dela. — Enxerga bem?</p><p>— Eu enxergo sim, caro senhor. — Ela apertou os olhos e continuou: — Você tem dois</p><p>dedos, cabelo cor de mel, olhos cinzas e uma pinta como uma estrela perto do queixo. Errei?</p><p>O homem sorriu.</p><p>— Acertou em cheio!</p><p>A moça assentiu e ficou um pouco mais confortável, pois parecia que o homem não a faria</p><p>mal. Ela visualizou novamente o local e, ao fixar o olhar para a frente, exclamou:</p><p>— Pelas ternas misericórdias! — Naomi percebeu como o sol já começava a se pôr no</p><p>horizonte. — O anoitecer está perto — a declaração saiu arrastada, como se fosse algo</p><p>inacreditável.</p><p>Sua memória trouxe à tona o convite, o espanto e a fuga. Mas não pensou em como</p><p>passaria a noite, simplesmente fez o que o seu espírito agitado e impulsivo determinou.</p><p>— Preciso partir agora mesmo. — Ela quis se levantar, mas foi surpreendida por uma dor</p><p>no pé, que não a sustentou e a fez tombar.</p><p>— Cuidado! — O homem se aproximou rápido, vendo que a jovem tinha outra vez levado</p><p>um tombo. — Seu pé está um pouco ferido. Não é nada grave, mas precisa ser tratado.</p><p>Naomi fez uma expressão de espanto e levantou devagar a saia de seu vestido para</p><p>visualizar o calcanhar, percebendo a pele arranhada e ferida. Como o homem havia dito, sem</p><p>sinais de algo mais grave.</p><p>— Enquanto estava desmaiada, eu notei que seu pé não estava bem — o homem começou</p><p>a explicar. — Você caiu sobre as pedras e se machucou, precisa de alguns cuidados. E como a</p><p>queda é recente, seu corpo necessita de repouso.</p><p>— Meu Senhor! — Naomi colocou a mão sobre o rosto. — Como vou fazer agora? Terei</p><p>que dormir nesse local? E se alguma cobra vier na minha direção?</p><p>Naomi tinha pavor àquele réptil. Por ela, podia ter sido aniquilado lá no jardim do Éden.</p><p>— Não é bom dormir na estrada. — O tal homem se levantou. — A vila está perto daqui.</p><p>Conhece um local para tratar ferimentos?</p><p>Naomi arqueou as sobrancelhas e o olhou.</p><p>— Não conheço muito a vila. — A moça apertou os lábios. — Eu quase nunca saí dos</p><p>portões de minha casa.</p><p>— Então hoje a conhecerá — ele disse sem rodeios. — Entramos na vila e procuramos</p><p>ajuda. Depois você volta para a sua casa. Tudo bem?</p><p>Ele estendeu a mão, mas Naomi não a segurou. A expressão facial denunciava sua</p><p>incredulidade com o desconhecido muito prestativo.</p><p>— Eu não sei, não — ela murmurou e cruzou os braços.</p><p>— Olha, não temos muito tempo, a noite se aproxima. É pegar ou largar a minha proposta.</p><p>— Como posso confiar em você? — Ela inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse</p><p>investigando.</p><p>— Você só pode fazer uma coisa. — Ele se abaixou e a olhou nos olhos, constrangendo-a</p><p>pela seriedade da sua expressão.</p><p>— E o que seria? — perguntou, engolindo um nó da garganta.</p><p>— Acreditar na minha palavra. — Voltou à posição anterior, ficando ereto e mostrando sua</p><p>altura e postura eloquentes.</p><p>Naomi sentiu a firmeza do homem e se dispôs a confiar mesmo não conhecendo nada sobre</p><p>ele. Talvez fosse a sua maior burrada, mas, depois de fugir, era o que se esperava:</p><p>uma loucura</p><p>atrás da outra.</p><p>— Poderia me ajudar a levantar, por favor — pediu disse com humildade.</p><p>O homem se aproximou e a ergueu para cima como se fosse algo sem grande peso.</p><p>Ambos ficaram frente a frente e a jovem perguntou:</p><p>— Posso ao menos saber seu nome?</p><p>— Chamo-me Samir. E o seu? — Ele crispou os olhos. — Por que se você sente que eu</p><p>posso estar a enganando, eu posso pensar o mesmo.</p><p>— Ora! Como pode achar isso? — Naomi ficou chocada com a suspeita e abriu a boca.</p><p>— Quem me garante que você não sabia onde eu estava e forjou um acidente? — Ele</p><p>arqueou uma sobrancelha.</p><p>— E por qual pretexto? Afinal, é alguém tão importante assim para que eu saia de minha</p><p>casa somente para cair do cavalo e ser socorrida por você? — Naomi estava indignada.</p><p>Samir a visualizou como se estivesse desconfiado, por fim declarou:</p><p>— Não, moça. — Deu um sorriso gentil. — Mas é sempre bom perguntar.</p><p>Ela cruzou os braços e o olhou de cima a baixo. Quem ele pensava que era? Por que</p><p>alguém buscaria um homem com roupas de plebeu e que nada possuía além de um cavalo?</p><p>— Você vem? — Ele a tirou de seus questionamentos, e tinha uma mão estendida para a</p><p>jovem.</p><p>Naomi foi levada até a égua dela, posta em cima da sela e pediu ao Ser Divino que</p><p>chegasse logo na vila, assim alguém poderia levá-la logo para casa. Por que havia feito uma</p><p>insanidade dessa dimensão? Agora estava sendo guiada por um desconhecido.</p><p>— E qual é o seu nome? — Samir perguntou outra vez.</p><p>— Naomi Visconti</p><p>— Espero que se sinta segura, Naomi Visconti, pois em breve estaremos na vila.</p><p>Samir começou a guiar os dois animais com trotes lentos. Ele esperava que o sol ainda os</p><p>acompanhasse com sua penumbra até a entrada do vilarejo.</p><p>Ao que parecia, Deus respondeu a oração.</p><p>O</p><p>02</p><p>caminho até chegarem à vila era longo. Naomi sentia sede e o tornozelo ficava</p><p>mais “pesado”. A recompensa de suas ações impensadas começava a pesar em sua</p><p>consciência. O trote de sua égua parecia se arrastar, para sua impaciência, que</p><p>começava a aflorar na alma.</p><p>— Por que não conversa? — De repente, o tom grave de Samir ecoou.</p><p>— Ahn? O que? — Naomi se virou para ele, não compreendendo a abordagem tão</p><p>inusitada.</p><p>— Ora, você está cansada, com dor e provavelmente a irritação começando a despertar —</p><p>ele disse como se pudesse ler a mente dela. — Falar ajuda.</p><p>Naomi olhou para a frente e meditou sobre a resolução do homem. Mas por que falaria</p><p>com um desconhecido? Ou por que não aproveitar a oportunidade para lançar para fora tudo que</p><p>sentia, já que nunca mais o veria? Suas questões iriam para longe junto com ele. Resolveu aceitar</p><p>os ouvidos dele como um meio de relaxar.</p><p>— Você pediu para uma mulher falar. — Naomi deu um sorriso. — Não reclame depois!</p><p>— Samir aproximou o cavalo para perto da égua e os dois caminhavam lado a lado.</p><p>— Então, por que estava fugindo? — ele perguntou e a jovem não acreditou o quão direto</p><p>ele foi.</p><p>Ela apertou as rédeas de Juvelina.</p><p>— Como sabia que estava fugindo?</p><p>— Nenhuma moça anda sozinha numa égua, correndo pela estrada por livre consciência,</p><p>sabendo que pode sofrer um acidente por tamanha velocidade. — Ele foi certeiro na dedução.</p><p>Naomi soltou um longo suspiro e assentiu.</p><p>— Você está certo! — Ela mordeu os lábios e continuou: — Fui um pouco impulsiva na</p><p>minha decisão de fugir, deveria ter analisado melhor a questão.</p><p>— Quer compartilhar algo sobre isso?</p><p>A moça o olhou um pouco mais séria.</p><p>— Eu fui convidada para ir a um baile — disse sem rodeios.</p><p>— Ir a um baile é tão terrível assim? Ou esse é o primeiro e não sabe como se portar em</p><p>um? — ele questionou com sincera confusão.</p><p>— Você não entenderia — Naomi baixou a cabeça com tristeza.</p><p>— Por favor, ilumine meus pensamentos. — Samir se aproximou com o cavalo e a</p><p>visualizou com certa piedade.</p><p>— É um baile para a comemoração do aniversário do príncipe de Lars, e eu nunca fui tão</p><p>longe — ela começou a exposição de seu medo.</p><p>Samir franziu o cenho, ainda não compreendendo o terror da jovem, e Naomi compreendeu</p><p>como o homem permanecia na escuridão dos pensamentos.</p><p>— Eles estão convidando pessoas de todos os reinos vizinhos, longe ou perto. — Naomi</p><p>apertou os lábios antes de continuar. — Eu não sei se posso lidar com pessoas tão distintas.</p><p>— Distintas?</p><p>— Samir, não vê como sou diferente das outras princesas? — Ela bufou. — Nos contos, as</p><p>princesas nunca são negras e com cabelos trançados, mas brancas, de olhos claros e fios</p><p>dourados. — Expôs finalmente a origem de seu temor.</p><p>— Você é uma princesa! — ele exclamou, e Naomi arregalou os olhos percebendo como</p><p>havia soltado a língua demais. — Não se preocupe. Eu não vou sequestrá-la ou tentar suborná-la</p><p>para querer uma recompensa.</p><p>Samir expressou rápido, fechando a boca de Naomi, que já se abria para exprimir</p><p>justamente aquela condição.</p><p>— É claro! Reino de Lírian, família Visconti. Como eu não associei? — Ele ainda parecia</p><p>surpreso, mas deixou a curiosidade de lado para perguntar: — Existe alguma outra confirmação</p><p>de que princesas só podem ser de uma forma?</p><p>— Eu não sei. — Ela murchou os ombros. — Mas não me sinto segura de sair para além</p><p>dos arredores do meu reino. Não sei se estou pronta para lidar com príncipes e princesas tão</p><p>desconhecidos.</p><p>— Seu reino não faz bailes para outros? — Samir quis saber.</p><p>— É claro que fazemos, porém apenas para os mais próximos, e eu já sou acostumada com</p><p>as pessoas. — Ela olhou para o lado, avistando os últimos raios solares que emanavam sobre a</p><p>terra. — Mas nesses bailes ainda sou a única negra.</p><p>— Não deveria se preocupar com isso.</p><p>— Por que eu esperaria que você entendesse?</p><p>Naomi não quis continuar a conversa, então eles prosseguiram sua caminhada em silêncio</p><p>até chegar na entrada do vilarejo.</p><p>Os cavalos começaram a trotar por cima das ruas de pedras, e Samir olhava de um lado</p><p>para o outro, procurando um local para tratar os pés da jovem princesa, que, ao entrar no vilarejo,</p><p>colocou sua capa e cobriu a cabeça.</p><p>— Boa noite, senhor — Samir parou perto de um homem que empilhava caixotes.</p><p>O velho com poucos fios de cabelos, barriga avantajada e um largo bigode deu a sua</p><p>atenção para os dois viajantes.</p><p>— Poderia me dizer se há algum lugar para tratar ferimentos aqui?</p><p>— Só existe a casa da velha Gertrudes no final da rua — o homem disse sem ânimo. —</p><p>Não é grande coisa, mas é o que temos.</p><p>Enquanto Samir se informava, Naomi reparava no pequeno vilarejo de seu reino. Estava</p><p>tão diferente do que lembrava. Quando criança, costumava brincar durante os passeios de seus</p><p>pais para visitar o povo, porém cresceu e se dedicou a sua própria vida. Agora via as ruas cheias</p><p>de lamas, feirantes sujos e cansados. Não era a imagem de suas lembranças.</p><p>— Vamos continuar. — Seus pensamentos foram interrompidos pela voz de Samir, que</p><p>começou a puxar a corda da égua para prosseguirem.</p><p>Os animais caminharam por mais alguns minutos e pararam diante de uma casa de</p><p>madeira, com janelas quebradas e uma pintura escura pouco convidativa para qualquer pessoa.</p><p>— Quem pode viver num local como esse? — Naomi perguntou com medo de descer de</p><p>sua égua. — Acho que viemos no lugar errado.</p><p>— Você acha? — Samir desceu do seu cavalo e prendeu o bicho no tronco de uma árvore</p><p>ali perto. — Desça também — disse ao se aproximar da jovem e estendeu a mão. — Eu seguro</p><p>você.</p><p>Naomi apertou os lábios e franziu o cenho.</p><p>— Acho que não é seguro. Vamos embora? — pediu com certa relutância.</p><p>— Acho que precisamos entrar, pois…</p><p>Mas antes que pudesse continuar, eles ouviram o som de gritos e depois um som como de</p><p>explosão de vidros. Naomi visualizou Samir e os olhos queriam pular da órbita. A pergunta no ar</p><p>era: de onde veio isso? Eles olharam ao redor, e Samir passou adiante. Naomi tinha o coração na</p><p>mão.</p><p>— Não, não me deixe aqui sozinha!</p><p>Ele se voltou para a jovem e declarou:</p><p>— Fique com Juvelina, eu já venho. É melhor para nós.</p><p>Mal terminou de pronunciar quando uma janela de vidro se estilhaçou no chão e dois</p><p>homens voaram por ela, atrelados um ao outro.</p><p>— Meu Salvador!</p><p>Um grupo de pessoas saiu para fora para acompanhar a briga. Algumas pessoas tentaram</p><p>apartar,</p><p>que</p><p>sonhava em um marido.</p><p>— E…? — Joana sorriu curiosa.</p><p>— E se colocou à disposição para me ajudar, apenas isso. Preciso saber se aqueles homens</p><p>realmente têm algum interesse romântico, como meu pai afirma, ou são apenas oportunistas. Me</p><p>recuso a me casar sem amor.</p><p>— E você pretende se apaixonar até o baile de hoje a noite? — Joana parecia em choque</p><p>enquanto tentava acompanhar meu raciocínio. — Isso é impossível!</p><p>— Eu sei. — Suspirei, esfregando o rosto antes de me sentar diante da penteadeira. — Vou</p><p>precisar de um milagre. Deus terá que intervir de alguma forma.</p><p>— Talvez a resposta esteja mais próxima do que imagina.</p><p>Pelo espelho, vi Joana se aproximar e tocar meu ombro com um sorriso enigmático. Eu</p><p>confiava em Deus com toda a minha força, mas duvidava que um ser tão grandioso pudesse se</p><p>preocupar com questões amorosas tão mundanas.</p><p>As mãos de Joana, experientes e precisas, deslizavam pelos meus cabelos, tecendo um</p><p>intrincado penteado que combinava sofisticação com elegância. O vestido, drapeado em</p><p>vermelho e dourado, realçava o tom da minha pele. As joias, cuidadosamente escolhidas,</p><p>cintilavam como estrelas em miniatura, completando o look com um toque de glamour. Toda</p><p>aquela produção pensada para o meu primeiro encontro com alguém que eu não tinha a mínima</p><p>ideia de quem seria.</p><p>Liam me aguardava do lado de fora dos meus aposentos quando saí. Ele corrigiu a postura</p><p>ao me ver e se aproximou. Nervosa, apertei uma mão a outra e olhei aflita para ele.</p><p>— A Joana não exagerou muito? – Espalmei as mãos na saia do vestido.</p><p>Liam pigarreou e trocou o peso de uma perna para a outra.</p><p>— Você está ótima, Alteza.</p><p>— Gosto mais quando você me chama de Kat.</p><p>Seus olhos estreitaram em minha direção e me fitaram por um tempo em silêncio antes de</p><p>tirar um broche em formato de borboleta do bolso.</p><p>— Use isso. — Ele o estendeu para mim e pareceu tomar um cuidado extra para não me</p><p>tocar. — É um dispositivo para acionar sempre que se sentir desconfortável e necessitar da</p><p>minha intervenção.</p><p>— Obrigada — agradeci enquanto o prendia na minha roupa. — Mas eu não preciso de um</p><p>dispositivo, quando eu tenho você sempre atento a tudo ao meu redor.</p><p>Liam pareceu desconsertado com minhas palavras, por tempo suficiente para eu perceber o</p><p>quanto ele parecia pouco à vontade na minha presença desde que saí dos meus aposentos. Ele</p><p>não era assim, nunca demonstrava qualquer sentimento, fosse insegurança, medo ou desconforto,</p><p>como naquele momento. Olhei para ele com atenção e uma sensação diferente também parecia</p><p>querer se apresentar, mas eu não entendia o que era.</p><p>— Você morreria por mim, Liam? — Não sei de onde veio aquilo, se do medo que eu</p><p>sentia do desconhecido ou do olhar que ele me ofertava.</p><p>— É o meu trabalho — ele respondeu após uma longa pausa.</p><p>A resposta não pareceu suficiente, murchando a comoção despertada minutos antes.</p><p>— Esse é o único motivo? — Insisti, buscando uma resposta mais convincente.</p><p>As sobrancelhas dele arquearam diante da minha pergunta. Crispei os olhos e comecei a rir</p><p>logo em seguida achando graça da expressão surpresa dele, o que percebi ser um erro.</p><p>— Você já deveria saber que não. — Interrompi o riso sem entender o que ele quis dizer, e</p><p>o vi passar por mim como uma flecha. — Agora vamos, cada minuto conta. Não vai querer</p><p>deixar seu futuro marido esperando.</p><p>O segui em silêncio por alguns metros até ele diminuir os passos e me deixar seguir na</p><p>frente dele até o local que minha mãe, rainha Charlotte me aguardava para auxiliar naquela</p><p>terrível decisão. Ela veio ao meu encontro assim que entrei, radiante como um diamante,</p><p>diferente do que eu esperava encontrar por conta do meu sumiço de mais cedo.</p><p>— Querida! Por onde andou? — Seus braços cheios de pulseiras envolveram meu pescoço</p><p>em um abraço apertado.</p><p>Eu amava a mãe amorosa que ela era, apesar de seu jeito extravagante e maneira de pensar</p><p>que em nada se igualava ao meu. Ela respeitava as convicções religiosas que eu trazia das minhas</p><p>origens e que aos poucos estavam ganhando força em Emberfall. Meu sonho era um dia poder</p><p>vê-las difundidas por todo nosso reino e era para isso que eu usava a minha influência.</p><p>— Eu precisava pensar — eu disse ao me afastar.</p><p>— É super compreensivo. — Ela deu um tapa no ar e as pulseiras se agitaram caindo em</p><p>cascata até seus pulsos. — Eu também me desesperei quando foi a minha vez. — Me conduziu</p><p>para nos sentarmos no sofá de frente para um mesa de centro ampla e Liam permaneceu em uma</p><p>poltrona logo atrás.</p><p>— Mas você ama o papai.</p><p>— Eu o amo hoje. Ele era um completo desconhecido quando nos casamos. — Uma</p><p>escandalosa gargalhada escapou de sua garganta. — Por gerações os casamentos na nossa família</p><p>são arranjados e aceitei aquilo como meu destino. Confiei na escolha dos meus pais e hoje sou</p><p>grata a eles. Eu não teria escolhido melhor.</p><p>— Mas eu sempre sonhei me casar por amor, mãe, e não por arranjos políticos.</p><p>Ela arqueou as sobrancelhas finas.</p><p>— E o que é o amor, querida?</p><p>Bem, eu estava completamente perdida no conceito do amor. Nunca me vi apaixonada e</p><p>mal tinha ideia do que esse sentimento verdadeiramente significava. Contudo, as descrições nos</p><p>filmes e livros o pintavam como uma força avassaladora, capaz de tirar o fôlego, causar</p><p>borboletas no estômago, deixar a garganta seca e as mãos trêmulas. Mal podia esperar pelo dia</p><p>em que experimentaria tudo isso por alguém. Naquela semana, convivi com os rapazes que meu</p><p>pai, com sua estratégia afiada, trouxe ao palácio. Contudo, não senti nada remotamente</p><p>semelhante na presença de nenhum deles.</p><p>— Acho que saberei quando o sentir.</p><p>Mamãe sorriu e me puxou para outro abraço.</p><p>– Ah, querida! E eu desejo do fundo do meu coração que o encontre. — Ela se afastou</p><p>franziu a testa ao ver meu semblante de derrotada.</p><p>Joana entrou na sala carregando os dossiês da pesquisa do meu pai e se juntou a nós no</p><p>sofá</p><p>— O rei pediu que os entregasse. — Ela estendeu as pastas para mim e logo após</p><p>organizou várias fotos sobre a mesa de centro.</p><p>Olhei o primeiro nome na capa e engoli em seco. Era surreal como minha vida mudaria</p><p>dali a algumas horas.</p><p>Ao comando da minha mãe, começamos as avaliações com Joana apontando para a</p><p>primeira foto.</p><p>— Príncipe Otaviano — disse Joana torcendo o nariz. — Não é apropriado. Ele é um</p><p>jogador compulsivo.</p><p>— Não é isso que diz aqui — falei folheando as informações sobre ele, onde listava apenas</p><p>coisas boas a respeito do jovem alto e loiro com um beleza de elevadíssimo padrão.</p><p>— Vai por mim, querida. — Ela tocou o meu braço. — Os criados sabem de tudo que os</p><p>hóspedes tentam esconder assim que pisam os pés aqui.</p><p>— Próximo! — Descartei o dossiê e abri outro. — Lorde Ferdinando.</p><p>Joana ergueu a foto de outro jovem bonito, mas nem tanto quanto o anterior, apesar de suas</p><p>características físicas serem aparentemente as mesmas.</p><p>— Querida, ele é uma gracinha! — mamãe se animou ao meu lado. — E muito gentil</p><p>também. Ele vem de uma ótima família, apesar de possuírem um título a pouco tempo.</p><p>— O namorado dele deve achá-lo lindo mesmo — interveio Joana outra vez.</p><p>Mamãe olhou chocada para minha tutora, que apenas meneou a cabeça como se dissesse</p><p>que a rainha deveria confiar cem por cento naquelas palavras, convencendo-a facilmente.</p><p>— Próximo! — minha mãe foi quem solicitou dessa vez.</p><p>— Não, esse é muito velho — declinei antes de ver qualquer informação do senhor que</p><p>poderia ser meu avô. E não me lembrava de tê-lo visto no palácio junto com os outros rapazes.</p><p>Joana me mostrou a fotografia de outro homem atraente.</p><p>— Ulalá! — mamãe sorriu significativamente para mim cheia de expectativa. — Esse é o</p><p>rapaz mais fofo que pisou neste palácio em toda sua história.</p><p>— Preso algumas vezes — Joana veio mais uma de suas informações bombásticas. — Pelo</p><p>que veio ao meu conhecimento, gostava de alguns negócios ilegais até pouco tempo.</p><p>Exasperada, levantei-me em um salto.</p><p>— Eu achei que o papai havia escolhido a dedo esses homens. Estou cercada de atrozes!</p><p>A rainha também se levantou e começou a andar de um lado para o outro.</p><p>— Precisamos de alguém atraente, elegante, forte</p><p>mas não era possível com os homens tão irredutíveis em sua discussão violenta. Uma</p><p>mulher de cabelos vermelhos e pele sardenta chorava sem cessar junto de três crianças no seu</p><p>encalço.</p><p>— Naomi, fiquei aqui! — Samir disse e a jovem não acreditou que seria largada por ele.</p><p>— Para onde vai? — ela perguntou com medo na voz. — Não pode me deixar aqui</p><p>sozinha.</p><p>Ele se aproximou, fitando-a com seus olhos cinzas brilhantes.</p><p>— Se aqueles homens não se separarem, veremos uma morte bem diante de nossos olhos</p><p>— ele guiou a égua e a jovem para um local mais afastado e seguiu em direção ao confronto.</p><p>Naomi, assustada, desceu no animal e seguiu mancando para ver o que Samir faria. De</p><p>longe, ela se surpreendeu ao enxergar como ele era bom em defesa pessoal. Ele imobilizou um</p><p>dos homens com um forte golpe, e o outro foi segurado por outros.</p><p>— Céus! O que pensam que estão fazendo? — Samir indagou à multidão que assistia.</p><p>— Quem você é para chegar aqui assim? — Um homem de cabelo preto e barba longa e</p><p>suja de cerveja perguntou com orgulho.</p><p>— Sou aquele que conseguiu resolver uma briga que nenhum de vocês foi capaz. — Samir</p><p>encarou o homem com tamanha seriedade que o fez dar um passo para trás.</p><p>— Veja essa mulher chorando e essas crianças. — Samir apontou para a jovem. — É seu</p><p>marido algum desses homens?</p><p>Ela assentiu com a cabeça e indicou o jovem de veste rasgada, rosto sujo de lama e pés</p><p>descalços que era segurado por um dos camponeses.</p><p>— Provavelmente deve ter vindo buscá-lo no meio da noite. Não foi? — Samir perguntou e</p><p>a jovem ruiva confirmou com um balanço de cabeça. Ela tremia e estava constrangida.</p><p>Samir caminhou para o homem bêbado e declarou:</p><p>— Você não tem vergonha de fazer sua família passar por uma situação tão humilhante? —</p><p>Samir disse sem medo, para a completa surpresa de todos, e Naomi, que ouvia a distância,</p><p>admirou-se da postura dele. — Veja sua esposa! — Ele puxou a mulher para mais perto e a</p><p>colocou diante do homem beberrão. — O Senhor Deus fez o homem para proteger a sua mulher</p><p>e seus filhos, não para humilhá-los diante de tantas pessoas.</p><p>Naomi observou como todas as pessoas ficaram em silêncio apenas escutando a repreensão</p><p>de Samir para aquele terrível pai de família.