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<p>Todos os direitos reservados. Copyright © 2017 para a língua portuguesa da</p><p>Casa Publicadora das Assembleias de Deus. Aprovado pelo Conselho de</p><p>Doutrina.</p><p>Preparação dos originais: Cristiane Alves</p><p>Capa: Fábio Longo</p><p>Projeto gráfico: Elisangela Santos</p><p>Editoração: Elisangela Santos</p><p>Projeto gráfico e editoração: Oséas F. Maciel</p><p>Produção de ePub: Cumbuca Studio</p><p>CDD: 240 – Moral cristã e teologia devocional</p><p>ISBN: 978-85-263-1458-0</p><p>ISBN digital: 978-85-263-1568-6</p><p>As citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Corrigida,</p><p>edição de 1995, da Sociedade Bíblica do Brasil, salvo indicação em</p><p>contrário.</p><p>Para maiores informações sobre livros, revistas, periódicos e os últimos</p><p>lançamentos da CPAD, visite nosso site: http://www.cpad.com.br</p><p>SAC — Serviço de Atendimento ao Cliente: 0800-021-7373</p><p>Casa Publicadora das Assembleias de Deus</p><p>Av. Brasil, 34.401, Bangu, Rio de Janeiro – RJ</p><p>CEP 21.852-002</p><p>1ª edição: Abril/2017</p><p>Às cinco mulheres da minha vida: minha mãe Esmeralda que, com ciência e</p><p>sabedoria soube me conduzir, tal como Lutero, “às portas do paraíso”.</p><p>Minha esposa Mirian pela paciência e compreensão das muitas horas que</p><p>declinei de sua insubstituível companhia, em função das leituras e preparo desta</p><p>obra.</p><p>Minhas filhas Elaine, Luciana e Claudia cujo meu amor é mais forte que minha</p><p>força.</p><p>Com amor dedico.</p><p>Existem homens e mulheres que brilham</p><p>como estrelas no firmamento e que somente são ofuscados pela luz do sol,</p><p>porém, sem serem vistos, continuam brilhando. Lutero é esta estrela</p><p>ofuscada pelo Sol da Justiça.</p><p>Existem homens e mulheres que brilham como estrelas no firmamento e que</p><p>somente são ofuscados pela luz do sol, porém, sem serem vistos, continuam</p><p>brilhando. Lutero é esta estrela ofuscada pelo Sol da Justiça.</p><p>Apresentação</p><p>Aqui, não está um livro sobre a Reforma Religiosa do século XVI. Faço essa</p><p>observação, pois quando se fala em Lutero, logo nos vem à mente o tema</p><p>Reforma. Falar de Lutero e não relacioná-lo ao tema é impossível. Martinho</p><p>Lutero transformou em sinônimo da Reforma. O seu nome também está ligado,</p><p>direta ou indiretamente, as Reformas da Europa ocorridas no referido século.</p><p>Não é caso deste livro, embora a Reforma apareça, às vezes, como pano de</p><p>fundo. Estaremos apresentando o homem Lutero, com suas crises, problemas,</p><p>frustrações, bem como suas vitórias e conquistas ao longo de sua vida.</p><p>Lutero não foi somente um homem do século XVI. Como um verdadeiro profeta,</p><p>ele vislumbrou práticas para a sociedade moderna e contemporânea: temos assim</p><p>uma apresentação de outro aspecto do reformador, isto é, a sua contribuição ou</p><p>legado para nossos dias.</p><p>Meu interesse por Lutero começou no fim da minha adolescência quando li,</p><p>creio que foi o primeiro texto, Heróis da Fé, do escritor Orlando Boyer, hoje</p><p>editado pela CPAD, em que mencionava vários homens e mulheres em suas</p><p>experiência impar com Deus e Lutero estava lá.</p><p>Os anos passaram e esse interesse nunca se apagou de minha mente, mas devido</p><p>meu envolvimento profissional e pastoral, tive que declinar-me de uma leitura</p><p>mais sistemática sobre o Reformador. Somente no início de 2000 reiniciei, posso</p><p>dizer compulsivamente, minhas leituras sobre este homem que marcou a</p><p>cristandade dos tempos modernos.</p><p>Um dos efeitos dessas leituras foram palestras que realizávamos. Este livro, em</p><p>verdade, é fruto das palestras e surge como resposta aos pedidos de publicação.</p><p>Assim nasceu a obra Lutero, Época, Vida, Legado.</p><p>Algumas considerações precisam ser alocadas:</p><p>Procuramos apresentar o tema numa perspectiva pastoral. Esperamos que esta</p><p>leitura possa trazer, de alguma forma, crescimento espiritual e enlevo para “as</p><p>coisas de cima”, pois sobre isso Lutero tem muito a nos dizer de sua própria</p><p>experiência com Deus. Sabemos que experiências é peculiar a cada um, no</p><p>entanto, somos um imã uns sobre outros, quer influenciando, quer recebendo</p><p>influência. E Lutero revelou-se por seu caráter, um grande influenciador.</p><p>A vida de Lutero apresenta-se com muitos “prós”, mas também com a existência</p><p>dos “contras”. Em minha exposição, é notória a ênfase nos aspectos positivos e</p><p>não negativos. Sabemos que ao longo destes 500 anos ele nos foi apresentado</p><p>desde um “javali selvagem” pisoteando a “seara do Senhor”, até ao extremo de</p><p>um santo que em seu nome se faziam orações ao “Apóstolo da liberdade”. De</p><p>minha parte, procurei destacar o seu lado bom de Lutero, mesmo sabendo de</p><p>suas limitações históricas tais como a questão dos camponeses, o seu</p><p>posicionamento sobre o casamento bígamo de Felipe de Hesse e a questão da</p><p>escravidão em sua época, para mencionar alguns exemplos. No entanto, se</p><p>colocarmos os prós e contras do reformador numa balança, veremos, em minha</p><p>opinião, que o pêndulo iria se inclinar-se em direção aos prós. Muitos dos seus</p><p>contras estão inseridos em seu contexto de época. Não podemos nos esquecer de</p><p>que as ideias de Lutero refletem a ideologia daquele tempo, mesmo tendo</p><p>avançado, em muitos aspectos. Leia, por exemplo, o conselho que ele dá aos</p><p>nobres, conselheiros das cidades e camponeses pouco tempo antes de eclodir a</p><p>revolta:</p><p>Por isso seria meu conselho sincero que se escolhessem dentre a nobreza alguns</p><p>margraves e senhores e dentre as cidades, alguns conselheiros para tratar e</p><p>resolver as questões de forma amigável [...] por outro lado, que os camponeses</p><p>aceitem conselhos, no sentido de suprimirem alguns artigos [trata-se dos Doze</p><p>Artigos do Campesinato da Suábia] que vão longe e alto demais.