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Representações Sociais na Psicologia

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<p>4</p><p>Editado em ingl ês por Gerard Duveen</p><p>Traduzido do inglês por Pedrinho A. Guareschi</p><p>© Serge Moscovici and Gerard Duveen 2000</p><p>Título original inglês: Social Representations –</p><p>Explorations in Social Psychology</p><p>Publicado pela primeira vez em 2000 por Polity Press</p><p>em associação com Blackwell Publishers Ltd.</p><p>Direitos de publicação em lingua portuguesa: 2003, Editora Vozes Ltda.</p><p>Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ</p><p>Internet: http://www.vozes.com.br Brasil</p><p>Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá</p><p>ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios</p><p>(eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em</p><p>qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escri ta da Editora.</p><p>Editoração e org literária: Sheila Ferreira Neiva</p><p>ISBN 85.326.2896-6 (edição brasileira) ISBN O-7456-2226-7 (edição inglesa)</p><p>Moscovici, Serge</p><p>Representações sociais: investigações em psicologia social / Serge Moscovici: editado em</p><p>inglês por Gerard Duveen: traduzido do inglês por Pedrinho A. Guareschi. -5ª ed. Petrópo-</p><p>lis, RJ: Vozes, 2007.</p><p>Título original: Social representations: explorations in social psychology Bibliografia</p><p>1. Interação social 2. Interacionismo simbólico 3. Psicologia social</p><p>I. Duveen, Gerard. II. Título. III Título: Investigações em psicologia social.</p><p>O3-3O44 CDD-3O2. 1</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)</p><p>(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)</p><p>índices para catálogo sistemático:</p><p>1. Representações sociais: Psicologia social: Sociologia 3O2. 1</p><p>Este livro foi composto e impresso pel a Editoras Vozes Ltda.</p><p>atenção este material foi scaneado e revisado superficialme n-</p><p>te, pode conter algum erro de transcrição.</p><p>http://www.vozes.com.br/</p><p>5</p><p>SUMÁRIO</p><p>Introdução - O poder das idéias, 7</p><p>1. O fenômeno das representações sociais, 29</p><p>2. Sociedade e teoria em psicologia social, 111</p><p>3. A história e a atualidade das representações sociais, 167</p><p>4. O conceito de themata, 215</p><p>5. Caso Dreyfus, Proust e a psicologia social, 251</p><p>6. Consciência social e sua história, 283</p><p>7. Idéias e seu desenvolvimento - Um diálogo entre Serge</p><p>Moscovici e Ivan Marková, 305</p><p>Referências bibliográficas, 389</p><p>6</p><p>7</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>O poder das idéias</p><p>1. Uma psicologia social do conhecimento</p><p>Imagine-se olhando para um mapa da Europa, sem nenhuma</p><p>indicação nele, com exceção da cidade de Viena, perto do centro, e</p><p>ao norte dela, a cidade de Berlim. Onde você localizaria as cidades</p><p>de Praga e Budapeste? Para a maioria das pessoas que nasceram</p><p>depois da II Guerra Mundial, ambas as cidades pertencem à divi-</p><p>são do Leste da Europa, enquanto Viena pertence ao Oeste e, con-</p><p>seqüentemente, tanto Praga como Budapeste deveriam se lo-</p><p>calizar a Leste de Viena. Mas olhe agora para o mapa da Europa e</p><p>veja a localização real dessas duas cidades. Budapeste, com certe-</p><p>za, está afastada, ao Leste, bem abaixo de Viena, ao longo do Da-</p><p>núbio. Mas Praga está, na verdade, a Oeste de Viena.</p><p>Esse pequeno exemplo ilustra algo do fenômeno das repre-</p><p>sentações sociais. Nossa imagem da geografia da Europa foi re-</p><p>construída em termos da divisão política da Guerra Fria, em que as</p><p>definições ideológicas de Leste e Oeste substituíram as geográfi-</p><p>cas. Podemos também observar, nesse exemplo, como padrões de</p><p>comunicação, nos anos do pós-guerra, influenciaram esse proces-</p><p>so e fixaram uma imagem específica da Europa. E verdade que no</p><p>Oeste houve certo medo e ansiedade do Leste, que antecederam a</p><p>II Grande Guerra e que persistem mesmo até hoje, uma década</p><p>depois da queda do Muro de Berlim e do fim da Guerra Fria. Mas</p><p>essa representação, duma Europa dividida nos anos do pós-guer-</p><p>ra, teve sua influência mais forte no eclipse da velha imagem da</p><p>Mitteleuropa, de uma Europa Central, abarcando as áreas centrais</p><p>do Império Austro-Húngaro, e estendendo-se ao norte, em dire-</p><p>ção a Berlim. Foi essa Europa Central, desmembrada pela Guerra</p><p>Fria, que reposicionou também ideologicamente Praga ao leste da</p><p>Viena “ocidental”. Hoje, a idéia da Mitteleuropa está sendo nova-</p><p>8</p><p>mente discutida, mas talvez o sentido da “ outridade” leste marcou</p><p>a imagem de Praga tão nitidamente, que poderemos necessitar de</p><p>muito tempo antes que esses novos padrões de comunicação re-</p><p>posicionem a cidade novamente a oeste de Viena.</p><p>Esse exemplo, além de ilustrar o papel e a influência da co-</p><p>municação no processo da representação social, ilustra também a</p><p>maneira como as representações se tomam senso comum. Elas en-</p><p>tram para o mundo comum e cotidiano em que nós habitamos e</p><p>discutimos com nossos amigos e colegas e circulam na mídia que</p><p>lemos e olhamos. Em síntese, as representações sustentadas pelas</p><p>influências sociais da comunicação constituem as realidades de</p><p>nossas vidas cotidianas e servem como o principal meio para esta-</p><p>belecer as associações com as quais nós nos ligamos uns aos ou-</p><p>tros.</p><p>Por mais de quatro décadas Serge Moscovici, juntamente com</p><p>seus colegas, fez avançar e desenvolver o estudo das representa-</p><p>ções sociais. Esta coleção reúne alguns dos ensaios principais, ex-</p><p>traídos de um corpo bem maior de trabalho, que apareceu nesses</p><p>anos. Alguns desses ensaios apareceram anteriormente em inglês,</p><p>enquanto outros são traduzidos aqui para o inglês pela primeira</p><p>vez. Juntos, eles ilustram a maneira como Moscovici elaborou e de-</p><p>fendeu a teoria das representações sociais, enquanto na entrevista</p><p>conclusiva com Ivana Marková, ele apresenta os elementos princi-</p><p>pais da história de seu itinerário intelectual. No coração deste proje-</p><p>to esteve a idéia de construção duma psicologia social do conheci-</p><p>mento e é dentro do contexto deste projeto mais vasto que seu tra-</p><p>balho sobre representações sociais deve ser visto.</p><p>Com que, então, uma psicologia social do conhecimento pode</p><p>se parecer? Que espaço ela procurará explorar e quais serão as ca-</p><p>racterísticas-chave desse espaço? O próprio Moscovici apresenta</p><p>este tema da seguinte maneira:</p><p>Há numerosas ciências que estudam a maneira como as pessoas tra-</p><p>tam, distribuem e representam o conhecimento. Mas o e s-</p><p>tudo de como, e por que, as pessoas partilham o conhecimento e des-</p><p>se modo constituem sua realidade comum, de como eles</p><p>transformam idéias em prática - numa palavra, o poder das idéi-</p><p>as - é o problema especifico da psicologia social (Moscovici, 1990a: 169).</p><p>Por conseguinte, da perspectiva da psicologia social, o conhe-</p><p>cimento nunca é uma simples descrição ou uma cópia do estado</p><p>de coisas. Ao contrário, o conhecimento é sempre produzido atra-</p><p>9</p><p>vés da interação e comunicação e sua expressão está sempre liga-</p><p>da aos interesses humanos que estão nele implicados. O conheci-</p><p>mento emerge do mundo onde as pessoas se encontram e intera-</p><p>gem, do mundo onde os interesses humanos, necessidades e de-</p><p>sejos encontram expressão, satisfação ou frustração. Em síntese, o</p><p>conhecimento surge das paixões humanas e, como tal, nunca é</p><p>desinteressado; ao contrario, ele é sempre produto dum grupo es-</p><p>pecifico de pessoas que se encontram em circunstâncias especifi-</p><p>cas, nas quais elas estão engajadas em projetos definidos (cf. Bauer</p><p>& Gaskell, 1999). Uma psicologia social do conhecimento está in-</p><p>teressada nos processos através dos quais o conhecimento é gera-</p><p>do, transformado e projetado no mundo social.</p><p>2. A La recherche des concepts perdus (À procura dos conceitos</p><p>perdidos)</p><p>Moscovici introduziu o conceito de representação social</p><p>em seu estudo pioneiro das maneiras como a psicanálise penetrou</p><p>o pensamento popular na França. Contudo, o trabalho em que esse</p><p>estudo é relatado, la Psicanalyse: Son image et son public, primei-</p><p>ramente publicado na França em 1961 (com uma segunda edição,</p><p>bastante revisada, em 1976), permanece sem tradução para o in-</p><p>glês, uma circunstância que contribuiu para a problemática recep-</p><p>ção da teoria das representações sociais no mundo anglo-saxão. É</p><p>claro que uma</p><p>todos os pre-</p><p>conceitos. Melhor que tentar evitar todas as convenções, uma es-</p><p>36</p><p>tratégia melhor seria descobrir e explicitar uma única representa-</p><p>ção.</p><p>Então, em vez de negar as convenções e preconceitos, esta estra-</p><p>tégia nos possibilitará reconhecer que as representações constitu-</p><p>em, para nós, um tipo de realidade. Procuraremos isolar quais</p><p>representações são inerentes nas pessoas e objetos que nós en-</p><p>contramos e descobrir o que representam exatamente. Entre</p><p>elas estão as cidades em que habitamos, os badulaques que usa-</p><p>mos, os transeuntes nas ruas e mesmo a natureza pura, sem polui-</p><p>ção, que buscamos no campo, ou em nossos jardins.</p><p>Sei que é dada alguma atenção às representações na prática</p><p>de pesquisa atual, na tentativa de descrever mais claramente o</p><p>contexto em que a pessoa é levada a reagir a um estimulo particu-</p><p>lar e a explicar, mais acuradamente, suas respostas subseqüentes.</p><p>Afinal, o laboratório é uma realidade tal que representa uma outra,</p><p>exatamente como a figura de Magritte dentro de um quadro. Ele é</p><p>uma realidade em que é necessário indicar “isso é um estimulo” e</p><p>não simplesmente uma cor ou um som e “isso é um sujeito” e não</p><p>um estudante de direita ou de esquerda que quer ganhar algum</p><p>dinheiro para pagar seus estudos. Mas nós devemos tomar isso em</p><p>consideração em nossa teoria. Por isso, nós devemos levar ao cen-</p><p>tro do palco o que nós procuramos guardar nos bastidores laterais.</p><p>Isso poderia até mesmo ser o que Lewin tinha em mente quando</p><p>escreveu: “A realidade é, para a pessoa, em grande parte, deter-</p><p>minada por aquilo que é socialmente aceito como realidade” (Le-</p><p>win, 1948: 57).</p><p>b) Em segundo lugar, representações são prescritivas, isto é,</p><p>elas se impõem sobre nós com uma força irresistível. Essa força é</p><p>uma combinação de uma estrutura que es tá presente antes</p><p>mesmo que nós comecemos a pensar e de uma tradição que de-</p><p>creta o que deve ser pensado. Uma criança nascida hoje em qual-</p><p>quer país ocidental encontrará a estrutura da psicanálise, por</p><p>exemplo, nos gestos de sua mãe ou de seu médico, na afeição com</p><p>que ela será cercada para ajudá-la através das provas e tribula-</p><p>ções do conflito edípico, nas histórias em quadrinhos cômicas</p><p>que ela lerá, nos textos escolares, nas conversações com os co-</p><p>legas de aula, ou mesmo em uma análise psicanalítica, se tiver de</p><p>recorrer a isso, caso surjam problemas sociais ou educacionais.</p><p>Isso sem falar dos jornais que ela terá, dos discursos políticos que</p><p>37</p><p>terá de ouvir, dos filmes a que assistirá etc. Ela encontrará uma</p><p>resposta já pronta, em um jargão psicanalítico, a todas essas</p><p>questões e para todas as suas ações fracassadas ou bem-</p><p>sucedidas, uma explicação estará pronta, que a levará de volta a</p><p>sua primeira infância, ou a seus desejos sexuais. Nós menciona-</p><p>mos a psicanálise como uma representação. Poderíamos do mes-</p><p>mo modo mencionar a psicologia mecanicista, ou uma psicologia</p><p>que considera o homem como se fosse uma máquina, ou o para-</p><p>digma científico de uma comunidade específica.</p><p>Enquanto essas representações, que são partilhadas por</p><p>tantos, penetram e influenciam a mente de cada um, elas não são</p><p>pensadas por eles; melhor, para sermos mais precisos, elas são re-</p><p>pensadas, re-citadas e re-apresentadas.</p><p>Se alguém exclama: “Ele é um louco”, pára e, então, se corrige</p><p>dizendo: “Não, eu quero dizer que ele é um gênio”, nós imediata-</p><p>mente concluímos que ele cometeu um ato falho freudiano. Mas</p><p>essa conclusão não é resultado de um raciocínio, nem prova de</p><p>que nós temos uma capacidade de raciocínio abstrato, pois nós</p><p>apenas relembramos, sem pensar e sem pensar em nada mais, a</p><p>representação ou definição do que seja um ato falho freudiano. Po-</p><p>demos, na verdade, ter tal capacidade e perguntar-nos por que a</p><p>pessoa em questão usou uma palavra em vez de outra, sem chegar a</p><p>nenhuma resposta. É, pois, fácil ver por que a representação que</p><p>temos de algo não está diretamente relacionada à nossa maneira</p><p>de pensar e, contrariamente, por que nossa maneira de pensar e o</p><p>que pensamos depende de tais representações, isto é, no fato</p><p>de que nós temos, ou não temos, dada representação. Eu quero di-</p><p>zer que elas são impostas sobre nós, transmitidas e são o produto</p><p>de uma seqüência completa de elaborações e mudanças que ocor-</p><p>rem no decurso do tempo e são o resultado de sucessivas g era-</p><p>ções. Todos os sistemas de classificação, todas as imagens e todas</p><p>as descrições que circulam dentro de uma sociedade, mesmo as</p><p>descrições científicas, implicam um elo de prévios sistemas e ima-</p><p>gens, uma estratificação na memória coletiva e uma reprodução</p><p>na linguagem que, invariavelmente, reflete um conhecimento an-</p><p>terior e que quebra as amarras da informação presente.</p><p>A atividade social e intelectual é, afinal, um ensaio, ou recital,</p><p>mas muitos psicólogos sociais a tratam, erradamente, como se ela</p><p>fizesse perder a memória. Nossas experiências e idéias passadas</p><p>não são experiências ou idéias mortas, mas continuam a ser ativas,</p><p>a mudar e a infiltrar nossa experiência e idéias atuais. Sob muitos</p><p>38</p><p>aspectos, o passado é mais real que o presente. O poder e a clari-</p><p>dade peculiares das representações - isto é, das representações</p><p>sociais - deriva do sucesso com que elas controlam a realida de de</p><p>hoje através da de ontem e da continuidade que isso pressupõe.</p><p>De fato, o próprio Jahoda as identificou como propriedades autô-</p><p>nomas que não são “necessariamente identificáveis no pen-</p><p>samento de pessoas particulares” (Jahoda, 1970: 42); uma nota a</p><p>que seu compatriota McDougall identificara e aceitara, meio sécu-</p><p>lo antes, na terminologia de seus dias: “Pensar, com a ajuda de re-</p><p>presentações coletivas, possui suas leis próprias, bem distintas</p><p>das leis da lógica” (McDougall, 192O: 74). Leis que, obviamente,</p><p>modificam as leis da lógica, tanto na prática, como nos resultados.</p><p>À luz da história e da antropologia, podemos afirmar que essas re-</p><p>presentações são entidades sociais, com uma vida própria, comu-</p><p>nicando-se entre elas, opondo-se mutuamente e mudando em</p><p>harmonia com o curso da vida; esvaindo-se, apenas para emergir</p><p>novamente sob novas aparências. Geralmente, em civilizações tão</p><p>divididas e mutáveis como a nossa, elas co-existem e circulam</p><p>através de várias esferas de atividade, onde uma delas terá pre-</p><p>cedência, como resposta à nossa necessidade de certa coerên cia,</p><p>quando nos referimos a pessoas ou coisas. Se ocorrer uma mu-</p><p>dança em sua hierarquia, porém, ou se uma determinada imagem-</p><p>idéia for ameaçada de extinção, todo nosso universo se pre-</p><p>judicará. Um acontecimento recente e os comentários que ele pro-</p><p>vocou podem servir para ilustrar esse ponto.</p><p>A American Psychiatric Association recentemente anunciou</p><p>sua intenção de descartar os termos neurose e neurótico para defi-</p><p>nir desordens especificas. Os comentários de um jornalista sobre</p><p>essa decisão em um artigo intitulado “Goodbye Neurosis” (Inter-</p><p>national Herald Tribune, 11 de set de 1978) são muito signifi-</p><p>cativos:</p><p>Se o dicionário das desordens mentais não mais aceitar o</p><p>termo “neurótico” nós, leigos, somente podemos fazer o mes-</p><p>mo. Consideremos, contudo, a perda cultural: sempre que</p><p>alguém é chamado de “neurótico”, ou “um neurótico” , isso</p><p>envolve um ato implícito de perdão e compreensão: “Oh, Mano</p><p>de tal é apenas um neurótico”, significa “Oh, fulano é excessi-</p><p>vamente nervoso. Ele realmente não quer atirar a louça na</p><p>tua cabeça. É apenas o seu leito” . Ou então “Fulano é apenas</p><p>um neurótico” - signif icando “ele não pode se controlar. Não</p><p>quer dizer que todas às vezes ele vai jogar a louça em sua ca-</p><p>beça”.</p><p>39</p><p>Pelo fato de chamar alguém de neurótico, nós colocamos o</p><p>peso do ajustamento não em alguém, mas sobre nós mes-</p><p>mos. É um tipo de apelo à gentileza, a uma espécie de genero-</p><p>sidade social.</p><p>Seria também assim se os “mentalmente perturbados” atiras-</p><p>sem a louça? Pensamos que não. Desculpar Mano de tal pelo</p><p>fato de citar sua desordem mental - a categoria especif ica</p><p>de sua desordem - é o mesmo que desculpar um carro por fal-</p><p>tar-lhe os freios - ele precisa ser consertado o mais rápido pos-</p><p>sível. O peso do desajustamento será colocado diretamente</p><p>no desajustamento do carro. Não se solicitará compaixão para</p><p>a sociedade em geral e naturalmente nenhuma será espera-</p><p>da.</p><p>Pensemos também na auto-estima do próprio neurótico,</p><p>que foi longamente confortado com o conhecimento que ele</p><p>é “apenas um neurótico” -apenas algumas linhas de segu-</p><p>rança abaixo de um psicótico, mas muitas acima da linha</p><p>normal das pessoas. Um neurótico é um excêntrico tocado</p><p>por Freud. A sociedade lhe concede um lugar honrado, muitas</p><p>vezes louvável. Conceder-se-ia o mesmo lugar para os que</p><p>sofrem de “desordens somáticas” ou “desordens depressi-</p><p>vas mais graves”, ou “desordens dissociativas”? Provavel-</p><p>mente não.</p><p>Tais ganhos culturais e perdas, estão, obviamente, relaciona-</p><p>dos a fragmentos de representações sociais. Uma palavra e a defi-</p><p>nição de dicionário dessa palavra contêm um meio de classificar</p><p>indivíduos e ao mesmo tempo teorias implícitas com respeito à</p><p>sua constituição, ou com respeito às razões de se comportarem de</p><p>uma maneira ou de outra - uma como que imagem física de cada</p><p>pessoa, que corresponde a tais teorias. Uma vez difundido e aceito</p><p>este conteúdo, ele se constitui em uma parte integrante de nós</p><p>mesmos, de nossas inter-relações com outros, de nossa maneira</p><p>de julgá-los e de nos relacionarmos com eles; isso até mesmo define</p><p>nossa posição na hierarquia social e nossos valores. Se a palavra</p><p>“neurose” desaparecesse e fosse substituída pela palavra “de-</p><p>sordem” , tal acontecimento teria conseqüências muito além de</p><p>seu mero significado em uma sentença, ou na psiquiatria. São nos-</p><p>sas inter-relações e nosso pensamento coletivo que estão implica-</p><p>dos nisso e transformados.</p><p>Espero que eu tenha amplamente demonstrado como, por</p><p>um lado, ao se colocar um signo convencional na realidade, e por</p><p>outro lado, ao se prescrever, através da tradição e das estruturas</p><p>41</p><p>40</p><p>imemoriais, o que nós percebemos e imaginamos, essas criaturas</p><p>do pensamento, que são as representações, terminam por se cons-</p><p>tituir em um ambiente real, concreto.</p><p>Através de sua autonomia e das pressões que elas exercem</p><p>(mesmo que nós estejamos perfeitamente conscientes que elas</p><p>não são “nada mais que idéias”), elas são, contudo, como se fossem</p><p>realidades inquestionáveis que nós temos de confrontá-las. O peso</p><p>de sua história, costumes e conteúdo cumulativo nos confronta</p><p>com toda a resistência de um objeto material. Talvez seja uma</p><p>resistência ainda maior, pois o que é invisível é inevitavelmente</p><p>mais difícil de superar do que o que é visível.</p><p>1.3. A era da representação</p><p>Todas as interações humanas, surjam elas entre duas pessoas</p><p>ou entre dois grupos, pressupõem representações. Na realidade, é</p><p>isso que as caracteriza. “O fato central sobre as interações huma-</p><p>nas, escreveu Asch, é que elas são acontecimentos, que elas estão</p><p>psicologicamente representadas em cada um dos participantes”</p><p>(Asch, 1952: 142). Se esse fato é menosprezado, tudo o que sobra</p><p>são trocas, isto é, ações e reações, que são não-específicas e, ainda</p><p>mais, empobrecidas na troca. Sempre e em todo lugar, quando nós</p><p>encontramos pessoas ou coisas e nos familiarizamos com elas, tais</p><p>representações estão presentes. A informação que recebemos,</p><p>e a qual tentamos dar um significado, está sob seu controle e não</p><p>possui outro sentido para nós além do que elas dão a ele.</p><p>Para alargar um pouco o referencial, nós podemos afirmar que</p><p>o que é importante é a natureza da mudança, através da qual as</p><p>representações sociais se tornam capazes de influenciar o com-</p><p>portamento do individuo participante de uma coletividade. É des-</p><p>sa maneira que elas são criadas, internamente, mentalmente, pois</p><p>é dessa maneira que o próprio processo coletivo penetra, como o</p><p>fator determinante, dentro do pensamento individual. Tais repre-</p><p>sentações aparecem, pois, para nós, quase como que objetos ma-</p><p>teriais, pois eles são o produto de nossas ações e comunicações.</p><p>Elas possuem, de fato, uma atividade profissional: Eu estou me re-</p><p>ferindo àqueles pedagogos, ideólogos, popularizadores da ciência</p><p>ou sacerdotes, isto é, os representantes da ciência, culturas ou re-</p><p>ligião, cuja tarefa é criá-las e transmiti-las, muitas vezes, infeliz-</p><p>41</p><p>mente, sem sabê-lo ou querê-lo. Na evolução geral da sociedade,</p><p>essas profissões estão destinadas a se multiplicar e sua tarefa se</p><p>tornará mais sistemática e mais explícita. Em parte, devido a isso e</p><p>em vista de tudo o que isso implica, essa era se tornará conhecida</p><p>como a era da representação, em cada sentido desse termo.</p><p>Isso não subverterá a autonomia das representações em rela-</p><p>ção tanto à consciência do indivíduo, ou à do grupo. Pessoas e</p><p>grupos criam representações no decurso da comunicação e da co-</p><p>operação. Representações, obviamente, não são criadas por um</p><p>individuo isoladamente. Uma vez criadas, contudo, elas adquirem</p><p>uma vida própria, circulam, se encontram, se atraem e se repelem</p><p>e dão oportunidade ao nascimento de novas representações, en-</p><p>quanto velhas representações morrem. Como conseqüência dis-</p><p>so, para se compreender e explicar uma representação, é necessá-</p><p>rio começar com aquela, ou aquelas, das quais ela nasceu. Não é</p><p>suficiente começar diretamente de tal ou tal aspecto, seja do com-</p><p>portamento, seja da estrutura social. Longe de refletir, seja o com-</p><p>portamento ou a estrutura social, uma representação muitas vezes</p><p>condiciona ou até mesmo responde a elas. Isso é assim, não por-</p><p>que ela possui uma origem coletiva, ou porque ela se refere a um</p><p>objeto coletivo, mas porque, como tal, sendo compartilhada por</p><p>todos e reforçada pela tradição, ela constitui uma realidade social</p><p>sui generis. Quanto mais sua origem é esquecida e sua natureza</p><p>convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna. O que é</p><p>ideal, gradualmente torna-se materializado. Cessa de ser efêmero,</p><p>mutável e mortal e torna-se, em vez disso, duradouro, perma-</p><p>nente, quase imortal. Ao criar representações, nós somos como o</p><p>artista, que se inclina diante da estátua que ele esculpiu e a adora</p><p>como se fosse um deus.</p><p>Na minha opinião, a tarefa principal da psicologia social é es-</p><p>tudar tais representações, suas propriedades, suas origens e seu</p><p>impacto. Nenhuma outra disciplina dedica-se a essa tarefa e ne-</p><p>nhuma está melhor equipada para isso. Foi, de fato, à psicologia</p><p>social que Durkheim confiou essa tarefa:</p><p>No que se refere às leis do pensamento coletivo, elas são to-</p><p>talmente desconhecidas. A psicologia social, cuja tarefa se-</p><p>ria defini-las, não é nada mais que uma palavra descrevendo</p><p>todo tipo de variadas generalizações, vagas, sem um objeto</p><p>definido como foco. O que é necessário é descobrir, pela</p><p>42</p><p>comparação de mitos, lendas, tradições populares e lin-</p><p>guagens, como as representações sociais se atraem e se ex-</p><p>cluem, como elas se mesclam ou se distinguem etc. (Durkheim,</p><p>1895/1982: 41-42).</p><p>Apesar de numerosos estudos posteriores, idéias fragmenta-</p><p>das e experimentos, nós não estamos mais avançados do que nós</p><p>estávamos há quase um século. Nosso conhecimento é como uma</p><p>maionese que azedou. Mas uma coisa é certa: As formas princi pais</p><p>de nosso meio ambiente físico e social estão fixas em repre-</p><p>sentações desse tipo e nós mesmos fomos moldados de acordo</p><p>com elas. Eu até mesmo iria ao ponto de afirmar que, quanto me-</p><p>nos nós pensamos nelas, quanto menos conscientes somos delas,</p><p>maior se torna sua influência. É o caso em que a mente coletiva</p><p>transforma tudo o que toca. Nisso reside a verdade da crença pri-</p><p>mitiva que dominou nossa mentalidade por milhões de anos.</p><p>2. O que é uma sociedade pensante?</p><p>Nós pensamos através de nossas bocas (Tristan Tzara).</p><p>2.1. Behaviorismo como o estudo das representações sociais</p><p>Vivemos em um mundo behaviorista, praticamos uma ciência</p><p>behaviorista e usamos metáforas behavioristas.</p><p>Eu digo isso sem</p><p>orgulho ou vergonha. Pois eu não vou embarcar em uma critica do</p><p>que deveria, forçosamente, ser chamado de uma visão do ser hu-</p><p>mano contemporâneo, pois sua defesa, ou refutação, não é, en-</p><p>quanto eu posso perceber, interesse da ciência, mas da cultura.</p><p>Não se defende, nem se refuta, uma cultura. Dito isso, é óbvio que o</p><p>estudo das representações sociais deve ir além de tal visão e</p><p>deve fazer isso por uma razão específica. Ela vê o ser humano en-</p><p>quanto ele tenta conhecer e compreender as coisas que o circun-</p><p>dam e tenta resolver os enigmas centrais de seu próprio nasci-</p><p>mento, de sua existência corporal, suas humilhações, do céu que</p><p>está acima dele, dos estados da mente de seus vizinhos e dos po-</p><p>deres que o dominam: enigmas que o ocupam e preocupam desde</p><p>o berço e dos quais ele nunca pára de falar. Para ele, pensamentos</p><p>43</p><p>43</p><p>e palavras são reais - eles não são apenas epifenômenos do com-</p><p>portamento. Ele concorda com Frege, que escreveu:</p><p>A influência de uma pessoa sobre outra acontece princi-</p><p>palmente através do pensamento. Alguém comunica um pen-</p><p>samento- Como acontece isso? Alguém causa mudanças no</p><p>mundo externo normal que, percebidas por outra pessoa,</p><p>são consideradas como induzindo-a a apreender um pen-</p><p>samento e aceitá-lo como verdadeiro. Poderiam os grandes</p><p>acontecimentos do mundo terem se tornado realidade sem</p><p>a comunicação do pensamento? E apesar disso, estamos in-</p><p>clinados a considerar os pensamentos como irreais, porque</p><p>parecem não possuírem influência sobre os acontecimen-</p><p>tos, embora pensar, julgar, falar, compreender, são fatos da</p><p>vida humana. Como um martelo parece muito mais real que</p><p>um pensamento. Como é diferente o processo de usar um mar-</p><p>telo do de comunicar um pensamento (Frege, 1977: 38).</p><p>É isso que os livros e artigos estão continuamente martelando</p><p>sobre nossa cabeça: os martelos são mais reais que pensamentos;</p><p>preste atenção a martelos, não a pensamentos. Tudo, em última</p><p>análise, é comportamento, um problema de fixar estímulos para as</p><p>paredes de nosso organismo, como agulhas. Quando estudamos</p><p>representações sociais nós estudamos o ser humano, enquanto</p><p>ele faz perguntas e procura respostas ou pensa e não enquanto ele</p><p>processa informação, ou se comporta. Mais precisamente, en-</p><p>quanto seu objetivo não é comportar-se, mas compreender.</p><p>O que é uma sociedade “pensante”? Essa é nossa questão e é</p><p>isso que nós queremos observar e compreender, através do estu-</p><p>do (a) das circunstâncias em que os grupos se comunicam, tomam</p><p>decisões e procuram tanto revelar, como esconder algo e (b) das</p><p>suas ações e suas crenças, isto é, das suas ideologias, ciências e</p><p>representações. Nem poderia ser diferente; o mistério é profundo,</p><p>mas a compreensão é a faculdade humana mais comum. Acredita-</p><p>va-se antigamente que esta faculdade fosse estimulada, primeira e</p><p>principalmente, pelo contato com o mundo externo. Mas aos poucos</p><p>nós nos fomos dando conta que ela na realidade brota da comuni-</p><p>cação social. Estudos recentes sobre crianças muito pequenas mos-</p><p>traram que as origens e o desenvolvimento do sentido e do pen-</p><p>samento dependem das inter-relações sociais; como se uma crian-</p><p>ça chegasse ao mundo primariamente preparada para se relacio-</p><p>nar com outros: com sua mãe, seu pai e com todos os que a espe-</p><p>44</p><p>ram e se interessam por ela. O mundo dos objetos constitui apenas</p><p>um pano de fundo para as pessoas e suas interações sociais.</p><p>Ao fazermos a pergunta: o que é uma sociedade pensante?,</p><p>nós rejeitamos ao mesmo tempo a concepção que, creio eu, é pre-</p><p>dominante nas ciências humanas, de que uma sociedade não pen-</p><p>sa, ou, se pensa, esse não é um atributo essencial seu. O negar que</p><p>uma sociedade “pense” pode assumir duas formas diferentes:</p><p>a) afirmar que nossas mentes são pequenas caixas pretas,</p><p>dentro de uma caixa preta maior, que simplesmente recebe infor-</p><p>mação, palavras e pensamentos que são condicionados de fora, a</p><p>fim de transformá-los em gestos, juízos, opiniões, etc. De fato, nós</p><p>sabemos muito bem que nossas mentes não são caixas pretas,</p><p>mas, na pior das hipóteses, buracos pretos, que possuem uma</p><p>vida e atividade próprias, mesmo quando isso não é óbvio e quan-</p><p>do as pessoas não trocam nem energia nem informação com o</p><p>mundo externo. A loucura, esse buraco negro na racionalidade,</p><p>prova irrefutavelmente que é assim que as coisas são.</p><p>b) assegurar que grupos e pessoas estão sempre e completa-</p><p>mente sob controle de uma ideologia dominante, que é produzida</p><p>e imposta por sua classe social, pelo estado, igreja ou escola e que</p><p>o que eles pensam e dizem apenas reflete tal ideologia. Em outras</p><p>palavras, sustenta-se que eles, como regra, não pensam, ou pro-</p><p>duzem nada de original por si mesmos: eles reproduzem e, em</p><p>contrapartida, são reproduzidos. Apesar de sua natureza progres-</p><p>sista, esta concepção está essencialmente de acordo com a de Le</p><p>Bon, que afirma que as massas não pensam nem criam; e que são</p><p>apenas os indivíduos, a elite organizada, que pensa e cria. Desco-</p><p>brimos aqui, quer gostemos ou não, a metáfora da caixa preta,</p><p>com a diferença que agora ela está composta de idéias já prontas e</p><p>não apenas com objetos. Pode ser esse o caso, mas nós não o po-</p><p>demos garantir, pois, mesmo que as ideologias e seu impacto te-</p><p>nham sido amplamente discutidos, elas não foram extensivamen te</p><p>pesquisadas. E isso também foi reconhecido por Marx e Wood: “Em</p><p>comparação, porém, com outras áreas, o estudo da ideologia foi</p><p>relativamente negligenciado pelos sociólogos, que em geral se</p><p>sentem em situação mais confortável estudando a estrutura social</p><p>e o comportamento, do que estudando crenças e símbolos (Marx &</p><p>Wood, 1975: 382).</p><p>O que estamos sugerindo, pois, é que pessoas e grupos, longe</p><p>de serem receptores passivos, pensam por si mesmos, produzem e</p><p>45</p><p>comunicam incessantemente suas próprias e específicas repre-</p><p>sentações e soluções às questões que eles mesmos colocam. Nas</p><p>ruas, bares, escritórios, hospitais, laboratórios, etc. as pessoas ana-</p><p>lisam, comentam, formulam “filosofias” espontâneas, não oficiais,</p><p>que têm um impacto decisivo em suas relações sociais, em suas</p><p>escolhas, na maneira como eles educam seus filhos, como plane-</p><p>jam seu futuro, etc. Os acontecimentos, as ciências e as ideologias</p><p>apenas lhes fornecem o “alimento para o pensamento”.</p><p>2.2. Representações sociais</p><p>É óbvio que o conceito de representações sociais chegou até</p><p>nós vindo de Durkheim. Mas nós temos uma visão diferente dele -</p><p>ou, de qualquer modo, a psicologia social deve considerá-lo de um</p><p>ângulo diferente - de como o faz a sociologia. A sociologia vê, ou</p><p>melhor, viu as representações sociais como artifícios explanató-</p><p>rios, irredutíveis a qualquer análise posterior. Sua função teórica</p><p>era semelhante á do átomo na mecânica tradicional, ou à do genes</p><p>na genética tradicional; isto é, átomos e genes eram considerados</p><p>como existentes, mas ninguém se importava sobre o que faziam,</p><p>ou com o que se pareciam. Do mesmo modo, sabia-se que as re-</p><p>presentações sociais existiam nas sociedades, mas ninguém se</p><p>importava com sua estrutura ou com sua dinâmica interna. A psi-</p><p>cologia social, contudo, estaria e deveria estar pré-ocupada so-</p><p>mente com a estrutura e a dinâmica das representações. Para nós,</p><p>isso se explica na dificuldade de penetrar o interior para descobrir</p><p>os mecanismos internos e a vitalidade das representações sociais</p><p>o mais detalhadamente possível; isto é, em “cindir as representa-</p><p>ções”, exatamente como os átomos e os genes foram divididos. O</p><p>primeiro passo nessa direção foi dado por Piaget, quando ele estu-</p><p>dou a representação do mundo da criança e sua investigação per-</p><p>manece, até o dia de hoje, como um exemplo. Assim, o que eu pro-</p><p>ponho fazer é considerar como um fenômeno o que era antes visto</p><p>como um conceito.</p><p>Ainda mais: do ponto de vista de Durkheim, as representa-</p><p>ções coletivas abrangiam uma cadeia completa de formas intelec-</p><p>tuais que incluíam ciência, religião, mito, modalidades de</p><p>tempo e</p><p>espaço, etc.</p><p>De fato, qualquer tipo de idéia, emoção ou crença, que ocor-</p><p>46</p><p>resse dentro de uma comunidade, estava incluído. Isso representa</p><p>um problema sério, pois pelo fato de querer incluir demais, inclui-</p><p>se muito pouco: querer compreender tudo é perder tudo. A intui-</p><p>ção, assim como a experiência, sugere que é impossível cobrir um</p><p>raio de conhecimento e crenças tão amplo. Conhecimento e crença</p><p>são, em primeiro lugar, demasiado heterogêneos e, além disso,</p><p>não podem ser definidos por algumas poucas características ge-</p><p>rais. Como conseqüência, nós estamos obrigados a acrescentar</p><p>duas qualificações significativas:</p><p>a) As representações sociais devem ser vistas como uma ma-</p><p>neira especifica de compreender e comunicar o que nós já sabemos.</p><p>Elas ocupam, com efeito, uma posição curiosa, em algum ponto</p><p>entre conceitos, que têm como seu objetivo abstrair sentido do</p><p>mundo e introduzir nele ordem e percepções, que reproduzam o</p><p>mundo de uma forma significativa. Elas sempre possuem duas</p><p>faces, que são interdependentes, como duas faces de uma folha de</p><p>papel: a face icônica e a face simbólica. Nós sabemos que: repre-</p><p>sentação = imagem/significação; em outras palavras, a represen-</p><p>tação iguala toda imagem a uma idéia e toda idéia a uma imagem.</p><p>Dessa maneira, em nossa sociedade, um “neurótico” é uma idéia</p><p>associada com a psicanálise, com Freud, com o Complexo de Édipo</p><p>e, ao mesmo tempo, nós vemos o neurótico como um indivíduo</p><p>egocêntrico, patológico, cujos conflitos parentais não foram ainda</p><p>resolvidos. De outro lado, porém, a palavra evoca uma ciência, até</p><p>mesmo o nome de um herói clássico e um conceito, que, por ou-</p><p>tras, evoca um tipo definido, caracterizado por certos traços e uma</p><p>biografia facilmente imaginável. Os mecanismos mentais que são</p><p>mobilizados nesse exemplo e que constroem essa figura em nosso</p><p>universo e lhe dão um significado, uma interpretação, obviamente</p><p>diferem dos mecanismos cuja função é isolar uma percepção pre-</p><p>cisa de uma pessoa ou de uma coisa e de criar um sistema de con-</p><p>ceitos que as expliquem. A própria linguagem, quando ela carrega</p><p>representações, localiza-se a meio caminho entre o que é chama do</p><p>de a linguagem de observação e a linguagem da lógica; a primeira,</p><p>expressando puros fatos - se tais fatos existem - e a segunda, ex-</p><p>pressando símbolos abstratos. Este é, talvez, um dos mais marcan-</p><p>tes fenômenos de nosso tempo - a união da linguagem e da re-</p><p>presentação. Deixem-me explicar:</p><p>47</p><p>Até o inicio do século, a linguagem verbal comum era um</p><p>meio tanto de comunicação, como de conhecimento; de idéias co-</p><p>letivas e de pesquisa abstrata, pois ela era igual tanto para o senso</p><p>comum, como para a ciência. Hoje em dia, a linguagem não-verbal</p><p>- matemática e lógica - que se apropriou da esfera da ciência, subs-</p><p>tituiu signos por palavras e equações por proposições. O mundo</p><p>de nossa experiência e de nossa realidade se rachou em dois e as</p><p>leis que governam nosso mundo cotidiano não possuem, agora,</p><p>relação direta com as leis que governam o mundo da ciência. Se</p><p>nós estamos, hoje, muito interessados em fenômenos lingüísticos,</p><p>isso se deve, em parte, ao fato de a linguagem estar em declínio, do</p><p>mesmo modo como estamos preocupados com as plantas, com a</p><p>natureza e os animais, porque eles estão ameaçados de extin-</p><p>ção. A linguagem, excluída da esfera da realidade material, re-</p><p>emerge na esfera da realidade histórica e convencional; e, se ela</p><p>perdeu sua relação com a teoria, ela conserva sua relação com a</p><p>representação, que é tudo o que ela deixou. Se o estudo da lin-</p><p>guagem, pois, é cada vez mais preocupação da psicologia social,</p><p>isso não é porque a psicologia social quer imitar o que aconteceu</p><p>com as outras disciplinas, ou porque quer acrescentar uma dimen-</p><p>são social a suas abstrações individuais, ou por qualquer outros</p><p>motivos filantrópicos. Isso está, simplesmente, ligado à mudança</p><p>que nós mencionamos há pouco e que a liga tão exclusivamente ao</p><p>nosso método normal, cotidiano, de compreender e intercam biar</p><p>nossas maneiras de ver as coisas.</p><p>b) Durkheim, fiel à tradição aristotélica e kantiana, possui uma</p><p>concepção bastante estática dessas representações - algo parecido</p><p>com a dos estóicos. Como conseqüência, representações, em sua</p><p>teoria, são como o adensamento da neblina, ou, em outras pa-</p><p>lavras, elas agem como suportes para muitas palavras ou idéias -</p><p>como as camadas de um ar estagnado na atmosfera da sociedade,</p><p>do qual se diz que pode ser cortado com uma faca. Embora isso</p><p>não seja inteiramente falso, o que é mais chocante ao observador</p><p>contemporâneo é seu caráter móvel e circulante; em suma, sua</p><p>plasticidade. Mais: nós as vemos como estruturas dinâmicas, ope-</p><p>rando em um conjunto de relações e de comportamentos que sur-</p><p>gem e desaparecem, junto com as representações. É o mesmo que</p><p>aconteceria com o desaparecimento, de nossos dicionários, da pa-</p><p>lavra “neurótico”, que iria, com isso, também banir certos senti-</p><p>mentos, certos tipos de relacionamento para com algumas pessoas</p><p>determinadas, uma maneira de julgá-las e, conseqüentemente, de</p><p>48</p><p>nos julgarmos a nós mesmos.</p><p>Eu acentuo essas diferenças com uma finalidade especifica.</p><p>As representações sociais que me interessam não são nem as das</p><p>sociedades primitivas, nem as suas sobreviventes, no subsolo de</p><p>nossa cultura, dos tempos pré-históricos. Elas são as de nossa so-</p><p>ciedade atual, de nosso solo político, cientifico, humano, que nem</p><p>sempre têm tempo suficiente para se sedimentar completamente</p><p>para se tornarem tradições imutáveis. E sua importância continua</p><p>a crescer, em proporção direta com a heterogeneidade e a flutua-</p><p>ção dos sistemas unificadores - as ciências, religiões e ideologias</p><p>oficiais - e com as mudanças que elas devem sofrer para penetrar</p><p>a vida cotidiana e se tornar parte da realidade comum. Os meios</p><p>de comunicação de massa aceleraram essa tendência, multiplica-</p><p>ram tais mudanças e aumentaram a necessidade de um elo entre,</p><p>de uma parte, nossas ciências e crenças gerais puramente abstra-</p><p>tas e, de outra parte, nossas atividades concretas como indivíduos</p><p>sociais. Em outras palavras, existe uma necessidade continua de</p><p>re-constituir o “senso comum” ou a forma de compreensão que</p><p>cria o substrato das imagens e sentidos, sem a qual nenhuma cole-</p><p>tividade pode operar. Do mesmo modo, nossas coletividades hoje</p><p>não poderiam funcionar se não se criassem representações sociais</p><p>baseadas no tronco das teorias e ideologias que elas transformam</p><p>em realidades compartilhadas, relacionadas com as interações en-</p><p>tre pessoas que, então, passam a constituir uma categoria de fe-</p><p>nômenos à parte. E a característica especifica dessas representa-</p><p>ções é precisamente a de que elas “corporificam idéias” em expe-</p><p>riências coletivas e interações em comportamento, que podem,</p><p>com mais vantagem, ser comparadas a obras de arte do que a rea-</p><p>ções mecânicas. O escritor bíblico já estava consciente disso quan-</p><p>do afirmou que o verbo (a palavra) se fez carne; e o marxismo con-</p><p>firma isso quando afirma que as idéias, uma vez disseminadas en-</p><p>tre as massas, são e se comportam como forças materiais.</p><p>Nós não sabemos quase nada dessa alquimia que transforma</p><p>a base metálica de nossas idéias no ouro de nossa realidade. Como</p><p>transformar conceitos em objetos ou em pessoas é o enigma que</p><p>nos pré-ocupou por séculos e que é o verdadeiro objetivo de nossa</p><p>ciência, como distinto de outras ciências que, na realidade, inves-</p><p>tiga o processo inverso. Eu estou bastante consciente que uma</p><p>distância quase insuperável separa o problema de sua solução,</p><p>uma distância que bem poucos estão preparados para transpor.</p><p>49</p><p>Mas eu não deixarei de repetir que se a psicologia social não ten-</p><p>tar transpor esse valor, ela fracassará em sua tarefa e com isso não</p><p>somente não conseguirá progredir, mas cessará mesmo de exis-</p><p>tir.Para sintetizar: se, no sentido clássico, as representações cole-</p><p>tivas se constituem em um instrumento explanatório e se referem a</p><p>uma classe geral de idéias e crenças (ciência, mito, religião, etc.),</p><p>para nós, são fenômenos que necessitam ser descritos e explicados.</p><p>São fenômenos específicos que estão relacionados com um modo</p><p>particular de compreender e de se comunicar - um modo que aia</p><p>tanto a realidade como o senso comum. É para enfatizar essa distin-</p><p>ção que eu uso o termo “social” em vez de “coletivo”.</p><p>2.3. Ciências sagradas e profanas; universos consen-</p><p>suais e reificados</p><p>O que nos interessa aqui é o lugar que as representações ocu-</p><p>pam em uma sociedade pensante. Anteriormente, este lugar seria</p><p>- e até certo ponto o foi - determinado pela distinção entre uma</p><p>esfera sagrada - digna de respeito e veneração e desse modo man-</p><p>tida bastante longe de todas as atividades intencionais, humanas -</p><p>e uma esfera profana, em que são executadas atividades triviais e</p><p>utilitaristas. São esses mundos separados e opostos que, em di-</p><p>ferentes graus, determinam, dentro de cada cultura e de cada indi-</p><p>víduo, as esferas de suas forças próprias e alheias; o que nós pode-</p><p>mos mudar e o que nos muda; o que é obra nossa (opus proprium) e</p><p>o que é obra alheia (opus alienum). Todo conhecimento pressupõe</p><p>tal divisão da realidade e uma disciplina que estivesse interessada</p><p>em uma das esferas, era totalmente diferente de uma disciplina</p><p>que estivesse interessada na outra; as ciências sagradas não teri-</p><p>am nada em comum com as ciências profanas. Sem dúvida, era pos-</p><p>sível passar de uma para outra, mas isso somente ocorria quando</p><p>os conteúdos fossem obscuros.</p><p>Essa distinção foi agora abandonada. Foi substituída por outra</p><p>distinção, mais básica, entre universos consensuais e reificados.</p><p>No universo consensual, a sociedade é uma criação visível, conti-</p><p>nua, permeada com sentido e finalidade, possuindo uma voz hu-</p><p>50</p><p>mana, de acordo com a existência humana e agindo tanto como</p><p>reagindo, como um ser humano. Em outras palavras, o ser huma-</p><p>no é, aqui, a medida de todas as coisas. No universo reificado, a</p><p>sociedade é transformada em um sistema de entidades sólidas,</p><p>básicas, invariáveis, que são indiferentes à individualidade e não</p><p>possuem identidade. Esta sociedade ignora a si mesma e a suas</p><p>criações, que ela é somente como objetos isolados, tais como pes-</p><p>soas, idéias, ambientes e atividades. As várias ciências que es tão</p><p>interessadas em tais objetos podem, por assim dizer, impor sua</p><p>autoridade no pensamento e na experiência de cada individuo e</p><p>decidir, em cada caso particular, o que é verdadeiro e o que não o é.</p><p>Todas as coisas, quaisquer que sejam as circunstâncias, são,</p><p>aqui, a medida do ser humano.</p><p>Mesmo o uso dos pronomes “nós” e “eles” pode expressar</p><p>esse contraste, onde “nós” está em lugar do grupo de indivíduos</p><p>com os quais nós nos relacionamos e “eles” - os franceses, os pro-</p><p>fessores, os sistemas de estado etc. - está em lugar de um grupo</p><p>diferente, ao qual nós não pertencemos, mas podemos ser força-</p><p>dos a pertencer. A distância entre a primeira e a terceira pessoa do</p><p>plural expressa a distância que separa o lugar social, onde nos</p><p>sentimos incluídos, de um lugar dado, indeterminado ou, de qual-</p><p>quer modo, impessoal. Essa falta de identidade, que está na raiz</p><p>da angústia psíquica do homem moderno, é um sintoma dessa ne-</p><p>cessidade de nos vermos em termos de “nós” e “eles”; de opor</p><p>“nós” a “eles”; e, por conseguinte, da nossa impotência de ligar</p><p>um ao outro. Grupos de indivíduos tentam superar essa necessi-</p><p>dade tanto identificando-se como “nós” e dessa maneira fechando-</p><p>se em um mundo à parte, ou identificando-se com o “eles” e tor-</p><p>nando-se os robôs da burocracia e da administração.</p><p>Tais categorias de universos consensuais e reificados são</p><p>próprios de nossa cultura. Em um universo consensual, a sociedade</p><p>é vista como um grupo de pessoas que são iguais e livres, cada um</p><p>com possibilidade de falar em nome do grupo e sob seu auspício.</p><p>Dessa maneira, presume-se que nenhum membro possua compe-</p><p>tência exclusiva, mas cada qual pode adquirir toda competência</p><p>que seja requerida pelas circunstâncias. Sob este aspecto, cada</p><p>um age como um “amador” responsável, ou como um “observador</p><p>curioso” nas “frases feitas” e chavões do último século. Na maioria</p><p>dos locais públicos de encontro, esses políticos amadores, douto-</p><p>res, educadores, sociólogos, astrônomos, etc. podem ser encon-</p><p>trados expressando suas opiniões, revelando seus pontos de vista</p><p>51</p><p>e construindo a lei. Tal estado de coisas exige certa cumplicidade,</p><p>isto é, convenções lingüísticas, perguntas que não podem ser fei-</p><p>tas, tópicos que podem, ou não podem, ser ignorados. Esses mun-</p><p>dos são institucionalizados nos clubes, associações e bares de</p><p>hoje, como eles foram nos “salões” e academias do passado. O que</p><p>eles fazem prosperar é a arte declinante da conversação. E isso</p><p>que os mantém em andamento e que encoraja relações sociais</p><p>que, de outro modo, definhariam. Em longo prazo, a conversação</p><p>(os discursos) cria nós de estabilidade e recorrência, uma base co-</p><p>mum de significância entre seus praticantes. As regras dessa arte</p><p>mantêm todo um complexo de ambigüidades e convenções, sem o</p><p>qual a vida social não poderia existir. Elas capacitam as pessoas a</p><p>compartilharem um estoque implícito de imagens e de idéias</p><p>que são consideradas certas e mutuamente aceitas. O pensar é</p><p>feito em voz alta. Ele se torna uma atividade ruidosa, pública, que</p><p>satisfaz a necessidade de comunicação e com isso mantém e con-</p><p>solida o grupo, enquanto comunica a característica que cada mem-</p><p>bro exige dele. Se nós pensamos antes de falar e falamos para nos</p><p>ajudarmos a pensar, nós também falamos para fornecer uma reali-</p><p>dade sonora á pressão interior dessas conversações, através das</p><p>quais e nas quais nós nos ligamos aos outros. Beckett sintetizou</p><p>essa situação em Endgame:</p><p>Clov: O que há aí para me manter aqui?</p><p>Hamm: Conversação.</p><p>E o motivo é profundo. Toda pessoa que mantiver seus ouvidos</p><p>fixos nos lugares onde as pessoas conversam, toda pessoa que lê</p><p>entrevistas com alguma atenção, perceberá que a maioria das con-</p><p>versações se referem a profundos problemas “metafísicos” - nasci-</p><p>mento, morte, injustiça, etc. - e sobre leis éticas da sociedade. Por-</p><p>tanto, elas provêem um comentário permanente sobre os principais</p><p>acontecimentos e características nacionais, científicas ou urbanas</p><p>e são, por isso, o equivalente moderno do coro grego que, embora</p><p>não esteja mais no palco histórico, permanece nas sacadas.</p><p>Num universo reificado, a sociedade é vista como um sistema</p><p>de diferentes papéis e classes, cujos membros são desiguais. So-</p><p>mente a competência adquirida determina seu grau de participa-</p><p>ção de acordo com o mérito, seu direito de trabalhar “como médi-</p><p>52</p><p>co”, “como psicólogo”, “como comerciante”, ou de se abster desde</p><p>que “eles não tenham competência na matéria”.</p><p>Troca de papéis e a capacidade de ocupar o lugar de outro</p><p>são muitas maneiras de adquirir competência ou de se isolar, de</p><p>ser diferente. Nós nos confrontamos, pois, dentro do sistema, co-</p><p>mo organizações preestabelecidas, cada uma com suas regras e</p><p>regulamentos. Dai as compulsões que nós experienciamos e o sen-</p><p>timento de que nós não podemos transformá-las conforme nossa</p><p>vontade. Existe um comportamento adequado para cada circuns-</p><p>tância, uma fórmula lingüística para cada confrontação e, nem é</p><p>necessário dizer, a informação apropriada para um contexto de-</p><p>terminado. Nós estamos presos pelo que prende a organização e</p><p>pelo que corresponde a um tipo de acordo geral e não a alguma</p><p>compreensão recíproca, a alguma seqüência de prescrições, não a</p><p>uma seqüência de acordos. A história, a natureza, todas as coisas</p><p>que são responsáveis pelo sistema, são igualmente responsáveis</p><p>pela hierarquia de papéis e classes, para sua solidariedade. Cada</p><p>situação contém uma ambigüidade potencial, uma vagueza, duas</p><p>interpretações possíveis, mas suas conotações são negativas, elas</p><p>são obstáculos que nós devemos superar antes que qualquer coisa</p><p>se tome clara, precisa,</p><p>totalmente sem ambigüidade. Isso é conse-</p><p>guido pelo processamento da informação, pela ausência de envol-</p><p>vimento do processador e pela existência de canais adequados. O</p><p>computador serve como o modelo para o tipo de relações que são,</p><p>então, estabelecidas e sua nacionalidade, podemos ao menos es-</p><p>perar, é a racionalidade do que é computado.</p><p>O contraste entre os dois universos possui um impacto psico-</p><p>lógico. Os limites entre eles dividem a realidade coletiva, e, de fato,</p><p>a realidade física, em duas. É facilmente constatável que as ciên-</p><p>cias são os meios pelos quais nós compreendemos o universo reifi-</p><p>cado, enquanto as representações sociais tratam com o uni verso</p><p>consensual. A finalidade do primeiro é estabelecer um mapa das</p><p>forças, dos objetos e acontecimentos que são independentes de</p><p>nossos desejos e fora de nossa consciência e aos quais nós de-</p><p>vemos reagir de modo imparcial e submisso. Pelo fato de ocultar</p><p>valores e vantagens, eles procuram encorajar precisão intelectual</p><p>e evidência empírica. As representações, por outro lado, restau-</p><p>ram a consciência coletiva e lhe dão forma, explicando os objetos e</p><p>acontecimentos de tal modo que eles se tornam acessíveis a qual-</p><p>quer um e coincidem com nossos interesses imediatos. Eles estão,</p><p>53</p><p>conforme William James, interessados em: “a realidade prática,</p><p>realidade para nós mesmos; e para se conseguir isso, um objeto</p><p>deve não apenas aparecer, mas ele deve parecer tanto interessante</p><p>como importante. O mundo, cujos objetos não sejam nem interes-</p><p>santes, nem importantes, nós o tratamos apenas negativa mente,</p><p>nós o rotulamos como irreal” (W. James, 1890/1980: 295).