</p><p>— É um egoísta — disse a verdade sem piedade. — É mais um homem que espera que sua</p><p>esposa cumpra perfeitamente seu papel de dona do lar, mas você não move um dedo para</p><p>cumprir a sua função. Um tremendo falastrão!</p><p>A jovem esposa mantinha seu pranto doloroso, que afetou todas as pessoas em volta.</p><p>— Deseja falar algo, moça? — Samir indagou.</p><p>O silêncio dela se alongou a ponto de ninguém achar que fosse declarar algo, porém,</p><p>quando se ouviu o som de cavalos se aproximando, ela levantou a cabeça e olhou para o marido:</p><p>— Milo, nós não temos comida para os nossos filhos, pois tudo que você pega leva para a</p><p>bebida. Não temos nada. Absolutamente nada! — ela começou. — A nossa casa cai aos pedaços,</p><p>as nossas roupas não passam de trapos, nossos filhos são doentes e sujos. Não construímos nada.</p><p>Você e seus vícios tiraram tudo de nós. — O sofrimento dela foi exposto com tanta angústia que</p><p>afetou todos que ouviam aquele desabafo.</p><p>O marido levantou a cabeça, assustando com a audácia da esposa.</p><p>— Eu... Eu...</p><p>— Não sabia que estava destruindo a sua família? — Samir inquiriu com seriedade.</p><p>— Eu... — Milo, o esposo, tentava formar as palavras, mas não se completavam.</p><p>— Sabia sim, mas amou tanto os seus vícios que desprezou toda a sua família e tirou tudo</p><p>deles. Foram seus vícios que o trouxeram até aqui, mas é a sua casa que paga por toda sua tolice.</p><p>Que pior espécie de homem você é, que usa o dom de Deus para machucar os seus, enquanto</p><p>deveria estar protegendo.</p><p>As pessoas ficaram boquiabertas pela fala final de Samir, e Naomi pensou que talvez ele</p><p>não tivesse medo da morte. Então, de repente, uma cavalaria real se aproximou para averiguar a</p><p>situação. A guarda trabalhava para manter a ordem no reino, que pelas condições que Naomi via,</p><p>tinha sido deixada de lado.</p><p>À distância, ela encontrou os olhos de Samir em sua direção e sentiu certo conforto. Ela</p><p>supôs que ele pudesse mostrá-la para a guarda real, a fim de ser levada para casa, porém teve</p><p>medo de ficar a sós com aqueles homens. Preferia se manter ao lado de Samir e voltar na</p><p>companhia dele.</p><p>— O que aconteceu aqui? — Um tom grosso e estúpido ecoou no ouvido das pessoas, que</p><p>se calaram outra vez. — Eu vou precisar repetir a pergunta?</p><p>— Uma briga muito feia aconteceu entre esses dois — um garoto de estatura baixa e corpo</p><p>magro respondeu. — Eles foram apartados por este senhor aqui. — Apontou para Samir.</p><p>— Vejamos quem são. — O guarda rodeou entre os homens e analisou. — Vocês irão</p><p>conosco e serão mantidos na prisão até serem julgados.</p><p>Milo arregalou os olhos com a notícia.</p><p>— Não, por favor. Ajude-me! — Ele olhou para Samir.</p><p>— Esse é o ensino de Deus para você — Samir respondeu com grande certeza. — Não</p><p>posso impedi-Lo de trabalhar na sua vida.</p><p>— Eu tenho uma família para sustentar — Milo argumentou para o guarda ou qualquer</p><p>pessoa que pudesse ouvi-lo.</p><p>— Você bebe todos os dias como se não tivesse família, sofrerá consequências como se</p><p>não tivesse também — disse um dos guardas para completo desespero de Milo.</p><p>A mulher ruiva, ao ouvir tudo aquilo, chorou mais forte e, com toda dor de sua alma,</p><p>declarou:</p><p>— Não! Como ficaremos? — Ela cobriu o rosto com as mãos para não ver tamanha</p><p>humilhação do marido ser arrastado para uma prisão.</p><p>— De fato, sua condição não faz parte da minha jurisdição. — O guarda subiu no cavalo e</p><p>deu a ordem. — Prendam-no! — ordenou e saiu galopando, deixando para trás a mulher e os</p><p>filhos desolados.</p><p>Os guardas puseram os dois homens dentro de uma carruagem de ferro e seguiram. Todos</p><p>estavam alarmados com a situação, e Naomi, que havia deixado Juvelina mais atrás, se</p><p>aproximou. Sua presença foi notada pelos demais, porém não reconhecida. Com o coração cheio</p><p>de compaixão pela jovem esposa, a princesa acabou abraçando-a. Samir apreciou aquela visão de</p><p>solidariedade.</p><p>— Você não ficará sozinha — disse a Naomi.</p><p>— Não tenho nada! — A ruiva chorava mais. — Meus filhos estão famintos e esse frio não</p><p>tem fim. — Ela se abraçou, tentando se aquecer.</p><p>— Por que não entramos? — Naomi disse e apontou para o estabelecimento. — Mas antes,</p><p>qual o seu nome?</p><p>— Sou a Sara.</p><p>Samir serviu de apoio para as duas mulheres, principalmente para Naomi, que mancava, e</p><p>as guiou para uma mesa. O local parecia mais um covil de beberrões, todavia era o que estava</p><p>disponível naquela noite. A multidão havia se dispersado e os três, juntos com as três crianças,</p><p>acomodaram-se.</p><p>— Milo teve uma vida horrível, a bebida foi o consolo infelizmente. Eu não discutia com</p><p>ele porque sabia que a sua alma era derrotada.</p><p>— Resolveu se casar assim mesmo? — Naomi perguntou, chocada.</p><p>— Às vezes, é tudo que temos — Sara disse.</p><p>O cavalheiro as deixou sozinhas para conversarem e seguiu para perguntar se havia</p><p>comida; ao saber que sim pediu para que servisse a todos. Depois de um tempo, uma porção de</p><p>comida foi servida para cada um e as crianças se empolgaram por ter a necessidade da fome</p><p>suprida.</p><p>— Os vícios foram o escape que Milo achou para fugir dos problemas da vida.</p><p>— Todos nós buscamos meios de fugir, não? — Naomi disse e olhou para os lados. —</p><p>Nem que seja da maneira mais tola possível.</p><p>— Quando não sabemos o que fazer, os impulsos falam por nós — a mulher ruiva declarou</p><p>e comeu com avidez. — Seu marido está voltando. Ele é um bom homem.</p><p>Naomi olhou para Samir se aproximando delas novamente e, de certo modo, admirou sua</p><p>postura responsável e sábia.</p><p>“Algum outro homem teria feito o que ele fez?”, questionou a si própria.</p><p>— Ele não é meu marido. — Naomi sorriu sem jeito.</p><p>— Então por que estão juntos numa noite dessas? — A sobrancelha da ruiva arqueou.</p><p>— Oh, não pense besteira! — Naomi pensou como sairia daquela situação. Era certo que</p><p>na sociedade uma mulher não poderia ficar andando com um homem que não fosse seu marido</p><p>ou familiar. — Ele é um guarda zelando por mim numa viagem — procurou</p><p>dizer a verdade,</p><p>porém com outras palavras.</p><p>— Deviam ser mais cuidadosos.</p><p>— Seremos. Obrigada por alertar.</p><p>— Tudo bem com todos vocês? — Samir perguntou ao chegar perto das damas e das</p><p>crianças.</p><p>— Estamos sim — respondeu a jovem esposa. — Não poderei pagar por esse alimento e</p><p>toda a ajuda. Vocês foram enviados de Deus na minha vida, nem sei como agradecer.</p><p>Samir se sentou ao redor da mesa e disse a moça:</p><p>— Seu marido ficará bem. Não tente fazer o que não pode. — Ele olhou para Naomi e</p><p>declarou: — Tenha fé que vocês não serão desamparados nesse momento de sofrimento.</p><p>Naomi compreendeu a intenção de Samir. Sim, ela tinha o poder de providenciar comida e</p><p>suprimentos para aquela família e faria isso.</p><p>— Tudo ficará bem! — Naomi segurou a mão da jovem, que assentiu.</p><p>Eles terminaram de comer, e Samir pediu para o senhor do estabelecimento providenciar</p><p>alguém para acompanhar a mãe com seus filhos até em casa. Enquanto esperavam, Samir</p><p>perguntou:</p><p>— Naomi, seu pé como está?</p><p>— A dor melhorou — a princesa respondeu.</p><p>— Está com problemas no pé? Oh! Lembro-me que estava mancando — a ruiva declarou.</p><p>— Eu posso ver?</p><p>Naomi olhou para Samir, que assentiu. Ela estendeu o pé para a mulher, que passou a mão</p><p>no tornozelo sentindo o machucado, sabendo bem o que deveria fazer. Ela tirou de dentro de um</p><p>saquinho preso na sua cintura algo semelhante à lama verde.</p><p>— O que é isso? — Naomi quis saber.</p><p>— É um remédio com ervas muito bom para feridas — Sara explicou. — Sempre anda</p><p>comigo, afinal minhas crianças são mestres em se machucar.</p><p>Ela passou o emplastro pelas leves feridas de Naomi, que sentiu um leve ardor.</p><p>— Resolvido. — Sara sorriu e colocou o pé de Naomi no chão, que logo sentindo a leve</p><p>melhora. — Depois de um bom descanso estará novinha outra vez.</p><p>— Isso é uma maravilha! — A princesa abriu um largo sorriso e olhou para Samir, que se</p><p>mostrava satisfeito.</p><p>— Vim para levar uma pessoa para casa. — Um jovem alto e magro se apresentou.</p><p>Todos ficaram de pé e, antes que Sara com seus filhos pudessem partir, Naomi tirou sua</p><p>capa e a concedeu para a mulher, que aceitou com alegria. Ela colocou a capa sobre si e acolheu</p><p>os filhos ao lado, partindo junto com o jovem depois de se despedir com um abraço.</p><p>A princesa, apoiada em Samir, saiu do estabelecimento, sentindo o vento frio bater no</p><p>braço. Seu vestido azul e de manga curta não auxiliava em nada. Samir, ao verificar aquilo,</p><p>disse:</p><p>— Onde deixou Juvelina?</p><p>— Um pouco mais adiante. — E apontou a cabeça para frente.</p><p>Ele a conduziu até sua égua e mais para frente encontrou o seu cavalo, nele estava preso</p><p>sua pequena trouxa, de onde tirou uma pequena manta, para seu uso na viagem, e a ofereceu para</p><p>Naomi. Ela agradeceu a gentileza.</p><p>— Precisamos de um lugar para descansar — ele declarou, percebendo que a noite</p><p>avançou. — Samir estendeu a mão para a jovem, e ela subiu em Juvelina. — Não é bom uma</p><p>jovem permanecer num local assim.</p><p>— Você também existe, Samir. Precisa descansar.</p><p>Ele subiu no próprio cavalo, e ambos começaram a andar lado a lado pelas ruas da vila. Por</p><p>um momento, ficaram em silêncio, apenas com o barulho de seus pensamentos, até que o som de</p><p>uma melodia alcançou o ouvido de ambos.</p><p>— É uma canção?</p><p>— Parece que sim! — disse Samir, olhando para os lados procurando de onde vinha a</p><p>melodia.</p><p>— Vem dali. — Naomi apontou para a frente, e Samir guiou o cavalo para mais adiante.</p><p>E</p><p>03</p><p>les chegaram perto de uma praça e avistaram casais dançando por todo o espaço.</p><p>A música ressoava de maneira tão bela que atraía o coração dos dois com a delicadeza</p><p>das notas ao serem tocadas. As velas postas em alguns locais estratégicos iluminavam</p><p>o ambiente trazendo acolhimento para Naomi, que se imaginou no paraíso por uns instantes.</p><p>— Quer ir mais perto? — Samir perguntou, notando o encanto da jovem sobre o local.</p><p>— Sim, por favor!</p><p>Eles prenderam os cavalos perto de algumas árvores e, com cuidado, seguiram até um</p><p>banco de madeira. Eles se sentaram e apreciaram o ambiente, até Naomi declarar:</p><p>— Eu sou tão egoísta. — Sua voz tinha um peso de aflição.</p><p>Samir virou-se para a jovem e apertou os olhos.</p><p>— Veja as pessoas que encontramos hoje: uma família destruída, homens que bebem tanto</p><p>ao ponto de brigarem até a morte e a fome que assola todo esse lugar. E isso é só retrato de tantas</p><p>outras pessoas. O mundo está perecendo e o que eu tenho feito? — Ela balançou a cabeça, triste.</p><p>— Posso? — Samir perguntou, apontando para as mãos dela.</p><p>Naomi compreendeu o pedido e assentiu. Ele colocou as mãos dela entre as suas e apertou</p><p>com zelo.</p><p>— Existe uma linha tênue entre conhecer a dificuldade, se importar e ajudar as pessoas, e a</p><p>outra de buscar se encher com todos os sofrimentos do mundo para achar que está fazendo algo</p><p>necessário, mas só estará trazendo para si aflição de espírito — Samir declarou com firmeza e</p><p>constrangeu a jovem. — Naomi, o mundo perece, sim, com todos os tipos de males, mas erramos</p><p>ao querer tratar os sintomas e não a origem. Você pode tirar a pobreza do pobre, mas não tem o</p><p>poder de tirar o coração dele desse estado. Então, ainda que você o coloque num castelo, ele</p><p>voltaria para a lama.</p><p>— O que está dizendo? — Ela crispou o cenho.</p><p>— Estou dizendo que o principal problema da humanidade é o pecado. É ele que afeta</p><p>nossas relações, nossa estrutura social e todas as outras coisas. Tudo isso que você viu é fruto</p><p>dele. — Samir olhou para as pessoas dançando. — Se você fizer todas as boas obras, mas não</p><p>ofertar o remédio necessário para o problema, seu serviço se torna inútil. Seu reino sofre com</p><p>muitos problemas sociais, mas o maior deles é a necessidade de um Salvador.</p><p>As lágrimas de Naomi irromperam e ela se sentiu constrangida por aquelas verdades. Sua</p><p>religião não era como a luz da aurora que vai brilhando até chegar a ser dia perfeito.</p><p>— As pessoas do seu reino estão perdidas e sedentas das verdades eternas, então a família</p><p>sofre, os doentes sofrem, a justiça sofre e a moral também. Tudo é afetado. E não são causas</p><p>nobres que quebrarão esse ciclo. É somente a graça abundante. Você pode gritar aos quatros</p><p>ventos a verdade, mas se não apontar para Cristo, nada terá um resultado definitivo. Porque o</p><p>problema está no coração, e o coração é uma terra que só o Senhor pode pisar.</p><p>— Você é tão sábio, Samir — Naomi conseguiu dizer em meio às lágrimas. — Como sabe</p><p>tudo isso?</p><p>Ele mirou o horizonte e balançou a cabeça.</p><p>— Meu caminho peregrino tem me ensinado muitas coisas.</p><p>— Sua sabedoria deveria estar nos palácios, entre os juízes dos reinos e ecoando no</p><p>coração das pessoas — ela expressou com admiração.</p><p>— Está onde Deus permite.</p><p>Ela assentiu, então um silêncio caiu sobre eles até que uma nova música começou a ser</p><p>dedilhada e a jovem princesa se sentiu tentada a dançar, mas não pediria um favor daqueles.</p><p>— Você quer dançar?</p><p>O pedido espontâneo de Samir pareceu não ser real.</p><p>— Como?</p><p>— Deseja dançar? — ele repetiu a pergunta com um sorriso. — Seus pés parecem dizer</p><p>que sim.</p><p>— Ah! Fui denunciada! — Ela deixou escapar uma risada gostosa que encantou Samir. —</p><p>Eu queria muito, mas meu pé... — Deixou o restante da frase solta no ar.</p><p>— Vamos. — Ele colocou a mão na cintura dela e a fez levantar, puxou-a para mais perto,</p><p>fazendo descansar o pé ferido sobre o seu.</p><p>Naomi engoliu em seco por estarem tão próximos. Ela colocou a mão nos ombros de Samir</p><p>e ele começou a guiá-la, fazendo-a se sentir mais à vontade. Os dois se olharam firmemente e</p><p>Naomi analisou mais de perto aqueles olhos acinzentados, e Samir não pôde deixar de verificar a</p><p>beleza daquela pele que parecia reluzir com a luz da lua. Eles dançaram toda a música em</p><p>silêncio e a outra que começou logo depois também.</p><p>Naomi meditou sobre Samir e resolveu perguntar:</p><p>— De onde você realmente é? Por que está aqui? — perguntou sem rodeios.</p><p>Ele a fitou e sorriu.</p><p>— Sou de um reino distante e estou de passagem — respondeu vagamente.</p><p>— Isso não é resposta!</p><p>— O que posso dizer? — Ele apertou os lábios. — O reino em que eu nasci fica do outro</p><p>lado da margem e realmente estou fazendo uma peregrinação. Estava precisando</p><p>vivenciar o</p><p>mundo outra vez.</p><p>— Aconteceu alguma coisa para despertar essa necessidade? — Ela franziu o cenho.</p><p>— A vida de um homem é sempre difícil — Samir a fez girar e voltar para os braços dele.</p><p>— É o que eu disse: precisamos tratar a origem do problema e não os sintomas.</p><p>— Então você está se curando de algo?</p><p>— Você é perspicaz, princesa Naomi! — Ele deu um sorriso que aqueceu o coração da</p><p>jovem.</p><p>— Posso parecer estúpida, mas não sou.</p><p>— Nunca pensei que fosse alguém assim!</p><p>— Mas continue, por favor.</p><p>— Acidentes acontecem nas nossas vidas e precisamos achar uma forma de lidar com eles.</p><p>Viajar é uma boa alternativa.</p><p>— Acidentes?</p><p>— A morte de alguém — ele deixou mais claro.</p><p>— Oh! Perdoe-me a invasão em sua intimidade. — Ela se arrependeu de ter forçado uma</p><p>informação mais relevante. — Todos precisamos de um tempo para superar o luto.</p><p>Ele assentiu.</p><p>— E como sabe tantas coisas?</p><p>Ele a guiou duas vezes para um lado e duas vezes para o outro antes de responder.</p><p>— Tive um bom pai que me ensinou a verdade das Escrituras. — Ele sorriu. — Verdades</p><p>que foram esquecidas por um tempo, mas começaram a renascer.</p><p>— É, somos mesmo como uma videira. Vovó estava certa. — A princesa comparou, e</p><p>Samir crispou os olhos. — A videira está bonita e com seus muitos frutos, mas nesse seu</p><p>momento de glória vem o podador e corta seus frutos, levando-os para outro lugar. Ele então pisa</p><p>nas uvas e o suco escorre — ela contava com saudosismo na voz. — Enquanto a videira passa</p><p>pela morte, o seu vinho está alegrando o coração dos homens. Às vezes, parecemos com ela,</p><p>damos alegria a outros, mas parece que fomos abandonados, feridos e despedaçados.</p><p>Samir não pronunciou nada, então Naomi continuou:</p><p>— Mas uma coisa é certa, a videira não é cortada todos dias, apenas nos momentos</p><p>necessários de sua poda. E a cada um desses cortes, ela renasce e produz mais frutos. — Naomi</p><p>fixou-se em Samir e os dois se contemplaram. — As perdas de nossa vida medem a força do</p><p>nosso amor sacrificial. Não pela quantidade de vinho bebido, mas do vinho jorrado — declarou</p><p>com inocência e surpreendeu o homem.</p><p>— Você fez um belo resumo da minha vida — ele disse, levando-a a arregalar os olhos. —</p><p>Onde aprendeu isso?</p><p>— Minha avó costumava me ensinar as verdades do Senhor. — Ela olhou para baixo. —</p><p>Acho que esse é o momento da minha poda. — As lágrimas dela caíram.</p><p>Samir colocou o dedo no queixo dela e a fez olhá-lo de novo.</p><p>— Se Deus está podando é porque vai fazê-la melhor, não acha?</p><p>— Mas é horrível enfrentar os medos, o desconhecido e as próprias inseguranças.</p><p>— Não esqueça da promessa: “Eis que estou convosco todos os dias. Até a consumação</p><p>dos séculos!”. Ele sempre cumpre suas promessas! — A voz de Samir estava suave, e Naomi se</p><p>sentiu livre diante dele para realmente derramar seu coração.</p><p>Naquele momento, o som do sino da igreja explodiu no ar. Era meia-noite. Enquanto a</p><p>música tocava e o sino regia, luzes começaram a voar no ar e a surpresa de todos foi geral.</p><p>— Você me trouxe para um conto de fadas?</p><p>Samir sorriu.</p><p>— Não deveria ser um conto de fadas, afinal isso só acontece com as princesas loiras dos</p><p>olhos azuis. Não?</p><p>Naomi baixou os olhos e sorriu.</p><p>— Quem disse que Deus também não escreve contos de amor? — A pergunta dele fez o</p><p>coração da jovem saltar dentro do peito.</p><p>Ela o olhou de imediato e quis abraçá-lo, mas segurou sua inclinação de lançar-se sobre os</p><p>braços do homem.</p><p>— Veja só, é dali que sobem as luzes. — Samir indicou um homem entre as árvores. —</p><p>Vamos conhecer isso?</p><p>— É claro! — Ela bateu palmas empolgada.</p><p>S</p><p>04</p><p>amir e Naomi se aproximaram do homem que lançava ao ar aquelas luzes</p><p>encantadoras. Era um rapaz jovem que testava uma nova invenção. Ele atendia</p><p>algumas pessoas que perguntavam curiosas sobre seus feitos. Naomi nunca imaginou</p><p>que uma combinação daquela poderia dar certo.</p><p>— Ora, o que temos aqui? — Samir questionou, checando mais de perto todas as</p><p>combinações de materiais.</p><p>Naomi entrelaçou os dedos e analisou com curiosidade a bela novidade.</p><p>— O que é isso? — ela perguntou ao jovem.</p><p>— Olá, nobres senhores — o rapaz saudou com um sorriso. — Isso são as luzes flutuantes.</p><p>— Luzes flutuantes? — Naomi franziu o cenho.</p><p>— Sim, veja. — Ele colocou na mão dela o objeto, e Samir se achegou para admirar a</p><p>invenção.</p><p>— Nunca vi algo igual — disse o acompanhante da princesa.</p><p>— Como criou isso?</p><p>— Eu tenho feito testes a vida toda e percebi como o calor poderia fazer algo flutuar — o</p><p>jovem começou a explicar. — Então, analisando todas essas formas, percebi como o modelo de</p><p>cilindro daria certo, consegui fazer essa circunferência com um pedaço de aço, derreti a cera no</p><p>fogo e passei sobre o tecido, amarrando-o ao aço, então é só acender o fogo para o papel encher</p><p>de ar — ele pôs fogo na parte apropriada no objeto que Naomi segurava e, com o breve passar de</p><p>tempo, o papel subiu para o céu.</p><p>— É algo fantástico! — A princesa ficou admirada com a inteligência do inventor. —</p><p>Deveria mostrar isso no palácio.</p><p>— No palácio? — Os olhos do rapaz se arregalaram.</p><p>Naomi não queria se entregar, mas respirou fundo.</p><p>— De fato, coisas belas assim são para serem apreciadas por todas as pessoas. — Ela olhou</p><p>para Samir, que tinha um sorriso no rosto. — Não acha?</p><p>Samir, com as mãos para trás, apenas assentiu com a empolgação da princesa.</p><p>— Qual o seu nome? — a princesa perguntou ao inventor.</p><p>— Chamo-me Roland, senhorita — Ele estendeu a mão. — É uma alegria saber que meu</p><p>trabalho está sendo apreciado.</p><p>— E será muito mais. — Ela apertou a mão dele. — Você tem a minha palavra!</p><p>O jovem inventor não imaginava que diante dele estava uma princesa, que acabava de</p><p>aprender mais uma vez o quanto sua vida reclusa no palácio, por gosto pessoal, a fazia perder</p><p>tanto e suas imaginações se tornavam limitadas. Porém, diante de alguém que desbravava o</p><p>mundo, percebeu que poderia também ir além do que seus olhos viam e do que a mente tinha</p><p>aprendido.</p><p>— Na curiosidade há muitas descobertas — Samir disse mais perto, o que espantou a</p><p>jovem princesa.</p><p>— Você compreendeu o quanto isso é incrível? — Naomi virou-se para Samir com os</p><p>olhos brilhantes. — Eu nunca pensei que a vida pudesse ir mais longe. Foram tantas descobertas</p><p>esta noite.</p><p>— Grandes descobertas. — Samir a olhou com intensidade. — É bom ver alguém</p><p>empolgada com as coisas novamente.</p><p>— Esse jovem merece um incentivo, e tantos outros com grandes ideias também. — Naomi</p><p>segurou o braço oferecido por Samir e começaram a se afastar. — Pense em quantas pessoas</p><p>morreram com grandes ideias e não puderam fazer nada porque não tiveram oportunidade.</p><p>Samir somente sorriu.</p><p>— Se não pudermos ajudar o mundo inteiro, é bom fazer pelos que estão próximos — ele</p><p>declarou.</p><p>— E eu vou fazer, você verá! — Naomi inflou o peito e disse com toda a sua coragem e</p><p>certeza.</p><p>— Não duvidaria de uma princesa como você!</p><p>Naomi sentiu as bochechas arderem e o peito se aqueceu. O que era aquilo? Havia</p><p>conhecido Samir somente naquela noite, mas o que vivenciaram desde que se encontraram</p><p>parecia uma vida.</p><p>— Tudo bem que sou só uma jovem, mas acho que posso conversar com meu pai. — Ela</p><p>respirou fundo. — Nós não conhecemos o nosso reino. Eu tive essa certeza hoje.</p><p>— Então agradecemos a Deus pela oportunidade de conhecer a vida.