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<p>Copyright @ Viviane Mosé, 2013</p><p>Colaboração: Lucas Veiga</p><p>CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO</p><p>SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ</p><p>E73 A escola e os desafios contemporâneos / organização e</p><p>3* ed. apresentação Viviane Mosé. - 3a ed. - Rio de Janeiro:</p><p>Civilização Brasileira, 2014.</p><p>336 p . ; 21 cm.</p><p>Inclui bibliografia</p><p>ISBN 978-85-200-1208-6</p><p>1. Educação - Brasil. 2. Educação - Aspectos sociais.</p><p>3. Prática de ensino. 4. Professores e alunos.</p><p>CDD: 372.981</p><p>13-03338 CDU: 373.3(81)</p><p>EDITORA AFIUAOA</p><p>Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução,</p><p>armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através</p><p>de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.</p><p>Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da</p><p>Língua Portuguesa.</p><p>Direitos desta edição adquiridos pela EDITORA</p><p>CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA</p><p>um selo da EDITORA JO SÉ OLYMPIO LTDA.</p><p>Rua Argentina, 171 - 20921-380 - Rio de Janeiro, RJ -</p><p>Tel.: 2585-2000</p><p>Seja um leitor preferencial Record. Cadastre-se e</p><p>receba informações sobre nossos lançamentos e nossas</p><p>promoções.</p><p>Atendimento e venda direta ao leitor:</p><p>mdireto@recor.com.br ou (21) 2585-2002.</p><p>Impresso no Brasil</p><p>2014</p><p>mailto:mdireto@recor.com.br</p><p>3. A escola e a fragmentação da vida</p><p>Por que a escola prepara para a vida, em vez de ser a vida</p><p>exercida no presente? E por que o presente das crianças na</p><p>escola não é tam bém um exercício de cidadania, de respei</p><p>to a si m esm as, à vida e ao outro? Por que a escola não é</p><p>um espaço dem ocrático, de produção de conhecimentos,</p><p>de debates, de criação? Em vez disso, tem sido um presí</p><p>dio de alunos, um depósito de conteúdos impostos sem</p><p>muito sentido, um desrespeito aos saberes que os alunos já</p><p>trazem, um lugar onde as crianças não têm direito a voz.</p><p>N a prim eira metade do século X X , no Brasil, assim</p><p>como em todo o mundo, predominou a escola das cer</p><p>tezas, dedicada às elites, com professores muito bem-</p><p>íorm ados e que ofereciam uma educação clássica, voltada</p><p>para os grandes tem as da humanidade. Estudavam o que</p><p>havia de m ais erudito: latim, francês, história da arte,</p><p>literatura, filosofia, estética etc., em espaços amplos, com</p><p>grandes teatros e jardins. A educação era pública, mas</p><p>pouco acessível, poucos com pletavam o ginásio (hoje</p><p>segundo segmento do Ensino Fundamental), mas quem</p><p>conseguia com pletar possuía uma form ação básica muito</p><p>consistente.</p><p>47</p><p>A ESCOLA E OS D E S AF I OS C O N T E M P O R Â N E O S</p><p>Depois da Segunda Guerra, com a corrida desen-</p><p>volvimentista, nasce a escola das prom essas, a escola</p><p>para todos, que se afirmava como o meio de ascender</p><p>socialmente. Seguindo essa ideia, a segunda metade do</p><p>século XX foi marcada pela certeza de que a escola era o</p><p>melhor lugar para as crianças. Essa certeza se sustentava</p><p>na ideia iluminista de progresso, que prometia um mundo</p><p>melhor, dado pelas conquistas das ciências. Era por meio</p><p>do desenvolvimento científico que todas as mazelas seriam</p><p>curadas: no domínio do corpo, o fim da dor e da morte;</p><p>na sociedade, o fim da exploração e da violência; na na</p><p>tureza, o fim dos desastres ambientais etc. E o acesso ao</p><p>conjunto de bens viria através da educação. Esse modelo</p><p>técnico de escola se aliou à necessidade de uma educação</p><p>sem reflexão crítica, em função do medo da consciência</p><p>política e dos seus reflexos. Resultou que as promessas da</p><p>modernidade não se cumpriram. Instabilidade climática,</p><p>escassez de recursos naturais, superpopulação, crise eco</p><p>nômica, desemprego, violência.