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<p>25</p><p>O lawfare, além de colocar em sério risco a democracia dos</p><p>países, geralmente é utilizado para minar os processos políticos</p><p>emergentes e propor violações sistemáticas dos direitos sociais.</p><p>Para garantir a qualidade institucional dos Estados é fundamen-</p><p>tal detectar e neutralizar esse tipo de práticas que resultam da</p><p>imprópria atividade judicial em combinação com operações</p><p>multimidiáticas paralelas</p><p>Papa Francisco8</p><p>No dia 28 de outubro de 2018, Jair Messias Bolsonaro foi eleito presidente da</p><p>República após disputar a eleição em segundo turno com Fernando Haddad, em</p><p>uma eleição marcada pela polarização entre discursos inflamados. Sua eleição só foi</p><p>possível porque Lula, que liderava as intenções de voto nas pesquisas de opinião,</p><p>foi condenado, preso e considerado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral.</p><p>Pouco mais de dois anos antes, no dia 31 de agosto de 2016, o plenário</p><p>do senado federal, por 61 votos contra 21, julgou procedente a acusação de</p><p>prática de crime de responsabilidade no segundo processo de impeachment da</p><p>História do Brasil a terminar com a aplicação da pena de perda do mandato</p><p>de presidenta da República, o segundo no curto período democrático que o</p><p>país viveu a partir da reabertura pós ditadura civil-militar.</p><p>Não é demais frisar que de quatro presidentes diretamente eleitos a partir</p><p>de 1989, apenas dois terminaram seu mandato, conotando certa instabilidade</p><p>do nosso sistema político.</p><p>8 Declaração feita na Cúpula Pan-Americana de Juízes, em 04 de junho de 2019, promovida</p><p>pela Pontifícia Academia de Ciências Sociais no Vaticano, sobre o tema “Direitos sociais e</p><p>doutrina franciscana”.</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>26</p><p>Depois de 13 anos de exercício do poder pelo partido dos trabalhadores,</p><p>chegava precipitadamente ao fim o governo de Dilma Rousseff, que foi substituída</p><p>pelo seu vice-presidente, o qual já ocupava o cargo interinamente e, de articulador</p><p>da base governista, passou a um dos principais algozes de sua companheira de chapa.</p><p>A relação entre a eleição de Bolsonaro e o impeachment só pode ser</p><p>compreendida a partir de uma detida análise do complexo processo jurídico-</p><p>-político em que se transformou o Brasil a partir da primeira metade do ano</p><p>de 2014, que imbricou as investigações daquela que ficou conhecida como</p><p>Operação Lava Jato e o impeachment, iniciado a partir da ruptura vivida pelo</p><p>país na eleição presidencial daquele mesmo ano.</p><p>Afinal, desde protestos que pediam a saída da presidenta da república</p><p>eleita diretamente pelo voto popular, passando por estapafúrdios pedidos de</p><p>intervenção militar até as acusações de que o impeachment seria um golpe</p><p>de estado parlamentar apoiado na espetacularização do processo penal pro-</p><p>tagonizado pelo poder judiciário, até a condenação e inelegibilidade de Lula,</p><p>passamos pela História viva e que ainda precisa ser contada.</p><p>O problema que se pretende enfrentar neste trabalho é se a eleição de</p><p>Jair Bolsonaro é a consequência de um complexo de atos de Lawfare político.</p><p>Para responder a essa indagação realizamos sete estudos que ora oferecemos</p><p>ao leitor. É importante dizer que embora os sete estudos se completem, todos</p><p>foram elaborados de maneira que possam ser lidos separadamente, com estru-</p><p>tura autônoma, problematização específica, metodologia e referências próprias.</p><p>Nenhum destes estudos enfrenta, propositalmente, as questões de mérito</p><p>dos processos criminais a que se referem. O único objetivo foi proceder a estudos</p><p>de natureza processual e política sobre o impeachment e a Operação Lava Jato.</p><p>O primeiro, terceiro, quarto e quinto capítulo integravam a primeira</p><p>edição deste livro, que se intitulava “Impeachment de 2016: uma estratégia</p><p>de Lawfare político instrumental”. Naquele momento a análise impeachment</p><p>como um instrumento de Lawfare político era a tônica do livro. Todavia,</p><p>como a própria conclusão prenunciava, “as peças ainda se movem no tabuleiro</p><p>jurídico-político em que se transformou o país”, por isso dissemos “impea-</p><p>chment chegou ao fim. Ou não”.</p><p>O curso dos acontecimentos mostrou que as peças se moviam e que a</p><p>Operação Lava Jato, que decisiva influência havia tido sobre o impeachment</p><p>de 2016, determinaria os rumos políticos do país e, bem assim, o próprio</p><p>resultado das eleições de 2018.</p><p>Daí porque a segunda edição não apenas teve o acréscimo de mais três</p><p>capítulos (o atual segundo, o sexto e o sétimo), como mudou de título, afinal</p><p>restou claro que não apenas a Operação Lava Jato foi instrumentalizada para</p><p>o resultado do impeachment, como este também foi mais um instrumento</p><p>de uma nova configuração política, o que conduz a um novo título mais</p><p>representativo da segunda edição e condizente com o desenrolar dos fatos e</p><p>da análise empreendida: Lawfare Brasileiro, que assim está estruturado:</p><p>27</p><p>O primeiro capítulo, intitulado “O uso do sistema penal como Lawfare</p><p>político” tem o objetivo de analisar a teoria norte-americana do Lawfare, que</p><p>entende o Direito como arma de guerra, e o aplica às disputas entre grupos</p><p>políticos para verificar se o sistema penal no Brasil vem sendo usado como</p><p>um instrumento de Lawfare político.</p><p>O segundo capítulo, “Maxiprocessos e democracia constitucional: a</p><p>Operação Lava e a peculiar premonição voluntária”, tem por finalidade expor</p><p>quais seriam as características dos maxiprocesso, sua relação com o Lawfare,</p><p>enquanto um de seus instrumentos, bem como identificar se a Operação Lava</p><p>Jato é um maxiprocesso.</p><p>O terceiro capítulo, que denominamos “As denúncias do processo de</p><p>impeachment de 2016 e o ato de recebimento: uma análise técnico-proces-</p><p>sual da sua admissibilidade” tem a pretensão de cotejar as peças processuais</p><p>acusatórias e o ato de recebimento praticado pelo então presidente da câmara</p><p>dos deputados, Eduardo Cunha, com os requisitos técnico-processuais de</p><p>admissibilidade da denúncia, bem como verificar que a acusação instrumen-</p><p>talizou o Direito como Lawfare político.</p><p>No quarto capítulo realizamos uma análise do fato mais midiatizado da já</p><p>espetacularizada Operação Lava Jato, a divulgação autorizada pelo juiz Sérgio</p><p>Moro da gravação da conversa entre o Lula e Dilma obtido por interceptação</p><p>telefônica. O “Sigilo das interceptações telefônicas e o uso político do caso</p><p>Lava Jato: a perda da base parlamentar governista no processo de impeach-</p><p>ment” expõe os motivos explícitos e implícitos que levaram o magistrado a</p><p>realizar aquele ato, que terminou por alavancar o processo de impeachment.</p><p>O quinto capítulo, “Impeachment de 2016: devido processo legal ou</p><p>autoritarismo processual penal?” tem o objetivo de responder à indagação do</p><p>próprio título, à luz da Teoria do Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli, bem</p><p>como de sua palestra sobre a operação Lava Jato e o impeachment ministrada</p><p>no parlamento italiano no dia 11 de abril de 2017.</p><p>No sexto capítulo, nominado “Ocaso Lula: a execução antecipada da</p><p>pena no contexto do ativismo judicial”, realizamos uma análise do processo</p><p>criminal a que Lula foi submetido, dando especial relevo para a execução</p><p>antecipada da pena dentro de um contexto de ativismo judicial.</p><p>No sétimo capítulo, “A eleição de 2018: a vitória autoproclamada”,</p><p>analisamos a eleição de 2018, o contexto da vitória de Jair Bolsonaro, a im-</p><p>portância da inelegibilidade decorrente da condenação de Lula, a despeito</p><p>da recomendação do Comitê de Direitos Humanos da ONU, e, por fim,</p><p>fizemos uma abordagem sobre a Teoria dos Jogos aplicada ao processo penal,</p><p>especialmente as estratégias, táticas e recompensas dos jogadores.</p><p>Na conclusão, com base nos fatos ocorridos entre 2014 e 2018, realizamos</p><p>uma abordagem da situação política atual do Brasil para incentivar o leitor a</p><p>realizar uma reflexão sobre a existência ou não de democracia no Brasil, bem</p><p>como para que lugar estamos caminhando.</p><p>29</p><p>1</p><p>1.1 . Int rodução</p><p>O processo penal brasileiro vem sofrendo algumas importantes mudanças</p><p>nas últimas duas décadas. Atualmente é possível verificar o aumento do número</p><p>de maxiprocessos9, comumente chamados de “operações”, numa</p><p>Lei nº 12.850/2013 no Brasil), fórmulas indeterminadas,</p><p>interpretações elásticas, subjetivas, ideológicas e valorativas, e, por fim, uma</p><p>predileção por investigar pessoas, ao invés de fatos, identificam essa importante</p><p>característica dos maxiprocessos75.</p><p>70 Cf. SANTORO, Antonio Eduardo Ramires; ORTIGÃO, Francisco Ramalho. Os “herme-</p><p>neutas do grampo”: uma disfucionalidade epistêmica. In: CONPEDI LAW REVIEW, v.</p><p>2, n. 1, p. 163/180, jan/jun 2016.</p><p>71 FERRAJOLI. Op. cit., p. 762.</p><p>72 Esse é um tema que tem direta relação com questão da contaminação do julgador com atos</p><p>do inquérito, cf. LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no processo</p><p>penal. 4ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 234 e ss.</p><p>73 Para uma crítica à prevenção positiva cf. MAYA, André Machado. Imparcialidade e pro-</p><p>cesso penal: da prevenção da competência ao juiz das garantias. 2ª ed. São Paulo:</p><p>Atlas, 2014.</p><p>74 FERRAJOLI. Op. cit., p. 758/759.</p><p>75 Idem.</p><p>52</p><p>Em decorrência da mutação substancial do modelo de legalidade penal,</p><p>com a alteração do paradigma de um processo penal do crime para o processo</p><p>penal do réu, o julgador assume uma posição protagonista, “o juiz torna-se</p><p>inimigo do réu (...) e não procura a verdade do fato, mas procura no prisio-</p><p>neiro o delito”76, permitindo ao magistrado invadir a esfera de privacidade</p><p>do inimigo, por meio de interceptações e buscas domiciliares.</p><p>Essa pessoalização da justiça criminal, que muda o paradigma do crime</p><p>como centro do sistema para o criminoso, antagonizando-o ao juiz, cria o</p><p>ambiente para a seletividade política ou ideológica do réu, uma vez que no</p><p>subsistema penal de exceção a intervenção punitiva se legitima no alcance</p><p>de objetivos políticos.</p><p>Há também, na mutação substancial, uma ontologização do crime como</p><p>um mal, algo moralizante ou pecaminoso, que de forma coerente procura</p><p>uma confissão e uma “colaboração mediante denúncia dos coautores”77 ou</p><p>mesmo uma confissão à sorrelfa, sem alertas de garantia do direito ao silên-</p><p>cio, como na interceptação telefônica, cujo saldo final é uma pseudo escolha</p><p>anticriminal, porém confirmatória da hipótese investigatória.</p><p>O protagonismo judicial como estratégia para abreviar a confirmação</p><p>da hipótese investigatória implica com clareza na confusão processual, tanto</p><p>subjetiva como objetiva, uma vez que o resultado precede o processo e, não</p><p>raro, é antecipado pela cobertura midiática de forma apriorística à própria in-</p><p>vestigação, cujos atos ostensivos de delações, interceptações, conduções, buscas</p><p>e prisões são apenas a face espetacularizada do que já se havia como certo.</p><p>Por fim, a última característica consistente no (5) incremento da utilização</p><p>dos meios de investigação ou obtenção de prova é outro traço distintivo dos</p><p>maxiprocessos. É uma característica que decorre naturalmente da mutação</p><p>substancial e da confusão processual, mas guarda especial relação com a co-</p><p>bertura midiática massiva.</p><p>Meios de investigação de prova ou meios de obtenção de prova ou meios</p><p>de pesquisa de prova se caracterizam por (i) serem instrumentos ou atividades</p><p>extraprocessuais, (ii) que podem ser produzidos na fase investigatória, (iii) sem</p><p>a participação do investigado e da defesa, (iv) mas com a participação do juiz</p><p>(v) baseado no fator surpresa78, por isso, não há contraditório direto79, (vi)</p><p>76 Idem, p. 759.</p><p>77 Idem.