</p><p>Eles chegaram até onde os cavalos estavam presos e, antes que algo mais pudesse ser dito,</p><p>os dois viraram-se para cima e apreciaram a beleza das luzes no céu negro, como estrelas, que</p><p>saíram de suas órbitas e chegaram mais pertos dos homens. Tudo aquilo remetia à beleza do</p><p>romantismo.</p><p>— Samir — Naomi murmurou.</p><p>Ele se virou para a princesa.</p><p>— Sua família não está preocupada com você?</p><p>— Estão bem, pode ter certeza. — Samir não deu mais respostas, e Naomi se arrependeu</p><p>de ultrapassar os limites. — Naomi, não quero que se sinta mal. Não foi uma má pergunta. — o</p><p>homem a compreendeu pelo olhar de chateação. — É só que não tem muito o que falar.</p><p>— Talvez você pense que eu sou jovem demais para entender, eu sei. — Ela balançou a</p><p>cabeça. — Afinal, o que uma moça de 19 anos pode saber.</p><p>— Não muito mais</p><p>que um homem de 29 anos</p><p>Ela abriu a boca.</p><p>— Você tem cara de ser mais jovem. Nunca imaginaria. Por certo, os homens de 29 anos</p><p>que conheço são bem envelhecidos pelo sol de cada dia em sua labuta.</p><p>— Eu tenho as minhas labutas. — Ele deu um sorriso tímido. — Da minha própria forma.</p><p>— Se não fosse por seus trajes, diria que era alguém da nobreza ou do clero — ela brincou.</p><p>— Mas isso não tem possibilidades, afinal alguém da nobreza não seria livre para viajar sozinho,</p><p>e uma pessoa do clero não tem possibilidade mesmo.</p><p>— Não há o que refutar em seu argumento — ele disse e, de surpresa, a levantou para a</p><p>sela do cavalo. — Precisamos buscar um lugar para dormir.</p><p>Naomi assentiu, e Samir começou a andar e puxar os cavalos. Porém, antes mesmo de</p><p>saírem de debaixo da árvore, para completa surpresa dos dois, uma trovoada se manifestou no</p><p>firmamento.</p><p>— O quê? — Naomi olhou para o céu, incrédula.</p><p>— Acredito que seja só uma nuvem que logo se dissipará — Samir declarou, mas outro</p><p>som de trovão soou e o deixou sem palavras.</p><p>— Não acho que você esteja certo dessa vez — Naomi nem terminou a sentença direito</p><p>quando outro trovão explodiu bem perto deles.</p><p>— Céus! — Ela viu Samir se apressar para subir no seu cavalo, então declarou: — Eu</p><p>nunca galopei em meio a uma tempestade — disse, mostrando ansiedade em sua voz.</p><p>Um relâmpago brilhou seguido de um novo trovão, e Samir pensou rápido. Ele tirou seu</p><p>cavalo debaixo da árvore e seguiu até o jovem inventor, pedindo-o que cuidasse do animal. Sem</p><p>esperar resposta, voltou para Naomi, subindo em Juvelina e a princesa se segurou nele.</p><p>— Você deixou seu cavalo.</p><p>— Vou recuperá-lo — declarou. — Precisamos correr agora. Está pronta?</p><p>— Eu estou. — Ela o abraçou com força e respirou fundo. — Deus, nos ajude! — Seu</p><p>pedido foi atendido com as gotas grossas de chuva começando a cair sobre eles. — Mas para</p><p>onde iremos?</p><p>— Eu não faço ideia! — Samir disse com sinceridade. — Mas oramos para que tudo ocorra</p><p>bem. Guia-nos, Deus!</p><p>Samir deu a partida com o cavalo, que começou a correr à medida que a chuva engrossava</p><p>cada vez mais e o vento começou a se tornar mais severo. Naomi achava que a qualquer</p><p>momento tudo desabaria entre eles. Ao andar por diversas curvas da vila, eles chegaram numa</p><p>estrada de barro e, ao redor, as árvores balançavam pela fúria da ventania, e enquanto o cavalo</p><p>corria, Naomi olhou para a frente e gritou:</p><p>— Cuidado!</p><p>Samir notou como um galho vinha na direção deles, voando com a força do vento e</p><p>conseguiu desviar com uma pequena distância e o pedaço de madeira passou entre eles, sendo</p><p>levado para o outro lado. Naomi soltou o ar ao ver que conseguiram escapar, mas começou a</p><p>sentir frio com toda aquela correria, vento e água caindo em abundância sobre eles.</p><p>— O que é aquilo? — ela disse e apontou para frente.</p><p>Uma luz piscava no fim do caminho, parecendo ser a esperança de um abrigo.</p><p>— Eu não sei, mas é a nossa única chance agora! — Samir disse e a ventania quase não</p><p>deixou Naomi compreender as palavras dele.</p><p>O cavalo foi guiado até a luz brilhante. Enquanto galopava, um raio explodiu no céu,</p><p>furioso, e caiu sobre uma das árvores que, para o terror de Samir e Naomi, teve seu tronco</p><p>arremessado, caindo no meio do caminho. A velocidade do animal era alucinante e o acidente</p><p>seria o mais terrível de todos.</p><p>“Meu Deus! Me perdoe a impulsividade, senão fosse isso, estaria agora na minha cama</p><p>quentinha. Recebe meu espírito... E o de Samir também”.</p><p>Naomi já tinha entregado suas almas quando o homem fez um movimento no cavalo, que o</p><p>fez saltar sobre o obstáculo e, enquanto flutuavam sobre o ar, a jovem achou que o espírito e o</p><p>corpo se separariam ali mesmo, levando-a a despertar de seu devaneio assim que as patas do</p><p>animal tiveram o impacto no chão de barro e a velocidade da corrida continuou. Então,</p><p>vislumbraram algo que parecia uma capela. Samir diminuiu a intensidade do trote do cavalo e se</p><p>aproximou da porta. Ao pararem, ele desceu da égua e estendeu a mão para Naomi, que ainda</p><p>estava trêmula. A porta do lugar se abriu e a luz da lamparina iluminou os dois.</p><p>— Meu salvador! — Uma menina com os cabelos castanhos declarou.</p><p>Samir olhou para Naomi e arregalou os olhos.</p><p>— O quê? — ela perguntou nervosa.</p><p>— Seu cabelo, minha querida, está arrepiado e sua pele coberta de lama. — A menina da</p><p>casa passou a mão no rosto da princesa e mostrou o dedo sujo.</p><p>Naomi cobriu o rosto, envergonhada.</p><p>— Mas o caro senhor não está nos melhores dias — a moça disse com sua língua afiada.</p><p>— Poderíamos pedir abrigo aqui? — Samir perguntou.</p><p>— É claro, a casa do Senhor está sempre aberta para seus filhos. — A jovem de cabelo</p><p>castanho declarou e os colocou para dentro.</p><p>Uma mulher de mais idade apareceu junto com um senhor ao lado.</p><p>— Mamãe e papai, esse casal precisa de ajuda.</p><p>Naomi foi acolhida pelas duas mulheres, que a levaram para se limpar. Elas tiraram a lama</p><p>da pele da jovem, os cabelos foram soltos de suas tranças, as feridas do pé limpas e um novo</p><p>remédio proposto pela senhora foi adicionado e enfaixado com novos panos. Um vestido simples</p><p>foi incorporado e uma trança feita.</p><p>— Vocês devem estar com fome. Venham! — disse a jovem.</p><p>Ao chegarem na cozinha, Samir estava com uma roupa nova e os cabelos molhados</p><p>penteados, manifestando para Naomi uma nova percepção da beleza simples, mas encantadora</p><p>dele.</p><p>— Sua senhora está pronta! — a menina que os atendeu declarou com alegria.</p><p>Ao se virar, Samir não conseguiu pronunciar palavras para a beleza da jovem negra e de</p><p>longos cabelos. Ele a apreciou como se não houvesse outra mulher diante dele no ambiente,</p><p>deixando Naomi com um rubor no rosto. Mas ele não declarou nada, apenas segurou sua mão e a</p><p>convidou para sentar ao seu lado, a fim de comerem.</p><p>— Obrigada, senhora, por nos acolher.</p><p>— Foi a melhor coisa que nos aconteceu! Há tempos não recebemos muitas pessoas aqui.</p><p>— Prisca, não fale assim! — a senhora disse à jovem, que agora tinha um nome.</p><p>— É verdade! — Prisca não se deixou intimidar. — Nossa igreja não tem mais tido</p><p>pessoas. A cada estação, o coração das pessoas parece estar mais distante de Deus.</p><p>Naomi sentiu uma vergonha brotar no seu coração.</p><p>— Há muito tempo, grandes missionários apregoavam neste reino e outros, então as</p><p>pessoas vinham para a igreja, mas, com o tempo, os pais não ensinaram mais os seus filhos e a</p><p>próxima geração se esqueceu. Assim chegamos aqui.</p><p>— Por isso, a vila está sofrendo dia a dia — Naomi considerou com tristeza. — Eles se</p><p>esqueceram da verdade.</p><p>— Sim, e não há ninguém que possa ir pregar — Prisca declarou. — Papai está velho e a</p><p>nova geração não levanta os pés para ir, eu preciso cuidar daqui. É uma tristeza.</p><p>Todos ficaram calados diante da consolidação do fato do quanto a verdade havia sido</p><p>esquecida e a colheita era de destruição, sofrimento e terror.</p><p>— Não vamos mais enchê-los com isso — disse a senhora, cortando o assunto. — São</p><p>nossos convidados e estão extremamente cansados. Vamos, minha jovem, você pode dormir com</p><p>a Prisca. — A mulher estendeu a mão para Naomi, que, com a ajuda de Samir, se pôs de pé.</p><p>Antes de partir da cozinha, Naomi virou-se para o agora amigo e perguntou:</p><p>— Pela manhã, partirá? — sua voz tinha um tom melancólico.</p><p>— Não sem antes entregá-la a sua família. — Ele segurou a mão dela. — Eu sou seu</p><p>guarda, lembra-se? Tem que confiar.</p><p>— Eu confio!</p><p>Então ela partiu para o quarto e, ao se deitar, sua mente relembrou de tudo que vivenciou</p><p>naquela noite, sabendo que nunca mais seria a mesma pessoa. Enfim, descansou.</p><p>O</p><p>05</p><p>sol entrava pela fresta da janela quando Naomi despertou. Ela se levantou da</p><p>cama sentindo os pés melhores e constatou que podia caminhar novamente. Estava</p><p>sozinha no ambiente e, após molhar o rosto com a água disposta numa tigela no</p><p>quarto, desceu para a cozinha, encontrando todos sentados ao redor da mesa.</p><p>— Ela acordou — Prisca disse com animação. — Sente-se melhor?</p><p>— Sim, eu agradeço por toda a ajuda. — Ela fez uma reverência à família e olhou para</p><p>Samir, que a contemplava à distância. — Eu estou pronta para tudo agora.</p><p>— Mas não sem comer — declarou</p><p>a mulher. — Vamos, sente-se.</p><p>Eles aproveitaram o café da manhã modesto com pão caseiro e frutas. Logo após, Samir</p><p>disse que prepararia o cavalo para a partida deles, que aconteceu pouco depois, fazendo a jovem</p><p>menina ficar triste por ter de se despedir.</p><p>— Ah! Vocês poderiam passar mais tempo — Prisca declarou enquanto acompanhava</p><p>Naomi para o lado de fora. — Eu não tenho ninguém para conversar e foi bom ter outra menina</p><p>comigo.</p><p>— Prometo vir visitá-la — Naomi declarou, para a alegria da moça.</p><p>— Vou acreditar em suas palavras. — Prisca abraçou a jovem e disse no seu ouvido. — Eu</p><p>sei onde encontrá-la, Alteza!</p><p>Naomi arregalou os olhos, mas Prisca colocou o dedo indicador sobre a boca,</p><p>demonstrando que o segredo seria guardado.</p><p>— Podemos ir agora! — Samir declarou e a princesa assentiu.</p><p>Antes que pudessem sentar sobre o cavalo, a família se reuniu na porta e abençoou a</p><p>partida. Naomi declarou:</p><p>— Eu nunca vou esquecer de toda a ajuda, e podem esperar, pois coisas novas acontecerão</p><p>por aqui.</p><p>— Ele sempre cumpre as suas promessas de nos visitar em nossas trevas — disse o pastor</p><p>para o casal e, por fim, olhou para Samir, que assentiu e levantou Naomi para se sentar na sela da</p><p>égua e subiu em seguida. Com uma trouxinha de comida, eles partiram.</p><p>A estrada estava seca e, após horas andando em silêncio, os muros altos do castelo</p><p>despontaram diante deles. O coração de Naomi bateu forte no peito. Na mistura de alegria em</p><p>voltar para casa sã e salva, mas na tristeza de nunca mais ver Samir. Ele guiou o cavalo para uma</p><p>relva perto dos muros, mas à distância dos portões para que não houvesse atritos. Só então Samir</p><p>desceu do cavalo.</p><p>— Agora já pode voltar para o seu lar. Está entregue!</p><p>— Não acredito que tudo isso aconteceu. — Naomi tinha um tom saudosista na voz. —</p><p>Depois dessa noite, nunca mais serei a mesma.</p><p>Samir se aproximou um pouco mais e segurou as mãos da jovem.</p><p>— Espero que entenda que onde nascemos, onde estamos e o que somos é porque Deus</p><p>tem seus propósitos. — Ele a olhou com firmeza. — Às vezes, estamos tão mergulhados em</p><p>nossos medos que achamos serem os mais importantes, mas há um mundo inteiro para olhar.</p><p>Nessa noite que passou, você levantou os olhos para o horizonte e enxergou além do rio.</p><p>Parabéns, princesa Naomi.</p><p>— Não teria conseguido se não fosse você.</p><p>— Sem dúvidas, conseguiria. Mas fico feliz em ter sido usado para isso. — Ele beijou o</p><p>dorso da mão dela.</p><p>Naomi sabia que a despedida era iminente, só não estava pronta para aquilo ainda.</p><p>— Sabe, fugir não foi sábio, mas talvez não tivesse outra oportunidade de conhecê-lo.</p><p>Agora eu não me arrependo.</p><p>Samir sorriu.</p><p>— A Providência é sábia em fazer dos nossos erros frutos para nosso crescimento.</p><p>— Verei-o outra vez, Samir? — Naomi sentia o peito arder numa mistura de aflição e</p><p>angústia. Ele caminhava para mais perto do cavalo e se afastava dela.</p><p>— Há coisas que só pertencem a Deus, mas você confia? — Ele apontou para algo atrás</p><p>dela. — Veja, eles já a encontraram.</p><p>Um vento começou a soprar e Naomi se virou, avistando os guardas se aproximarem, mas,</p><p>ao voltar-se outra vez para Samir, ele não estava mais lá. Seu coração esmoreceu dentro do peito</p><p>e lágrimas desceram. Ela foi recolhida para o palácio, abraçada pelos pais e retornou aos seus</p><p>dias comuns.</p><p>N</p><p>06</p><p>Um mês depois</p><p>aomi verificava, pela janela de sua carruagem, as paisagens do reino de Lars.</p><p>Era um lugar com esplendorosas estruturas arquitetônicas, as montanhas cercavam o</p><p>vilarejo e se podia ver a imensa pradaria no horizonte, onde tinham plantações de</p><p>diversas frutas e legumes. Antes de viajar, Naomi estudou sobre o lugar, descobrindo a força da</p><p>agricultura na economia em Lars. Ao ver pessoalmente, sentiu orgulho dos governantes ao ver</p><p>um reino tão próspero.</p><p>Aos poucos a carruagem diminuía a velocidade. A princesa respirou fundo, a fim de ganhar</p><p>coragem para enfrentar seus temores, que, durante todo aquele tempo, orou para vencer. Estar ali</p><p>era a prova disso. Ela olhava para suas mãos enluvadas quando a portinhola do veículo se abriu.</p><p>Naomi viu o lacaio estender a mão para ajudá-la a descer.</p><p>Já do lado de fora, ao erguer a cabeça, avistou o imenso palácio à sua frente: era a</p><p>construção que coroava a grandeza de todo o reino. Ela visualizou as demais carruagens ao lado</p><p>da sua e diversas princesas e príncipes também se apresentavam para o evento. A sua direita, ela</p><p>enxergou uma jovem de vestido cor de creme e cabelos lisos, mas seus olhos puxados</p><p>manifestaram sua peculiaridade. Ambas deram um sorriso cúmplice e Naomi suspirou com certo</p><p>alívio. Não era a única diferente.</p><p>Todos foram guiados para o lado de dentro, e a cada caminhava revelava mais e mais</p><p>princesas com tonalidades de pele mais claras, levemente mais escuras, cabelos de todas as</p><p>texturas e olhos com variadas cores. O mundo era bem mais do que os limites do seu reino, a</p><p>princesa ponderou satisfeita.</p><p>Naomi aproveitou a cortesia de todos os jovens e contemplou com prazer as pinturas dos</p><p>quadros, esculturas e monumentos. Eles tiveram a chance de explorar o castelo como parte do</p><p>momento do aniversário do príncipe. Todos se aproximaram do quadro de uma mulher loira e</p><p>olhos verdes que transmitia serenidade. Naomi observava bem quando ouviu:</p><p>— Quem é essa? — Uma princesa de cabelo castanho indagou.</p><p>— Minha família soube que a rainha de Lars faleceu há três anos. Todos ficaram</p><p>desolados, especialmente o filho e o marido — respondeu a jovem de olhos puxados.</p><p>— Seria essa a rainha? — a mesma princesa voltou a indagar.</p><p>— Acredito que sim. — Uma princesa de olhos azuis respondeu. — Soube que o</p><p>aniversário do Príncipe é um marco do novo tempo para este reino, que finalmente está se</p><p>abrindo ao mundo outra vez. Eles passaram anos em completo comércio fechado e sem contato</p><p>com os demais.</p><p>— Nunca conheci o príncipe de Lars. Como será que ele é? — Uma princesa de vestido</p><p>rosa e pele com sarnas perguntou, alvoroçando as outras meninas. — Talvez não seja só o</p><p>aniversário dele, mas uma data para a substituição do pai.</p><p>— Será? — alguém distante perguntou.</p><p>Naomi escutava o burburinho e ficou chocada pela fatalidade que ocorreu naquele lugar.</p><p>Nunca imaginaria que em um reino tão belo uma tremenda fatalidade teria ocorrido. A mulher do</p><p>quadro demonstra ser uma forte. Sua perda teria sido imensurável.</p><p>Naomi percebeu que estava sozinha e acelerou os passos para chegar no corredor que</p><p>formava a fila para serem anunciados, a fim de entrarem no salão principal. Naomi, princesa de</p><p>Lírian, foi apresentada e desceu a escadaria contemplando a bela decoração com arabesco</p><p>dourado, teto com pinturas naturalistas que evocavam o paraíso, piso de mármore e todas as</p><p>demais pratarias da ornamentação manifestaram a riqueza e o poder de Lars. Após um tempo</p><p>para acomodação, o interlocutor anunciou:</p><p>— Caros Príncipes e princesas de todos os reinos, recebam agora a Família Real para a</p><p>comemoração do 10º aniversário do príncipe de Lars.</p><p>Naomi franziu o cenho e notou o suspirou de algumas princesas.</p><p>— Com vocês, o Príncipe Real Alef I e o Rei Samir III!</p><p>A princesa de Lírian sentiu todo o corpo petrificar e a respiração ser suspensa diante do</p><p>anúncio e o aparecimento do pequeno Príncipe do reino, vindo acompanhado do majestoso</p><p>Samir, o Rei! Os olhos deles se encontraram. O sinal de estrela no queixo não deixava dúvida. A</p><p>jovem piscou repetidamente e colocou a mão no coração. Uma pontada de euforia e aflição a</p><p>dominou. Tudo que passaram juntos retornou a sua mente. Todas as palavras dele sobre sua vida,</p><p>combinada a conversa sobre a morte da rainha faziam sentido. Ela não prestou atenção em mais</p><p>nada, apenas olhou para o chão, a fim de entender como aquele tipo de coisa acontecia. De</p><p>repente, enxergou uma mão se estendendo diante dela.</p><p>— Por que não me concede esta dança? — Ela deparou-se com Samir em todas as suas</p><p>vestimentas reais e um sorriso contido. — Tenho certeza que seu pé está curado.</p><p>Ela olhou em volta e percebeu como todos visualizavam com curiosidade.</p><p>— Você é... — Ela nem conseguia terminar a frase.</p><p>— Sou?</p><p>— É o Rei! — Ela estendeu</p><p>a mão para ele ainda atônita. — Você sabia de qual baile eu</p><p>estava falando e agora entendo porque disse que sua vida estava recomeçando. Passou um luto</p><p>por ficar viúvo.</p><p>Samir começou a conduzi-la diante da melodia lenta que começava a tocar.</p><p>— Agora você sabe que todas as coisas, no tempo certo, são colocadas no devido lugar —</p><p>ele disse com segurança.</p><p>— Você tem um filho. — Ela o olhou e sentiu o frio na barriga por encontrar aqueles olhos</p><p>cinzas outra vez. Uma saudade também a envolveu.</p><p>— Tenho sim.</p><p>Naomi não conseguiu dizer mais nada.</p><p>— E o seu reino, como está? — Ele a guiou para a direita.</p><p>— Milo saiu da prisão e começou a cuidar da família, mas ainda luta com a bebida. A</p><p>igreja recebeu auxílio e os guardas agora são convocados aos cultos. A palavra tem entrado no</p><p>coração de alguns. — Naomi sorriu. — O jovem inventor agora está produzindo algo maior.</p><p>— Precisamos apenas dispor nossas vidas para conhecer a graça de Deus para nós, não? —</p><p>Samir disse com suavidade, a fez rodar e a trouxe para si.</p><p>— Agora entendo suas palavras. — Ela balançou a cabeça. — Ao ver seu reino e como</p><p>administra tudo. É realmente um excelente governante.</p><p>— Isso são frutos de toda uma geração antes de mim, apenas procuro manter da melhor</p><p>forma. Afinal me foram dados para serem cuidados.</p><p>— Tenho aprendido isso. — Ela baixou a cabeça.</p><p>— Fico contente ao ver como buscou desenvolver de fato o aprendizado para além das</p><p>emoções, mas realmente se envolveu, a fim de fazer algo.</p><p>A jovem princesa assentiu.</p><p>— Saímos de nossas cavernas.</p><p>— Você precisou sair de seu conforto para conhecer o mundo, e eu precisei sair do meu</p><p>luto para conhecer você! — Samir disse com certa intensidade, pegando-a de surpresa.</p><p>Ela fixou-se nele de imediato.</p><p>— Samir, eu…</p><p>— Você?</p><p>— Sou tão diferente de sua primeira esposa. — Sua voz tinha certo desespero. — E você é</p><p>o Rei!</p><p>— Você certamente é uma princesa duas vezes. Uma educada por pais amorosos e leais, a</p><p>outra forjada pela mão do Rei dos reis. É uma benção divina. Não acha?</p><p>Ela fechou os olhos e sentiu uma lágrima escorrer pela bochecha.</p><p>— E está aqui com seu belo vestido azul, como da primeira vez.</p><p>— Então, em nossas fugas cumprimos a vontade do Eterno — o tom dela era suave.</p><p>— E ela se manifesta mais uma vez em tê-la aqui!</p><p>Ele a girou no ar e, na última nota musical, para espanto de todos, selou um voto ao</p><p>depositar um beijo na fronte da princesa Naomi. Era um novo tempo para o reino de Lars!</p><p>FIM!</p><p>COMO SOBREVIVER A UM CASAMENTO ARRANJADO COM UM VAMPIRO - Gabi Casseta</p><p>Dedicatória</p><p>Para Maressa, Biannca, Eric, Mascarini e Balestre. Vocês não fazem ideia o</p><p>quanto nossas conversas de madrugada ou discussões sobre teologia voltando</p><p>dos cultos me inspiraram a escrever essa história.</p><p>E para Aline, que me pediu para escrever uma princesa com uma característica</p><p>bem específica.</p><p>“Há trevas na vida e há luzes, e você é uma das luzes, a luz de</p><p>todas as luzes.”</p><p>Drácula, Bran Stolker</p><p>A</p><p>01</p><p>s damas-da-noite e margaridas mortas no vaso de cristal sobre a penteadeira</p><p>faziam meu quarto cheirar a mofo e funeral. Àquela altura, até as aranhas que</p><p>moravam nas grandes teias pendentes no pé direito alto deveriam estar fartas do</p><p>cheiro das flores que, apesar de mortas, ainda exalavam perfume.</p><p>Passei o pente pelos meus cabelos negros e ondulados. Eles se encontravam desgrenhados</p><p>e na altura do ombro, mas tentei controlar o frizz. O tempo úmido e sem sol não ajudava. Um ar</p><p>sempre gélido percorria os corredores do castelo e entrava indevidamente por baixo da porta de</p><p>ébano, fazendo meu quarto estar sempre frio, escuro e úmido como uma cripta ou uma cova.</p><p>Alguém bateu na porta de madeira pesada do meu aposento com tanta força que achei que</p><p>fosse derrubar a estrutura.</p><p>— Já vou! — gritei para a pessoa do outro lado para que ele parasse de bater, mas o</p><p>indivíduo não o fez.</p><p>As batidas da porta se misturavam com o retumbar do meu coração. Respirei fundo o ar</p><p>gélido e senti um arrepio percorrer minha espinha, como se aranhas estivessem escalando minha</p><p>dorsal. Apertei o casaco ao redor dos ombros e observei, de relance, através do espelho da</p><p>penteadeira, os itens que estavam sobre minha cama: uma adaga de madeira, dois dentes de alho</p><p>e meu vestido branco de noiva. Sinceramente, eu preferia que o vestido fosse preto. Combinaria</p><p>mais com a sensação de luto que era estar noiva de um vampiro.</p><p>P</p><p>02</p><p>recisei arrastar a perna direita enquanto corria pelo castelo do conde Edward III.</p><p>A escuridão da noite se fez presente depressa, e com ela o tão esperado casamento do</p><p>conde com a princesa Acsa.