Prévia do material em texto
<p>AULA 3</p><p>FUNÇÕES</p><p>NEUROPSICOLÓGICAS</p><p>COGNITIVAS – COGNIÇÃO E</p><p>APRENDIZAGEM</p><p>Profª Michele Müller</p><p>2</p><p>TEMA 1 – INTRODUÇÃO À MEMÓRIA</p><p>O desenvolvimento cognitivo depende da memória, e não existe memória</p><p>sem atenção. O inverso também é verdade: sem a memória, que nos ajuda a</p><p>fazer associações e construir significado às informações que recebemos, não</p><p>conseguimos sustentar a atenção. São duas habilidades, portanto,</p><p>interdependentes, que estão na base da cognição humana.</p><p>Nesta e nas próximas aulas, você entenderá um pouco mais sobre como</p><p>funciona o sistema de armazenagem do cérebro humano.</p><p>Quando falamos de memória, não nos referimos à capacidade de</p><p>memorizar eventos ou um determinado conteúdo. O ganho de habilidades</p><p>motoras — como andar e se equilibrar em uma bicicleta —, o reconhecimento</p><p>das pessoas, lembranças de episódios da vida, tudo depende da nossa</p><p>capacidade de guardar e reconstituir as informações. Portanto, existem diversos</p><p>tipos de memórias, que envolvem diferentes processos mentais e regiões do</p><p>cérebro.</p><p>As nossas percepções, conforme explicamos na aula sobre os sentidos,</p><p>são influenciadas pelas predições que o cérebro faz o tempo todo. Muito do que</p><p>sentimos é moldado por aquilo que esperamos sentir, com base em experiências</p><p>anteriores. A memória, portanto, influencia os sentimentos e o comportamento,</p><p>e está no fundamento da nossa identidade. Somos a somatória das nossas</p><p>experiências, daquelas que estão registradas em algum lugar do nosso cérebro.</p><p>Podemos dizer em algum lugar, pois apesar do papel importante do hipocampo</p><p>na memória, esta não é a única estrutura responsável por guardar as</p><p>informações, conforme veremos mais tarde.</p><p>A compreensão de alguns processos na formação da memória é</p><p>fundamental para repensarmos a forma como aprendemos e como ensinamos.</p><p>A educação formal, por exemplo, baseia-se em fatos equivocados acerca de</p><p>como a memória funciona. Ela superestima a capacidade de memorização de</p><p>fatos e informações que o sistema emocional das crianças considera irrelevante,</p><p>e não leva em conta o fato de que nosso cérebro não foi projetado para</p><p>armazenar uma quantidade grande de informações — especialmente se nossas</p><p>emoções não estão envolvidas para sinalizar a relevância do conteúdo.</p><p>Conforme coloca o neurocientista Rodrigo Quiroga, em seu livro The Forgetting</p><p>Machine (2017):</p><p>3</p><p>Nós não lembramos de quase nada. A ideia de que lembramos de</p><p>muitos detalhes e sutilezas das nossas experiências, como se</p><p>estivéssemos vendo um filme do nosso passado, não é nada além de</p><p>ilusão, de uma construção do cérebro. E esse talvez seja o maior</p><p>segredo do estudo da memória: a verdade surpreendente que, a partir</p><p>de pouquíssimas informações, o cérebro cria uma realidade e um</p><p>passado que nos faz quem somos, apesar do fato que este mesmo</p><p>passado, essa coleção de memórias, é extremamente evasivo; apesar</p><p>do fato de o mero ato de trazer uma memória à nossa consciência</p><p>inevitavelmente a transforma; apesar do fato de que aquilo o que está</p><p>por trás da minha consciência de um ser (self) único e imutável, que</p><p>me faz quem eu sou, estar em constante transformação.</p><p>O cérebro humano, conforme ressalta Quiroga (2017), foi projetado para</p><p>compreender, dar sentido às informações pouco nítidas que guardamos. Ele</p><p>defende que em vez de focar a memorização de conteúdo, que certamente será</p><p>esquecido, um sistema de ensino baseado em como o cérebro humano funciona</p><p>deveria direcionar a educação a práticas que trabalham compreensão e</p><p>pensamento crítico.</p><p>E para dar sentido às informações, detalhes geralmente são dispensáveis.