</p><p>Não estaria aqui, o embrião de um futuro sindicato? Uma questão para pensar!</p><p>Procurei apresentar um texto o mais informal possível, pois, objetivava o público</p><p>não especialista. Por isso optei, mesmo estando alicerçado na bibliografia, pela</p><p>ausência das fontes no livro texto e nos rodapés.</p><p>Fiz uma exposição predominantemente na primeira pessoa do singular,</p><p>procurando levar a leitura para uma espécie de conversação. Numa linguagem</p><p>simples, pessoal e direta ao leitor. Que nos perdoem os mais criteriosos ou</p><p>especialistas.</p><p>A obra se apresenta em três partes. É bom que se diga que essas partes estão</p><p>divididas simplesmente para tornar a exposição a mais didática possível, no</p><p>entanto, elas estão intimamente interligadas. Não se compreende Lutero de</p><p>forma coerente fora de seu contexto. O seu contexto, por sua vez, contribuía para</p><p>que ele projetasse uma crítica ferrenha às instituições. Quando Lutero faz a</p><p>crítica a que se propõem, apresenta a sua sugestão ou saída da situação que</p><p>acabara de criticar. É nesse momento que flui o seu legado. Em seu momento</p><p>histórico, por muitas vezes o reformador “fala no deserto”, no entanto, com o</p><p>tempo suas palavras ganham força, consistência e passam a ser praticadas.</p><p>Podemos citar, por exemplo, a sua reivindicação para que as missas fossem</p><p>realizadas no vernáculo. Pois bem, somente no Vaticano II foi estabelecido que a</p><p>missa poderia ser realizada na língua nativa. Com o tempo se torna clara a</p><p>distinção entre o certo e o errado. Geralmente um legado não surge em curto</p><p>prazo. Será que o Apóstolo Paulo ao escrever suas cartas aos romanos, por</p><p>exemplo, imaginava que elas constariam como partes do Cânon do Novo</p><p>Testamento? Com certeza a reposta seria: Não! O Apóstolo escrevia para as</p><p>igrejas da época com problemas específicos. O Cânon é uma evolução no qual</p><p>ele contribuiu. Trata-se também de seu legado.</p><p>Na primeira parte apresentaremos o contexto de Lutero, isto é, a época e local</p><p>em que viveu inserido: Europa do século XVI. Uma Europa caracterizada por</p><p>mudanças em todas as áreas do conhecimento humano. Uma Europa que vivia o</p><p>processo de crise final do Feudalismo e a formação de um novo modo de</p><p>produção: o Capitalismo. Disse formação: é o que se convencionou chamar de</p><p>época pré-capitalista. Nessa Europa em transformação, a Alemanha de Lutero</p><p>nos é apresentada no bojo da crise com a emergência das cidades buscando seu</p><p>espaço político diante de um imperador fraco e uma igreja em luta pela</p><p>continuidade do status quo.</p><p>Na parte seguinte da obra apresentamos o homem Lutero. Família, infância,</p><p>formação,</p><p>crianças e adolescentes</p><p>cantarem nas casas das famílias abastadas era comum, e que foi praticado por</p><p>Lutero para ajudar nos custeios de seus estudos.</p><p>Após a experiência com os Irmãos, seu pai o envia para Eisenach onde o velho</p><p>Hans contava com numerosas relações. Estava Lutero com 15 anos.</p><p>Eisenach</p><p>Neste momento, estamos adentrando numa nova caminhada ou fase na vida</p><p>conturbada do jovem e futuro reformador, que se estende até 1501. Em Eisenach</p><p>Lutero manteve contato com a Via Moderna — o nominalismo dos ockhamistas</p><p>— que influenciou sua posterior Teologia. Foram três anos de intensa atividade</p><p>estudantil. Matriculou-se e iniciou no que era conhecido por escola do Trívio,</p><p>pois se estudavam três disciplinas básicas: gramática, retórica e dialética.</p><p>Contava o jovem com o apoio do tio-avô, que era sacristão na igreja. Sem tempo</p><p>para dar assistência ao jovem estudante, Lutero continuava a cantar para as</p><p>pessoas abastarda da cidade. Foi neste local que conheceu Úrsula Cotta.</p><p>Lutero com aproximadamente 18 anos, e tendo o pai melhorado suas finanças, é</p><p>enviado para Erfurt.</p><p>Universidade de Erfurt</p><p>Em meados de 1501 chega a Erfurt, sob os ditames do pai com o obcecado</p><p>propósito de fazer do filho um bacharel em Direito. Erfurt era detentora de um</p><p>importante território do qual faziam parte 76 aldeias, divididas em sete distritos,</p><p>faltando pouco para um principado. Com uma população de 40 mil e com uma</p><p>universidade famosa. Era uma metrópole que contrastava com a Wittenberg de</p><p>Lutero. Na Universidade, predominava a corrente Nominalista também</p><p>conhecida como Via Moderna. O humanismo era forte nesta faculdade, inclusive</p><p>destronado a Teologia.</p><p>Havia também em Erfurt uma cidade dentro da cidade, que consistia numa</p><p>espécie de burgo onde morava a aristocracia eclesiástica, comendo e bebendo do</p><p>bom e do melhor. Nos dias da Reforma o povo invadiu o burgo, caçando os</p><p>“padrecos”. A cidade tinha mais de 90 igrejas e capelas e 36 mosteiros e</p><p>conventos. O desnível social era grande, pois os prelados não podiam ser</p><p>julgados por tribunais não religiosos. Somente a igreja poderia julgar os</p><p>religiosos, mesmo quando cometiam roubo, adultério ou até mesmo assassinatos.</p><p>Nada sabemos de Lutero diante deste quadro, certamente não participava, pois se</p><p>assim o fizesse seus opositores durante a Reforma, teriam feito uso dessas</p><p>informações.</p><p>Foi a Universidade de Erfurt que deu o maior apoio a Lutero e ao seu</p><p>movimento.