</p><p>78 Chamando-os de métodos ocultos vide PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de</p><p>controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por</p><p>métodos ocultos. 1a ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014.</p><p>79 Uma crítica ao uso do contraditório diferido nas interceptações telefônicas SANTORO,</p><p>Antonio Eduardo Ramires; RANGEL, Natália. O princípio constitucional do contra-</p><p>ditório na interceptação das comunicações telefônicas. In: MENDES, Soraia da Rosa</p><p>e LONGO, Ana Carolina F. (org.). Segurança Pública . Brasília: IDP, 2015.Duas propostas</p><p>53</p><p>não podem ser repetidos. Diferem dos meios de prova tradicionais que são</p><p>endoprocessuais, produzidos em juízo, sob o crivo do contraditório direto, com</p><p>a participação do acusado e sua defesa e, normalmente, podem ser repetidos.</p><p>Há, portanto, diante desta quinta característica, uma produção antecipada</p><p>de informação válida para julgamento antes de serem aplicáveis as garantias</p><p>processuais, com a participação ativa do juiz80, aproximando os maxiprocessos</p><p>de uma lógica tipicamente inquisitiva.</p><p>2.2 . Os maxiprocessos e a negação do</p><p>processo penal democrát ico</p><p>Para Ferrajoli, os processos de emergência não apenas não estão ade-</p><p>quados ao Estado de direito, como não se compatibilizam com a democracia.</p><p>Neste ponto, é relevante apontar que seu conceito de democracia se</p><p>afasta de uma compreensão que ele denominou plebiscitária.</p><p>Para Ferrajoli a democracia plebiscitária é uma “imagem simplificada”</p><p>da democracia, que “consistiria essencialmente na onipotência da maioria” 81</p><p>e disso decorreriam várias consequências, como a desqualificação de regras</p><p>ou limites ao poder executivo por ser expressão da maioria, a ideia de que a</p><p>vontade da maioria legitima qualquer abuso, entre outros.</p><p>Também não se reporta à atual visão de democracia liberal que, segun-</p><p>do Ferrajoli, era um termo nobre que designava “um sistema democrático</p><p>informado pela tutela das liberdades individuais, pelo respeito ao dissenso e</p><p>às minorias, pela defesa do Estado de direito e da divisão de poderes, assim</p><p>como pela rígida separação da esfera pública do Estado e a esfera privada do</p><p>mercado” 82, mas vem se identificando cada vez mais com a ausência de regras</p><p>e de limites à liberdade da empresa.</p><p>Para Ferrajoli a democracia constitucional é um novo paradigma que se</p><p>pode identificar a partir do quinquênio 1945-1949, período posterior à derrota</p><p>de estabelecimento do contraditório da interceptação telefônica: CASTRO, Helena Rocha</p><p>Coutinho de; ABATH, Manuela; ROSENBLATT, Fernanda Fonseca. Por uma investigaçãoo</p><p>preliminar democrática: o contraditório na interceptação telefônica. In: SANTORO, Antonio</p><p>Eduardo Ramires; MADURO, Flávio Mirza (org.). Interceptação Telefônica: os 20 anos</p><p>da Lei nº 9.296/96. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016 e CÂMARA, Jorge Luis. A inserção</p><p>da interceptação telefônica em um sistema acusatório coerente com a centralidade do direito</p><p>de defesa. In: SANTORO, Antonio Eduardo Ramires; MADURO, Flávio Mirza (org.). Inter-</p><p>ceptação Telefônica: os 20 anos da Lei nº 9.296/96. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.</p><p>80 Importante ressaltar que nos casos em que o exercício do contraditório será diferido, agravam-se</p><p>as chances de afetação do posicionamento do julgador em decorrência de sua exposição a</p><p>informações produzidas unilateralmente e que podem provocar - ainda que inconscientemente</p><p>- impactos na decisão proferida ao final do processo, impossibilitando a ocorrência daquilo que</p><p>Rui Cunha Martins aponta como essencial para formação da decisão: suspensão do julgamento</p><p>imediatista e constrangimento das evidências. Vide MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego</p><p>do direito: the Braziliian lessons. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.</p><p>81 FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. Madrid: Editorial Trotta, 2008, p. 25.</p><p>82 FERRAJOLI. Democracia y Garantismo. Op. cit., p. 26.</p><p>54</p><p>do nazismo e do fascismo. Isso porque o consenso de massas sobre o qual estavam</p><p>fundadas as ditaduras fascistas, apesar de majoritário, não eram a única fonte de</p><p>legitimação do poder. É assim que se “redescobre o significado da Constituição</p><p>como limite e vínculo aos poderes públicos”, em outras palavras, se redescobre</p><p>em nível internacional o valor da Constituição como norma dirigida à garantia</p><p>“da divisão de poderes e dos direitos fundamentais de todos”83.</p><p>E, ainda, para o professor italiano, o termo “Estado de direito” deve ser</p><p>empregado não apenas no sentido de Estado regulado por leis, mas como</p><p>um modelo de Estado nascido com as modernas Constituições caracteri-</p><p>zado pelo (i) princípio da legalidade, por força do qual todo poder público</p><p>está subordinado às leis</p><p>que disciplina a forma de exercício e no (ii) plano</p><p>substancial da funcionalização de todos os poderes do Estado à garantia dos</p><p>direitos fundamentais dos cidadãos, incorporando-se aí a vedação de lesão aos</p><p>direitos de liberdade e obrigação de satisfação dos direitos sociais.</p><p>Nesse ponto cabe fazer referência à observação feita na primorosa dis-</p><p>sertação de mestrado de Maíra Fernandes, em que elenca e explica alguns dos</p><p>problemas causados pelos maxiprocessos. Entre diversos problemas, é possível</p><p>ressaltar o imenso prejuízo ao exercício do direito fundamental à defesa. Maíra</p><p>Fernandes aponta que “quanto ao réu, um processo gigante pode restringir</p><p>seu direito constitucional de ser julgado em tempo razoável e, também, seu</p><p>direito à defesa, devido às dificuldades na divulgação das provas e acesso a</p><p>elas pelos inúmeros advogados”84.</p><p>Como bem observa a autora85, a acusação (geralmente uma Força</p><p>Tarefa especialmente designada) mantém por muito tempo, muitos meses,</p><p>uma investigação em sigilo, tendo acesso livre a inúmeros documentos ou</p><p>atos documentados, ao passo que o investigado sequer é chamado a depor,</p><p>de repente deflagra-se a fase ostensiva da operação e somente com a prisão</p><p>do investigado ou acusado é que a defesa toma ciência, constantemente pela</p><p>imprensa, do que existe contra ao acusado. Mesmo depois disso é preciso fazer</p><p>um grande esforço para tomar ciência de tudo que existe juntado ao processo,</p><p>enquanto a acusação já teve acesso detalhado e completo a tudo. Violam-se,</p><p>no mínimo, os direitos à defesa e à paridade de armas, portanto, a vedação à</p><p>lesão de direitos fundamentais é violada pelo acusador, incompatibilizando</p><p>essa prática com o que Ferrajoli entende por Estado de Direito.</p><p>Esta relação estabelecida entre a democracia constitucional e o Estado</p><p>de Direito, contrapõe a “razão jurídica”, própria deste, e a “razão de Estado”</p><p>ou “razão política”. Isso porque enquanto na razão de Estado o Estado é um</p><p>83 FERRAJOLI. Democracia y Garantismo. Op. cit., p. 28.</p><p>84 FERNANDES, Maíra. Um olhar constitucional e processual penal sobre a fixação</p><p>da competência nas fases iniciais da “Operação Lava Jato” e uma análise crítica</p><p>dos maxiprocessos e da instrumentalização da opinião pública. Dissertação de</p><p>Mestrado. PPGF/UFRJ, 2019, p. 136.</p><p>85 Idem, p. 137.</p><p>55</p><p>fim e os fundamentos jurídicos são flexíveis e manipuláveis pelo arbítrio, na</p><p>razão jurídica, que fundamenta o Estado de Direito, o Estado é um meio e</p><p>está vinculado pela sujeição de seus poderes às regras fundamentais.</p><p>Desta forma, os fins políticos que conduzem os processos de natureza</p><p>penal com típico desenho maximizado (maxiprocessos) utilizados como ins-</p><p>trumentos de Lawfare político se apresentam como processo de emergência,</p><p>não democrático, no sentido de democracia constitucional, não vinculados à</p><p>razão jurídica que caracteriza o Estado de Direito.</p><p>2.3 . A premonição de Sérgio Moro</p><p>No ano de 2004, Sérgio Moro escreveu um artigo intitulado “Conside-</p><p>rações sobre a operação mani pulite”86 em que apontou as características da</p><p>famosa Operação italiana que, segundo o próprio autor, “redesenhou o quadro</p><p>político na Itália. Partidos que haviam dominado a vida política italiana no</p><p>pós-guerra (...) foram levados ao colapso...”87.</p><p>Parece clara a identificação que Moro estabelece entre a Operação Mani</p><p>Pulite e os resultados políticos alcançados. É bem verdade que no trecho parcial-</p><p>mente transcrito ainda não se antevê tenha sido esse resultado político tenha sido</p><p>uma finalidade pré-desenhada pelos agentes do sistema jurídico-penal italiano.</p><p>Todavia, foi o próprio Moro quem destacou que “Uma nova geração</p><p>dos assim chamados “giudici ragazzini” (jovens juízes), sem qualquer senso</p><p>de deferência em relação ao poder político (...), iniciou uma série de inves-</p><p>tigações sobre a má-conduta administrativa e política.”88</p><p>Há, portanto, uma identificação entre as consequências políticas e a</p><p>atuação consciente dos magistrados atuantes na Operação Mani Pulite. Resta</p><p>claro que a Operação Mani Pulite, na exposição de Moro, não contou com</p><p>juízes inertes e imparciais, vez que em um sistema acusatório julgador algum</p><p>pode tomar iniciativas investigativas.</p><p>A finalidade política da atuação dos magistrados se conforma à confusão</p><p>processual de que trata Ferrajoli, como uma estratégia para implementar as</p><p>razões políticas ou de Estado, em contraposição às razões jurídicas que devem</p><p>nortear um processo de matiz democrático.</p><p>Moro ainda deixou claro que a atuação dos por ele chamados jovens</p><p>juízes era conscientemente voltada a atuar como investigadores que pretendem</p><p>usar de coação para obter confissões e delações:</p><p>A estratégia de ação adotada pelos magistrados incentivava os inves-</p><p>tigados a colaborar com a Justiça: a estratégia de investigação adotada</p><p>86 MORO, Sergio Fernando. Considerações sobre a operação mani pulite. Revista CEJ, Bra-</p><p>sília, v. 8, n. 26, p. 56-62., jul./set. 2004</p><p>87 Idem.</p><p>88 Idem.</p><p>56</p><p>desde o início do inquérito submetia os suspeitos à pressão de tomar</p><p>decisão quanto a confessar, espalhando suspeita de que outros já</p><p>teriam confessado e levantando a perspectiva de permanência na</p><p>prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva no caso de</p><p>manutenção do silêncio, ou, vice-versa, de soltura imediata no caso</p><p>de uma confissão (...)89</p><p>É também característico que não se estabelece um processo de barga-</p><p>nha, em que partes livres negociam uma solução de forma paritária para o</p><p>problema penal, mas o móvel das atitudes esperadas dos investigados é que</p><p>ajam sob constante ameaça e com desconhecimento do que sobre eles exista90.</p><p>O uso de técnicas que subvertem o sistema acusatório e ampliam as</p><p>incidências autoritárias no âmbito do processo penal para substituir a obriga-</p><p>tória atribuição de ônus probatório à acusação por confissões obtidas a base</p><p>de ameaças, desconhecimento e medo, bem como delações que impeçam</p><p>a execução de medidas que antecipam a pena, se tornam tática de atuação.</p><p>O gigantismo da Operação Mani Pulite é também um traço mar-</p><p>cado pela descrição de Moro, ao apontar que do início da operação em</p><p>apenas “dois anos após, 2.993 mandados de prisão haviam sido expedidos;</p><p>6.059 pessoas estavam sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978</p><p>administradores locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido</p><p>primeiros-ministros.”91</p><p>Uma das táticas para espalhar o receio entre os investigados e obrigá-los a</p><p>colaborar era o uso da imprensa. Moro afirma que “os responsáveis pela operação</p><p>mani pulite ainda fizeram largo uso da imprensa” e que esse “constante fluxo de reve-</p><p>lações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva.”92</p><p>A imprensa, portanto, é um importante instrumento para o uso político</p><p>do sistema penal e Moro identificou isso com clareza.</p><p>Moro termina com uma espécie de vaticínio: “No Brasil, encontram-se presen-</p><p>tes várias das condições necessárias para a realização de ação judicial semelhante.”93</p><p>89 MORO. Op cit.