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<p>A ECONOMIA SEGUNDO</p><p>SMITH, RICARDO E MARX</p><p>TEORIAS (E RESPECTIVAS METODOLOGIAS)</p><p>COMPREENDIDAS A PARTIR DOS CONTEXTOS</p><p>HISTÓRICOS DE CADA AUTOR</p><p>Alexandre Lyra Martins</p><p>Ideia – João Pessoa – 2021</p><p>Todos os direitos e responsabilidades sobre os textos são do autor.</p><p>Projeto gráfico/capa: Magno Nicolau</p><p>Revisão: Alexandre Lyra Martins</p><p>Ilustração da capa:</p><p>https://www.istockphoto.com/br/foto/gr%C3%A1fico-sobre-a-paisagem-urbana-</p><p>de-negocia%C3%A7%C3%A3o-durante-a-noite-e-fundo-de-mapa-do-mundo-</p><p>gm847296746-138899691</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD</p><p>Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Gilvanedja Mendes, CRB 15/810</p><p>EDITORA</p><p>contato@ideiaeditora.com.br</p><p>www.ideiaeditora.com.br</p><p>M386e Martins, Alexandre Lyra.</p><p>A economia segundo Smith, Ricardo e Marx: teorias (e respec-</p><p>tivas metodologias) compreendidas a partir dos contextos históri-</p><p>cos de cada autor {recurso eletrônico] / Alexandre Lyra Martins.</p><p>Dados eletrônicos – João Pessoa: Ideia, 2021.</p><p>3mb. pdf</p><p>ISBN 978-65-5608-224-0</p><p>1. Economia – teorias econômicas. 2. Economia - metodolo-</p><p>gias. 3. Ciências econômicas - fundamentos. I. Título.</p><p>CDU: 330-1</p><p>http://www.ideiaeditora.com.br/</p><p>Agradecimentos</p><p>Esse livro é resultado do desenvolvimento de textos didáti-</p><p>cos elaborados a partir de minha experiência como docente em</p><p>turmas de Fundamentos das ideias econômicas no curso de Ciên-</p><p>cias Econômicas da Universidade Federal da Paraíba (Campus I). A</p><p>inexistência de um livro didático que contemplasse todo o conte-</p><p>údo da disciplina foi a razão principal para a elaboração do texto,</p><p>e, por isso, meu primeiro agradecimento vai para os alunos que</p><p>participaram das aulas ativamente, colocando suas dúvidas e in-</p><p>quietações, possibilitando uma maior exploração do conteúdo e</p><p>amplificação do entendimento pelo diálogo com o olhar diverso</p><p>dos que anseiam colher na seara do conhecimento. Essa preciosa</p><p>interação exercita a argumentação e abre novos caminhos didáti-</p><p>cos, não imaginados inicialmente, contribuindo decisivamente</p><p>para a melhora da qualidade didático do material.</p><p>Seu ponto de partida foi um livro anterior em que apresen-</p><p>to as principais ideias de Marx, por meio da interpretação dos sete</p><p>primeiros capítulos do Capital. Este livro anterior contou com a</p><p>contribuição crítica de outras pessoas, que indiretamente conti-</p><p>nuam presentes aqui no capítulo referente a Marx (novamente</p><p>revisado e aperfeiçoado), e às quais reforço minha gratidão, lem-</p><p>brando o nome de Leonardo Guimarães Neto, maior incentivador</p><p>do projeto.</p><p>Ao longo da construção do presente trabalho, o texto foi re-</p><p>escrito algumas vezes e, neste processo, dialoguei com Tiago Fari-</p><p>as Sobel, colega de departamento da área de história do pensa-</p><p>mento econômico, sobre trechos do material. Agradeço também a</p><p>seus comentários, que contribuíram para reformulações no senti-</p><p>do de dar maior precisão e clareza à redação final.</p><p>Sumário</p><p>Apresentação 9</p><p>1 – INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS TEORIAS ECONÔMICAS 12</p><p>1.1. Economia e ciência econômica 12</p><p>1.2. A evolução do pensamento econômico 14</p><p>1.3. O Método e a questão da racionalidade 22</p><p>1.4 O método científico na teoria econômica 26</p><p>1.5. Da atualidade dos pensadores estudados 42</p><p>1.6. questionário síntese 48</p><p>2. O PIONEIRISMO DE ADAM SMITH 49</p><p>2.1. Breve contexto histórico 49</p><p>2.2. A fisiocracia 51</p><p>2.3. O filósofo Adam Smith 56</p><p>2.4. O cientista social Smith: a riqueza das nações 63</p><p>2.4.1. A divisão do trabalho, sua origem e a expansão do mercado. 65</p><p>2.4.2. O dinheiro 73</p><p>2.4.3. A teoria do valor 78</p><p>2.4.4. Preços e remunerações dos fatores 83</p><p>2.5. Questionário síntese 92</p><p>3. AS CONTRIBUIÇÕES DE RICARDO 95</p><p>3.1. Breve contexto histórico e algumas questões metodológicas 96</p><p>3.2. A crítica à teoria do valor e o processo de ocupação das terras 98</p><p>3.3. A teoria da distribuição de renda 103</p><p>3.4. A teoria do comércio internacional 107</p><p>3.5. Questionário síntese 119</p><p>4. A ECONOMIA SEGUNDO MARX 124</p><p>4.1. Breve contexto histórico 124</p><p>4.2. O princípio da discordância em relação aos clássicos 127</p><p>4.3. O método materialista dialético 134</p><p>4.3.1. Do componente histórico 137</p><p>4.3.2. Da dialética materialista 140</p><p>4.4. A dinâmica dos modos de produção 145</p><p>4.5. O caso da transição do feudalismo para o capitalismo 157</p><p>4.6. A teoria do valor e da mercadoria 166</p><p>4.7. O fetiche das mercadorias 181</p><p>4.8. O dinheiro e as teorias da circulação e da acumulação 186</p><p>4.8.1. A origem do dinheiro 186</p><p>4.8.2. A circulação do dinheiro 191</p><p>4.8.3. A acumulação de capital 196</p><p>4.9. O processo de produção capitalista e a teoria da exploração 202</p><p>4.9.1. Processo de trabalho e de valorização 202</p><p>4.9.2. As transferências de valor 208</p><p>4.9.3. A teoria da exploração 211</p><p>4.9.4. Formas da mais-valia 219</p><p>4.9.5. Tecnologia e exploração 224</p><p>4.10. Questionário síntese 231</p><p>REFERÊNCIAS 238</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 9</p><p>Sumário</p><p>Apresentação</p><p>Alexandre Lyra Martins é professor do departamento de</p><p>economia da Universidade Federa da Paraíba, campus I, desde</p><p>1992, onde é pesquisador nas áreas de história do pensamento</p><p>econômico e ética econômica. Escreveu vários artigos e dois livros</p><p>acadêmicos: Fundamentos de economia política marxista (1999), e</p><p>O processo inflacionário brasileiro: 1890-1990 (2012), ambos pela</p><p>editora da UFPB. Foi coordenador do curso de Ciências econômi-</p><p>cas e chefe do departamento de economia da UFPB.</p><p>Este texto foi elaborado com o objetivo de oferecer um ma-</p><p>terial didático para a área de história do pensamento econômico</p><p>(HPE), destacando os três primeiros pensadores paradigmáticos</p><p>na construção do arcabouço teórico da ciência econômica: Smith,</p><p>Ricardo e Marx. Esses mestres da economia possuem vitalidade</p><p>invejável, bastando ver as reedições frequentes de suas obras e a</p><p>presença de suas ideias no debate contemporâneo, onde se alter-</p><p>nam em razão dos acontecimentos e do surgimento de novas</p><p>perspectivas teóricas neles inspiradas. A apresentação de suas</p><p>principais teses é antecedida por uma breve exposição dos fisio-</p><p>cratas (escola que antecede a fase científica da economia) e incor-</p><p>pora três elementos que geralmente não estão presentes conjun-</p><p>tamente em livros de HPE, que são: o método de investigação ado-</p><p>tado pelos autores, a exposição das ideias a partir dos originais e o</p><p>contexto histórico em que estavam inseridos.</p><p>Os métodos de investigação são apresentados inicialmente</p><p>no primeiro capítulo, quando se expõe seu papel na constituição</p><p>de uma teoria científica, e posteriormente, voltam à tona quando</p><p>Alexandre Lyra Martins | 10</p><p>Sumário</p><p>da exposição das ideias fundamentais de cada autor nos capítulos</p><p>seguintes, permanecendo como referência ao longo do texto para</p><p>exposição das teorias. Questões conceituais se impõem nesse pro-</p><p>cesso, afinal o método pode interferir na própria definição da ci-</p><p>ência econômica, daí porque nesse primeiro instante precisamos</p><p>especificar qual o campo de estudo da economia, outros ramos do</p><p>conhecimento com os quais ela interage e a diferença da discussão</p><p>científica da economia para a forma vulgar ou filosófica de tratar o</p><p>tema, para então colocar os métodos de investigação científicos. A</p><p>partir daí se traça um breve panorama da evolução das vertentes</p><p>que serviram de referência ao pensamento econômico acadêmico.</p><p>Já nos capítulos relativos aos autores estudados, a exposição de</p><p>suas contribuições é precedida pela respectiva contextualização</p><p>histórica da época em que foram escritas, para situar suas ideias</p><p>nos devidos contextos político, social, intelectual e econômico.</p><p>Quando se trata dos autores aqui abordados, há um livro</p><p>em particular a ser considerado: Napoleoni (1985).</p><p>114) e</p><p>Marin e Quintana (2011).</p><p>30 Defendo em Martins (2021) que Celso Furtado, em particular, pode ser con-</p><p>siderado um smithiano eclético, e, portanto, sua contribuição seria uma atuali-</p><p>zação das ideias smithianas.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 45</p><p>Sumário</p><p>com divergências e debates internos que segue paralela ao mains-</p><p>tream, dada a inconciliável diferença metodológica. O socialismo</p><p>implantado no mundo a partir de 1917 foi diretamente inspirado</p><p>na teorização marxista, e muitos intelectuais marxistas se torna-</p><p>ram seus entusiastas, poucas eram as exceções, passando uma</p><p>imagem de unidade entre a teoria e o socialismo real, que foi mui-</p><p>to deletéria para a dimensão científica da obra marxista.</p><p>Quando as experiências socialistas ruíram na década de</p><p>1990, a teoria marxista ficou desacreditada em todo mundo por</p><p>estar umbilicalmente associada a essas sociedades. O próprio</p><p>Marx, enquanto ativista político, havia apoiado a construção dos</p><p>projetos comunistas, que não viveu para ver. A análise da queda</p><p>do socialismo real é complexa e passa por diversas discussões31,</p><p>mas há pontos básicos que podem ser ressaltados para um enten-</p><p>dimento acerca da relação da teoria marxista com a implantação</p><p>do socialismo em alguns países pelo mundo.</p><p>Antes de mais nada, é preciso enfatizar que trata-se de</p><p>campos de trabalho diferentes com premissas e objetivos diferen-</p><p>tes, pois a investigação científica se propõe a explicar um fenôme-</p><p>no, no caso, o socioeconômico, e para tal precisa se afastar, se dis-</p><p>tanciar do objeto investigado, adotando os procedimentos da pes-</p><p>quisa científica para alcançar seu objetivo, já os projetos de poder</p><p>político tem o objetivo de mudar, redesenhar aspectos da realida-</p><p>de em função de uma concepção previamente estabelecida, que</p><p>são sua fundamentação. São, portanto, compartimentos estanques,</p><p>com princípios diferentes, sendo que as teorias acadêmicas po-</p><p>dem ser pontos de apoio para construção de projetos políticos de</p><p>poder, momento em que passam a servir de instrumental para as</p><p>políticas econômicas; como um laptop pode servir a múltiplos</p><p>usos.</p><p>31 Dois exemplos da profícua produção em torno do tema são Lyra (1992) e</p><p>Martins (1999, cap. 2).</p><p>Alexandre Lyra Martins | 46</p><p>Sumário</p><p>Como exposto anteriormente, a construção científica tem</p><p>por objetivo explicar uma realidade preexistente amparada pelo</p><p>rigor acadêmico, que exige respeito a todos passos do processo de</p><p>elaboração de uma teoria, para ser validada pelo debate posterior</p><p>entre especialistas na área do conhecimento, já os projetos políti-</p><p>cos, que se transformam em formas condução de governo e Esta-</p><p>do, podem se orientar por concepções teóricas, mas são propostas</p><p>de intervenção social colocadas em prática, tentativas de alterar a</p><p>realidade cujo resultado dependerá da reação social (de aceitação,</p><p>rejeição, colaboração, etc.) e das condições concretas para a im-</p><p>plantação do projeto: o nível de desenvolvimento das forças pro-</p><p>dutivas, os arranjos políticos possíveis, a correlação de forças en-</p><p>tre grupos sociais, a eficiência na gestão, etc. Uma série de elemen-</p><p>tos que podem aproximar ou distanciar as políticas e diretrizes</p><p>governamentais das conclusões e medidas derivadas de teorias</p><p>científicas nas quais foram inspiradas.</p><p>A obra econômica de Marx, por sua vez, é o ponto alto de</p><p>sua produção científica, já iniciada em outras áreas32, enquanto o</p><p>Manifesto comunista é o ponto alto de sua produção política, do</p><p>‘jovem’33 ativista que queria mudar o mundo. As teorias científicas</p><p>de Marx foram empregadas para construir projetos de nações co-</p><p>munistas, mas os países que embarcaram nessa opção estavam</p><p>longe daquilo que o próprio autor, mais velho, considerava como</p><p>requisito para uma mudança no sistema produtivo - elevados ní-</p><p>veis de desenvolvimento técnico e humano - ou seja, elas seriam</p><p>descredenciadas por uma interpretação marxista rigorosa.</p><p>32 Anteriormente já publicara textos jornalísticos, filosóficos e históricos. Seus</p><p>dois livros em que a economia é tema central, são seus últimos escritos.</p><p>33 Classificação que separa a produção de Marx antes e depois dos 30 anos,</p><p>quando passou a se dedicar basicamente à elaboração do Capital. Antes dos 30</p><p>anos, ainda estaria em processo de formação o pesquisador e as ideias que só</p><p>seriam desenvolvidas de forma científica após esse marco cronológico.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 47</p><p>Sumário</p><p>As condições econômicas concretas em que o socialismo</p><p>real foi implementado não foram as ideais, muito pelo contrário,</p><p>pois se instalou em países de base industrial precária, necessitan-</p><p>do muito investimento para acelerar a industrialização, e além</p><p>disso, paralelamente foi montada toda uma estrutura de defesa</p><p>em função da possibilidade do lado ocidental querer retomar os</p><p>mercados perdidos para o território comunista, desencadeando a</p><p>chamada ‘guerra fria’. Enfim, esses fatores exigiram muitos recur-</p><p>sos dessas economias frágeis, cujas populações já tinham expecta-</p><p>tivas de retorno em função da proposta socialista.</p><p>As teorias econômicas científicas são elaboradas para en-</p><p>tender o fenômeno econômico e para, num segundo momento,</p><p>serem aplicadas na prática, encaminhando a resolução de proble-</p><p>mas econômicos. Tentativa mais fácil de aplicar a teoria é a adoção</p><p>da concepção neoclássica, na qual o nível de intervenção na eco-</p><p>nomia é mínimo. Tendo sido referência principal das economias</p><p>ocidentais, houve fases de êxito, como a era vitoriana34, porém as</p><p>grandes crises mostraram que o livre equilíbrio pode demorar</p><p>muito a proporcionar crescimento econômico, gerando pobreza</p><p>em grande escala, um fracasso expressivo. A lógica incorporação</p><p>da crítica keynesiana obteve os resultados esperados, pois veio</p><p>um ciclo de crescimento econômico, até que começaram a apare-</p><p>cer problemas econômicos de outras ordens, como a elevação</p><p>substancial do endividamento público, que, como no caso de Marx,</p><p>também não seria consequência da teorização Keynesiana.</p><p>Entre o universo da teoria econômica e sua aplicação há</p><p>vários elementos complicadores que podem determinar o êxito ou</p><p>a desvirtuação do projeto. O fracasso de uma teoria está em algu-</p><p>34 Houve períodos em que países socialistas apresentaram taxas de crescimento</p><p>econômico superiores às de nações capitalistas, e ainda na atualidade a China,</p><p>já um modelo híbrido de socialismo, tem taxas de crescimento muito superiores</p><p>ao resto do mundo.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 48</p><p>Sumário</p><p>ma deficiência interna de construção ou no uso de premissas frá-</p><p>geis para explicar a realidade, já o fracasso de um projeto político</p><p>está associado a insuficiências sociais e econômicas de diversas</p><p>naturezas, da conjuntura ou da execução da experiência em si, que</p><p>impedem a aproximação ao objetivo proposto na sua tentativa de</p><p>adequar a realidade à sua visão de sociedade.</p><p>1.6. questionário síntese</p><p>1- O que é economia?</p><p>2- O que é ciência econômica?</p><p>3- Qual é o objetivo geral da ciência econômica? e os específicos?</p><p>4- Fale sobre a evolução da ciência econômica e seus principais</p><p>parâmetros.</p><p>5- Qual é o objetivo da investigação de Smith, de Ricardo, de Marx</p><p>e de Keynes?</p><p>6- Resuma o entendimento neoclássico da economia.</p><p>7- O que é economia pura? Qual é o seu objetivo?</p><p>8- O que é economia política? Qual é o seu objetivo?</p><p>9- O que é macroeconomia? Quais são as principais variáveis ma-</p><p>cro?</p><p>10- O que é microeconomia? Quais são as principais variáveis mi-</p><p>cro?</p><p>11- Quais são as possibilidades de discussão acadêmico/científica?</p><p>12- Que concepções de racionalidade apoiam a economia pura e a</p><p>política?</p><p>13- Qual a atualidade dos pensadores discutidos nesse livro?</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 49</p><p>Sumário</p><p>2. O PIONEIRISMO DE ADAM SMITH</p><p>2.1. Breve contexto histórico</p><p>Metade do século XVIII, o mundo econômico estava</p><p>dividi-</p><p>do entre impérios, suas matrizes, colônias, e algumas regiões au-</p><p>tônomas independentes, tendo chegado a uma relativa estabiliza-</p><p>ção após séculos de disputas territoriais, em que nações/povos</p><p>foram constantemente alvo de expansões imperiais. Era o início</p><p>do fim de uma era de descobrimentos e colonizações de novas</p><p>terras e/ou de guerras e subjugação de povos a impérios, para o</p><p>começo de uma época de contestação política em relação às mo-</p><p>narquias absolutistas, tanto internamente (quando ocorria a luta</p><p>do povo contra suas elites absolutistas), quanto externamente (a</p><p>luta aqui era para se libertar da condição colonial). As sedes de</p><p>dois dos principais impérios da época, o inglês e o francês, foram</p><p>reformuladas com esses movimentos populares, e chegaram a</p><p>sínteses próximas no que diz respeito à concepção do Estado e da</p><p>economia moderna, por processos históricos semelhantes, mas</p><p>com suas especificidades.</p><p>O reino Unido foi pioneiro na formação do chamado Estado</p><p>moderno, sendo que o fez paralelamente com a consolidação do</p><p>império econômico, com a absorção de mais uma região em 1757,</p><p>a Índia, que só muito tempo depois vai se rebelar e conquistar sua</p><p>independência. Ainda no século anterior ocorreu a revolução polí-</p><p>tica inglesa (em 1688), ápice de um processo de transformações</p><p>em que o Estado absolutista foi substituído pelo liberal, na qual a</p><p>monarquia foi mantida com diminuição expressiva de suas fun-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 50</p><p>Sumário</p><p>ções, isto porque veio através de processos que comportaram</p><p>mais acomodações que radicalismos, permitindo a consolidação</p><p>da tradicional monarquia.</p><p>O processo foi mais conturbado e longo na França, que so-</p><p>frendo derrotas históricas, sai da condição de império respeitado</p><p>até o começo do século XVIII para a de potência decadente. No</p><p>bojo desses acontecimentos, o povo vai aproveitar a relativa fragi-</p><p>lidade dos governos para exigir a queda da monarquia. O Estado</p><p>moderno aqui vai chegar mais tarde e de forma mais violenta com</p><p>a revolução francesa, porém vem com o conceito mais coerente,</p><p>sem a presença da monarquia.</p><p>Do ponto de vista econômico, é importante ressaltar que as</p><p>grandes navegações possibilitaram o surgimento daquilo que pos-</p><p>teriormente vai ser denominado de economia global35, viabilizan-</p><p>do a exploração de longa distância e incorporando os últimos pe-</p><p>daços de terra desconhecidos ao comércio internacional, o que vai</p><p>levar a uma expansão significativa do intercâmbio econômico,</p><p>apesar da existência de alguns conflitos entre as nações.</p><p>O aumento no volume do comércio gera crescimento eco-</p><p>nômico para os exploradores das riquezas e mantém a pobreza</p><p>nas colônias. Nesse contexto, o Reino Unido aproveita mais os fru-</p><p>tos do comércio na medida em que sua transição para o Estado</p><p>moderno foi menos conturbada, enquanto a França, com todo seu</p><p>esforço bélico, perde grande parte de suas fontes de exploração</p><p>internacional e passa a se concentrar na produção interna, basea-</p><p>da na tradicional agricultura.</p><p>O avanço das exportações britânicas aumenta a pressão</p><p>por mais produção, gerando máquinas e novas técnicas produti-</p><p>vas em série36, consubstanciando aquilo que vai ser chamado de</p><p>35 Como coloca, por exemplo a Folha de São Paulo (1995, 194).</p><p>36 Hunt (1987, 60, 61 e 62) dá indicadores do aumento das exportações britâni-</p><p>cas e exemplos de inovações técnicas diversas ocorridas nesse período.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 51</p><p>Sumário</p><p>revolução industrial, um marco para a consolidação e desenvolvi-</p><p>mento das economias de mercado. Smith foi testemunha dessa</p><p>fase de transformações cruciais e a expôs como processo, como</p><p>resultado da busca natural do ser humano por melhores condições</p><p>de vida. Impressionado com o crescimento produtivo, deixou de</p><p>lado perspectivas críticas e enxergou a produção industrial nas-</p><p>cente apenas como solução para o problema econômico crucial de</p><p>até pouco tempo atrás: a baixa oferta de mercadorias relativamen-</p><p>te à população (deixando um rastro de fome em muitos lugares do</p><p>mundo).</p><p>2.2. A fisiocracia</p><p>Como é reconhecido na literatura econômica37, a fisiocracia</p><p>foi uma escola de pensamento econômico de alcance restrito ao</p><p>país em que surgiu, na França, pioneira na elaboração de uma teo-</p><p>ria fundada na liberdade econômica. O contexto espacial foi deci-</p><p>sivo no desenvolvimento da concepção, pois a França foi berço</p><p>dos movimentos sociais liberais modernos, ainda que fosse pre-</p><p>dominantemente agrícola e houvesse poucos sinais de moderniza-</p><p>ção da produção artesanal e manufatureira38. Essa realidade se</p><p>coaduna com a hipótese central da escola de que só quem gera</p><p>valor é a agricultura, ou, por extensão do conceito, a atividade la-</p><p>boral no setor primário da economia.</p><p>A responsabilidade pela produção do valor seria dividida</p><p>entre a natureza, que gera o produto, e o ser humano, que faz al-</p><p>gum esforço para retirar a produção da natureza, seja extraindo,</p><p>pescando, semeando, cultivando ou coletando os frutos, da terra</p><p>ou do mar, através de flora ou da fauna. A natureza fornece a ri-</p><p>37 Ver Pinho e Vasconcelos (2004, 29), Sandroni (1985, 173) ou Feijó (2007, 94-</p><p>95).</p><p>38 Conforme Hunt (1987, 57).</p><p>Alexandre Lyra Martins | 52</p><p>Sumário</p><p>queza bruta e o homem transforma essa em riqueza econômica</p><p>com seu trabalho, de maneira que ambos são indissociáveis para</p><p>ocorrer a geração do valor39.</p><p>François Quesnay foi o grande nome da escola, pois com</p><p>seu Tableau économique (publicado em 1758), foi mais longe que</p><p>os demais40 na demonstração da tese central da produtividade do</p><p>setor agrícola, por meio da construção de um esquema de registro</p><p>das transações econômicas que viria a ser um esboço da contabili-</p><p>dade econômica posteriormente desenvolvida. A hipótese central</p><p>era demonstrada claramente com o exemplo das ervilhas: 100</p><p>ervilhas nas mãos de um cozinheiro se transformam num prato</p><p>elaborado com 100 ervilhas, enquanto 100 ervilhas nas mãos de</p><p>um agricultor se transformam em 1.000 ervilhas após um ciclo</p><p>produtivo. O cozinheiro aqui representa todas as demais classes</p><p>existentes, consideradas improdutivas nessa concepção, classes</p><p>que apenas repassam o valor trabalhado com seu trabalho, ao</p><p>tempo em que o agricultor é produtivo, gera mais produção e,</p><p>consequentemente, mais valor. Essa máxima vai ser desenvolvida</p><p>no tableau, mas está contemplada apenas implicitamente nos con-</p><p>ceitos de preço, que trata as atividades de forma indiferenciada.</p><p>Há o preço fundamental, aquele correspondente ao paga-</p><p>mento de todas despesas necessárias à produção de uma merca-</p><p>doria (o equivalente ao chamado preço de custo), o preço bom, o</p><p>que seria suficiente para pagar todas despesas e também conferir</p><p>algum ganho ao produtor e o preço de mercado, aquele que a mer-</p><p>cadoria efetivamente seria vendida (resultante da negociação no</p><p>livre mercado entre o que o produtor pede e o que o comprador</p><p>quer pagar). O juízo de valor existente no preço bom se refere ao</p><p>reconhecimento do esforço do trabalho no setor primário, posto</p><p>39 Ver Hunt (1987, 58).</p><p>40 Outros fisiocratas: Jaques Turgot, Marquês de Mirabeau, Mercier de la Rivière</p><p>e François Le Trosne</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 53</p><p>Sumário</p><p>que seria o único capaz de oferecer um ganho ao vendedor além</p><p>de uma remuneração básica para o sustento do ofertante. Um bom</p><p>preço seria um preço de mercado que pagasse os custos de sobre-</p><p>vivência do agricultor e gerasse algum lucro.</p><p>A posição liberal, contra o Estado pesado, ineficiente e in-</p><p>terventor que prevalecia na época, de alguma forma justificado</p><p>pela doutrina mercantilista, vem à tona com a exposição sobre</p><p>política econômica proposta por Quesnay. Este autor defendia que</p><p>a estrutura tributária fosse simplificada ao máximo, reduzindo</p><p>todos tributos a apenas um, e que a classe proprietária fosse res-</p><p>ponsável por seu pagamento</p><p>(dada sua dupla condição de privile-</p><p>giada e estéril).</p><p>O único imposto deveria ser suficiente para pagar os gastos</p><p>do Estado relativos à sua atribuição central: manter a máquina</p><p>administrativa, a classe soberana, sem ostentações, e constru-</p><p>ir/manter uma infraestrutura adequada para a circulação das pes-</p><p>soas e mercadorias. Os fisiocratas são liberais, mas guardam pe-</p><p>quenas incoerências na formulação de suas ideias, como a resig-</p><p>nação em relação à monarquia41 e a previsão da proteção dos</p><p>camponeses recair sobre os proprietários das terras onde traba-</p><p>lhavam, algo rejeitado pela maioria dos iluministas, que já tinham</p><p>claro a segurança da população como algo de interesse estrita-</p><p>mente público.</p><p>Outro conceito importante para Quesnay é o de adianta-</p><p>mento, pois seu esquema teórico vai registar um momento especí-</p><p>fico da atividade produtiva, uma fotografia que possibilita compa-</p><p>rações internas e externas da riqueza econômica produzida em</p><p>um certo instante. Para isso, o autor parte de um ponto inicial hi-</p><p>potético de produção nula, no qual todos estão sem renda e preci-</p><p>sam conquistá-la, momento em que os agricultores pedem adian-</p><p>41 Alguns deles serviram à realeza francesa, entre os quais, quem mais ascendeu</p><p>foi Turgot, como secretário de finanças de Luís XVI (Feijó, 2007, 97).</p><p>Alexandre Lyra Martins | 54</p><p>Sumário</p><p>tamentos para poder começar a produzir. Adiantamentos nada</p><p>mais são que empréstimos, recursos que são adiantados e terão de</p><p>ser pagos no futuro.</p><p>A classe agrícola vai pedir emprestado para compra de se-</p><p>mentes e adubos dentro de sua própria classe (ad. anual) e tam-</p><p>bém para compra e/ou manutenção dos equipamentos necessá-</p><p>rios (enxadas, foices, carroças, etc) à classe artesã (ad. primitivo).</p><p>No exemplo de Quesnay, os valores são de 2 bilhões de francos</p><p>para o adiantamento anual e 1 bilhão de francos para adiantamen-</p><p>to primitivo, sendo que o valor do adiantamento primitivo corres-</p><p>ponde à amortização de um capital maior, no caso, de 10 milhões</p><p>de francos.</p><p>O Estado realiza o respectivo ‘adiantamento soberano’ pe-</p><p>dindo empréstimo para construir e manter a infraestrutura, que</p><p>será paga com os tributos posteriormente recolhidos e os proprie-</p><p>tários pedem um ‘adiantamento fundiário’ para preparar e entre-</p><p>gar terras limpas aos camponeses. Com toda população enqua-</p><p>drada nas classes42, Quesnay dá início às transações básicas que</p><p>caracterizam uma economia agrícola como a imaginada pelos fisi-</p><p>ocratas, supondo que a produção seja vendida a “preços constan-</p><p>tes, que têm ... livre concorrência comercial e total segurança da</p><p>propriedade das riquezas de exploração da agricultura” (Quesnay,</p><p>1986, 258)43.</p><p>Feitos os adiantamentos, a classe agrícola vai produzir.</p><p>Após um intervalo de tempo, o ciclo produtivo das culturas se fe-</p><p>cha e ela pode colher os frutos e vendê-los no mercado, o que faz</p><p>render 5 bilhões de francos. Esses 5 bilhões (renda dos agriculto-</p><p>res) desencadearão as demais transações da economia, no mo-</p><p>42 O Estado é classificado como classe proprietária e a classe estéril abarca to-</p><p>dos que não são produtores nem proprietários.</p><p>43 Essa teorização, aqui sintetizada, corresponde a todo conteúdo do pequeno</p><p>livro citado (14 páginas).</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 55</p><p>Sumário</p><p>mento em que os agricultores pagam os adiantamentos, fazendo</p><p>entrar dinheiro na classe agrícola (2 bi), e na classe dos artesãos</p><p>(1 bi). Com a sobra da renda no valor de 2 bilhões de francos os</p><p>agricultores pagam a renda da terra. O valor pago aos proprietá-</p><p>rios relativo à renda da terra deve ser até o limite do produto lí-</p><p>quido, no caso, R$ 2 bilhões de francos, que vai ser a suposição</p><p>simplificadora adotada por Quesnay para se ter a reprodução da</p><p>economia. Uma renda da terra inferior ao produto líquido gera a</p><p>possibilidade dos produtores agrícolas acumularem riqueza e</p><p>mais tarde adquirirem glebas de terras, fazendo diminuir a renda</p><p>da terra ainda mais, estimulando a produção pelo aumento no</p><p>ganho dos produtores.</p><p>Considerando então 2 bilhões de francos como a renda dos</p><p>proprietários, estes necessitam realizar gastos com produtos agrí-</p><p>colas para sobrevivência (1 bilhão de francos) e (o mesmo valor)</p><p>com equipamentos para cumprir sua função de entregar as terras</p><p>limpas para os camponeses. Por fim, com esse movimento se en-</p><p>cerra a renda dos artesãos (que recebem 1 bilhão dos agricultores</p><p>e outro bilhão dos proprietários), que a gastam igualmente com</p><p>gêneros agrícolas (1 bi) e ficam com 1bilhão de francos para adi-</p><p>antamentos primitivos para o próximo ano. Os gastos das rendas</p><p>dos proprietários e dos artesãos fizeram entrar mais 2 bilhões de</p><p>francos nos bolsos dos agricultores, que serão destinados à reali-</p><p>zação do adiantamento anual do ano subsequente. Ao final Ques-</p><p>nay volta para inserir o Estado como cobrador de impostos para</p><p>pagar seu adiantamento, oportunidade em que aproveita para</p><p>defender o pagamento dos impostos pela classe proprietária, uma</p><p>vez que se fosse cobrado da classe produtiva causaria declínio da</p><p>produção (Quesnay, 1986, 259).</p><p>Essa sequência de geração de renda e seu dispêndio se su-</p><p>cede de forma a mostrar um fluxo básico da renda e da produção</p><p>nas economias de mercado, pelo que Quesnay observou na França</p><p>Alexandre Lyra Martins | 56</p><p>Sumário</p><p>de sua época. Sua esquematização o leva a concluir que há uma</p><p>comprovação do princípio fisiocrata da geração exclusiva de renda</p><p>no setor primário, mais especificamente na agricultura, onde tudo</p><p>começa e o produto final (5 bi) é superior às despesas iniciais para</p><p>a realização da produção em 2 bi; que são destinados ao pagamen-</p><p>to da renda da terra. As limitações desse esquema teórico são evi-</p><p>dentes, desde sua premissa central à pouca profundidade da aná-</p><p>lise, passando pela incoerência em seu liberalismo que reconhecia</p><p>a realeza, mas tem o mérito de ser o embrião para esquemas de</p><p>contabilidade nacional posteriores e ser a primeira concepção</p><p>liberal.</p><p>2.3. O filósofo Adam Smith</p><p>Antes de ser reconhecido como o fundador da ciência eco-</p><p>nômica, Adam Smith já era um filósofo moral relativamente reco-</p><p>nhecido como tal. Acadêmico, discutiu ideias com outros filósofos</p><p>como Voltaire, Hume, Locke e Hobbes, se posicionando claramen-</p><p>te ao lado dos três primeiros na defesa da sociedade constituída a</p><p>partir da liberdade individual, enquanto Hobbes acreditava que a</p><p>liberdade de iniciativa geraria uma sociedade cheia de conflitos</p><p>em torno da defesa dos interesses individuais e que, por conse-</p><p>quência, o marco fundador da sociedade livre seria o próprio Es-</p><p>tado e as respectivas leis para garantir a convivência social de di-</p><p>ferentes interesses.</p><p>Se interessando pelo tema, Smith começou a desenvolver</p><p>suas ideias a respeito, tendo como uma de suas referências princi-</p><p>pais um poema publicado em 171444 (anterior, portanto, à revolu-</p><p>ção industrial, mas contemporâneo do predomínio da economia</p><p>mercantilista): a fábula das abelhas. O autor deste poema, Bernard</p><p>44 Conforme Fonseca (1993, 134), a obra foi publicada inicialmente em 1905,</p><p>anonimamente e sem maiores repercussões.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 57</p><p>Sumário</p><p>de Mandeville (2018), o criou como peça provocativa para de-</p><p>monstrar ironicamente, por meio de uma analogia, como despro-</p><p>via de sentido as queixas que se fazia à conduta alheia de buscar</p><p>melhor posicionamento social e econômico a qualquer custo, já</p><p>que todos teriam um comportamento similar, guiados pelos vícios,</p><p>e todos se beneficiavam com a riqueza produzida.</p><p>A fábula era uma crítica velada à moral religiosa católica</p><p>ainda predominante, que tinha o ser humano como pecador nato</p><p>que lutava contra as tentações interiores que o empurravam para</p><p>os confortos materiais dos bens, porém a própria moral religiosa</p><p>estava mudando com as reformas protestantes, no sentido de va-</p><p>lorizar a produção e</p><p>o consumo. Dentro de uma perspectiva dos</p><p>estudos posteriores na área, mesmo estando num contexto eco-</p><p>nômico e social transitório, Mandeville tem o mérito de ser o pio-</p><p>neiro na elaboração do que mais tarde vai ser denominado de</p><p>‘egoísmo ético’ (Fonseca, 1993, 133); princípio que norteia as</p><p>formulações éticas liberais.</p><p>Smith simpatizou com a estória das abelhas, porém detec-</p><p>tou algo equivocado na interpretação da moral reinante. Para ele,</p><p>o problema central de Mandeville foi não separar o joio do trigo,</p><p>tratando indistintamente como corrompida toda ação humana em</p><p>busca de ganho econômico, sempre movida pelos prazeres mate-</p><p>riais sintetizados nos pecados capitais. Essa crítica generalizada</p><p>não percebia que a sociedade livre aprova certas atitudes e desa-</p><p>prova outras na busca pela riqueza, e há um critério claro nesse</p><p>julgamento. A sociedade saberia diferenciar o desejo geral; aquele</p><p>que é fruto do desejo puro e simples, independente de seu conte-</p><p>údo moral, do desejo moralmente condenável, que resulta em pre-</p><p>juízo a terceiros, e do desejo moralmente elogiável, ou simples-</p><p>mente desejável; que corresponde a ações mais específicas que</p><p>geram benefícios para os outros.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 58</p><p>Sumário</p><p>Na sociedade livre concebida pelo pensador britânico, os</p><p>cidadãos estabelecem um acordo tácito em torno de um valor re-</p><p>ferencial: o reconhecimento de qualquer riqueza conseguida atra-</p><p>vés de atividade produtiva, que implica na rejeição da riqueza ob-</p><p>tida de outras maneiras, que envolveriam tentativas de usurpação</p><p>da produção alheia. O cotidiano apenas confirma os benefícios</p><p>materiais alcançados a partir das inciativas individuais e reforça a</p><p>identidade estabelecida com o outro em torno da produção para o</p><p>mercado. Esta é a ideia central da Teoria dos sentimentos morais</p><p>(TSM): os laços sociais livres são sustentados pela simpatia mútua</p><p>entre cidadãos que praticam valores que promovem o bem estar</p><p>coletivo.</p><p>As pessoas passam a ser beneficiadas pela oferta de bens e</p><p>serviços em quantidade, por uma produção que até pouco tempo,</p><p>antes da revolução industrial, era escassa. Essa mudança produti-</p><p>va vem acompanhada de transformação comportamental, uma</p><p>identificação com a nova forma de produzir vai sendo construída</p><p>paralelamente à formação da sociedade moderna. A correção eco-</p><p>nômica está nas ações que promovem uma melhor condição de</p><p>vida material do grupo, familiar e social, que antes eram limitadas</p><p>por causa do estágio de desenvolvimento produtivo inferior. Se-</p><p>gundo a concepção smithiana, atitudes que geram bem-estar são</p><p>valorizadas, como oferecer mercadorias diversas e/ou oportuni-</p><p>dades de trabalho para os concidadãos, enquanto pessoas que</p><p>promovem protecionismo, conferindo privilégios a alguns e exclu-</p><p>indo a maioria, não são bem vistas pela coletividade. Só socieda-</p><p>des autoritárias conseguem sustentar esses valores.</p><p>Num contexto liberal, a família é o menor agrupamento em</p><p>que se pode observar as ações que geram a simpatia ou a antipa-</p><p>tia. Ela é a célula social onde se desenvolve o respeito pelos man-</p><p>tenedores, aqueles que criam as condições concretas de sobrevi-</p><p>vência do grupo e de um bom convívio social. A família típica na</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 59</p><p>Sumário</p><p>economia de mercado é liderada pelo(a) chefe que desenvolve as</p><p>suas melhores habilidades no sentido de obter a maior quantidade</p><p>de rendimento possível no mercado, para, assim, permitir um bom</p><p>padrão de vida para si e para a sua prole, que, naturalmente, se</p><p>espelha nele e estará predisposta a dar continuidade a esses valo-</p><p>res. Amigos também são bem quistos por gerarem bem-estar no</p><p>prazer do convívio e formarem uma rede que atua na expansão</p><p>dos negócios com proteção e apoio em situações de fragilidade</p><p>econômica. Fecha-se o ciclo virtuoso básico de bons costumes e</p><p>valores, em que o econômico está no centro, intrincado com o so-</p><p>cial, sendo ambos pautados por princípios éticos.</p><p>SIMPATIA:</p><p>AFINIDADE MORAL – FUNDAMENTO DO CONVÍVIO SOCIAL</p><p>De outro lado, aquele chefe de família que não consegue ge-</p><p>rar as boas condições econômicas, cria hábitos desregrados, por</p><p>vezes acompanhado do uso de violência, também acaba propa-</p><p>gando essas atitudes, gerando instabilidade familiar recorrente.</p><p>Não precisa refletir muito para imaginar que países pobres, nos</p><p>quais a economia de mercado não se desenvolveu o bastante, seri-</p><p>am exemplos dessa falta de oportunidades que assola certos luga-</p><p>res e proporciona situação de precariedade econômica e social</p><p>para várias famílias. As famílias mais pobres, em regra, têm valo-</p><p>res distorcidos por se encontrarem inseridas dentro de um vale-</p><p>tudo pela sobrevivência, e aí a vem a violência, autoritarismo, os</p><p>vícios se instalam e tornam muitas vezes o ambiente familiar in-</p><p>suportável. 45</p><p>45 Quando o indivíduo do mundo da sociedade virtuosa encontra alguém pe-</p><p>dindo esmola na rua ele deveria, de acordo com esta concepção, rejeitar tal</p><p>atitude e negar o pedido, mas muitos se apiedam e dão algo. Como explicar? De</p><p>acordo com a lógica smithiana, isso não decorreria diretamente de um espasmo</p><p>Alexandre Lyra Martins | 60</p><p>Sumário</p><p>Essa avaliação das pessoas e das atitudes é realizada a todo</p><p>momento através de mecanismos conscientes e inconscientes por</p><p>um ‘eu’ avaliador, que convive dentro de cada um com o indivíduo</p><p>propriamente dito. Smith divide o indivíduo em dois e cria a figura</p><p>teórica de um outro ser crítico, correspondente à consciência mo-</p><p>ral que reside em nossa individualidade, ajudando a pessoa a to-</p><p>mar as decisões corretas, pois ele é um avaliador externo, que</p><p>consegue se colocar no lugar do outro para julgar ‘imparcialmen-</p><p>te’ as pessoas nos respectivos contextos. Esse segundo eu é deno-</p><p>minado por ele de juiz. É o avaliador externo que tem a distância</p><p>suficiente para realizar o julgamento moral, e o faz inconsciente-</p><p>mente com base em seus valores mais caros, mas o resultado do</p><p>julgamento, a decisão, é consciente, e explicita esses valores:</p><p>“...tudo se passa como se me dividisse em duas</p><p>pessoas; e que eu, examinador e juiz, represento</p><p>um homem distinto perante o outro eu, a pessoa</p><p>cuja conduta se examina e se julga. A primeira</p><p>pessoa é o espectador, de cujos sentimentos</p><p>quanto à minha conduta tento participar, colo-</p><p>cando-me em seu lugar e considerando como a</p><p>mim me parecia se examinasse desse ponto de</p><p>vista particular. A segunda é o agente, pessoa a</p><p>quem propriamente designo como eu mesmo, e</p><p>de altruísmo ou solidariedade, mas devido à rejeição àquela situação, ou seja,</p><p>esta atitude seria consequência indireta do auto interesse. Na verdade, ele re-</p><p>pudia aquela situação para si e age por projeção, se colocando na situação de-</p><p>plorável do mendigo. A avaliação negativa da hipótese gera sentimentos como a</p><p>solidariedade e a caridade, como não quer sofrer, a ajuda seria uma fonte de</p><p>prazer para si próprio, uma vez que está ajudando alguém a minimizar seu</p><p>sofrimento. Dito de outra forma, o auto interesse é colocado como fundamento</p><p>de sentimentos como altruísmo. Enfim, o valor é o mesmo, mas a variedade nas</p><p>personalidades é que determina a ação final no caso do exemplo dado.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 61</p><p>Sumário</p><p>sobre cuja conduta tentava formar uma opinião,</p><p>como se fosse a de um espectador. A primeira é o</p><p>juiz, a segunda é a pessoa a quem se julga.”</p><p>(Smith, 1999, 142)</p><p>O DUPLO INDIVÍDUO: AGENTE E ESPECTADOR</p><p>A sociedade liberal é fundada no indivíduo livre que propa-</p><p>ga os bons valores, uma vez que a maioria das pessoas segue as</p><p>virtudes e condena os vícios, persegue os valores construtivos e</p><p>deplora os destrutivos. As pessoas são capazes de separar o méri-</p><p>to das ações e valorizar as ações virtuosas, que geram benefícios a</p><p>terceiros, e esse parâmetro tende a ser reproduzido, copiado, bem</p><p>como a antipatia pelo demérito. Assim</p><p>como se vê com bons olhos</p><p>alguém ceder lugar para um idoso num transporte público e essa</p><p>atitude é replicada por outros, também o produtor e o comercian-</p><p>te são aprovados quando têm demanda por seus produtos.</p><p>Numa economia livre as pessoas reconhecem o trabalho de</p><p>ofertar mercadorias e admitem o ganho monetário por isso, pois</p><p>querem que elas estejam disponíveis no mercado. Se um comerci-</p><p>ante quiser praticar altos preços, porém, perderá clientes, uma vez</p><p>que essa prática não é bem vista e é punida com a migração dos</p><p>fregueses para a concorrência, como é recriminado alguém mais</p><p>jovem que ocupa uma cadeira em um coletivo na presença de um</p><p>idoso em pé.</p><p>A harmonia social smithiana decorre em última instância</p><p>da afinidade moral entre os cidadãos, via respeito mútuo que se</p><p>instala pelo cultivo de valores virtuosos compartilhados. O indiví-</p><p>duo em Smith é um ser social livre que tem em vista sua posição</p><p>na sociedade, preza pela manutenção dos valores sociais que ga-</p><p>rantem o seu modo de vida próprio, suas escolhas, e aí se chega ao</p><p>auto interesse, mas um auto interesse contextualizado socialmen-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 62</p><p>Sumário</p><p>te, dado que sua sobrevivência depende da conduta virtuosa dos</p><p>demais agentes que também geram benefícios concretos para a</p><p>sociedade. O homem é egoísta, mas só exerce essa característica</p><p>até o ponto em que a sociedade aceita as ações pela busca da ri-</p><p>queza, no caso, sem subtrair de terceiros e oferecendo algo em</p><p>troca para os demais.</p><p>Por fim, a TSM destaca que as ações e reações humanas en-</p><p>volvem sentimentos, e que esses determinam a sentença em ter-</p><p>mos do caráter virtuoso ou desvirtuado das atitudes, mas estão</p><p>fundados intrinsecamente na razão. O julgamento moral de uma</p><p>conduta decorre da sensação emocional que ela provoca no indi-</p><p>víduo, de bem-estar ou mal-estar, através do sistema nervoso, que</p><p>processa as informações e manda as reações ao cérebro. Aqui há a</p><p>compreensão de que o emocional só pode ser percebido via racio-</p><p>nalidade, coerente com a base hedonista do iluminismo46.</p><p>Para além de todo um debate que havia entre racionalistas</p><p>e empiristas47, no qual Smith se posiciona ao lado de Hume aca-</p><p>tando os argumentos empiristas, por acreditar na relevância dos</p><p>sentimentos imediatos como decisivos para explicar as ações e</p><p>reações humanas, o importante é que o racional continua existin-</p><p>do como dimensão basilar das sensações. Sobre isso, Bianchi</p><p>(1988, 109) arremata da seguinte forma:</p><p>“... embora Smith conceda um papel privilegiado à</p><p>razão, sua principal ênfase é posta na vontade, ou</p><p>seja, no livre arbítrio do homem, iluminado pela</p><p>razão. É à vontade que cabe o comando sobre a</p><p>conduta, ... a razão não pode tornar um objeto</p><p>agradável ou desagradável ao homem.”</p><p>46 Segundo Rouanet (1992, 150), seriam fundamentos do cognitivismo presente</p><p>no iluminismo: o jusnaturalismo, o empirismo e a razão.</p><p>47 Cerqueira (2006, 4) expõe a discussão e seus argumentos.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 63</p><p>Sumário</p><p>A argumentação central em torno da razão como fundação</p><p>da construção sentimental poderia ser sintetizada pelo uso da ex-</p><p>pressão ‘razoável’ para indicar uma ação sensata, e, portanto, mo-</p><p>ralmente correta e afinada com a percepção social.</p><p>Em síntese, pode-se dizer que, aplicando os princípios da</p><p>TSM no mundo econômico, o que sobressai é a ética do trabalho</p><p>correto, da produção que gera o benefício esperado por todos em</p><p>bens e serviços ofertados, um retorno para a coletividade do es-</p><p>forço individual despendido na busca de melhores remunerações</p><p>dos fatores48. A economia de mercado livre é baseada na socializa-</p><p>ção do trabalho, é a divisão do trabalho que permite os ganhos de</p><p>produção e produtividade que transformam a realidade econômi-</p><p>ca de até então.</p><p>Mais do que qualquer ação, a divisão do trabalho tem a</p><p>simpatia das pessoas e, consequentemente, qualquer outro meio</p><p>de obter as coisas ou de procurar se manter diferente é rejeitada</p><p>pela sociedade. A ideologia mercantilista é superada para a cons-</p><p>trução do capitalismo, permitindo, por exemplo, a expansão do</p><p>capital financeiro como algo desejável para viabilizar mais negó-</p><p>cios, democratizando o crescimento para agentes descapitaliza-</p><p>dos.</p><p>2.4. O cientista social Smith: a riqueza das nações</p><p>Saindo do campo da ética para a economia, o Smith da Ri-</p><p>queza das nações (adiante denominada RN) é um cientista social</p><p>que parte da indução histórica para construir suas hipóteses e sua</p><p>teoria num plano macro49. Smith é um dos pensadores clássicos</p><p>mais revisitados na literatura econômica especializada no fim do</p><p>48 Conforme Martins (2020, 97-100).</p><p>49 Como argumenta Paulani (2010, 35).</p><p>Alexandre Lyra Martins | 64</p><p>Sumário</p><p>século XX, e muito disso se deve a Amartya Sen, que ganhou o</p><p>prêmio Nobel em 1998, tendo Smith como uma de suas principais</p><p>referências. Após estudos concluírem pela complementariedade</p><p>entre a TSM e a RN50, indo contra teses de menor eco acadêmico</p><p>que alegavam incompatibilidade entre essas obras51, vieram tra-</p><p>balhos diversos para discutir e valorizar aspectos diversos da obra</p><p>smithiana, como a metodologia (Paulani, 2010) ou a concepção de</p><p>utilitarismo (Marin e Quintana, 2011). Aqui são expostos e discu-</p><p>tidos os conteúdos dos sete primeiros capítulos da RN, onde está o</p><p>núcleo de suas principais teses econômicas.</p><p>Da observação dos fatos históricos ele extrai os fundamen-</p><p>tos e constrói a teoria que vai servir de base para a escola clássica,</p><p>esmiuçando desde a produção da unidade fabril ao processo de</p><p>surgimento do dinheiro, sempre ilustrando com exemplos históri-</p><p>cos. Seu entendimento da história recente, por sua vez, é de um</p><p>processo que se sucede como consequência de características na-</p><p>turais do ser humano, particularmente sua busca constante por</p><p>melhoria nas condições materiais da vida, que leva ao aperfeiçoa-</p><p>mento da produção.</p><p>Seguindo uma lógica dedutiva histórica, o elemento social</p><p>se naturaliza, quando, por exemplo, o britânico pioneiro na eco-</p><p>nomia atribui o surgimento da divisão do trabalho e das necessá-</p><p>rias relações sociais de trabalho da economia industrial a uma</p><p>tendência natural para as trocas. Aqui o homem não é agente ati-</p><p>vo, é passageiro do ‘veículo’ conduzido pela ‘ordem natural das</p><p>coisas’, à qual se adapta e vai construindo alternativas produtivas</p><p>possíveis na medida de sua evolução técnica.</p><p>Tendo presenciado o início da revolução industrial em tor-</p><p>no da metade do século XVIII, o autor estudado pôde desenvolver</p><p>50 Discussão sintetizada e referenciada na última seção do primeiro capítulo do</p><p>presente livro.</p><p>51 Conforme relatam Bianchi (1988, 104-106) e Feijó (2007, 114).</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 65</p><p>Sumário</p><p>sua teoria através da observação empírica daqueles que seriam os</p><p>mecanismos fundamentais de um mercado já maduro, e então pu-</p><p>blicou sua obra em 1776. Sua primeira observação foi acerca da</p><p>divisão do trabalho, fundamento de sua teoria de crescimento</p><p>econômico. O conceito é apresentado na abertura da obra e logo</p><p>no terceiro parágrafo do primeiro capítulo, cita o exemplo icônico</p><p>da manufatura de alfinetes, um caso, entre vários outros que ele</p><p>testemunhou, que sintetiza os ganhos de produção e produtivida-</p><p>de da divisão do trabalho.</p><p>2.4.1. A divisão do trabalho, sua origem e a expansão do</p><p>mercado.</p><p>No primeiro capítulo da Riqueza das nações são mostradas</p><p>as implicações e consequências da variável principal sobre a qual</p><p>se ergue a teoria, a divisão do trabalho, responsável pelo “maior</p><p>aprimoramento das forças produtivas do trabalho, e a maior parte</p><p>da habilidade, destreza e bom senso com os quais o trabalho é em</p><p>toda parte dirigido ou executado...” (Smith, 1985, 41). A preocupa-</p><p>ção da maior parte dos estudiosos do fenômeno econômico na-</p><p>quele momento histórico era explicar como produzir em quanti-</p><p>dade para resolver o problema crucial da fome, daí o subtítulo da</p><p>Riqueza das nações: ‘uma investigação sobre sua natureza e suas</p><p>causas’.</p><p>A citação do parágrafo anterior é a primeira afirmação do</p><p>livro, e nela o autor em questão já deixa implícito algo que vai re-</p><p>forçar posteriormente: a importância do trabalho em geral para a</p><p>geração de valor52, diferentemente do que pregavam os fisiocra-</p><p>tas, principais referências até então, que acreditavam na produti-</p><p>52 Todas formas de trabalho são consideradas produtivas, com exceção de al-</p><p>guns serviços ‘improdutivos’, que comentaremos depois.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 66</p><p>Sumário</p><p>vidade exclusiva do trabalho agrícola, e os mercantilistas, que de-</p><p>fendiam a produtividade restrita ao trabalho comercial.</p><p>Os benefícios da divisão do trabalho se estendem a qual-</p><p>quer ofício ou manufatura, entretanto, maiores serão suas reper-</p><p>cussões quanto mais complexa for a atividade, e aí inevitavelmen-</p><p>te as atividades industriais têm vantagem. Quanto mais divisão do</p><p>trabalho, mais crescimento econômico há, e como a indústria</p><p>permite mais divisão do trabalho, necessariamente países mais</p><p>ricos são industrializados, enquanto países menos industrializa-</p><p>dos (mais agrícolas ou comerciais) são relativamente mais pobres.</p><p>A divisão do trabalho surge na manufatura e chega aos demais</p><p>setores da economia depois, com máquinas inicialmente adapta-</p><p>das e posteriormente desenvolvidas especificamente para a apli-</p><p>cação no campo, como tratores e colheitadeiras.</p><p>Dividir o trabalho consiste em fracionar o processo produ-</p><p>tivo em fases específicas para que o trabalhador se especialize em</p><p>menos máquinas, de preferência numa só. Antes da revolução in-</p><p>dustrial cada item era todo feito por um trabalhador, que domina-</p><p>va todo processo, mas a introdução de máquinas para cada etapa</p><p>do processo tornou desnecessária a qualificação e repetitivo o</p><p>trabalho, gerando maior produtividade.