</p><p>Era costume da faculdade o estudante, ao ingressar na formação universitária,</p><p>com vistas aos estudos de direito, teologia ou medicina, cursar primeiro, por dois</p><p>anos, o estudo das Artes Liberais, uma espécie de Faculdade de Filosofia.</p><p>Durante três anos Lutero cursa a Faculdade de Artes. É neste momento que</p><p>estuda a prática da época conhecida como quadrívio — geometria, aritmética,</p><p>música e astronomia. Também participa dos cursos de ética e metafísica. Em</p><p>1502 recebe o grau de Bacharel em Artes, hoje ao Bacharel em Filosofia. Foi o</p><p>30º entre os 57 candidatos. Em 1505, a 7 de janeiro, aos 22 anos, Lutero torna-se</p><p>Mestre em Artes, desta feita em 2º lugar. O título de Doutor ocorre em 1512. Em</p><p>tudo o que Lutero se propunha a fazer, fazia-o com dedicação. O pai, orgulhoso</p><p>do filho, passa a chamá-lo de “senhor”, deixando de lado o “tu”, e o presenteia</p><p>com uma valiosa obra Corpus Iuris, antevendo o filho na carreira de advogado,</p><p>secretário e conselheiro de príncipes. Na visão do pai as coisas caminhavam para</p><p>o seu grande propósito, porém, Deus tinha outros planos. Os colegas o tratam de</p><p>filósofo, mostrando já a sua inclinação para as letras. Daí para frente tinha três</p><p>opções: Medicina, Teologia e Direito. Lutero escolhe o curso de Direito,</p><p>influenciado pelo pai.</p><p>Quando o reformador estudava em Erfurt, o medo da morte era algo coletivo,</p><p>por isso Felipe Melanchthon registrou: “Empalidecíamos ao mero nome de</p><p>Cristo, porque somente nos era apresentado como um juiz severo, irritado contra</p><p>nós. Dizia-se que, no Juízo Final, nos pediria contas de nossos pecados, de</p><p>nossas penitências, de nossas obras. E posto que não pudéssemos arrepender-nos</p><p>o bastante, nem fazer obras suficientes, não nos restariam mais do que o terror e</p><p>o pavor de suas cóleras”... Lutero viveu no contexto da Peste Negra, em que a</p><p>morte estava sempre latente.</p><p>Em meados de 1505, com 22 anos, Lutero avisa à Universidade que vai visitar o</p><p>pai. Será uma visita de poucos dias. No dia 17 de julho, já em Erfurt, convoca os</p><p>amigos, na pequena moradia no internato universitário, e comunica que deixaria</p><p>a faculdade de Direito e ingressaria no convento agostiniano. Lutero foi um</p><p>estudante de Direito por cerca de três meses. No dia seguinte, à procura de uma</p><p>paz interior, ele ingressava no Convento dos Eremitas Agostiniano de Erfurt.</p><p>Por que essa mudança repentina? Seguem algumas possibilidades: 1º) O medo</p><p>da morte, um dos seus amigos havia falecido de forma trágica; 2º) Lutero quase</p><p>morrera quando em visita a seus pais em junho; 3º) Dois de seus irmãos haviam</p><p>morrido da peste que assolara a Europa; 4º) Havia rumores que o próprio Lutero</p><p>estava doente, certamente vítima da peste que ainda assolava a Europa; e 5º) Em</p><p>sua volta certa vez para a casa, relata que foi surpreendido por uma grande</p><p>tempestade e prometera a Santa Ana, padroeira dos mineiros, que iria para o</p><p>convento caso se salvasse dessa situação. A ida para o convento foi para Lutero a</p><p>tentativa de uma reconciliação com Deus.</p><p>Hans sem alternativa, ante a determinação do filho, consente contra sua própria</p><p>vontade e o sonho de ter um filho advogado termina.</p><p>Lutero optou pelo agostiniano devido à seriedade e rigidez de suas regras, as</p><p>quais seguiam à risca com total submissão. Ele disse posteriormente “fui</p><p>verdadeiramente um frade piedoso e segui as regras de minha ordem com mais</p><p>severidade do que eu posso dizer. Se jamais houve frade que entrasse no céu por</p><p>seu espírito fradesco, eu de certo seria um dele”</p><p>O Frade no Convento</p><p>Aos 22 anos, numa manhã de segunda feira, em 17 de julho de 1505, o Convento</p><p>dos Eremitas dos Agostinianos, recebia aquele que seria o divisor da história do</p><p>cristianismo moderno ou na expressão de Melanchton, o “apóstolo Paulo dos</p><p>tempos modernos”: Martinho Lutero. Várias lendas e vaticínios correrão sobre</p><p>ele. John Huss, ao ser queimado na fogueira da Inquisição, em 1415, teria dito</p><p>em alta voz ao carrasco: “Vais assar um ganso (o nome Huss significa ganso na</p><p>língua Boêmia), porém dentre de um século surgirá um cisne que não poderão</p><p>nem assar e nem ferver”</p><p>Martin Pollich de Melrichstadt, reitor a Universidade de Wittenberg, em 1509,</p><p>afirmou sobre Lutero: “Esse monge desconcertará todos os doutores, formulará</p><p>uma nova doutrina e reformará a Igreja. Ele se apoia nas obras dos profetas e dos</p><p>apóstolos; cinge-se à Palavra de Cristo; e eis o que nem a Filosofia, nem a</p><p>Sofística, nem os Albertinistas, nem os Tomistas, conseguirão entravar”. O frade</p><p>Johannes Hilten, havia caindo “numa geladeira”, isto é, sem nenhuma atividade,</p><p>pois havia dito que no ano de 1516, aconteceria uma grande transformação e o</p><p>fim do mundo. Posteriormente essa previsão foi associada à Reforma</p><p>empreendida por Lutero, o que se enganara por um ano.</p><p>Vamos acompanhar Lutero em sua “nova vida” tal como ele assim pensava.</p><p>Segui-lo vai descortinar para nós um Lutero religioso, preso a normas e regras na</p><p>tentativa de agradar a Deus, com uma “consciência cativa” aos ditamos de seus</p><p>superiores. Não será uma vida inspiradora, e sim de sofrimento pelo sofrimento,</p><p>na medida em que não atendia aos seus anseios espirituais. Tal como o jovem do</p><p>Evangelho de Lucas que procura Jesus para saber o que deveria fazer para entrar</p><p>no Reino, Lutero achava que “fazendo” algo para Deus seria aceito. A prática</p><p>das “boas obras” por si só seria suficiente, assim pensava. Alguns anos terão que</p><p>passar para que o reformador tenha uma compreensão bíblica e reveladora do</p><p>que seriam as boas obras em Deus. Aproximadamente 20 anos depois,</p><p>escrevendo sobre o assunto já distante da vida monástica de Erfurt, em 1520,</p><p>revelou que a “principal”</p><p>das boas obras é “crer em Cristo”. Os judeus</p><p>perguntam a Jesus, “que faremos para executarmos as obras de Deus?”