</p><p>Como o ensino básico dirigido às massas praticamente</p><p>não existia antes do século X IX , e surgiu para atender às</p><p>necessidades de mão de obra para a sociedade industrial,</p><p>a educação das massas no mundo se confundiu com uma</p><p>educação fragmentada, dividida, sem contexto. Se essa</p><p>escola na Europa chegou ainda no século X IX , foi somente</p><p>no século XX que chegou ao Brasil. Inspirada na linha</p><p>de montagem, que fragmentou o trabalho humano tendo</p><p>em vista o aumento da produtividade, essa escola, sem</p><p>a formação humanista presente na escola das elites, se</p><p>caracterizou pela fragmentação, pela segmentação como</p><p>48</p><p>I N T R O D U Ç Ã O</p><p>modo de ação, como método. Por ser uma escola feita</p><p>para as massas, nasceu não para se dedicar aos grandes</p><p>temas da humanidade, mas para oferecer uma formação</p><p>instrumental, voltada para o mercado; portanto, trata-se</p><p>de uma escola que não está voltada para o desenvolvimen</p><p>to humano, mas para o desenvolvimento da indústria. O</p><p>mais irônico é que mesmo as escolas privadas que formam</p><p>as elites terminaram adotando esse mesmo modelo.</p><p>A vida escolar, ainda hoje, organiza-se em séries, e</p><p>os saberes se dividem em diversos conteúdos isolados,</p><p>sem conexão uns com os outros, em aulas de cinquenta</p><p>minutos, que ainda se anunciam por um sinal sonoro que</p><p>lembra o apito das fábricas. Gramática, literatura, álgebra,</p><p>geometria, genética, citologia, ótica, mecânica, saberes</p><p>que são ministrados isoladamente, cada um retratando</p><p>um fragmento do saber que nunca se relaciona com os</p><p>outros e com a vida, que, em si mesma, é extremamente</p><p>articulada e complexa. Os conteúdos ficam tão fragmenta</p><p>dos que levam os alunos a acreditar que estudam para os</p><p>professores, para os pais, e não para si mesmos, para suas</p><p>vidas. Sem os grandes pátios e os teatros que as escolas</p><p>antigas possuíam, a escola de massas é dividida em inúme</p><p>ras salas e corredores, com pouco espaço de convivência,</p><p>com pouca circulação, um espaço que mais lembra um</p><p>reformatório. Mas também uma fábrica, com uma imensa</p><p>linha de montagem, uma absurda fábrica de pessoas.</p><p>Não bastasse tudo isso, outro fator vai se somar a esse:</p><p>o regime militar que passa a vigorar no Brasil a partir de</p><p>1964 e que, especialmente a partir de 1968, se configurará</p><p>como um regime de exceção, marcado pela perseguição</p><p>49</p><p>A E S C O L A E OS D E S A F I O S CO N T E M P O R Â N E O 5</p><p>política, pela censura, especialmente tendo como alvo</p><p>professores, intelectuais, estudantes, artistas. Com essa</p><p>herança a educação brasileira tornou-se refém de um</p><p>sistema disciplinar que eliminou a filosofia e os saberes re</p><p>flexivos e críticos e que teve na passividade, na submissão,</p><p>na repetição, no medo, o seu modelo de conduta. Não a</p><p>criatividade, a inteligência viva, mas o bom comportamen</p><p>to, a disciplina, a ordem. Sem contar as sequelas deixadas</p><p>na sociedade, em consequência especialmente do medo de</p><p>pensar, de se posicionar criticamente, instaurado por um</p><p>regime que perseguiu pessoas conscientes e cultas, proibiu</p><p>livros, restringiu condutas. Os professores, os estudantes</p><p>universitários e secundaristas, os artistas, os intelectuais</p><p>foram o grande alvo desse regime, e a formação dos jovens</p><p>e crianças foi a grande prejudicada. Durante vinte anos</p><p>foi proibido pensar na sociedade brasileira, especialmente</p><p>na escola, foco de resistência ao regime.</p><p>Com tudo isso, a escola acabou tornando-se um es</p><p>paço explicitamente afastado das questões que movem</p><p>a vida das pessoas e ainda mais distante dos desafios da</p><p>sociedade. Os jovens e as crianças, afastados das questões</p><p>humanas e sociais, das questões políticas, vão sendo trei</p><p>nados a ver o mundo apenas a partir de si mesmos, de sua</p><p>condição, que pode ser de “ vencedor” ou de “perdedor”,</p><p>de arrogância ou de revolta. M as raramente são estimu</p><p>lados a ler o mundo, a pensar essa sociedade, com sua</p><p>complexidade, com os seus jogos e suas contradições, e</p><p>quase nunca são convidados a ser atores nessa sociedade.