</p><p>O casamento chegou rápido demais. Pensei, enquanto andava pelos corredores que</p><p>memorizei nos últimos seis anos.</p><p>Quando o sol começou a se pôr, me apressei a deixar a saleta no subsolo, que usava para</p><p>preparar as poções e misturas. Me arrastei pelas estreitas escadarias sem janelas até o andar</p><p>térreo, onde todos os corredores possuíam amplas janelas com vitrais azuis e vermelhos que,</p><p>quando iluminados pela luz do luar, faziam tanto a pele pálida do meu anfitrião como a dos seus</p><p>convidados ficarem púrpura.</p><p>Acho que eu deveria usar carcereiro ao invés de anfitrião.</p><p>Torci para não encontrar nenhum vampiro perambulando pelo castelo antes de chegar ao</p><p>quarto de Acsa. Eu precisava lhe dizer que tínhamos uma saída, que talvez eu tivesse</p><p>desenvolvido algo que faria nós dois escaparmos com vida dessa cova.</p><p>De frente para os aposentos da princesa, esmurrei a porta com toda a força que tinha. A</p><p>cada batida sentia meus músculos se retrairem e pesarem, como se a qualquer momento meu</p><p>braço fosse cair do corpo.</p><p>Talvez ele caia. Talvez todos meus membros venham a se separar do tronco e Acsa acabe</p><p>como as demais noivas de Edward.</p><p>Antes que os pensamentos negativos me consumissem, Acsa abriu a porta. Ela trajava um</p><p>lindo vestido branco de mangas longas e um véu comprido que chegava a altura da cintura. O</p><p>véu se misturava com seus cabelos negros ondulados na altura dos ombros. Ela estava linda e</p><p>pronta para morrer.</p><p>— Consegui. — Tirei o pequeno frasco com o líquido verde musgo do terno ao mesmo</p><p>instante em que senti um vento forte nas minhas costas.</p><p>O rosto corado de Acsa ficou pálido como as lindas pétalas das rosas brancas do jardim e</p><p>senti a presença da criatura antes que ela pronunciasse alguma palavra.</p><p>— Que gentileza sua, Nikolai, acompanhar a noiva — a voz melódica da vampira atrás de</p><p>mim enganaria qualquer homem. Se não fosse o Senhor ter aberto meus olhos, eu desistiria da</p><p>fuga agora mesmo. Todavia, nem a beleza sedutora das trevas poderia apagar a luz do meu Deus.</p><p>Apertei o pequeno frasco nas mãos de Acsa, que o escondeu entre as pregas do vestido e</p><p>me voltei para a vampira com meu melhor sorriso, ignorando a dor que sorrir causava ao repuxar</p><p>meus músculos faciais.</p><p>— Já que o pai da noiva não está aqui, alguém tem que leva-lá ao altar, Victória.</p><p>A vampira ficou em silêncio, me observando. Como sempre, ela trajava um pesado casaco</p><p>de pele de urso e tinha os cabelos cacheados loiros escuros emoldurando a pele quase</p><p>transparente. Ela sorriu, deixando as presas à mostra sem qualquer cerimônia.</p><p>— Vamos, está na hora — ordenou a vampira.</p><p>Ofereci o braço para Acsa, que o pegou prontamente e me esforcei para andar normalmente</p><p>pelo corredor da morte, rumo a cerimônia de casamento maldita. Victória nos escoltou e Acsa se</p><p>manteve em silêncio ao meu lado, com a postura ereta, como a dama que foi ensinada a ser. Me</p><p>perguntei quais seriam seus últimos pensamentos antes da morte iminente.</p><p>C</p><p>03</p><p>aminhando pelos corredores, rumo a sala onde aconteceria uma festa pré-</p><p>cerimônia, vi meus últimos meses passarem diante dos meus olhos. Levei quase uma</p><p>semana para me convencer de que não estava louca e meu noivo era realmente um</p><p>vampiro.</p><p>De início, quando cheguei ao castelo, não notei nada alarmante, a não ser uma ausência</p><p>gritante de funcionários. Isso não era exatamente um problema. Como princesa de um reino em</p><p>decadência, sabia bem o que era não ter dinheiro para pagar cozinheiros, copeiros, faxineiras e</p><p>jardineiros. No</p><p>entanto, não esperava encontrar tal situação no castelo de Edward. Ele não era</p><p>um príncipe, mas um conde muito abastado. Usufrui de sua riqueza durante os dois meses nos</p><p>quais ele passou entre a minha família bancando todas as despesas necessárias do castelo. Nunca</p><p>imaginei que sua propriedade estaria abandonada aos ratos e morcegos.</p><p>Dois meses! Como um vampiro pode se esconder por dois meses?</p><p>Edward foi um dos convidados de meu pai para um baile real, a última tentativa de</p><p>conseguir um bom casamento para mim e salvar nosso reino da falência. Como a filha mais</p><p>velha, já havia aceitado que não me casaria por amor, portanto consenti com a ideia, a fim de</p><p>salvar minha família. Meus pais só tinham duas exigências:</p><p>1. O homem em questão precisava ser muito rico.</p><p>2. Ele tinha que ser cristão.</p><p>Apesar do meu matrimônio ser puramente político, meus pais nunca abririam mão da nossa</p><p>fé ao oferecer minha mão. Eu estava disposta a fazer um casamento arranjado dar certo, para a</p><p>glória de Deus.</p><p>Edward era alto, esbelto, com cabelos castanhos claros na altura do ombro e sempre presos</p><p>por uma fita preta. Um sorriso perfeito, porte atlético e um bolso abastado de dinheiro. Assim</p><p>que o conde pisou em nosso castelo, senti chamas invadirem meu coração. Ele me atraia e não</p><p>posso negar que lhe dispensei mais tempo que os demais pretendentes. Almoços demorados,</p><p>manhãs na igreja, jogos de cartas com meus pais e caminhadas quando o sol se punha. Edward</p><p>exercia sobre mim uma forte atração física, mas também intelectual. Ele falava de assuntos que</p><p>presume-se que homens de 30 anos ainda estão descobrindo. Ciências, sociologia e fé eram</p><p>pautas recorrentes em nossas conversas. Homens inteligentes sempre despertaram em mim uma</p><p>atração maior que a física.</p><p>Todavia, apesar da minha preferência, foram meus pais que deram o veredito favorável ao</p><p>conde. Ele também os encantou de tal forma que minha mãe disse, quando me colocou na</p><p>carruagem que me trouxe até aqui:</p><p>— Acsa, não se demore a casar com este homem, pois nem a mais casta das mulheres seria</p><p>capaz de ficar abaixo do mesmo teto que Edward por muito tempo sem perder a virgindade.</p><p>Junto ao alerta amável, visando que eu não caísse em pecado, minha mãe me deu um beijo</p><p>na bochecha e mandou o cocheiro partir.</p><p>Meus pais gostariam que o casamento fosse em nossas propriedades, mas Edward insistiu</p><p>que havia ficado longe por tempo demais e tinha assuntos políticos urgentes para resolver. Então,</p><p>ficou acordado que eu iria a seu castelo e meus pais nos visitariam para a cerimônia. Contudo,</p><p>dois dias após minha chegada, uma carta urgente mandada pela minha mãe me pegou de</p><p>surpresa.</p><p>— Sinto dar-lhe uma má notícia, mas seu pai adoeceu, portanto não virão ao nosso</p><p>casamento. — Edward sinalizou a carta à minha frente, pousada acima do meu prato de</p><p>porcelana.</p><p>Li as palavras da minha mãe, deixando-me espantar pela gravidade da doença repentina e</p><p>me deliciando com sua caligrafia perfeita. Eu estava com saudade de casa e a doença de meu pai</p><p>apenas aumentou a sensação de urgência relacionada a meu casamento.</p><p>— Podemos antecipar o casamento para semana que vem? Gostaria de resolver isso e ir</p><p>visitar meu pai o quanto antes — perguntei ao conde.</p><p>Do outro lado da extensa mesa de madeira que nos separava, ele abriu um sorriso largo,</p><p>com olhos semicerrados, que o faziam parecer um predador, e disse:</p><p>— Claro, minha noiva.</p><p>Comi, falando sobre os preparativos. Edward me respondeu com gentileza a cada pergunta,</p><p>todavia não tocou na comida.</p><p>Na minha terceira noite no castelo, não consegui dormir. A preocupação com meu pai</p><p>corroía meus ossos e o frio me fazia tremer. Levantei, coloquei um robe e me dirigi até a</p><p>cozinha, no intuito de preparar um chá.</p><p>O castelo de Gólgota ficava mais assustador durante a noite. Suas altas janelas com vitrais</p><p>pintados de vermelho e azul tingiam o caminho de púrpura. O vento assoviava ao passar entre os</p><p>vãos das portas e a luz da lua mal iluminava os corredores. Meus pés descalços estavam</p><p>congelando contra os ladrilhos, então apertei o robe contra o corpo e acelerei o passo.</p><p>Como eu não conhecia o castelo, me perdi em seus infindáveis corredores. Acabei em uma</p><p>câmara sem janelas. As paredes eram próximas e formavam um hexágono com saída para três</p><p>corredores estreitos e iluminados por poucas velas nos altos e enferrujados lustres. Decidi dar</p><p>meia-volta, mas ouvi um grito agudo, como de uma mulher ou criança.</p><p>Os pelos de minha nuca se arrepiaram e encarei o infindável corredor de onde veio o som.</p><p>Não era possível ver quase nada além de uma tenebrosa escuridão. Eu deveria ter o ignorado e</p><p>voltado aos meus aposentos, mas outro grito cortou a noite e a curiosidade bateu forte no meu</p><p>peito. Com passos lentos, segui em frente. A cada passo, o corredor ficava mais estreito, ao</p><p>ponto de me ver quase espremida entre as duas paredes ásperas que rasgavam meu robe, até que</p><p>cheguei ao final, quando encontrei outra ampla câmara vazia. Não havia portas nem janelas,</p><p>apenas uma escada em caracol impossível de ver o final devido à densa escuridão.</p><p>Ouvi o grito novamente, dessa vez mais perto, porém, também mais fraco, como se a</p><p>emissora estivesse perdendo as forças. De súbito, uma mão fria tocou meu braço e me fez pular.</p><p>Tapei a boca para evitar o meu grito.</p><p>— Você não deveria estar aqui. — O homem que segurou meu braço me arrastou de volta</p><p>até o estreito corredor. Ele era mais alto que eu e tinha uma aparência esquelética. Sua pele era</p><p>negra, e seus olhos, castanhos.</p><p>— Eu ouvi gritos — falei tentando me desvencilhar da mão daquele desconhecido. Ele me</p><p>empurrava com tanta urgência que pedaços do tecido do meu robe ficavam presos nas paredes</p><p>ásperas.</p><p>— Acredite em mim, é melhor não fazer perguntas.</p><p>O homem me conduziu tão rápido até um dos corredores cobertos de vitrais que tive que</p><p>me esforçar para memorizar o caminho de volta. Quando estávamos próximos da cozinha, ele</p><p>disse:</p><p>— Vire a primeira direita e depois a segunda esquerda, então a senhorita chegará ao seu</p><p>quarto. — Ele me deu as costas.</p><p>— Espere! Quem é você?</p><p>O homem se voltou para mim com uma ruga na testa, como se ninguém lhe perguntasse</p><p>isso há muitos anos. O homem era jovem, mas as roupas maltrapilhas e foras de moda lhe davam</p><p>um ar de mais velho. Ele me observou por alguns segundos em silêncio. Sustentei seu olhar</p><p>tempestuoso até que me desse uma resposta.</p><p>— Me chamo Nikolai. Meus pêsames pelo noivado.</p><p>— Acho que você quis dizer meus parabéns.</p><p>Ele abriu um sorriso amargo. Seu rosto iluminado pela luz púrpura fazia com que parecesse</p><p>ainda mais esquelético.</p><p>— Não quis dizer não, Acsa. Não sou o tipo de homem que dá felicitações a uma mulher</p><p>que está prestes a casar-se com um morto-vivo.</p><p>Morcegos voaram do outro lado da janela, dando-me um susto com a aparição repentina.</p><p>Nikolai encolheu o corpo e começou a correr antes que eu pudesse fazer outra pergunta.</p><p>Observei-o adentrar os escuros corredores com o questionamento preso a minha língua.</p><p>O que você quer dizer com morto-vivo?</p><p>Ele quis dizer vampiro, respondi à Acsa do passado, enquanto me encaminhava até o</p><p>casório com o braço entrelaçado em Nikolai. Ele tropeçou no tapete de um dos corredores e</p><p>quase caímos. Victória xingou o homem.</p><p>— Você está bem? — perguntei, enquanto ele se recompunha.</p><p>— Beba o líquido do frasco o mais rápido que puder — Nikolai falou em um sussurro.</p><p>Olhei para a vampira que nos escoltava para garantir que ela não ouviu o que ele disse.</p><p>Ciente do frasco escondido em meu vestido de noiva, sorri em resposta, com o objetivo aliviar a</p><p>tensão nos ombros dele.</p><p>— Beberei — cochichei para que Victória não nos ouvisse e, logo em seguida, mudei de</p><p>assunto. — Victória também beberá do melhor vinho conosco.</p><p>— Certamente, princesa — respondeu a vampira. Eu não sabia se ela havia respondido</p><p>com zombaria ou porque ainda acreditava que eu não desconfiava de seus planos maléficos.</p><p>Continuamos a andar até o salão onde seria a festa pré-nupcial. A ideia de uma festa antes</p><p>do casório me era estranha, mas dada a situação, não foi a coisa mais bizarra</p><p>que vivi. Ao parar</p><p>em frente à pesada porta de madeira, notei que os entalhes que a decoravam eram pequenas</p><p>caveiras. Engoli em seco, enquanto Nikolai apertava meu braço. As portas se abriram, revelando</p><p>a festa montada para comemorar minha morte.</p><p>— Seja vivo ou morto — falou Nikolai, observando a festa —, eu só deixarei esse castelo</p><p>com você ao meu lado.</p><p>A</p><p>04</p><p>ssim que as portas do salão principal foram abertas, desejei correr como na</p><p>noite que conheci Acsa.</p><p>Na ocasião, enquanto minhas pernas queimavam e eu traçava o caminho de</p><p>volta aos meus aposentos no subsolo, me perguntava porque contei à princesa o segredo de seu</p><p>noivo. Uma vez no meu quarto, tranquei a porta com medo de que algum vampiro pudesse ter</p><p>escutado nossa conversa e viesse cobrar uma explicação.</p><p>Sentei-me na cama, ainda me questionando o que teria feito tal ousadia se apossar de mim.</p><p>Entendi quando observei o livro de capa preta aberto em cima da minha escrivaninha.</p><p>Acsa não era a primeira noiva de Edward. Eu já havia perdido a conta de quantas princesas</p><p>jovens e belas ele seduziu nos últimos seis anos. E tinha medo de imaginar quantas mais ele</p><p>poderia ter conquistado ao longo dos seus séculos de existência. Eu não estava certo de há</p><p>quanto tempo Edward estava vivo, mas minhas pesquisas apontaram mais de 300 anos.</p><p>Folheei as escrituras sagradas lembrando de sua dona: Catarina, uma doce princesa que não</p><p>ficou mais que uma semana no castelo. Diferente de algumas, Catarina era uma verdadeira</p><p>devota a Jesus Cristo e falava dele o tempo inteiro. Edward logo se cansou dela e antecipou o</p><p>casamento. Eu gostaria de ter feito algo para salvá-la, afinal, foi ela que me apresentou a</p><p>verdadeira fé.</p><p>Foi por isso que você tentou revelar a verdade à Acsa, por Catarina, por todas as</p><p>princesas que você ajudou a matar antes dela e as que você não pôde salvar depois. Sussurrava</p><p>minha consciência.</p><p>Fechei o livro com cuidado, desejando ter conhecido Jesus Cristo na infância. Isso teria me</p><p>poupado muito sofrimento. Contudo, minha mãe nunca foi adepta da fé e nutria um</p><p>relacionamento bem questionável com o pastor do reino em que cresci. Uma mulher divorciada</p><p>não gostava de ouvir que estava em pecado, especialmente se ela se permitia deitar com outros</p><p>homens.</p><p>Eu não pensava diferente e isso me levou a conhecer Victória. Tinha o péssimo hábito de</p><p>julgar as mulheres com as quais me relacionei apenas pela aparência física. Aquilo que me atraía</p><p>pela beleza me fazia agir como um predador. No entanto, com Victória eu era a presa, não o</p><p>predador.</p><p>— Andem logo! — ordenou a vampira atrás de mim, me trazendo de volta ao presente.</p><p>Acsa e eu adentramos no salão lotado de vampiros e humanos. Eles aplaudiram a presença</p><p>da princesa. Os humanos erguiam as taças de bebidas, alheios ao que estava prestes a acontecer.</p><p>Eles foram seduzidos para uma armadilha, assim como Victória fez comigo alguns anos atrás.</p><p>Cada membro do clã de Edward trouxe seu próprio lanchinho para o casório. Quando Victória</p><p>me convidou para o baile de casamento de seu primo, conde Edward III, aceitei sem pensar duas</p><p>vezes, acreditando que a levaria para minha cama na noite da festa. Só escapei da carnificina</p><p>porque revelei ao conde, em uma conversa quando eu já estava meio inconsciente devido ao</p><p>vinho, minha segunda paixão: a ciência.</p><p>Criar medicamentos, poções e experimentos me animava tanto quanto a conquista. Era</p><p>quando minhas mãos estavam esmagando plantas e anotando seus efeitos sobre o corpo humano</p><p>que eu me sentia mais próximo de um deus. Alguns controlavam a morte; eu queria dar vida. Um</p><p>pensamento tão tolo. Se eu soubesse que apenas Jesus Cristo é capaz de dar vida, não teria sido</p><p>tão egoísta nas minhas pesquisas e teria usado meu conhecimento para ajudar outras pessoas.</p><p>Não me lembrava bem do que houve após essa conversa, apenas acordei em um quarto no</p><p>subsolo com a revelação de que Edward e Victória eram vampiros. Eles me deixaram escolher</p><p>entre produzir poções para eles ou a morte. Fiquei com a primeira opção. No início, questionei</p><p>por que não me transformaram. Talvez temeram o poder que eu teria nas mãos. Mal sabiam que,</p><p>ao encontrar a verdadeira luz, eu teria um poder maior do que eles.</p><p>Eram muitos os boatos sobre mortos-vivos, mas poucos sabiam suas verdadeiras</p><p>implicações. O alho não os matava, causava apenas uma forte alergia. O sol não os transformava</p><p>em pó, mas a pele deles queimava com maior facilidade e viria a ficar em carne viva em poucas</p><p>horas de exposição. Uma estaca de madeira no coração não era eficiente, pois, devido a falta se</p><p>pulsação nas veias, o órgão das criaturas se tornou como pedra. E, principalmente, os vampiros</p><p>não são imortais. Ao sugar o sangue de alguém, eles roubam os anos de vida que aquela pessoa</p><p>ainda tinha. Sem sangue não sobrevivem. Por isso, às vezes, os vampiros precisam de um</p><p>médico, alguém que possa lhes oferecer fórmulas para andar pelo sol sem se machucar e comer</p><p>comida humana sem levantar suspeitas.</p><p>Por quase um ano, não me importei em acatar às ordens do clã em troca de sobreviver.</p><p>Contudo, ajudar a levar almas tem um preço e a minha vida se tornou desgostosa. Eu estava</p><p>prestes a desistir dela quando conheci Catarina e ela me explicou que foi o sangue de Jesus</p><p>Cristo na cruz que a salvou e que podia me salvar. Depois disso, vieram outras cinco princesas</p><p>que tiveram seus destinos e túmulos selados por Edward. Implorei a Deus para que as salvasse,</p><p>tentei pensar em formas de envenenar os vampiros e até mesmo lutar contra eles, mas nada foi</p><p>eficaz. Vi outras cinco mulheres morrerem e não pude fazer nada.</p><p>— Que surpresa te ver por aqui, Nikolai. Faz tanto tempo que você vive enfiado em seu</p><p>laboratório que sua pele está acinzentada. Acho que precisa de um pouco de sol — falou Edward,</p><p>oferecendo a mão para Acsa.</p><p>A princesa estendeu a mão sem pensar duas vezes. O conde a pegou e beijou seu dorso.</p><p>Engoli as palavras cruéis que pensei para responder sua zombaria.</p><p>— É pra isso que estou aqui hoje, tomar um pouco de sol.</p><p>— Seria preciso o sol nascer à meia-noite para que isso desse certo — comentou Victória.</p><p>— Quem sabe a festa de casamento durará até o amanhecer — comentou Acsa, e ambos os</p><p>vampiros sorriram, se divertindo com a aparente inocência da princesa.</p><p>— Preciso de uma bebida — falei e me afastei de Acsa, rumo à mesa.</p><p>A cada passo, meus músculos se repuxaram. Queria gritar de dor, mas não podia. Pensei no</p><p>frasco com Acsa, a poção que intitulei de repelente de vampiro, na qual trabalhei dia e noite</p><p>pelos últimos dias e era nossa única esperança. Eu a tomei e ainda estava vivo, mas a dor que</p><p>sentia era quase insuportável. Acsa teria que ser forte e corajosa para escapar dali com vida.</p><p>Felizmente, não tive dúvidas de que a princesa possuía essas duas características. A ferocidade e</p><p>vontade de viver no olhar de Acsa me fez crer que, dessa vez, não haveria casamento.</p><p>E</p><p>05</p><p>u não queria que Nikolai se afastasse de mim. A quentura do seu corpo próximo</p><p>ao meu me dava segurança e contrastava com os lábios gélidos de Edward</p><p>pressionados na minha pele. O conde estava impecável, com um terno preto de</p><p>veludo, o cabelo preso para trás e um sorriso radiante, com suas presas quase nada à mostra. Ele</p><p>estendeu o braço e me conduziu até uma mesa separada das demais, onde a festa já acontecia. Me</p><p>perguntei se todos ali eram vampiros também.</p><p>— Sua tradição é esquisita — comentei ao me sentar. O conde sentou-se ao meu lado.</p><p>Fechei as mãos em punhos sobre o colo para evitar mostrar que estava tremendo.</p><p>— Eu acho um tanto dramático demais a espera do noivo para ver a noiva. Em Gólgota, é</p><p>tradição festejarmos antes e depois da cerimônia…</p><p>— Que precisa ser realizada durante a madrugada — completei a frase, me lembrando das</p><p>palavras exatas que Edward usou pela primeira vez que me explicou como seria a cerimônia.</p><p>Eu estava na biblioteca, perambulando entre os volumes de capa de couro com a palavra</p><p>morto-vivo dançando em minha mente, quando o conde surgiu como uma alma penada, sem</p><p>fazer barulho, à minha frente. Suprimi um grito entre os lábios ao</p><p>vê-lo.</p><p>— Te procurei no seu quarto esta manhã, não imaginei que acordaria tão cedo — Edward</p><p>comentou, observando a janela atrás de si, onde era possível ver o sol nascendo.</p><p>— Estava entediada, por isso vim procurar uma boa leitura. E o senhor não deveria ir atrás</p><p>de uma moça em seus aposentos.</p><p>Edward sorriu com minha repreensiva e falou:</p><p>— Eu sei, mas estava ansioso para lhe contar que marquei a data do nosso casamento. Será</p><p>daqui cinco dias.</p><p>Ele ficou me observando, esperando que eu tomasse alguma atitude, talvez lhe desse um</p><p>abraço, mas fiquei parada olhando aquele belo homem e pensando na revelação de Nikolai. Era</p><p>loucura considerar tais palavras verdade, não era?</p><p>— Não está feliz? — ele pareceu triste quando não lhe dei a reação que esperava.</p><p>— Estou. Apenas preocupada — desviei os olhos de seu rosto para as lombadas dos livros</p><p>e passei os dedos sobre os volumes de contos de Edgar Allan Poe.</p><p>— Não se preocupe, seu pai ficará bem — o conde falou, aproximando-se de mim e</p><p>pousando a mão sobre meu ombro. Senti um leve arrepio no local. Era a primeira vez que ele me</p><p>tocava e eu queria fugir.</p><p>— Eu creio que sim, tenho orado pela vida dele. Apenas é estranho estar longe de casa</p><p>sabendo que minha família precisa de mim.</p><p>Edward me virou para si e ergueu meu queixo. Sua mão parecia uma pedra de gelo, todos</p><p>os meus pelos do rosto arrepiaram com a frieza daquele contato. Humanos não deveriam ser tão</p><p>gelados.</p><p>— Eu posso lhe garantir que em breve você se sentirá como se aqui fosse sua casa.</p><p>Me afastei, confusa com os sentimentos que retumbavam em meu peito. Uma voz dentro</p><p>de mim gritava para manter Edward longe, ainda que meu coração desejasse acreditar em suas</p><p>palavras gentis e seu belo sorriso. Se minha mãe estivesse aqui, chamaria essa voz de um toque</p><p>de sabedoria do Espírito Santo.