. Ele</p><p>relembra as palavras do Mestre: “A obra de Deus é esta: que creias naquele que</p><p>por ele é enviou”. (Jo 6.27,28) Pois nesta obra, conclui Lutero, é que todas as</p><p>obras precisam realizar-se.</p><p>Não temos muitas informações nesta nova fase em sua vida. O que sabemos nos</p><p>vem de seus próprios colegas, e do próprio Lutero, embora com certa cautela,</p><p>porém, sem deixar de criticar a postura da Cúria no tratamento as vezes</p><p>desumanos como era feito. Temos também informações por meio da obra</p><p>Conversas à Mesa, porém, sabendo que com reservas devem ser avaliadas, pois</p><p>havia distorções sobre o que Lutero proferia. Um exemplo claro nos foi</p><p>apresentado por Martin Dreher, em que Johannes Goldschmied publicou suas</p><p>anotações poucos após a morte de Lutero e apelou para a grosseria.</p><p>Quando Lutero ingressou no mosteiro de Erfurt, este não passava por bons</p><p>momentos, tais como todos os mosteiros de modo geral. Havia um declínio de</p><p>importância tal como se apresentava em suas origens. Os tempos mudaram. As</p><p>cidades cresciam. As transformações dos séculos XV e XVI refletiam nessa</p><p>instituição. A nova classe dos burgueses ganha importância e a ciência caminha a</p><p>passos rápidos. O Humanismo e o Renascimento despontavam. Em especial o</p><p>século XVI, emergiu um novo modo de produção, o Capitalismo. As cidades se</p><p>ampliavam e tudo isso contribuiu para que novos valores ganhassem força.</p><p>Falava-se em reforma nos próprios conventos. A vida nos conventos, para</p><p>alguns, estava na contra mão da história. Lutero não pensava assim quando</p><p>optou para a vida religiosa.</p><p>A vida no convento para Lutero foi de obediência, trabalho e oração. Cumpria</p><p>integramente suas obrigações e até mesmo extrapolando. Aos poucos foi</p><p>conquistando a confiança de todos, pois inicialmente o viam como o noviço</p><p>intelectual, formado e despreparado para o ofício. Ele mostrou o contrário.</p><p>Mesmo diante dos desafios, inclusive o pai passara a lhe tratar como tu, o que</p><p>não ocorria deste as formação como Bacharel e Mestre em Artes. Lutero</p><p>continuava firme no propósito em agradar a Deus em busca da salvação. Sua</p><p>vida consistia em obediência, pobreza, castidade, afastamento do mundo e</p><p>orações.</p><p>As fases em sua evolução dentro do convento foram crescentes e ele passou e</p><p>venceu todas elas. Ao entrar, na qualidade de postulante, era mandado para as</p><p>aldeias para mendigar em favor da Ordem. Dentro dessa atividade por muitas</p><p>vezes era escalado testando assim sua vocação. Após dois meses foi declarado</p><p>noviço e com um ano passa a condição de irmão, prestando voto solene de</p><p>obediência perpétua. Depois de ser considerado irmão, recebeu instrução para</p><p>preparar-se para a ordenação de sacerdote. Foi ordenado respectivamente</p><p>subdiácono, diácono e sacerdote em 7 de julho de 1507, segundo Lucien Febvre,</p><p>com tanta dedicação que seus superiores o chamavam de “um segundo Paulo”.</p><p>Ao ser ordenado padre escolhera 21 santos aos quais dedicava veneração</p><p>particular. Cada dia, desde a sua ordenação, invocava três deles.</p><p>Sua vida no mosteiro foi de total renúncia e reclusão. O silencio norteava as</p><p>relações e conduta diária. Devia-se o olhar sempre para o chão. Segurava-se o</p><p>copo com as duas mãos. Não se conversava nas refeições e só se ouvia a leitura</p><p>de vida de santos e de textos piedosos. Acordava-se às duas horas de manhã,</p><p>sendo a primeira refeição ao meio dia. Na vida monástica não se podia receber</p><p>visitas.</p><p>A comunicação era somente por sinais. Tudo observado por superiores. Lutero</p><p>também era observado por Stauptiz, seu conselheiro e prior. Levantava-se à noite</p><p>para recitar sete ou oito vezes durante as 24 horas do dia. Cada vez repetiam-se</p><p>25 pai-nosso e 25 ave-marias sem contar outras rezas igualmente numerosas.</p><p>Confessava-se pelos menos uma vez por semana e se ouvia a absolvição: “Eu te</p><p>absolvo pelos méritos de nosso Senhor Jesus Cristo, da Virgem Maria, de todos</p><p>os santos de nossa ordem”. A confissão de Lutero era minuciosa e repetitiva.</p><p>Como era de se esperar, a vida do novo monge era cercada por atividades à</p><p>medida que o tempo passava e suas responsabilidades aumentavam. Albert</p><p>Greiner informa-nos sobre o trecho de uma carta escrita ao amigo Lange, em</p><p>outubro de 1516:</p><p>Necessitaria de dois secretários porque, de manhã à quase não faço nada mais</p><p>que escrever cartas. Prego no convento; sou capelão à mesa; chamam-me cada</p><p>dia para pregar na paróquia; sou diretor de estudos, vigário da ordem, o que</p><p>equivale a ser onze vezes prior; administro os viveiros de Leitzkau e os bens dos</p><p>monges de Torgou; dou preleções sobre São Paulo e sobre todo o Saltério. E toda</p><p>esta correspondência que me rouba o mais claro de meu tempo!... Aí vês que</p><p>preguiçoso que sou!</p><p>Seus próprios colegas do convento muitas vezes o criticavam por seu zelo</p><p>demasiado. Suas leituras ocorriam de forma impulsiva e dentre os pensadores de</p><p>grande influência sobre ele, destacam-se: Agostinho de Hipona, Guilherme de</p><p>Ockham, Gabriel Biel, S. Bernardo de Claraval, Pedro D’Ailly e Nicolau de</p><p>Lira.