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<p>REFLEXÕES DESABUSADAS SOBRE ABUSO DO PODER POLÍTICO FÁBIO KONDER COMPARATO 1. A fenomenologia do poder político: 1.1 As suas diferentes mani- festações: 1.1.1 Poder de mando e autoridade moral ("potestas" e "auctoritas") - 1.1.2 Força e poder. Poder legítimo e ilegítimo 1.1.3 Poder de estatuir ou decidir e poder de impedir - 1.1.4 Poder formal e poder real 1.2 A patologia do poder político: 1.2.1 Ten- dência à concentração e à irresponsabilidade - 1.2.2 Tendência ao isolamento dos governantes em relação aos governados 1.2.3 A paixão do poder - 1.3 A chefia do Executivo no Brasil: uma longa tradição de abuso de poder. 2. Os princípios ético-jurídicos de orga- nização do poder político: 2.1 A ética republicana 2.2 A ética democrática 2.3 Os princípios cardeais dos direitos 3. Um programa de ação: 3.1 No plano educacional e da ação política 3.2 No plano institucional: 3.2.1 Sugestões de controle vertical 3.2.2 Sugestões de controle horizontal. Em penosa conversa mantida, recentemente, com o professor Celso Antônio Bandeira de Mello manifestamos ambos uma profun- da desilusão com o panorama político nacional. Os homens e os par- tidos, após crescerem moralmente na Oposição pela contínua denún- cia dos desmandos governamentais, assim que chegam ao poder reproduzem integralmente, ou quase, o comportamento de seus anti- gos adversários, embora protestando, com a mão na Bíblia, sua firme intenção de doravante tudo mudar no trato da coisa pública. Concluí- mos nosso desalentado colóquio reconhecendo a urgente necessidade de uma reflexão menos episódica e emocional sobre a essência e os mecanismos de exercício do poder político. Em homenagem à pessoa do Mestre e Amigo, venho, agora, cum- prir a minha parte, apresentando as reflexões que se seguem. Elas obe- Scanned with CamScanner</p><p>FÁBIO KONDER COMPARATO 309 decem ao método ternário, cuja boa tem sido largamente demonstrada na análise dos problemas sociais: ver, julgar e agir. Apre- sento, assim, numa primeira parte, o que se poderia denominar a feno- menologia do poder político, para lembrar, em seguida, os princípios fundamentais da Política, e concluir com uma propos- ta de programa de ação. 1. A fenomenologia do poder político 1.1 As suas diferentes manifestações Não há realidade mais proteiforme que o poder. Hobbes, em pas- sagem famosa do (Parte I, Capítulo 10), apontou algumas de suas várias manifestações: "Reputação de poder é poder; pois ela atrai a adesão daqueles que pre- cisam de proteção. Assim é a reputação que alguém tenha de ser amado pelos seus conterrâneos (a chamada popularidade), pela mesma razão. o mesmo acontece com a qualidade que faz com que um homem seja amado ou temi- do por muitos; pois ela implica obter a assistência e serviço de muitos. "Bom sucesso é poder; ele cria a reputação de sabedoria, ou de sorte; a qual suscita o temor ou a confiança dos outros. "A afabilidade dos homens que já estão no poder o reforça, porque sus- cita a estima dos governados. "Reputação de prudência na condução da paz ou da guerra é poder; pois aos homens prudentes costumamos confiar o governo de nós mesmos, mais facilmente que a outros. "Nobreza é poder, não em todos os países, mas naqueles em que ela confere privilégios; porque o poder consiste justamente em tais privilégios. é poder; porque dá a impressão de prudência. "Forma (isto é, beleza) é poder; porque, sendo uma promessa do Bem, provoca a simpatia das mulheres e dos estrangeiros." Nem todas essas formas de poder, contudo, apresentam a mesma importância no plano político. Examinemos, portanto, com mais cui- dado, algumas de suas principais manifestações. Scanned with CamScanner</p><p>ESTUDOS DE DIREITO PUBLICO 310 1.1.1 Poder de mando e autoridade moral ("potestas" e "auctoritas") Essa distinção foi feita em Roma para distinguir, de um lado, a posição política dos e outros magistrados, que podiam im- por suas decisões ao povo (potestas ou imperium), e, de outro, a posi- ção do Senado, cujas decisões eram respeitadas unicamente em razão do prestígio moral ligado à instituição (composta dos descendentes presumidos dos fundadores de Roma), mesmo não tendo Senado poder algum para impor suas decisões ao povo. A Constituição da República Romana, como salientou Políbio no Livro VI de sua His- tória, era um misto de monarquia, oligarquia e democracia, que dificultava em muito, na prática, o abuso de poder. Os cônsules exer- ciam funções de natureza o Senado organizava-se como instituição oligárquica, enquanto ao povo eram reservados certos po- deres propriamente democráticos, como o de aprovar as leis propos- tas pelos cônsules e não vetadas pelo Senado. Nas instituições modernas essa antiga distinção não foi oficial- mente mantida, salvo em algumas Monarquias, como a Espanhola. Mas tudo depende, na prática, do efetivo prestígio moral dos agentes políticos, sejam eles ocupantes de cargo oficial, ou não. Por exemplo, após a independência da Índia, Gandhi, embora não ocupasse cargo oficial algum, gozou até a sua morte de uma autoridade moral incon- testável. Nenhuma grande decisão governamental era tomada sem 0 acordo prévio do Mahatma. Datafolha departamento de pesquisa do jornal Folha de S. Paulo - publicou os resultados de uma pesquisa de opinião realizada em todo o Brasil para avaliar o que chamou "po- der de influência" e "prestígio" de várias instituições Apurou-se que, no tocante ao "poder de influência", as três primei- ras instituições eram, em ordem decrescente, a imprensa (provavel- mente, o conjunto dos meios de comunicação de massa), a Presidên- cia da República e as instituições financeiras; e as três últimas eram os partidos políticos, as empresas estatais e os sindicatos de traba- lhadores. Quanto ao "prestígio", as instituições que mais se desta- caram foram a imprensa, os clubes de futebol e a Igreja Católica; e as de menor prestígio, as empresas estatais, a seguir o Congresso Na- 1. Edição de 4.1.2004. Scanned with CamScanner</p><p>FÁBIO KONDER COMPARATO 311 cional e os sindicatos de trabalhadores (no mesmo nível) e, final- mente, os partidos políticos. Algumas conclusões podem ser tiradas dessa pesquisa. Vê-se, assim, que o fato de dispor de poder oficial no plano polí- tico não significa, necessariamente, gozar de prestígio ou respeito junto à opinião pública. Vou mais além: o político enlouquecido pela paixão do poder da qual trato mais abaixo - acaba preferindo man- ter as posições de mando já conquistadas, mesmo ao preço de enxo- valhar para sempre sua reputação pessoal. De qualquer modo, em matéria política o prestígio (isto é, aucto- ritas) constitui uma forma especial de poder. É o que explica o fato de os governantes brasileiros sempre respeitarem e temerem a Igreja Católica. 