</p><p>Os ofícios ficaram obsoletos, e qualquer equipamento que</p><p>permitisse individualmente a fabricação integral de algo, não seria</p><p>capaz de concorrer com o maquinário industrial, que gerava um</p><p>produto de custo unitário muito menor. Às pessoas restava vender</p><p>sua força de trabalho para viver, e assim novas relações de traba-</p><p>lho vão surgindo, de aluguel da capacidade produtiva humana, e</p><p>com elas a economia mercantil, em que tudo passa a ser trocado.</p><p>O clássico exemplo da manufatura de alfinetes (Smith,</p><p>1985, 41-42) demonstra claramente os ganhos obtidos com a divi-</p><p>são do trabalho, pois se antes da revolução industrial um operário</p><p>qualificado para a labuta conseguia produzir até 20 alfinetes por</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 67</p><p>Sumário</p><p>dia, com a implantação de maquinário moderno, 10 trabalhadores</p><p>produzem cerca de 48.000 alfinetes por dia, ou seja, a produtivi-</p><p>dade individual passa a ser de 4.800 alfinetes por dia, aumentando</p><p>240 vezes, algo fabuloso considerando qualquer momento históri-</p><p>co.</p><p>A expressividade dos números da indústria faz Smith ver</p><p>apenas o lado bom da produção em massa, relatando suas causas:</p><p>1. maior destreza dos trabalhadores; melhoria substancial no de-</p><p>sempenho individual porque ela leva à especialização em poucas</p><p>atividades (o homem agora não precisa saber e executar uma sé-</p><p>rie de operações coordenadas, e assim, as faz com maior rapidez e</p><p>precisão), 2. economia de tempo entre uma operação e outra (evi-</p><p>ta desperdício de tempo gasto com o deslocamento de uma ativi-</p><p>dade para outra e para retomar concentração em uma atividade</p><p>distinta da primeira) e 3. a invenção de máquinas; na medida em</p><p>que</p><p>“...a atenção de uma pessoa é naturalmente diri-</p><p>gida para um único objeto muito simples. Eis por</p><p>que é natural podermos esperar que uma ou ou-</p><p>tra das pessoas ocupadas... acabe descobrindo</p><p>métodos mais fáceis e mais rápidos de executar</p><p>seu trabalho específico...” (Smith, 1985, 45)</p><p>Cabe registrar a presença da palavra natural no pequeno</p><p>trecho supracitado, por duas vezes, demonstrando como esse é</p><p>elemento relevante na construção das ideias desse autor. A liber-</p><p>dade seria uma condição natural do homem como ser vivo que é, e</p><p>só nessa condição desenvolve todas suas potencialidades, como a</p><p>natureza propriamente dita, berço da ordem natural, em que se</p><p>observa a abundância de recursos disponíveis. Os benefícios da</p><p>divisão do trabalho são consequência da libertação das condições</p><p>feudal e escravista que os iluministas combateram, aliados à in-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 68</p><p>Sumário</p><p>venção de algumas máquinas decisivas para a transformação téc-</p><p>nica da atividade produtiva, viabilizando a adoção da divisão do</p><p>trabalho.</p><p>AUMENTO NA DESTREZA</p><p>RAZÕES DA DIVISÃO ECONOMIA DE TEMPO ENTRE</p><p>DO TRABALHO ATIVIDADES</p><p>INVENÇÃO DE MÁQUINAS</p><p>Na sequência (cap. 2), Smith vai propor uma explicação</p><p>teórica para a origem do processo que culminou com a divisão do</p><p>trabalho, e de acordo com ele, isso deve ser compreendido consi-</p><p>derando o comportamento moral do homem, sobre o qual ele já</p><p>havia teorizado em seu livro anterior (TSM). O primeiro elemento</p><p>apresentado é a propensão, sempre natural, às trocas. A troca re-</p><p>sulta em ganho para ambas partes, quem oferece e quem deman-</p><p>da, então na medida em que o excedente vai sendo sistematica-</p><p>mente gerado, o homem atenta para a possibilidade de ganhar</p><p>algo diferente com aquilo que já não interessa a ele, pois tem em</p><p>excesso. Se a troca beneficia outra pessoa não é por que o proposi-</p><p>tor da troca está sendo altruísta ou benevolente, mas por que ele</p><p>quer, antes de mais nada, obter vantagem com ela, então se trata</p><p>de egoísmo, mas aqui esse exerce um papel construtor, positivo,</p><p>na medida em que proporciona a socialização de uma produção</p><p>que antes seria desperdiçada ou oferecida aos deuses.</p><p>O surgimento das primeiras sociedades está associado à</p><p>revolução agrícola, que na sequência trouxe o excedente de pro-</p><p>dução, as primeiras divisões do trabalho (embrionárias, familia-</p><p>res) e o comércio, com o argumento final e racional das vantagens</p><p>econômicas que os maiores agrupamentos ofereciam aos homens.</p><p>Esses ganhos, entretanto, foram pequenos por muito tempo em</p><p>função da dificuldade de comunicação e locomoção entre as socie-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 69</p><p>Sumário</p><p>dades, que eram predominantemente coletivistas ou protecionis-</p><p>tas em alguma medida, até que vieram as grandes navegações, a</p><p>expansão comercial e o desenvolvimento da sociedade mercanti-</p><p>lista a partir da metade do século XVI, trazendo a percepção da</p><p>liberdade de ações como premissa econômica para a organização</p><p>social, graças a uma combinação de fatores que consubstanciaram</p><p>num contexto político, econômico e intelectual (iluminismo) ade-</p><p>quado à sua disseminação. O comércio, que é a base da economia</p><p>de mercado e sua referência para evolução rumo à industrializa-</p><p>ção, floresce.</p><p>Smith conclui que o crescimento econômico em sociedades</p><p>livres decorre do auto interesse das pessoas em progredir, em</p><p>conseguir uma melhor condição material para si através de buscas</p><p>por melhores ocupações e remunerações para seus fatores de</p><p>produção, atitude que a sociedade aprova porque ganha mais</p><p>produção. Tudo isso devido à liberdade de escolhas proporciona-</p><p>da ao homem, possibilitando esse processo evolutivo em que o</p><p>mercado é a grande força natural que faz cada um se mexer para</p><p>obter melhores condições materiais de vida.</p><p>Como a divisão do trabalho é consequência da natureza</p><p>humana, algumas sociedades vão crescer mais que outras em ra-</p><p>zão da presença mais ou menos intensa da propensão às trocas</p><p>em seus cidadãos, o que vai depender de variáveis relacionadas à</p><p>própria natureza. São essas variáveis que Smith vai abordar no</p><p>capítulo terceiro, quando ele observa que sempre há uma relação</p><p>entre dois aspectos físico-geográficos e o desenvolvimento do co-</p><p>mércio:</p><p>1.</p><p>Grau de urbanização: Quanto mais rural o país, menos</p><p>mercado haverá, já que o campo possui dimensões e distâncias</p><p>superlativas que favorecem a autonomia dos que estão lá inseri-</p><p>dos. As grandes propriedades fornecem área e disponibilidade de</p><p>recursos diversos, que, muitas vezes aliados à precariedade da</p><p>Alexandre Lyra Martins | 70</p><p>Sumário</p><p>infraestrutura ao redor, determinam a viabilização de condições</p><p>de sobrevivência com ampla autonomia.</p><p>No cenário rural são trabalhados múltiplos ofícios e o do-</p><p>mínio de várias técnicas que geram independência em relação a</p><p>outros que podem demorar a chegar, e também, por outro lado,</p><p>fica prejudicado o desenvolvimento de novas técnicas de produ-</p><p>ção, uma vez que, o relativo (ou quase absoluto) isolamento, pro-</p><p>move acomodação produtiva.</p><p>A situação inversa se configura nas localidades mais urba-</p><p>nizadas, que são mais populosas, e onde predominam as proprie-</p><p>dades menores. Existindo uma quantidade maior de pequenas</p><p>propriedades, elas são disputadas e seu preço se torna relativa-</p><p>mente bem mais elevado por causa dessa disputa, assim, sem ter</p><p>espaço, mas tendo que pagar aluguéis altos, as pessoas são força-</p><p>das a gerar renda, sem poder produzir todas suas condições de</p><p>sobrevivência individualmente.</p><p>No meio urbano a dependência em relação ao outro se tor-</p><p>na positiva, a divisão do trabalho nasce e se desenvolve: os pro-</p><p>cessos de produção são fatiados e transformados em processos de</p><p>larga escala (seja de produção industrial ou comercial) e o produ-</p><p>tor passa a ser um trabalhador que efetua apenas uma pequena</p><p>parte de um processo maior, mais especializado e bem mais rápi-</p><p>do porque agora executa tarefas simples e repetitivas. Alguns</p><p>poucos, por sua vez, que avançam mais no comércio de suas mer-</p><p>cadorias e logram êxito num processo de acumulação de capital</p><p>primitivo serão capitalistas, se especializando no trabalho de arti-</p><p>cular a produção e/ou o comércio.</p><p>2. Exploração comercial de vias fluviais: A existência de</p><p>vias fluviais, sejam rios ou mares navegáveis, é importante para o</p><p>desenvolvimento do comércio, pois elas se revelam, tanto no con-</p><p>texto da época de Smith, quanto hoje em dia, melhores meios para</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 71</p><p>Sumário</p><p>realização de transporte devido ao custo-benefício mais baixo. No</p><p>contexto histórico de Smith isso fica mais evidente, pois como ele</p><p>exemplifica:</p><p>“uma carroça de rodas largas, servida por dois</p><p>homes e puxada por oito cavalos, leva aproxima-</p><p>damente seis semanas para transportar de Lon-</p><p>dres a Edimburgo - ida e volta - mais ou menos 4</p><p>toneladas de mercadorias. Mais ou menos no</p><p>mesmo tempo um barco ou navio tripulado por</p><p>seis ou oito homens, e navegando entre os portos</p><p>de Londres e Leith, muitas vezes transporta – ida</p><p>e volta – 200 toneladas de mercadoria.”</p><p>(Smith, 1985, 54)</p><p>Assim ele prova que a capacidade de carga por vias fluviais</p><p>é significativamente maior que o transporte por vias terrestres53,</p><p>ao que corresponde um volume de mercadorias transacionadas</p><p>muito superior. Novamente a indução histórica, paralelamente à</p><p>observação do critério do custo-benefício, lhe conduz a conclusões</p><p>cruciais para a economia e para a compreensão do desenvolvi-</p><p>mento econômico.</p><p>Com o tempo, os veículos incorporaram inovações técnicas</p><p>diversas, surgindo o automóvel e o avião, mas a observação de</p><p>Smith ainda é válida porque o transporte fluvial continua sendo a</p><p>forma mais barata de atravessar grandes distâncias54, tanto que os</p><p>homens são capazes de realizar altíssimos investimentos para</p><p>possibilitar o trânsito de navios em algumas situações, como com-</p><p>prova o canal do Panamá.</p><p>53 No caso citado, a produtividade por homem é 50 vezes maior.</p><p>54 Os navios aumentaram ainda mais sua capacidade de carga ao longo do tem-</p><p>po.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 72</p><p>Sumário</p><p>Trata-se de um canal de 77 km que foi um desafio para a</p><p>engenharia e consiste numa ligação artificial entre os oceanos</p><p>atlântico e pacífico por meio do Panamá, tendo sido executado</p><p>após o governo dos EUA retomarem a obra em 1904 (a primeira</p><p>tentativa, fracassada, foi francesa, 102 anos antes). A obra exigiu o</p><p>desenvolvimento de uma tecnologia específica para sua viabiliza-</p><p>ção, levou uma década para ser concluída, após contornado o pro-</p><p>blema da febre amarela no princípio da construção, e teve custo</p><p>estimado em torno de 360 milhões de dólares.</p><p>FATORES QUE DETERMINAM GRAU DE URBANIZAÇÃO</p><p>A EXTENSÃO DO MERCADO PRESENÇA DE VIAS FLUVIAIS</p><p>A presença desses fatores delineia o vulto que o mercado e</p><p>a economia vão atingir, mas os países que não detém esses ele-</p><p>mentos não estão fadados a um estágio inferior de mercado, eles</p><p>podem apreender e exercitar os mandamentos do livre mercado</p><p>para alcançar algum crescimento, ainda que limitado pelos recur-</p><p>sos disponíveis. Smith acredita mais no treinamento do que nos</p><p>talentos naturais do ser humano em si, pois o homem tem uma</p><p>característica natural diferenciada dos animais irracionais, que é a</p><p>capacidade cognitiva, que lhe dá possibilidades diversas de de-</p><p>senvolvimento55. Se uma certa sociedade não possui um comércio</p><p>desenvolvido, é muito rural ou não possui vias fluviais, mesmo</p><p>assim pode obter algum crescimento se imbuir nos cidadãos os</p><p>valores do mercado e praticar o livre arbítrio para avançar na</p><p>construção do mercado.</p><p>55 Smith (1985, 51).</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 73</p><p>Sumário</p><p>2.4.2. O dinheiro</p><p>Tendo deixado claro que a produção em larga escala nasce</p><p>apenas se já houver uma estrutura comercial previamente estabe-</p><p>lecida que lhe sirva de base, o pai da economia vai falar de outra</p><p>variável essencial aos mercados no capítulo 4, o dinheiro, conside-</p><p>rando seu processo evolutivo, natural, para chegar à sua teoria do</p><p>valor. Após uma explanação mais geral acerca das causas da pro-</p><p>dução industrial e de sua expansão nos capítulos anteriores, a par-</p><p>tir de variáveis chave como divisão do trabalho e propensão às</p><p>trocas, o objetivo agora é mostrar elementos mais específicos, ne-</p><p>cessários para um entendimento de sua teoria do valor e do funci-</p><p>onamento do mercado.</p><p>Ao propor sempre uma investigação histórica das variáveis,</p><p>Smith ressalta a importância das trocas diretas, o escambo, para a</p><p>compreensão do surgimento do dinheiro. Quando o excedente</p><p>começou a aparecer, ainda esporadicamente, as pessoas foram se</p><p>apercebendo que podiam trocá-lo por coisas que faltavam e então</p><p>passaram a oferecê-lo a outros que não produziam seu produto ou</p><p>simplesmente não o tinham, só que a conclusão dessa troca de-</p><p>pendia do outro querer o produto, na quantidade ofertada e na</p><p>proporção proposta com o item a ser trocado. A troca direta de-</p><p>pende da coincidência desses desejos e julgamentos entre as par-</p><p>tes, o que é um entrave significativo de saída, pois são três etapas</p><p>com necessária concordância mútua, que reduzem muito a quan-</p><p>tidade de transações efetivamente realizadas.</p><p>Essas dificuldades fizeram com que as pessoas procuras-</p><p>sem ter “... além dos produtos diretos de seu próprio trabalho,</p><p>uma certa quantidade de alguma(s) outra(s) mercadoria(s) - ...</p><p>que, em seu entender, poucas pessoas recusariam receber em tro-</p><p>ca de seus próprios trabalhos.” (Smith, 1985, 57). Essa seria uma</p><p>busca natural, uma vez que as técnicas de produção tendem a evo-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 74</p><p>Sumário</p><p>luir e o excedente tende a se sistematizar, daí a alternativa natural</p><p>é trocar parte de sua produção por um produto mais desejado,</p><p>mais fácil de ser aceito na hora da troca. Essa estratégia elegeu</p><p>produtos diferentes em lugares distintos para cumprir essa função</p><p>de meio de troca, em razão da disponibilidade de recursos de cada</p><p>lugar e de suas culturas (que afeta a valorização das coisas), como</p><p>por exemplo: sal, conchas, açúcar, fumo e couro.</p><p>Ocorre que, segundo Smith, essas mercadorias</p><p>nunca con-</p><p>seguiam cumprir plenamente sua função de meio de troca porque</p><p>não atendiam perfeitamente a três atributos/requisitos essenciais</p><p>a tal finalidade: alto valor, divisibilidade e durabilidade. A merca-</p><p>doria escolhida teria dificuldade em ser intercambiada por mer-</p><p>cadorias muito caras se faltasse a propriedade do alto valor, ou</p><p>pelas de baixo valor se faltasse a divisibilidade e resistiria a pou-</p><p>cas transações (tendo que ser reposta em pouco tempo) se faltas-</p><p>se a qualidade da durabilidade.</p><p>Não demorou muito para que todas nações que buscavam</p><p>um meio de troca descobrissem nos metais a melhor solução, pois</p><p>só ele atendia bem a todas propriedades requeridas para cumprir</p><p>a função de meio de troca. Também o metal escolhido vai ser de-</p><p>terminado pela disponibilidade dos recursos, no caso, a existência</p><p>de reservas do metal, mas, em geral, são três os metais preferidos:</p><p>ouro, prata e bronze, nessa ordem de preferência (devido ao valor</p><p>mais alto dos primeiros).</p><p>O uso dos metais se disseminou por sua superioridade fun-</p><p>cional, mas as sociedades sofriam com inconvenientes relaciona-</p><p>dos à segurança e à confiança no metal que era dado em troca das</p><p>mercadorias, pois metais eram mercadorias especiais que poucos</p><p>conheciam profundamente. O problema da confiança podia ser</p><p>desmembrado em dois: o da garantia do peso e da qualidade do</p><p>metal.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 75</p><p>Sumário</p><p>A fragilidade do metal foi contornada com a constituição</p><p>das primeiras casas de moeda, entidades privadas que prestavam</p><p>o serviço especializado de avaliar e garantir a cunhagem (pesa-</p><p>gem) e a qualidade (medição dos quilates) do metal. Essas empre-</p><p>sas, que mais tarde vão dar origem às instituições bancárias, pos-</p><p>suíam mão de obra qualificada e dependiam da credibilidade para</p><p>se consolidar, mas no fim vão acabar resolvendo o outro problema</p><p>da insegurança reinante, pois em lugar de levar os metais as pes-</p><p>soas passaram a levar comprovantes de depósito do metal nas</p><p>casas de moeda.</p><p>O passo seguinte veio com o Estado centralizando a cunha-</p><p>gem e pesagem do metal para efeito da produção de moeda, mo-</p><p>mento em que aparece a moeda metálica efetiva, de circulação</p><p>única, aceitação obrigatória e nacional. Com isso, paradoxalmente,</p><p>volta o problema do valor da moeda em outros termos, já que ago-</p><p>ra o Estado monopoliza a emissão da moeda metálica e conforme</p><p>Smith (1985, 60-61):</p><p>“..., em todos países do mundo – (...) – a avareza e</p><p>injustiça dos príncipes e dos Estados soberanos,</p><p>abusando da confiança de seus súditos, foram</p><p>diminuindo gradualmente a quantidade real de</p><p>metal que originalmente continham as moedas.</p><p>(...) e a libra e o pêni franceses, apenas 1/66 de</p><p>seu valor original. Aparentemente, mediante es-</p><p>sas operações, os príncipes e os Estados sobera-</p><p>nos foram capazes de pagar suas dívidas e cum-</p><p>prir seus compromissos com uma quantidade de</p><p>prata menor do que teria sido necessária em caso</p><p>de não alterarem o valor das moedas; digo ape-</p><p>nas aparentemente, pois seus credores foram re-</p><p>almente fraudados de uma parte do que lhes era</p><p>realmente devido.”</p><p>Alexandre Lyra Martins | 76</p><p>Sumário</p><p>SURGIMENTO E EVOLUÇÃO DA MOEDA:</p><p>ESCAMBO – MERCADORIAS MOEDA – METAL – MOEDA METÁLICA</p><p>Como liberal que é, Smith enfatiza o abuso dos gestores do</p><p>Estados, desviando o cumprimento de suas funções, ainda que</p><p>originalmente esse procedimento fosse usado por particulares</p><p>diversos, mas agora, com a circulação forçada da moeda nacional o</p><p>problema ganha dimensão maior. A injeção de ligas metálicas de</p><p>valor inferior na moeda fez aumentar artificialmente a quantidade</p><p>de moeda disponível, mas também gerou perda de valor perante</p><p>as demais mercadorias, ocorrendo aumento no nível de preços56.</p><p>Nessa época a moeda só era concebida com seu valor efeti-</p><p>vo, e não como símbolo de valor, como são as moedas modernas,</p><p>desguarnecidas da maior parte de seu lastro, mas mantido seu</p><p>valor original, ainda que simbolicamente, em relação às demais</p><p>mercadorias, que é condição crucial para manter sua função de</p><p>referência de valor e, consequentemente, sua sustentação como</p><p>moeda.</p><p>Smith volta a discutir as variações de valor da moeda no</p><p>capítulo 5, mas agora em termos reais. Se o metal foi a melhor</p><p>mercadoria para exercer a função original de meio de troca em</p><p>praticamente todas economias, por outro lado ele traz um incon-</p><p>veniente que diz respeito à segunda função que a moeda ganha; a</p><p>de referência ou padrão de valor.</p><p>O metal detinha as propriedades adequadas para facilitar e</p><p>resistir por muitas trocas, mas não tinha a estabilidade de valor</p><p>adequada devido à dependência de reservas, instáveis, que de-</p><p>56 Trata-se da possibilidade de inflação por excesso de moeda, artificial no caso,</p><p>por meio da mudança nas proporções de troca dessa com as mercadorias pro-</p><p>duzidas</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 77</p><p>Sumário</p><p>mandavam quantidade de trabalho maior ou menor de acordo</p><p>com a dificuldade de extração do metal. Considerando as demais</p><p>mercadorias com valores estáveis, se escasseasse a quantidade de</p><p>metal disponível em relação ao montante produzido das demais</p><p>mercadorias, seu valor começaria a aumentar relativamente a es-</p><p>sas, e, ao contrário, se fosse descoberta uma nova mina, seu valor</p><p>cairia frente às demais mercadorias.</p><p>Existiriam mercadorias que poderiam cumprir melhor a</p><p>função de padrão de valor, como o trigo, um cereal de grande pro-</p><p>dução sistematizada em alguns países, mas mesmo esse podia so-</p><p>frer variações de valor com intempéries climáticas, de maneira</p><p>que Smith conclui que nenhuma mercadoria é tão boa para essa</p><p>finalidade quanto a própria força de trabalho, pois seu preço, o</p><p>salário, é dado pelo valor de subsistência do trabalhador, que não</p><p>depende de um grupo fixo de mercadorias e sim de várias merca-</p><p>dorias que podem ser substituídas caso haja encarecimento locali-</p><p>zado de alguma, seja na área da alimentação, do vestuário ou da</p><p>habitação.</p><p>Smith sempre considera necessário que a moeda, como</p><p>qualquer outra mercadoria, tenha seu valor dado pelo custo de</p><p>produção, de extração e processamento do metal, e registra os</p><p>casos em que se afastou disso, quando agentes privados ou públi-</p><p>cos misturaram metais menos nobres à moeda, como problemas</p><p>econômicos a serem evitados. Isso vai voltar a acontecer e se tor-</p><p>nar procedimento padrão entre os governos, num processo con-</p><p>turbado ao longo da história até a perda definitiva do lastro metá-</p><p>lico da moeda apenas na metade do século XX, com Keynes sendo</p><p>figura proeminente em Bretton Woods. Esse ponto de sua concep-</p><p>ção do valor e do valor da moeda vai gerar críticas posteriores,</p><p>inclusive por Ricardo57.</p><p>57 Ver o capítulo 1 de seus ‘Princípios de economia política e tributação’ (Ricar-</p><p>do, 1982)</p><p>Alexandre Lyra Martins | 78</p><p>Sumário</p><p>2.4.3. A teoria do valor</p><p>A discussão em torno do valor real das mercadorias e em</p><p>particular da mercadoria escolhida como meio de troca é a ponte</p><p>para a apresentação de sua teoria do valor, que fala da coexistên-</p><p>cia de dois valores nas mercadorias, justamente porque ela é algo</p><p>produzido para o mercado: um valor de uso, que diz do valor ori-</p><p>ginal das mercadorias (sua razão de ser, que é atender a alguma</p><p>necessidade humana) e o valor de troca, o valor pelo qual elas são</p><p>trocadas (que Smith entende ser dado pela quantidade de outras</p><p>mercadorias que o valor de sua mercadoria pode adquirir). Smith</p><p>já demonstrava interesse pela dualidade das coisas na TSM, e aqui</p><p>retoma algo que os gregos já haviam esboçado, mas avança mais</p><p>na teorização do duplo valor.</p><p>Antes de mais nada, o economista britânico ora estudado</p><p>expande a noção de trabalho produtivo (aquele que gera valor)</p><p>com sua concepção de valor, agregando a esse o trabalho industri-</p><p>al sem excluir o que propunham as doutrinas anteriores dos mer-</p><p>cantilistas e dos fisiocratas.</p><p>Para Smith (1985, 307) todo capital</p><p>aplicado na produção de produtos industriais, no transporte, na</p><p>distribuição e na agricultura gera valor além daquele que transfe-</p><p>re ao produto final devido a seus custos, diferentemente “do tra-</p><p>balho de algumas categorias sociais mais respeitáveis, analoga-</p><p>mente aos criados domésticos, (...). O soberano, por exemplo, com</p><p>todos oficiais de justiça e de guerra..., todo exército e marinha, são</p><p>trabalhadores improdutivos.” (Smith, 1985, 285-286).</p><p>Não há a contestação da utilidade de qualquer trabalho rea-</p><p>lizado, apenas de sua capacidade de gerar valor adicional em rela-</p><p>ção ao custo inicial que representa. No entendimento smithiano,</p><p>os setores primário e secundário geram valor, mas no terciário, só</p><p>a parte referente à circulação das mercadorias é que gera valor</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 79</p><p>Sumário</p><p>por estar dentro da cadeia produtiva do mercado, fazendo chegar</p><p>as mercadorias onde elas devem e podem chegar.</p><p>Esclarecida a questão da geração de valor, a dualidade de</p><p>valor das mercadorias pode ser mais detalhada. O valor de uso é o</p><p>valor que uma mercadoria tem em razão de sua utilidade, sua ca-</p><p>pacidade de satisfazer a alguma necessidade humana, e isto diz</p><p>respeito diretamente às propriedades do corpo da mercadoria, de</p><p>seu aspecto físico, pois esse confere certas qualidades à mercado-</p><p>ria que permitem-na ser usada para um certo fim.</p><p>Se quero acender uma vela, não será um poste, um telefone</p><p>ou um sofá que atenderá a essa finalidade; só um fósforo ou um</p><p>isqueiro resolverá o problema de melhor maneira possível. Se</p><p>quero me deslocar para outra cidade, não adianta recorrer a um</p><p>cortador de unha, a um cabide ou a uma impressora, tenho que me</p><p>servir de um veículo para tal (seja particular, de aluguel ou coleti-</p><p>vo). Esse é o valor original que um produto qualquer tem por ser</p><p>destinado ao consumo, seja do próprio produtor ou de outra outra</p><p>pessoa, e que se mantém quando o produto passa a ser mercado-</p><p>ria (produzido para venda), só que agora vai atender não a seu</p><p>produtor e sim a terceiros.</p><p>VALOR DE USO</p><p>DUPLO VALOR DAS MERCADORIAS</p><p>VALOR DE TROCA</p><p>O valor de troca, por sua vez, diz respeito à capacidade da</p><p>mercadoria ser trocada, à sua propriedade de intercâmbio numa</p><p>sociedade mercantil, e para isso, importa seu valor, independente</p><p>de seu formato físico. Importa apenas seu valor quantitativo, esti-</p><p>pulado em uma referência de valor, seja ela trabalho, dinheiro ou</p><p>qualquer outra convencionada entre partes que estejam efetuan-</p><p>do uma transação legal num certo lugar e tempo.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 80</p><p>Sumário</p><p>Para Smith, no entanto, independente da referência de va-</p><p>lor, o que permite a troca das mercadorias é o que há de comum</p><p>entre elas: o trabalho. Desde que as pessoas começaram a realizar</p><p>trocas existe o valor de troca, primeiro expresso diretamente em</p><p>horas de trabalho no escambo, depois numa mercadoria-moeda,</p><p>na sequência em metal e, por fim, em dinheiro.</p><p>As trocas com dinheiro encobrem a origem do processo, a</p><p>base das trocas, que é o trabalho. As quantidades de trabalho ne-</p><p>cessárias para produzir mercadorias são comparadas para se che-</p><p>gar a um termo de troca, abstraindo as particularidades de cada</p><p>processo de trabalho, que conferem a forma final à mercadoria,</p><p>mas considerando a dificuldade maior ou menor de cada processo</p><p>produtivo.</p><p>O valor de troca é medido diretamente pela quantidade de</p><p>mercadorias que uma mercadoria pode comprar em razão da</p><p>quantidade de trabalho que tem, o que é dado (indiretamente)</p><p>pela quantidade de dinheiro que se dispõe. O dinheiro de papel ou</p><p>metálico sem lastro pode não conter efetivamente o trabalho cor-</p><p>respondente a seu valor, mas representa, simbolicamente, esse</p><p>conteúdo do valor. Um capitalista produz mercadorias e com a</p><p>venda delas compra vários insumos novamente, ganha um lucro e</p><p>compra outras mercadorias para sua vida pessoal, um trabalha-</p><p>dor, por sua vez, vende sua força de trabalho para comprar as</p><p>mercadorias que necessita para sua subsistência.</p><p>A teoria do valor é complementada com a dualidade dos</p><p>trabalhos, que o autor coloca com menor destaque. O valor de uso</p><p>é relacionado ao ‘trabalho contido’ nas mercadorias, aquele traba-</p><p>lho específico, feito com máquinas e equipamentos A, B e C opera-</p><p>das de uma maneira adequada por trabalhadores X e Y. Cada pro-</p><p>cesso de trabalho específico gera uma mercadoria corresponden-</p><p>te: de uma linha de produção de alfinetes não se espera como re-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 81</p><p>Sumário</p><p>sultado uma raquete de tênis, assim como de uma marcenaria não</p><p>se espera sabão em pó como produto final.</p><p>A produção é destinada à venda na economia de mercado,</p><p>mas para ser vendido o produto deve atender a algum desejo de</p><p>consumo, daí porque o valor de uso é ponto de partida de qual-</p><p>quer atividade produtiva, pois se produz para consumir. No mer-</p><p>cado, o trabalho contido e seu respectivo valor de uso passam pelo</p><p>crivo da venda, por meio da socialização dos trabalhos que ocorre</p><p>nesse momento, e aí entra o ‘trabalho comandado’:</p><p>“Sua fortuna é maior ou menor, exatamente na</p><p>mesma proporção da extensão desse poder, ou</p><p>seja, de acordo com a quantidade de trabalho</p><p>alheio ou – o que é a mesma coisa – do produto</p><p>do trabalho alheio que esse poder lhe dá condi-</p><p>ções de comprar ou comandar.”</p><p>(Smith, 1985, 64)</p><p>VALOR DE USO TRABALHO CONTIDO</p><p>VALOR DE TROCA TRABALHO COMANDADO</p><p>O trabalho contido pode ser visualizado no dia a dia, nas</p><p>mais diversas unidades produtivas e seus respectivos processos</p><p>de trabalho, pois ele é sua forma concreta, aquela que se vê, basta</p><p>uma visita a alguma fábrica, fazenda ou marcenaria para observar</p><p>sua natureza. Já o trabalho comandado não corresponde aos pro-</p><p>cessos de trabalho em sua forma, mas sim em seu conteúdo últi-</p><p>mo, a capacidade de produzir algo, pois independente do que seja,</p><p>resulta num valor monetário ao final do processo.</p><p>Desde as primeiras trocas, os produtos são socializados pe-</p><p>la comparação entre os trabalhos realizados, quando cada parte</p><p>busca saber quanto seu trabalho vale em termos do trabalho do</p><p>outro, se seu produto precisa de mais ou menos horas para ser</p><p>Alexandre Lyra Martins | 82</p><p>Sumário</p><p>elaborado. Há um exercício de abstração no qual se busca alguma</p><p>equivalência apenas nos esforços físicos realizados para comparar</p><p>os valores das coisas produzidas e se chegar a um acordo quanto</p><p>ao valor delas.</p><p>Na sequência histórica, os termos de troca vão se consoli-</p><p>dando e só essa relação já basta para outros negócios serem reali-</p><p>zados, porque se quer trocar a mercadoria por moeda, então os</p><p>trabalhos passam a contar apenas abstratamente como valores</p><p>por tempo, gerando valores quantitativos a serem permutados.</p><p>Nesse processo “deve-se levar em conta também os graus diferen-</p><p>tes de dificuldade e de engenho empregados nos respectivos tra-</p><p>balhos” (Smith, 1985, 64).</p><p>A dificuldade para realização de atividades determina mai-</p><p>or remuneração para essas, há trabalhos que exigem maior quali-</p><p>ficação intelectual, maior treinamento e, portanto, seu valor por</p><p>hora deve ser relativamente maior que outro mais simples. No</p><p>momento da troca sabe-se que há trabalho específico e valor de</p><p>uso por trás, mas interessam apenas os preços das mercadorias.</p><p>A escassez determina a necessidade, maior ou menor, de</p><p>trabalho para obtenção do produto, e isso explica o paradoxo do</p><p>valor colocado pelo próprio autor, de que coisas com pouca ou</p><p>restrita utilidade (como o diamante) possam ter alto valor, en-</p><p>quanto coisas de elevada utilidade (como a água) possam ter valor</p><p>baixo: a relativa escassez de algum recurso natural implica em um</p><p>grau de esforço necessário para sua colocação no mercado e a</p><p>existência de uma demanda pra ele reconhece os custos da extra-</p><p>ção ou</p><p>produção, justificando a oferta.</p><p>Em atividades que exigem trabalhadores qualificados, por</p><p>sua vez, é pago um diferencial de remuneração proporcional à</p><p>qualificação, ajustada no mercado. Se uma empresa emprega tra-</p><p>balhadores reconhecidos no mercado com uma qualificação que</p><p>exige tempo e conhecimentos específicos em relação à qualifica-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 83</p><p>Sumário</p><p>ção mínima no país, pode pagar, por exemplo, o dobro do salário</p><p>base (mínimo) pago na economia.</p><p>É possível vislumbrar o conceito de trabalho comandado na</p><p>atualidade por meio de um tipo de negócio comum em muitos lu-</p><p>gares: o self-service. Num restaurante desse tipo, o cliente é rece-</p><p>bido com uma comanda, que é preenchida após ter se servido com</p><p>os alimentos que prefere dentre os disponíveis no bufê, quando o</p><p>prato é pesado. Nesse ínterim, o cliente comandou uma certa</p><p>quantidade de trabalho através das escolhas de seus alimentos, ou</p><p>seja, trocou seu trabalho, que gerou o dinheiro com o qual vai pa-</p><p>gar a conta, pelo trabalho das pessoas que produziram aqueles</p><p>alimentos, e mais especificamente, por aquela quantidade de ali-</p><p>mento que se serviu. É isso que Smith diz que estamos fazendo a</p><p>todo tempo numa economia mercantil: trocando remunerações de</p><p>fatores que são expressas em unidades monetárias, para obter</p><p>valores de uso diversos, seja para consumo final ou para servir de</p><p>matéria-prima.</p><p>2.4.4. Preços e remunerações dos fatores</p><p>Retomando a discussão em torno do valor real das merca-</p><p>dorias, Smith conclui que o trabalho é a melhor medida para tal,</p><p>sendo, portanto, a referência natural de valor, mas como o metal</p><p>foi a mercadoria escolhida para a função inicial de intermediário</p><p>de troca em razão de suas propriedades, acabou acumulando</p><p>também a função de referência geral de valor, mesmo sendo sus-</p><p>ceptível a variações de valor indesejadas. A partir daí ele cria o</p><p>conceito de preço real e preço nominal das mercadorias para se-</p><p>parar o fundamento da geração objetiva de valor, daquilo que po-</p><p>de embaralhar a compreensão do problema: a referência monetá-</p><p>ria de valor.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 84</p><p>Sumário</p><p>O Preço real corresponde ao valor real das mercadorias,</p><p>dado pelo esforço de trabalho despendido para se adquirir mer-</p><p>cadorias, o trabalho comandado, e o preço nominal corresponde</p><p>ao valor de uma mercadoria espelhado na moeda. No contexto</p><p>histórico do século XVIII, só se concebia o valor do dinheiro em</p><p>termos de seu custo de produção (como uma mercadoria qual-</p><p>quer), e Smith constatou que seu valor podia variar com descober-</p><p>tas de minas ou, pior, devido à interferência estatal de má fé no</p><p>sentido de diminuir a quantidade de metal nobre nas moedas ofi-</p><p>cias:</p><p>“Eis porque a quantidade de metal contido nas</p><p>moedas (...) tem diminuído continuamente (...).</p><p>Tais variações, portanto, tendem quase sempre a</p><p>reduzir o valor de uma renda deixada em dinhei-</p><p>ro”. (Smith, 1985, 66).</p><p>Variações de valor da moeda podem não refletir variações</p><p>reais de valor, que só são dadas por variações no custo do traba-</p><p>lho para sua produção.</p><p>PREÇO REAL X PREÇO NOMINAL</p><p>Smith remete sempre às forças naturais o surgimento e</p><p>desenvolvimento do mercado, e nessa linha de raciocínio o capítu-</p><p>lo 6 é iniciado, lembrando que o trabalho é o determinante essen-</p><p>cial do valor das mercadorias, mas já com a ressalva de que o pro-</p><p>cesso de evolução natural do comércio que desembocou na pro-</p><p>dução industrial, passando pela combinação de fatores que permi-</p><p>tiram esse afloramento, acabou por produzir novos determinan-</p><p>tes, pois esses também são partes intrínsecas e necessárias da so-</p><p>ciedade mercantil desenvolvida, daí porque o mercado foi criando</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 85</p><p>Sumário</p><p>naturalmente as remunerações desses fatores, que se tornaram</p><p>também determinantes do preço das mercadorias, afinal, sem a</p><p>terra e o capital não há produção em larga escala:</p><p>“No estágio antigo e primitivo que precede ao</p><p>acúmulo de patrimônio ou capital e à apropriação</p><p>da terra, a proporção entre as quantidades de</p><p>trabalho necessárias para adquirir os diversos</p><p>objetos parece ser a única circunstância capaz de</p><p>fornecer alguma norma ou padrão para trocar es-</p><p>ses objetos uns pelos outros” (Smith, 1985, 77).</p><p>As considerações feitas a seguir no capítulo supracitado</p><p>são fundamentais para integralizar a explicação do preço das mer-</p><p>cadorias, pois Smith vinha da afirmação e reafirmação de sua teo-</p><p>ria do valor trabalho, em que apenas o trabalho é mencionado</p><p>como determinante do valor, mas neste ponto ele complementa a</p><p>teorização, invocando o processo histórico da apropriação privada</p><p>dos recursos naturais e equipamentos para a formação das mo-</p><p>dernas estruturas produtivas do mercado.</p><p>Em algum momento da história, a apropriação de terras e</p><p>seus recursos naturais começou a se generalizar e isso propiciou o</p><p>início de um processo de acumulação primitiva de capital, que se</p><p>expandiu a ponto de surgirem as grandes indústrias. O mercado só</p><p>decola como atividade econômica porque há um retorno monetá-</p><p>rio para a execução das atividades, comercial primeiro e industrial</p><p>depois, que, por sua vez, dependeram da apropriação das terras e</p><p>da produção, trazendo as respectivas remunerações.</p><p>Aí está justificada a legitimidade das remunerações dos fa-</p><p>tores terra (renda da terra) e capital (lucro), além do fator funda-</p><p>mental; o trabalho (salário), pois cada fator cumpre um papel es-</p><p>pecífico dentro do mercado como um todo, e só com esses elemen-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 86</p><p>Sumário</p><p>tos combinados se consegue atingir a produção em massa e suas</p><p>benesses.</p><p>Smith defende mais enfaticamente a função do empresário</p><p>e sua consequente remuneração, já que se trata de um tipo de tra-</p><p>balho especial, que envolve o domínio de uma série de conheci-</p><p>mentos específicos e da pré-disposição ao risco. O empreendedor</p><p>tem de se submeter a investidas incertas num mercado livre e</p><p>concorrencial, que podem naufragar se a demanda não simpatizar</p><p>com a mercadoria oferecida ou com o preço necessário para ela</p><p>ser produzida e colocada no mercado.</p><p>O trabalho do empresário vai resultar na mobilização de</p><p>um capital, que vai ter sua remuneração regulada pelo volume do</p><p>capital e pelo crescimento econômico. Individualmente, cada ne-</p><p>gócio que incorpore quantidade adicional de capital investido re-</p><p>quer sua remuneração por esse acréscimo de capital, entretanto,</p><p>do ponto de vista do mercado, Smith afirma que acréscimos de</p><p>capital implicam em mais concorrência e, consequentemente,</p><p>maior produção e menor lucro, pois a concorrência é a força vital</p><p>no controle da taxa de lucro.</p><p>Processos de crescimento econômico geram mais concor-</p><p>rência e inversamente, quanto menos crescimento, por causa do</p><p>menor volume de capital disputando o mercado; haverá mais lu-</p><p>cro (algo que Smith só vai detalhar no capítulo 9). Mais à frente</p><p>Marx não vai concordar nem com a intensificação da concorrência</p><p>com o crescimento, nem com a legitimação do valor gerado pelo</p><p>capital, mantendo o reconhecimento apenas ao trabalho como</p><p>fonte de geração de valor, procurando demonstrar a incongruên-</p><p>cia da tese de Smith com sua teoria da mais-valia.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 87</p><p>Sumário</p><p>FATORES DE PRODUÇÃO E SUA REMUNERAÇÃO:</p><p>TRABALHO → SALÁRIO</p><p>TERRA → RENDA DA TERRA</p><p>CAPITAL → LUCRO</p><p>No capítulo 7, por fim, Smith desce o nível de abstração a</p><p>um mínimo e mostra como se dá o funcionamento de uma econo-</p><p>mia de livre mercado, tendo como referência os conceitos e con-</p><p>cepções expostos nos capítulos anteriores. Para isso, são necessá-</p><p>rios mais dois conceitos fundamentais, colocados logo no início do</p><p>capítulo: preço natural e de mercado. O Preço natural, que é dado</p><p>pelo somatório das taxas médias de remuneração dos fatores em</p><p>uma economia</p><p>O clássico</p><p>Smith, Ricardo, Marx, possui o mérito de oferecer uma boa análise</p><p>dos pensadores, entretanto, padece de algumas críticas (como</p><p>coloca Carcanholo, 2012) e tem um viés marxista, o que é evitado</p><p>no presente material, em que o foco é a apresentação da contri-</p><p>buição de cada um, destacando seus méritos e insuficiências.</p><p>Por outro lado, e pelo mesmo motivo, se diverge da abor-</p><p>dagem de Feijó (2007), que opta por tomar o paradigma neoclás-</p><p>sico como referencial em sua interpretação. A escolha tomada</p><p>aqui reforça a unidade de concepções teóricas distintas, oriundas</p><p>de bases metodológicas e objetivos diferentes, cada qual com suas</p><p>virtudes e limitações. A ciência admite distintos métodos de estu-</p><p>do, que devem ser avaliados para ter uma noção de seu alcance,</p><p>mas a crítica fundamental às teorias é a relativa ao desenvolvi-</p><p>mento do próprio escopo teórico, verificando limitações na cons-</p><p>trução teórica relacionadas à aplicação de sua própria base meto-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 11</p><p>Sumário</p><p>dológica, sem o uso de outro parâmetro metodológico para com-</p><p>paração.</p><p>Os métodos em si podem ser criticados, mas, em princípio,</p><p>zelam por uma pretensa neutralidade científica que nas ciências</p><p>humanas, em particular, nunca é plena. Dos métodos deve-se exi-</p><p>gir coerência, ser mais ou menos complexo pode dificultar ou faci-</p><p>litar o desenvolvimento da análise que segue, seu alcance e seu</p><p>entendimento, mas não afeta sua validade. Sabe-se que a neutrali-</p><p>dade da ciência é um ideal que deve ser perseguido, ainda que</p><p>nunca se consiga atingir integralmente, entretanto, este tem sido</p><p>um caminho pouco trilhado, devido às paixões que as teorias des-</p><p>pertam. Evidentemente este trabalho não está isento de críticas,</p><p>mas aqui não se incorrerá nesta falha.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 12</p><p>Sumário</p><p>1 – INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS</p><p>TEORIAS ECONÔMICAS</p><p>1.1. Economia e ciência econômica</p><p>Economia pode significar a própria atividade produtiva,</p><p>como também pode remeter ao uso racional dos recursos ou ao</p><p>estudo dos sistemas produtivos. Quando alguém fala em economia</p><p>brasileira, em economia agrícola ou industrial, pode estar se refe-</p><p>rindo à respectiva atividade produtiva (do Brasil, agrícola ou in-</p><p>dustrial, etc), ou ao estudo delas. ‘Fazer economia’ pode significar</p><p>diminuir o uso de algo, poupar, ou estudar num curso de Ciências</p><p>econômicas. Se alguém quiser, porém, falar do estudo de qualquer</p><p>aspecto da produção ou comercialização, social ou individual, que</p><p>tenha por finalidade a obtenção da sobrevivência ou de rendimen-</p><p>to, é melhor chamar a disciplina tal como é estudada hoje nas aca-</p><p>demias, por seu nome mais formal: ciência econômica1.</p><p>Vale destacar que os significados estão relacionados. O es-</p><p>tudo da atividade produtiva só faz sentido na medida em que o</p><p>homem precisa dessa investigação e isso aconteceu num primeiro</p><p>momento, justamente por causa da relativa escassez dos recursos</p><p>disponíveis. Se todos recursos que o homem precisasse para so-</p><p>breviver estivessem à disposição de forma ilimitada, não haveria</p><p>necessidade de se debruçar sobre a economia, pois não haveria</p><p>problema o econômico original.</p><p>1 Considerando um embasamento metodológico científico, como veremos adi-</p><p>ante.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 13</p><p>Sumário</p><p>As primeiras décadas do século XXI, no entanto, nos mos-</p><p>tram abundância e pobreza paralelamente, de maneira que, se o</p><p>motivo inicial da investigação econômica foi uma escassez em</p><p>termos absolutos, hoje temos escassez relativa, apontando para o</p><p>problema da concentração da riqueza. Por outro lado, recursos</p><p>relativamente abundantes como a água potável e madeira, que</p><p>eram e ainda podem estar relativamente disponíveis, começam a</p><p>escassear devido à poluição e exploração excessiva, exigindo revi-</p><p>são de parâmetros produtivos e científicos. A economia tem intro-</p><p>duzido novos conceitos e áreas de estudo para contemplar essas</p><p>mudanças, passando a se dedicar mais a questões relativas à dis-</p><p>tribuição e à sustentabilidade.</p><p>A definição da economia como ciência que estuda a melhor</p><p>alocação dos recursos escassos para produzir mais e mais eficien-</p><p>temente não é a mais abrangente, pois não contempla aspectos</p><p>relacionados à produção e sua distribuição, tal como já colocava</p><p>Mill (1974, 302) ao definir a economia política: “A ciência que tra-</p><p>ça as leis daqueles fenômenos da sociedade que se originam das</p><p>operações combinadas da humanidade para a produção da rique-</p><p>za...”. Alternativamente e no mesmo sentido, Sandroni (1985, 127)</p><p>assevera que a economia é a “ciência que estuda a atividade pro-</p><p>dutiva”, que gera diretamente bens e serviços ou renda (que pode</p><p>ser acumulada). A atividade comercial entra aí como engrenagem</p><p>final do processo, mas não se considera as atividades de cunho</p><p>exclusivamente diletante, que buscam apenas a realização própria</p><p>(que eventualmente podem vir a ter caráter econômico posteri-</p><p>ormente).</p><p>ATIVIDADE PRODUTIVA</p><p>ECONOMIA</p><p>CIÊNCIA ECONÔMICA</p><p>Alexandre Lyra Martins | 14</p><p>Sumário</p><p>A economia enquanto atividade produtiva, portanto, é o ob-</p><p>jeto de estudo da ciência econômica e é esse campo de investiga-</p><p>ção que a diferencia de outras áreas. O desenvolvimento das pos-</p><p>sibilidades produtivas tem alargado suas fronteiras e sua comple-</p><p>xidade, expandindo até a própria capacidade de financiamento do</p><p>sistema em si.</p><p>A preocupação da ciência econômica é pensar todas dimen-</p><p>sões do ato de produzir e suas consequências, das individuais às</p><p>coletivas, por isso se faz uma analogia com a profissão do médico:</p><p>quando o médico erra, pode matar uma pessoa, mas se o econo-</p><p>mista erra, pode matar muitos. A responsabilidade social do eco-</p><p>nomista muitas vezes é elevada e pede, igualmente, uma postura</p><p>ética igualmente elevada do profissional.</p><p>1.2. A evolução do pensamento econômico</p><p>Como toda ciência, a economia vem formando um arcabou-</p><p>ço de conhecimento ao longo de sua história. A curiosidade sobre</p><p>as condições materiais de sobrevivência do homem tem a mesma</p><p>idade da existência humana e evolui com ela, passando por formu-</p><p>lações de cunho filosófico até chegar às construções teóricas de</p><p>caráter científico. As primeiras observações filosóficas estão inse-</p><p>ridas num contexto histórico anterior ao iluminismo e ao positi-</p><p>vismo (entre 400 e 300 A.C.). A origem da palavra economia data</p><p>da antiguidade grega2, quando Xenofontes explica a oikonomos</p><p>como as regras da casa (Oikos significa casa e nomos é norma).</p><p>Esta primeira acepção do termo economia remete à eco-</p><p>nomia doméstica, que trata da administração do orçamento fami-</p><p>liar, condizente com a simplicidade da atividade produtiva de en-</p><p>tão, porém Platão escreveu na sequência A República, em que dis-</p><p>2 Conforme Sandroni (1985, 127)</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 15</p><p>Sumário</p><p>serta sobre a sociedade como unidade de um grupo, e aqui o signi-</p><p>ficado original do título, a coisa pública (res pública) sintetiza o</p><p>espírito coletivista que prevalecia, e nele a preocupação com a</p><p>administração pública da polis em geral é destacada, sendo apre-</p><p>sentada como ‘economia política’.</p><p>A embrionária contribuição grega se mantém como refe-</p><p>rência básica de economia até o século XV, quando ocorreu a in-</p><p>tensificação do comércio mundial graças à descoberta das novas</p><p>rotas marítimas pelos portugueses e espanhóis, revelando as úl-</p><p>timas grandes áreas ainda desconhecidas do planeta. Os Mercanti-</p><p>listas defendiam o comércio como principal fonte geradora de ri-</p><p>queza e acreditavam que quanto mais um país se conseguisse</p><p>vender mercadorias, mais enriqueceria pelo acúmulo de moeda</p><p>daí decorrente.</p><p>Na concepção mercantilista, predominante entre os séculos</p><p>XV e XVII, o sucesso econômico de um país necessariamente re-</p><p>presentaria o fracasso de outro, pois o superávit na balança co-</p><p>mercial</p><p>num certo momento histórico, seria o preço de</p><p>oferta, que é determinado pelas condições concretas da produção</p><p>em cada lugar.</p><p>Cada país tem seus mercados mais ou menos desenvolvi-</p><p>dos, a mão de obra mais ou menos disponível e qualificada58, re-</p><p>cursos naturais à disposição, bem como o capital mais ou menos</p><p>avançado tecnicamente em relação ao processo de acumulação, e</p><p>tudo isso vai ser importante na determinação de suas taxas mé-</p><p>dias de remuneração, sendo que o mercado tende sempre a baixar</p><p>a remuneração a um mínimo suficiente para a reprodução do fator</p><p>pela concorrência existente. O parâmetro das remunerações é a</p><p>média geral do mercado em questão, porque o mercado precisa de</p><p>muitos fatores e não pode empregar apenas os mais produtivos,</p><p>mas adiante o preço médio estará sempre apontando para baixo</p><p>porque o objetivo dos ofertantes é alcançar os mais produtivos, se</p><p>esforçando em ser mais competitivos para vender mais.</p><p>58 Como Ricardo, ele enfatiza que grandes quantidades de oferta de mão de</p><p>obra normalmente estão associadas a baixa qualificação e necessariamente</p><p>baixos salários.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 88</p><p>Sumário</p><p>Do outro lado há o preço de mercado, o preço em que as</p><p>mercadorias são vendidas de fato, o que significa que o preço na-</p><p>tural da oferta tem de passar pelo crivo da demanda, quando pode</p><p>ser pressionado para cima ou para baixo pelo interesse maior ou</p><p>menor dos consumidores. Smith faz uma divisão simples entre</p><p>demanda absoluta, composta por todas pessoas que desejam um</p><p>bem, e demanda efetiva, composta por todas pessoas que querem</p><p>e efetivamente podem pagar pelo bem, para lembrar que só essa</p><p>última é considerada nos mercados.</p><p>O preço natural é dado por condicionantes objetivos, assim,</p><p>preços de mercado inferiores a esse determinam insustentabili-</p><p>dade de condições de produção, suportáveis apenas no curto pra-</p><p>zo. A depender do interesse da demanda, pode haver um preço de</p><p>equilíbrio maior ou menor que o preço natural, mas apenas tem-</p><p>porariamente, pois a tendência de médio prazo é o preço de equi-</p><p>líbrio gravitar muito proximamente ao preço natural (Smith,</p><p>1985, 87), porque o mercado tem mecanismos de ajuste, se conso-</p><p>lidando apenas os mercados em que a demanda está disposta a</p><p>pagar o preço de custo/natural (econômico) das mercadorias. A</p><p>ação dos mecanismos auto reguladores do mercado interfere dire-</p><p>tamente nas taxas médias de remuneração dos fatores.</p><p>Uma demanda excessiva por uma mercadoria vai determi-</p><p>nar um preço de equilíbrio inicial maior que o preço natural, mas</p><p>vai despertar a cobiça de outros agentes que vão querer entrar</p><p>nesse mercado para ganhar o lucro extra, acima da taxa média,</p><p>que os capitais desse setor devem estar abocanhando, fazendo a</p><p>produção aumentar e o preço cair até o preço natural no médio-</p><p>prazo.</p><p>Também os trabalhadores podem ter suas remunerações</p><p>afetadas por variações do mercado. Smith (1985, 86) exemplifica</p><p>com o caso de um luto público, situação que pressiona para cima a</p><p>remuneração dos alfaiates, mas não tem efeito nos salários dos</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 89</p><p>Sumário</p><p>tecelões. Ao mesmo tempo, comerciantes que tenham tecido preto</p><p>vão poder faturar mais, circunstancialmente, enquanto os que tem</p><p>mais roupas coloridas terão lucro reduzido.</p><p>Preços de mercado abaixo do preço natural caracterizam</p><p>uma situação de oferta relativamente excessiva frente à demanda</p><p>efetiva, que implica na formação de estoques e diminuição do</p><p>mercado pela saída de alguns ofertantes do negócio, desestimula-</p><p>dos pela taxa média de lucro baixa ou inexistente. A saída de al-</p><p>guns concorrentes faz a quantidade ofertada diminuir e o preço de</p><p>mercado subir e se igualar ao preço natural, que terá consumido-</p><p>res que estejam dispostos a pagá-lo. O preço de mercado só será</p><p>mantido se ocorrer alguma melhora técnica ou algo que reduza a</p><p>remuneração de algum fator; reduzindo o preço natural.