</p><p>O que faz com que ou se alienem de tudo e busquem</p><p>a qualquer preço um lugar na lógica estabelecida pelo</p><p>50</p><p>I N T R O D U Ç Ã O</p><p>m ercado ou se revoltem contra essa lógica e destruam</p><p>aquilo que não sentem ter coragem ou capacidade para</p><p>transform ar. Talvez por isso existam tão poucas pessoas</p><p>dispostas a ler e a interferir, a transform ar a sociedade.</p><p>Essa falta de conexão da escola, tanto com a socie</p><p>dade quanto consigo m esm a, não é apenas prejudicial</p><p>para o desenvolvimento cognitivo dos alunos, que se dá</p><p>pela</p><p>capacidade de fazer relações cada vez m ais am plas e</p><p>com plexas, m as prejudica também as relações humanas, a</p><p>prática da justiça social, o exercício da cidadania, implica</p><p>diretamente o aumento do grau de angústia e solidão e</p><p>impulsiona cada vez m ais ao consumo de produtos, de</p><p>pessoas, de drogas lícitas e ilícitas. Participar da socieda</p><p>de, interferir em suas instâncias, construí-la, nos dá uma</p><p>sensação de pertencimento que nos fortalece e fortalece os</p><p>acordos. M as a escola foi se afastando dessa continuidade</p><p>e se baseando em um conhecimento dividido e abstrato.</p><p>N ão form am os pessoas, m as fragmentos desconec-</p><p>tados. E nos tornam os especialistas cada vez mais frag</p><p>mentados, desvinculados das grandes questões humanas,</p><p>sociais, p lanetárias. Vam os vivendo acoplados a uma</p><p>parcela tão pequena da realidade que chegamos a esque</p><p>cer quem som os, o que buscamos, e acabamos guiados</p><p>pelos desejos dos outros, dos mais espertos, dos que falam</p><p>mais alto... Aprendemos, quando muito, o específico, mas</p><p>ignoramos o todo, as múltiplas relações que cada coisa</p><p>estabelece com todas as outras, ignoramos o contexto.</p><p>Isso gerou um modelo de raciocínio que não consegue</p><p>conceber uma ação articulada, envolvendo várias outras</p><p>ações; que se satisfaz em opor o bem e o mal, o certo e</p><p>51</p><p>A ESCOLA E OS D E S A F I O S C O N T E M P O R Â N E O S</p><p>o errado, mas que não elabora, não raciocina; cuida do</p><p>urgente e ignora o essencial, porque não vê senão partes</p><p>isoladas, desconectadas. C om o esse m odelo escolar está</p><p>presente não apenas nas escolas públicas, m as também nas</p><p>particulares, esse raciocínio descontextualizado predomi</p><p>na em todas as classes sociais, tanto nas periferias quanto</p><p>nos bairros nobres. Predomina nas análises dos fatos feitas</p><p>por parte da imprensa, predom ina nos posicionamentos</p><p>da grande maioria de nossos líderes políticos, predomina</p><p>em muitas universidades.</p><p>A fragmentação do pensamento e do saber é o modo</p><p>mais eficiente de controle social, quer dizer, da submissão</p><p>de pessoas a um modelo excludente de sociedade. Sem a</p><p>capacidade de relacionar a experiência particular com o</p><p>todo da vida, sem a capacidade de articular o todo da</p><p>vida com um projeto social mais amplo, sem a capacidade</p><p>de relacionar esse projeto social com o planeta e a vida,</p><p>jovens e crianças terminam submetidos a processos e en</p><p>grenagens que os tornam tão pequenos e insignificantes</p><p>que não se sentem potentes para transformar aquilo que</p><p>os oprime. Temos direito a um raciocínio complexo, tanto</p><p>quanto temos direito à saúde, à alimentação, à moradia</p><p>etc. É por meio desse pensamento complexo que articulo</p><p>minha vida social, profissional, afetiva etc. e, como parte</p><p>do processo social, pessoal, humano, construo uma vida</p><p>/</p><p>sustentável para mim, para minha família e meus amigos,</p><p>para a cidade, para o planeta.</p><p>52</p>