</p><p>90 De se observar que a Suprema Corte Norte Americana decidiu no caso Brady vs. Maryland</p><p>que a acusação apresente as provas da inocência do acusado durante o julgamento. Diante</p><p>disso vários tribunais passaram a entender que se é exigível que a acusação o faça durante</p><p>o julgamento, também o será no durante o Plea Bargain (PETEGORSKY, Michael Nasser.</p><p>Plea Bargaining in the dak: the duty to disclosure exculpatory Brady evidence during plea</p><p>bargain.Fordham Law Review, volume 81, n. 6, p. 3599-3650, 2013). Esse é um problema</p><p>que não se discute no Brasil, nada se trata a respeito do direito da defesa ou investigado de</p><p>conhecer as provas de inocência de que dispõe a acusação no âmbito da negociação sobre</p><p>colaboração premiada.</p><p>91 MORO. Op cit.</p><p>92 Idem.</p><p>93 Idem.</p><p>57</p><p>2.4 . A Operação Lava Jato e seu desenho</p><p>maximizado</p><p>A partir de março de 2014 se iniciou no Brasil, mais especificamente na</p><p>13ª Vara Federal de Curitiba, Órgão jurisdicional do qual Sérgio Moro figu-</p><p>rava como juiz titular, a “Operação Lava Jato”,</p><p>apresentada no sítio eletrônico</p><p>do Ministério Público Federal como “a maior investigação de corrupção e</p><p>lavagem de dinheiro que o Brasil já teve”94.</p><p>Ainda segundo o Ministério Público Federal, a “Lava Jato” se iniciou</p><p>investigando quatro organizações criminosas lideradas por doleiros e, pos-</p><p>teriormente, o Ministério Público Federal recolheu provas de um esquema</p><p>criminoso envolvendo a Petrobras, o qual duraria pelo menos dez anos e</p><p>consistiria na organização em cartel de grandes empresas que pagariam pro-</p><p>pinas a altos executivos e a agentes públicos.</p><p>Esse esquema criminoso estaria instaurado na Petrobras em razão da</p><p>indicação política de três diretorias, que se relacionariam diretamente a três</p><p>partidos políticos (PP, PT e PMDB) beneficiados por contratos celebrados</p><p>com as empreiteiras envolvidas.</p><p>Hoje a “Lava Jato” não está vinculada apenas à competência da 13ª Vara</p><p>Federal de Curitiba, mas também ao Rio de Janeiro, Distrito Federal e Supremo</p><p>Tribunal Federal, em razão dos casos que envolvem competência originária.</p><p>No entanto muitas críticas vêm sendo feitas à “Lava Jato”, desde um ma-</p><p>nifesto assinado por mais de 200 professores de processo penal e divulgado em</p><p>março de 2016 em que denunciam o uso político do sistema penal (sem, todavia,</p><p>fazer referência direta à “Lava Jato”)95, até um requerimento de convocação</p><p>do então Ministro da Justiça Alexandre de Morais para depor na Câmara dos</p><p>Deputados sobre uma declaração que havia dado em um ato político do PSDB</p><p>(partido ao qual era filiado) no dia 25 de setembro de 2016, antecipando a 35ª</p><p>fase da Operação “Lava Jato” e colocando em xeque a influência política do</p><p>governo sobre as investigações. Atualmente Alexandre de Morais é Ministro do</p><p>Supremo Tribunal Federal, o que em nada diminui, muito ao contrário, as críticas.</p><p>O Ministério Público Federal apresenta números superlativos: são 2.476</p><p>procedimentos instaurados, 1.072 mandados de busca e apreensão, 227 manda-</p><p>dos de condução coercitiva, 120 mandados de prisão preventiva, 18 mandados</p><p>de prisão temporária, 6 prisões em flagrante, 548 pedidos de cooperação</p><p>internacional, 82 acusações criminais contra 347 pessoas e, o mais relevante</p><p>para o presente trabalho, 176 acordos de colaboração premiada.</p><p>94 Disponível em http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-jato/entenda-o-caso.</p><p>Acessado em 11 fev 2018.</p><p>95 Disponível em <https://www.ibccrim.org.br/noticia/14142-Mais-de-200-professores-de-</p><p>-Processo-Penal-se-manifestam-contra-o-uso-politico-do-sistema-de-justica-criminal.></p><p>Acessado em 11 fev 2018.</p><p>As condições a que se referia Sérgio Moro em seu artigo publicado</p><p>10 (dez) anos antes, se materializaram na Operação Lava Jato. O gigantismo</p><p>processual e o uso demasiado de meios de obtenção de prova, especialmente a</p><p>colaboração premiada, está declarada pelo próprio Ministério Público Federal</p><p>ao apresentar a Operação em números.</p><p>Se atuação dos Procuradores e do Juiz Sérgio Moro foi objeto de con-</p><p>fusão processual ou não, se houve finalidade política da “maior investigação</p><p>de corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve” e se operou-se a</p><p>mutação do modelo clássico de legalidade penal, é exatamente o que se pre-</p><p>tende analisar no curso deste livro, já de antemão adiantando a hipótese de</p><p>resposta positiva, ou seja, compreendemos que a Operação Lava Jato é um</p><p>maxiprocesso utilizado como instrumento de Lawfare.</p><p>Os efeitos políticos da Operação Lava Jato não são lineares, mas podem</p><p>ser observados e descritos. Não se pode ignorar as imbricadas relações entre</p><p>o sistema jurídico penal e o sistema político. A condução da vida política do</p><p>Brasil esteve e ainda está diretamente ligado de forma contundente à atuação</p><p>das agências que protagonizaram a Operação Lava Jato. É impossível ignorar</p><p>a relação entre o Impeachment da Presidenta Dilma Roussef, a Operação</p><p>Lava Jato, a inelegibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva e a eleição de Jair</p><p>Bolsonaro para o cargo de Presidente do Brasil.</p><p>Cumpre-nos, portanto, abordar os pontos mais importantes destes even-</p><p>tos, traçar a simbiótica relação entre eles, apontando os problemas jurídicos</p><p>que subjazem às questões políticas.</p><p>clara confusão</p><p>entre a investigação e o processo, impulsionados pelo incremento da utilização</p><p>dos meios de obtenção de prova10 e pela cobertura midiática massiva e opressiva11.</p><p>Importa pontuar que o sistema penal tradicional não perdeu força ou</p><p>espaço. Basta verificar que a população carcerária brasileira, a terceira maior do</p><p>mundo12, continua sendo composta de forma amplamente majoritária por pes-</p><p>soas acusadas ou condenadas pela prática de crimes contra o patrimônio (37%),</p><p>crime de drogas (28%) e crimes contra a pessoa (11%), sendo que os crimes</p><p>contra a Administração Pública que compõem boa parte dos crimes objetos</p><p>9 Na primeira edição, os autores não haviam incluído o segundo capítulo que se dedica a enfren-</p><p>tar o tema dos Maxiprocessos e para o qual se reportam. Para melhor compreensão do que se</p><p>expressa por maxiprocesso cf. FALCONE, Pietro. I processi per le stragi di capaci e via d’amelio:</p><p>le questioni processuali in tema di valutazione delle dichiarazioni dei collaboratori di giustizia,</p><p>e di incompatibilitav dei giudici dopo le sentenze della corte costituzionale e PIGNATONE,</p><p>Giuseppe. La valutazione delle dichiarazioni dei collaboratori di giustizia: evoluzione normativa</p><p>e giurisprudenziale. In: TINEBRA, Giovanni; ALFONSO, Roberto; CENTONE, Alessandro (a</p><p>cura di). Fenomenologia del maxiprocesso: venti anni di esperienze. Milão: Giuffré, 2011.</p><p>10 Cf. JESUS, Francisco Marcolino de. Os meios de obtenção de prova em processo</p><p>penal. Coimbra: Almedina, 2015.</p><p>11 Sobre a opressão da cobertura midiática dos julgamentos, cf. SCHREIBER, Simone. A</p><p>publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.</p><p>12 De acordo com o Levantamento de Informações penitenciárias de junho de 2016 (BRASIL.</p><p>Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN – junho</p><p>de 2016. Brasília: Ministério da Justiça, 2017, p. 7 (doravante denominado simplesmente</p><p>Infopen), o Brasil tem 726.712 presos, a terceira maior população carcerária do mundo.</p><p>Segundo dados divulgados em 1º de maio de 2017 pelo Institute for Criminal Policy</p><p>Research, 622.079 pessoas compõem a população carcerária russa, cifra inferior àquela</p><p>apresentada pelo sistema prisional brasileiro.</p><p>1. O USO DO SISTEMA PENAL</p><p>COMO LAWFARE POLÍTICO</p><p>30</p><p>dos maxiprocessos sequer somam um por cento da população carcerária13. Os</p><p>crimes econômicos e financeiros nem mesmo aparecem nas estatísticas prisionais.</p><p>Em relação à população prisional, negros e pardos, conquanto compo-</p><p>nham 53% da população brasileira, respondem por 64% da população pri-</p><p>sional, ao passo que os brancos que contam 46% da população total do país,</p><p>respondem por 35% dos encarcerados14. E mais, 75% da população prisional</p><p>tem até o ensino fundamental completo15.</p><p>O sistema penal brasileiro, portanto, continua tendo como clientes</p><p>preferenciais pessoas pretas e pobres, como se pode verificar pelas estatísticas</p><p>que acima foram apresentadas.</p><p>No âmbito do processo penal, não apenas a prova testemunhal continua</p><p>sendo amplamente a mais utilizada para aferir a prática dos fatos sob julgamento16,</p><p>como o depoimento dos policiais recebem na práxis forense indevida e prévia</p><p>valoração positiva como suficiente para condenação dos acusados em geral17.</p><p>Portanto, as mudanças que vêm sendo realizadas no processo penal nas</p><p>últimas décadas não se apresentam como uma substituição do modelo tradi-</p><p>cional de processo, mas uma nova configuração para casos diversos, que não</p><p>impactam nas estatísticas carcerárias.</p><p>Todavia, inobstante não tenham influência sobre a estatística carcerária, essas</p><p>mudanças têm importante potencial para alterar a atividade usual e cotidiana</p><p>do juiz criminal. Isso se pode verificar pelos casos em que o afastamento de</p><p>direitos fundamentais é justificado pela específica posição social proeminente</p><p>de certos investigados e acusados, porém terminam por impulsionar o uso de</p><p>medidas outrora consideradas de uso restrito e excepcional para casos de grande</p><p>repercussão e difícil elucidação, para utilização no processo penal tradicional.</p><p>Assim, ao tempo em que a condução coercitiva passou a ser usada como</p><p>regra, ao arrepio das hipóteses legais18, na forma de instrumento de pressão</p><p>sobre investigados de certa posição social privilegiada, medidas como os</p><p>mandados de busca e apreensão coletivos em comunidades carentes também</p><p>13 Infopen, p. 43.</p><p>14 Infopen, p. 32.</p><p>15 Infopen, p. 33.</p><p>16 ÁVILA, Gustavo Noronha de. Política não criminal e processo penal: a intersecção a partir</p><p>das falsas memórias das testemunhas e seu possível impacto carcerário. Revista Eletrônica</p><p>de Direito Penal e Política Criminal – UFRGS. vol. 2, n. 1, 2014, p. 15 a 27.</p><p>17 Isso se verifica pelo conteúdo da súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, cujo</p><p>verbete é “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e</p><p>seus agentes não desautoriza a condenação.”</p><p>18 No dia 14 de junho de 2018 o Supremo Tribunal Federal decidiu por 6 (Gilmar Mendes,</p><p>Rosa Weber, Dias Tóffoli, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello)</p><p>votos a 5 (Alexandre de Morais, Edson Facchin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Carmen</p><p>Lúcia) no julgamento das ADPFs 395 e 444 que a condução coercitiva de investigado ou</p><p>acusado para interrogatório é inconstitucional. Percebe-se que o abuso no uso da medida,</p><p>como aqui apontado, foi motivador da construção deste entendimento.</p><p>31</p><p>passaram a ser utilizados para elucidação de casos típicos do processo penal</p><p>tradicional. São medidas que, seja nos maxiprocessos ou no processo penal</p><p>tradicional, extrapolam o justo processo legal.</p><p>Todavia, não se pode ignorar que a privilegiada posição social dos inves-</p><p>tigados19, a utilização de meios de obtenção de informações tecnologicamente</p><p>mais avançados e ocultos20, capazes de devassar a intimidade dos investigados,</p><p>com a consequente espetacularização do processo21, a possibilidade da imprensa</p><p>expor ao público conversas22 e vídeos captados em investigações ou mesmo</p><p>acompanhar em tempo real a execução de fases ostensivas com medidas prisio-</p><p>nais23, conduções coercitivas24 ou de buscas e apreensões domiciliares, tornaram o</p><p>processo conduzido como “operações” um produto de venda essencial à mídia.