1.1.2 Força e poder. Poder legítimo e ilegítimo No campo político toda posição de força, derivada de qualquer causa as armas ou a riqueza, por exemplo -, é instável enquanto não legalizada, ou seja, não oficialmente reconhecida pelo sistema jurídi- CO. "O mais forte - advertiu Rousseau, no Contrato Social não é nunca bastante forte para permanecer sempre no poder, [pour être toujours le maître] se ele não transforma a sua força em direito e a obediência em dever". Daí a tendência universal de todos os mentores de golpes de Es- tado, ou líderes revolucionários, de procurar legalizar, desde logo, a posição de mando que conquistaram. Na América Latina todo pro- nunciamiento sempre foi consagrado por uma imediata mudança constitucional. Muitas vezes, porém, não basta ao governante ser titular de um poder constitucional ou legal para ser respeitado e obedecido. des- gaste pronunciado dos governantes junto ao povo enfraquece sua posição de mando e pode conduzir à sua não-reeleição ou, no limite, à sua destituição, pelos meios legais (impeachment, por exemplo). 1.1.3 Poder de estatuir ou decidir e poder de impedir Essa distinção (pouvoir de statuer, pouvoir d'empêcher) foi feita por Montesquieu ao analisar, no Capítulo do Livro XI do Espírito Scanned with CamScanner</p><p>312 ESTUDOS DE DIREITO PÚBLICO das Leis, a questão do abuso de poder e ao propor a separação insti- tucional dos órgãos do Poder estatal. o exemplo por ele dado de po- der impediente foi o dos tribunos na Roma republicana. Ao contrário dos cônsules, eles não tinham competência para tomar decisões obri- gatórias para o povo, mas podiam vetá-las o que representava efi- caz prevenção à tentativa de abuso. Em nosso sistema constitucional de governo o poder impediente é atribuído tanto ao Presidente da República, para vetar as leis aprova- das pelo órgão legislativo, quanto a este, para autorizar, por exemplo, a nomeação de membros dos altos Tribunais do país, do Presidente do Banco Central, dos embaixadores e outros altos funcionários. Quanto ao Poder Judiciário, sua função política precípua é a de exercer um poder impediente, pelo juízo de constitucionalidade e legalidade dos atos dos demais órgãos do Estado. Cuida-se, agora, de institucionalizar, no quadro da democracia participativa, mecanismos de exercício do poder impediente pelo pró- prio povo. 1.1.4 Poder formal e poder real Karl Marx salientou em vários escritos que no Estado Moderno os governantes não passam de mandatários da burguesia, encarrega- dos de gerir os negócios públicos de modo a favorecer os interesses dela, como classe dominante. Marx teve o grande mérito de mostrar, pela primeira vez, o forte entrelaçamento, na sociedade moderna, do poder político oficial com o poder econômico privado. Mas suas idéias, nessa matéria, represen- taram uma generalização da realidade política que ele conheceu na Europa Ocidental de meados do século XIX, na qual, efetivamente, pelo mecanismo do voto censitário, os homens de posses formavam a maioria do eleitorado. A partir da segunda metade do século XX, na generalidade dos países onde foi consagrado o sufrágio universal e onde as eleições não são dirigidas pelo aparelho estatal, os ricos e, em especial, os grandes empresários constituem uma minoria ínfima do eleitorado. As eleições são, portanto, decididas pelo voto popular. Daí todo o empenho das classes dominantes em controlar os instrumentos de formação da opinião pública, notadamente os meios de comunica- ção de massa. Elas possuem, pois, uma influência preponderante, Scanned with CamScanner</p><p>FÁBIO KONDER COMPARATO 313 mas não um controle direto (no sentido forte do termo control, em In- glês) sobre o processo eleitoral. Esta é, pois, uma fraqueza do poder econômico privado, que deve ser aproveitada pelo povo. Além disso, não se pode desconsiderar o fato de que alguns gãos do Estado Moderno, concentrados no Poder impropriamente di- to Executivo, possuem um feixe de prerrogativas próprias (e não sim- plesmente delegadas), como o poder de tributar, o de nomear ou contratar funcionários públicos, o de autorizar o exercício de certas atividades empresariais, o de comandar as forças armadas e as forças policiais, o de controlar as instituições oficiais de crédito - poderes, esses, suscetíveis de serem usados com sucesso contra as classes dominantes, durante um tempo mais ou menos longo, dependendo do grau de apoio popular de que disponha o chefe de Estado, da coesão ou divisão existente entre as classes dominantes e da capacidade de intervenção de potências estrangeiras. o caso de Hugo Chávez, na Ve- nezuela, representa uma boa ilustração do que acaba de ser dito. 1.2 A patologia do poder político As doenças próprias do poder político são, na verdade, comuns às demais formas de poder. Lembremos as principais. 1.2.1 Tendência à concentração e à irresponsabilidade Ao contrário da energia física, sujeita à segunda lei da termodi- nâmica (entropia) - ou seja, submetida a uma necessária e constante degradação em calor -, o poder político tende sempre, pela sua pró- pria natureza, à concentração, tanto sob o aspecto subjetivo quanto objetivo. "É uma experiência eterna - frisou Montesquieu que todo homem que detém poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. Quem diria! Até a virtude tem necessidade de limi- Os atuais Estados fundamentalistas, aliás, são uma perfeita ilus- tração dos perigos dessa idolatria sem limites da virtude. A experiência eterna, de que nos fala Montesquieu, mostra que, de um lado, todo titular de uma posição de poder procura afastar os 2. Do Espírito das Leis, Livro XI, Capítulo Scanned with CamScanner</p><p>ESTUDOS DE DIREITO PÚBLICO 314 rivais ou neutralizar os que detêm prerrogativas de controle (no tido francês de fiscalização) sobre si, a fim de se tornar cada vez mais independente e poderoso. Nenhum político abre mão de uma ma parte de sua competência, legal ou costumeira, a não ser quando coagido. É, portanto, inútil esperar que um órgão do Estado proponha alguma redução, ainda que em escala muito modesta, dos poderes que a Constituição lhe atribui. De outro lado, todo aquele que tem poder em determinada área porfia sempre em estendê-lo a setores vizinhos, e a outros mais dis- tantes, e assim indefinidamente. É muito raro que alguém no gover- no reconheça concentrar em suas mãos poderes demasiados. Mas, a todo momento, os chefes de Executivo costumam se queixar, de pú- blico, de que outros órgãos do Estado (as Casas Legislativas, 0 Mi- nistério Público, os juízes de primeira instância...) prejudicam a go- vernabilidade, impedindo-os de exercer plenamente e com eficácia as funções inerentes à sua competência constitucional. Há, por vezes, uma