</p><p>O uso de uma linguagem de imagens e de palavras que se tor-</p><p>naram propriedade comum através da difusão de idéias existentes</p><p>dá vida e fecunda aqueles aspectos da sociedade e da natureza com</p><p>os quais nós estamos aqui interessados. Sem dúvida - e isso é o que</p><p>eu decidi mostrar - a natureza específica das representações ex-</p><p>pressa a natureza especifica do universo consensual, produto do</p><p>qual elas são e ao qual elas pertencem exclusivamente. Disso resulta</p><p>que a psicologia social seja a ciência de tais universos. Ao mesmo</p><p>tempo, nós vemos com mais clareza a natureza verdadeira das</p><p>ideologias, que é de facilitar a transição de um mundo a outro, isto</p><p>é, de transformar categorias consensuais em categorias reificadas e</p><p>de subordinar as primeiras às segundas. Por conseguinte, elas não</p><p>possuem uma estrutura especifica e podem ser percebidas tanto</p><p>como representações, como ciências. É assim que elas chegam a</p><p>interessar tanto à sociologia, como à história.</p><p>3. O familiar e o não-familiar</p><p>4.</p><p>Para se compreender o fenômeno das representações sociais,</p><p>contudo, nós temos de iniciar desde o começo e progredir passo a</p><p>passo. Até esse ponto, eu não fiz nada mais que sugerir certas re-</p><p>formas e tentar defendê-las. Eu não poderia deixar de enfatizar de-</p><p>terminadas idéias, caso quisesse defender o ponto de vista que eu</p><p>estava sustentando. Mas, ao fazer isso, demonstrei que:</p><p> a) as representações sociais devem ser vistas como</p><p>uma “atmosfera”, em relação ao indivíduo ou ao</p><p>grupo;</p><p> b) as representações são, sob certos aspectos, espe-</p><p>cíficas de nossa sociedade.</p><p>Por que criamos nós essas representações? Em nossas razões</p><p>de criá-las, o que explica suas propriedades cognitivas? Estas são</p><p>as questões que irei abordar em primeiro lugar. Nós poderíamos</p><p>54</p><p>responder recorrendo a três hipóteses tradicionais: (1) a hipótese</p><p>da desiderabilidade, isto é, uma pessoa ou um grupo procura criar</p><p>imagens, construir sentenças que irão tanto revelar, como ocultar</p><p>sua ou suas intenções, sendo essas imagens e sentenças distor-</p><p>ções subjetivas de uma realidade objetiva; (2) a hipótese do dese-</p><p>quilíbrio, isto é, todas as ideologias, todas as concepções de mun-</p><p>do são meios para solucionar tensões psíquicas ou emocionais,</p><p>devidas a um fracasso ou a uma falta de integração social; são,</p><p>portanto, compensações imaginárias, que teriam a finalidade de</p><p>restaurar um grau de estabilidade interna; (3) a hipótese do con-</p><p>trole, isto é, os grupos criam representações para filtrar a informa-</p><p>ção que provem do meio ambiente e dessa maneira controlam o</p><p>comportamento individual. Elas funcionam, pois, como uma espé-</p><p>cie de manipulação do pensamento e da estrutura da realidade,</p><p>semelhantes àqueles métodos de controle “ comportamental” e de</p><p>propaganda que exercem uma coerção forçada em todos aqueles</p><p>a quem eles estão dirigidos.</p><p>Tais hipóteses não estão totalmente desprovidas de verdade.</p><p>As representações sociais podem, na verdade, responder a deter-</p><p>minada necessidade; podem responder a um estado de desequilí-</p><p>brio; e podem, também, favorecer a dominação impopular, mas</p><p>impossível de erradicar, de uma parte da sociedade sobre outra.</p><p>Mas essas hipóteses têm, contudo, a fraqueza comum de serem</p><p>demasiado gerais; elas não explicam por que tais funções devem</p><p>ser satisfeitas por esse método de compreender e de comunicar e</p><p>não por algum outro, como pela ciência ou a religião, por exemplo.</p><p>Devemos, pois, procurar uma hipótese diferente, menos geral e</p><p>mais de acordo com o que os pesquisadores desse campo têm ob-</p><p>servado. Além do mais, por necessidade de espaço, eu não posso</p><p>nem elaborar mais longamente minhas reservas, nem justificar</p><p>minha teoria. Deverei expor, sem querer causar mais problemas,</p><p>uma intuição e um fato que eu creio que sejam verdadeiros, isto é,</p><p>que a finalidade de todas as representações é tomar familiar algo</p><p>não-familiar, ou a própria não-familiaridade.</p><p>O que eu quero dizer é que os universos consensuais são lo-</p><p>cais onde todos querem sentir-se em casa, a salvo de qualquer ris-</p><p>co, atrito ou conflito. Tudo o que é dito ou feito ali, apenas confirma</p><p>as crenças e as interpretações adquiridas, corrobora, mais do que</p><p>55</p><p>contradiz, a tradição. Espera-se que sempre aconteçam, sempre de</p><p>novo, as mesmas situações, gestos, idéias. A mudança como tal</p><p>somente é percebida e aceita desde que ela apresente um tipo</p><p>de vivência e evite o murchar do diálogo, sob o peso da repetição.</p><p>Em seu todo, a dinâmica das relações é uma dinâmica de familiari-</p><p>zação, onde os objetos, pessoas e acontecimentos são percebidos e</p><p>compreendidos em relação a prévios encontros e pa radigmas.</p><p>Como resultado disso, a memória prevalece sobre a dedução, o</p><p>passado sobre o presente, a resposta sobre o estímulo e as ima-</p><p>gens sobre a “realidade”. Aceitar e compreender o que é familiar,</p><p>crescer acostumado a isso e construir um hábito a partir disso, é</p><p>uma coisa; mas é outra coisa completamente diferente preferir</p><p>isso como um padrão de referência e medir tudo o que acontece e</p><p>tudo o que é percebido, em relação a isso. Pois, nesse caso, nós</p><p>simplesmente não registramos o que tipifica um parisi ense, uma</p><p>pessoa”respeitável”, uma mãe, um Complexo de Edipo etc., mas</p><p>essa consciência é usada também como um critério para avaliar o</p><p>que é incomum, anormal e assim por diante. Ou, em outras pala-</p><p>vras, o que é não-familiar.</p><p>Na verdade, para nosso amigo, o “homem da rua” (ameaçado</p><p>agora de extinção, junto com os passeios pelas calçadas, a ser em</p><p>breve substituído pelo homem diante da televisão), a maioria das</p><p>opiniões provindas da ciência, da arte e da economia, que se refe-</p><p>rem a universos reificados, diferem, de muitas maneiras, das opi-</p><p>niões familiares, práticas, que ele construiu a partir de traços e pe-</p><p>ças das tradições científicas, artísticas e econômicas e diferem da</p><p>experiência pessoal e dos boatos. Porque eles diferem, ele tende a</p><p>pensar neles como invisíveis, irreais - pois o mundo da realidade,</p><p>como o realismo na pintura, é basicamente resultado das limita-</p><p>ções e/ou de convenção. Ele, pois, pode experimentar esse sentido</p><p>de não-familiaridade quando as fronteiras e/ou as convenções</p><p>desaparecerem; quando as distinções entre o abstrato e o concre-</p><p>to se tomarem confusas; ou quando um objeto, que ele sempre</p><p>pensou ser abstrato, repentinamente emerge com toda</p><p>sua con-</p><p>cretude etc. Isso pode acontecer quando ele se defronta com um</p><p>quadro da reconstrução física de tais entidades puramente nacio-</p><p>nais como os átomos e os robôs, ou, de fato, com qualquer com-</p><p>portamento, pessoa ou relação atípico, que poderá impedi-lo de</p><p>reagir como ele o faria diante de um padrão usual. Ele não encon-</p><p>tra o que esperava encontrar e é deixado com uma sensação de in-</p><p>completude e aleatoriedade. É desse modo que os doentes men-</p><p>56</p><p>tais, ou as pessoas que pertencem a outras culturas, nos incomo-</p><p>dam, pois estas pessoas são como nós e contudo não são como</p><p>nós; assim nós podemos dizer que eles são “sem cultura”, “bárba-</p><p>ros”, “irracionais” etc. De fato, todas as coisas, tópicos ou pessoas,</p><p>banidas ou remotas, todos os que foram exilados das fronteira de</p><p>nosso universo possuem sempre características imaginárias; e pré-</p><p>ocupam e incomodam exatamente porque estão aqui, sem estar</p><p>aqui; eles são percebidos, sem ser percebidos; sua irrealidade se</p><p>torna aparente quando nós estamos em sua presença; quando sua</p><p>realidade é imposta sobre nós - é como se nos encontrássemos</p><p>face a face com um fantasma ou com um personagem fictício na</p><p>vida real; ou como a primeira vez que vemos um computador jo-</p><p>gando xadrez. Então, algo que nós pensamos como imaginação, se</p><p>torna realidade diante de nossos próprios olhos; nós podemos ver</p><p>e tocar algo que éramos proibidos.</p><p>A presença real de algo ausente, a “exatidão relativa” de um</p><p>objeto é o que caracteriza a não-familiaridade. Algo parece ser visí-</p><p>vel sem o ser: ser semelhante, embora sendo diferente, ser acessí-</p><p>vel e no entanto ser inacessível. O não-familiar atrai e intriga as pes-</p><p>soas e comunidades enquanto, ao mesmo tempo, as alarma, as</p><p>obriga a tomar explícitos os pressupostos implícitos que são bási-</p><p>cos ao consenso. Essa “exatidão relativa” incomoda e ameaça, como</p><p>no caso de um robô que se comporta exatamente como uma criatura</p><p>viva, embora não possua vida em si mesmo, repentinamente se</p><p>torna um monstro Frankenstein, algo que ao mesmo tempo fascina</p><p>e aterroriza. O medo do que é estranho (ou dos estranhos) é pro-</p><p>fundamente arraigado. Foi observado em crianças dos seis aos</p><p>nove meses e certo número de jogos infantis são na verdade um</p><p>meio de superar esse medo, de controlar seu objeto. Fenômenos</p><p>de pânico, de multidões muitas vezes provêem da mesma causa e</p><p>são expressos nos mesmos movimentos dramáticos de fuga e mal-</p><p>estar. Isso se deve ao fato de que a ameaça de perder os marcos</p><p>referenciais, de perder contato como que propicia um sentido de</p><p>continuidade, de compreensão mútua, é uma ameaça insuportável.</p><p>E quando a alteridade é jogada sobre nós na forma de algo que “não</p><p>é exatamente” como deveria ser, nós instintivamente a rejeitamos,</p><p>porque ela ameaça a ordem estabelecida.</p><p>O ato da re-apresentação é uni meio de transferir o que nos</p><p>perturba, o que ameaça nosso universo, do exterior para o interi-</p><p>or,do longínquo para o próximo. A transferência é efetivada pela</p><p>57</p><p>separação de conceitos e percepções normalmente interligados</p><p>e pela sua colocação em um contexto onde o incomum se torna co-</p><p>mum, onde o desconhecido pode ser incluído em uma categoria</p><p>conhecida. Por isso, algumas pessoas irão comparar a uma “con-</p><p>fissão” a tentativa de definir e tornar mais acessíveis as práticas do</p><p>psicanalista para com seu paciente - esse “tratamento médico sem</p><p>remédio” que parece eminentemente paradoxal a nossa cultura. O</p><p>conceito é então separado de seu contexto analítico e transporta-</p><p>do a um contexto de padres e penitentes, de sacerdotes confesso-</p><p>res e pecadores arrependidos. O método de livre associação é, en-</p><p>tão, ligado às regras da confissão. Dessa maneira, o que primeira-</p><p>mente parecia ofensivo e paradoxal, torna-se um processo comum e</p><p>normal. A psicanálise não é mais que uma forma de confissão. E</p><p>posteriormente, quando a psicanálise for aceita e se tomar uma re-</p><p>presentação social de pleno direito, a confissão é vista, mais ou</p><p>menos como uma forma de psicanálise. Uma vez que o método da</p><p>livre associação tenha sido separado de seu contexto teórico e te-</p><p>nha assumido conotações religiosas, ele cessa de causar surpresa</p><p>e mal-estar e toma, em contraposição, um caráter absolutamente</p><p>comum. E isso não é, como poderíamos ser tentados a crer, um</p><p>simples problema de analogia, mas uma junção real, socialmente</p><p>significante, uma mudança de valores e sentimentos.</p><p>Nesse caso, como também em outros que nós observamos, as</p><p>imagens, idéias e a linguagem compartilhadas por um determina-</p><p>do grupo sempre parecem ditar a direção e o expediente iniciais,</p><p>com os quais o grupo tenta se acertar com o não-familiar. O pensa-</p><p>mento social deve mais à convenção e à memória do que à razão;</p><p>deve mais às estruturas tradicionais do que às estruturas intelec-</p><p>tuais ou perceptivas correntes. Denise Jodelet (1989/1991) anali-</p><p>sou - em um trabalho infelizmente ainda não publicado - as rea-</p><p>ções dos habitantes de várias aldeias às pessoas mentalmente de-</p><p>ficientes que eram colocadas em seu meio. Esses pacientes, devi do</p><p>à sua aparência quase normal e apesar das instruções que os habi-</p><p>tantes da aldeia tinham recebido, continuaram a ser vistos como</p><p>estrangeiros, apesar de sua presença ter sido aceita por muitos e</p><p>durante muitos anos os pacientes tivessem compartilhado o dia-a-</p><p>dia e até as casas desses aldeões. Tornou-se então evidente que as</p><p>representações que eles provocaram derivavam de visões e noções</p><p>tradicionais e que eram essas representações que determinavam</p><p>as reações dos aldeões para com eles.</p><p>59</p><p>58</p><p>Contudo, embora nós tenhamos a capacidade de perceber tal</p><p>discrepância, ninguém pode livrar-se dela. A tensão básica entre o</p><p>familiar e o não-familiar está sempre estabelecida, em nossos uni-</p><p>versos consensuais, em favor do primeiro. No pensamento social, a</p><p>conclusão tem prioridade sobre a premissa e nas relações so-</p><p>ciais, conforme a fórmula adequada de Nelly Stephane, o veredicto</p><p>tem prioridade sobre o julgamento. Antes de ver e ouvir a pessoa,</p><p>nós já a julgamos; nós já a classificamos e criamos uma imagem</p><p>dela. Desse modo, toda pesquisa que fizermos e nossos esforços</p><p>para obter informações que empenharmos somente servirão para</p><p>confirmar essa imagem. Mais experimentos de laboratório corro-</p><p>boram essa observação:</p><p>Os erros usuais que os sujeitos cometem sugerem que exi s-</p><p>te um fator geral governando a ordem em que determina-</p><p>das observações são feitas. As pessoas parecem estar inclinadas na</p><p>direção de confirmar uma conclusão, seja ela sua própria resposta</p><p>inicial, ou a que lhe seja dada pelo experimentador para ser</p><p>avaliada. Eles buscam determinar se as premissas podem</p><p>ser combinadas de tal forma que tornem a conclusão verdadei-</p><p>ra. Na verdade, isso apenas mostra que a conclusão e as premissas</p><p>são consistentes e não que a conclusão segue das premissas (Wa-</p><p>son & Johnson-Laird, 1972: 157).</p><p>Quando tudo é dito e feito, as representações que nós fabrica-</p><p>mos - duma teoria cientifica, de uma nação, de um objeto, etc. - são</p><p>sempre o resultado de um esforço constante de tornar comum e</p><p>real algo que é incomum (não-familiar), ou que nos dá um senti-</p><p>mento de não-familiaridade. E através delas nós superamos o pro-</p><p>blema e o integramos em nosso mundo mental e físico, que é, com</p><p>isso, enriquecido e transformado. Depois de uma série de ajusta-</p><p>mentos, o que estava longe, parece ao alcance de nossa mão; o</p><p>que parecia abstrato, torna -se concreto e quase normal. Ao</p><p>criá-los, porém, não estamos sempre mais ou menos conscientes</p><p>de nossas intenções, pois as imagens e idéias com as quais nós</p><p>compreendemos o não-usual (incomum) apenas trazem-nos de</p><p>volta ao que nós já conhecíamos e como qual nós já estávamos fa-</p><p>miliarizados há tempo e que, por isso, nos dá uma impressão se-</p><p>gura de algo “já visto” (déjà vu) e já conhecido (déjà connu). Bar-</p><p>tlett escreve: “Como já foi apontado antes, sempre que o material</p><p>mostrado visualmente pretende ser representativo de algum obje-</p><p>to comum,</p><p>mas contém características que são incomuns (não-fa-</p><p>59</p><p>miliares) á comunidade a quem o material é apresentado, essas</p><p>características invariavelmente sofrem transformação em direção</p><p>ao que é familiar” (Bartlett, 1961: 178).</p><p>É como se, ao ocorrer uma brecha ou uma rachadura no que é</p><p>geralmente percebido como normal, nossas mentes curem a ferida</p><p>e consertem por dentro o que se deu por fora. Tal processo nos</p><p>confirma e nos conforta; restabelece um sentido de continuidade</p><p>no grupo ou no indivíduo ameaçado com descontinuidade e falta</p><p>de sentido. É por isso que, ao se estudar uma representação, nós</p><p>devemos sempre tentar descobrir a característica não-familiar que</p><p>a motivou, que esta absorveu. Mas é particularmente importante</p><p>que o desenvolvimento de tal característica seja observada no mo-</p><p>mento exato em que ela emerge na esfera social.</p><p>O contraste com a ciência é marcante. A ciência caminha pelo</p><p>lado oposto; da premissa para a conclusão, especialmente no</p><p>campo da lógica, assim como o objetivo da lei é assegurar a priori-</p><p>dade do julgamento sobre o veredicto. Mas a lei tem de se apoiar</p><p>em um sistema completo de lógica e provas a fim de proceder de</p><p>uma maneira que é completamente estranha ao processo e à fun-</p><p>ção natural do pensamento em um universo consensual ordinário.</p><p>Ela deve, além disso, colocar certas leis - não envolvimento, repe-</p><p>tição de experimentos, distância do objeto, independência da au-</p><p>toridade e tradição - que nunca são totalmente aplicadas.</p><p>Para tornar possível a troca de ambos os termos da argume n-</p><p>tação, ela cria um meio totalmente artificial, recorrendo ao que é</p><p>conhecido como a reconstrução racional dos fatos e idéias. Para</p><p>superar, pois, nossa tendência de confirmar o que é familiar, para</p><p>provar o que já é conhecido - o cientista deve falsificar, deve ten-</p><p>tar invalidar suas próprias teorias e confrontar a evidência com a</p><p>não-evidência. Mas essa não é toda a histó ria. A lei se tornou mo-</p><p>derna e rompeu com o senso comum, a ciência se ocupou com su-</p><p>cesso em demolir constantemente a maioria de nossas perce p-</p><p>ções e opiniões correntes, em provar que resultados impossíveis</p><p>são possíveis e em desmentir o conjunto central de nossas idéias e</p><p>experiências costumeiras. Em outras palavras, o objetivo da ciên-</p><p>cia é tomar o familiar não-familiar em suas equações matemáticas,</p><p>como em seus laboratórios. E dessa maneira a ciência prova, por</p><p>contraste, que o propósito das representações sociais é precisa-</p><p>mente o que eu já indiquei anteriormente.</p><p>60</p><p>4. Ancoragem e objetivação, ou os dois processos</p><p>que geram representações sociais</p><p>4.1. Ciência, senso comum e representações sociais</p><p>Ciência e representações sociais são tão diferentes entre si e</p><p>ao mesmo tempo tão complementares que nós temos de pensar e</p><p>falar em ambos os registros. O filósofo francês Bachelard observou</p><p>que o mundo em que nós vivemos e o mundo do pensamento não</p><p>são um só e o mesmo mundo. De fato, não podemos continuar</p><p>desejando um mundo singular e idêntico e lutando por consegui-</p><p>lo. Ao contrário do que se acreditava no século passado, longe de</p><p>serem um antídoto contra as representações e as ideologias, as</p><p>ciências na verdade geram, agora, tais representações. Nossos</p><p>mundos reificados aumentam com a proliferação das ciências. Na</p><p>medida em que as teorias, informações e acontecimentos se multi-</p><p>plicam, os mundos devem ser duplicados e reproduzidos a um</p><p>nível mais imediato e acessível, através da aquisição de uma forma</p><p>e energia próprias. Com outras palavras, são transferidos a um</p><p>mundo consensual, circunscrito e re-apresentado. A ciência era</p><p>antes baseada no senso comum e fazia o senso comum menos</p><p>comum; mas agora senso comum é a ciência tornada comum. Sem</p><p>dúvida, cada fato, cada lugar comum esconde dentro de sua própria</p><p>banalidade um mundo de conhecimento, determinada dose de</p><p>cultura e um mistério que o fazem ao mesmo tempo compulsivo e</p><p>fascinante. Baudelaire pergunta: “Pode algo ser mais encantador,</p><p>mais frutífero e mais positivamente excitante do que um lugar</p><p>comum?” E, poderíamos acrescentar, mais coletivamente efetivo?</p><p>Não é fácil transformar palavras não-familiares, idéias ou seres, em</p><p>palavras usuais, próximas e atuais. É necessário, para dar-lhes uma</p><p>feição familiar, pôr em funcionamento os dois mecanismos de um</p><p>processo de pensamento baseado na memória e em conclusões</p><p>passadas.</p><p>O primeiro mecanismo tenta ancorar idéias estranhas, redu-</p><p>zi-las a categorias e a imagens comuns, colocá-las em um contexto</p><p>familiar. Assim, por exemplo, uma pessoa religiosa tenta relacionar</p><p>61</p><p>uma nova teoria, ou o comportamento de um estranho, a uma es-</p><p>cala religiosa de valores. O objetivo do segundo mecanismo é obje-</p><p>tivá-los, isto é, transformar algo abstrato em algo quase concreto,</p><p>transferir o que está na mente em algo que exista no mundo físico.</p><p>As coisas que o olho da mente percebe parecem estar diante de</p><p>nossos olhos físicos e um ente imaginário começa a assumir a rea-</p><p>lidade de algo visto, algo tangível. Esses mecanismos transformam</p><p>o não-familiar em familiar, primeiramente transferindo-o a nossa</p><p>própria esfera particular, onde nós somos capazes de com pará-lo</p><p>e interpretá-lo; e depois, reproduzindo-o entre as coisas que nós</p><p>podemos ver e tocar, e, conseqüentemente, controlar. Sendo que as</p><p>representações são criadas por esses dois mecanismos, é essencial</p><p>que nós compreendamos como funcionam.</p><p>• Ancoragem - Esse é um processo que transforma algo estra-</p><p>nho e perturbador, que nos intriga, em nosso sistema particular de</p><p>categorias e o compara com um paradigma de uma categoria que</p><p>nós pensamos ser apropriada. É quase como que ancorar um bote</p><p>perdido em um dos boxes (pontos sinalizadores) de nosso espaço</p><p>social. Assim, para os aldeões do estudo de Denise Jodelet, os do-</p><p>entes mentais colocados em seu meio pela associação médica fo-</p><p>ram imediatamente julgados por padrões convencionais e compa-</p><p>rados a idiotas, vagabundos, epilépticos, ou aos que, no dialeto lo-</p><p>cal, eram chamados de “rogues”(maloqueiro). No momento em que</p><p>determinado objeto ou idéia é comparado ao paradigma de uma</p><p>categoria, adquire características dessa categoria e é re-ajustado</p><p>para que se enquadre nela. Se a classificação, assim obtida, é geral-</p><p>mente aceita, então qualquer opinião que se relacione com a cate-</p><p>goria irá se relacionar também com o objeto ou com a idéia. Por</p><p>exemplo, a idéia dos aldeões mencionados acima sobre os idiotas,</p><p>vagabundos e epilépticos, foi transferida, sem modificação, aos</p><p>doentes mentais. Mesmo quando estamos conscientes de alguma</p><p>discrepância, da relatividade de nossa avaliação, nós nos fixamos</p><p>nessa transferência, mesmo que seja apenas para podermos garan-</p><p>tir um mínimo de coerência entre o desconhecido e o conhecida.</p><p>Ancorar é, pois, classificar e dar nome a alguma coisa. Coisas</p><p>que não são classificadas e que não possuem nome são estranhas,</p><p>não existentes e ao mesmo tempo ameaçadoras. Nós experimenta-</p><p>mos uma resistência, um distanciamento, quando não somos ca-</p><p>pazes de avaliar algo, de descrevê-lo a nós mesmos ou a outras</p><p>pessoas, O primeiro passo para superar essa resistência, em dire-</p><p>62</p><p>ção à conciliação de um objeto ou pessoa, acontece quando nós</p><p>somos capazes de colocar esse objeto ou pessoa em uma determi-</p><p>nada categoria, de rotulá-lo com um nome conhecido. No momento</p><p>em que nós podemos falar sobre algo, avaliá-lo e então comunicá-lo</p><p>- mesmo vagamente, como quando nós dizemos de alguém que ele</p><p>é “inibido” - então nós podemos representar o não-usual em nosso</p><p>mundo familiar, reproduzi-lo como uma réplica de um modelo fami-</p><p>liar. Pela classificação do que é inclassificável, pelo fato de se dar</p><p>um nome ao que não tinha nome, nós somos capazes de imaginá-</p><p>lo, de representá-lo. De fato, representação é, fundamentalmente,</p><p>um sistema de classificação e de denotação, de alocação de ca-</p><p>tegorias e nomes. A neutralidade é proibida, pela lógica mesma do</p><p>sistema, onde cada objeto e ser devem</p><p>possuir um valor positivo ou</p><p>negativo e assumir um determinado lugar em uma clara escala hie-</p><p>rárquica. Quando classificamos uma pessoa entre os neuróticos, os</p><p>judeus ou os pobres, nós obviamente não estamos apenas colocan-</p><p>do um fato, mas avaliando-a e rotulando-a E neste ato, nós revela-</p><p>mos nossa “teoria” da sociedade e da natureza humana.</p><p>Em minha opinião, esse é um fator vital na psicologia social,</p><p>que não recebeu toda atenção que merece; de fato, os estudos</p><p>existentes dos fenômenos de avaliação, classificação e categori-</p><p>zação (Eiser & Stroebe, 1972) e assim por diante, não conseguem</p><p>levar em consideração o substrato (os pressupostos) de tais fenô-</p><p>menos, ou dar-se conta de que eles pressupõem uma representa-</p><p>ção de seres, objetos e acontecimentos. Na verdade, o processo</p><p>de representação envolve a codificação, até mesmo dos estímu-</p><p>los físicos, em uma categoria especifica, como uma pesquisa sobre</p><p>a percepção das cores, em diferentes cultu ras, tem revelado. Na</p><p>verdade, os estudiosos admitem que as pessoas, quando se lhes</p><p>mostram diferentes cores, as percebem em relação a um pa-</p><p>radigma - embora tal paradigma possa ser-lhes totalmente des-</p><p>conhecido - e as classificam através de uma imagem mental (Ros-</p><p>ch,1977). De fato, uma das lições que a epistemologia con-</p><p>temporânea nos ensinou é que todo sistema de categorias pres-</p><p>supõe uma teoria que o defina e o especifique e especifique o seu</p><p>uso. Quando tal sistema desaparece, nós podemos presumir que</p><p>a teoria também desapareceu. Deixem-nos, porém, continuar sis-</p><p>tematicamente. Classificar algo significa que nós o confinamos a</p><p>um conjunto de comportamentos e regras que estipulam o que é,</p><p>ou não é, permitido, em relação a todos os indivíduos pertencentes</p><p>63</p><p>a essa classe. Quando classificamos uma pessoa como marxista,</p><p>diabo marinho ou leitor do The Times, nós o confinamos a um con-</p><p>junto de limites lingüísticos, espaciais e comportamentais e a cer-</p><p>tos hábitos. E se nós, então, chegamos ao ponto de deixá-lo saber o</p><p>que nós fizemos, nós levaremos nossa interferência ao ponto de</p><p>influenciá-lo, pelo fato de formularmos exigências especificas re-</p><p>lacionadas a nossas expectativas. A principal força de uma classe, o</p><p>que a torna tão fácil de suportar, é o fato de ela proporcionar um</p><p>modelo ou protótipo apropriado para representar a classe e uma</p><p>espécie de amostra de fotos de todas as pessoas que supostamen-</p><p>te pertençam a ela. Esse conjunto de fotos representa uma espécie</p><p>de caso-teste, que sintetiza as características comuns a um núme-</p><p>ro de casos relacionados, isto é, o conjunto é, de um lado, uma</p><p>síntese idealizada de pontos salientes e, de outro lado, uma matriz</p><p>icônica de pontos facilmente identificáveis. Muitos de nós, por</p><p>conseguinte, temos, como nossa representação visual de um cida-</p><p>dão francês, a imagem de uma pessoa de estatura abaixo do</p><p>normal, usando um boné e carregando uma grande peça de pão</p><p>francês.</p><p>Categorizar alguém ou alguma coisa significa escolher um dos</p><p>paradigmas estocados em nossa memória e estabelecer uma rela-</p><p>ção positiva ou negativa com ele. Quando nós sintonizamos o rá-</p><p>dio no meio de um programa, sem conhecer que programa é, nós</p><p>supomos que é uma “novela” se é suficientemente parecido com</p><p>P, quando P corresponde ao paradigma de uma novela, isto é,</p><p>onde há diálogo, enredo, etc. A experiência mostra que é muito</p><p>mais fácil concordar com o que constitui um paradigma, do que</p><p>com o grau de semelhança de uma pessoa com esse paradigma. Da</p><p>pesquisa de Denise Jodelet se percebe que, embora os aldeões fos-</p><p>sem uniformes com respeito à classificação geral dos doentes</p><p>mentais que viviam na aldeia, eles se mostravam bem mais discor-</p><p>dantes em sua opinião no referente à semelhança de cada um dos</p><p>pacientes em relação ao “caso teste”, aceito em sua generalidade.</p><p>Quando se fazia alguma tentativa para definir este caso teste, inu-</p><p>meráveis discrepâncias vinham à luz, que não eram normalmente</p><p>óbvias, graças à cumplicidade de todos os interessados.</p><p>64</p><p>Pode-se dizer, contudo, que em sua grande maioria essas</p><p>classificações são feitas comparando as pessoas a um protótipo,</p><p>geralmente aceito como representante de uma classe e que o pri-</p><p>meiro é definido através da aproximação, ou da coincidência com o</p><p>última Desse modo, nós dizemos de certas personalidades - de</p><p>Gaulle, Maurice Chevalier, Churchill, Einstein, etc. - que eles são</p><p>representativos de uma nação, de políticos e de cientistas e nós</p><p>classificamos outros políticos ou cientistas em relação a eles. Se é</p><p>verdade que nós classificamos e julgamos as pessoas e coisas</p><p>comparando-os com um protótipo, então nós, inevitavelmente,</p><p>estamos inclinados a perceber e a selecionar aquelas caracterís-</p><p>ticas que são mais representativas desse protótipo, exatame n-</p><p>te como os aldeões de Denise Jodelet estavam mais claramente</p><p>conscientes da fala e do comportamento “esquisito” dos doentes</p><p>mentais, durante os dez ou vinte anos de sua estadia lá, do que da</p><p>gentileza, interesse e humanidade generalizados dessas desafor-</p><p>tunadas pessoas.</p><p>Na verdade, qualquer pessoa que tenha sido jornalista, sociólo-</p><p>go ou psicólogo clínico, sabe como a representação de tal ou qual</p><p>gesto, ocorrência ou palavra, pode confirmar uma noticia ou um</p><p>diagnóstico. A ascendência do caso teste deve-se, penso eu, a sua</p><p>concretude, a uma espécie de vitalidade que deixa uma marca tão</p><p>profunda em nossa memória, que somos capazes de usá-lo após</p><p>isso como um referencial contra o qual nós medimos casos indivi-</p><p>duais e qualquer imagem que se pareça com ele, mesmo de longe.</p><p>Por conseguinte, cada caso teste e cada imagem típica contêm o</p><p>abstrato no concreto, que os possibilita, posteriormente, a conse-</p><p>guir o objetivo fundamental da sociedade: criar classes a partir dos</p><p>indivíduos. Desse modo, nós não podemos nunca dizer que conhe-</p><p>cemos um indivíduo, nem que nós tentamos compreendê-lo, mas</p><p>somente que nós tentamos reconhecê-lo, isto é, descobrir que tipo</p><p>de pessoa ele é, a que categoria pertence e assim por diante. Isso</p><p>concretamente significa que ancorar implica também a prioridade</p><p>do veredicto sobre o julgamento e do predicado sobre o sujeito. O</p><p>protótipo é a quintessência de tal prioridade, pois favorece opiniões</p><p>já feitas e geralmente conduz a decisões super apressadas.</p><p>Tais decisões são geralmente conseguidas por uma dessas</p><p>duas maneiras: generalizando ou particularizando. Algumas ve zes,</p><p>65</p><p>uma opinião já feita vem imediatamente à mente e nós tentamos</p><p>descobrir a informação, ou “o particular” que se ajuste a ela; outras</p><p>vezes, nós temos determinado particular em mente e tenta mos</p><p>conseguir uma imagem precisa dele. Generalizando, nós re-</p><p>duzimos as distâncias. Nós selecionamos uma característica alea-</p><p>toriamente e a usamos como uma categoria: judeu, doente mental,</p><p>novela, nação agressiva, etc. A característica se torna, como se re-</p><p>almente fosse, co-extensiva a todos os membros dessa categoria.</p><p>Quando é positiva, nós registramos nossa aceitação; quando é ne-</p><p>gativa, nossa rejeição. Particularizando, nós mantemos a distância</p><p>e mantemos o objeto sob análise, como algo divergente do pro-</p><p>tótipo. Ao mesmo tempo, tentamos descobrir que característica,</p><p>motivação ou atitude o torna distinto. Ao estudar as representa-</p><p>ções sociais da psicanálise, eu tive possibilidade de observar como a</p><p>imagem básica do psicanalista podia, através da exageração de</p><p>uma característica específica - saúde, status, inflexibilidade -, ser</p><p>modificada e particularizada, até chegar a produzir a do “psicana-</p><p>lista americano” e que algumas vezes essas características eram</p><p>enfatizadas conjuntamente. De fato, a tendência para classificar,</p><p>seja pela generalização, ou pela particularização, não é, de nenhum</p><p>modo, uma escolha puramente intelectual, mas reflete uma atitude</p><p>específica para com o objeto, um desejo de defini -lo como normal</p><p>ou aberrante. É isso que está em jogo em todas as classificações de</p><p>coisas não-familiares - a necessidade de defini-las</p><p>como con-</p><p>formes, ou divergentes, da norma. Ademais, quando nós falamos</p><p>sobre similaridade ou divergência, identidade ou diferença, nós</p><p>estamos já dizendo precisamente isso, mas de uma maneira</p><p>descomprometida, que está desprovida de conseqüências sociais.</p><p>Existe uma tendência, entre psicólogos sociais, de ver a clas-</p><p>sificação como uma operação analítica, envolvendo uma espécie</p><p>de catálogo de características separadas - cor da pele, tipo de ca-</p><p>belo, formato do crânio e do nariz, etc. se for uma questão de raça</p><p>- com as quais o indivíduo é comparado e depois incluído na cate-</p><p>goria da qual ele possui mais características em comum. Em outras</p><p>palavras, nós julgaremos sua especificidade, ou não-especificida-</p><p>de, sua similaridade ou diferença, de acordo com uma característi-</p><p>ca ou outra. E não nos admiremos que tal operação analítica tenha</p><p>sido assumida, pois somente exemplos de laboratório foram estu-</p><p>dados até agora e apenas sistemas de classificação que não pos-</p><p>suem relação com o substrato das representações sociais, como</p><p>66</p><p>por exemplo, a visão coletiva do que está sendo então classificado.</p><p>E devido a essa tendência que eu sinto que devo dizer algo mais</p><p>sobre minhas próprias observações sobre representações sociais,</p><p>que mostraram que, quando nós classificamos, nós sempre faze-</p><p>mos comparações com um protótipo, sempre nos perguntamos se</p><p>o objeto comparado é normal, ou anormal, em relação a ele e ten-</p><p>tamos responder á questão: “É ele como deve ser, ou não?”</p><p>Essa discrepância tem conseqüências práticas. Pois, se mi -</p><p>nhas observações estão corretas, então todos nossos “preconcei-</p><p>tos”, sejam nacionais, raciais, geracionais ou quaisquer que al-</p><p>guém tenha, somente podem ser superados pela mudança de nos-</p><p>sas representações sociais da cultura, da “natureza humana” e</p><p>assim por diante. Se, por outro lado, é a visão dominante que é a</p><p>correta, então a única coisa que precisamos fazer é persuadir os</p><p>grupos ou indivíduos contrários, que eles possuem uma quantida-</p><p>de enorme de características em comum, que eles são, de fato,</p><p>espantosamente semelhantes e com isso nós nos livramos de clas-</p><p>sificações profundas e rápidas e de estereótipos mútuos. O suces-</p><p>so bastante limitado desse projeto até essa data, contudo, pode su-</p><p>gerir que o outro é digno de ser tentado.</p><p>Por outro lado, é impossível classificar sem, ao mesmo tempo,</p><p>dar nomes. Na verdade, essas são duas atividades distintas. Em</p><p>nossa sociedade, nomear, colocar um nome em alguma coisa ou em</p><p>alguém, possui um significado muito especial, quase solene. Ao</p><p>nomear algo, nós o libertamos de um anonimato perturbador,</p><p>para dotá-lo de uma genealogia e para incluí-lo em um complexo</p><p>de palavras específicas, para localizá-lo, de fato, na matriz de iden-</p><p>tidade de nossa cultura.</p><p>De fato, o que é anônimo, o que não pode ser nomeado, não se</p><p>pode tornar uma imagem comunicável ou ser facilmente ligado a</p><p>outras imagens. É relegado ao mundo da confusão, incerteza e</p><p>inarticulação, mesmo quando nós somos capazes de classificá-lo</p><p>aproximadamente como normal ou anormal. Claudine Herzlich</p><p>(Herzlich, 1973), em um estudo sobre representações sociais da</p><p>saúde e da doença, analisou admiravelmente esse aspecto alusivo</p><p>dos sintomas, as tentativas muitas vezes fracassadas que todos</p><p>nós fazemos para prendê-los pela fala e a maneira como eles esca-</p><p>pam de nossas garras, como um peixe escapa das malhas largas</p><p>de uma rede. Dar nome, dizer que algo é isso ou aquilo - se neces-</p><p>67</p><p>sário, inventar palavras para esse fim - nos possibilita construir</p><p>uma malha que seja suficientemente pequena para impedir que o</p><p>peixe escape e desse modo nos dá a possibilidade de representar</p><p>essa realidade. O resultado é sempre algo arbitrário mas, desde</p><p>que um consenso seja estabelecido, a associação da palavra com a</p><p>coisa se torna comum e necessária.</p><p>De modo geral, minhas observações provam que dar nome a</p><p>uma pessoa ou coisa é precipitá-la (como uma solução química é</p><p>precipitada) e que as conseqüências daí resultantes são tríplices: a)</p><p>uma vez nomeada, a pessoa ou coisa pode ser descrita e adquire</p><p>certas características, tendências etc.; b) a pessoa, ou coisa, torna-</p><p>se distinta de outras pessoas ou objetos, através dessas caracterís-</p><p>ticas e tendências; c) a pessoa ou coisa toma-se o objeto de uma</p><p>convenção entre os que adotam e partilham a mesma convenção.</p><p>O estudo de Claudine Herzlich revela que o rótulo convencional</p><p>“fadiga” relaciona um conjunto de sintomas vagos a certos pa-</p><p>drões sociais e individuais, distingue-os dos conceitos de doença e</p><p>saúde e toma-os aceitáveis, quase justificáveis, á nossa socieda-</p><p>de. E, pois, permitido falar sobre nossa fadiga, dizer que estamos</p><p>sofrendo de cansaço e reclamar certos direitos que, normalmente,</p><p>em uma sociedade baseada no trabalho e bem-estar, seriam proi-</p><p>bidos. Em outras palavras, algo que era antes negado é agora ad-</p><p>mitido.</p><p>Fui capaz de fazer eu mesmo uma observação semelhante.</p><p>Percebi que termos psicanalíticos como “neurose” ou “complexo”</p><p>davam consistência e mesmo realidade a estados de tensão, desa-</p><p>justamento, de alienação mesmo, que costumavam ser vistos</p><p>como meio-caminho entre a “loucura” e a “sanidade”, mas nunca</p><p>eram levados muito a sério. Era óbvio que, na medida em que re-</p><p>cebiam um nome, eles paravam de incomodar. A psicanálise é</p><p>também responsável pela proliferação de termos derivados de um</p><p>modelo único, de tal modo que nós vemos um sintoma psíquico</p><p>rotulado “complexo de timidez”, “complexo de gêmeos”, “com-</p><p>plexo de poder”, “complexo de Sardanápalo” que, está claro, não</p><p>são termos psicanalíticos, mas palavras cunhadas para imitá-los.</p><p>Ao mesmo tempo, o vocabulário psicanalítico se ancora no voca-</p><p>bulário da linguagem do dia-a-dia e toma-se, assim, socializado.</p><p>Tudo o que era incômodo e enigmático sobre essas teorias está re-</p><p>lacionado a sintomas, ou a pessoas, que eram vistas como algo</p><p>68</p><p>que incomodava ou perturbava, com o objetivo de construir ima-</p><p>gens estáveis, dentro de um contexto organizado, que não tem ab-</p><p>solutamente nada de perturbador em si mesmo.</p><p>Na realidade, é dada uma identidade social ao que não estava</p><p>identificado- o conceito cientifico torna-se parte da linguagem</p><p>comum e os indivíduos ou sintomas não são mais que termos téc-</p><p>nicos familiares e científicos. E dado um sentido, ao que antes não</p><p>o tinha, no mundo consensual. Poderíamos quase dizer que essa</p><p>duplicação e proliferação de nomes corresponde a uma tendência</p><p>nominalística, a uma necessidade de identificar os seres e coisas,</p><p>ajustando-os em uma representação social predominante. Cha-</p><p>mamos antes a atenção à multiplicação de “complexos” que acom-</p><p>panhou a popularização da psicanálise e tomou o lugar de expres-</p><p>sões correntes, tais como “timidez”, “autoridade”, “irmãos”, etc.</p><p>Com isso, os que falam e os de quem se fala são forçados a entrar</p><p>em uma matriz de identidade que eles não escolheram e sobre a</p><p>qual eles não possuem controle.</p><p>Podemos até mesmo ir ao ponto de sugerir que essa é a ma-</p><p>neira como todas as manifestações normais e divergentes da exis-</p><p>tência social são rotuladas - indivíduos e grupos são estigmatiza-</p><p>dos, seja psicológica, seja politicamente. Por exemplo, quando</p><p>nós chamamos uma pessoa, cujas opiniões não estão de acordo</p><p>com a ideologia corrente, de um “inimigo do povo”, o termo que, de</p><p>acordo com aquela ideologia, sugere uma imagem definida, exclui</p><p>essa pessoa da sociedade à qual ela pertence. É pois evidente que</p><p>dar nome não é uma operação puramente intelectual, com o obje-</p><p>tivo de conseguir uma clareza ou coerência lógica. É uma operação</p><p>relacionada com uma atitude social. Tal observação é ditada pelo</p><p>senso comum e nunca deve ser ignorada, pois ela é válida para</p><p>todos os casos e não apenas para os casos excepcionais que eu dei</p><p>como exemplos.</p><p>Sintetizando, classificar e dar nomes são dois aspectos dessa</p><p>ancoragem das representações. Categorias e nomes partilham do</p><p>que o historiador de arte Gombrich chamou de “sociedade</p><p>tradução inglesa desse texto não iria, por si mesma,</p><p>resolver todas as diferenças entre as idéias de Moscovici e os pa-</p><p>drões dominantes do pensamento sociopsicológico na Inglaterra e</p><p>nos EE.UU., mas teria, ao menos, ajudado a reduzir o número de</p><p>maus entendimentos do trabalho de Moscovici, e adicionado uma</p><p>penumbra de confusão às discussões destas idéias em inglês.</p><p>Mais que isso, porém, a falta duma tradução significa que a cultura</p><p>anglo-saxã, predominantemente monolingüe, não teve acesso a</p><p>um texto, em que temas centrais e idéias sobre a teoria das re-</p><p>presentações sociais são apresentados e elaborados, no contexto</p><p>vital dum estudo especifico de pesquisa. Quando estas idéias são</p><p>colocadas em ação na estrutura dum projeto de pesquisa, na orde-</p><p>nação e no processo de tomar inteligível a massa de dados empíri-</p><p>cos que emergem, elas assumem também um sentido concreto,</p><p>que é apenas fracamente visível nos textos teóricos mais abstra-</p><p>tos, ou programáticos.</p><p>10</p><p>Mas se o trabalho de Moscovici foi obscurecido no mundo an-</p><p>glo-saxão, o próprio conceito de representação social teve</p><p>uma história problemática dentro da psicologia social. Na</p><p>verdade, Moscovici intitula o capitulo inicial de La Psychanalyse</p><p>“Representação social: um conceito perdido”, e introduz seu traba-</p><p>lho nesses termos:</p><p>As representações sociais são entidades quase tangíveis.</p><p>Elas circulam, se entrecruzam e se cristalizam continua-</p><p>mente, através duma palavra, dum gesto, ou duma reunião,</p><p>em nosso mundo cotidiano- Elas impregnam a maioria de</p><p>nossas relações estabelecidas, os objetos que nós produzi-</p><p>mos ou consumimos e as comunicações que estabelecemos.</p><p>Nós sabemos que elas correspondem, dum lado, à substân-</p><p>cia simbólica que entra na sua elaboração e, por outro lado,</p><p>à prática especifica que produz essa substância, do mesmo</p><p>modo como a ciência ou o mito correspondem a uma práti-</p><p>ca científica ou mítica.</p><p>Mas se a realidade das representações é fácil de ser compreen-</p><p>dida, o conceito não o é. Há muitas boas razões pelas quais</p><p>isso é assim. Na sua maioria, elas são históricas e é por isso</p><p>que nós devemos encarregar os historiadores da tarefa de</p><p>descobri-las. As razões não-históricas podem todas ser re-</p><p>duzidas a uma única: sua posição “mista”, no cruzamento</p><p>entre uma série de conceitos sociológicos e uma série de</p><p>conceitos psicológicos. É nessa encruzilhada que nós temos</p><p>de nos situar. O caminho, certamente, pode representar algo</p><p>pedante quanto a isso, mas nós não podemos ver outra maneira</p><p>de libertar tal conceito de seu glorioso passado, de revitali-</p><p>zá-lo e de compreender sua especificidade (1961/1976: 40-41).</p><p>O ponto de partida fundamental para essa jornada intelect u-</p><p>al, contudo, foi a insistência de Moscovici no reconhecimento da</p><p>existência de representações sociais como uma forma característi-</p><p>ca de conhecimento em nossa era, ou, como ele coloca, uma in-</p><p>sistência em considerar “como um fenômeno, o que era antes con-</p><p>siderado como um conceito” (capitulo 1).</p><p>Na verdade, desenvolver uma teoria das representações so-</p><p>ciais implica que o segundo passo da jornada deve ser começar a</p><p>teorizar esse fenômeno. Mas, antes de nos voltarmos para esse se-</p><p>gundo passo, gostaria de parar, por um momento, no primeiro</p><p>passo e perguntar o que significa considerar como um fenômeno</p><p>11</p><p>o que era antes visto como um conceito, pois o que pode parecer</p><p>como um pequeno aperçu (apanhado), de fato, contém alguns</p><p>tropos especificamente moscovicianos. Antes de tudo, há certa</p><p>coragem nessa idéia, em não ter receio de afirmar uma generaliza-</p><p>ção conclusiva, uma generalização que tem ta mbém o efeito de</p><p>separar radicalmente a concepção de Moscovici, com respeito aos</p><p>objetivos e ao escopo da psicologia social, das formas predomi-</p><p>nantes dessa disciplina. Mais precisamente, Moscovici se filia aqui</p><p>à corrente de pensamento sociopsicológico que foi sempre uma</p><p>corrente minoritária, ou marginal, dentro duma disciplina domi-</p><p>nada, em nosso século, primeiro pelo comportamentalismo e, mais</p><p>recentemente, por um cognitivismo não menos reducionista e, du-</p><p>rante todo esse tempo, por um individualismo extremo. Mas, em</p><p>suas origens, a psicologia social se construiu ao redor dum con-</p><p>junto diferente de preocupações. Se Wilhelm Wundt é lembrado</p><p>hoje principalmente como o fundador da psicologia experimental,</p><p>ele é também, cada vez mais, reconhecido pela contribuição que</p><p>sua Völkerpsychologie trouxe ao estabelecimento da psicologia</p><p>social (Danziger, 1990; Farr, 1996; Jahoda, 1992).</p><p>Apesar de todas as suas falhas, a teoria de Wundt, contudo,</p><p>situou claramente a psicologia social na mesma encruzilhada, en-</p><p>tre os conceitos sociológicos e psicológicos indicados por Mosco -</p><p>vici. Longe de abrir uma linha produtiva de pesquisa e teoria, o tra-</p><p>balho de Wundt foi logo eclipsado pelas crescentes correntes de</p><p>pensamento psicológico que rejeitaram toda a associação com o</p><p>“social”, como se ele fosse comprometer o status científico da psi-</p><p>cologia. O que Danziger (1979) chamou de “o repúdio positivista</p><p>de Wundt” serviu para garantir a exclusão do social do campo de</p><p>ação da psicologia social emergente. Ao menos, esse foi o caso que</p><p>Farr (1996) chamou de sua forma “psicológica”, mas, como ele tam-</p><p>bém mostra, uma forma “sociológica” também persistiu, brotando</p><p>principalmente do trabalho de Mead, no qual a Völkerpsychologic de</p><p>Wundt teve uma grande influência (e devemos dizer que uma</p><p>preocupação com o social é também característica da psicologia de</p><p>Vygotsky; ver capítulos 3 e 6). Na verdade, Farr chegou a sugerir</p><p>que a separação radical, feita por Durkheim (1891/1974), de re-</p><p>presentações “individuais” e “coletivas”, contribuiu para a insti-</p><p>tucionalização duma crise na psicologia soc ial, que perdura</p><p>até hoje. Durante o século vinte, sempre que formas “sociais” de</p><p>psicologia surgiram, nós testemunhamos o mesmo drama de ex-</p><p>clusão, que marcou a recepção do trabalho de Wundt.</p><p>12</p><p>Uma “compulsão em repetir” mascara um tipo de neurose i-</p><p>deológica, que foi mobilizada sempre que o social ameaçou invadir</p><p>o psicológico. Ou, para passar duma metáfora freudiana para uma</p><p>antropológica, o social representou, consistentemente, uma amea-</p><p>ça de poluição à pureza da psicologia científica.</p><p>Por que se mostrou tão difícil estabelecer uma psicologia so-</p><p>cial que incluísse tanto o social como o psicológico? Embora Mos-</p><p>covici sugerisse, na citação acima, que isso era uma questão para</p><p>historiadores, ele mesmo contribuiu, de algum modo, para escla-</p><p>recer esse enigma, como muitos dos textos aqui coletados teste-</p><p>munham (ver capítulos 1, 2, 3 e 7). Num ensaio histórico importan-</p><p>te, The Invention of Society, Moscovici (1988/1993) oferece mais</p><p>um conjunto de considerações que discutem a questão comple-</p><p>mentar de por que as explicações psicológicas foram vistas como</p><p>ilegítimas, na teoria sociológica. Durkheim formulou suas idéias</p><p>explicitamente em seu aforismo de que “sempre que um fenôme-</p><p>no social é diretamente explicado por um fenômeno psicológico,</p><p>podemos estar seguros que a explicação é falsa” (1895/1982: 129).</p><p>Mas, como mostra Moscovici, esse preceito contra a explicação</p><p>psicológica não apenas percorre, como um fio unificador, através</p><p>do trabalho dos escritores clássicos da teoria social moderna, mas</p><p>é também sub-repticiamente contradito por esses mesmos textos.</p><p>Pois, ao construir explicações sociais para fenômenos sociais, es-</p><p>tes sociólogos (Weber e Simmel são os exemplos analisados por</p><p>Moscovici, junto com Durkheim), necessitam também introduzir</p><p>alguma referência aos processos psicológicos para fornecer coe-</p><p>rência e integridade a suas análises. Em síntese, nesse trabalho</p><p>Moscovici é capaz de demonstrar, através de sua própria análise</p><p>destes textos fundantes da sociologia moderna, que o referencial</p><p>explanatório exigido para tornar os fenômenos sociais inteligíveis</p><p>deve incluir conceitos psicológicos, bem como sociológicos.</p><p>A questão, contudo, de por que foi tão</p><p>de con-</p><p>ceitos”. E não simplesmente em seu conteúdo, mas também em</p><p>suas relações. Não nego, de modo algum, o fato de que eles são</p><p>naturalmente lógicos e tendem a uma estabilidade e consistência,</p><p>como asseguram Heider e outros. Nem que tal ordem seja prova-</p><p>velmente exigente. Posso ajudar, contudo, a observar que essas</p><p>69</p><p>relações de estabilidade e consistência são altamente rarefeitas e</p><p>são abstrações rigorosas que não se relacionam, nem direta, nem</p><p>operacionalmente, com a criação de representações. Por outro</p><p>lado, relações diferentes, que são induzidas por padrões sociais e</p><p>produzem um caleidoscópio de imagens ou emoções, podem ser</p><p>vistas como presentes. A amizade parece desempenhar uma parte</p><p>importante na psicologia de Fritz Heider, quando ele analisa as re-</p><p>lações pessoais (veja o capitulo de Flement nesse volume). Sem</p><p>dúvida, ele chama isso pelo nome geral de estabilidade, mas deve</p><p>ficar claro para todos que, entre os exemplos possíveis de estabili-</p><p>dade, ele escolheu este como um protótipo para todos os outros.</p><p>A família é outra imagem muito popular para relações em ge-</p><p>ral. Assim, intelectuais e trabalhadores são descritos como irmãos;</p><p>complexos, como pais; e os neuróticos, como filhos (“o complexo é</p><p>o pai do neurótico”, como disse alguém recentemente em uma</p><p>entrevista); e assim por diante. O conflito ocupa o lugar de outro</p><p>tipo de relação e está sempre implícito em toda descrição de pares</p><p>contrastantes: o que o termo “normal” implica e o que ele exclui; a</p><p>dimensão consciente e inconsciente do individuo; o que nós cha-</p><p>mamos saúde e o que nós chamamos doença. A hostilidade está</p><p>também sempre presente, como pano de fundo, quando nós com-</p><p>paramos raças, nações ou classes. E relações de força e fraqueza</p><p>freqüentemente definem preferências, onde a hierarquia abrange</p><p>as várias categorias e nomes. Eu cito aleatoriamente, mas valeria a</p><p>pena explorar, em detalhe, as maneiras em que a lógica da lingua-</p><p>gem expressa a relação entre os elementos de um sistema de clas-</p><p>sificação e o processo de dar nome. Padrões mais sugestivos do</p><p>que os com que nós estamos agora familiarizados podem emergir.</p><p>Nossos padrões atuais são, de qualquer modo, muito artifici-</p><p>ais de um ponto de vista psicológico e socialmente vazios de sen-</p><p>tido. O fato é que se nós tomamos a estabilidade como um tipo de</p><p>amizade, ou o conflito como uma hostilidade total, é simplesmente</p><p>porque os padrões são mais acessíveis e concretos em tais formas</p><p>e podem ser correlacionados com nossos pensamentos e emoções;</p><p>temos, pois, maiores possibilidades de expressá -los ou de</p><p>incluí-los em uma descrição que será facilmente inteligível a qual-</p><p>quer pessoa. É esse o resultado da rotinização -um processo que</p><p>nos possibilita pronunciar, ler ou escrever uma palavra ou noção</p><p>familiar no lugar de, ou preferencialmente, a uma palavra ou no-</p><p>ção menos familiar.</p><p>70</p><p>A esta altura, a teoria das representações traz duas conse-</p><p>qüências. Em primeiro lugar, ela exclui a idéia de pensamento ou</p><p>percepção que não possua ancoragem. Isso exclui a idéia do assim</p><p>chamado viés no pensamento ou percepção. Todo sistema de clas-</p><p>sificações e de relações entre sistemas pressupõe uma posição</p><p>especifica, um ponto de vista baseado no consenso. E impossível</p><p>ter um sistema geral, sem vieses, assim como é evidente que existe</p><p>um sentido primeiro para qualquer objeto especifico. Os vieses</p><p>que muitas vezes são descritos não expressam, como se diz, um</p><p>déficit ou limitação social ou cognitiva, mas uma diferença normal</p><p>de perspectiva, entre indivíduos ou grupos heterogêneos dentro</p><p>de uma sociedade. E não podem ser expressos pela simples razão</p><p>que seu oposto - a ausência de um déficit ou de uma limitação</p><p>social ou cognitiva - não tem sentido. Isso equivale a admitir a im-</p><p>possibilidade de uma psicologia social de um ponto de vista de</p><p>Sirius, como os que querem que as coisas sejam como pretendem</p><p>que sejam, isto é, se colocarem unicamente e ao mesmo tempo,</p><p>tanto dentro da sociedade, como observá-la de fora; que afirmavam</p><p>que uma das posições, dentro da sociedade, era normal e todas as</p><p>outras divergentes dela. Essa é uma posição totalmente insusten-</p><p>tável.