</p><p>As colaborações premiadas ganham especial relevo nessa nova caracteri-</p><p>zação do processo penal. Muito embora essa modalidade de meio de obtenção</p><p>de prova dependa da tipificação do fato a ser investigado como crime de</p><p>organização criminosa, há certa maleabilidade conceitual que permite, ainda</p><p>durante a fase investigatória conduzida especialmente nesses casos pelo Mi-</p><p>nistério Público (restando à polícia apenas algumas atividades mais ostensivas</p><p>como a execução das medidas prisionais), uma adequação elástica dos fatos</p><p>ao tipo específico definido na Lei nº 12.850/2013.</p><p>19 Cf. SUTHERLAND, Edwin. Crime de colarinho branco. Tradução Clécio Lemos. Rio</p><p>de Janeiro: Revan, 2015.</p><p>20 Cf. PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra</p><p>da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial</p><p>Pons, 2014.</p><p>21 Cf. CASARA, Rubens. Processo Penal do Espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a</p><p>dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Curitiba: Emporio do Direito, 2016.</p><p>22 Como se pode verificar pelo recente episódio em que um grande empresário brasileiro</p><p>realizou colaboração premiada e se submeteu a realizar ação controlada com autorização do</p><p>Supremo Tribunal Federal, tendo gravado de forma clandestina conversas com o Senador</p><p>Aécio Neves e o Presidente Michel Temer, tendo suas conversas sido divulgadas integralmente</p><p>pela mídia. Áudio da conversa entre Joesley Batista, sócio da JBS, e Aécio Neves disponível</p><p>em http://g1.globo.com/politica/noticia/audio-aecio-e-joesley-batista-acertam-pagamen-</p><p>to-de-r-2-milhoes.ghtml. Acessado em 24 de maio de 2017. Áudio da conversa em Joesley</p><p>Batista e Michel Temer disponível em http://istoe.com.br/stf-divulga-audio-da-conversa-</p><p>-entre-temer-e-joesley-batista-ouca/.</p><p>Acessado em 24 de maio de 2017.</p><p>23 Muitos seriam os exemplos, mas a prisão do ex-Presidente da Câmara dos Deputados</p><p>Eduardo Cunha foi transmitida ao vivo. DIONÍSIO, Bibiana et al. Eduardo Cunha é preso</p><p>em Brasília por decisão de Sérgio Moro. G1. 19/10/2016. Disponível em http://g1.globo.</p><p>com/pr/parana/noticia/2016/10/juiz-federal-sergio-moro-determina-prisao-de-eduardo-</p><p>-cunha.html. Acessado em 24 de maio de 2017.</p><p>24 A condução coercitiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinada pelo juiz Sérgio</p><p>Moro e executada no dia 04 de março de 2016 teve a mais ampla cobertura da mídia e causou</p><p>uma imensa polêmica. COLON, Leandro et al. Condução coercitiva de Lula foi decidida</p><p>para evitar tumulto, diz Moro. Folha de São Paulo (on line). 04/03/2016. Disponível em</p><p>http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/03/1746437-conducao-coercitiva-de-lula-foi-</p><p>-decidida-para-evitar-tumulto-diz-moro.shtml. Acessado em 24 de maio de 2017.</p><p>32</p><p>Além de esvaziar a ideia de um processo penal fundado nos fatos e con-</p><p>vertê-lo numa justiça penal negociada, a colaboração premiada, que deveria</p><p>ser sigilosa ao menos até o recebimento da denúncia, termina por criar um</p><p>clima de apreensão folhetinesco pela próxima pessoa ou autoridade a ser</p><p>delatada, impulsionando o interesse da opinião pública e da mídia, que por</p><p>sua vez passa a ditar a pauta das agências penais25, configurando aquilo que se</p><p>convencionou chamar de agenda setting26.</p><p>O problema que se coloca é: poderá o processo ser utilizado como</p><p>um instrumento de condução política? Subsidiariamente, questiona-se: é</p><p>isso o que vem ocorrendo no Brasil? A agenda política dos órgãos de mídia</p><p>afetam as ações jurídicas?</p><p>A hipótese que será trabalhada é a possibilidade de que a teoria norte-</p><p>-americana do Lawfare, que analisa a utilização prática do Direito como uma</p><p>arma de guerra, possa ser compreendida da mesma forma quando o processo</p><p>é utilizado como arma política.</p><p>Far-se-á, metodologicamente, uma abordagem bibliográfica sobre a teoria</p><p>do Lawfare e sobre a possibilidade de que o uso do processo tenha finalidade</p><p>política, à luz dos acontecimentos nos últimos anos no Brasil.</p><p>1.2 . Or igens do Lawfare</p><p>Orde Kittrie, professor da Universidade do Arizona, autor do que ele</p><p>próprio denominou como o primeiro livro de língua inglesa que provê</p><p>uma ampla e sistemática abordagem do Lawfare, identifica origem remota</p><p>na ideia de Lawfare, apesar de não haver sido cunhada a expressão desde</p><p>25 Observe-se que no já referido escandoloso caso da ação controlada deferida pelo Ministro</p><p>Edson Facchin a pedido da Procuradoria-Geral da República, em que o empresário dono</p><p>do frigorífico JBS, Joesley Batista, gravou conversas com o Presidente Michel Temer e com</p><p>o Senador Aécio Neves, o jornalista Lauro Jardim, do jornal O Globo, concedeu entrevista</p><p>à rádio CBN, do mesmo grupo empresarial, em que afirmou que já estava preparando há 3</p><p>(três) semanas a reportagem que foi ao ar pelo site do jornal no dia 17 de maio de 2017 e que</p><p>nos últimos 3 (três) dias isso se tornou urgente, ao passo em que a ação controlada, de acordo</p><p>com o §3º do art. 8º da Lei nº 12.850, até o encerramento da diligência, será de acesso restrito</p><p>ao juiz, ao Ministério público e ao delegado de polícia, demonstrando que não apenas a lei</p><p>foi ignorada, mas também que a divulgação pela imprensa teve antecedência à deflagração da</p><p>fase ostensiva da ação, de tal sorte que as ações do Judiciário, se não estão sendo determinadas</p><p>pela pauta da mídia hegemônica estão, no mínimo, em profunda harmonia. (JARDIM, Lauro.</p><p>Não havia nada de concreto mas agora há. Entrevistador: Milton Jung. 18 de maio de</p><p>2017. Disponível em http://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/87989/nao-havia-na-</p><p>da-concreto-mas-agora-ha-diz-lauro-jar.htm. Acessado em 23 de maio de 2017).</p><p>26 Segundo as conclusões e conceitos contidos na teoria de agenda setting formalmente desenvol-</p><p>vida por Mccombs e Shaw - segundo a qual a atuação dos veículos e atores midiáticos possui</p><p>o poder de influenciar o cenário político de forma profunda - a forma e frequência com</p><p>a qual um conteúdo é apresentado ao leitor-espectador acaba por lhe fornecer não apenas</p><p>informações sobre determinado fato ou evento, mas também incutir ideias sobre a relevância</p><p>que deve ser dispensada a mesma, bem como posicionamento a ser adotado para sua análise.</p><p>33</p><p>então, especialmente no livro Mare Liberum de Hugo Grócio, que defendeu</p><p>o direito das nações à livre navegação contra a proibição portuguesa do</p><p>navio Holandês da Companhia da Índias Orientais de navegar no mar Índico.</p><p>Em análise cronologicamente mais próxima, chama atenção para o fato</p><p>de que 1996 o presidente chinês Jiang Zemin advertiu um grupo de advo-</p><p>gados chineses dedicados ao direito internacional que a China precisava se</p><p>especializar no uso do direito internacional como uma arma.</p><p>Essa advertência teve efeito, tanto que em 1999 um livro intitulado “Guerra</p><p>Irrestrita” foi escrito por dois generais chineses e publicado pelas forças armadas</p><p>chinesas que repetidamente fez referência à “guerra legal”, elaborou uma lista</p><p>de “guerras não militares” que incluía o estabelecimento de leis internacionais</p><p>que privilegiam determinado país, como lei interna de direito autoral que pode</p><p>ter um efeito tão destrutivo quanto uma operação militar.</p><p>Mas foi num ensaio de Charles Dunlap, em 200127, que primeiro foi utilizada</p><p>a expressão Lawfare, o que foi feito por influência de outro ensaio, de autoria</p><p>de David Rivkin e Lee Casey, publicado no ano 200028, em que afirmaram que</p><p>aliados dos Estados Unidos e adversários escolheram usar o direito internacional</p><p>como um meio para verificar ou para proteger o poder norte americano.</p><p>Rivkin e Casey entendem que o direito internacional pode funcionar</p><p>como uma força positiva, capaz de promover mais estabilidade internacional,</p><p>desenvolvimento e avanço dos interesses nacionais dos Estados Unidos, que</p><p>tem a oportunidade de formatar a legislação internacional.</p><p>1.3 . Def in ições de Lawfare: para uma</p><p>compreensão de Lawfare pol í t ico</p><p>Como dito anteriormente, o termo “Lawfare” foi enunciado em 2001</p><p>pelo então General da Força Aérea norte-americana Charles Dunlap e definido</p><p>como “a estratégia do uso – ou não uso – do Direito como um substitutivo dos</p><p>meios militares tradicionais para atingir um objetivo de combate de guerra”29.</p><p>Segundo Kittrie, o “Direito vem se tornando uma arma cada vez mais</p><p>poderosa e prevalente do que a guerra”30 por conta do aumento do número</p><p>de leis e tribunais internacionais, a criação de ONG’s dedicadas aos conflitos</p><p>27 DUNLAP JR., Charles J. Lawfare Today and Tomorrow in: International Law and</p><p>Changing Character of War. Raul A. Pete Pedrozo e Daria P. Wollsschlaeger editores, p.</p><p>315. Disponível em http://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=3090&-</p><p>context=faculty_scholarship. Acessado em 06 mai 2017.</p><p>28 RIVKIN, David B. e CASEY, Lee A. The Rocky Shoals of International Law. In: WOOL-</p><p>SEY, James (organizador). National Interest on International Law and Order. Nova</p><p>Jersey: Transaction Publisher, 2003, p. 3/15.</p><p>29 Tradução livre de DUNLAP JR., Charles J. Lawfare Today and Tomorrow. Op. cit.</p><p>30 Tradução livre de KITTRIE, Orde F. Lawfare: law as a weapon of war. New York:</p><p>Oxford University Press, 2016, p. 1.</p><p>34</p><p>armados, a revolução na tecnologia da informação, o avanço da globalização</p><p>e, bem assim, a interdependência econômica.</p><p>Kittrie afirma que apesar do conceito ter sido cunhado por um oficial</p><p>do governo norte-americano, não há nenhuma estratégia ou doutrina, bem</p><p>como não há escritório ou agência que sistematicamente desenvolve ou</p><p>coordena um Lawfare por parte dos Estados Unidos, ou seja, uma ofensiva</p><p>de Direito como arma de guerra, ou que se defenda contra essa estratégia,</p><p>como ocorre com a China no entendimento do autor31.</p><p>Seus exemplos de recentes casos de Lawfare são (1) as atitudes da Auto-</p><p>ridade Palestina no sentido de internacionalizar o conflito com Israel como</p><p>um problema legal, iniciando</p><p>processos judiciais e investigações na Europa</p><p>contra empresas acusadas de fornecer material para crimes de guerra israelen-</p><p>ses; (2) o Reino Unido, ao invés de interceptar um navio russo que carregava</p><p>helicópteros de guerra para o regime de Assad na Síria em junho de 2012,</p><p>persuadiu a empresa seguradora inglesa, London’s Standard Club, a retirar</p><p>o seguro do navio; (3) segundo advogados da marinha americana, a China</p><p>começou uma batalha legal para negar acesso à costa marítima dos navios e</p><p>aviões dos Estados Unidos, Japão e outros países da região com o objetivo de</p><p>não aplicar a normas internacionais e albergar sua estratégia de não acesso,</p><p>o que vem lentamente sendo bem sucedida; (4) os Talibãs vêm acomodando</p><p>suas bases militares próximas a escolas, templos e hospitais, na esperança de</p><p>que ataques norte americanos sejam acusados de atingir alvos civis32.</p><p>Kittrie defende que a estratégia de Lawfare é normalmente menos mor-</p><p>tal que os combates de guerra tradicionais, menos custosa financeiramente e</p><p>algumas vezes mais efetiva. Em discurso de tom ufanista, o autor afirma que</p><p>enquanto a vantagem dos Estados Unidos é grande no âmbito da guerra tra-</p><p>dicional por ter armas letais mais sofisticadas, no âmbito legal essa vantagem</p><p>tende a ser potencialmente ainda maior, porque a sociedade norte americana</p><p>é mais orientada ao Direito, com o maior percentual de mentes brilhantes</p><p>neste campo, usando-o de forma mais criativa do que a China.</p><p>Essa defesa do uso do Direito como arma de guerra33 não foi a concepção</p><p>inicial de Dunlap. A primeira definição já descrita, cunhada em 2001, assim</p><p>como outras duas definições por ele formuladas34 têm pretensão de serem</p><p>31 Idem, p. 3.</p><p>32 Op. cit., p.1 e 2.</p><p>33 É importante notar que Kittrie não concebe estar defendendo o Lawfare, mas entende</p><p>adotar uma postura neutra (KITTRIE. Op. cit., p. 7).