reclamação pessoal contra o excesso de trabalho. Mas esse pro- blema, quando realmente existe, resolve-se, em geral, pela delegação de atribuições executivas a auxiliares imediatos, reservando-se, sem- pre, o governante o poder de retomá-las para si a qualquer momento, Aliás, no sistema presidencial de governo a tendência vel é de o Presidente da República se atribuir pessoalmente os alcançados pela ação dos seus ministros e de descarregar sobre eles ou, pelo menos, sobre os mais fracos deles a responsabilidade por todos os insucessos ocorridos ou os desmandos praticados, mesmo quando, nesta última hipótese, os ministros tenham obedecido estri- tamente às ordens do Tudo isso alimenta, naturalmente, a incessante busca de uma po- sição de monárquica irresponsabilidade pelos chefes de governo, ou de irrestrita imunidade penal por parte dos parlamentares. Eles se di- zem escandalizados com o fato de que, havendo se decidido segun- do proclamam a se consagrar integralmente ao bem público, ainda podem ser arrastados à barra dos tribunais como malfeitores vulgares. art. 99 da nossa Constituição Política do Império, de 1824, assim dispu- nha: "A Pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada: Elle não está sujeito a respon- sabilidade alguma". Scanned with CamScanner</p><p>FÁBIO KONDER COMPARATO 315 Em nenhuma de suas cabeças entrou, jamais, princípio elementar do regime republicano de que, quanto maior poder, maior a respon- sabilidade. 1.2.2 Tendência ao isolamento dos governantes em relação aos governados As estruturas políticas e burocráticas do Estado cercam e pren- dem os governantes num círculo quase hermético, que os isola do povo. Sem embargo de suas qualidades pessoais que, reconheça-se, não são raras -, as pessoas no governo, do primeiro ao último esca- lão, acabam se tomando cegas e surdas (mas raramente mudas...) diante das efetivas exigências e necessidades do povo. Além disso, submetidos a constante lisonja por parte dos seus au- xiliares imediatos, os quais buscam deles se servir para seu exclusivo proveito pessoal (lembremo-nos do verso final da fábula de La Fontai- ne do corvo e a raposa: tout flatteur vit au dépens de celui qui l'écoute); fascinados pela eficácia das técnicas mais modernas de propaganda política, que seriam capazes, segundo se apregoa, de manipular com a opinião pública em qualquer conjuntura política; mantidos, pela própria organização burocrática de suas funções, na ignorância das dificuldades e dos erros cometidos no exercício do governo por força de todos esses fatores, os chefes do Poder Executivo acabam fre- qüentemente por se convencer de que são, de fato, superiores ao con- junto dos demais políticos, se não ao comum dos mortais; de que são, portanto, pessoas indispensáveis no cargo, porque as únicas capazes de resolver com sabedoria as questões de interesse público. Ora, a essa convicção de auto-excelência, que costuma assober- bar os governantes, corresponde (e isto é fatal para o funcionamento do regime democrático) o sentimento de que o povo é uma massa fraca, inconstante e inepta; e, por conseguinte, perpetuamente caren- te de tutela, como um menor impúbere. Convém meditar, a esse pro- pósito, sobre a lição contida na parábola do Grande Inquisidor, em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski. Dostoievski imagina o confronto entre o cardeal Grande Inquisi- dor da Espanha e Jesus Cristo, que aparecera de repente em Sevilha, no século XVI, na manhã seguinte a um gigantesco auto-de-fé, em que foram queimados vivos 100 hereges. doce rabi da Galiléia insi- Scanned with CamScanner</p><p>316 ESTUDOS DE DIREITO PÚBLICO nuara-se mansamente na grande praça, e, apesar disso, o povo o reco- nhecera de imediato, sem que ele proferisse uma só palavra. Atenden- do às súplicas da multidão, Jesus voltou a fazer os milagres que o celebrizaram na Palestina, 15 séculos antes: restituiu a visão a um cego e ressuscitou uma menina que era levada ao cemitério. o Grande Inquisidor, que vira toda a cena de longe, ordenou a imediata prisão do "desordeiro". À noite, no calabouço escuro onde fora jogado o Salvador do mundo, o cardeal nonagenário vem se ex- plicar com o prisioneiro. Ele censura amargamente pelo fato de haver recusado, quando da tentação no deserto (Mateus 4, 1-11; Lu- cas 4, 1-13), dar aos homens aquilo que eles sempre almejaram do fundo do coração: o que mata a fome, a segurança da riqueza que dispensa o trabalho quotidiano e o governo de um príncipe todo-po- deroso, que tudo decide pelos seus súditos, e em quem estes podem depositar, cegamente, as suas esperanças. o Grande Inquisidor reconhece que Jesus tomou essa decisão superior, digna de um deus, porque queria preservar a sagrada liber- dade de escolha do gênero humano entre o Bem e Mal. Mas isto foi um erro funesto diz o prelado. Os homens, que não são deuses mas, ao contrário, seres viciosos, pela sua própria natureza -, sempre consideraram a liberdade, em todos os tempos e lugares, um fardo excessivamente pesado para suas débeis forças. Sua mais lancinante preocupação é saber como, quando e em mãos de quem eles poderão, enfim, alienar sua liberdade, em troca daqueles bens que Jesus impru- dentemente recusou ao tentador no deserto. Na verdade, no mundo da Política só se respeita quem detém alguma espécie de poder (oficial ou não, sob a forma de prestígio pú- blico ou de poder efetivo de mando; como atribuição de mandar ou de impedir). É conhecida a pergunta irônica de Stalin a Churchill e a Roosevelt na Conferência de Ialta, ao final da II Guerra Mundial: "De quantas divisões dispõe, afinal, o Papa?" Acontece que, no limite e essa é a verdadeira tragédia -, todo governante corre o risco de ser dominado pelas estruturas de poder e de passar, objetivamente, da condição de senhor à de escravo, ou seja, de alguém que já não se pertence e vive submetido, servilmente, às estruturas do Poder, cuja conquista tanto almejou. Scanned with CamScanner</p><p>FABIO KONDER COMPARATO 317 E, efetivamente, raros são os homens públicos que não se deixam escravizar pela "glória de mandar e a vã cobiça", como denunciou 0 velho da praia do Restelo.4 1.2.3 A paixão do poder É, seguramente, a maior de todas as paixões, mais potente que a paixão erótica, religiosa ou argentária. É uma força capaz de superar as limitações biológicas e, até mesmo, de suplantar amor materno, como o gênio de Shakespeare bem intuiu. Advertida pelo marido da profecia lançada pelas três feiticeiras de que ele seria rei, e sentindo que o temperamento do consorte é todo feito de ternura (I fear thy nature; it is too full the milk of human kindness), Lady Macbeth invoca os espíritos infernais para que eles mudem seu sexo frágil, enchendo-a, da cabeça aos pés, da mais