</p><p>Produtores não podem resistir muito tempo num mercado</p><p>sem um nível de demanda adequada para suas mercadorias, uma</p><p>vez que isso vai diminuir a remuneração de algum(ns) fator(es)</p><p>abaixo da média do mercado59. Mercados novos tendem natural-</p><p>mente a mais ajustes, mas uma hora os mecanismos de mercado</p><p>equalizam e conferem uma estabilidade fluida, que pode ser alte-</p><p>rada por mudanças nos gostos dos consumidores ou por aumento</p><p>na produtividade de algum fator, fazendo variar o preço natural</p><p>ou de mercado, que se reajustam mais à frente.</p><p>Em suas considerações sobre as flutuações em torno do</p><p>equilíbrio do mercado, Smith toma a liberdade no mercado como</p><p>um dado, e a sua realidade histórica se aproxima desse requisito</p><p>conceitual. Sabe-se que o mercado contemporâneo é regulamen-</p><p>tado em vários pontos, de maneira que o exemplo mais próximo</p><p>do mercado concorrencial smithiano é a feira livre.</p><p>Em relação à dinâmica dos mercados, podemos colocar</p><p>mais especificamente que após a crise de 1929, os salários em boa</p><p>59 De acordo com Smith (1985, 86), provavelmente lucros ou salários, já que a</p><p>renda da terra tende a ser mais estável.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 90</p><p>Sumário</p><p>parte do mundo passaram a ter uma certa rigidez à baixa. O mer-</p><p>cado foi limitado por regulamentações decorrentes de pressão</p><p>social por patamares mínimos de renda que possam proporcionar</p><p>a subsistência do trabalhador, significando que o capitalista não</p><p>dispõe mais da flexibilidade ampla que tinha antes nos salários</p><p>para usá-los como meio de ajuste a preços de mercado mais bai-</p><p>xos, tendo que buscar redução de preço de insumos e matérias-</p><p>primas ou reduzir lucro.</p><p>EQUILÍBRIO DE MERCADO SMITHIANO</p><p>PREÇO NATURAL = PREÇO DE MERCADO</p><p>Depois de explicar os movimentos básicos do mercado em</p><p>direção ao equilíbrio, Smith discorre por duas situações eventuais</p><p>que quebram esta regra: quando o preço de mercado fica acima do</p><p>preço natural, temporária ou definitivamente. A primeira situação</p><p>temporária é falta de informação. As imperfeições no fluxo de in-</p><p>formações, seja sobre a produção ou sobre o consumo, podem fa-</p><p>zer com que o preço pago pela mercadoria fique mais alto do que</p><p>deveria ser na medida em que potenciais ofertantes não tenham</p><p>conhecimento de uma oportunidade de lucro que eventualmente</p><p>poderia lhes interessar ou porque um consumidor não se infor-</p><p>mou plenamente sobre alternativas de oferta da mercadoria que</p><p>quer comprar, mas ambas devem ser circunstâncias passageiras</p><p>em uma economia de livre mercado.</p><p>A segunda possibilidade colocada por Smith para que os</p><p>preços de mercado fiquem provisoriamente acima dos preços na-</p><p>turais é o segredo de produção, que na época era apenas isso, mas</p><p>com o tempo a maior parte das sociedades institucionalizou como</p><p>direito de patentes. Smith (1985, 88) não fala de patentes especi-</p><p>ficamente, mas comenta acerca de regulamentos que restringem a</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 91</p><p>Sumário</p><p>quantidade de produtores como situações que sustentam preços</p><p>elevados, concluindo que “Tais elevações de preço de mercado</p><p>podem perdurar enquanto durarem os regulamentos que lhes de-</p><p>ram origem”, com a possibilidade de durar para sempre.</p><p>FATORES QUE DEIXAM REGULAMENTOS</p><p>O PREÇO DE MERCADO SEGREDOS INDUSTRIAIS</p><p>ACIMA DO NATURAL INFORMAÇÃO FALHA</p><p>Além da possibilidade de uma norma poder sustentar o</p><p>preço de mercado acima do preço natural indefinidamente, carac-</p><p>terizando uma condição monopolística, há mais uma circunstância</p><p>que justifica essa situação: a propriedade de recursos naturais</p><p>especiais. Para Smith, na maior parte das vezes, monopólios só</p><p>persistem amparados por regulamento oficial, pois o mercado</p><p>encontra formas de concorrência.</p><p>A condição da propriedade de recursos naturais exclusivos</p><p>tenderia a formar mais comumente oligopólios. São exemplos des-</p><p>sa última circunstância terras que devido a suas condições climá-</p><p>ticas</p><p>geram tipos muito específicos de vinho, ou algum outro pro-</p><p>duto, como o café Kopi Luwak, que precisa passar por um ciclo</p><p>particular em um certo tipo de floresta de características específi-</p><p>cas e a presença de uma espécie de animal para chegar à sua for-</p><p>ma final.</p><p>Se há consumidores que pagam por diferenciais especiais, o</p><p>preço de mercado continua acima do necessário para cobrir os</p><p>custos da produção por um período indefinido, mas a busca cons-</p><p>tante dos agentes por oportunidades pode encontrar alternativas</p><p>até nesses casos, contornando as imposições naturais com adapta-</p><p>ções e uso de avanços tecnológicos, tornando possível produção</p><p>de vinhos similares em regiões diferentes das tradicionais (como</p><p>Alexandre Lyra Martins | 92</p><p>Sumário</p><p>o vale de São Francisco) e a reprodução de todo ciclo produtivo do</p><p>café kopi luwak em alguns lugares como o Brasil60.</p><p>Nos capítulos 8, 9 e 10 Smith vai se dedicar a examinar</p><p>tendências da remuneração dos fatores, o que torna interessante a</p><p>comparação com as tendências estipuladas por Ricardo em sua</p><p>teoria da distribuição da renda. Para Smith, os trabalhadores estão</p><p>em desvantagem no longo prazo devido ao excesso de oferta, mas</p><p>o mercado providencia um salário para sobrevivência, e os outros</p><p>dois fatores tenderiam a ser remunerados pela menor taxa possí-</p><p>vel, mantida a ordem natural, a concorrência.</p><p>Do ponto de vista de Smith, o mercado tende a maximizar a</p><p>alocação dos fatores, gerando uma situação sustentável de produ-</p><p>ção de longo-prazo, com harmonia e abundância produtiva, no que</p><p>Ricardo é mais feliz em sua consideração acerca da destruição dos</p><p>recursos naturais no longo prazo. Sem dúvida há um otimismo</p><p>não podado por desmembramentos posteriores do capitalismo,</p><p>identificados por Ricardo, mas há em ambos uma subestimação</p><p>dos movimentos de concentração e centralização do capital, que</p><p>levou ao domínio do capital, produtivo e principalmente financei-</p><p>ro, e consequente aumento de suas remunerações, algo que só</p><p>Marx vai explorar.</p><p>2.5. Questionário síntese</p><p>FISIOCRATAS:</p><p>1- Quais são os principais fisiocratas?</p><p>60 No Espírito Santo se produz um café similar, envolvendo um pássaro na pro-</p><p>dução, ao invés da civeta (mamífero carnívoro) originalmente adotada nas ilhas</p><p>de Sumatra (ver ‘Café Jacu: o café exótico mais caro do Brasil!’ em <</p><p>https://reviewcafe.com.br/dicas-e-receitas/cafe-jacu/>).</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 93</p><p>Sumário</p><p>2- Qual o contexto econômico e político em que surgiu a fisiocra-</p><p>cia?</p><p>3 - O que é ordem natural para Quesnay?</p><p>4- O que é produto líquido?</p><p>5- O que são e quais são os adiantamentos propostos por Ques-</p><p>nay?</p><p>6- Quais são as categorias de preço de acordo com Quesnay?</p><p>7- Quais devem ser as funções dos agricultores na economia?</p><p>8- Quais devem ser as funções dos proprietários de terra?</p><p>9- Quais devem ser as funções do Estado na economia?</p><p>10- Qual é a concepção de valor dos fisiocratas?</p><p>11- Explique o quadro econômico.</p><p>SMITH:</p><p>1- Qual é a razão do crescimento econômico?</p><p>2- Quais são as circunstâncias que levam à divisão do trabalho?</p><p>3- Qual é o princípio da divisão do trabalho?</p><p>4- Quais as características de uma economia baseada no meio ur-</p><p>bano?</p><p>5- Quais as características de uma economia baseada no meio ru-</p><p>ral?</p><p>6- Como o setor externo pode afetar o crescimento econômico?</p><p>7- Explique a origem do dinheiro.</p><p>8- Porque algumas mercadorias se adequam melhor à função de</p><p>meio de troca?</p><p>9- O que diferencia a concepção de valor de Smith para seus ante-</p><p>cessores?</p><p>10- Quais são as diferenças do valor de troca para o valor de uso?</p><p>Alexandre Lyra Martins | 94</p><p>Sumário</p><p>11- Que trabalhos produzem os valores de uso e de troca? Expli-</p><p>que.</p><p>12- O que são: preço real e preço nominal?</p><p>13- Quais são os inconvenientes do dinheiro enquanto referência</p><p>de valor?</p><p>14- Qual é a melhor medida de valor?</p><p>15- O que são: preço natural e preço de mercado?</p><p>16- Como explicar o equilíbrio do mercado?</p><p>17- Explique a mão invisível.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 95</p><p>Sumário</p><p>3. AS CONTRIBUIÇÕES DE RICARDO</p><p>A ciência econômica inaugura nova fase com Ricardo. Após</p><p>a obra fundadora de Smith, expondo o funcionamento do mercado</p><p>e dissertando sobre as condições para seu desenvolvimento, surge</p><p>uma teoria de objetivo e método distintos, envolvendo alto nível</p><p>de abstração com premissas hipotéticas, que resultou em um pri-</p><p>meiro modelo teórico, que viria a ser referencial para as teoriza-</p><p>ções contemporâneas do mainstream econômico. Ricardo parte do</p><p>arcabouço inicial deixado por Smith, para construir outra teoria</p><p>que o leva a algumas conclusões diferentes. Mesmo com sua obra</p><p>tendo reconhecimento acadêmico posterior, acabou sofrendo crí-</p><p>ticas pertinentes e profundas, que são registradas aqui mais adi-</p><p>ante.</p><p>David Ricardo foi um financista inglês bem sucedido que</p><p>também gostava de acompanhar o debate acadêmico, e assim co-</p><p>meçou a dedicar-se cada vez mais à discussão das ideias econômi-</p><p>cas. É no seu terceiro livro, intitulado Princípios de economia polí-</p><p>tica e tributação, que suas teorias alcançam o ápice, lá estando</p><p>suas contribuições mais reconhecidas.</p><p>Aqui serão destacadas as três mais relevantes teorias ri-</p><p>cardianas: da ocupação da terra, da distribuição da renda e do</p><p>comércio internacional. Apesar da importância de suas concep-</p><p>ções, é interessante destacar a reconhecida inibição do aludido</p><p>autor para expor as suas ideias, sendo fundamental a intervenção</p><p>de seus amigos economistas mais próximos para que ele publicas-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 96</p><p>Sumário</p><p>se seus trabalhos, e entre esses, Mill é tido como o mais decisivo,</p><p>até pelos artigos elogiosos em relação aos trabalhos de Ricardo61.</p><p>3.1. Breve contexto histórico e algumas questões</p><p>metodológicas</p><p>No que diz respeito ao contexto histórico em que Ricardo</p><p>desenvolveu suas ideias, pode-se dizer que Ricardo esteve atento</p><p>às mudanças acontecidas ao longo dos 40 anos que se passaram</p><p>desde a publicação da obra fundadora da economia de Smith até a</p><p>publicação de seus Princípios de economia política e tributação</p><p>(1817). A proeminente economia de mercado inglesa continuava</p><p>principalmente têxtil, mas já tinha se expandido a um ponto em</p><p>que a produção rural local se mostrava insuficiente para abastecê-</p><p>la, e em decorrência disso, os preços dos produtos agrícolas come-</p><p>çaram a aumentar sistematicamente.</p><p>O poder político dos agricultores e uma concepção proteci-</p><p>onista dos parlamentares contribuiu decisivamente para a apro-</p><p>vação na câmara de leis (as ‘corn laws’) que instituíram tarifas</p><p>para os produtos agrícolas importados. Outro aspecto importante</p><p>que também contribuiu com o aumento dos preços nessa época é</p><p>ressaltado por Singer (in Ricardo, 1982, XIV):</p><p>“a partir de 1792 a Grã-Bretanha se viu envolvida</p><p>numa série quase contínua de guerras, nas quais</p><p>ela integrava diversas coligações dirigidas contra</p><p>a França revolucionária. (...) desempenhava não</p><p>só o papel de principal potência naval, mas tam-</p><p>bém o de financiadora de seus aliados... o que</p><p>acabou por suscitar problemas monetários.”</p><p>61 Como relata Sraffa na introdução a Ricardo (1982).</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 97</p><p>Sumário</p><p>Hugon, por sua vez, (1995,122) ressalta que</p><p>“para poder competir nos mercados exteriores,</p><p>necessário seria às indústrias britânicas reduzir o</p><p>preço de venda e, portanto, o custo de produção.</p><p>Ora, esse custo de produção dificilmente poderia</p><p>ser comprimido em virtude do elevado custo de</p><p>vida na Inglaterra.”</p><p>O cenário econômico no Reino Unido, portanto, já não era</p><p>tão favorável quanto nos anos iniciais da revolução industrial. A</p><p>indústria local enfrentava, de um lado, a alta dos preços agrícolas</p><p>e do custo de vida, que veio com a elevada migração e ocupação</p><p>dos grandes centros,</p><p>e de outro, enfrentava o surgimento e inten-</p><p>sificação da concorrência internacional na medida em que outros</p><p>países, em particular suas ex-colônias (principalmente os E.U.A.),</p><p>começavam a se industrializar.</p><p>Esse contexto histórico se reflete nas concepções ricardia-</p><p>nas, em especial na sua teoria da ocupação das terras, que vai ser</p><p>a base para a teoria da distribuição das rendas. Quando Smith dis-</p><p>cute no capítulo 3 da Riqueza das nações os fatores que fazem com</p><p>que uma economia de mercado cresça mais em alguns espaços do</p><p>que outros, ele coloca que qualquer lugar começa a ser ocupado</p><p>pelo litoral, basicamente porque essa área facilita a possibilidade</p><p>do comércio externo. Ricardo vai discordar dessa explicação, sim-</p><p>ples e bastante razoável, para propor uma outra teoria para a</p><p>ocupação da terra que vai ser o fundamento de sua concepção do</p><p>processo de crescimento econômico que leva à estagnação no lon-</p><p>go prazo.</p><p>Embora o momento histórico seja referencial para Ricardo,</p><p>há desprezo por ele, sendo a realidade explicada por hipóteses</p><p>atemporais e universais acerca da racionalidade humana, especi-</p><p>almente no campo econômico. Os dados do contexto histórico re-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 98</p><p>Sumário</p><p>cente são suas fontes de observação, mas a compreensão desses é</p><p>obtida por uma combinação de hipóteses articuladas que permi-</p><p>tem deduzir o desenrolar dos acontecimentos. O processo é ima-</p><p>ginado, não ilustrado como em Smith, e daí surge uma visão de</p><p>longo prazo negativa que subestima elementos históricos diver-</p><p>sos, humanos e técnicos, porém com o mérito de incorporar ao</p><p>modelo a possibilidade limítrofe da exaustão dos recursos natu-</p><p>rais.</p><p>O maior suporte metodológico ricardiano é a dedução hipo-</p><p>tética, que o leva a ser reconhecido como o pai da economia neo-</p><p>clássica. Nesse sentido, ele se distancia das evidências concretas,</p><p>pouco recorre à evolução das economias, e se a realidade não é</p><p>exatamente como a teoria coloca, seria por causa de sua comple-</p><p>xidade, mas sua essência corresponderia ao modelo abstrato</p><p>enunciado.</p><p>3.2. A crítica à teoria do valor e o processo de ocupação</p><p>das terras</p><p>O livro Princípios de economia política e tributação é inicia-</p><p>do com uma crítica à teoria do valor proposta por Smith, que é</p><p>exposta de forma destacada antes de entrar nas teorizações men-</p><p>cionadas:</p><p>“O valor de uma mercadoria, ou a quantidade de</p><p>qualquer outra pela qual pode ser trocada, de-</p><p>pende da quantidade relativa de trabalho neces-</p><p>sário para sua produção, e não da maior ou me-</p><p>nor remuneração que é paga por esse trabalho”</p><p>(Ricardo, 1982, 43)</p><p>O autor afirma que Smith usa o trabalho, o salário e o trigo</p><p>como medidas-padrão, mas isso estaria errado porque “a primeira</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 99</p><p>Sumário</p><p>é, (...), um padrão invariável, que mostra corretamente o valor das</p><p>coisas. A segunda é sujeita a tantas variações quanto as mercado-</p><p>rias que a ela sejam comparadas.” (Idem, 1982, 45). A observação</p><p>é explicada pela desigualdade entre o salário pago aos trabalhado-</p><p>res, que é fixo e atende basicamente às condições de subsistência,</p><p>e a variação da produtividade do trabalho no processo de traba-</p><p>lho, que acontece em virtude de maior ou menor produção efetua-</p><p>da. A intensificação da produção pode ser absoluta, usando exa-</p><p>tamente a mesma estrutura de produção, ou relativa, quando ad-</p><p>vém de introdução de novos equipamentos, mais independente-</p><p>mente disso, o resultado é mais trabalho por um mesmo valor pa-</p><p>go por ele, de forma que se dissociam.</p><p>Esta correção efetuada por Ricardo tem implicações e a</p><p>principal é que “não pode haver um aumento no valor do trabalho</p><p>sem uma diminuição nos lucros” (Ricardo, 1982, 55). De uma for-</p><p>ma geral, isto já está em Smith quando esse enuncia as remunera-</p><p>ções dos fatores, se for suposto o preço final e a renda da terra</p><p>fixos, mas o ponto adicional colocado na crítica atinge um detalhe</p><p>que lhe passou despercebido.</p><p>Dada uma massa de salários fixos (que é o preço do traba-</p><p>lho) o capitalista se beneficia diretamente da intensificação da</p><p>produção, que faz variar o valor do trabalho para baixo. Smith não</p><p>desenvolve a situação proposta por Ricardo, para ele o salário é</p><p>sempre reflexo do valor do trabalho, enquanto o segundo vê que</p><p>esses se separam, dando margem a uma teoria da exploração na</p><p>medida em que o capital invade a remuneração do trabalhador,</p><p>mas isto ele não alcança. A partir daí, Ricardo constata que exis-</p><p>tem capitais circulante e fixo e que há capitais que giram mais ra-</p><p>pidamente que outros, inviabilizando a afirmação smithiana de</p><p>que a taxa de lucro depende exclusivamente do volume do capital,</p><p>pois também tem que ser considerado o tempo de rotação do capi-</p><p>tal.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 100</p><p>Sumário</p><p>Para Ricardo, qualquer ação econômica segue o critério</p><p>econômico crucial, o do custo-benefício, de forma que, mais do</p><p>que a proximidade com os portos, os produtores escolhem lugares</p><p>em função da disponibilidade dos recursos a serem utilizados no</p><p>processo produtivo, para conseguir produzir ao menor custo pos-</p><p>sível, logo, se tenho capital e trabalhadores, o que determina a</p><p>decisão acerca do lugar para se instalar é a produtividade da terra.</p><p>É interessante a ênfase do autor analisado na produtivida-</p><p>de, no elemento custo dos fatores, porque as terras mais próximas</p><p>do litoral e dos grandes centros tinham um bom custo-benefício</p><p>devido à proximidade com a cidade e com o porto (diminuindo os</p><p>custos de transporte), mas teria que ser investigado se terras de</p><p>outras localidades não seriam mais produtivas para confirmar a</p><p>hipótese.</p><p>A explicação ricardiana para a ocupação das terras parte de</p><p>um exercício de abstração, cujo objetivo é a busca de essência,</p><p>abstrata, de uma realidade concreta. A situação proposta é uma</p><p>população fundando uma nova sociedade em um lugar por ela</p><p>descoberto, no qual pretende iniciar uma economia de mercado,</p><p>produzindo apenas uma mercadoria básica no setor agrícola para</p><p>a subsistência sem melhorias técnicas62.</p><p>Tomando o critério econômico como norteador da ocupa-</p><p>ção, as primeiras pessoas que desembarcam e fundam um novo</p><p>país vão ocupar primeiro as terras mais produtivas do lugar, e aí,</p><p>novamente deve-se imaginar uma divisão entre lotes mais ou me-</p><p>nos de mesmo tamanho, que foram previamente divididos de</p><p>acordo com níveis de produtividade, após pesquisa por todo lugar</p><p>acerca das condições de produtividade de cada pedaço de terra.</p><p>O grupo inicial se instala e começa a produzir uma produ-</p><p>ção Q1 ao custo L1 (remuneração do produtor) mais W1 (salários</p><p>62 Simplificação para facilitar a exposição.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 101</p><p>Sumário</p><p>pagos), ao que corresponde um preço P1. Segundo o autor, não há</p><p>renda da terra nesse primeiro lote porque as terras apenas nesse</p><p>momento são livres. É óbvio que os processos de ocupação não</p><p>são tão organizados assim, mas Ricardo acredita que deveriam ser</p><p>algo mais ou menos próximos disso, uma vez que as pessoas se</p><p>norteiam pela racionalidade econômica.</p><p>O segundo momento acontece quando a população aumen-</p><p>ta a ponto do primeiro lote não ser suficiente para atender às ne-</p><p>cessidades da sociedade, forçando a ocupação de mais um lote, o</p><p>L2, que, de acordo com a lógica ricardiana, será o segundo lote</p><p>mais produtivo, ou, alternativamente, o lote mais produtivo entre</p><p>os disponíveis. Neste segundo lote, a produção Q2 será menor por</p><p>fator, já que os trabalhadores não conseguem extrair dali o volu-</p><p>me produzido no L1, então o custo total aumenta por causa da</p><p>menor produtividade da terra, dados L e W constantes: surgirá um</p><p>P2 > P1.</p><p>Se as remunerações dos fatores de produção se mantêm, os</p><p>produtores das terras do L2 produzem uma mercadoria mais cara</p><p>que o do L1, o que não pode persistir, pois não podem conviver</p><p>dois preços para uma</p><p>mesma mercadoria em um mesmo mercado,</p><p>de forma que um ajuste tem de acontecer, e esse ajuste não será</p><p>ao nível de P1, pois com esse não se gera renda suficiente para</p><p>pagar as remunerações (os custos) dos fatores necessários para</p><p>produção no lote 2.</p><p>De acordo com Ricardo, o que se sucede é que os recursos</p><p>mais produtivos são observados e disputados, fazendo com que o</p><p>ajuste se dê pela adoção de uma renda para as terras no L1, decor-</p><p>rente da preferência geral pelos lotes mais produtivos, igualando</p><p>o P1 ao P2. A maior produtividade da terra no L1 será recompen-</p><p>sada pelo mercado, que prefere um recurso mais produtivo e paga</p><p>por isso, e, se só há um preço por item num mercado de livre con-</p><p>corrência, o preço aumentará com a incorporação de um novo lo-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 102</p><p>Sumário</p><p>te, com a entrada de mais uma remuneração de fator; a terra. Ri-</p><p>cardo observa duas coisas ao mesmo tempo: a elevação dos custos</p><p>e o mecanismo da concorrência para justificar essa dinâmica con-</p><p>trária ao colocado por Smith em seus escritos, que vê tendência de</p><p>redução dos preços com a dinâmica do mercado no longo prazo.</p><p>Este processo deve se repetir quando da incorporação de</p><p>mais um lote na economia, o que só vai acontecer em razão do</p><p>crescimento populacional, elemento importante naquela época, e</p><p>por muito tempo, até que se verificou mais recentemente uma</p><p>redução expressiva nesse indicador, acontecendo até queda da</p><p>população em alguns países mais desenvolvidos63.</p><p>O alto crescimento da população forçava a preocupação so-</p><p>cial em torno do crescimento econômico, explorado por Smith,</p><p>mas outros autores (como Malthus) não acreditavam no êxito do</p><p>mercado em atender à demanda, pois argumentavam que num</p><p>mesmo intervalo de tempo a tecnologia disponível só seria sufici-</p><p>ente para aumentar a produção de forma aritmética enquanto a</p><p>população cresceria em proporções geométricas. Ricardo procu-</p><p>rou explicar como a produção se adequa ao crescimento populaci-</p><p>onal, levando em conta a ocupação progressiva dos recursos dis-</p><p>poníveis e sua exploração racional.</p><p>Generalizando, Ricardo acredita que o mercado sempre vai</p><p>aproveitar primeiro os recursos mais produtivos, os remunerando</p><p>de acordo com sua produtividade, e assim, os rendimentos são</p><p>decrescentes com o aumento da produção. Considerando a eco-</p><p>nomia como um todo, toda vez que um fator for acrescentado à</p><p>produção, há um acréscimo de produção, mas sempre em propor-</p><p>63 A população mundial cresceu bem menos nos últimos 50 anos, e particular-</p><p>mente nos países mais desenvolvidos os incrementos demográficos reduziram</p><p>a ponto de, em alguns casos, estabilizar o total computado, e em outros, cair a</p><p>população em termos absolutos (ver Eurostat, 2021), fazendo os governos ado-</p><p>tarem políticas de estímulo à imigração ou ao aumento no número de filhos</p><p>pelas famílias.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 103</p><p>Sumário</p><p>ção inferior em relação à produção incorporada pelo penúltimo</p><p>fator contratado, o que resulta em elevação gradativa e contínua</p><p>de preços ao longo do tempo. Esta é a lei dos rendimentos decres-</p><p>centes (LRD).</p><p>O AUMENTO DA PRODUÇÃO VEM COM</p><p>QUEDA NA PRODUTIVIDADE DOS FATORES</p><p>A LRD é responsável pela conclusão pessimista do autor</p><p>em relação à tendência de longo prazo para as economias de mer-</p><p>cado, pois os acréscimos produtivos tendem a uma redução cons-</p><p>tante até a estagnação, com crescimento paralelo no nível dos pre-</p><p>ços. Na realidade concreta pode existir alguma quantidade de fa-</p><p>tores com produtividade igual, como as terras de cada lote, só que</p><p>uma hora a heterogeneidade dos fatores aparece e surge a neces-</p><p>sidade de absorver um fator menos produtivo.</p><p>3.3. A teoria da distribuição de renda</p><p>Uma vez desvendada a lógica do processo de ocupação das</p><p>terras, Ricardo segue em direção ao seu objetivo principal: enten-</p><p>der a tendência da distribuição da renda no longo prazo. O próprio</p><p>autor anuncia no prefácio de sua obra que</p><p>“Determinar as leis que regulam essa distribuição</p><p>é a principal questão da economia política: embo-</p><p>ra esta ciência tenha progredido muito com as</p><p>obras de Turgot, Stuart, Smith, Say, Sismondi e</p><p>tantos outros, eles trouxeram muito pouca infor-</p><p>mação satisfatória a respeito da trajetória natural</p><p>da renda, do lucro e do salário”.</p><p>(Ricardo, 1982, 39)</p><p>Alexandre Lyra Martins | 104</p><p>Sumário</p><p>O processo de ocupação das terras determina uma neces-</p><p>sária elevação da renda da terra como corolário natural do apro-</p><p>veitamento progressivo de terras menos férteis, sendo essa a vari-</p><p>ável chave para compreensão das demais tendências de longo</p><p>prazo. Se a renda da terra tende a subir, o lucro por sua vez tende</p><p>a cair por ficar pressionado entre o aumento dos custos e o preço</p><p>de venda, que acontece num mercado competitivo e não dá espaço</p><p>para repasse de custos. Ricardo anuncia:</p><p>“... em qualquer caso, pois, tanto os lucros dos ar-</p><p>rendatários como os dos industriais serão redu-</p><p>zidos por uma elevação no preço dos produtos</p><p>agrícolas, se esta for seguida de um aumento de</p><p>salários”. (Ricardo, 1982, 94)</p><p>Para o autor em questão, as condições dos segmentos soci-</p><p>oeconômicos são distintas ao longo de um processo de crescimen-</p><p>to econômico provocado pelo crescimento populacional. Os pro-</p><p>prietários de terras detêm condição privilegiada no campo porque</p><p>têm o fator fundamental para produção, os recursos naturais, as</p><p>mercadorias básicas para abastecimento da sociedade vêm de lá,</p><p>enquanto os industriais não teriam força para repassar custo por-</p><p>que o mercado tem concorrência e alternativas para o consumidor</p><p>final.</p><p>Mesmo analisando o argumento de Ricardo em seu devido</p><p>contexto histórico, nota-se que o autor subestima o poder de bar-</p><p>ganha do capital industrial, abrindo apenas para a possibilidade</p><p>de inovações tecnológicas virem a diminuir o problema, ainda que</p><p>provisoriamente:</p><p>“... essa tendência, como se os lucros obedeces-</p><p>sem à lei da gravidade, é felizmente contida, a in-</p><p>tervalos que se repetem, pelos aperfeiçoamentos</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 105</p><p>Sumário</p><p>das maquinarias usadas na produção dos gêneros</p><p>de primeira necessidade, assim como pelas des-</p><p>cobertas da ciência da agricultura...”</p><p>(Ricardo, 1982, 97)</p><p>Tratar-se-ia, segundo o autor, de uma tendência inexorável</p><p>que levaria a um equilíbrio custoso no mercado, com fechamento</p><p>de empresas regularmente, pelo desestímulo à atividade fabril que</p><p>a redução do lucro efetivamente representa, além do que, também</p><p>faz desestimular avanços tecnológicos fomentados por investi-</p><p>mento das empresas.</p><p>Os salários, por fim, devem se elevar com o aumento dos</p><p>preços para se manterem em termos reais e sustentar a força de</p><p>trabalho em ação, lembrando sempre que, no sistema ricardiano, a</p><p>produção aumenta como resposta (e proporcionalmente) ao cres-</p><p>cimento populacional, de forma que não há excedente populacio-</p><p>nal para regular (baixar no caso) os salários.</p><p>Os trabalhadores precisam ser remunerados para que a</p><p>produção demandada pela sociedade continue, mas o próprio au-</p><p>tor admite que a condição de barganha dos trabalhadores não é</p><p>tão boa quanto a dos proprietários de terras, e aí: “... os salários</p><p>monetários subirão, mas não o bastante para permitir que o traba-</p><p>lhador compre tantos gêneros de primeira necessidade... como</p><p>acontecia antes de aumentarem os preços das mercadorias” (Ri-</p><p>cardo, 1982, 85).</p><p>Se a hipótese do crescimento da produção como proporção</p><p>direta dos aumentos populacionais for relaxada, teríamos uma</p><p>aproximação com a realidade, pois há muitas sociedades em que o</p><p>contingente populacional já era substancial no início da ocupação</p><p>das terras ou antes que qualquer revolução industrial ocorresse,</p><p>de maneira que o ajuste acontece por este fator, apenas pela não</p><p>correção do salário nominal: à medida que os preços sobem, os</p><p>Alexandre Lyra Martins | 106</p><p>Sumário</p><p>trabalhadores sem reajustes salariais vão perdendo poder aquisi-</p><p>tivo. O excesso de oferta de trabalho é uma situação comum e,</p><p>predominando as forças de mercado, de qualquer maneira, os sa-</p><p>lários tenderiam a cair em termos reais.</p><p>DISTRIBUIÇÃO DA RENDA: RENDA DA TERRA</p><p>LUCROS E SALÁRIO REAL</p><p>Considerando toda essa dinâmica, o resultado final é uma</p><p>tendência à estagnação econômica com inflação, em que apenas os</p><p>proprietários de recursos naturais têm reajustadas suas remune-</p><p>rações, acompanhando plenamente a elevação dos preços, até</p><p>porque elas são a causa do processo inflacionário. Esse cenário de</p><p>longo prazo inicialmente foi designado por Ricardo como ‘estado</p><p>estacionário’, mas também pode ser denominado alternativamen-</p><p>te de ‘estagflação’, que é a combinação/convivência da estagnação</p><p>econômica com inflação, uma previsão pessimista que diverge de</p><p>Smith e sua promessa de que o capitalismo propicia a riqueza das</p><p>nações e permite a todos entrarem num ciclo de crescimento eco-</p><p>nômico e distribuição de renda, se seguirem as leis do mercado.</p><p>Como foi adiantado no princípio do capítulo, porém, pode-</p><p>se questionar o modelo ricardiano em alguns pontos cruciais. Sua</p><p>concepção racional de ocupação das terras, base da teoria da dis-</p><p>tribuição de renda, sofre críticas de Carey, que inverte a lógica</p><p>Ricardiana, apontando o início da ocupação pelas terras menos</p><p>produtivas, por exigirem menos esforço no desbravamento (nas</p><p>mais férteis a vegetação se desenvolve mais) e por questões de</p><p>segurança, por se situarem geralmente em elevações (Hugon,</p><p>1995, 126).</p><p>Interpretações alternativas, como a de Carey e a de Smith,</p><p>mostram que o percurso da ocupação das terras pode ser diferen-</p><p>te do defendido por Ricardo, o que reverteria a tendência ao au-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 107</p><p>Sumário</p><p>mento da renda da terra e à alta dos preços. Além disso, sua pre-</p><p>missa de contínuo crescimento demográfico se mostrou desatuali-</p><p>zada, os capitais cresceram e se concentraram, restringindo os</p><p>mecanismos concorrenciais com força suficiente para fixar preços,</p><p>sendo pouco afetados por aumentos de preços de mercadorias</p><p>primárias.</p><p>3.4. A teoria do comércio internacional</p><p>A tendência de longo prazo da distribuição da renda levou</p><p>o autor estudado a defender uma política econômica específica</p><p>para a importação de gêneros primários. Se o maior problema das</p><p>economias desenvolvidas eram os preços dos produtos agrícolas,</p><p>a melhor forma de reverter a situação desfavorável seria imple-</p><p>mentar uma política tarifária diferenciada para a importação des-</p><p>sas mercadorias estratégicas, diminuindo os tributos, pois assim</p><p>se pressionaria os proprietários locais a cobrarem menores alu-</p><p>guéis pela terra.</p><p>Até que ponto uma política de redução de impostos para</p><p>matérias-primas resolveria o problema, dependeria do nível de</p><p>ocupação das terras no planeta como um todo, pois se existirem</p><p>muitas terras ainda inexploradas na forma de uma fronteira agrí-</p><p>cola em aberto, o problema ficará adiado por muito tempo e as</p><p>tarifas seriam eficazes, mas se restarem poucas terras para serem</p><p>exploradas, pouco resultado terá a política tarifária. Evidentemen-</p><p>te, trata-se de medida paliativa, que apenas adia o problema, se</p><p>não houver outra força para contorná-lo.</p><p>Em última instância, Ricardo desenvolveu um tema que</p><p>remete à atualidade, o ponto da exaustão dos recursos disponí-</p><p>veis, algo que tem dado sinais só mais recentemente, e que tem</p><p>levado a mudanças de parâmetro na exploração produtiva por</p><p>todo mundo. Ele também observou que a possibilidade do comér-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 108</p><p>Sumário</p><p>cio internacional para aproveitar melhor os potenciais produtivos</p><p>de cada país é outra via para obter ganhos de produção, ameni-</p><p>zando o problema. Pouco explorada por Smith, sua teorização foi a</p><p>primeira nessa área, e também foi marco para o desenvolvimento</p><p>da economia internacional na escola neoclássica.</p><p>Nesse ponto, como na maior parte de sua obra, o início da</p><p>argumentação de Ricardo aproveita a concepção de Smith, deno-</p><p>minada de teoria das vantagens absolutas. Pelo princípio das van-</p><p>tagens absolutas, toda nação ganha com o comércio internacional</p><p>ao se especializar nos produtos em que é mais competitiva inter-</p><p>nacionalmente, considerando a maior produtividade dos fatores</p><p>(que se reflete em menores custos de produção). Assim, a nação</p><p>poderá ceder na produção de algumas mercadorias em que não é</p><p>tão produtiva na comparação internacional, para voltar a obtê-las,</p><p>em maior número, com as vendas daquela em que é mais eficiente</p><p>produtivamente.</p><p>VANTAGEM ABSOLUTA:</p><p>O PAÍS SE ESPECIALIZA NAQUILO EM QUE É MAIS</p><p>PRODUTIVO QUE OS DEMAIS PAÍSES</p><p>Ricardo ilustra os ganhos com exemplos em termos de</p><p>quantidade de horas trabalhadas, e nesse caso, quanto menos ho-</p><p>ras de trabalho para se produzir certa quantidade de uma merca-</p><p>doria, mais produtivo é o país. Tomando um intervalo de tempo</p><p>fixo e os recursos disponíveis numa área H, se um país hipotético</p><p>A pode produzir X toneladas de trigo com 1.000 horas de trabalho,</p><p>enquanto um país B precisa de 700 horas para produzir a mesma</p><p>quantidade, e, de outro lado, o país A consegue produzir Z tonela-</p><p>das de arroz com 800 horas de trabalho, enquanto B precisa de</p><p>1.100 horas para produzir a mesma quantidade de arroz. Esta é</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 109</p><p>Sumário</p><p>uma situação típica de potencial ganho com o princípio das vanta-</p><p>gens absolutas, pois cada país é mais produtivo em um produto</p><p>diferente do outro. Se cada país se especializar no que for mais</p><p>produtivo, vai haver um ganho de produção obtido por meio do</p><p>comércio internacional (bilateral, no caso). Colocando os dados na</p><p>tabela a seguir:</p><p>Quadro 1</p><p>PAÍSES HIPOTÉTICOS SEM COMÉRCIO INTERNACIONAL</p><p>País A País B</p><p>X toneladas de trigo 1.000 horas de</p><p>trabalho</p><p>700 horas de</p><p>trabalho</p><p>Z toneladas de arroz 800 horas de</p><p>trabalho</p><p>1.100 horas de</p><p>trabalho</p><p>Ao se especializarem naquilo em que são mais produtivos,</p><p>os países dobrarão a produção64 para ficar com a metade e trocar</p><p>a outra metade com o parceiro comercial, sobrando algumas horas</p><p>para produção extra. O primeiro país terá à sua disposição 200</p><p>horas de trabalho poupadas, pois precisava de 1.800 horas para</p><p>produzir X de trigo e Z de arroz, e agora com 1.600 horas na pro-</p><p>dução de arroz (2Z) consegue esses mesmos valores com o co-</p><p>mércio internacional, e o segundo país ganha ainda mais horas de</p><p>trabalho, 400, já que anteriormente usava 1.800 horas para culti-</p><p>var as quantidades dos grãos especificados e agora com 1.400 ho-</p><p>ras apenas na produção de trigo (2X) atinge os mesmos montan-</p><p>tes fixados.</p><p>Este ganho pode ser calculado também diretamente em</p><p>quantidades produzidas, relegando a premissa clássica das horas</p><p>64 Há o suposto de que cada país divide igualmente os recursos usados entre a</p><p>produção das duas mercadorias envolvidas, de maneira que ao aplicar todos</p><p>recursos na produção de um ítem, duplicará a produção deste.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 110</p><p>Sumário</p><p>de trabalho a segundo plano. Se para verificar os ganhos em ter-</p><p>mos de horas de trabalho se considerava a produção fixa, agora</p><p>inverte-se e considera-se a quantidade de horas trabalhadas fixa,</p><p>como os demais fatores, para verificar a produção, variável, obtida</p><p>com ela nos países. Isso foi feito pelos neoclássicos ao atualizar a</p><p>exposição da teoria ricardiana do comércio internacional para os</p><p>manuais modernos de economia, coerentemente com a substitui-</p><p>ção da teoria do valor trabalho pela teoria do valor utilidade, e</p><p>assim prosseguiremos exemplificando dessa forma.</p><p>Supondo que o Brasil, dividindo uma certa dotação de mão</p><p>de obra e uma certa quantidade de terras igualmente</p><p>entre apenas</p><p>2 culturas, produzisse 20 toneladas de café e 20 toneladas de trigo</p><p>em um certo espaço de tempo, ao passo que os Estados Unidos da</p><p>América (EUA) nesse mesmo intervalo temporal e com a mesma</p><p>dotação de fatores conseguisse produzir 10 toneladas de café e 30</p><p>toneladas de trigo, teríamos caracterizado novamente um cenário</p><p>de potencial ganho com o comércio internacional advindo do</p><p>princípio das vantagens absolutas. Veja no quadro:</p><p>Quadro 2</p><p>PRODUÇÃO DE CAFÉ E TRIGO DOS PAÍSES SEM COMÉRCIO</p><p>Brasil EUA</p><p>Café 20 ton. 10 ton.</p><p>Trigo 20 ton. 30 ton.</p><p>As quantidades produzidas mostram que o Brasil consegue</p><p>uma produção de café maior que a dos EUA com a dotação de fato-</p><p>res estipulada (20T contra 10T), então possui vantagem absoluta</p><p>neste grão, enquanto os EUA conseguem produzir mais trigo que o</p><p>Brasil (30T contra 20T), e neste item ele é que tem vantagem ab-</p><p>soluta. Se os países querem obter os ganhos do comércio interna-</p><p>cional, devem abrir mão da mercadoria em que é menos produtivo</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 111</p><p>Sumário</p><p>e se especializar na que é mais produtivo, para que a produção</p><p>extra seja trocada pela mercadoria que o outro se especializou65. O</p><p>quadro a seguir mostra como fica a produção de cada país com a</p><p>especialização.</p><p>Quadro 3</p><p>PRODUÇÃO DE CAFÉ E TRIGO DOS PAÍSES COM ESPECIALIZAÇÃO</p><p>Brasil EUA</p><p>Café 40 ton. 0</p><p>Trigo 0 60 ton.</p><p>A hipótese da duplicação produtiva traz implícita a homo-</p><p>geneidade na qualidade dos fatores, uma simplificação em torno</p><p>do resultado que os países têm quando dispõem do dobro de re-</p><p>cursos para produzir algo, pois na realidade, a conversão dos re-</p><p>cursos de uma produção para outra muitas vezes não é um pro-</p><p>cesso linear em função da heterogeneidade dos fatores, que resul-</p><p>ta em diferenças na produtividade dos fatores ao mudar sua alo-</p><p>cação produtiva. Trabalhadores tradicionalmente empregados</p><p>numa cultura podem demorar um pouco até assimilar técnicas de</p><p>outra cultura agrícola, bem como as terras dificilmente serão per-</p><p>feitamente adaptadas.</p><p>Continuando o exemplo, uma vez especializados e com a</p><p>produção duplicada, cada país fica com a metade (outra hipótese</p><p>simplificadora, pois poderiam decidir outra proporção) e troca o</p><p>restante, a outra metade da produção, com seu parceiro comercial,</p><p>no caso, o Brasil oferece 20 ton. de café em troca de 30 ton. de tri-</p><p>65 A hipótese de Ricardo de abrir mão da produção de um item é para verificar o</p><p>ganho máximo com o comércio internacional, mas o país pode escolher ficar</p><p>produzindo algum volume da mercadoria em que é menos produtivo, por moti-</p><p>vos estratégicos, por exemplo, para não ficar na dependência de produtores</p><p>estrangeiros.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 112</p><p>Sumário</p><p>go, o que foi previamente acertado com os EUA. Concluindo as</p><p>transações comerciais temos o seguinte quadro:</p><p>Quadro 4</p><p>QUANTIDADES DE CAFÉ E TRIGO DE CADA PAÍS APÓS COMÉRCIO</p><p>Brasil EUA</p><p>Café 20 ton. 20 ton.</p><p>Trigo 30 ton. 30 ton.</p><p>Após as trocas das mercadorias, cada país dispõe de 50</p><p>toneladas de grãos, ao invés das 40 toneladas que conseguiam</p><p>isolados, e mais especificamente em relação à situação inicial de</p><p>cada um66, o Brasil tem um ganho de 10 toneladas de trigo e os</p><p>EUA têm um ganho de 10 toneladas de café. Já dizia Smith que a</p><p>interdependência pode ser melhor que o isolamento, na medida</p><p>em que se aproveita o melhor de cada fator, já que a regra é que</p><p>alguns são melhores na produção de algumas mercadorias e ou-</p><p>tros em outras mercadorias.</p><p>Ricardo, no entanto, vai ainda mais longe e advoga benefí-</p><p>cios com o comércio internacional mesmo quando um país tem</p><p>vantagem absoluta em todas mercadorias envolvidas e o outro,</p><p>consequentemente, não tem vantagem absoluta em nenhuma des-</p><p>sas mercadorias. Isto é a essência da teoria das vantagens relati-</p><p>vas67; que será exposta a partir de agora.</p><p>A possibilidade do ganho, mesmo sem nenhuma vantagem</p><p>absoluta por parte de um dos países envolvidos, pode ser compre-</p><p>endida inicialmente por um exemplo/dilema microeconômico: o</p><p>caso de um profissional que progride e decide contratar um auxi-</p><p>liar, mas não consegue recrutar alguém tão produtivo quanto ele</p><p>próprio. Ele contratará esse funcionário? Detalhando a questão,</p><p>66 Comparando o quadro 4 com o quadro 2.</p><p>67 Alguns manuais a denominam de vantagem comparativa.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 113</p><p>Sumário</p><p>um profissional qualquer recém-formado, um odontólogo, por</p><p>exemplo, que começa a atuar profissionalmente, no princípio não</p><p>precisa de ajuda, até pela relativa escassez de pacientes, e realiza,</p><p>além de suas atribuições como dentista, todas atividades comple-</p><p>mentares necessárias para sua atuação, como receber clientes,</p><p>preencher fichas e outras.</p><p>Ocorre que o profissional, com seu progressivo reconheci-</p><p>mento no mercado, vem conseguindo aumentar a clientela e com</p><p>ela o volume de trabalho se eleva, até o ponto em que ele não su-</p><p>porta o trabalho excessivo e resolve contratar um assistente, co-</p><p>mo secretário(a), para dividir as atividades. Divulgado no merca-</p><p>do a oferta de trabalho, o odontólogo ricardiano decide contratar</p><p>aquele que for mais produtivo em um teste de digitação entre os</p><p>vários candidatos que se interessaram pelo emprego, contudo,</p><p>concluídos os trabalhos, o resultado final dos testes indicou que</p><p>nenhum candidato conseguiu atingir a produtividade do dentista.</p><p>Abstraindo a decepção do protagonista, ele tomará que decisão?</p><p>Aprova o mais produtivo, ainda que esse seja menos produtivo</p><p>que ele próprio ou não contrata ninguém, já que ele é melhor que</p><p>o que se saiu melhor no teste?</p><p>Aparentemente não seria vantagem a contratação de um</p><p>secretário(a) nessa situação, mas esta seria uma resposta smithi-</p><p>ana, pois estaria baseada no princípio da vantagem absoluta, ima-</p><p>ginando que vai ter prejuízo dividindo o trabalho com uma pessoa</p><p>menos produtiva, mas como o dentista supracitado é ricardiano,</p><p>raciocina pela lógica da vantagem relativa, enxergando que as</p><p>atribuições são distintas e sua qualificação confere uma remune-</p><p>ração tal que compensa dividir o trabalho menos qualificado com</p><p>alguém mais compatível com essas atribuições, que conferem re-</p><p>muneração menor que a sua. Assim ele poderá se dedicar apenas</p><p>ao trabalho mais qualificado, que diz respeito à sua formação pro-</p><p>fissional, absorver mais clientes e, consequentemente, ganhar</p><p>Alexandre Lyra Martins | 114</p><p>Sumário</p><p>mais ainda, permitindo pagar o assistente e mesmo assim ter mais</p><p>renda que antes.</p><p>O odontólogo hipotético pode ter vantagem absoluta em</p><p>todas atividades referentes ao atendimento de um cliente que</p><p>procura por alguém para cuidar de seus dentes, incluindo recebê-</p><p>lo, preencher sua ficha, etc, mas mesmo assim vai contratar um</p><p>auxiliar quando a clientela aumentar porque ele (o dentista) tem</p><p>vantagem relativa nas atribuições mais específicas do ofício (na</p><p>realização de obturações, pontes, etc.), onde pode focar e obter</p><p>ganho terceirizando as atribuições mais gerais, complementares e</p><p>necessárias à realização da atividade final. O mesmo princípio po-</p><p>de ser aplicado macroeconomicamente, e foi o que Ricardo fez,</p><p>dando maior alcance às vantagens da divisão do trabalho e ampli-</p><p>ando as possibilidades de comércio internacional.</p><p>Supondo que, num mesmo espaço de tempo e com uma</p><p>mesma dotação de fatores, a Argentina produz 40 toneladas de</p><p>soja e 10 toneladas de milho e o Brasil produz 60 toneladas de</p><p>soja e 30 toneladas de milho, nos deparamos com valores que in-</p><p>dicam um caso de vantagem absoluta do Brasil em ambas merca-</p><p>dorias mencionadas, restando testar se há ganho com a aplicação</p><p>do princípio das vantagens relativas. Devemos iniciar a resolução</p><p>do problema indagando em que cada país possui vantagem relati-</p><p>va. Essa questão deve ser respondida raciocinando no sentido de</p><p>obter sempre a maior eficiência produtiva</p><p>possível, posto que a</p><p>teoria só trabalha com variáveis reais e ignora as potencialmente</p><p>artificiais (preços).</p><p>Quadro 5</p><p>PRODUÇÃO DE SOJA E MILHO NO BRASIL</p><p>E NA ARGENTINA SEM COMÉRCIO</p><p>Brasil Argentina</p><p>Soja 60 ton. 40 ton.</p><p>Milho 30 ton. 10 ton.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 115</p><p>Sumário</p><p>A resposta é obtida pelo parâmetro relativo e não absoluto,</p><p>com a comparação internacional por mercadoria: a mercadoria</p><p>que tiver maior quantidade produzida relativamente ao outro país</p><p>é a que o Brasil tem vantagem relativa, enquanto a Argentina tem</p><p>vantagem relativa na outra mercadoria. No exemplo, o Brasil pro-</p><p>duz 1,5 vezes mais soja e 3 vezes mais milho que a Argentina, con-</p><p>sequentemente sua vantagem relativa é no item milho. Observe</p><p>que o Brasil produz maiores volumes de soja (60 t) que de milho,</p><p>mas não é o montante absoluto que interessa aqui. Definida a</p><p>mercadoria que cada um se especializa, temos o seguinte quadro:</p><p>Quadro 6</p><p>PRODUÇÃO DOS PAÍSES COM ESPECIALIZAÇÃO</p><p>Brasil Argentina</p><p>Soja 0 80 ton.</p><p>Milho 60 ton. 0</p><p>O próximo passo são as trocas, só que aqui não podemos</p><p>simplesmente trocar os excedentes, temos que chegar a um termo</p><p>de troca adequado para os dois países em questão e para isso te-</p><p>mos que saber o que compensa para cada um dos países no co-</p><p>mércio internacional através do custo interno do produto em que</p><p>o país vai se especializar em termos do outro que vai deixar de</p><p>produzir.</p><p>De acordo com os dados contidos na tabela 5, a produção</p><p>adicional de 40 toneladas de soja implica em 10 toneladas de mi-</p><p>lho a menos para a Argentina, o que nos dá a relação de 4 T S para</p><p>1 T M (dividindo tudo por 10). Já para o Brasil, 30 toneladas a</p><p>mais de milho significam a eliminação da produção de 60 tonela-</p><p>das de soja, ou seja, temos a relação 6 T S para 3 T M; ou ainda 2T</p><p>S para 1 T M (dividindo tudo por 3).</p><p>Alexandre Lyra Martins | 116</p><p>Sumário</p><p>Tomando 1 tonelada de milho como parâmetro; temos que,</p><p>para a Argentina, que vai se especializar na produção de soja,</p><p>qualquer quantidade menor que 4 T de soja por 1 T de milho é</p><p>melhor do que seu isolamento, ou, alternativamente, qualquer</p><p>quantidade maior que 1 T de milho que ela consiga por 4 T de soja</p><p>representará uma vantagem e será benéfico realizar comércio</p><p>com o Brasil. Para o Brasil, por sua vez, a situação e a conta se in-</p><p>verte, pois para este (que vai se especializar na produção do mi-</p><p>lho) qualquer quantidade maior que 2 T de soja por 1 T de milho é</p><p>melhor que a total autonomia produtiva, pois assim ele terá ga-</p><p>nhos com o comércio bilateral com a Argentina. A zona possível</p><p>onde o termo de troca vai se estabelecer, portanto, está entre:</p><p>2 T S</p><p>1 T M</p><p>4 T S</p><p>É preciso enfatizar que os extremos (1T M por 2 T S e 1 T M</p><p>por 4 T S) não interessam para ambas partes, na medida em que</p><p>representam uma situação igual à inicial de um deles, e, portanto,</p><p>não resultará em nenhum ganho objetivo para o país. Adotando</p><p>arbitrariamente o termo intermediário 1 T M por 3 T S, os países</p><p>obterão os seguintes volumes de grãos a partir da exportação da</p><p>metade da produção daquilo em que se especializou:</p><p>Para a Argentina: 1 T M --- 3 T S</p><p>x T M --- 40 T S 3x= 40</p><p>x = 13,3</p><p>Para o Brasil: 1 T M --- 3 T S</p><p>30 T M --- x T S x = 90</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 117</p><p>Sumário</p><p>Assim chega-se ao resultado final do comércio internacio-</p><p>nal entre esses países com o termo de troca adotado. Calculados</p><p>os valores que cada país vai obter com o comércio internacional</p><p>usando o termo de troca acordado entre as partes, verifica-se que</p><p>a Argentina sai com um ganho de 3,3 toneladas de milho e o Brasil</p><p>consegue 30 toneladas de soja a mais em relação à situação inicial</p><p>em que não havia comércio68.</p><p>Quadro 7</p><p>QUANTIDADES DE SOJA E MILHO DOS PAÍSES APÓS O COMÉRCIO</p><p>Brasil Argentina</p><p>Soja 90 ton. 40 ton.</p><p>Milho 30 ton. 13,3 ton.</p><p>Resta fazer uma observação quanto a esses números, em</p><p>particular ao total obtido pelo Brasil no comércio, as 90 toneladas</p><p>de soja, que é maior que a capacidade produtiva da Argentina (40</p><p>toneladas). O que está implícito em um exemplo desse tipo é que a</p><p>parte que a Argentina não pode fornecer será buscada pelo Brasil</p><p>em outros países usando o mesmo termo de troca e só assim o</p><p>exemplo de vantagens relativas vai fechar, pois o país que não tem</p><p>nenhuma vantagem absoluta nunca conseguirá produzir o sufici-</p><p>ente para atender ao país mais produtivo em todas mercadorias</p><p>envolvidas nos termos de troca que lhe interessam. Observe que o</p><p>Brasil fornece 13,3 T de milho pelas 40 T de soja da Argentina, e</p><p>que, portanto, ainda tem 16,7 T de milho para comercializar com</p><p>outros países, o que fará, para conseguir obter as 50 T de milho</p><p>restantes (no caso aqui colocado, adotando o mesmo termo de</p><p>troca).</p><p>68 Comparando o quadro 7 com o quadro 5.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 118</p><p>Sumário</p><p>Apresentada a teoria do comércio internacional e os ga-</p><p>nhos que os países podem extrair com sua aplicação, é preciso</p><p>registrar a principal crítica a esta: a estruturalista. Os estruturalis-</p><p>tas fazem uma crítica externa, dizendo da desconsideração do ní-</p><p>vel de riqueza/pobreza dos países na dinâmica do comércio inter-</p><p>nacional, dinâmica esta que deve ser compreendida a partir do</p><p>processo de formação e desenvolvimento dos países em seus res-</p><p>pectivos contextos históricos, elemento importante na determina-</p><p>ção da tendência dos ganhos no tempo e do processo de formação</p><p>de estoques de capital.