</p><p>Foi também no mosteiro que aprendeu a tocar alude e órgão fazendo da música</p><p>sua segunda atividade preferida, sendo a primeira a Teologia. Foi deveras</p><p>importante a música na vida de Lutero. Gostava do ritmo em que hoje seria</p><p>música popular. Seus hinos eram cantados nas ruas, principalmente após a</p><p>Reforma. Era contada com muita dança com bastante alegria. Ele soube aplicar</p><p>posteriormente seus dotes musicais para a igreja das Reformas e seus hinos eram</p><p>cantados sistematicamente pelo “povão” nas ruas.</p><p>O “Pai” Staupitz</p><p>Em sua vida monástica com seus dramas, crises, avanços, desafios, trabalhos,</p><p>submissão, obediência e de tudo que exigia de um monge em sua busca por</p><p>Deus, Lutero deparou-se e relacionou-se com afinco àquele que contribuiu para</p><p>o seu avanço espiritual e sua grande descoberta: Johann Von Staupitz. Quem foi</p><p>Staupitz? A melhor pergunta seria: quem foi Staupitz para Lutero? Haveria um</p><p>Lutero sem Staupitz? Teria Lutero prosseguido em sua reclusa sem o seu</p><p>conselheiro? Tal como Paulo, ele teve também o seu próprio “Gamaliel”. Assim</p><p>era Staupitz em relação a Lutero, falava ao seu coração por meio de uma</p><p>linguagem de amor e de uma devoção inteiramente fraterna. Ao despedir-se de</p><p>Lutero o deixava apaziguado, relaxado e consolado — mesmo por algum tempo</p><p>— Lutero precisava por si só encontrar o Caminho. Sobre esse grande amigo o</p><p>reformador confessará já no final de seus dias: “Se eu não reverenciasse Staupitz</p><p>seria um asno condenável, ingrato, papista... porque ele me trouxe à luz em</p><p>Cristo. Se Staupitz não me tivesse ajudado, eu teria sido tragado e largado no</p><p>inferno”.</p><p>Esse nobre saxão teria nascido em Montterwitz em 1469, tendo atuado seus</p><p>primeiros anos no Convento de Erfurt para onde posteriormente se apresentaria a</p><p>Lutero. O convento agostiniano de Erfutt fora renovado por André Prolês com</p><p>uma disciplina mais severa, aliás característica dos agostinianos. Ao menos, de</p><p>forma geral, havia dois grupos entre os agostinianos: os “observantes” os mais</p><p>comprometidos e os “conventuais” mais soltos e numerosos. Lutero fez parte do</p><p>primeiro grupo e, ao chegar, o convento estava sob a direção do professor e</p><p>Vigário Geral Staupitz, substituto de Prolês. Poucos anos depois Lutero irá como</p><p>representante de sua Ordem na tentativa de amenizar este conflito. Segundo</p><p>avaliação da época, o doutor Staupitz era um espírito de raro valor, de grande</p><p>elevação de pensamento e de caráter. Estudou em Colônia e Leipzig, tornando-se</p><p>agostiniano em Munique no ano de 1490 e, com a fundação da Universidade,</p><p>passou a decano da faculdade de Teologia. A partir de 1500, já Doutor em Bíblia,</p><p>é convocado pelo príncipe Frederico III para ser o primeiro decano da recém</p><p>criada Faculdade de Wittenberg. A partir daí a relação entre Staupitz e Lutero</p><p>torna-se mais estreita, pois é transferido do convento de Erfurt para o de</p><p>Wittenberg, por ordem de seu paternal amigo e Vigário Geral.</p><p>Não importa onde estivesse Lutero, seja em Erfurt ou Wittenberg. A sua busca</p><p>por Deus estava entrelaçada a uma crise. Crise esta que a partir do século XX</p><p>tem recebido uma abordagem médica, psicológica e psicanalítica. Marc</p><p>Lienhard, notável especialista em Lutero, apresentou a abordagem de alguns</p><p>estudiosos nessa perspectiva, tais como P. J. Reiter que enumerou diferentes</p><p>enfermidades em Lutero, principalmente ao que considerou uma psicose. O</p><p>temor que experimentara em relação ao pai, marcou profundamente toda a sua</p><p>vida, reforçando a uma depressão. Embora Reiter não negasse o gênio criador de</p><p>Lutero, tentava “[...] explicar tudo mediante causas psicopatológicas”. Em</p><p>seguida Lienhard aborda o trabalho do psicanalista E. H. Erikson, em que</p><p>detectou o drama de Lutero a uma crise de identidade. O conflito com o pai teria</p><p>criado um déficit na identidade do reformador que não conseguira preencher</p><p>pela entrada no convento. Ele não conseguira experimentar uma relação de</p><p>proximidade nem com o pai, nem com próprio Deus. Acrescenta que a</p><p>concepção occamista de um Deus arbitrário reforçou o temor de Lutero.</p><p>Posteriormente Marc Lienhard apresenta a análise do professor R. Dalbiez que</p><p>procura explicar a “psicogênese das doutrinas que colocaram Lutero em</p><p>oposição irredutível ao dogma católico” por meio do qual o reformador teria</p><p>formulado três teorias não católicas sobre si: a culpabilidade necessária, a</p><p>justificação extrínseca e a fé especial. Explicações contestadas por outros</p><p>estudiosos, como Y. Congar e D. Olivier.</p><p>Sejam quais foram às explicações psíquicas sobre o drama interior de Lutero não</p><p>podemos dissociá-lo ao seu próprio tempo. Já em fins da Idade Média, o</p><p>medievalista Johan Huizinga cita um poema de Jean Meschinote caracterizando</p><p>bem esse período:</p><p>Ó vida miserável e tristíssima!...</p><p>Nós sofremos a guerra, a morte e a fome!</p><p>Frio e calor, o dia e a noite mina as nossas forças:</p><p>as pulgas, a sarna e tantos outros vermes.</p><p>Nos fazem guerra. Em resumo, tem piedade, Senhor.</p><p>Dos nossos indignos corpos, cuja vida é tão curta.</p><p>Deve-se observar por meio desse pequeno texto o drama vivido principalmente</p><p>pelos pobres, não isentando os outros grupos sociais. Todo esse temor vai se</p><p>refletir na religiosidade.