</p><p>Em segundo lugar sistemas de classificação e de nomeação</p><p>(classificar e dar nomes) não são, simplesmente, meios de gradua r</p><p>e de rotular pessoas ou objetos considerados como entidades dis-</p><p>cretas. Seu objetivo principal é facilitar a interpretação de caracte-</p><p>rísticas, a compreensão de intenções e motivos subjacentes às</p><p>ações das pessoas, na realidade, formar opiniões. Na verdade</p><p>esta é uma preocupação fundamental. Grupos, assim como indiví-</p><p>duos, estão inclinados, sob certas condições, tais como super-</p><p>excitação ou perplexidade, ao que nós poderíamos chamar de ma-</p><p>nias de interpretação. Pois nós não podemos esquecer que inter-</p><p>pretar uma idéia ou um ser não-familiar sempre requer categori-</p><p>as, nomes, referências, de tal modo que a entidade nomeada possa</p><p>ser integrada na “sociedade dos conceitos” de Gombrich. Nós os</p><p>fabricamos com esta finalidade, na medida em que os sentidos</p><p>emergem; nós os tornamos tangíveis e visíveis e semelhantes i-</p><p>déias e seres que nós já integramos e com os quais nós estamos</p><p>familiarizados. Desse modo, representações preexistentes são de</p><p>certo modo modificadas e aquelas entidades que devem ser re-</p><p>presentadas são mudadas ainda mais, de tal modo que adqu i-</p><p>rem nova existência.</p><p>71</p><p>• Objetivação - O físico inglês Maxwell disse, certa vez, que o</p><p>que parecia abstrato a uma geração se torna concreto para a se-</p><p>guinte. Surpreendentemente, teorias incomuns, que ninguém le-</p><p>vava a sério, passam a ser normais, criveis e explicadoras da reali-</p><p>dade, algum tempo depois. Como um fato tão improvável, como o</p><p>de um corpo físico produzindo uma reação á distância em um lu-</p><p>gar onde ele não está concretamente presente, pode transfor-</p><p>mar-se, menos de um século depois, em um fato comum, inques-</p><p>tionável - isso é ao menos tão misterioso, como sua descoberta, e</p><p>de conseqüências práticas muito maiores. Poderíamos mesmo ir</p><p>além da colocação de Maxwell, acrescentando que o que é inco-</p><p>mum e imperceptível para uma geração, torna-se familiar e óbvio</p><p>para a seguinte. Isso não se deve simplesmente a passagem do</p><p>tempo ou dos costumes, embora ambos sejam provavelmente ne-</p><p>cessários. Essa domesticação é o resultado da objetivação, que é</p><p>um processo muito mais atuante que a ancoragem e que nós va-</p><p>mos discutir agora.</p><p>Objetivação une a idéia de não-familiaridade com a de realida-</p><p>de, torna-se a verdadeira essência da realidade. Percebida primei-</p><p>ramente como um universo puramente intelectual e remoto, a ob-</p><p>jetivação aparece, então, diante de nossos olhos, física e acessí-</p><p>vel. Sob esse aspecto, estamos legitimados ao afirmar, com Lewin,</p><p>que toda representação torna real - realiza, no sentido próprio do</p><p>termo - um nível diferente da realidade. Esses níveis são criados e</p><p>mantidos pela coletividade e se esvaem com ela, não tendo exis-</p><p>tência por si mesmos; por exemplo, o nível sobrenatural, que em</p><p>certo tempo era quase onipresente, é agora praticamente inexis-</p><p>tente. Entre a ilusão total e a realidade total existe uma infinidade</p><p>de graduações que devem ser levadas em consideração, pois nós</p><p>as criamos, mas a ilusão e a realidade são conseguidas exatamen te</p><p>do mesmo modo.</p><p>A materialização de uma abstração é uma das características</p><p>mais misteriosas do pensamento e da fala. Autorida des políticas e</p><p>intelectuais, de toda espécie, a exploram com a fi nalidade de sub-</p><p>jugar as massas. Em outras palavras, tal autorida de está funda-</p><p>mentada na arte de transformar uma representação na realidade</p><p>da representação; transformar a palavra que substitui a coisa, na</p><p>coisa que substitui a palavra.</p><p>Para começar, objetivar é descobrir a qualidade icônica de</p><p>uma idéia, ou ser impreciso; é reproduzir um conceito em uma</p><p>imagem. Comparar é já representar, encher o que está natural-</p><p>72</p><p>mente vazio, com substância. Temos apenas de comparar Deus</p><p>com um pai e o que era invisível, instantaneamente se toma visível</p><p>em nossas mentes, como uma pessoa a quem nós podemos res-</p><p>ponder como tal. Um enorme estoque de palavras, que se referem</p><p>a objetos específicos, está em circulação em toda sociedade e nós</p><p>estamos sob constante pressão para provê-los com sentidos con-</p><p>cretos equivalentes. Desde que suponhamos que as palavras não</p><p>falam sobre “nada”, somos obrigados a ligá-las a algo, a encontrar</p><p>equivalentes não-verbais para elas. Assim como se acredita na</p><p>maioria dos boatos por causa do provérbio: “Não há fumaça sem</p><p>fogo”, assim uma coleção de imagens é criada por causa do pro-</p><p>vérbio: “Ninguém fala sobre coisa alguma”.</p><p>Mas nem todas as palavras, que constituem esse estoque, po-</p><p>dem ser ligadas a imagens, seja porque não existem imagens sufi-</p><p>cientes facilmente acessíveis, seja porque as imagens que são</p><p>lembradas são tabus. As imagens que foram selecionadas, devido a</p><p>sua capacidade de ser representadas, se mesclam, ou melhor,</p><p>são integradas no que eu chamei de um padrão de núcleo figurati-</p><p>vo, um complexo de imagens que reproduzem visivelmente um</p><p>complexo de idéias. Por exemplo, o padrão popular da psiquê her-</p><p>dado dos psicanalistas está dividido em dois, o inconsciente e o</p><p>consciente - reminiscente de dualidades mais comuns, tais como</p><p>involuntário-voluntário, alma-corpo, interno-externo - localizado,</p><p>no espaço um sobre o outro. Acontece, assim, que o mais alto, e-</p><p>xerce pressão sobre o que está abaixo e esta “repressão” é o que dá</p><p>origem aos complexos. Vale também a pena notar que os termos</p><p>representados são os que são mais conhecidos e mais comumente</p><p>empregados. A ausência, pois, de sexualidade, ou libido, é certa-</p><p>mente surpreendente, pois ela desempenha uma parte significati-</p><p>va na teoria e tem possibilidade de ser fortemente carregada de</p><p>um conjunto de imagens. Sendo, contudo, o objeto de um tabu, ela</p><p>permanece abstrata. Fui capaz, na verdade, de mostrar que nem</p><p>todos os conceitos psicanalíticos sofrem tal transformação, que</p><p>nem todos são igualmente favorecidos. Parece, então que a soci-</p><p>edade faz uma seleção daqueles aos quais ela concede poderes</p><p>figurativos, de acordo com suas crenças e como estão preexistente</p><p>de imagens. Por isso afirmei, há algum tempo: “ Embora um para-</p><p>digma seja aceito porque ele possui um forte referencial, sua</p><p>aceitação deve-se também à sua afinidade com paradigmas mais</p><p>atuais. A concretude dos elementos desse “sistema psíquico deriva</p><p>73</p><p>de sua capacidade de traduzir situações comuns” (Moscovici,</p><p>1961/1976).</p><p>Isso não implica, de modo algum, que mudanças subseqüen-</p><p>tes não aconteçam. Mas tais mudanças acontecem durante a</p><p>transmissão de referenciais familiares, que respondem gradualmen-</p><p>te ao que foi recentemente aceito, do mesmo modo que o leito do</p><p>rio é gradualmente modificado pelas águas que correm entre as</p><p>margens.</p><p>Uma vez que uma sociedade tenha aceito tal paradigma, ou</p><p>núcleo figurativo, ela acha fácil falar sobre tudo o que se relacione</p><p>com esse paradigma e devido a essa facilidade as palavras que se</p><p>referem ao paradigma são usadas mais freqüentemente. Surgem,</p><p>então, fórmulas e clichês que o sintetizam e imagens, que eram</p><p>antes distintas, aglomeram-se ao seu redor. Não somente se fala</p><p>dele, mas ele passa a ser usado, em várias situações sociais, como</p><p>um meio de compreender outros e a si mesmo, de escolher e deci-</p><p>dir. Mostrei (Moscovici, 1961/1976) como a psicanálise, uma vez</p><p>popularizada, tornou-se uma chave que abria todos os cadeados</p><p>da existência privada, pública e política. Seu paradigma figurativo</p><p>foi separado de seu ambiente original através de uso contínuo e</p><p>adquiriu uma espécie de independência, do mesmo modo como</p><p>acontece com um provérbio bastante comum, que vai sendo gra-</p><p>dualmente separado da pessoa que o disse pela primeira vez e tor-</p><p>na-se um dito corriqueiro. Quando, pois, a imagem ligada à pala-</p><p>vra ou à idéia se torna separada e é deixada solta em uma socieda-</p><p>de, ela é aceita como uma realidade, uma realidade convencional,</p><p>clara, mas de qualquer modo uma realidade.</p><p>Embora nós todos saibamos que um “complexo” é uma noção</p><p>cujo equivalente objetivo é bastante vago, nós ainda pensamos e</p><p>nos comportamos, como se ele fosse algo que realmente existisse,</p><p>no momento em que nós julgamos uma pessoa e a relacionamos a</p><p>ele. Ele não simboliza simplesmente sua personalidade, ou sua</p><p>maneira de se comportar, mas na verdade o representa, é, passa a</p><p>constituir, sua personalidade “complexada” e sua maneira de se</p><p>comportar. Na verdade, pode-se dizer, sem equívocos, que em to-</p><p>dos os casos, uma vez conseguida a transfiguração, a idolatria co-</p><p>letiva é, então, uma possibilidade. Todas as imagens podem conter</p><p>realidade e eficiência em seus inícios e terminar sendo adora das.</p><p>Em nossos dias, o divã psicanalítico ou o “progresso” são exem-</p><p>75</p><p>74</p><p>plos flagrantes desse fato. Isso acontece na medida em que a dis-</p><p>tinção entre imagem e realidade são esquecidas. A imagem do</p><p>conceito deixa de ser um signo e torna-se a réplica da realidade,</p><p>um simulacro, no verdadeiro sentido da palavra. A noção, pois, ou a</p><p>entidade da qual ela proveio, perde seu caráter abstrato, arbitrá-</p><p>rio e adquire uma existência quase física, independente. Ela passa</p><p>a possuir a autoridade de um fenômeno natural para os que a</p><p>usam. Esse é precisamente o caso do complexo, ao qual tanta rea-</p><p>lidade é geralmente concedida, quanto a um átomo ou a um aceno</p><p>de mão. Esse é um exemplo de uma palavra que cria os meios.</p><p>O segundo estágio, no qual a imagem é totalmente assimilada</p><p>e o que é percebido substitui o que é concebido, é o resultado lógi-</p><p>co deste estado de coisas. Se existem imagens, se elas são essen-</p><p>ciais para a comunicação e para a compreensão social, isso é por-</p><p>que elas não existem sem realidade (e não podem permanecer</p><p>sem ela), do mesmo modo que não existe fumaça sem fogo. Se as</p><p>imagens devem ter uma realidade, nós encontramos uma para</p><p>elas, seja qual for. Então, como por uma espécie de imperativo ló-</p><p>gico, as imagens se tornam elementos da realidade, em vez de ele-</p><p>mentos do pensamento. A defasagem entre a representação e o</p><p>que ela representa é preenchida, as peculiaridades da réplica do</p><p>conceito tornam-se peculiaridades dos fenômenos, ou do ambien-</p><p>te ao qual eles se referem, tornam-se a referência real do conceito.</p><p>Todos podem, por isso, hoje em dia, perceber e distinguir as “re-</p><p>pressões” de uma pessoa, ou seus “complexos”, como se eles fos-</p><p>sem suas características físicas.</p><p>Nosso ambiente é fundamentalmente composto de tais ima-</p><p>gens e nós estamos continuamente acrescentando-lhe algo e mo-</p><p>dificando-o, descartando algumas imagens e adotando outras.</p><p>Mead escreve: “Vimos precisamente que o conjunto de imagens</p><p>mentais que entra na formação da estrutura dos objetos e que re-</p><p>presenta o ajustamento do organismo a ambientes inexistentes</p><p>pode servir para a reconstrução do campo objetivo” (Mead, 1934).</p><p>Quando isso acontece, as imagens não ocupam mais aquela posi-</p><p>ção especifica, em algum lugar entre palavras, que supostamente</p><p>tenham um sentido e objetos reais, aos quais somente nós pode-</p><p>mos dar um sentido, mas passam a existir como objetos, são o que</p><p>significam.</p><p>A cultura - mas não a ciência- nos incita, hoje, a construir rea-</p><p>lidades a partir de idéias geralmente significantes. Existem razões</p><p>óbvias para isso, dentre as quais a mais óbvia, do ponto de vista da</p><p>75</p><p>sociedade, é apropriar-se e transformar em característica comum</p><p>o que originalmente pertencia a um campo ou esfera específica.</p><p>Os filósofos gastaram muito tempo tentando compreender o</p><p>processo de transferência de uma esfera a outra. Sem representa-</p><p>ções, sem a metamorfose das palavras em objetos, é absolutamen-</p><p>te impossível existir alguma transferência. O que afirmei a respeito</p><p>da psicanálise é confirmado pela pesquisa meticulosa:</p><p>Através da objetivação do conteúdo cientifico da psicanáli-</p><p>se, a sociedade não confronta mais a psicanálise ou o psic a-</p><p>nalista,</p><p>mas um conjunto de fenômenos que ela tem a liberdade de</p><p>tratar como quer. A evidência de homens particulares tomou-se a e-</p><p>vidência de nossos sentidos, um universo desconhecido é</p><p>agora um território familiar, O indivíduo, em contato direto com</p><p>esse universo, sem a mediação de peritos ou de sua ciência,</p><p>passou de uma relação secundaria com seu objeto para uma rela-</p><p>ção primária e esse pressuposto indireto de poder é uma ação cultu-</p><p>ralmente produtiva (Moscovici, 1961/1976: 1O9).</p><p>Na verdade, nós encontramos, então, incorporados em nossa</p><p>fala, nossos sentidos e ambiente, de uma maneira anônima, ele-</p><p>mentos que são preservados e colocados como material comum</p><p>do dia-a-dia, cujas origens são obscuras ou esquecidas. Sua reali-</p><p>dade é um espaço vazio em nossa memória - mas não é toda reali-</p><p>dade uma só? Não objetivamos nós de tal modo que esquecemos</p><p>que a criação, que a construção material é o produto de nossa pró-</p><p>pria atividade, que alguma coisa é também alguém? Como afir-</p><p>mei: “Em última análise, a psicanálise poderia estar morta e sepul-</p><p>tada, mas ainda assim, como a Física de Aristóteles, ela iria permear</p><p>nossa visão de mundo e seu jargão seria usado para descre ver o</p><p>comportamento psicológico” (Moscovici, 1961/1976: 109).</p><p>O modelo de toda aprendizagem, em nossa sociedade, é a ci-</p><p>ência da física matemática, ou a ciência dos objetos quantificá veis,</p><p>mensuráveis. Desde que o conteúdo científico, mesmo de uma</p><p>ciência do homem ou da vida, pressuponha esse tipo de realidade,</p><p>todos os seres aos quais ela se refira são concebidos de acordo com</p><p>tal modelo. Sendo que a ciência se refere a órgãos físicos e a psicaná-</p><p>lise é uma ciência, então o inconsciente, por exemplo, ou um com-</p><p>plexo, serão vistos como órgãos do sistema físico. Desse modo, um</p><p>complexo poderá ser amputado, desenhado ou percebido. Como se</p><p>76</p><p>pode perceber, o que é vivo é assimilado ao que é inerte, o subjeti-</p><p>vo ao objetivo e o psicológico ao biológico. Cada cultura possui</p><p>seus próprios instrumentais para transformar suas representa-</p><p>ções em realidade. Algumas vezes as pessoas, outras os animais,</p><p>serviram para tal propósito. Desde o começo da era mecânica, os</p><p>objetos dominaram e nós estamos obsessionados com um ani-</p><p>mismo às avessas, que povoa nosso mundo com máquinas, em vez</p><p>de criaturas vivas. Podemos, pois, dizer que no referente a comple-</p><p>xos, átomos e genes, nós não apenas imaginamos um objeto, mas</p><p>criamos, em geral, uma imagem com a ajuda do objeto com o qual</p><p>nós os identificamos.</p><p>Nenhuma cultura, contudo, possui um instrumento único, ex-</p><p>clusivo. E devido ao fato de que o nosso instrumento está relacio-</p><p>nado com os objetos, ele nos encoraja a objetivar tudo o que en-</p><p>contramos. Nós personificamos, indiscriminadamente, sentimen-</p><p>tos, classes sociais, os grandes poderes, e quando nós escrevemos,</p><p>nós personificamos a cultura, pois é a própria linguagem que nos</p><p>possibilita fazer isso. Gombrich escreve:</p><p>Acontece, pois, que as línguas indo-européias tendem em</p><p>direção a essa configuração particular, que nós chamamos</p><p>personificação, pois muitas delas dão aos nomes um gênero, que os</p><p>tornam inseparáveis dos nomes dados a espécies vivas.</p><p>Nomes abstratos em grego, em latim, quase sempre assu-</p><p>mem um gênero feminino e desse modo o caminho está a-</p><p>berto para que o mundo das idéias seja povoado por abs-</p><p>trações personif icadas, tais como Vitória, Fortuna ou Justi-</p><p>ça (Gombrich, 1972).</p><p>Mas é apenas o acaso que não pode responder pelo uso exten-</p><p>sivo que nós fazemos das particularidades da gramática, nem po-</p><p>de explicar sua eficiência.</p><p>Isso pode ser feito de uma maneira melhor, através da tenta-</p><p>tiva de objetivar a própria gramática, o que é conseguido muito</p><p>simplesmente colocando substantivos - que, por definição, se refe-</p><p>rem a substâncias, a seres - em lugar de adjetivos, advérbios, etc.</p><p>Desse modo, atributos ou relações são transformadas em coisas.</p><p>Na verdade, não existe tal coisa como uma repressão, pois ela se</p><p>refere a uma ação (reprimir a memória), ou um inconsciente, pois</p><p>ele é um atributo de algo diferente (os pensamentos e de sejos de</p><p>uma pessoa). Quando nós dizemos que alguém está dominado por</p><p>seu inconsciente ou sofre de uma repressão como se tivesse bócio</p><p>ou dor de garganta, o que nós realmente queremos dizer é que</p><p>77</p><p>este indivíduo não está consciente do que faz ou pen sa; do mesmo</p><p>modo, quando nós dizemos que uma pessoa sofre de ansiedade,</p><p>nós queremos dizer que está ansiosa, ou se com porta de uma</p><p>maneira ansiosa.</p><p>Desde que nós escolhemos, porém, usar um substantivo para</p><p>descrever o estado de uma pessoa, dizer que está dominada pelo</p><p>seu inconsciente, ou sofre de ansiedade, em vez de dizer que seu</p><p>comportamento retrata determinada particularidade (que está in-</p><p>consciente ou ansioso), nós estamos, com isso, juntando um de-</p><p>terminado número de coisas a um determinado número de seres</p><p>vivos. A tendência, pois, de transformar verbos em substantivos,</p><p>ou o viés pelas categorias gramaticais de palavras com sentidos</p><p>semelhantes, é um sinal seguro de que a gramática está sendo ob-</p><p>jetivada, de que as palavras não apenas representam coisas, mas</p><p>as criam e as investem com suas próprias características. Nessas</p><p>circunstâncias, a linguagem é como um espelho que pode separar a</p><p>aparência da realidade, separar o que é visto do que realmente</p><p>existe e do que o representa sem mediação, na forma de uma apa-</p><p>rência visível de um objeto ou pessoa, ao mesmo tempo que nos</p><p>possibilita avaliar esse objeto ou pessoa, como se estes objetos</p><p>não fossem distintos da realidade, como se fossem coisas reais - e</p><p>particularmente avaliar o seu próprio eu, com algo com que nós</p><p>não temos outra maneira de nos relacionarmos. Os nomes, pois,</p><p>que inventamos e criamos para dar forma abstrata a substâncias</p><p>ou fenômenos complexos, tornam-se a substância ou o fenômeno e</p><p>é isso que nós nunca paramos de fazer. Toda verdade auto-evi-</p><p>dente, toda taxonomia, toda referência dentro do mundo, repre-</p><p>senta um conjunto cristalizado de significâncias e tacitamente</p><p>aceita nomes; seu silêncio é precisamente o que garante sua im-</p><p>portante função representativa: expressar primeiro a imagem e</p><p>depois o conceito, como realidade.</p><p>Para se ter uma compreensão mais clara das conseqüências</p><p>de nossa tendência em objetivar, poderíamos analisar fenômenos</p><p>sociais tão diferentes como a adoração de um herói, a personifica-</p><p>cão das nações, raças, classes, etc. Cada caso implica uma repre-</p><p>sentação social que transforma palavras em carne, idéias em po-</p><p>deres naturais, nações ou linguagens humanas em uma lingua-</p><p>gem de coisas. Acontecimentos recentes mostraram que o resul-</p><p>tado de tais transformações podem ser desastrosas e desencora-</p><p>jadoras ao extremo para aqueles de nós que gostariam que todas</p><p>78</p><p>as tragédias do mundo tivessem um final feliz e de ver o direito</p><p>triunfar. A derrota da racionalidade e o fato de a história ser tão</p><p>parca em seus finais felizes não nos devem desencorajar de exami-</p><p>nar esses fenômenos significativos e principalmente não devem</p><p>tirar a convicção de que os princípios implícitos são simples e não</p><p>diferentes dos que nós analisamos acima. Nossas representações,</p><p>pois, tornam o não-familiar em algo familiar. O que é uma maneira</p><p>diferente de dizer que elas dependem da memória. A solidez da</p><p>memória impede de sofrer modificações súbitas, de um lado e de</p><p>outro, fornece-lhes certa dose de independência dos aconteci-</p><p>mentos atuais - exatamente como uma riqueza acumulada nos</p><p>protege de uma situação de penúria.</p><p>É dessa soma de experiências e memórias comuns que nós</p><p>extraímos as imagens, linguagem e gestos necessários para supe-</p><p>rar o não-familiar, com suas conseqüentes ansiedades. As expe-</p><p>riências e memórias não são nem inertes, nem mortas. Elas são</p><p>dinâmicas e imortais. Ancoragem e objetivação são, pois, maneiras</p><p>de lidar com a memória. A primeira mantém a memória em movi-</p><p>mento e a memória é dirigida para dentro, está sempre colocando</p><p>e tirando objetos,</p><p>pessoas e acontecimentos, que ela classifica de</p><p>acordo com um tipo e os rotula com um nome. A segunda, sendo</p><p>mais ou menos direcionada para fora (para outros), tira dai concei-</p><p>tos e imagens para juntá-los e reproduzi-los no mundo exterior,</p><p>para fazer as coisas conhecidas a partir do que já é conhecido. Seria</p><p>oportuno citar Mead aqui uma outra vez: “A inteligência peculiar da</p><p>espécie humana reside nesse complexo controle, conseguido pelo</p><p>passado” (Mead, 1934).</p><p>5. Causalidades de direita e de esquerda</p><p>5.1. Atribuições e representações sociais</p><p>Farr (1977) mostrou com acerto que existe uma relação en-</p><p>tre a maneira como nós concebemos algo para nós mesmos e a</p><p>maneira descrevemos aos outros. Vamos, pois, aceitar essa rela-</p><p>ção, embora notemos que o problema da causalidade foi sempre</p><p>79</p><p>um problema crucial para as pessoas interessadas em representa-</p><p>ções sociais, como Fauconnet, Piaget e, mais modestamente, eu</p><p>mesmo. Nós enfocamos o problema, porém, de um ângulo muito</p><p>diverso do de nossos colegas americanos - americano é usado</p><p>aqui em um sentido puramente geográfico. O psicólogo social do</p><p>outro lado do Atlântico baseia suas investigações na teoria da atri-</p><p>buição e está interessado principalmente na maneira como nós</p><p>atribuímos causalidade as pessoas ou coisas que nos rodeiam.</p><p>Certamente não seria exagero dizer que suas teorias são baseadas</p><p>em um principio único - o ser humano pensa como um estatístico -</p><p>e que existe somente uma regra em seu método - estabelecer a</p><p>coerência da informação que nós recebemos do meio ambiente.</p><p>Nessas circunstâncias, grande número de idéias e imagens - na</p><p>realidade, todas as que a sociedade nos apresenta - devem ou en-</p><p>quadrar-se com o pensamento estatístico e assim consideradas</p><p>como sem valor, pois elas não podem se adequar a ele, ou então</p><p>ofuscar nossa percepção da realidade como de fato é. Elas são, por</p><p>isso, pura e simplesmente ignoradas.</p><p>A teoria das representações sociais, por outro lado, toma,</p><p>como ponto de partida, a diversidade dos indivíduos, atitudes e fe-</p><p>nômenos, em toda sua estranheza e imprevisibilidade. Seu objeti-</p><p>vo é descobrir como os indivíduos e grupos podem construir um</p><p>mundo estável, previsível, a partir de tal diversidade. O cientista</p><p>que estuda o universo está convencido de que existe lá uma or-</p><p>dem oculta, sob o caos aparente, e a criança que nunca pára de</p><p>perguntar “por quê?” não está menos segura a esse respeito. Esse</p><p>é um fato: se, pois, nós procuramos uma resposta ao eterno “por-</p><p>quê?”, isso não se deve à força da informação que nós recebemos,</p><p>mas porque nós estamos convencidos de que cada ser e cada ob-</p><p>jeto no mundo é diferente da maneira como se apresenta. O objeti-</p><p>vo último da ciência é eliminar esse “porquê?”, embora as repre-</p><p>sentações sociais tenham grande dificuldade de fazê-lo sem ele.</p><p>As representações sociais se baseiam no dito: “Não existe fu-</p><p>maça sem fogo”. Quando nós ouvimos ou vemos algo nós, instinti-</p><p>vamente, supomos que isso não é casual, mas que este algo deve</p><p>ter uma causa e um efeito. Quando nós vemos fumaça, nós sabe-</p><p>mos que um fogo foi aceso em algum lugar e, para descobrir de</p><p>onde vem a fumaça, nós vamos em busca desse fogo. O dito, pois,</p><p>80</p><p>não é uma mera imagem, mas expressa um processo de pensa-</p><p>mento, um imperativo - a necessidade de decodificar todos os sig-</p><p>nos que existem em nosso ambiente social e que nós não podemos</p><p>deixar sós, até que seu sentido, o “fogo escondido”, não tenha</p><p>sido localizado. O pensamento social faz, pois, uso extensivo das</p><p>suspeições, que nos colocam na trilha da causalidade.</p><p>Poderia dar um grande número de exemplos. Os mais interes-</p><p>santes são aqueles julgamentos onde os acusados são apresenta-</p><p>dos como culpados, malfeitores e criminosos e o processo apenas</p><p>serve para confirmar um veredicto preestabelecido. Os cidadãos</p><p>alemães ou russos, que viram seus judeus ou compatriotas sub-</p><p>versivos serem enviados aos campos de concentração, ou embar-</p><p>cados para as Ilhas Gulag, certamente não pensavam que eles fos-</p><p>sem inocentes. Eles deviam ser culpados, pois foram presos. Boas</p><p>razões para serem presos foram atribuídas (a palavra é boa) a eles,</p><p>pois era impossível crer que eles tivessem sido acusados, maltra-</p><p>tados e torturados por absolutamente nenhuma razão.</p><p>Tais exemplos de manipulação, para não dizer de distorção</p><p>da causalidade, provam que a cortina de fumaça não tem se m-</p><p>pre como finalidade esconder astutamente medidas repressivas,</p><p>mas podem, na verdade, chamar nossa atenção para elas, de tal</p><p>modo que os espectadores sejam levados a supor que haveria,</p><p>certamente, boas razões para acender o fogo. Os tiranos são, ge-</p><p>ralmente, especialistas em psicologia e sabem que as pessoas irão</p><p>caminhar, automaticamente, da punição até ao criminoso e ao cri-</p><p>me, a fim de fazer essas estranhas e horríveis ocorrências, compa-</p><p>tíveis com as idéias de julgamento e justiça.</p><p>5.2. Explicações bi-causais e mono-causais</p><p>A teoria das representações sociais assume, baseada em inu-</p><p>meráveis observações, que nós, em geral, agimos sob dois conjun-</p><p>tos diferentes de motivações. Em outras palavras, que o pensa-</p><p>mento é bi-causal e não mono-causal e estabelece, simultanea-</p><p>mente, uma relação de causa e efeito e uma relação de fins e meios. É</p><p>aqui onde nossa teoria difere da teoria de atribuição e onde, nessa</p><p>dualidade, as representações sociais diferem da ciência.</p><p>Quando um fenômeno se repete, nós estabelecemos uma cor-</p><p>81</p><p>relação entre nós mesmos e ele, e então encontramos alguma ex-</p><p>plicação significativa que sugere a existência de uma regra ou lei,</p><p>ainda não descoberta. Nesse caso, a transição da correlação para a</p><p>explicação não é estimulada por nossa percepção da correlação,</p><p>ou pela repetição dos acontecimentos, mas por nossa percepção</p><p>de uma discrepância entre esta correlação e outras, entre o fenô-</p><p>meno que nós percebemos e o que nós temos que prever, entre um</p><p>caso específico e um protótipo, entre a exceção e a regra; na ver-</p><p>dade, para usar os termos que eu empreguei anteriormente, entre</p><p>o familiar e o não-familiar. Esse é, de fato, o fator decisivo. Para citar</p><p>Maclver: “É a exceção, o desvio, a interferência, a anormalida de,</p><p>que estimula nossa curiosidade e parece exigir uma explicação. E</p><p>nós, muitas vezes, atribuímos a alguma “causa” especifica todo o</p><p>acontecimento que caracteriza a situação nova, ou não prevista, ou</p><p>mudada” (Maclver, 1992).</p><p>Nós vemos uma pessoa, ou coisa, que não se enquadra em</p><p>nossas representações, que não coincide com o protótipo (uma</p><p>mulher primeira-ministra), ou um vazio, uma ausência (uma cida-</p><p>de sem armazéns), ou nós encontramos um muçulmano em uma</p><p>comunidade católica, um médico (“phisician”) sem usar coi-</p><p>sas”físicas” (“physics”) (como um psicanalista, por exemplo), etc.</p><p>Em cada caso, nós somos provocados a encontrar uma explicação.</p><p>De um lado, existe uma falta de reconhecimento (recognition); de</p><p>outro lado, existe uma falta de conhecimento (cognition). De um lado,</p><p>uma falta de identidade; de outro, uma afirmação de não-identida-</p><p>de. Nessas circunstâncias, nós somos sempre obrigados a parar</p><p>e pensar e finalmente a admitir que nós não sabemos por que</p><p>essa pessoa se comporta desse modo, ou que esse objeto tenha</p><p>tal ou tal efeito.</p><p>Como podemos responder a esse desafio? Essa causalidade</p><p>primária, para a qual nós nos voltamos espontaneamente, depen-</p><p>de de finalidades. Sendo que a maioria de nossas relações se dão</p><p>com seres humanos, nós somos confrontados com intenções e</p><p>propósitos de outros que, por razões práticas, não podemos enten-</p><p>der. Mesmo quando nosso carro não funciona, ou o aparelho que</p><p>estamos usando no laboratório não funciona, de nada nos adianta</p><p>pensar que o carro “não quer” andar, que o aparelho irritado “recu-</p><p>sa colaborar” e desse modo não nos permite continuar com nosso</p><p>experimento. Tudo o que as pessoas fazem, ou dizem, cada con-</p><p>tratempo normal, parece ter um sentido, intenção ou propósito</p><p>82</p><p>ocultos, que nós</p><p>tentamos descobrir. Do mesmo modo, nós temos</p><p>a tendência de interpretar as polêmicas ou controvérsias intelec-</p><p>tuais como conflitos pessoais e pensar qual seria a razão da animo-</p><p>sidade dos protagonistas, que motivos pessoais estão por detrás</p><p>destes antagonismos.</p><p>Em vez de dizer: “Por que razão ele se comporta desse mo-</p><p>do?”, nós dizemos: “Com que propósito ele se comporta assim?” e</p><p>a procura de uma causa se torna a procura de motivos e intenções.</p><p>Em outras palavras, nós interpretamos, procuramos animosidades</p><p>ocultas e motivos obscuros, tais como ódio, inveja ou ambição.</p><p>Nós estamos sempre convencidos que as pessoas não agem por</p><p>acaso, que tudo o que fazem corresponde a um plano prévio. Daqui</p><p>provém a tendência generalizada de personificar motivos e in-</p><p>centivos, de representar uma causa imaginariamente, como quan-</p><p>do nós dizemos de um dissidente político que ele é um “traidor”,</p><p>um “inimigo do povo”, ou quando usamos o termo “Complexo de</p><p>Édipo” para descrever determinado tipo de comportamento, etc.</p><p>A noção torna-se quase que um “agente” físico, um ator que, em</p><p>certas circunstâncias, possui uma intenção precisa. E essa noção</p><p>termina por corporificar a própria coisa, em vez de ser vista como</p><p>uma representação de nossa percepção particular dessa coisa</p><p>Causalidade secundária, que não é espontânea, é uma causa-</p><p>lidade eficiente. É ditada por nossa educação, nossa linguagem,</p><p>nossa visão científica do mundo e tudo isso nos leva a desvestir as</p><p>ações, conversações e fenômenos do mundo exterior, de sua por-</p><p>ção de intencionalidade e responsabilidade considerá-los apenas</p><p>como dados experimentais, que devem ser vistos imparcialmente.</p><p>Tendemos, assim, a juntar toda a informação possível a respeito</p><p>destes dados, de tal modo que possamos classificá-los em uma</p><p>determinada categoria e desse modo identificar sua causa, expli-</p><p>cá-los. Tal é a atitude do historiador, do psicólogo, ou mesmo de</p><p>qualquer cientista. Por exemplo, nós inferimos do comportamento</p><p>de uma pessoa se ela pertence à classe média ou baixa, se é esqui-</p><p>zofrênica ou paranóica: explicamos, então, seu comportamento</p><p>atual. Indo do efeito para causa, na base da informação que coleta-</p><p>mos, nós relacionamos um ao outro, atribuímos efeitos a causas</p><p>específicas. Heider já mostrou, há muito tempo, que o comporta-</p><p>mento de uma pessoa provém de dois conjuntos diferentes de mo-</p><p>83</p><p>tivações internas e externas e que o conjunto das motivações ex-</p><p>ternas provém não da pessoa, mas de seu ambiente, de seu status</p><p>social e das pressões que outras pessoas exercem sobre ela. Desse</p><p>modo, a pessoa que vota em um partido político, faz isso por con-</p><p>vicção própria; mas em alguns países tal voto pode ser obrigatório e</p><p>votar em um partido diferente, ou abster-se de votar, implica ex-</p><p>pulsão ou prisão.</p><p>Assim, para sintetizar a maneira como o processo de atribui-</p><p>ção opera, podemos dizer que, primeiro e principalmente, existe</p><p>ali um protótipo que serve como uma barra de medição, para a-</p><p>contecimentos ou comportamentos que são considerados como</p><p>efeitos. Se o efeito se coaduna com o protótipo, assume-se que ele</p><p>possui uma causa exterior; se não se coaduna, assume-se que a</p><p>causa seja específica ou interna. Um homem usando um boné,</p><p>carregando uma longa peça de pão francês sob seus braços, é um</p><p>francês, pois tal é nossa representação desse tipo. Mas se aconte ce</p><p>que essa pessoa é um americano, ele não se adéqua mais a esse</p><p>modelo e nós supomos que seu comportamento é singular, ou</p><p>mesmo aberrante, pois não está de acordo com o tipo.</p><p>Obviamente, tudo isso é grosseiramente simplificado; o que</p><p>realmente acontece na cabeça não é tão facilmente deduzido. Mas</p><p>eu queria tornar esse ponto claro: nas representações sociais, as</p><p>duas causalidades agem conjuntamente, elas se misturam para</p><p>produzir características especificas e nós saltamos constantemen-</p><p>te de uma para outra. Por um lado, pelo fato de procurar uma or-</p><p>dem subjetiva, por detrás dos fenômenos aparentemente objeti-</p><p>vos, o resultado será uma inferência; por outro lado, pelo fato de</p><p>procurar uma ordem objetiva por detrás de fenômenos aparente-</p><p>mente subjetivos, o resultado será uma atribuição. Por um lado,</p><p>nós reconstruímos intenções ocultas para explicar o comporta-</p><p>mento da pessoa: essa é uma causalidade de primeira pessoa. Por</p><p>outro lado, nós procuramos fatores invisíveis para explicar o com-</p><p>portamento visível: essa é uma causalidade de terceira pessoa.</p><p>O contraste entre esses dois tipos de causalidade deve ser en-</p><p>fatizado, pois as circunstancias da existência social são, muitas ve-</p><p>zes, manipuladas com o propósito de ressaltar uma ou outra dessas</p><p>duas causalidades, como por exemplo, para fazer passar um fim,</p><p>como um efeito. Quando os nazistas, portanto, colocaram fogo no</p><p>84</p><p>Reichstag, fizeram isso para que suas perseguições parecessem</p><p>não a execução de um plano, mas um resultado, cuja causa seria,</p><p>supostamente, o incêndio colocado por seus inimigos e cuja fuma-</p><p>ça escondia um “fogo” muito diferente. Não é raro uma pessoa pro-</p><p>vocar, em uma escala menor, um incêndio desse tipo, para obter</p><p>promoção, por exemplo, ou para conseguir um divórcio. Além do mais,</p><p>esses exemplos nos possibilitam perceber que as atribuições sem-</p><p>pre envolvem uma relação entre fins, ou intenções e meios. Como,</p><p>disse Maclver: “O porquê da motivação reside, muitas vezes de ma-</p><p>neira oculta, por trás do porquê do objetivo” (Maclver, 1942).</p><p>As ciências biológicas e sociais tentam reverter a ordem psi-</p><p>cológica de duas perguntas e apresentar motivações como cau-</p><p>sas. Quando eles examinam um fenômeno, eles perguntam: A que</p><p>propósito ele corresponde? Que função ele desempenha? Uma vez</p><p>estabelecido o propósito, ou função, eles apresentam o propósito</p><p>ou função como uma causa impessoal e o resultado como o meca-</p><p>nismo que eles disparam. Do mesmo modo que Darwin, quando.</p><p>descobriu a seleção natural. O termo causalização seria adequada</p><p>nesse caso, sugerindo, como na realidade ele o faz, que os fins estão</p><p>disfarçados como causas, os meios como efeitos e as intenções</p><p>como resultados. Relações entre indivíduos, do mesmo modo que</p><p>as relações entre partidos ou grupos políticos de todo tipo, fazem</p><p>extenso uso desse procedimento, sempre que o comporta-1 mento</p><p>de outras pessoas deve ser interpretado. Sempre, contudo; a per-</p><p>gunta “Por que?” deve ser respondida. E a resposta dada; muitas</p><p>vezes, é suficiente para apaziguar as mentes a fim de preservar a</p><p>representação ou para convencer uma audiência, que jau estava</p><p>suficientemente preparada para ser convencida.</p><p>5.3. Causalidade social</p><p>Para sintetizar, uma teoria de causalidade social é uma teoria</p><p>das atribuições e inferências que os indivíduos fazem e também,</p><p>da transição de uma a outra. Evidentemente, tal transição é inse-</p><p>parável da teoria cientifica que lida com esse fenômeno. Os psicó-</p><p>logos, contudo, têm o hábito de estudar tanto as atribuições, como</p><p>as inferências e de ignorar a transição entre elas. Desse modo, eles</p><p>atribuem causas a um ambiente ou a um indivíduo, cada um visto</p><p>independentemente, o que é, evidentemente, tão ridículo como</p><p>85</p><p>estudar a relação de um efeito para com sua causa, sem primeiro,</p><p>formular uma teoria, ou definir um paradigma que dê conta dessa</p><p>relação. Essa atitude muito peculiar possui suas limitações, como</p><p>eu espero provar com o seguinte exemplo.</p><p>A teoria de atribuição apresenta certa quantidade de razões</p><p>para explicar por que um indivíduo atribui certos comportamentos</p><p>a outra pessoa e outros comportamentos ao ambiente - o fato de</p><p>Pedro ter habilidade para certos jogos, ou então o fato de ele morar</p><p>nas periferias, por exemplo. Como vimos antes, porém, isso está</p><p>baseado em um principio único: o ser humano é um estatístico e</p><p>seu cérebro funciona como um computador infalível2. A psicanáli-</p><p>se, por outro lado, tomaria tais comportamentos como a simples</p><p>racionalização de sentimentos hostis ou familiares, pois, para o</p><p>psicanalista, todas as avaliações estão</p><p>baseadas em emoções.</p><p>Esse exemplo trivial ilustra com clareza o fato que toda explicação</p><p>depende primariamente da idéia que nós temos de realidade. É</p><p>uma idéia como essa que governa nossas percepções e as inferên-</p><p>cias que nós construímos a partir delas. E esta idéia governa, da</p><p>mesma maneira, nossas relações sociais. Podemos afirmar, pois,</p><p>que quando nós respondemos ã pergunta “por que”, nós começa-</p><p>mos de uma representação social ou de um contexto geral para o</p><p>qual nós fomos levados, a fim de dar essa resposta especifica.</p><p>Eis um exemplo concreto: o desemprego, nesse momento, é</p><p>geral e cada um de nós tem ao menos um homem ou uma mulher</p><p>desempregados entre nossos amigos mais íntimos. Por que esse</p><p>homem ou mulher não tem trabalho? A resposta a essa pergunta</p><p>irá variar de acordo com quem fala. Para alguns, os desemprega-</p><p>dos, na verdade, não se preocupam em procurar um trabalho, são</p><p>muito exigentes ou, no mínimo, não têm sorte. Para outros, eles</p><p>são vitimas de uma recessão econômica, ou de uma sobreposição</p><p>injustificada de empregos ou, mais comumente, de uma injustiça</p><p>inerente à economia capitalista. O primeiro, assim, atribui a causa</p><p>do desemprego ao indivíduo, a sua atitude social, enquanto o se-</p><p>gundo a atribui à situação econômica e política, a seu status so-</p><p>cial, a um ambiente que torna essa situação inevitável. As duas</p><p>2 Experimentos feitos por Tversky e Kabneman (1974) tiveram muito sucesso ao prova r</p><p>que esse pressuposto é infundado e deve sua popularidade a um equívoco que se baseia em</p><p>principios artificiais</p><p>86</p><p>explicações são totalmente opostas e obviamente provém de</p><p>representações sociais distintas. A primeira representação acena</p><p>responsabilidade individual e a energia pessoal — os problemas</p><p>sociais somente podem ser resolvidos por cada indivíduo. A se-</p><p>gunda representação acentua a responsabilidade social, denuncia:</p><p>a injustiça social e propõe soluções coletivas para problemas indivi-</p><p>duais. Shaver notou tais reações até mesmo nos Estados Unidos.</p><p>Atribuições pessoais sobre a razão para a assistência social</p><p>(wel-f are) levam a discursos sobre “aproveitadores do assisten-</p><p>cialismo”, a apelos para voltar aos tempos antigos, para a é-</p><p>tica protestante, ou para leis com a finalidade de tornar a</p><p>assistência f inanceira obrigatória mais difícil de ser conseguida. A-</p><p>tribuições situacionais, por outro lado, vão, mais provavelmente, su-</p><p>gerir que a expansão dos empregos, por parte do governo, a melhor</p><p>preparação para o trabalho e o aumento de oportunidade educa-</p><p>cional para todos, irão propiciar reduções mais duradouras</p><p>na assistência pública (Shaver, 1975: 133).</p><p>Contudo, absolutamente não concordo com meu colega ame-</p><p>ricano. Eu mesmo reverteria a ordem dos fatores envolvidos, acen-</p><p>tuando a primazia das representações e dizendo que são elas, em</p><p>cada caso, as que ditam a atribuição, tanto para o indivíduo, quanto</p><p>para a sociedade. Ao fazer isso, eu obviamente não nego a idéia de</p><p>racionalidade e uma manipulação correta da informação rece bida,</p><p>mas simplesmente afirmo que o que é tomado em consideração, as</p><p>experiências que nós temos, isto é, as causas que nós sele-</p><p>cionamos, tudo isso é ditado, em cada caso, por um sistema de re-</p><p>presentações sociais.</p><p>Chego, então, ã seguinte proposição: nas sociedades em que</p><p>nós vivemos hoje, a causalidade pessoal é uma explicação de direita</p><p>e a causalidade situacional é uma explicação de esquerda. A psico-</p><p>logia social não pode ignorar o fato de que o mundo está es-</p><p>truturado e organizado de acordo com tal divisão e de que existe</p><p>uma divisão permanente. De fato, cada um de nós está necessa-</p><p>riamente obrigado a adotar um desses dois tipos de causalidade,</p><p>juntamente com a visão do outro que ele implica. As conseqüên-</p><p>cias que derivam de tal proposição não poderiam ser mais preci-</p><p>sas: os motivos de nossas ações são ditados e estão relacionados</p><p>com a realidade social, a realidade cujas categorias contrastantes</p><p>87</p><p>87</p><p>dividem o pensamento humano tão nitidamente como o fazem dua-</p><p>lidades tais como alto e baixo, homem e mulher, etc. Tinha-se a</p><p>impressão de que a motivação poderia ser atribuída a um simples</p><p>processo de pensamento e agora se vê que ela é determ inada por</p><p>influências ambientais, status social, relação de uma pessoa com</p><p>outras, suas opiniões pré-concebidas, cada uma das pessoas res-</p><p>pondendo por sua parte. Isso é de extrema importância e, uma vez</p><p>aceita, a pessoa passa a negar a existência de categorias suposta-</p><p>mente neutras de atribuição pessoal ou situacional e as substitui</p><p>por categorias de motivação claramente de direita ou de esquerda.</p><p>Mesmo que a substituição não se afirme em todos os casos, ela é,</p><p>em geral, constatável.</p><p>Experimentos feitos por certos psicólogos (Hewstone & Jas-</p><p>pars, 1982) confirmam a noção de tal substituição. Aqui está, por</p><p>exemplo, um caso típico: o psicólogo americano Lerner sugeriu</p><p>que nós explicamos o comportamento de alguém na premissa de</p><p>que “as pessoas somente recebem o que merecem”. Essa hipótese</p><p>chegou a ser conhecida como a “hipótese do mundo justo”. Ele vê</p><p>isso como uma maneira quase natural de pensar. Os psicólogos</p><p>canadenses Guimond e Simard tentaram concretizar essa teoria e</p><p>não se surpreenderam ao descobrir que tal atitude era principal-</p><p>mente a das pessoas pertencentes, em sua grande maioria, à clas se</p><p>dominante. Por outro lado, não existia nenhum traço dela entre os</p><p>que pertenciam às minorias ou classes desprivilegiadas. Falando</p><p>mais claramente, eles conseguiram mostrar que os canadenses de</p><p>fala inglesa tendiam a ver os canadenses franceses como res-</p><p>ponsáveis por sua situação e apresentavam explicações individu-</p><p>alísticas. Os canadenses de fala francesa, contudo, mostravam</p><p>que os responsáveis eram os canadenses ingleses e suas explica-</p><p>ções envolviam a própria estrutura da sociedade.</p><p>Se podemos tomar um experimento de laboratório como um</p><p>exemplo do que acontece na sociedade, temos a possibilidade de ir</p><p>mais adiante nessas descobertas. Classes dominantes e domi nadas</p><p>não possuem uma representação igual à do mundo que elas com-</p><p>partilham, mas o vêem com olhos diferentes, julgam-no de acordo</p><p>com critérios específicos e cada uma faz isso de acordo com suas</p><p>próprias categorias. Para as primeiras o indivíduo é que é respon-</p><p>sável por tudo o que lhe acontece e especialmente por seus fra-</p><p>cassos. Para as segundas, os fracassos se devem sempre às cir-</p><p>cunstâncias que a sociedade cria para o indivíduo. E nesse exato</p><p>sentido que a expressão causalidade de direita/de esquerda (uma</p><p>88</p><p>expressão que é tão objetiva e científica como as dualidades al-</p><p>to/baixo, pessoa/ambiente, etc.) pode ser aplicada a casos con-</p><p>cretos.</p><p>Conclusões</p><p>Pelo fato de se restringir a um indivíduo e a um quadro de refe-</p><p>rência indutivo, a teoria de atribuição se mostrou menos útil do</p><p>que poderia ter sido. Esse estado de coisas poderia ser melhorado</p><p>nos seguintes pontos: a) através da mudança da esfera individual</p><p>para a esfera coletiva; b) através do abandono da idéia de ser hu-</p><p>mano como um estatístico e da relação mecanicista entre o ser hu-</p><p>mano e o mundo; c) pela re-colocação das representações sociais</p><p>como mediadoras necessárias.</p><p>Algumas sugestões já foram dadas no sentido de melhorar a</p><p>teoria (Hewstone & Jaspars, 1982). Devemos, contudo, ter em</p><p>mente que a causalidade não existe por si mesma, mas somente</p><p>dentro de uma representação que a justifique. Nem devemos es-</p><p>quecer que quando nós consideramos duas causalidades, nós te-</p><p>mos também de considerar a relação entre elas. Em outras pala-</p><p>vras, nós devemos sempre procurar aquelas sobre causas que pos-</p><p>suem uma ação dual, tanto como causas agentes como causas efi-</p><p>cientes, que constituem essa relação. Todas nossas crenças, pro -</p><p>cessos de pensamento e concepções do mundo possuem uma</p><p>causa desse tipo à qual nós apelamos como último recurso. É nisso</p><p>que colocamos nossa confiança e é a ela</p><p>que nós invocamos em</p><p>todas as circunstâncias. O que eu tenho em mente são palavras</p><p>tais como “Deus” , “Progresso”, “Justiça”, “História”. Estas pala-</p><p>vras se referem a uma entidade ou a um ser dotado com status so-</p><p>cial agindo tanto como causa e como fim. As palavras são impor-</p><p>tantes, pois respondem por tudo o que acontece em cada esfera</p><p>possível de realidade. Não há dificuldade em identificá-las, mas eu</p><p>penso que seria uma tarefa difícil explicar a parte que elas desem-</p><p>penham e seu extraordinário poder.</p><p>Estou convencido de que, cedo ou tarde, nós conseguiremos</p><p>uma idéia mais clara de causalidade. E eu consideraria nossas in-</p><p>vestigações atuais concluídas, mesmo que seu objetivo último</p><p>não fosse alcançado quando os psicólogos dominarem uma lin-</p><p>89</p><p>89</p><p>guagem comum que os possibilitasse estabelecer uma concor-</p><p>dância entre as formas de pensamento dos indivíduos e o conteú-</p><p>do social destes pensamentos.</p><p>6. Um levantamento das primeiras pesquisas realizadas</p><p>em representações sociais</p><p>61. Alguns temas metodológicos comuns e ligações com outras ciên-</p><p>cias sociais</p><p>O corpo de pesquisa em que essas teorias estão baseadas e de</p><p>onde elas surgiram é relativamente restrito. Mas isso é tudo o que</p><p>temos até agora. Seja qual tiver sido o objetivo especifico dessas</p><p>pesquisas, elas compartilharam, contudo, os quatro princípios</p><p>metodológicos seguintes:</p><p>a) Obter o material de amostras de conversações normalmente</p><p>usadas na sociedade. Algumas dessas partilhas tratam de tópicos</p><p>importantes, enquanto outras se referem a tópicos que podem ser</p><p>estranhos ao grupo - alguma ação, acontecimento ou personalida-</p><p>de, com que ou quem as pessoas se surpreendessem, exclaman-</p><p>do: “Do que se trata, afinal? ”, “Por que aconteceu isso?”, “Por</p><p>que ele fez isso?”, “Qual o propósito de tal ação?” - mas tudo ten-</p><p>dendo a um acordo mútuo. Tarde (1910) foi o primeiro a afirmar</p><p>que opiniões e representações são criadas no curso de conver-</p><p>sações, como maneiras elementares de se relacionar e se comu-</p><p>nicar. Ele demonstrou como elas emergem em lugares especial-</p><p>mente reservados (tais como salões, cafés, etc.); como elas são de-</p><p>terminadas pelas dimensões físicas e psicológicas desses encon-</p><p>tros entre indivíduos (Moscovici, 1961/1967) e como elas mu-</p><p>dam como passar do tempo. Ele até elaborou um plano para a ci-</p><p>ência social do futuro, que seria um estudo comparativo de con-</p><p>versações. Na verdade, as interações que ocorrem natural mente</p><p>no decurso das conversações possibilitam os indivíduos e os gru-</p><p>pos a se tornarem mais familiarizados com objetos e idéias in-</p><p>compatíveis e desse modo poder lidar com eles (Moscovici,</p><p>1976). Tais infra-comunicações e pensamento, baseados no</p><p>boato, constituem um tipo de camada intermediária entre a vida</p><p>pública e a privada e facilitam a passagem de uma para a outra.</p><p>Em outras palavras, a conversação está no centro de nossos uni-</p><p>versos consensuais, porque ela configura e anima as representa</p><p>90</p><p>sociais e desse modo lhes dá uma vida própria.</p><p>b) Considerar as representações sociais como meios de re-criar</p><p>a realidade. Através da comunicação, as pessoas e os grupos con-</p><p>cedem uma realidade física a idéias e imagens, a sistemas classifi-</p><p>cação e fornecimento de nomes. Os fenômenos e pessoas com que</p><p>nós lidamos no dia-a-dia não são, geralmente, um material bruto,</p><p>mas são os produtos, ou corporificações, de uma coletividade, de</p><p>uma instituição, etc. Toda a realidade é a realidade alguém, ou é</p><p>uma realidade para algo, mesmo que seja a de laboratório onde</p><p>nós fazemos nossos experimentos. Não seria lógico pensar esses</p><p>fenômenos de outro modo, tirando-os do contexto maioria dos</p><p>problemas que nós enfrentamos, no curso de nossa caminhada</p><p>social ou intelectual, não provém da dificuldade de presentear coi-</p><p>sas ou pessoas, mas do fato que elas são representações, isto é,</p><p>substitutos para outras coisas e outras pessoas. Antes de entrar,</p><p>pois, em um estudo especifico, devemos averiguar origens do ob-</p><p>jeto e considerá-lo como uma obra de arte e como matéria-prima.</p><p>Para ser preciso, contudo, deve-se dizer que se trata de re-</p><p>feito, re-construído e não de algo recém-criado, pois, por lado, a</p><p>única realidade disponível é a que foi estruturada pelas gerações</p><p>passadas ou por outro grupo e, por outro lado, nós a re-</p><p>produzimos no mundo exterior e por isso não podemos evitar a</p><p>distorção de nossas imagens e modelos internos. O que nós cria-</p><p>mos, verdade, é um referencial, uma entidade à qual nós nos refe-</p><p>rimos que é distinta de qualquer outra e corresponde a nossa re-</p><p>presentação dela. E sua repetição - seja durante uma conversação,</p><p>ou ambiente (por exemplo, um “complexo”, um sintoma, etc.) -</p><p>garante sua autonomia, diferentemente de um ditado que se toma</p><p>dependente da pessoa que o disse pela primeira vez depois que</p><p>repetido muitas vezes. O resultado mais importante dessa re -</p><p>construção de abstrações em realidades é que elas se tornam se-</p><p>paradas da subjetividade do grupo, das vicissitudes de suas intera-</p><p>ções e conseqüentemente, do tempo, e adquirem, portanto, per-</p><p>manência e estabilidade. Isoladas do fluxo de comunicações que as</p><p>deduziu, elas se tomam tão independentes delas como uma cons-</p><p>trução se torna independente do plano do arquiteto ou dos an-</p><p>daimes empregados em sua construção.</p><p>91</p><p>Poderia ser útil apontar algumas distinções que devem ser le-</p><p>vadas em consideração. Algumas representações se referem a fa-</p><p>tos, outras a idéias. As primeiras transportam seu objeto de um</p><p>nível abstrato para um nível cognitivo concreto; as segundas, atra-</p><p>vés de uma mudança de perspectiva, tanto compõem, como de-</p><p>compõem seu objeto - elas podem, por exemplo, apresentar as bo-</p><p>las de bilhar como uma ilustração do átomo ou considerar uma</p><p>pessoa, psicanaliticamente falando, como dividida em um cons-</p><p>ciente e em um inconsciente. Ambas, contudo, criam quadros de</p><p>referência pré-estabelecidos e imediatos para opiniões e percep-</p><p>ções, dentro dos quais ocorrem automaticamente reconstruções</p><p>objetivas tanto de pessoas, como de situações e que subjazem à</p><p>experiência e ao pensamento subjetivos. O que é surpreendente e</p><p>que deve ser explicado não é tanto o fato de que tais reconstruções</p><p>são sociais e influenciam a todos, mas antes que a sociabilidade as</p><p>exige, expressa nelas sua tendência de posar como não-sociabili-</p><p>dade e como parte do mundo natural.