</p><p>Sabe aquelas figuras que vêm com partes faltando para que as crianças</p><p>completem-na mentalmente e adivinhem o que está representado? O cérebro</p><p>funciona dessa forma, tanto com relação às percepções como com relação à</p><p>memória. As informações e estímulos não precisam estar “mastigadas”. Bastam</p><p>algumas pistas e o restante o cérebro infere, faz suposições, quase sempre</p><p>corretas. Veja o caso da visão: o campo em que nosso sistema visual enxerga</p><p>em foco, por exemplo, é muito pequeno, do tamanho de uma moeda. Mas nossa</p><p>percepção nos entrega um cenário completo – seja sem ou com óculos –</p><p>inteiramente em foco. Quase tudo é reconstituição feita pelo cérebro.</p><p>A memória funciona de acordo com o mesmo princípio: bastam algumas</p><p>pistas e o resto é construído. As informações são guardadas na forma de</p><p>conceitos. Os mesmos neurônios serão ativados se você olhar um cachorro da</p><p>raça beagle ou pastor alemão, de frente, de cima, de porte grande, preto ou</p><p>branco. Pesquisas recentes mostram que tais neurônios são ativados até mesmo</p><p>quando ouvimos ou quando lemos a palavra cachorro, por exemplo — o que</p><p>significa que são multimodais.</p><p>O que está guardado é o conceito de cachorro, não os detalhes. E esses</p><p>conceitos são sempre reconstruídos cada vez que precisamos acessá-los. Se a</p><p>memória fosse um filme, cada vez que fosse assistido seria diferente. As cenas</p><p>seriam pouco nítidas, os cenários bastante variáveis, a ordem, os diálogos e até</p><p>as sensações que eles evocam mudariam a cada vez, dependendo de</p><p>4</p><p>acontecimentos e informações recentes e de como se sente o diretor no dia em</p><p>que o filme está passando.</p><p>A memória, portanto, reconstitui as cenas cada vez em que é acionada.</p><p>E, por isso, não pode ser considerada muito confiável. Muitas das suposições</p><p>que o cérebro faz, por mais que pareçam nítidas, não refletem a realidade. Tanto</p><p>é que é possível, conforme apontaram alguns estudos, implantar memórias</p><p>falsas nas pessoas. Muito daquilo que recordamos da nossa infância pode</p><p>também ser resultado de memórias criadas a partir de fotografias, histórias ou</p><p>da imaginação infantil.</p><p>TEMA 2 – TIPOS DE MEMÓRIA</p><p>Quando falamos em memória, as pessoas geralmente pensam em cenas</p><p>de uma experiência do passado ou em fatos que precisaram “decorar” para uma</p><p>finalidade acadêmica ou de trabalho. Na verdade, esses dois exemplos</p><p>envolvem processos diferentes e não são os únicos tipos de memória que temos.</p><p>Nesta aula, você aprenderá sobre as diferentes formas de</p><p>armazenamento que o nosso cérebro apresenta. Veremos o que significam</p><p>memória preocedural, memória declarativa, memória semântica, memória</p><p>episódica e memória de longo e curto prazo.</p><p>Há dois tipos básicos de memória, que se subdividem em outros: a</p><p>declarativa e a procedural.</p><p>2.1 Memória procedural</p><p>A procedural é considerada uma memória implícita, aquela que não</p><p>precisa ser conscientemente acionada quando utilizada. É ela que permite que</p><p>façamos automaticamente grande parte das tarefas, especialmente as motoras.</p><p>Por exemplo, quando você aprendeu a dirigir e a andar de bicicleta, essas</p><p>atividades não eram nada automáticas e precisaram de um bom tempo de prática</p><p>e de movimentos conscientes. Depois de muita repetição, a aprendizagem ficou</p><p>registrada de tal forma que hoje essas tarefas são feitas sem que você,</p><p>conscientemente, acesse a memória para lembrar como se faz.</p><p>Tudo aquilo o que podemos dizer que fazemos “sem pensar”, de forma</p><p>automática, é permitido pela memória implícita. Imagine se um tenista precisasse</p><p>avaliar, conscientemente, quais os melhores movimentos antes de bater na bola,</p><p>5</p><p>ou se um músico precisasse se lembrar das lições cada vez que escolhe uma</p><p>nota. Graças à memória implícita, podemos ficar tão bons em algo que temos</p><p>dificuldade para parar e pensar em como o estamos fazendo.