terrível crueldade: unsex me here, and fill me, from the crown to the toe, top-full of direst cruelty. E, a fim de sacudir os últimos de consciência do marido, ela lhe lança em rosto uma estupenda bravata: seria capaz de esmiga- lhar a cabeça do filho que amamenta, se isto fosse indispensável para cumprir seu Aliás, de acordo com as observações de alguns antropólogos, a atração avassaladora pelo Poder é algo que partilhamos com os outros primatas superiores. E a razão é As relações de poder e submissão são comandadas pela parte mais primitiva do cérebro humano, a chamada zona límbica, que se encontra até mesmo nos répteis. Eis por que as relações sociais que envolvem comando e obe- diência tendem a escapar, por vezes, ao controle da razão. exercício do poder é, de fato, um tremendo desafio à nossa ca- pacidade de autocontrole. Na peça Cynna, de Corneille, o grande auto- elogio posto na boca de Augusto, Imperador romano, é declarar-se ele senhor do mundo e de si mesmo, em pé de igualdade. dramaturgo ti- nha toda razão: ninguém é capaz de exercer grande poder sobre os ou- tros se não souber controlar ou racionalizar sua paixão de mando. 4. Os Lusíadas, Canto IV, Estrofe XCIV. 5. Macbeth, Ato Primeiro, Cena 5. 6. Idem, Ato Primeiro, Cena 7. Scanned with CamScanner</p><p>318 ESTUDOS DE DIREITO PÚBLICO É preciso atentar para o fato de que objeto da paixão é a posse, uso e gozo da posição de poder; não o "resultado do poder", isto é, as obras ou transformações suscetíveis de serem realizadas pelo seu exer- cício. o fato de se conseguir dobrar as vontades alheias e de suscitar o respeito, se não a veneração, do povo, como se este se encontrasse diante de um ídolo religioso, provoca um gozo intenso e Aliás, um dos mais importantes recursos de poder consiste em manter os governados em estado permanente de temor e adoração dois sen- timentos, como se sabe, característicos da submissão religiosa. Como já foi repetidas vezes observado, a paixão pelo Poder é intrinsecamente corruptora. Ela tende a corromper, tanto os que exer- cem o poder, quanto os que dele se aproximam. Há, sem dúvida, a corrupção mais vulgar, daquele que compra a consciência alheia, ou vende a sua. Mas há também uma forma muito mais elaborada, que frisa à loucura moral. É aquele orgulho ou insolência que os gregos denominavam hybris, sempre pronto a provocar audácias proibidas e a engendrar desastres, como adverte o coro na tragédia Agamenon, de Ésquilo. o indivíduo escravo dessa paixão tende a se servir, para alcançar seus fins, de todos os sentimentos altruístas que encontra disponíveis diante de si: o amor, a compaixão, a generosidade, a leal- dade, o espírito de serviço, a solidariedade. Com desoladora cia, velhos amigos e grandes admiradores do governante, ou, então, pessoas respeitáveis na sociedade pela sua correção e sabedoria, são tentativamente usados em proveito próprio pelo homem no Poder, sem escrúpulo algum. Como se diz com entre nós, em Po- lítica a única coisa feia é perder a eleição. mais curioso é que essa loucura moral vem sempre acompa- nhada de uma sensação de euforia. "Tudo se passa observou Aris- tóteles como se o poder conservasse sempre em boa saúde os seus detentores". E, efetivamente, é quase impossível encontrar um polí- tico que sofra de depressão no exercício do poder. Daí por que raros são os moralmente preparados para assumir posições de mando político. "O poder revela o homem" sentenciou sinteticamente Aristóteles, na Ética a "Pode-se conhecer 7. Política, 1.279 a, 15. 8. 1.130 a, 2-3. Scanned with CamScanner</p><p>FÁBIO KONDER COMPARATO 319 bem a alma, os sentimentos, os princípios morais de um homem in- daga o rei Creonte na tragédia de Sófocles se ele não se mostrou ainda no exercício do poder, governando e ditando Pois, como observou saborosamente o Padre Vieira, "não há coisa que mais mude os homens do que o descer e o subir, e o subir muito mais do que o descer". 1.3 A chefia do Executivo no Brasil: uma longa tradição de abuso de poder Rousseau bem advertira: a inclinação natural de todo aquele que detém o poder executivo por delegação popular é de se apropriar des- se poder, cujo exercício lhe foi confiado. Não hesita em afirmar que, em todos os países, o governo age e conspira contra a soberania popu- lar, da mesma forma que a vontade particular age e conspira incessan- temente contra a volonté Dificilmente encontraremos melhor exemplo de aplicação dessa regra geral que em nosso país. Com efeito, desde que iniciamos a nossa vida de Nação indepen- dente, há um dado que permanece constante na realidade política, indi- ferente às sucessivas formas de organização constitucional que adota- mos no correr dos tempos: todo poder estatal tende a concentrar-se no cargo de chefe de governo. Raymundo Faoro, em estudo já enxerga nas origens do Reino de Portugal, forjado que fora pelo Rei muito mais um chefe político do que um senhor feudal -, a raiz primei- ra desse traço típico de nosso ethos político. No longo panegírico que dedicou à memória do pai, Joaquim Nabuco apenas uma vez permitiu-se censurá-lo. Foi a propósito de uma circular, pela qual Nabuco-pai, então Ministro da Justiça, ditou regras de julgamento aos magistrados: "É o traço saliente do nosso sistema político essa onipotência do Executivo, de fato o Poder único do regímen. Nabuco, apesar de todo o antagonismo de muitas de suas idéias com esse sistema, principalmente em matéria de garantias indi- 9. Do Contrato Social, Livro Terceiro, Capítulo X. 10. Os Donos do Poder Formação do Patronato Político Brasileiro, ed., t. 1, São Paulo, Globo/EDUSP, Capítulo Scanned with CamScanner</p><p>320 ESTUDOS DE DIREITO PÚBLICO viduais, e apesar da guerra que moveu à invasão francesa do conten- cioso administrativo, foi um dos fundadores da onipotência do gover- no, convertido em última instância dos poderes públicos". De qualquer forma, no Império, a centralização e personalização do mando encontravam uma cena justificativa no chamado Poder Mo- derador, que a Constituição de 1824 instituiu, sob a inspiração de Ben- jamin Mas os redatores daquela Carta Política, assim como seus mais insignes comentadores e intérpretes, não reproduziram com fidelidade a idéia original do pensador franco-suíço. Enquanto este sustentava que a chave de toda organização política é a distinção entre o poder ministerial e o poder do rei, a nossa Constituição Imperial preferiu declarar, sutilmente, que Poder Moderador é a chave de toda a organização política", sem acentuar sua necessária separação do Poder Executivo, exercido pelos ministros de Estado (art. 102). Para Benjamin Constant o Poder do chefe de Estado é neutro, isto é, sim- plesmente arbitral ou mediador, enquanto o dos ministros é ativo, no sentido de que eles não atuam como meros agentes delegados do chefe de Estado. Daí a diferença essencial, como ele frisou, entre a respon- sabilidade ministerial e a inviolabilidade do rei. Entre nós, no entanto, o mais ilustre dos publicistas do Império, José Antônio Pimenta Bueno (Marquês de São Vicente), não hesitou em afirmar que a prerrogativa conferida pelo art. 98 da Constituição de 1824 ao Imperador era "a mais elevada força social, o órgão polí- tico mais ativo, o mais influente de todas as instituições fundamentais da Nação". 