</p><p>c) Que o caráter das representações sociais é revelado especial-</p><p>mente em tempos de crise e insurreição, quando um grupo, ou suas</p><p>imagens, está passando por mudanças. As pessoas estão, então,</p><p>mais dispostas a falar, as imagens e expressões são mais vivas, as</p><p>memórias coletivas são excitadas e o comportamento se torna mais</p><p>espontâneo. Os indivíduos são motivados por seu desejo de enten-</p><p>der um mundo cada vez mais não-familiar e perturbado. As repre-</p><p>sentações sociais se mostram transparentes, pois as divisões e bar-</p><p>reiras entre mundos privado e público se tornaram confusas. Mas a</p><p>crise pior acontece quando as tensões entre universos reificados e</p><p>consensuais criam uma ruptura entre a linguagem dos conceitos e a</p><p>das representações, entre conhecimento científico e popular. É</p><p>como se a própria sociedade se rompesse e não houvesse mais</p><p>maneira de preencher o vazio entre os dois universos. Essas ten-</p><p>sões podem ser o resultado de novas descobertas, novas concep-</p><p>ções, sua popularização na linguagem do dia-a-dia e na consciência</p><p>coletiva - por exemplo, a aceitação, pela medicina tradicional, de</p><p>teorias modernas, tais como a psicanálise e a seleção natural. Es-</p><p>sas tensões podem ser seguidas por revoluções concretas no sen-</p><p>so comum, que não são menos importantes que as revoluções cien-</p><p>tíficas. A maneira como ocorrem e re-ligam um universo a outro</p><p>joga alguma luz sobre o processo de representações sociais e dá</p><p>significado excepcional a nossas investigações.</p><p>92</p><p>d) Que as pessoas que elaboram tais representações sejam vistas</p><p>como algo parecido a “professores” amadores e os grupos que</p><p>for-</p><p>mam como equivalentes modernos daquelas sociedades de profess o-</p><p>res amadores que existiam há mais ou menos um século.” Tal é na</p><p>natureza da maioria das reuniões não-oficiais, das discussões em</p><p>bares e clubes, ou reuniões políticas onde os modos de pensamento</p><p>e expressão refletem as curiosidades que são comentadas e os laços</p><p>sociais que são estabelecidos nessas ocasiões. Por outro lado, mui-</p><p>tas representações provém de trabalhos profissionais que se diri-</p><p>gem a esse público “amador”; eu estou pensando; em certos peda-</p><p>gogos, em popularizadores da ciência e em determinado tipo de</p><p>jornalista (Moscovici, 1961/1976), cujos escritos tornam possível</p><p>a qualquer um considerar-se um sociólogo, economista, físico,</p><p>doutor ou psicólogo. Eu mesmo me vi na pele de um doutor de</p><p>Agatha Christie que observa: “Tudo bem com a psicologia, se for</p><p>deixada para o psicólogo. O problema é que todas as pessoas são</p><p>psicólogos amadores hoje em dia. Meus pacientes me dizem exa-</p><p>tamente de que complexos e neuroses eles estão sofrendo, sem me</p><p>darem a chance de falar” (Agatha Christie, 1957).</p><p>Ao final de contas, talvez esse trabalho chegue muito tarde.</p><p>Na verdade, certo número de teorias minhas concorrem com as de</p><p>várias escolas de sociologia e da sociologia do conhecimento em</p><p>países de fala inglesa. Farr (1978; 1981) se refere, em alguns arti-</p><p>gos, à relação entre as teorias discutidas acima e as teorias de atri-</p><p>buição, à construção social da realidade, à etnometodologia, etc.</p><p>De outro ponto de vista, contudo, esse trabalho parece chegar pre-</p><p>cisamente no momento exato, para uma re-avaliação do campo da</p><p>psicologia social em relação às disciplinas a ela relacionadas. (Não</p><p>de todo novo, mas novo para a psicologia social.)</p><p>Não se pode negar que o programa para uma sociologia do</p><p>conhecimento, embora muitas vezes discutido, ainda nem come-</p><p>çou a ser concretizado. Na verdade, obras como as de Berger e</p><p>Luckmann (1967) se referem a uma teoria das origens do senso</p><p>comum e da estrutura da realidade, mas eu creio que essa teoria,</p><p>ao contrário da minha, não foi testada. Quanto à etnometodologia,</p><p>ela se originou da distinção entre a “racionalidade” da ciência e a</p><p>“racionalidade” do senso comum, aplicadas à vida cotidiana. Ela</p><p>examinou essa distinção, separando, porém, deliberadamente, a</p><p>estrutura social e então, à luz de tentativas de restabelecer a uni-</p><p>dade do tecido, mostrando as normas e co nvenções sociais que</p><p>93</p><p>constituem sua continuidade e tessitura. Uma vez mais o resultado</p><p>é uma estrutura da realidade que brota de uma escolha de regras e</p><p>convenções partilhadas de maneira geral.</p><p>Quanto a mim, por outro lado, achei mais compensador tirar</p><p>proveito das rupturas que ocorrem naturalmente e que revelam</p><p>tanto a propensão dos indivíduos e dos grupos para intervir na se-</p><p>qüência normal dos acontecimentos e para modificar seu desen-</p><p>volvimento e quanto eles conseguem seu objetivo. Desse modo,</p><p>não são apenas as regras e convenções que vêm à luz, mas tam-</p><p>bém as “teorias” em que elas estão baseadas e as linguagens que</p><p>as expressam. Na minha opinião, isso é essencial — as regularida-</p><p>des e equilíbrios sociais aparecem em uma representação comum</p><p>e não podem ser compreendidos separadamente. Além do mais, o</p><p>trabalho de construção em que os sociólogos estão interessados</p><p>em nossas sociedades consiste principalmente em um processo</p><p>de transformação de um universo reificado para um universo con-</p><p>sensual, ao qual tudo o mais está subordinado.</p><p>Escolhi esses dois exemplos para enfatizar as afinidades, mas</p><p>outros poderiam ser acrescentados. O que eles todos têm em co-</p><p>mum é sua preocupação com as representações sociais e os inves-</p><p>tigadores fariam bem em lembrar-se do aviso de Durkheim: “Sen-</p><p>do a observação reveladora da existência de um tipo de fenômeno</p><p>conhecido como representação, com características especificas</p><p>que o distinguem de outros fenômenos naturais, é inútil compor-</p><p>tar-se como se o fenômeno não existisse” (Durkheim, 1895/1982).</p><p>Grande parte da imaginação sociológica está preocupada,</p><p>hoje, com universos consensuais, ao ponto, quase, de mais ou me-</p><p>nos se restringirem a eles. Tal atitude pode ser justificada pelo fato</p><p>de eles estarem preenchendo um vazio deixado pela psicologia so-</p><p>cial. Mas seria melhor se houvesse um reagrupamento de discipli-</p><p>nas ao redor desse “tipo de fenômeno conhecido como represen-</p><p>tação”, esclarecendo a tarefa da sociologia e dando a nossa disci-</p><p>plina a amplitude de visão de que ela urgentemente necessita.</p><p>6.2. Breve revisão de alguns dos principais campos de estudo</p><p>Numa publicação recente, tive a satisfação de mostrar que, fi-</p><p>nalmente, os psicólogos americanos estão preparados para reco-</p><p>94</p><p>nhecer, embora sem concretamente dar-lhes o nome, a importân-</p><p>cia das representações sociais. “Tais teorias tácitas, globais, jun-</p><p>tamente com muitas teorias mais especificas, incluindo teorias</p><p>sobre indivíduos específicos ou classes de indivíduos, governam;</p><p>nossa compreensão ou comportamentos, nossa explicação causal</p><p>do comportamento passado e nossas predições de comportamen-</p><p>tos futuros” (Nisbett & Ross, 1980).</p><p>Ou, podemos acrescentar, servem para ocultar, ignorar e subs-</p><p>tituir o comportamento. E sendo que Gedankenexperiments o Ge-</p><p>dankenbehaviours são pelo menos tão importantes na vida cotidia-</p><p>na, como o são na ciência, seria um erro ignorá-los, simplesmente</p><p>porque eles não explicam, nem predizem nada. Mas a falta de in-</p><p>teresse por tudo, exceto pelo que for escrito em inglês ou por</p><p>experimentos feitos em outro país - uma falta de interesse que, há</p><p>uma geração, teria desqualificado qualquer professor, seja nos</p><p>Estados Unidos ou em qualquer outro lugar - os levaria afirmar com</p><p>confiança total:</p><p>Houve, surpreendentemente, pouca pesquisa sobre crenças e teor nas</p><p>partilhadas pela massa da população, em nossas culturas.</p><p>Heider (1958) foi talvez o primeiro a enfatizar sua impor-</p><p>tância e Abelson (1968) foi o primeiro (e quase o único) investiga-</p><p>dor a tentar estudá-los empiricamente. O pouco de pesquisa realiza-</p><p>do sobre teorias das pessoas focalizou diferenças individuais na crença e</p><p>teorias (Nisbett & Ross, 1980).</p><p>Acontece, porém, que, exatamente por esse tempo, a pesquisa</p><p>sobre “teorias das pessoas” estava florescendo e produzindo resul-</p><p>tados amplamente apreciados. Não estou dizendo que tal pes quisa</p><p>era superior à pesquisa mencionada, ou mesmo excelente em si</p><p>mesma, mas estou dizendo que ela existia e não estava restrita ao</p><p>estudo das “diferenças individuais”. Se os pesquisadores em nosso</p><p>campo continuam a ver a totalidade da ciência repre sentada ape-</p><p>nas pela ciência de seu país, existirá sempre um Joe Bloggs ou um</p><p>Jacques Dupont para inventar tudo, do mesmo modo que o Ivan Po-</p><p>poff antes deles. Isso é algo que podemos perfeita mente dispen-</p><p>sar.</p><p>Como dissemos, é durante o processo de transformação que</p><p>os fenômenos são mais facilmente percebidos. Por isso nos con-</p><p>centramos na emergência das representações sociais, provenham</p><p>95</p><p>elas de teorias cientificas - seguindo suas metamorfoses dentro de</p><p>uma sociedade e a maneira como elas renovam o senso comum -</p><p>ou originem-se de acontecimentos correntes, experiências e co-</p><p>nhecimento “objetivo”, que um grupo tem de enfrentar a fim de</p><p>constituir e controlar seu próprio mundo.</p><p>Ambos os pontos de partida são igualmente válidos, pois, em</p><p>um caso, é uma questão de observar o efeito de uma mudança de</p><p>um nível intelectual e social para outro e no outro, de observar a</p><p>organização de um conjunto de objetos quase-materiais e de ocor-</p><p>rências ambientais que uma representação implícita normalmente</p><p>oculta. Os mecanismos envolvidos são, contudo, idênticos.</p><p>O senso comum está continuamente sendo criado e re-criado</p><p>em nossas sociedades, especialmente onde o conhecimento cien-</p><p>tífico e tecnológico está popularizado. Seu conteúdo, as imagens</p><p>simbólicas derivadas da ciência em que ele está baseado e que,</p><p>enraizadas no olho da mente, conformam</p><p>a linguagem e o compor-</p><p>tamento usual, estão constantemente sendo retocadas. No proces-</p><p>so, a estocagem de representações sociais, sem a qual a sociedade</p><p>não pode se comunicar ou se relacionar e definir a realidade, é rea-</p><p>limentada. Ainda mais: essas representações adquirem uma auto-</p><p>ridade ainda maior, na medida em que recebemos mais e mais</p><p>material através de sua mediação - analogias, descrições implícitas</p><p>e explicações dos fenômenos, personalidades, a economia, etc.,</p><p>juntamente com as categorias necessárias para compre ender o</p><p>comportamento de uma criança, por exemplo, ou de um amigo.</p><p>Aquilo que, a longo prazo, adquire a validade de algo que nossos</p><p>sentidos ou nossa compreensão percebem diretamente, passa a</p><p>ser sempre um produto secundário e transformado de pesquisa</p><p>cientifica. Em outras palavras, o senso comum não circula mais de</p><p>baixo para cima, mas de cima para baixo; ele não é mais o ponto de</p><p>partida, mas o ponto de chegada. A continuidade, que os filósofos</p><p>estipulam entre senso comum e ciência, ainda existe, mas não é</p><p>o que costumava ser.</p><p>A difusão da psicanálise na França forneceu um exemplo prá-</p><p>tico para começar nossas investigações sobre a gênese do senso</p><p>comum. Como conseguiu a psicanálise penetrar as várias camadas</p><p>de nossa sociedade e influenciar sua cosmovisão e comporta-</p><p>mento? Que modificações sofreu ela a fim de conseguir isso? Nós</p><p>investigamos, metodicamente, as maneiras pelas quais suas teo-</p><p>rias se ancoraram e objetivaram, como um sistema de classifica-</p><p>ção e de nominalização de pessoas e comportamentos foi elabora-</p><p>96</p><p>do, como uma “nova” linguagem foi criada a partir de termos psi-</p><p>canalíticos e a tarefa desempenhada pela bi-causalidade no pensa-</p><p>mento normal. Além disso, explicamos como uma teoria passa de</p><p>um nível cognitivo a outro, tornando-se uma representação social.</p><p>Nós, naturalmente, levamos em consideração os fundamentos po-</p><p>líticos e religiosos, enfatizamos seu papel em tais transições. Fi-</p><p>nalmente, nossa investigação nos possibilitou especificar a ma-</p><p>neira como uma representação molda a realidade em que v ive-</p><p>mos, cria novos tipos sociais - o psicanalista, o neurótico, etc. - e</p><p>modifica o comportamento em relação a essa realidade.</p><p>Simultaneamente, estudamos o problema dos meios de co-</p><p>municação de massa e seu papel no estabelecimento do senso co-</p><p>mum. Nesse caso, o senso comum pode ser elevado à função de</p><p>uma ideologia dominante. Pois esse é o status da psicanálise na</p><p>França de hoje: comparável, em qualquer ponto, ao de um credo</p><p>oficial, tornou-se claro, ao menos no que se refere à evolução, que</p><p>a presença de uma representação social constitui um pressuposto</p><p>necessário para a aquisição de tal status. Ainda mais: pudemos</p><p>estabelecer, mais ou menos definitivamente, a ordem das três fa-</p><p>ses da evolução: a) a fase científica de sua elaboração, a partir de</p><p>uma teoria, por uma disciplina cientifica (economia, biologia,</p><p>etc.); b) a fase “representativa”, em que ela se difunde dentro de</p><p>uma sociedade e suas imagens, conceitos e vocabulário são difun-</p><p>didos e adaptados; c) a fase ideológica, em que a representação é</p><p>apropriada por um partido, uma escola de pensamento ou um ór-</p><p>gão do estado e é logicamente reconstruída, de tal modo que um</p><p>produto, criado pela sociedade como um todo, pode se legitimar</p><p>em nome da ciência. Toda ideologia possui, pois, esses dois ele-</p><p>mentos: um conteúdo, derivado da base e uma forma, que provém</p><p>de cima, que dá ao senso comum uma aura científica. Outras in-</p><p>vestigações se interessaram com teorias mais científicas (Acker-</p><p>mann & Zygouris, 1974; Barbichon & Moscovici, 1965) e nossos</p><p>achados contribuíram para a formulação de uma teoria mais geral</p><p>de popularização do conhecimento científico (Roqueplo, 1974).</p><p>Numa segunda série de estudos, nós examinamos mais espe-</p><p>cificamente a dinâmica das mudanças técnicas e teóricas. Em pou-</p><p>cas palavras, durante os anos de 1950 a 1960, uma grande difusão</p><p>de técnicas e teorias médicas surgiu na França, como resultado de</p><p>um crescimento no consumo médico. Juntamente com uma</p><p>nova relação médico-paciente, uma atitude totalmente nova com</p><p>respeito à saúde e ao corpo foi rapidamente transformando ima-</p><p>97</p><p>gens e teorias antigas. Uma das primeiras a estudar essa situação</p><p>foi Claudine Herzlich, em seu trabalho sobre as representações da</p><p>saúde e da doença. Seu objetivo era enfatizar o surgimento de um</p><p>sistema de classificação e interpretação de sintomas, como res-</p><p>posta ao que algum dia será reconhecido como uma revolução</p><p>cultural em nossas visões de saúde, doença e morte (Herzlich,</p><p>1973). Se alguém sente saudade pelo desaparecimento da morte</p><p>de nossa consciência e de nossos rituais, a causa disso remonta ao</p><p>tempo em que a confiança nos poderes científicos da medicina foi</p><p>estabelecida.</p><p>Um estudo posterior tratou das representações sociais do</p><p>corpo. Ele mostrou que nossas percepções e concepções do</p><p>corpo não eram mais adequadas à realidade que ia surgindo e que</p><p>uma revolução importante era inevitável. Analisamos, por isso,</p><p>essas representações; e no decorrer da caminhada, sob a influên-</p><p>cia dos movimentos de jovens, do movimento de libertação das</p><p>mulheres e a difusão da biodinâmica, etc., as maneiras de ver e ex-</p><p>perienciar o corpo foram transformadas radicalmente. Retomando</p><p>novamente nossa investigação depois que essa mudança profunda</p><p>de representações tinha ocorrido, pudemos tirar proveito de algo</p><p>parecido com um experimento natural. De fato, tendo acontecido</p><p>uma revolução cultural importante, nós estávamos em situação de</p><p>poder observar seus efeitos, passo a passo, e comparar o que nós</p><p>tínhamos observado anteriormente, com o que estava agora acon-</p><p>tecendo. Em outras palavras, nós começamos a perceber o proble-</p><p>ma da modificação nas representações sociais e sua evolução.</p><p>Isso constitui o centro do trabalho de Denise Jodelet (Jodelet &</p><p>Moscovici, 1975) no momento presente. Ela, porém, estava muito</p><p>bem preparada para tal investigação devido a seu estudo com do-</p><p>entes mentais, colocados entre os habitantes de várias aldeias</p><p>francesas. Pela observação desse projeto pelo período de dois anos,</p><p>Jodelet foi capaz de descrever, com grande detalhe, o desenvolvi-</p><p>mento das relações entre os aldeões e os pacientes e como Mosco-</p><p>vici, por sua própria natureza, deu chance a discriminações, quan-</p><p>do tentou “situar”, em um mundo familiar, os pacientes mentais</p><p>cuja presença era eminentemente perturbadora. Essas discrimi-</p><p>nações, além do mais, estavam baseadas em um vocabulário e em</p><p>representações sociais que tinham sido pormenorizadamente ela-</p><p>boradas pelas pequenas comunidades. Essas comunidades se sen-</p><p>tiram, de certo modo, ameaçadas pelos seres indefesos que tinham</p><p>98</p><p>sido colocados em seu meio, devido à própria infelicidade e à rotina</p><p>institucional.</p><p>Finalmente, um estudo totalmente original de René Kaes (1976),</p><p>sobre psicoterapia de grupo, mostra, de um lado, como tais grupos</p><p>produzem certos tipos de representação, relacionada com o que</p><p>constitui um grupo e como ele funciona; de outro lado, como tais</p><p>representações refletem a evolução do grupo. Não há dúvida que</p><p>eles têm uma significância cultural, se não cientifica, e é até certo</p><p>ponto surpreendente vê-los surgir em tais circunstâncias. Perma-</p><p>nece, contudo, o fato de que tais representações canalizam o fluxo</p><p>de emoções e de relações interpessoais flutuantes.</p><p>O trabalho de Denise Jodelet, em colaboração com Stanley</p><p>Milgram (Jodelet & Milgram, 1977; Milgram, 1984), sobre as ima-</p><p>gens sociais de Paris, mostra que o espaço urbano, ou a matéria-</p><p>prima do dia-a-dia, é totalmente determinado pelas represen-</p><p>tações e não é, de nenhum modo, tão artificial como estamos acos-</p><p>tumados a crer. Além do mais, esse estudo confirma nossa afirma-</p><p>ção que o pensamento é uma atmosfera social e cultural, pois nada</p><p>pode estar mais grávido de idéias, do que uma cidade. As teorias</p><p>expressas nas primeiras quatro secções desse trabalho foram</p><p>comprovadas por esta primeira geração de</p><p>investigações.! Outras,</p><p>inspirando-se na cultura (Kaes, 1968), em relações inter grupais</p><p>(Quaglino, 1979), em métodos educacionais (Gorin, 198O), etc. ela-</p><p>boraram alguns aspectos que nós omitimos, enquanto es tudos das</p><p>representações da criança enfatizaram a importância heurística</p><p>do sujeito como um todo (Chombart de Lauwe, 1971).</p><p>7. O status das representações: estímulos ou mediado-</p><p>res?</p><p>7.1. Representações sociais como variáveis independentes</p><p>J.A. Fodor escreve:</p><p>Um dos argumentos principais deste livro foi que, se você</p><p>quer saber que resposta um dado estimulo irá evocar, você</p><p>deve descobrir que representação interna o organismo irá</p><p>designar para o estímulo. Evidentemente, o caráter de tais de-</p><p>signações deve, por sua vez, depender de que tipo de sistema re-</p><p>99</p><p>presentacional está disponível, para medrar os processos cognitivos</p><p>do organismo (Fodor, 1975).</p><p>Uma preocupação saudável, tanto para com a teoria, como para</p><p>com o fato das representações, pode ser observada agora em qua-</p><p>se todos os lugares. Assim, o que acontece dentro de uma socieda-</p><p>de, tornou-se uma pré-ocupação importante, muito mais do que</p><p>simplesmente saber como ela cria e transforma a atmosfera. Mas,</p><p>apesar desta preocupação existir, é, não obstante, essencial para</p><p>proteger contra as tradicionais meias-medidas como as que su-</p><p>põem a injeção de um mínimo de subjetividade e pensamento na</p><p>“caixa preta” dos nossos cérebros ou simplesmente adicionam um</p><p>pouco mais de espírito ao nosso mundo desumanizado, mecaniza-</p><p>do.</p><p>De fato, se o texto de Fodor - que congrega uma extensa varie-</p><p>dade de escritos - é lido com certa atenção, o uso de duas palavras</p><p>acabam por assombrar: “interna” e “medial”. Estes termos impli-</p><p>cam que as representações substituem o fluxo de informações que</p><p>chegam até nós do mundo externo: que as representações são elos</p><p>mediadores entre a causa real (estímulo) e o efeito concreto (respos-</p><p>ta). Então, os elos são mediadores ou causas aleatórias. Este beha-</p><p>viorismo re-condicionado, ao qual nós sempre recosemos em tem-</p><p>pos difíceis, é um pedaço inteligente de remendo, mas é um remen-</p><p>do ad hoc por definição e não é muito convincente.</p><p>Devemos, aqui, sublinhar a posição firme que a teoria das re-</p><p>presentações tomou, com respeito a isso: no que concerne à psico-</p><p>logia social, representações sociais são variáveis independentes,</p><p>estímulos explanatórios. Isto não significa que, por exemplo, no que</p><p>concerne à sociologia ou à história, aquilo que para nós é explanató-</p><p>rio não seja, para elas, uma explicação”3. É Obvio porque isto deveria</p><p>ser assim. Todo estímulo é selecionado de uma grande variedade</p><p>de estímulos possíveis e pode produzir uma variedade infinita de</p><p>reações. São as imagens e paradigmas preestabelecidos que de-</p><p>terminam a escolha e restringem a gama de reações. Quando uma</p><p>criança vê o sorriso da sua mãe, ela percebe certo número de dife-</p><p>3 Nós discutiremos de novo representações socials depois que nós tivermos delineado as</p><p>criticas levantadas sobre o conceito de atitude que e, por definição, uma causa mediadora. Desse</p><p>modo, nós esperamos demonstrar a autonomia da psicologia social e inserir no contexto coletivo</p><p>uma teoria (isto é, a das atitudes), que se tomou muito individualística. O trabalho de Jaspers &</p><p>Fraser (1984) dá muito peso a esse ponto de vista</p><p>100</p><p>rentes signos - olhos bem abertos, lábios distendidos, movimentos</p><p>da cabeça - que a incitam a ficar de pé, gritar, etc. Estas imagens e</p><p>paradigmas predizem o que surgirá como estimulo ou resposta ao</p><p>ator ou espectador: os braços da criança estendidos em direção ao</p><p>rosto sorridente da mãe, ou o rosto sorridente da mãe inclinado em</p><p>direção aos braços estendidos da criança.</p><p>Reações emocionais, percepções e racionalizações não são</p><p>respostas a um estimulo exterior como tal, mas à categoria na qual</p><p>nós classificamos tais imagens, aos nomes que nós damos a elas.</p><p>Nos reagimos a um estímulo à medida em que, ao menos parcial-</p><p>mente, nós o objetivamos e o re-criamos, no momento de sua</p><p>constituição. O objeto ao qual nós respondemos pode assumir di-</p><p>versos aspectos e o aspecto específico que ele realmente assume</p><p>depende da resposta que nós associamos a ele antes de defini-lo. A</p><p>mãe vê os braços da criança estendidos para ela e não para uma</p><p>outra pessoa, quando ela já está se preparando para sorrir e está</p><p>consciente de que seu sorriso é indispensável para a estabilidade</p><p>da criança.</p><p>Em outras palavras, representações sociais determinam tanto o</p><p>caráter do estimulo, como a resposta que ele incita, assim como, em</p><p>uma situação particular, eles determinam quem é quem. Conhecê-los e</p><p>explicar o que eles são e o que significam é o primeiro passo em toda</p><p>análise de uma situação ou de uma relação social e constitui-se em um</p><p>meio de predizer a evolução das interações grupais, por exemplo. Na</p><p>maioria dos nossos experimentos e observações sistemáticas nós, de</p><p>fato, manipulamos representações quando pensamos que estamos</p><p>manipulando motivações, inferências e percepções e é somente por-</p><p>que não as levamos em consideração, que estamos convencidos do</p><p>contrário. O laboratório mesmo, para onde uma pessoa se dirige para</p><p>ser objeto de um experimento, representa para ela e para nós o protó-</p><p>tipo de um universo reificado (cf. o capítulo de Farr). A presença do</p><p>aparato, a forma como o espaço é organizado, as instruções que ela</p><p>recebe, a natureza mesma do empreendimento, a relação artificial</p><p>entre o experimentador e o sujeito e o fato de que tudo isso ocorre no</p><p>contexto de uma instituição e sob a égide da ciência, tudo isso repro-</p><p>duz muitas características essenciais de um universo reificado. Está</p><p>muito claro que a situação determina tanto as questões que vamos</p><p>formular, como as respostas que elas vão fornecer.</p><p>101</p><p>Figura 1.1 -Modelos de representação</p><p>Idéia corrente</p><p>Estimulo</p><p>Representação</p><p>Resposta</p><p>Idéia proposta</p><p>Estimulo</p><p>Representação</p><p>Resposta</p><p>7.2. Representações sociais em situações de laboratório</p><p>Algumas investigações buscaram restabelecer sentidos e re-</p><p>presentações em situações de laboratório e, tanto quanto possí-</p><p>vel, corroborar o postulado teórico da sua autonomia, sem o que o</p><p>experimento e a teoria perderiam muito do seu significado. Em</p><p>1968, Claude Faucheux e eu tentamos provar que representações</p><p>modelam nosso comportamento, no contexto de um jogo compe-</p><p>titivo. Nós baseamos nosso experimento em jogos familiares de</p><p>cartas. A única variante que nós introduzimos era que a alguns</p><p>dos sujeitos era dito que jogavam contra a “natureza”, enquanto</p><p>que a outros era dito que seu adversário era o “acaso”. O primeiro</p><p>termo evoca uma imagem do mundo mais tranqüilizadora, com-</p><p>preensível e controlável, enquanto a idéia de acaso, enfatizada</p><p>aqui pela presença de um baralho, lembra adversidade e inevoca-</p><p>bilidade. Como nós prevíamos, a escolha dos sujeitos e especial-</p><p>mente seus comportamentos diferiam de acordo com a represen-</p><p>tação do seu oponente. Assim, a maioria dos sujeitos confrontados</p><p>com a “natureza” gastaram algum tempo estudando as regras e</p><p>montando algum tipo de estratégia; ao passo que aqueles sujeitos</p><p>que enfrentaram o “acaso” concentraram sua atenção no baralho,</p><p>tentando adivinhar qual carta seria jogada e não se preocuparam</p><p>102</p><p>com as regras do jogo. Os números falam por si só: 38 dos 4O que</p><p>jogavam contra a “natureza” foram capazes de racionalizar as re-</p><p>gras, enquanto somente 12 dos outros 4O foram capazes de</p><p>fazê-lo (Faucheux & Moscovici, 1968).</p><p>Desse modo, nossas representações internas, que herdamos</p><p>da sociedade, ou que nós mesmos fabricamos, podem mudar nos-</p><p>sa atitude em relação a algo fora de nós mesmos. Juntamente com</p><p>Abric e Plon (Abric et a1., 1967), nós realizamos outra variação</p><p>deste experimento. Aqui, um grupo era instruído para jogar contra</p><p>um computador e as escolhas que fariam seriam programadas.</p><p>difícil conseguir um re-</p><p>ferencial teórico estável, abrangendo tanto o psicológico como o</p><p>social, permanece obscura. Para dizer a verdade, a hostilidade da</p><p>parte dos psicólogos ao “sociologismo” foi tanta quanto a dos so-</p><p>ciólogos ao “psicologismo”. Ao dizer que a psicologia social, como</p><p>uma categoria mista, representa uma forma de poluição, ficamos</p><p>apenas nas palavras, enquanto nós não compreendermos por que</p><p>o social e o psicológico são considerados como categorias exclusi-</p><p>vas.</p><p>13</p><p>Esse é o centro do enigma histórico que retém seu poder es-</p><p>pecifico até hoje. Embora fosse ingênuo pretender oferecer uma</p><p>explicação clara de sua origem, nós podemos vislumbrar algo de</p><p>sua história na oposição entre razão e cultura que, como discute</p><p>Gellner (1992), foi tão influente desde a formulação do racionalis-</p><p>mo de Descartes. Contra o relativismo da cultura, Descartes pro-</p><p>clamou a certeza que brota da razão. O argumento em favor do co-</p><p>gito introduziu um ceticismo sobre as influências da cultura e do</p><p>social que foi difícil de superar. Na verdade, se Gellner está correto</p><p>ao constatar nesse argumento uma oposição entre cultura e razão,</p><p>então toda a ciência da cultura será uma ciência da não-razão. A</p><p>partir daqui, é um curto passo chegar-se a uma ciência desprovida</p><p>de razão, o que parece ser a reputação dada a toda tentativa de</p><p>combinar os conceitos sociológicos com os psicológicos numa</p><p>ciência “mista”. Mas foi justamente tal “ciência desprovida de ra-</p><p>zão”, que Moscovici procurou ressuscitar, através dum retorno ao</p><p>conceito de representação, como central a uma psicologia social</p><p>do conhecimento.</p><p>3. Durkheim, o ancestral ambíguo</p><p>Ao procurar estabelecer uma ciência “mista”, centrada no</p><p>conceito de representação, Moscovici reconheceu uma dívida du-</p><p>radoura ao trabalho de Durkheim. Como vimos acima, contudo, a</p><p>formulação feita por Durkheim do conceito de representações co-</p><p>letivas mostrou-se uma herança ambígua para a psicologia social.</p><p>O esforço para estabelecer a sociologia como uma ciência autôno-</p><p>ma levou Durkheim a defender uma separação radical entre repre-</p><p>sentações individuais e coletivas e a sugerir que as primeiras de-</p><p>veriam ser o campo da psicologia, enquanto as últimas formariam o</p><p>objeto da sociologia (interessante notar que em alguns de seus</p><p>escritos sobre esse tema Durkheim flertou com a idéia de chamar a</p><p>esta ciência de “psicologia social”, mas preferiu “sociologia”, a fim de</p><p>eliminar toda possível confusão com a psicologia (cf. Durkheim,</p><p>1895/1982). Não é apenas Farr quem mostrou as dificuldades que</p><p>a formulação de Durkheim trouxe para a psicologia social. Numa</p><p>discussão anterior, sobre a relação entre o trabalho de Durkheim e a</p><p>teoria das representações sociais, Irwin Deutscher (1984) tam-</p><p>14</p><p>bém escreveu sobre a complexidade de tomar Durkheim como um</p><p>ancestral para uma teoria sociopsicológica. O próprio Moscovici</p><p>sugeriu que, ao preferir o termo “social”, queria enfatizar a quali-</p><p>dade dinâmica das representações contra o caráter mais fixo, ou</p><p>estático, que elas tinham na teoria de Durkheim (ver capítulo 1,</p><p>onde Moscovici ilustra a maneira como Durkheim usou os termos</p><p>“social” e “coletivo” de maneira intercambiável). Ao comentar este</p><p>ponto, depois na sua entrevista a Marková, no capitulo 7, Moscovi-</p><p>ci se refere à impossibilidade de manter qualquer distinção clara</p><p>entre o “social” e o “coletivo”. Esses dois termos não se referem a</p><p>ordens distintas na organização da sociedade humana, mas tam-</p><p>bém não é o caso de que os termos “representação social” e “repre-</p><p>sentação coletiva” apenas colocam uma distinção, sem estabelecer</p><p>uma diferença. Em outras palavras, a psicologia social de Moscovici</p><p>não pode simplesmente ser reduzida a uma variante da sociologia</p><p>durkheimiana. Como devemos, então, entender a relação das re-</p><p>presentações sociais com o conceito de Durkheim?</p><p>A partir duma perspectiva sociopsicológica, podemos ser ten-</p><p>tados a pensar que a resolução dessa ambigüidade pode ser bus-</p><p>cada através dum esclarecimento dos termos “individual” e “cole-</p><p>tivo”, como empregados na argumentação de Durkheim. Não é</p><p>absolutamente claro, contudo, que tal esforço possa conseguir,</p><p>com sucesso, algum espaço teórico para a psicologia social, parti-</p><p>cularmente porque, como mostra Farr (1998), a questão se tornou</p><p>problemática, devido ao reconhecimento do individualismo como</p><p>uma poderosa representação coletiva na sociedade moderna.</p><p>Um enfoque mais produtivo pode ser constatado através</p><p>duma reflexão posterior sobre o próprio argumento de Durkheim.</p><p>Durkheim não estava simplesmente interessado em estabelecer o</p><p>caráter sui generis das representações coletivas como um elemen-</p><p>to de seu esforço para manter a sociologia como uma ciência autô-</p><p>noma. Toda sua sociologia é, ela própria, consistentemente orien-</p><p>tada àquilo que faz com que as sociedades se mantenham coesas,</p><p>isto é, às forças e estruturas que podem conservar, ou preservar, o</p><p>todo contra qualquer fragmentação ou desintegração. É dentro</p><p>desta perspectiva que as representações coletivas assumem sua</p><p>significância sociológica para Durkheim; seu poder de abrigar,</p><p>ajuda a integrar e a conservar a sociedade. De fato, é em parte essa</p><p>capacidade de manter e conservar o todo social que dá às repre-</p><p>sentações coletivas seu caráter sagrado na discussão que Durkheim</p><p>15</p><p>faz em The Elementary Forms of Religious Life (1912/1995). A psi-</p><p>cologia social de Moscovici, por outro lado, foi consistentemente</p><p>orientada para questões de como as coisas mudam na sociedade,</p><p>isto é, para aqueles processos sociais, pelos quais a novidade e a</p><p>mudança, como a conservação e a preservação, se tornam parte</p><p>da vida social. Já aludi a esse seu interesse na transformação do</p><p>senso comum, em seu estudo das representações sociais da psi-</p><p>canálise. É no curso de tais transformações que a ancoragem e a</p><p>objetivação se tornam processos significantes (ver capítulo 1).</p><p>Uma afirmação mais clara desse enfoque do trabalho de Moscovici</p><p>pode ser encontrada em seu estudo sobre influência social (1976)</p><p>que, na verdade, tem o titulo de Influência Social e Mudança So-</p><p>cial. O ponto de partida para esse estudo foi a insatisfação com os</p><p>modelos de influência social, que apreenderam apenas a confor-</p><p>midade ou a submissão. Se esse fosse o único processo de influên-</p><p>cia social que tivesse existido, como seria possível qualquer mu-</p><p>dança social? Tais considerações levaram Moscovici a se interes-</p><p>sar pelo processo de influência da minoria, ou na inovação, um in-</p><p>teresse que ele levou adiante através de uma série de investiga-</p><p>ções experimentais. É esse interesse com a inovação e a mudança</p><p>social que levou também Moscovici a ver que, da perspectiva so-</p><p>ciopsicológica, as representações não podem ser tomadas como</p><p>algo dado nem podem elas servir simplesmente como variáveis</p><p>explicativas. Ao contrário, a partir dessa perspectiva, é a constru-</p><p>ção dessas representações que se torna a questão que deve ser</p><p>discutida, dai sua insistência, tanto em discutir como u m fenôme-</p><p>no que antes era visto como um conceito, como em enfatizar o ca-</p><p>ráter dinâmico das representações, contra seu caráter estático de</p><p>representações coletivas da formulação de Durkheim (uma dis-</p><p>cussão mais ampla desse ponto, feita por Moscovici, pode ser en-</p><p>contrada no capitulo 1).</p><p>Por conseguinte, enquanto Durkheim vê as representações co-</p><p>letivas como formas estáveis de compreensão coletiva, com o po-</p><p>der de obrigar que pode servir para integrar a sociedade como um</p><p>todo, Moscovici esteve mais interessado em explorar a variação e</p><p>a diversidade das idéias coletivas nas sociedades modernas. Essa</p><p>própria diversidade reflete a falta de homogeneidade dentro das</p><p>sociedades modernas, em que as diferenças refletem uma distribui-</p><p>ção desigual de poder e geram uma heterogeneidade de represen-</p><p>tações. Dentro de qualquer cultura há pontos de tensão, mesmo de</p><p>16</p><p>fratura, e é ao redor desses pontos de clivagem no sistema repre-</p><p>sentacional duma cultura</p><p>O</p><p>computador, assim como eles, tentaria acumular o máximo de</p><p>pontos. O objetivo do outro grupo era idêntico, mas, neste, eram</p><p>instruídos a jogar contra um outro estudante, igual a eles, cujas</p><p>escolhas lhes seriam comunicadas por telefone. Uma vez mais nós</p><p>observamos estratégias e racionalizações diferentes e até mesmo</p><p>contrastastes, de acordo com o grupo. Compreensivelmente, emer-</p><p>giu uma relação mais cooperativa como outro, do que com o com-</p><p>putador. Outros experimentos realizados por Codol (Codol, 1974)</p><p>relativos ao processo de ancoragem de várias representações do</p><p>“self”, do grupo e da tarefa a ser executada, lançaram uma luz pe-</p><p>culiar, na sua variedade e impacto, em uma situação competit i-</p><p>va. Abric (1976), em um experimento muito ambicioso e sistemá-</p><p>tico, dissecou cada uma dessas representações e mostrou por que</p><p>eles se comportaram da maneira que o fizeram. Um relato da ex-</p><p>tensa gama de resultados obtidos será publicado em breve.</p><p>Numa outra série de experimentos igualmente convincentes</p><p>e sem problemas, Flament, em colaboração com Codol e Rossig nol</p><p>(Codol & Flament, 1971; Rossignol & Flament, 1975; Rossig nol</p><p>& Houel, 1976), consideraram o mesmo problema em um outro</p><p>nível mais importante. De fato, a psicologia social está bas tante</p><p>preocupada com a descoberta dos assim chamados mecanismos</p><p>universais que, inscritos nos nossos cérebros ou nas nos sas glân-</p><p>dulas, supostamente determinam cada uma de nossas ações e</p><p>pensamentos. Eles ocorrem na sociedade, sem serem sociais. Mais</p><p>ainda, eles são mecanismos formais muito desconec tados de um</p><p>conteúdo individual ou coletivo de qualquer tipo, ou mesmo da</p><p>história responsável por tal conteúdo. Um desses mecanismos</p><p>supostamente único e universal é o da coerência e estabilidade.</p><p>103</p><p>Ele sugere que indivíduos tentam organizar suas cren ças em es-</p><p>truturas internamente coerentes. Conseqüentemente, nós pre-</p><p>feriríamos estruturas estáveis às instáveis. O postulado implícito</p><p>pode ser colocado assim: relações interpessoais positivas e nega-</p><p>tivas são determinadas pelo princípio da estabilidade. As duas</p><p>proposições que o sintetizam - “Os amigos dos meus amigos são</p><p>meus amigos” e “Os inimigos dos meus inimigos são meus amigos”</p><p>- servem como leis imutáveis, separadas de qual quer sentido im-</p><p>plícito e independentes de qualquer circunstância particular.</p><p>Em outras palavras, os dois ditos axiomatizados formam a base de</p><p>uma sintaxe de relações entre pessoas e determinam sua própria</p><p>semântica e pragmática.</p><p>Sem dúvida, já era óbvio antes de Flament que tais proposi-</p><p>ções aplicam-se somente a “objetos” que tenham um quadro de</p><p>referência comum, ou que estão situados ao longo de uma dimen-</p><p>são cognitiva (Jaspers, 1965). Mas o uso que Flament fez da teoria</p><p>das representações sociais lhe possibilitou ir mais longe e mais a</p><p>fundo. Para começar, ele mostrou que cada indivíduo que tivesse</p><p>que avaliar a relação entre vários outros indivíduos possui uma</p><p>gama de representações do grupo ao qual eles pertencem e do tipo</p><p>de elos que existem entre eles. Estas podem ser convencionais ou</p><p>até mesmo um pouco míticas (e.g. o grupo fraternal ou Rousseau-</p><p>niano, etc.). O princípio de estabilidade caracterizará tais relações</p><p>somente se a pessoa já tem em mente a noção de um grupo básico,</p><p>igualitário e amigável. Então, ela tentará formar uma opinião coe-</p><p>rente dos membros que o constituem. Em outras palavras, é so-</p><p>mente em um contexto social desse tipo que “os amigos dos meus</p><p>amigos” serão necessariamente “meus amigos”. Em tais casos, o</p><p>princípio da cognição e afetividade de Heider expressa so mente as</p><p>normas coletivas e os elos internos do grupo particular, mas não</p><p>uma tendência geral. De fato, Flament mostra com propriedade</p><p>que é a representação de tal princípio que dá proeminência parti-</p><p>cular a afabilidade e ao igualitarismo dos seus membros e não o</p><p>contrário. Nas representações de um tipo diferente de gru po, afa-</p><p>bilidade e igualitarismo não estão necessariamente ligados e não</p><p>têm a mesma significação. Por fim, parece que a função do princí-</p><p>pio de estabilidade consiste em criar um paradigma social de</p><p>relacionamentos interpessoais positivos e negativos e que a sua</p><p>significação depende deste paradigma. O que simplesmente quer</p><p>dizer que o principio do equilíbrio, longe de determinar, é ele</p><p>104</p><p>mesmo determinado pela forma como o contexto das relações</p><p>interpessoais foi representado. E não é realmente de se surpreen-</p><p>de que isto não tenha aparecido antes.</p><p>Muitos estudos contemporâneos em psicologia social tomam</p><p>como seu paradigma este grupo de pessoas de opinião igual, que</p><p>tendem a ter opiniões e gostos semelhantes e anseiam por evitar</p><p>conflitos e aceitar o status quo. Mas o que eles não percebem é</p><p>fato de que tal grupo é uma materialização da noção tradicional</p><p>mítica, de uma comunidade ideal. Neste caso, a tendência em rea-</p><p>ção à estabilidade e coerência pode bem ser vista como um fato -</p><p>determinante dos relacionamentos interpessoais. Mas se nós com-</p><p>pararmos esta representação social do grupo com outras, nós logo</p><p>nos daremos conta que estas tendências “gerais” são realmente</p><p>peculiares a ele, que nós trocamos o efeito pela causa. As indaga-</p><p>ções realizadas por Flament e a sua equipe de Aix-en-Proven nos</p><p>tornaram possível a reinterpretação das teorias de Heider, através</p><p>de uma reavaliação que leva em conta a dimensão social e histórica</p><p>das nossas percepções e opiniões dos outros.</p><p>Mas nos referimos somente a um número restrito de experi-</p><p>mentos. Mesmo assim, cada um deles prova, no seu campo espe-</p><p>cífico (competição, consciência de outros, etc.), que o nosso pos-</p><p>tulado tem uma ampla significação. Mais do que motivações, as-</p><p>pirações, princípios cognitivos e os outros fatores que são habitu-</p><p>almente apresentados são as nossas representações que em últi-</p><p>ma instância determinam nossas reações e as suas significações</p><p>são, assim, as de uma causa real. Através delas, a sociedade se</p><p>comporta de certa forma como Marcel Duchamp; como esse pin tor</p><p>com os seus objetos já-feitos, ela põe a sua assinatura nos pro-</p><p>cessos feitos-pela-sociedade e assim modifica seu caráter. Nós es-</p><p>peramos ter demonstrado que, na verdade, todos os elementos do</p><p>campo psíquico são revertidos, uma vez que a assinatura social te-</p><p>nha sido colocada neles.</p><p>A lição a ser tirada do que foi dito acima é que a maneira atual</p><p>de proceder - que nós devemos a Sherif e que consiste em de-</p><p>monstrar como os mecanismos psíquicos se transformam em pro-</p><p>cessos sociais - deveria ser revertida. Pois tal é o processo da pró-</p><p>pria evolução e, seguindo-o, nós estaremos mais aptos a compre-</p><p>endê-lo. É apenas lógico pensar que os processos sociais e públi-</p><p>cos foram os primeiros a ocorrer e que eles foram gradualmente</p><p>interiorizados até se transformarem em processos psíqui-</p><p>cos.Assim, quando nós analisamos processos psicossociais, nós</p><p>105</p><p>descobrimos que eles são psicossociais. É como se a nossa psico-</p><p>logia contivesse a nossa sociologia de uma forma condensada. E</p><p>uma das tarefas mais urgentes da psicologia social é descobrir</p><p>uma dentro da outra e compreender esse processo de condensa-</p><p>ção.</p><p>Observações finais</p><p>Não posso concluir essa exposição sem mencionar algumas</p><p>das implicações mais gerais da teoria das representações sociais.</p><p>Em primeiro lugar, o estudo destas representações não deveria per-</p><p>manecer restrito a um mero salto do nível emocional para o intelec-</p><p>tual. Nelas não deveriam ser vistas como puramente pré- ou anti-</p><p>behavioristas. Se este fosse o caso, não haveria razão para insistir</p><p>nelas. Não, o que se requer é que examinemos o aspecto simbólico</p><p>dos nossos relacionamentos e dos universos consensuais em que</p><p>nós habitamos. Porque toda “cognição”, toda “motivação” e todo</p><p>“comportamento” somente existem e têm repercussões uma vez</p><p>que eles signifiquem algo e significar implica, por definição, que</p><p>pelo menos duas pessoas compartilhem uma linguagem comum,</p><p>valores comuns e memórias comuns. É isto que distingue</p><p>o social</p><p>do individual, o cultural do físico e o histórico do estático. Ao dizer</p><p>que as representações são sociais nós estamos dizendo principal-</p><p>mente que elas são simbólicas e possuem tantos elementos percep-</p><p>tuais quanto os assim chamados cognitivos. E é por isso que nós</p><p>consideramos seu conteúdo tão importante e nos recusamos a dis-</p><p>tingui-las dos mecanismos psicológicos como tais.</p><p>Em outras palavras, nós verificamos, em várias ocasiões, que a</p><p>psicologia social tende a destacar um simples mecanismo, retirá-</p><p>lo do seu contexto e atribuir um valor geral a ele - assim como os</p><p>instintos foram uma vez segregados, com uma finalidade seme-</p><p>lhante. Alguns destes são pseudomecanismos, tais como” estabi-</p><p>lidade” ou “coerência”, que parecem explicar o que eles realmente</p><p>definem. Uma vez que o pensamento tende naturalmente a substi-</p><p>tuir ordem pela desordem, simplicidade pela diversidade, etc.,</p><p>afirmar que o pensamento tende em direção á coerência, significa</p><p>pouco mais que dizer que o pensamento tende em direção ao pen-</p><p>samento.</p><p>Outros mecanismos como “dissonância”, “atribuição”, “rea-</p><p>ção”, etc. são vistos como universais e são aplicados a todos os</p><p>campos sociais, categorias ou conteúdos possíveis. Supõe-se que</p><p>106</p><p>eles processem determinadas informações e produzam informa-</p><p>ções diferentes, sejam quais forem. Ao avaliar a maioria dos estudos</p><p>realizados nestas bases, Simon concluiu: “Quando os processos</p><p>subjacentes a esses fenômenos sociais são identificados; como</p><p>eles o são nos capítulos deste livro, particularmente os da segunda</p><p>e terceira parte, eles acabam sendo os mesmos processos de in-</p><p>formação que nós encontramos em cognições não-sociais (Carroll</p><p>& Paine, 1976).</p><p>Esta é uma coincidência perturbadora, pois ou o social tem</p><p>uma existência e significação que deve produzir certos efeitos, ou o</p><p>estudo desses processos de informação, como mecanismos isola-</p><p>dos, se constitui em um erro, que cria a ilusão de um contato pos-</p><p>sível e fácil com a essência da realidade.</p><p>Representações sociais, como teorias cientificas, religiões,</p><p>mitologias, são representações de alguma coisa ou de alguém.</p><p>Elas têm um conteúdo específico - implicando, esse especifico a-</p><p>lém do mais, que ele difere de uma esfera ou de uma sociedade</p><p>para outra. No entanto, estes processos são significantes, somente</p><p>na medida em que eles revelam o nascimento de tal conteúdo suas</p><p>variações. Afinal, como nós pensamos não é distinto daquilo que</p><p>pensamos. Assim, nós não podemos fazer uma distinção clara en-</p><p>tre as regularidades nas representações e nas dos processos</p><p>que as criam. De fato, se nós seguimos os passos da psicanálise e da</p><p>antropologia, nós deveríamos achar mais fácil entender o que as</p><p>representações e os mecanismos têm em comum.</p><p>A segunda implicação - e uma que poderia ter sido prevista</p><p>pode ser expressa em poucas palavras: o estudo das representa-</p><p>ções sociais requer que nós retornemos aos métodos de observa-</p><p>ção. Não tenho a intenção de criticar os métodos experimen tais</p><p>como tais. O seu valor é incontestável, para o estudo de fenôme-</p><p>nos simples, que possam ser recortados do seu contexto. Mas não é</p><p>este o caso das representações sociais que são armazenadas nossa</p><p>linguagem e que são criadas em um ambiente bem complexo. Es-</p><p>tou muito consciente que vários dos meus colegas menosprezam</p><p>observações, que eles consideram como uma abdicação covarde do</p><p>rigor cientifico, um signo de prolixidade, preguiça e vagueza. Acho</p><p>que eles são extremamente pessimistas psicologia social não é mais</p><p>o que ela era meio século atrás.</p><p>Desde então, nós começamos a valorizar as exigências da teo-</p><p>ria, de uma análise acurada do fenômeno; mas nós também pas-</p><p>107</p><p>samos a valorizar o inverso, a saber, as limitações das teorias que</p><p>explicam somente o que pode ser experimentado e do experimen-</p><p>to como algo ao qual a realidade se ajusta. E o que nós exigimos da</p><p>observação, é que ela preserve algumas das qualidades do expe-</p><p>rimento ao mesmo tempo em que nos liberte de suas limitações.</p><p>Ela obteve sucesso, nesta tarefa, para a etnologia, antropologia e</p><p>psicologia infantil e nós não vemos razões por que ela não deva</p><p>ter os mesmos resultados na psicologia social.</p><p>Evidentemente, porém, algo mais do que os méritos compa-</p><p>rativos de um ou outro método está em jogo. E isto deve ser dito</p><p>sem ambigüidade; deixando de lado os méritos técnicos, o expe-</p><p>rimento se prestou para associar exclusivamente a psicologia so-</p><p>cial à psicologia geral e para afastá-la da sociologia e das ciências</p><p>sociais. Indubitavelmente, esta não foi a intenção dos seus funda-</p><p>dores, mas este foi o caminho por onde ela se encaminhou. Ademais,</p><p>seus programas de pesquisa e ensino formaram excelentes espe-</p><p>cialistas em psicologia, que são, ao mesmo tempo, ignorantes em</p><p>sociologia. Um retomo à observação necessitaria um retorno às</p><p>ciências humanas. Durante a última década, elas fizeram avanços</p><p>significativos e demonstraram que podem ser feitas descobertas</p><p>sem rituais obsessivos, a tal ponto que podem existir destinos pio-</p><p>res do que o fato de tornar a aderir a eles.</p><p>A terceira implicação, que é uma conseqüência natural da se-</p><p>gunda, diz respeito à descrição. Durante certo tempo, nós estáva-</p><p>mos preocupados somente com os mecanismos explanatórios</p><p>para a mudança de atitude, influência, atribuição, etc. sem pensar</p><p>muito em coletar dados. Tal coleta era vista como uma atividade</p><p>menor, uma prova de preguiça intelectual e até mesmo como uma</p><p>inequívoca inutilidade. Delinear hipóteses e verificá-las no labora-</p><p>tório parecem ser a palavra de ordem. Mas, ao contrário das apa-</p><p>rências, esta palavra de ordem nada tem a ver com a ciência. A</p><p>maioria das ciências - da lingüística à economia, da astronomia à</p><p>química, da etnologia à antropologia - descrevem fenômenos e</p><p>tentam descobrir regularidades, nas quais se possa fundamentar</p><p>uma teoria geral. A sua compreensividade consiste principalmente</p><p>no acúmulo de dados à sua disposição e o significado das regulari-</p><p>dades revelaram que teorias interpretar a seguir. Não desejo ana-</p><p>lisar aqui as razões desta palavra de ordem, nem suas conse-</p><p>qüências negativas para a nossa disciplina. Quaisquer que sejam</p><p>as razões, permanece o fato de que somente uma descrição cuida-</p><p>dosa das representações sociais, da sua estrutura e da sua evolu-</p><p>108</p><p>ção nos vários campos, nos possibilitará entendê-las e que uma</p><p>explicação válida só pode provir de um estudo comparativo de tais</p><p>descrições. Isto não implica que nós devemos descartar a teoria,</p><p>substituindo-a por uma acumulação insensata de dados, mas que</p><p>o que nós queremos é uma teoria baseada em observações ade-</p><p>quadas e que seja a mais acurada possível.</p><p>Por fim, a quarta implicação diz respeito ao fator tempo. As</p><p>representações sociais são históricas na sua essência e influenci-</p><p>am o desenvolvimento do indivíduo desde a primeira infância,</p><p>desde o dia em que a mãe, com todas as suas imagens e conceitos,</p><p>começa a ficar preocupada com o seu bebe. Estas imagens e con-</p><p>ceitos são derivadas dos seus próprios dias de escola, de progra-</p><p>mas de rádio, de conversas com outras mães e com o pai e de ex-</p><p>periências pessoais e elas determinam seu relacionamento com a</p><p>criança, o significado que ela dará para os seus choros, seu com-</p><p>portamento e como ela organizará a atmosfera na qual ela crescerá.</p><p>A compreensão que os pais têm da criança modela sua personali-</p><p>dade e pavimenta o caminho para sua socialização. É por isso que</p><p>nós pressupomos: “.. .que é a transmissão do conhecimento à</p><p>criança, muito mais do que o seu comportamento ou as suas habi-</p><p>lidades discriminatórias que deve ser o tema central de preocupa-</p><p>ção dos psicólogos do desenvolvimento” (Nelson, 1974. Veja tam-</p><p>bém Palmonari & Ricci Bitti, 1978).