</p><p>2.2 Memória declarativa</p><p>Enquanto a memória procedural está mais relacionada com o sistema</p><p>motor, a memória declarativa envolve o conhecimento de acontecimentos, fatos</p><p>e informações. Quando você lista os meses do ano, escreve seu endereço ou</p><p>conta a história de um filme a alguém, está utilizando memória declarativa que,</p><p>por sua vez, subdivide-se em dois outros tipos: a episódica e a semântica.</p><p>Conheça as diferenças:</p><p> Memória semântica: está relacionada a todos os fatos e conceitos que</p><p>precisamos memorizar, sem necessariamente estarmos envolvidos neles.</p><p>Basicamente tudo o que você teve que memorizar na escola e o que você</p><p>está aprendendo agora envolve sua memória semântica.</p><p> Memória episódica: como o nome sugere, envolve episódios, ou seja,</p><p>experiências em que você é o protagonista. É a memória da subjetividade</p><p>— daquilo o que você viu, sentiu e fez. Quando você lembra como se</p><p>sentiu e o que pensou quando alguém lhe disse algo, está usando a</p><p>memória episódica. Ela também ajuda, com base em situações já</p><p>vivenciadas, a projetar situações futuras e imaginar como seriam tais</p><p>experiências.</p><p>Assim, podemos dizer que a memória episódica é aquela que somente</p><p>você tem. É considerada uma memória mais recente na linha evolutiva e também</p><p>a mais vulnerável a disfunções neurológicas, ou seja, em algumas condições</p><p>que afetam a memória, é esse o primeiro sistema a ser prejudicado.</p><p>Há evidências de que a memória episódica é desenvolvida mais tarde e</p><p>de que a partir dos 18 meses de idade as crianças começam a ganhar a</p><p>capacidade de se imaginar como participantes de alguma lembrança, mas</p><p>apenas a partir dos três ou quatro anos essa lembrança é mais perceptível. Por</p><p>isso não temos lembranças do período inicial da nossa vida. A memória</p><p>episódica também nos é dificultada pelo fato de crianças pequenas ainda não</p><p>terem desenvolvido noção de tempo.</p><p>6</p><p>2.3 Onde estão guardadas as memórias?</p><p>Relacionar os sistemas de memória a determinadas partes do cérebro é</p><p>um grande desafio para a ciência. Sabemos que o hipocampo é crucial tanto</p><p>para a formação de novas memórias quanto para sua consolidação. Várias</p><p>pesquisas mostram que o hipocampo é fundamental para a memória episódica,</p><p>mas está longe de ser a única estrutura envolvida. O hipocampo trabalha em</p><p>conjunto com os sistemas de processamento sensorial em todo o neocórtex. O</p><p>reconhecimento de imagens ou de faces envolve o córtex visual. Já memória</p><p>semântica está distribuída por diversas áreas corticais e subcorticais, ou seja,</p><p>não está localizada em nenhuma região específica do cérebro.</p><p>Além desses tipos de memória, costumamos nos referir às memórias</p><p>consolidadas como de longo prazo. São aquelas que tiveram suas conexões</p><p>fortalecidas por um envolvimento emocional ou pela repetição. A memória ainda</p><p>não consolidada pode ser considerada de curto prazo (como aquela que</p><p>utilizamos quando estudamos informações para responder a uma prova no dia</p><p>seguinte, mas que depois esquecemos) ou memória de trabalho. Sobre essa</p><p>última, que nos permite manter informações na mente para que sejam</p><p>manipuladas, falaremos no módulo sobre funções executivas.</p><p>Figura 1 – O sistema límbico</p><p>Crédito: joshya/Shutterstock.</p><p>7</p><p>TEMA 3 – A CONSTRUÇÃO DAS MEMÓRIAS</p><p>Nesta aula, veremos que a formação de memória depende de alguns</p><p>processos cognitivos e biológicos. Ao conhecê-los, podemos ajudar nosso</p><p>cérebro a guardar melhor as informações importantes. Nesta aula, veremos que</p><p>alguns elementos são cruciais para a formação de memórias, portanto, para que</p><p>ocorra a aprendizagem: associação, atenção, emoção — fatores dos quais</p><p>falaremos na sequência — repetição e sono.</p><p>Alguns desses tópicos serão apresentados nas próximas aulas. Agora</p><p>vamos falar da importância do sono e da associação.