13 No mesmo diapasão, o Visconde de Uruguai, o primei- ro grande cultor do direito administrativo entre nós, sustentou que Imperador não é o Poder Executivo, não constitui por si só o Poder Executivo. É simplesmente [sic] o Chefe do Poder Executivo". 14 Ana- logamente, o Poder Judicial "é uma mola da máquina administrativa, mas não é a (tal seria!). Em conclusão, "a máxima - o Rei 11. Um Estadista do Império, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1975, p. 239. 12. Cf. Principes de Politique, Capítulo II, in Oeuvres, Paris, Gallimard/Biblio- thèque de la Pléiade, pp. 1.112 e 13. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, Ministé- rio da Justiça e Negócios Interiores, 1958, p. 201. 14. Ensaio sobre Direito Administrativo, t. II, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1862, p. 55. 15. Idem, p. 261. Scanned with CamScanner</p><p>FÁBIO KONDER COMPARATO 321 reina e não governa é completamente vazia de sentido para nós, pela nossa Constituição". 16 Ao quê o Marquês de Itaborai (Rodrigues Torres) arrematou: Imperador reina, governa e administra". Com isto, estava aberto o caminho à inevitável absorção das fun- ções governamentais pelo monarca, declarado constitucionalmente imune de toda responsabilidade, com a inevitável do avassalamento permanente dos demais órgãos constitucionais. Nosso parlamentarismo do século XIX, como todos reconhecem, sempre foi uma ficção retórica. velho Nabuco de Araújo, em famo- discurso pronunciado no Senado em 17.7.1868, logo após o Impe- rador despedir inopinadamente o Gabinete Zacarias de Góis, desnu- dou-a sob a forma de um sorites, ou silogismo encadeado: "O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do nosso Instituído o regime republicano, essa concentração abusiva de poderes, de direito e de fato, na pessoa do chefe de Estado não retro- cedeu; pelo contrário. Os primeiros governos presidenciais não passaram de ditaduras militares, sob a justificativa ideológica do positivismo Imaginava-se que o sistema federativo viesse quebrar, de algum mo- do, a onipotência do Presidente da República. Mas a solerte "política dos Governadores", instituída por Campos Sales, afastou desde logo qualquer ilusão a esse respeito. Os Governadores na verdade, ape- nas dois, de São Paulo e Minas Gerais faziam o Presidente, e este os apoiava em retorno, na reprodução, em plano federal, do esquema coronelista instituído em cada Discursando no Instituto dos Advogados, ao tomar posse no car- go de Presidente desse Sodalício em 19.11.1914, Rui Barbosa não usou meias-palavras para qualificar o sistema de governo instaurado com o regime republicano. "O presidencialismo brasileiro - disse ele não é senão a ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade 16. Idem, p. 157. 17. Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império, p. 663. 18. estudo de Víctor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, cuja edi- ção é de 1949, ainda é a obra de maior autoridade sobre o assunto. Scanned with CamScanner</p><p>322 ESTUDOS DE DIREITO PÚBLICO geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade tica do Poder Executivo". 19 Vinte anos depois, um Diplomata que aqui vivera durante um quarto de século, corroborou essa análise sem concessões do nosso sistema de governo, ao publicar um opús- culo com título sugestivo: Sua Majestade Presidente do A ousadia valeu-lhe a imediata expulsão do território nacional. fato é que, após os dois períodos de governo de exceção, che- fiados por Getúlio Vargas antes e depois da Constituição de 1934 e após os 20 anos de regime militar, tínhamos, ingenuamente, a espe- rança de que, advindo a reconstitucionalização do país, nosso sistema político se encaminhasse, afinal, para um estado de maior equilíbrio de Poderes. Pura ilusão! mecanismo de representação popular criado pelo Código Eleitoral de 1932 sistema único no mundo, ao combinar elei- ção proporcional com voto uninominal revelou-se uma eficiente máquina de triturar partidos, para melhor submetê-los à dominação governamental. Nisto, aliás, nada havia de novo. A atuação partidária sempre foi, em nossa história política, um teatro de fantoches. Por oca- sião da crise provocada no Partido Conservador de São Paulo, em 1851, com a imposição palaciana da candidatura de Pimenta Bueno ao Senado, contra a vontade unânime dos dirigentes partidários locais, o então Visconde de Monte Alegre, Presidente do Conselho de Minis- tros, definiu de forma impecável a realidade que perdura até hoje: "Os partidos em nossa Terra não podem coisa alguma contra a vontade do Governo, e só a fraqueza do poder e a pouca vontade de os sujeitar à disciplina é que traz as derrotas, quando as tem Que o digam os dissidentes do Partido dos Trabalhadores, no pri- meiro ano do Governo Lula! Além de apreciáveis poderes administrativos de nomear ou contratar funcionários, de liberar verbas orçamentárias, de usar as instituições financeiras oficiais para direcionar o crédito estatal para as empresas ou setores que bem entender -, o Presidente da Repúbli- 19. Obras Completas, vol. XLI, t. IV, Ministério da Cultura/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1914, p. 233. 20. Ernst Hambloch, Sua Majestade o Presidente do Brasil Um Estudo do Brasil Constitucional (1889-1934), ed. UnB. 21. Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império, p. 129. Scanned with CamScanner</p><p>FÁBIO KONDER COMPARATO 323 ca detém, em suas mãos, o poder legislativo, pela via das medidas provisórias, como, até mesmo, o poder de reforma constitucional. Até fins de 2003 ou seja, em 15 anos de vigência a Constituição de 1988 foi remendada 46 vezes - o que dá uma apreciável média de mais de três mudanças por ano -, sempre por iniciativa direta, ou com consentimento expresso, do Chefe do Poder Executivo. A par disso, permanece a mesma subserviência do Congresso Nacional às determinações do Presidente da República. A eleição dos Presidentes das duas Casas Legislativas é rigorosamente controlada por ele. Demais, continuamos a assistir, impotentes, à mesma nego- ciação indecorosa de liberação de verbas orçamentárias, quando não ao suborno puro e simples de parlamentares, no interesse privado do Governo, como se tem visto com lamentável ultimamen- te, ao se impedir a instalação de comissões parlamentares de inquéri- to sobre atos de corrupção na esfera do Executivo. Tudo isso sem se falar na capacidade, ainda existente, dos chefes de Executivo, na União e nos Estados, para avassalar o Judiciário e o Ministério Público. Perante essa situação de lamentável ruína dos mecanismos insti- tucionais de controle do Poder entre nós, parece óbvia e urgente a necessidade de se elaborar um programa de regeneração política. Para tanto, devemos nos fundar nos princípios ético-jurídicos fundamen- tais, e combinar as instituições da democracia participativa com uma ampliação do sistema de separação de Poderes. É o que procuro a seguir. 