</p><p>Nossas representações de nossos corpos, de nossas relações</p><p>com outras pessoas, da justiça, do mundo, etc. se desenvolvem da</p><p>infância à maturidade. Dever-se-ia enfrentar um estudo detalhado</p><p>do seu desenvolvimento, estudo que explorasse a forma</p><p>como</p><p>uma sociedade é concebida e experimentada simultaneamente</p><p>por diferentes grupos e gerações. Não haveria razão por que ver o</p><p>jovem adulto civilizado como o protótipo da raça humana e desse</p><p>modo ignorar todos os fenômenos genéticos. E isso nos conduz a</p><p>uma visão mais ampla de um elo entre a psicologia do desenvolvi-</p><p>mento e a psicologia social, a primeira sendo uma psicologia social</p><p>da criança e a segunda, a psicologia do desenvolvimento dos adul-</p><p>tos.</p><p>Em ambas, o fenômeno das representações sociais tem um</p><p>papel central e é isto o que elas têm em comum. Se somássemos a</p><p>estes certos aspectos da sociologia da vida quotidiana - que, de</p><p>mais a mais, ainda não foi adequadamente formulada -nós po-</p><p>deremos reconstruir uma ciência geral que incluiria toda uma</p><p>109</p><p>galáxia de investigações relacionadas. Percebo isto como uma</p><p>materialização concreta de uma observação de Vygotsky: “O pro-</p><p>blema do pensamento e da linguagem extrapola os limites da ciên-</p><p>cia natural e se toma o problema central da sociologia histórica</p><p>humana, i.e. da psicologia social” (Vygotsky, 1977). Esta seria a</p><p>ciência dos universos consensuais em evolução, uma cosmogonia</p><p>da existência física humana. Não ignoro as dificuldades de tal em-</p><p>preendimento, nem o fato de que ele pode ser impassível, como</p><p>também não ignoro a lacuna entre tal projeto e as nossas modes-</p><p>tas realizações até o dia de hoje. Mas não posso compreender que</p><p>isso seja razão suficiente para não empreendê-lo e não desenvol-</p><p>ve-lo, o mais claramente possível, na esperança que outros irão</p><p>compartilhar da minha fé nesse projeto.</p><p>110</p><p>111</p><p>2-SOCIEDADE E TEORIA EM PSICOLOGIA SOCIAL</p><p>1.O dia do primeiro julgamento</p><p>Como psicólogos sociais europeus, estamos em um dilema.</p><p>Para muitos de nós, nossa ciência recém começou; mas, ao mes-</p><p>mo tempo, pertencemos a sociedades e culturas que possuem um</p><p>longo passado atrás de si. É por isso que revista familiar de psi-</p><p>cólogos sociais europeus tem a tendência de ser escrita como</p><p>uma autobiografia inserida em uma civilização antiga, enquanto</p><p>nossos colegas americanos desfrutam de uma conjuntura de a-</p><p>contecimentos que é exatamente o inverso de nossa própria si-</p><p>tuação.</p><p>O que está em jogo quando são feitas perguntas sobre o que</p><p>a psicologia social é ou deveria ser? Primeiramente, não há dúvi-</p><p>da de que as respostas buscadas são um re flexo das circunstân-</p><p>cias em que estas perguntas são feitas. Por isso, é prudente co-</p><p>meçar tornando explicitas essas circunstâncias, em vez de deixá-</p><p>las atrás dos bastidores. Duas delas parecem ser de maior impor-</p><p>tância.</p><p>A primeira é a tentativa de criar, na Europa, uma psicologia</p><p>social e de reunir um grupo de pessoas que estão tentando - com</p><p>maior ou menor sucesso - alcançar este objetivo. Muitos de nós</p><p>tivemos de usar métodos autodidáticos: começamos aprendendo</p><p>ou reinventando procedimentos, enquanto consultávamos a úni-</p><p>ca literatura disponível, da qual não conhecíamos nem a função,</p><p>nem suas raízes presentes em nossa própria sociedade e em nos-</p><p>sa própria tradição cultural. Em frente a nós, atrás de nós e ao</p><p>nosso redor, havia - e ainda há - a psicologia social americana. É</p><p>desnecessário discorrer sobre o papel desempenhado, neste de-</p><p>senvolvimento, por pessoas como Lewin, Festinger, Heider,</p><p>Deutsch, Asch, Schachter, Sherif, Kelley, Thibaut, Lazarsfeld, Ba-</p><p>velas, Berkowitz e muitos outros. Mas, apesar do respeito que</p><p>temos por seu trabalho - e, em alguns casos, apesar dos laços de</p><p>amizade pessoais - não é segredo que a aceitação está se tornan-</p><p>do progressivamente mais difícil. Na medida em que nós os le-</p><p>113</p><p>112</p><p>mos e tentamos entendê-los e assimilar os princípios que os gui-</p><p>am, devemos concluir, muitas vezes, que eles nos são estranhos,</p><p>que nossa experiência não condiz com a deles, que nossa visão</p><p>de homem, de realidade e de história é diferente. Antes de minha</p><p>primeira visita aos Estados Unidos, havia poucas publicações,</p><p>com exceção de algumas de Lewin, Festinge r e Sherif, que não</p><p>me deixassem uma impressão de estranheza.</p><p>Tomemos o exemplo do livro de Thibaut & Kelley (1959)</p><p>sobre pequenos grupos, ao qual retornarei mais tarde. Quando</p><p>tentei lê-lo pela primeira vez, há alguns anos, não pude nem en-</p><p>tendê-lo, nem me interessar por ele. Como é bem sabido, o livro</p><p>analisa todas as relações sociais como um negócio. A teoria se</p><p>baseia em um cálculo racional do individuo, sobre a probabilida-</p><p>de de outras pessoas lhe trazerem uma maior satisfação, isto é,</p><p>um máximo de recompensas e um mínimo de punições. A medi-</p><p>da, porém, que lia o livro, eu pensava em inúmeros exemplos de</p><p>interação social que não tinham nada a ver com uma equação de</p><p>oferta e procura, como, por exemplo, o papel da reciprocidade e</p><p>dos valores, ou a realidade do conflito social e da identidade so-</p><p>cial. Estas lacunas me perturbavam e nunca consegui terminar o</p><p>livro; e, apesar disso, sabia que era considerado um livro impor-</p><p>tante, apesar de não entender por que devesse sê-lo. Encontrava</p><p>dificuldades semelhantes com algumas das máximas implícitas</p><p>em muitas das pesquisas correntes: “Nós gostamos de quem nos</p><p>apóia”; “o líder é uma pessoa que entende as necessidades dos</p><p>membros do seu grupo”; “nós ajudamos aqueles que nos aju-</p><p>dam”; “entender o ponto de vista de outra pessoa estimula a co-</p><p>operação”.</p><p>Esta “psicologia social da ingenuidade” era, para mim, como</p><p>ainda o é, agressiva, de diferentes formas: ela tinha pouca rele-</p><p>vância para o que eu conhecia, ou para o que eu havia vivencia-</p><p>do. Sua postura moral implícita me recordava outra máxima (que</p><p>talvez não seja tão evidente como parece): “É melhor ser saudá-</p><p>vel e rico do que ser doente e pobre”. Eu sabia, por minha expe-</p><p>riência social, que nós buscamos aqueles que diferem de nós e</p><p>com os quais podemos identificar-nos; que podemos amar al-</p><p>guém que nos despreza; que lideres podem impor-se pela violên-</p><p>cia ou procurando exclusivame nte seus próprios ideais - e que,</p><p>ao fazer isso, eles não são apenas admirados, como também a-</p><p>mados; e, finalmente, não acontece, muitas vezes, que é o nosso</p><p>adversário o que melhor nos conhece?</p><p>113</p><p>Foi somente depois de ter estado nos EE.UU. e ter discutido</p><p>estes assuntos com psicólogos sociais americanos que eu come-</p><p>cei a entender seu ponto de vista e o que está por detrás dele.</p><p>Estava, assim, habilitado a ler o livro de Thibaut e Kelley e conse-</p><p>guir algum entendimento de suas formulações e máximas. Mas</p><p>concluí, também, que precisávamos, na Europa, voltar-nos para</p><p>nossa própria realidade, nossas próprias máximas, das quais</p><p>precisamos extrair nossas conseqüências “científicas”. O fato de</p><p>que a psicologia social é, hoje em dia, quase que exclusivamente</p><p>americana, constitui um duplo empecilho. Do ponto de vista dos</p><p>psicólogos sociais americanos, isso certamente coloca limites á</p><p>relevância de seus resultados e cria incertezas e dúvidas sobre a</p><p>validade das idéias e leis que eles propõem. Para os psicólogos</p><p>sociais de outros lugares, lança dúvidas sobre a validade de sua</p><p>postura cientifica: eles podem escolher entre uma psicologia</p><p>social apropriada à sua cultura e sociedade ou contentar-se com</p><p>a aplicação a seus ensinamentos e pesquisa de um modelo bas-</p><p>tante restrito.</p><p>Não pode ser esquecido que o avanço real feito pelos psicó-</p><p>logos sociais americanos não foi tanto no seu método empírico</p><p>ou nas suas construções teóricas, mas no fato de que estes estu-</p><p>diosos tomaram como temas de suas pesquisas e conteúdo de</p><p>suas teorias os problemas de sua própria sociedade. Seu mérito</p><p>estava tanto nas técnicas, quanto na transposição dos problemas</p><p>da sociedade americana em termos psicossociológicos, fazendo</p><p>deles um objeto de investigação científica. Portanto, se tudo o</p><p>que fazemos é assimilar a literatura que nos é transmitida -</p><p>mesmo que isso seja apenas com preocupações comparativas -</p><p>não fazemos mais do que assumir preocupações e tradições de</p><p>outra sociedade; trabalhamos no abstrato para resolver</p><p>proble-</p><p>mas da sociedade americana. E, portanto, temos de nos resignar</p><p>a sermos uma pequena parte de uma ciência feita em outro lugar</p><p>e isolarmo-nos em uma sociedade - a nossa própria - pela qual</p><p>não mostramos nenhum interesse. Desta forma, podemos obter</p><p>reconhecimento cientifico como metodólogos ou experimenta-</p><p>dores - mas nunca como psicólogos sociais. É verdade que temos</p><p>estímulo suficiente para imitação. Mas nós precisamos tentar</p><p>trabalhar com um espírito de contradição e tornarmo-nos sócios</p><p>em um diálogo estimulador; as diferenças entre “o grande irmão”</p><p>e o “pequeno irmão” poderiam tornar-se menos marcantes com o</p><p>tempo; sua persistência mostra apenas que, em ambos os lados,</p><p>114</p><p>não foi alcançada uma real maturidade.</p><p>Este ponto de vista é compartilhado por outros, cujas expe -</p><p>riências foram semelhantes à minha; mas apesar de nossas ori-</p><p>gens comuns, não fomos bem-sucedidos na criação de uma lin-</p><p>guagem, de um modelo e de uma definição de problemas que</p><p>correspondessem genuinamente à nossa realidade social. Não é</p><p>apenas esta realidade social que é compartilhada; para muitos de</p><p>nós, as idéias de Marx, Freud, Piaget, Durkheim, por exemplo,</p><p>estão em relevância direta porque nos são familiares e porque as</p><p>questões a que eles estavam tentando responder eram também</p><p>nossas próprias questões. Portanto, a estrutura social de classe,</p><p>o fenômeno da linguagem, a influência das idéias sobre a socie-</p><p>dade, tudo isso nos parece muito importante e exige prioridade</p><p>na análise da conduta “coletiva”, embora eles dificilmente mar-</p><p>quem uma presença significativa na psicologia social contempo-</p><p>rânea.</p><p>Confrontados com esta situação, alguns buscam refúgio na</p><p>metodologia e na respeitabilidade que esta oferece, embora sai-</p><p>bam muito bem que isto não é uma solução. O fato de que somos</p><p>tão poucos é também importante: é difícil simplesmente conti-</p><p>nuar escrevendo um para o outro, isolarmo-nos dentro de nossa</p><p>disciplina e sermos os únicos juízes do que fazemos, enquanto</p><p>negligenciamos o que acontece alhures. Antropologia, lingüística,</p><p>sociologia, psicanálise e filosofia exigem nossa atenção; seus u-</p><p>suários solicitam que nos comuniquemos com eles. É impossível</p><p>ignorar suas questões e também as dos estudantes, que insistem</p><p>em obter respostas. A psicologia social, tal como ela se apresenta</p><p>hoje, não nos ajuda muito diante dessas premências. Ela possui</p><p>uma dimensão introspectiva e seu desenvolvimento se caracteri-</p><p>zou por uma negligência das questões de onde essas premências</p><p>se originaram; ou melhor: ela se desenvolveu como reação a ou-</p><p>tras premências, dentre as quais a economia, o behaviorismo e a</p><p>indústria são as mais importantes.</p><p>O segundo maior problema refere-se ao que é, muitas vezes,</p><p>chamado de “revolução estudantil”. Há opiniões diferentes sobre</p><p>o caráter “revolucionário” do movimento estudantil e de como</p><p>deveríamos agir a seu respeito, ou contra ele. Do meu ponto de</p><p>vista, o movimento teve um saldo positivo, porque nos ajudou a</p><p>confrontar problemas que procurávamos esquecer. Não há nada</p><p>mais saudável do que sermos colocados face a face com nossas</p><p>próprias contradições. Por muitos anos, nós afirmávamos que a</p><p>115</p><p>ciência buscava a verdade, que o seu papel era estimular valores</p><p>humanizantes, ampliar o reino da razão e criar seres humanos</p><p>capazes de julgamento objetivo, que pudessem ajudar a desen-</p><p>volver os ideais de democracia, igualdade e liberdade. Mas os</p><p>ideais dominaram nosso discurso, enquanto a realidade julgava</p><p>nossas ações. Max Weber nos ensinou que a violência legitimada</p><p>é o sustentáculo do corpo político, mas nós estávamos preocu-</p><p>pados com legitimidade, enquanto esquecíamos a violência.</p><p>Os estudantes nos levaram a sério e deram mais valor do</p><p>que nós àquilo que nós lhe ensina mos. Para eles, portanto, os</p><p>ideais existem para serem realizados, não simplesmente para</p><p>fazerem parte de nossos discursos. Os es tudantes são, muitas</p><p>vezes, acusados pelo uso que fazem da violência; mas nós não</p><p>podemos esquecer o fracasso de outra geração, que aspirou ser</p><p>conselheira do príncipe e acabou, pelo contrário, sendo sua ser-</p><p>va. E além disso, quem deu primeiro o exem plo de violência?</p><p>Ditaduras, torturas, campos de concentração não foram criados</p><p>com a atual geração de estudantes. O palavreado isolado acaba,</p><p>mais cedo ou mais tarde, vazio de significado, particularmente</p><p>quando distorce a realidade, tentando convencer o prisioneiro</p><p>de que ele é livre, o pobre e o explorado de que vivem em uma</p><p>sociedade afluente, o homem que trabalha 5O horas semanais</p><p>sem nenhum descanso, de que ele é membro de uma sociedade</p><p>de lazer. Ninguém ignora isso, mas todos colaboram para varrê-</p><p>lo para baixo do tapete. Qualquer visitante de museu sabe o que</p><p>está escondido por detrás das folhas de parreira e que, na rea-</p><p>lidade, sua função em nada está relacionada com a arte. Por que</p><p>então colocar um apêndice dispensável ao corpo humano? O pê-</p><p>nis de Davi, na Piazza della Signoria, em Florença, é incompara-</p><p>velmente mais bonito. Na sua busca por verdade e sinceridade,</p><p>os estudantes se voltaram contra as ciências, particularmente</p><p>contra as ciências sociais, as instituições que as protegem e os</p><p>homens que as praticam. Para a geração mais jovem, nossas dis-</p><p>ciplinas não se apresentam tão desinteressadas e objetivas como</p><p>pretendemos que sejam. Os estudantes se e ncarregaram de nos</p><p>lembrar as implicações ideológicas do que fazemos e seu papel</p><p>na preservação da ordem estabelecida, tanto quanto a ausência</p><p>de critica social em nosso trabalho.</p><p>Eles nos acusam de nos refugiarmos na metodologia, sob o</p><p>pretexto de que usar métodos adequados equivalentes na inves-</p><p>tigação cientifica. Nós afirmamos que nosso interesse está nos</p><p>116</p><p>problemas da sociedade. Eles nos respondem que nós, tranqui-</p><p>lamente, ignoramos as desigualdades sociais, a violência política,</p><p>as guerras, o subdesenvolvimento e o conflito racial. Pelo quanto</p><p>eles conseguem perceber, nós estamos seguramente abrigados</p><p>dentro do “establishment”.</p><p>Por vezes, tudo isso nos leva ao ponto de nos convencer que</p><p>a ciência social é inútil. Mas um movimento político que perse-</p><p>gue objetivos em longo prazo não pode se dar ao luxo de retirar</p><p>apoio à ciência ou desprezar as contribuições que a ciência tra-</p><p>zer. Não há dúvida de que muitos de nós preferiríamos ver o</p><p>desenvolvimento de uma ciência do “movimento”, do que de uma</p><p>ciência da “ordem” - para usar uma expressão corrente na Fran-</p><p>ça. Como Martin Deutsch (1969) escreveu, em seu trabalho sobre</p><p>barreiras organizacionais e conceituais à mudança social. Na</p><p>verdade, muitos dos pressupostos implícitos das ciências susten-</p><p>tam barreiras a uma mudança ou se constituem, elas mesmas,</p><p>seu maior obstáculo. Infelizmente, porém, nem o marxismo, nem</p><p>os países socialistas contribuíram para tal ciência do “movimen-</p><p>to”.</p><p>O fato de que a maioria das ciências sociais, tais como a lin-</p><p>güística, a antropologia, a economia ou a psicologia social se te-</p><p>nham constituído ou desenvolvido, no século XX, sem uma signi-</p><p>ficativa influência ou contribuição do marxismo ou dos marxistas</p><p>é, com certeza, um fenômeno importante, para o qual deverá ser</p><p>encontrada, algum dia, uma explicação; naturalmente, isso aplica</p><p>ao próprio Marx, cujas idéias tiveram um profundo impacto. Mas</p><p>o fato de que tal ciência do “movimento” não exista no momento</p><p>não significa que não possa desenvolver-se no futuro assim como</p><p>não há tabula rasa na história, eu poderia supor que quando,</p><p>finalmente, isso acontecer, ela terá que pedir muita emprestada</p><p>a seus predecessores. Mas isso não poderá acontecer se a crítica</p><p>permanecer improdutiva. Não é suficiente reinterpretar como é</p><p>muitas vezes feito na França de hoje - todo um campo de pesqui-</p><p>sa, mostrando que as ciências sociais e a psicologia em particular</p><p>dependem de pressupostos implícitos sobre a sociedade, ou so-</p><p>bre uma ideologia que os psicólogos sociais não conseguiram</p><p>abandonar. Essa reinterpretação</p><p>à luz das idéias dos marxistas e</p><p>freudianos, que pode ser entendida como uma hermenêutica,</p><p>levou ao desenvolvimento de uma ontologia freudiano-marxista</p><p>no pós-guerra alemão, enquanto em outros lugares da Euro pa</p><p>(particularmente na França) isso resultou em uma epistemolo gia</p><p>117</p><p>freudiano-marxista.</p><p>O sonho positivista de uma ciência sem metafísica - que hoje</p><p>em dia é seguidamente traduzido na exigência de uma ciência</p><p>sem ideologia - provavelmente não se tomará realidade. A meu</p><p>ver, ninguém ainda conseguiu mostrar que, sendo as ciências</p><p>nascidas (históricas), tenham elas conseguido libertar-se de suas</p><p>raízes, fundamentadas em valores sociais e filosofias. Se alguma</p><p>mudança foi obtida, foi precisamente na transformação destes</p><p>valores e filosofias para construir elos de natureza distinta. A</p><p>noção de uma completa independência da ciência social em rela-</p><p>ção a conceitos pré-científicos é um conto de fadas que os cien-</p><p>tistas gostam de contar uns aos outros.</p><p>A conferência sobre a qual The Context of Social Psychology</p><p>está baseada foi organizada em resposta a demandas especifi cas.</p><p>Nós assumimos a tarefa de discutir uma ciência que para al guns</p><p>absolutamente não existe e, para outros, não existe ainda. Como</p><p>já escrevi em outra oportunidade, a psicologia social que deve-</p><p>mos criar deve originar-se de nossa própria realidade ou, pelo</p><p>menos, de seus aspectos relevantes. Mas isso não tem sido, até o</p><p>momento, o principal foco de atenção. Além do mais - seja isso</p><p>bem-vindo ou não - o papel da ideologia na ciência e a rele vância</p><p>política da ciência têm-se tornado mais importante do que nun-</p><p>ca. Alguns problemas costumavam ser considerados por muitos</p><p>como “extra científicos” e a própria ciência tinha o privilé gio da</p><p>extraterritorialidade. Chegou agora o tempo de revisar estas</p><p>noções. A ciência é uma instituição social e, como tal, é um objeto</p><p>de análise como qualquer outro, da mesma forma que os experi-</p><p>mentos e seus sujeitos estão engajados na interação so cial, como</p><p>todos os demais. Mas, mesmo assim, a verdadeira questão é tão</p><p>simples quanto fundamental: precisamos perguntar qual é a fina-</p><p>lidade da comunidade cientifica. É ela a de apoiar ou de criticar a</p><p>ordem social? É de consolidá-la ou de transformá-la? Exigem de</p><p>nós, por toda parte, que definamos nossa posi ção a respeito des-</p><p>se assunto. Não há dúvidas de que a paz acadêmica não será res-</p><p>tabelecida em um futuro próximo e que torres de marfim conti-</p><p>nuarão a desmoronar, uma após outra. É melhor aceitar isso co-</p><p>mo um fato da vida do que lamentar um passado que, afinal, não</p><p>foi, de modo algum, tão imaculado.</p><p>Nas páginas que se seguem, tentarei colocar algumas idéias</p><p>sobre as mudanças e transformações que me parecem necessá-</p><p>rias. Posso prever algumas objeções que serão levantadas. E meu</p><p>118</p><p>pensamento, contudo, que algumas das criticas que se originam</p><p>de vários grupos políticos, filosóficos ou mesmo científicos, po-</p><p>dem seguramente ser ignoradas. Elas representam uma solução</p><p>tanto fácil quanto simples, pelo fato de virem de uma falta de</p><p>familiaridade com os conteúdos das ciências sociais. Refiro-me</p><p>aqui a alguns textos publicados pela escola de Frankfurt, que são</p><p>também discutidos neste livro por Ragnar Rommetveit (1972).</p><p>Um movimento similar existe na França: Kant, Hegel e Marx são</p><p>discutidos ad naus comparados e confrontados; os autores, po-</p><p>rém, confrontam a própria imagem “adequada” que eles fazem</p><p>das ciências sociais, como aquela encontrada nas concepções</p><p>“dominantes”. Sua vitória, nesses escritos, já está assegurada e</p><p>lhes dá a impressão de ter colaborado no avanço da ciência soci-</p><p>al. Seria uma experiência interessante vê-los trabalhando e vê-</p><p>los assim mostrar como podem concretizar o que sugerem. Na</p><p>ciência, como em outras atividades, não é suficiente apontar uma</p><p>falha ou apedrejar o pecador. É previsível que se um trabalho</p><p>concomitante, para provar e validar o que se diz, não é também</p><p>realizado, estes textos, escritos com tanto fervor, serão rapida-</p><p>mente esquecidos.</p><p>Em grande parte das publicações européias existe uma ten -</p><p>dência de atribuir aos americanos a maior parte da responsabili-</p><p>dade de nossas falhas e de confundir a critica à ciência social</p><p>com a crítica aos EE.UU. Isso é, para nós, muito fácil: são as pu-</p><p>blicações que correm todos os riscos. Se nós somos “puros” é</p><p>porque nós; não produzimos quase nada e não exploramos, como</p><p>fizeram os europeus, a herança da psicologia, da psicologia social</p><p>e da sociologia do pré-guerra. Estou convencido de que se a psi-</p><p>cologia social subsistir como disciplina, a contribuição dada pela</p><p>psicologia social americana vai permanecer e durar. Nos capítu-</p><p>los que se seguem, serei crítico de muitos escritores americanos;</p><p>a razão disso é que foram os americanos que fizeram a maior</p><p>parte do trabalho. Na América, como na Europa, muitos psicólo-</p><p>gos sociais - particularmente os das gerações mais jovens - com-</p><p>partilham de uma preocupação com esses mesmos problemas.</p><p>119</p><p>2. Quem coloca os problemas e quem dá as respostas?</p><p>É muito evidente que o desenvolvimento da psicologia soci-</p><p>al foi diretamente influenciado por eventos sociais concretos.</p><p>Por exemplo, o Fascismo e a Segunda Feira Mundial levaram</p><p>Kurt Lewin a seu trabalho de tomada de decisões dentro dos</p><p>grupos e aos tipos de grupo democrático, autoritário e laissez</p><p>faire. Não é necessário muita perspicácia para entender que as</p><p>necessidades do mercado e das indústrias de produção e servi-</p><p>ços fornecem a base para muitas das pesquisas que hoje são fei-</p><p>tas. É importante, contudo, analisar como a pesquisa reflete estas</p><p>necessidades. E aqui que percebemos um dos requisitos cruciais</p><p>para uma mudança radical. No momento atual, a sociedade (isto</p><p>é, os grupos industriais e políticos, etc.) coloca as perguntas e</p><p>também sugere que tipo de respostas deveriam ser dadas. Ilus-</p><p>trarei isto com exemplos retirados de algumas poucas áreas de</p><p>pesquisa.</p><p>Vamos começar com a dinâmica de grupo. Os temas centrais</p><p>de pesquisa, nesta área, são a eficiência do trabalho e o funciona-</p><p>mento do grupo, em um dado ambiente social. O problema real é</p><p>o aumento da produtividade e a consecução de uma organização</p><p>otimizada das unidades industriais e militares. Essa é a razão por</p><p>que tudo o que pareceu não ser diretamente ligado à produtivi-</p><p>dade, como a satisfação no trabalho, tem sido grandemente ne-</p><p>gligenciado. Como Coffins & Guetzkow (1964) escreveram:</p><p>“Como os primeiros estudos não conseguiram mostrar uma cor-</p><p>relação positiva entre satisfação e produtividade, satisfação pa-</p><p>rece ter perdido seu espaço, como uma das variáveis centrais da</p><p>psicologia social” (p. 11). O ideal que é visado é o de um bom</p><p>trabalhador, de um bom chefe de seção ou um bom funcionário;</p><p>sua satisfação é determinada pela gerência. Deste modo, as redes</p><p>de comunicação, bem como as estruturas de decisões e motiva-</p><p>ções, são concebidas dentro do referencial de um sistema plane-</p><p>jado para a redução dos custos e o aumento dos lucros.</p><p>Os estudos de mudança obedecem aos mesmos imperativos,</p><p>como foi claramente mostrado na conhecida experiência de Coch</p><p>& French (1953) sobre a resistência à mudança. O objetivo foi</p><p>colocado antecipadamente: era a transformação de uma empresa</p><p>industrial. A direção tinha dificuldades com os trabalhadores e</p><p>120</p><p>para alcançar seus objetivos queria reduzir suas resistências. No</p><p>estudo de Coch e French, tudo o que se referisse ás atitudes dos</p><p>trabalhadores foi concebido como “resistência”, enquanto que as</p><p>intenções da direção eram vistas como favorecendo “mudança”</p><p>e, conseqüentemente, o progresso. Na realidade, absolutamente</p><p>não se questionava a mudança no funcionamento global do sis-</p><p>tema; o objetivo era conseguir o controle da transformação por</p><p>parte da direção, o que, ao mesmo tempo, exigia que os trabalha-</p><p>dores deveriam partilhar com ela seus objetivos e sua concepção</p><p>do processo social, no qual estavam</p><p>envolvidos.</p><p>Qual é o contexto, nos estudos de conflitos e teorias do jogo</p><p>Os problemas são colocados antecipadamente, em uma perspec-</p><p>tiva que é total e especificamente política: os antagonismos estão</p><p>baseados em um conflito de interesses. É o conflito entre os</p><p>EE.UU. e “URSS” que aparece por trás. Não é um co nflito no qual</p><p>representantes de duas classes sociais, ou dois sistemas sociais,</p><p>ou distintas ideologias estejam se confrontando. É um conflito de</p><p>interesses entre dois estados nacionais. O mesmo tipo de racio-</p><p>cínio foi aplicado ao Vietnã. Está baseado na idéia de que o con-</p><p>flito seria resolvido tão logo cada um dos oponentes percebesse</p><p>os interesses e estratégicos do outro. Não há dúvida de que há</p><p>muitas divergências entre os psicólogos sociais sobre o modo de</p><p>resolução a ser adotado. Em um excelente artigo, Michael Plon</p><p>(1970) analisou a discussão a esse respeito entre Morton</p><p>Deustsch e Harold Kelley. O primeiro tinha mostrado, experi-</p><p>mentalmente, que a redução na ameaça e o au mento na comuni-</p><p>cação, durante o conflito, podem estimular a cooperação. O se-</p><p>gundo questionou esta tese em seus próprios experimentos e</p><p>acentuou que, de alguma forma, era preciso uma exibição de for-</p><p>ça para facilitar a resolução do conflito. Mas tanto as hipótese</p><p>psicossociais como as receitas ai implicadas são, na realidade,</p><p>um reflexo de duas opções políticas domina ntes.</p><p>De um lado, a tendência liberal, representada por Deutsch,</p><p>com ênfase no diálogo e desenvolvimento da confiança; de outro,</p><p>a opção de Kelley por uma realpolitik (política baseada na força),</p><p>que é uma estratégia de negociação baseada na realidade do po-</p><p>der. Tanto para um como para o outro, as opções existiam antes</p><p>de eles iniciarem seus trabalhos de pesquisa nesta área da psico-</p><p>logia social. Meu último exemplo é dado pela escola marginalista,</p><p>que é dominante, hoje em dia, na economia política. Esta escola</p><p>produziu um modelo refinado de processos de mercado, no qual</p><p>121</p><p>os parceiros de uma negociação têm, cada um, suas ordenações</p><p>de habilidades ou de preferências e, através de uma série de ne-</p><p>gociações, tentam estabelecer um equilíbrio de preços, na distri-</p><p>buição dos bens e nas satisfações de suas necessidades. Não es-</p><p>tou preocupado aqui com a análise matemática usada neste mo-</p><p>delo, ou com sua coerência lógica. 0 problema concreto é que</p><p>este modelo está baseado em uma série de pressupostos psicoló-</p><p>gicos responsáveis por uma visão de realidade social que é pro-</p><p>fundamente individualista. De fato, o livro de Thibaut & Kelley</p><p>(1959), que já mencionei, elabora a contrapartida psicológica</p><p>desta teoria; aceita em gros suas premissas e as combina como</p><p>modelo behaviorista de conduta. Como é muito bem sabido, Thi-</p><p>baut e Kelley assumem que cada indivíduo tem, à sua disposição,</p><p>uma espécie de 'relógio' interno, ou uma balança que determina</p><p>o nível comparativo ("comparison level" - C.L.) que indicará o</p><p>ganho que o individuo poderá obter caso se engaje em um rela-</p><p>cionamento alternativo ao comportamento no qual está empe-</p><p>nhado no momento atual. Se este ganho é maior, este indivíduo</p><p>abandona o relacionamento atual, se não, fica com o ganho. Des-</p><p>se modo, todas as relações so ciais são capazes de serem traduzi-</p><p>das em termos de oferta e pro cura. A possibilidade de que uma</p><p>demanda que reflete as necessidades de um indivíduo, ou que</p><p>este ache que tenha direito a esta necessidade, possa ser satisfei-</p><p>ta em outra parte de maneira melhor, define os limites do poder</p><p>que uma oferta possa ter. É a partir deste núcleo de idéias que</p><p>Thibaut e Kelley partem para a definição de normas de trabalho</p><p>em grupos, de poder, etc. 0 que me pa rece significativo é a tenta-</p><p>tiva de construir uma teoria dos processos coletivos na base de</p><p>uma teoria individualista; e isto parece ter sido feito através da</p><p>assimilação destes processos dentro do funcionamento de uma</p><p>economia de mercado. 0 mercado é uma ins tituição social espe-</p><p>cial, característica de um período histórico específico; todavia,</p><p>uma teoria sociopsicológica geral está fundamentada sobre os</p><p>princípios de seu funcionamento.</p><p>Minha preocupação não é, neste momento, com as bases ló-</p><p>gicas desta linha de pesquisa ou com a validade teórica e experi-</p><p>mental de seus resultados. É, antes, com o que ela exclui, quando</p><p>se permite confinar-se ao contexto acima descrito. É surpreen-</p><p>dente, então, que, no campo da dinâmica de grupo, nunca tenham</p><p>sido feitas perguntas a respeito do modo pelo qual o grupo é um</p><p>produto de sua própria atividade.Grupos não só se adaptam aos</p><p>122</p><p>seus ambientes circundantes, mas também criam, de algum mo-</p><p>do, estes ambientes e em alguns momentos os tratam como re-</p><p>cursos e não como algo que exista pré-determinadamente. Em</p><p>outras palavras, nós estamos defronte a um estudo de dinâmica</p><p>de grupo, o qual, paradoxalmente, não mostra interesse na gêne-</p><p>se do grupo (cf. G. de Montmollin, 1959; 196O). Se nós conside-</p><p>rarmos o que aconteceu a nossa volta historicamente, podemos</p><p>ver - e isto constantemente confirmado através de estudos etoló-</p><p>gicos - os homens sempre criaram instituições coletivas e orga-</p><p>nizações de que eles necessitam. A produtividade é, na realidade,</p><p>apenas um produto secundário. A primeira tarefa de um grupo</p><p>não é funcionar melhor, mas funcionar. Os trabalhos de Bavelas -</p><p>por geniais que sejam - dão um exempla desta falta de interesse</p><p>na atividade criativa humana, como ela é expressa na sociedade e</p><p>nos grupos que se criam a si mesmos. Parte do trabalho feito</p><p>Claude Faucheux e por mim (196O) estava interessado com o</p><p>estudo da criação de um sistema de relações sociais em um am-</p><p>biente. Claude Flament (1965) também tentou cobrir esta lacuna</p><p>entre perspectivas “genéticas” e “produtivistas”. Mais recente-</p><p>mente Jean-Claude Abric (1984) pôde mostrar que a maneira</p><p>como os indivíduos concebem uma tarefa e os leva a criar uma</p><p>forma de organização social que seja adaptada a esta concepção.</p><p>Comentários semelhantes podem ser feitos sobre os estudo</p><p>de Coch e French (1953). A modificação social não pode apenas</p><p>ser vista em termos de técnicas e controles ambientais. Há sem-</p><p>pre dois fatores nela, que são os que iniciam as mudanças e os</p><p>que estão em situação de recepção destas mudanças. Juntos, eles</p><p>constituem um sistema de relações inter-grupais, com suas ca-</p><p>racterísticas especiais. Este é um sistema de interações dinâmi-</p><p>cas, em que cada uma das partes age sobre a outra. Além disto, a</p><p>resistência à mudança é ingrediente necessário a toda mudança,</p><p>não é um fator abstrato causal e deve ser considerado como uma</p><p>conseqüência da situação social. A medida que o processo de</p><p>mudança se desenvolve, a resistência a ele afeta tanto seu “re-</p><p>ceptor” quanto seu “iniciador” de que a administração consultou</p><p>psicólogos sociais, no caso tudo de Coch e French, é uma prova,</p><p>em si mesma, de alguma mudança de perspectiva no iniciador,</p><p>que se deveu à pressão exercida pela outra parte do sistema so-</p><p>cial.</p><p>É, contudo, surpreendente que os autores tenham negligen-</p><p>ciado, quase que por completo, os aspectos interacionais da ação.</p><p>123</p><p>Eles não se perguntaram sobre a conduta da gerência, sua moti-</p><p>vação, ou suas intenções, nem inves tigaram a história das re-</p><p>lações entre a gerência e os trabalhadores. Desta forma, todos os</p><p>aspectos pertencentes ã anál ise do sistema social total, como tal,</p><p>são deixados de lado e uma situação intergrupal é transformada</p><p>em uma situação de relações intragrupais. Todas as questões são</p><p>reduzidas a problemas de motivação. A perspectiva geral conti-</p><p>nua sendo a dos administradores, uma vez que as etapas do pro-</p><p>cesso de mudança são definidas como “resistências”, isto é, como</p><p>obstáculos às efetivas implementações do que deveria acontecer.</p><p>O problema de quem deseja introduzir as mudanças e a cujos</p><p>interesses eles irão servir não e nem sequer mencionado; nada é</p><p>dito sobre o fato de que a resistência possa ser legitima, que suas</p><p>raízes possam estar ligadas</p><p>a uma situação objetiva e que talvez</p><p>sela realmente necessária para os que resistem. Deve-se enfati-</p><p>zar, mais uma vez, que o raciocínio dos autores implica fazer</p><p>mudanças sem que ninguém resista a elas, ou melhor, que é ape-</p><p>nas o grupo resistente quem está na origem das dificuldades, que</p><p>o grupo pode simplesmente optar por aceitar o que está sendo</p><p>proposto. Qualquer um que teve oportunidades de estudar situa-</p><p>ções deste tipo sabe que os iniciadores da mudança, sejam ge-</p><p>rentes ou administradores, são, freqüentemente, contrários a</p><p>qualquer mudança que os afete; se exigem mudanças nos outros,</p><p>é no sentido de manterem-se, eles mesmos, mais seguros em</p><p>suas próprias posições (Moscovici, 1961a).</p><p>Para resumir, Coch e French adotaram uma definição parci-</p><p>al de situação que lhes permitiu considerar as mudanças sociais</p><p>como um meio de assegurar controle social; isto lhes perm itiu,</p><p>em troca, considerar resistência como uma variável negat iva e</p><p>acidental ao invés de reconhecer que é um aspecto positivo e</p><p>necessário da situação. Finalmente, os autores tomaram relações</p><p>sociais intergrupais de um ponto de vista intragrupal. Estavam</p><p>dentes, contudo, da natureza intergrupal do problema, como se</p><p>vê na passagem que se segue:</p><p>Neste conflito entre o campo de poder da gerência e o campo</p><p>de poder do grupo, o grupo tentou reduzir a força do campo</p><p>de poder hostil relativa à força do seu próprio campo de po-</p><p>der. Esta mudança foi conseguida de três modos: a) O grupo</p><p>aumentou seu próprio poder, tomando-se um grupo mais co-</p><p>eso e mais disciplinado; b) O grupo conseguiu “aliados”, bus-</p><p>cando o apoio do sindicato, na confecção de uma reclamação</p><p>formal sobre a nova medida; c) O grupo atacou o poder do</p><p>124</p><p>campo hostil diretamente, na forma de agressão contra o su-</p><p>pervisor, o engenheiro de demarcação do tempo e a gerência</p><p>superior. A agressão, pois, não provejo apenas das frustra-</p><p>ções individuais, mas também do conflito entre os dois gru-</p><p>pos.</p><p>Mas os autores não se interessam por este conflito.</p><p>Não se pode dizer que o estudo do conflito, em psicologia</p><p>social, tenha sido um exemplo de uma adequada análise científi-</p><p>ca do problema. Este estudo se ressentiu de uma estreita depen-</p><p>dência da teoria do jogo, a qual contribuiu, ela mesma, para a</p><p>idéia de que as guerras são um meio normal para se resolverem</p><p>diferenças entre nações e que elas podem ser sustadas a partir</p><p>do uso de estratégias apropriadas - isto é, uma estratégia racio-</p><p>nal. É surpreendente que, em uma época em que ideologias soci-</p><p>ais e políticas desempenham um papel tão importante nos assun-</p><p>tos humanos, tão pouco interesse tenha sido mostrado sobre</p><p>seus efeitos nas condutas sociais e na definição da natureza dos</p><p>conflitos. Indivíduos e grupos freqüentemente têm diferentes</p><p>concepções da realidade e tão logo uma adequada análise seja</p><p>feita da natureza destas diferenças, os conflitos de interesse ou</p><p>de motivações tornam-se secundários. Descobre-se, então, que</p><p>os adversários não partilham um referencial comum e não se</p><p>referem aos mesmos aspectos dos problemas e que sua avaliação</p><p>das perdas e ganhos não é, de modo algum, idêntica. Por causa</p><p>de tudo isto, os adversários não têm uma linguagem comum, ou</p><p>desejo de se comunicarem; se e quando um diálogo começar, o</p><p>conflito já está quase resolvido. Qual é, então, o sentido de pro-</p><p>por uma solução que consiste em sugerir que se façam tentativas</p><p>de “compreender” o outro, de tal modo que a cooperação possa</p><p>substituir a competição? A implica ção é a de que os oponentes</p><p>nunca foram estranhos um ao outro e que, quanto mais lutarem,</p><p>mais interesse terão em se tornarem es treitamente familiariza-</p><p>dos. É também bastante sabido que a paz nunca foi obtida deste</p><p>modo.</p><p>As mesmas considerações se aplicam às relações entre indi-</p><p>víduos e pequenos grupos. Iria até mesmo mais longe: a alterna-</p><p>tiva competição versus cooperação é irrealística ou, no mínimo, é</p><p>apenas uma entre várias possíveis alternativas. Divisão de traba-</p><p>lho, definição de limites e o exercício de influência e de poder,</p><p>tudo isso representa outras formas de solução de conflitos, que</p><p>podem ser repetidamente observados na história, como na vida</p><p>125</p><p>diária. Eles merecem ser levados em conta, analisados e avalia-</p><p>dos – ao menos teoricamente, se não na forma de experimentos.</p><p>isto me traz de volta à concepção econômica, que nós aceita-</p><p>mos tão fácil e espontaneamente no desenvolvimento deste tipo</p><p>de psicologia social imaginada pela teoria da troca e nos nossos</p><p>modelos de pensar sobre conflitos e decisões. Aqui ta mbém nós</p><p>estamos lidando com uma concepção individualística, no sentido</p><p>de que considera tudo o que acontece em uma sociedade em</p><p>termos de escolhas e decisões individuais. Esta concepção resu-</p><p>me o campo de comportamento econômico a processos de utili-</p><p>zação de meios que são considerados como dados antecipada-</p><p>mente, com o objetivo de atingir metas que são também preesta-</p><p>belecidas. Isto se aplica tanto aos meios que um indivíduo tem à</p><p>sua disposição e às suas previsões, quanto aos procedimentos</p><p>técnicos e sociais que podem ser empregados para alcançar, em</p><p>longo prazo, objetivos e metas so ciais. A finalidade da teoria e-</p><p>conômica se transforma, então, em um planejamento de distribu-</p><p>ição, com a finalidade de conseguir uma satisfação otimizada de</p><p>metas e necessidades preestabelecidas, através do uso de meios</p><p>preestabelecidos. Pode-se dizer que, ao final, o ser humano tor-</p><p>na-se desnecessário. Seria suficiente, para Pareto, “ter um retra-</p><p>to de seus gostos”; depois disto, ele poderia desaparecer. Não há</p><p>espaço, neste sistema, para um agente de conduta econômica,</p><p>nem para processos socioeconômicos; há apenas re cursos escas-</p><p>sos e necessidades financeiras excessivas, que têm de ser coor-</p><p>denadas. E mesmo quando o fato de que uma economia de me r-</p><p>cado possa ter suas incertezas chamar a atenção para a existên-</p><p>cia de pessoas agindo dentro dela, não são levadas em considera-</p><p>ção as incertezas que as pessoas possam ter sobre os recursos</p><p>disponíveis a eles e sobre seus objetivos recíprocos.</p><p>É desta forma que alguns economistas projetaram as nor-</p><p>mas e atitudes de uma sociedade capitalista, baseados nos pro-</p><p>cessos de troca. Suas reconstruções “psicológicas” pertencem a</p><p>este contexto, a ação humana é concebida como determinada</p><p>pelos imperativos de uma economia de dinheiro e de lucro. Mas</p><p>há ainda mais que isto. Tudo o que é social é simplesmente ex-</p><p>cluído deste tipo de economia. Investimentos coletivos, gastos</p><p>que não são canalizados através do mercado, ou da chamada</p><p>economia externa, não estão incluídos nos seus dispositi-</p><p>vos.Como conseqüência, decisões que são verdadeiramente cole-</p><p>tivas, normas que determinam o modo de utilização dos recursos</p><p>126</p><p>e as interações políticas - que são fenômenos bem diferentes das</p><p>simples deliberações administrativas que levam a escolhas e</p><p>decisões que são de interesse secundário - também estão fora de</p><p>sua competência; também não estão incluídos os processos pelos</p><p>quais os meios de ação se tornam possíveis e os objetivos se tor-</p><p>nam definidos dentro de seu território porque, dentro de uma</p><p>perspectiva individualística, são considerados como “dados” na</p><p>natureza do Homem. Como resultado de tudo isto, esta versão da</p><p>economia concebe uma imensa área da conduta humana como</p><p>irracional, uma vez que, dentro de sua prática, tudo o que vai além</p><p>do individualismo e tudo o que diverge um pouco de um modelo de</p><p>capitalismo entra, por definição, no domínio da irracionalidade.</p><p>Qual é a fundamentação desta concepção? Primeiro, é uma</p><p>racionalidade que é puramente cartesiana e mecânica. A conduta</p><p>é pois, racional na medida em que ela se conforma aos princípios</p><p>de conservação (os meios são dados uma vez por todas e são</p><p>imutáveis) e de maximização (a busca de satisfação otimizada).</p><p>Segundo, os cálculos são puramente individua is, pois são limita-</p><p>dos às relações entre dois indivíduos. Mas, se</p><p>os psicólogos ado-</p><p>tam tais hipóteses, o que eles têm todo o direito de fazer, têm</p><p>também de se dar conta de que seu universo intelect ual termina</p><p>por confinar-se a um setor muito especifico da soc iedade e que</p><p>estarão apenas interessados em uma pequena e especifica fração</p><p>da humanidade.</p><p>A leitura de alguns estudos antropológicos, ou uma familia-</p><p>rização com outras culturas, será ilustrativa a esse respeito. O</p><p>dar, a reciprocidade, os laços de consangüinidade e de religião</p><p>estão todos aí para mostrar os limites da lei de oferta e de procu-</p><p>ra e também das teorias de psicologia social. De fato, a maneira</p><p>como os processos de escolha e sua evolução são vistos na teoria</p><p>da dissonância cognitiva não são compatíveis com as premissas</p><p>de economia de mercado. Os importantes estudos experimentais</p><p>sobre necessidades desenvolvidos por Zimbardo (1969) com-</p><p>provam que as necessidades não podem ser consideradas ante-</p><p>cipadamente como “dadas”. A pesquisa de Mauk Mulder sobre</p><p>poder (1955) também contradiz, em muitos pontos, uma con-</p><p>cepção desta matéria com base em princípios utilitaristas.</p><p>Mas eu devo lembras ao leitor que não é meu objetivo criti-</p><p>car estas teorias e as pesquisas delas advinda, Desejo, em vez</p><p>disso demonstrar o quanto as teorias estão presas às questões</p><p>feitas e às respostas dadas, em um contexto especifico. Nossas</p><p>127</p><p>chances de progresso e renovação dependem de nossa habilida-</p><p>de de permanecermos abertos a aos problemas de nossa realida-</p><p>de coletiva. Nós não fomos suficientemente receptivos a estes</p><p>problemas na Europa, na verdade, alguma coisa importante e</p><p>preciosa pode ser aprendida com a abertura e receptividade dos</p><p>nossos colegas americanos. A sociedade muda e cria e suas de-</p><p>mandas são importantes fontes de estimulação. Mas a nós cabe</p><p>dar as respostas, ao menos tentar encontrá -las. Devido à nossa</p><p>formação, nossas funções e nossas tradições, nós deveríamos</p><p>estar em uma posição de analisar, examinar e colocar questões</p><p>dentro de um referencial mais amplo.</p><p>Se o estudo dos conflitos e das maneiras de resolvê-los fos-</p><p>sem colocados na perspectiva de todas as situações possíveis -</p><p>isto é, daquelas acontecidas na história - e além do horizonte</p><p>bem limitado das interações políticas, elas nos conduziriam a</p><p>formulações de respostas que seriam diferentes destas que têm</p><p>sido até agora vislumbradas. O mesmo se aplica às mudanças, às</p><p>dinâmicas de grupo e mesmo à própria definição do que é social</p><p>na conduta humana. De fato, é provável que, através de um pro-</p><p>cesso de representação continuada, até as próprias questões</p><p>poderiam ser transformadas. Por agora - e isto é o que eu desejo</p><p>enfatizar de novo - os psicólogos sociais não tem feito nada mais</p><p>do que operacionalizar questões e respostas que eram imagina-</p><p>das em outras partes. E, então, os trabalhos em que eles estão</p><p>engajados - em que nós todos estamos engajados - não é um tra-</p><p>balho de análise cientifica, mas de engenharia, com todo o peso</p><p>de metodologia que isto implica. A confusão entre ciência e en-</p><p>genharia é muito marcante nas ciências sociais e particularmen-</p><p>te na psicologia social. Por isso, parece-me que, se nós devemos</p><p>permitir que a sociedade faça as pe rguntas - uma vez que isso</p><p>está implícito na natureza de nossas atividades - é, em contrapo-</p><p>sição, nosso dever elaborar e redefinir nós mesmos estas per-</p><p>guntas. Esta é uma condição necessária para estabelecer um diá-</p><p>logo verdadeiro, em que nós podemos re-descobrir a liberdade</p><p>de analisar objetivamente todos os aspectos de um problema e</p><p>de considerar os vários pontos de vista que emanam da socieda-</p><p>de em que vivemos.</p><p>128</p><p>3. O lugar da teoria em um mundo de fatos</p><p>3.1. O compromisso tácito</p><p>Devemos admitir que a psicologia social não é realmente uma</p><p>ciência. Nós desejamos dar-lhe uma aparência de ciência, usando</p><p>um raciocínio matemático e os refinamentos do método experi-</p><p>mental; mas o fato é que a psicologia social não pode ser descrita</p><p>como uma disciplina, com um campo unitário de interesse, um re-</p><p>ferencial sistemático de critérios e exigências, um corpo coerente</p><p>de conhecimentos, ou mesmo um conjunto de perspectivas comuns</p><p>compartilhado por todos os que a praticam. Estaríamos próximos à</p><p>verdade ao dizer que ela consiste em um movimento de pesquisa e</p><p>metodologia que periodicamente atrai um conjunto de interesses</p><p>diversos que, algumas vezes, conseguem enriquecê-la de maneira</p><p>nova e inesperada; mas uma fundamentação sólido futuro não foi</p><p>ainda construída.</p><p>Este movimento não é tal que siga em frente firmemente, em</p><p>uma direção definida. De tempos a tempos, os interesses dos pes-</p><p>quisadores são mobilizados por temas ou áreas, que parecem ser</p><p>novos e importantes naquele momento; mas, cedo ou tarde, eles se</p><p>mostram estéreis e inúteis, sendo então abandonados. As pesquisas</p><p>se espalham, então, aqui e ali, de uma forma puramente aleatória,</p><p>ao invés de ir acumulando e ascendendo a novos patamares. Esse</p><p>movimento oscila entre dois pólos. O primeiro consiste em uma</p><p>coleção de tópicos separados e não relacionados; por causa disto,</p><p>por exemplo, qualquer um interessado em fazer pesquisa sobre</p><p>pequenos grupos, ou em redes de comunicação, ou sobre compara-</p><p>ções entre desempenho individual ou grupal, irá se identificar como</p><p>psicólogo social. No pólo oposto, há uma ilusão de coerência, uma</p><p>vez que as pesquisas são organizadas ao redor de temas gerais,</p><p>como os processos de influência social ou de mudança de atitude,</p><p>mas estes temas permanecem ecléticos e não estruturados. A a-</p><p>brangência do assunto é dividida em “tópicos”,“clãs”, “escolas” e</p><p>“estabelecimentos”, onde cada um tem o seu modo próprio de fazer</p><p>perguntas, sua própria linguagem e seus próprios interesses; ainda</p><p>mais, cada um se desenvolve, a partir de suas peculiaridades, seu</p><p>129</p><p>próprio critério de verdade e excelência. Deste modo, psicologia</p><p>social é, ao mesmo tempo, um campo cercado ao redor e um mosai-</p><p>co; nossa aparência de coesão é devido a pressões externas, mas</p><p>nossa dependência de interesses, técnicas e ciências diversas conti-</p><p>nua a nos separar uns dos outros.</p><p>Parece-me que a criação de um sistema de atividades teóricas é</p><p>essencial para o desenvolvimento coerente do tema. E a ausência de</p><p>tal sistema que é o principal obstáculo para que se possa dar res-</p><p>postas que poderiam ser relevantes para as questões que nos são</p><p>feitas pela sociedade. É unicamente um referencial compartilhado</p><p>de critérios e princípios, que pode permitir aos cientistas libertar-se</p><p>de pressões externas, de levar em conta os aspectos relevantes da</p><p>realidade e serem críticos, tanto de sua própria atividade como da</p><p>atividade dos que os patrocinam. As teorias determinam não ape-</p><p>nas o que é “interessante”, mas também o que é “possível”. Mas elas</p><p>não surgem do “nada”; são o resultado de um empenho coletivo e</p><p>das inspirações coletivas daqueles que são os usuários de tal disci-</p><p>plina. O ponto sobre o qual eu desejo insistir é que toda nossa “ideo-</p><p>logia científica” - para tomar um termo usado por Henri Tajfel - se</p><p>constitui em um obstáculo para este tipo de desenvolvimento em</p><p>psicologia social. Três aspectos desta ideologia são, no meu ponto</p><p>de vista, particularmente importantes.</p><p>O primeiro é a predominância de uma epistemologia positivis-</p><p>ta. Seu dogma principal é que os fatos são “dados” na realidade cir-</p><p>cundante e podem ser indutivamente isolados, através de uma des-</p><p>crição das regularidades e que a experimentação é a marca regis-</p><p>trada da ciência. Nessa perspectiva, a teoria é uma linguagem e uma</p><p>ferramenta, ambas subordinadas ao método empírico e a ele su-</p><p>bordinadas cronologicamente. Nós não estamos muito claros sobre</p><p>nossa identidade, e como conseqüência, para nos tornarmos “cien-</p><p>tistas”, nós tentamos seguir, tão próximo quanto possível, as nor-</p><p>mas predominantes, das quais nós derivamos nossa ênfase com</p><p>respeito ás técnicas estatísticas e experimentos e o ritualismo que</p><p>os acompanha. Muitos de nós trabalhamos</p><p>pacificamente em nos-</p><p>sos cantos, guiados pela idéia de que, no momento, é essencial acu-</p><p>mular fatos, que lido nos ajudar, um dia, na construção de uma es-</p><p>trutura conceitual.</p><p>Em segundo lugar, a negligência da atividade teórica resulta</p><p>em uma espécie de compromisso tácito, pelo qual evitamos encarar</p><p>as questões sobre a natureza das leis, com as quais nossa disciplina</p><p>está relacionada e sobre seu modo de validação. Isso se reflete em</p><p>130</p><p>conflitos entre observação e experimentação e entre o papel do</p><p>“psicológico” e o papel do “social”. A linha divisória entre ob-</p><p>servação e experimentação não é devida, em nossa disciplina, a uma</p><p>distribuição de tarefas ou a uma especialização das técnicas de pes-</p><p>quisa; antes, ela é devida a diferenças nas estratégias de pesquisa</p><p>determinadas pela natureza dos problemas que estão sendo estu-</p><p>dados. Isto se constitui em uma verdadeira ruptura, que divide a</p><p>comunidade científica tão profundamente que nós somos tentados</p><p>a perguntar se não estamos lidando com duas espécies diferentes</p><p>de cientistas, ou duas disciplinas distintas. Optar por uma ou por</p><p>outra dessas disciplinas é como tornar-se membro de um clube, ao</p><p>qual alguém só pode se filiar, se aceitar um credo, que não necessita</p><p>de justificativa, nem de explicação. O jogo é todo realizado entre</p><p>estes dois clubes e as criticas mútuas eliminam toda a possibilidade</p><p>de uma reaproximação, apesar de que tentativas sejam ainda feitas,</p><p>aqui e ali, para criar esta possibilidade. As críticas que cada lado faz</p><p>ao outro são bem conhecidas. Psicólogos sociais experimentais são</p><p>acusados devido à artificialidade das situações que eles usam no</p><p>estudo dos fenômenos sociais e, conseqüentemente, pelo fato de</p><p>que seu método científico é inadequado para a compreensão da</p><p>realidade social. Não-experimentalistas, são acusados pelo fato de</p><p>que a complexidade dos processos sociais não pode ser apanhada</p><p>no contexto “natural” e que sua simples coleta de dados não é um</p><p>procedimento capaz de provar uma verificação rigorosa das hipóte-</p><p>ses que podem ser seguidas pela observação. O argumento contra</p><p>eles gira ao redor do fato da incompatibilidade de sua visão da rea-</p><p>lidade social, com um modo de proceder propriamente científico.