</p><p>3.1 A memória e o sono</p><p>A privação do sono produz déficit na ativação do hipocampo no processo</p><p>de formação de novas memórias. Durante alguns estágios do sono, as conexões</p><p>relacionadas àquilo que foi aprendido e envolveu atenção, emoção ou repetição</p><p>são reforçadas, ao mesmo tempo em que é feita uma espécie de limpeza de toda</p><p>a informação irrelevante processada durante o dia.</p><p>Isso vale também para habilidades que envolvem o sistema motor, como</p><p>a prática de esporte ou de um instrumento musical. Os movimentos praticados</p><p>no dia anterior são repassados enquanto dormimos, numa exercício inconsciente</p><p>que reforça as sinapses e ajuda na consolidação da memória. Em estudos com</p><p>ratos, foi verificado que, durante o ciclo de ondas lentas do sono — aquele que</p><p>conhecemos como sono profundo —, habilidades aprendidas durante o dia são</p><p>ensaiadas repetidamente (Wilson; McNaughton, 1994).</p><p>De acordo com Wilson e McNaughton (1994), esse replay mental das</p><p>experiências é fundamental para o fortalecimento das conexões sinápticas e,</p><p>dessa forma, para que a aprendizagem se consolide. Em seu livro The Secret</p><p>World of Sleep (O Mundo Secreto do Sono, em tradução livre), a neurocientista</p><p>e pesquisadora na área do sono Penelope Lewis (2013) revela que as</p><p>habilidades motoras tendem a se aprimorar em até 20% enquanto dormimos.</p><p>Conforme vimos nas aulas anteriores, o cérebro foi projetado para</p><p>trabalhar com poucas informações e muitas suposições. Para que essas poucas</p><p>informações juntem-se a outras para construir sentido ou para criar novas</p><p>associações inteligentes precisam se livrar dos dados irrelevantes, mantendo a</p><p>8</p><p>capacidade de armazenamento. O esquecimento, portanto, é um processo</p><p>fundamental para as funções cognitivas.</p><p>O sono também cumpre um importante papel nesse processo de</p><p>esquecimento, que podemos chamar de limpeza de informações sem</p><p>importância. Para que o cérebro não fique saturado de conexões fracas</p><p>referentes a estímulos irrelevantes que foram processados durante o dia,</p><p>enquanto dormimos é realizada essa faxina, durante o estágio do sono de ondas</p><p>lentas.</p><p>3.2 A associação</p><p>Toda a memória, assim como a aprendizagem, funciona por associação.</p><p>Lembre-se de que neurônios que se ativam ao mesmo tempo se conectam. Para</p><p>uma informação ser retida, ela precisa se relacionar com algum conhecimento</p><p>prévio já consolidado.</p><p>Pense no seguinte exemplo: você se depara com caracteres em uma</p><p>língua que não conhece, como árabe ou mandarim. Não entende a mensagem,</p><p>mas repara nos símbolos e os acha interessantes. Qual a chance de você se</p><p>lembrar dos símbolos no dia seguinte, ou mesmo de saber identificá-los entre</p><p>outros semelhantes? Como eles não faziam nenhum sentido para você, seu</p><p>cérebro não se dá o trabalho de armazená-los. A única chance de conseguir</p><p>reproduzir ou mesmo identificar aqueles símbolos seria a seguinte: você olha</p><p>atentamente os traços e faz associações conscientes, como “parece uma</p><p>carinha feliz, seguida por um jota espelhado com uma sujeirinha no meio”.</p><p>Mesmo sem entender a mensagem, seu cérebro associou os símbolos a outros</p><p>símbolos e isso fez com que posteriormente se lembrasse de como eram. Se</p><p>você associa a sequência de símbolos a elementos que constituem uma história,</p><p>a chance de se lembrar deles depois é ainda maior.</p><p>Os conceitos que memorizamos, portanto, nunca estão isolados. A</p><p>memória funciona como uma rede, com um elemento necessariamente</p><p>relacionado a vários outros. Veja o que acontece quando encontra um</p><p>conhecido: você vai imediatamente lembrar de onde você o conhece e fazer</p><p>associações desse rosto a algum ambiente, atividade, amigos em comum,</p><p>acontecimentos marcantes, emoções que ele desperta, outros rostos parecidos</p><p>com aquele e inúmeras outras informações que o seu cérebro relacionou àquela</p><p>9</p><p>pessoa. Essas associações formam uma espécie de mapa neural de um</p><p>determinado conhecimento que conseguiu trilhar seu caminho até nosso sistema</p><p>de armazenamento.