</p><p>A Idade Média, mesmo em seu final, continuava com um imaginário religioso de</p><p>anjos, demônios, santas, santos, maravilhoso, fadas e dragões. Huizinga nos</p><p>informa que estava refletido nos poemas, crônicas, sermões e até em documentos</p><p>legais uma “tenebrosa melancolia”. Estava em moda ver o sofrimento e a miséria</p><p>como sinais de decadência e aproximação do fim do mundo. Dizia-se na época</p><p>que felizes são os solteiros, pois o casado quando tem uma mulher má passa a</p><p>vida infeliz ou quando tem uma boa mulher sempre tem o receio de perdê-la.</p><p>O pessimismo norteava a sociedade europeia na Alta Idade Média. Erasmo de</p><p>Roterdã, o mais famoso dos humanistas, sobre o seu pessimismo medieval</p><p>desejava rejuvenescer alguns anos pela única razão em crer que no futuro</p><p>próximo a “idade de ouro” chegaria. O próprio Lutero já previra o final dos</p><p>tempos para 1560. Lutero está contextualizado entre fins da Idade Medieval e</p><p>início dos Tempos Modernos. O mundo de Lutero era o das transformações e</p><p>crises em todos os sentidos. Foi um mundo clamando por salvação e a igreja</p><p>apresentava uma saída por intermédio do faça, e “será salvo”. Era a teologia das</p><p>boas obras. No entanto mesmo nesta questão não havia um consenso. A questão</p><p>da justificação do ser humano diante de Deus não estava completamente</p><p>delineada. Discutia-se, discutia-se e não se chegava a um termo. Lutero não</p><p>queria uma resposta acadêmica, queria, sim, uma experiência de vida.</p><p>Experiência não somente para si, mas, para todo o indivíduo. Ele mesmo havia</p><p>dito que não aprendemos nada exceto pela experiência. Afirmara também que</p><p>nenhum de seus grandes influenciadores e pensadores tinham respondido as suas</p><p>perguntas. Suas crises eram sistemáticas e existenciais. Ao ouvir confissões dos</p><p>penitentes, não ousava levantar os olhos para eles temendo os desejos que estas</p><p>poderiam despertar no justo momento da confissão. Posteriormente confessou:</p><p>“Durante os quinze anos em que fui frade, martirizei-me, torturei-me com jejuns,</p><p>pelo frio, com uma vida de austeridade”.</p><p>Lutero espelhava em si próprio as concepções medievais e que vigora em seus</p><p>dias. Em relação à penitência, por exemplo, refletia os ensinamentos de Pedro</p><p>Lombardo e S. Tomás de Aquino, em que a dividiam em três partes: em três</p><p>partes: a contrição, a confissão e a satisfação. Quanto a duas primeiras as</p><p>indulgências não eliminam. Por meio das indulgências a satisfação era realizada.</p><p>A satisfação por sua vez subdividia-se em três partes: orar, jejuar e dar esmolas.</p><p>A oração compreende as obras próprias da alma, como ler, meditar, ouvir a</p><p>Palavra de Deus, pregar, ensinar e similares; o jejuar inclui todas as obras de</p><p>mortificação da carne, como vigílias, trabalhos, leito duro, vestes grosseiras, etc.;</p><p>por sua vez dar esmolas abrange todas as obras de amor e misericórdia para com</p><p>o próximo. Esse era um dos muitos dramas vividos por Lutero em busca de uma</p><p>paz com Deus. Tudo isso realizava sem satisfazer-se. Toda a aprendizagem</p><p>começa pela experiência própria. Aprendemos quando tiramos nossas próprias</p><p>conclusões. A crucial pergunta de Lutero para si próprio era: “Como posso obter</p><p>um Deus misericordioso?”. Durante grande parte de sua vida ele procurava</p><p>aplicar a concepção medieval tardia de que “a quem faz o que está dentro de si,</p><p>Deus dá graça”. Assim Lutero precisava fazer, fazer e fazer.</p><p>Temos o exemplo de 1519, por ocasião da doença de seu protetor e príncipe</p><p>Frederico III. A pedido de Espalatino, ele escreve ao príncipe confortando-o.</p><p>Cremos que suas palavras refletem também a situação vivida por ele</p><p>anteriormente:</p><p>Isto é certo e verdadeiro, quer a pessoa creia, quer não: não pode haver na pessoa</p><p>sofrimento tão grande que seja o pior dos males que estão dentro dela. Os males</p><p>que há dentro dela são muito mais numerosos e maiores do que aqueles que ela</p><p>sente. Porque se sentisse [todo] seu mal, sentiria o inferno, pois ela tem o inferno</p><p>dentro de si.</p><p>Precisamos voltar àquele que, certamente, percebeu o único caminho pelo qual</p><p>Lutero encontraria o Caminho, a Verdade e a Vida. Sim: Staupitz. Em nada</p><p>adiantaria argumentar, aconselhar ou ponderar. Havia concluído e dito para o</p><p>jovem Lutero que em nada poderia fazer para consolá-lo. Sabia que Lutero</p><p>deveria encontrar suas próprias respostas em meio às crises. Para Lutero o seu</p><p>“caminho de Damasco” iniciara com Staupitz, principalmente, em Wittenberg.</p><p>Certamente Staupitz percebeu o vazio na alma do jovem monge e viu além de</p><p>seus conflitos um coração sincero, honesto e com sede de Deus. Compreendeu</p><p>que não havia uma “receita pronta” para esse monge. Teria ele que encontrar o</p><p>seu próprio caminho. Também compreendeu as excepcionais qualidades do</p><p>jovem, que acabara de entrar para sua Ordem, e não cessou de dispensar-lhe</p><p>atenção especial, do qual Lutero conservará em fiel e reconhecida recordação.</p><p>Todo seu esforço deveria ser direcionado a uma fé genuína em Cristo, assim</p><p>pensava e agira Slaupitz em relação ao religioso Lutero.</p><p>Sem sombra de dúvidas temos aqui a providência divina, o jovem noviço foi</p><p>confiado à vigilância e direção de um religioso da estirpe de Staupitz, homem de</p><p>bem, um verdadeiro cristão, como o próprio Lutero o qualificara depois de ter</p><p>voltado à vida secular. Todo trabalho que o doutor Staupitz teve com o monge</p><p>foi no intuito de levá-lo em direção ao essencial, isto é, para Cristo e não para</p><p>uma instituição. Todo esforço de Lutero deveria ser gasto no descanso de Deus.