2. Os princípios ético-jurídicos de organização do poder político Devemos partir do postulado de que o Poder é mero instrumen- to para a consecução de determinadas finalidades, cuja determinação é matéria de ética, e não de técnica. Ora, eticamente, o poder político é submetido, conjuntamente, aos princípios de ordem republicana e democrática, os quais nada mais representam, na verdade, que uma especificação dos grandes princí- pios dos direitos humanos, todos eles inscritos em nossa Constitui- ção. Até hoje, porém, não obstante o grande progresso da teoria cons- titucional nos últimos decênios, continuamos a pensar que as grandes Scanned with CamScanner</p><p>324 ESTUDOS DE DIREITO PÚBLICO políticas públicas, aquelas que empenham as futuras gerações de bra- sileiros e a própria soberania nacional, devem ser tecnicamente imu- nes ao juízo de 2.1 A ética republicana Ela pode ser sintetizada na supremacia do bem comum sobre interesse particular. bem comum é aquele que pertence a todos, em igualdade de condições. "Comum", aí, opõe-se a "próprio", assim como a "comu- nhão" opõe-se à "propriedade". A essência do bem comum é, portan- to, a idéia de inclusão e partilha; ao passo que a propriedade implica, necessariamente, a exclusão de todos os que não são titulares dela. Nas comunidades, a relação que se estabelece é sempre de natureza pessoal e igualitária: todos são companheiros, no sentido fraterno que a palavra tem, sob o aspecto etimológico: cum panis. É a reunião dos que partilham o mesmo pão. A relação de propriedade, ao contrário, tem por objeto não pessoas, mas coisas, das quais o proprietário pode livremente usar, fruir e dispor. Daí por que tomar a propriedade como fundamento da ordem social, como faz a ideologia liberal-capitalista, redunda não somente em exacerbar o individualismo excludente (a supremacia do mais forte e do mais rico), como também em estimu- lar a utilização de pessoas como coisas, ou simples meios para a satis- fação dos interesses do proprietário. Na análise marxista da socieda- de capitalista, como sabido, tem grande importância o conceito de mercadoria: a burguesia, à semelhança do lendário rei Midas, trans- forma em objetos sujeitos à lei do mercado tudo aquilo em que toca. De onde se conclui, irrefutavelmente, que o sistema capitalista é de todo incompatível com a observância da ética republicana, pois ele tende, pela sua própria lógica, à exclusão social dos não-proprietá- rios, bem como à transformação dos trabalhadores e dos consumido- res em mercadorias, que têm preço, mas não dignidade. 22. Procurei, há alguns anos, num artigo composto em homenagem à memória do querido amigo professor Geraldo Ataliba, reagir contra isto. Mas não tive suces- so (cf. "Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas RT 737/11, São Paulo, Ed. RT). Scanned with CamScanner</p><p>FÁBIO KONDER COMPARATO 325 Note-se a extrema abrangência da noção de bem comum. Ela diz respeito não só ao povo, em relação aos indivíduos, grupos ou classes que o como também à Nação, enquanto entidade perma- nente, em relação aos interesses particulares do povo atual, e, final- mente, à Humanidade como um todo, em relação a cada Nação em particular. Ninguém tem o direito de sacrificar o todo em beneficio da parte, ou as gerações futuras para favorecer a geração presente, como tem ocorrido presentemente, em matéria de preservação do meio ambiente. Por outro lado, deve-se advertir que o Estado nem sempre age no interesse público - entendido este no seu preciso sentido eti- mológico (publicus, -a, -um, em Latim, significa "do povo"). Como Marx salientou, os órgãos estatais não raro favorecem os interesses particulares das classes dominantes, em detrimento das classes domi- nadas. que a análise marxista, porém, deixou na sombra mas foi depois recuperado por Max Weber, entre outros é que existe, sim, um interesse particular dos órgãos estatais, de índole corporativa ou buro- crática, em oposição ao interesse comum do povo. Atualmente, por exemplo, sob a influência preponderante da ideologia neoliberal, a máquina estatal é levada a trabalhar, no mundo todo, no sentido de transformar as finanças de em pura atividade-fim, co- mo se o Estado existisse não para garantir o desenvolvimento nacio- nal e a realização dos direitos humanos, mas sim para arrecadar tribu- tos e manter o serviço da dívida. No plano pessoal a ética republicana exige que os governantes não transformem o Estado no seu domínio particular, pela sobreposi- ção dos seus sentimentos ao interesse público, quer favorecendo indevidamente amigos e parentes, quer prejudicando os inimigos, ou preterindo os desafetos, embora altamente competentes, na ocupação dos cargos administrativos. Até hoje continua em vigor, entre nós, a máxima cunhada no período da "República Velha": "Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei". 2.2 A ética democrática Ela se funda no princípio de que o poder político pertence ao po- vo, sendo os governantes simples mandatários, sempre obrigados a prestar contas ao mandante de seus atos e omissões e sujeitos a res- ponsabilidade pessoal pelos desmandos que tenham praticado. Scanned with CamScanner</p><p>326 ESTUDOS DE PÚBLICO Nas democracias modernas de índole exclusivamente representa- tiva, porém, os governantes tendem a considerar o Poder como um bem próprio, e transformam a representação política em representa- ção teatral: eles encenam, perante o povo, a farsa da estrita cia à vontade eleitoral. As eleições, aliás, mui raramente exprimem a vontade popular por programas de governo. Elas constituem, no mais das vezes, a consagração de personalismos. É, portanto, ridículo ou- vir governantes afirmarem, com toda a seriedade, que as políticas pú- blicas por eles implementadas foram aceitas previamente pelo povo que os elegeu. Nessa linha de raciocínio, é preciso reconhecer que o capitalis- mo é também incompatível com a ética democrática. Sua índole é essencialmente oligárquica: é o governo da minoria que, concentran- do o poder econômico sob a forma de capital, dita o modo de vida de todos os outros agentes econômicos, de acordo com a lógica da máxi- ma lucratividade. Para a classe empresarial seria um desastre subme- ter as políticas econômicas de governo à vontade do povo, sem poder negociar em particular com seus representantes, no Governo ou no Parlamento. Seu modelo de "democracia" é o funcionamento das sociedades por ações, nas quais finge-se que o poder soberano perten- ce aos acionistas (o povo), recebidos periodicamente na sede social para as festivas reuniões da Assembléia-Geral, sendo de notório conhecimento que todas as decisões desta já foram previamente tomadas pelos controladores (a classe dominante), e que elas serão em seguida implementadas pelos administradores (o governo), sob sua imediata supervisão. 