</p><p>TEMA 4 – A ATENÇÃO SEGUNDO LURIA</p><p>De acordo com William James, em The Principles of Psychology (1981),</p><p>Todos sabem o que é atenção. É quando a mente toma posse, de</p><p>forma clara e vívida, de uma dentre tantas simultâneas possibilidades</p><p>de assuntos ou direções do pensamento. A focalização, concentração</p><p>e consciência estão na sua essência. Implica na retirada de</p><p>informações para que se possa lidar com outras de forma eficaz.</p><p>Sim, todos sabemos o que é atenção; no entanto, defini-la não é tarefa</p><p>tão fácil assim. E controlá-la é ainda mais difícil</p><p>— especialmente na era das</p><p>distrações em que estamos vivendo. Nesta e na próxima aula, você aprenderá</p><p>sobre a mais fundamental e também uma das mais vulneráveis das nossas</p><p>funções cognitivas: a atenção.</p><p>Quando você chega a um ambiente novo, olha rapidamente ao redor e</p><p>tem uma impressão geral do espaço, da luminosidade, da quantidade de</p><p>pessoas. Mas a maior parte das informações que chegam aos seus sentidos,</p><p>enquanto está naquele ambiente, sua consciência deixa escapar.</p><p>O tempo inteiro em que está acordado, você processa apenas uma parte</p><p>dos estímulos e o restante ignora. Em uma conversa, para que compreenda o</p><p>que o outro fala, você precisa filtrar o som, ignorando todo o barulho de fundo.</p><p>Se não tivesse a habilidade de ignorar os estímulos, ficaria tão saturado que não</p><p>conseguiria organizar adequadamente todas as informações. Não haveria</p><p>aprendizagem alguma. Só conseguimos aprender e memorizar o que</p><p>aprendemos porque temos a capacidade de selecionar o estímulo ao qual iremos</p><p>direcionar a atenção.</p><p>Para o neurologista russo Alexander Luria, considerado o pai da</p><p>neuropsicologia, a atenção permite a função mais importante da cognição,</p><p>que é a organização dos estímulos, e, como consequência, das próprias ações</p><p>e reações de forma adequada. A atenção é, portanto, a mais fundamental função</p><p>cognitiva, que está na base de qualquer aprendizagem.</p><p>Já nas primeiras semanas de vida, bebês já têm a habilidade de voltar a</p><p>atenção a determinados estímulos que, segundo Luria (1930), ajudam-nos a</p><p>organizar o comportamento, embora essa organização não se sustente por muito</p><p>10</p><p>tempo. Esse tipo de atenção não arbitrária Luria (1930) chama de reflexo</p><p>instintivo.</p><p>Mais tarde, as demandas sociais começam a fazer surgir um tipo de</p><p>atenção arbitrária, que Luria (1930) chama de civilizada. Trata-se de um</p><p>mecanismo adquirido que desenvolve na criança a habilidade de selecionar e</p><p>direcionar a atenção a estímulos mais fracos, mas socialmente mais relevantes,</p><p>geralmente criados pelo meio social.</p><p>Hoje, na psicologia, esse tipo de atenção ganhou outras nomenclaturas e</p><p>se subdividiu: a capacidade de selecionar estímulos, focalizar e manter o foco é</p><p>chamado de atenção concentrada. Chamamos de atenção sustentada a</p><p>capacidade de sustentar a atenção a atividades repetitivas por um determinado</p><p>período de tempo. Já a alternância de foco de um estímulo para outro — o que</p><p>acontece quando fazemos mais de uma coisa ao mesmo tempo — é chamada</p><p>de atenção alternada.</p><p>Sem a capacidade de controlar a própria atenção e ignorar os estímulos</p><p>irrelevantes, a aprendizagem torna-se impossível. A linguagem, segundo Luria</p><p>(1930), tem papel fundamental na transição da atenção instintiva para a</p><p>civilizada, adquirindo a função de operação cultural.