</p><p>A verdadeira questão que está aqui em jogo é a definição da</p><p>teoria sociopsicológica e sua validação. Para os experimentalistas,</p><p>as interpretações post hoc dos fatos observados - por mais coe-</p><p>rentes que sejam - não podem resultar em conceitualizações ver-</p><p>dadeiramente científicas e não podem, por isso, servir de funda-</p><p>mentação para uma ciência. Os não-experimentalistas encontram</p><p>pouco interesse nas hipóteses que formam a infra-estrutura dos</p><p>experimentos; predição eficiente é obtida, de acordo com eles, às</p><p>custas do menosprezo da maioria dos parâmetros e ao mesmo</p><p>tempo da perda da especificidade do que esta sendo estudado. Uma</p><p>articulação comum das duas abordagens toma-se mais difícil, pois</p><p>as teorias que levam à experimentação têm uma estrutura que dife-</p><p>131</p><p>re daquelas que se originam de uma observação sistemática. E as-</p><p>sim, é muito mais confortável não levantar estes problemas muito</p><p>freqüentemente, não encarar possibilidades diversas ou estimular</p><p>paixões e deixar a escolha das direções futuras a passagem do tem-</p><p>po e a “seleç~o natural”.</p><p>Mas se uma escolha deve realmente ser feita, nossas generali-</p><p>zações conceituais penderiam em uma direção “psicológica” ou</p><p>“social”? A aceitação de uma perspectiva psicológica significa, fun-</p><p>damentalmente, que a psicologia social tornar-se-ia um ramo da</p><p>psicologia geral cuja função seria aprofundar nosso conhecimento</p><p>de problemas muito gerais, tais como percepção, julgamento ou</p><p>memória que permanecem imutáveis através de seus modos e con-</p><p>dições de operação e produção.Os dados da psicologia social nos</p><p>habilitariam a nada mais do que especificar mais detalhadamente</p><p>algumas variáveis no comportamento humano ou animal que, em</p><p>última análise, são redutíveis a leis da psicologia “animal” ou “indi-</p><p>vidual”, da psicofísica ou psicofisiologia.Assim, por exemplo, a per-</p><p>cepção social poderia ser estudada da mesma maneira que a per-</p><p>cepção auditiva ou visual; fenômenos sociopsicológicos, tais como</p><p>processos de influencia, de mudanças de atitude ou de solução de</p><p>problemas em grupo não seriam nada mais do que casos especiais</p><p>de princípios condicionantes ou motivacionais, aos quais se pode-</p><p>riam aplicar as leis gerais da aprendizagem.O trabalho de Zajonc</p><p>(1966) é um excelente exemplo desta tendência.</p><p>Este tipo de extensão pressupõe uma aceitação implícita de</p><p>três postulados. O primeiro é que a diferença entre processos so-</p><p>ciais e processos não-sociais elementares é somente de grau e que</p><p>uma hierarquia entre os fenômenos pode ser estabelecida, na qual</p><p>eles podem ser ordenados, dos mais simples aos mais complexos e</p><p>dos individuais aos coletivos. O segundo postulado é que os pro-</p><p>cessos sociais não implicam na existência de fenômenos sociais,</p><p>governados por suas próprias leis, mas que eles podem ser expli-</p><p>cados por leis psicológicas, que podem, ao mesmo tempo, se basear</p><p>em hipotéticas leis da fisiologia. O postulado final é que não há dife-</p><p>rença de gênero entre comportamento social e não-social. As outras</p><p>pessoas intervêm somente como parte do ambiente geral. A doutri-</p><p>na inicial de F.H. Allport (1924) continua sendo o credo de muitos</p><p>psicólogos sociais: “O significado do comportamento social é o</p><p>mesmo do não-social, isto é, a conexão de um desajuste biológico do</p><p>indivíduo ao seu ambiente. Nos outros e através dos outros, muitos</p><p>de nossos mais urgentes desejos são preenchidos; e nosso compor-</p><p>132</p><p>tamento para com eles está baseado nas mesmas necessidades fun-</p><p>damentais, assim como nossas reações para com os objetos, sociais</p><p>ou não-sociais” (p.3-4).</p><p>Opondo-se a esta tendência, embora ainda timidamente, há</p><p>uma outra linha de pensamento que tende a conceituar processos</p><p>sociopsicológicos de um ponto de vista sociológico. Exemplos disto</p><p>são as pesquisas sobre estruturas de pequenos grupos, sobre hie-</p><p>rarquia de papéis e status através dos quais é definida uma identi-</p><p>dade individual e sua posição social, sobre comunicação de massa,</p><p>sobre quadros referenciais e sobre relações intergrupais. Psicologia</p><p>social, aqui, vem a ser um meio de estudo - se possível no laborató-</p><p>rio e com métodos que provarem sua utilidade - dos processos so-</p><p>ciais, que existem, em larga escala, na sociedade global.O estudo -</p><p>da cultura é um outro exemplo - embora ainda mais marginal para a</p><p>psicologia social - de uma aproximação similar; este estudo subor-</p><p>dina mecanismos psicossociais ao contexto social cultural do com-</p><p>portamento, ao referencial social dos aspectos fundamentais do</p><p>funcionamento psicológico, ou aos aspectos culturais dos processos</p><p>de aprendizagem e socialização.Em contraposição - como Claude-</p><p>Faucheux (197O) claramente mostrou - o estudo transcultural, na</p><p>psicologia social, esqueceu completamente as dimensões compa-</p><p>rativas propriamente culturais ou sociais.</p><p>Entre psicólogos sociais foi, incontestavelmente, Sherif quem</p><p>perseguiu, de forma mais constante, a tentativa de generalizar, do</p><p>laboratório para a sociedade como um todo. O mínimo que se pode</p><p>dizer é que, como resultado, ele não conseguiu muita popularidade.</p><p>A prova disso está evidente no livro de Deutsch & Krauss (1965),</p><p>sobre a teoria em psicologia social, no qual nenhuma referência é</p><p>feita, tanto à sua pesquisa, quanto a sua posição teórica. Este lapso</p><p>é, obviamente, o resultado de um consenso tácito. Se o problema de</p><p>generalização tivesse sido tomado mais seriamente, teria sido im-</p><p>possível negligenciar este tipo de orientação e evitar uma tentativa</p><p>de esclarecer os problemas que resultam daí. Neste livro estes pro-</p><p>blemas são enfrentados diretamente por Israel, Rommetveit e Taj-</p><p>fel, que os discutem dentro de seus próprios pontos de vista; assim,</p><p>fazendo, eles nos forçam a enfrentar dificuldades que muitos prefe-</p><p>ririam esquecer e</p><p>outros poderiam considerá-las fora de moda.</p><p>Contudo, os problemas estão aí e eles continuam, permanentemen-</p><p>te, como pano de fundo de nosso trabalho. Eles não necessitam,</p><p>talvez, serem resolvidos antes de fazermos nosso próximo experi-</p><p>mento; mas nós precisamos buscar uma solução para eles, se nós</p><p>133</p><p>queremos nos engajar na construção de uma teoria.</p><p>Por último, mas não menos importante, a fuga da teoria, ou do</p><p>debate teórico, tem também seus aspectos emocionais. A ciência</p><p>social, incluindo a psicologia social, se desenvolveu em confronta-</p><p>ção com a filosofia. Como resultado, existe um tipo de medo reativo</p><p>de sermos indulgentes à especulação “filosófica”. A manipulação de</p><p>idéias é, portanto, aceitável em condições que leve, mais ou menos</p><p>diretamente, à experimentação ou, alternativamente, se ela for ca-</p><p>paz de uma formalização matemática, que ofereça ao menos uma</p><p>aparência de “respeitabilidade”, ainda que fraca ou duvidosa. Por</p><p>causa da insegurança generalizada, o campo das ciências sociais se</p><p>tornou tão repressivo que acabou por tomar a ciência completa-</p><p>mente sem interesse; os problemas fundamentais do homem e da</p><p>sociedade se perdem em uma nuvem de “campos” fragmentados e</p><p>técnicos que conseguem desviar talentos genuínos e em esfriar</p><p>todo o entusiasmo. Os experimentos jogam um papel negativo, co-</p><p>mo um obstáculo ou um aviso, possibilitando-nos apenas provar ao</p><p>mundo que estamos fazendo ciência e não filosofia. Se nós perder-</p><p>mos a marca desta identidade, nós perderemos também toda nossa</p><p>segurança e não saberemos se nossas construções teóricas podem</p><p>ser reconhecidas como “científicas”. Mas tudo isso não é mais que</p><p>uma armadilha; nem os métodos, nem as linguagens formais, garan-</p><p>tiram jamais o caráter “científico” de coisa alguma. De qualquer</p><p>modo, por que deveríamos nos desesperar, se nem começamos.</p><p>Nem tudo, em ciência, é “científico”. Teorias biológicas sobre a ori-</p><p>gem da vida ou teorias cósmicas sobre a estrutura do universo ain-</p><p>da não chegaram a este nível.</p><p>3.2. Algumas conseqüências para a pesquisa e a teoria</p><p>O peso do positivismo, as tensões entre métodos observacio-</p><p>nais e experimentais e o medo da especulação são as causas do len-</p><p>to desenvolvimento da teoria em psicologia social. Uma das conse-</p><p>qüências é o respeito do genuíno senso comum, da psicologia dos</p><p>aforismos tidos como seguros. Não insistirei neste tema delicado;</p><p>como é bem conhecido, o tema contribui enormemente para acusa-</p><p>ções de trivialidade, que são, muitas vezes, jogadas sobre nós. Gos-</p><p>taria, contudo, de fazer alguns comentários sobre o assunto.</p><p>Tem-se como aceito por todos que o senso comum é algo que é</p><p>compartilhado de uma maneira mais igualitária que qualquer outra</p><p>coisa no mundo.</p><p>134</p><p>Isto não reflete, entretanto, um conjunto de dados estável ou</p><p>imutável, correspondente à existência de uma versão validada fir-</p><p>memente pela realidade. Pelo contrário, é um produto da cultura,</p><p>que, em nossa sociedade, é mesclado com teorias científicas. Em um</p><p>estudo sobre a imagem pública da psicanálise (Moscovici,</p><p>1961/1976) descrevi a extensão da penetração da teoria psicanalí-</p><p>tica no senso comum do pensamento quotidiano, nas discussões e</p><p>interpretações das ações das pessoas. Claudine Herzlich (1969)</p><p>analisou fenômenos similares na nossa concepção de saúde e do-</p><p>ença. Da mesma forma, o vocabulário marxista é parte e parcela de</p><p>nossa herança e de filosofias espontâneas de milhões de pessoas. O</p><p>mesmo é verdadeiro sobre o behaviorismo, a sociologia funcionalis-</p><p>ta, os modelos econômicos e sobre a avaliação da ação - em termos</p><p>históricos ou probabilísticos- Respeitar, pois, o senso comum, é</p><p>respeitar teorias que aceitamos implicitamente. Mas nós devemos</p><p>também aprender a desconfiar da “sabedoria popular”. O fato de</p><p>que o senso comum esteja de acordo com nossas intuições não pro-</p><p>va nada mais que a existência de um consenso. O socialista alemão</p><p>Babel costumava dizer que sempre se preocupava quando estava</p><p>de acordo com seus adversários ou quando estes concordavam com</p><p>ele. Eu penso que o psicólogo social deve ter a mesma atitude,</p><p>quando observa ou descobre que seus resultados apenas confir-</p><p>mam algo que é conhecido por todos.</p><p>Isto não quer dizer que devamos nos esforçar para sermos ori-</p><p>ginais a todo custo. E mais, em ciência só é descoberta verdadeira</p><p>aquilo que é surpreendente e original. É por isso que nós precisa-</p><p>mos tentar aceitar as coisas pelo que elas são em nossa disciplina.</p><p>No seu inicio, a psicologia social tinha a tarefa de verificar certas</p><p>hipóteses e interrogações, mesmo que elas não fossem muito dife-</p><p>rentes daquilo que todos aceitavam tranqüilamente. Chegou agora</p><p>o tempo de reconhecer que precisamos deixar esse primeiro es-</p><p>tágio para trás e seguir adiante. Multiplicar experimentos para re-</p><p>descobrir o que é óbvio pode conduzir unicamente a uma situação</p><p>paradoxal. De fato, a principal razão de ser do método experimental</p><p>é inventar e validar novos resultados de uma teoria ou produzir</p><p>efeitos inesperados. Se nós fazemos experimentos que não tenham</p><p>estas características e que não façam mais que confinar em um la-</p><p>boratório o que já se encontra difundido na cultura, nós pro-</p><p>cedemos de uma maneira não-experimental. Nossos experimentos</p><p>se tornam, então, um tipo de observação sistemática, dirigida a co-</p><p>locar em números e descrever em livros as crenças que foram</p><p>135</p><p>transmitidas pela tradição oral. Desta forma, muitos experimentos</p><p>sobre influência social, sobre os efeitos da maioria, sobre liderança</p><p>ou sobre ameaça, nada mais são do que uma longa entrevista que</p><p>fazemos junto à sociedade, sobre sua teoria social.</p><p>Entretanto, o domínio do senso comum é apenas uma conse-</p><p>qüência da ausência de esforço teórico; a mortalidade e a esterili-</p><p>dade dos achados em algumas áreas de pesquisa são outra. Estudos</p><p>sobre dinâmica de grupo e sobre as redes de comunicação de Bave-</p><p>las são um exemplo claro disso. Não estarei muito errado em afir-</p><p>mar que devem existir cerca de cinco mil artigos sobre estes tó-</p><p>picos; este número é provavelmente subestimada Muitos destes</p><p>estudos não são mais que validações do folclore industrial e minia-</p><p>turizações de situações reais; eles praticamente não contêm valor</p><p>de informação cientifica. Os livros que foram escritos sobre estes</p><p>estudos e as autópsias que foram feitas sobre eles têm revelado</p><p>que, na maioria dos casos, estavam completamente vazios de pre-</p><p>ocupação com problemas conceituais. Como McGrath & Altman</p><p>(1966) escreveram: "A produção da pesquisa continuou crescendo</p><p>a um ritmo intenso. A teoria era mínima durante a maioria dos anos</p><p>50 e tem continuado assim até o presente momento" (p. 9). Por</p><p>estas razões, os autores das várias revisões deste campo se re-</p><p>duziram à compilação de bibliografias ou, no máximo, a apresen-</p><p>tação de listas classificadas de resultados; não se pode, realmente,</p><p>dizer que o que sobrou é um conjunto de proposições confirmadas</p><p>ou de variáveis adequadamente definidas. Suspeito que o mesmo é</p><p>verdadeiro para o estudo sobre conflito.</p><p>A terceira conseqüência da ausência de interesse na teoria é o</p><p>isolamento de várias áreas de pesquisa, ou melhor, o fato de não</p><p>terem sido feitos esforços consistentes para chegar a generaliza-</p><p>ções teóricas. Com respeito, por exemplo, ao trabalho sobre con-</p><p>flito, alguém poderia perguntar se sua principal preocupação era</p><p>com os processos do conflito que são centrais a todos os fenômenos</p><p>psicológicos ou sociais - ou com ações particulares ditas "conceitu-</p><p>ais". Como é sabido, o último caso é verdadeiro; não foi feito ne-</p><p>nhum esforço para analisar as relações entre esta área particular do</p><p>comportamento e os processos centrais do conflito ou para ver</p><p>como eles se manifestam em vários tipos de situações reais. Como</p><p>eu não estou muito familiarizado com este campo de trabalho, não</p><p>irei discuti-lo mais a fundo; em lugar disso, tomarei, como exemplo</p><p>um problema que está mais próximo dos meus próprios interesses</p><p>e no qual tem sido despendido grande</p><p>que novas representações emergem. Em</p><p>outras palavras, nestes pontos de clivagem há uma falta de sentido,</p><p>um ponto onde o não-familiar aparece. E, do mesmo modo que a</p><p>natureza detesta o vácuo, assim também a cultura detesta a ausên-</p><p>cia de sentido, colocando em ação algum tipo de trabalho represen-</p><p>tacional para familiarizar o não-familiar, e assim restabelecer um</p><p>sentido de estabilidade (veja-se a discussão de Moscovici sobre não-</p><p>familiaridade como uma fonte de representações sociais, no capítu-</p><p>lo 1). As divisões de sentido podem ocorrer de muitos modos. Po-</p><p>dem ser muito dramáticas, como todos nós vimos ao assistir à queda</p><p>do muro de Berlim e sentimos as estruturas de sentido que manti-</p><p>veram uma visão estabelecida do mundo, desde o fim da guerra,</p><p>evaporarem. Ou de novo, quando a aparição súbita dum fenômeno</p><p>ameaçador, tal como HIV/Aids, pode oferecer uma oportunidade</p><p>para um trabalho representacional. Mais freqüentemente, as re-</p><p>presentações sociais emergem a partir de pontos duradouros de</p><p>conflito, dentro das estruturas representacionais da própria cultu-</p><p>ra, por exemplo, na tensão entre o reconhecimento formal da uni-</p><p>versalidade dos “direitos do homem”, e sua negação a grupos espe-</p><p>cíficos dentro da sociedade. As lutas que tais fatos acarretaram</p><p>foram também lutas para novas formas de representações.</p><p>O fenômeno das representações está, por isso, ligado aos pro-</p><p>cessos sociais implicados com diferenças na sociedade. E é para</p><p>dar uma explicação dessa ligação que Moscovici sugeriu que as</p><p>representações sociais são a forma de criação coletiva, em condi-</p><p>ções de modernidade, uma formulação implicando que, sob outras</p><p>condições de vida social, a forma de criação coletiva pode também</p><p>ser diferente. Ao apresentar sua teoria de representações sociais,</p><p>Moscovici, muitas vezes, traçou esse contraste (ver capítulo 1), e</p><p>sugeriu, às vezes, que esta foi a razão principal de preferir o termo</p><p>“social”, ao termo “coletivo” de Durkheim. Existe aqui uma alusão a</p><p>uma complexa explicação histórica da emergência das repre-</p><p>sentações sociais que Moscovici apenas delineia muito de leve e,</p><p>sem querer apresentar uma explicação mais detalhada ou exten-</p><p>sa, será útil, para se poder compreender algo do caráter das repre-</p><p>sentações sociais, para chamar a atenção, nesse ponto, de dois as-</p><p>pectos relacionados dessa transformação histórica.</p><p>17</p><p>A modernidade sempre se coloca em relação a algum passado</p><p>que é considerado como tradicional e embora seja errado (como</p><p>Bartlett, 1923, viu muito previdentemente) considerar as socieda-</p><p>des pré-modernas - ou tradicionais - como efetivamente homogê-</p><p>neas, o fio condutor central do argumento de Moscovici sobre a</p><p>transformação das formas de criação coletiva na transição para a</p><p>modernidade se relaciona à questão da legitimação. Nas socieda-</p><p>des pré-modernas (que, nesse contexto, são as sociedades feudais</p><p>na Europa, embora este ponto possa ser também relevante para</p><p>outras formas de sociedade pré-moderna), são as instituições cen-</p><p>tralizadas da Igreja e do Estado, do Bispo e do Rei, que estão no</p><p>ápice da hierarquia de poder e regulam a legitimação do conheci-</p><p>mento e das crenças. De fato, dentro da sociedade feudal, as pró-</p><p>prias desigualdades entre diferentes estratos, dentro dessa hierar-</p><p>quia, foram vistas como legitimas. A modernidade, em contraste,</p><p>se caracteriza por centros mais diversos de poder, que exigem au-</p><p>toridade e legitimação, de tal modo que a regulação do conheci-</p><p>mento e da crença não é mais exercida do mesmo modo. O fenô-</p><p>meno das representações sociais pode, neste sentido, ser visto</p><p>como a forma como a vida coletiva se adaptou a condições des-</p><p>centradas de legitimação. A ciência foi uma fonte importante de</p><p>surgimento de novas formas de conhecimento e crença no mundo</p><p>moderno, mas também o senso comum, como nos lembra Mosco-</p><p>vici. A legitimação não é mais garantida pela intervenção div ina,</p><p>mas se torna parte duma dinâmica social mais complexa e contes-</p><p>tada, em que as representações dos diferentes grupos na socieda-</p><p>de procuram estabelecer uma hegemonia.</p><p>A transição para a modernidade é também caracterizada pelo</p><p>papel central de novas formas de comunicação, que se originaram</p><p>com o desenvolvimento da imprensa e com a difusão da alfabeti-</p><p>zação. A emergência das novas formas de meios de comunicação</p><p>de massa (cf. Thompson, 1995) gerou tanto novas possibilidades</p><p>para a circulação de idéias, como também trouxe grupos sociais</p><p>mais amplos para o processo de produção psicossocial do conhe-</p><p>cimento. Esse tema é muito complexo para ser tratado adequada-</p><p>mente aqui, exceto para dizer que, em sua análise das diferentes</p><p>formas de representação da psicanálise nos meios de comunica-</p><p>ção da França, Moscovici (1961/1976) mostrou como a propaga-</p><p>ção, propaganda e difusão foram do modo que foram, porque os</p><p>diferentes grupos sociais representam a psicanálise de diferentes</p><p>18</p><p>modos e procuram estruturar diferentes tipos de comunicação</p><p>sobre esse objeto, através dessas diferentes formas. Cada uma</p><p>dessas formas procura estender sua influência na construção du-</p><p>ma representação especifica e cada uma delas também reivindica</p><p>sua própria legitimação para a representação que ela promove. É a</p><p>produção e circulação de idéias dentro dessas formas difusas de</p><p>comunicação que distinguem a era moderna da pré-moderna e</p><p>ajudam a distinguir as representações sociais como a forma de</p><p>criação coletiva, distinta das formas autocráticas e teocráticas da</p><p>sociedade feudal. As questões de legitimação e comunicação servem</p><p>para enfatizar o sentido da heterogeneidade da vida social moderna,</p><p>uma visão que ajudou a dará pesquisa sobre representações sociais</p><p>um foco distinto, na emergência de novas formas de representa-</p><p>ção.</p><p>4. Representações sociais e psicologia social</p><p>A recepção da teoria das representações sociais dentro duma</p><p>disciplina mais ampla da psicologia social foi tanto fragmentada,</p><p>como problemática. Se alguém olhar para trás, para a “era domada”</p><p>da psicologia social, pode ver certa afinidade entre o trabalho de</p><p>Moscovici e o de certos predecessores, como Kurt Lewin, Solomon</p><p>Asch, Fritz Heider ou, talvez o último representante desta era, Leon</p><p>Festinger — uma afinidade mais que uma similaridade, pois embora</p><p>o trabalho de Moscovici partilhe com esses predecessores uma pre-</p><p>ocupação comum na análise das relações entre processos sociais e</p><p>formas psicológicas, seu trabalho retém uma qualidade distintiva,</p><p>do mesmo modo como esses autores diferem entre si. Não é difícil,</p><p>contudo, imaginar a possibilidade dum diálogo produtivo baseado</p><p>nessa afinidade. Mas é difícil imaginar tal diálogo produtivo na dis-</p><p>ciplina de psicologia social como ela existe hoje, onde a predomi-</p><p>nância dos paradigmas de processamento da informação e a emer-</p><p>gência de variedades de formas “pós-modernistas” de psicologia</p><p>social aumentaram a segmentação do campo.</p><p>O próprio Moscovici (1984b) sugeriu que a psicologia social</p><p>contemporânea continua a exibir um tipo de desenvolvime nto</p><p>descontinuo de paradigmas que mudam e se substituem, “para-</p><p>digmas solitários”, como ele os descreve. Dentro deste fluxo, cada</p><p>paradigma aparece mais ou menos desconectado de seus prede-</p><p>19</p><p>cessores e deixa pequenos traços em seus sucessores. Nesse co n-</p><p>texto, tem sido destino comum das intervenções teóricas, na psi-</p><p>cologia social, bruxulear brevemente, antes de passar para um tipo</p><p>de território de sombras, ás margens duma disciplina que trocou</p><p>seu centro para o próximo paradigma, deixando pouco tempo para</p><p>que as idéias fossem assimiladas e para um uso produtivo. Desse</p><p>ponto de vista, há algo de notável na persistência da teoria das re-</p><p>presentações sociais durante um período de quarenta anos. No</p><p>espírito de sua problemática relação com o terreno cambiante da</p><p>corrente em voga da disciplina, a teoria das representações sociais</p><p>sobreviveu e prosperou. Ela se tomou não apenas uma das contri-</p><p>buições teóricas mais duradouras na psicologia social, mas</p><p>quantidade de trabalho, nos</p><p>136</p><p>últimos anos: este é o fenômeno da mudança de risco ("risky shift").</p><p>Em primeiro lugar, vamos descrever brevemente o bem co-</p><p>nhecido paradigma usado nestes estudos. Os sujeitos são geral-</p><p>mente confrontados com escolhas entre várias alternativas, envol-</p><p>vendo uma mudança na situação, nas relações com iguais, etc. de</p><p>uma pessoa. Cada uma das escolhas representa vários graus de</p><p>risco, para a pessoa que os escolhe. Trabalhando sozinho, cada su-</p><p>jeito faz dez ou doze escolhas. Os sujeitos são, então, colocados jun-</p><p>tos em grupos de vários tamanhos e solicitados a selecionar, para</p><p>cada problema, um nível de risco unanimemente aceito por todos</p><p>os membros do grupo. Uma vez completada a discussão do grupo,</p><p>os sujeitos são novamente separados e novamente lhes é solicitado</p><p>que indiquem sua preferência pessoal para a solução de cada pro-</p><p>blema. Chega-se à conclusão que os grupos geralmente se inclinam</p><p>para soluções de mais risco do que os indivíduos.</p><p>Descobriu-se isso por acaso. Na ciência e na tecnologia, acha-</p><p>dos ocasionais desse tipo foram sempre muito explorados. Uma boa</p><p>dose de atenção tem sido dada á mudança de risco porque, desde os</p><p>experimentos iniciais de F.H. Allport e de Sherif, afirmou-se que, em</p><p>situações sociais, as opiniões individuais e os juízos tendem a con-</p><p>vergir em direção à média e afastar-se das posições extremas. All-</p><p>port atribui esta tendência à natureza ra cional das decisões coleti-</p><p>vas, que se colocam em oposição ao comportamento espontâneo da</p><p>multidão, caracterizado por juízos extremos e ações irracionais.</p><p>Assim, os resultados sobre os experimentos de risco, que foram</p><p>replicados muitas vezes, constituem uma exceção a um tipo de con-</p><p>duta que era considerado como universal. Isto fez surgir duas ques-</p><p>tões: a primeira dizia respeito às condições em que era possível</p><p>produzir uma "mudança conservadora" e a segunda questão era</p><p>por que os grupos assumem mais riscos que os indivíduos.</p><p>Mudanças conservadoras raramente foram conseguidas em</p><p>experimentos; quando isso aconteceu, foi através do fato de se dar</p><p>mais ênfase às dimensões éticas do risco. No todo, foi de uma difi-</p><p>culdade frustrante produzir tal fenômeno.</p><p>Diversas explicações da mudança de risco têm sido propostas.</p><p>Wallach, Kogan & Bem (1964) trazem a hipótese da difusão de</p><p>responsabilidade no grupo: sendo que cada indivíduo no grupo</p><p>sente menor responsabilidade do que quando toma decisões indi-</p><p>viduais, ele ousa correr mais riscos. Brown (1965) parte da idéia</p><p>que, em situações individuais, as pessoas estão em um estágio de</p><p>137</p><p>"ignorância pluralística", o que os força a serem cautelosos. Quando</p><p>eles se encontram em uma situação social, eles abandonam a caute-</p><p>la e tomam posições extremadas, particularmente porque o risco</p><p>tem uma conotação de valor positiva em nossa sociedade. Final-</p><p>mente, Kelley & Thibaut (1969) afirmam que existe uma "retórica</p><p>do risco", isto é, a argumentação em favor à tomada de um risco</p><p>tem sido mais convincente e elaborada do que a pregação do con-</p><p>servadorismo. Além disso, alguns autores tentaram demonstrar</p><p>que correr um risco depende de características pessoais e, con-</p><p>seqüentemente, está relacionado à influência exercida em um gru-</p><p>po por seus membros mais extremados.</p><p>Minha opinião é de que, se todas as teorias têm alguma verda-</p><p>de, uma coisa é, então, certa: mudança de risco não apresenta inte-</p><p>resse como objeto de estudo e não merece os esforços da análise</p><p>experimental e teórica despendidos nela. Realmente, se tudo se</p><p>resume na combinação de questões sobre influência, de retórica, de</p><p>personalidade e de conformidade às normas, então mudança de ris-</p><p>co não é nada mais que um fenômeno secundário e seria mais útil</p><p>estudar influência ou conformismo, diretamente. Juízos sobre risco</p><p>podem ser vistos, então, como não diferindo, de maneira alguma, de</p><p>juízos que são feitos sobre o amor, agressão ou drogas. E se estes</p><p>demonstram o tipo de mudança achado, no caso, de risco, a lógica</p><p>implícita às teorias supramencionadas nos poderia levar a propor</p><p>uma teoria sobre mudança amorosa, mudança agressiva, ou mu-</p><p>dança aditiva. Poder-se-ia, pois, multiplicar indefinidamente os</p><p>exemplos e chegar, finalmente, uma "teoria' específica para cada</p><p>um destes aspectos da conduta social. Para completar o quadro, al-</p><p>guém poderia progredir em direção a alguma destas “sínteses” ou</p><p>“comparações”, concluindo, talvez, que a mudança de risco dos a-</p><p>lemães é maior que a dos franceses, de que não existe distinção</p><p>entre “mudança amorosa” e “mudança culinária” e, finalmente, que,</p><p>no conjunto, mais riscos são assumidos quando em grupo. De uma</p><p>maneira, então, puramente indutiva e post hoc, nós podemos repro-</p><p>duzir ad infinitum um fenômeno que foi primeiramente descoberto</p><p>por acaso. Todas as pesquisas poderiam concentrar-se, então, sobre</p><p>o risco, sem lançar nenhuma nova luz sobre os fenômenos cogniti-</p><p>vos ou sociais.</p><p>Mas um problema bem diverso surge se um fenômeno estra-</p><p>139</p><p>138</p><p>nho - estranho no sentido de que contradiz princípios geralmente</p><p>aceitos - nos leva a perguntar sobre as implicações gerais que ele</p><p>possa ter. Por exemplo, quando os físicos souberam das descober-</p><p>tas de Roentzen, não gastaram muito tempo questionando sua va-</p><p>lidade ou investigando suas diversas manifestações; eles indagaram</p><p>imediatamente sobre sua influência na teoria da matéria. Quando</p><p>Kogan trabalhou um tempo em meu laboratório, nós discutimos</p><p>seus experimentos; eu adotei uma atitude que me pareceu guiada</p><p>pelo mesmo interesse pela generalização e tentei ir além das expli-</p><p>cações especificas do fenômeno da mudança de risco, permanecen-</p><p>do no nível de sua significância básica, que é ser uma exceção à lei</p><p>aparentemente “universal” da influencia do grupo sobre o indiví-</p><p>duo. Isto conduz à primeira questão: É esta mudança devida ao</p><p>conteúdo semântico, ou a outra propriedade deste conteúdo? Uma</p><p>breve análise levou à formulação de uma hipótese bastante segura:</p><p>a maioria dos estudos que têm demonstrado a convergência de</p><p>opiniões em um grupo usaram estímulos que não apresentam im-</p><p>portância significativa para os sujeitos e não provocaram qualquer</p><p>compromisso mais sério.</p><p>Tornou-se importante, então, verificar se o mesmo efeito podia</p><p>ser obtido usando escalas de avaliação de atitude que contivessem</p><p>esta característica de “significância” e de “compromisso” que faltava</p><p>à escala anterior. O ponto seguinte dizia respeito à diferença entre</p><p>mudança “de risco” e mudanças “conservadoras”: o único interesse</p><p>que isto pode ter, tem sua origem no aspecto de conteúdo semânti-</p><p>co; é somente devido a isso que o direcionamento do juízo se torna</p><p>importante e onde nós encontramos dois fenômenos distintos. Em</p><p>contraposição ao ponto de vista psicológico, ou mesmo social, a</p><p>questão mais importante é se estamos frente a um e o mesmo fe-</p><p>nômeno ao qual, erradamente, se tem dado duas diferentes explica-</p><p>ções. Isto significaria proceder de acordo com um tipo de epistemo-</p><p>logia aristotélica que distingue entre movimentos para cima e para</p><p>baixo, entre movimentos circulares e movimentos em linha reta e</p><p>que oferece uma teoria diversa para explicar cada um. 0 tratamento</p><p>de Galileu para os mesmos problemas abandona a descrição da</p><p>diversidade e tenta separar a unidade e a natureza comum das for-</p><p>ças envolvidas, Se um corpo sobe ou desce está sempre sujeito à</p><p>gravidade e é a gravidade que precisa ser estudada.</p><p>Da mesma forma, se o julgamento de um grupo é mais conser-</p><p>vador, ou mais de risco, do que o de seus membros individuais, isso</p><p>139</p><p>reflete o mesmo fenômeno; especificamente, o afastamento da mé-</p><p>dia ou a polarização de atitudes. Experimentos sobre familiarização</p><p>têm dado a impressão, a certo ponto do trabalho, que os indivíduos</p><p>podem demonstrar extremismo em seus julgamentos, sem nenhu-</p><p>ma intervenção da interação social. Este fenômeno foi confirmado</p><p>em experimentos subseqüentes. Mas no experimento de Kogan &</p><p>Wallach (1964), cuja validade</p><p>não foi questionada por ninguém, foi</p><p>demonstrado que os indivíduos correm riscos maiores depois de</p><p>discutirem o questionário dos dilemas de escolha e sem terem che-</p><p>gado a consenso algum. Por isso, tudo o que se pode dizer é que</p><p>indivíduos chegam a opiniões mais extremadas depois da interação</p><p>social; não se pode afirmar que grupos correm maiores riscos que</p><p>os indivíduos. As várias teorias mencionadas acima foram, pois,</p><p>muitas tentativas de resposta a urna questão que não existe. Mas</p><p>outra questão, que não foi ainda levantada, existe e deveria ter sido</p><p>respondida, pois ela motivou o interesse inicial sobre mudança de</p><p>risco. Porque, por exemplo, a decisão do grupo tende ou para uma</p><p>conciliação (para a média) ou para a polarização? Em outras pala-</p><p>vras, por que se observa ou uma média ou uma polarização?</p><p>Em relação a esta questão, dois pontos deveriam ser discuti-</p><p>dos, que são importantes para os modos gerais de procedimento</p><p>em psicologia social. Primeiro, a questão que há pouco formulei em</p><p>um nível teórico foi sempre feita puramente em termos técnicos.</p><p>Por exemplo, a análise estatística da mudança de risco é geralmente</p><p>conduzida da seguinte forma: primeiro, a média é calculada, isto é, o</p><p>valor numérico que expressará consenso se os indivíduos se com-</p><p>portarem de acordo com a lei da convergência; então, a diferença</p><p>entre este consenso “teórico” e o consenso que realmente aconte-</p><p>ceu é usada como uma medida de “mudança”. Conseqüentemente, a</p><p>relação entre a convergência ou polarização dos grupos é conside-</p><p>rada simplesmente em termas estatísticos.</p><p>O segundo ponto refere-se aos obstáculos à generalização. O</p><p>pouco interesse dado ao conteúdo semântico impede todo avanço</p><p>em direção a fenômenos mais fundamentais. Assim, se nós enfo-</p><p>carmos exclusivamente o risco, nós estaremos lidando com uma</p><p>exceção à lei geral, que pode ser distorcida e mudada, antes mesmo</p><p>de chegar ao ponto de analisar o que é excepcional a respeito dela e</p><p>por quê. A possibilidade de sua contribuição para questionar um</p><p>modelo ou um conceito teórico não pode ser explorada, até que</p><p>140</p><p>cessemos de nos concentrar sob este aspecto particular. Deste mo-</p><p>do, o concreto aprisiona o abstrato. O experimento de Moscovici e</p><p>Zavalloni (1969), de Doise (1969) e de Fraser et al.</p><p>(1971)demonstraram que o efeito de polarização deve ser conside-</p><p>rado dentro de um referencial mais geral que o de mudança de ris-</p><p>co, que é apenas um caso especial de outro fenômeno. Outros expe-</p><p>rimentos nos possibilitaram estudar as condições em que tanto a</p><p>convergência para a média como a polarização de grupo poderiam</p><p>ser obtidas com os mesmos itens inicialmente usados para de-</p><p>monstrar a mudança de risco. Mas isto apenas foi possível porque</p><p>os problemas levantados no início foram modificados, com o fim de</p><p>integrar a descoberta inicial dentro de um contexto mais amplo.</p><p>Tornou-se então óbvio que o fenômeno modificado é de relevância</p><p>imediata para a decisão social. É também importante para os pro-</p><p>cessos de avaliação e de mudança de atitude, para generalização e a</p><p>soma de categorias sociais e para relações intragrupais - e mesmo</p><p>intergrupais-na formação do preconceito. Os estudos de Anderson</p><p>(1968), Sherif et al. (1965), Tajfel & Wilkes (1964) e Fishbein</p><p>&Raven (1962) confirmam estes pontos de vista. Logo, a tarefa hoje</p><p>é achar uma explicação para a totalidade destes resultados e o es-</p><p>tudo da mudança de risco feito de forma isolada perde totalmente</p><p>seu interesse.</p><p>3.3 Para uma teoria flogística</p><p>O respeito ao senso comum, a proliferação de estudos experi-</p><p>mentais carentes de preocupações teóricas e o isolamento de várias</p><p>áreas da pesquisa em psicologia social combinam-se para explicar o</p><p>acúmulo de fatos e noções que não resultam em um progresso real,</p><p>pois que eles não estão conceitualmente integrados e nenhuma</p><p>teoria, concretamente, foi desconfirmada ou substituída por outra.</p><p>Os conceitos empregados tiveram sua origem em outros campos;</p><p>modelos teóricos coexistem, lado a lado, em uma relação que não se</p><p>constitui nem em um verdadeiro diálogo, nem em uma contradição</p><p>fecunda. E por isso não é surpresa que os fatos estabelecidos empi-</p><p>ricamente nada mais sejam que uma coleção heterogênea, do mes-</p><p>mo modo que as teorias, das quais eles supostamente dependem.</p><p>Os experimentos e estudos empíricos não são realmente capazes de</p><p>confrontação, dentro de um referencial comum; os resultados con-</p><p>traditórios publicados sobre o mesmo fenômeno raramente condu-</p><p>zem a uma análise conceitual que poderia levar a uma decisão e</p><p>transformar nosso conhecimento.</p><p>141</p><p>Esta situação é refletida nos livros de texto. Os mais úteis den-</p><p>tre eles adotam um vago esquema referencial que os possibilita,</p><p>quando muito, a classificar uns poucos resultados empíricos, que</p><p>são geralmente apresentados fora de seu contexto teórico - su-</p><p>pondo que tal contexto exista. Exemplos contraditórios raramente</p><p>são levados em consideração e, quando o são, é de maneira abstrata</p><p>e longínqua. Como resultado, os estudantes ficam com a impressão</p><p>de uma disciplina bem ordenada e fecunda - pela simples razão de</p><p>que os pontos difíceis ou contraditórios foram ignorados.</p><p>O que acontece quando uma teoria aparece? Como é ela apre-</p><p>sentada, criticada ou entendida? A teoria da dissonância cognitiva é</p><p>um caso em questão (Festinger, 1957; 1964). É verdade que esta</p><p>não é uma verdadeira teoria psicossocial, mas não há dúvida de sua</p><p>importância como uma descoberta intelectual, sua habilidade para</p><p>estimular a pesquisa, ou sua originalidade de perspectiva. Em uma</p><p>ciência adequadamente construída, uma teoria deste tipo tornar-se-</p><p>ia imediatamente um ponto de partida para novos conceitos, que a</p><p>integrariam em um contexto sociopsicológico e a traduziriam em</p><p>termos verdadeiramente sociais. Sua sorte foi radicalmente diversa.</p><p>Com exceção de Bem (1965), o interesse se centrou inteiramente</p><p>nos detalhes de metodologia. Em um artigo famoso, Chapanis e</p><p>Chapanis (1962) dedicaram sua atenção ao modo de seleção dos</p><p>sujeitos e a pontos referentes ã estatística. Outros criticaram Fes-</p><p>tinger porque ele foi incapaz de prover uma medida da dissonância</p><p>e estava, portanto, impossibilitado de fazer predições. E tudo parou</p><p>ai. Muitos psicólogos sociais continuaram a trabalhar na teoria do</p><p>reforço social ou na teoria da troca, como se a teoria da dissonância</p><p>cognitiva não existisse e não contradissesse os próprios princípios</p><p>comportamentais que eles tinham como certos. Se eles tivessem</p><p>realmente assumido estes princípios com seriedade, uma contro-</p><p>vérsia criada pela teoria da dissonância ter-se-ia tornado um centro</p><p>de atividade intelectual. Poder-se-ia imaginar os químicos continu-</p><p>ando calmamente a pesquisar, cada um em seu pequeno canto, en-</p><p>quanto alguns acreditavam em flogística e outros em oxigênio? É</p><p>óbvio para qualquer pessoa familiarizada com a história das idéias</p><p>que o progresso real emerge da confrontação teórica e os fatos e</p><p>métodos têm um papel relativamente menos importante. Mesmo</p><p>que Festinger e seus discípulos não se enquadrem completamente</p><p>ao ritual experimental, os fatos que eles demonstraram retêm seu</p><p>interesse e importância. Os fatos estabelecidos por Piaget, na base</p><p>de uma teoria sólida e coerente, também não conseguiram se en-</p><p>143</p><p>142</p><p>quadrar em todas as regras do jogo - e ainda assim eles sobrevive-</p><p>ram à passagem do tempo e aos ataques dos críticos.</p><p>Festinger e seus discípulos foram freqüentemente criticados</p><p>por sua tendência a buscar resultados que não eram óbvios e que</p><p>discordavam do senso comum. Esta é uma objeção que é surpreen-</p><p>dente, mas que é significativa. Isto mostra quão distante está nossa</p><p>concepção de experimentação do verdadeiro pensamento científico.</p><p>Escrevi anteriormente que a experimentação deve sempre ter como</p><p>finalidade a invenção e a criação de novos efeitos. As ciências natu-</p><p>rais são ciências de efeitos; diferentemente destas, as ciências soci-</p><p>ais - e particularmente a psicologia social - permanecem ciências</p><p>dos fenômenos e das aparências. A crença de que tudo, ou quase</p><p>tudo, sobre a conduta humana já é conhecido a partir da observação</p><p>direta impede nossa disciplina de gerar descobertas verdadeiras e</p><p>de contribuir com dados que modificariam o conhecimento pré-</p><p>científico. E assim nosso conhecimento toma forma de um refina-</p><p>mento do pré-conhecimento e a banalidade de nossos resultados</p><p>fica oculta sob o refinamento das técnicas e métodos.</p><p>Não é minha intenção defender aqui a teoria da dissonância</p><p>cognitiva, porque não precisa de defesa. Mas é importante ressaltar</p><p>que, quando uma teoria desta qualidade aparece na psicologia soci-</p><p>al, nenhuma tentativa é feita, tanto para desenvolver sua relevância</p><p>ao processo coletivo, quanto para invalidá-la. Mesmo quando tenta-</p><p>tivas de invalidação são feitas, elas dificilmente podem ser descritas</p><p>como científicas. Ao invés, é dado tratamento uniforme As teorias</p><p>de consistência cognitiva, como se todas tivessem o mesmo impacto</p><p>científico potencial; a fórmula para esta eclética cozinha pode ser</p><p>encontrada, por exemplo, no recente livro editado por Abelson et al.</p><p>(1968).</p><p>Não seria muito útil discutir esta situação em psicologia social,</p><p>sem tentar delinear uma maneira como poderíamos remediar as</p><p>deficiências. Praticamente todas as ciências tem seus teóricos, seus</p><p>experimentalistas, seus jornais teóricos e experimentais. Por que</p><p>não poderíamos nós aceitar o mesmo tipo de divisão e es-</p><p>pecialização? Poderíamos, então, deixar os teóricos definir seu ob-</p><p>jetivo, sua “cultura” e a estrutura de seus problemas. De qualquer</p><p>modo, teóricos e experimentalistas nunca se enquadraram muito;</p><p>avanço do conhecimento é o resultado de contradições entre eles e</p><p>das tentativas de comunicação feitas pelos dois lados. Em um estu-</p><p>do sobre a história da mecânica (Moscovici, 1968a) fui capaz de</p><p>mostrar que a característica principal de sua evolução não foi a</p><p>143</p><p>predominância da teoria ou da experimentação, mas a tensão de-</p><p>senvolvida entre as duas. Não há razão por que se deva tentar eli-</p><p>minar estas tensões e as contradições fecundas que dai se seguem.</p><p>Experimentação e teoria não se colocam em uma relação transpa-</p><p>rente uma em relação à outra; é o papel da teoria tornar a experi-</p><p>mentação desnecessária e o papel da experimentação tornar a teo-</p><p>ria impossível. A relação dialética existente entre as duas proposi-</p><p>ções deve ser convenientemente empregada, a fim de que o conhe-</p><p>cimento avance.</p><p>Mas, para se conseguir isso, decisões devem ser tomadas sobre</p><p>o tipo de teorias que deveria apresentar o referencial e sobre a tra-</p><p>dição intelectual que deveria constituir seu pano de fundo. É minha</p><p>opinião que maior independência é necessária à função preditiva da</p><p>teoria. Da forma como as coisas estão hoje, sempre que um concei-</p><p>to, ou um modelo, é proposto, ele é avaliado exclusivamente em</p><p>termos de sua utilidade, quanto aos fenômenos que ele pode predi-</p><p>zer e sobre os experimentos que ele sugere.</p><p>Isto resulta na criação de modelos restritivos que mais se pa-</p><p>recem a reflexões sobre certos aspectos do fenômeno, do que a uma</p><p>autêntica teoria sobre ele. Modelos deste tipo são úteis para estimu-</p><p>lar alguns experimentos interessantes, mas sua explicação é limita-</p><p>da, pois logo se atinge um ponto onde nada de novo é trazido para</p><p>experimentos posteriores. Além disso, é muitas vezes difícil decidir</p><p>experimentalmente sobre a validade de diferentes modelos, porque</p><p>eles se concentram em categorias diferentes de variáveis, per-</p><p>tencentes ao mesmo fenômeno. É este, por exemplo, o caso dos</p><p>modelos de dinâmica de grupo. A situação se reflete em uma jus-</p><p>taposição de experimentos tão numerosos, quanto ineficientes; e</p><p>isto ilustra que uma ciência ateórica não tem memória e é incapaz</p><p>de realizar uma integração de seus modelos restritos. A progressão</p><p>normal dos eventos pode ser descrita da seguinte forma: alguém</p><p>obtém dados ou propõe uma hipótese sobre, por exemplo, “mudan-</p><p>ça de risco”, ou “categorização social”. Uma vez que os achados este-</p><p>jam firmemente estabelecidos e a hipótese confirmada, tentativas</p><p>são imediatamente feitas para reprodução posterior através da</p><p>variação de fatores, tais como idade, personalidade ou estilo cogni-</p><p>tivo. O fenômeno é assim reduzido ao contexto da psicologia indivi-</p><p>dual ou inter-individual. Deste modo, o referencial da psicologia</p><p>social é progressivamente abandonado. Em vez de se progredir em</p><p>profundidade, progride-se em extensão; ao invés de estabelecer</p><p>laços entre fenômenos psicossociais, faz-se com que estes desapa-</p><p>144</p><p>reçam, através de sua absorção em processos que não são psicosso-</p><p>ciais. Parece, por isso, mais útil voltar-se para teorias que são ex-</p><p>planatórias ou que oferecem uma sistematização de um conjunto de</p><p>proposições. Devem estas teorias partir de fa tos ou de experimen-</p><p>tos? A resposta pode ser “sim” ou “não”, ao mesmo tempo. Seria</p><p>uma resposta negativa, se fossem teorias de tipo “baconiano”, con-</p><p>sistindo em uma “revisão crítica”, uma “síntese”, ou um “esclareci-</p><p>mento ou definição de conceitos”. Isto é assim por duas razões:</p><p>primeiro, porque não existe coerência suficiente no que nós consi-</p><p>deramos como conhecimento adquirido, em psicologia social; se-</p><p>gundo, é utópico esperar que uma teoria possa surgir de uma sim-</p><p>ples integração das partes que não tenham elas mesmas a marca de</p><p>uma teoria. O livro de Collins & Guetzkow (1969), que resume os</p><p>experimentos com pequenos grupos, mostrou a impossibilidade de</p><p>tal tentativa de integração.</p><p>Mas a resposta pode ser positiva se a teoria oferece uma pers-</p><p>pectiva nova, em que experimentos ou levantamentos não são con-</p><p>siderados mais que expedientes temporários, no esboço de uma</p><p>nova imagem da realidade. Apesar das críticas que fiz inicialmente</p><p>ao livro de Thibaut & Kelley (1959), parece-me que ele oferece um</p><p>exemplo de uma tradição teórica que merece ser preservada. A</p><p>exigência essencial é ter novas idéias, que possam ser es-</p><p>quematizadas ou desenvolvidas. Não há necessidade de se procurar</p><p>imediatamente e a todo custo uma validação empírica ou esperar</p><p>até que alguém seja guiado por dados experimentais. Como Novalis</p><p>escreveu: “Se a teoria precisa esperar pelo experimento, ela nunca</p><p>verá a luz do dia”.</p><p>Para esclarecer meu ponto de vista, deveria talvez simples-</p><p>mente declarar minha preferência por qualquer teoria, na ausência</p><p>de toda teoria. Como as coisas estão hoje na psicologia social, nós</p><p>não temos - com raras exceções - nada senão conceitualizações pro-</p><p>tocientíficas. Seria melhor se tivéssemos a nossa disposição algo</p><p>como uma teoria flogística do que continuar com a falta de comuni-</p><p>cação, dispersão e anomia, que é evidente na situação atual. A teoria</p><p>flogística foi útil na química, porque definiu os processos centrais</p><p>do empreendimento científico, serviu como guia para pesquisa,</p><p>forçando os cientistas a se confrontarem, fornecendo-lhes uma lin-</p><p>guagem comum. A psicologia social poderia muito bem empregar</p><p>145</p><p>uma disciplina intelectual similar e poderíamos até aventurar dar a</p><p>sugestão de que é tempo de parar com a coleta de informações.</p><p>Henri Poincaré escreveu: “Um acúmulo de fatos não constitui uma</p><p>ciência, assim como um monte de pedras não se torna uma casa”.</p><p>Nós temos as pedras, mas não construímos a casa. Se nós decidís-</p><p>semos abandonar, por um tempo, a coleta de novos dados, nós po-</p><p>deríamos vê-los em perspectiva e refletir no que foi conseguido;</p><p>poderíamos, então, definir melhor a natureza das questões que nós</p><p>nos formulamos, o objetivo de nossa busca e o sentido de nossos</p><p>achados. Ao exortar nossos estudantes a produzir novos dados, nós</p><p>reproduzimos as pressões das instituições acadêmicas e econômi-</p><p>cas, ao passo que nossos esforços deveriam, ao invés disso, ser diri-</p><p>gidos para ajudá-los a se educarem a si mesmos. A base para esta</p><p>educação poderia ser encontrada em um retorno a Lewin e aos es-</p><p>critores clássicos da antropologia e da sociologia levando-se em</p><p>conta os desenvolvimentos recentes da etnologia,</p><p>lingüística e epis-</p><p>temologia genética; e no reexame dos enfoques representados pelas</p><p>teorias da troca e da dissonância, com a finalidade de transcender</p><p>seu contexto individual e interindividual, a fim de colocá-los decidi-</p><p>damente dentro de um referencial social mais amplo.</p><p>A sugestão de que nós deveríamos procurar, ou ao menos não</p><p>rejeitar, teorias que são protocientíficas, pode ser considerada o-</p><p>fensiva em determinados redutos. Mas a idéia não é tão escandalosa</p><p>como pode parecer. Quer gostemos ou não, as idéias de Heider, o</p><p>postulado do equilíbrio e a noção de atribuição, são todos. pré-</p><p>científicos. Se nós temos de pagar por nossa cientificidade, através</p><p>da ausência de teoria, então é preferível não ser “científico” ao de-</p><p>senvolvermos novas idéias teóricas.</p><p>4. A procura de uma psicologia social</p><p>A causa determinante de um fato social</p><p>deve ser buscada em fatos sociais e não nos e-</p><p>feitos da consciência individual (Durkheim).</p><p>41. Existem uma, duas ou três psicologias sociais?</p><p>Nenhum estudo teórico pode ser frutuoso se seus objetivos</p><p>não forem claramente definidos. A química ou a lingüística, a física</p><p>ou a economia, tornam-se ciências somente quando seus usuários</p><p>147</p><p>146</p><p>começam a perguntar pelas razões da ocorrência do fenômeno que</p><p>eles observaram. Certamente os fins da ciência não são imutáveis e</p><p>o avanço teórico depende da consciência de seu contexto, continu-</p><p>amente em mudança; mas não pode existir progresso ulterior sem</p><p>uma definição comum desses fins.</p><p>Existem muitos que pensam que um acordo geral sobre tal de-</p><p>finição não é mais problema na psicologia social. De acordo com seu</p><p>ponto de vista, a psicologia social é uma ciência do comportamento</p><p>- a ciência do comportamento social; dessa maneira, eles acham que</p><p>o objeto da disciplina é idêntico ao da psicologia em geral, mesmo</p><p>que seja enfocado em um contexto especial. É esta concepção da</p><p>disciplina que necessita ser cuidadosa e criticamente examinado.</p><p>Muitas vezes se esquece que, inicialmente, foi dado um forte</p><p>impulso ao desenvolvimento da psicologia social com a esperança</p><p>de que isso viria contribuir à nossa compreensão das condições que</p><p>subjazem ao funcionamento de uma sociedade e à constituição de</p><p>uma cultura. O propósito da teoria era explicar os fenômenos so-</p><p>ciais e culturais; o objetivo prático era usar os princípios que, es-</p><p>perava-se, seriam descobertos, a fim de nos engajarmos na critica</p><p>da organização social. A abrangência da psicologia social, pois, era</p><p>tida como incluindo o estudo da vida cotidiana e as relações entre</p><p>os indivíduos e entre os grupos, bem como o estudo das ideologias</p><p>e da criatividade intelectual, tanto em suas formas individuais, co-</p><p>mo coletivas.</p><p>Vista dessa perspectiva, a psicologia social oferecia a promessa</p><p>de se tornar uma ciência verdadeiramente social e política. Tais</p><p>idéias foram logo esquecidas, contudo, quando nossa ciência se</p><p>tornou uma “ciência do comportamento.” Essa nova orientação</p><p>mudou a base da investigação e estudo, passando do argumento da</p><p>sociedade para os fenômenos individuais e interindividuais, que</p><p>eram encarados de um ponto de vista quase físico, em lugar de se-</p><p>rem vistos de um ponto de vista simbólico. O campo de pesquisa foi</p><p>drasticamente reduzido, tanto em seus horizontes, como no seu</p><p>impacto potencial. É certamente importante lembrar que, como</p><p>James Miller confessou certa ocasião, essa mudança de ênfase para</p><p>uma “ciência comportamental” também significou a chegada de</p><p>certa garantia nos quartéis responsáveis pelo desembolso dos fun-</p><p>dos de pesquisa, porque a idéia de “ciências sociais” tendia a criar</p><p>desconfiança e confusão. O rótulo de uma “ciência comportamental”</p><p>parecia mais aceitável.</p><p>147</p><p>Mas essa mudança de terminologia refletiu uma mudança cor-</p><p>respondente nos valores e interesses. De fato, os trabalhadores das</p><p>novas ciências sociais restringiram suas ambições, procurando por</p><p>paliativos para as disfunções da sociedade, sem questionar nem</p><p>suas instituições, nem sua adequação psicológica em face das ne-</p><p>cessidades humanas. O encurtamento dos horizontes está estreita-</p><p>mente ligado à restrição do sujeito ao “estudo do comportamento.”