2.3 Os princípios cardeais dos direitos humanos Eles formam a tríade sagrada da igualdade, da liberdade e da solidariedade, e se concretizam nas determinações constantes dos sis- temas nacional e internacional de direitos humanos. Não existe supe- rioridade de um desses sistemas sobre o outro. Eles se harmonizam entre si, segundo o critério da prevalência, na hipótese de conflito, da norma de maior proteção da dignidade humana. Toda a evolução histórica dos direitos humanos desde as suas primeiras formas embrionárias na Democracia Ateniense e na Repú- blica Romana, até os últimos tratados internacionais, como o que criou Scanned with CamScanner</p><p>FÁBIO KONDER COMPARATO 327 em 1998 o Tribunal Penal Internacional - segue uma linha diretriz bem marcada: a eliminação do abuso de poder, tanto político quanto econômico ou social. A plena realização dos direitos humanos no território nacional deveria, portanto, ser o ponto mais importante do programa de qual- quer governo. À luz desse mandamento supremo de ética política, é totalmente inadmissível sacrificar direitos fundamentais (o direito ao trabalho, à educação, à saúde ou à previdência, por exemplo), para arrumar as finanças do Estado ("pôr a casa em ordem"); o que significa, na prá- tica, manter intocáveis os direitos dos detentores do capital, ou dos títulos da dívida pública. A verdade é que em nosso país, hoje mais do que nunca, os programas e planos de governo são decididos, em última instância, não pelo Presidente da República ou o Congresso Nacional, mas sim pelo Secretário do Tesouro Nacional. É ele que de- termina, pela liberação ou o corte de verbas orçamentárias, o que po- de e o que não pode ser realizado como "política pública". 3. Um programa de ação 3.1 No plano educacional e da ação política Montesquieu ressaltou, com toda a razão, a íntima ligação entre os regimes políticos e os sistemas de educação do povo. É que cada regime político orienta-se por valores próprios, que representam seu princípio de funcionamento - valores, esses, que somente penetram fundo na consciência dos cidadãos por força do empenho educacio- nal. Ele também insistiu em que é o regime republicano, cujo princí- pio é a virtude política, isto é, a firme adesão de todos ao respeito do bem comum, aquele no qual a educação pública é mais Ora, entre nós, uma das carências mais sentidas e tradicionais do nosso sistema de ensino diz respeito à formação do espírito cívico, ou seja, a educação para o exercício da cidadania. Já o nosso primeiro historiador, Frei Vicente do Salvador, advertia, no longínquo ano de 1627, que "nem um homem nesta Terra é republico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular". 23. Do Espírito das Leis, Livro IV, Capítulo Scanned with CamScanner</p><p>ESTUDOS DE DIREITO PÚBLICO 328 A Constituição Federal, em seu art. 39, § determinou que to- das as unidades da Federação criassem Escolas de Governo, "para a formação e aperfeiçoamento dos servidores públicos". Mas o manda- mento constitucional, mesmo com essa limitação do seu escopo à Administração Pública, ainda é letra morta. Na verdade, esse dispo- sitivo constou da Emenda Constitucional 19 por proposta do então Ministro da Reforma Administrativa, que se inspirou, para tanto, na experiência das Escolas de Governo e Cidadania, criadas primeiro em São Paulo e depois em várias outras unidades da Federação, pela ini- ciativa de alguns professores universitários. Tais instituições educa- cionais visam a formar os cidadãos não só para o exercício de funções políticas e administrativas no aparelho estatal, mas também, e princi- palmente, para fiscalizar a atuação dos agentes públicos e denunciar os abusos do Convém, aliás, salientar que não é de hoje, mas de sempre, a ten- dência aparentemente incoercível dos homens de se considerarem per- feitamente aptos a exercer, sem a menor preparação, as mais diferentes responsabilidades no campo político. Foi esse, como sabido, o leitmo- tiv da filosofia política de Platão. No Alcibíades, por exemplo, Sócra- tes observa que, enquanto todos são capazes de prontamente reconhe- cer sua inabilidade no exercício de alguma profissão técnica construir navios, levantar fortificações, tocar algum instrumento musical (são exemplos por ele dados) -, quase ninguém se enxerga ignorante na complexíssima arte de governar a polis, a qual exige não um conheci- mento técnico, mas eminentemente ético: saber distinguir o justo do injusto. Ora conclui ele -, a pior ignorância, porque de extrema peri- culosidade social, é a auto-ignorância em matéria política: a situação daquele que não sabe que ignora os rudimentos da ciência prática de governo, e que, não obstante, está sempre pleiteando cargos ou funções públicas. De qualquer maneira, porém, o exercício das prerrogativas rentes à condição de cidadão exige um mínimo de organização do povo, como titular da soberania. Sem dúvida, aos partidos polí- ticos, quando autênticos órgãos de representação popular, e não simples máquinas eleitorais, incumbe essa tarefa de organizar a vontade política do povo. Mas não se deve nunca esquecer que os partidos são agentes políticos, cuja vocação natural é o exercício do poder no Estado. Scanned with CamScanner</p><p>FÁBIO KONDER COMPARATO 329 Em ambiente de democracia direta e cidadania ativa é indispen- sável criar outros mecanismos coletivos de ação política do povo. Seria, assim, segundo penso, da maior importância que lográssemos federar num consórcio de âmbito nacional todas as organizações não- governamentais já existentes, cujo objetivo é o controle da atuação dos agentes públicos, em qualquer órgão do Estado. Isto viria poten- cializar sua capacidade de agir politicamente em defesa do respeito aos objetivos e princípios fundamentais da República. 