</p><p>TEMA 5 – A ATENÇÃO NO CÉREBRO</p><p>Nesta aula veremos que, assim como acontece com a memória, a atenção</p><p>não é um processo único, ou seja, existe mais de um modo de atenção e todos</p><p>têm seu papel na aprendizagem. Vamos falar também sobre os processos</p><p>mentais envolvidos nessa função, tanto os conhecidos como bottom-up como</p><p>os top-down.</p><p>Luria (1990) dividiu o cérebro em três unidades funcionais, que são, de</p><p>uma forma geral, responsáveis pelas funções de regulação de estados mentais</p><p>básicos, tônus, o sono e a vigília (primeira unidade funcional); processamento</p><p>sensorial e armazenamento (segunda unidade funcional, responsável pela maior</p><p>parte das habilidades adquiridas nos primeiros anos de vida); e autorregulação</p><p>e funções psíquicas superiores (terceira unidade funcional).</p><p>Conforme vimos na aula anterior, Luria (1990) chama de reflexo</p><p>instintivo aquela atenção mais primitiva, que nos faz olhar para a direção de um</p><p>alarme um para um reflexo luminoso que aparece de repente. Trata-se de um</p><p>11</p><p>recurso fundamental para a sobrevivência de qualquer espécie e começa nas</p><p>áreas subcorticais — a primeira unidade funcional — para então se tornar</p><p>consciente. Por isso chamamos esse processo, conduzido pelas sensações, de</p><p>bottom-up. Ele envolve especialmente o hipotálamo, que regula o metabolismo</p><p>fisiológico. Quando dizemos que uma criança está sempre distraída, ela na</p><p>verdade está direcionando sua atenção, de forma instintiva, a estímulos</p><p>irrelevantes e tem dificuldade em manter a atenção que Luria (1990) chama de</p><p>civilizada e hoje conhecemos como concentrada.</p><p>5.1 A atenção concentrada</p><p>Esse outro modo de atenção que conscientemente controlamos para</p><p>realizar tarefas cognitivas superiores, como planejamento e resolução de</p><p>problemas, depende também das áreas corticais (top-bottom), mais</p><p>especificamente o córtex pré-frontal, que corresponde à terceira unidade</p><p>funcional de Luria (1990). Processos top-down são conduzidos pelas</p><p>informações e dependem da nossa capacidade de associar essas novas</p><p>informações às que estão na memória consolidada para dar sentido a elas.</p><p>Quando a atenção ocorre nessa direção, é a cognição que influencia as</p><p>sensações.</p><p>A analogia da atenção com o foco é perfeita — tanto que geralmente</p><p>usamos as duas palavras para dizer a mesma coisa. Quando nos concentramos</p><p>em um único estímulo, é como se jogássemos um foco de luz forte e pontual em</p><p>cada peça de informação, que será associada ao novo conhecimento para que</p><p>ele faça sentido. Esse tipo de atenção trabalha o fortalecimento de conexões,</p><p>sempre dentro de um processo sequencial, lógico, linear.</p><p>Por exemplo, vamos aprender um novo idioma: devemos estar atentos ao</p><p>som, ao sentido da palavra e à estrutura semântica da língua. Para isso, jogamos</p><p>o foco nas palavras que se parecem em som ou significado ou de alguma forma</p><p>se relacionam ao novo vocabulário e nas imagens mentais que podem ser</p><p>associadas a ele. Essas associações que a atenção concentrada permite formar</p><p>estão sempre diretamente relacionadas à nova informação. Quando estamos</p><p>focados em uma tarefa, nosso cérebro emite ondas eletromagnéticas chamadas</p><p>beta.</p><p>5.2 A atenção difusa</p><p>12</p><p>A atenção concentrada não é a única envolvida na aprendizagem. A</p><p>atenção difusa — que envolve processos mentais diferentes e que para muitos</p><p>é considerada distração — também tem seu papel no ganho cognitivo e deve ser</p><p>estimulada por quem está ensinando e buscada por quem está aprendendo.</p><p>Também ocorre de baixo para cima, ou seja, é um processo bottom-up. Mas, ao</p><p>contrário do reflexo instinto, não é guiada por sensações e estímulos externos.</p><p>Esse outro tipo de atenção se assemelha a um foco difuso de luz: mais</p><p>fraco, mas que se dispersa por todo o ambiente. Assim, nesse modo</p><p>conseguimos ter uma visão mais ampla da informação: o pensamento corre mais</p><p>livremente por todo o cérebro, o que nos permite fazer associações menos</p><p>óbvias, conexões mais holísticas entre as informações aprendidas e os</p><p>conhecimentos pré-existentes. Isso explica por que pessoas mais distraídas</p><p>tendem a ser mais criativas, e por que, com frequência, é nos momentos de</p><p>relaxamento que surgem as melhores ideias.