</p><p>A associação estreita com a psicologia geral, que tal restrição repre-</p><p>senta, esconde suas implicações sociais e políticas; impede-nos de</p><p>ver, em suas verdadeiras perspectivas, os fenômenos que, suposta-</p><p>mente, deveríamos estudar e apresenta, até mesmo, certa justifica-</p><p>ção para a acusação de que nós contribuímos para a alienação e a</p><p>burocratização de nossa vida social.</p><p>Independentemente de tudo isso, a noção de “comportamento</p><p>social”, embora seja útil para ajudar a definir índices empíricos,</p><p>permanece extremamente vago. Longe de nos ajudar a unificar o</p><p>sujeito, ela resultou no fato de nós termos, hoje, não uma, mas duas,</p><p>ou mesmo três psicologias sociais.</p><p>A primeira delas é taxonômica; sua finalidade é determinar a</p><p>natureza das variáveis que podem explicar o comportamento de um</p><p>individuo em frente a um estimulo. Esta psicologia ignora a nature-</p><p>za do sujeito e define “social” como uma propriedade dos objeto que</p><p>são divididos em sociais e não-sociais. O esquema geral da relação</p><p>entre sujeito-objeto pode, pois, ser representada assim:</p><p>Sujeito</p><p>Indiferenciado - Indefinido</p><p>Objeto</p><p>Diferenciado em social e não-</p><p>social</p><p>Nesse esquema, a finalidade do estudo é a descoberta de como</p><p>os estímulos sociais afetam os processos de julgamento, percepção</p><p>e formação das atitudes; o fato de que mudanças socialmente de-</p><p>terminadas são elas mesmas um dos aspectos básicos desses pro-</p><p>cessos não é levado em consideração. Por exemplo, a pesquisa da</p><p>percepção social se preocupou, principalmente, com a classificação</p><p>das variáveis independentes - como objetos percebidos que fossem</p><p>tanto “pessoas” (“seres humanos” - como nos experimentos sobre</p><p>percepção da pessoa), como elementos de uma classe de objetos</p><p>149</p><p>148</p><p>físicos possuidores de valor social (como nos estudos sobre o jul-</p><p>gamento do tamanho das moedas como uma função de seu valor).</p><p>Os estudos de Sherif sobre o efeito autoquinético também perten-</p><p>cem a essa perspectiva taxonômica: os modos de resposta estão</p><p>neles relacionados à estrutura dos estímulos. O mesmo é verdade</p><p>sobre o trabalho do grupo de Yale (por exemplo, Hovland et a).,</p><p>1953), que tentou explicar as comunicações persuasivas em termos</p><p>das características sociais da fonte (tais como prestígio, credibilida-</p><p>de, etc.). Esse tipo de psicologia social é “taxonômica” no sentido em</p><p>que ela se limita à descrição psicológica dos vários tipos de estímu-</p><p>los e à classificação das diferenças entre eles. Ela usa uma definição</p><p>de “social” e “não-social” em que os fenômenos, que são inerente-</p><p>mente produtos da atividade social, são concebidos como sendo, a</p><p>partir de seu inicio, uma parte da “natureza”. Sendo que seu inte-</p><p>resse exclusivo é com a enumeração dos vários tipos de reação ao</p><p>ambiente, ela está destinada a excluir de seu raio de interesse a</p><p>natureza da relação entre o ser humano e seu ambiente.</p><p>A segunda psicologia social é “diferencial”. Seu princípio é re-</p><p>verter os termos da relação entre o Sujeito e o Objeto e procurar,</p><p>nas características do individuo, a origem do comportamento que é</p><p>observado. Nesta base, a natureza da estimulação é de pouca im-</p><p>portância; a preocupação mais importante é classificar os indiví-</p><p>duos por critérios de diferenciação, que muitas vezes variam de</p><p>acordo com a escola de pensamento à qual o pesquisador pertence</p><p>ou à natureza do problema que ele está estudando. Desta maneira,</p><p>os sujeitos podem ser classificados em termos de seus estilos cogni-</p><p>tivos (por exemplo, abstratos-concretos, dependentes ou indepen-</p><p>dentes do campo - “field dependent and independent”), suas carac-</p><p>terísticas afetivas (por exemplo, ansiosos ou não, com alta ou baixa</p><p>auto-estima), suas motivações (motivo de realização ou necessida-</p><p>des de aprovação), ou suas atitudes (por exemplo, etnocêntrico ou</p><p>dogmático), etc. A relação</p><p>entre o sujeito e seu ambiente pode ser</p><p>representada da seguinte maneira:</p><p>Sujeito</p><p>Diferenciado pelas características de sua perso-</p><p>nalidade</p><p>Objeto</p><p>Indiferenciado</p><p>Para qualquer tipo de tipologia que for adotada nessa perspec-</p><p>tiva, a finalidade é sempre a mesma: descobrir como diferentes</p><p>categorias de indivíduos se comportam quando eles são confron-</p><p>149</p><p>tados com um problema ou com outra pessoa. Em última instância,</p><p>isso tende ao estabelecimento de uma psicologia diferencial de res-</p><p>postas e - no limite - para a descrição da composição psicológica</p><p>dos grupos sociais, dos quais podem ser inferidas suas pro-</p><p>priedades. Um exemplo desse enfoque é a analise sintomatológica</p><p>dos sujeitos que são facilmente influenciados, seguida pela de-</p><p>monstração de que os mesmos indivíduos são fortemente sugestio-</p><p>náveis, quando confrontados com qualquer tipo de mensagem. Da</p><p>mesma maneira, os fenômenos sociais da liderança, mudanças com</p><p>risco ou competição são percebidas no nível dos traços psicológicos</p><p>dos indivíduos envolvidos; o que é completamente ignorado é que</p><p>alguns desses traços podem ser nada mais do que reflexo, no nível</p><p>individual, de um fenômeno que é inerente a uma rede de relações</p><p>sociais ou a uma cultura especifica. É, pois, evidente que o motivo</p><p>de realização (McClelland et al., 1953) está relacionado: com os</p><p>imperativos do protestantismo e do racionalismo econômico, como</p><p>foi mostrado por Max Weber. Mas transformar esse tipo ideal we-</p><p>beriano em características individuais é transplantá-lo como um</p><p>critério para a diferenciação de uma estrutura psicológica particu-</p><p>lar, que é, então, imediatamente aceita, sem justificação alguma,</p><p>como possuindo certo tipo de universalidade. Muitas vezes essas</p><p>descrições pessoais são redundantes e tautológicas.</p><p>Do mesmo modo que a psicologia diferencial, que mede dife-</p><p>renças individuais na inteligência ou na destreza manual, esse tipo</p><p>de psicologia social procura medir as dimensões da personalidade</p><p>ou os aspectos da afetividade que possuem somente uma tênue</p><p>relação com os fenômenos sociais. É devido a suas tentativas para</p><p>explicar o que acontece na sociedade em termos das características</p><p>dos indivíduos, que o interesse dessa psicologia social no “social” é</p><p>mais aparente que real.</p><p>Existe, finalmente, um terceiro tipo de psicologia social que</p><p>pode ser descrito como “sistemático”. Seu interesse se concentra</p><p>nos fenômenos globais, que resultam da interdependência de di-</p><p>versos sujeitos em sua relação com um ambiente comum, físico ou</p><p>social. Aqui, a relação entre Sujeito e Objeto é mediada pela inter-</p><p>venção de outro sujeito; essa relação se toma uma relação trian-</p><p>gular complexa, em que cada um dos termos é totalmente deter</p><p>minado pelos outros dois. Esta situação pode ser representada pelo</p><p>esquema seguinte:</p><p>150</p><p>Sujeito</p><p>Objeto</p><p>Sujeito</p><p>E, contudo, importante sublinhar que essa relação entre objeto</p><p>e sujeito, em um ambiente comum, foi concebida de duas maneiras</p><p>diferentes: uma estática, outra dinâmica. Na primeira, os principais</p><p>objetos de estudo foram as modificações de comportamento de</p><p>indivíduos participando em interação; no segundo, o interesse foi</p><p>centrado mais diretamente nos efeitos específicos que essas rela-</p><p>ções produzem, pelo fato de engajarem o indivíduo total, as intera-</p><p>ções entre indivíduos e também sua orientação no ambiente. Desta</p><p>distinção, duas tendências distintas de trabalho teórico e experi-</p><p>mental podem ser identificadas. Uma se interessa com o processo</p><p>de facilitação, ou de troca e com uma análise, no nível do desempe-</p><p>nho observável do progresso seqüencial da relação. Ela analisa as</p><p>modificações que ocorrem nas respostas, em termos da mera pre-</p><p>sença de outra pessoa, ou das relações de dependência e interde-</p><p>pendência entre duas pessoas; e ela vê essas modificações como</p><p>uma função da estimulação, ou da recompensa, trazida para a situa-</p><p>ção pela presença, pela intervenção ou pela resposta de outra pes-</p><p>soa, ou pelo controle que duas pessoas possam exercer uma sobre a</p><p>outra. O trabalho de Zajonc sobre facilitação social fornece um bom</p><p>exemplo dessa tendência. O segundo enfoque considera a relação</p><p>social como apresentando a base para a emergência de processos</p><p>que criam um campo sociopsicológico, em que os fenômenos psico-</p><p>lógicos observados encontram seu lugar e sua origem. Exemplos</p><p>disso pode ser o trabalho a respeito de pequenos grupos da escola</p><p>de Lewin, o trabalho de Festinger sobre pressão para a uniformida-</p><p>de e sobre comparação social e o trabalho de Sherif sobre o desen-</p><p>volvimento das relações intergrupais.</p><p>As três psicologias sociais - taxonômica, diferencial e siste-</p><p>mática - coexistem hoje pacificamente nos livros de texto. Esse e-</p><p>quilíbrio precário é, talvez, compreensível quando se pensa nos</p><p>requisitos necessários pelo ensino e na ausência de pressões fortes</p><p>que possam dificultar o equilíbrio, em uma direção ou noutra. A</p><p>mistura contínua, contudo, arbitrária e seus ingredientes são in-</p><p>compatíveis. Na verdade, como será possível realçar e articular os</p><p>achados de diferentes psicologias sociais, juntamente com os da</p><p>151</p><p>psicologia social sistemática, quando, por definição, a primeira está</p><p>em contradição com a segunda? Por exemplo, se se considera que</p><p>as diferenças individuais na facilidade de ser influenciado fornece</p><p>uma base suficiente para a compreensão dos efeitos de uma men-</p><p>sagem nada mais é necessário além de estudar a distribuição dessas</p><p>diferenças na população; não existem mais requisitos ulteriores</p><p>para uma análise teórica dos mecanismos da comunicação social.Do</p><p>mesmo modo, se alguém afirma que é a presença de pessoas com-</p><p>petitivas que faz com que uma situação de conflito torne competiti-</p><p>va, então o estudo do conflito deve ser substituído pelo estudo do</p><p>funcionamento de determinado tipo de personalidade. Se, de outra</p><p>parte, alguém está realmente interessado natureza do conflito ou da</p><p>comunicação é tão inútil estudar os fatores de personalidade, como</p><p>o seria basear o estudo das leis do pêndulo em dados sobre sua</p><p>umidade ou sobre a qualidade suas fibras. Não existem dúvidas de</p><p>que esses fatores intervêm como parâmetros; mas considerá-los</p><p>como variáveis é negar aos fenômenos sociopsicológicos a autono-</p><p>mia de funcionamento dentro de seu próprio sistema especifico.</p><p>Alguns podem pensar que eu esteja falando de coisas sabidas e que</p><p>esses problemas já nos eram familiares desde há muito tempo; esse</p><p>tipo de argumento é trazido sempre que alguém questiona a legiti-</p><p>midade de um consenso que, com a passagem do tempo, se tornou</p><p>uma segunda natureza. Meu ponto de vista pessoal é de esses pro-</p><p>blemas são cruciais e que, até que eles tenham sido resolvidos, de</p><p>uma maneira ou outra, nós não seremos capazes de nossa pesquisa</p><p>em direções que a possibilitem tornar-se o fundamento de uma</p><p>ciência sociopsicológica.</p><p>4.2. O que é “social” em psicologia social?</p><p>Seria difícil levantar aqui, em detalhes, as razões de meu ponto</p><p>de vista, de que é somente a psicologia social sistemática que mere-</p><p>ce ser desenvolvida e que os outros enfoques, que interpretam os</p><p>fenômenos sociais em termos de propriedades de estímulos ou de</p><p>personalidade, não têm muito a contribuir. De qualquer modo, esse</p><p>ponto de vista foi já brilhantemente desenvolvido por autores agora</p><p>“clássicos” em psicologia social e não há necessidade de repetir seus</p><p>argumentos. Gostaria, contudo, de levar um pouco adiante a análise</p><p>da maneira como nossa disciplina tenta, em dia, definir “o social”</p><p>como uma interação entre dois sujeitos e um objeto; um exame</p><p>desse ponto nos ajudará a esclarecer nosso pontos de vista sobre o</p><p>152</p><p>que sempre foi, implicitamente e ainda o é hoje, o verdadeiro objeto</p><p>de nossa disciplina.</p><p>O triângulo Sujeito-Outro-Objeto é crucial para essa discussão,</p><p>pois é o único esquema capaz de explicar e sistematizar processos</p><p>de interação.</p><p>A maneira, contudo, como foi usado, nem sempre contribuiu</p><p>para a definição da conduta</p><p>social ou do sistema em que essa con-</p><p>duta está inserida. Dois índices foram, muitas vezes implicitamente,</p><p>aceitos como refletindo a influência do contexto social, em um</p><p>comportamento do indivíduo: a presença de outro em seu campo</p><p>social e a “numerosidade”. Para muitos pesquisadores, pois, o com-</p><p>portamento de um organismo se torna “social” somente quando ele</p><p>é afetado pelo comportamento de outros organismos. Tal definição</p><p>é igualmente válida para o ser humano e para outras espécies e</p><p>possibilita a uma pessoa usar uma série de analogias, a fim de ex-</p><p>trapolar para outras espécies.</p><p>A aceitação desses pontos de vista conduz ao abandono de al-</p><p>guns aspectos fundamentais dos fenômenos sociais. A sociedade</p><p>possui sua própria estrutura, que não é definível em termos das</p><p>características dos indivíduos; esta estrutura é determinada pelos</p><p>processos de produção e de consumo, pelos rituais, símbolos, ins-</p><p>tituições, normas e valores. Ela é uma organização que possui uma</p><p>história e suas próprias leis e dinâmicas que não podem ser deriva-</p><p>das das leis de outros sistemas. Quando o “social” é estudado em</p><p>termos da presença de outros indivíduos ou de “numerosidade” não</p><p>são realmente as características fundamentais do sistema que estão</p><p>sendo exploradas, mas sim um de seus subsistemas - o subsistema</p><p>das relações interindividuais. O tipo de psicologia social que emerge</p><p>desse enfoque é uma psicologia social “privada”, que não inclui,</p><p>dentro de seu escopo, a distintividade da maioria dos fenômenos</p><p>sociais genuínos. Pode-se, pois, argumentar que, por razões que são</p><p>parte culturais e parte metodológicas, a perspectiva sistemática em</p><p>psicologia social não se interessou, verdadeiramente, nem com o</p><p>comportamento social como um produto da sociedade, nem com o</p><p>comportamento na sociedade. Isso não quer dizer que não existi-</p><p>ram tentativas para analisar fenômenos tais como poder, autorida-</p><p>de ou conflito; a perspectiva dessa análise foi, contudo, sempre in-</p><p>terindividual e, conseqüentemente, esses fenômenos foram retira-</p><p>dos do contexto ao qual eles necessariamente pertencem.</p><p>153</p><p>Devido a essas razões, é ambíguo sustentar que o comporta-</p><p>mento social é, presentemente, o verdadeiro objeto de nossa ciên-</p><p>cia. Vista de um certo ponto de vista, essa afirmativa é justificada,</p><p>pois nos preocupamos com uma categoria de ações sociais e com</p><p>um segmento da vida social; de outro lado, nunca foi conveniente-</p><p>mente reconhecido que o “social” existe, primariamente, nas pro-</p><p>priedades intrínsecas da sociedade humana.</p><p>É por isso que a psicologia social sistemática deve ser renova-</p><p>da e re-desenvolvida, de tal modo que se torne uma verdadeira</p><p>ciência dos fenômenos sociais, que são a base do funcionamento de</p><p>uma sociedade e dos processos essenciais que operam dentro dela.</p><p>Mas - como é óbvio que nem todos os citados fenômenos estão den-</p><p>tro da perspectiva da psicologia social - é importante selecionar os</p><p>que devem ser seu foco principal. O objeto central e exclusivo da</p><p>psicologia social deve ser o estudo de tudo o que se refira á ideolo-</p><p>gia e à comunicação, do ponto de vista de sua estrutura, sua gênese</p><p>e sua função. O campo especifico de nossa disciplina é o estudo dos</p><p>processos culturais que são responsáveis pela organização do co-</p><p>nhecimento em uma sociedade, pelo estabelecimento das relações</p><p>interindividuais no contexto do ambiente social e físico, pela forma-</p><p>ção dos movimentos sociais (grupos, partidos, instituições), através</p><p>dos quais os homens agem e interagem, pela codificação da conduta</p><p>interindividual e intergrupal que cria uma realidade social comum</p><p>com suas normas e valores, cuja origem deve ser novamente busca-</p><p>da no contexto social. Paralelamente, mais atenção deveria ser dada</p><p>á linguagem, que até agora não foi pensada como uma área de estu-</p><p>do estreitamente relacionada à psicologia social. Textos atuais de</p><p>psicolingüística devotam sua atenção inteiramente a exposições</p><p>claras e acadêmicas de fenômenos lingüísticos, enquanto eles se</p><p>relacionam à aprendizagem e á memória, ou a estruturas fonéticas</p><p>ou léxicas. Eles contém muito pouco sobre as funções de troca da</p><p>linguagem e sobre a origem social de suas características. Assume-</p><p>se como pacifico que a linguagem é uma característica essencial da</p><p>comunicação; mas isso não é usado como base para estudos teóri-</p><p>cos. Dessa maneira, a natureza social da linguagem permanece na</p><p>periferia: dos enfoques dos problemas psicolingüísticos; a implica-</p><p>ção é que; questões sociopsicológicas sobre linguagem não diferem</p><p>das questões discutidas na psicolingüística. Rommetveit discute,</p><p>nesse livro, algumas das conseqüências gerais dessa perspectiva</p><p>reducionista para a psicolingüistica.</p><p>154</p><p>A noção de ideologia deve ter seu lugar na psicologia social</p><p>contemporânea. Muitos fenômenos que são atualmente estudados</p><p>são ou partes inerentes da ideologia ou substitutos teóricos dela.</p><p>Isso vale para conceitos, como hábitos, preconceitos, estereótipos,</p><p>sistemas de crenças, psicológica, etc. Mas essa acumulação não co-</p><p>bre a cadeia inteira do tema teórico central que permanece ainda</p><p>segmentado. Existem, contudo, alguns sinais de que o estudo do</p><p>fenômeno da ideologia poderá muito bem ser mais desenvolvido; a</p><p>promessa disso está contida na análise sistemática do pensamento</p><p>social e em algum trabalho da dissonância cognitiva, na unidade dos</p><p>processos cognitivos e não-cognitivos e na motivação social.</p><p>A pesquisa na psicologia social da comunicação não andou</p><p>muito à frente, apesar de, como uma disciplina, a psicologia social</p><p>se ajustar perfeitamente a essa tarefa; ela deveria ser capaz de o-</p><p>lhar para os aspectos básicos da comunicação, do ponto de vista da</p><p>gênese das relações sociais e dos produtos sociais e também deve-</p><p>ria ser capaz de considerar o ser humano como um produto de pró-</p><p>pria atividade - como, por exemplo, na educação e na socialização.</p><p>Para conseguir tal finalidade, porém, nós deveremos ir além das</p><p>explorações superficiais. Levantar questões sobre os efeitos dos</p><p>meios de comunicação de massa, sobre a influência exercida por</p><p>uma fonte autoritária ou não, sobre a eficácia da mensagem anunci-</p><p>ada no inicio ou no fim de uma fala, é confinar nossa disciplina den-</p><p>tro de limites puramente pragmáticos, colocados pelas exigências</p><p>dos donos, ou dos manipuladores, dos meios de comunicação de</p><p>massa. Os problemas reais são muito mais amplos. Eles residem nas</p><p>questões sobre por que e de acordo com que retórica nós nos co-</p><p>municamos e sobre a maneira como nossa motivação para a comu-</p><p>nicação se reflete em nossos modos de comunicação. Os meios de</p><p>comunicação de massa, cujo objetivo é persuadir, são uma parte</p><p>secundária da rede total de comunicações. Não existem razões que</p><p>fundamentem o fato de se lhes destinar um status privilegiado em</p><p>comparação com os processos de troca de informação, que se dão</p><p>em comunidades sociais, políticas ou religiosas, nos mundos do</p><p>teatro, cinema, literatura ou lazer. A cultura é criada pela e através</p><p>da comunicação; e os princípios organizacionais da comunicação</p><p>refletem as relações sociais que estão implícitas neles. É por isso</p><p>que nós devemos enfrentar a comunicação dentro de uma perspec-</p><p>tiva nova e mais ampla. Até agora, ela foi considerada principalmen-</p><p>te como uma técnica, como um meio para a realização de fins que</p><p>são externos a ela. O estudo da comunicação pode-se tornar um</p><p>155</p><p>objeto adequado da ciência se nós mudarmos essa perspectiva e</p><p>passarmos a entender a comunicação como um processo autôno-</p><p>mo, que existe em todos os níveis da vida social.</p><p>A vida social é a base comum da comunicação e da ideologia. A</p><p>tarefa da psicologia social, no estudo desses fenômenos, é uma ta-</p><p>refa para a qual a disciplina está muito bem equipada; ela se inte-</p><p>ressa pelas relações entre o indivíduo e a sociedade. Essas relações</p><p>são um foco de tensões e contradições e elas representam o ponto</p><p>de encontro das necessidades de liberdade do ser humano e de suas</p><p>tendências para a alienação;</p><p>elas são, também, o campo de batalha</p><p>preferido de muitos movimentos políticos. Embora seja verdade</p><p>que os psicólogos sociais estão conscientes dos problemas implíci-</p><p>tos aqui, eles, ao reluzi-los a processos de socialização, nada mais</p><p>fazem do que eliminar seus interesses reais e sua relevância.</p><p>Os pontos de vista que enfatizam a importância hegemônica da</p><p>socialização podem ser assim resumidos: a criança aprende e inter-</p><p>naliza um conjunto de valores, a linguagem e as atitudes sociais; ela</p><p>modela seu comportamento pelo comportamento dos adultos e</p><p>pelo de seus colegas. Finalmente, quando ela mesma se torna um</p><p>adulto, se integra ao grupo que a preparou adequadamente para</p><p>sua pertença a ele. Quando este estágio é alcançado, dificuldades de</p><p>ajustamento podem surgir somente se a pessoa não teve sucesso</p><p>nessa assimilação apropriada, ou na aplicação adequada dos prin-</p><p>cípios que lhe foram ensinados.</p><p>O desenvolvimento dessa concepção depende, na realidade, da</p><p>aceitação de diversos pressupostos. O primeiro é que a pessoa é</p><p>uma unidade biológica, que deve ser transformada em uma unidade</p><p>social; o segundo, que a sociedade é um “dado” imutável, encontra-</p><p>do pelo individuo como um ambiente já pronto, em uma estrutura</p><p>de círculos concêntricos, constituídos pela família, grupos de com-</p><p>panheiros e os grupos mais amplos e instituições, para as quais ele</p><p>se dirige e aos quais ele deve se adaptar. O terceiro pressuposto é</p><p>que o individuo é inexoravelmente absorvido pelo seu ambiente</p><p>social. Ele deixa de ser um individuo desde o momento em que ele</p><p>se filia, se submete às pressões sociais e se torna um executor de</p><p>papéis. Finalmente, assume-se que a sociedade desempenha um</p><p>papel de equilíbrio na vida do individuo, pois ela reduz suas tensões</p><p>e incertezas. Na realidade, esses pressupostos implicam a concep-</p><p>ção de um individuo que é totalmente orgânico, junto com a con-</p><p>156</p><p>cepção de uma sociedade que restringe seu papel ao de mediadora</p><p>das necessidades dos organismos individuais. Dentro dessa concep-</p><p>ção, a sociedade não é vista como um produto dos indivíduos, nem</p><p>os indivíduos vistos como produtos da sociedade. As leis sociopsi-</p><p>cológicas que daí surgem não estão interessadas com as transfor-</p><p>mações que se dão dentro do âmbito do “social”, mas com trans-</p><p>formações do biológico para o social. Os interesses fundamentais de</p><p>uma psicologia social que se concentra principalmente nos proces-</p><p>sos de aprendizagem, de socialização e de conformidade podem ser</p><p>ligados diretamente a esses pressupostos e à sua aplicação.</p><p>E mais: o problema das relações entre ser humano e sociedade</p><p>se relaciona intrinsecamente com ambos os termos do rapport: eles</p><p>intervêm, conjuntamente, nos processos econômicos, sociais e polí-</p><p>ticos. Não se pode esquecer que o indivíduo não é um “dado”, mas</p><p>um produto da sociedade, pois é a sociedade que o força a se tornar</p><p>um individuo e a acentuar sua individualidade em seu com-</p><p>portamento. Por exemplo, nossa economia de mercado nos força a</p><p>todos a tornarmo-nos compradores e vendedores de bens e servi-</p><p>ços; nossa democracia eleitoral está baseada no princípio de que</p><p>cada pessoa representa um voto. Mas esses não são princípios uni-</p><p>versais, seus limites são culturais. Os antagonismos que as so-</p><p>ciedades capitalistas criaram ao levarem o individualismo ao seu</p><p>pico máximo são, na realidade, uma conseqüência da estreita in-</p><p>terdependência de todos os setores da vida cotidiana, que é a marca</p><p>dessas sociedades. O sistema que emergiu combina o anonimato da</p><p>vida urbana com a interdependência física, psicológica e social; ele</p><p>também introduz uma divisão aguda entre vida pública e privada. O</p><p>individuo criado por essa sociedade tem muito pouco em comum</p><p>com um organismo puramente biológico. Os juristas tiveram mais</p><p>sucesso que os psicólogos no estabelecimento da distinção entre a</p><p>pessoa moral e a pessoa física. Está implícito em nossa sociedade</p><p>que os indivíduos são primariamente pessoas morais e, como tais,</p><p>se comportam como participantes em relação aos encontros sociais</p><p>e como atores em seus diversos meios. Por todas essas razões, a</p><p>noção de “indivíduo” é inteiramente relativa: sindicatos ou partidos</p><p>políticos podem ser considerados coletivamente como indivíduos,</p><p>que se comportam como tais uns com os outros e em suas relações</p><p>com a sociedade como um todo. A sociedade produz indivíduos de</p><p>acordo com seus próprios princípios; dessa maneira pode ser com-</p><p>parada com uma “máquina”, que socializa e individualiza ao mesmo</p><p>tempo. Sua maneira de agir consiste não apenas - como se acredita</p><p>157</p><p>muitas vezes - em estabelecer uniformidades, mas também em</p><p>manter e acentuar diferenças. Conseqüentemente, na medida em</p><p>que o indivíduo se torna social, “. assim também a sociedade adqui-</p><p>re individualidade; é por isso que não existe apenas uma, mas mui-</p><p>tas sociedades, que diferem umas das outras tanto por suas origens,</p><p>como pelas características dos atores sociais que as compõem e as</p><p>produzem.</p><p>Esta perspectiva nos possibilita compreender o contraste en-</p><p>tre o individualismo e a tendência do ator social em minimizar suas</p><p>diferenças para poder conseguir seus objetivos e interesses e na</p><p>conformação de sua noção de o que é “bom” e o que é “verdadeiro.”</p><p>A pergunta principal que os psicólogos sociais faziam era: Quem</p><p>socializa o individuo? Os psicólogos negligenciaram o segundo as-</p><p>pecto do problema contido na sua pergunta: Quem socializa a soci-</p><p>edade? Um novo enfoque com respeito à relação entre indivíduo e</p><p>sociedade deveria tomar em consideração dois fenômenos básicos.</p><p>O primeiro é onde que o individuo não é apenas um produto bioló-</p><p>gico, mas um produto social; e o segundo é o de que a sociedade não</p><p>é um ambiente destinado a treinar o indivíduo e a reduzir suas in-</p><p>certezas, mas um sistema de relações entre “indivíduos coletivos”.</p><p>Esta visão da dinâmica social possui implicações científicas imedia-</p><p>tas, assim como importância psicológica e política; ela nos obriga a</p><p>encarar o controle social e a mudança social em uma perspectiva</p><p>comum e a não tratá-los separadamente, como aconteceu no passa-</p><p>do. Não existe razão nenhuma para conceder prioridade aos aspec-</p><p>tos da socialização que tendem para a transmissão das tradições</p><p>existentes e da estabilidade do status quo; as tendências opostas,</p><p>que possibilitam reformas e revoluções, são igualmente importan-</p><p>tes.</p><p>Nosso único interesse foi na formação dos “objetos sociais”; e</p><p>isso se reflete na concepção que temos do organismo individual</p><p>como uma parte passiva, em uma relação que tem como finalidade</p><p>a conformação do individuo a um modelo imutável e preestabele-</p><p>cido. Chegou, agora, o tempo de insistir na formação dos “objetos</p><p>sociais” (Moscovici & Plon, 1968) - sejam eles grupos ou indivíduos</p><p>- que adquirem sua identidade através de seu relacionamento com</p><p>outros.Essa mudança de perspectiva pode já ser vista no trabalho</p><p>de Brehm (1966) sobre “reação psicológica”, de Rotter (1966) so-</p><p>bre controle interno e externo e de Zimbardo (1969) sobre controle</p><p>cognitivo. Devemos, também, reconhecer o papel essencial desem-</p><p>158</p><p>penhado na formação dos “sujeitos sociais” pela “solidariedade</p><p>social” (isto é, comparação social e reconhecimento social), proces-</p><p>sos de decisão (tanto individuais como sociais), organização social e</p><p>influência social. Temos já um fundo de noções teóricas e de estu-</p><p>dos experimentais importantes para cada um desses fenômenos. A</p><p>fim de conseguir um novo nível de compreensão das relações entre</p><p>ser humano e sociedade, nós devemos relacionar esse conhecimen-</p><p>to a processos de comunicação e à influência exercida pelas ideolo-</p><p>gias. Neste sentido, controle e mudança constituem duas linhas de</p><p>desenvolvimento que devem ser analisadas simultaneamente a fim</p><p>de nos possibilitar tanto compreender, como criticar, os aspectos</p><p>importantes da vida social. Se adotarmos esse enfoque como um</p><p>guia para pesquisa, deixaremos de considerar nosso meio ambiente</p><p>como um meio “externo” imutável</p><p>e passaremos a considerá-lo, ao</p><p>contrário, como o pano de fundo humanizado das relações em que</p><p>os seres humanos vivem e como um instrumento para essas rela-</p><p>ções (Moscovici, 1968/1977). Esse meio ambiente não é inerente-</p><p>mente ambíguo ou estruturado, nem é ele puramente físico ou soci-</p><p>al; ele é determinado por nosso conhecimento e pelos métodos de</p><p>investigação. O ambiente não explica nada; pelo contrário, ele se</p><p>apresenta como necessitando de explicação, pois é tanto construí-</p><p>do, como limitado por nossas técnicas, nossa ciência, nossos mitos,</p><p>nossos sistemas de classificação e nossas categorias. Na maioria das</p><p>teorias que tratam de intercâmbio ou de influência, esses processos</p><p>são concebidos como respostas determinadas pelos recursos pre-</p><p>sentes no meio ambiente, ou por sua organização. Como conse-</p><p>qüência, questões relacionadas com a gênese dos objetos sociais</p><p>nem sequer podem surgir. Mas o progresso na etologia, alguns es-</p><p>tudos recentes sobre influência social (Moscovici & Faucheux,</p><p>1969; Moscovici et al., 1969; Alexander et al., 197O) e a evidência</p><p>histórica sobre a transformação do meio ambiente apresentam</p><p>indícios de que esta ênfase está mudando: de uma concepção que</p><p>enfatizava a inércia do mundo material, estamos nos voltando para</p><p>o estudo de sua significância.</p><p>Resumindo, o campo da psicologia social consiste de objetos</p><p>sociais, isto é, de grupos e indivíduos que criam sua realidade soci-</p><p>ais (que é, na realidade, sua única realidade), controlam-se mutua-</p><p>mente e criam tanto seus laços de solidariedade, como suas dife-</p><p>renças. Ideologias são seus produtos, a comunicação é seu meio de</p><p>intercâmbio e consumo e a linguagem é sua moeda. Esse paralelo</p><p>com as atividades econômicas é, fica claro, nada mais que uma ana-</p><p>159</p><p>logia; mas esta analogia nos possibilita definir melhor aqueles ele-</p><p>mentos da vida social que são de maior importância para o estudo</p><p>teórico e empírico; e ela também realça a necessidade de introduzir</p><p>mais direcionamento e coerência na definição de nosso campo po-</p><p>tencial de investigação.</p><p>Onde fica o “comportamento” em relação a tudo isso? Ele tam-</p><p>bém deve ser enfocado em uma nova perspectiva: em vez de locali-</p><p>zar o “social” no comportamento nós devemos localizar o compor-</p><p>tamento no “social”. Em livros de texto e em outras publicações, o</p><p>comportamento social é, geralmente, considerado como qualquer</p><p>outro tipo de comportamento; a única diferença é que o comporta-</p><p>mento social, presumivelmente, inclui características sociais sobre-</p><p>impostas. É considerado como determinado pelas mesmas causas</p><p>psicológicas dos outros tipos de comportamento e pelos mesmos</p><p>sistemas de estimulação física. Do ponto de vista da presente dis-</p><p>cussão, o comportamento social deve ser visto como um problema</p><p>próprio e específico. Sua característica essencial é que ele é simbó-</p><p>lico. Os estímulos que deslancham o comportamento social e as</p><p>respostas que dai resultam são elos em uma cadeia de símbolos; o</p><p>comportamento expressa, pois, um código e um sistema de valores</p><p>que são uma forma de linguagem; ou, poder-se-ia até, talvez, dizer</p><p>que é o comportamento como tal que constitui a linguagem. Ele é</p><p>essencialmente social e criado por relações sociais; na realidade,</p><p>não poderia existir simbolismo confinado apenas a um indivíduo ou</p><p>a um indivíduo confrontado com objetos materiais.</p><p>O comportamento simbólico foi, muitas vezes, confundido com</p><p>os processos psicológicos gerais chamados de “cognitivos”. Teorias,</p><p>pois, que introduziram o conceito de consistência no estudo da in-</p><p>fluência social ou da motivação foram classificadas como teorias</p><p>“cognitivas”. A razão disso foi que essas teorias estavam interessa-</p><p>das com um modo simbólico de organização de ações e “simbólico”</p><p>foi considerado como “cognitivo”. A dificuldade dessa perspectiva</p><p>não se deve unicamente á ilegitimidade de se igualar simbólico com</p><p>cognitivo; está no fato de que, ao proceder assim, mascara-se a dis-</p><p>tinção entre os dois termos. Quando os termos “afetivo”, “motor” ou</p><p>“motivacional” são substituídos pelo termo “cognitivo”, o pressu-</p><p>posto subjacente é que não se fez mais do que passar de um nível a</p><p>outro. O foco de análise permanece ainda no indivíduo, como uma</p><p>unidade dentro do esquema clássico do estímulo-resposta. Mas os</p><p>aspectos fundamentais do comportamento simbólico consistem de</p><p>160</p><p>suas manifestações verbais e não-verbais, que são compreendidas e</p><p>se tornam “visíveis” somente em relação aos significados comuns</p><p>que eles adquirem para os que recebem as mensagens e para aque-</p><p>les que as emitem. Comportamento simbólico é fundamentado e</p><p>torna-se possível pelas normas sociais e regras e por uma história</p><p>comum que reflete o sistema de conotações implícitas e pontos de</p><p>referencia que, invariavelmente, se desenvolvem em todo ambiente</p><p>social.</p><p>A psicologia social é uma ciência do comportamento somente</p><p>se isso for entendido como significando que seu interesse é em um</p><p>modo muito específico deste comportamento - o modo simbólico. É</p><p>isso que distingue nitidamente seu campo de interesse do da psico-</p><p>logia geral. Tudo o que foi dito na presente secção refere-se unica-</p><p>mente ao desenvolvimento dessa proposição fundamental.</p><p>5. Um problema sociopsicológico: a ausência de verdades</p><p>perigosas</p><p>Se o estudo dos processos simbólicos se tornou nosso objeto</p><p>principal, nós seremos forçados a explorar o campo e limites da</p><p>realidade social em que nós vivemos. De fato, se quisermos com-</p><p>preender fatos sociais reais em vez de fatos individuais em um con-</p><p>texto social; e se quisermos abandonar a visão de sociedade em que</p><p>os indivíduos, fechados nas células de seus grupos “primários”, se</p><p>movimentam como que aleatoriamente, se quisermos destruir a</p><p>ilusão de que nós poderemos um dia conseguir uma universalidade</p><p>vazia de leis, através da descoberta de mecanismos gerais e abstra-</p><p>tos, sem referência a seus conteúdos, então devemos admitir cla-</p><p>ramente que nós, ate o presente momento, tendemos a ignorar os</p><p>processos sociais concretos e suas formas coletivas.</p><p>Apesar de seus sucessos técnicos, a psicologia social se tornou</p><p>uma ciência isolada e secundária (cf. Jaspars & Ackermann,</p><p>1966/1967). Este juízo é, certamente, correto para a Europa, mas</p><p>eu penso que o seja também para outros lugares. Esse é, provavel-</p><p>mente, o resultado de um desejo intenso de alcançar reconheci-</p><p>mento profissional e respeitabilidade acadêmica. É verdade, com</p><p>tudo, que nós conseguimos realizar experimentos científicos, tendo</p><p>nossos programas de pesquisa aceitos pelas universidades, prepa-</p><p>rando - embora para um mercado muito limitado - estudantes que</p><p>161</p><p>conhecem sua literatura, empregando métodos estatísticos, mani-</p><p>pulando aparatos e produzindo boas dissertações. De outro lado, a</p><p>defasagem que se criou entre nossa disciplina e outras ciências so-</p><p>ciais (tais como a antropologia, a sociologia, a lingüística ou econo-</p><p>mia) nos conduziu à situação de uma habilitação ignorante. As</p><p>questões que investigamos são, na maioria das vezes, muito restri-</p><p>tas; e se acontecer que problemas importantes são enfrentados, nós</p><p>conseguimos transformá-los, novamente, em questões secundárias.</p><p>Isso, porém, parece não preocupar a ninguém, pois parece que</p><p>temos conseguido nossos fins mais importantes, que seriam aplicar</p><p>corretamente as regras da arte da experimentação e em receber,</p><p>por esse sucesso, a aprovação de nosso próprio grupo. E ainda mais,</p><p>existe ampla evidência de que nosso controle e minutiae (mesqui-</p><p>nharias) têm pouca significância para os aspectos verdadeiramente</p><p>importantes dos problemas que estamos dando. Por exemplo, em</p><p>seus estudos dos primatas, os etologistas nunca conseguiram usar</p><p>métodos tão refinados como os que nós usamos em nossos estudos</p><p>de interação. Apesar disso, eles atacaram corajosamente problemas</p><p>cruciais que são de interesse imediato tanto para o estudo da orga-</p><p>nização social das espécies animais como para o ser humano; eles</p><p>conseguiram uma produção de conhecimento que parece</p><p>mais rica</p><p>e próxima às nossas preocupações presentes, que a psicologia soci-</p><p>al jamais foi capaz de acumular. Em contraste, a psicologia social se</p><p>tornou a ciência da vida privada e, ao mesmo tempo, conseguiu</p><p>transformar seus usuários em membros de um clube privado. Até</p><p>mesmo no campo da metodologia, em que, até recentemente, nós</p><p>estávamos bastante à frente, fomos agora ultrapassados por outras</p><p>disciplinas. Certamente não se pode dizer que existe uma escassez</p><p>de problemas importantes: guerras, profundas mudanças sociais,</p><p>relações raciais e internacionais, alienação individual, luta para</p><p>libertação política e violência. Poder-se-iam acrescer os problemas</p><p>criados pela ciência, pela tecnologia e pela mudança de influência</p><p>na evolução de nosso mundo - e apesar disso não existem vestígios</p><p>de nada disso em nossas revistas e em nossos livros de texto; pare-</p><p>ce até que a própria existência de todos esses problemas está sendo</p><p>negada.</p><p>Não é suficiente, contudo, reconhecer que esses tópicos são</p><p>“relevantes”, para fazê-los objetos adequados de investigação. Eles</p><p>devem também ser enfocados de uma maneira que seja “relevante”;</p><p>isto é, de uma maneira que nos possibilite compreender, simultane-</p><p>amente, como eles se relacionam com o ser humano e a sociedade e</p><p>162</p><p>como seu estudo poderia contribuir para um avanço autêntico do</p><p>conhecimento. Uma maior lucidez e um compromisso intelectual</p><p>mais corajoso são indispensáveis para esta tarefa. Por exemplo, não</p><p>seria suficiente discernir, no campo social, somente as forças que o</p><p>mantêm, porque as forças que empurram em uma direção de mu-</p><p>dança gradual e de revolução são, pelo menos, igualmente impor-</p><p>tantes. A história não é feita somente por sociedades que sobrevi-</p><p>vem; é também feita por sociedades que morrem. Devemos apren-</p><p>der a enfrentar essas realidades; uma procura exclusiva por uma</p><p>ciência que não fosse senão uma arte de contemporização iria, con-</p><p>seqüentemente, comprometer a própria ciência. Tornou-se eviden-</p><p>te que o equilíbrio social e a pacífica satisfação individual não são os</p><p>supremos objetivos buscados pelos seres humanos. Os valores não</p><p>são somente utopias ou apêndices inúteis; os ideais de justiça, ver-</p><p>dade, liberdade e dignidade fizeram viver e morrer pessoas que</p><p>viram neles a razão de não aceitar, indistintamente, qualquer tipo</p><p>de vida ou morte. É difícil entender por que nós deveriamos esque-</p><p>cer, junto com os psicólogos sociais de hoje, que os processos de</p><p>revolução, de inovação, de irredutibilidade do conflito, constituem</p><p>uma parte inerente da evolução dos grupos humanos.</p><p>O segundo ponto que eu gostaria de acentuar é que a psicolo-</p><p>gia social deveria, agora, deixar o gueto acadêmico ou, talvez se po-</p><p>deria dizer, deixar o gueto americano, em que se fecharam os des-</p><p>cendentes europeus dessa disciplina (Back, 1964). A reflexão dentro</p><p>de um círculo vicioso nunca expandiu horizonte nenhum. Devería-</p><p>mos ser sobre-humanos para fugirmos completamente à influência</p><p>das nossas circunstancias imediatas e não sermos afetados pelas</p><p>perspectivas em que as questões, em determinadas situações con-</p><p>cretas, são formuladas. É bastante notório que os habitantes de um</p><p>gueto partilham pontos de vista comuns e não resistem grande-</p><p>mente ao que lhes e familiar. Atualmente, muitos dos argumentos,</p><p>juízos e tópicos de pesquisa em psicologia social, refletem os valo-</p><p>res da classe média, de que a maioria dos psicólogos sociais ainda</p><p>não se desvencilhou. Eles permanecem, então, prisioneiros de uma</p><p>cultura pragmática , que tem como preocupação central evitar o</p><p>que se chamou de “metafísica” ou, em outras palavras, toda sombra</p><p>de possíveis realidades que não sejam imediatas.</p><p>A maioria dos experimentos feitos na Inglaterra, na França ou</p><p>nos Estados Unidos sobre influência social, polarização de grupo</p><p>(riskyshift) ou conflito usaram estudantes como sujeitos. Nenhum</p><p>trabalho foi feito sobre as várias regiões do país, sobre as diferentes</p><p>163</p><p>classes sociais, sobre grupos ideológicos, nacionais, religiosos ou</p><p>raciais. Ao mesmo tempo, poucos de nós se interessaram por um</p><p>estudo cuidadoso e uma formulação adequada dos problemas e</p><p>preocupações desses grupos. Conseqüentemente, os psicólogos</p><p>sociais têm dificuldade em ver, dentro de uma perspectiva ade-</p><p>quada, seu próprio ambiente e valores e por isso eles não podem</p><p>enriquecer e diversificar sua disciplina. E necessário e imprescindí-</p><p>vel que uma ciência, cedo ou tarde, se torne uma tarefa acadêmica,</p><p>mas isso não significa que ela deva começar por isolar-se, ou dentro</p><p>da universidade, ou dentro dos limites de uma nação, de uma classe,</p><p>de um grupo de idade, ou de um movimento político.</p><p>Nossa disciplina deve, agora, voltar-se para realidades das</p><p>quais, no passado, ela não estava consciente e ela deve participar</p><p>dos experimentos sociais e do estabelecimento de novas relações</p><p>sociais. A psicologia social não pode permitir-se continuar uma</p><p>“ciência da aparência”; ela não deve somente começar a descobrir</p><p>os aspectos mais profundos da realidade social, mas também par-</p><p>ticipar na dinâmica geral do conhecimento, através do qual certos</p><p>conceitos são destruídos e novos são criados. O objetivo deve ser</p><p>não apenas sistematizar o conhecimento existente, mas propor</p><p>conceitos inteiramente novos. É hoje plenamente aceito que as ci-</p><p>ências exatas criaram novos aspectos da natureza; as ciências soci-</p><p>ais devem criar novos aspectos da sociedade. Será somente a explo-</p><p>ração de novas realidades que possibilitará à psicologia social pro-</p><p>gredir e ser retirada dos esquemas referenciais das atividades co-</p><p>merciais e industriais a que ela está hoje confinada. Até agora seus</p><p>usuários preferiram interessar-se pela visão do mundo presente em</p><p>determinados círculos acadêmicos e descuidar o que poderiam ter</p><p>aprendido de artistas e escritores sobre psicologia humana e mecâ-</p><p>nica de uma sociedade. Não tomaram como guia os princípios epis-</p><p>temológicos que levam a uma análise do que é raro e sobre o qual</p><p>pouco se sabe; é esse tipo de análise que aludirá a lançar nova luz</p><p>sobre os fenômenos já estabelecidos e familiares. Como Durkheim</p><p>escreveu certa vez: “Se uma ciência das sociedades deve existir,</p><p>devemos esperar que ela não consista de uma simples paráfrase</p><p>dos preconceitos tradicionais, mas, ao contrário, que nos conduza a</p><p>ver coisas de maneiras diferentes das visões comumente aceitas”.</p><p>A história da ciência mostra que esse princípio está no coração</p><p>de toda descoberta. As grandes inovações intelectuais atribuídas a</p><p>Descartes ou a Galileu foram possíveis devido a seu sério interesse</p><p>nos instrumentos óticos que eram familiares somente a um peque-</p><p>164</p><p>no grupo de pessoas daquele tempo; a maioria dos filósofos conti-</p><p>nuou a praticar uma ciência baseada nas observações cotidianas</p><p>que tinham sido também a base do universo de Aristóteles. Esse é</p><p>apenas um exemplo entre muitos; sua importância, talvez, seja</p><p>mostrar que novas e inesperadas idéias em uma ciência não são</p><p>somente devidas á inspiração e ao gênio de um indivíduo, mas tam-</p><p>bém á sua coragem em abandonar as concepções que são correntes</p><p>em seu tempo. Mas essa criação de novos pontos de partida depen-</p><p>de, também, da susceptibilidade de uma ciência a novas idéias e da</p><p>sua capacidade de permanecer aberta a concepções, que tenham</p><p>sido, antes, consideradas como existindo fora do seu campo de inte-</p><p>resse. Os escritores clássicos em psicologia social foram admiráveis</p><p>em sua habilidade e presteza em aceitar uma vasta gama de idéias.</p><p>Se voltarmos a eles, talvez sejamos capazes de conseguir uma me-</p><p>lhor compreensão de perspectivas mais amplas e dedicarmo-nos à</p><p>busca de idéias significativas, em lugar da busca de dados. Presen-</p><p>temente, nós respeitamos a idéia de que a metodologia faz uma</p><p>ciência, em vez de lembrarmos que a ciência deve escolher seus</p><p>métodos.</p><p>Será somente se nos apoiarmos na crença de que existe um</p><p>caminho real e tentarmos descobri-lo que nós seremos capazes de</p><p>ultrapassar as limitações presentes da</p><p>psicologia social e transfor-</p><p>má-la em algo mais do que uma ciência secundária. É o destino de</p><p>toda verdade ser critica e por isso nós devemos ser críticos. A pre-</p><p>sente conjuntura de eventos é favorável a tal mudança. Para que</p><p>nossa disciplina se torne verdadeiramente científica, seu campo de</p><p>interesse deve permanecer livre e suas portas devem estar am-</p><p>plamente abertas às outras ciências e ás exigências da sociedade. Os</p><p>objetivos de uma ciência são o conhecimento através da ação, jun-</p><p>tamente com uma ação através do conhecimento- Não importa se</p><p>esses objetivos são conseguidos através da matemática, expe-</p><p>rimentação, observação ou reflexão filosófica e cientifica. Mas, por</p><p>enquanto, os termos “ciência” e “científico” estão ainda imbuídos de</p><p>um fetichismo e seu abandono é a condição sine qua non do co-</p><p>nhecimento. A psicologia social será incapaz de formular verda des</p><p>perigosas, enquanto ela aderir a esse fetichismo. Essa é sua princi-</p><p>pal limitação e é isso o que a força a preocupar-se com problemas</p><p>menores e a permanecer em segundo plano. Todas as ciências ver-</p><p>dadeiramente bem-sucedidas conseguiram produzir verdades peri-</p><p>gosas, pelas quais elas lutaram e cujas conseqüências elas previram.</p><p>É por isso que a psicologia social não poderá alcançar a verdadeira</p><p>165</p><p>idéia de uma ciência, a não ser que ela também se torne perigosa.</p><p>166</p><p>3 - HISTÓRIA E A ATUALIDADE DAS REPRESENTAÇÕES</p><p>SOCIAIS</p><p>1. O escândalo do pensamento social</p><p>Ouve-se muitas vezes falar que a boa ciência deveria começar</p><p>propondo conceitos definidos clara e meticulosamente. Na verda-</p><p>de, nenhuma ciência, mesmo a mais exata, procede dessa manei ra.</p><p>Ela começa juntando, ordenando e diferenciando fenômenos que</p><p>surpreendem a todos, porque são perturbadores e exóticos, ou</p><p>constituem um escândalo. Mas, para pessoas que vivem em uma</p><p>cultura como a nossa, que apregoa a ciência e a razão, há poucas</p><p>coisas tão escandalosas como as crenças, superstições ou precon-</p><p>ceitos que são partilhados por milhões de pessoas; ou en tão o es-</p><p>cândalo das ideologias, aqueles conjuntos, como diz Marx, de “qui-</p><p>meras, dogmas, seres imaginários” que obscurecem os verdadei-</p><p>ros determinantes da situação humana e as autênticas motivações</p><p>da ação humana. Com certeza nós nos tornamos mais tolerantes,</p><p>hoje, em relação às crenças religiosas que assumem a imortalida-</p><p>de da alma, a reencarnação das pessoas, a eficácia da oração, ou</p><p>muitas outras coisas que nosso conhecimento da humanidade e da</p><p>natureza não abarca. Basta olhar para publicações populares para</p><p>ser surpreendido pela quantidade de pessoas em nossa sociedade</p><p>que lê seus horóscopos, consulta pessoas que curam pela fé, ou</p><p>consome remédios miraculosos. Do mesmo modo, podemos ob-</p><p>servar a intensidade com que a magia é praticada em nosso meio,</p><p>em nossas cidades e mesmo em nossas universidades. Os que re-</p><p>correram a essas coisas não são os socialmente desajustados das</p><p>camadas pouco instruídas da sociedade, como poderíamos crer,</p><p>mas as pessoas instruídas, os engenheiros e até mesmo os douto-</p><p>res. Pensemos naquelas empresas de “alta tecnologia” que recru-</p><p>tam seu pessoal empregando testes grafológicos ou astrológicos.</p><p>Longe de querer ocultar tais atividades, muitos dos praticantes</p><p>dessa magia apresentam-se na televisão e publicam livros que</p><p>conseguem um número de leitores bem maior que qualquer texto</p><p>escolar.</p><p>169</p><p>167</p><p>Tais coisas, que nos parecem estranhas e perturbadoras, têm</p><p>também algo a nos ensinar sobre a maneira como as pessoas pen-</p><p>sam e o que as pessoas pensam. Tomemos, por exemplo, essa es-</p><p>tranha e desconhecida doença, Aids. As conversações e a mídia</p><p>foram rápidas em se apoderar dela e, imediatamente, a cataloga-</p><p>ram como a doença vingadora de uma sociedade permissiva. A</p><p>imprensa a representou como uma condenação de “comporta-</p><p>mentos degenerados”, a punição de uma “sexualidade irrespon-</p><p>sável”. A Conferência dos Bispos do Brasil se colocou contra a</p><p>campanha para o uso de preservativos, descrevendo a Aids como</p><p>“uma conseqüência da decadência moral”, a “punição de Deus” e a</p><p>“resposta da natureza”. Houve também uma série de publica-</p><p>ções afirmando que o vírus tinha sido produzido pela CIA para ex-</p><p>terminar populações indesejáveis e assim por diante. Esse exem-</p><p>plo mostra (como outros poderiam mostrar do mesmo modo) a fre-</p><p>qüência com que circulam idéias ou imagens incríveis e alarman-</p><p>tes que não podem ser detidas nem pelo bom senso nem pela lógi-</p><p>ca. E evidente que um tipo de funcionamento mental que confirme</p><p>claramente essa irracionalidade fez nascer muita pesquisa. E isso</p><p>nos conduz ao cerne da questão.</p><p>Podemos sintetizar os resultados de tal pesquisa dizendo que,</p><p>não para nossa grande surpresa, eles mostram que a maior parte</p><p>das pessoas prefere explicações populares a explicações cientifi-</p><p>cas, fazendo correlações enganadoras que fatos objetivos são in-</p><p>capazes de corrigir. Em geral as correlações não levam em consi-</p><p>deração as estatísticas que desempenham papel tão amplo em</p><p>nossas decisões e discussões cotidianas. Distorcem a informação</p><p>que lhes é acessível. Além disso, como já foi dito repetidamente</p><p>sem que ninguém contestasse, as pessoas aceitam acima de tudo</p><p>aqueles fatos ou percebem aqueles comportamentos que confir-</p><p>mam suas crenças habituais. E as pessoas procedem assim mes mo</p><p>quando sua experiência lhes diz “está errado” e a razão lhe diz “é</p><p>um absurdo”. Deveríamos tomar tudo isso com moderação, ar-</p><p>gumentando que as pessoas são vitimas de preconceito, são en-</p><p>ganadas por alguma ideologia ou forçadas por algum poder? Não,</p><p>os fatos são por demais generalizados para que nos contentemos</p><p>com tais explicações e finjamos que não sentimos algum descon-</p><p>forto ao ver até que ponto o Homo sapiens, o único animal dotado</p><p>de razão, mostrou ser irracional.