</p><p>— Por que uma dama como você está na seção de livros tão mórbidos? — ele perguntou,</p><p>encarando os volumes de literatura gótica.</p><p>— Gosto deles. Sempre preferi a sensação de levar um susto a de ler um romance fofo.</p><p>Histórias de terror sempre são — fiz uma pausa, procurando as palavras certas —</p><p>surpreendentes.</p><p>Edward torceu o nariz, discordando de mim.</p><p>— Não gosto de histórias que fujam da realidade. Escritores de horror tem uma imaginação</p><p>fértil. Onde já se viu fantasmas, chupadores de sangue e coisas assim? Não parece o tipo de</p><p>literatura adequada para uma mulher cristã.</p><p>— São metáforas — aleguei. — No fundo, toda história de horror é um reflexo da alma</p><p>humana. Mary Shelley disse que não se pode dar forma ao inexistente, mas podemos dar forma</p><p>às coisas sombrias[4].</p><p>— Está dizendo que acredita na existência de tais criaturas? — ele apontou para um</p><p>volume de Drácula, de Bran Stolker.</p><p>— Estou dizendo que, caso algo do tipo viesse a existir, seria uma perversão da criação de</p><p>Deus. Mais uma forma do mal se manifestar sobre a terra. E, como toda sombra, encontraria seu</p><p>fim na luz de Cristo. É por isso que leio horror, para me lembrar que nem a pior das criaturas é</p><p>maior que meu Deus.</p><p>Edward ficou rígido e em silêncio por algum tempo, enquanto eu retirei O Castelo de</p><p>Otronto da estante e folheei.</p><p>— Você parece certa de que, caso se encontrasse com um seu, seria capaz de sair ilesa. —</p><p>Ele se aproximou de mim, dei mais alguns passos para trás e me vi encurralada no final do</p><p>corredor, com o corpo de Edward se projetando diante de mim.</p><p>A palavra morto-vivo revirou meu estômago, e os pêsames de Nikolai vieram à minha</p><p>mente.</p><p>— Isso se chama fé — respondi, tentando regular a respiração e parecer menos assustada.</p><p>— E se sua fé falhasse? Se seu Deus te permitisse ficar encurralada? — A voz de Edward</p><p>era baixa, ele estava de costas para a janela e a luz solar fazia sua silhueta ficar sombria. Não era</p><p>possível ver com clareza seu olhar.</p><p>— Ele livrou minha mãe uma vez — falei.</p><p>— De um vampiro?</p><p>— De um homem mau. Ela era jovem e estava apaixonada, ficou cega de amor, mas antes</p><p>do casamento ela desistiu. Não soube explicar muito bem porque deu para trás na época. Cinco</p><p>anos depois, já casada com meu pai, ela descobriu que tal homem apostatou e batia na esposa.</p><p>— E o que isso tem haver com monstros?</p><p>— Humanos podem ser tão ruins quanto criaturas em livros. Até piores. Mas o Senhor</p><p>guardou minha mãe de um casamento ruim. Ele a protegeu, mesmo quando ela não conseguia</p><p>enxergar o perigo.</p><p>— Sorte a dela. Mas seu Deus não protege a todos, ou a Bíblia não teria relatos como no</p><p>último capítulo de Juízes.</p><p>O termo seu Deus me chamou atenção, uma vez que Edward deveria amar e seguir o</p><p>mesmo Deus que eu. Foi isso que ele me mostrou nos dois meses que passamos juntos.</p><p>— Deus não deixa de ser bom e cuidar de seus filhos porque permite que os homens façam</p><p>atos maus. Esses verão a justiça divina no juízo final.</p><p>Edward retirou o livro de minhas mãos e o folheou. Ele fechou a obra com força e dei um</p><p>salto com o barulho que ecoou pela biblioteca vazia.</p><p>— Então, você sobreviveria a um vampiro?</p><p>— Minha alma sobreviveria!</p><p>Vai sobreviver, pensei. Certa de que talvez Edward não fosse um morto-vivo, ainda era</p><p>loucura pensar em tal coisa. Mas, naquela biblioteca, ele não parecia ser o homem piedoso que</p><p>acreditei ser.</p><p>— Podemos parar de falar sobre monstros e conversar sobre nosso casamento? —</p><p>perguntei para mudar de assunto, eu precisava fazer ele se afastar.</p><p>Edward abriu um sorriso e eu pude jurar que seus caninos estavam mais proeminentes do</p><p>que deveriam.</p><p>— Claro, minha noiva. — O conde devolveu o livro que segurava para a estante e me</p><p>ofereceu o braço para sairmos da biblioteca.</p><p>Ele me contou sobre os preparativos para o casório e a tradição de sua família. Contudo,</p><p>minha mente vagava entre a conversa esquisita na biblioteca e o rosto magro e compassivo de</p><p>Nikolai. Gostaria de vê-lo outra vez e fazer algumas perguntas.</p><p>Me peguei distraída novamente, procurando o rosto de Nikolai em meio a multidão que se</p><p>juntou para a cerimônia do meu casamento. Eu o queria ao meu lado até meu último suspiro.</p><p>Seria menos assustador enfrentar a morte ao lado de alguém gentil como ele. Como não o</p><p>encontrei, tateei as pregas do vestido até encontrar o potinho que me entregou pouco antes. Eu</p><p>sabia que o líquido verde era o antídoto contra vampiros que Nikolai vinha desenvolvendo, mas</p><p>não tinha como saber se ele teria resolvido o problema dos efeitos colaterais. Minha única opção</p><p>naquele momento era tomar a bebida e orar para que o Senhor me livrasse do casamento.</p><p>— Pode buscar um pouco de comida para mim? Não quero correr o risco de derrubar no</p><p>vestido — pedi a Edward.</p><p>Ele se levantou e aproveitei os segundos sozinha para despejar o líquido em uma taça vazia</p><p>para tomar sem chamar atenção. Virei a taça antes de Edward retornar com um prato que pegou</p><p>em uma mesa quase intocada.</p><p>— Obrigada — agradeci e pus-me a comer para evitar a conversa. Esperei que o tal líquido</p><p>fizesse algum efeito e continuei a procurar o rosto de Nikolai na multidão.</p><p>S</p><p>06</p><p>aí da festa, pois o cheiro dos alimentos estava me deixando enjoado. Então me</p><p>dirigi até uma sala anexa ao salão, onde a cerimônia seria realizada. Bancos de</p><p>madeira imitavam uma igreja antiga, assim como o pedestal sobre o púlpito. O local</p><p>estava enfeitado com damas-da-noite que exalavam um forte cheiro e me lembrava de funerais.</p><p>Me sentei em um dos bancos e puxei a manga do terno para ver a minha pele esverdeada e com</p><p>pontos vermelhos que pareciam feridas. Esse era o efeito colateral do meu antídoto anti-</p><p>vampiros. Fazia com que meus membros doessem e a pele assumia a aparência de um cadáver.</p><p>Na realidade, as primeiras tentativas que fiz levaram pequenos animais a quase óbito e não tinha</p><p>certeza se dessa vez daria certo.</p><p>— Acho que vale o risco — falou Acsa, no dia seguinte ao nosso primeiro encontro</p><p>inesperado.</p><p>Eu a encontrei sem querer, sentada no jardim ao pôr do sol. Estava evitando contato com a</p><p>princesa, ainda pensando o que poderia fazer para livrá-la do casamento e um pouco temeroso</p><p>das palavras que disse a ela. Ao me ver, Acsa sinalizou para que eu me aproximasse. Fiquei</p><p>algum tempo parado</p><p>antes de tomar coragem e ir ao seu encontro.</p><p>— Não acredito em você, sobre a história do morto-vivo — dispensando qualquer sutileza</p><p>que uma princesa deveria ter, Acsa jogou as palavras sobre mim. Apenas pisquei em resposta,</p><p>nenhum ser humano em sã consciência acreditaria em minhas palavras. — Mas não quero seguir</p><p>com o casamento, tem algo errado em relação ao conde. Todavia, não acho que ele apenas me</p><p>deixará ir embora, então, como posso fugir?</p><p>Ela continuou sentada me encarando. Sua postura estava ereta, e o olhar, firme. Não era</p><p>uma brincadeira de mau gosto, ela não havia me dedurado para Edward. Estava mesmo disposta</p><p>a fugir.</p><p>— Sinto muito, princesa, mas acho que isso é impossível.</p><p>— Não acredito em você.</p><p>— Por que vem me pedir conselhos, se não acreditará em nenhuma das minhas palavras?</p><p>— Minha voz saiu mais áspera que o esperado.</p><p>Acsa me encarou com a ferocidade de uma tempestade.</p><p>— Porque não aceito me casar com alguém que não ame ao meu Deus.</p><p>A resposta dela desfez todas as minhas defesas. Acsa não estava preocupada com a própria</p><p>segurança, estava preocupada com seus valores. Me sentei ao seu lado no banco e observei as</p><p>flores que cresciam. Todas eram selvagens e o mato estava alto devido à falta de cuidado. Se</p><p>existia alguma beleza naquele castelo, eram as flores que se recusavam a não crescer. Afinal,</p><p>tudo que rondava o lugar era morto.</p><p>— Não tem como escapar de algo que é mais forte que meros humanos — falei, pensando</p><p>nos milhares de planos que já tracei e nunca fui capaz de executar. — Acredite você ou não,</p><p>Edward é um vampiro, e você, assim como eu, caiu em sua armadilha.</p><p>Acsa ficou em silêncio, também olhando o jardim rebelde e o sol se pondo no horizonte.</p><p>Queria lhe oferecer algum conforto, mas eu não tinha nada a não ser as palavras de Deus, que</p><p>ficaram presas nos meus lábios devido a minha covardia. Antes que lembrasse um versículo que</p><p>fala sobre esperança, olhei para o lado e notei que Acsa chorava em silêncio. As lágrimas</p><p>cortavam sua face e brilhavam ao serem iluminadas pelo sol poente. Sob a luz alaranjada, Acsa</p><p>parecia a dama de um quadro renascentista. A princesa tinha a determinação de ondas violentas</p><p>no mar. Na noite anterior, correu até os gritos de alguma pobre humana sendo torturada por</p><p>algum vampiro que se escondia nesse castelo. Não se acovardou com minhas palavras a respeito</p><p>de Edward, mesmo diante do fato de me conhecer tão pouco. Era essa mulher, que mantinha a</p><p>postura ereta e os olhos furiosos, que estava desmontando ao meu lado com a possibilidade de</p><p>nunca deixar este castelo.</p><p>Não consegui falar nada, apenas estendi a mão e peguei nos dedos dela que estavam</p><p>pousados sobre o banco de ferro gélido. O toque fez meus pelos se arrepiarem, pois fazia anos</p><p>que eu não encostava em uma pessoa viva.</p><p>Acsa desviou os olhos do horizonte, olhou para minha mão sobre a dela e depois para meu</p><p>rosto.</p><p>— Você está quente — falou, dando-se conta da diferença do meu toque e do de Edward.</p><p>— É assim que pessoas vivas deveriam ser — respondi.</p><p>Após mais alguns segundos de contato, ela afastou a mão e limpou as lágrimas.</p><p>— Eu deveria ter sido mais cautelosa.</p><p>— Edward é um vampiro, um predador. Cada célula do corpo dele e inclusive sua fala são</p><p>moldados para atrair uma vítima. Não é culpa sua.</p><p>Acsa olhou para mim antes de falar. O olhar de pupilas negras não estava nem um pouco</p><p>calmo.</p><p>— É gentil da sua parte acreditar que sou inocente nisso tudo. Não tenho dúvidas que</p><p>Edward enganou a mim e a meus pais, mas eu não quis enxergar além da cortina de fumaça.</p><p>Como não quero aceitar sua verdadeira natureza.</p><p>Olhei para a capa do livro que ela estava lendo. Drácula, do Bran Stolker.</p><p>— Eu preciso te pedir perdão — falei, pegando-a de surpresa. — Você se deixou levar</p><p>pelos encantos, é um erro que uma boa máscara de falso cristão pode nos levar a cometer, mas</p><p>eu… eu não fiz nada para te impedir de chegar aqui.</p><p>Havia uma ruga de confusão na testa da princesa. Então expliquei como vim parar no</p><p>castelo e o que fazia para ajudar o conde e seu clã. Contei sobre Catarina, a Bíblia em meus</p><p>aposentos e sobre as princesas que não pude resgatar. Ela ouviu atentamente, sem me</p><p>interromper, até que eu finalizasse meu relato.</p><p>— Feche seus olhos — ela ordenou e não me atrevi a não obedecer.</p><p>— Senhor, criador de todo o universo — começou Acsa. — Eu e Nikolai estamos diante de</p><p>ti para pedir perdão. No passado, deixamo-nos levar pelos desejos do nosso coração e acabamos</p><p>em apuros. Onde estamos é a consequência de confiarmos nas pessoas erradas, mas peço que nos</p><p>perdoe e faça com que nosso passado evapore como névoa. E, se assim o Senhor desejar, peço</p><p>que nos ajude a fugir desse castelo, seja pela porta da frente, seja entrando com honrarias no céu</p><p>em Tua presença. Amém!</p><p>— Amém — ecooei a prece de Asca. Quando abri os olhos o sol já havia se posto por</p><p>completo e não era possível enxergar muito ao nosso redor. — Por que você não desistiu ou se</p><p>desesperou quando descobriu a verdade? — perguntei, curioso para saber de onde vinha a força</p><p>dela para resistir a tal situação.</p><p>— Meu pai me ensinou que a coisa mais preciosa que tenho é minha alma. Se não for</p><p>capaz de lutar por ela, então não tenho nada de valor pelo que lutar. Além disso, minha família e</p><p>meu reino precisam de mim. E você, por que não desistiu?</p><p>Apesar de ter pensado em desistir a cada dia nos últimos dois anos, desde a morte de</p><p>Catarina, a resposta estava na ponta da minha língua:</p><p>— Porque Jesus não desistiu de mim.</p><p>Pela primeira vez, Acsa esboçou um sorriso. Levantei do banco e lhe ofereci o braço.</p><p>— Posso te acompanhar até seus aposentos?</p><p>Ela aceitou e a conduzi até seu quarto enquanto Acsa me contava sobre seus pais e seu</p><p>reino. Uma ou duas vezes a voz dela ficou embargada com o nó na garganta causado pelas</p><p>lágrimas, mas ela não deixou de sorrir com a esperança de ver sua família outra vez.</p><p>Deixei-a e prometi que daria um jeito de nos vermos no dia seguinte, pois até lá eu teria</p><p>algum plano de fuga. A princesa me agradeceu com um sorriso e fechou a porta.</p><p>Quando cheguei no meu quarto, folheei cada esboço de poção que já pensei e cada</p><p>anotação sobre as fraquezas dos vampiros que pude notar em anos de observação, até encontrar</p><p>uma fórmula que poderia nos ajudar. Ela estava incompleta e nunca havia sido testada, mas me</p><p>animei com a possibilidade de um plano de fuga.</p><p>Olhando o púlpito vazio da imitação de capela, tirei a folha de papel com a fórmula</p><p>amassada do bolso do paletó e observei os ingredientes, pensando o que poderia ter acrescentado</p><p>para evitar os efeitos colaterais e orando para Acsa aguentar firme a transformação em seu corpo</p><p>como estava tentando aguentar no meu. Apesar de apreensivo, não duvidava de que ela resistiria</p><p>até o fim, pois Acsa era como as flores do jardim de Gólgota, que insistiam em crescer em meio</p><p>a esse lugar de morte.</p><p>C</p><p>07</p><p>ada músculo do meu corpo estava sendo puxado como se eu estivesse em uma</p><p>máquina de tortura. A sensação era de que as ligações nervosas poderiam se romper a</p><p>qualquer instante. Quando discuti com Nikolai os efeitos colaterais da poção, não</p><p>imaginei que teria que enfrentar uma morte dolorosa ainda em vida.</p><p>— Não tenho tempo para fazer muitos testes — ele explicou, mostrando o papel com os</p><p>ingredientes enquanto caminhávamos pelo jardim no fim de tarde.</p><p>Foi o único momento em que conseguimos conversar, já que durante o dia Edward me fez</p><p>experimentar o vestido de noiva e escolher as flores que decorariam o salão montado como se</p><p>fosse uma pequena capela.</p><p>— Mas isso é para nós ingerirmos, e não eles? Achei que faria algum tipo de veneno.</p><p>Nikolai balançou a cabeça de forma negativa.</p><p>— Eu não faço ideia de como envenenar um vampiro ou matar alguém que não está mais</p><p>vivo. Mas eu posso encontrar uma forma de repeli-los. O antídoto vai reagir com os eritrócitos</p><p>no nosso corpo e fazer com que nosso sangue não seja atraente. Bom, isso em teoria.</p><p>— E na prática, o que acontece se der errado?</p><p>Ele deu de ombros. Caminhamos em silêncio por mais alguns minutos. A brisa gélida que</p><p>percorria o castelo</p><p>e decente.</p><p>— Beleza não deveria ser tudo — murmurei desanimada. Ela sempre foi de dar mais</p><p>atenção para as aparência e aquilo me irritava, pois se a pessoa não fosse bonita segundo seus</p><p>padrões, não tinha valor algum aos seus olhos.</p><p>— Alguém com compaixão? — Ela perguntou com sarcasmo, procurando alfinetar meus</p><p>princípios.</p><p>— Alguém como ele? — Joana me entregou outra imagem a fim de interromper de modo</p><p>discreto a próxima frase da Rainha, que provavelmente partiria para o discurso de que um</p><p>homem como eu sonhava não existia.</p><p>Eu nem era tão exigente como ela sempre fazia questão de pontuar. Meu único critério</p><p>inegociável era alguém que professava a mesma fé e que a seguisse diligentemente.</p><p>— Não sei, não. — Cruzei os braços com uma risada nervosa. — Dominic consegue ser</p><p>mais bonito que os demais.</p><p>O rapaz em questão havia ficado no meu pé a semana toda como se eu fosse um objetivo a</p><p>ser alcançado. Agora eu sabia que era realmente isso que justificava sua constante presença ao</p><p>meu lado.</p><p>— E desde quando isso é um problema? — A Rainha quis saber.</p><p>Olhei para a foto com atenção. O homem possuía o cabelo castanho claro, levemente</p><p>ondulado. Olhos azuis intensos, como o mar em um dia de sol, transmitindo uma mistura de</p><p>mistério. Seu rosto era simétrico, com maçãs do rosto salientes, nariz aristocrático e lábios</p><p>carnudos que esboçam um sorriso que destacava a pele bronzeada pelo sol.</p><p>— Gente bonita assim deve dar muita dor de cabeça — eu disse descartando-o.</p><p>Apesar de sua beleza, ele não me entusiasmava. Muito pelo contrário. Estar ao lado de</p><p>alguém como ele só me deixava insegura e pouco à vontade. Eu estava ciente da minha beleza</p><p>fora do padrão daquele reino e isso ficava ainda mais evidente quando Dominic estava por perto.</p><p>Minha mãe revirou os olhos diante da minha fala.</p><p>— Não seja ridícula — disse indignada, pois conhecia de perto o meu complexo de</p><p>inferioridade. — Você é uma linda moça que se tornará uma mulher casada muito em breve. —</p><p>Seus olhos se encheram de lágrimas.</p><p>Ela poderia ser superficial às vezes, mas seu amor por mim era genuíno.</p><p>— Eu prefiro alguém menos… estonteante.</p><p>— Alguém como o Liam? — E lá estava Joana mais uma vez com um comentário direto e</p><p>não solicitado.</p><p>Liam estava nas sombras, como sempre, mas o vi sobressaltar diante da pergunta da minha</p><p>tutora. Minha mãe olhou para ele e sorriu.</p><p>— Liam é… bem, ele é… bonitinho. — Uma risada anasalada escapou do segurança,</p><p>acostumado com a falta de tato da minha mãe. — Mas não é um dos pretendentes.</p><p>— Poderia ser, pois acabaram as opções aqui. — Joana levantou e cruzou os braços.</p><p>Liam estava olhando para mim e como ele não quebrou o contato visual, retribuí o olhar,</p><p>desanimada e cansada daquele circo todo. Ele parecia ser o único que realmente me entendia ali.</p><p>— O que me diz, Liam? — Joana insistiu cheia de insinuações.</p><p>— Acho que a Kat deveria considerar esse Dominic. — Liam respondeu desviando seu</p><p>olhar de mim para Joana. — Ele pelo menos se autoproclama cristão.</p><p>A forma como Liam fugiu da pergunta me acertou como um punhal afiado. Algo murchou</p><p>dentro de mim e fiquei ainda mais desanimada com toda aquela situação. Era para ele me apoiar</p><p>e não me lançar aos leões.</p><p>Dominic era um aristocrata de palavras doces e gestos sedutores que parecia esconder um</p><p>passado nebuloso em seus olhos ardilosos e flertes direcionados a mim naquela semana. O fato</p><p>dele ser extremamente belo não mudava nada, pois suas conversas eram desinteressantes, uma</p><p>vez que ele só sabia falar de si mesmo na maioria do tempo e seu dossiê era o maior de todos.</p><p>Suspeitei que ele mesmo havia escrito cada palavra.</p><p>Voltei a me sentar e, muito abalada, precisei concordar com as intermináveis pontuações</p><p>da minha mãe sobre as qualidades do aristocrata. Enquanto um chá era servido para nós, fui</p><p>informada que um dos funcionários já havia avisado sobre nossa decisão para o Rei. Quando o</p><p>informante retornou, disse que eu deveria encontrar meu pai em alguns minutos. Então era isso.</p><p>Meu destino estava selado.</p><p>P</p><p>03</p><p>aralisei no meio do corredor que se estendia em direção à sala de meu pai,</p><p>fixando meus olhos no chão como se ali estivesse gravada a resposta para todos os</p><p>meus dilemas. Um suspiro escapou de meus lábios, e foi então que Liam deteve-se ao</p><p>meu lado e pousou sua mão em meu ombro.</p><p>— Vai dar tudo certo, Kat — ele murmurou, como se tentasse injetar um pouco de</p><p>esperança em meu coração angustiado.</p><p>Levantei meu olhar para ele, sentindo a ira borbulhar dentro de mim como um vulcão</p><p>prestes a entrar em erupção.</p><p>— Não minta para mim! — exclamei com fervor, minhas palavras carregadas de amargura</p><p>e desilusão. — Nós dois sabemos que nenhum daqueles homens realmente se importa comigo,</p><p>muito menos esse Dominic, que apesar de se declarar cristão, de piedoso não tem nada. E você</p><p>sabe disso!</p><p>Houve um instante de silêncio tenso, no qual nossos pensamentos pesaram sobre nós como</p><p>uma âncora arrastada pelas ondas tumultuosas do mar. Liam suspirou, olhando para o nada por</p><p>um momento antes de me responder com sinceridade.</p><p>— Sim, eu sei. Mas o que podemos fazer?</p><p>Senti meu coração apertar diante da cruel realidade que me confrontava e tentei</p><p>desesperadamente organizar os pensamentos tumultuados que inundavam minha mente. Se era</p><p>para me casar a qualquer custo, por que não poderia ao menos escolher alguém que me</p><p>respeitasse?</p><p>Olhei para Liam e uma ideia repentina brotou em minha mente como uma luz brilhante em</p><p>meio às trevas de minha agonia. Um sorriso irrompeu em meus lábios, misturando-se</p><p>estranhamente com as lágrimas que ameaçavam cair.</p><p>— Case-se comigo, Liam! — exclamei, lançando minha proposta ao ar como uma tábua de</p><p>salvação em um mar revolto.</p><p>Liam deu dois passos para trás, completamente atordoado com minha súbita proposta.</p><p>— O quê? — ele balbuciou com os olhos arregalados.</p><p>— Veja bem — continuei, sentindo uma determinação fervorosa me impulsionar. — Nós</p><p>nos conhecemos há tanto tempo. Sei o quanto você é dedicado ao Senhor e um homem de</p><p>princípios. Só você pode me salvar de uma vida ao lado de um estranho que claramente não me</p><p>tratará com o respeito que mereço. Nem precisa ser de verdade, Liam. Não precisa sequer me</p><p>tocar. Eu não exigiria isso de você. Eu sei que é uma proposta maluca, mas estou desesperada e...</p><p>— Não, Kat! — interrompeu-me, passando a mão pelos cabelos em um gesto de frustração.</p><p>— Está se ouvindo? É a coisa mais absurda que já disse em toda a sua vida!</p><p>As lágrimas que eu tanto lutara para conter se derramaram por meu rosto, e eu as limpei</p><p>rapidamente com a manga do vestido, sentindo-me uma tola por ter alimentado uma esperança</p><p>tão irreal.</p><p>— Perdão pela ideia descabida de nós dois sermos um casal — murmurei, tentando</p><p>recuperar um pouco de dignidade diante da rejeição devastadora.</p><p>— Kat… — Liam chamou meu nome em um tom de voz suavizado pela compaixão, mas</p><p>era tarde demais para reverter a amargura que se instalou em meu coração partido.</p><p>Odiando-me por aquele ato de total desespero, vesti uma capa invisível de indiferença e</p><p>prossegui pelo restante do caminho. Fui anunciada e entrei no gabinete do rei como se quisesse</p><p>muito estar lá. Ele conversava com Dominic, mas quando me viu, veio ao meu encontro.