</p><p>O Vigário Geral desejava apontar à direção e deixar que o próprio Lutero</p><p>trilhasse, por si só, e descobrisse a verdade que tanto almejava.</p><p>No princípio, Staupitz apontou o caminho no estudo das Escrituras, inclusive ad</p><p>fontes, ou seja, a própria Escrituras. Como seu superior, sempre incentivava ou</p><p>mesmo determinava que Lutero a lesse a Palavra e prosseguisse em seus estudos</p><p>teológicos. Por isso se tornou bacharel em Bíblia, mestre e doutor em Teologia.</p><p>Sobre seus cursos,</p><p>em especial o doutorado, Lutero confessou agradecido:</p><p>Fui convocado e constrangido, querendo ou não, a tornar-me doutor, por pura</p><p>obediência. Aí tive de aceitar o ofício de doutor e prestar juramento de pregar e</p><p>ensinar com fidelidade e pureza minha queridíssima Sagrada Escritura. Obtive o</p><p>grau de doutor em outubro de 1512 na Universidade de Wittenberg, um mês</p><p>antes de completar 29 anos. A essa altura, eu já havia me mudando</p><p>definitivamente de Erfurt para Wittenberg para me preparar para o doutorado,</p><p>em obediência ao meu provincial Staupitz. Meu doutorado durou pouco mais de</p><p>um ano. Mas entre meu bacharelado em teologia, em março de 1509, e a</p><p>obtenção do grau de doutor, passaram-se três anos e meio. Embora conquistado</p><p>não por decisão própria, hoje muito agradeço o preparo e o título de doutor.</p><p>Graças a ele, meus opositores não podem me chamar de “João-Ninguém”.</p><p>Foi uma conquista, inclusive por indicação de Staupitz, ao se tornar professor em</p><p>Wittenberg o qual desempenhou até ao fim de sua vida. Cremos ser importante</p><p>um testemunho sobre o professor Lutero deixado por um de seus alunos, além, é</p><p>claro, de conhecer um pouco do homem Lutero:</p><p>Ele era um homem de estatura mediana, com uma voz que combinava</p><p>perspicácia e suavidade; o tom era suave; perspicaz era a anunciação das sílabas,</p><p>palavras e sentenças. Ele não falava rápido demais nem devagar demais. Mas</p><p>num ritmo uniforme, sem hesitação e muito claramente, e em uma ordem tão</p><p>adequada que cada parte seguia naturalmente a que vinha antes... suas preleções</p><p>nunca continham nada que não fosse expressivo ou relevante. E, para dizer</p><p>alguma coisa sobre o espírito do homem: se até mesmo os mais terríveis</p><p>inimigos do evangelho estivessem entre seus ouvintes, teriam confessado, pela</p><p>força do que tinham ouvido, que tinham testemunhado não um homem, mas um</p><p>espírito, pois ele não podia ensinar coisas tão maravilhosas de si mesmo, mas</p><p>apenas pela influência de um espírito bom ou mau.</p><p>Também como pregador não lhe faltavam dotes. Vicente Themudo Lessa</p><p>apresenta-o com uma eloquência ímpar. Imaginação, palavra fluente,</p><p>magnetismo pessoal, tom apaixonado e emoção religiosa. A isso se ajuntava</p><p>simplicidade na pregação e virtude que muito o recomendava. Sua figura era</p><p>cheia de expressão, o ar nobre, e a voz pura e sonora completavam o quadro.</p><p>Acrescenta que a fama de Lutero se estendia a ponto do próprio Eleitor</p><p>Frederico, o Sábio, “se abalou um dia para ouvi-lo”.</p><p>Até onde pode o “pai” sempre intervia. E uma dessas intervenções ocorreu em</p><p>Erfurt, a 02 de maio de 1507, quando Lutero celebrou sua primeira missa.</p><p>Enquanto consagrava a hóstia e o vinho, a noção da santidade absoluta de Deus e</p><p>sua própria pecaminosidade, se impôs como uma força tão intensa em seu</p><p>espírito que estava disposto fugir do altar. Foi neste momento que surge Staupitz</p><p>e o reteve.</p><p>Uma das crises de Lutero está relacionada à predestinação. Segundo</p><p>testemunhos posteriores a Lutero, foi principalmente Staupitz quem aplacou suas</p><p>angustias acerca da predestinação. Mais uma vez intervindo, trouxe à alma</p><p>inquieta do monge o bálsamo necessário àquela vida inquieta e conflitante, ao</p><p>afirmar que seria melhor nem pensar nisso, mas apegar-se às feridas de Cristo e</p><p>colocar-se Cristo diante dos olhos. “Ai, afirmou o Vigário Geral, a predestinação</p><p>já estará obrando, porque Deus já destinou seu Filho a sofrer em favor dos</p><p>pecadores”.</p><p>Certamente o que marcou profundamente o coração e alma de Lutero e,</p><p>consequentemente o processo de sua doutrina libertadora, foi à afirmação de</p><p>Staupitz quando disse que “o verdadeiro arrependimento começa com o amor da</p><p>justiça e de Deus”. O próprio Lutero discorreu sobre essa experiência relatando</p><p>em sua obra Explicações do Debate o valor das indulgências, de 1518,</p><p>endereçada ao Papa Leão X. Nesta obra, inclusive já se delineava o Lutero</p><p>luterano. Ele discute a indulgência e a penitência numa perspectiva reformatória.</p><p>A pessoa humana e coerente de Lutero são visíveis na introdução ao texto</p><p>quando ele escreve para o seu “pai” Staupitz. Faz questão de isentá-lo de sua</p><p>postura teológica reformadora, ao afirmar que</p><p>não quero te ligar a mim no perigo; quero ter feito isso unicamente para meu</p><p>próprio risco.</p><p>Inicia então sua recordação face à contundente afirmação de Staupitz:</p><p>Lembro-me, Reverendo Pai, que em meio às tuas agradabilíssimas e salutares</p><p>conversas, com as quais o Senhor Jesus costuma me consolar maravilhosamente,</p><p>houve por vezes menção da palavra penitência. Aí ao nos comiserarmos das</p><p>muitas consciências e daqueles algozes que, com infinitos e insuportáveis</p><p>preceitos, ensinam (como se diz) um modo de confessar-se, te acolhemos como</p><p>se falasses do céu, [dizendo] que só é penitência verdadeira a que começa pelo</p><p>amor à justiça e a Deus e que o que aqueles consideram o fim e a consumação da</p><p>penitência é, antes, o princípio dela.