3.2 No plano institucional Devemos lutar pelo aperfeiçoamento dos mecanismos institucio- nais de controle do Poder. Por mais importante que seja a atuação educacional, ela não dispensa a criação de freios objetivos às práticas abusivas dos governantes. Ora, o controle (no sentido de fiscalização, impedimento e res- ponsabilidade) do poder político deve atuar tanto no sentido horizon- tal (separação de Poderes) quanto no vertical (relação entre governan- tes e governados). A matéria é vastíssima. Limitar-me-ei, portanto, a apresentar, sumariamente, uma lista não-exaustiva de sugestões para uma verda- deira e séria reforma política. 3.2.1 Sugestões de controle vertical Submeter toda e qualquer emenda constitucional, uma vez apro- vada no Congresso, ao referendo popular. Como enfatizou Sieyès em obra famosa, "em cada uma de suas partes, a Constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar coisa alguma nas condições de sua dele- 24 Suprimir da competência exclusiva do Congresso Nacional o poder de autorizar referendo e convocar plebiscito (art. 49, XV, da CF). A autorização e a convocação devem ser feitas pela Justiça Elei- toral, uma vez cumpridos os requisitos a serem fixados pela Consti- 24. Qu'est-ce que le Tiers Capítulo V. Scanned with CamScanner</p><p>ESTUDOS DE DIREITO PÚBLICO 330 tuição de maneira razoável, a fim de facilitar, e não dificultar, essas manifestações da soberania popular ativa. Suprimir a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, criada pela Emenda Constitucional 3, de 17.3.1993. Trata-se de manifesta excrescência no sistema tradicional de judicial control, criado pelos norte-americanos. A ação em ques- tão não é uma defesa da cidadania contra o abuso governamental, mas, bem ao contrário, uma proteção antecipada do Governo contra as demandas que os cidadãos possam ajuizar para defesa de seus di- reitos. Tomar obrigatória a participação popular na elaboração do Plano Plurianual e da Lei de Diretrizes Orçamentárias, na União e nos Estados. Nos Municípios e no Distrito Federal essa participação ativa do povo deve estender-se também ao Orçamento Anual. Instituir o recall de chefes de Executivo e a dissolução, pelo vo- to popular, das Câmaras Legislativas, na segunda metade do mandato ou da legislatura. No caso dos chefes de Executivo, o início do proces- por crime de responsabilidade, no órgão legislativo, deveria ensejar a convocação do povo, mesmo na primeira metade do mandato ou da legislatura, para exercer, se assim o desejar; esse poder de destituição ou dissolução. Dar legitimidade a associações civis e a fundações para a pro- positura de ações populares, inclusive de caráter e de ações de improbidade administrativa contra os agentes públicos. Instituir o financiamento público das campanhas eleitorais, com a cominação de severas penas aos candidatos que receberem di- nheiro de particulares ou que despenderem acima do limite máximo fixado em lei. Rever a legislação concernente aos meios de comunicação de massa, de modo a evitar que eles sejam utilizados contra o interesse nacional, ou em prejuízo do direito fundamental do povo a ser corre- tamente informado sobre assuntos de interesse público, e do direito de controlar o exercício do poder, sob todas as suas formas. Nesse 25. A Carta Política do Império admitia que, "por suborno, peita, peculato e pudesse ser intentada contra os juízes ação popular, "pelo próprio quei- xoso, ou por qualquer do Povo" (art. 157). Scanned with CamScanner</p><p>FÁBIO KONDER COMPARATO 331 sentido, o primeiro passo é, sem dúvida, a revogação da Emenda Cons- titucional 36, de 28.5.2002, que abriu, pela primeira vez entre nós, a possibilidade de estrangeiros controlarem órgãos de imprensa, rádio e televisão. Dever-se-ia introduzir no Brasil o "direito de antena", já previsto nas Constituições Espanhola e Portuguesa: é o direito de quaisquer entidades privadas a se servirem do rádio e da televisão para a transmissão de suas mensagens ao público. 3.2.2 Sugestões de controle horizontal Separar em órgãos distintos, no Congresso Nacional, o poder de legislar do poder de fiscalizar e autorizar. Com isto eliminar-se-iam todos os obstáculos institucionais ao exercício da competência fiscal do Parlamento sobre os demais Poderes. A maioria parlamentar per- deria o poder de impedir a instalação de comissões parlamentares de inquérito. Criar um órgão autônomo de planejamento, incumbido de ela- borar os Orçamentos-Programas e os Planos Plurianuais de Investi- mento, a serem aprovados pelo órgão legislativo, bem como de fisca- lizar sua execução. O objetivo é separar o longo prazo do curto prazo, de modo a evitar que os grandes investimentos de infra-estrutura e as políticas estruturais sejam sacrificados ao interesse conjuntural ou eleitoral dos governantes. Alterar a disciplina dos Orçamentos Anuais. De um lado, tornar obrigatórias as despesas públicas aprovadas, salvo autorização prévia dada ao Governo, em cada caso, pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional. De outro lado, limitar as emendas que os par- lamentares façam à proposta orçamentária, unicamente, à alteração de rubricas gerais, de modo a afastar as barganhas individuais entre o Executivo e os parlamentares (liberação de verbas em troca de votos). Proibir toda e qualquer despesa pública com propaganda gover- namental, inclusive as despesas com "publicidade dos atos, progra- mas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos", permitidas pelo art. 37, § da Constituição Federal quando tenham "caráter edu- cativo, informativo ou de orientação social". A experiência tem de- monstrado, fartamente, que essa norma constitucional é fraudada por todos os governos, sem exceção. Scanned with CamScanner</p><p>332 ESTUDOS DE DIREITO PÚBLICO Dar maior independência ao Judiciário e ao Ministério Público, em relação ao Poder Executivo. As nomeações para cargos, nesses ór- gãos, não deveriam ser feitas pelo chefe de Governo. É preciso, tam- bém, dar-lhes maior autonomia financeira: a fixação de limites de despesas orçamentárias no Judiciário e no Ministério Público, feita pela mal-denominada "Lei de Responsabilidade Fiscal" (Lei Comple- mentar 101, de 4.5.2000), atenta claramente contra o princípio cons- titucional de separação de Poderes. Se o Judiciário e o Ministério Pú- blico são, pela Constituição, criados como órgãos independentes, não cabe ao legislador reduzir suas prerrogativas. Instituir mecanismos de controle público (não-estatal) do Judi- ciário e do Ministério Público. Tornar os Tribunais de Contas órgãos do Poder Judiciário. Em recente reportagem de apontou-se o fato de que, dos 189 membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, 33 respondem a processos junto ao STJ pela prática de crimes de mal- versação dos dinheiros públicos. Dixi et salvavi animam meam. São Paulo, 18 de fevereiro de 2004 26. Carta Capital de 21.1.2004. Scanned with CamScanner</p>