</p><p>É possível compreender esses fatos, repito, mas sem deixar de</p><p>pensar que eles têm conseqüências para as relações entre as pes-</p><p>168</p><p>soas, para as opções políticas, para as atitudes com respeito a ou-</p><p>tros grupos e para a experiência do dia-a-dia. Poderia continuar</p><p>trazendo à consideração o racismo, as guerras étnicas, a comuni-</p><p>cação de massa e assim por diante. Mas a questão mais chocante é</p><p>a seguinte: Por que as pessoas pensam de maneiras não-lógicas e</p><p>não-racionais? Uma questão preocupante, muito preocupante.</p><p>Sem dúvida alguma, é uma questão que compete à psicologia so-</p><p>cial e necessito explicar brevemente por que assim é.</p><p>A partir do ponto de vista do individuo, houve uma concor-</p><p>dância, penso que desde Descartes, em que as pessoas têm a ca-</p><p>pacidade de pensar corretamente sobre a evidência a elas apre-</p><p>sentada pelo mundo externo. Por um lado, estão em uma posição</p><p>de distinguir a informação acessível e, por outro lado, a partir do</p><p>conjunto de premissas referentes à informação, as pessoas sabem</p><p>como chegar a determinada conclusão . Seria, supõe-se, uma ques-</p><p>tão de seguir regras lógicas, das quais a mais importante é a da</p><p>não-contradição. Desde que tal raciocínio e conclusão sejam cor-</p><p>retos, pode-se também considerar que o modo como as regras e</p><p>procedimentos lógicos foram aplicados fornece a melhor explica-</p><p>ção das crenças persistentes e do conhecimento. Mas a partir do</p><p>momento que se percebe que o raciocínio é falso e a conclusão é</p><p>errada, deve-se procurar outras causas para a má aplicação das re-</p><p>gras, causas não-lógicas que podem explicar por que os indivíduos</p><p>cometem erros. Entre essas causas estão, em primeiro lugar, os</p><p>problemas afetivos, mas, sobretudo, as influências sociais que irão</p><p>submeter o aparato psíquico a pressões externas. As influências</p><p>sociais irão encorajar as pessoas a ceder diante dos hábitos, ou</p><p>afastar-se do mundo externo, de tal modo que sucumbam aos en-</p><p>ganos ou à satisfação de uma necessidade imaginada.</p><p>Descobrimos, por conseguinte, uma dualidade que está na</p><p>raiz da maioria das explicações nesse campo pode ser descrita em</p><p>poucas palavras: nossas faculdades individuais de percepção e</p><p>observação do</p><p>tam-</p><p>bém uma contribuição que é amplamente difundida por todo o</p><p>mundo.</p><p>Nessa discussão sobre os paradigmas em psicologia social,</p><p>Moscovici vai à frente afirmando que:</p><p>Conceitos que operam em grandes profundidades parecem</p><p>necessitar mais de cinqüenta anos para penetrar as camadas mais</p><p>baixas da comunidade cientifica. É por isso que muitos de nós es-</p><p>tamos apenas agora começando a perceber o sentido de</p><p>certas idéias que estiveram germinando na sociologia, psi-</p><p>cologia e antropologia, desde o limiar desse século (Mosco-</p><p>vici, 1984b: 941).</p><p>É essa constelação de idéias que forma o foco para alguns dos</p><p>ensaios dessa coleção (ver especialmente os capítulos 3 e 6 e a en-</p><p>trevista no capítulo 7), dentro dos quais a teoria das representa-</p><p>ções sociais tomou forma.</p><p>Para compreender a especificidade da contribuição de Mos-</p><p>covici é importante lembrar, em primeiro lugar, de tudo aquilo</p><p>contra o qual sua inovação psicossociológica reagiu. A revolução</p><p>cognitiva, na psicologia, iniciada na década de 1950, legitimou a</p><p>introdução de conceitos mentalistas, que tinham sido proscritos</p><p>pelas formas mais militantes do comportamentalismo, que domi-</p><p>nou a primeira metade do século vinte e, subseqüentemente, as</p><p>idéias de representações foram o elemento central na emergência</p><p>da ciência cognitiva, nas duas últimas décadas. Mas a partir desta</p><p>perspectiva, a representação foi geralmente vista num sentido</p><p>muito restrito, como uma construção mental dum objeto externo.</p><p>Embora isso tenha permitido o desenvolvimento dum cálculo in-</p><p>formacional, em que representações foram termos centrais, o ca-</p><p>ráter social, ou simbólico, das representações raramente figurou</p><p>20</p><p>em tais teorias. Para retornar, por um momento, ao exemplo do</p><p>mapa da Europa, embora formas contemporâneas de ciência cog-</p><p>nitiva possam reconhecer o deslocamento de Praga nas represen-</p><p>tações populares, elas não possuem conceitos com os quais pos-</p><p>sam compreender o significado desse deslocamento, nem as in-</p><p>fluências dos processos sociais que subjazem a ele. Na melhor das</p><p>hipóteses, tal deslocamento irá aparecer como uma das muitas</p><p>“distorções” do pensamento comum, que foram documentadas</p><p>em teorias de cognição social. Mas enquanto tais teorias em psi-</p><p>cologia social tenham discutido “distorções” como exemplos de</p><p>como o pensamento comum se afasta da lógica sistemática da ci-</p><p>ência, do ponto de vista das representações sociais elas são vistas</p><p>como formas de conhecimento produzidas e sustentadas por gru-</p><p>pos sociais específicos, numa determinada conjuntura histórica</p><p>(cf. Farr, 1998).</p><p>Conseqüentemente, enquanto as formas “clássicas” de psico-</p><p>logia cognitiva (incluindo a cognição social, que se tomou a forma</p><p>contemporânea predominante de psicologia social) tratam a re-</p><p>presentação como um elemento estático da organização cogniti-</p><p>va, na teoria da representação social o próprio conceito de repre-</p><p>sentação possui um sentido mais dinâmico, referindo-se tanto ao</p><p>processo pelo qual as representações são elaboradas, como às es-</p><p>truturas de conhecimento que são estabelecidas. Na verdade, é</p><p>através dessa articulação da relação entre processo e estrutura, na</p><p>gênese e organização das representações, que a teoria oferece, na</p><p>psicologia social, uma perspectiva distinta daquela da cognição</p><p>social (cf. Jovchelovitch, 1996). Para Moscovici, a fonte dessa relação</p><p>está na função das próprias representações. Fazendo eco a formu-</p><p>lações anteriores de McDougal e Bartlett, Moscovici argumenta</p><p>que “o propósito de todas as representações é tomar algo não-</p><p>familiar, ou a própria não-familiaridade, familiar” (cf. capitulo 1). A</p><p>familiarização é sempre um processo construtivo de ancoragem e</p><p>objetivação (cf. capítulo 1), através do qual o não-familiar passa a</p><p>ocupar um lugar dentro de nosso mundo familiar. Mas a mesma</p><p>operação que constrói um objeto dessa maneira é também consti-</p><p>tutiva do sujeito (a construção correlativa do sujeito e objeto na</p><p>dialética do conhecimento foi também um traço característico da</p><p>psicologia genética de Jean Piaget e do estruturalismo genético de</p><p>Lucien Goldman). As representações sociais emergem, não</p><p>apenas como um modo de compreender um objeto particular, mas</p><p>21</p><p>também como uma forma em que o sujeito (indivíduo ou gru po)</p><p>adquire uma capacidade de definição, uma função de identidade,</p><p>que é uma das maneiras como as representações expressam um</p><p>valor simbólico (algo que também empresta à noção de famili-</p><p>arização de Moscovici uma inflexão que é distinta da de McDou gall</p><p>ou Bartlett). Nas palavras de Denise Jodelet, colega durante muito</p><p>tempo de Moscovici, a representação é uma “forma de co-</p><p>nhecimento prático [savoir] conectando um sujeito a um objeto”</p><p>(Jodelet, 1989: 43), e ela continua dizendo que “quantificar esse</p><p>conhecimento como ‘prático ’ refere-se à experiência a partir da</p><p>qual ele é produzido, aos referenciais e condições em que ele é</p><p>produzido e, sobretudo, ao fato de que a representação é empre-</p><p>gada para agir no mundo e nos outros” (Jodelet, 1989: 43-44).</p><p>As representações são sempre um produto da interação e co-</p><p>municação e elas tomam sua forma e configuração específicas a</p><p>qualquer momento, como uma conseqüência do equilíbrio especifico</p><p>desses processos de influência social. Há uma relação sutil, aqui, en-</p><p>tre representações e influências comunicativas, que Moscovici</p><p>identifica, quando ele define uma representação social como:</p><p>Um sistema de valores, idéias e práticas, com uma dupla</p><p>função: primeiro, estabelecer uma ordem que possibilitará</p><p>as pessoas orientar-se em seu mundo material e social e</p><p>controlá-lo; e, em segundo lugar, possibilitar que a comunica-</p><p>ção seja possível entre os membros de uma comunidade, fo r-</p><p>necendo-lhes um código para nomear e classif icar, sem am-</p><p>bigüidade, os vários aspectos de seu mundo e da sua histó-</p><p>ria individual e social (1976: xiii) .</p><p>A relação entre representação e comunicação pode bem ser o</p><p>aspecto mais controverso da teoria de Moscovici e em seu próprio</p><p>livro ela está expressa, de forma muito clara, na segunda parte de</p><p>seu estudo La Psychanalyse, a análise das representações na</p><p>mídia francesa, como mostrei acima (e esse é um ponto devido ao</p><p>qual uma compreensão da teoria das representações sociais foi di-</p><p>ficultada de maneira muito séria, pela falta duma tradução inglesa</p><p>do texto, como notou Willem Doise (1993); essa secção do livro ra-</p><p>ramente figurou nas discussões anglo-saxãs da teoria).</p><p>Em relação à psicologia cognitiva, não é difícil ver por que es-</p><p>sa concepção deva ser controversa, pois a força duradoura da i-</p><p>déia de psicologia como uma ciência natural, concentrada em pro-</p><p>22</p><p>cessos segregados da influência poluidora do social, tornou im-</p><p>pensável a idéia de que nossas crenças, ou ações, possam ser for-</p><p>madas fora de tais influências.</p><p>É claro que a psicologia de Moscovici não é a primeira a pro-</p><p>por tal tema. A psicanálise de Freud, por exemplo, procurou as</p><p>origens dos pensamentos nos processos libidinais, que, especial-</p><p>mente para a escola das relações objetais, refletem as primeiras</p><p>experiências da criança no mundo dos outros (Jovchelovìtch,</p><p>1996). Mead também pode ser considerado como tendo feito uma</p><p>argumentação semelhante, em sua análise do desenvolvimento do</p><p>self (ver Moscovici, 1990b). Mas o trabalho de Moscovici não enfoca</p><p>as origens libidinais de nossos pensa mentos (embora Lucien</p><p>Goldmann, 1996, tenha construído um paralelo sugestivo entre a</p><p>organização das construções psicanalíticas e as sociais), nem está</p><p>ele fundamentalmente interessado com as fontes interpessoais do</p><p>self seu foco principal foi argumentar não apenas que a criação</p><p>coletiva está organizada e estruturada em termos de representa-</p><p>ções, mas que essa organização e estrutura é tanto conformada</p><p>pelas influências comunicativas em ação na sociedade, como, ao</p><p>mesmo tempo, serve para tornar a comunicação possível. As represen-</p><p>tações podem ser o produto da comunicação, mas também é verda-</p><p>de que, sem a</p><p>mundo externo são capazes de produzir conheci-</p><p>mento verdadeiro, enquanto fatores sociais provocam distorções</p><p>e desvios em nossas crenças e em nosso conhecimento do mundo.</p><p>Detenhamo-nos por um instante sobre a natureza vaga dessa</p><p>dualidade e examinemos as três maneiras em que é expressa.</p><p>Primeiro, pela idéia de que alguém atinge os verdadeiros proces-</p><p>sos do conhecimento quando esses processos são pensados den-</p><p>tro do individuo, independentemente de sua cultura e, concre-</p><p>tamente, de qualquer cultura. Nesse sentido, como escreve Geli-</p><p>169</p><p>ner, “cultura, um conjunto partilhado de idéias, válido simples-</p><p>mente porque elas constituem os bancos conceituais conjuntos de</p><p>costumes de uma comunidade em ação, é rejeitada. É rejeitada</p><p>porque é uma cultura. Sua origem social e comum é sua mácula</p><p>fatal” (1992: 18).</p><p>Em segundo lugar, há a convicção, expressa principalmente</p><p>na psicologia da massa, que as pessoas reunidas em um grupo po-</p><p>dem ser consideradas como sofrendo mudanças em suas qualida-</p><p>des psíquicas, perdendo algumas e adquirindo outras. Ou, mais</p><p>precisamente, assume-se que as pessoas se comportam de ma-</p><p>neira correta e racional quando sozinhas, mas tornam-se imorais e</p><p>irracionais quando agem em grupo (Moscovici, 1985). Finalmen-</p><p>te e mais recentemente, à luz da pesquisa que mencionei antes, a</p><p>pessoa comum, o “noviço”, tem a tendência de desprezar a infor-</p><p>mação dada, de pensar de maneira estereotipada, não conseguin-</p><p>do levar em conta os erros a que isso induz. Em outras palavras, a</p><p>pessoa comum é, como dizem, um miserável, cognitivamente fa-</p><p>lando (“cognitive miser”).</p><p>Aqui está uma imagem pouco lisonjeira da maneira como as</p><p>pessoas pensam e agem quando colocadas juntas na sociedade a</p><p>que pertencem. Não creio em um tipo de debilidade mental que é</p><p>invocada e reconhecida através do que se parece a um conjunto</p><p>de crenças habituais, de desvios ou distorções de nosso conheci-</p><p>mento do mundo que surpreende ou escandaliza. Mas o fato é que</p><p>isso se apresenta como os sintomas de uma psicopatologia de ori-</p><p>gem social. Devo acrescentar que isso não é uma metáfora, lem-</p><p>brando que a psicologia social foi, por muito tempo, igualada, por</p><p>esse motivo, a psicologia patológica. Isto é expresso no próprio ti-</p><p>tulo de uma famosa revista dos Estados Unidos: o Journal of Ab-</p><p>normal and Social Psychology.</p><p>Essa associação provém também, e talvez principalmente, do</p><p>fato de que psicólogos como Freud, Jung e Janet, que tanto contri-</p><p>buíram para a psicopatologia, dedicaram também importantes li-</p><p>vros e artigos à psicologia coletiva. Era evidente para eles, como</p><p>para muitos outros, que o pensamento normal dos grupos tem sua</p><p>contrapartida nas anomalias mentais dos indivíduos. E isso vale</p><p>para as massas civilizadas, as assim chamadas sociedades primiti-</p><p>vas ou religiões exóticas. Embora falemos sobre isso de maneira</p><p>menos clara, ou sejamos menos conscientes disso, essa relação en-</p><p>tre pensamento coletivo e pensamento patológico está também ins-</p><p>crita em nossas teorias e métodos de observação. Isso significa que</p><p>170</p><p>finalmente razão e sociedade ou cultura são antitéticas. Como uma</p><p>conseqüência, a auto-suficiência total do individuo acaba sendo re-</p><p>presentada como a situação de referência e a norma, enquanto a as-</p><p>sociação de indivíduos na unidade social se toma uma situação de-</p><p>rivada, uma situação de dependência em relação a um ambiente</p><p>que modifica essa norma em um sentido positivo ou negativo.</p><p>Ao curso dessa discussão, contudo, há algo que seguramente</p><p>nos ajudará a surpreender-nos, o que me obriga a fazer um comen-</p><p>tário adicional. Nós não apenas aceitamos que é absolutamente</p><p>normal que exista uma dualidade entre as formas de pensamento</p><p>não-social e as formas de pensamento e de crença compartilhadas.</p><p>Nós também assumimos que os conceitos e leis das primeiras ser-</p><p>vem como a referência para as Ultimas. Como observam Wyer</p><p>&Stull (1984), “Esse raciocínio significa que os processos impli-</p><p>cados em lidar cognitivamente com acontecimentos não-sociais</p><p>são mais simples e conceitualmente mais fundamentais que os</p><p>processos implicados nos acontecimentos sociais. O estudo do pro-</p><p>cessamento cognitivo no contexto dos estímulos não-sociais fornece</p><p>um fundamento sobre o qual os princípios sociais cognitivos mais</p><p>complexos podem ser construídos” (p. 25). E desse pressuposto,</p><p>o mais limitador e também o mais desprovido de fundamento, que</p><p>nós necessitamos tentar nos libertar. De qualquer modo, é somen-</p><p>te no contexto de uma psicologia diferente que nós podemos eluci-</p><p>dar os sentidos dessas formas de pensamento e crença comuns.</p><p>É também acertado mostrar que as coisas estão mudando. A</p><p>supremacia do social é mais e mais reconhecida nos campos da</p><p>epistemologia, linguagem e psicologia social. Pessoalmente, estou</p><p>convencido de que essa é uma tendência que irá se aprofun dar.</p><p>Entretanto, não teria escrito esse capitulo se não estivesse con-</p><p>vencido que não é suficiente reconhecer a supremacia do social</p><p>como se isso fosse uma esmola, mesmo no sentido de um consenso</p><p>geral. Acima de tudo, nós precisamos recuperar a perspectiva teó-</p><p>rica que pode iluminar esses fenômenos surpreendentes como</p><p>uma parte normal de nossa cultura e de nossa vida em sociedade.</p><p>Tomando tudo em consideração, é uma questão de reformular a</p><p>polaridade do individuo e da sociedade em termos mais claros e</p><p>definidos com mais precisão.</p><p>2 . Uma noção anti-cartesiana: representações coletivas</p><p>Parece-me que nada do que disse até agora me distancia do</p><p>171</p><p>que é hoje conhecido como a psicologia do social. O problema não</p><p>é escolher entre a supremacia do individuo ou da sociedade, é algo</p><p>mais concreto. Está relacionado com a explicação dos fenômenos</p><p>da crença, da religião ou magia, do conhecimento comum e popu-</p><p>lar, das formas ideológicas de pensamento e ação coletiva. Para</p><p>começar, por que a sociedade cria tais crenças e idéias, sejam elas</p><p>contas ou não? Depois, por que são elas aceitas e transmitidas de</p><p>uma geração a outra? Mesmo que a natureza social de nosso pen-</p><p>samento, linguagem e assim por diante seja reconhecida na psico-</p><p>logia, o que não é o caso nos dias de hoje, o problema seria coloca-</p><p>do nos mesmos termos e os que o discutem e continuarão a discu-</p><p>ti-lo teriam, de algum modo, de resolvê-la Não é possível buscar</p><p>refúgio nas trivialidades da intersubjetividade ou das construções</p><p>lingüísticas. E eu penso que a cognição social continuará a ser tudo,</p><p>menos convincente, porque não se confrontou com esse problema.</p><p>Sou, portanto, levado, hoje, a reconhecer esse fato simples e</p><p>evidente, embora não sem sentido. Deixando a psicanálise á parte,</p><p>que relacionou a psicologia coletiva e a psicologia individual atra-</p><p>vés do inconsciente, apenas a linha de pensamento que se de-</p><p>senvolveu na direção da teoria das representações dedicou-se se-</p><p>riamente à solução do problema. E isso acontece quase um século</p><p>depois que o aparecimento de suas primeiras noções exigissem a</p><p>autonomia de nossa psicologia para a própria solu ção. Note-se</p><p>que, em uma era em que os rótulos mudam tão rapidamente e</p><p>onde cada um pode romper tão radicalmente quanto possível com</p><p>o passado, eu hesito em apelar para uma linha de pensamento que</p><p>começou com as próprias ciências humanas e que forma, por as-</p><p>sim dizer, parte de seu código genético. Mas pode-se também pen-</p><p>sar que o fato de ela persistir, o fato de ser necessário retomar a</p><p>essa linha de pensamento sem ser limitado por nenhuma tradição</p><p>de escola alguma, significa que ela atinge algo fundamental e pre-</p><p>cioso na maneira como as pessoas vivem.</p><p>A teoria das representações sociais é singular, parece-me, de-</p><p>vido ao fato de esta teoria tender mais e mais na direção de se tor-</p><p>nar uma teoria geral dos fenômenos sociais e uma teoria especifica</p><p>dos fenômenos psíquicos. Esse paradoxo, como veremos, não se dá</p><p>por acaso; pelo contrário, provém da natureza profunda das coisas.</p><p>É uma teoria geral à medida que, dentro do que lhe compete, uma</p><p>sociedade não poderia ser</p><p>representação, não haveria comuni cação. Precisa-</p><p>mente devido a essa interconexão, as representações podem tam-</p><p>bém mudar a estabilidade de sua organização e estrutura depende</p><p>da consistência e constância de tais padrões de comu nicação, que</p><p>as mantêm. A mudança dos interesses humanos pode gerar</p><p>novas formas de comunicação, resultando na inovação e na emer-</p><p>gência de novas representações. Representações, nesse sentido,</p><p>são estruturas que conseguiram uma estabilidade, através da</p><p>transformação duma estrutura anterior.</p><p>Se a perspectiva oferecida pela teoria das representações so-</p><p>ciais foi, em geral, contrastada muito acentuadamente com a cor-</p><p>rente em voga da disciplina, para que pudesse emergir daí um diá-</p><p>logo construtivo (embora um interesse nesse diálogo esteja come-</p><p>çando a emergir nos EE.UU. (cf. Deaux & Philogene, 2000), o que foi</p><p>tanto mais surpreendente, como mais decepcionante, foi a re-</p><p>cepção da teoria entre aquelas correntes de pensamento sociopsi-</p><p>cológico, que tinham sido suas vizinhas nessa terra de sombras</p><p>marginal. Com algumas exceções marcantes (por exemplo, Billig,</p><p>1988, 1993; Harré, 1984, 1998, que entraram num diálogo de enga-</p><p>jamento construtivo a partir das perspectivas retóricas e discursi-</p><p>23</p><p>vas), a maioria dos comentários, fora da corrente em voga, foram</p><p>contrários, ou mesmo hostis, à teoria das representações sociais</p><p>(ver, por exemplo, o catálogo de objeções, na recente contribuição</p><p>de Potter & Edwards, 1999). Não há espaço, aqui, para oferecer</p><p>uma relação sistemática de todas as criticas levantadas contra o</p><p>trabalho de Moscovici, mas um enfoque sobre alguns temas cen-</p><p>trais irá não apenas dar o tom das questões levantadas, mas tam-</p><p>bém elaborar um pouco mais algumas das características centrais</p><p>da própria teoria.</p><p>Em certo sentido, como mencionei anteriormente, o trabalho</p><p>de Moscovici foi parte da perspectiva européia em psicologia so-</p><p>cial, que emergiu nas décadas de 196O e 197O. Olhando para esse</p><p>trabalho agora, contudo, podem-se notar também as diferenças</p><p>dentro desse enfoque “europeu”. Por exemplo, a coleção editada</p><p>por Israel e Tajfel (1972, um trabalho muitas vezes citado como a</p><p>fonte central da visão européia, e para o qual o capitulo 2 dessa co-</p><p>leção foi uma contribuição de Moscovici), aparece agora como</p><p>sendo caracterizada mais pela diversidade de seus pontos de vista</p><p>do que por um espírito critico comum entre os colaboradores.</p><p>Algumas das criticas mais fortes à teoria das representações so-</p><p>ciais vieram de Gustav Jahoda (1988; ver também a resposta de</p><p>Moscovici, 1988), que pertence à mesma geração de psicólogos</p><p>sociais de Moscovici, e que apresentou sua própria contribuição á</p><p>tradição “européia”. Para Jahoda, longe de ajudar a iluminar os</p><p>problemas da psicologia social, a teoria das representações sociais -</p><p>serviu antes para obscurecê-los. De modo particular, ele acha a te-</p><p>oria vaga na construção de seus conceitos, uma acusação que foi</p><p>um tema importante nas discussões sobre representações sociais,</p><p>que veio à tona de novo recentemente num comentário mais sim-</p><p>pático de Jan Smedslund (1998; ver também Duveen, 1998).</p><p>O fato de uma teoria ser vaga é, na verdade, em grande parte,</p><p>uma questão de ponto de vista. Onde um escritor acha que uma</p><p>teoria necessita tanto de precisão, que não chega a apresentar</p><p>nada mais que uma série de quimeras. Para outros escritores, a</p><p>mesma teoria pode abrir novos caminhos para discutir antigos</p><p>problemas. Desse modo, Jahoda sugere que, desprovida de sua</p><p>retórica, a teoria das representações sociais pouco contribuiu,</p><p>além do que já está contido na psicologia social tradicional das ati-</p><p>tudes. Mas, como mostraram Jaspars e Fraser (1984), embora a</p><p>formulação original do conceito de atitudes sociais, na obra de</p><p>Thomas & Znaniecki (1918/1920), pudesse ter algumas similarida-</p><p>24</p><p>des importantes como conceito de representações sociais, o con-</p><p>ceito de atitude sofreu, ele próprio, uma transformação considerá-</p><p>vel nas teorias sociopsicológicas subseqüentes. Nessa transfor-</p><p>mação, a idéia de atitude foi despojada de seu conteúdo e de suas</p><p>origens sociais e simbólicas. Na psicologia social contemporânea,</p><p>as atitudes aparecem como disposições cognitivas ou motivacio-</p><p>nais, de tal modo que a idéia duma conexão inerente entre comu-</p><p>nicação e representação evaporou. Se a pesquisa em representa-</p><p>ções sociais continuou a empregar alguma tecnologia da mensu-</p><p>ração da atitude, ela procurou referenciar essas atitudes como</p><p>parte duma estrutura representacional maior (ver também a dis-</p><p>cussão das relações entre atitudes e representações na entrevista</p><p>no capitulo7).</p><p>A partir de outra perspectiva, as co rrentes mais radicais da</p><p>teoria do discurso, em psicologia social (por exemplo, Potter &</p><p>Edwards, 1999), objetaram contra a própria idéia de representa-</p><p>ção, como sendo um anexo tardio da psicologia cognitiva “moder-</p><p>nista”. Desse ponto de vista, todos os processos sociopsicológicos</p><p>se explicam nos efeitos do discurso e nas realizações e reformula-</p><p>ções fugazes da identidade que ele sustenta. E apenas a atividade</p><p>do discurso que pode ser o objeto de estudo, nessa forma de psico-</p><p>logia social, e qualquer fala sobre estrutura e organização no nível</p><p>cognitivo se apresenta como uma concessão à hegemonia dos mo-</p><p>delos de processamento da informação (e pouco importa a es ses</p><p>críticos que a teoria das representações sociais tenha sempre in-</p><p>sistido no caráter simbólico da cognição; ver também os comen-</p><p>tários de Moscovici na entrevista do capitulo 7). Aqui, o fato de a</p><p>teoria das representações sociais ser vaga deve-se ao seu afasta-</p><p>mento insuficientemente radical dum discurso “mentalista”, mas,</p><p>como observou Jovchelovitch (1996), a pressa em evacuar o men-</p><p>tal do discurso da psicologia social está conduzindo a uma re-cria-</p><p>ção duma forma de comportamentalismo.</p><p>Apesar de tudo o que seus críticos possam sugerir, a teoria</p><p>das representações sociais se mostrou suficientemente clara e</p><p>precisa para apoiar e manter um crescente corpo de pesquisa,</p><p>através de diversas áreas da psicologia social. Na verdade, a partir</p><p>dum ponto de vista diverso, poder-se-ia argumentar que a pesqui-</p><p>sa em representações sociais contribuiu tanto quanto qualquer</p><p>25</p><p>outro trabalho em psicologia social, senão mais, para nossa com-</p><p>preensão dum amplo espectro de fenômenos sociais (tais como o</p><p>entendimento público da ciência, idéias populares sobre saúde e</p><p>doença, concepções de loucura, ou o desenvolvimento de identi-</p><p>dades de gênero, para nomear apenas alguns poucos). Contudo, a</p><p>insistência com que a acusação de ser vaga foi apresentada contra</p><p>a teoria merece alguma consideração a mais. Alguma compreen-</p><p>são do que se quer com essa caracterização da teoria pode ser</p><p>identificada considerando -se alguns dos estudos centrais de</p><p>pesquisa que ela inspirou. Além do próprio estudo de Moscovici</p><p>sobre as representações da psicanálise, o estudo de Denise Jodelet</p><p>(1989/1991; ver também capítulo 1) sobre as representações</p><p>sociais da loucura numa aldeia francesa oferece um segundo e-</p><p>xemplo paradigmático de pesquisa nesse campo. Metodologica-</p><p>mente, esses dois estudos adotam enfoques bastante diferentes</p><p>(mostrando a importância do que Moscovici chamou de signifi-</p><p>cância do “politeísmo metodológico”). Moscovici empregou mé-</p><p>todos de levantamento e analise de conteúdo, enquanto o estudo</p><p>de Jodelet se baseou na etnografia e entrevistas. O que ambos os</p><p>estudos partilham, contudo, é uma estratégia de pesquisa similar,</p><p>em que o passo inicial é o estabelecimento duma distância critica</p><p>do mundo cotidiano do senso comum, em que as representa-</p><p>ções circulam. Se as representações sociais servem para familiari-</p><p>zar o não-familiar, então a primeira tarefa dum estudo cientifico</p><p>das representações é tornar o familiar não-familiar, a fim de que</p><p>elas possam ser compreendidas como fenômenos e descritas atra-</p><p>vés de toda técnica metodológica que possa ser adequada nas cir-</p><p>cunstâncias específicas. A descrição,</p><p>é claro, nunca é indepen dente</p><p>da teorização dos fenômenos e, nesse sentido, a teoria das repre-</p><p>sentações sociais fornece o referencial interpretativo tanto para</p><p>tornar as representações visíveis, como para tomá-las inteligíveis</p><p>como formas de prática social.</p><p>A questão de uma teoria ser vaga pode ser vista como sendo,</p><p>em grande parte, um problema metodológico, pois ela se refere,</p><p>fundamentalmente, àquilo que diferentes perspectivas sociopsi-</p><p>cológicas tornam visível e inteligível. Com respeito a isso, diferentes</p><p>perspectivas em psicologia social operam com critérios e con-</p><p>dições diferentes. Armado com o aparato conceptual da psicologia</p><p>social tradicional, alguém irá lutar para não ver nada mais que</p><p>atitudes, do mesmo modo que a perspectiva discursiva irá revelar</p><p>26</p><p>apenas os efeitos do discurso nos processos sociopsicológicos.</p><p>Cada um desses enfoques opera dentro dum universo teórico mais</p><p>ou menos hereticamente lacrado. Dentro de cada perspectiva,</p><p>há uma ordem conceptual que traz claridade e estabilidade á co-</p><p>municação dentro dela (cada perspectiva, podemos dizer, “esta-</p><p>belece seu próprio código para intercâmbio social”). O que perma-</p><p>nece fora duma perspectiva particular mostra-se vago e o precur-</p><p>sor de desordem. Esse fato, na verdade, não é mais que uma ex-</p><p>pressão da permanente crise na disciplina da psicologia social que</p><p>continua a existir como um conjunto de “paradigmas solitários”. O</p><p>reconhecimento desse estado de coisas, por si mesmo, não confe re</p><p>status especial, ou privilegiado, à teoria das representações so-</p><p>ciais. O que dá ao trabalho de Moscovici seu particular interesse e a</p><p>razão pela qual ele continua a exigir atenção é que seu trabalho</p><p>em representações sociais forma parte dum empreendimento</p><p>mais amplo para estabelecer (ou re-estabelecer) os fundamentos</p><p>para uma disciplina que é tanto social, como psicológica.</p><p>5. Para uma psicologia social genética</p><p>A partir desse ponto de vista, é importante situar os estudos</p><p>de Moscovici, sobre representações sociais, dentro do contexto de</p><p>seu trabalho como um todo, pois é como parte duma contribuição</p><p>mais ampla à psicologia social que esse trabalho permanece de</p><p>capital importância. Já aludi ao sentido como seu trabalho expres-</p><p>sou um espírito critico e inovador em relação á disciplina e nesse</p><p>sentido ele também contribuiu para uma reavaliação critica mais</p><p>ampla das formas dominantes de psicologia social, que começou</p><p>na década de 1960 e foi, por um tempo, associada a uma perspec-</p><p>tiva distintivamente européia da disciplina (algo desse espírito</p><p>critico é evidente em muitos dos capítulos dessa coleção, mas par-</p><p>ticularmente no capítulo 2 e na entrevista do capítulo 7). O que</p><p>marcou a contribuição de Moscovici como inovadora foi o fato de</p><p>que ela não se limitou a uma crítica negativa das fraquezas e limi-</p><p>tações das formas predominantes de psicologia social, mas sem-</p><p>pre procurou, em vez disso, elaborar uma alternativa positiva. A</p><p>esse respeito, é também importante reconhecer que, embora a</p><p>teoria das representações sociais tenha sido um ce ntro de seu</p><p>esforço teórico, o trabalho de Moscovici estendeu-se, numa ampli-</p><p>tude maior, através da psicologia social, abrangendo estudos de</p><p>27</p><p>psicologia da multidão, conspiração e decisões coletivas, bem co-</p><p>mo o trabalho sobre influência social. Em todas essas contribui-</p><p>ções encontra-se alguma inspiração em ação, uma forma parti-</p><p>cular do que pode ser descrito como a “imaginação sociopsicológi-</p><p>ca”. Se o trabalho de Moscovici pode ser visto como oferecendo</p><p>uma perspectiva distinta em psicologia social, ela é uma perspec-</p><p>tiva que é mais ampla que o que é conotado simplesmente pelo</p><p>termo representações sociais, embora esse termo tenha sido, mui-</p><p>tas vezes, tomado como emblemático dessa perspectiva.</p><p>O próprio Moscovici raramente aventurou -se em esforços</p><p>para articular as interconexões entre essas diferentes áreas de</p><p>trabalho (embora a entrevista no capitulo 7 ofereça alguns pen-</p><p>samentos importantes). Em parte, isso reflete o fato de que cada</p><p>uma dessas áreas de trabalho foi articulada através de procedi-</p><p>mentos metodológicos diferentes. Seus estudos de influência soci-</p><p>al e processos de grupo, por exemplo, foram rigorosamente expe-</p><p>rimentais, enquanto seu estudo sobre multidão se inspirou numa</p><p>análise crítica das primeiras conceptualizações da psicologia das</p><p>massas. Em parte, isso pode também refletir a razão pela qual</p><p>esses estudos enfocam diferentes níveis de análise, desde a intera-</p><p>ção face a face, até a comunicação de massa e a circulação de idéi-</p><p>as coletivas. Todos esses estudos, contudo, parecem estar “grávi-</p><p>dos” das idéias que foram articuladas ao redor do conceito de re-</p><p>presentações sociais, de tal modo que um focar sobre esse concei-</p><p>to pode indicar algo de sua perspectiva subjacente. Com respeito a</p><p>isso, o ensaio sobre Proust, no capitulo 5, oferece um estudo ilu-</p><p>minador das imbricações das relações entre influência e represen-</p><p>tação. Outro exempla é sua análise crítica da discussão de Weber</p><p>sobre a ética protestante em The Invention of Society (Moscovici,</p><p>1988/1993).O que é claro em ambos os ensaios é que a influên-</p><p>cia é sempre dirigida à sustentação, ou à mudança, das represen-</p><p>tações, enquanto, inversamente, representações especificas se</p><p>tornam estabilizadas através de um equilíbrio conseguido num</p><p>modelo particular de processos de influência. Aqui, como nos estu-</p><p>dos de tomada de decisão nos grupos, é a relação entre comunica-</p><p>ção e representação que é central.</p><p>Em seu livro sobre influência social, Moscovici (1976) identi-</p><p>ficou a perspectiva que ele descreveu como uma “psicologia</p><p>28</p><p>socialgenética”, para enfatizar o sentido em que os processos de</p><p>influência emergiram nos intercâmbios comunicativos entre as</p><p>pessoas. O emprego do termo “genético” faz ecoar o sentido que</p><p>lhe foi dado tanto por Jean Piaget, como por Lucien Goldmann. Em</p><p>todas essas instâncias, estruturas especificas somente podem ser</p><p>entendidas como as transformações de estruturas anteriores (ver o</p><p>ensaio sobre themata - temas 7 - capitulo 4 desta publicação). Na</p><p>psicologia social de Moscovici, é através dos intercâmbios comu-</p><p>nicativos que as representações sociais são estruturadas e trans-</p><p>formadas. É essa relação dialética entre comunicação e represen-</p><p>tação que está no cento da “imaginação sociopsicológica” de Mos-</p><p>covici e é a razão para se descrever essa perspectiva como uma</p><p>psicologia social genética (cf. Duveen & Lloyd, 1990). Em todos os</p><p>intercâmbios comunicativos, há um esforço para compreender o</p><p>mundo através de idéias especificas e de projetar essas idéias de</p><p>maneira a influenciar outros, a estabelecer certa manei ra de criar</p><p>sentido, de tal modo que as coisas são vistas desta ma neira, em</p><p>vez daquela. Sempre que um conhecimento é expres so, é por</p><p>determinada razão; ele nunca é desprovido de interes se. Quan-</p><p>do Praga é localizada a leste de Viena, certo sentido de mundo e</p><p>um conjunto particular de interesses humanos estão sendo</p><p>projetados. A procura de conhecimentos nos leva de volta ao tu-</p><p>multo da vida humana e da sociedade humana; é aqui que o co-</p><p>nhecimento toma aparência e forma através da comunicação e,</p><p>ao mesmo tempo, contribui para a configuração e formação</p><p>dos intercâmbios comunicativos. Através da comunicação, so-</p><p>mos capazes de nos ligar a outros ou de distanciar-nos deles.</p><p>Esse é o poder das idéias, e a teoria das representações sociais de</p><p>Moscovici procurou tanto reconhecer um fenômeno social especí-</p><p>fico, como fornecer os meios para torná-lo inteligível como um</p><p>processo sociopsicológico.</p><p>Gerard Duveen</p><p>29</p><p>29</p><p>O FENÔMENO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS</p><p>1. O pensamento considerado como ambiente</p><p>1.1 Pensamento primitivo, ciência e senso comum</p><p>A crença em que o pensamento primitivo - se tal termo é ain-</p><p>da aceitável - está baseado é uma crença no “poder ilimitado da</p><p>mente” em conformar a realidade, em penetrá-la e ativá-la e em</p><p>determinar</p><p>o curso dos acontecimentos. A crença em que o pen-</p><p>samento científico moderno está baseado é exatamente o oposto,</p><p>isto é, um pensamento no “poder ilimitado dos objetos” de confor-</p><p>mar o pensamento, de determinar completamente sua evolução e</p><p>de ser interiorizado na e pela mente. No primeiro caso, o pensa-</p><p>mento é visto como agindo sobre a realidade; no segundo, como</p><p>uma reação à realidade; numa, o objeto emerge como uma réplica</p><p>do pensamento; na outra, o pensamento é uma réplica do objeto; e</p><p>se para o primeiro, nossos desejos se tornam realidade - ou “wish--</p><p>ful thinking” - então, para o segundo, pensar passa a ser transfor-</p><p>mar a realidade em nossos desejos, despersonalizá-los. Mas sendo</p><p>que as duas atitudes são simétricas, elas somente podem ter a</p><p>mesma causa e uma causa com a qual nós já estávamos familiari-</p><p>zados há muito tempo: o medo instintivo do homem de poderes</p><p>que ele não pode controlar e sua tentativa de poder compensar</p><p>essa impotência imaginativamente. Sendo esta a única diferença,</p><p>enquanto a mente primitiva se amedronta diante das forças da na-</p><p>tureza, a mente científica se amedronta diante do poder do pensa-</p><p>mento. Enquanto a primeira nos possibilitou sobreviver por mi-</p><p>lhões de anos e a segunda conseguiu isso em poucos séculos, de-</p><p>vemos aceitar que ambas, a seu modo, representam um aspecto</p><p>real da relação entre nossos mundos internos e externos; um as-</p><p>pecto, além disso, que vale a pena ser investigado.</p><p>30</p><p>A psicologia social é, obviamente, uma manifestação do pen-</p><p>samento científico e, por isso, quando estuda o sistema cognitivo</p><p>ela pressupõe que:</p><p>1. os indivíduos normais reagem a fenômenos, pessoas ou acon-</p><p>tecimentos do mesmo modo que os cientistas ou os estatísti-</p><p>cos, e</p><p>2. compreender consiste em processar informações.</p><p>Em outras palavras, nós percebemos o mundo tal como é e to-</p><p>das nossas percepções, idéias e atribuições são respostas a estí-</p><p>mulos do ambiente físico ou quase-físico, em que nós vivemos. O</p><p>que nos distingue é a necessidade de avaliar seres e objetos corre-</p><p>tamente, de compreender a realidade completamente; e o que dis-</p><p>tingue o meio ambiente é sua autonomia, sua independência com</p><p>respeito a nós, ou mesmo, poder-se-ia dizer, sua indiferença com</p><p>respeito a nós e a nossas necessidades e desejos. O que era tido</p><p>como vieses cognitivos, distorções subjetivas, tendências afetivas</p><p>obviamente existem. Como nós, todos estamos cientes disso, mas</p><p>eles são concretamente vieses, distorções e tendências em rela-</p><p>ção a um modelo, a regras, tidas como norma.</p><p>Parece-me, contudo, que alguns fatos comuns contradizem</p><p>esses dois pressupostos:</p><p>a) Primeiro, a observação familiar de que nós não estamos</p><p>conscientes de algumas coisas bastante óbvias; de que nós não</p><p>conseguimos ver o que está diante de nossos olhos. É como se</p><p>nosso olhar ou nossa percepção estivessem eclipsados, de tal mo-</p><p>do que uma determinada classe de pessoas, seja devido a sua ida-</p><p>de - por exemplo, os velhos pelos novos e os novos pelos velhos -</p><p>ou devido a sua raça - p. ex. os negros por alguns brancos, etc. - se</p><p>tomam invisíveis quando, de fato, eles estão “nos olhando de fren-</p><p>te”. É assim que um arguto escritor negro descreve tal fenômeno:</p><p>Eu sou um homem invisível. Não, eu não sou um fantasma como</p><p>os que espantaram Edgar Allan Poe; nem sou eu um de vos-</p><p>sos ectoplasmas dos cinemas de Hollywood. Eu sou um ho-</p><p>mem concreto, de carne e osso, fibra e líquidos – e de mim</p><p>pode-se até dizer que tenho inteligência. Eu sou invisível,</p><p>entenda-se, simplesmente porque as pessoas recusam ver-</p><p>me. Como a cabeça sem corpo, que às vezes se vê em circos,</p><p>acontece como se eu estivesse cercado de espelhos de vidro</p><p>grossa e que distorcem a figura. Quando eles se aproximam</p><p>de mim, eles vêem apenas o que me cerca, se vêem eles</p><p>31</p><p>mesmos, ou construções de sua imaginação – na realidade,</p><p>tudo, exceto eu mesmo (Ellison, 1965: 7).</p><p>Essa invisibilidade não se deve a nenhuma falta de informação</p><p>devida à visão de alguém, mas a uma fragmentação preestabeleci-</p><p>da da realidade, uma classificação das pessoas e coisas que a com-</p><p>preendem, que faz algumas delas visíveis e outras invisíveis.</p><p>b) Em segundo lugar, nós muitas vezes percebemos que</p><p>alguns fatos que nós aceitamos sem discussão, que são básicos a</p><p>nosso entendimento e comportamento, repentinamente trans-</p><p>formam-se em meras ilusões. Por milhares de anos os homens</p><p>estavam convencidos que o sol girava ao redor de uma terra pa-</p><p>rada. Desde Copérnico nós temos em nossas mentes a imagem</p><p>de um sistema planetário em que o sol permanece parado,</p><p>enquanto a terra gira a seu redor; contudo, nós ainda vemos o que</p><p>nossos antepassados viam. Distinguimos, pois, as aparências da</p><p>realidade das coisas, mas nós as distinguimos precisamente por-</p><p>que nós podemos passar da aparência à realidade através de al-</p><p>guma noção ou imagem.</p><p>c) Em terceiro lugar nossas reações aos acontecimentos, nos-</p><p>sas respostas aos estímulos, estão relacionadas a determinada de-</p><p>finição, comum a todos os membros de uma comunidade à qual</p><p>nós pertencemos. Se, ao dirigirmos pela estrada, nós encontramos</p><p>um carro tombado, uma pessoa ferida e um policial fazendo um</p><p>relatório, nós presumimos que houve um acidente. Nós lemos</p><p>diariamente sobre colisões e acidentes nos jornais a respeito dis-</p><p>so. Mas esses são apenas “acidentes” porque nós definimos assim</p><p>qualquer interrupção involuntária no andamento de um carro que</p><p>tem conseqüências mais ou menos trágicas. Sob outros aspectos,</p><p>não existe nada de acidental, quanto a um acidente de automóvel.</p><p>Sendo que os cálculos estatísticos nos possibilitam avaliar o nú-</p><p>mero de vítimas, de acordo com o dia da semana e da localidade,</p><p>os acidentes de carro não são mais casuais que a desintegração</p><p>dos átomos em uma aceleração sob alta pressão; eles estão direta-</p><p>mente relacionados a um grau de urbanização de uma dada socie-</p><p>dade, à velocidade e ao número dos seus carros particulares e à</p><p>inadequação do seu transporte público.</p><p>Em cada um desses casos, notamos a intervenção de repre-</p><p>sentações que tanto nos orientam em direção ao que é visível,</p><p>como àquilo a que nós temos de responder; ou que relacionam a</p><p>32</p><p>aparência á realidade; ou de novo aquilo que define essa realida-</p><p>de. Eu não quero dizer que tais representações não correspondem</p><p>a algo que nós chamamos o mundo externo. Eu simplesmente per-</p><p>cebo que, no que se refere á realidade, essas representações são</p><p>tudo o que nós temos, aquilo a que nossos sistemas perceptivos,</p><p>como cognitivos, estão ajustados. Bower escreve:</p><p>Nós geralmente usamos nosso sistema perceptivo para interpretar</p><p>representações de mundos que nós nunca podemos ver. No</p><p>mundo feito por mãos humanas em que vivemos, a percepção das re-</p><p>presentações é tão importante como a percepção dos obj e-</p><p>tos reais. Por representação eu quero dizer um conjunto de estímulos</p><p>feitos pelos homens, que têm a finalidade de servir como um</p><p>substituto a um sinal ou som que não pode ocorrer natu-</p><p>ralmente. Algumas representações funcionam como substitutos de</p><p>estímulos; elas produzem a mesma experiência que o mundo na-</p><p>tural produziria (Bower, 1977: 58).</p><p>De fato, nós somente experienciamos e percebemos um</p><p>mundo em que, em um extremo, nós estamos familiarizados com</p><p>coisas feitas pelos homens, representando outras coisas feitas pe-</p><p>los homens e, no outro extremo, com substitutos por estímulos</p><p>cujos originais, seus equivalentes naturais, tais como partículas ou</p><p>genes, nós nunca veremos. Assim que nos encontramos, por vezes,</p><p>em um dilema onde necessitamos um ou outro signo, que nos auxili-</p><p>ará a distinguir uma representação de outra, ou uma representa-</p><p>ção do que ela representa, isto é, um signo que nos dirá: “Essa é</p><p>uma representação”, ou “Essa não é uma representação.” O pintor</p><p>René Magritte ilustrou tal dilema com perfeição em um quadro em</p><p>que a figura de um cachimbo está contida dentro de uma figura que</p><p>também representa um cachimbo Nessa figura dentro da figura</p><p>podemos ler a mensagem: “Esse é um cachimbo”, que indica a dife-</p><p>rença entre os dois cachimbos. Nós nos voltamos então para o</p><p>cachimbo “real” flutuando no ar e percebemos que ele é real, en-</p><p>quanto o outro é apenas uma representação1. Tal interpretação,</p><p>contudo, é incorreta, pois ambas as figuras estão pintadas na</p><p>mesma tela, diante de nossos olhos. A idéia de que uma delas é</p><p>1 Nota do editor: Moscovici está se referindo a um quadro de Magritte, que pode não ser tio</p><p>familiar aos leitores, O famoso quadro data de 1926 e mostra uma simples imagem de um ca-</p><p>chimbo com a inscriç~o “Isso n~o é um cachimbo”, embaicho da pintura. Em 1966, ele pintou</p><p>outro quadro chamado Les deux mistéres (Os dois mistérios), em que o quadro de 1966 é mostra-</p><p>do em um cavalete, em uma sala vazia, com uma segunda imagem de um cachimbo flutuando no</p><p>ar, sobre ele. As questões sobre representação relacionadas a ambas as pinturas são extensa-</p><p>mente discutidas por Michel Foucault (1983).</p><p>33</p><p>uma figura que está, ela mesma, dentro de uma figura e por isso um</p><p>pouco “menos real” que a outra, é totalmente ilusória. Uma vez que</p><p>se chegou a um acordo de “entrar na moldura”, nós já estamos com-</p><p>prometidos: temos de aceitar a imagem como realidade. Continua</p><p>contudo a realidade de uma pintura que, exposta em um museu e</p><p>definida como um objeto de arte, alimenta o pensamento, provoca</p><p>uma reação estética e contribui para nossa compreensão da arte</p><p>da pintura.</p><p>Como pessoas comuns, sem o benefício dos instrumentos ci-</p><p>entíficos, tendemos a considerar e analisar o mundo de uma ma-</p><p>neira semelhante; especialmente quando o mundo em que vive-</p><p>mos é totalmente social. Isso significa que nós nunca conseguimos</p><p>nenhuma informação que não tenha sido destorcida por re-</p><p>presentações “superimpostas” aos objetos e às pessoas que lhes</p><p>dão certa vaguidade e as fazem parcialmente inacessíveis. Quando</p><p>contemplamos esses indivíduos e objetos, nossa predisposição</p><p>genética herdada, as imagens e hábitos que nós já aprendemos, as</p><p>suas recordações que nós preservamos e nossas categorias cultu-</p><p>rais, tudo isso se junta para fazê-las tais como as vemos. Assim, em</p><p>última análise, elas são apenas um elemento de uma cadeia de rea-</p><p>ção de percepções, opiniões, noções e mesmo vidas, organizadas</p><p>em uma determinada seqüência É essencial relembrar tais lu gares</p><p>comuns quando nos aproximamos do domínio da vida mental na</p><p>psicologia social. Meu objetivo é reintroduzi-los aqui de uma ma-</p><p>neira que, espero, seja frutífera.</p><p>1.2 A natureza convencional e prescritiva das representações</p><p>De que modo pode o pensamento ser considerado como um</p><p>ambiente (como atmosfera social e cultural)? Impressionistica-</p><p>mente, cada um de nós está obviamente cercado, tanto individu-</p><p>almente como coletivamente, por palavras, idéias e imagens que</p><p>penetram nossos olhos, nossos ouvidos e nossa mente, quer quei-</p><p>ramos quer não e que nos atingem, sem que o saibamos, do mesmo</p><p>modo que milhares de mensagens enviadas por ondas eletromag-</p><p>néticas circulam no ar sem que as vejamos e se tomam palavras em</p><p>um receptor de telefone, ouse tomam imagens na tela da televisão.</p><p>Tal metáfora, contudo, não é realmente adequada. Vejamos se po-</p><p>34</p><p>demos encontrar uma maneira melhor de descrever como as re-</p><p>presentações intervêm em nossa atividade cognitiva e até que pon-</p><p>to elas são independentes dela, ou, pode-se dizer, até que ponto a</p><p>determinam. Se nós aceitamos que sempre existe certa quantidade,</p><p>tanto de autonomia, como de condicionamento em cada ambiente,</p><p>seja natural ou social - e no nosso caso em ambos - digamos que as</p><p>representações possuem precisamente duas funções:</p><p>a) Em primeiro lugar, elas convencionalizam os objetos, pes-</p><p>soas ou acontecimentos que encontram. Elas lhes dão uma forma</p><p>definitiva, as localizam em uma determinada categoria e gradual-</p><p>mente as colocam como um modelo de determinado tipo, distinto e</p><p>partilhado por um grupo de pessoas. Todos os novos elementos se</p><p>juntam a esse modelo e se sintetizam nele. Assim, nós passamos a</p><p>afirmar que a terra é redonda, associamos comunismo com a cor</p><p>vermelha, inflação como decréscimo do valor do dinheiro. Mesmo</p><p>quando uma pessoa ou objeto não se adéquam exatamente ao mo-</p><p>delo, nós o forçamos a assumir determinada forma, entrar em deter-</p><p>minada categoria, na realidade, a se tornar idêntico aos outros, sob</p><p>pena de não ser nem compreendido, nem decodificado.</p><p>Bartlett conclui, a partir de seus estudos sobre percepção,</p><p>que:</p><p>Quando uma forma de representação co mum e já conven-</p><p>cional está em uso antes que o signo seja introduzido, exi s-</p><p>te uma forte tendência para características particulares d e-</p><p>saparecerem e para que todo o signo seja assimilado em uma forma</p><p>mais familiar. Assim “o pisca-pisca” quase sempre é identifi-</p><p>cado a uma forma comum e regular de ziguezague e “quei-</p><p>xo” perdeu seu ângulo bastante agudo, tornando-se mais</p><p>semelhante a representações convencionais dessa caracte-</p><p>rística (Bartlett, 1961: 106).</p><p>Essas convenções nos possibilitam conhecer o que represen-</p><p>ta o que: uma mudança de direção ou de cor indica movimento ou</p><p>temperatura, um determinado sintoma provém, ou não, de uma</p><p>doença; elas nos ajudam a resolver o problema geral de saber</p><p>quando interpretar uma mensagem como significante em relação</p><p>a outras e quando vê-la como um acontecimento fortuito ou casu-</p><p>al. E esse significado em relação a outros depende ainda de um</p><p>número de convenções preliminares, através das quais nós pode-</p><p>mos distinguir se um braço é levantado para chamar a atenção,</p><p>para saudar um amigo, ou para mostrar impaciência. Algumas ve-</p><p>zes é suficiente simplesmente transferir um objeto, ou pessoa, de</p><p>35</p><p>um contexto a outro, para que o vejamos sob nova luz e para sa-</p><p>bermos se eles são, realmente, os mesmos. O exemplo mais provo-</p><p>cante foi o apresentado por Marcel Duchamp que, a partir de 1912,</p><p>restringiu sua produção cientifica em assinar objetos já prontos e</p><p>que, com esse único gesto, promoveu objetos fabricados ao status</p><p>de objetos de arte. Um outro exemplo não menos chocante é o dos</p><p>criminosos de guerra que são responsáveis por atrocidades que não</p><p>serão facilmente esquecidas. Os que os conheceram, contudo, e que</p><p>tinham familiaridade com eles tanto durante como depois da guer-</p><p>ra, elogiaram sua humanidade e sua gentileza, assim como sua efi-</p><p>ciência tradicional, comparando-os aos milhares de indivíduos</p><p>tranqüilamente empregados em trabalhos burocráticos.</p><p>Esses exemplos mostram como cada experiência é somada a</p><p>uma realidade predeterminada por convenções, que claramente</p><p>define suas fronteiras, distingue mensagens significantes de men-</p><p>sagens não-significantes e que liga cada parte a um todo e coloca</p><p>cada pessoa em uma categoria distinta. Nenhuma mente está livre</p><p>dos efeitos de condicionamentos anteriores que lhe são impostos</p><p>por suas representações, linguagem ou cultura Nós pensamos atra-</p><p>vés de uma linguagem; nós organizamos nossos pensamentos, de</p><p>acordo com um sistema que está condicionado, tanto por nossas</p><p>representações, como por nossa cultura. Nós vemos apenas o que</p><p>as convenções subjacentes nos permitem ver e nós permanece-</p><p>mos inconscientes dessas convenções. A esse respeito, nossa po -</p><p>sição é muito semelhante à da tribo étnica africana, da qual Evans-</p><p>Pritchard escreveu:</p><p>Nessa rede de crenças, cada fio depende dos outros fios e</p><p>um Zande não pode deixar esse esquema, porque este é o única</p><p>mundo que ele conhece. A rede não é uma estrutura externa</p><p>em que ele esta preso. Ela é a textura de seu pensamento e</p><p>ele não pode pensar que seu pensamento esteja errado (Evans-</p><p>Pritchard, 1937: 199).</p><p>Podemos, através de um esforço, tornar-nos conscientes do</p><p>aspecto convencional da realidade e então escapar de algumas</p><p>exigências que ela impõe em nossas percepções e pensamentos.</p><p>Mas nós não podemos imaginar que podemos libertar-nos sempre</p><p>de todas as convenções, ou que possamos eliminar</p>

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