</p><p>A teoria ricardiana segue a lógica dedutiva e trabalha com a</p><p>presunção de que o processo histórico é natural e que, assim, o</p><p>desenvolvimento das sociedades, sem intervenções arbitrárias,</p><p>apontaria no sentido do mercado, que, por sua vez, trataria de ex-</p><p>ponenciar a produção. Os estruturalistas, porém, advertem que o</p><p>processo de crescimento econômico é cumulativo e o processo de</p><p>acumulação de capital passa por fases demoradas, que terminam</p><p>por distanciar mais os países mais desenvolvidos dos países peri-</p><p>féricos, porque esses últimos historicamente se especializam em</p><p>monoculturas primário exportadoras para atender matrizes, im-</p><p>pedindo a avanço da industrialização. As propaladas vantagens</p><p>não são tão naturais assim, portanto.</p><p>A CRÍTICA ESTRUTURALISTA A RICARDO:</p><p>A DETERIORAÇÃO DOS TERMOS DE TROCA</p><p>Os produtos advindos do setor primário, notadamente a</p><p>agricultura, somam baixo valor adicionado, enquanto as mercado-</p><p>rias industrializadas incorporam frequentemente tecnologia e</p><p>somam alto valor agregado. O resultado disso é que, com o tempo,</p><p>fica cada vez mais difícil para um país periférico se industrializar</p><p>porque a tecnologia avança constantemente, tendo que dar cada</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 119</p><p>Sumário</p><p>vez mais produtos agrícolas em troca dos produtos industrializa-</p><p>dos, condenando a periferia à sua condição de pobreza. É uma crí-</p><p>tica válida que pode ser relativizada pela disseminação mais rápi-</p><p>da de tecnologias ultrapassadas, mas permanece por causa da</p><p>precária absorção da economia de mercado em lugares de estru-</p><p>turas diversas atrasadas, tanto econômicas quanto sociais, que</p><p>predominam nos países pobres.</p><p>Como visto, Ricardo escreveu uma obra respeitada por uma</p><p>vertente de economistas, mas muito criticada tanto do ponto de</p><p>vista da fragilidade de suas próprias premissas quanto por outras</p><p>visões teóricas. Seus méritos estão entrelaçados com sua fraqueza,</p><p>tudo isso relacionado ao alto nível de abstração adotado por este</p><p>autor e sua desconexão com a história. Ao mesmo tempo em que</p><p>desenvolve uma teoria geral mais audaciosa que a de Smith, tam-</p><p>bém desenvolve uma teoria mais frágil por se afastar demais da</p><p>realidade, e, dessa forma, pelos avanços e falhas que deixou, con-</p><p>tinua presente na</p><p>história do pensamento econômico como marco</p><p>da economia política clássica.</p><p>3.5. Questionário síntese</p><p>1 – Qual foi o contexto histórico em que Ricardo desenvolveu suas</p><p>teorias?</p><p>2 – Explique a teoria da renda da terra de Ricardo.</p><p>3 – Explique os conceitos: renda da terra, renda diferencial e ren-</p><p>da de monopólio.</p><p>4 – Explique a teoria da distribuição de renda. Que críticas foram</p><p>feitas à essa teoria?</p><p>5 – O que move o processo de crescimento econômico?</p><p>6 - Qual a tendência das economias de mercado no longo prazo e o</p><p>que pode ser feito para alterá-la?</p><p>7 – Explique a lei dos rendimentos decrescentes.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 120</p><p>Sumário</p><p>8 – Formule os princípios das vantagens absolutas e das vanta-</p><p>gens relativas.</p><p>9. Suponha que os bens “vinho” e “automóveis” são produzidos em</p><p>França e na Alemanha com os requerimentos técnicos descritas na</p><p>tabela abaixo:</p><p>Quadro 8</p><p>Custos (em unidades de trabalho) na França e na Alemanha para produ-</p><p>ção de uma quantidade fixa de vinho X e automóveis Y num período de</p><p>tempo Z, com a mesma quantidade dos demais recursos (fatores) exigi-</p><p>dos.</p><p>Vinho Repolho</p><p>França 100 300</p><p>Alemanha 200 200</p><p>a) Nas condições dadas, justifica-se a especialização dos paí-</p><p>ses?</p><p>b) De acordo com a teoria clássica do comércio internacional,</p><p>que vantagem poderiam ter com o comércio internacional?</p><p>10. Supondo que em um ano a Colômbia, usando uma certa área e</p><p>uma certa quantidade de recursos produtivos, consegue produzir</p><p>27 ton. de tomate e 30 ton. de cebola, enquanto o Chile nesse</p><p>mesmo tempo, e com os mesmos recursos e área, produz 22 ton.</p><p>de tomate e 35 ton. de cebola. Demonstre o ganho que esses paí-</p><p>ses teriam com o comércio internacional, supondo que cada país</p><p>quer ficar com 50% da produção do produto em que se especiali-</p><p>za.</p><p>11. Em um mês e com seus coeficientes de produtividade, o Brasil</p><p>e a Argentina produzem as quantidades dos produtos discrimina-</p><p>dos abaixo. Com base nesses dados, qual seria o ganho dos países</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 121</p><p>Sumário</p><p>nesse período, se cada país fica com 60% do produto em que se</p><p>especializa e trocam o excedente?</p><p>Quadro 9</p><p>Brasil Argentina</p><p>Leite 35 milhões de litros 50 milhões de litros</p><p>Café 70 mil toneladas 45 mil toneladas</p><p>12 – Suponha dois países A e B, que, mobilizando todos seus re-</p><p>cursos em seis meses, conseguem produzir os seguintes montan-</p><p>tes: país A- 42 mil toneladas de arroz e 35 mil toneladas de milho,</p><p>e o país B - 36 mil toneladas de arroz e 39 mil toneladas de milho.</p><p>Haveria vantagem para esses países realizar comércio internacio-</p><p>nal? Qual seria o ganho desses países com o comércio internacio-</p><p>nal em um ano?</p><p>13. Dois países, com seus respectivos índices de produtividade dos</p><p>fatores, e dividindo as terras disponíveis meio a meio entre a cul-</p><p>tura de arroz e de feijão, conseguem os seguintes resultados de</p><p>produção, em toneladas, num certo período:</p><p>Quadro 10</p><p>Utopéia Utopuia</p><p>FEIJÃO 300 T 150 T</p><p>ARROZ 200 T 120 T</p><p>Que termos de troca viabilizariam o comércio entre esses países</p><p>(calcular os limites inferior e superior)?</p><p>14. Supondo dois países hipotéticos A e B, que produzem trigo e</p><p>algodão internamente. Se num certo período de tempo A produz</p><p>1000 kg/ha de algodão e 1200 Kg/ha de trigo e B produz 1500</p><p>Alexandre Lyra Martins | 122</p><p>Sumário</p><p>kg/ha de algodão e 1300 kg/ha de trigo, quais seriam os ganhos</p><p>com o comércio internacional se o termo de troca adotado for 1</p><p>kg/ha de algodão por 0,95 kg/ha de trigo e a área cultivada de</p><p>cada país for de 200.000 ha?</p><p>15. Supondo que o Uruguai, usando seus recursos produtivos,</p><p>consegue produzir numa semana 73 mil barris de petróleo e 71</p><p>mil litros de vinho, enquanto o Brasil nesse mesmo tempo produz</p><p>95 mil barris de petróleo e 80 mil litros de vinho. Demonstre o</p><p>ganho que esses países teriam com o comércio internacional nesse</p><p>mesmo intervalo de tempo, supondo que cada país quer ficar com</p><p>50% da produção do produto em que se especializa e que adota-</p><p>rão o termo 1 V – 1,1 P.</p><p>16. Supondo que em um dia a Bolívia, usando uma certa área e</p><p>uma certa quantidade de recursos produtivos, consegue produzir</p><p>27 ton. de açúcar e 35 ton. de sal, enquanto o Paraguai nesse</p><p>mesmo tempo, e com os mesmos recursos e área, produz 22 ton.</p><p>de açúcar e 30 ton. de sal. Demonstre o ganho que esses países</p><p>teriam com o comércio internacional, supondo que cada país quer</p><p>ficar com 50% da produção do produto em que se especializa,</p><p>usando o termo de troca: 1 A - 1,33 S.</p><p>Respostas das questões que envolvem cálculo:</p><p>9. Sim. O ganho será a produção adicional de 100 trabalhadores na</p><p>França, que produzirão repolho.</p><p>10. A colômbia ganha de 5 ton. de cebola e o Chile 5 ton. de tomate</p><p>11. O ganho mensal do Brasil é 5 milhões de litros de leite e 14 mil</p><p>ton. de café, enquanto a Argentina obtém 10 milhões de litro de</p><p>leite e 11 mil toneladas de café com o comércio bilateral.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 123</p><p>Sumário</p><p>12. O ganho de A em um ano será de 8 mil ton. de milho e o de B</p><p>será de 12 mil ton. de arroz.</p><p>13. Entre 1ª e 1,2 A para 1,5F.</p><p>14. A ganha 263.160.000 kg de algodão e B 125.000.000 kg de tri-</p><p>go.</p><p>15. O Brasil terá um ganho de 6,3 milhões de litros de vinho e o</p><p>Uruguai ganhará 5,1 milhões de barris de petróleo.</p><p>16. A Bolívia obterá 35,9 ton. de sal a mais e o Paraguai sairá com</p><p>0,55 ton. de açúcar a mais.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 124</p><p>Sumário</p><p>4. A ECONOMIA SEGUNDO MARX</p><p>4.1. Breve contexto histórico</p><p>As ideias contidas no Capital guardam forte relação com</p><p>elementos do contexto histórico em que Marx estava inserido,</p><p>começando pela cidade alemã com penetração da cultura política</p><p>francesa em que nasceu e viveu até a juventude, passando pela</p><p>predominância da escola histórica nas academias alemãs em que</p><p>estudou, até a presença da dialética hegeliana como referência</p><p>nelas e o próprio estágio de desenvolvimento do capitalismo que</p><p>testemunhou. É importante, pois, detalhar um pouco mais essa</p><p>contextualização histórica.</p><p>A origem geográfica de Karl Marx é a cidade alemã de Trier,</p><p>em que nasceu em 1818, pouco após libertação do domínio fran-</p><p>cês. O espírito francês significava maior agitação política que a</p><p>média europeia, em especial porque brotavam, nessa época, as</p><p>novas ideias transgressoras do socialismo utópico defendidas por</p><p>Saint-Simon e Fourier na França e Robert Owen na Inglaterra.</p><p>O socialismo utópico69 foi a primeira sistematização teóri-</p><p>co-doutrinária em torno das ideias do socialismo, gerando um</p><p>movimento político pela implantação dos princípios socialistas,</p><p>que deveriam ser conquistados democraticamente. A adjetivação</p><p>de ‘utópico’ viria posteriormente, para conferir uma certa conota-</p><p>ção pejorativa a esse grupo, alimentada pelos marxistas leninistas,</p><p>69 O socialismo utópico foi apresentado a Marx por seu sogro, que era simpático</p><p>a essas ideias.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 125</p><p>Sumário</p><p>que acreditavam que a conquista do comunismo teria de ser ne-</p><p>cessariamente violenta, com a derrubada da classe dominante</p><p>pela força, uma vez que os detentores do poder não cederiam pa-</p><p>cificamente.</p><p>Embora seja uma leitura entre outras possíveis, a defesa da</p><p>imposição do projeto socialista foi feita inicialmente pelo próprio</p><p>‘jovem’ Marx como projeto político, instância de construção teóri-</p><p>ca diferente da construção científica. Projetos políticos querem</p><p>mudar a realidade, teorias científicas sociais pretendem compre-</p><p>ender a realidade de forma rigorosa, e, assim, partem de premis-</p><p>sas distintas. É preciso, portanto, separar a obra do ativista jovem</p><p>e do cientista maduro.</p><p>A vida de Marx se passou ao longo do século XIX, que, de</p><p>uma forma geral, consolidou as tendências apontadas ao final do</p><p>século XVIII. Num momento de menos guerras internacionais, o</p><p>mundo assiste à ascensão do império inglês, ao triunfo do libera-</p><p>lismo como ideologia política e econômica, à eliminação gradativa</p><p>da escravidão, a um bom crescimento populacional (na Europa a</p><p>população dobra), ao avanço técnico e científico com aproveita-</p><p>mento produtivo desses e ao crescimento econômico dos Estados</p><p>Unidos da América.</p><p>A época da juventude de Marx coincidiu com a era vitoria-</p><p>na, período em que o Reino Unido tem uma trajetória prolongada</p><p>de significativo desempenho socioeconômico, contornando um</p><p>período inicial (metade do século anterior) em que a revolução</p><p>industrial surgiu trazendo soluções e problemas, como a elevada e</p><p>intensa jornada de trabalho e o desemprego urbano.</p><p>Por outro lado, na Alemanha e na França, entre idas e vin-</p><p>das, Marx foi contemporâneo de uma fase histórica conturbada,</p><p>com as respectivas populações lutando para se livrar da domina-</p><p>ção das monarquias por meio de grandes insurgências populares</p><p>que foram sufocadas violentamente pelo poder dominante, resul-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 126</p><p>Sumário</p><p>tando em restrição do progresso da economia. A revolução de</p><p>1848 foi controlada pelo reino na Alemanha, mas ainda havia a</p><p>busca pela consolidação nacional, que só vai acontecer perto do</p><p>fim do século, com a unificação alemã.</p><p>A primeira e maior ocupação profissional de Marx ao longo</p><p>de sua vida tem relação com sua capacidade de pesquisa, uma veia</p><p>investigativa que lhe garantiu uma carreira jornalística longa, mas</p><p>frequentemente interrompida em razão da intensidade e subver-</p><p>são do ativismo político praticado e refletido, direta ou indireta-</p><p>mente, em seus escritos.</p><p>É de sua lavra como ativista político o livro Manifesto co-</p><p>munista, paradigmático para uma política radical por detalhar as</p><p>bases de um projeto comunista revolucionário, que inspirou deci-</p><p>sivamente as experiências de socialismo real. A história mostrou,</p><p>contudo, que as economias socialistas planificadas foram exitosas</p><p>em alguns de seus momentos iniciais, mas fracassaram no percur-</p><p>so rumo à consolidação, tornando o ‘manifesto’ datado. São algu-</p><p>mas as hipóteses aventadas para esse fracasso e elas são discuti-</p><p>das no capítulo 2 de Martins (1999), à luz dos próprios fundamen-</p><p>tos teóricos marxistas.</p><p>O capital foi desenvolvido na maturidade intelectual de seu</p><p>autor, após os 30 anos de vida; depois de ter estudado várias áreas</p><p>da ciência social, escrito obras sobre história, política e filosofia e</p><p>ter atuado politicamente. Para escrever a obra, Marx se desloca</p><p>para a Inglaterra, onde pode estudar mais o pensamento liberal</p><p>inglês que não viu na sua formação acadêmica histórica alemã</p><p>(Feijó, 2013, 225) mas conheceu em suas passagens pela França.</p><p>A crítica ao liberalismo clássico é seu ponto de partida, tan-</p><p>to que antes do Capital ele publica o Para a crítica da economia</p><p>política, livro que já contém as ideias centrais que explora mais</p><p>detidamente no livro posterior. Além da formação histórica, Marx</p><p>traz a área filosófica para complementar sua fundamentação, na</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 127</p><p>Sumário</p><p>qual o pensamento alemão já tinha forte tradição, com Hegel como</p><p>referência na dialética.</p><p>4.2. O princípio da discordância em relação aos</p><p>clássicos</p><p>A escola clássica, principal referência teórica econômica no</p><p>fim do século XVIII, compreendia a economia de mercado em si,</p><p>discutindo as possibilidades do mercado, seus problemas, e vis-</p><p>lumbrando soluções apenas dentro do mercado ou, esporadica-</p><p>mente, pelo governo. Marx efetua uma crítica profunda ao pensa-</p><p>mento liberal e à economia de mercado, inserindo-a dentro de um</p><p>processo histórico maior e compreendendo esse processo através</p><p>do materialismo dialético. Sua metodologia inovadora parte de</p><p>uma reinterpretação da dialética hegeliana, mas mantém a essên-</p><p>cia dialética de enxergar a realidade como movimento contínuo</p><p>decorrente de forças opostas e dinâmicas.</p><p>Compreendendo a obra dentro de sua metodologia e da</p><p>complexidade do fenômeno social, a teoria contida nas obras eco-</p><p>nômicas de Marx tem caráter investigativo exclusivamente cientí-</p><p>fico, mesmo que permeadas por variáveis sociais e políticas, en-</p><p>tendidas como relevantes para explicar a economia. Essa parte do</p><p>conjunto de sua obra que é reconhecida como científica, corres-</p><p>ponde à produção do ‘velho’ Marx, aquele que, segundo historia-</p><p>dores de sua produção, teria alcançado preparo e maturidade su-</p><p>ficientes para desenvolver uma teoria econômica livre de elemen-</p><p>tos doutrinários políticos. Isto aconteceu após os 30 anos de ida-</p><p>de, quando escreveu o Para a crítica à economia política (publica-</p><p>do em 1859).</p><p>Colletti (1983, 34) afirma que predomina o consenso acer-</p><p>ca do entendimento do marxismo enquanto ciência como sendo “o</p><p>estudo e análise das leis causais que determinam o movimento e</p><p>Alexandre Lyra Martins | 128</p><p>Sumário</p><p>desenvolvimento da sociedade”. Dentro desse prisma, chamado de</p><p>‘marxismo científico’, pesquisadores discutem elementos da di-</p><p>nâmica do capitalismo pouco explorados por Marx, como a infla-</p><p>ção70 ou a evolução do capital financeiro71. Nesses estudos, ques-</p><p>tões de fundo ideológico podem estar presentes como componen-</p><p>te explicativo da sustentação institucional dos modos de produ-</p><p>ção, sendo analisadas com distanciamento e seguindo o rigor me-</p><p>todológico.</p><p>Voltando ao Para a crítica da economia política, Marx inicia</p><p>sua exposição pela avaliação e reprovação do método utilizado</p><p>pelos principais pensadores liberais ingleses da época, Adam</p><p>Smith e David Ricardo, para apresentar o “método cientificamente</p><p>exato” (Marx, 1986, 14), o materialismo dialético, seguido de sua</p><p>teoria. As críticas de caráter metodológico que Marx fez aos eco-</p><p>nomistas clássicos citados podem ser sintetizadas da seguinte</p><p>forma:</p><p>1 - Absorção da realidade de forma a-histórica: a</p><p>percepção histórica dos clássicos se atinha à dinâ-</p><p>mica da economia de mercado em si e suas tendên-</p><p>cias, numa visão estrita à própria forma de organi-</p><p>zação produtiva que ignora todo um processo histó-</p><p>rico anterior, decisivo para a gestação, nascimento, e</p><p>evolução dessa e de qualquer sistema econômico.</p><p>2 - Idealização no processo de abstração: os clássi-</p><p>cos se deixaram levar pelos valores da própria soci-</p><p>edade que os educou, reproduzindo valores que tra-</p><p>ziam dentro de si de forma acrítica, resultando nu-</p><p>70 Caso de Mandel (1985).</p><p>71 Caso de Hilferding (1985).</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 129</p><p>Sumário</p><p>ma preconcepção da realidade que pretendiam ex-</p><p>plicar.</p><p>Mas como escapar dessas armadilhas ao escrever uma teo-</p><p>ria social? Para Marx, a resposta a essa questão passa pela pers-</p><p>pectiva crítica que um cientista deve ter frente ao fenômeno estu-</p><p>dado. Um cientista social deve transpor as aparências das coisas</p><p>tais como se apresentam de forma mais imediata para alcançar as</p><p>articulações nelas ocultas, o que significa agregar um nível adicio-</p><p>nal à sequência ‘concreto - abstrato’ na elaboração da teoria: o</p><p>concreto pensado. Só neste nível, o estudioso teria a consciência</p><p>crítica apurada através da reflexão forçada pela confrontação en-</p><p>tre a teoria construída e o ponto de partida que foi a realidade</p><p>concreta apreendida inicialmente de forma despretensiosa, caóti-</p><p>ca. O percurso metodológico correto e completo na perspectiva</p><p>marxista seria, portanto:</p><p>CONCRETO ABSTRATO CONCRETO PENSADO</p><p>Dentro da porção econômica da obra de Marx, a parte me-</p><p>todológica é a mais árida para muitos, porque são poucos os escri-</p><p>tos relativos a este tema deixados pelo próprio autor, e esses são</p><p>alguns dos de compreensão mais árdua. O principal</p><p>material rela-</p><p>tivo a este ponto se encontra no livro Para a Crítica da Economia</p><p>Política, no terceiro tópico do capítulo introdutório, intitulado o</p><p>método da Economia Política.</p><p>Como a proposta deste trabalho é a de tornar as ideias dos</p><p>pensadores clássicos mais acessíveis ao estudante, pretende-se</p><p>aqui realizar uma exposição clara e direta sobre os aspectos fun-</p><p>damentais do método marxista sem cair em simplificações que</p><p>comprometam seu conteúdo, evitando, ao mesmo tempo, explorar</p><p>pontos de entendimento mais complexos (bem como debates</p><p>Alexandre Lyra Martins | 130</p><p>Sumário</p><p>acerca desses pontos). Para exemplificar, retomemos a matéria,</p><p>comentando um trecho do tópico citado, nesse parágrafo, onde ele</p><p>faz (com seu estilo rebuscado) menção ao percurso metodológico</p><p>apontado anteriormente:</p><p>“O concreto é concreto porque é síntese de mui-</p><p>tas determinações, isto é, unidade do diverso. Por</p><p>isso o concreto aparece no pensamento como o</p><p>processo da síntese, como resultado, não como</p><p>ponto de partida efetivo e portanto, o ponto de</p><p>partida também da intuição e da representação.</p><p>No primeiro método a representação plena vola-</p><p>tiliza-se em determinações abstratas, no segundo,</p><p>as determinações abstratas conduzem à reprodu-</p><p>ção do concreto por meio do pensamento.”</p><p>(Marx, 1986, 14)</p><p>O primeiro método referido, no caso, é o dos clássicos</p><p>Smith e Ricardo, enquanto o segundo é o método proposto por ele,</p><p>chegando ao concreto pensado. Com estas palavras, Marx se refere</p><p>ao mercado e aos mecanismos detectados pelos clássicos para</p><p>compreendê-lo como conceitos que obscurecem a verdadeira na-</p><p>tureza das trocas dentro da sociedade capitalista: as relações soci-</p><p>ais e de produção (... a representação plena volatiliza-se em deter-</p><p>minações abstratas...). Além disso, encaminha o leitor para o cor-</p><p>reto entendimento a respeito da sociedade e da economia, como</p><p>produtos históricos de várias épocas passadas, que consistem em</p><p>‘determinações’ não desprezíveis da ‘unidade’ da organização so-</p><p>cioeconômica presente, indicando a importância do componente</p><p>histórico na compreensão do todo social.</p><p>Esta armadilha pode ser percebida na racionalidade do</p><p>homem ‘natural’ dos clássicos. A naturalidade da liberdade é refle-</p><p>tida nas possibilidades de escolha que o mercado oferece e que</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 131</p><p>Sumário</p><p>são exercitadas pelos indivíduos com base na relação custo bene-</p><p>fício e preferências diversas. Smith recorre frequentemente à or-</p><p>dem natural das coisas em sua obra para definir a tendência da</p><p>economia no sentido do mercado, como melhor opção de alocação</p><p>dos fatores de produção por proporcionar a maior produtividade.</p><p>Para o raciocínio liberal, sem a liberdade as pessoas e a so-</p><p>ciedade têm seus destinos determinados por alguns, que prote-</p><p>gem, distorcem e reprimem, com vistas à sustentação de privilé-</p><p>gios, mas numa sociedade livre, que seria a condição natural do</p><p>ser humano, não haveria espaço para isso e as pessoas poderiam</p><p>fazer o que quisessem, se preocupando apenas em tentar obter</p><p>mais renda possível. Como resultado, o mercado seria procurado e</p><p>desenvolvido por oferecer perspectivas a qualquer um que qui-</p><p>sesse produzir ou comercializar mercadorias. Nessa leitura natu-</p><p>ral da história humana, a economia de mercado seria o ápice da</p><p>evolução social e econômica.</p><p>Marx prossegue dando exemplos no texto supracitado de</p><p>como a percepção equivocada do aspecto histórico pode gerar</p><p>equívocos. A interpretação da categoria trabalho é uma demons-</p><p>tração do que pode ocorrer. Os metalistas identificavam a riqueza</p><p>com os metais, já os mercantilistas só concebiam o trabalho co-</p><p>mercial como criador de riqueza (lucro que aparecia com o co-</p><p>mércio), enquanto os fisiocratas acreditavam na superioridade do</p><p>trabalho agrícola na geração do valor.</p><p>Frutos de contextos históricos distintos, onde um ou outro</p><p>tipo de trabalho predominava, as correntes teóricas mercantilistas</p><p>e fisiocratas tomam o status quo (uma realidade limitada) como</p><p>algo que transcende aquelas fronteiras temporais e espaciais, co-</p><p>mo se uma determinada atividade fosse a fonte exclusiva de ri-</p><p>queza. Assim como critica a fragilidade dessas teorizações, que</p><p>integram o capítulo da pré-história da economia, Marx reconhece</p><p>a evolução que há com a concepção de Smith, ao desvincular a ori-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 132</p><p>Sumário</p><p>gem do valor de trabalhos específicos para o trabalho em geral,</p><p>embora coloque a limitação de sua análise, quando recai no con-</p><p>texto mercantilista de produção:</p><p>“...Até as categorias mais abstratas... são, contudo,</p><p>na determinidade desta abstração, igualmente</p><p>produto de condições históricas, e não possuem</p><p>plena validez senão para estas condições e dentro</p><p>do limite destas.” (Marx, 1986, 17)</p><p>Em princípio, Marx vai concordar com a ideia central dos</p><p>clássicos de que o trabalho é quem gera valor, mas reformula essa</p><p>premissa geral com outras categorias condizentes com sua meto-</p><p>dologia diferenciada. Na visão marxista, Smith erra ao reconhecer</p><p>a legitimidade das remunerações da propriedade (da terra e do</p><p>capital), uma vez que todo capital é sempre resultante de proces-</p><p>sos anteriores de acumulação primitiva, baseadas em expropria-</p><p>ção ou exploração de trabalho humano alheio72.</p><p>De acordo com Marx, o trabalho é o único gerador de ri-</p><p>queza e o capitalista não paga uma parte da remuneração que ca-</p><p>be ao trabalhador, apropriando-a na forma de lucro. O salário se-</p><p>ria apenas a parte paga ao trabalhador, enquanto o lucro seria o</p><p>trabalho não pago, a mais valia, que o capitalista procura sempre</p><p>aumentar por meio de mecanismos como aumento da jornada de</p><p>trabalho ou uso de novas tecnologias intensificadoras do processo</p><p>produtivo que podem até poupar trabalho vivo 73. Essa é a única</p><p>teoria de exploração proposta na literatura econômica. O traba-</p><p>72 Processos históricos que ele vai detalhar no capítulo 24 do livro I do Capital.</p><p>73 Objeto de estudo da seção II do livro I (capítulos 5 a 10) do Capital. Máquinas</p><p>são consideradas por Marx como trabalho morto, posto que foi preciso deposi-</p><p>tar trabalho vivo anterior para produzi-las. O trabalho vivo termina com a con-</p><p>clusão da produção da mercadoria, mas fica depositado nelas; designado a par-</p><p>tir daí como trabalho morto.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 133</p><p>Sumário</p><p>lhador é um sujeito que foi historicamente desapropriado de seus</p><p>meios de trabalho e se transformou em homem livre, contando</p><p>apenas com sua força de trabalho para obter sua sobrevivência, e</p><p>é isso que o trabalhador recebe do mercado; apenas o suficiente</p><p>para a sobrevivência.</p><p>A permanência da exploração está garantida pela existên-</p><p>cia da grande oferta de desempregados existentes na economia</p><p>capitalista, iniciada originalmente com a expulsão dos campone-</p><p>ses ao longo do mercantilismo. Marx batizou esse contingente po-</p><p>pulacional expressivo de ‘exército industrial de reserva’, contin-</p><p>gente esse que, de alguma maneira, Ricardo e Malthus já destaca-</p><p>vam como importante fator a ser considerado para a dinâmica</p><p>econômica. Ricardo afirmava que o excesso populacional era a</p><p>razão principal da tendência à estabilidade do nível dos salários</p><p>no longo prazo, enquanto Malthus fazia ilações precipitadas acer-</p><p>ca de uma suposta impossibilidade do controle do crescimento</p><p>populacional74.</p><p>A crescente exclusão da maior parte da população devido à</p><p>tendência do sistema capitalista em substituir trabalhadores por</p><p>máquinas, além de centralizar e concentrar capital, impulsionou o</p><p>jovem Marx a defender o projeto político socialista como forma de</p><p>superação do capitalismo, por meio da organização e mobilização</p><p>da população nesse sentido. Com o tempo, constatou-se que Mal-</p><p>thus superestimou o crescimento populacional ao extrapolar uma</p><p>tendência da taxa de natalidade de um período histórico específi-</p><p>de um implicaria em déficit comercial para outro. Sabe-se</p><p>que esta fase não foi um período favorável ao desenvolvimento</p><p>das ideias em função do domínio de uma linha conservadora na</p><p>igreja católica, fechada a qualquer discussão fora do que fosse</p><p>produzido ou reconhecido por ela na idade média, mas, mesmo</p><p>assim, houve algum desenvolvimento teórico pontual de temas</p><p>distintos por pensadores, principalmente franceses e alemães.</p><p>O mercantilismo tinha uma visão objetiva da economia.</p><p>Tudo era decorrência da suposição de que o importante era ven-</p><p>der mais do que comprar, para obter e acumular moeda, a riqueza</p><p>em si, o objetivo final que proporcionava poder de compra. O Es-</p><p>tado deveria auxiliar nessa competição restringindo ou mesmo</p><p>proibindo as importações, sendo que o critério para se adotar uma</p><p>dessas duas opções poderia ser a existência da atividade produti-</p><p>va no país, por menos desenvolvida que fosse. Como se vê, eram</p><p>Alexandre Lyra Martins | 16</p><p>Sumário</p><p>protecionistas, em maior ou menor grau. Por essa perspectiva, o</p><p>Estado deveria estimular as exportações e limitar as importações</p><p>o máximo possível para promover a economia.</p><p>Os primeiros a contestar a concepção mercantilista foram</p><p>os fisiocratas (século XVIII), apresentando uma interpretação libe-</p><p>ral afinada com o espírito iluminista que surgia em sua época e se</p><p>rebelando contra o Estado absolutista, entretanto, pouco desen-</p><p>volveram suas ideias, passando para a história como uma escola</p><p>de pensamento pré-científica que se ateve muito às condições de</p><p>produção da França, berço de seus mentores. Os fisiocratas dimi-</p><p>nuíram a importância do comércio e colocaram as atividades agrí-</p><p>colas em primeiro plano, como fontes da geração de riqueza, a</p><p>atividade produtiva que fornece a matéria prima a partir da qual</p><p>todas outras se movimentam.</p><p>1.GREGOS</p><p>FASE PRÉ-CIENTÍFICA: 2. MERCANTILISTAS</p><p>3. FISIOCRATAS</p><p>A fase científica da economia é inaugurada em 1776 por</p><p>Smith com A Riqueza das Nações e com ela vêm outras possibili-</p><p>dades de equívocos, aqui explorados e explicados adiante. Con-</p><p>forme foi visto, ciência econômica tem por objetivo estudar a ati-</p><p>vidade produtiva humana, mas cada pensador tem um objetivo</p><p>particular. Smith, em sintonia com o principal problema de sua</p><p>época (princípio da revolução industrial), a escassez de produção,</p><p>se dedicou a construir uma teoria do crescimento econômico, a</p><p>partir da qual explica o funcionamento da economia de mercado.</p><p>Neste momento inicial, a ciência econômica foi designada</p><p>como economia política3. Ela aparecia em pontos da obra de vários</p><p>3 Quem primeiro usou a expressão economia política foi Malthus.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 17</p><p>Sumário</p><p>pensadores e filósofos, geralmente como um aspecto da realidade</p><p>social4 e daí se descolou para constituir um escopo próprio, sem</p><p>perder sua ligação com as questões sociais (refletida na palavra</p><p>política). Esse componente social vai ser elemento importante e</p><p>indissociável na concepção desses pensadores que formaram a</p><p>escola clássica, o que seria de se esperar, uma vez que a produção</p><p>social é feita pelos homens e para os homens.</p><p>Uma premissa dos estudos clássicos é que o problema eco-</p><p>nômico é um problema da humanidade e, como tal, deve conside-</p><p>rar o elemento político decorrente das relações socioeconômicas,</p><p>em suas determinações. A dimensão social se reflete historica-</p><p>mente numa das premissas principais da escola clássica: a defesa</p><p>da liberdade (que contestava o intervencionismo do pesado Esta-</p><p>do mercantilista). Isto vai ficar mais nítido com o segundo grande</p><p>marco da fase clássica, David Ricardo, que publicou sua obra 4</p><p>décadas depois de Smith, sendo contemporâneo de um contexto</p><p>social um pouco mais conturbado que o de Smith5, o que se refle-</p><p>tiu diretamente na escolha de seu objetivo principal: a distribui-</p><p>ção de renda.</p><p>Depois de quase 100 anos da publicação da Riqueza das na-</p><p>ções, vai aparecer O capital, obra do maior crítico da concepção</p><p>liberal reinante: Karl Marx. Mesmo sendo considerado autor da</p><p>fase clássica do pensamento econômico, Marx ergue sua teoria</p><p>considerando uma metodologia alternativa, distinta da usada pe-</p><p>los clássicos, e assim acaba se firmando como uma das principais</p><p>referências teóricas da economia política moderna. O objetivo de</p><p>Marx no Capital, por sua vez, era desvendar toda lógica do funcio-</p><p>namento do sistema capitalista de produção.</p><p>Com a chegada dos neoclássicos, ainda na segunda metade</p><p>do século XIX, muda a visão dos principais economistas do mains-</p><p>4 Em autores como Hume, Harris e Davenant.</p><p>5 Particularmente para o Reino Unido, onde ambos nasceram e viveram.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 18</p><p>Sumário</p><p>tream, que passam a pensar a economia de forma isolada, sem</p><p>comunicação com as outras ciências. Schumpeter sintetiza o espí-</p><p>rito neoclássico (mesmo sem sê-lo exatamente): o universo eco-</p><p>nômico já encerraria uma quantidade de variáveis tão expressiva</p><p>que já seria desafio suficiente compreendê-lo em si, daí a necessi-</p><p>dade de abandonar o estudo dos aspectos sociais; mesmo sendo</p><p>esses muito importantes:</p><p>“O processo social, na realidade, é um todo indivisível. De</p><p>seu curso, a mão classificadora do investigador extrai ar-</p><p>tificialmente os fatos econômicos. A designação de um fa-</p><p>to como econômico já envolve uma abstração, a primeira</p><p>de muitas que nos são impostas (...) Os fatos econômicos</p><p>resultam do comportamento econômico ...”</p><p>(Schumpeter, 1985, 9)</p><p>O resultado disso é a negação de qualquer adjetivação à pa-</p><p>lavra economia, como acontecia antes na denominação economia</p><p>política. Essa nova vertente adotou essa premissa e começou a</p><p>deixar de fora da investigação os elementos sociais e históricos. A</p><p>percepção disso, porém, só ocorreu aos poucos, tanto que o pró-</p><p>prio Walras, um dos fundadores da escola neoclássica, intitulou</p><p>uma de suas principais obras de Compêndio dos elementos de eco-</p><p>nomia política e pura (publicado em 1874), dai porque podemos</p><p>dizer que com os neoclássicos surge a ‘economia pura’, sua correta</p><p>denominação. O outro grande nome da escola neoclássica é Alfred</p><p>Marshall, sendo que ambos contribuíram no sentido de construir</p><p>uma teoria para explicar a tendência dos mercados ao equilíbrio6,</p><p>e foi nessa fase que a econometria surgiu e avançou, trazendo com</p><p>ela a matemática e a estatística para dentro da ciência econômica.</p><p>6 Outros nomes dessa vertente são Jevons, Wicksell, Menger, Pareto e Fischer.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 19</p><p>Sumário</p><p>O próximo grande marco teórico da economia surgiu ape-</p><p>nas após o advento das grandes crises no início do século XX, par-</p><p>ticularmente a de 1929 nos EUA. Keynes reformulou a teoria neo-</p><p>clássica, adequando-a às transformações do capitalismo, que se</p><p>mostrava instável e susceptível a crises mais imponentes, des-</p><p>mentindo a crença liberal que dominava os meios acadêmicos e as</p><p>esferas de poder à época, na capacidade auto regulatória dos mer-</p><p>cados.</p><p>Havia momentos em que o mercado se tornava o pior dos</p><p>reguladores da produção, aumentando as dimensões da crise, daí</p><p>Keynes defendeu a intervenção governamental para resolver esse</p><p>problema em seu livro referencial A teoria geral do emprego, do</p><p>juro e da moeda, de 1936, cujo objetivo principal era reparar os</p><p>equívocos da teoria neoclássica e atualizá-la para dar uma expli-</p><p>cação satisfatória à nova realidade de desequilíbrio como regra</p><p>dos mercados.</p><p>1 ESCOLA CLÁSSICA</p><p>FASE CIENTÍFICA: 2. MARX</p><p>(Grandes referências) 3. NEOCLÁSSICOS</p><p>4. KEYNES</p><p>Acontece que os economistas puros não assumiram essa</p><p>denominação e preferiram se apropriar da palavra economia; co-</p><p>meçando outro problema semântico, pois a vertente da economia</p><p>política nunca deixou de existir. Com vários manuais de economia</p><p>pura sendo intitulados apenas pela palavra economia (manual</p><p>co da humanidade, subestimando mudanças comportamentais,</p><p>científicas e tecnológicas, Ricardo subestimou principalmente a</p><p>capacidade inovadora do homem e a importância de outras variá-</p><p>veis na determinação do processo de crescimento econômico, e o</p><p>‘jovem’ Marx errou politicamente ao superestimar a capacidade</p><p>74 A famosa tese Malthusiana da população crescer em progressão geométrica</p><p>enquanto a produção de alimentos cresce em progressão aritmética.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 134</p><p>Sumário</p><p>humana em avançar na construção de uma sociedade mais iguali-</p><p>tária. O ‘velho’ Marx, contudo, acertou na seleção das variáveis e</p><p>na construção da relação entre elas, formulando uma teorização</p><p>válida para elucidar os processos que comandam a lógica da pro-</p><p>dução capitalista, tudo decorrente da escolha do método materia-</p><p>lista dialético.</p><p>4.3. O método materialista dialético</p><p>Antes de mais nada, é preciso enfatizar que Marx não criou</p><p>nem o método histórico nem o dialético, mas sua contribuição se-</p><p>minal foi unir os dois e realizar uma releitura das concepções pre-</p><p>existentes para gerar uma concepção singular, dialética, da histó-</p><p>ria. Sua referência é a dialética hegeliana, que ele toma conheci-</p><p>mento quando vai estudar em Berlim, mas a reinterpreta a ponto</p><p>de propor, como elemento propulsor do processo dialético, o</p><p>avesso do colocado por Hegel.</p><p>Enquanto Hegel defendia que a origem do processo dialéti-</p><p>co está nas ideias, afirmando que só a capacidade de reflexão e</p><p>elaboração humana é que podem acarretar processos de trans-</p><p>formação da realidade que o cerca, Marx inverte o raciocínio e</p><p>afirma que as condições materiais, particularmente as econômi-</p><p>cas, são o ponto de partida efetivo dos processos históricos ao</p><p>fornecer os elementos para reformulação das concepções vigen-</p><p>tes, que, por sua vez, vão desencadear as transformações socioe-</p><p>conômicas posteriormente; daí a denominação ‘materialismo dia-</p><p>lético’.</p><p>A premissa lógica é de que a análise só pode vir após a ob-</p><p>servação da realidade concreta, que determina as condicionantes</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 135</p><p>Sumário</p><p>concretas para o homem refletir75. Ao enfatizar a materialidade</p><p>em seu método, Marx traz a objetividade para o centro da discus-</p><p>são das transformações sociais, e com ela, a importância da ativi-</p><p>dade produtiva para a definição das demais dimensões, subjetivas,</p><p>da humanidade, tais como as questões políticas, religiosas e cultu-</p><p>rais. O ser humano é um todo composto por várias facetas que</p><p>dialogam entre si, sendo que, dessas, a economia é a mais relevan-</p><p>te por delimitar as possibilidades de desenvolvimento das demais.</p><p>Para trabalhar com uma ciência social é necessário, como</p><p>premissa adicional, que o pesquisador se distancie do contexto</p><p>histórico no qual está inserido, para interpretá-lo com isenção e</p><p>chegar à essência do fenômeno estudado. Esse é um trabalho ár-</p><p>duo, porque numa forma de organização social qualquer (no nos-</p><p>so caso o capitalismo contemporâneo) as pessoas normalmente</p><p>estão impregnadas de valores do sistema que as rodeia, valores</p><p>que se naturalizam e se refletem em posturas políticas e morais,</p><p>que podem influenciar também as ideias produzidas76.</p><p>A longevidade dos modos de produção, bem superiores à</p><p>expectativa de vida do homem, dificulta uma percepção isenta e</p><p>crítica acerca de transformações da sociedade e dá ao observador</p><p>comum uma falsa impressão estática do organismo social, indu-</p><p>zindo-o a acreditar que as coisas mudam apenas em aspectos se-</p><p>cundários, mas não na sua essência77. O pesquisador acadêmico,</p><p>contudo, não pode cair nessa armadilha porque deve estar atento</p><p>75 “... Parece que o correto é começar pelo real e pelo concreto, que são a pres-</p><p>suposição prévia e efetiva...” Marx (1986, 14).</p><p>76 E aí o processo de abstração para a construção da teoria fica prejudicado: “Os</p><p>economistas do século XVII, por exemplo, começaram sempre pelo todo vivo: ...</p><p>; mas terminam sempre por descobrir, ... , certo número de relações abstratas.”</p><p>(Marx, 1986, 14).</p><p>77 Segundo Marx, mesmo uma leitura convencional de desenvolvimento históri-</p><p>co compreende “... as formas passadas como etapas que levam a seu próprio</p><p>grau de desenvolvimento, e ... dado que ela raramente é capaz de fazer a sua</p><p>própria crítica – concebe-os sempre sob um aspecto unilateral.” (1986, 18).</p><p>Alexandre Lyra Martins | 136</p><p>Sumário</p><p>à busca do ideal da neutralidade na investigação científica, através</p><p>do distanciamento do objeto e do uso de métodos apropriados.</p><p>Enfim, antes de entrar na exposição do método marxista,</p><p>cabe uma observação final em relação à opção formal do texto</p><p>aqui desenvolvido. Como colocado anteriormente, o método em</p><p>questão é composto de duas partes inseparáveis, entretanto, para</p><p>efeito de uma exposição didática, pode ser feita uma comparti-</p><p>mentação para acentuar as características específicas de cada uma</p><p>delas.</p><p>A história e a dialética estão intrinsecamente conectadas</p><p>pelo movimento permanente e dinâmico. Diferentemente de per-</p><p>cepções históricas que se sustentam em deduções ou induções,</p><p>cada parte tem seu conteúdo próprio, que a conceitua e remete a</p><p>seu papel no todo. Dito isto, segue a exposição, reforçando que não</p><p>se pode dissociar o aparato histórico-dialético numa interpretação</p><p>marxista dos fenômenos sociais e econômicos, sob pena de obter</p><p>um entendimento falho, parcial ou mesmo distorcido do objeto</p><p>estudado.</p><p>Pode-se designar o método marxista materialista dialético</p><p>por outras expressões, como lógico-histórico e dialético ou sim-</p><p>plesmente dialético/histórico. O fundamental é que não se pode</p><p>falar apenas em método dialético ou método histórico. Os dois</p><p>aspectos do método marxista são complementares, inseparáveis e</p><p>salientam uma perspectiva dinâmica da sociedade só possível por</p><p>meio de uma compreensão dialética da evolução dos fatos histori-</p><p>camente relevantes.</p><p>As formas sociais de organização passadas representam</p><p>etapas do desenvolvimento da sociedade, fases diversas que, em-</p><p>bora aparentemente desvinculadas, estão relacionadas entre si e</p><p>não podem ser entendidas isoladamente. As conexões entre essas</p><p>etapas são explicadas pelas leis da dialética, que oferece uma ex-</p><p>plicação lógica para o desencadear dos acontecimentos, enquanto</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 137</p><p>Sumário</p><p>a parte histórica do método garante caráter científico às observa-</p><p>ções, na medida em que prova o processo com fatos ocorridos e</p><p>documentados.</p><p>4.3.1. Do componente histórico</p><p>Conforme Martins (1999, 25), a importância do componen-</p><p>te histórico dentro do rigor analítico de Marx está em determinar</p><p>três pontos de sustentação da teoria a ser construída, quais sejam:</p><p>1- situar no tempo o nível de desenvolvimento das forças produti-</p><p>vas materiais, 2- relacionar as categorias fundamentais corres-</p><p>pondentes a cada modo de produção, e 3- fornecer a contraprova</p><p>com fatos históricos às teorias formuladas.</p><p>Cabe ao método histórico identificar os elementos básicos</p><p>das organizações sociais para a dialética qualificá-los, detectando</p><p>sua dinâmica e sua relação com os demais elementos, construindo</p><p>um entendimento dos sistemas socioeconômicos por meio das</p><p>especificidades de cada um deles. Além disso, como foi colocado</p><p>acima, vai comprovar cientificamente a teoria construída com fa-</p><p>tos e documentos históricos.</p><p>A história é um processo continuo, mas não linear e pouco</p><p>regular, em que dimensões da vida social se alternam em impor-</p><p>tância dependendo do período examinado. A contemporaneidade</p><p>do século XXI ressalta a velocidade de transformações tecnológi-</p><p>cas e de processos detectados por Marx a dois séculos atrás,</p><p>quando não eram tão perceptíveis assim, como a substituição do</p><p>trabalhador por máquinas robotizadas comandadas por progra-</p><p>mas de computador.</p><p>Na antiguidade e na idade média a humanidade avançava</p><p>em passos mais</p><p>lentos e tumultuados, pois com os recursos técni-</p><p>cos e insumos disponíveis, prevalecia uma luta explícita pela do-</p><p>minação e subjugação de povos para aumentar a riqueza. As guer-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 138</p><p>Sumário</p><p>ras se prolongaram no século XX redirecionando o motivo central</p><p>delas para a defesa de um novo ideal de libertação dos povos de</p><p>regimes autoritários diversos, algo que ainda não está completa-</p><p>mente resolvido na humanidade, até pela hegemonia do contradi-</p><p>tório modelo de libertação ocidental78.</p><p>Marx articula os fatos históricos por meio de uma análise</p><p>distanciada e crítica de sua dinâmica, colocando a atividade pro-</p><p>dutiva e as relações sociais de produção como fulcrais na deter-</p><p>minação da direção evolutiva da humanidade, mas considerando</p><p>também os interesses políticos relacionados.</p><p>Os acontecimentos históricos são a fonte da investigação</p><p>para extrair informações substanciais relativas ao nível de desen-</p><p>volvimento técnico e humano da atividade produtiva na socieda-</p><p>de: a forma como é realizada a produção, seus recursos, suas limi-</p><p>tações, possibilidades e como a sociedade se articula em torno</p><p>dela. Dado o estágio de evolução das forças produtivas, os fatos</p><p>históricos mostram também as interações relevantes entre a vari-</p><p>ável econômica e os demais aspectos da vida social, fornecendo</p><p>paralelamente as provas das afirmações e as relações causais ex-</p><p>traídas da observação do contexto e dos processos históricos.</p><p>Além da relevância do elemento socioeconômico, o enfoque</p><p>histórico marxista se distingue da leitura clássica da história pela</p><p>compreensão ativa do homem no decorrer do processo histórico.</p><p>Os clássicos procuram explicar o mercado e seu desenvolvimento</p><p>como consequência de relações livres como na natureza. Se as</p><p>pessoas têm liberdade, procuram as melhores formas de produzir</p><p>e a partir daí há simplesmente uma sucessão de acontecimentos.</p><p>Para os pensadores clássicos, a história social da economia</p><p>de mercado é encarada como história natural, pois os eventos</p><p>acontecem em decorrência de fenômenos naturais, como seria a</p><p>78 As democracias líderes muitas vezes apoiaram ditaduras ao longo do século</p><p>XX.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 139</p><p>Sumário</p><p>própria condição de liberdade do ser humano. O mercado emerge</p><p>em razão do estabelecimento das relações livres entre as pessoas</p><p>(que seriam relações naturais), em oposição a contextos anterio-</p><p>res em que havia forte intervenção governamental na vida das</p><p>pessoas.</p><p>Do ponto de vista marxista, a história humana não é natu-</p><p>ral, e sim construída. Mesmo quando a sociedade é caoticamente</p><p>livre, isto é aparência, pois sempre há um processo de construção</p><p>social em que grupos sociais são centrais, dada a tecnologia dis-</p><p>ponível. As forças produtivas são a mola-mestra do processo his-</p><p>tórico e o ser humano é a principal força produtiva, considerado</p><p>coletivamente, pois a articulação produtiva se fará na forma de</p><p>relações de produção em que uma classe social domina o sistema,</p><p>enquanto uma outra obedece (em princípio), designando o rumo</p><p>da sociedade.</p><p>Sendo os homens ativos no processo, mesmo os enquadra-</p><p>dos na classe dominada, entretanto, podem atuar no processo his-</p><p>tórico se surgir uma nova forma de executar a produção ou mes-</p><p>mo se o nível de conscientização socioeconômica se elevar signifi-</p><p>cativamente, tornando aptos a avaliar os caminhos e tomar deci-</p><p>sões que impactam mais ou menos na construção do presente e do</p><p>futuro da sociedade. Nesta condição e perspectiva, o homem, em</p><p>particular da classe dominada, não seria necessariamente passa-</p><p>geiro na história social, ele poderia ser um ‘motorista’ que conduz</p><p>o bonde da história, deixando a situação inicial de conduzido por</p><p>outros homens, para ser protagonista.</p><p>Para Marx, diferentemente dos demais seres, o homem é</p><p>racional, reflete sobre sua condição, é capaz de redefinir rumos,</p><p>planejar e executar planos, o que, aliado a uma compreensão his-</p><p>tórica do contexto social atual e passado, pode resultar em postu-</p><p>ra ativa diante da realidade. Com todo esse papel, no entanto,</p><p>mesmo participando ativamente do processo histórico, seu poder</p><p>Alexandre Lyra Martins | 140</p><p>Sumário</p><p>em protagonizar a história não é ilimitado, ao contrário, é restrito</p><p>objetivamente pelas demais condições históricas materiais de sua</p><p>época, em especial a tecnologia e os recursos conhecidos disponí-</p><p>veis. Enfim, na visão de Marx, não é a natureza humana que de-</p><p>termina a caracterização do contexto histórico na predominância</p><p>da liberdade, se impondo por si, mas sim, como, em todos contex-</p><p>tos, são as condições materiais de produção, sua assimilação e a</p><p>ação dos grupos sociais que constroem o momento histórico.</p><p>4.3.2. Da dialética materialista</p><p>O método dialético, por sua vez, busca explicar o movimen-</p><p>to interno e externo dos corpos, considerando a interação desses</p><p>movimentos para gerar a transformação. Constatada a dinâmica, é</p><p>vislumbrada uma direção a esta. A dialética, como já foi posto, é</p><p>anterior a Marx79, e suas leis fundamentais são aproveitadas. Sua</p><p>origem está no diálogo, na arte da argumentação. Numa discussão,</p><p>alguém lança uma ideia, uma opinião inicial que corresponde a</p><p>uma ‘tese’. Ao refletir sobre a proposição original, outra pessoa</p><p>contra-argumenta, mostrando uma opinião alternativa; a ‘antíte-</p><p>se’. Enfim, havendo debate construtivo, chega-se à ‘síntese’, uma</p><p>superação de ambas posições anteriores, que é construída a partir</p><p>dos elementos dessas.</p><p>Com essa ilustração da essência da dialética, representada</p><p>a partir de uma tríade, pode-se apresentar uma definição simples</p><p>e inicial para ela: “o desenvolvimento de processos gerados por</p><p>oposições que provisoriamente se resolvem em unidades” (Fer-</p><p>reira, 1986, 585). Desde já, deve ser ressaltado que também a sín-</p><p>79 A dialética surgiu na Grécia antiga e, desde seus fundadores, diversos pensa-</p><p>dores aperfeiçoaram esta vertente do raciocínio filosófico. A literatura especia-</p><p>lizada sobre o assunto é extensa, de forma que se encontrar referências diver-</p><p>sas sobre o tema, como por exemplo Lefebvre (1983) ou Engels (1979).</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 141</p><p>Sumário</p><p>tese não é definitiva, posto que se transmutará em tese num se-</p><p>gundo momento, e como tal, será alvo de reflexão, desencadeando</p><p>outro ciclo dialético.</p><p>1. TESE</p><p>O PROCESSO DIALÉTICO: 2. ANTITESE</p><p>3. SÍNTESE</p><p>O entendimento completo da lógica dialética, porém, é um</p><p>pouco mais complexo e passa pela apreensão de seus princípios</p><p>expressos na forma de leis. Estas devem ser estudados em se-</p><p>qüência, pois cada princípio consiste num aprofundamento analí-</p><p>tico da suposição anterior; senão vejamos:</p><p>a - Lei da interação universal: as partes de um todo não</p><p>podem ser compreendidas isoladamente. Cada unidade está co-</p><p>nectada com outros corpos, de forma que cada planeta, estrela,</p><p>corpo celeste, animal, árvore interage com outros corpos de seu</p><p>universo/horizonte, com maior ou menor intensidade, influenci-</p><p>ando o comportamento dos outros e sendo influenciado por eles.</p><p>Isso também inclui um ser humano em sua interação com os ou-</p><p>tros e com a natureza, que define sua forma de organização em</p><p>sociedade.</p><p>A sociedade, por sua vez, compõe um todo maior, uma uni-</p><p>dade também contraditória e mutante. Essa premissa remete a</p><p>uma compreensão científica igualmente integrada, pois o que é</p><p>um fenômeno físico é também químico e biológico, são dimensões</p><p>que devem ser compreendidas de forma agregada. Por essa pers-</p><p>pectiva, a economia é um elemento conectado com outros aspec-</p><p>tos da realidade social: os fenômenos políticos, culturais, psicoló-</p><p>gicos, antropológicos, geográficos, etc.