</p><p>34 Comparativamente:</p><p>1ª definição: Lawfare é “a estratégia do uso – ou não uso – do Direito como um substi-</p><p>tutivo dos meios militares tradicionais para atingir um objetivo de combate de guerra.”</p><p>(DUNLAP JR., Charles J. Lawfare Today... and Tomorrow. Op. cit.);</p><p>2ª definição: “Lawfare descreve um método de combate de Guerra no qual o Direito é</p><p>usado como um meio de realização de um objetivo militar.” (DUNLAP JR., Charles J.</p><p>35</p><p>neutras, pois que dependem do propósito com que a estratégia é usada. Essa</p><p>compreensão neutra de Dunlap se mostra na realidade utilitarista, o que fica</p><p>claro quando aponta que nas estratégias de Lawfare as leis estão sendo usadas</p><p>em detrimento dos valores humanitários35, ao passo em que visualiza benefícios</p><p>para a segurança nacional norte americana no uso do Lawfare36.</p><p>Mas Kittrie alerta que a definição fornecida por Dunlap, que foi por</p><p>ele adotada em seu livro, não é a única. O autor faz menção a um grupo</p><p>de advogados que mantêm o sítio na rede mundial de computadores com</p><p>o nome “The Lawfare Project” e que entendem o Lawfare com uma co-</p><p>notação negativa.</p><p>Em pesquisa ao sítio do projeto “The Lawfare Project”, cujo subtítulo</p><p>é, em tradução livre, “o exército legal da comunidade pró Israel”, é possível</p><p>verificar que se trata de uma organização não governamental que tem por</p><p>objetivo conter o abuso do uso do Direito como arma de guerra contra a</p><p>democracia ocidental. Suas finalidades são aumentar a conscientização sobre</p><p>o fenômeno do Lawfare, facilitar a resposta à má utilização do direito inter-</p><p>nacional, identificar ameaças por meio do Lawfare, entre outras.</p><p>Para a ONG “The Lawfare Project” essa é a compreensão sobre o sig-</p><p>nificado do Lawfare, em tradução livre:</p><p>Lawfare significa o uso da lei como uma arma de guerra.</p><p>Denota o abuso de leis e sistemas judiciais ocidentais para alcançar</p><p>fins estratégicos militares ou políticos.</p><p>Lawfare é inerentemente negativo. Não é uma coisa boa. É o oposto</p><p>de buscar justiça. É usar processos frívolos e abusar de processos</p><p>legais para intimidar e frustrar os oponentes no teatro de guerra.</p><p>Lawfare é o novo campo de batalha legal.</p><p>Lawfare. Law and Military Interventions: Preserving Humanitarian Values in</p><p>21 st Conflicts. Conferência proferida no evento Humanitarian Challenges in Military</p><p>Intervention Conference, Kennedy School os Government, Washington D.C., 29 nov 2001.</p><p>Disponível em <http://people.duke.edu/~pfeaver/dunlap.pdf>. Acessado em 06 mai 2017)</p><p>3ª definição: Lawfare é “a estratégia do uso – ou não uso – do Direito como substituto dos</p><p>meios militares tradicionais para alcançar um objetivo de combate de guerra.” (DUNLAP</p><p>JR., Charles J. Lawfare Today... and Tomorrow. Op. cit.).</p><p>35 DUNLAP. Lawfare. Law and Military Interventions. Op. cit.</p><p>36 Um exemplo dado por Dunlap é a criminalização do financiamento de grupos terroristas como</p><p>o Talibã, como forma de dar proteção legal contra ataques terroristas e contribuir para segurança</p><p>nacional dos Estados Unidos (DUNLAP JR., Charles J. Does Lawfare need an apologia?.</p><p>Conferência apresentada a Case Western University School of Law. Em 10 set 2010. Disponível</p><p>em < https://poseidon01.ssrn.com/delivery.php?ID=2361261261001220900300311230800</p><p>7112603904106907700006 00660910850971031131100051030950580000570470610230600</p><p>9803110406708600312405607308201107408009309509012108403109807305407912406811</p><p>1115000092080103066072088008110093123020027101010082065087006085081089&EX-</p><p>T=pdf>. Acessado em 06 mai 2017.)</p><p>36</p><p>(...)</p><p>Os proponentes da Lawfare manipulam as leis internacionais e</p><p>nacionais de direitos humanos para realizar outros fins que não</p><p>(ou contrários) àqueles para os quais eles foram originalmente</p><p>promulgados. Por exemplo, a sufocação da liberdade de expressão.37</p><p>Kittrie, todavia, rejeita a concepção negativa e, embora reconheça que</p><p>alguns, mas não todos, os usos do Lawfare possam ser pejorativos, prefere um</p><p>conceito neutro, na esteira de Dunlap.</p><p>Para Kittrie, para que uma ação seja qualificada como Lawfare deve</p><p>passar por dois testes: (1) o autor da ação deve usar o Direito para criar os</p><p>mesmos ou similares efeitos àqueles tradicionalmente buscados pela guerra</p><p>militar convencional e (2) a motivação do autor da ação deve ser enfraquecer</p><p>ou destruir um adversário contra o qual o Lawfare esta sendo manejado38.</p><p>Não é difícil conceber que, da mesma forma que o Direito pode ser</p><p>usado como arma de guerra cinética39 militar tradicional, é possível verificar</p><p>seu uso prático em batalhas políticas internas entre grupos políticos entre</p><p>Estados soberanos ou no âmbito interno aos Estados40.</p><p>Essa finalidade estratégica foi inclusive identificada pela ONG “The</p><p>Lawfare Project” ao afirmar que o Lawfare “denota o abuso de leis e sistemas</p><p>judiciais ocidentais para alcançar fins estratégicos militares ou políticos”, in-</p><p>troduzindo expressamente a opção política ao final de sua concepção.</p><p>As disputas por espaços de poder, antes restritas à arena política, espe-</p><p>cialmente no âmbito do parlamento, se expandem a cada dia mais para a</p><p>arena jurídica, com embates no plano judicial, não apenas pelo o acesso dos</p><p>políticos e partidos ao Judiciário com demandas sobre questões que estão até</p><p>mesmo no dia a dia da vida parlamentar, como é o caso da discussão sobre a</p><p>legalidade ou constitucionalidade de tramitações de projetos de lei ainda em</p><p>discussão no Congresso Nacional, mas também com a incidência da justiça</p><p>penal sobre agentes políticos, afetando diretamente as questões políticas.</p><p>37 O que é Lawfare? Disponível em < http://thelawfareproject.org/lawfare/what-is-lawfa-</p><p>re-1/>. Acessado em 06 mai 2017.</p><p>38 KITTRIE. p. 8. Importa dizer que o autor reconhece que a intenção do autor da ação,</p><p>embora seja particularmente difícil de discernir, é normalmente uma elementar típica de</p><p>um crime no direito interno dos países e o autor opta por adotá-la como um elemento de</p><p>identificação de uma ação para que possa ser qualificada como Lawfare.</p><p>39 Termo constantemente usado por Kittrie (op. cit., p. 11 entre outras).</p><p>40 O advogado Cristiano Zanin afirmou em entrevista que “Lawfare é uma palavra inglesa</p><p>que representa o uso indevido</p><p>dos recursos jurídicos para fins de perseguição política”</p><p>(ZANIN, Cristiano. Lawfare. Entrevistador: Brenno Tardelli. 17 de novembro de 2016.</p><p>Disponível em http://justificando.cartacapital.com.br/2016/11/17/lawfare-represen-</p><p>ta-o-uso-indevido-dos-recursos-juridicos-para-fins-de-perseguicao-politica/. Acessado</p><p>24 de maio de 2017), no entanto este não é o significado literal, tampouco o significado</p><p>que originalmente lhe atribuiu Dunlap. De outro lado, mesmo a compreensão política de</p><p>Lawfare não se vincula necessariamente a uma perseguição, como será exposto a seguir.</p><p>37</p><p>Assim, inspirado na abordagem de Kittrie, podemos indicar dois testes</p><p>para identificar se uma ação41 jurídica pode ser qualificada como Lawfare</p><p>político: (1) o autor (seja uma pessoa ou um grupo político) da ação deve usar</p><p>o Direito para criar os mesmos ou similares efeitos àqueles tradicionalmente</p><p>buscados pela ações políticas e (2) a motivação do autor da ação ou de pessoas</p><p>ou grupos políticos que utilizam a ação deve ser enfraquecer ou destruir um</p><p>adversário político contra o qual o Lawfare está sendo manejado.</p><p>Importa ressaltar que o segundo teste, que diz respeito à motivação, não</p><p>está restrito à análise da motivação do autor da ação, mas alternativamente à</p><p>análise da pessoa ou grupo político que se vale da ação para fins políticos de</p><p>enfraquecimento ou destruição de um adversário, ainda que a ação jurídica</p><p>tenha sido manejada por seu autor com motivação jurídica.</p><p>Far-se-á uma análise das formas de Lawfare político, a partir da apre-</p><p>sentação das tipologias e usos de instrumentos legais apresentados por Kittrie.</p><p>1.4 . T ipologia de Lawfare e uso de</p><p>inst rumentos legais do Lawfare pol í t ico</p><p>Segundo Kittrie, existem dois tipos de Lawfare: (1) Lawfare instrumental,</p><p>que é o uso de instrumentos legais para alcançar o mesmo efeito ou similar</p><p>aos efeitos alcançados com a ação cinética militar convencional; (2) Lawfare</p><p>compliance-leverage disparity, concebido para obter um ganho no campo de</p><p>batalha em razão da grande influência que o Direito, especialmente o Direito</p><p>dos conflitos armados, e o efeito que seus processos têm nos adversários42.</p><p>Assim como o primeiro tipo de Lawfare foi o que interessou a Kittrie,</p><p>também para este trabalho interessa o Lawfare instrumental, porém compre-</p><p>endido como o uso de instrumentos legais para alcançar objetivos políticos.</p><p>Para Kittrie, o Lawfare instrumental pode ser executado por meio de uso</p><p>de instrumentos legais nos âmbitos internacionais, nacionais e subnacionais43.</p><p>41 Para desambiguar a expressão, deve se frisar que o termo “ação” não está sendo utilizada no</p><p>sentido técnico processual como sinônimo de “ação judicial”, mas no sentido de qualquer</p><p>ação ou atividade juridicamente fundamentada.</p><p>42 Um dos exemplos, que por sinal já foi dado quando se fez menção a recentes exemplos</p><p>de lawfare, mas que aqui se repete apenas para deixar claro, foi a atitude do Talibã de situar</p><p>bases militares próximas a escolas, hospitais, templos, para acusar os Estados Unidos de violar</p><p>a legislação de guerra armada pelo ataque a alvos civis (KITTRIE. op. cit., p. 17).</p><p>43 Kittrie (op. cit., p. 12 a 17) classifica o uso dos instrumentos legais nos fóruns internacionais,</p><p>nacionais e subnacionais.</p><p>No âmbito internacional, Kittrie apresenta os seguintes instrumentos: (1) criação de novas</p><p>leis internacionais desenhadas para causar desvantagem a um adversário; (2) reinterpretação</p><p>da legislação internacional existente também em prejuízo de um adversário; (3) geração de</p><p>persecuções criminais em tribunais penais internacionais; (4) uso do direito internacional</p><p>para gerar uma incômoda e prolongada investigação por organizações internacionais; (5)</p><p>geração de votos de organizações internacionais para causar prejuízo a um adversário; (6)</p><p>geração de opiniões de juristas sobre direito internacional em fóruns internacionais.</p><p>38</p><p>Neste trabalho será exposto o que se entende por instrumentos legais de Lawfare</p><p>político, como estratégia44 de embate entre grupos políticos internamente aos Es-</p><p>tados soberanos, o que, por consequência, será compreendido no âmbito nacional.</p><p>De antemão importa frisar que em todos os casos há, como de resto já foi</p><p>observado, forte influência da agenda de interesses da mídia hegemônica. São esses os</p><p>principais instrumentos de Lawfare político, seguidos de exemplos que os ilustrem:</p><p>a) Iniciativa de criação de novas leis que permitam a redução</p><p>de garantias no âmbito das persecuções penais</p><p>As propostas de lei que permitam a redução de garantias no âmbito</p><p>da persecução penal não necessariamente têm a finalidade de criar efeitos</p><p>similares às ações políticas, mas permitem sua utilização prática exatamente</p><p>por não conferir uma proteção ao cidadão pelas garantias constitucionais.</p><p>Por exemplo, o Ministério Público Federal, em agressiva campanha de</p><p>marketing que envolvia órgãos de comunicação poderosos como o jornal “O</p><p>Globo” e a “Rádio CBN”45, ambos das organizações Globo, angariou mais</p><p>Instrumentos legais do direito internacional nos fóruns nacionais: (1) uso do direito internacional</p><p>como fundamento para persecução por “jurisdição universal” de oficiais de terceiros países em</p><p>cortes nacionais por alegados crimes de guerra; (2) uso de direito internacional como fundamento</p><p>para persecução de empresas nacionais em cortes nacionais por alegados crimes de guerra; (3)</p><p>uso do direito internacional como defesa para persecuções criminais em corte nacionais.