</p><p>— Querida, sabia que mais cedo ou mais tarde você entenderia a situação! — Ele deixou</p><p>um beijo na minha testa e sussurrou em seguida somente para eu ouvir. — Fico feliz que tenha</p><p>considerado minha proposta. Dominic será uma adição formidável à nossa família.</p><p>Em silêncio, prestei uma reverência antes de entrelaçar meu braço ao dele para que me</p><p>guiasse até meu pretendente. O aristocrata se levantou e me peguei retribuindo o sorriso dele.</p><p>Desviei minha atenção da figura elegante do homem antes que eu fizesse qualquer besteira.</p><p>Soube naquele momento que talvez eu não fosse tão imune aos seus galanteios, agora que as</p><p>intenções estavam às claras.</p><p>Liam permaneceu de pé ao lado da porta, imponente e silencioso, enquanto eu me</p><p>acomodava em uma poltrona de veludo azul, posicionada estrategicamente de frente para</p><p>Dominic. O rei logo se ausentou para um</p><p>fazia meus pelos se arrepiarem, e os morcegos que davam rasantes me faziam</p><p>querer parar de andar e me encolher. Eu não tive provas científicas da natureza de Edward, mas o</p><p>incômodo constante no meu peito e o arrepio que tinha ao andar por aqueles corredores foi o</p><p>bastante para me fazer desejar fugir o quanto antes. Quase chegando à porta do meu quarto, mais</p><p>um morcego deu um rasante do outro lado da janela e suprimi um grito. Nikolai escondeu uma</p><p>risada, ele estava acostumado com as criaturas que moram nesse castelo.</p><p>— E se você testasse em um deles? — apontei para os mamíferos voadores.</p><p>Nikolai pareceu concordar com a cabeça.</p><p>— Farei alguns testes. Acha que consegue me encontrar no meu laboratório amanhã?</p><p>— Duvido muito. Edward falou que seus familiares começaram a chegar.</p><p>Nikolai estremeceu dos pés a cabeça e o leve brilho em seu rosto causado pelo</p><p>divertimento com meu susto desapareceu.</p><p>— Então terá que ser hoje à noite — falou Nikolai. — Depois que os vampiros chegam,</p><p>andar sozinha por esses corredores é perigoso até para a noiva do chefe do clã.</p><p>Nikolai prometeu que me buscaria, mas não queria levantar suspeitas, então combinei de</p><p>encontrá-lo na sala sem janelas onde nos conhecemos.</p><p>Quando as corujas começaram a piar, coloquei um casaco e saí do meu quarto. Caminhei</p><p>depressa, com medo de encontrar Edward e ele suspeitar dos meus planos de fuga. Conforme as</p><p>janelas sumiram e as paredes ficaram mais estreitas, meu coração retumbava mais intensamente</p><p>contra meu peito, quase pulando para fora. Temi ouvir outro grito enquanto me arrastava pela</p><p>parede estreita que rasgou meu casaco. Ao chegar na antessala, Nikolai me recebeu com um</p><p>sorriso e toda a tensão acumulada em meus ombros se desfez.</p><p>— Por aqui — ele pegou em minha mão e me conduziu por uma dúzia de escadas em</p><p>caracol que desciam cada vez mais profundo no solo.</p><p>Passamos por algumas portas entreabertas, pelas quais eu podia ver paredes manchadas de</p><p>sangue, correntes de metal e até um incinerador. Andamos por bastante tempo, iluminados</p><p>apenas por poucas velas espalhadas pelos corredores estreitos. Quando as escadas acabaram,</p><p>Nikolai abriu a porta de seu laboratório e me deu espaço para entrar.</p><p>Notei que aquele cômodo também lhe servia de quarto, devido a cama e a escrivaninha</p><p>onde a Bíblia estava cuidadosamente apoiada, no lado esquerdo do ambiente. No canto oposto,</p><p>havia uma grande mesa de metal com utensílios médicos sobre ela, assim como dentes de alho,</p><p>estacas de madeira, béqueres, provetas, frascos diversos, flores e uma gaiola com dois morcegos</p><p>mortos. Me aproximei para tocar a gaiola, mas Nikolai me puxou para longe antes que meus</p><p>dedos encostassem nas grades.</p><p>— Eles não estão mortos, é apenas o efeito do repelente.</p><p>Olhei mais atentamente e vi os músculos das criaturas se mexendo. A pele negra estava</p><p>meio esverdeada com pontos vermelhos que pareciam feridas.</p><p>— Vai passar?</p><p>— Faz algumas horas que eles estão assim. — Nikolai esfregou as têmporas e fechou os</p><p>olhos, demonstrando preocupação.</p><p>— Eles estão vivos, certo? — perguntei para lhe chamar atenção.</p><p>— Sim. O efeito da saliva de vampiro na mistura deve ter causado essa aparência de morte.</p><p>Mas os sinais vitais estão normais.</p><p>— E está funcionando? O repelente?</p><p>Nikolai abriu um pequeno sorriso antes de responder:</p><p>— Quando Edward não está se alimentando de humanos, ele bebe o sangue dos animais</p><p>que vivem nos arredores do castelo. Coloquei um morcego infectado na bandeja que foi levada a</p><p>sua sala de jantar privada e, pelo que pude observar das sobras, o morcego estava intacto.</p><p>— Ótimo, então temos nosso meio de fuga! — Me permiti dar um pequeno pulo de</p><p>comemoração.</p><p>Por Deus, talvez possamos sobreviver!</p><p>— Você viu o estado dos morcegos?</p><p>— Eu não ligo de parecer morta, se isso evitar que a tragédia de fato ocorra.</p><p>— E se não tiver volta?</p><p>— Paciência, terão de me chamar de princesa zumbi.</p><p>Nikolai soltou uma gargalhada alta e contagiante, de forma que eu também me peguei</p><p>rindo. Algo que não fazia há meses, mesmo antes de conhecer Edward. Quando conseguimos</p><p>conter as risadas histéricas que eram um misto de desespero e divertimento com a ideia absurda,</p><p>Nikolai disse:</p><p>— Vou trabalhar nos efeitos colaterais até o dia do casamento. Com fé em Deus, farei a</p><p>situação ser menos… mórbida.</p><p>Concordei com a cabeça e deixei o silêncio se instalar entre nós. Não queria voltar ao meu</p><p>quarto, tampouco Nikolai me convidou a me retirar. Todavia, sabíamos o risco daquele encontro,</p><p>então tomei a iniciativa:</p><p>— Vou voltar para meu quarto.</p><p>— Claro. Acho que não te verei mais até o casamento, então leve isso com você, não deve</p><p>funcionar, mas… se tudo der errado.</p><p>Nikolai me entregou alguns dentes de alho e uma estaca de madeira.</p><p>— Dará certo, tenha fé! — Peguei os objetos, observando o quão absurdo eram aqueles</p><p>itens serem uma possibilidade de defesa.</p><p>— Precisa de ajuda com o caminho de volta?</p><p>— Acredito que não.</p><p>— Que Deus te abençoe, princesa zumbi, e que dê tudo errado no seu casamento.</p><p>Sorri com as felicitações ao contrário e me dirigi à porta. Antes que pudesse sair, Nikolai</p><p>me chamou:</p><p>— Acsa, obrigada por me lembrar o motivo de eu ter esperança.</p><p>O sorriso de Nikolai era convidativo e me fez sorrir também. Mais do que nunca, desejei</p><p>ficar e conversar com ele, como fizemos no jardim, e ouvi-lo falar sobre fé e ciência. Contudo,</p><p>dei meia volta e subi as escadas pensando que a única coisa boa em meio a minha situação era ter</p><p>conhecido Nikolai.</p><p>— Está na hora — a voz de Victória me puxou de minhas memórias com tanta força que</p><p>parecia que ela havia me arremessado à parede.</p><p>Fiz um esforço tremendo para me colocar de pé. Meus músculos tremiam e a pele ardia</p><p>como se alguém tivesse ateado fogo em mim. Contudo, mantive a cabeça elevada e segui</p><p>Victória de perto, sem olhar para os lados. Arrastei a perna direita, que estava começando a</p><p>falhar, e observei todos os convidados já sentados nos bancos de madeira. Nikolai estava no</p><p>primeiro banco, muito próximo a onde Edward me esperava para dar início a cerimônia.</p><p>A vampira empurrou um buquê de damas-da-noite em minha mão e se afastou. Fiquei</p><p>parada, em frente ao tapete vermelho, com o véu se derramando nas minhas costas e o longo</p><p>vestido branco de manga longa cobrindo a maior parte da minha pele. Olhos atentos se voltaram</p><p>para mim. Os vampiros exibiam um sorriso sutil ou uma cara de tédio exagerada. De acordo com</p><p>o que Nikolai me disse, Edward já tinha feito esse teatro inúmeras vezes.</p><p>Ele podia apenas me sequestrar, mas Nikolai deixou claro que para um ser de 300 anos,</p><p>poucas coisas são, de fato, divertidas. E, ao que tudo indicava, meu algoz gostava muito de</p><p>casamentos. Além de usar tal situação para se aproveitar das riquezas e terras dos reinos das</p><p>noivas. Assim, ele escondeu vampiros em castelos e côrtes por todo planeta.</p><p>A música melancólica começou a ser tocada em um piano de cauda para que a noiva</p><p>entrasse, não era a marcha nupcial de costume, mas uma trilha com notas mais sombrias e lentas,</p><p>cujo grave se estendia por todo o salão e reverberava no meu peito.</p><p>Dei o primeiro passo e senti minha perna falhar. Tropecei, mas não cheguei a cair no chão.</p><p>Os convidados me olharam intrigados. Me recompus e sorri, o que fez meus músculos faciais</p><p>gritarem por socorro. Tentei outro passo, mas a perna direita não quis levantar, então a arrastei</p><p>por todo o caminho, enquanto meus outros membros tinham alguns espasmos involuntários. A</p><p>caminhada até o altar foi a mais esquisita e longa que já dei na minha vida.</p><p>Quando me aproximei do conde, Edward estendeu a mão e me puxou, sem muita gentileza,</p><p>pelos poucos metros que faltavam. Ele me fez virar para o cerimonialista e disse:</p><p>— Pronta para mudar de vida, minha noiva?</p><p>— Você nem imagina o quanto desejo isso — respondi.</p><p>Ele abriu um sorriso com as presas bem à mostra. Não olhei para trás, mas sabia que</p><p>Nikolai estava com os olhos grudados em mim.</p><p>Quando o cerimonialista começou a falar, orei para que o Senhor me desse logo a chance</p><p>de testar o repelente, pois, ao ser perguntada se desejava me casar com</p><p>Edward, eu diria não, e</p><p>aquela atitude nos causaria muitos problemas.</p><p>A</p><p>08</p><p>caminhada desajeitada de Acsa até o altar me revelou que ela havia tomado a</p><p>poção. Foi um alívio saber que ela confiou em mim para tal feito, ao mesmo tempo</p><p>em que estava morrendo de medo de algo dar errado.</p><p>O casal se posicionou para a cerimônia e uma contagem regressiva disparou na minha</p><p>mente. Edward sempre seguia à risca o mesmo cronograma, não seria diferente daquela vez.</p><p>Saber a ordem dos próximos fatos me dava um certo alívio, ao menos até o momento em que o</p><p>conde daria seu beijo mortal. Esse momento me causava calafrios.</p><p>O cerimonialista recitou algumas palavras como se fossem da Bíblia, mas elas não eram. A</p><p>maioria das noivas foi incapaz de captar a referência, mas Acsa torceu o nariz em resposta aos</p><p>erros teológicos. Contive uma risada sincera. Após ler os textos, o cerimonialista pediu para que</p><p>Edward declarasse seus votos. A atmosfera da sala mudou com um piscar de olhos. As</p><p>respirações altas dos humanos deram lugar a um silêncio sepulcral. Eu sabia o que estava</p><p>acontecendo: o entorpecente no vinho estava fazendo efeito e os humanos começaram a</p><p>adormecer. Ao contrário do que se esperava de vampiros, o clã de Edward detestava o caos de</p><p>suas vítimas tentando fugir, eles se comportavam como lordes e matavam como verdadeiros</p><p>cavalheiros.</p><p>Exceto Victória, ela apreciava uma carnificina. Podia sentir o olhar da vampira nas minhas</p><p>costas. Eu era sua presa e fui tomado pelo conde, imaginei o quanto ela desejava fincar seus</p><p>colmilhos[5] na minha jugular.</p><p>— Eu, Edward Blackwood, aceito você, Acsa Radcliffe, como minha legítima esposa — o</p><p>conde começou com os votos tradicionais —, e prometo amar-te e respeitar-te na alegria e na</p><p>tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias da minha vida, até que a</p><p>sua morte nos separe.</p><p>Acsa estava paralisada olhando para o vampiro. Eu a conhecia há pouquíssimo tempo, mas</p><p>sabia que ela não faria os votos. Para sua sorte, não seria preciso. Edward odiava a ideia de ser</p><p>viúvo, ele era um eterno solteiro que se divertia com corações de moças que desejam</p><p>verdadeiramente o matrimônio.</p><p>Senti tanta raiva dele que me obriguei a apertar o banco de madeira para não pular em seu</p><p>pescoço. Eu precisava esperar só mais um pouco… só mais um pouco.</p><p>— Antes de seguirmos, o conde tem um presente para sua amada noiva — falou o</p><p>cerimonialista e Acsa levantou uma sobrancelha em dúvida.</p><p>Edward se posicionou atrás da princesa e a virou para os convidados. O olhar de Acsa</p><p>vagou pelas pessoas. Os humanos estavam sentados, em transe, e atrás de cada um havia um</p><p>vampiro. Quando Acsa cruzou o olhar comigo, implorei para que não o desviasse.</p><p>As palavras de Edward para a princesa foram sussurradas, mas, devido a minha</p><p>proximidade, pude ouvi-las.</p><p>— Lembra de nossa conversa na biblioteca alguns dias atrás? Naquele instante, eu soube</p><p>que havia escolhido bem dessa vez, a sua perspicácia, fé… Pessoas assim só podem ter dois</p><p>destinos: uma vida longa ou o martírio.</p><p>— E qual será meu destino, meu conde? — Acsa fez a pergunta sem tirar os olhos de mim.</p><p>Orei para que o Espírito Santo a fizesse aguentar um pouco mais. Ser corajosa até o final.</p><p>Também orei para que o repelente fosse eficaz. E, por via das dúvidas, orei por qualquer outro</p><p>milagre que pudesse salvar Acsa da morte, nem que eu tivesse que fazer meu último sacrifício.</p><p>Edward afastou o véu e os cabelos de Acsa de seu pescoço. Ele estava tão centrado na</p><p>própria tradição que não notou a pele verde dela.</p><p>Ouvi o som dos vampiros mordendo suas vítimas e vi o horror espelhado nos olhos de</p><p>Acsa, mas não ousei olhar para trás.</p><p>Seja forte Acsa. Só mais alguns segundos e prometo que te levarei para bem longe daqui.</p><p>— O cumprimento de meu voto, minha noiva. Até que a sua morte nos separe.</p><p>O conde fincou as presas no pescoço da princesa.</p><p>A</p><p>09</p><p>s presas de Edward saíram da minha pele quase tão rapidamente quanto</p><p>entraram. A dor foi forte, mas rápida, se comparada à transformação causada pelo</p><p>repelente de vampiro.</p><p>Edward cuspiu o pouco do meu sangue que havia sugado. Levei a mão à ferida no meu</p><p>pescoço e me senti tonta. Antes que atingisse o chão, os braços de Nikolai me envolveram e</p><p>evitaram a queda.</p><p>Ele afastou minha mão do pescoço e verificou a ferida.</p><p>— Não pegou a jugular, o sangramento já vai parar. Você vai ficar bem. — Nikolai sorriu,</p><p>colocou minha mão na ferida e me ajudou a ficar de pé.</p><p>— O que diabo vocês fizeram? — gritou Edward.</p><p>Nikolai o ignorou enquanto me ajudava a caminhar em direção a saída daquele covil de</p><p>predadores. Edward avançou para cima de nós e eu estendi minha mão ensanguentada, no intuito</p><p>de proteger a retaguarda de Nikolai. O vampiro parou de imediato e, ao sentir o cheiro do meu</p><p>sangue, se virou e vomitou.</p><p>Eu e Nikolai não paramos de correr. Apesar dos membros falhando, demos o nosso melhor</p><p>passando pelos vampiros que estavam muito concentrados em seu jantar para se preocuparem</p><p>conosco.</p><p>Quando estávamos quase saindo da capela improvisada, Victória parou a nossa frente, toda</p><p>lambuzada com o sangue de sua vítima. Ela fuzilou Nikolai com o olhar, que teve tempo apenas</p><p>de me jogar para o lado, quando a vampira avançou sobre ele. Ela fincou as presas em seu braço,</p><p>mas logo as retirou e se afastou. Cuspiu o sangue e se contorceu, como se consumir o sangue de</p><p>Nikolai a tivesse infectado.</p><p>Naquele instante, achei que não seríamos capazes de fugir, contudo uma luz amarelada</p><p>emanava da porta semi-aberta da capela. Me arrastei até a porta e a abri, notando que o sol nascia</p><p>e adentrava pelas amplas janelas. Ouvi os gemidos agonizantes dos vampiros quando o sol</p><p>adentrou o lugar. Lembrei do que Nikolai disse: o sol não os queimava. Todavia havia algo</p><p>errado na sua teoria. Os vampiros estavam queimando. Ao que tudo indicava, eles eram seres</p><p>inigualáveis, exceto quando estavam se alimentando. Por isso, criaturas das trevas só se</p><p>alimentavam na segurança da escuridão, onde seus atos não poderiam ser julgados pela luz.</p><p>Também reclamei quando os raios solares me atingiram, mas por um motivo diferente. De</p><p>alguma forma que não sei explicar, minha pele verde e cheia de feridas estava queimando e</p><p>ficando laranja logo antes de assumir sua tonalidade normal. A luz estava me curando. Não ardia,</p><p>e a cada instante exposta a ela me sentia revigorada.</p><p>Consciente de que o repelente perderia o efeito, me levantei e ajudei Nikolai a correr.</p><p>Quando entramos em um dos corredores iluminados, ele gritou com o sol que o atingia, devido</p><p>ao susto do que estava acontecendo com sua pele, mas persistimos, até atravessamos os jardins</p><p>correndo. Só ousamos parar quando o céu já estava bem azulado, e o castelo e os gritos</p><p>agonizantes dos vampiros estavam longe.</p><p>— Conseguimos — falou Nikolai, ofegante, jogando-se no chão.</p><p>Minhas pernas queimavam e meu vestido branco estava manchado de terra e lama. Me</p><p>joguei no chão ao seu lado.</p><p>— Por Jesus, conseguimos! — gritou Nikolai.</p><p>Ele me puxou para um abraço e me permiti o contato respeitoso. Nikolai começou a chorar</p><p>e eu também não contive as lágrimas. Estávamos livres, estávamos vivos!</p><p>Sentados na grama alta, abraçados observando o sol se estabelecer no céu azul, fiz minha</p><p>breve prece de agradecimento. Nunca achei que ficaria tão feliz por fugir no dia do meu</p><p>casamento.</p><p>— O que faremos agora? — perguntou Nikolai.</p><p>Lembrei-me que eu estava há apenas uma semana longe de casa, já ele estava fora há mais</p><p>de 6 anos.</p><p>— Voltaremos para casa. Juntos — respondi.</p><p>Nikolai sorriu para mim e fez uma breve oração que me levou às lágrimas novamente:</p><p>— Obrigado Senhor, pela possibilidade que temos de retornar toda vez que seu amor se</p><p>levanta e nos alcança como os raios de sol pela manhã.</p><p>FIM!</p><p>Agradecimentos</p><p>Deus, agradecemos pelo teu misericordioso amor, que nos amou primeiro, portanto nos</p><p>possibilita amar. Agradecemos pela amizade que o Senhor cultivou entre nós 6 e pela</p><p>criatividade (e uma dose de loucura) que o pai nos deu para escrever e publicar este livro.</p><p>Clys, a pessoa que sempre apoia,</p><p>ensina e arruma um espaço na agenda para fazer a</p><p>revisão. Obrigada por tudo!</p><p>Laís, por prestar um auxílio precioso.</p><p>A toda a nossa comunidade do cortejo, que sempre está pronta para ler o que a gente</p><p>escreve. Ao Clube do Cortejo, vocês são demais, meninas!</p><p>A FEFICC, pois além de nos aproximar, foi o motivo que nos deu um empurrão para</p><p>escrever esse livro.</p><p>Kell:</p><p>Ao meu grande amor, Valdney. Obrigada por ser meu porto seguro, onde encontro conforto</p><p>nos momentos de turbulência.</p><p>Às autoras deste livro, saibam que a nossa amizade é minha terapia diária.</p><p>A Maina Mattos por ser a cola que une todas nós.</p><p>Maina:</p><p>Às meninas escritoras deste livro, que topam as ideias malucas que surgem do nada e</p><p>fazem o trabalho se tornar mais divertido e agradável.</p><p>Ao meu amado Francisco, porque ouve tudo e me encoraja, mesmo sem entender nada do</p><p>universo da ficção.</p><p>À Ana Maria, por ter lido e mandado áudio surtando, comprovando a minha teoria de que o</p><p>conto é divertido.</p><p>Lyta:</p><p>Aos meus pais, por me ensinarem a amar as Escrituras, sempre dando corda para as minhas</p><p>longas divagações teológicas. Obrigada por também me criarem assistindo Barbie e todos os</p><p>desenhos mais frufrus possíveis.</p><p>A Vinicius, esse conto não teria saído sem a sua ajuda e incentivo durante o processo, além</p><p>de é claro ser a resposta de oração na minha vida. Ah, desculpe por fazer copia e cola de algumas</p><p>conversas nossas.</p><p>A Ana Luiza, por aceitar a loucura de betar em menos de um dia.</p><p>Aline:</p><p>À minha amada família, às minhas amigas maravilhosas e às nossas queridas leitoras que</p><p>lêem até nossa lista de compras porque nos amam. Vocês são bençãos para mim.</p><p>Dulci:</p><p>Agradeço a minha família por me apoiar em todas as coisas e me permitir escrever com</p><p>toda a paz.</p><p>Gabi:</p><p>A Maina, por ter inventado essa ideia louca, e a todas as escritoras sem juízo (como eu)</p><p>que toparam participar.</p><p>Aos meus amigos citados na dedicatória, por todas as histórias pessoais que confiaram a</p><p>mim, visitas a igrejas fechadas e madrugadas viradas conversando.</p><p>E aos leitores e apoiadores do terror cristão, incluindo meus pastores, vocês me empurram</p><p>a continuar. Em especial as leitoras de romance de cortejo que compraram, leem e divulgam a</p><p>causa do terror e não me acham (tão) maluca por gostar desse gênero.</p><p>Sobre as Autoras</p><p>Aline Moretho é uma jovem paulista que, desde nova, encantou-se com o mundo dos</p><p>livros. Em 2015, descobriu sua nova paixão: escrever romances. Porém, apenas em 2018</p><p>compreendeu que seu dom, ainda em processo de aperfeiçoamento, deveria ser dedicado ao</p><p>Senhor.</p><p>Hoje, Aline tem visto a bondade do Senhor e se alegrado com as bênçãos trazidas através</p><p>da escrita e espera poder se dedicar a esse trabalho por muitos anos.</p><p>Autora de: Do Deserto ao Jardim, Do Silêncio a Canção, e Meu Enredo de amor</p><p>Dulci Veríssimo é uma manauara de coração e alma. Formada em música, mestranda em</p><p>educação, com um toque de literatura na veia, descobriu a escrita após o desejo de conciliar</p><p>romance de época e um musical. Assim nasceu o primeiro enredo de seu livro, "Amor e Graça",</p><p>em 2016, e postou a primeira versão de sua obra em 2017 no Wattpad.</p><p>Influenciada por suas romancistas favoritas, como Janette Oke, Stephanie Grace Whitson e</p><p>Jane Austen, procura apresentar obras que realmente edifiquem e encorajem os irmãos na fé e na</p><p>esperança da glória!</p><p>Autora de: Amor e Graça, Um Perfeito Encanto e Meu Enredo de Amor.</p><p>Gabrielli Casseta é escritora e cineasta. Completamente apaixonada por filmes de horror,</p><p>tocar baixo e sair para roles aleatórios. Escreve fantasia e terror cristão. Acredita que a literatura</p><p>também é um trabalho missionário e sabe que seus livros podem chegar onde seus pés não irão.</p><p>Autora de: Todas As Minhas Libélulas, O Monstro Dançante, O Monstro Aventureiro, O</p><p>Monstro Rockstar E Gentilmente, Amor.</p><p>Kell Carvalho é Cristã, esposa, mãe de duas meninas e funcionária pública. Começou sua</p><p>jornada pela escrita no Wattpad, no início de 2017. Desde então, dedicou-se a escrever</p><p>Romances Cristãos conservadores que agradaram rapidamente a leitoras de diferentes idades,</p><p>tornando-a uma autora conhecida na plataforma.</p><p>“Orei por você” foi a primeira obra com a qual ela se aventurou a tomar novos rumos,</p><p>expandindo, assim, seu trabalho. Atualmente suas obras já ultrapassaram quatro milhões de</p><p>páginas lidas na Amazon.