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 142</p><p>Sumário</p><p>b - Lei do movimento universal: constatado que tudo está</p><p>relacionado, vem a observação de que tudo é dinâmico. Há um</p><p>movimento</p><p>interno que provém do próprio corpo e um movimen-</p><p>to externo, advindo da interação com outros corpos. Toda matéria</p><p>tem sua dinâmica própria enquanto unidade, dada pelo seu meta-</p><p>bolismo interno, sua mecânica individualizada, seja ela o homem,</p><p>a terra, o vírus, a bactéria, a sociedade, etc. Por outro lado, todo</p><p>corpo convive, independente de sua vontade, com outros corpos e</p><p>essa relação afeta sua dinâmica interna, assim como sua dinâmica</p><p>atinge as outras matérias. É a interação desses movimentos que</p><p>gera o movimento global da matéria e da sociedade, as transfor-</p><p>mações no cosmo, a evolução das espécies, o desenvolvimento</p><p>socioeconômico, etc.</p><p>c - Lei da unidade dos opostos: tese x antítese: síntese. Na</p><p>unidade da matéria (física ou social), seu movimento universal é</p><p>determinado por forças internas opostas, cuja dinâmica conduz a</p><p>uma superação constante, formando, ao final, outra unidade. A</p><p>matéria aparentemente é estática, mas na realidade é dinâmica, e</p><p>essa dinâmica decorre de forças contraditórias presentes em seu</p><p>interior: tese e antítese. Incialmente a tese é mais forte, contudo, a</p><p>antítese, que aparece de forma inexpressiva, avança e enfrenta,</p><p>como força ascendente, a decadente tese.</p><p>Dentro dos seres vivos, por exemplo, há forças que o im-</p><p>pulsionam à vida e forças opostas que o levam à morte, forças</p><p>constantemente ativas e em embate. Os mecanismos que remetem</p><p>à morte na fase inicial da vida são insignificantes (antítese) frente</p><p>às forças vitais (tese), mas à frente vão se expandir e se mostrar</p><p>decisivos, havendo a capacidade de reprodução para perpetuação</p><p>da espécie e superação da tendência inexorável à morte, trazendo</p><p>um novo ser diferente dos anteriores, mas ‘síntese’ de suas genéti-</p><p>cas e resultado da formação familiar e social obtida.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 143</p><p>Sumário</p><p>Na unidade social, por sua vez, também convivem interes-</p><p>ses divergentes e a tensão é a regra. Num momento há predomi-</p><p>nância inconteste de algum interesse (tese), há relativa tranqüili-</p><p>dade devido à obediência geral ao pacto social proposto ou impos-</p><p>to pela força dominante, porém quando outro interesse (antítese)</p><p>cresce, ele provoca a transformação e o surgimento de uma nova</p><p>síntese, num processo violento por se tratar de forças antagônicas</p><p>que, de um lado resistem ao poder, e de outro, lutam para sair da</p><p>marginalidade, chegar a predominar na organização social para</p><p>reconfigurar os costumes e as regras em conformidade com seu</p><p>modus operandi.</p><p>d - Lei da negação da negação: sendo o novo (a síntese)</p><p>também unidade dialética, haverá nova superação em direção a</p><p>um outro novo, negando o que já foi negação anteriormente. A</p><p>síntese aparece como vitória da antítese, contudo, ela será igual-</p><p>mente uma nova unidade de opostos e, assim, se transforma em</p><p>tese, que enfrentará uma antítese que surgirá em seu seio, uma</p><p>antítese nova, que nega a tese, e também a antítese anterior, uma</p><p>negação da negação, portanto. Quando há uma transformação, não</p><p>se retorna a formas passadas na tentativa constante de resolver os</p><p>conflitos internos, o corpo (seja físico ou social) vai gradativamen-</p><p>te tomando outras formas e conteúdos distintos das formas ante-</p><p>riores, evoluindo para outros horizontes, ainda que para outra</p><p>unidade contraditória diferente.</p><p>O desenvolvimento da natureza e da sociedade são provas</p><p>de que não se retorna a formas passadas. Além de se observar a</p><p>não repetição em ambas, pode-se verificar um processo de desen-</p><p>volvimento que tende a um máximo, quantitativo ou qualitativo,</p><p>como indica a próxima lei. A humanidade está sempre em busca</p><p>de novos horizontes e dá mostras de sua constante evolução</p><p>quando se compara historicamente parâmetros sociais e econômi-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 144</p><p>Sumário</p><p>cos (como produtividade e quantidade produzida das formas de</p><p>organização social).</p><p>e - Lei da transformação do quantitativo em qualitati-</p><p>vo: a evolução do homem e da sociedade se dá passo a passo, por</p><p>várias etapas de desenvolvimento necessárias, primeiro ocorren-</p><p>do os saltos quantitativos, para ao fim de uma serie desses se che-</p><p>gar a um salto qualitativo. A maior parte das transformações</p><p>quantitativas se dão de forma imperceptível para os homens em</p><p>regra, dado seu ritmo próprio, a natureza e a sociedade demoram</p><p>mais do que a passagem de gerações humanas para evoluírem.</p><p>A expansão quantitativa dos modos de produção está con-</p><p>figurada no aumento da produção, da população, da disponibili-</p><p>dade de novas técnicas e da variedade de produção que vêm com a</p><p>evolução das forças produtivas. A transformação dialética qualita-</p><p>tiva, por sua vez, é a síntese e ocorre depois de esgotadas as pos-</p><p>sibilidades do processo expansivo quantitativo interno de um</p><p>corpo ou sistema socioeconômico. Nesse momento, dá-se a substi-</p><p>tuição de um sistema produtivo por outro, qualitativamente dis-</p><p>tinto80.</p><p>A dinâmica do universo pode ser explicada pelo prisma dia-</p><p>lético: o universo se desenvolve por expansões quantitativas, com</p><p>aumento no número de corpos celestes, que tem sua contradição</p><p>interna, com forças opostas também atuando no sentido da morte</p><p>dos astros, para em algum momento ocorrer uma transformação</p><p>80 Esta evolução já foi comprovada historicamente através do reconhecimento</p><p>de outros modos de produção já desaparecidos. Esse processo não é linear,</p><p>homogêneo ou uniforme. O processo geralmente é longo porque as estruturas</p><p>ameaçadas resistem, é irregular porque varia essa resistência e a intensidade</p><p>da força modernizante por períodos. As transformações têm um caráter violen-</p><p>to que é inerente à natureza contraditória do processo (inclusive a humana) e</p><p>assim se arrastam em embates, de forma que mais importante que os ‘pontos’</p><p>específicos de transição, é a compreensão do processo histórico como um todo.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 145</p><p>Sumário</p><p>qualitativa. Uma estrela, por exemplo, tem fim com sua explosão,</p><p>que a transforma em anã, com densidade de massa altíssima e</p><p>campo gravitacional potente: um buraco negro que a tudo suga.</p><p>Um dia esse fosso cósmico não suportará tanta matéria e eclodirá</p><p>num novo big bang, gerando um novo universo.</p><p>4.4. A dinâmica dos modos de produção</p><p>Ainda que seja pretensioso fazer um resumo das idéias de</p><p>Marx, isso é desejável e possível, particularmente porque o pró-</p><p>prio Marx se dispôs a tal. Ele sintetizou a evolução histórica das</p><p>organizações sociais usando o método materialista dialético para</p><p>explicar esse processo. Este resumo se encontra num pequeno</p><p>trecho do livro Para a Crítica da Economia Política (Marx, 1986,</p><p>25) e apresenta algumas das categorias mais utilizadas na argu-</p><p>mentação em torno da relação entre os fenômenos sociais e</p><p>econômicos. Eis o texto:</p><p>“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez</p><p>obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estu-</p><p>dos, pode ser formulado em poucas palavras: na</p><p>produção social da própria vida, os homens con-</p><p>traem relações determinadas, necessárias e inde-</p><p>pendentes de sua vontade, relações de produção</p><p>estas correspondem a uma etapa determinada de</p><p>desenvolvimento das suas forças produtivas ma-</p><p>teriais. A totalidade dessas relações de produção</p><p>forma a estrutura econômica da sociedade, a base</p><p>real sobre a qual se levanta uma superestrutura</p><p>jurídica e política, e à qual correspondem formas</p><p>sociais determinadas de consciência. O modo de</p><p>produção da vida material condiciona o processo</p><p>em geral da vida social, político e espiritual. Não é</p><p>Alexandre Lyra Martins | 146</p><p>Sumário</p><p>a consciência dos homens que determina o seu</p><p>ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que de-</p><p>termina sua consciência. Em uma certa etapa de</p><p>seu desenvolvimento, as forças produtivas mate-</p><p>riais da sociedade entram em contradição com as</p><p>relações de produção existentes ou, o que nada</p><p>mais é do que a sua expressão jurídica,</p><p>com as re-</p><p>lações de propriedade dentro das quais aquelas</p><p>até então tinham se movido. De formas de desen-</p><p>volvimento das forças produtivas essas relações</p><p>se transformam em seus grilhões. Sobrevém en-</p><p>tão uma época de revolução social. Com a trans-</p><p>formação da base econômica, toda a enorme su-</p><p>perestrutura se transforma com maior ou menor</p><p>rapidez.”</p><p>Nesse pequeno e denso trecho, Marx realiza a sua elabora-</p><p>ção teórica de mais elevado nível de abstração, aplicada a qual-</p><p>quer modo de produção, e desvenda os mecanismos básicos que</p><p>tornam todas sociedades transitórias. Segue a sua explicação a</p><p>partir de alguns conceitos fundamentais (contidos no texto) para a</p><p>compreensão da concepção marxista, começando com as categori-</p><p>as de análise cruciais:</p><p>a. Forças produtivas: são todos os elementos potenciais</p><p>geradores de riqueza, tomados em seu contexto histórico. Corres-</p><p>pondem ao conjunto formado pelos meios de produção81 e pela</p><p>força de trabalho; que vai mover o processo produtivo a partir de</p><p>sua interação com os elementos naturais e técnicos que descobre,</p><p>cria e usa, tornando úteis para si, objetiva ou subjetivamente. As</p><p>81 Que podem ser classificados em meios de trabalho (instalações, máquinas,</p><p>equipamentos, fontes de energia, etc.) e objetos de trabalho (matérias-primas,</p><p>naturais ou processadas).</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 147</p><p>Sumário</p><p>forças produtivas são elementos decisivos para a dinâmica da</p><p>economia, são elas que proporcionam mudanças na forma de pro-</p><p>duzir, sempre no sentido de melhorar e aumentar a produção de-</p><p>vido à sua motivação central: a busca do ser humano por melhores</p><p>condições de vida.</p><p>O homem, que é a força produtiva central, está sempre pro-</p><p>curando contornar as restrições que a natureza lhe impõe, e assim</p><p>descobre novos recursos, inventa novas técnicas e desenvolve</p><p>formas diferentes de organizar o processo de trabalho. O nível de</p><p>desenvolvimento das forças produtivas corresponde às especifici-</p><p>dades do contexto histórico e espacial. Um trabalhador qualificado</p><p>da época da revolução industrial, por exemplo, é muito diferente</p><p>do trabalhador do século XXI, e mesmo que operem basicamente</p><p>dentro de uma mesma lógica capitalista, o primeiro seria um es-</p><p>tranho num ambiente fabril informatizado, automatizado e robo-</p><p>tizado, enquanto o segundo entenderia pouco da mecânica e hi-</p><p>dráulica usada nas primeiras máquinas fabris.</p><p>b. Relações de produção: relações estabelecidas entre os</p><p>homens no processo produtivo num certo contexto histórico, para</p><p>que a produção seja realizada. Dada a força produtiva, é preciso</p><p>colocar em movimento o processo produtivo e isso se dá quando</p><p>os homens começam a trabalhar. A forma e o conteúdo dessa rela-</p><p>ção dependem da fase histórica de desenvolvimento da sociedade</p><p>e da economia, tanto tecnológica quanto humana, educacional e</p><p>cultural.</p><p>No capitalismo, por exemplo, o molde é a relação capital-</p><p>trabalho, cujo conteúdo é a desvinculação dos trabalhadores de</p><p>qualquer meio de produção, a venda temporária da força de traba-</p><p>lho aos capitalistas e a subsequente exploração em troca de um</p><p>salário que deve possibilitar algo próximo à sua sobrevivência.</p><p>Marx atribui a esse conceito um poder de síntese do sistema pro-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 148</p><p>Sumário</p><p>dutivo. Identificada a relação de produção predominante se chega</p><p>ao núcleo central do modo de produção, aos fundamentos do mo-</p><p>dus operandi na sociedade analisada em relação à produção e ao</p><p>tipo de exploração que está sendo executada, uma vez que sempre</p><p>há dois grupos sociais essenciais na economia: o dominante e o</p><p>dominado.</p><p>É importante ressaltar o caráter dialético deste conceito,</p><p>pois os grupos socioeconômicos são antagônicos, sempre têm in-</p><p>teresses divergentes, embora essa tensão muitas vezes se mante-</p><p>nha apenas latente, principalmente devido a mecanismos de con-</p><p>trole da ordem social82. Como processo social dialético, entretan-</p><p>to, envolve transformações quantitativas e qualitativas em dife-</p><p>rentes níveis.</p><p>Relações de produção abarcam evoluções produtivas até</p><p>um certo ponto, a partir do qual só outra relação de produção</p><p>permite a continuidade do processo. A mudança da relação de</p><p>produção com manutenção da exploração é uma transformação</p><p>qualitativa menor. Esse é o caso quando grupos sociais novos, que</p><p>surgem e ascendem, vão articular mudanças na forma de organi-</p><p>zar os processos produtivos e na forma de exploração, com uma</p><p>nova concepção de uso da força de trabalho. Da exploração feudal</p><p>para a capitalista, por exemplo. A dialética aqui ocorre na altera-</p><p>ção das relações de produção e da classe dominante, com a insur-</p><p>gência do novo grupo.</p><p>A síntese efetiva do processo, porém, acontece apenas</p><p>quando muda a dinâmica como um todo e o grupo dominado deixa</p><p>essa condição, consubstanciando uma transformação qualitativa</p><p>mais profunda. Até o presente momento, ainda não foram criadas</p><p>condições humanas e técnicas para a classe dominada exercer seu</p><p>papel ativo no processo de transformação social e econômico. Os</p><p>82 De origem superestrutural, vistos adiante.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 149</p><p>Sumário</p><p>experimentos de socialismo real, que lograram êxitos parciais e</p><p>foram abolidos, mostram isso. O processo dialético continua em</p><p>andamento.</p><p>Numa economia podem conviver mais de duas classes soci-</p><p>ais, mas apenas duas são predominantes e significativas, em geral</p><p>as outras são resquícios de sistemas anteriores. O sistema capita-</p><p>lista nasce por meio do mercador, que está presente em quase</p><p>todos modos de produção anteriores sempre de forma marginal,</p><p>até chegar o mercantilismo, quando ganha força para desembocar</p><p>no capitalismo, que consolida as relações do tipo capital/trabalho.</p><p>As últimas décadas do século XX mostraram uma tendência</p><p>à homogeneização das relações de trabalho capitalistas em nível</p><p>avançado nos países centrais e a sustentação da heterogeneidade</p><p>nos países periféricos, onde, mesmo com a predominância das</p><p>relações modernas, se constata formas variantes de remanescen-</p><p>tes arcaicas. Devido ao acentuado grau de acumulação atingido</p><p>pelas economias centrais, muitas indústrias pagam salários altos</p><p>que superam a cesta básica de subsistência, mas a outra face da</p><p>contemporaneidade está na sub-remuneração de muitos traba-</p><p>lhadores nos países periféricos.</p><p>c. Estrutura econômica: todo aparato técnico-material</p><p>formado pelas relações de produção e as forças produtivas, que</p><p>conjuntamente determinam a produção de uma sociedade num</p><p>certo contexto histórico. Pode-se verificar esse conceito conside-</p><p>rando os ativos reais disponíveis nos setores primário, secundário</p><p>e terciário, a população economicamente ativa e as relações soci-</p><p>ais de produção empregadas em um certo período e lugar.</p><p>Como a própria expressão enuncia, trata-se da esfera eco-</p><p>nômica das sociedades, que informa as possibilidades de produ-</p><p>ção com as condições técnicas, humanas e de recursos disponíveis.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 150</p><p>Sumário</p><p>Esse aparato pode não ser integralmente aproveitado em alguns</p><p>momentos, pois pode haver subutilização das forças produtivas.</p><p>O avanço da estrutura econômica puxa o desenvolvimento</p><p>da sociedade e é consequência direta do desenvolvimento das for-</p><p>ças produtivas, que se tornam mais complexas e produtivas com o</p><p>passar do tempo. Essa evolução no capitalismo redunda na acu-</p><p>mulação de capital, que se intensifica com saltos técnicos e com a</p><p>financeirização, gerando um grande volume de capital fictício. A</p><p>partir do fim do século XX é agregado mais dois marcos tecnológi-</p><p>cos adicionais ao funcionamento do sistema com a disseminação</p><p>da microeletrônica e da internet, possibilitando a robotização das</p><p>linhas de produção, agilidade nas transações bancárias e na co-</p><p>municação dos mercados, surgimento dos negócios virtuais, entre</p><p>outros desmembramentos.</p><p>A intensificação dos movimentos espe-</p><p>culativos, por sua vez, dificulta a estimativa dos valores dos ativos</p><p>reais das empresas, devendo o pesquisador se acautelar com os</p><p>dados referentes a essas variantes da contemporaneidade.</p><p>Numa estrutura econômica predomina um tipo de relação</p><p>de produção, mas, como foi dito anteriormente, relações de pro-</p><p>dução de sistemas produtivos anteriores podem subsistir de for-</p><p>ma marginal como resquícios desses sistemas. Em certos casos,</p><p>estruturas similares a escravismo e feudalismo podem até res-</p><p>ponder por uma parcela não desprezível das relações de produção</p><p>em países capitalistas como o Brasil, em pleno século XXI, de mo-</p><p>do a entravar o que seria um processo desimpedido de desenvol-</p><p>vimento técnico e humano da estrutura econômica. É certo, po-</p><p>rém, que essa obstacularização atende a interesses do capital no</p><p>processo de acumulação de capital como um todo.</p><p>d. Superestrutura: segundo Marx, trata-se de ‘formas so-</p><p>ciais de consciência’, de uma categoria abstrata relativa ao conjun-</p><p>to de valores da sociedade que se contrapõe à materialidade da</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 151</p><p>Sumário</p><p>estrutura. A superestrutura traz as referências do que é certo e</p><p>errado, de como as coisas são em função da moral e dos costumes</p><p>predominantes em cada época, em cada sociedade.</p><p>Os valores podem ser divididos em sociais e econômicos,</p><p>sendo que os primeiros têm diversos aspectos, tais como as ques-</p><p>tões psicológicas, culturais, artísticas, religiosas, jurídicas e políti-</p><p>cas. Marx destaca esses dois últimos aspectos, por neles estarem</p><p>sintetizados os demais valores sociais e econômicos, uma vez que</p><p>as leis cristalizam toda a forma de pensar de uma comunidade.</p><p>Embora a estrutura seja o campo onde a variável econômica é sua</p><p>essência, a essa atividade produtiva material correspondem certos</p><p>valores econômicos que refletem a concepção e a prática produti-</p><p>va, particularmente a forma como vão se articular as classes soci-</p><p>ais na relação de produção corrente.</p><p>Um conceito central para o entendimento da superestrutu-</p><p>ra é o da ideologia, mas numa acepção mais específica do termo,</p><p>pois para Marx, os valores básicos de uma sociedade são os valo-</p><p>res das classes dominantes, que são repassados de forma direta ou</p><p>indireta (educação e propaganda entre outros meios), com o intui-</p><p>to de difundir e manter a ordem sócio-econômica instituída. A so-</p><p>ciedade, como um todo e seus indivíduos, introjeta esses valores,</p><p>tomando para si como se seus fossem, o que resulta em padrões</p><p>comportamentais relativamente previsíveis quando se tem cons-</p><p>ciência do uso desses mecanismos sociais para ajudar a manter</p><p>(no plano ideológico) e estrutura econômica e as relações de pro-</p><p>dução vigentes.</p><p>A essência dessa categoria é imaterial, porém possui for-</p><p>mas diversas de manifestação concreta, desde as mais centrais,</p><p>como o aparato institucional jurídico e político composto por câ-</p><p>maras municipais, assembleias legislativas, congresso nacional e</p><p>tribunais diversos, às mais específicas, como igrejas e teatros. Es-</p><p>sas organizações são instituições que representam concretamente</p><p>Alexandre Lyra Martins | 152</p><p>Sumário</p><p>a concepção dos principais valores em torno dos quais gira o</p><p>acordo social83, o trato acerca da moral predominante para as re-</p><p>lações sociais e econômicas.</p><p>e. Modo de produção: complexo formado pela aglutinação</p><p>da estrutura produtiva (econômica) e superestrutura. Trata-se do</p><p>conceito marxista mais amplo das organizações sociais, embora</p><p>haja autores que entendam por modo de produção apenas a estru-</p><p>tura econômica. Para esses últimos, o conjunto formado por estru-</p><p>tura e superestrutura seria então denominado de ‘formação eco-</p><p>nômico-social’. Em última instância, todas outras categorias rela-</p><p>cionadas - estrutura, superestrutura, forças produtivas ou rela-</p><p>ções de produção – o compõem direta ou indiretamente, possuin-</p><p>do suma importância para o entendimento da dinâmica dos mo-</p><p>dos de produção em geral, e para a interpretação dos fenômenos</p><p>socioeconômicos.</p><p>O modo de produção é a categoria síntese da dinâmica e</p><p>das contradições das organizações socioeconômicas, para além de</p><p>uma aparente ordem maior prevalecente. É uma unidade que con-</p><p>tém uma tensão constante entre dois grupos sociais mais impor-</p><p>tantes, com características principais definidas pelo grupo minori-</p><p>tário dominante, que as sustenta com a contribuição decisiva de</p><p>um conjunto de valores efetivados em normas. O conjunto norma-</p><p>tivo, entretanto, entrava o processo, mas forças produtivas alter-</p><p>nativas surgem e forçam a mudança dos modos de produção.</p><p>Retomando o texto referido anteriormente, nota-se em</p><p>primeiro lugar a preocupação de Marx em fazer um elo de ligação</p><p>entre os diversos ramos da análise social, com ênfase especial no</p><p>campo econômico. Seu esboço propõe uma lógica comum para a</p><p>83 Que muitas vezes pode ser arbitrário, imposto pelo grupo dominante.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 153</p><p>Sumário</p><p>explicação da dinâmica de todas as formações sociais; inclusive o</p><p>modo de produção capitalista. Verifiquemos inicialmente como se</p><p>dá a dinâmica em geral da transformação das sociedades para, a</p><p>seguir, tratar especificamente das origens do capitalismo, suas</p><p>determinações e tendências.</p><p>Em uma certa sociedade, dada sua sustentação produtiva</p><p>(estrutura econômica) e seu suporte político e jurídico (superes-</p><p>trutura), as forças produtivas são a mola mestra do movimento de</p><p>transformação social e estão em permanente evolução84. Essa vi-</p><p>talidade decorre da busca constante do ser humano por melhores</p><p>condições materiais de vida, via melhorias na produção. Quando</p><p>as mudanças nas condições de produção são mais expressivas</p><p>qualitativamente, são vinculadas a alterações nas relações de pro-</p><p>dução, e se forem igualmente significativos seus resultados, será</p><p>engendrado todo um processo de transformação socioeconômica</p><p>para adoção de um novo modelo produtivo, que enfrentará a re-</p><p>sistência do que está em vigor.</p><p>O texto mostra a dialética presente no corpo social, com</p><p>forças contrárias em tensão social. As relações de produção são</p><p>protegidas, ‘engessadas’ por leis e/ou costumes vigentes, de ma-</p><p>neira que a generalização de outras relações pela economia, rei-</p><p>vindicadas por segmento social novo para implantar um outro</p><p>sistema produtivo, demanda um processo longo de maturação</p><p>decorrente de embates internos85.</p><p>84 Eventualmente perceptível à observação imediata, mas sempre constatada</p><p>historicamente.</p><p>85 Alternativamente, povos podem receber modelos produtivos de povos inva-</p><p>sores ou por derrota em conflitos externos, queimando as etapas relativas à sua</p><p>conquista. Nesses casos, contudo, não são resultado diretos de processo de</p><p>transição dialética interna, mas sim de processos dialéticos externos, e, portan-</p><p>to, indiretos, transversais. Uma vez ocorrida esse tipo de interação, contradi-</p><p>ções específicas de cada caso se manifestarão e evoluirão em novos processos</p><p>dialéticos.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 154</p><p>Sumário</p><p>Esta é a dinâmica básica existente no interior dos modos de</p><p>produção. Desenvolvimentos das forças produtivas ensejam mu-</p><p>danças nas relações de produção, e consequentemente nos pa-</p><p>drões produtivos, então a estrutura econômica se metamorfoseia,</p><p>para também a superestrutura se adequar aos novos arranjos</p><p>produtivos. Tudo isso é um processo histórico em que várias coi-</p><p>sas acontecem paralelamente, inclusive a mudança dos valores, a</p><p>partir do valor fundamental, relativo ao modus operandi econômi-</p><p>co. Os valores vão mudando à medida que a nova classe ascenden-</p><p>te vai crescendo e tomando maiores proporções na sociedade.</p><p>A classe até então dominante não cede fácil, pois tem, sob</p><p>seu controle, explícita ou implicitamente, a estrutura de poder</p><p>político e econômico, permitindo-lhe um nível alto de resistência a</p><p>mudanças que,</p><p>no mais, só vêm para derrubar seus privilégios.</p><p>Ocorre que o avanço das forças produtivas é mais forte e, mais</p><p>cedo ou mais tarde, atropela o poder instituído, se impondo e for-</p><p>çando a alteração dos paradigmas, até que todo processo produti-</p><p>vo e a conformação social mudem e passem a se desenrolar em</p><p>outros moldes. São formadas novas estrutura econômica e supe-</p><p>restrutura, que vão vigorar por um tempo até que o processo dia-</p><p>lético seja disparado novamente, posto que a resolução dos confli-</p><p>tos é sempre transitória.</p><p>Há um momento inicial nesse processo no qual a estrutura</p><p>e a superestrutura se compõem de forma harmônica, em razão da</p><p>correspondência plena entre as normas e uma relativa estabilida-</p><p>de das forças produtivas, mas isso é temporário, pois na sequência</p><p>virá uma evolução dessas últimas para importunar o status quo. É</p><p>a negação da negação, uma vez que essa evolução não repete for-</p><p>mas passadas, nega a estrutura que lhe é contemporânea e as an-</p><p>teriores. A partir daí, o velho e o novo conviverão conflituosamen-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 155</p><p>Sumário</p><p>te por colidirem em relação à forma da exploração, que requer</p><p>relações de produção e ideologia diferentes, até a convivência se</p><p>tornar impraticável e a única forma de resolver o conflito for a</p><p>superação das velhas relações socioeconômicas, que levam consi-</p><p>go o antigo sistema.</p><p>Tomando esse referencial de análise, observamos como a</p><p>esfera econômica é inseparável das demais esferas sociais e como</p><p>é importante na definição de seus rumos. A ascensão de forças</p><p>produtivas inovadoras decorre da combinação da criação de téc-</p><p>nicas e equipamentos de um lado e circunstâncias sociais propí-</p><p>cias de outro, já seu desenvolvimento como via produtiva alterna-</p><p>tiva ao sistema estabelecido depende da viabilização técnica, eco-</p><p>nômica e social, que passa por sua disseminação pela sociedade,</p><p>gestando valores compatíveis nesse processo.</p><p>O contexto econômico está inerentemente ligado ao con-</p><p>texto social porque a atividade produtiva é mediada por relações</p><p>sociais (de produção), de modo que a produção para sobrevivên-</p><p>cia em sociedade é também produção de valores. O ‘agente’ eco-</p><p>nômico contemporâneo que toma decisões ‘racionais’ está imerso</p><p>na convivência social e impregnado da moral predominante, por-</p><p>tanto, decide sob sua influência e égide.</p><p>No entendimento marxiano, não é suficiente a vontade do</p><p>homem para construir uma transformação socioeconômica quali-</p><p>tativa, ainda que seja seu elemento central, são necessários requi-</p><p>sitos técnicos, humanos e a disseminação desses. Isso explica, par-</p><p>cialmente, o fracasso das experiências de socialismo real, que pos-</p><p>suíam fragilidade na base produtiva e na matriz tecnológica.</p><p>Transformadas efetivamente as estruturas produtivas, a</p><p>manutenção da nova ordem econômica vem com a institucionali-</p><p>zação dos novos valores na construção de um novo aparato supe-</p><p>restrutural. Pode-se buscar a garantia da observância dos parâme-</p><p>tros socioeconômicos através da força, e historicamente isso foi</p><p>Alexandre Lyra Martins | 156</p><p>Sumário</p><p>observado com frequência, mas nem sempre, pois o fundamental é</p><p>a constituição de um marco ideológico para ratificar o poder eco-</p><p>nômico e político. No ocidente moderno, em particular, aumentou</p><p>significativamente a importância da capacidade da classe domi-</p><p>nante articular um projeto social que seja assimilado pela socie-</p><p>dade através de valores afirmados, devido à premissa da liberdade</p><p>civil.</p><p>O motor propulsor do desenvolvimento da humanidade, as</p><p>forças produtivas, são dinâmicas e têm caráter predominantemen-</p><p>te econômico, em contrapartida, a superestrutura é relativamente</p><p>estática, depende de movimentos transformadores mais consis-</p><p>tentes na estrutura econômica para se mover. A superestrutura é</p><p>intrinsecamente inercial, os valores se entranham pelo tecido so-</p><p>cial e se firmam em tradições, costumes e instituições, só mudan-</p><p>ças fortes nas forças produtivas rompem a barreira de ordena-</p><p>mentos estabelecidos.</p><p>Tratando-se de processo social, a interação dos fatores vai</p><p>determinar o ritmo e o resultado do processo, as circunstâncias</p><p>históricas vão delinear os desmembramentos dos fatos e que vari-</p><p>ável vai se sobrepor em relação a outras. Fatores sociais condicio-</p><p>nam o ritmo do desenvolvimento das forças produtivas, podendo</p><p>até obstacular a evolução da estrutura econômica86, mas como</p><p>regra, devem acompanhar, com um pequeno atraso, as inovações</p><p>técnicas e produtivas fulcrais.</p><p>As componentes religiosa e cultural se encaixam na estru-</p><p>tura ideológica superestrutural, e vão aparecer permeando as de-</p><p>mais variáveis sociais, refletindo os valores do momento histórico</p><p>e da concepção econômica em vigor. Notadamente, no contexto</p><p>86 Caso, por exemplo, de evoluções impostas de fora, quando há intervenção ou</p><p>imposição de forças externas em uma comunidade, e a mentalidade local, base-</p><p>ada em valores arcaicos em relação ao invasor, demora a absorver e consolidar</p><p>novos valores.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 157</p><p>Sumário</p><p>contemporâneo ocidental em especial, podem surgir manifesta-</p><p>ções artísticas contestadoras de forma marginal convivendo com o</p><p>mainstream que celebra os valores do mercado, em particular a</p><p>liberdade que possibilita obras de cunho crítico.</p><p>Alguns elementos culturais e religiosos podem atravessar</p><p>modos de produção intocados, outros podem ser ligeiramente</p><p>modificados, e outros podem ser transformados, ou mesmo cria-</p><p>dos, para refletirem novas relações de produção estabelecidas,</p><p>sendo importante que a maioria componha um quadro harmônico</p><p>junto aos valores principais do sistema.</p><p>4.5. O caso da transição do feudalismo para o</p><p>capitalismo</p><p>O capitalismo surge a partir do mercantilismo para deter-</p><p>minar a superação do feudalismo. O desenvolvimento das forças</p><p>produtivas vai ser representado inicialmente pelo comerciante,</p><p>esse personagem já presente em antigas civilizações87, mas que</p><p>encontrou condições de maior evolução a partir das grandes na-</p><p>vegações no século XVI, com a incorporação das regiões desco-</p><p>nhecidas do mundo até então.</p><p>A intensificação do comércio permitiu uma acumulação ini-</p><p>cial de capital, que veio seguida das invenções das primeiras má-</p><p>quinas que revolucionaram a atividade produtiva88, e desencadea-</p><p>87 O comércio é apontado frequentemente como força econômica principal na</p><p>idade antiga (como faz Carlan, 2012, 84), porém sua dimensão e evolução cor-</p><p>respondiam à baixa produtividade na agricultura e no artesanato da época.</p><p>88 Hunt (1987, 61) cita algumas das principais: “... especialmente após a década</p><p>de 1730, quando foi inventada a lançadeira móvel, que tornou o processo de</p><p>fiação bastante rápido. ... a spinning jenny, criada em 1769, ..., a armação hi-</p><p>dráulica, inventada em 1755 que aperfeiçoou a fiação..., e o fuso, inventado no</p><p>fim da década de 1700, que ... permitia o aproveitamento da energia a vapor.”,</p><p>quando a matriz anterior usava basicamente carvão vegetal.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 158</p><p>Sumário</p><p>ram um aumento substancial na produção, na massa de lucros e</p><p>na acumulação, consolidando a economia de mercado.</p><p>O comerciante era uma categoria marginal no feudalismo,</p><p>um sistema caracterizado por protecionismos diversos e ideologi-</p><p>as que inibiam esse tipo de atividade, mas vai crescendo aos pou-</p><p>cos, e, quando acumula algum capital, monta os primeiros galpões</p><p>onde concentra seus fornecedores (artesãos diversos). Com o</p><p>tempo e juntando mais capital, compra seus equipamentos, para</p><p>depois, enfim, introduzir novas máquinas que articulam todos</p><p>trabalhadores num só sistema produtivo em que as operações são</p><p>simplificadas, tornando o movimento repetitivo e bem mais pro-</p><p>dutivo. Na penúltima última etapa já fica delineado o capitalismo,</p><p>com a desapropriação integral das posses do trabalhador e o esta-</p><p>belecimento da relação assalariada89,</p><p>mas só na última fase ele dá</p><p>o salto de produtividade que vai permitir alavancar a acumulação</p><p>de capital e substituir definitivamente a relação dominante de</p><p>produção senhor feudal/servo pela de capital/trabalho, em que o</p><p>servo não é mais parte de uma propriedade, mas sim uma força de</p><p>trabalho livre para ser contratada (alugada) e demitida a qualquer</p><p>tempo em razão das necessidades de expansão ou restrição da</p><p>produção.</p><p>Dialeticamente, as condições materiais de produção exis-</p><p>tentes na estrutura feudal compõem a tese inicial. Basicamente</p><p>agrícola, o sistema abre espaço, gradualmente e não sem conflitos,</p><p>para o afloramento do mercado e da nova classe burguesa, que</p><p>propõe uma forma liberal de organizar a produção; a antítese. O</p><p>modus operandi do grupo burguês era incompatível com a forma</p><p>feudal de produzir e comercializar, daí os embates em torno da</p><p>mudança de regimes tributários que oneravam a classe nascente</p><p>89 Como constata Chevitarese (1998). essas relações também são encontradas</p><p>na idade antiga ocidental, mas não como forma dominante.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 159</p><p>Sumário</p><p>para sustentar a realeza improdutiva, e vários outros para liberar</p><p>os trabalhadores e os mercados.</p><p>O comerciante surge como uma força produtiva alternativa</p><p>que desencadeia um processo de renovação econômica, desper-</p><p>tando a coletividade para a possibilidade de uma outra formata-</p><p>ção social. Com o decorrer do tempo vai se tornando classe refe-</p><p>rencial, a base econômica agrícola perde espaço para o comércio,</p><p>num primeiro momento, e depois para as manufaturas. Os valores</p><p>burgueses vão se capilarizando gradativamente até o lucro se fir-</p><p>mar como peça central da lógica econômica, e assim vão sendo</p><p>construídas as condições superestruturais para fornecer a susten-</p><p>tação cultural, ideológica e política para as modificações ocorridas</p><p>na base produtiva.</p><p>Os valores que refletem os interesses da nova classe domi-</p><p>nante são difundidos aos poucos, à medida que também evolui a</p><p>base técnica de produção. No plano religioso, por exemplo, obser-</p><p>va-se uma sensível mudança. Ainda que a reforma protestante</p><p>tenha ocorrido antes da revolução industrial, é só a partir dessa</p><p>última que ela encontra condições ideais para seu desenvolvimen-</p><p>to. Gradualmente, vai se afirmando a valorização do trabalho e dos</p><p>que progridem economicamente por ele, na mesma razão em que</p><p>se desgasta a valorização católica da pobreza e a condenação da</p><p>usura. Trata-se de uma inversão de valores religiosos dentro do</p><p>mesmo prisma cristão, no qual se supera a decadente ética pater-</p><p>nalista cristã, que possibilitou o enriquecimento da igreja católica</p><p>na idade média, para adoção do movimento reformista protestan-</p><p>te como referência, via admissão da produção e acumulação de</p><p>riqueza privada sem culpa.</p><p>A transformação da concepção cristã ao longo desse pro-</p><p>cesso é uma prova histórica da adequação superestrutural à mu-</p><p>dança estrutural maior. A perspectiva dialética no plano superes-</p><p>trutural deve ser buscada na negação dos valores feudais. Parafra-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 160</p><p>Sumário</p><p>seando uma passagem cristã: há uma mudança da água para o vi-</p><p>nho, da valorização da pobreza para o incentivo à riqueza. A antí-</p><p>tese negando a tese.</p><p>O desenvolvimento social acontece porque na unidade so-</p><p>cial convivem forças antagônicas representadas por grupos e inte-</p><p>resses políticos e econômicos distintos, uns ascendendo, outros</p><p>em queda, se atritando até implodir e desfazer a unidade entre as</p><p>forças produtivas e relações de produção, levando com elas as</p><p>ideias anacrônicas que lhe davam sustentação. A acumulação não</p><p>podia conviver com o formato paternalista cristão.</p><p>Outro elemento superestrutural é a variável política. O Es-</p><p>tado moderno surgiu com a reforma política na Inglaterra em</p><p>1688, quando a economia mercantil estava no auge, e sua consoli-</p><p>dação veio com o capitalismo. Com o desenvolvimento dos merca-</p><p>dos, começam a florescer ideias que fundariam outro movimento</p><p>importante para complementar e fundamentar a reforma do Esta-</p><p>do: o iluminismo.</p><p>A democracia como forma de governo ideal para legitimar</p><p>anseios sociais é um conceito moderno que tem a premissa da li-</p><p>berdade em comum com o mercado, sendo defendida e discutida</p><p>teoricamente por pensadores diversos que formularam o ideário</p><p>liberal90, essencial na construção superestrutural do capitalismo.</p><p>Ultrapassando as aparências, porém, as elites capitalistas têm</p><p>aporte financeiro para bancar candidatos e eleger a maioria dos</p><p>representantes políticos.</p><p>As condições técnico-materiais capitalistas remetem a cos-</p><p>tumes próprios que são refletidos no Estado, o agente catalisador</p><p>dos interesses econômicos, e sua classe dominante produz todo</p><p>um aparato normativo/ideológico para sedimentar os valo-</p><p>res/ideais capitalistas. Um dos principais motes dessa ideologia é</p><p>90 Tais como Montesquieu e Voltaire.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 161</p><p>Sumário</p><p>a máxima: todos podem ser homens de negócios, afinal o sucesso</p><p>econômico está ao alcance de qualquer um que enfrentar o mer-</p><p>cado e trabalhar, abrindo seu negócio próprio.</p><p>A doutrina de que o mercado está aberto a todas boas inici-</p><p>ativas é a principal mensagem implícita nas peças publicitárias,</p><p>onde aparecem sempre pessoas bem sucedidas financeiramente e</p><p>felizes. Trata-se de uma ilusão, posto que o sistema precisa de tra-</p><p>balhadores para explorar, restando relativamente poucas oportu-</p><p>nidades com perspectivas de crescimento, tanto de salário quanto</p><p>de negócio, particularmente no estágio mais desenvolvido em que</p><p>o capital está mais concentrado91.</p><p>O comportamento humano mais relevante deve ser tomado</p><p>pelo prisma da convivência grupal, porque o indivíduo é mais bem</p><p>compreendido enquanto integrante de uma classe social e sua in-</p><p>dividualidade, portanto, está vinculada a uma racionalidade social.</p><p>Embora a divisão de classes tenha se tornado mais complexa no</p><p>estágio do capitalismo monopolista92, a essência da dinâmica das</p><p>sociedades proposta por Marx permanece, sendo retratada atra-</p><p>vés da lógica de dominação de um grupo (elite capitalista) em de-</p><p>trimento do resto da população, o proletariado.</p><p>Ao escolher uma mercadoria, um indivíduo exterioriza nes-</p><p>sa ação aparentemente soberana, uma série de valores sociais que</p><p>dizem respeito à sua condição política, econômica e cultural na</p><p>sociedade. Para o autor em questão, a escolha de uma mercadoria</p><p>91 Já pequenos negócios podem se multiplicar para possibilitar perspectivas</p><p>alternativas de sobrevivência a trabalhadores desempregados.</p><p>92 A partir da segunda metade do século XX, salários de segmentos de gerência e</p><p>direção se expandem muito em países desenvolvidos, se assemelhado, em ter-</p><p>mos quantitativos, a alguns rendimentos empresariais, enquanto de outro lado,</p><p>postos de trabalho são eliminados e substituídos por empregados de empresas</p><p>terceirizadas. Além disso, também aumentou significativamente o funcionalis-</p><p>mo estatal, que não é vinculado ao capital, mas funciona em sintonia com o</p><p>stablisment.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 162</p><p>Sumário</p><p>qualquer é mais do que uma decisão individual, ela está carregada</p><p>de influências do sistema econômico, do marketing, da religião ou</p><p>da cultura, que refletem o padrão de dominação capitalista e sua</p><p>inserção em todas esferas sociais. O trabalhador compõe um todo</p><p>sem perceber, pois tudo que o cerca é naturalizado pelo cotidiano</p><p>inundado de informações que realimentam a lógica interna do</p><p>sistema. Só alguma perspectiva crítica pode vir a alterar sua visão.</p><p>O interesse de quem produz para o mercado, por sua vez,</p><p>não é apenas atender às necessidades dos consumidores, seu obje-</p><p>tivo maior é ampliar os lucros, então ele se ocupa em estimular o</p><p>consumo e criar novas necessidades. É preciso ressaltar que o ca-</p><p>pitalismo é o ápice da produção humana e desenvolveu ao longo</p><p>de</p><p>sua história vários mecanismos, além das técnicas revolucioná-</p><p>rias de produção, para se expandir sempre mais e mais rápido,</p><p>como transformar o comércio e o dinheiro em capital.</p><p>Já constatava Smith que a economia de mercado obtém</p><p>produção e produtividade muito maiores do que qualquer outro</p><p>sistema econômico anterior, mas, para Marx, isso é conseguido às</p><p>custas da exploração do trabalho assalariado93. Os trabalhadores</p><p>ficam com muitos ônus (trabalho excessivo e repetitivo, salários</p><p>baixos, desemprego, impostos, etc.) e poucos bônus (mercadorias</p><p>baratas em maior quantidade) no processo de expansão produti-</p><p>vo, enquanto os capitalistas ficam com o maior bônus, a riqueza, e</p><p>poucos ônus que tentam minimizar sempre mais (encargos traba-</p><p>lhistas, impostos).</p><p>O capitalista raciocina dentro da lógica da acumulação de</p><p>capital no processo de exploração, segundo a qual os demais valo-</p><p>res morais são secundários, irrelevantes. A distensão de limites</p><p>morais sociais para atender à moral econômica maior do lucro se</p><p>93 Outras formas de exploração existiram nas organizações socioeconômicas</p><p>anteriores, mas com o ganho expressivo na produtividade, a exploração capita-</p><p>lista é significativamente maior.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 163</p><p>Sumário</p><p>coaduna com a condição de poder da classe dominante. Isto ficou</p><p>demonstrado historicamente por episódios como a crise de</p><p>200094, de 200895 ou pelas elevadas jornadas de trabalho do prin-</p><p>cípio do capitalismo. Das 18 horas diárias de trabalho para adultos</p><p>e crianças registradas na Inglaterra no século XIX96 até as atuais 8,</p><p>6 horas diárias como referência mundial, se passaram muitas gre-</p><p>ves e reivindicações da classe trabalhadora por redução da jorna-</p><p>da de trabalho. Só os movimentos sociais e de classe detêm o afã</p><p>pelo aumento de lucro dos capitalistas. Essa é uma comprovação</p><p>histórica da visão materialista dialética, que observa o processo</p><p>social pela lente dos grupos sociais que o constroem, sendo ele-</p><p>mentos ativos do processo histórico.</p><p>Ao ter necessidade de vender sua força de trabalho, o indi-</p><p>víduo tem demarcado seu limitado horizonte de consumo e de</p><p>valores sociais. O comportamento do trabalhador típico é pautado</p><p>por um conjunto de valores que tenta reproduzir precariamente o</p><p>modo de vida dos mais abonados, cujo padrão é a exaltação do</p><p>sucesso individual e a ostentação material, ficando a percepção de</p><p>classe enevoada e restrita.</p><p>Um outro elemento ideológico usado pelo establisment pa-</p><p>ra dispersar ações políticas diversas dos trabalhadores é propalar</p><p>como uma das máximas do capitalismo liberal a mobilidade social.</p><p>Na contemporaneidade, pode se dizer que isso acontece em algu-</p><p>ma medida em países desenvolvidos, onde há diversidade de</p><p>oportunidades e até os postos inferiores são relativamente bem</p><p>remunerados, mas a maioria dos países de mercado compõem a</p><p>periferia econômica, onde a mobilidade social é muito reduzida e</p><p>94 Ver Stiglitz (2000).</p><p>95 Ver Borça Júnior e Torres Filho (2008).</p><p>96 Conforme o próprio Marx (1985) registra em relatos e documentos no capítu-</p><p>lo 8 do livro primeiro.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 164</p><p>Sumário</p><p>a possibilidade de ascensão do trabalhador só ocorre com a saída</p><p>do trabalhador para um país desenvolvido.</p><p>Marx compartilha com Ricardo a constatação de que quase</p><p>sempre há mais oferta que demanda por trabalhadores nos mer-</p><p>cados, mas vai além, indicando suas origens e discordando de sua</p><p>conclusão simples de que isso, em si, é a principal causa da manu-</p><p>tenção dos patamares salariais baixos. A produção cresce muito,</p><p>mas os capitalistas continuamente desempregam através de ino-</p><p>vações técnicas intensivas em capital e poupadoras de mão de</p><p>obra, para aumentar a massa e a margem de lucro.</p><p>O contingente desempregado é chamado por Marx de</p><p>‘exército industrial de reserva’, nomenclatura que alude à expres-</p><p>sividade quantitativa de trabalhadores (exército), à sua destinação</p><p>principal (industrial) e à condição desses trabalhadores; desem-</p><p>pregados à disposição dos capitalistas (reserva). Contraditoria-</p><p>mente, o capitalismo precisa dos trabalhadores, como base de ex-</p><p>ploração e como demanda, ao mesmo tempo os expulsa frequen-</p><p>temente para aumentar lucros e elevar a acumulação.</p><p>No contexto da busca constante por aumento na acumula-</p><p>ção, o meio rural vai ter sua importância gradativamente reduzida</p><p>no capitalismo, vindo a reboque da indústria e sendo mais produ-</p><p>tivo com novas tecnologias que também diminuem a oferta de</p><p>emprego. O setor terciário, por sua vez, tem compensado esse</p><p>processo com aumento de postos de trabalho, mas com oportuni-</p><p>dades quantitativa e qualitativamente inferiores.</p><p>Enfim, analisando o capitalismo sob a ótica marxista, po-</p><p>demos afirmar que é mais um modo-de-produção dialético, e, co-</p><p>mo tal, é também transitório. É um sistema econômico que expo-</p><p>nencia a produção, mas possui dentro de si contradições e a se-</p><p>mente de sua superação, como os demais. Diferentemente dos</p><p>outros, no entanto, a evolução de suas forças produtivas possui o</p><p>desmembramento especial de levar à eliminação da maior parte</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 165</p><p>Sumário</p><p>do trabalho humano97, de modo que a superação lógica do capita-</p><p>lismo seria alguma versão de socialismo, o sistema que suprime a</p><p>premissa da exploração para priorização do coletivo. Se há uma</p><p>solução técnica caminhando, resta evoluir a dimensão humana,</p><p>que depende da construção social. O socialismo é via política e</p><p>econômica que pode vingar, se a sociedade estiver preparada para</p><p>tal e mobilizada em torno dele, tanto tecnicamente quanto em</p><p>termos de valores socioeconômicos98.</p><p>As experiências de socialismo real tentaram se antecipar ao</p><p>pleno desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, mas</p><p>fracassaram principalmente pela falta de bases técnico/materiais.</p><p>Por ter ocorrido em países de bases agrícolas, o comunismo de-</p><p>mandou um esforço de industrialização elevado, mas insuficiente</p><p>em razão dos esforços paralelos com o desenvolvimento da indús-</p><p>tria armamentista para fazer frente à guerra fria99. Ademais, fa-</p><p>lhou na constituição de um aparato político/superestrutural que</p><p>contemplasse os anseios modernos, optando por um modelo auto-</p><p>ritário que não foi substituído por nenhuma forma libertária de</p><p>sociedade, que refletiria efetivamente a disseminação de valores</p><p>humanos socialistas.</p><p>Enquanto a apropriação privada poder conviver com a ex-</p><p>ploração, o sistema capitalista subsiste, mas quando a tecnologia</p><p>negar esse fundamento, será necessária sua substituição. Uma</p><p>economia de mercado pautada por um regramento que minimize</p><p>97 Embora o setor terciário venha crescendo, compensando parcialmente a</p><p>redução de vagas nos setores primário e secundário, a robótica avança junto</p><p>com a nanotecnologia e a inteligência artificial, que ainda está dando seus pri-</p><p>meiros passos no sentido de vir a operacionalizar tecnicamente o fim do traba-</p><p>lho humano em todos setores.</p><p>98 Não há horizonte temporal definido para isso, de modo que, antes disso po-</p><p>dem ocorrer desmembramentos sociais diversos. Discussões nesse sentido</p><p>podem ser vistas em Lyra (1992).</p><p>99 Conforme Martins (1999, 41-42).</p><p>Alexandre Lyra Martins | 166</p><p>Sumário</p><p>as diferenças sociais dentro do marco liberal é uma forma de ade-</p><p>quação do sistema que viabiliza a convivência social nesse mo-</p><p>mento de extrema evolução tecnológica. A universalização da edu-</p><p>cação, por exemplo, seria elemento importante para demonstrar</p><p>seu princípio integrador, tanto social como econômico, proporcio-</p><p>nando condições igualitárias de saída para a disputa do mercado</p><p>de trabalho. Esse caminho é compatível com as ideias do status</p><p>quo100, ajudando a minimizar os atritos sociais, mas só uma mu-</p><p>dança qualitativa, de conteúdo, é que encaminha a humanidade</p><p>para uma mudança efetiva de mentalidade afinada com um futuro</p><p>de redução dos</p><p>trabalhos humanos de baixa qualificação a algo</p><p>residual.</p><p>4.6. A teoria do valor e da mercadoria</p><p>Ao longo de O Capital é investigada a lógica do funciona-</p><p>mento do sistema capitalista. Marx começa mostrando categorias</p><p>de análise fundamentais desse modo de produção nas seções 1, 2</p><p>e 3 do livro 1, desenvolvendo a exposição num nível de abstração</p><p>mais alto. São apresentados a mercadoria, a força de trabalho, o</p><p>dinheiro, a mais valia e o capital por meio do processo de forma-</p><p>ção do capitalismo, conteúdo que já possibilita um bom entendi-</p><p>mento básico das ideias críticas marxianas acerca das economias</p><p>de mercado modernas. No tomo 2 do livro I a exposição continua,</p><p>adentrando em pontos mais específicos da dinâmica da explora-</p><p>ção, com elementos dialéticos e históricos detalhados. Nos dois</p><p>últimos livros, enfim, se chega ao exame do movimento do capital</p><p>como um todo.</p><p>Os conceitos supracitados são importantes, antes de mais</p><p>nada, para compor a teoria do valor, que permanece como ponto</p><p>100 Como já defendia Marshall no século XIX (ver Nasar, 2012, 95).</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 167</p><p>Sumário</p><p>de referência por toda análise seguinte. Essa teoria não é antece-</p><p>dida pela crítica à concepção da economia política clássica no Ca-</p><p>pital, como foi feito em seu livro anterior101, aqui a exposição é</p><p>centrada no objetivo definido. Em verdade, no primeiro capítulo</p><p>dessa obra, o autor resgata pontualmente William Petty como o</p><p>precursor da concepção da dupla origem do valor102, num contex-</p><p>to histórico mercantilista em que se aceitava correntemente ape-</p><p>nas o trabalho comercial como trabalho produtivo.