</p><p>Instrumentos legais nacionais nos fóruns nacionais: (1) criação de novas leis nacionais con-</p><p>cebidas para colocar fornecedores estrangeiros de produtos estratégicos perante a escolha</p><p>entre o mercado interno e o mercado do adversário; (2) criação de novas leis nacionais que</p><p>permitam processos contra grupos terroristas, seus financiadores e seus Estados responsáveis;</p><p>(3) outras ações da legislatura além de criar novas leis; (4) persecução governamental cri-</p><p>minal nacional de organizações que financiam atividades terroristas; (5) cumprimento de</p><p>ações governamentais criminais ou civis contra bancos que proveem serviços financeiros</p><p>para Estados trapaceiros ou grupos terroristas; (6) permissão de processos nacionais; (7)</p><p>processos civis contra Estados terroristas responsáveis por atos terroristas contra a civilização;</p><p>(8) processos civis contra Estados terroristas responsáveis pela morte de pessoas que estão à</p><p>serviço; (9) processos civis contra organizações e indivíduos que financiam grupos terroristas</p><p>responsáveis por atos terroristas; (10) processos civis contra bancos que proveem serviços</p><p>financeiros a grupos terroristas responsáveis por atos terroristas; (11) processos civis tendo</p><p>por alvo empresas multinacionais por suas atividades em países diversos; (12) organizações</p><p>não governamentais “classificando e difamando” empresas por ir contra o Direito nacional.</p><p>Instrumentos legais subnacionais nos fóruns subnacionais: (1) legislação subnacional; (2) execução</p><p>de ações de apagamento (de empresas) subnacional; (3) execução de ações civis subnacionais</p><p>contra bancos que proveem serviços financeiros para Estados trapaceiro ou grupos terroristas.</p><p>44 Importante compreensão do processo penal a partir da Teoria dos Jogos é apresentada por</p><p>Alexandre Morais da Rosa (ROSA, Alexandre Morais da. Teoria dos Jogos e Processo Penal:</p><p>a short introduction. 3ª edição. Florianópolis: EMais, 2018, p. 99) para quem estratégia e</p><p>tática são conceitos diversos que precisam ser compreendidos. A estratégia é o caminho</p><p>escolhido pelo jogador para alcançar seus objetivos, ao passo que tática é(são) a(s) ação(ões)</p><p>que cada jogador faz no decorrer da partida visando cumprir sua estratégia. Diante desta</p><p>importante compreensão, não é difícil situar Lawfare político como uma estratégia, ao passo</p><p>que as ações praticadas pelos adversários políticos como táticas.</p><p>45 LISTA de apoiadores por categoria. Disponível em http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/</p><p>campanha/apoiadores/apoiadores/Lista-de-Apoiamento-por-Categoria.pdf.</p><p>Acessado em</p><p>13 de maio de 2017.</p><p>39</p><p>de dois milhões de assinaturas para proposta de lei de iniciativa popular que</p><p>chamou de “10 medidas contra a corrupção”. Todavia, o essencial embate de</p><p>natureza política que subjazia à iniciativa do Ministério Público Federal ficou</p><p>evidente com a discussão das medidas na câmara dos deputados.</p><p>O pacote de muito mais do que dez medidas não se prestavam ne-</p><p>cessariamente a combater a corrupção, pois presumiam a desonestidade do</p><p>investigado e afastavam suas garantias individuais46.</p><p>Diversas medidas constantes da proposta criavam mecanismos de eli-</p><p>minação de direitos fundamentais, como: a simulação de situações, sem o</p><p>conhecimento do agente público ou empregado, com o objetivo de testar sua</p><p>conduta moral e predisposição para cometer crimes contra a administração</p><p>pública, criando um absurdo cadastro de possíveis corruptos; outra hipótese</p><p>violadora da presunção de inocência era a possibilidade de prisão preventiva</p><p>para assegurar a devolução do dinheiro, andando na contramão das medidas</p><p>democráticas de substituição da prisão por medidas cautelares não prisionais</p><p>para assegurar resultados que interessem ao processo; ainda, como exemplo,</p><p>a criação de um sistema de nulidades que privilegiaria a validação de atos</p><p>violadores da Constituição e da lei.</p><p>Entretanto as medidas foram alteradas nas discussões ocorridas na Câmara</p><p>dos Deputados, após o debate na comissão especialmente constituída para</p><p>este fim e votação no plenário da casa do Congresso.</p><p>Em sentido diverso do proposto, a Câmara aprovou algumas das medidas</p><p>originalmente apresentadas na proposta e, ainda, uma outra muito diversa,</p><p>que previa a punição de magistrados e membros do ministério público por</p><p>abuso de autoridade.</p><p>Essa mudança implementada pelo Congresso deu o verdadeiro tom de</p><p>disputa política institucional que envolvia a proposta das “dez medidas”. De um</p><p>lado, o Ministério Público propondo mudanças na legislação penal e processual</p><p>penal e com isso assumindo institucionalmente um poder político maior em de-</p><p>trimento das garantias fundamentais e, do outro, o congresso nacional aprovando</p><p>uma medida que controla o poder do Ministério Público e dos magistrados. Tal</p><p>cisão termina por escancarar a disputa entre instituições vinculadas à atividade</p><p>judiciária (magistratura e Ministério Público) e o Legislativo.</p><p>Além desse exemplo, é possível apontar outras medidas que foram</p><p>efetivamente criadas no âmbito do parlamento, como o que ocorreu com a</p><p>criação da Lei nº 12.850/201, que especialmente em relação às Organizações</p><p>Criminosas, criou ou ampliou métodos investigativos vulneradores de garantias</p><p>fundamentais com a previsão de meios de investigação de prova, dos quais o</p><p>mais relevante no atual cenário nacional é a colaboração premiada. A impor-</p><p>tação desta estrutura de acordo e barganha usualmente utilizado no modelo</p><p>46 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. MPF: as dez medidas contra a corrupção são</p><p>só ousadas. Boletim IBCCRIM. vol. 277, dez 2015.</p><p>40</p><p>de justiça penal norteamericano47 terminou por alterar consideravelmente</p><p>a perspectiva do processo penal brasileiro para uma justiça penal negociada.</p><p>Isso, cumulado com a próxima estratégia que será exposta, impulsionou uma</p><p>atuação política dos órgãos de persecução criminal.</p><p>b) Iniciativa de criação de novas leis com a tipificação aberta</p><p>que permita a adequação de condutas com finalidade de</p><p>coibição de ações políticas tidas como criminosas ou que</p><p>invertam o ônus probatório</p><p>A Lei nº 12.850/2013 criou o tipo penal de organização criminosa. Sua</p><p>configuração é de tal forma aberta que não há qualquer dificuldade em adequar</p><p>situações comezinhas a tal conceito legal de organização criminosa. Isso se veri-</p><p>fica ao constatar que a colaboração premiada só deveria ser aplicada aos casos de</p><p>organização criminosa e vem sendo utilizada largamente, diante da maleabilidade</p><p>conceitual típica que antecede sua admissão como meio de investigação de prova.</p><p>Assim, de forma quiçá inusitada, a aplicação da colaboração premiada na</p><p>prática vem envolvendo o enquadramento sobretudo de agremiações, partidos</p><p>ou coligações políticas no conceito de “organização criminosa”, alavancando</p><p>o uso político – ou ao menos permitindo-o – dos conceitos e instrumentos</p><p>jurídicos de “organização criminosa” e “colaboração premiada”.</p><p>Outro exemplo de tipificação aberta está entre as anteriormente men-</p><p>cionadas medidas propostas pelo Ministério Público (chamadas dez medidas</p><p>contra a corrupção), mais especificamente aquela que tipifica a conduta de</p><p>enriquecimento ilícito.</p><p>A questão que se coloca é que essa atividade legislativa não tem por</p><p>finalidade coibir uma conduta que já não estivesse tipificada, mas utilizar</p><p>uma nova tipificação para inverter o ônus da prova quanto ao crime de cor-</p><p>rupção passiva, fato esse que é expressamente reconhecido pelo Ministério</p><p>Público Federal ao afirmar que a iniciativa decorre da “dificuldade de provar</p><p>a corrupção”, garantindo que “o agente não fique impune quando não for</p><p>possível descobrir ou comprovar quais foram os atos específicos de corrupção</p><p>praticados”. Trata-se de um tipo que representa uma inversão do ônus da prova</p><p>em relação à corrupção e ignora a presunção de inocência pois desconsidera</p><p>a possibilidade de que o aumento patrimonial tenha decorrido de atividades</p><p>lícitas não demonstradas, criminalizadas por inversão do ônus probatório.</p><p>Embora não se possa analisar os efeitos práticos dessa medida, que</p><p>não foi aprovada, é possível verificar a possibilidade de sua utilização para</p><p>47 Por esta ocasião, faz-se oportuno ressaltar que a importação deste instituto típico da estrutura</p><p>processual penal norteamericana que é a colaboração premiada se operou sem o devido</p><p>cuidado de adequação à estrutura processual normativa brasileira. À luz dos direitos e garantias</p><p>fundamentais consagrados pelo direito brasileiro, tal modalidade de meio de investigação</p><p>de prova reputa-se excessivamente vulnerador e incompatível com o ordenamento vigente,</p><p>dirigindo-se apenas aos anseios persecutórios por celeridade.</p><p>41</p><p>criminalizar o agente político como “corrupto”, desde que detenha um</p><p>patrimônio que, embora declarado ao fisco, não esteja justificado pelos seus</p><p>ganhos com a atividade política exercida.</p><p>c) Jurisdicionalização de discussões outrora essencialmente</p><p>reservadas ao campo político</p><p>Há certas atividades que embora sejam tradicionalmente reservadas ao</p><p>âmbito de discussão político, vêm sendo jurisdicionalizadas. Um claro exemplo</p><p>são as discussões a respeito da criação de leis no âmbito do parlamento, que</p><p>sempre foram matérias essencialmente políticas, mas estão sendo submetidas</p><p>à apreciação dos tribunais.</p><p>Um caso claro de jurisdicionalização de questões essencialmente políticas</p><p>é a medida cautelar em mandado de segurança nº 34.530, em que o Deputado</p><p>Federal Eduardo Bolsonaro questionou a validade do processo legislativo pelo</p><p>qual tramitou o projeto de lei nº 4850/2016.</p><p>O Ministro Luiz Fux concedeu a medida liminar e determinou que o</p><p>projeto de lei nº 4850/2016 retornasse do Senado à Câmara dos Deputados e</p><p>fosse autuado como projeto de iniciativa popular, sob o argumento de que o</p><p>projeto não poderia ter sido autuado como de iniciativa de parlamentares, já</p><p>que obteve mais de dois milhões de assinaturas de cidadãos brasileiros e, por</p><p>isso mesmo, não poderia receber emendas ao seu texto para não desfigurá-lo</p><p>como de iniciativa popular48.</p><p>Não se pode, no âmbito desse trabalho, como previamente dito, ignorar a</p><p>existência de outra questão de suma importância: a adesão ao texto aprovado</p><p>da matéria que criminaliza o abuso de autoridade de magistrados e mem-</p><p>bros do ministério público, o que, de acordo com a decisão, era matéria cuja</p><p>iniciativa é reservada ao Supremo Tribunal Federal. Isso desvela uma disputa</p><p>política entre o Parlamento e o Judiciário.</p><p>De outro lado, fica claro que o STF decidiu a respeito de processo legis-</p><p>lativo parlamentar, exatamente o oposto do que declarou o então Presidente</p><p>da Câmara dos Deputados quando em 2015 afirmou publicamente que o</p><p>“STF não interfere em processo legislativo”49, por ocasião de sua manobra ao</p><p>colocar em votação no dia 01 de julho de 2015 a Emenda Constitucional que</p><p>visava reduzir a maioridade penal e, ao perder a votação, colocou na pauta no</p><p>dia 02 de julho de 2015, dia seguinte, novo projeto com a mesma finalidade.</p><p>48 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Mandado de Segurança nº</p><p>34.530. relator Ministro Luiz Fux. Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/liminar-fux-</p><p>-dez-medidas-corrupcao.pdf. Acessado em 13 de maio de 2017.</p><p>49 PITELLA JÚNIOR, João. STF não interfere no processo legialativo, diz Eduardo Cunha.</p><p>Agência Câmara Notícias. 03 de julho de 2015. Disponível em http://www2.camara.leg.</p><p>br/camaranoticias/noticias/POLITICA/491620-STF-NAO-INTERFERE-NO-PRO-</p><p>CESSO-LEGISLATIVO,-DIZ-EDUARDO-CUNHA.html. Acessado em 14 mai 2017.</p><p>42</p><p>De fato, mais de cem deputados impetraram o mandado de segurança nº</p><p>33.697, mas naquela ocasião a liminar foi negada pelo Ministro Celso de Mello50,</p><p>diversamente do que aconteceu com o mandado de segurança nº 34.530, cuja</p><p>liminar foi concedida pelo Ministro Luiz Fux. Essa situação ambígua pode</p><p>desvelar uma motivação de disputa política por poder e controle de poder.