</p><p>Conhecida como “Clichê Queen”, Kell faz jus ao título escrevendo estórias envoltas em amor, fé</p><p>e temor a Deus.</p><p>Autora de: Orei por Você, De Repente Ester, Minha Verdade, Meu enredo de Amor,</p><p>Gentilmente, Amor.</p><p>Autora best-seller na Amazon, Lyta Racielly é uma jovem paranaense apaixonada por</p><p>romances água com açúcar.</p><p>Bookstan desde a infância, é uma leitora nata e na adolescência começou a escrever as</p><p>histórias que gostaria de ler, mas nunca encontrou.</p><p>Atualmente está cursando bacharelado em Teologia, além de também servir em escolas</p><p>missionárias.</p><p>Autora de: Uma Oração de Amor, Um Clichê de Verão, Um Amor Arranjado, Agnus Dei</p><p>Nascida e vivendo em Minas, Maina Mattos começou a escrever e publicar seus livros na</p><p>plataforma Wattpad em 2017 e não parou mais.</p><p>Entre fraldas, brinquedos e uma casa para administrar, ela aproveita qualquer oportunidade</p><p>na correria do dia a dia para fazer aquilo que tanto ama: escrever.</p><p>Mãe de quatro, casada com seu primeiro e único amor, escritora de romances cristãos</p><p>conservadores, autora best-seller na Amazon, foi influenciada pelas autoras Jane Austen e</p><p>Elizabeth Elliot.</p><p>Ama criar enredos românticos que falem sobre Cristo e a maioria de seus romances são de</p><p>cortejo.</p><p>Autora de: Amor Real Despertar, Amor Real Reluzir, Meu Querido Caipira, Um Amor de</p><p>Passageiro, Meu Enredo de Amor, Gentilmente, amor.</p><p>[1] Provérbios 19:2</p><p>[2] Conjunto do pedúnculo e das ramificações do cacho de uvas, que suportam os bagos;)</p><p>[3] Personagens do livro Amor Real da Maina Mattos</p><p>[4] Frase escrita por Mary Shelley no prefácio de Frankenstein, ou o prometeu moderno.</p><p>[5] Dente canino, presas</p><p>Contents</p><p>Nota das autoras:</p><p>COMO SE DESESPERAR ANTES DE ENCONTRAR O AMOR DA SUA VIDA - Kell Carvalho</p><p>01</p><p>02</p><p>03</p><p>04</p><p>COMO VIVER UM CONTO DE FADAS SEM FADA MADRINHA - Maina Mattos</p><p>01</p><p>02</p><p>03</p><p>04</p><p>05</p><p>06</p><p>07</p><p>COMO SE APAIXONAR EM UMA NOITE DE INSÔNIA - Lyta Racielly</p><p>01</p><p>02</p><p>03</p><p>04</p><p>05</p><p>COMO ARRANJAR MARIDO SENDO UMA PRINCESA AMALDIÇOADA - Aline Moretho</p><p>01</p><p>02</p><p>03</p><p>04</p><p>05</p><p>06</p><p>COMO ENCONTRAR O AMOR FUGINDO NUMA NOITE - Dulci Veríssimo</p><p>01</p><p>02</p><p>03</p><p>04</p><p>05</p><p>06</p><p>COMO SOBREVIVER A UM CASAMENTO ARRANJADO COM UM VAMPIRO - Gabi Casseta</p><p>01</p><p>02</p><p>03</p><p>04</p><p>05</p><p>06</p><p>07</p><p>08</p><p>09</p><p>Agradecimentos</p><p>Sobre as Autoras</p><p>compromisso urgente, mas não antes de murmurar algo</p><p>sobre precisar conversar com meu segurança no corredor.</p><p>Um silêncio expectante se instalou no aposento. Sentia o peso do olhar do rapaz sobre</p><p>mim, avaliando meus movimentos, como se estivessem dissecando minha alma. A atmosfera era</p><p>densa, carregada de uma tensão palpável. Encolhi-me ligeiramente na poltrona, tentando</p><p>aparentar serenidade. A única coisa que me mantinha calma era a presença de Liam ao meu lado,</p><p>mas agora ele não estava ali e eu nem sabia como as coisas ficariam entre nós após o episódio</p><p>desastroso minutos antes.</p><p>Eu havia destruído nossa amizade com toda certeza.</p><p>— Permita-me servir um pouco de chá para Vossa Alteza? — O aristocrata se prontificou</p><p>em um dos seus muitos gestos galantes e eu aceitei.</p><p>Levei a xícara à boca e aproveitei o pretexto para me acalmar. Onde estava Liam que não</p><p>retornava? Independente de qualquer coisa, ainda era o meu guarda-costas. Prestes a acioná-lo</p><p>pelo broche, ele passou pela porta e parou atrás da poltrona que eu estava. Meu corpo tenso</p><p>relaxou com sua simples presença.</p><p>Dominic o encarou e pareceu querer dizer algo sobre a proximidade do guarda-costas, mas</p><p>antes que ele se pronunciasse, tomei a iniciativa e falei primeiro.</p><p>— Estamos em uma situação um pouco desconfortável. Pelo menos eu me sinto assim.</p><p>Mas entendo a necessidade. — Fiz uma pausa quando notei que estava falando rápido e</p><p>atropelando as palavras. — Proponho passarmos um tempo a sós, longe de todos os outros</p><p>hóspedes, para nos conhecermos melhor antes do baile.</p><p>— É uma excelente ideia, Alteza — Dominic respondeu com um sorriso sugestivo, seguido</p><p>de uma piscadela.</p><p>Empertiguei minha postura outra vez ao notar um brilho lascivo no olhar dele.</p><p>— Não sei o que se passou na sua cabeça, mas receio que terei que quebrar suas</p><p>expectativas, senhor — retruquei pouco à vontade com sua pose de libertino.</p><p>— Me chame de Dominic, por favor. Nada de senhor, eu insisto. — Ele pareceu não se</p><p>abalar com minhas palavras diretas.</p><p>O jovem exibiu outro de seus sorrisos, dando mais uma vez mostras de sua beleza um tanto</p><p>convencida. O sorriso diminuiu e ele se inclinou em minha direção.</p><p>— Perdão se dei a entender algo inapropriado e preciso deixar claro que não passou nada</p><p>na minha cabeça. Sou um homem respeitável, Alteza. — Ele completou sério de repente.</p><p>Deixei minha xícara sobre a bandeja e me levantei com um pedido de desculpas. Talvez eu</p><p>estivesse mesmo o julgando cedo demais. Quem sabe, ele nem era tão ruim assim como eu</p><p>imaginava que seria. Confusão era o que me definia naquele momento. Dominic fez o mesmo,</p><p>estendendo o braço para me guiar para fora da sala.</p><p>No corredor, o homem olhou por cima dos ombros e lançou um olhar enviesado na direção</p><p>de Liam que nos acompanhava. Depois, se inclinou para sussurrar no meu ouvido.</p><p>— Ele vai nos seguir o tempo todo?</p><p>Esbocei um sorriso e vi que os olhos de Liam brilhavam duros para mim.</p><p>— Sim, ele é a minha sombra — respondi indiferente. — Um presente do meu pai para</p><p>garantir minha segurança.</p><p>Dominic franziu a testa, os olhos estreitos em uma expressão de irritação.</p><p>— Mas estando comigo, você não deve temer mal algum — ele proclamou, a voz firme e</p><p>segura de si. — Eu a protejo.</p><p>Seus olhos se fixaram nos meus, capturando-me e gerando um turbilhão de emoções</p><p>inesperadas. Me perdi no olhar, hipnotizada pela intensidade que emanava dele. Por um</p><p>momento, o tempo parou. O mundo ao seu redor se dissolveu, deixando apenas nós dois, unidos</p><p>por um fio invisível de uma atração repentina.</p><p>Um pigarrear alto nos assustou, olhei desorientada para Liam, meu coração batendo</p><p>descontrolado pelos sentimentos que acabavam de ser despertados. Os lábios dele era uma linha</p><p>fina enquanto permanecia imóvel ao nosso lado.</p><p>— Algum problema com sua garganta? — Dominic perguntou segurando o riso. — Talvez</p><p>seja melhor ir até a cozinha tomar um chá de hortelã.</p><p>Liam não respondeu, apenas retribuiu o provocação com um olhar inexpressivo.</p><p>— Ele está bem.</p><p>Dei um tapinha no ar e voltei a andar, puxando meu pretendente comigo, não suportando o</p><p>olhar de Liam sobre nós. Já que ele não faria nada para me livrar daquela situação, não tinha</p><p>permissão para me dar sermões silenciosos.</p><p>— Onde pretende me levar, Alteza? — Dominic perguntou empolgado.</p><p>— Temos uma sala de jogos. Achei que poderíamos passar um tempo lá e jogar dardos.</p><p>— Acho uma ideia encantadora.</p><p>Seguimos pelos corredores movimentados do palácio, agitados com os preparativos do</p><p>baile. Alguns dos convidados da semana passaram por nós e nos cumprimentaram curiosos.</p><p>Quando Liam abriu a porta para nós, Dominic entrou primeiro, deslumbrado pela alcova</p><p>particular guardado a sete chaves, onde somente os membros da família real tinha acesso. Antes</p><p>de eu adentrar, o guarda-costas segurou meu braço, impedindo-me.</p><p>— Vai com calma, Kat — sussurrou para que apenas eu o escutasse, se bem que não era</p><p>necessário, pois Dominic só tinha olhos para o lugar que acabara de conhecer.</p><p>— Não entendi. — Confusa, olhei para ele em busca de respostas.</p><p>— É claro que entendeu. — Ele me encarou e acrescentou: — “Agir sem pensar não é</p><p>bom; quem se apressa erra o caminho”[1].</p><p>Liam me soltou, mas permaneci parada o encarando em busca de algum significado para</p><p>suas palavras. Seu olhar sobre mim parecia aflito e meu coração afundou no peito quando algo se</p><p>agitou em mim, espalhando-se rapidamente, deixando o que eu havia sentido por Dominic</p><p>momentos antes em segundo plano. Engoli em seco e desviei o olhar tentando entender o porquê</p><p>de ele me tratar daquele jeito se havia acabado de me dispensar sem dó e nem piedade.</p><p>— Como puderam esconder esse lugar durante toda essa semana? — Dominic retornou</p><p>para perto de nós entusiasmado. — Mas que bom que me mostrou agora.</p><p>Ele me puxou pela mão para dentro da sala e me guiou até o painel de dardos fixado na</p><p>parede. Foi então que notei a falha do meu plano. Eu não sabia jogar aquilo e minha pontaria era</p><p>péssima. Fora que meu entusiasmo e determinação tinham evaporado. Olhei por cima dos</p><p>ombros e avistei Liam sentado em uma cadeira ao lado da porta nos observando.</p><p>— Quer começar, princesa?</p><p>Me assustei com Dominic perto demais de mim.</p><p>— Hã… acabei de me dar conta que sou péssima nesse jogo. — Dei uma risadinha</p><p>nervosa, dando um passo para trás.</p><p>Dominic colocou a mão nas minhas costas, me impedindo de ir para mais longe dele.</p><p>— Eu posso te ensinar. — Um sorriso emoldurou seu rosto e ele se posicionou atrás de</p><p>mim. — Aliás, será um prazer.</p><p>Dominic me entregou um dardo e segurou minha mão na dele com firmeza, entrelaçando</p><p>seus dedos aos meus no dardo. Com voz calma, ele explicou a importância da respiração e da</p><p>concentração, demonstrando como lançar o objeto com precisão e fluidez. Fiquei olhando para o</p><p>alvo, o estômago apertando cada vez mais. Eu não tinha noção do que estava acontecendo</p><p>comigo. Só queria sair dali. As paredes começaram a se fechar sobre nós e a proximidade de</p><p>Dominic me sufocava. Ele disse mais algumas palavras que se perderam em meio ao meu</p><p>estupor.</p><p>A pressão era forte e eu paralisei tentando respirar. Queria correr para fora dali, no entanto,</p><p>minhas pernas não me obedeciam. Foi então que me lembrei do broche que Liam havia me dado</p><p>mais cedo. Minha mão livre voou até ele com urgência e um segundo depois senti Dominic ser</p><p>arrancado de perto de mim. Com as vistas turvas, fui envolvida por Liam e o agarrei pelo braço.</p><p>Escutei meu guarda-costas repreendendo o aristocrata, que permaneceu na sala enquanto</p><p>saímos dali. Liam me levou para meus aposentos e mesmo depois de estar longe o bastante, algo</p><p>ainda me sufocava e lágrimas enchiam meus olhos enquanto eu tentava respirar.</p><p>— Respire fundo e devagar. — As mãos dele emolduravam o meu rosto e eu, com um</p><p>esforço titânico, traguei o ar em goles trêmulos, tentando conter o tremor que percorria meu</p><p>corpo. — Ele fez alguma coisa com você?</p><p>Neguei com a cabeça.</p><p>— Eu só precisava sair de lá — minha voz saiu quase inaudível. — Eu não posso fazer</p><p>isso. Por um momento eu achei que conseguiria, mas não posso,</p><p>Liam.</p><p>Comecei a chorar e o segurança relaxou a postura. Suas mãos desceram para os meus</p><p>ombros e ali permaneceram enquanto ele me olhava consternado.</p><p>— Está tudo bem agora — ele murmurou, sua voz rouca e reconfortante. — E você não</p><p>precisa fazer nada que te deixe desconfortável.</p><p>Estávamos próximos e sem me dar conta encostei minha testa no peito dele, buscando</p><p>abrigo para minha desolação. Liam petrificou, sem esperar por aquela ação minha, mas em</p><p>seguida senti seus braços fortes me envolverem em um abraço, me acalmando, me dando a</p><p>sensação de que, naquele momento, nada me atingiria se eu permanecesse refugiada ali.</p><p>Meus olhos se fecharam e permiti que minha mente se afastasse de tudo – dos deveres</p><p>reais, das intrigas da corte, do peso da coroa e da imposição de um iminente casamento.</p><p>Relutante, levantei a cabeça quando consegui me recompor e Liam se afastou como se</p><p>estivéssemos acabado de cometer algum pecado.</p><p>— Vou chamar a Joana — ele disse indo em direção a porta.</p><p>Minha mãe entrou no quarto como um furacão ávida por respostas assim que Liam saiu.</p><p>— Katarina Isabella Margarete! — Ciente que a conversa seria longa, me joguei na cama.</p><p>— Dominic veio falar comigo totalmente desorientado. O que você fez?</p><p>— Não vou me casar com ele — falei decidida.</p><p>— Não esqueça os seus deveres perante a coroa. Essa união nos aproximará dos nobres!</p><p>Sabe como as relações estão abaladas no momento.</p><p>Sentei e cruzei as pernas sobre a cama.</p><p>— Não podem me usar como uma arma contra a oposição.</p><p>— Sei que um casamento arranjado e com pretensões políticas não é mais o ideal nos dias</p><p>de hoje, mas acredite, foi feito pensando em seu futuro e no da nossa nação.</p><p>— Mas como posso me unir a alguém que não amo?</p><p>Mamãe apertou os lábios e era notável o quanto ela estava tentando não perder o controle.</p><p>— O amor, querida, pode surgir com o tempo. O importante é ter respeito e admiração pelo</p><p>seu futuro esposo.</p><p>— Como posso ter respeito e admiração por um desconhecido? Não estou disposta a entrar</p><p>em uma união onde não se há o básico para ter um casamento que beire ao aceitável.</p><p>Ela suspirou impaciente.</p><p>— A felicidade não é um estado permanente. Ela vem e vai. O importante é construir uma</p><p>vida com alguém que te apoie e te faça companhia nos momentos bons e ruins.</p><p>— Eu concordo, mas quem me garante que Dominic será esse homem?</p><p>Mamãe estreitou os olhos e se aproximou com ambas as mãos na cintura enquanto me</p><p>encarava.</p><p>— E quem seria esse homem? Por acaso você já conhece algum?</p><p>Fixei meu olhar no chão de mármore do meu quarto e uma profunda tristeza se apossou de</p><p>mim ao perceber que sim, eu já conhecia alguém que eu não me oporia passar o resto dos meus</p><p>dias ao seu lado, mas que era ele que não me queria. Meus lábios tremeram e eu os mordi, com a</p><p>rejeição de Liam me atingido outra vez. Ele nem ao menos quis pensar no assunto, apenas o</p><p>rechaçou sem dó nem piedade. Pelo que parecia, ele queria mesmo se ver livre de mim. Cinco</p><p>anos era muito para ele, então a vida toda seria o próprio Calvário.</p><p>Olhando para o piso me dei conta que talvez toda aquela admiração que eu sentia pelo meu</p><p>guarda-costas era, na verdade, amor, porque doía demais saber que para Liam eu era apenas um</p><p>trabalho, uma obrigação que ele contava os minutos para transferir para meu futuro esposo.</p><p>— Filha — com minha falta de resposta, mamãe se sentou ao meu lado na cama —, sei que</p><p>é difícil, mas peço que confie em mim. Eu só quero o seu bem. Eu te amo, minha querida, e</p><p>jamais faria nada que te prejudicasse. Acredite em mim.</p><p>Concordei com a cabeça e ela me abraçou. Eu não tinha outra escolha a não ser aceitar e</p><p>obedecer às diretrizes dos meus pais, já que o que estavam me propondo não feria nenhum</p><p>princípio. Não era isso que as escrituras ensinavam, que os filhos deveriam ser obedientes a eles?</p><p>Joana entrou a tempo de presenciar o nosso longo abraço. Sua face estava rosada, como se</p><p>tivesse chegado até ali correndo.</p><p>— Alteza, vim assim que soube. O que aconteceu? Liam não me explicou, só disse que</p><p>precisava de mim.</p><p>Olhei para minha tutora e encolhi os ombros.</p><p>— Eu entrei em pânico — falei envergonhada.</p><p>— Oh, minha querida, isso é totalmente compreensível.</p><p>Ela trocou olhares com a rainha, como se tivesse ensaiado o mesmo discurso caso algo</p><p>desse errado.</p><p>— Vou deixá-las a sós. Preciso falar com Dominic e dizer que está bem e que poderá</p><p>retornar ao encontro em alguns minutos.</p><p>— Não, mamãe. — Me levantei num salto. — Só o encontrarei no baile.</p><p>— Irá desperdiçar essa oportunidade de se conhecerem melhor?</p><p>— Conhecendo-o melhor ou não, terei que casar com ele de qualquer maneira mesmo. Só</p><p>vamos fazer o que precisa ser feito e acabar logo com isso.</p><p>As duas mulheres ao meu lado trocaram olhares outra vez e minha mãe preferiu não</p><p>masprolongar a conversa.</p><p>— Direi a ele.</p><p>A rainha saiu e Joana cruzou os braços ao me encarar.</p><p>— O que realmente aconteceu? – ela indagou avaliando meu rosto como um detetive.</p><p>Como eu não conseguia guardar nada dela, deixei meus ombros caírem e segui para uma</p><p>poltrona com Joana no meu encalço.</p><p>— Eu descobri uma coisa, Jô. — Atenta, seus olhos fixaram nos meus quando nos</p><p>sentamos. — Eu… acho que amo o Liam.</p><p>Esperei uma reação chocada da tutora, mas ela só inclinou a cabeça para trás e riu.</p><p>— Demorou a perceber, querida.</p><p>Recuei na poltrona.</p><p>— Como assim?</p><p>— Quer dizer que eu já havia percebido isso.</p><p>Baixei o olhar.</p><p>— Mas do que adianta, o sentimento não é recíproco.</p><p>Joana gargalhou por longos segundos e eu a encarei procurando o lado engraçado da</p><p>situação.</p><p>— Katarina, você deveria ser um pouquinho mais atenta.</p><p>— Se ele me amasse teria aceitado a minha proposta de casamento!</p><p>Agora sim, Joana ficou chocada com minha declaração.</p><p>— Como é? — Ela tomou minha mão entre as delas e me obrigou a olhá-la nos olhos. —</p><p>Você o pediu em casamento?</p><p>Tentei esconder meu rosto e assenti.</p><p>— Em um ato de total desespero antes de me encontrar com Dominic.</p><p>Quando Joana falou, seu tom de voz tinha um quê de expectativa.</p><p>— E o que ele disse?</p><p>— Liam nem esperou eu terminar de falar, recusou-me como se eu fosse uma aberração.</p><p>A tutora se levantou e ficou pensativa.</p><p>— Ele não esperava que você fizesse um pedido desses a ele.</p><p>— Muito menos eu pensei algum dia em fazer tal coisa, mas estava desesperada. Se você</p><p>soubesse o quanto eu me arrependo… gostaria de voltar no tempo e desfazer esse ato impulsivo,</p><p>porém o estrago já está feito e não há nada que possa remediar o que aconteceu.</p><p>— Compreendo o seu desespero e não a julgo por ter agido no impulso. Mas, se ele tivesse</p><p>dito sim, seus pais concordariam com a união? Por que você sabe que algo assim precisa de</p><p>aprovação deles. Sua posição, a posição dele… é uma situação complexa, apesar de eu achar que</p><p>isso não seja o mais importante. Mas a aceitação dos seus pais é imprescindível.</p><p>Suspirei resignada.</p><p>— Como eu disse, não importa. Liam não me ama o suficiente para querer viver ao meu</p><p>lado pelo resto dos seus dias por livre e espontânea vontade. Vi isso nos olhos dele quando gritou</p><p>um não bem na minha cara.</p><p>— E se você estiver errada?</p><p>Um riso sem humor escapou dos meus lábios.</p><p>— Acho que vamos morrer com essa dúvida.</p><p>— Você é muito dramática, garota. — Joana revirou os olhos. — Nada está perdido e o dia</p><p>nem acabou ainda. — Ela bateu palmas e estalou a língua, do jeito que sempre fazia quando</p><p>tinha uma brilhante ideia. — Vou pedir para servirem o seu almoço e iniciarem seus preparativos</p><p>para o baile. Apenas se preocupe em ficar linda que vou resolver o que precisa.</p><p>— O que quer dizer?</p><p>Joana sorriu e piscou para mim.</p><p>— Vou assumir o meu papel de fada madrinha.</p><p>A</p><p>04</p><p>pós o almoço solitário em meus aposentos, a equipe mencionada por Joana</p><p>finalmente chegou para me preparar. A luz do sol da tarde banhava meu quarto com</p><p>um brilho dourado, enquanto as criadas se moviam ao meu redor como se fossem</p><p>abelhas em torno de uma flor doce, vestindo-me com um deslumbrante vestido verde musgo</p><p>adornado com pérolas cintilantes.</p><p>À medida que a noite caía, a música da orquestra ecoava do lado de fora, anunciando o</p><p>início do</p><p>aguardado baile real. Ana, a criada mais experiente, ajustava cuidadosamente as</p><p>mangas longas do meu vestido, enquanto outra prendia um diadema de diamantes em meus</p><p>cabelos negros.</p><p>Finalmente pronta para o grandioso evento, dei uma última olhada no espelho. Meus olhos,</p><p>que costumavam brilhar com vivacidade, refletiam agora uma mistura de emoções complexas e a</p><p>expectativa de um futuro que jamais sonhara.</p><p>Ao sair de meus aposentos, esperava encontrar Liam, minha companhia constante, mas ele</p><p>não estava lá, quebrando assim nossa rotina habitual. Segui sozinha pelo corredor, tentando me</p><p>acostumar com sua ausência iminente, sabendo que nossos laços seriam rompidos para sempre</p><p>dali em diante. Um aperto doloroso tomou conta do meu peito, e lutei para conter as lágrimas</p><p>que insistiam em aflorar.</p><p>Descendo a majestosa escadaria em direção ao salão de baile, avistei dois cavalheiros</p><p>conversando ao pé dela. Reconheci Dominic de imediato, pois ele estava virado na minha</p><p>direção, mas o outro permanecia de costas para mim. Um sorriso educado adornou o rosto de</p><p>Dominic quando me viu se aproximar, mas foi quando o outro cavalheiro se virou que parei no</p><p>meio da escadaria, meu coração saltando uma batida ao encontrar os olhos familiares de Liam.</p><p>Ele estava impecavelmente vestido com um smoking, seus cabelos úmidos e penteados para trás</p><p>realçando suas sardas e os olhos claros que eu tanto conhecia.</p><p>Dominic subiu as escadas ao meu encontro e tomou a minha mão entre as suas.</p><p>— Permita-me dizer o quanto está bela, Alteza. — Completou com uma reverência.</p><p>— Obrigada — agradeci e, por cima dos seus ombros, vi Liam nos observando.</p><p>O aristocrata se virou para uma rápida olhada para meu guarda-costas.</p><p>— Alteza — ele pigarreou —, fiquei imensamente lisonjeado por terem me considerado</p><p>para um futuro matrimônio, mas receio ter que declinar a proposta do Rei.</p><p>Ergui o cenho e alternei meu olhar entre ele e Liam logo abaixo, tentando assimilar as</p><p>palavras de Dominic.</p><p>— Como?</p><p>Ele apontou com o polegar para Liam.</p><p>— O grandalhão ali vai explicar. — Ainda segurava a minha mão, levou-a até seus lábios e</p><p>deixou um beijo no dorso. — Tenha uma ótima vida, princesa.</p><p>Dominic desceu as escadas e cumprimentou Liam com um aceno de cabeça ao passar por</p><p>ele antes de seguir em direção ao salão de baile. Como permaneci imóvel onde estava, meu</p><p>guarda-costas subiu os degraus ao meu encontro.</p><p>— Venha comigo, precisamos conversar. — Ele ofereceu o braço e o aceitei no</p><p>automático.</p><p>— O baile...</p><p>— Ele pode esperar, o que preciso te dizer, não.</p><p>Me deixei ser guiada por ele na direção oposta que os convidados seguiam até que saímos</p><p>para o jardim. A noite estava agradável e o ar fresco circulou entre nós trazendo o cheiro da</p><p>loção pós-barba de Liam até a mim. Engoli em seco com mil pensamentos girando em minha</p><p>mente a procura de qualquer pista que justificasse a desistência de Dominic e o porquê de eu</p><p>estar ali com Liam.