</p><p>A teoria do valor passou muito tempo em segundo plano,</p><p>até que foi retomada e modificada pelos clássicos Smith e Ricardo.</p><p>Sendo esses expoentes da teoria econômica à sua época, foram as</p><p>referências para Marx, que parte da crítica à concepção clássica</p><p>para desenvolver sua teoria. Além do resgate histórico de Petty no</p><p>capítulo inicial, no Capital também há notas de rodapé sobre</p><p>Smith e Ricardo (1985, 53 e 77), deixando o exame detalhado dos</p><p>pressupostos teóricos dos clássicos para o livro 3103.</p><p>A teoria do valor marxista começa com a investigação da</p><p>categoria síntese do capitalismo, na qual toda riqueza se expressa:</p><p>a mercadoria. A mercadoria é a concretização da categoria abstra-</p><p>ta ‘mercado’, quando se produz para a troca e o resultado do pro-</p><p>cesso produtivo é posto à venda. As trocas fazem parte da pré-</p><p>história da humanidade, quando tribos praticavam o escambo104, e</p><p>permearam outras formas de organização social, antes de chegar o</p><p>contexto mercantilista, onde ganharam força e se consolidaram.</p><p>Esta escolha guarda coerência com seu método de análise, dado</p><p>101 O Para a crítica da economia política (Marx,1986).</p><p>102 Marx (1985, 51) enfatiza que: “... o trabalho é o pai, como diz William Petty, e</p><p>a terra, a mãe.” de toda riqueza material.</p><p>103 Para os que querem uma apresentação que siga uma sequência lógica e his-</p><p>tórica da teoria do valor, é aconselhável a leitura do Para a crítica da economia</p><p>política (1986, 51-53); onde o aludido autor comenta detidamente as insufici-</p><p>ências teóricas das formulações da escola clássica, antes de expor sua teoria.</p><p>104 Troca direta de excedentes.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 168</p><p>Sumário</p><p>que, sendo seu objetivo desvendar as fundações da dinâmica capi-</p><p>talista, essa categoria síntese é historicamente representativa da</p><p>essência desse modo de produção. No capitalismo, a produção</p><p>está separada do consumo, sendo realizada com a venda a tercei-</p><p>ros, diferente dos sistemas anteriores em que a unidade produto-</p><p>ra era também consumidora e a forma mercadoria era exceção.</p><p>A separação entre produção e consumo nos dá pistas acer-</p><p>ca da interpretação da mercadoria pelo lado dialético. Partindo da</p><p>conceituação marxista da categoria em estudo como unidade dia-</p><p>lética entre valor de uso e valor, verifica-se a oposição entre dois</p><p>aspectos contraditórios: valor de uso diz respeito à utilidade que a</p><p>coisa proporciona ao possuidor, a propriedade que ela tem de sa-</p><p>tisfazer alguma necessidade humana, enquanto o valor corres-</p><p>ponde à necessidade da venda e assim diz das “quantidades pro-</p><p>porcionais nas quais (a mercadoria) é trocada por todas as demais</p><p>mercadorias” (Marx, 1986, 153). Há uma correspondência entre</p><p>valor e valor de troca, sendo que esse último representa um mo-</p><p>mento especial do primeiro, o momento da troca. Uma mercadoria</p><p>possui sempre valor, independente de ser vendida ou não, porque</p><p>nela foi colocado trabalho, se uma mercadoria não é vendida, só</p><p>deixa de ter valor de troca.</p><p>O valor de uso está ligado à qualidade específica da merca-</p><p>doria, às suas características intrínsecas que possibilitam ao pos-</p><p>suidor desfrutá-la, o que remete à sua corporalidade. Uma cadeira</p><p>ou um sofá proporciona descanso e relaxamento às pessoas graças</p><p>à sua forma, pois seu corpo, diferente das outras mercadorias, é</p><p>projetado especificamente para atender a essa função. Alguém que</p><p>espera a utilidade do conforto para descansar sentado, não se sa-</p><p>tisfará com uma geladeira ou um fogão, que atendem a outros</p><p>propósitos. Já para alguém que quer cozinhar, a cadeira não serve,</p><p>é inútil. Valor de uso trata de necessidades, objetivas ou subjeti-</p><p>vas, do ser humano.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 169</p><p>Sumário</p><p>Pela ótica do valor, contudo, o que interessa é a relação</p><p>quantitativa que é estabelecida entre as mercadorias, independen-</p><p>te de qualquer forma tomada por essas. A corporeidade aqui é</p><p>irrelevante, independente da pessoa ter uma cadeira, uma gela-</p><p>deira ou um fogão, esses objetos interessam pela possibilidade de</p><p>serem trocados, e, no caso da economia de mercado consolidada:</p><p>vendidos. Na realidade concreta, o valor pode ser identificado com</p><p>o dinheiro, que reflete os valores de todas as mercadorias (daí a</p><p>manifestação da forma preço), desaparecendo assim as particula-</p><p>ridades de todas elas105.</p><p>VALOR DE USO UTILIDADES E QUALIDADES DA</p><p>MERCADORIA</p><p>VALOR CAPACIDADE DE TROCA QUANTIDADES</p><p>Se as mercadorias são trocadas é porque existe um termo</p><p>de intercâmbio que permite a comparação relativa entre elas. Para</p><p>Marx, esse termo é o trabalho, de modo que ele o qualifica como a</p><p>essência, a substância do valor. A sociedade de trocas é baseada na</p><p>divisão do trabalho, há trocas constantes de mercadorias e de tra-</p><p>balho, que também é uma mercadoria.</p><p>Ninguém possui condições de sobreviver só na modernida-</p><p>de, porque assim não consegue produzir o mínimo de itens que</p><p>uma pessoa precisa para sobreviver. A chegada da indústria capi-</p><p>talista instaurou o fracionamento das atividades produtivas e in-</p><p>viabilizou o isolamento econômico da unidade familiar autônoma,</p><p>comum em modos de produção anteriores:</p><p>“Aquele que produz um objeto para seu uso pes-</p><p>soal e direto para consumi-lo, cria um produto,</p><p>mas não uma mercadoria. Mas para produzir uma</p><p>105 Esse ponto será objeto de análise do item 4.8.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 170</p><p>Sumário</p><p>mercadoria, não só se tem de criar um artigo que</p><p>satisfaça a uma necessidade social qualquer, co-</p><p>mo também o trabalho nele incorporado deverá</p><p>representar uma parte integrante da soma global</p><p>de trabalho invertido pela sociedade. Tem de es-</p><p>tar subordinado à divisão de trabalho dentro da</p><p>sociedade.” (Marx, 1986, 154)</p><p>Os trabalhos que cada um exerce concretamente, contudo,</p><p>são qualitativamente diferentes e não podem servir de termo co-</p><p>mum. O trabalho do marceneiro é distinto do trabalho do operário</p><p>da construção civil, que é diferente do trabalho do bancário e as-</p><p>sim por diante. Como trabalhos heterogêneos que são, geram algo</p><p>específico, singular, como são os corpos das mercadorias e seus</p><p>valores de uso106. O trabalho que faz a ponte na troca entre as</p><p>mercadorias tem que ser um trabalho igual, homogêneo e, portan-</p><p>to, desprovido de qualquer qualificação que o diferencie. Esse tra-</p><p>balho está ligado apenas à noção de valor em si.</p><p>Marx denominou ‘trabalho concreto’ o que gera valor de</p><p>uso devido à correspondência entre a realidade concreta do pro-</p><p>cesso produtivo e os respectivos diferentes valores de uso gera-</p><p>dos, enquanto o ‘trabalho abstrato’, por sua vez, é o que gera valor</p><p>propriamente, pois independente da qualidade do trabalho que</p><p>esteja sendo feita, há produção quantitativa de valores.</p><p>Embora seja real, o trabalho abstrato só existe teoricamen-</p><p>te como conceito para explicar um aspecto da realidade: por trás</p><p>da concretude há determinações e desmembramentos históricos</p><p>que desembocam nela. Sua importância é crucial, pois é o primei-</p><p>ro passo para uma compreensão das trocas na economia capitalis-</p><p>106 Mesmo que a mercadoria seja incorpórea, como é o caso dos serviços, estes</p><p>dependem de mercadorias reais específicas para efetivá-los. O serviço de trans-</p><p>porte precisa de um veículo, o serviço odontológico precisa de equipamentos</p><p>específicos para tal, etc.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 171</p><p>Sumário</p><p>ta, cuja operacionalização prática será dada por outra categoria de</p><p>nível de abstração menor apresentada adiante. Sua existência não</p><p>pode ser comprovada pela visão, como é o caso do trabalho con-</p><p>creto, que é observável em qualquer processo de trabalho. Como</p><p>categoria puramente teórica, sua aceitação pressupõe uma linha</p><p>de raciocínio e uma metodologia específica.</p><p>TRABALHO CONCRETO ESPECÍFICO</p><p>ABSTRATO INDIFERENCIADO</p><p>Verifiquemos o caráter dialético das categorias. Enquanto o</p><p>trabalho concreto remete à diversidade dos tipos de trabalho, o</p><p>trabalho abstrato traz consigo a noção de trabalho indiferenciado,</p><p>de “dispêndio de força humana de trabalho” (Marx, 1985, 51), de</p><p>potencialidade de trabalho que todos têm por possuir energia pa-</p><p>ra gastar produtivamente. O primeiro diz respeito a qualidades, a</p><p>forma, a especificidade e o segundo, seu contrário, diz respeito a</p><p>quantidades, conteúdo essencial e generalidade. Estas categorias</p><p>de análise, contudo, não possibilitam a mensuração objetiva dos</p><p>valores em face às limitações impostas pelo seu nível (alto) de</p><p>abstração. O objetivo dessas é introduzir o estudioso nas categori-</p><p>as históricas, que são mais próximas da realidade concreta.</p><p>As categorias de análise marxianas do trabalho que vão vi-</p><p>abilizar a mensuração dos valores no mundo real são: trabalho</p><p>simples, trabalho complexo e trabalho socialmente necessário. O</p><p>trabalho simples guarda semelhança com a ideia do trabalho abs-</p><p>trato, é sua tradução concreta, alcança a realidade como o traba-</p><p>lho mais simples possível de se encontrar numa determinada so-</p><p>ciedade num certo momento histórico107. A esses trabalhos mais</p><p>107 Se é um trabalho efetivamente observável na realidade, também é concreto,</p><p>mas é um concreto desqualificado. Mesmo os trabalhos mais desprovidos de</p><p>Alexandre Lyra Martins | 172</p><p>Sumário</p><p>simples podem se candidatar a grande maioria dos indivíduos108 e</p><p>a eles correspondem as menores remunerações do mercado, por</p><p>isso são referência para toda escala hierárquica de qualificações</p><p>que segue a partir deles.</p><p>O nível mínimo de exigência mental e físico que vai caracte-</p><p>rizar o trabalho simples varia dependendo das dimensões tempo-</p><p>ral e espacial, que nos fornecem as condições de produção das</p><p>sociedades. Enquanto no princípio do século XX analfabetos eram</p><p>aceitos nas indústrias, ao fim desse são poucas as oportunidades</p><p>para os que não têm educação formal e algum conhecimento de</p><p>softwares básicos. Por outro lado, num mesmo espaço de tempo, é</p><p>diferente o nível de desenvolvimento tecnológico das ‘potências’</p><p>em relação aos países subdesenvolvidos e, consequentemente,</p><p>suas exigibilidades na contratação de trabalhadores109.</p><p>Os trabalhos complexos se contrapõem ao trabalho sim-</p><p>ples, são trabalhos mais elaborados que exigem uma alguma pre-</p><p>paração da mão-de-obra para efetivação, correspondendo a um</p><p>trabalho concreto qualificado, considerado em seu contexto histó-</p><p>rico. Cabem nele as qualificações existentes na economia que, in-</p><p>corporadas ao trabalhador, o credenciam a exercer funções mais</p><p>especializadas. As qualificações são incorporadas na remuneração</p><p>a partir de uma escala de valores, correspondentes à menor ou</p><p>maior complexidade do tipo de trabalho. Especializações mais</p><p>qualificação têm operações específicas, ainda que a grande maioria seja capaz</p><p>de fazê-las.</p><p>108 As vezes pode haver alguma restrição que pode descredenciar alguns, por</p><p>requerimento de força física, por exemplo.</p><p>109 Mesmo com a exigências tecnológicas contemporâneas, apenas uma parcela</p><p>da população das periferias econômicas tem formação educacional atualizada e</p><p>é absorvida por empresas modernas, persistindo grandes contingentes huma-</p><p>nos marginalizados com um nível de educação mínima e setores atrasados que</p><p>absorvem essa mão de obra despreparada. O trabalho simples nesses países é</p><p>mais simples que o requerido em países desenvolvidos.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 173</p><p>Sumário</p><p>complexas necessariamente envolvem maior complexidade de</p><p>conteúdo por hora em seu processo de formação, e muitas vezes</p><p>também demandam mais tempo de preparação.</p><p>TRABALHO SIMPLES DESQUALIFICADO</p><p>COMPLEXO QUALIFICADO</p><p>Sendo o trabalho complexo uma multiplicação do fator tra-</p><p>balho simples, pode-se construir um exemplo hipotético das esca-</p><p>las de valores que são estipulados pelas sociedades de mercado,</p><p>supondo que os salários auferidos pela mão-de-obra correspon-</p><p>dam diretamente ao grau de especialização alcançado pelo traba-</p><p>lhador110. Dessa forma, poder-se-ia ter numa sociedade qualquer,</p><p>como, por exemplo, Vila Aleatória, uma escala de valo-</p><p>res/remunerações simplificada como a que segue:</p><p>TABELA 1</p><p>Vila Aleatória. Escala de qualificações de trabalho</p><p>por níveis de ensino e suas remunerações – 2020</p><p>Tipos de trabalhos R$ por hora</p><p>Tr. Simples</p><p>ensino fundamental</p><p>10,00</p><p>Tr. complexos:</p><p>ensino médio</p><p>técnico:</p><p>superior:</p><p>especializado:</p><p>pós-graduado:</p><p>15,00</p><p>20,00</p><p>30,00</p><p>40,00</p><p>50,00</p><p>110 O que eventualmente pode não ocorrer em função da complexidade da eco-</p><p>nomia capitalista e seus múltiplos determinantes pontuais.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 174</p><p>Sumário</p><p>A tabela mostra que a base de cálculo dos trabalhos comple-</p><p>xos está no trabalho simples, que vale R$ 10,00 a hora na Vila Ale-</p><p>atória. O trabalho qualificado com nível de instrução ensino médio,</p><p>por exemplo, pode ser descrito como valendo 50% a mais que o</p><p>trabalho simples, ou 1,5 vezes mais. Nesse lugar hipotético, o nível</p><p>menos qualificado para o mercado é o de ensino fundamental, e</p><p>gera ao trabalhador um ganho de R$ 400,00 em 5 dias, com jorna-</p><p>da de trabalho de 8 horas. Multiplicando-se esse valor pelo fator</p><p>1,5 se descobre quanto ganha no mesmo período de tempo um</p><p>trabalhador qualificado com nível secundário: R$ 600,00 (R$</p><p>400,00 x 1,5).</p><p>O conceito do trabalho socialmente necessário, por sua vez,</p><p>engloba elementos de ambas as categorias expostas (simples e</p><p>complexo), para definir quais os parâmetros gerais das atividades</p><p>em uma certa sociedade. Segundo Marx (1985, 48):</p><p>TRABALHO SOCIALMENTE NECESSÁRIO</p><p>“é aquele requerido para produzir um valor de</p><p>uso qualquer, nas condições dadas de produção</p><p>socialmente normais, e com o grau social médio</p><p>de habilidade e de intensidade de trabalho”.</p><p>Trata-se de um conceito de custo social do trabalho seme-</p><p>lhante ao proposto por Smith quando fala em taxa média natural</p><p>de remuneração do fator trabalho, com uma diferença crucial: re-</p><p>tirada do elemento natural e introdução do elemento histórico. A</p><p>determinação da média da produtividade social não é um cálculo</p><p>puramente técnico, é histórico e depende dos condicionantes</p><p>de</p><p>economia, introdução à economia, etc), foi ficando subentendido</p><p>que a ciência econômica correspondia àquela visão e que a eco-</p><p>nomia política seria algo inferior, quando na verdade trata-se de</p><p>uma outra visão científica da economia. É uma confusão que pre-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 20</p><p>Sumário</p><p>judica um enfoque da ciência econômica que já é marginalizado e</p><p>favorece a concepção teórica do mainstream economics.</p><p>A palavra economia possui uma objetividade tentadora,</p><p>que os economistas puros conseguem atingir, pois isolam a eco-</p><p>nomia e usam modelos matemáticos para desenvolver suas pes-</p><p>quisas, enquanto a palavra economia política sugere complexida-</p><p>de e confusão, porque resulta da combinação de duas áreas com-</p><p>plexas que geralmente são objeto de intermináveis discussões e</p><p>reflexões.</p><p>Note o leitor que se trata aqui da conotação negativa ou pe-</p><p>jorativa que as palavras podem sugerir, que se contrapõe ao signi-</p><p>ficado real delas: a economia pura e a economia política são dois</p><p>enfoques legítimos e distintos da análise econômica do ponto de</p><p>vista científico (legitimidade conquistada pela adoção de um mé-</p><p>todo científico).</p><p>O ponto é que o comportamento e o fenômeno econômico,</p><p>objetos da ciência econômica, podem ser tomados isoladamente,</p><p>pelo prisma individual, ou socialmente, pelo prisma das relações</p><p>sociais. A primeira opção é a feita pela corrente da economia pura,</p><p>que acredita achar mais adequado começar a análise pelo homem,</p><p>considerando apenas seu comportamento econômico e conside-</p><p>rando ser capaz de escolhas individuais. É o chamado homo eco-</p><p>nomicus, aquele ser que toma decisões econômicas individuais,</p><p>pensando exclusivamente em termos de custo-benefício, ou seja,</p><p>as decisões econômicas são resolvidas tomando como referência</p><p>apenas o bem-estar material do indivíduo (e de sua eventual famí-</p><p>lia) procurando maximizar recursos relativamente escassos.</p><p>A perspectiva da economia política, por sua vez, adota o</p><p>critério da inserção social do ser como foco da análise, conside-</p><p>rando as necessárias relações sociais de produção como elemento</p><p>fundamental da economia, sendo decorrente disso sua incapaci-</p><p>dade de separar a dimensão econômica da social (política), levan-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 21</p><p>Sumário</p><p>do a toda uma compreensão alternativa do fenômeno econômico</p><p>enquanto algo maior, um fenômeno social. A produção passa pelo</p><p>individual e é técnica, pois envolve números, índices, coeficientes,</p><p>mas é também humana quando é mediada por relações sociais.</p><p>São facetas do mesmo fenômeno e ambas são perspectivas válidas</p><p>de investigação.</p><p>ECONOMIA POLÍTICA</p><p>CIÊNCIA ECONÔMICA</p><p>ECONOMIA PURA</p><p>Em seu processo de desenvolvimento, as pesquisas na eco-</p><p>nomia pura começaram a delinear duas grandes áreas de estudo; a</p><p>microeconomia e a macroeconomia, demarcando uma subdivisão</p><p>que se consolidou com o tempo. Quando se estuda a economia do</p><p>ponto de vista das unidades econômicas, seja de produção ou con-</p><p>sumo, estamos diante da microeconomia, e se tratamos da eco-</p><p>nomia sob o enfoque da produção conjunta; seja de uma cidade,</p><p>Estado ou país, o contexto é a sociedade como um todo e aí esta-</p><p>mos diante da chamada macroeconomia.</p><p>O ponto de vista micro persegue os padrões individuais e</p><p>como tal pode envolver algum nível de agregação, como quando</p><p>estuda setores específicos da economia, oligopólios ou oligopsô-</p><p>nios, já o enfoque macro quer compreender toda economia a par-</p><p>tir dos agregados em si. Há uma analogia recorrente no meio aca-</p><p>dêmico para ilustrar a diferença desses enfoques que compara a</p><p>microeconomia ao estudo de uma árvore e a análise da floresta à</p><p>macroeconomia. Cada qual tem sua importância, pois o aprofun-</p><p>damento do estudo da empresa ou do consumidor nos fornece</p><p>uma série de especificidades e detalhamentos impossíveis de se-</p><p>rem detectadas pelo estudo macroeconômico e este ponto de vis-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 22</p><p>Sumário</p><p>ta, por sua vez, nos oferece uma perspectiva conjunta que também</p><p>revela observações únicas ao investigador.</p><p>A divisão macro-micro é característica da economia pura,</p><p>seja essa de cunho neoclássico, keynesiano ou de algum outro</p><p>desmembramento teórico, e pré-supõe a comunicação plena das</p><p>duas visões, especialmente quando considera que há microfun-</p><p>damentos para a macroeconomia. Há variáveis que são comuns às</p><p>duas áreas e há variáveis específicas de cada disciplina. Inflação,</p><p>taxa de juros, taxa de câmbio são intrinsecamente macro, enquan-</p><p>to os custos em geral são elementos da teoria micro por excelên-</p><p>cia. Renda, consumo e impostos são variáveis tanto para a micro</p><p>(considerando-as individualmente), quanto para a macro (consi-</p><p>derando-as de forma agregada). Mesmo assim, o fenômeno eco-</p><p>nômico é um só e essa fronteira é sutil. Trabalhos de enfoque mi-</p><p>cro podem estudar a influência de variáveis macro em variáveis</p><p>micro e vice-versa.</p><p>MACROECONOMIA</p><p>ECONOMIA PURA</p><p>MICROECONOMIA</p><p>1.3. O Método e a questão da racionalidade</p><p>A matéria-prima do pesquisador é a realidade, que, sendo</p><p>constituída por uma rica teia de fenômenos, oferece material am-</p><p>plo para análise. Ao longo do tempo, o homem foi descobrindo</p><p>como funcionava o mundo em que está inserido, aumentando e</p><p>organizando gradativamente o fluxo de conhecimento que ia sen-</p><p>do produzido.</p><p>A filosofia, que é a mãe de todas as ciências, pode ser con-</p><p>ceituada como o “estudo que se caracteriza pela intenção de am-</p><p>pliar incessantemente a compreensão da realidade, no sentido de</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 23</p><p>Sumário</p><p>apreendê-la em sua totalidade” (Ferreira, 1986, 779). Antes de</p><p>surgir a ciência, havia a filosofia, que abarcava todas as formas de</p><p>conhecimento, correspondendo ao exercício intelectual de povos</p><p>ainda num estágio inicial da reflexão acerca do próprio homem e</p><p>da natureza que o cerca.</p><p>Com o tempo foram se desdobrando e se delineando os</p><p>campos de análise, sendo que, a mais simples divisão das ciências</p><p>delimita um campo de estudos relativo à investigação da natureza,</p><p>as ciências naturais, e outro campo que se destina à investigação</p><p>da sociedade, as ciências sociais. Essas últimas, por sua vez, estão</p><p>subdivididas em áreas do conhecimento mais específicas como a</p><p>história, a psicologia, a antropologia e a economia. Nesse processo,</p><p>a transição definitiva para o caráter científico do conhecimento</p><p>vem com a adoção de métodos próprios, científicos.</p><p>Existem diferentes métodos, desde os métodos intuitivos a</p><p>métodos didáticos. Os métodos intuitivos envolvem reprodução</p><p>de ações, como a repetição, tentativa e erro, e com eles se aprende</p><p>a andar, escrever e falar. Sempre do mais simples ao mais comple-</p><p>xo, repetindo e exercitando cada etapa do conhecimento se evolui</p><p>no aprendizado. Métodos didáticos apresentam possibilidades de</p><p>como passar o conhecimento e os métodos de estudo nos ensinam</p><p>a pensar com disciplina, mas para a elaboração de teorias científi-</p><p>cas interessa exclusivamente os métodos científicos aceitos como</p><p>tal, que orientam o estudioso a raciocinar logicamente e a elaborar</p><p>variáveis abstratas, de forma a possibilitar a construção de uma</p><p>teoria científica. Para se entender uma teoria, portanto, é preciso</p><p>ter em mente o método científico adotado pelo autor, para saber</p><p>em que bases estão fundadas aquelas ideias.</p><p>A realidade objetiva é apreendida pelos estudiosos por</p><p>meio da aplicação de um determinado método científico, daí exis-</p><p>tir mais de uma forma de se interpretar a mesma realidade. Den-</p><p>tre vários fatores importantes explicativos dessa realidade, pode-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 24</p><p>Sumário</p><p>se atribuir maior peso a um ou a outro. No caso da inflação, por</p><p>exemplo, existem pelo menos quatro grandes vertentes que a ex-</p><p>plicam, detectando causas diferentes para esse processo: excesso</p><p>de moeda, pressão de demanda, pressão</p><p>his-</p><p>tóricos de cada país ou região.</p><p>Smith não detalha a metodologia do cálculo como Marx</p><p>(que agrega os trabalhos simples e complexo), atribuindo a meca-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 175</p><p>Sumário</p><p>nismos de mercado sua operacionalização. Enfim, procedendo a</p><p>um cálculo de horas trabalhadas para se definir o valor de uma</p><p>mercadoria, o importante é saber em que moldes técni-</p><p>co/históricos as mercadorias estão sendo produzidas na economia</p><p>em questão.</p><p>Se 7 marceneiros produzissem um certo móvel X com as</p><p>produtividades (hipotéticas) abaixo relacionadas na tabela 2, a</p><p>produtividade média na Vila Aleatória (dimensão espacial) em</p><p>2020 (dimensão temporal) seria de 14,5 horas. Os produtores 3, 5</p><p>e 7, nesse caso, estariam aptos a concorrer no mercado por prati-</p><p>carem a média de intensidade e habilidade de trabalho do setor,</p><p>enquanto os fabricantes 1 e 4 são mais competitivos, adotando</p><p>técnicas que provavelmente serão incorporadas depois pelos de-</p><p>mais produtores111. Já os produtores restantes, 2 e 6, teriam de se</p><p>adequar ao padrão de produção médio verificado se pretendem</p><p>permanecer no mercado, pois os consumidores deixarão de esco-</p><p>lhê-los ao se informar mais.</p><p>O trabalho socialmente necessário leva em consideração o</p><p>grau de complexidade do trabalho como ele efetivamente é reali-</p><p>zado na sociedade, medido como multiplicador do fator funda-</p><p>mental; o trabalho simples. Dele resulta o valor final da mercado-</p><p>ria. Se a marcenaria é um trabalho relativamente complexo e for</p><p>enquadrada na faixa salarial de trabalho técnico da tabela anteri-</p><p>or, o móvel em questão custaria no mercado de Vila Aleatória em</p><p>média R$ 290,00 (14,5 horas X R$ 20,00, a hora de trabalho quali-</p><p>ficado indicada). Novamente faz-se necessária uma observação</p><p>quanto ao cálculo dessa média. Essa é uma média social, e, dessa</p><p>forma, podem existir critérios diversos para aferição. É uma média</p><p>ponderada em que o peso das variáveis e as próprias variáveis</p><p>que a afetam se modificam de um mercado para o outro.</p><p>111 Porque pode aparecer uma outra técnica ainda mais produtiva.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 176</p><p>Sumário</p><p>TABELA 2</p><p>Vila Aleatória. Produtividade do setor de marcenaria</p><p>para produção de uma unidade do móvel X – 2020</p><p>Unidades de produção Produtividade</p><p>(em horas de trabalho)</p><p>Produtor 1</p><p>Produtor 2</p><p>Produtor 3</p><p>Produtor 4</p><p>Produtor 5</p><p>Produtor 6</p><p>Produtor 7</p><p>14</p><p>15</p><p>14,5</p><p>14</p><p>14,5</p><p>15</p><p>14,5</p><p>Produtividade média 14,5</p><p>Uma vez que as forças produtivas se desenvolvem constan-</p><p>temente em qualquer forma de civilização humana e isto afeta o</p><p>valor das mercadorias no capitalismo, Marx enunciou a seguinte</p><p>lei geral para esse modo de produção: “Os valores das mercadori-</p><p>as estão na razão direta do tempo de trabalho invertido em sua</p><p>produção e na razão inversa das forças produtivas do trabalho</p><p>empregado” (1986, 157). Dessa maneira, ao menos no predomínio</p><p>da concorrência, os valores das mercadorias tendem a cair, pois</p><p>tanto as forças produtivas evoluem e vão se tornando mais produ-</p><p>tivas, quanto o trabalho vai sendo menos necessário na produção</p><p>de mercadorias (posteriormente far-se-á referência a esse ponto).</p><p>É sempre bom ressaltar que os exemplos vistos são simpli-</p><p>ficações da sociedade em que se vive, pois, além dessa última ser</p><p>afetada pela interação da economia local com Estados vizinhos e</p><p>com o exterior, existe uma série de imperfeições de mercado que</p><p>desvirtuam ou mesmo invertem valores historicamente estipula-</p><p>dos para algumas atividades produtivas. No que diz respeito à</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 177</p><p>Sumário</p><p>primeira restrição, embora o contexto atual aponte para a globali-</p><p>zação dos padrões de produção, na medida em que o paradigma</p><p>predominante (liberal) impinge incentivos diversos ao livre mer-</p><p>cado, tudo isto ainda está longe de acontecer. Embora a formação</p><p>desse mercado global esteja mais próxima para algumas mercado-</p><p>rias, como eletrodomésticos e automóveis, há setores difíceis de se</p><p>integrar, como os serviços, que tendem a ocupar mais espaço na</p><p>atividade produtiva, e, paralelamente, as economias vêm se orga-</p><p>nizando e se agrupando em blocos fechados, num movimento in-</p><p>verso. Enfim, trata-se de um exercício teórico.</p><p>Para completar a exposição de sua teoria do valor, Marx se-</p><p>gue o mesmo percurso de Smith para chegar ao dinheiro, sendo</p><p>que usando sua metodologia, assim, vai “comprovar a gênese des-</p><p>sa forma dinheiro, ou seja, acompanhar o desenvolvimento da ex-</p><p>pressão do valor contida na relação de valor das mercadorias”</p><p>(1985, 54). Nesse processo é feita toda uma análise dialética das</p><p>formas, que será suprimida aqui em virtude da maior objetividade</p><p>pretendida. A primeira forma de valor é a simples, que representa</p><p>a troca direta de duas mercadorias de igual valor, na qual uma</p><p>exerce o papel de forma relativa, a outra o de forma equivalente e</p><p>a primeira espelha seu valor na segunda.</p><p>Trata-se necessariamente de valores de uso diferentes, pois</p><p>o que interessa a ambos os lados da transação é obter uma utili-</p><p>dade distinta da proporcionada pela mercadoria que está sendo</p><p>colocada para troca, acertada uma equivalência de valor entre as</p><p>mercadorias. A equalização é feita indiretamente através do jul-</p><p>gamento do valor do trabalho específico de cada um, que está ma-</p><p>terializado na mercadoria. Nesse estágio inicial das trocas, as par-</p><p>tes envolvidas têm autonomia e dominam toda produção para</p><p>subsistência, tendo noção dos custos em geral, mas desconhecem</p><p>especificidades de itens não produzidos, e são escassos os parâ-</p><p>metros sociais para comparação, ocorrendo erros de avaliação</p><p>Alexandre Lyra Martins | 178</p><p>Sumário</p><p>com alguma frequência. É o marco inicial da socialização de traba-</p><p>lhos concretos distintos (produtores de valor de uso), através da</p><p>percepção do trabalho como algo comum, que gera produção dife-</p><p>renciada.</p><p>FORMA SIMPLES:</p><p>1 MERCADORIA A = 2 MERCADORIAS B</p><p>Na sequência vem a forma desdobrada, que como a própria</p><p>expressão sugere, nada mais é do que um desdobramento da pri-</p><p>meira forma, pois é marcada pelo encontro de várias mercadorias</p><p>tomando como referência um mesmo valor. A sociedade sai da</p><p>produção esporádica de excedente para sua regularização, uma</p><p>mercadoria se relaciona não mais exclusivamente com outra mer-</p><p>cadoria, mas com um mundo de mercadorias e isso só é possível</p><p>porque há por trás um mesmo quantum de valores e de trabalhos</p><p>simples e complexos paradigmáticos, para vários valores de uso</p><p>distintos.</p><p>Com a produção sistemática de excedente, as pessoas con-</p><p>tinuam buscando a troca para satisfazer seus desejos por valores</p><p>de uso que não produzem, e negociam tentando equiparar as</p><p>quantidades de trabalho usadas, ponderando suas dificuldades,</p><p>etc, mas começam a se familiarizar com o mecanismo das trocas,</p><p>mais frequentes. Esta forma representa um primeiro estágio da</p><p>circulação das mercadorias, e, como tal, oferece dificuldades ao</p><p>processo, pois como sempre podem aparecer novas mercadorias,</p><p>sempre haverá uma nova forma equivalente (particular) a expres-</p><p>sar o valor de todas outras formas relativas. Sua insuficiência leva</p><p>à sua transitoriedade.</p><p>FORMA DESDOBRADA:</p><p>1 MERCADORIA A= 2 MERCADORIAS B= 5 MERCADORIAS C =...</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 179</p><p>Sumário</p><p>A evolução histórica da forma desdobrada é a forma geral</p><p>de valor, quando a economia chega a um equivalente geral. Dife-</p><p>rentemente de Smith, quando expõe estágio semelhante de desen-</p><p>volvimento da moeda, ao ilustrar essa forma, Marx não dá maior</p><p>atenção ao tipo de mercadoria que historicamente preencheu a</p><p>função de equivalente geral112, se preocupando mais com a expli-</p><p>cação teórica da forma e do processo, usando o linho como exem-</p><p>plo referencial.</p><p>Importa enfatizar que a mercadoria equivalente geral é ex-</p><p>cluída da circulação normal das mercadorias porque</p><p>passa a inte-</p><p>ressar nela apenas seu valor, a essência da “crisálida social geral</p><p>do trabalho humano” (Marx, 1985, 67), enquanto as demais têm</p><p>valor, mas interessam principalmente pelo valor de uso na relação</p><p>de troca. Nesta forma, todo mundo das mercadorias expressará</p><p>seu valor na mercadoria equivalente geral, que será usada apenas</p><p>com esta finalidade.</p><p>FORMA GERAL DE VALOR</p><p>1 MERC. A = 2 MERC. X,</p><p>2 MERC. B = 2 MERC. X,</p><p>5 MERC. C = 2 MERC. X, ...</p><p>Por fim, a última forma nesse processo evolutivo é a forma</p><p>dinheiro, na qual uma mercadoria metálica é destacada para exer-</p><p>cer a função de equivalente geral. Também aqui Marx não atenta</p><p>para a relevância das propriedades das mercadorias na determi-</p><p>nação da mercadoria selecionada como faz Smith, apenas ressalta</p><p>que não há diferença alguma em termos de conteúdo desta forma</p><p>112 A mercadoria que vai servir de equivalente de valor para todas demais mer-</p><p>cadorias.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 180</p><p>Sumário</p><p>em relação à anterior, a não ser o fato de ser uma mercadoria me-</p><p>tálica, que, da mesma forma que as outras, já esteve na condição</p><p>de equivalente individual e:</p><p>“Pouco a pouco, passou a funcionar, em círculos</p><p>mais estreitos ou mais extensos, como equivalen-</p><p>te geral. Tão logo conquistou o monopólio dessa</p><p>posição na expressão de valor no mundo das</p><p>mercadorias, torna-se mercadoria dinheiro, ...”</p><p>Marx (1985, 69)</p><p>FORMA DINHEIRO</p><p>1 MERC. A = X LIBRAS,</p><p>2 MERC. B = X LIBRAS,</p><p>5 MERC. C = X LIBRAS, ...</p><p>O processo evolutivo das formas da mercadoria é concluído</p><p>neste ponto da exposição, mas o capítulo só é encerrado com o</p><p>exame do fetiche das mercadorias. Ao longo do processo de tran-</p><p>sição das formas de valor Marx já adianta que as mercadorias vão</p><p>passando ao primeiro plano nas relações sociais na economia de</p><p>mercado, e com elas o valor, diferentemente de modos de produ-</p><p>ção anteriores em que os produtos simples do trabalho estavam</p><p>em primeiro plano, e com eles os valores de uso, que eram sociali-</p><p>zados marginalmente.</p><p>Até aqui, esse processo é elucidado para demonstrar que a</p><p>essência do valor das mercadorias produzidas é o trabalho, que</p><p>continua presente, metamorfoseado, e é responsável pela susten-</p><p>tação da própria economia de trocas. Então Marx conclui o capítu-</p><p>lo com uma análise das implicações da produção de valor nas rela-</p><p>ções sociais.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 181</p><p>Sumário</p><p>4.7. O fetiche das mercadorias</p><p>Marx quer nessa seção, em síntese, mostrar como e porque</p><p>as mercadorias ultrapassam seu papel básico de preencher neces-</p><p>sidades humanas, para exercer um poder mágico sobre o ho-</p><p>mem113. É fácil demonstrar essa sedução misteriosa nos dias de</p><p>hoje, tomando certas mercadorias que são objetos de desejo ou</p><p>sonhos de consumo, como automóveis caros, aparelhos eletrôni-</p><p>cos de última geração, etc., mas não se trata apenas disso.</p><p>Por mais esclarecido que seja o indivíduo, todos os dias há</p><p>um bombardeio publicitário, tornando difícil se falar em esco-</p><p>lhas/decisões individuais e soberanas em relação aos bens ofere-</p><p>cidos pelo mercado, ademais, é inerente ao homem ter e desen-</p><p>volver desejos. O capitalismo apenas intensifica e diversifica a</p><p>produção, alimentando e atendendo com abundância aos que po-</p><p>dem pagar. Não obstante, não é apenas dessas mercadorias espe-</p><p>ciais que o pensador estudado está se referindo, mas sim de toda e</p><p>qualquer mercadoria, independente de um brilho especial ou</p><p>marketing envolvido.</p><p>No começo do capítulo, Marx diz que, para efeito da carac-</p><p>terização do valor de uso, independe se a necessidade “se origina</p><p>do estômago ou da fantasia” (1985, 45). Se, no início, o dito feitiço</p><p>surge com as necessidades vitais (biológicas), a natureza pensante</p><p>do ser humano inevitavelmente vai produzir desejos que reflitam</p><p>outras dimensões da existência, para além do bem-estar fisiológi-</p><p>co do corpo, de maneira que toda e qualquer mercadoria possui a</p><p>propriedade de exercer fetiche sobre as pessoas por serem mer-</p><p>cadorias. Não há fetiche sem incorporação do valor à produção, ou</p><p>seja, não havia esse fenômeno antes do capitalismo, quando se</p><p>113 Alguns autores já se debruçaram nesse ponto da teoria marxista, como Ru-</p><p>bin (1987), havendo material adicional para os interessados em se aprofundar</p><p>na temática.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 182</p><p>Sumário</p><p>produzia apenas (em regra) valores de uso. O feitiço é inerente à</p><p>produção de mercadorias e ao respectivo contexto histórico.</p><p>A publicidade apenas aumenta o desejo, estimula os senti-</p><p>dos. Marcas ou mercadorias com assinatura de ídolos do esporte</p><p>ou da comunicação são divulgadas com uma aura que mistifica</p><p>ainda mais os artigos, possibilitando a fixação de preços maiores,</p><p>que evidentemente, compensam o investimento das empresas na</p><p>imagem das mercadorias.</p><p>O recurso à propaganda não visa apenas destacar as quali-</p><p>dades da mercadoria, cumpre sempre o papel de incentivar o con-</p><p>sumo além do necessário, na perspectiva de aumentar as vendas</p><p>para alavancar a massa de lucro e também a margem de lucro.</p><p>Outra função indireta da propaganda é disseminar, implicitamen-</p><p>te, a ‘qualidade’ da produção capitalista como um todo, ressaltan-</p><p>do isso nas mercadorias individualmente, legitimando o modo de</p><p>produção de forma mais ampla no campo superestrutural.</p><p>Para entender a essência do fetiche que qualquer mercado-</p><p>ria exerce sobre o homem, no entanto, é preciso apenas se colocar</p><p>na frente de uma série de mercadorias comuns e se indagar quan-</p><p>tas daquelas mercadorias seríamos capaz de produzir. Embora</p><p>estejam todas lá à disposição de quem pague por elas, não são re-</p><p>sultados de produção individual, por isso elas aparecem como</p><p>algo ‘mágico’.</p><p>São ‘incompreensíveis’ para o indivíduo porque ele não</p><p>domina mais nenhum processo de produção de forma integral e se</p><p>depara com coisas prontas, completas à sua frente. A sociedade de</p><p>trocas exponencia a divisão de trabalho e se baseia na divisão de</p><p>classe capital/trabalho, daí pode-se concluir que a divisão do tra-</p><p>balho esconde a contribuição particular de cada um na produção,</p><p>que agora se dá por meio de relações sociais de produção.</p><p>A contribuição individual fica tão fragmentada que resta ao</p><p>trabalhador reconhecer que fez apenas uma etapa da produção de</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 183</p><p>Sumário</p><p>uma peça que compõem uma mercadoria, que contém outras tan-</p><p>tas peças. A divisão do trabalho avança tanto que passam a existir</p><p>setores específicos para produção e desenvolvimento de máqui-</p><p>nas, além do departamento administrativo, que trata dos aspectos</p><p>formais diversos dos negócios. Em modos de produção anteriores</p><p>isso não acontecia, os produtores eram responsáveis por todo</p><p>processo, entendiam cada detalhe da produção, podendo respon-</p><p>der a qualquer questionamento sobre o produto e, portanto, esse</p><p>não guardava nenhum segredo para ele.</p><p>O que acontece na sociedade capitalista é que trabalhos</p><p>individuais ganham poder de compra (via dinheiro) de trabalho</p><p>alheio, responsável pela produção colocada no mercado. O resul-</p><p>tado da produção que vai ser comercializado decorre da ação con-</p><p>junta de várias pessoas, assim, na medida em que as mercadorias</p><p>são necessárias para o consumidor final ou para alimentar algum</p><p>processo produtivo, elas proporcionam a inter-relação de uma</p><p>série de trabalhos realizados nos mais diversos lugares geográfi-</p><p>cos.</p><p>A realização das necessidades de consumo do indivíduo,</p><p>qualquer que seja, agora tem de ser mediada pelo mercado, com a</p><p>compra de mercadorias indecifráveis à vista superficial, mas que</p><p>são conclusão da produção de tantas outras divisões do trabalho.</p><p>A divisão social do trabalho não se restringe à fábrica, ela se es-</p><p>tende a todos setores e todos níveis, conectando toda produção</p><p>capitalista, visualizada no conjunto das mercadorias nacionais ou</p><p>importadas consumidas</p><p>no dia-a-dia.</p><p>Quando se compra uma mercadoria, se gasta a remunera-</p><p>ção advinda do trabalho e se conecta o trabalho individual com</p><p>trabalhos alheios diversos necessários para a produção da merca-</p><p>doria comprada, mas a complexidade atingida pela divisão social</p><p>do trabalho no capitalismo não permite ver isso, encobrindo as</p><p>mercadorias com um verniz que as faz brilhar por um lado e ofus-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 184</p><p>Sumário</p><p>car todo um processo técnico, social e histórico por outro. Aí está</p><p>desvendado o mistério do fetiche das mercadorias.</p><p>Ao distanciar o trabalhador do produto, a produção capita-</p><p>lista desconstrói o processo produtivo para o primeiro. Num pri-</p><p>meiro momento o produtor é transformado em trabalhador, mas</p><p>trabalha da mesma forma e com o mesmo maquinário anterior (o</p><p>capitalista compra seus equipamentos), depois são introduzidas</p><p>novas máquinas mais especializadas, mas ainda há o conhecimen-</p><p>to do resto do processo.</p><p>Com o tempo, o domínio técnico amplo dos trabalhadores</p><p>vai sendo apagado através da substituição das gerações e na me-</p><p>dida em que, paralelamente, novas técnicas e máquinas mais</p><p>complexas vão sendo introduzidas, acentuando a tendência da</p><p>maior divisão do trabalho e completando a transição para o capi-</p><p>talismo. As máquinas da produção industrial dão um salto na esca-</p><p>la produtiva e na divisão do trabalho, produzindo um paradoxo,</p><p>pois a partir daí o trabalhador volta a poder trabalhar em qual-</p><p>quer setor da fábrica, tal é a simplicidade das operações, sendo</p><p>que agora alienado do processo como um todo.</p><p>O trabalho concreto se torna cada vez mais fracionado, en-</p><p>caminhando-se no sentido do trabalho abstrato, do trabalho sim-</p><p>ples, um trabalho indiferenciado que qualquer um pode fazer.</p><p>Como a exponenciação da divisão do trabalho está diretamente</p><p>ligada ao surgimento do capitalismo e do valor, o fetiche está liga-</p><p>do ao trabalho abstrato, este trabalho invisível que paira sobre os</p><p>trabalhos concretos e viabiliza as trocas, sendo referência básica</p><p>para a produção de valor. O fetiche decorre dessa incompreensão</p><p>maior que o trabalho simples gera no trabalhador acerca do pro-</p><p>cesso de produção como um todo, desde seu aspecto técnico (a</p><p>tecnologia usada não está a seu alcance) até sua dimensão social</p><p>(não alcança as implicações da divisão social do trabalho em que</p><p>está inserido).</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 185</p><p>Sumário</p><p>Antes do capitalismo, as pessoas se relacionavam entre si</p><p>independente da produção, pois o trabalho era privado e seu re-</p><p>sultado também, mas com a economia de mercado as pessoas pas-</p><p>sam a se relacionar, ainda que sem perceber, em razão dos produ-</p><p>tos do trabalho, na medida em que compram e vendem mercado-</p><p>rias (inclusive o próprio trabalho), e aí há uma inversão dos pa-</p><p>péis. No mercado, quem se relaciona são as coisas, as mercadorias,</p><p>por meio das trocas. Nos transformamos em meios para as merca-</p><p>dorias se relacionarem, ou seja, as coisas foram ‘personificadas’ e</p><p>as pessoas foram ‘coisificadas’. Os objetos passivos agora são ati-</p><p>vos nas trocas e os seres passaram a coadjuvar em relação ao pro-</p><p>tagonismo das mercadorias.</p><p>Trata-se de considerar criticamente a relação social de</p><p>produção típica do capitalismo; a relação capital/trabalho. Se o</p><p>empresário aparece como representante de suas mercadorias e os</p><p>trabalhadores têm que vender sua potencialidade de trabalho co-</p><p>mo mercadoria para poderem sobreviver no capitalismo, os pa-</p><p>péis sociais aqui são invertidos. Quem era para ser sujeito ativo da</p><p>produção social, o produtor, passa à condição de observador das</p><p>trocas comerciais, enquanto quem era simples objeto inanimado,</p><p>o produto, passa a ser figura central, a mercadoria, conduzindo as</p><p>pessoas às relações sociais por meio das trocas. Passa-se a se mo-</p><p>ver não em função de interesses pessoais, mas sim mercantis, bus-</p><p>cando redes sociais principalmente na medida em que possam</p><p>expandir negócios ou empregabilidade.</p><p>Há um elemento complicador que obscurece ainda mais a</p><p>análise: o dinheiro, um dos maiores objetos de desejo na socieda-</p><p>de capitalista. Neste ponto, chega o momento de se passar para o</p><p>exame mais detido dessa nova categoria num outro item, que vai</p><p>permitir a introdução de outros elementos teóricos marxistas co-</p><p>mo as teorias da circulação, da acumulação e da exploração.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 186</p><p>Sumário</p><p>4.8. O dinheiro e as teorias da circulação e da</p><p>acumulação</p><p>4.8.1. A origem do dinheiro</p><p>Exposta a teoria do valor-trabalho e explicado de onde vem</p><p>o valor das coisas, surge a pergunta: se no capitalismo a riqueza é</p><p>expressa em dinheiro, qual a relação desse com o valor? O dinhei-</p><p>ro é o meio fluentemente usado nas economias capitalistas para</p><p>expressar o valor das mercadorias; o preço é a forma monetária</p><p>do valor. Isso porque o dinheiro, antes de mais nada, é uma mer-</p><p>cadoria e, como tal, possui tempo de trabalho investido em seu</p><p>corpo, credenciando-o a exercer o papel de termo de troca (apa-</p><p>rente).</p><p>Imaginando o dinheiro em sua forma moderna, o papel-</p><p>moeda, fica difícil vê-lo como resultado de um esforço humano ao</p><p>qual corresponde um valor, afinal, uma nota de papel não parece</p><p>ter o valor que a sociedade lhe atribui e todos aceitam. De fato,</p><p>mas para chegar à sua forma contemporânea, ele tem uma história</p><p>reveladora, já que é uma categoria social. Foi esmiuçando essa</p><p>história que Marx deu sua interpretação para o enigma que envol-</p><p>ve a forma dinheiro; algo aparentemente sem valor, mas que to-</p><p>dos desejam como maior representante do valor.</p><p>Como foi visto na seção 4.6., Marx tratou de desvendar a</p><p>origem histórica da forma valor no capítulo 1 do Capital, chegando</p><p>até a forma dinheiro. Façamos um resumo desse processo antes</p><p>de entrar no conteúdo do capítulo 3, onde o dinheiro é tema cen-</p><p>tral. Os antecedentes da moeda seriam algumas mercadorias es-</p><p>pecíficas que eram mais aceitas que outras em razão de sua neces-</p><p>sidade ou alto valor. Essas mercadorias acabaram sendo ’eleitas’</p><p>informalmente pela sociedade, para exercerem o papel de facilita-</p><p>doras das trocas entre as demais. Das chamadas mercadorias-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 187</p><p>Sumário</p><p>moeda, têm-se alguns exemplos históricos como o boi e o sal, mas</p><p>Marx é indiferente às especificidades das mercadorias que exerce-</p><p>ram esta função, pois para ele o que importa é entender a essência</p><p>do processo que conduziu as sociedades à mercadoria-metálica.</p><p>Todo elenco de mercadorias passa preferencialmente a se conver-</p><p>ter primeiro em metal para depois se converter em outras merca-</p><p>dorias, passando o metal a refletir, como espelho, todo trabalho</p><p>produzido na sociedade.</p><p>A moeda, inicialmente metal puro, era uma mercadoria</p><p>qualquer que, em função de suas particularidades, tornou-se es-</p><p>pecial. Tendo valor e valor de uso, possuía trabalho concreto e</p><p>trabalho abstrato, sendo esse último a fonte de sua permutabili-</p><p>dade. A troca do resultado dos trabalhos particulares via sociali-</p><p>zação desses trabalhos (considerando a capacidade indistinta do</p><p>homem em produzir), que estava clara na relação entre dois pro-</p><p>dutores, começa a ser ocultada pela produção de uma massa cres-</p><p>cente de mercadorias e ainda mais pelo surgimento do dinheiro.</p><p>Dinheiro esse que tem seu valor de uso transmutado em valor de</p><p>troca, pois as pessoas passam a querê-lo exclusivamente enquanto</p><p>poder de compra de outras mercadorias e não para seu uso pro-</p><p>priamente dito.</p><p>O processo de transição do metal para a forma papel-moeda</p><p>tem origem na dissociação entre o valor efetivo da moeda metáli-</p><p>ca, medido em termos de peso, e seu valor de face, obtido em ter-</p><p>mos da designação da unidade monetária. Essa relação direta en-</p><p>tre as unidades monetária e de peso foi deixando de existir grada-</p><p>tivamente, mas pode ser vislumbrada até</p><p>hoje através da moeda</p><p>inglesa, a libra, que ainda mantém nomenclatura relativa à unida-</p><p>de de peso.</p><p>Marx (1985, 90) arrisca brevemente alguns motivos para o</p><p>que ele chama de ‘desligamento das denominações monetárias de</p><p>seus pesos metálicos’: introdução de dinheiro estrangeiro em paí-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 188</p><p>Sumário</p><p>ses menos desenvolvidos (que tinham relações de valor diferentes</p><p>entre as mercadorias e o metal), substituição de moedas cunhadas</p><p>em metais menos nobres por metais de maior valor (gerando a</p><p>necessidade de se designarem valores diferentes do valor de face</p><p>para moedas de menor valor), e, por fim, a falsificação de dinheiro</p><p>(claramente era do interesse dos falsificadores repassar moedas</p><p>falsificadas, de menor valor, por moedas de maior valor, o que</p><p>faziam derretendo as originais e introduzindo metais menos no-</p><p>bres ao corpo da moeda).</p><p>O Estado, que já existia enquanto entidade disciplinadora</p><p>dos parâmetros sociais e econômicos, interveio na organização da</p><p>circulação da moeda, no sentido de preservar sua base de susten-</p><p>tação: a confiança em seu valor. Começou a centralizar a produção</p><p>do metal (monopolizando sua compra), trazendo credibilidade</p><p>para um metal que já não possuía exatamente o valor correspon-</p><p>dente ao esculpido na face. É preciso salientar que Marx, nessa</p><p>altura da exposição de sua teoria, trabalha basicamente com a</p><p>moeda metálica, o ouro. Porém, em alguns momentos, ele introduz</p><p>a categoria papel-moeda, como segue:</p><p>“A existência do ouro como moeda dissocia-</p><p>se radicalmente de sua substância de valor.</p><p>Coisas relativamente sem valor, bilhetes de</p><p>papel, podem, portanto, funcionar, em seu lu-</p><p>gar, como moeda. ... Trata-se aqui apenas de</p><p>moeda papel do Estado com curso forçado.</p><p>...Bilhetes de papel que levam impressos de-</p><p>nominações monetárias, como uma libra es-</p><p>terlina, 5 libras esterlinas etc., são lançados</p><p>de fora pelo Estado no processo de circula-</p><p>ção. Na medida em que realmente circulam</p><p>em lugar da soma de ouro de mesma deno-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 189</p><p>Sumário</p><p>minação, refletem-se em seu movimento</p><p>apenas as leis do próprio curso do dinheiro.</p><p>Uma lei específica da circulação do papel so-</p><p>mente pode originar-se de sua relação de re-</p><p>presentatividade do ouro. E a lei é simples-</p><p>mente esta: que a emissão de moeda papel</p><p>deve limitar-se à quantidade na qual o ouro</p><p>(ou a prata), simbolicamente por ela repre-</p><p>sentado, realmente teria que circular.”</p><p>(Marx, 1985, 108-109)</p><p>A ideia central é de que papel por si só não pode constituir</p><p>riqueza, muito menos expandi-la. O papel moeda está preso a al-</p><p>guma forma de riqueza real, como é o caso do ouro, pois é apenas</p><p>símbolo de valor. Se o Estado não segue esta regra básica e se ex-</p><p>cede imprimindo dinheiro, “Os mesmos valores, portanto, que se</p><p>expressavam antes no preço de 1 libra esterlina, expressam-se</p><p>agora no preço de 2 libras esterlinas.” (Marx, 1985, 109), ou seja, o</p><p>dinheiro perde valor relativamente às mercadorias. Embora sua</p><p>preocupação nesse instante não seja investigar a alta generalizada</p><p>dos preços, a inflação, ele acaba por colocar seu entendimento</p><p>acerca desse problema.