</p><p>Esse modo de atenção é também importante quando se aprende algo</p><p>completamente novo, em um primeiro momento difícil de ser relacionado a outro</p><p>conhecimento já consolidado. A atenção difusa entra em cena na aprendizagem</p><p>permitindo uma familiaridade com o conteúdo a ser aprendido, como folhear um</p><p>livro antes de começar a ler, observar alguém fazendo antes de começar a</p><p>aprender, ouvir uma música antes de aprender suas notas.</p><p>O neurocientista Michael Gazzaniga (2008), pioneiro em estudos com</p><p>pacientes que passam por cirugia de desconexão dos hemisférios cerebrais (um</p><p>procedimento chamado split brain, geralmente usado em pessoas com fortes</p><p>crises epilépticas) explica que a atenção envolve os hemisférios de formas</p><p>diferentes. A atenção reflexiva ativa ambos hemisférios de forma independente,</p><p>enquanto a atenção voluntária (top-down) é resultado de uma espécie de jogo</p><p>de cooperação entre os dois lados do cérebro. Enquanto</p><p>o esquerdo fica mais</p><p>no controle, o direito é responsável pela atenção de todo o campo visual.</p><p>Os processos bottom-up são econômicos em energia; já as funções</p><p>corticais (top-down) demandam um alto gasto energético e exigem esforço. É</p><p>muito mais fácil, portanto, deixar a mente vagar sem o controle consciente sobre</p><p>a atenção.</p><p>Por consumir tanta energia, a atenção concentrada, essa que chamamos</p><p>de foco e nos garante a aprendizagem, é um recurso limitado. Ela requer esforço,</p><p>provoca cansaço e tende a ser inconscientemente evitada. Por isso tendemos</p><p>13</p><p>fugir das tarefas que requerem muita concentração e deixar a mente escapar</p><p>quando a atividade requer a sustentação da atenção por muito tempo. O fácil</p><p>acesso a rotas de fuga sedutoras e que não demandam esforço cognitivo, como</p><p>smartphones e redes sociais, torna muito mais difícil o controle da atenção.</p><p>14</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>ALEXANDER L. Katherin de avila salas, 10 ago. 2013. Disponível em:</p><p><https://www.youtube.com/watch?v=-gk0zrs4TbM>. Acesso em: 30 ago. 2018.</p><p>ATENÇÃO. Psychic Minutes, 26 fev. 2016. Disponível em:</p><p><https://www.youtube.com/watch?v=WhL4ntndnrs>. Acesso em: 30 ago. 2018.</p><p>COHEN, R. The Neuropsychology of Attention. Nova York: Springer, 2014.</p><p>GAZZANIGA, M. Human: The Science Behind What Makes Us Unique. Nova</p><p>York: Harper Collins, 2008.</p><p>GAZZANIGA, M. S.; MANGUN, G. R.; IVRY, R. B. (Ed.). Cognitive</p><p>Neuroscience: The Biology of the Mind. Londres: MIT Press, 2014.</p><p>JAMES, W. The Principles of Psychology. Cambridge: Harvard University</p><p>Press, 1981.</p><p>LEWIS, P. A. The Secret World of Sleep: the surprising science of the mind at</p><p>rest. Nova York: St. Martin’s Press, 2013.</p><p>LURIA, A. C. Desenvolvimento cognitivo. São Paulo: Ícone, 1990.</p><p>_____. The Cultural Development of Special Function: Attention. In: LURIA, A.</p><p>R.; VYGOTSKY, L. S. Ape, Primitive Man, and Child: Essays in the History of</p><p>Behaviour. 1930. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/luria/works/</p><p>1930/child/ch08.htm>. Acesso em: 30 ago. 2018.</p><p>QUIROGA, R. Q. The Forgetting Machine. Dallas: BenBella Books, 2017.</p><p>THE BENEFITS of a good night’s sleep – Shai Marcu. Ted-Ed, 5 jan. 2015.</p><p>Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=gedoSfZvBgE>. Acesso</p><p>em: 30 ago. 2018.</p><p>WILSON M. A.; MCNAUGHTON, B. L. Reactivation of hippocampal ensemble</p><p>memories during sleep. Science, v. 265, n. 5172, p. 676–679, 1994. Disponível</p><p>em: <http://science.sciencemag.org/content/265/5172/676>. Acesso em: 30 ago.</p><p>2018.</p>