</p><p>Ele me fez parar ao lado do canteiro de hellebores e se virou para ficar de frente para mim.</p><p>Um leve sorriso levantou os cantos de seus lábios, antes dele o conter.</p><p>— O que está havendo, Liam?</p><p>Os olhos dele encontraram os meus e ali permaneceram.</p><p>— No dia que me contrataram para ser o seu segurança pessoal eu fiz um juramento. —</p><p>Ele tomou minha mão direita. — Para o Rei eu jurei protegê-la dos perigos físicos, mas após</p><p>algum tempo de convivência, em meu coração prometi ser seu porto seguro, seu amigo,</p><p>confidente e, se você me permitisse um dia, seu companheiro de vida.</p><p>Fiquei sem reação por alguns segundos até começar a ter uma ideia do que estava</p><p>acontecendo. As palavras de Liam ecoram em meu coração, acendendo uma chama de</p><p>expectativa. As peças do quebra-cabeça começam a se encaixar: a mudança de planos de</p><p>Dominic, o porquê dele ter me trazido para o jardim, a intensidade em seu olhar…</p><p>— Liam, não brinque com meus sentimentos… — minha voz embargou e eu precisei</p><p>engolir em seco.</p><p>Seus olhos brilharam sob a luz do luar e um anel cintilou quando ele tirou o pequeno objeto</p><p>do bolso. Reconheci o anel de noivado da minha avó, o que aumentou ainda mais a emoção que</p><p>estava sentindo.</p><p>— Eu nunca faria isso com você, Kat. — Liam umedeceu os lábios e exalou um suspiro</p><p>profundo, buscando manter meu olhar cativo ao dele. — Case-se comigo, Katarina Isabella</p><p>Margarete.</p><p>— Por que eu deveria aceitar se você me recusou mais cedo? — Não consegui conter a</p><p>mágoa que ainda sentia, mesmo sabendo que a culpa por aquilo era toda minha.</p><p>Com um sorriso cativante, Liam deu um passo, diminuindo a distância entre nós.</p><p>— Porque mais cedo não aconteceu do modo certo. — O sorriso sumiu e seu olhar se</p><p>tornou profundo. — Você queria uma encenação para se livrar de um casamento com o Dominic.</p><p>Mas eu, Kat — ele tocou meu rosto —, não quero fazer isso por fingimento. Quero fazer de</p><p>verdade, porque a amo e não suporto a ideia de te perder para sempre.</p><p>Fitei seus olhos e vi neles afeto, sinceridade e uma certeza de que ele estava falando sério.</p><p>— E minha posição...?</p><p>— Não tenho medo dela. — Um sorriso divertido iluminou seu rosto. — Se é o que está</p><p>insinuando.</p><p>— Digo em relação ao meu pai, Liam. Será que ele permitiria, já que você...</p><p>— Não tenho um título na nobreza?</p><p>Assenti com medo, antes de deixar claro que aquilo não importava para mim.</p><p>— Eu não me importo com isso, mas nem tudo é como almejamos — eu disse.</p><p>A brisa noturna estava ficando mais forte e uma mecha do meu cabelo se soltou do</p><p>penteado. Liam a colocou atrás da minha orelha sem parecer se importar com meus dilemas.</p><p>— Não há nada com o que se preocupar, já está tudo resolvido. Assumirei o legado do meu</p><p>pai.</p><p>Surpresa com a declaração dele, me afastei ciente do significado de sua decisão.</p><p>— Liam, você fugiu disso sua vida toda. Não me diga que está fazendo apenas por minha</p><p>causa!</p><p>Liam exibiu um sorriso determinado e tranquilo.</p><p>— Foi a condição que seu pai me impôs para poder conceder sua mão, e eu aceitei de bom</p><p>grado.</p><p>— Tem certeza que quer fazer isso?</p><p>— Sim, estou pronto para os dois postos: ser seu marido e o próximo general do exército</p><p>de Emberfall. — Ele respirou fundo. — O primeiro, claro, se você ainda quiser.</p><p>— Está mesmo disposto a me aturar até que a morte nos separe?</p><p>— Se eu não tivesse certeza, não teria agido com um louco essa tarde para estar aqui com</p><p>você nesse momento.</p><p>O alívio que sentia tomou conta de mim, fazendo-me rir alto. Eu não conseguia imaginar</p><p>Liam perdendo o controle de suas emoções e gostaria muito de conhecer os detalhes.</p><p>— Por favor, conte-me como foi.</p><p>— Bem, devo agradecer à Joana em primeiro lugar. Ela arrancou de mim a confissão dos</p><p>meus sentimentos, fazendo-me cair em si e perceber que eu deveria lutar por você. Depois, usou</p><p>de sua expertise e dom de mexericos dos funcionários do palácio para descobrir um deslize</p><p>escandaloso de Dominic.</p><p>— Eu mereço saber que deslize era esse?</p><p>— Vamos apenas dizer que você estava certa e que de cristão aquele sujeito não tem nada.</p><p>Você com certeza sofreria com sua falta de fidelidade. — Liam ergueu o anel para que</p><p>retornássemos ao que realmente importava ali. — Eu por outro lado…</p><p>— É o homem que eu pedi a Deus — o interrompi acariciando seu rosto recém barbeado.</p><p>— Não sou perfeito, Kat, você bem sabe. Vou errar, pecar e precisarei diariamente de</p><p>perdão.</p><p>— Eu também não sou e talvez eu precise ainda mais de graça do que você.</p><p>— Isso é um sim?</p><p>A minha pressa em não esperar a providência divina havia sido uma armadilha, levando-</p><p>me a errar, ensinando-me uma lição importantíssima de não se deixar levar por emoções ou</p><p>impulsos momentâneos, me fazendo entender que a paciência é uma virtude, já a pressa, pode</p><p>levar a arrependimentos.</p><p>— Sim.</p><p>Lágrimas de felicidade brotaram em seus olhos enquanto Liam colocava o anel no meu</p><p>dedo. Tudo tinha acabado bem, afinal. Não porque eu merecia, mas porque Deus em sua infinita</p><p>misericórdia havia me concedido sua benevolência.</p><p>FIM!</p><p>COMO VIVER UM CONTO DE FADAS SEM FADA MADRINHA - Maina Mattos</p><p>Dedicatória</p><p>À Alissa. Que seus olhos nunca sejam embaçados por complexos, minha</p><p>pequena</p><p>princesa, e que a verdade do Criador brilhe sempre em sua vida.</p><p>E ao meu marido Francisco, por me mostrar que homens reais também podem</p><p>ser príncipes encantados e que histórias de amor são verdadeiras, ainda que às</p><p>vezes você pareça um sapo.</p><p>“Pois tu formaste o meu interior, tu me teceste no ventre de</p><p>minha mãe. Graças te dou, visto que de modo assombrosamente</p><p>maravilhoso me formaste; as tuas obras são admiráveis, e a</p><p>minha alma o sabe muito bem”.</p><p>Salmos 139:13-16</p><p>L</p><p>01</p><p>aíse olhou através da janela da carruagem e avistou o enorme palácio de</p><p>Romantícia, onde, tradicionalmente, acontecia o Baile Real da Côrte e Cortejos. A</p><p>cada três anos, as portas do salão principal do local se abriam para todos os solteiros:</p><p>príncipes, princesas e a seleta nobreza de todos os reinos em busca de seus felizes para sempre.</p><p>Com danças, o melhor buffet do mundo e muito espaço para criar relações, era de se</p><p>esperar, ao findar do Baile, o firmar de vários enlaces matrimoniais. Afinal, foi com esse</p><p>propósito que o evento foi estabelecido, há muitos anos, pela rainha Bennet, cujo desejo de casar</p><p>suas filhas era tão grande que a inspirou a fundar a maior e mais esperada festividade de todos os</p><p>reinos.</p><p>Era a primeira participação de Laíse e ela estaria muito animada, se não fosse a recente</p><p>moda que voltou a se instalar por entre os membros da realeza.</p><p>Lembrar desse detalhe fez a jovem se afundar em frustração.</p><p>Era para ter estado presente na edição anterior, afinal, tinha acabado de completar os 16</p><p>anos exigidos pelos organizadores para ser convidada, contudo, os pais acharam que ela ainda</p><p>era nova para o casamento. Três anos depois, eles se encontravam preocupados por ela estar</p><p>velha, com 19 anos e sem nenhuma proposta em vista.</p><p>E era por isso que a carruagem parava naquele momento em frente à grande escadaria de</p><p>acesso ao Baile, mesmo contra a vontade da jovem.</p><p>— Anime-se, minha querida. Vai ser divertido. — A mãe deu alguns tapinhas na mão de</p><p>Laíse. — Tenho certeza de que vai amar.</p><p>Laíse lançou um breve olhar para a mãe, mas não respondeu. Deixou que a feição</p><p>carrancuda falasse por si só e revelasse seu estado de espírito.</p><p>A mãe deu um longo suspiro. Desempenhar a função de rainha era desafiador, mas o papel</p><p>de mãe provara ser ainda mais complexo.</p><p>— O Baile Real é uma excelente oportunidade para conhecer pessoas legais — a rainha</p><p>disse. — É o sonho de toda princesa.</p><p>— A senhora sabe os meus motivos. Não sou uma princesa padrão. Eu não me encaixo</p><p>aqui.</p><p>— Laíse…</p><p>— Eu sou, mãe? Sou como as outras princesas?</p><p>— Você me deixa numa posição desconfortável com essa pergunta. — A Rainha cruzou as</p><p>mãos em cima do joelho. — Sabemos que você não é, mas isso não a desqualifica para estar no</p><p>Baile, muito menos para encontrar o amor.</p><p>Laíse cruzou os braços e evitou o olhar da mãe. Ela sabia que a mulher a amava e desejava</p><p>seu bem. Mas ainda sentia-se magoada por ter sido obrigada a fazer algo contra sua vontade.</p><p>A porta da carruagem se abriu e um lacaio se posicionou para auxiliar a jovem. Ela</p><p>demorou um pouco para se mover, e quando o fez, a mãe tocou em seu braço obrigando-a a</p><p>encará-la.</p><p>— Encontrei seu pai no Baile e fomos muito felizes juntos por todos esses anos. — A</p><p>rainha abriu um largo sorriso. — Não desperdice as chances que o Criador te dá.</p><p>Laíse sabia que a mãe estava tocando no seu ponto fraco. Ela usava a maior arma de todas</p><p>para convencê-la: a bondade do Criador.</p><p>— Você tem até meia-noite em ponto — a rainha completou. — Estaremos aqui para te</p><p>buscar.</p><p>Ao ouvir o tom amável da mãe, a garota se rendeu e sorriu.</p><p>— Não me importaria se viesse antes — ela disse e, após uma mesura em direção à rainha,</p><p>desceu da carruagem.</p><p>L</p><p>02</p><p>aíse subia a longa escadaria observando a grandeza do palácio. Evitava olhar ao</p><p>redor e ter que encarar homens e mulheres que chegavam para o Baile com a</p><p>expectativa brilhando em suas feições.</p><p>Conhecera histórias e mais histórias de amor que se concretizaram naquele local, mas</p><p>nenhuma delas conseguia fazer seu coração se aquecer mais do que a dos seus pais. Desde</p><p>criança, ouvia o relato de como o rei havia se apaixonado à primeira vista pela donzela mais bela</p><p>da ocasião e feito de tudo para chamar sua atenção, mesmo ela o desprezando.</p><p>Ela sonhou com o dia em que chegaria seu momento de estar presente pela primeira vez,</p><p>mas tudo tinha dado errado, e isso porque havia herdado a genética do pai.</p><p>Observou as grandes portas douradas e lembrou de que atrás dos muros havia um extenso e</p><p>maravilhoso jardim. Desejou se abrigar por lá para evitar os olhares julgadores que receberia.</p><p>Foi quando um lapso de coragem a atravessou e ela se viu em um desses momentos em que</p><p>as pessoas bolam um astuto plano e, sem delongas, o coloca em prática, antes mesmo de pensar</p><p>nas consequências que podem acarretar tal decisão.</p><p>Ela fugiu do Baile. Simples assim. Encontrou uma porta e passou por ela. Subiu um lance</p><p>de escadas que a levou para o andar superior do salão. O local estava vazio e abrigava um</p><p>espetacular jardim suspenso, iluminado pela luz da lua cheia. Tudo o que ela precisava era ficar</p><p>por lá até dar a hora de ir embora. Ninguém notaria e não haveria olhares julgadores.</p><p>Enquanto explorava o local, admirando sua descoberta, imaginou ter encontrado o</p><p>esconderijo perfeito para permanecer durante o Baile.</p><p>Pelo menos, durante os primeiros 10 minutos.</p><p>Quando a novidade passou e a empolgação por estar fazendo algo inesperado foi embora,</p><p>dando espaço para a fome e o tédio que bateram à porta, ela se jogou ao chão, imaginando como</p><p>suportaria as próximas 5 horas ali, sozinha.</p><p>Fugir não pareceu mais uma boa ideia. Fechou os olhos imaginando o banquete que seria</p><p>servido no salão. Sentiu a vibração da música e o anseio por dançar. Imaginou quantas pessoas</p><p>ela teria oportunidade de conhecer. Talvez fizesse alguma amizade com quem pudesse trocar</p><p>cartas.</p><p>Ergueu o tronco e se sentou. Foi quando os pés à mostra a lembraram da triste realidade.</p><p>Dificilmente alguma princesa daria atenção a uma fora de moda.</p><p>Ela voltou a se deitar no chão um pouco frustrada. Fechou os olhos e riu ao imaginar a cara</p><p>que a mãe faria ao vê-la naquele estado. Conseguia até mesmo ouvir a voz dela a repreendendo!</p><p>— Com licença!</p><p>Laíse abriu os olhos e se deparou com uma figura masculina de pé a sua frente. Não dava</p><p>para ver muita coisa, mas reconheceu as típicas vestes reais. Era um príncipe, isso ela tinha</p><p>certeza.</p><p>— A senhorita se sente bem? — O tom de voz denotou preocupação.</p><p>Por cinco segundos, ela precisou tomar uma decisão do que responder: fingir que estava</p><p>perdida ou ser sincera e contar a verdade. Ficou com a segunda alternativa, afinal, aprendeu nos</p><p>Escritos Sagrados que mentir não era uma opção.</p><p>— Estou me escondendo — respondeu. — Fugi do Baile quando cheguei.</p><p>Mesmo com a pouca luz, ela visualizou um sorriso se abrir no rosto do homem.</p><p>— Infelizmente esse esconderijo já tem dono. — Com elegância, ele estendeu a mão para a</p><p>jovem.</p><p>Laíse se sentou e encarou a mão estendida. Deu-se conta de que havia sido pega no flagra</p><p>numa situação bem deselegante. As bochechas coraram e ela assumiu sua pose de princesa.</p><p>Colocou sua delicada mão sobre a dele e deixou que o homem a erguesse com firmeza.</p><p>Já de pé, ela teve um vislumbre melhor de seu acompanhante. Mesmo com pouca luz,</p><p>reconheceu que ele era a definição perfeita de um príncipe encantado. Ele era alto, forte e trajava</p><p>vestes reais de gala que o deixava muito charmoso. Não tinha certeza, mas lhe pareceu que os</p><p>olhos penetrantes eram verdes. O sorriso que ele exibia emoldurava o rosto. O penteado do</p><p>cabelo não era comum, com um topete distinto, mas agradou a princesa.</p><p>— Obrigada. — Ela afastou a mão da dele, mas continuou parada admirando a beleza</p><p>singular do homem.</p><p>— Perdoe-me a intromissão, mas como a senhorita passou pelos guardas? — ele</p><p>perguntou.</p><p>— Guardas? Que guardas?</p><p>Ele apontou em direção à entrada do jardim, um pouco distante de onde estavam. Duas</p><p>figuras masculinas mantinham-se em posição de sentinela.</p><p>— Não havia ninguém quando cheguei.</p><p>— Ela evitou o olhar dele. — Não sabia que o</p><p>lugar era proibido.</p><p>O príncipe ergueu as sobrancelhas, mas deteve logo a expressão. Olhou em direção aos</p><p>homens na porta e voltou-se a ela.</p><p>— Não é. Eles estão apenas de vigia. São da minha guarda pessoal.</p><p>— Ah! — ela murmurou sem saber o que pensar.</p><p>Os dois se encararam em silêncio.</p><p>— Então… — Ele colocou as mãos atrás das costas.</p><p>— Então? — Ela franziu a testa.</p><p>— Acho melhor a senhorita pegar o caminho de volta, descer as escadas e retornar para o</p><p>Baile.</p><p>— De jeito nenhum! — Laíse deu um passo para trás. — Estou muito bem acomodada</p><p>aqui.</p><p>— Deitada no chão? — Ele elevou uma das sobrancelhas.</p><p>Laíse subiu e desceu os ombros e se lembrou o quanto a mãe detestava o gesto. Se</p><p>recompôs e endireitou a postura, assumindo a pose própria das moças elegantes.</p><p>— Pretendo continuar aqui. — Ela ergueu o queixo apenas o suficiente para deixar claro</p><p>sua determinação. — O senhor é o príncipe de Romantícia por acaso?</p><p>— Não. Mas faço uso deste esconderijo há 9 anos, creio que tenho prioridade para</p><p>desfrutar do espaço.</p><p>— O jardim é grande, acomoda nós dois com tranquilidade. Podemos ficar em lados</p><p>opostos.</p><p>O príncipe avaliou a jovem por um breve momento, suficiente para reconhecer que os</p><p>cabelos, cujas mechas escapavam de uma elaborada trança, eram castanhos claros. Depois, olhou</p><p>ao redor apenas para confirmar que suas suspeitas estavam certas.</p><p>— Pelo visto a senhorita está despreparada — ele falou.</p><p>— Despreparada? Como assim?</p><p>— Para passar as cinco horas do Baile aqui. — Ele fez uma pausa ponderando se era</p><p>sensata a ideia que lhe passou na cabeça. Analisou outra vez a jovem tentando entender os</p><p>motivos que a levaram a se esconder, e antes mesmo de encontrar qualquer resposta, prosseguiu:</p><p>— Talvez eu devesse convidá-la para me fazer companhia.</p><p>— E por que eu aceitaria?</p><p>— Tenho velas e comida. — Ele abriu um largo sorriso.</p><p>L</p><p>03</p><p>aíse deveria se repreender por ter aceitado o convite de um homem</p><p>desconhecido. Mas estava muito feliz sentada em cima de uma manta, com uma cesta</p><p>recheada de comidas saborosas ao lado, e, claro, acompanhada de um príncipe</p><p>encantado empenhado em acender algumas velas naquele instante.</p><p>— Agora teremos um pouco mais de conforto — ele disse depois de acender a última vela.</p><p>A claridade emitida permitiu que ela admirasse com mais detalhes a beleza e postura do</p><p>príncipe. De igual modo, ele também a analisou. A princesa era jovem. Seu rosto possuía traços</p><p>delicados e seus olhos que, assim como os dele, se revelaram ser verdes, eram pequenos e um</p><p>pouco puxados para os lados. Confirmou que o cabelo era castanho claro, quase mel. Achou uma</p><p>beleza bastante atrativa, não muito diferente de tantas outras princesas que conheceu.</p><p>Laíse percebeu que ele a avaliava em silêncio. Com agilidade, recolheu os pés, de modo a</p><p>deixá-los cobertos pela longa saia do vestido.</p><p>— Sinto que devo uma apresentação. — Ele se sentou de frente para ela, com uma</p><p>distância apropriada. — Sou Eric, sétimo príncipe da Geodésia.</p><p>— Sou a princesa Laíse. A segunda filha dos reis da Magnólia.</p><p>Ele abriu um sorriso.</p><p>— O reino das águas! — exclamou. — Dizem que há belos rios e cachoeiras correndo em</p><p>suas terras. Já estive em viagem próxima de sua casa.</p><p>Laíse sentiu orgulho de seu lar. Ela amava Magnólia justamente pela abundância dos</p><p>mananciais. Guardava boas recordações de sua infância mergulhada no grande Rio da Vida.</p><p>— Sim, a natureza da minha terra é, de fato, espetacular. — Ela o encarou por um breve</p><p>momento antes de desviar o olhar para as mãos sobre o colo. — Geodésia não é longe daqui. Sua</p><p>viagem deve ter sido rápida, diferente dos longos três dias que passei dentro de uma carruagem.</p><p>— Nossa fronteira está a cinco horas a cavalo. — O príncipe mirou a cesta de comidas e</p><p>retirou o pano que a cobria. — Não sabia que teria companhia, mas tem comida suficiente para</p><p>nós dois.</p><p>— Ah, que maravilha! Estou faminta!</p><p>Ela se inclinou para frente e espiou o que havia lá. Tinha pães, tortas, frios, frutas e carne</p><p>de cordeiro. Sua boca encheu-se de saliva.</p><p>— Não sabia que era permitido a uma princesa dizer que está faminta — ele brincou,</p><p>atraindo o olhar da jovem para si.</p><p>— Também não podemos nos sentar ao chão na companhia de um príncipe desconhecido</p><p>para evitar o Baile — ela completou com um grande sorriso no rosto. — Mas estou aqui, não é?</p><p>Eric escondeu o sorriso abaixando a cabeça. Retirou de dentro da cesta alguns alimentos e</p><p>colocou entre eles.</p><p>— Fique à vontade.</p><p>Laíse não precisava de muito estímulo quando o assunto era comida. Serviu-se de uma</p><p>generosa fatia de pão e um atraente pedaço da carne.</p><p>Eric analisou a princesa com interesse genuíno. A primeira impressão lhe agradou. Não</p><p>soube definir exatamente o que o atraiu, mas atribuiu ao fato de ela ter dado ínfima importância</p><p>ao Baile que ele evitava desde sua primeira participação. Isso a tornava diferente das outras</p><p>princesas? Talvez sim, ele pensou.</p><p>— Você não vai comer? — ela perguntou quando notou que ele estava quieto apenas a</p><p>observando.</p><p>Ele se adiantou e se serviu com um cacho de uvas. Estavam doces, como era de se esperar.</p><p>Romantícia era conhecida pelo nectarino sabor de suas frutas.</p><p>Enquanto comiam, o barulho distante de uma valsa de quatro cordas começou a soar. Laíse</p><p>lembrou-se de sua mãe contanto que há anos a mesma música tocava, anunciando a abertura das</p><p>danças. Casais se formavam, muitos de modo aleatório, apenas para não perderem a tradição e</p><p>dar início ao evento mais romântico de todos os tempos.</p><p>Ela fechou os olhos e detestou outra vez os responsáveis por trazerem de volta a tendência</p><p>esquecida nos últimos 10 anos. Suspirou, tentando se conformar.</p><p>— Você já esteve lá embaixo? — Ela elevou os joelhos e os abraçou, cuidando para não</p><p>deixar os pés à mostra.</p><p>— No Baile? — ele perguntou e ela assentiu com a cabeça. — Sim. O suficiente para não</p><p>apreciar a experiência.</p><p>— E como é? — Os olhos dela estavam repletos de curiosidade.</p><p>— Não é muito diferente de todo baile da realeza. Com exceção que muitos esperam sair</p><p>comprometidos com a sua alma gêmea.</p><p>— Meus pais se conheceram aqui, anos atrás. — Ela sorriu aquele típico sorriso de uma</p><p>jovem romântica. — Ele diz que se apaixonou no instante em que colocou os olhos nela.</p><p>Eric levou mais uma uva até à boca.</p><p>— Soube de histórias assim. — Ele deu de ombros. — Dizem que há certa magia que</p><p>envolve o lugar, mas penso que é apenas a predisposição das pessoas em viver uma história de</p><p>amor.</p><p>— E isso não é mágico? — Ela inclinou a cabeça para o lado sem desfazer o contato</p><p>visual. — Os Escritos Sagrados dizem que o Criador fez homem e mulher para serem um só.</p><p>Viver uma história de amor é apontar para o Amor dEle por nós.</p><p>Eric impediu que seu semblante denunciasse sua surpresa. Esperava qualquer tipo de</p><p>defesa sentimentalista que as garotas costumavam levantar quando o assunto era fantasias</p><p>românticas, exceto ouvir um discurso carregado de verdades do Grande Livro.</p><p>— Há uma variedade de histórias de fracasso também. — Ele comeu a última uva e</p><p>dispensou um interesse singular para o engaço[2] que sobrou da fruta.</p><p>— Sempre haverão relacionamentos fracassados, afinal, somos pó, criaturas imperfeitas. —</p><p>Laíse ouvira aquele discurso diversas vezes da esposa de seu irmão durante uma de suas</p><p>conversas profundas sobre o Criador. Sentia-se orgulhosa de repeti-lo. — Mas isso não me</p><p>impede de acreditar no amor e na essência do que ele é. Prefiro manter a esperança de viver algo</p><p>sublime com alguém que tenha o mesmo entendimento.</p><p>— E não acha que esse alguém pode estar lá embaixo, no Baile?</p><p>Laíse se sentiu pressionada de repente. É claro que ela passou várias noites de sua vida</p><p>fantasiando a eventualidade de encontrar o amor verdadeiro no Baile Real da Côrte e Cortejos,</p><p>assim como seus pais. Porém, também foi assaltada por pensamentos de uma provável rejeição.</p><p>Isso a impedia de tentar a sorte de ser convidada para uma valsa por um homem servo do Criador</p><p>que se apaixonaria por quem ela era por dentro.</p><p>Ficou levemente irritada com o assunto íntimo sendo abordado</p>