</p><p>Se questões como inflação ou papel do Estado não são obje-</p><p>tos da investigação no livro 1 de O Capital, parece-nos oportuno</p><p>trazer, na medida do possível e enfatizando as devidas limitações</p><p>teórico-metodológicas, esses elementos discutidos da contempo-</p><p>raneidade, para aproximar mais a matéria da realidade econômica</p><p>atual, tornando-a menos árida. Nesse ponto do texto, Marx está</p><p>lançando uma série de fundamentos teóricos que exigirão um</p><p>aprofundamento posterior, quando a análise efetivamente será</p><p>realizada. Aqui cabe remeter brevemente à compreensão marxista</p><p>desses temas mais palpitantes, ressaltando a impossibilidade de</p><p>Alexandre Lyra Martins | 190</p><p>Sumário</p><p>prolongar a discussão, tendo em vista que estão sendo examinan-</p><p>do apenas os primeiros capítulos de seu texto.</p><p>Então “o próprio curso do dinheiro dissocia o conteúdo real</p><p>do conteúdo nominal da moeda” (Marx, 1985, 108), trazendo con-</p><p>sigo a nova base de sustentação do dinheiro: a confiança. O Estado</p><p>não deveria imprimir mais papel moeda do que o necessário para</p><p>fazer frente às necessidades de circulação da produção, atendendo</p><p>ao fundamento anterior à sua entrada na área, quando a sociedade</p><p>se adequava à quantidade de ouro existente e lhes dava valor em</p><p>razão da dificuldade de achá-lo e extraí-lo. O governo que infringe</p><p>essa norma implícita é condenado com a perda do valor de sua</p><p>moeda e com o descrédito da população, conforme poder-se-á</p><p>conferir na próxima seção.</p><p>Voltando para a realidade capitalista moderna, o estudioso,</p><p>amparado na compreensão histórica do dinheiro, observará que</p><p>“os preços de mercado não fazem mais que expressar a quantida-</p><p>de social média de trabalho, que, nas condições médias de produ-</p><p>ção, é necessária para abastecer o mercado com determinada</p><p>quantidade de um certo artigo” (Marx, 1986, 157). Há uma relação</p><p>estreita entre preço e valor: o primeiro deve refletir o segundo,</p><p>como regra. No entanto, o preço é fenômeno de mercado e assim</p><p>tem determinações próprias que podem fazê-lo desviar de seu</p><p>valor original fixado no processo produtivo.</p><p>A essas variações de preço em torno do valor real, Marx</p><p>denomina de ‘incongruências quantitativas’. Características da</p><p>forma preço, esse fenômeno se confunde com a consolidação do</p><p>mercado, pois enquanto não houver essa, a possibilidade de apa-</p><p>recerem disparates entre preço e valor é grande. No momento em</p><p>que o consumo se separa da produção, a fixação do preço ganha</p><p>certa autonomia em relação ao processo de fixação do valor. Além</p><p>dessa inconsistência interna de caráter quantitativo, o autor cha-</p><p>ma a atenção para uma outra possibilidade aberta pela forma di-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 191</p><p>Sumário</p><p>nheiro; a ‘incongruência qualitativa’, que acontece quando é dada</p><p>a forma preço a algo sem que exista por trás um processo produti-</p><p>vo que a ampare114. Este é um problema qualitativo que a forma</p><p>preço suscita e que pode ser ilustrado, segundo o autor em ques-</p><p>tão, pela venda da honra ou da consciência115, valores morais e</p><p>não econômicos. A natureza do capitalismo permite que tudo ve-</p><p>nha a ter forma preço e, consequentemente, ser mercadoria; pos-</p><p>sibilitando essas incongruências.</p><p>4.8.2. A circulação do dinheiro</p><p>Se o dinheiro é a medida de valores adotada pela sociedade</p><p>para converter os valores de todas as mercadorias produzidas, vai</p><p>percorrer a economia passando de mão em mão para cumprir a</p><p>função de meio circulante. Marx chama de ‘metabolismo social’ a</p><p>mudança da forma do valor que ocorre no processo de circulação,</p><p>variando entre uma forma mercadoria e outra, mediada pela for-</p><p>ma dinheiro. Nesse transcurso, trabalhos abstratos são igualados</p><p>para se permutar valores de uso diferentes. A troca de duas mer-</p><p>cadorias (M) distintas intermediada pelo dinheiro (D), em sua vi-</p><p>são, pode ser melhor analisada através de um esquema simplifica-</p><p>do:</p><p>M -- D -- M</p><p>Cabe, preliminarmente, esclarecer algo que está nas entre-</p><p>linhas do texto marxista. Esse esquema teórico se refere ao con-</p><p>texto mercantilista do capitalismo, no qual há uma acumulação</p><p>incipiente de capital, denominada por Marx de acumulação primi-</p><p>114 Quando é valorizado algo que não tem valor no momento em que alguém</p><p>paga um preço fixado, transformando o objeto ou serviço em mercadoria.</p><p>115 Conforme Marx (1985, 92).</p><p>Alexandre Lyra Martins | 192</p><p>Sumário</p><p>tiva devido à sua expressividade e de seu momento histórico116.</p><p>Ela, no entanto, é desconsiderada para fins da investigação pre-</p><p>tendida no momento, para a qual importa apenas que a circulação</p><p>das mercadorias seja generalizada. Observe o poder de abstração</p><p>da sociedade investigada, traduzida e sintetizada (no que toca à</p><p>circulação de mercadorias) em três categorias e as relações entre</p><p>elas. Aqui se analisa a moeda, funcionando como meio de troca, e</p><p>isso vai ter implicações importantes no entendimento dessa seção,</p><p>que ficarão claras quando se examinar a acumulação de capital</p><p>posteriormente.</p><p>A simplificação do processo social das trocas no esquema</p><p>M - D - M permite dividir o processo em duas etapas distintas:</p><p>venda e compra. Na primeira fase, M-D, ocorre a venda da merca-</p><p>doria pelo produtor direto no mercado. Com o dinheiro da venda,</p><p>o produtor vai às compras, a segunda fase (D-M), com o intuito de</p><p>suprir suas necessidades de consumo (e de sua família) e para</p><p>realimentar o processo produtivo que lhe dá sustento. Do outro</p><p>lado, os produtores para os quais vendeu sua produção, também o</p><p>fizeram vendendo suas respectivas produções com o mesmo obje-</p><p>tivo final; a obtenção de itens básicos diversos que não conseguem</p><p>mais produzir individualmente, com vistas à sobrevivência diária.</p><p>Marx intitula essas fases de ‘metamorfoses da mercadoria’</p><p>porque as mercadorias ao fim do processo de troca mudam sua</p><p>forma: de cadeira para tijolo, de carne para tecido, de leite para</p><p>fruta e assim por diante. Há duas lições a serem absorvidas deste</p><p>processo: 1: a unidade dialética entre valor de uso e valor existen-</p><p>te no interior da mercadoria é exteriorizada na troca entre duas</p><p>mercadorias, uma vez que, para o produtor direto, sua mercadoria</p><p>só lhe interessa enquanto detentora de valor e as mercadorias dos</p><p>outros lhe servem apenas enquanto valor de uso (e vice-versa). 2:</p><p>116 Para um aprofundamento em relação à acumulação primitiva, ler o penúlti-</p><p>mo capítulo do livro 1 de O Capital; seção 7.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 193</p><p>Sumário</p><p>o objetivo dos produtores, ao buscarem o mercado, é satisfazer</p><p>suas necessidades cotidianas básicas. Assim, período após perío-</p><p>do, repete-se basicamente o nível de produção obtido anterior-</p><p>mente, mas não exatamente o mesmo nível, pois, mesmo visando</p><p>obter apenas a subsistência diária e a reprodução das condições</p><p>para isso, o produtor pode ter uma safra maior ou menor, pode</p><p>encontrar uma demanda por seus produtos também um pouco</p><p>maior ou menor.</p><p>O dinheiro como intermediário no processo de trocas de</p><p>mercadorias, autonomizado por formas metálicas, num primeiro</p><p>momento, e, convertido, por fim, em símbolo de valor num segun-</p><p>do momento (quando atinge a forma papel-moeda), acaba criando</p><p>uma nova possibilidade: interromper o fluxo de circulação das</p><p>mercadorias. A interrupção do processo de circulação pode dar</p><p>margem ao entesouramento117, e esse, se vier a tornar-se proce-</p><p>dimento padrão de parcela significativa da população, pode gerar</p><p>as chamadas ‘crises de realização’118.</p><p>Cabe colocar que nessa altura da exposição, esta é uma</p><p>possibilidade teórica, que, entretanto, vai ser retomada adiante,</p><p>por Marx considerar as crises dessa natureza pendulares, de ocor-</p><p>rência periódica nas economias capitalistas desenvolvidas em ra-</p><p>zão de sua dinâmica própria, podendo ser contornadas provisori-</p><p>amente por mecanismos diversos de política econômica tais como</p><p>redução na taxa de juros ou a melhora nas condições do crédito.</p><p>Marx introduz o estudo do crédito como função adicional</p><p>do dinheiro na economia moderna sob a denominação de meio de</p><p>pagamento. Nessa função, quando a venda é realizada, o compra-</p><p>dor ao invés de pagar imediatamente, contrai uma dívida, que po-</p><p>de ser saldada de uma vez ou em prestações, sempre num período</p><p>117 Renúncia ao consumo imediato.</p><p>118 Crise econômica por falta de demanda, onde a falta de vendas provoca queda</p><p>de preços e falências.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 194</p><p>Sumário</p><p>posterior. Vencida e paga a dívida, as mercadorias são entregues e</p><p>o comprador vai desfrutar do valor de uso das mercadorias119. O</p><p>comprador obtém crédito, o que permite a ele comprar sem di-</p><p>nheiro, antes, portanto, de vender.</p><p>Nesse novo processo, são invertidas as metamorfoses</p><p>(compra/venda), repercutindo numa agilidade maior da circula-</p><p>ção do dinheiro e consequentemente da acumulação de capital.</p><p>Não é mais preciso o comprador ter dinheiro em mãos para efeti-</p><p>var uma compra. Nessa modalidade de crédito, o ciclo se fecha</p><p>com a entrega da mercadoria ao ex-devedor. O crédito ao consu-</p><p>midor moderno pode ser entendido por raciocínio semelhante:</p><p>compra-se sem dinheiro, com promessa de pagamento para o fu-</p><p>turo, quando serão quitadas as obrigações com parte dos rendi-</p><p>mentos recebidos, sendo que aqui têm-se assalariados ao invés de</p><p>produtores diretos.</p><p>A forma dinheiro autonomiza o valor, posto que ele está</p><p>desvencilhado do valor de uso. Seu destino é a circulação, sempre</p><p>se afastando de um possuidor inicial. Torna-se representante legal</p><p>do valor das mercadorias, pronto a atravessar fronteiras, conver-</p><p>tendo-se em outras moedas e continuando sua expansão. Sua au-</p><p>tonomia nas economias capitalistas consolidadas está restringida</p><p>apenas pela relação ideal de valor que tem de guardar para com</p><p>aquele que foi sua origem, o metal, permitindo ao governo susten-</p><p>tar sua circulação com base na credibilidade. Daí pode-se formular</p><p>a lei do curso do dinheiro:</p><p>“A soma dos preços das mercadorias dividido pe-</p><p>lo número de peças monetárias é igual ao volume</p><p>do dinheiro funcionando como meio circulante.”</p><p>(Marx, 1985, 104)</p><p>119 Depois o sistema vai permitir que os compradores passem a dispor da mer-</p><p>cadoria desde sua compra.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 195</p><p>Sumário</p><p>Ou, numa apresentação alternativa:</p><p>“A quantidade de meio circulante (M) é determi-</p><p>nada pela soma de preços das mercadorias em</p><p>circulação (P x Q) e pela velocidade média de cir-</p><p>culação do dinheiro (Vcd).” (Marx, 1985, 106)</p><p>P x Q</p><p>M = --------</p><p>Vcd</p><p>Esta é uma equação que envolve 5 variáveis: valor (preço</p><p>P) e quantidade das mercadorias (Q), valor e quantidade do meio</p><p>circulante (M) e a velocidade de circulação desse último (Vcd). A</p><p>novidade principal nesta fórmula em relação a versões anteriores</p><p>da explicação do valor da moeda é a introdução da ‘velocidade de</p><p>circulação do dinheiro’, categoria que diz dos hábitos de uma soci-</p><p>edade qualquer em movimentar o dinheiro que recebe120. Esta é</p><p>uma componente cultural/econômica que não costuma variar, e,</p><p>quando isto acontece, dá-se no longo prazo, mas a microeletrônica</p><p>a afetou mais recentemente, acelerando a velocidade de todas</p><p>transações monetárias e financeiras.</p><p>O universo de fatores que compõem as variáveis de in-</p><p>fluência desta variável é amplo e vai de mudanças de práticas reli-</p><p>giosas que possam acarretar numa sociedade mais ou menos con-</p><p>sumista, passa pela introdução de inovações que afetem a dispo-</p><p>nibilidade diária de dinheiro, como o surgimento do cartão de</p><p>crédito, a elementos de expectativas sobre a economia (previsões</p><p>de flutuações econômicas ou instabilidades políticas).</p><p>120 É a velocidade em que o dinheiro muda de mãos, ou em que ocorrem as me-</p><p>tamorfoses.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 196</p><p>Sumário</p><p>Se a velocidade da moeda nessa equação permanece está-</p><p>vel como hipótese plausível, o importante é saber que: se o valor</p><p>do dinheiro e das mercadorias variam, o fundamento do valor,</p><p>para o autor em estudo, é o processo produtivo ao qual o valor do</p><p>dinheiro está amarrado. Não adianta algum governo querer au-</p><p>mentar sua riqueza aumentando a sua base monetária, porque</p><p>isso não vai afetar a produção de mercadorias.</p><p>Dado Vcd constante e o valor das mercadorias inalterado,</p><p>isto só vai fazer cair o valor do dinheiro relativamente ao valor</p><p>das mercadorias produzidas. A emissão de moeda só se justifica</p><p>quando acompanha uma expansão real da produção na economia.</p><p>A compreensão essencial dessa relação é a de que o dinheiro é a</p><p>variável dependente e passiva, e que, portanto, dado o volume</p><p>produzido (P x Q) e a Vcd, o valor do dinheiro depende de sua</p><p>própria quantidade.</p><p>4.8.3. A acumulação de capital</p><p>Configurando a circulação de mercadorias como um pro-</p><p>cesso social consolidado, têm-se as bases essenciais do modo de</p><p>produção capitalista; o ponto de partida da acumulação de capital.</p><p>Além da circulação, o dinheiro, que a intermedia, é requisito para</p><p>a compreensão do processo de acumulação capitalista, sob o qual</p><p>vai se deter agora, começando pela forma sintética representativa</p><p>da acumulação, a forma geral do capital:</p><p>D -- M – D</p><p>Na forma geral exposta, a leitura descritiva dos símbolos</p><p>aponta a seguinte tradução: troca-se dinheiro por mercadoria, que</p><p>é trocada novamente pelo dinheiro. A interpretação desse esque-</p><p>ma simples requer, no entanto, um pouco mais de atenção. O obje-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 197</p><p>Sumário</p><p>tivo do produtor nessa transação é dinheiro, mas não a mesma</p><p>quantidade de dinheiro que colocou no início, visto que não faria</p><p>sentido a realização da transação em si; seria melhor ficar com o</p><p>dinheiro parado. Então a fórmula correta é:</p><p>D -- M -- D’</p><p>Exposto nessa nova forma, o esquema sintético suscita no-</p><p>vas questões:</p><p>- Que mercadoria misteriosa é essa que faz gerar mais di-</p><p>nheiro?</p><p>- Se seu objetivo real é mais dinheiro (D’>D), como se ob-</p><p>tém mais dinheiro?</p><p>Segundo Marx, o que faz gerar mais valor é o processo pro-</p><p>dutivo, de onde se conclui que a M do esquema é uma mercadoria</p><p>resultado de várias, pois tem de haver produção aqui. Um proces-</p><p>so produtivo que envolve as forças produtivas, quais sejam: traba-</p><p>lho, terra e capital físico (equipamentos e maquinários) contex-</p><p>tualizados historicamente. Dessas mercadorias, as duas últimas</p><p>têm seus valores dados pelo mercado e são resultados de proces-</p><p>sos de trabalho anteriores dos quais decorreram sua valorização,</p><p>restando o trabalho como a fonte última de geração de todo valor.</p><p>A força de trabalho gera valor, porque o capitalista paga</p><p>por sua contratação o seu valor (de mercado) e utiliza seu valor de</p><p>uso, produtivo, que gera valor maior que o pago. Paga por sua ca-</p><p>pacidade abstrata de produzir riqueza e utiliza concretamente sua</p><p>capacidade de trabalho na linha de produção, o que o mercado</p><p>avalia de forma diferente, proporcionando a geração de mais va-</p><p>lor; a diferença entre D’ e D. A mais-valia surge no processo pro-</p><p>dutivo, onde primeiramente se manifesta a exploração do traba-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 198</p><p>Sumário</p><p>lhador livre. E qual é o valor de mercado da força de trabalho de</p><p>um trabalhador típico no capitalismo?</p><p>A resposta para essa questão passa pela localização espaci-</p><p>al e temporal de uma sociedade de referência, no entanto, de for-</p><p>ma geral e como nas demais mercadorias, Marx afirma que este</p><p>seria dado pela “quantidade de trabalho necessário para produzi-</p><p>lo” (1986, 160), o que corresponderia aos gastos mínimos com</p><p>alimentação, saúde, habitação do trabalhador e de sua família, pa-</p><p>ra que se possa garantir sua manutenção e substituição no futuro</p><p>por novos trabalhadores na sociedade de referência. Tudo isso</p><p>somado corresponderia ao salário pago. É certo que esse valor não</p><p>é totalmente objetivo, pois também há necessidades humanas</p><p>subjetivas que variam ao longo da história, mas o mercado sempre</p><p>empurra para baixo esse valor em seu respectivo contexto históri-</p><p>co, amparado na concorrência sempre elevada por vagas de traba-</p><p>lho.</p><p>As particularidades da força de trabalho continuam na de-</p><p>finição de suas características. Seu consumo é produtivo, gera va-</p><p>lor, diferentemente das demais mercadorias em que o consumo é</p><p>destrutivo, no curto ou longo prazo121. A finalidade de seu uso não</p><p>é atender a uma necessidade humana específica, mas sim a uma</p><p>necessidade do capital: gerar riqueza.</p><p>Além de receber aquém do que produziu, a força de traba-</p><p>lho obtém seus salários após adiantar produção ao capitalista,</p><p>também se distinguindo em relação às demais mercadorias neste</p><p>ponto, já que a regra é pagar/receber. Na prática, ela oferece um</p><p>crédito ao capitalista, que pode faturar e pagar-lhe ao fim de um</p><p>período, sem desembolsar recursos próprios.</p><p>Desvendado o enigma da produção de mais-valia, chega-se</p><p>à conclusão de que a força de trabalho é a mercadoria especial que</p><p>121 Perecíveis, de consumo imediato ou de consumo durável.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 199</p><p>Sumário</p><p>tem a propriedade de criar valor. É ela que explica a diferença en-</p><p>tre D’ e D, a mais-valia. Para gerar mais valor, a força de trabalho</p><p>precisa ser livre e despojada de qualquer propriedade, sem víncu-</p><p>lo com algo ou alguém, como acontecia no feudalismo (terra) ou</p><p>no escravismo (proprietários de escravos), para que lhe sobrem</p><p>só as energias do corpo para vender.</p><p>O trabalhador livre está plenamente disponível para o capi-</p><p>talista, apenas com o potencial produtivo como única mercadoria</p><p>que lhe resta, tendo que vendê-lo para sobreviver. A liberdade do</p><p>mercado aparece no contrato de aluguel de sua força produtiva,</p><p>que lhe dá a opção de pedir demissão e também prevê a possibili-</p><p>dade de ser demitido a qualquer momento.</p><p>Confirma-se o caráter excluidor do sistema socioeconômico</p><p>que mais exponenciou a produção de riquezas na história da hu-</p><p>manidade, o capitalismo, no momento em que se nega à distribui-</p><p>ção dessa. O surgimento das classes sociais dos trabalhadores e</p><p>dos capitalistas é o resultado de um processo histórico em que a</p><p>separação da unidade produção/consumo é um marco básico para</p><p>o entendimento de sua lógica e do processo de acumulação.</p><p>Desde já vale a pena esclarecer a impossibilidade de se ge-</p><p>rar valor na circulação de mercadorias. A observação de um co-</p><p>mércio vigoroso pode passar a falsa impressão de que o comércio</p><p>gera valor, como foi o caso dos mercantilistas, mas não é isso que</p><p>acontece. Não precisamos ir muito longe para descobrir a falácia</p><p>de um raciocínio desses considerando a ótica marxista. Embora</p><p>seja cedo para falar a nível de ‘capital comercial’122, pode-se adian-</p><p>tar que na esfera da circulação de mercadorias (comércio) há uma</p><p>adição no valor das mercadorias em razão da atuação conjunta do</p><p>capital comercial, no sentido de promover o aumento nas vendas</p><p>122 O aprofundamento dessa matéria vai ser feita por Marx na seção 4 do livro 3</p><p>do Capital.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 200</p><p>Sumário</p><p>para o capital industrial, o centro de toda atividade no capitalis-</p><p>mo, ao qual está vinculado. Nas palavras de Marx:</p><p>“O absurdo dessa ideia evidencia-se desde que a</p><p>generalizamos. O que alguém ganhasse constan-</p><p>temente como vendedor, haveria de perder cons-</p><p>tantemente como comprador. ... Portanto, para</p><p>explicar o caráter geral do lucro não tereis outro</p><p>remédio senão partir do teorema de que as mer-</p><p>cadorias se vendem, em média, pelos seus verda-</p><p>deiros valores e que os lucros se obtêm vendendo</p><p>as mercadorias pelo seu valor, isto é, em propor-</p><p>ção à quantidade de trabalho materializado.”</p><p>(Marx, 1986, 158)</p><p>O mercado concorrencial conceitualmente não permite que</p><p>haja surgimento de mais valor na circulação e quando Marx fala</p><p>em capitalismo no livro 1, ainda que isto esteja implícito, está fa-</p><p>lando de capitalismo competitivo, em que os preços das mercado-</p><p>rias são dados pelo mercado. No monopólio, por exemplo, a for-</p><p>mação do preço ganha novos determinantes além dos examinados</p><p>na concorrência.</p><p>No mercado há uma equalização de valores para mercado-</p><p>rias idênticas, assim, como poderia alguém vender algo acima ou</p><p>abaixo do valor de mercado, se essa pessoa trabalha dentro do</p><p>sistema capitalista (ou mesmo mercantil) e suas regras não permi-</p><p>tem que faça isso? As únicas</p><p>possibilidades para tanto se enqua-</p><p>dram nas exceções à regra, como, por exemplo, desfazer-se de um</p><p>patrimônio depois de uma experiência empresarial mal sucedida,</p><p>quando se vende abaixo do valor, ou uma venda a alguém mal in-</p><p>formado sobre os preços de mercado, situação em que se vende</p><p>acima do valor; fatos eventuais perante o funcionamento corrente</p><p>do sistema como um todo.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 201</p><p>Sumário</p><p>Por aí percebe-se porque não houve acumulação de capital</p><p>no mercantilismo, pois predominando o comércio, não há como</p><p>acumular capital significativamente. Numa etapa histórica inicial</p><p>do capitalismo, a mais-valia era gerada exclusivamente na indús-</p><p>tria, a célula da produção em série e massificada de mercadorias,</p><p>logo depois, com a consolidação do modo de produção, todas as</p><p>atividades que se desenvolvem, e nesse contexto, se veem envol-</p><p>vidas pelos parâmetros da forma capitalista de organizar a produ-</p><p>ção, o que remete a um movimento global do capital, no qual está</p><p>inserido indistintamente todo tipo de atividade econômica.</p><p>A partir daí, pode-se considerar o sistema capitalista como</p><p>uma unidade produtiva em que os diversos ramos de atividade</p><p>interagem para atingir uma mesma finalidade: reprodução e am-</p><p>pliação do capital. Isso é mais explorado nos outros livros de O</p><p>Capital, nesse instante, para efeito didático, pode-se separar o</p><p>momento da produção do momento da circulação e verificar que a</p><p>mais-valia inicialmente gerada na indústria é dividida entre os</p><p>demais setores da economia, colaboradores que são do processo</p><p>de realização da produção ou da expansão do processo produtivo</p><p>(acumulação de capital). Assim, fica mais fácil entender porque a</p><p>fonte original da mais-valia é a indústria.</p><p>O setor varejista e o atacadista agilizam a entrega das mer-</p><p>cadorias nos mais distantes lugares, merecendo, por isso, uma</p><p>fração da mais-valia. Também o setor bancário, centralizando as</p><p>poupanças, amplia as possibilidades de crédito para o capitalista.</p><p>Todos servem ao capital e, portanto, a eles cabe uma parcela da</p><p>massa de mais-valia extraída no processo produtivo, do lucro do</p><p>capital industrial: lucro comercial para o capital comercial, juro</p><p>para o capital financeiro, aluguel para o capital imobiliário, etc.</p><p>Todos giram em torno do capital industrial, o alicerce produtivo</p><p>sem o qual todo o resto deixa de ter sentido.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 202</p><p>Sumário</p><p>Se o capital produtivo concede essas modalidades de re-</p><p>muneração retiradas de dentro de sua mais-valia (ou, especifica-</p><p>mente, lucro industrial), esta concessão se dá de várias formas; da</p><p>informal à formal. A concessão informal se caracteriza pela falta</p><p>de um contrato, vinculando a marca industrial ao estabelecimento</p><p>comercial, como as lojas de artigos especializados de uma forma</p><p>geral, enquanto a concessão formal indica um compromisso do</p><p>comerciante firmado em contrato com a revenda exclusiva dos</p><p>produtos de uma certa indústria.</p><p>Investigado o processo de acumulação capitalista e suas</p><p>particularidades, detectou-se a importância da esfera produtiva</p><p>na economia. Só há geração de mais-valia na produção. Dessa for-</p><p>ma, passaremos a aprofundar o estudo do processo produtivo na</p><p>próxima seção. Ao esmiuçar seu funcionamento serão desvenda-</p><p>dos novos enigmas do capitalismo.</p><p>4.9. O processo de produção capitalista e a teoria da</p><p>exploração</p><p>4.9.1. Processo de trabalho e de valorização</p><p>Investigada a origem do valor e o papel do dinheiro no ca-</p><p>pitalismo, vem a compreensão de que a mais-valia surge dentro</p><p>do processo produtivo, particularmente o industrial, é dirigida à</p><p>acumulação de capital e depois é rateada com outras modalidades</p><p>de capital que lhe dão suporte em outros setores. A partir desse</p><p>ponto, Marx se detém na observação de um processo de produção</p><p>capitalista típico para esmiuçar a formação da mais-valia e do</p><p>processo de acumulação. Nesta empreitada o leitor é apresentado</p><p>a novos conceitos, à essência da teoria de exploração capitalista e</p><p>entenderá como a tecnologia serve à lógica da exploração e acu-</p><p>mulação capitalistas. O primeiro passo para se compreender a</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 203</p><p>Sumário</p><p>produção é o exame de sua essência, o processo de trabalho; sem</p><p>o qual não se desencadeia a atividade produtiva.</p><p>O trabalho é algo inerente ao ser humano. Em qualquer</p><p>época histórica, o homem precisa obter da natureza os gêneros</p><p>básicos para sua sobrevivência. O processo de produção de valo-</p><p>res de uso independe da forma de organização social, e é, antes,</p><p>condição da subsistência humana na terra. Como o homem vai</p><p>realizar esta tarefa crucial depende de sua evolução técnica cientí-</p><p>fica, que determinam o nível de domínio que ele exerce sobre a</p><p>natureza, e do desenvolvimento da organização social, que deter-</p><p>mina quais são as relações sociais adotadas.</p><p>Nos primeiros estágios de desenvolvimento da humanida-</p><p>de, quando prevalecia o sistema tribal e o homem pouco sabia so-</p><p>bre si e a natureza, a sua atitude para com a grandeza da natureza</p><p>era de extremo respeito. Poder-se-ia dizer mesmo que era ela</p><p>quem o dominava em função das inúmeras restrições impostas,</p><p>tais como: mudanças climáticas, intempéries, agressividade de</p><p>animais, etc. Passado esse estágio mais remoto da história social, o</p><p>homem começa a superar as formas instintivas rudimentares e</p><p>passa gradativamente a alterar a relação de poder com a natureza,</p><p>produzindo cada vez mais elementos que lhe permitem contornar</p><p>as barreiras naturais. Nas palavras de Marx:</p><p>“Ao atuar, ... ,sobre a natureza externa a ele e ao</p><p>modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua</p><p>própria natureza. Ele desenvolve as potências ne-</p><p>la adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a</p><p>seu próprio domínio.” (Marx, 1985, 149)</p><p>Na ação do homem são despertadas propriedades da natu-</p><p>reza, que ele extrai para seu beneficio. De lá o homem pode conse-</p><p>guir elementos diversos para prolongar sua vida como também</p><p>Alexandre Lyra Martins | 204</p><p>Sumário</p><p>eliminar paulatinamente as condições de vida na terra. Com o</p><p>tempo e o desenvolvimento intelectual humano há uma inversão</p><p>de poder e o homem passa a ter muito controle sobre os recursos</p><p>naturais, até o ponto em que a sensação de poder é tal, que, sem se</p><p>dar conta, sua atuação ganha caráter destrutivo.</p><p>Novos universos se abrem a cada descoberta realizada, que</p><p>por sua vez implicam em mudanças no ponto de vista de como</p><p>encarar o mundo. Marx toma como ponto de partida na análise do</p><p>processo de trabalho humano, o instante em que esse deixa as</p><p>formas instintivas para uma etapa em que o homem é capaz de</p><p>determinar com antecedência o resultado final da produção ao</p><p>qual vai chegar. Com o uso de suas faculdades mentais, ele planeja,</p><p>elabora previamente as fases do processo de trabalho e o realiza</p><p>num segundo momento.</p><p>Em um processo de trabalho existem alguns elementos</p><p>fundamentais, quais sejam: o trabalho propriamente dito, seu ob-</p><p>jeto e seus meios. O objeto de trabalho de um processo produtivo</p><p>é por excelência a matéria prima fornecida pela natureza. Os re-</p><p>cursos naturais em geral podem ser considerados em seu estado</p><p>bruto, quando não há nenhum trabalho incorporado, ou, como</p><p>matéria-prima, quando já foi trabalhada pelo homem. Notadamen-</p><p>te, na evolução do capitalismo, observa-se a eliminação gradativa</p><p>das formas brutas da natureza como fontes diretas da produção.</p><p>O capitalista foi aos poucos controlando os insumos neces-</p><p>sários à produção, na medida em que percebia que isso possibili-</p><p>tava aumentar a escala e a constância da produção, regularizando</p><p>assim a obtenção da mais-valia e alavancando ainda mais a acu-</p><p>mulação de capital. Pode-se confirmar na atualidade a continuida-</p><p>de desses mecanismos principalmente através dos avanços</p><p>técni-</p><p>cos ocorridos na agropecuária, criando condições de autonomia</p><p>em relação à natureza, bem como na indústria, quando desenvolve</p><p>novos produtos sintéticos.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 205</p><p>Sumário</p><p>A natureza bruta, por sua vez, é exclusivamente valor de</p><p>uso. Uma granja de frangos moderna, por exemplo, não pode de-</p><p>pender do frango selvagem para produzir em escala comercial,</p><p>pesquisas são realizadas para desenvolver espécimes mais ade-</p><p>quados ao consumo humano, enfatizando a massa muscular e a</p><p>diminuição da massa óssea, de modo a viabilizar a produção cons-</p><p>tante e em massa.</p><p>Para trabalhar a matéria-prima, o homem desenvolveu ao</p><p>longo do tempo instrumentos diversos para facilitar o manuseio</p><p>dos recursos disponíveis; os meios de trabalho. As pás e alavancas,</p><p>entre outras ferramentas, permitiram tornar cada vez mais efici-</p><p>ente a exploração da natureza, revertendo-a em mais alimentos,</p><p>vestimentas ou melhores materiais para construção de abrigos.</p><p>Meio de trabalho é “uma coisa ou um complexo de coisas</p><p>que o trabalhador coloca entre si mesmo e o objeto de trabalho e</p><p>que lhe serve como condutor de sua atividade sobre esse objeto”</p><p>(Marx, 1985, 150). São os instrumentos de trabalho ou as máqui-</p><p>nas que lhe servem para produzir algum produto (que pode vir a</p><p>ser mercadoria).</p><p>A produção capitalista avançada pode ser destinada ao</p><p>consumidor final ou a algum produtor que precisa de mercadorias</p><p>para realizar sua produção, seja por meio de itens semielaborados</p><p>ou de bens intermediários: as máquinas. O resultado da produção,</p><p>portanto, pode ser condição de outros processos produtivos e isso</p><p>torna-se corrente na realidade capitalista na medida em que há</p><p>uma cadeia produtiva interligando vários setores da economia.</p><p>Como já foi visto, a produção de valores de uso orientada</p><p>para satisfazer às necessidades humanas é requisito essencial à</p><p>existência humana; essa é a essência do processo de trabalho. No</p><p>contexto capitalista de produção, entretanto, são produzidos valo-</p><p>res de uso não como um fim em si mesmo, mas como forma de</p><p>atingir o objetivo fundamental do capitalista ao engendrar a pro-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 206</p><p>Sumário</p><p>dução de um bem qualquer, que é ter lucro. A produção de valores</p><p>de uso é unida à produção de valor e de mais valor. A razão da</p><p>existência do valor de uso aqui passa a ser servir à valorização,</p><p>pois só são vendidas coisas que possuem utilidade, dessa maneira</p><p>o capital se apodera da produção para fazê-la gerar valor e acumu-</p><p>lar capital. Isto se dá por etapas.</p><p>Antes da chamada ‘revolução industrial’, com a produção</p><p>ainda basicamente artesanal, o mercador (embrião do capitalista)</p><p>comprava o resultado da produção e a vendia por valores acima</p><p>do que havia pago ao artesão. Era a fase denominada de ‘acumula-</p><p>ção primitiva de capital’. Mais tarde, o aprendiz de capitalista vai</p><p>reunir vários artesãos que vendiam suas produções para ele em</p><p>um lugar apenas, o que já vai permitir maior controle da produção</p><p>e alavancar o processo, ainda incipiente, de acumulação de capital.</p><p>Para falarmos em sistema capitalista propriamente dito,</p><p>deve-se avançar na história e chegar ao momento em que ele ex-</p><p>propria os meios de trabalho do trabalhador, comprando os equi-</p><p>pamentos usados na produção. Com o acúmulo de capital e os ne-</p><p>gócios indo de vento em popa, completa-se a transição histórica</p><p>do ‘processo de trabalho’ em si, para o ‘processo de valorização’,</p><p>quando os meios de trabalho são comprados pelo capitalista, dei-</p><p>xando o produtor livre e sem condições de sobrevivência. Nesse</p><p>momento, o artesão passa a ser trabalhador livre.</p><p>A produção capitalista é formada pela contradição dialética</p><p>entre o processo de trabalho simples, que produz de valores de</p><p>uso, e o processo de valorização, correspondente à produção de</p><p>valor. Novamente pode-se observar polos antagônicos convivendo</p><p>dentro de uma unidade: a produção de valor depende da produção</p><p>de valor de uso para ser vendável e a produção de valor de uso</p><p>depende da produção de valor, pois o novo parâmetro de produ-</p><p>ção se impõe sobre os demais, marginalizando os produtores que</p><p>não seguem a lógica do capital.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 207</p><p>Sumário</p><p>A acumulação de capital deve, como regra, seguir os moldes</p><p>do período histórico na qual se está inserida. O capitalista está</p><p>amarrado a condições de reprodução do sistema que não são da-</p><p>das por ele, mas sim pelo mercado. A mais-valia produzida, os sa-</p><p>lários pagos, assim como os preços de mercado tendem a ficar</p><p>muito próximos numa sociedade mercantil onde prevalece a con-</p><p>corrência.</p><p>A taxa de acumulação de capital depende do nível de salá-</p><p>rios pagos aos trabalhadores, o que implica que um capitalista que</p><p>quiser prosseguir com seus negócios tem de considerar os parâ-</p><p>metros da economia de mercado, ou seja, mesmo que tenha boas</p><p>intenções sociais de pagar melhor aos seus trabalhadores, por</p><p>exemplo, não poderá fazê-lo sob pena de diminuir sua margem de</p><p>lucro e daí seu ritmo de acumulação, o que levaria a perder espaço</p><p>para outro capitalista que esteja acompanhando os salários do</p><p>mercado, as inovações e os padrões técnicos daquela produção</p><p>específica.</p><p>Enfim, o processo de trabalho contém trabalho concreto,</p><p>que gera valor de uso, e trabalho abstrato, que gera valor e pro-</p><p>porciona a valorização do capital. É interessante observar que, à</p><p>medida que a divisão do trabalho se acentua, têm-se processos de</p><p>trabalho cada vez mais mecanizados, informatizados e robotiza-</p><p>dos, o que torna os trabalhos cada vez mais parecidos, indistintos,</p><p>possibilitando uma visualização do trabalho abstrato na realidade.</p><p>Na linha de produção industrial em massa capitalista, o trabalha-</p><p>dor perde o papel ativo de titular de um certo ofício para desem-</p><p>penhar o papel passivo de apêndice da máquina, administrado por</p><p>gerentes que medem e exigem sua produtividade como se máqui-</p><p>na fosse.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 208</p><p>Sumário</p><p>4.9.2. As transferências de valor</p><p>Os processos de produção capitalistas expõem um processo</p><p>de trabalho e ocultam um processo de valorização: a esfera da</p><p>transferência de valores das mercadorias necessárias à produção</p><p>para as mercadorias finais, e de criação de valor. Tanto os meios</p><p>quanto os objetos de trabalho usados têm seus valores transferi-</p><p>dos para a mercadoria produzida, mas os objetos se metamorfo-</p><p>seiam ao longo do processo e os meios de trabalho transferem seu</p><p>valor ao longo de sua vida útil, que engloba vários ciclos produti-</p><p>vos. A força de trabalho, por sua atuação produtiva, é responsável</p><p>pela transferência do valor dos meios e dos objetos de trabalho123,</p><p>como também do valor relativo a seu custo de manutenção míni-</p><p>mo, o salário pago, e pela geração de valor adicional.</p><p>As matérias-primas (os objetos de trabalho) em regra, têm</p><p>seu valor integralmente transferido às mercadorias produzidas, os</p><p>meios de trabalho (máquinas e equipamentos) têm seus valores</p><p>apenas parcialmente transferidos às mercadorias finais, em fun-</p><p>ção de seu porte e durabilidade, que requerem um quantitativo</p><p>produtivo bem maior para concluírem a transferência total de seu</p><p>valor. Em cada mercadoria pode-se perceber o uso corresponden-</p><p>te de uma quantidade proporcional de matéria-prima para obtê-</p><p>las, já o maquinário que as processou, bem mais caro e durável,</p><p>tem de estar ali extremamente fracionado.</p><p>Podemos encontrar o valor de um bem de capital (meio de</p><p>trabalho) que é transferido para cada mercadoria produzida, efe-</p><p>tuando a divisão do preço do referido bem pela quantidade de</p><p>mercadorias que ele vai produzir ao longo de seu funcionamento.</p><p>Ocorre que as possibilidades produtivas de uma máquina são am-</p><p>plas, desde que receba manutenção periódica adequada, mas o</p><p>123 Ambos são resultados de processos produtivos anteriores, e, portanto, de</p><p>processos</p><p>de valorização externos já ocorridos.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 209</p><p>Sumário</p><p>limite da produção de um maquinário num contexto capitalista vai</p><p>ser dado pela combinação de seu desgaste, cujo custo é dado pela</p><p>depreciação, e pelo grau de obsolescência prevalecente na época</p><p>em que ele opera.</p><p>Em relação à depreciação deve-se considerar o tempo de</p><p>vida útil da máquina em função de um custo de manutenção viá-</p><p>vel, pois chega um momento em que mantê-la fica muito oneroso,</p><p>inviabilizando economicamente seu uso. Já a introdução de novas</p><p>tecnologias/máquinas no mercado torna equipamentos em uso</p><p>relativamente menos produtivos, deixando a tecnologia anterior</p><p>obsoleta. A tendência de se reduzir o tempo de operação dos</p><p>equipamentos está diretamente relacionada à obsolescência, que</p><p>se acentua com o avanço do capitalismo.</p><p>O cálculo efetuado para repor um equipamento toma a de-</p><p>preciação, que dilui e distribui em períodos o volume total inves-</p><p>tido em um bem de capital em função de sua vida útil, e considera</p><p>também a obsolescência. O fundo de depreciação necessário para</p><p>substituir um equipamento parte de uma estimativa do tempo</p><p>médio para o surgimento de tecnologia alternativa que vai torná-</p><p>lo obsoleto124.</p><p>Notadamente, a expectativa de vida útil dos bens de capital</p><p>varia em função do estágio de desenvolvimento do capitalismo:</p><p>quanto mais esse avança, mais constante é a introdução de inova-</p><p>ções tecnológicas. Outro fator que influencia na duração produtiva</p><p>de um maquinário é o setor ao qual pertence. Em setores mais</p><p>dinâmicos, onde a introdução de novas tecnologias se dá com</p><p>maior regularidade125, esse prazo cai mais rapidamente, já em</p><p>124 Ao elevar os padrões de produtividade do processo produtivo em questão</p><p>ou gerar mercadorias diferenciadas e aperfeiçoadas que tomem o lugar das</p><p>anteriores na preferência dos consumidores.</p><p>125 Como o setor de eletroeletrônicos.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 210</p><p>Sumário</p><p>setores que dependem mais da força de trabalho126, as inovações</p><p>acontecem num ritmo menor, e esse tempo elastece.</p><p>Se, num exemplo hipotético, uma empresa adquirir um</p><p>bem de capital no valor de R$168.000,00 e estimar a duração de</p><p>sua vida útil em 4 anos, devido ao grau de obsolescência predomi-</p><p>nante no setor, essa empresa fará um fundo de depreciação anual</p><p>de R$ 42.000,00 (168.000/4), ou, alternativamente, vai retirar</p><p>mensalmente R$ 3.500,00 (42.000/12) de suas receitas para con-</p><p>seguir substituir o atual maquinário127 ao fim de sua vida útil.</p><p>Falta ainda um componente de valor relativo ao desenvol-</p><p>vimento de novas tecnologias. Quando um equipamento é coloca-</p><p>do no mercado, é definido um volume de vendas para cobrir o in-</p><p>vestimento feito em seu desenvolvimento, mas logo após seu lan-</p><p>çamento, já começa o melhoramento da tecnologia ou o processo</p><p>de criação de uma outra. O fundo de depreciação ideal, portanto,</p><p>incluirá também o custo com P& D (pesquisa e desenvolvimento)</p><p>de novas tecnologias a serem incorporadas nos maquinários.</p><p>Para calcular o valor que é repassado pelo bem de capital</p><p>às mercadorias produzidas, precisamos saber o preço do maqui-</p><p>nário e a estimativa de produção no tempo de vida útil, assim, con-</p><p>tinuando o exemplo do parágrafo anterior, se a produção durante</p><p>a expectativa de vida útil da referida máquina é de 800.000 uni-</p><p>dades, o custo do equipamento que está diluído em cada unidade</p><p>produzida é de 21 centavos de real (R$ 168.000,00/800.000). Se o</p><p>preço final da mercadoria processada for R$ 2,10, 10% desse va-</p><p>lor corresponderá ao valor transferido pelo maquinário usado em</p><p>sua produção.</p><p>Como se viu, o maquinário entra parcialmente no processo</p><p>de valorização, na medida em que seu valor vai sendo transferido</p><p>para as mercadorias produzidas ao longo de sua vida útil, por ou-</p><p>126 Como o setor de serviços.</p><p>127 Recurso suficiente para custear a compra do maquinário substituto.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 211</p><p>Sumário</p><p>tro lado, o bem de capital entra integralmente no processo de tra-</p><p>balho, pois a produção só ocorre porque todos seus elementos,</p><p>inclusive os equipamentos, estão mobilizados para tal. Não é pos-</p><p>sível produzir as mercadorias com uma fração do maquinário, só</p><p>seu uso integral pode resultar na produção de mercadorias.</p><p>4.9.3. A teoria da exploração</p><p>Após esses apontamentos sobre a transferência do valor ao</p><p>longo do processo de produção, podem ser introduzidos dois con-</p><p>ceitos cruciais para a compreensão da exposição da teoria marxis-</p><p>ta da exploração, quais sejam: capital constante e capital variável.</p><p>O capital constante se refere à parte do capital que não altera sua</p><p>grandeza de valor ao longo do processo de produção, compreen-</p><p>dendo os meios e os objetos de trabalho: matérias-primas, insu-</p><p>mos diversos e equipamentos de uma forma geral. O valor dos</p><p>meios e objetos de trabalho que entra no processo produtivo é</p><p>reproduzido ao longo desse, saindo ao final um valor igual ao que</p><p>deu entrada. A matéria-prima é transformada pelo trabalho hu-</p><p>mano; metamorfoseia-se o corpo, mas o valor permanece inalte-</p><p>rado.</p><p>Capital variável diz respeito à parte do capital convertido</p><p>em força de trabalho, que muda seu valor durante o processo pro-</p><p>dutivo. É o valor total pago aos trabalhadores em uma certa uni-</p><p>dade produtora, e, portanto, capital investido que transpõe para a</p><p>mercadoria final todos os valores correspondentes ao capital</p><p>constante, reproduzindo seu próprio valor e ainda produzindo</p><p>mais valor.</p><p>Tomando contato com os conceitos recém introduzidos de</p><p>capital constante e variável, novamente fica ressaltada a máxima</p><p>Alexandre Lyra Martins | 212</p><p>Sumário</p><p>marxiana de que o trabalho é a única fonte geradora de valor128. O</p><p>salário recebido pelo trabalhador corresponde apenas a uma par-</p><p>te do valor que o trabalhador efetivamente produziu na linha de</p><p>produção; é aí onde está a exploração do capitalista sobre a força</p><p>de trabalho. A diferença entre o salário pago e o valor total líquido</p><p>produzido, descontados os gastos com demais insumos produti-</p><p>vos, é a mais-valia129. Logo a seguir, prosseguindo com a teoria da</p><p>exploração marxista, pode-se observar que esse suposto nova-</p><p>mente virá à tona, dado que é um corolário natural da teoria do</p><p>autor em estudo.</p><p>A partir dos conceitos de capital constante (C. C.) e capital</p><p>variável (C. V.), o valor total da produção (V.) pode ser desmem-</p><p>brado da seguinte maneira:</p><p>V = C.C. + C.V. + M.V.</p><p>Sendo que:</p><p>C.C. = C.M.T. + C.O.T.</p><p>C.V. = M.S.</p><p>Onde:</p><p>C.M.T. = Capital investido em meios de trabalho</p><p>C.O.T. = Capital investido em objetos de trabalho</p><p>M.S. = Massa salarial paga à força de trabalho (F.T.)</p><p>M.V. = Mais valia</p><p>Tomando um exemplo numérico:</p><p>128 A terra pode gerar valor de uso.</p><p>129 Ou, alternativamente, no esquema anteriormente visto: D’ – D.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 213</p><p>Sumário</p><p>Momento 1 - O capitalista investe um capital inicial (C.I.) de</p><p>R$ 100.000,00, assim dividido: C.C. = R$ 80.000,00 e C.V. = R$</p><p>20.000,00; onde:</p><p>C.I. = C.C. + C.V. = 80.000,00 + 20.000,00 = 100.000,00</p><p>Momento 2 - Após um certo intervalo de tempo, de um mês</p><p>por exemplo, o capitalista vai apurar suas receitas correntes, veri-</p><p>ficando o resultado da produção durante o período. Supondo uma</p><p>mais-valia de R$ 20.000,00 para esse caso hipotético, tem-se a</p><p>noção de capital final (C. F., categoria didática criada aqui com</p><p>objetivo de facilitar o entendimento desse tópico), que diz do va-</p><p>lor das vendas das mercadorias produzidas (V):</p><p>C.F. = C.C. + C.V. + M.V.</p><p>C.F. = 80.000,00 + 20.000,00 + 20.000,00 = 120.000,00</p><p>Agora pergunta-se: qual será a taxa de mais-valia no caso</p><p>em estudo? Muitas pessoas podem concluir pela divisão da mais-</p><p>valia pelo capital inicial, o que representaria o retorno do investi-</p><p>mento realizado. Para o exemplo em questão,</p><p>ter-se-ia:</p><p>M.V. 20.000,00</p><p>tx. = -------- = --------------- = 0,2 ou 20 %</p><p>C.I. 100.000,00</p><p>Para Marx, entretanto, essa forma corrente de se medir a</p><p>rentabilidade de um capital aplicado produtivamente, não passa-</p><p>ria de uma taxa de mais-valia aparente (lucro), uma vez que a base</p><p>de cálculo tomada, o capital inicial, estaria equivocada. A correta</p><p>base de cálculo para a taxa de mais-valia, do ponto de vista mar-</p><p>xista, deve ser a fonte geradora do valor adicional; a força de tra-</p><p>Alexandre Lyra Martins | 214</p><p>Sumário</p><p>balho. Portanto, a divisão a ser feita é entre a mais-valia e a massa</p><p>salarial paga, no caso:</p><p>M.V. 20.000,00</p><p>tx m.v. = -------- = -------------- = 1 ou 100 %</p><p>C.V. 20.000,00</p><p>Esse percentual significa que, no caso hipotético em exame,</p><p>o capitalista pagou a metade do que deveria pagar aos trabalhado-</p><p>res. Pagou R$ 20.000,00 quando deveria ter pago R$ 40.000,00</p><p>(C.V. + M.V.). Segundo Marx, a mais-valia pertence ao trabalhador</p><p>porque foi ele quem proporcionou a produção das mercadorias</p><p>finais, e de todas mercadorias intermediárias envolvidas no pro-</p><p>cesso também.</p><p>O valor das matérias-primas e das máquinas usadas é re-</p><p>sultado do trabalho humano. Pode-se ver a exploração também</p><p>pelo ângulo do tempo de trabalho, para isso tem-se que converter</p><p>a fórmula anterior em tempo de trabalho. No caso em estudo, apli-</p><p>cando a suposição de uma jornada de trabalho de 8 horas, primei-</p><p>ro converte-se a produção mensal e os valores das partes fracio-</p><p>nadas do capital total em valores diários (dividindo por 30 dias),</p><p>obtendo-se:</p><p>Valor da produção diária: R$ 4.000 (120.000/30)</p><p>Valor diário do C.C. = R$ 2.667,00 (R$ 80.000/ 30)</p><p>Valor diário do C.V. e da M.V. = R$ 667,00 (R$ 20.000/30)</p><p>Para o C.C. tem-se: R$ 2.667,00 ----- 4.000</p><p>X ----- 8</p><p>4.000 X = 21.336,00 / X = 5,3 h.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 215</p><p>Sumário</p><p>Para o C.V. e a M.V. tem-se: R$ 667,00 ----- 4.000</p><p>X ----- 8</p><p>4.000 X = 5.336,00 / X = 1,3 h.</p><p>Somando os tempos de trabalho: 5,3 + 1,3 + 1,3 = 8 horas.</p><p>Pode-se, portanto, dividir esquematicamente a jornada de</p><p>trabalho em frações de tempo relativas à reprodução do valor</p><p>contido nas mercadorias e insumos que entram na produção, o</p><p>valor da força de trabalho e o valor da mais-valia. Com estes des-</p><p>membramentos, Marx chegou aos conceitos de tempo de trabalho</p><p>necessário (T.N.); o tempo suficiente para o trabalhador repor as</p><p>energias gastas no decorrer da produção130, e o tempo de trabalho</p><p>excedente (T. E.) correspondendo ao tempo gasto pelo trabalha-</p><p>dor para produzir mais valor131.</p><p>Dessa forma, pode-se expressar alternativamente a fórmula</p><p>da taxa efetiva de mais-valia em tempo de trabalho:</p><p>T. E. 1,3</p><p>tx. m.v. = -------- ; No exemplo anterior: ------ = 1 ou 100%</p><p>T. N. 1,3</p><p>O capitalista deixa de remunerar o trabalhador para acu-</p><p>mular, usando a força de trabalho como fonte dos lucros. Na gêne-</p><p>se do capitalismo o trabalhador é explorado ainda possuindo os</p><p>meios de trabalho, mas na sequência esses são expropriados e o</p><p>trabalhador passa a ser explorado no processo de trabalho capita-</p><p>lista desprovido de qualquer recurso. A acumulação propriamente</p><p>dita só acontece ao fim de um intervalo de tempo bem maior, em</p><p>130 Que equivale ao c.v. em termos de tempo de trabalho, ou seja, a massa sala-</p><p>rial.</p><p>131 A mais-valia expressa em tempo de trabalho.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 216</p><p>Sumário</p><p>que a mais-valia atinge montantes significativos, mas sua origem</p><p>está no trabalho não-pago do dia-a-dia.</p><p>Não obstante, não há consenso na interpretação desse pon-</p><p>to da teoria marxista, no qual, em função da aceitação pelo traba-</p><p>lhador das regras da sociedade capitalista (que ele efetivamente</p><p>conhece), discute-se a existência de ‘roubo’ ou não por parte do</p><p>capitalista quando paga o salário contratado e extrai do mais-</p><p>trabalho a mais-valia. A tendência é considerar a não legitimidade</p><p>da apropriação, mas não a infração, uma vez que é norma do sis-</p><p>tema.</p><p>Tavares (1980, 11), por exemplo, enfatiza que é pago ao</p><p>trabalhador a média do valor dos meios de subsistência, tratando-</p><p>se para ela apenas da “... apropriação privada do valor de uso do</p><p>trabalho ‘socializado’ pelo capital e subordinado a ele, que permi-</p><p>te a conversão do sobretrabalho em “mais-valia”, isto é, na ‘base’</p><p>da possibilidade de lucro”, deduzindo daí que a exploração do tra-</p><p>balho não implica em apropriação desautorizada da devida remu-</p><p>neração do trabalhador. Alguns elementos para discussão podem</p><p>ser colocados.</p><p>O padrão capitalista de produção está necessariamente li-</p><p>gado à geração da mais-valia e de sua canalização para a acumula-</p><p>ção de capital, realimentando o processo e impulsionando o cres-</p><p>cimento da riqueza, que acaba concentrada nas mãos de poucos.</p><p>Esse modo de produção contempla os interesses dos capitalistas,</p><p>como o próprio nome sugere, mas a sociedade respalda essa for-</p><p>ma de organizar a produção e lhes dá, legitimados pela proprieda-</p><p>de privada, o poder de decidir sobre os excedentes produzidos.</p><p>Essa lógica está imersa numa modernidade construída em torno</p><p>do princípio da liberdade de escolhas, onde o sistema de mercado</p><p>é a face econômica de um projeto de sociedade liberal, em que há</p><p>uma promessa democrática tanto política quanto econômica. A</p><p>sociedade moderna espera do capitalismo a expansão da produ-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 217</p><p>Sumário</p><p>ção e oportunidades para os cidadãos, seja de negócios ou de em-</p><p>pregos.