</p><p>d) Reinterpretação criativa de leis existentes reduzindo a im-</p><p>portância dos direitos humanos e fundamentais</p><p>É possível verificar que leis processuais já existentes há muito tempo e</p><p>que conferiam alguma proteção a direitos fundamentais até mesmo antes da</p><p>nova ordem constitucional de 1988, foram reinterpretadas de forma criativa,</p><p>ou seja, com a criação de regras não constantes da lei escrita, como é o caso</p><p>da condução coercitiva.</p><p>A condução coercitiva é medida utilizável em três casos: (1) de acordo</p><p>com o art. 260 do CPP, caso o acusado não atenda à intimação para interro-</p><p>gatório ou reconhecimento de pessoa, poderá ser conduzido à presença da</p><p>autoridade; (2) se a testemunha regularmente intimada não comparecer poderá</p><p>ser conduzida pela autoridade policial por determinação judicial, conforme</p><p>art. 218 e §1º do art. 461, ambos do CPP; (3) o perito regularmente intima-</p><p>do que não comparecer ao ato, poderá ser conduzido por determinação da</p><p>autoridade judicial, conforme art. 278 do CPP.</p><p>O primeiro caso, em se tratando de intimação para interrogatório, parece</p><p>claro, não resiste à uma leitura do art. 5º, inciso LXIII, da Constituição e do</p><p>art. 8, número 2, alínea g da Convenção Americana de Direitos Humanos. Na</p><p>primeira edição deste livro, apenas afirmamos a impossibilidade de adequação</p><p>constitucional desta prática. Agora, na segunda edição, o STF reconheceu a</p><p>inconstitucionalidade da condução coercitiva no dia 14 de junho de 2018</p><p>por 6 votos a 5 quando do julgamento das ADPFs 395 e 44451.</p><p>Todavia, em qualquer cenário, mesmo no primeiro em uma interpre-</p><p>tação meramente literal da lei, os requisitos para que seja cabível a condução</p><p>coercitiva seriam a intimação regular do acusado, testemunha ou perito e seu</p><p>não comparecimento injustificado.</p><p>O que vinha acontecendo no âmbito da operação Lava Jato foi o uso</p><p>indiscriminado da condução coercitiva. Como se pode verificar pelo próprio</p><p>sítio na rede mundial de computadores criado pelo Ministério Público Federal</p><p>50 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Mandado de Segurança nº 33.697.</p><p>relator Minsitro Gilmar Mendes. relator da liminar em medida cautelar Ministro Celso</p><p>de Mello. Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/liminar-celso-mello-maioridade.pdf.</p><p>Acessado em 14 de maio de 2017.</p><p>51 Agora resta a preocupação sobre a possibilidade de utilização da prisão temporária como</p><p>sucedâneo da condução coercitiva no cenário de espetacularização do processo penal e</p><p>recrudescimento das táticas de redução de direitos.</p><p>43</p><p>para divulgar a operação52, até o momento em que este trabalho foi redigido</p><p>foram executadas 207 conduções coercitivas, das quais de maior repercussão</p><p>foi a condução do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.</p><p>Inobstante se possa afirmar que a decisão que determinou a condução</p><p>coercitiva do ex-Presidente não tinha conteúdo político, porquanto apesar de</p><p>criativa (no sentido de criar regras diversas daquelas expressas na lei), uma vez que</p><p>foi determinada sem que o mesmo tivesse sido previamente intimado para o ato,</p><p>atendeu ao mesmo critério que o juiz utilizou para autorizar as demais 206, há</p><p>um dado que coloca em xeque sua independência do contexto político-midiático.</p><p>É que, sob o argumento de que impedir as filmagens e sua utilização</p><p>seria um ato de censura, o juiz Sérgio Moro, afirmou que não autorizou a</p><p>revista Veja e à produção do filme “Polícia Federal – a lei é para todos” que</p><p>filmassem a condução coercitiva, mas também não impediu sua divulgação.</p><p>A questão que se coloca é como produtores de um filme e um órgão</p><p>de imprensa tinham conhecimento prévio de uma ação de natureza sigilosa?</p><p>Há uma conjunção de fatores convergindo para o uso político do Direito,</p><p>senão por aqueles que praticam a ação, ao menos a ação possibilita o uso seu</p><p>político por outros agentes.</p><p>e) Instaurações de persecuções criminais para alcançar obje-</p><p>tivos políticos</p><p>A estratégia de instaurar persecuções penais para fins de perseguição</p><p>pessoal não é nova, mas aqui estamos tratando não de uma perseguição pessoal,</p><p>e sim de um ato de controle político.</p><p>Foi o que aconteceu, por exemplo, quando o então governador do Rio</p><p>de Janeiro, Sergio Cabral, para conter as grandes manifestações populares de</p><p>junho de 2013, se utilizou do sistema penal para afastar garantias ao arrepio</p><p>das regras constitucionais.</p><p>Após protestos realizados no Leblon, bairro onde morava o então governador,</p><p>Sérgio Cabral convocou uma reunião de emergência com a “cúpula da segurança”</p><p>do Estado53 e no dia seguinte editou o Decreto no 44.302 de 19 de julho de 2013.</p><p>O Decreto evidencia claramente o desejo de manipular o sistema penal</p><p>contra as vozes de protesto político que ecoavam das ruas ao utilizar no pre-</p><p>âmbulo que o ato se dirigia aos “grupos organizados” que perpetraram “atos</p><p>de vandalismo”. Para tanto criou uma “Comissão Especial de Investigação</p><p>de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas – CEIV”, composta pelo</p><p>52 A Lava Jato em números. Disponível em http://lavajato.mpf.mp.br/atuacao-na-1a-instancia/</p><p>resultados/a-lava-jato-em-numeros. Acessado em 23 de maio de 2017.</p><p>53 Após quebra-quebra no Leblon, Cabral convoca reunião de emergência com cúpula de</p><p>segurança. R7. 18 de julho de 2013. Disponível em http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/</p><p>apos-quebra-quebra-no-leblon-cabral-convoca-reuniao-de-emergencia-com-cupula-de-</p><p>-seguranca-18072013. Acessado em 23 de maio de 2017.</p><p>44</p><p>Ministério Público, pela Secretaria de Segurança Pública, pela Polícia Civil</p><p>e pela Polícia Militar (nenhuma participação dos setores da sociedade que se</p><p>manifestava nas ruas), com poderes inclusive de quebrar sigilos que a Cons-</p><p>tituição Federal considera invioláveis.</p><p>O referido Decreto vilipendiou os direitos fundamentais, afastou as</p><p>garantias constitucionais e atribuiu a esta Comissão poderes de, sem ordem</p><p>judicial e com prioridade, obter diretamente das Operadoras de Telefonia,</p><p>informações para investigar os atos de “vandalismo”, com claro objetivo de</p><p>conter as manifestações políticas que então o assolavam.</p><p>f) Divulgações de persecuções criminais com a afetação de</p><p>imagens pessoais para alcançar objetivos políticos</p><p>Naturalmente a imprensa tem uma agenda de cobertura de eventos re-</p><p>lacionados ao Direito que não é de hoje. Basta ver que as páginas de notícias</p><p>policiais sempre ocuparam os tabloides de notícias. No entanto, é possível</p><p>observar que as notícias sobre processos judiciais e ações policiais passaram a</p><p>ter uma importante função política.</p><p>Pior do que a atuação da imprensa, agentes que antes não tinham uma</p><p>função política (ao menos não macropolítica) passam a exercer atividades que</p><p>excedem a função que lhes é legalmente atribuída e atuam como agentes</p><p>políticos,</p><p>com consequências práticas de suas atuações não convencionais.</p><p>Dois exemplos podem ser dados sobre essa situação.</p><p>A primeira é a famosa apresentação pública em Powerpoint feita em</p><p>entrevista coletiva concedida em um hotel de Curitiba em setembro de</p><p>2016 por Deltan Dallagnol, um dos Procuradores da República integrantes</p><p>da Força-Tarefa do Ministério Público Federal que atua investigando e acu-</p><p>sando nos processos da “operação Lava Jato” e responsável por denunciar o</p><p>ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.</p><p>A apresentação, consistia na exposição de um círculo ao centro do slide</p><p>com a palavra “Lula” em caixa alta e mais 14 círculos o rodeando e para ele</p><p>apontando, indicando ser ele o vértice de um esquema de corrupção. Todavia,</p><p>além da evidente exposição pública de um caso que deveria ser apenas uma</p><p>acusação em sede judicial, expunha entre os 14 círculos que apontavam para</p><p>“Lula” diversas expressões com conotação política como “poder de decisão”,</p><p>“governabilidade corrompida” e “perpetuação criminosa no poder”, deno-</p><p>tando uma confusão entre a atuação jurídica e a perspectiva política.</p><p>Embora os procuradores neguem a atuação política, Teori Zavascki, então</p><p>Ministro do STF e relator dos processos da “Operação Lava Jato” naquele</p><p>órgão, ao negar a Reclamação da defesa do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da</p><p>Silva para afastar o Juiz Sérgio Moro do exercício da jurisdição dos processos</p><p>envolvendo o ex-Presidente porque havia dito em determinada decisão que</p><p>ele era suspeito de ser o “arquiteto do esquema criminoso que vitimou a</p><p>45</p><p>Petrobras”, afirmou que a exposição em entrevista coletiva concedida pelos</p><p>Procuradores da força tarefa colocando o “(...) presidente Lula como líder da</p><p>organização criminosa, dando a impressão sim, de que se estaria investigando</p><p>essa organização criminosa, mas o objeto da denúncia não foi nada disso” e</p><p>arrematou “essa espetacularização do episódio não é compatível nem com o</p><p>objeto da denúncia, nem com a seriedade que se exige (...)”54.</p><p>Se afigura muito claro que, além de não condizer com a função do</p><p>Ministério Público no processo penal uma exposição pública da acusação, o</p><p>que poderia denotar apenas um excessivo culto ao próprio ego e não uma</p><p>atuação política, a utilização da técnica de centralizar a exposição na pessoa</p><p>do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva com expressões excessivamente</p><p>políticas que não tinham reconhecidamente relação com o objeto da denún-</p><p>cia, permitem concluir ter havido uma atuação política dos Procuradores da</p><p>República que participaram da entrevista à imprensa.</p><p>O outro caso em que a divulgação de atos processuais pode estar re-</p><p>lacionada a objetivos políticos foi a publicização pelo Juiz Sergio Moro das</p><p>conversas entre o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a então Presidente</p><p>Dilma Rousseff, gravada no âmbito de um monitoramento telefônico legal-</p><p>mente autorizado pelo próprio magistrado.</p><p>O assunto é muito complexo e mereceu tratamento por estudo específico</p><p>mais aprofundado, como se verá a seguir, mas é perfeitamente possível verificar</p><p>que o Juiz Sergio Moro divulgou as conversas travadas entre o ex-Presidente</p><p>e a então Presidente ao argumento de que assim propiciaria “a ampla defesa</p><p>e a publicidade”55, mesmo sabendo que estaria decidindo a respeito de uma</p><p>autoridade que naquele momento estava submetida à jurisdição do STF.</p><p>De outro lado, naquele exato dia o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da</p><p>Silva estava assumindo o cargo de Chefe da Casa Civil do governo de Dilma</p><p>Rousseff e com a divulgação daquelas conversas sua nomeação foi sustada</p><p>por decisão do Ministro Gilmar Mendes em sede de decisão liminar em de-</p><p>corrência de dois mandados de segurança impetrados pelo Partido Popular</p><p>Socialista e pelo Partido da Social Democracia Brasileira que se fundaram</p><p>exatamente no conteúdo das conversas divulgadas56.</p><p>54 MASCARENHAS, Gabriel. STF nega recurso de Lula e Teori critica ‘espetacularização’ na</p><p>Lava Jato. Folha de São Paulo (on line). 04 de outubro de 2016. Disponível em http://</p><p>www1.folha.uol.com.br/poder/2016/10/1819758-stf-nega-recurso-de-lula-e-teori-cri-</p><p>tica-espetacularizacao-na-lava-jato.shtml. Acessado em 23 de maio de 2017.</p><p>55 BRASIL. 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba. Pedido de quebra de sigilo de dados e/ou</p><p>telefônica nº 5006205-98.2016.4.04.7000/PR. Juiz Sergio Moro. Disponível em http://s.</p><p>conjur.com.br/dl/decisao-levantamento-sigilo.pdf. Acessado em 23 de maio de 2017.</p><p>56 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Mandado de Segurança nº</p><p>34.070. relator Ministro Gilmar Mendes. Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/gil-</p><p>mar-suspende-lula-casa-civil.pdf. Acessados em 23 de maio 2017 e BRASIL. Supremo</p><p>Tribunal Federal. Medida Cautelar em Mandado de Segurança nº 34.071. relator Ministro</p><p>46</p><p>Portanto, ainda que se admita que o juiz Sergio Moro não agiu com finali-</p><p>dade política, decerto permitiu a utilização da ação jurídica com finalidade política</p><p>por grupos políticos de matiz diverso da pessoa que estava sendo investigada.</p><p>1.5 . Conclusão</p><p>O problema que se propôs a resolver neste capítulo, quanto à possi-</p><p>bilidade da utilização do processo penal como instrumento de condução</p><p>política, conforme se verificou pelo desenvolvimento do trabalho, não apenas</p><p>merece resposta positiva, mas inclusive os problemas secundários se mostram</p><p>ocorrentes, ou seja, é isso que vem se operando no Brasil, onde a agenda</p><p>político-midiática vem afetando as ações jurídicas.</p><p>Essa análise pode ser feita a partir da teoria norte americana do Lawfare,</p><p>que analisa a utilização prática do Direito como uma arma de guerra.</p><p>Enunciado por Charles Dunlap em 2001, Lawfare define-se como “a</p><p>estratégia do uso – ou não uso – do Direito como um substitutivo dos meios</p><p>militares tradicionais para atingir um objetivo de combate de guerra”.</p><p>As disputas por espaços de poder, antes restritas à arena política, especial-</p><p>mente no âmbito do parlamento, se expandem a cada dia mais para a arena</p><p>jurídica, o que permite compreender que o Direito vem sendo utilizado</p><p>como um instrumento de embate político.</p><p>Dois testes para aferição do Lawfare político são: (1) o autor (seja uma</p><p>pessoa ou um grupo político) da ação deve usar o Direito para criar os mesmos</p><p>ou similares efeitos àqueles tradicionalmente buscados pelas ações políticas</p><p>e (2) a motivação do autor da ação ou de pessoas ou grupos políticos que</p><p>a utilizam deve ser enfraquecer ou destruir um adversário político contra o</p><p>qual o Lawfare esta sendo manejado.</p><p>Segundo Kittrie, há dois tipos de Lawfare: (1) Lawfare instrumental,</p><p>que é o uso de instrumentos legais para alcançar o mesmo efeito ou similar</p><p>aos efeitos alcançados com a ação cinética militar convencional; (2) Lawfare</p><p>compliance-leverage disparity, concebido para obter um ganho no campo de</p><p>batalha em razão da grande influência que o Direito -especialmente o Direito</p><p>dos conflitos armados - e o efeito de seus processos têm sobre os adversários.</p><p>No âmbito do Lawfare instrumental, é importante identificar alguns ins-</p><p>trumentos legais que são usados para alcançar objetivos políticos: (a) Iniciativa</p><p>de criação de novas leis que permitam a redução de garantias no âmbito das</p><p>persecuções penais; (b) Iniciativa de criação de novas leis com a tipificação</p><p>aberta que permita a adequação de condutas com finalidade de coibição de</p><p>ações políticas tidas como criminosas ou que invertam o ônus probatório; (c)</p><p>Jurisdicionalização de discussões outrora essencialmente reservadas ao campo</p><p>Gilmar Mendes. http://s.conjur.com.br/dl/medida-cautelar-mandado-seguranca-34071.</p><p>pdf. Acessados em 23 de maio 2017.</p><p>47</p><p>político; (d) Reinterpretação criativa de leis existentes reduzindo a impor-</p><p>tância dos direitos humanos e fundamentais; (e) Instaurações de persecuções</p><p>criminais para alcançar objetivos políticos; (f) Divulgações de persecuções</p><p>criminais com a afetação de imagens pessoais para alcançar objetivos políticos.</p><p>Esse manejar bélico dos instrumentos judiciais acaba por mascarar, total</p><p>ou parcialmente,</p><p>a prática de ataques políticos, recobertos por um véu de</p><p>legalidade estrita. Neste contexto, a manipulação do ideário social se opera</p><p>de modo mais sutil e propicia uma maior proteção ao(s) autor(es) frente às</p><p>críticas do indivíduo ou grupo alvo das táticas de Lawfare político.</p><p>Ao aliar o uso político do ordenamento e maquinário jurídico à agenda</p><p>panfletária midiática, o Lawfare político prova-se uma poderosa arma, sendo</p><p>possível afirmar que tal recurso vem sendo empregado no cenário brasileiro</p><p>de maneira sistemática, como bem demonstram os (quase) monotemáticos</p><p>editoriais e publicações jornalísticas, centrados no eixo persecução/proces-</p><p>samento de figuras políticas.</p><p>O que se propõe a partir de então é verificar se o impeachment de 2016</p><p>e a Operação Lava podem ser caracterizados como partes fundamentais de</p><p>uma estratégia de Lawfare instrumental a partir da análise de uma técnico-</p><p>-processual penal.</p><p>49</p><p>2</p><p>2.1. Os maxiprocessos de Luig i Ferra jo l i e</p><p>sua re lação com o Lawfare Pol í t ico</p><p>Luigi Ferrajoli jamais usou a expressão “lawfare” ou fez qualquer refe-</p><p>rência a estudos sobre esse tema, mas é possível identificar aquilo que ele57</p><p>chama de subsistema penal de exceção como um dos apontados instrumentos</p><p>de Lawfare político caracterizado como “instauração de persecuções criminais</p><p>para alcançar objetivos políticos”.</p><p>Em outras palavras, há uma identidade entre os fundamentos da inter-</p><p>venção punitiva no subsistema de penal de exceção trabalhado por Ferrajoli e</p><p>os fundamentos da intervenção punitiva usada como instrumento de Lawfare:</p><p>os objetivos políticos. O que confere legitimidade à punição não é mais a</p><p>razão “jurídica, mas imediatamente política”58</p><p>Nesse contexto, o que Ferrajoli chamou de “razão de Estado” se sobre-</p><p>põe à “razão jurídica” e não existe mais jurisdição, mas “arbítrio policialesco,</p><p>repressão política”59, incompatível com o Estado de direito. Entre as mais</p><p>relevantes alterações no modelo clássico de legalidade penal nos processos de</p><p>emergência60 estão o que ele denominou de maxiprocessos61.</p><p>57 Esclareça-se que Luigi Ferrajoli não trata do Lawfare, expressão inexistente na sua obra, mas</p><p>a relação que aqui se estabelece decorre da identificação pelo professor italiano da utilização</p><p>política do sistema penal, tal como se apresentam algumas estratégias de Lawfare politico.</p><p>58 Op. cit., p. 747.</p><p>59 Idem, p. 751.</p><p>60 Idem, p. 758 e ss.</p><p>61 A expressão maxiprocessos é extraída de FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do</p><p>Garantismo Penal. 4ª edição. São Paulo: RT, 2014, p. 760 e ss. que o situa em uma espécie de</p><p>direito penal especial ou de exceção. O termo também pode ser encontrada em ALFONSO,</p><p>Roberto; CENTONE, Alessandro (a cura di). Fenomenologia del maxiprocesso: venti</p><p>anni di esperienze. Milão: Giuffreé, 2011. Tratando como “megajustiça” confira-se PRATES,</p><p>2. MAXIPROCESSOS E</p><p>DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL:</p><p>a Operação Lava Ja to e a pecu l i a r</p><p>p remon ição v o lun tá r i a</p><p>50</p><p>Assim, com inspiração nas lições de Ferrajoli, é possível traçar as mais</p><p>importantes características dos maxiprocessos: (1) cobertura midiática massiva;</p><p>(2) o gigantismo processual62; (3) a confusão processual; (4) a mutação subs-</p><p>tancial do modelo clássico de legalidade penal; (5) o incremento da utilização</p><p>dos meios investigação ou obtenção de prova.</p><p>A primeira característica, denominada (1) “cobertura midiática massi-</p><p>va” dos maxiprocessos, diversamente do que ocorre com o processo penal</p><p>tradicional, não utiliza o discurso do medo63, que termina por apresentar</p><p>implicações especialmente na segurança pública, mas se vale do discurso da</p><p>impunidade64 e gera três consequências básicas: (i) espetaculariza os eventos</p><p>originados de investigações e processos criminais65, (ii) confere publicidade</p><p>opressiva aos julgamentos criminais interferindo no direito ao um processo</p><p>justo66 e (iii) determina a agenda dos órgãos atuantes na justiça criminal67.</p><p>A segunda característica dos maxiprocessos, o (2) “gigantismo processu-</p><p>al”, pode ser (i) horizontal (gigantismo processual horizontal), caracterizado</p><p>pela abertura de “megainvestigações contra centenas de imputados, mediante</p><p>prisões baseadas em frágeis indícios como primeiros e prejudiciais atos de</p><p>instrução”68; (ii) vertical (gigantismo processual vertical), que se verifica pela</p><p>multiplicação de imputações realizadas sobre as mesmas pessoas, com delitos</p><p>associativos gerando imputações específicas e vice-versa, circularmente; (iii)</p><p>temporal (gigantismo processual temporal), com processos que se arrastam</p><p>por anos acompanhados do cumprimento de penas por meio de prisões pre-</p><p>ventivas ou afastamento de direitos fundamentais69 por categorias processuais</p><p>antes do efetivo julgamento.</p><p>Fernanda. Práticas de interceptação e os riscos do modelo de “megajustiça”. In: SANTORO,</p><p>Antonio Eduardo Ramires; MADURO, Flávio Mirza (org.). Interceptação Telefônica: os</p><p>20 anos da Lei nº 9.296/96. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.</p><p>62 Expressão cunhada por FERRAJOLI. Op. cit., p. 760.</p><p>63 Cf. BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:</p><p>Revan, 2009.</p><p>64 Que também é um discurso a serviço do processo penal tradicional. A esse respeito cf.</p><p>GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da impunidade à impunização: o sistema penal</p><p>do capitalism brasileiro e a destruição da democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2015.</p><p>65 Cf. CASARA, Rubens. Processo Penal do Espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a</p><p>dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Curitiba: Emporio do Direito, 2016.</p><p>66 Cf. SCHREIBER. Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio</p><p>de Janeiro: Renovar, 2008.</p><p>67 Cf. MCCOMBS, Maxwell. A Teoria da Agenda: a mídia e a opinião pública. Tradução</p><p>Jacques A Weinberg. Petrópolis: Vozes, 2009.</p><p>68 FERRAJOLI. Op. cit., p. 760/761.</p><p>69 FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Traduçao</p><p>Alexandre Salim, Alfredo Copetti Neto, Daniela Cademartori, Hermes Zaneti Júnior, Sérgio</p><p>Cademartori. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 89 e ss.</p><p>51</p><p>A terceira característica, denominada (3) “confusão processual” se apre-</p><p>senta de forma subjetiva (confusão processual subjetiva) e/ou objetiva (con-</p><p>fusão processual objetiva).</p><p>A confusão processual subjetiva se caracteriza quando a polícia exerce</p><p>funções tipicamente judiciais70 ou quando o juiz exerce funções policialescas,</p><p>tal como a atribuição de tarefas e instrumentos investigativos aos julgadores,</p><p>como, por exemplo, quando a lei brasileira (art. 1º da Lei nº 9.296/96) atri-</p><p>bui ao juiz poderes para determinar uma interceptação telefônica de ofício.</p><p>Tendo em vista a “natural parcialidade da polícia em relação à imparcialidade</p><p>institucional do juiz”71, a confusão subjetiva coloca em xeque um axioma</p><p>básico do processo penal justo, que é a imparcialidade72.</p><p>A confusão processual objetiva é característica atribuível aos maxiproces-</p><p>sos. É uma confusão entre processos supostamente diversos ou entre processos e</p><p>investigações, que terminam por tratar de temas ou fatos parcialmente ou quase</p><p>integralmente idênticos, gerando novas investigações a partir de processos criminais.</p><p>Essa característica da confusão processual objetiva entre investigações</p><p>e processos implica na potencialização da confusão processual subjetiva, não</p><p>apenas porque os magistrados exercem funções tipicamente investigativas, mas</p><p>porque o fazem em um processo para instruir outra(s) investigação(ões) que</p><p>o terão como julgador em razão da regra da prevenção positiva73.</p><p>Apontada como mais importante alteração das técnicas punitivas ca-</p><p>racterísticas dos maxiprocessos por Ferrajoli, a característica chamada de (4)</p><p>“mutação substancial do modelo clássico de legalidade penal” consiste na</p><p>utilização do ‘paradigma do inimigo’74, o que exprime uma personalização</p><p>do sistema penal. Em outras palavras, um direito penal do réu e não do crime.</p><p>A utilização de figuras típicas associativas (como a Organização Crimi-</p><p>nosa definida pela</p>

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