</p><p>Quanto aos trabalhadores, esses conhecem as regras dos</p><p>contratos trabalhistas que assinam e o fazem porque precisam,</p><p>sabendo quanto vão auferir ao final do mês, seus direitos, suas</p><p>obrigações, etc. Baseando-se estritamente nesses elementos, po-</p><p>de-se dizer que o trabalhador não é enganado, já que as regras do</p><p>jogo estão dadas e ele as acata. Porém, retomando a análise crítica</p><p>de Marx sobre a sociedade, quando ele elabora as categorias de</p><p>superestrutura e estrutura econômica, surgem as questões: 1 -</p><p>Quem formula as leis no capitalismo? 2 - Há opção de escolha para</p><p>o trabalhador livre no contexto capitalista, tanto política quanto</p><p>economicamente? 3 - É oferecida ao trabalhador educação crítica,</p><p>proporcionando conscientização de sua situação?</p><p>O leitor que passou pelos itens anteriores deve estar em</p><p>condições de responder seguindo o raciocínio marxiano: 1- Os</p><p>‘legítimos’ representantes eleitos pelo povo, que na maior parte</p><p>são empresários ou candidatos financiados por empresários em</p><p>sua maioria, ligados a partidos liberais. 2- As alternativas políticas</p><p>discordantes do mainstream são marginais e não reverberam so-</p><p>cialmente o bastante para crescer, especialmente após o fracasso</p><p>das experiências de socialismo real. 3- Não.</p><p>Ressalto novamente que é preciso muito cuidado quando</p><p>se pretende afirmar algo que já foi e continua sendo debatido. No</p><p>tema em foco, seguindo os escritos de Marx, pode-se concluir que</p><p>a superestrutura serve à classe dominante, o que nos permite di-</p><p>zer: a. O Estado, como representante da classe dominante dificil-</p><p>mente proporcionará educação crítica à massa de trabalhadores,</p><p>pois assim, seriam difundidas informações que iriam de encontro</p><p>a seus próprios interesses, b. Ao contrário, são utilizados meca-</p><p>nismos diversos (de marketing,</p><p>de oferta ou aspectos</p><p>inerciais7.</p><p>Além do método, o que há de comum em todo processo de</p><p>construção de uma teoria é o uso da abstração. Numa teoria, são</p><p>apresentadas apenas algumas variáveis e a relação entre elas (ma-</p><p>tematicamente ou não). Necessariamente há uma seleção de al-</p><p>guns elementos que têm maior importância do que outros, por</p><p>terem papel decisivo na determinação do todo. Não se pode traba-</p><p>lhar teoricamente com a realidade tal qual ela se apresenta; tem</p><p>de haver uma redução no nível de complexidade da realidade ob-</p><p>jetiva, uma simplificação obrigatória e criteriosa, baseada num</p><p>método, que permita a elaboração de uma interpretação teórica</p><p>do objeto investigado.</p><p>O método aponta o caminho para a escolha das variáveis</p><p>fundamentais e para a relação entre elas, através de critérios,</p><p>conduzindo o pesquisador no processo de abstração a seu objeti-</p><p>vo, amparado em premissas rigorosas que permitirão a repetição</p><p>dos resultados em testes diversos posteriores. Como se vê, o mé-</p><p>todo retira, ao máximo, as variações de interpretação decorrentes</p><p>de pontos de vista estritamente pessoais, possíveis em função da</p><p>formação educacional e cultural de cada indivíduo e da subjetivi-</p><p>dade na apreensão da realidade.</p><p>Não obstante a imparcialidade seja inerente ao método ci-</p><p>entífico, essa é apenas aproximada, uma vez que o próprio método</p><p>é criação humana, e assim, já em sua origem pode conter algum</p><p>viés. Além disso, existem alguns métodos disponíveis e, ao esco-</p><p>lher um deles, o estudioso está preferindo um procedimento que</p><p>7 Dentro de cada corrente dessa existem várias outras aprofundando e discu-</p><p>tindo as premissas do tema.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 25</p><p>Sumário</p><p>vai encaminhar a análise por uma via que coincide mais com seu</p><p>modo de ver o problema, mas essa escolha garante apenas a con-</p><p>dução da investigação, não os resultados a que vai se chegar.</p><p>Ao realizar um processo de abstração, o observador deve</p><p>estar atento aos supostos metodológicos predeterminados para</p><p>não incorrer em idealização do objeto investigado. A idealização</p><p>acontece quando o teórico se deixa levar por aspectos não funda-</p><p>mentais da realidade, que, no entanto, são destacados na aparên-</p><p>cia do fenômeno (na superfície são evidentes), fazendo com que</p><p>sejam selecionados elementos incorretos para a teoria. O investi-</p><p>gador deve se esforçar no sentido de descobrir a essência, ultra-</p><p>passando as percepções imediatas, sendo capaz de refletir para</p><p>alcançar a real dimensão do fenômeno estudado.</p><p>Num processo de idealização, imagens e informações di-</p><p>versas que se guardam em algum lugar do cérebro (fruto do pro-</p><p>cesso de formação educacional e cultural) e que demonstram a</p><p>forma particular de um grupo social ver o mundo, vêm à tona, ge-</p><p>rando uma visão ‘pessoal’ embutida de valores sociais. A aparên-</p><p>cia se apresenta como essência na idealização, no entanto, a es-</p><p>sência só pode ser obtida ao se transpor a aparência.</p><p>A simples observação do movimento do sol, do nascer ao se</p><p>pôr, após alguns dias, induz o indivíduo à falsa conclusão de que</p><p>ele gira em torno da terra, como a humanidade chegou a acreditar</p><p>em um determinado estágio da sua história (hipótese geocêntri-</p><p>ca). Algum tempo depois, apenas com o uso de cálculos e modelos</p><p>teóricos físicos, ficou demonstrado o contrário (a hipótese helio-</p><p>cêntrica).</p><p>Um exemplo adicional pode ser útil para ilustrar como con-</p><p>cepções prévias do mundo podem conduzir a uma idealização.</p><p>Pedindo para algumas pessoas conceituarem um cachorro, alguém</p><p>pode invocar características como porte, cor ou raça. Essas infor-</p><p>mações compõem a imagem particular de um cão, que é resultado</p><p>Alexandre Lyra Martins | 26</p><p>Sumário</p><p>da experiência pessoal que se tem em relação ao objeto sugerido.</p><p>São, evidentemente, aspectos reais do referido animal, contudo,</p><p>não representam uma caracterização genérica de um cachorro,</p><p>mas uma idealização. Não é preciso nem que haja experiência real</p><p>(concreta) para se idealizar algo, basta que o indivíduo tenha al-</p><p>guma informação guardada, como um desenho visto em revistas.</p><p>Para se obter uma conceituação que alcance todas as raças</p><p>de caninos, por exemplo, é preciso observar o que há de comum</p><p>em todos os cachorros, independente de cor, porte, etc. A concei-</p><p>tuação de algo é um exercício de abstração simples, pois se bus-</p><p>cam os aspectos fundamentais (qualidades básicas) do objeto, se-</p><p>parando-os de elementos irrelevantes (características secundá-</p><p>rias), que se misturam na realidade objetiva. O cachorro, no caso,</p><p>pode ser descrito como um animal mamífero, quadrúpede e pre-</p><p>dominantemente carnívoro, que foi domesticado pelo homem pa-</p><p>ra sua companhia e proteção.</p><p>1.4 O método científico na teoria econômica</p><p>Já sabemos que a ciência econômica pode ser dividida em</p><p>duas grandes vertentes teóricas; a economia pura e a economia</p><p>política. Essas duas vertentes decorrem tão somente de visões</p><p>diferentes acerca de um fenômeno único; a atividade produtiva. O</p><p>rigor científico não elimina o debate de idéias, só que nele o indi-</p><p>viduo tem de estar embasado para se credenciar à discussão, dife-</p><p>rentemente do que acontece numa conversa entre amigos. Nem</p><p>nas ciências exatas, mais precisas por sua própria natureza, há</p><p>visão única dos fenômenos. Na física se discute qual seria a origem</p><p>do universo e para onde ele vai, na biologia se discute o processo</p><p>de evolução dos seres vivos, na antropologia há um debate em</p><p>torno da origem da espécie humana, e por aí vai.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 27</p><p>Sumário</p><p>Se a teoria é científica, deve ser respeitada como tal. Para</p><p>ser científica a teoria deve passar por todo um processo em que é</p><p>submetida à sabatina acadêmica e a testes. A elaboração de uma</p><p>teoria obedece a uma série de etapas, a começar com o enunciado</p><p>de uma hipótese, que nada mais é do que uma suposição acerca</p><p>da(s) causa(s) do fenômeno estudado, que sempre é colocada em</p><p>termos da relação entre uma variável dependente e uma variável</p><p>independente; a que determina o comportamento a outra.</p><p>A hipótese formulada se converte em objetivo do estudo, é</p><p>uma explicação de como determinadas variáveis selecionadas in-</p><p>teragem, de forma a gerar a dinâmica defendida, como por exem-</p><p>plo: o consumo e a poupança dependem da renda, assim os cres-</p><p>cimentos do consumo e da poupança dependem do crescimento</p><p>da renda, e, para uma renda fixa, o crescimento do consumo impli-</p><p>ca numa diminuição da poupança.</p><p>Embora muitas vezes a hipótese seja enunciada matemati-</p><p>camente, essa é apenas uma linguagem possível, assim como a</p><p>forma textual é válida e pode ser até mais adequada a certas</p><p>áreas/métodos de estudo. Uma teoria necessariamente é uma</p><p>simplificação da realidade e, portanto, sempre implica num pro-</p><p>cesso de abstração que gera uma seleção natural de variáveis es-</p><p>senciais para o entendimento do problema. O que vai determinar</p><p>essa seleção e todo percurso da construção teórica é o método,</p><p>que vai ser escolhido em função da identificação do estudioso com</p><p>um dos métodos científicos disponíveis. Por fim, a teoria é elabo-</p><p>rada e a hipótese é testada com a busca de evidências (por meio</p><p>de dados ou fatos históricos no caso da economia)8.</p><p>8 A respeito das etapas para a construção de uma teoria ver Pinho e Vasconce-</p><p>los (2004, 5-6).</p><p>Alexandre Lyra Martins | 28</p><p>Sumário</p><p>Fases da elaboração de uma teoria:</p><p>1. Formulação da hipótese</p><p>2. Escolha do método</p><p>3. Construção da teoria</p><p>4. Testes empíricos</p><p>A escolha do método vai depender fundamentalmente da</p><p>perspectiva analítica do investigador, e isso implica em definir se</p><p>há pretensão de realizar um estudo exclusivamente econômico ou</p><p>um trabalho que concebe o fenômeno econômico como parte do</p><p>fenômeno social, trazendo elementos políticos para a análise. Esta</p><p>questão foi primeiramente colocada a partir do momento</p><p>principalmente) para passar os</p><p>valores da classe dominante, sugerindo a todo momento que o</p><p>Alexandre Lyra Martins | 218</p><p>Sumário</p><p>sistema produtivo vigente é o melhor possível para todos, c. Se</p><p>ainda assim o trabalhador conseguir se sobrepor ao ‘bombardeio’</p><p>de manipulação invisível de seus valores, conhecendo criticamen-</p><p>te a lógica da engrenagem capitalista, de modo que tenha consci-</p><p>ência que ele é apenas uma peça usada do ciclo produtivo, como</p><p>iria viver se não pode escapar do trabalho nos moldes capitalis-</p><p>tas? d. Mesmo considerando tudo isso, a história mostra que as</p><p>forças produtivas evoluem independente da vontade de quem</p><p>quer que seja.</p><p>Marx não aceita a legitimidade do lucro porque este decor-</p><p>re do capital e da exploração, atual ou anterior132. Ele tem suas</p><p>razões fundamentadas na história, mas seus argumentos excluem</p><p>o mérito da inovação da produção capitalista, que possibilitou o</p><p>ganho expressivo de produção e produtividade. Foram avanços</p><p>técnicos aplicados a uma nova perspectiva de produção que en-</p><p>volve riscos, que também podem ser remunerados, pois tem seu</p><p>mérito criativo, mas Marx não comenta estes aspectos.</p><p>Se em um momento o capitalista tem o controle da produ-</p><p>ção e da sociedade, seu domínio é transitório porque há sempre</p><p>dinâmica nas forças produtivas, o que, por sua vez, não nos permi-</p><p>te apontar exatamente em que sentido caminha a humanidade,</p><p>pois depende também dos movimentos que estão sendo desenro-</p><p>lados no presente. Objetivamente, a nível das condições de produ-</p><p>ção do sistema capitalista, portanto, o trabalhador não tem alter-</p><p>nativa dentro do ‘livre mercado’, sua liberdade é a de decidir para</p><p>quem oferecer sua força de trabalho. Nas palavras de Marx:</p><p>“A natureza não produz de um lado possuidores</p><p>de dinheiro e de mercadorias e, do outro, meros</p><p>possuidores das próprias forças de trabalho. Essa</p><p>132 Ocorrida em outros momentos históricos, inclusive por pilhagem, expropri-</p><p>ação de seus meios de trabalho e de suas casas.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 219</p><p>Sumário</p><p>relação não faz parte da história natural nem tão</p><p>pouco é social, comum a todos períodos históri-</p><p>cos. Ela mesma é evidentemente o resultado de</p><p>um desenvolvimento histórico anterior, o produ-</p><p>to de muitas revoluções econômicas, de decadên-</p><p>cia de toda uma série de formações mais antigas</p><p>da produção social.” (Marx, 1985, 140)</p><p>Em verdade, mesmo dentro de uma perspectiva socialista é</p><p>uma abstração considerar que o trabalhador possa dispor de tudo</p><p>que produziu, posto que existem frações da mais-valia com desti-</p><p>nação certa e diferente, como seria o caso de um fundo para a ex-</p><p>pansão e melhora da produção ou para a organização de um Esta-</p><p>do disciplinador da vida social e econômica. A instituição de um</p><p>sistema tributário para sustentar o Estado moderno faria parte</p><p>desse fundo social que varia de forma, mas é característico de</p><p>qualquer modo de produção e também poderia existir numa eco-</p><p>nomia voltada para o trabalhador, ainda que exista a possibilidade</p><p>teórica de sua ausência133. A sociedade como um todo sempre en-</p><p>contra mecanismos de centralizar recursos necessários à própria</p><p>sobrevivência social, mesmo em sistemas de cooperativa agríco-</p><p>la134.</p><p>4.9.4. Formas da mais-valia</p><p>Se a taxa de lucro é dada pela relação estabelecida entre lu-</p><p>cro (mais-valia) e salários, considerando constante o ritmo do</p><p>processo de trabalho, o capitalista pode vislumbrar um aumento</p><p>na sua massa de mais-valia (M.V.) por meio de duas possibilidades</p><p>133 A utopia socialista vai nesse sentido, bem como projetos anarquistas de</p><p>sociedade.</p><p>134 Experiências mais próximas de uma gestão ‘socializada’, onde quase todo o</p><p>resultado da produção é revertido em benefício dos trabalhadores.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 220</p><p>Sumário</p><p>básicas: aumento da jornada de trabalho (mesmo pagando mais,</p><p>mais tempo de trabalho implica em aumento na produção de mas-</p><p>sa de mais-valia) ou, dada a jornada fixa, diminuindo o tempo de</p><p>trabalho necessário à produção de uma mesma quantidade de</p><p>mercadorias. O primeiro mecanismo resulta em aumento absoluto</p><p>da mais-valia, enquanto no segundo há um aumento na mais-valia</p><p>relativa num mesmo tempo de trabalho (proporcionando mais</p><p>produção por hora trabalhada).</p><p>O próprio Marx mostra, através de um esquema simplifica-</p><p>do, como isso acontece. Uma jornada de trabalho que dura entre A</p><p>horas e C horas, pode ser dividida em dois segmentos, sendo o</p><p>primeiro A-B correspondente à quantidade de horas que o traba-</p><p>lhador labuta para se reproduzir e manter sua família, e o segundo</p><p>B-C, o restante da jornada de trabalho, correspondente à produção</p><p>de mais-valia.</p><p>A ------------------ B ------------------- C</p><p>Se o capitalista conseguir reduzir a fração de tempo gasto</p><p>com o trabalho necessário, reduzindo assim a massa salarial sufi-</p><p>ciente para manter a mão-de-obra, isso mudará a proporção de</p><p>tempo na jornada de trabalho em que os trabalhadores usam para</p><p>repor suas energias (salários pagos) e o tempo gasto com produ-</p><p>ção de mais-valia:</p><p>A -------- B ------------------------------ C</p><p>No princípio do capitalismo, em sua fase mais livre e con-</p><p>sequentemente mais ‘selvagem’, o primeiro recurso para aumen-</p><p>tar a mais-valia foi usado largamente. Os proprietários do capital</p><p>extraíram jornadas sobre-humanas dos trabalhadores, o que, alia-</p><p>do às péssimas condições de trabalho, resultou na morte em mas-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 221</p><p>Sumário</p><p>sa dos trabalhadores em idades que variavam entre 20 e 30</p><p>anos135.</p><p>O esmagamento a que estava sendo submetida a classe</p><p>operária fez ganhar força as primeiras lutas reivindicatórias em</p><p>torno de melhores salários e condições de trabalho, iniciando-se</p><p>um processo gradativo e contínuo de esclarecimento e conscienti-</p><p>zação sobre a inserção dos trabalhadores no sistema capitalista de</p><p>produção. Ao mesmo tempo, os capitalistas recorriam ao aumento</p><p>da velocidade no processo produtivo, intensificando o ritmo de</p><p>trabalho, mas esse recurso também tem limite por danificar a for-</p><p>ça de trabalho, o que acabou sendo também objeto de reivindica-</p><p>ção no item condições de trabalho.</p><p>Paulatinamente foram sendo reduzidas as escabrosas jor-</p><p>nadas de trabalho para níveis mais condizentes com o que seria</p><p>um ‘limite máximo’ de atividade à qual um trabalhador pode se</p><p>dedicar, conceito esse que varia de acordo com a sociedade e o</p><p>período histórico tomado como referência. Hoje, por exemplo,</p><p>pode-se considerar como limite máximo uma jornada de trabalho</p><p>de até 44 horas semanais, pois se incorporou algumas horas diá-</p><p>rias como necessidade para reposição de energias, além do des-</p><p>canso semanal.</p><p>Por outro lado, a lógica da produção capitalista imprime</p><p>um limite mínimo à jornada de trabalho, uma quantidade de horas</p><p>mínimas para que o capitalista possa obter alguma mais-valia, ou</p><p>seja, o tempo de trabalho necessário mais algum tempo residual</p><p>para proporcionar a geração da mais-valia. No caso do esquema</p><p>apresentado dois parágrafos antes, o limite mínimo da jornada</p><p>seria dado pelo segmento A-B mais um fragmento mínimo do</p><p>segmento B-C. Não é concebível no capitalismo uma jornada de</p><p>trabalho que não proporcione sequer as condições para reprodu-</p><p>135 Ver relatos históricos em Marx (1985), no capítulo 8 da seção III, dedicado à</p><p>jornada de trabalho.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 222</p><p>Sumário</p><p>ção dos trabalhadores e do próprio capital. Eventualmente o em-</p><p>presário pode abrir mão da mais-valia, somente em circunstâncias</p><p>especiais, como por exemplo, quando estiver em jogo uma política</p><p>agressiva da empresa para conquistar mercado.</p><p>Com a crescente restrição ao tempo máximo que o traba-</p><p>lhador deve dedicar à linha de produção, através da fixação cons-</p><p>tante de tetos para a jornada de trabalho, resta ao capitalista tor-</p><p>nar mais produtivo o tempo</p><p>em que</p><p>alguns pensadores começaram a defender que as ciências sociais</p><p>deveriam ter um método exclusivo. De acordo com Sandroni</p><p>(1985, 274), isto aconteceu a partir da crítica marxista à teoria</p><p>clássica desenvolvida até o século XIX, teoria essa que seguia os</p><p>cânones científicos que diziam que toda e qualquer ciência deveria</p><p>usar os mesmos métodos, a indução e a dedução.</p><p>A crítica marxista parte da constatação de que a humanida-</p><p>de não pode ser equiparada a qualquer agregado natural, porque</p><p>mesmo tendo aspectos naturais, vai além desses e possui uma ca-</p><p>racterística fulcral diferenciadora que é a capacidade de raciocí-</p><p>nio, determinante das formas de organização social e sua evolução</p><p>histórica. Esse diferencial tem uma série de implicações, em parti-</p><p>cular sua história é diferente da história natural, não é uma sim-</p><p>ples sequência irremediável de fatos concatenados e sim um pro-</p><p>cesso em constante construção e mutação em função da ação de</p><p>grupos sociais e suas interações dinâmicas na sociedade. Dessa</p><p>dissenção surge o método dialético-histórico; tema de linhas adi-</p><p>ante.</p><p>Se a perspectiva do estudo for clássica, a ciência social é</p><p>considerada uma ciência como qualquer outra, o que remete à</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 29</p><p>Sumário</p><p>escolha de um dos métodos clássicos de investigação: dedução e</p><p>indução. O processo dedutivo parte do geral para chegar ao parti-</p><p>cular e assim, em regra envolve um nível de abstração maior. Co-</p><p>mo lembra Sandroni (1985, 274) o silogismo é um exemplo de</p><p>dedução, por onde se extrai uma conclusão lógica a partir de duas</p><p>premissas: se 1. o gato é um caçador de pequenos roedores, 2. o</p><p>rato é um pequeno roedor, então: 3. o rato é caçado por gatos.</p><p>A dedução na economia é muito usada na confecção de teo-</p><p>rias gerais e em trabalhos de economia aplicada em que se testa</p><p>uma teoria geral para explicar alguma realidade econômica espe-</p><p>cífica. As teorias macroeconômicas são teorias gerais que podem</p><p>explicar especificamente a realidade inglesa, japonesa ou brasilei-</p><p>ra. Outro exemplo na economia são as propensões a consumir e a</p><p>poupar. Se reconheço que a renda líquida9 das pessoas é dividida</p><p>basicamente entre consumo e poupança, que o aumento da renda</p><p>eleva o consumo, mas sempre em menor proporção relativamente</p><p>ao aumento da renda, por dedução, aumentos na renda também</p><p>trarão maiores níveis de poupança, sendo que em maior propor-</p><p>ção que os aumentos da renda</p><p>A indução, por sua vez, é um método de raciocínio inverso:</p><p>sai do caso específico para a generalização. Por sua natureza, a</p><p>indução envolve menor abstração, está relacionada ao exercício da</p><p>observação direta da realidade, momento em que o investigador</p><p>seleciona suas variáveis, e assim, generaliza a partir do individual.</p><p>A indução em sua forma pura mais pura, a hipotética, é motivo de</p><p>muitas críticas10, se adequando mais às ciências naturais11.</p><p>Na microeconomia, a indução permite afirmar que, se um</p><p>consumidor típico adota como variável central o preço da merca-</p><p>9 Já descontados os impostos.</p><p>10 Ver Benedicto, Benedicto, Stieg e Andrade (2012) e Romanini (2013).</p><p>11 As pesquisas utilizando cobaias usam metodologia indutiva para chegar a</p><p>suas conclusões.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 30</p><p>Sumário</p><p>doria na sua decisão de onde comprar essa mercadoria, as demais</p><p>pessoas devem ter comportamento similar e daí a totalidade dos</p><p>consumidores vai comprar algo que pretendem no estabelecimen-</p><p>to que oferecer o menor preço pelo objeto pretendido. Não obs-</p><p>tante os exemplos, os dois métodos podem ser usados tanto numa</p><p>teoria macro, quanto numa teoria microeconômica, sendo que</p><p>uma explicação macro a partir de induções resultará numa teoria</p><p>dita atomística, pois não há alterações previstas devido às intera-</p><p>ções no plano macro dos agentes12.</p><p>INDUÇÃO</p><p>MÉTODOS CIENTÍFICOS DEDUÇÃO</p><p>DIALÉTICO HISTÓRICO</p><p>Tanto na dedução quanto na indução há especificações</p><p>possíveis, das quais devemos destacar as históricas e as hipotéti-</p><p>cas. O critério fundamental dessas metodologias é o ponto de par-</p><p>tida do processo metodológico: se este decorre e pressupõe fatos</p><p>ou contextos históricos, temos a origem histórica, mas se decorre</p><p>de hipótese pura, desconectada de qualquer evento histórico, te-</p><p>mos a vertente hipotética do método.</p><p>Um estudioso de ciências sociais pode identificar elemen-</p><p>tos importantes para a explicação de um fenômeno e aventar uma</p><p>hipótese a partir de uma observação da realidade, que será poste-</p><p>riormente aferida por dados estatísticos, fazendo, no caso induti-</p><p>vo, uma extrapolação da observação específica para o geral13.</p><p>12 Ambos métodos também podem ser usados pela economia política marxista,</p><p>sendo que sempre de forma secundária, complementar, já que o crucial para a</p><p>construção dessa perspectiva teórica é o método dialético histórico.</p><p>13 Sobre a problemática da extrapolação por estudos de caso ver Maffezzolli e</p><p>Boehs (2008).</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 31</p><p>Sumário</p><p>Além dessa, as induções podem ter origem na observação de fatos</p><p>econômicos relacionados a momentos históricos.</p><p>Para ilustrar, um pesquisador pode desenvolver a hipótese</p><p>de que o trabalho em geral ficou mais produtivo e intensificado</p><p>com a introdução dos computadores nas empresas a partir da dé-</p><p>cada de 1980, considerando dados coletados em alguns estudos</p><p>de caso, e isto seria uma indução histórica. Por sua vez, um outro</p><p>pesquisador pode observar empiricamente uma empresa que ado-</p><p>ta protocolos distintos/criativos, introduzindo atividades de lazer</p><p>dentro da firma e verificar que há ganho de produtividade decor-</p><p>rente dessa mudança de protocolos, e então pode defender a hipó-</p><p>tese de que isto só acontece em atividades criativas. Se essa supo-</p><p>sição estiver desconectada de qualquer contexto histórico, ele es-</p><p>tará fazendo uma indução hipotética.</p><p>O exemplo maior do uso da indução histórica é Adam</p><p>Smith, que desenvolveu sua teoria a partir da observação das fir-</p><p>mas na revolução industrial, descrevendo processos industriais,</p><p>determinando especificidades na produção e na distribuição, ex-</p><p>plicando o funcionamento do mercado, a partir daí.</p><p>HISTÓRICO</p><p>MÉTODOS INDUTIVOS</p><p>HIPOTÉTICO</p><p>De acordo com Harman (2017, 1), a indução hipotética ga-</p><p>nha reforço com o instrumental matemático, pois este confere</p><p>demonstração da hipótese, razão pela qual seu uso foi muito di-</p><p>fundido entre os economistas modernos. A matemática possibilita</p><p>precisão à hipótese, estabelece uma relação quantitativa por meio</p><p>de variáveis que constitui o caminho exato da ideia a ser confir-</p><p>mada, de modo que a formulação de uma indução rastreada em</p><p>Alexandre Lyra Martins | 32</p><p>Sumário</p><p>fundamentação matemática confere caráter probatório à hipótese</p><p>colocada.</p><p>Isto também pode ser verificado com o método dedutivo,</p><p>que pode ser dividido seguindo os mesmos critérios: o histórico</p><p>dedutivo e o hipotético dedutivo. O primeiro toma como ponto de</p><p>partida da investigação a observação do momento histórico e suas</p><p>particularidades, enquanto o segundo parte apenas de hipóteses</p><p>abstratas, formuladas em torno da realidade social, minimizando</p><p>especificidades históricas. As teorias de Smith também são exem-</p><p>plos de dedução histórica, pois este considera a dimensão macro</p><p>das mudanças econômicas que presenciou, elaborando uma teoria</p><p>geral para explicar as transformações técnicas e produtivas da</p><p>revolução industrial.</p><p>Nos casos de Ricardo e Keynes, embora o contexto históri-</p><p>co seja determinante para o teor de suas teorias14, ambos não re-</p><p>conhecem isso e preferem se alinhar com a vertente dedutiva hi-</p><p>potética, deixando os eventos históricos como consequência das</p><p>formulações15. A história do pensamento econômico demonstra a</p><p>estreita relação das teorias escritas com os contextos históricos,</p><p>mas a exploração e o reconhecimento</p><p>desses depende do estudio-</p><p>so.</p><p>HISTÓRICO</p><p>MÉTODOS DEDUTIVOS</p><p>HIPOTÉTICO</p><p>14 A crise inglesa no caso de Ricardo e as grandes crises econômicas, particu-</p><p>larmente a norte-americana, para Keynes.</p><p>15 Autores aficionados ao método hipotéticos vão dizer, no máximo. que a histó-</p><p>ria é o tempo em que os eventos transcorrem, mas nunca que há causas históri-</p><p>cas em processos econômicos.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 33</p><p>Sumário</p><p>O caso da curva de Phillips é um bom exemplo do modo</p><p>como os pesquisadores acompanham a dinâmica da evolução dos</p><p>processos socioeconômicos, ilustrando os desdobramentos de</p><p>uma discussão acadêmico-científica possível em torno da hipótese</p><p>inicial, dedutiva no caso, que vai resultar no desenvolvimento da</p><p>ciência econômica. Conforme OMEROD (1996, 136 a 139), em</p><p>1958 Phillips estabeleceu uma relação inversa entre os níveis de</p><p>salário e de desemprego, demonstrando uma faceta do funciona-</p><p>mento do mercado: mais trabalhadores para menos vagas signifi-</p><p>ca mais desemprego e também menos aumentos salariais, bem</p><p>como menos trabalhadores para mais vagas implica em redução</p><p>na taxa de desemprego e consequentemente aumento no nível dos</p><p>salários16.</p><p>Mais à frente, em 1960, Solow e Samuelson resolveram</p><p>ampliar um pouco a assertiva de Phillips e dizer que haveria uma</p><p>relação entre a taxa de desemprego e a inflação, já que os salários</p><p>são custos significativos das economias, tudo devidamente prova-</p><p>do com testes para a década anterior nos Estado Unidos (país dos</p><p>acadêmicos).</p><p>A década de 1960 confirmou o trade-off entre desemprego</p><p>e inflação, entretanto os números da década seguinte começaram</p><p>a desmentir a lei econômica enunciada ao indicar que a elevação</p><p>da inflação estava sendo registrada paralelamente ao aumento do</p><p>desemprego. Num primeiro momento chegou-se a anunciar o que</p><p>isso parecia representar: a queda da curva de Phillips, entretanto</p><p>pouco depois os estudiosos compreenderam que algo estava mu-</p><p>dando nas economias, uma alteração no comportamento de agen-</p><p>tes que resultava em aumento de preços com estagnação econô-</p><p>mica, criando um novo termo: a ‘estagflação’.</p><p>16 Conforme já enunciava Ricardo (1982, 81-82) sobre o livre mercado do tra-</p><p>balho.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 34</p><p>Sumário</p><p>O contexto histórico era o da primeira crise do petróleo,</p><p>que é outro importante elemento de custos para as economias, de</p><p>impacto direto na inflação, e a ação decisiva dos produtores com</p><p>políticas agressivas de preços operacionalizadas por meio da</p><p>OPEP, acarretou aumento substancial no nível de preços. A res-</p><p>posta para a questão veio por meio do elemento histórico, que</p><p>explicou a aparente incoerência e indicou a possibilidade da curva</p><p>de Phillips se deslocar, uma vez que há outros componentes de</p><p>custo além da mão de obra (seus salários e o nível de emprego), e</p><p>assim novas hipóteses foram construídas para explicar o que o</p><p>estava acontecendo na economia e no processo inflacionário: as</p><p>expectativas adaptativas e as expectativas racionais.</p><p>Enquanto a indução e a dedução são usadas por todas cor-</p><p>rentes, o terceiro método de investigação científico da economia</p><p>fornece o embasamento metodológico exclusivo para a economia</p><p>política marxista. Como sua denominação deixa transparecer, ele é</p><p>a junção de dois métodos; o dialético e o histórico. Trata-se de um</p><p>método proposto por Marx em que a dialética tem o papel de ex-</p><p>plicar o desenvolvimento histórico da humanidade enquanto or-</p><p>ganização social, sendo os fatos históricos as provas desse método</p><p>A premissa histórico-dialética é de que para compreender a</p><p>realidade social não podemos abrir mão da perspectiva histórica</p><p>da humanidade, esta que, diferentemente da história natural, evo-</p><p>lui por meio de um processo cumulativo e dialético, no qual o ser</p><p>humano é parte fundamental do processo. As formas de organiza-</p><p>ção social evoluem superando as anteriores, se sobrepondo a elas,</p><p>como também os comportamentos evoluem tomando como refe-</p><p>rência os anteriores e assim por diante.</p><p>Explicar a atualidade assimilando o passado que a antece-</p><p>deu não é exclusividade do materialismo histórico, pois a dedução</p><p>e a indução históricas já aceitavam essa premissa, porém a pers-</p><p>pectiva dialética confere compreensão diferente da história como</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 35</p><p>Sumário</p><p>processo, o que permite outro alcance à investigação. Segundo o</p><p>método dialético-histórico é preciso compreender qualquer reali-</p><p>dade social como um contexto histórico determinado por proces-</p><p>sos dialéticos cuja dinâmica depende da tensão entre forças con-</p><p>trárias, ou seja, há uma lógica no desenrolar dos fatos históricos,</p><p>que estão conectados por suas condições materiais de produção</p><p>imanentes.</p><p>A dialética vai explicar a dinâmica da transformação social</p><p>e econômica através de suas leis. Sua essência é a trilogia tese-</p><p>antítese-síntese, onde a tese é uma situação inicial e seus condici-</p><p>onantes sócio-econômicos, a antítese caracteriza o surgimento de</p><p>novos condicionantes materiais, que conflitam com os primeiros e</p><p>a síntese é a situação final após a disputa entre o velho e o novo,</p><p>com a predominância do último, no caso, a antítese, que se trans-</p><p>forma em síntese quando é aceita como resolução do embate his-</p><p>tórico.</p><p>É preciso ressaltar que, para a dialética materialista pro-</p><p>posta por Marx, o ponto de partida das transformações são as</p><p>condições ‘materiais’ da sociedade e não as ideias, como seria na</p><p>dialética hegeliana, pois estas precisam de uma base real para</p><p>surgir. Por fim, todo contexto histórico é transitório, assim, após</p><p>transformações econômicas e sociais, que ocorrem com a confron-</p><p>tação das forças contrárias (a decadente que atua no sentido de</p><p>perpetuar o sistema e a emergente que vai derrubar a organização</p><p>instituída), será gerada uma nova síntese que, por sua vez, com o</p><p>tempo passará à condição de tese pelo surgimento de novas forças</p><p>contrárias em seu seio e o processo dialético se repete de outra</p><p>forma, com novos condicionantes sociais e econômicos17.</p><p>17 Ver Costa (2000, 25) ou Martins (1999, 20-26)</p><p>Alexandre Lyra Martins | 36</p><p>Sumário</p><p>MÉTODO DIALÉTICO-HISTÓRICO:</p><p>1. O PROCESSO HISTÓRICO É DIALÉTICO</p><p>2. O PROCESSO DIALÉTICO: TESE- ANTÍTIESE – SÍNTESE</p><p>Após a escolha do método e o desenvolvimento da teoria,</p><p>vem a fase dos testes que irão comprovar ou invalidar a teoria</p><p>proposta, e trabalhos de cunho histórico podem ser comprovados</p><p>com documentos históricos diversos, e podem ter o apoio do ins-</p><p>trumental estatístico, até para demonstrar as mudanças históri-</p><p>cas. Os bancos estatísticos fornecem uma série de informações a</p><p>serem utilizadas para alimentar trabalhos que aplicam teorias e</p><p>assim fornecem a informação final para confirmação ou rejeição</p><p>de uma hipótese inicial. Quanto mais os órgãos elaboradores de</p><p>estatísticas forem confiáveis, maior será a qualidade desse mate-</p><p>rial e mais trabalhos poderão ser realizados, cobrindo uma maior</p><p>extensão dos fenômenos sociais.</p><p>Um elemento teórico muito importante vinculado à escolha</p><p>do método é a definição do padrão de comportamento humano a</p><p>ser adotado. É ponto pacífico que a economia é uma ciência hu-</p><p>mana, pois a atividade econômica acontece devido à interação</p><p>entre as pessoas. A falsa impressão (para alguns) de que a econo-</p><p>mia é uma ciência exata decorre da dimensão quantitativa do fe-</p><p>nômeno econômico e de algo que está associado a isto: a freqüên-</p><p>cia do uso de métodos quantitativos, como a matemática e a esta-</p><p>tística.</p><p>Para os economistas puros, a economia deve proporcionar</p><p>a melhor alocação dos fatores, ou seja, a melhor produção possível</p><p>com os recursos disponíveis. O foco é no ponto quantitativo do</p><p>problema: volume e qualidade de produção. Ocorre que a produ-</p><p>ção é feita pelos homens e para os homens e, portanto, esses são o</p><p>centro da questão. Se há produção,</p><p>mas algumas pessoas não con-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 37</p><p>Sumário</p><p>seguem adquiri-la, há um problema econômico. Esse é o ponto de</p><p>vista da economia política.</p><p>Quanto ao uso do método, este é sempre um instrumento;</p><p>um meio para se chegar a conclusões respaldadas em critérios</p><p>científicos. De maneira geral, o método científico é o que diferen-</p><p>cia uma leitura científica de uma vulgar. É necessário reforçar que</p><p>só métodos científicos garantem a cientificidade da observação,</p><p>pois existem os métodos intuitivos (tentativa e erro, por exemplo),</p><p>métodos didáticos (repetição, construtivista, etc), entre outros.</p><p>O comportamento humano de mais interesse para a eco-</p><p>nomia é, evidentemente, o econômico, que pode ser tomado isola-</p><p>damente ou relacionado a outros aspectos, como o comportamen-</p><p>to político e ético. A primeira opção é a escolhida pela corrente da</p><p>economia pura, que acredita achar mais adequado começar a aná-</p><p>lise pelo homem, considerando apenas seu comportamento eco-</p><p>nômico e considerando ser capaz de escolhas racionais individu-</p><p>ais. É o chamado homo economicus, aquele ser que toma decisões</p><p>econômicas individuais, pensando exclusivamente em termos de</p><p>custo-benefício, ou seja, as decisões econômicas são resolvidas</p><p>tomando como referência apenas o bem-estar econômico do indi-</p><p>víduo (e de sua eventual família).</p><p>As ações humanas no cotidiano podem ser explicadas pela</p><p>lógica da racionalidade individual, desde as decisões mais banais</p><p>às mais complexas, pois seriam norteadas pela maximização dos</p><p>recursos disponíveis: comprar pelo menor preço e tentar ganhar</p><p>sempre mais. O homo economicus é elemento central em Ricardo e</p><p>posteriormente nos neoclássicos, que adotam o comportamento</p><p>estritamente racional do agente, mas não em Smith, para quem o</p><p>indivíduo era tido como ser moral e a atitude egoísta dos agentes</p><p>tinha uma consequência/reconhecimento social (como será visto</p><p>adiante).</p><p>Alexandre Lyra Martins | 38</p><p>Sumário</p><p>À racionalidade individual se contrapõe a racionalidade de</p><p>classes, adotada pela economia política marxista, que considera o</p><p>homem como integrante de um segmento socioeconômico que</p><p>interage com outros grupos sociais, de diversas formas, porém as</p><p>mais relevantes são determinadas pela sua condição material, da-</p><p>da pela inserção socioeconômica. É interessante tomar essa pers-</p><p>pectiva a partir de uma frase que sintetiza a relevância da coloca-</p><p>ção do problema para sua compreensão: Mais importante que sa-</p><p>ber a resposta certa, é saber elaborar a pergunta correta.</p><p>A discordância de Marx em relação aos métodos existentes</p><p>e sua intenção de rebaixá-los a auxiliares para passar a usar outro</p><p>método principal, decorre de sua interpretação de que as pergun-</p><p>tas feitas pelos estudiosos anteriores estavam mal colocadas;</p><p>eram perguntas equivocadas. As questões significativas só surgiri-</p><p>am diante de uma perspectiva dialético-histórica, uma vez que faz</p><p>emergir dois grupos sociais principais de interesses divergentes,</p><p>em torno das quais gira toda dinâmica das economias.</p><p>De acordo com Marx, as pessoas de fato se questionam on-</p><p>de comprar pelo menor preço, porém para o trabalhador, a per-</p><p>gunta de fundo que rege sua vida seria: qual é a melhor estratégia</p><p>para sobreviver? A esta pergunta principal seguem outras como:</p><p>onde há trabalho? Onde pagam um pouco melhor minha mão de</p><p>obra? Já do ponto de vista do empresário, a pergunta significativa</p><p>seria: onde e como posso ganhar mais dinheiro? E a essa, outras</p><p>seguem na mesma linha: Como comprar a empresa de meu con-</p><p>corrente para diminuir a concorrência e poder praticar preços</p><p>maiores? como diminuir meus custos? Como explorar mais meu</p><p>funcionário para aumentar meu lucro? Como diminuir as despesas</p><p>com salários? Essas questões se contrapõem às questões dos tra-</p><p>balhadores, pois suas decisões vão resultar em contenção ou di-</p><p>minuição da massa dos salários, ou seja, aqueles que antes eram</p><p>entendidos como indivíduos indiferenciados, agora são diferentes,</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 39</p><p>Sumário</p><p>em função da sua inserção social na dinâmica básica da produção</p><p>de mercado.</p><p>De um lado estão os trabalhadores, com sua necessidade</p><p>de sobrevivência pautando o dia-a-dia e do outro estão os capita-</p><p>listas buscando aumentar seus lucros e a acumulação de capital,</p><p>no lado do mundo onde bem mais escolhas são permitidas. Para</p><p>ambos, o padrão da classe determina, cada um a seu modo, as</p><p>questões mais relevantes do comportamento individual. Nesse</p><p>caso, a ação individual é vinculada à condição social e econômica</p><p>da pessoa, o que resulta numa ação social e política. Para o enfo-</p><p>que marxiano, um trabalhador tem muitas de suas atitudes de-</p><p>terminadas pela sua condição específica de trabalhador, enquanto</p><p>o capitalista age conforme sua condição de capitalista.</p><p>INDIVIDUAL</p><p>RACIONALIDADES</p><p>SOCIAL</p><p>Enfim, cada ponto de vista metodológico tem seus argu-</p><p>mentos, enfatizando variáveis e linhas de raciocínio próprias, po-</p><p>dendo discordar entre si e postular maior precisão ou profundi-</p><p>dade, mas cada conclusão elaborada está circunscrita a seus res-</p><p>pectivos métodos.</p><p>As divergências iniciais de concepção do problema ditam as</p><p>diferenças nos enfoques de análise adotados e, antes disso, a pró-</p><p>pria mudança da realidade social/econômica implica uma neces-</p><p>sária reavaliação de concepções consolidadas acerca do objeto.</p><p>Podemos discordar do método adotado e fazer uma crítica externa</p><p>a uma teoria, se posicionando contra as premissas iniciais escolhi-</p><p>das e inviabilizando o diálogo. Essa ausência de reconhecimento é</p><p>mútua, então cada lado desenvolve suas teses. A crítica que derru-</p><p>ba a construção teórica é a crítica interna, aquela que detecta um</p><p>Alexandre Lyra Martins | 40</p><p>Sumário</p><p>problema de lógica interna, dentro da linha de raciocínio adotada,</p><p>um erro em alguma formulação interna da concepção do proble-</p><p>ma que é descoberto mesmo com a aceitação dos pressupostos</p><p>metodológicos adotados.</p><p>Por outro lado, tanto a natureza como a sociedade são di-</p><p>nâmicas, porém a dinâmica social é maior se comparada ao ritmo</p><p>lento das mudanças naturais, de forma que ao longo da história o</p><p>homem altera comportamentos, padrões, revendo conceitos e isto</p><p>muitas vezes acarreta em alterações de parâmetros socioeconô-</p><p>micos que geram obrigatoriamente a necessidade de revisão de</p><p>todo aparato teórico, tão logo sejam constatados.</p><p>RAZÕES DA MUDANÇA DA REALIDADE</p><p>DISCUSSÃO CIENTÍFICA CRÍTICA EXTERNA</p><p>CRÍTICA INTERNA</p><p>O debate teórico é natural a as divergências também. Há</p><p>diferentes interpretações do marxismo, do keynesianismo, des-</p><p>membramentos modernos da teoria neoclássica, teorias alternati-</p><p>vas importantes como a de Schumpeter ou a de Kalecki. Estudio-</p><p>sos, como os estruturalistas, propõem nova perspectivas a partir</p><p>de novos marcos conceituais e metodológicos. O conhecimento</p><p>científico é resultado do estudo de homens, é imperfeito, incom-</p><p>pleto e é enriquecido permanentemente com contribuições que</p><p>vão surgindo, não é uma forma acabada; apesar de se chamar de</p><p>lei científica a teoria que passou por todo processo de formulação</p><p>científico. As leis científicas estão permanentemente sujeitas ao</p><p>crivo da comunidade científica, e podem ser alteradas a qualquer</p><p>momento por diferentes razões.</p><p>A discussão é corrente em toda ciência, e quase sempre é</p><p>de difícil compreensão para o leigo devido ao linguajar específico</p><p>e à própria complexidade do nível de aprofundamento dos estu-</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 41</p><p>Sumário</p><p>dos, mas talvez na economia ela possa parecer mais confusa devi-</p><p>do ao grau maior de exposição na mídia. Todo jornal, escrito ou</p><p>televisionado, tem uma seção política, uma médica e outra eco-</p><p>nômica, e nela os economistas aparecem falando seus jargões18,</p><p>muitas vezes incorporando expressões</p><p>em inglês, tentando expli-</p><p>car as complexidades da economia moderna ao cidadão intrigado</p><p>porque a bolsa caiu no Brasil. As discussões, na verdade, fazem</p><p>parte do próprio processo de desenvolvimento de uma área de</p><p>conhecimento, sendo, portanto, salutar19.</p><p>Se afiliar a uma teoria científica, por paradoxal que possa</p><p>ser, é uma questão de identificação com seus axiomas, hipóteses,</p><p>premissas. É uma opção racional que pode ocultar alguma paixão</p><p>por um conceito, uma ideia, mas isso não importa, o importante é</p><p>que, sendo uma teoria científica, ela terá por trás o rigor científico</p><p>na sua elaboração e estará exposta a discussões e testes frequen-</p><p>tes, que eventualmente podem até demonstrar uma inconsistência</p><p>e rejeitá-la.</p><p>Fatores como a capacidade de sensibilização da tese20, po-</p><p>dem ser decisivos na hora de optar por qual orientação teórica se</p><p>alinha, mas o certo é que qualquer teoria está sujeita ao debate, à</p><p>contra argumentação. A identificação é fundamental, mas o estudo</p><p>é que vai sustentar as convicções, na medida em que faz dominar</p><p>suas proposições (fortificando sua defesa) ou força o estudioso a</p><p>abandonar sua referência principal, pois as vertentes teóricas ci-</p><p>entíficas estão consolidadas até que alguém comprove alguma</p><p>inconsistência maior de lógica delas.</p><p>18 Termos técnicos específicos de uma área de conhecimento.</p><p>19 Sobre as controvérsias na economia ver, por exemplo, Costa (2000, 36-37).</p><p>20 Seja pelo elemento humano, pela simpatia com modelos matemáticos, ou pelo</p><p>poder retórico de certa tese de algum autor; ou por mais de uma dessas razões</p><p>(sem falar das razões menores como o bairrismo).</p><p>Alexandre Lyra Martins | 42</p><p>Sumário</p><p>1.5. Da atualidade dos pensadores estudados</p><p>Os autores aqui estudados são considerados clássicos da</p><p>economia, o que, por si só, já é razão suficiente para se debruçar</p><p>sobre eles em qualquer época21, mas a contemporaneidade tem</p><p>revitalizado a obra desses autores. Antes de prosseguir devemos</p><p>ressaltar que não estamos nos referindo à contribuição fisiocrata,</p><p>citada no corpo da exposição sobre Smith, pois essa não tem reco-</p><p>nhecimento dos estudiosos do pensamento econômico em relação</p><p>a seu caráter científico. A importância dos fisiocratas foi esboçar</p><p>uma concepção liberal, que viria a ser efetivamente desenvolvida</p><p>com Smith e Ricardo, e nesse sentido permanece como referência</p><p>histórica na economia22.</p><p>Após o impacto inicial de sua obra, Smith foi tendo sua au-</p><p>diência diminuída gradativamente pela chegada de outros autores,</p><p>a ponto de parecer superado pela renovação neoclássica, até que</p><p>acontecimentos reacenderam o interesse por suas ideias e pesqui-</p><p>sadores trouxeram novamente sua obra ao centro do debate aca-</p><p>dêmico23. A vertente neoclássica segue os moldes da investigação</p><p>ricardiana e sua metodologia hipotético dedutiva, sendo essa a</p><p>principal razão para falar em atualidade de Ricardo: ser o precur-</p><p>sor desta linhagem metodológica24.</p><p>Ricardo formulou a concepção marginalista embarcando</p><p>em hipóteses que tinham alguma conexão com circunstâncias de</p><p>21 Motivos para se ler um clássico não faltam, mas para os que acreditam que</p><p>ficaram no passado cabe consultar Calvino (1981).</p><p>22 Ver Bianchi (1988, 123)</p><p>23 Cerqueira (2006,1) lembra que o ponto de partida para a retomada dos estu-</p><p>dos de Smith foi o bicentenário da publicação da Riqueza das nações.</p><p>24 Além de ter sido o primeiro economista a construir uma teoria considerando</p><p>a exaustão dos recursos naturais no longo prazo. Malthus, por exemplo, colocou</p><p>apenas o problema da falta de alimentos no longo prazo, pois estimava que o</p><p>crescimento da produção agrícola aconteceria em progressão aritmética e o</p><p>crescimento demográfico viria em progressão geométrica.</p><p>A Economia Segundo Smith, Ricardo e Marx | 43</p><p>Sumário</p><p>seu contexto histórico, mas que não se configuraram em tendên-</p><p>cias de longo prazo, sendo depois desautorizadas pela própria</p><p>evolução ‘natural’ da economia e pelo conhecimento à disposição</p><p>da sociedade25. Smith, por sua vez, foi mais cauteloso, preferindo</p><p>um vínculo direto e minucioso com os fatos históricos, se pautan-</p><p>do pela observação criteriosa da atividade econômica para expli-</p><p>car os mecanismos do funcionamento do mercado em geral26.</p><p>Com a chegada dos neoclássicos, os clássicos foram substi-</p><p>tuídos como referência principal acadêmico/política por essa no-</p><p>va versão do liberalismo, até as primeiras grandes crises (anos</p><p>1920/1930) revelarem a fragilidade de suas concepções centra-</p><p>das na tendência dos mercados ao equilíbrio, no que foram repa-</p><p>rados, a contragosto, por Keynes, que introduziu um componente</p><p>intervencionista no mainstream.</p><p>No fim do século XX, contudo, ocorreu a queda das experi-</p><p>ências socialistas reais, trazendo em seu rastro a retomada de um</p><p>liberalismo mais puro e recolocando o liberalismo neoclássico</p><p>como referência basilar predominante, agora acompanhada mais</p><p>de perto pela escola austríaca27. O retorno dessas concepções libe-</p><p>rais como paradigmas de governos permitiu desregulamentações</p><p>que desencadearam novas crises de elevadas proporções no prin-</p><p>cípio do século XXI, com montantes financeiros envolvidos signifi-</p><p>25 Como a teoria malthusiana do crescimento populacional, a queda da taxa de</p><p>lucro industrial e seu corolário, a redução das inovações tecnológicas na indús-</p><p>tria.</p><p>26 Um ponto que ilustra bem essas diferenças e a capacidade de observação de</p><p>Smith é a explicação para a ocupação de novos territórios descobertos. Enquan-</p><p>to Ricardo adota a racionalidade pura da relação custo-benefício como critério</p><p>da sequência de ocupação de terras, Smith fica com a proximidade do litoral e</p><p>dos primeiros centros urbanos, que pode ser constatada em casos históricos.</p><p>27 Nomes da escola austríaca já tinham contribuído na fase clássica, mas sua</p><p>condição geopolítica garantiu marginalidade no mainstream, já na contempo-</p><p>raneidade, as conexões instantâneas de comunicação e de informação no fim do</p><p>século XX resgataram essa escola com mais força.</p><p>Alexandre Lyra Martins | 44</p><p>Sumário</p><p>cativamente maiores. Essas crises recentes reafirmaram a fragili-</p><p>dade do paradigma neoclássico puro e ajudaram a reacender o</p><p>interesse do stablisment acadêmico pela perspectiva liberal</p><p>smithiana, que teve sua obra retomada e atualizada por pesquisa-</p><p>dores, em especial Amartya Sen, seu seguidor de maior prestígio</p><p>no meio acadêmico.</p><p>As crises de 2001 e 2008 têm componente ético significati-</p><p>vo, ponto forte da concepção smithiana e fraco da vertente neo-</p><p>clássica28, e esse foi o mote para o reforço no interesse em pesqui-</p><p>sas que já vinham crescendo, baseadas nas ideias de Smith, o úni-</p><p>co, dentro do espectro liberal, a conectar as dimensões econômica</p><p>e ética de forma exitosa em um corpo teórico consistente29. Ocorre</p><p>que suas teorias não contemplam a evolução posterior do capita-</p><p>lismo, que tomou rumos e desmembramentos distintos da genera-</p><p>lidade inicial teorizada para o mercado industrial nascente, mas</p><p>outros autores contemporâneos tem obra inspirada em suas idei-</p><p>as30. Esta atualização deve ser intensificada para reafirmar um</p><p>pensamento de matriz smithiana como referência para explicar a</p><p>economia do século XXI.</p><p>Por fim, desde a publicação do Capital, Karl Marx sempre</p><p>foi paradigma central no pensamento econômico crítico, só tendo</p><p>diminuído seu prestígio com o fim do socialismo real, mas mesmo</p><p>assim continuou como nome fulcral da teoria crítica econômica. A</p><p>teoria marxista deu origem a toda uma corrente de pensamento</p><p>28 Essa temática específica possui lugar secundário dentro do escopo teórico</p><p>neoclássico e não representou desenvolvimento significativo. Fonseca (1993,</p><p>152), por exemplo, afirma que o principal avanço neoclássico foi “... preencher a</p><p>elipse na fórmula ‘vícios privados, benefícios públicos’ com o insight central da</p><p>teoria smithiana.”.</p><p>29 Como defendem, por exemplo, Bianchi (1988, 104-106), Feijó (2007,</p>

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