</p><p>Não estamos afirmando que esta simples e pequena referência tenha sido a causa</p><p>para a descoberta de Lutero. Não! No entanto na medida em que evoluíam suas</p><p>reflexões abria-se para ele “as portas do paraíso”, e essa afirmação cada vez mais</p><p>ganhava corpo em sua Teologia. A Teologia de Lutero foi um processo que,</p><p>possivelmente, teria começado entre 1513 a 1518. Se houve um ano específico,</p><p>tais como 1514 ou 1518, as opiniões são divergentes. Mas, por que do período de</p><p>1513 a 1518? Possivelmente através de seus cursos seguia sua libertação. Entre</p><p>1513 a 1515, preleções sobre os Salmos; de 1515 a 1516, Epístola aos Romanos;</p><p>1515 a 1516, Epístola aos Gálatas e 1517, Hebreus e novamente de 1518 a 1519,</p><p>Salmos.</p><p>A amizade de Staupitz e Lutero haveria de chegar ao fim. Lutero era</p><p>contestatório em sua busca pela verdade. Rompia paradigmas. Sua personalidade</p><p>era forte e não se dobrava com facilidade no confronto com suas ideias. Uma</p><p>conciliação de opiniões para Lutero não ocorria sem dificuldades... E muitas</p><p>vezes não ocorria. A verdade para Lutero deve ser falada e aplicada doa a quem</p><p>doer. Com certeza, Staupitz não chamaria o papa de “burro”, “burro grosseiro” e</p><p>“porca suja”. Afirmou que enquanto o turco era o Diabo, o Papa era o anticristo.</p><p>Staupitz, ao contrário, era mais conservador, moderado e até mesmo muito</p><p>cauteloso quando necessita decidir no bojo de uma crise. O novo pode ser</p><p>perigoso e não vale à pena arriscar, certamente assim pensava. Sua visão não era</p><p>imediatista. Era daqueles que avançam até certo ponto e não mais. Ele quer</p><p>mudanças, mas não nas estruturas. As coisas hão de acontecer naturalmente. O</p><p>seu forte era aconselhar e interpretar, mas transformar é outra coisa. Na</p><p>encruzilhada da vida há de ser optar. O momento crucial chegou por ocasião da</p><p>Dieta de Augsburgo em 1518. Nesta Assembleia do Império havia rumores de</p><p>que tanto Lutero quanto Staupitz, por determinação de Roma, seriam presos.</p><p>Neste mesmo ano, o papa havia decretado três breves: no primeiro ordena a</p><p>prisão de Lutero; no segundo pede ao príncipe Frederico III que entregue o</p><p>“filho da perdição” ao cardeal Caetano, e no terceiro ordena que os superiores</p><p>dos agostinianos acorrentem os pés e mãos e o aprisione. Diante deste quadro,</p><p>Staupitz, inclusive suspeito de heresia e procurando defender Lutero até onde lhe</p><p>era possível, o libera do voto de obediência e sai apressado de Augsburgo.</p><p>Aquele que havia guiado Lutero para a fé em Cristo não conseguira romper com</p><p>a estrutura e dominação da Cúria Romana e permanece ligado a Igreja Católica.</p><p>Lutero lamenta a grande perda. Nada pode ser feito. Dois anos depois, o “pai”</p><p>Staupitz renúncia ao cargo de Vigário-Geral da ordem agostiniana, tornando-se</p><p>pregador da corte do Cardeal-Arcebispo Mateus Lange, em Salzburgo, e abade</p><p>do Convento beneditino de São Pedro. Morre a 28 de dezembro de 1524.</p><p>O discípulo, assim Lutero se classificou, era mais ousado que o mestre!</p><p>Com ou sem Staupitz, não se sabe com exatidão o momento da guinada de</p><p>Lutero para o seu “paraíso”. Os estudiosos se atem ao seu próprio testemunho já</p><p>no final de sua vida, em 1545, um ano antes de morrer, quando Lutero falou</p><p>baseando-se em sua memória já calejada pelos</p><p>anos:</p><p>Aí passei a compreender a justiça de Deus, como sendo uma justiça pela qual o</p><p>justo vive pela dádiva de Deus, ou seja, da fé. Comecei a entender que o sentido</p><p>é o seguinte: Por meio do Evangelho é revelada a justiça de Deus, isto é, a</p><p>passiva pelo qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, como está escrito:</p><p>“O justo viverá pela fé”. Então me senti como que renascido, e entrei pelos</p><p>portões abertos pelo próprio paraíso. Aí toda a Escritura se mostrou uma face</p><p>completamente diferente. Fui passando em revista a Escritura na medida em que</p><p>a conhecia de memória, e também em outras palavras encontrei as coisas de</p><p>forma análoga. “Obra de Deus” significa a obra que Deus opera em nós, poder</p><p>de Deus — pelo qual Ele nos faz poderosos; “sabedoria de Deus” — pela qual</p><p>Ele nos torna sábios. A mesma coisa vale para “força de Deus”, “salvação de</p><p>Deus”, “glória de Deus”.</p><p>No entanto até chegar a este ápice, muitas águas vão rolar na vida de Lutero,</p><p>inclusive o casamento.</p><p>Casamento e Família</p><p>Aconteceu em 1525 o casamento de Lutero com a ex-freira Katharina Von Bora.</p><p>Após alguns anos de resistência, inclusive com oposição de vários amigos,</p><p>incluindo o mestre Felipe Melanchthon, ele encontrara finalmente a sua</p><p>adjuntora. O adágio “ao lado de um grande homem, existe uma grande mulher”,</p><p>integralmente foi cumprido. Katharina completou Lutero. O segundo passo mais</p><p>importante na vida do ser humano é a escolha da pessoa com quem se propõe</p><p>viver toda a sua vida, pois a primeira é o reconhecimento do senhorio de Cristo.</p><p>Lutero com o seu casamento havia atingira esses dois passos.</p><p>Em 1520 havia registrado em À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da</p><p>melhoria do estamento cristão, seu posicionamento a respeito do matrimônio dos</p><p>sacerdotes. Após descrever o apoio das Escrituras citando, principalmente, Paulo</p><p>passa a argumentar que, devido às perseguições e contenda contra os hereges,</p><p>muitos santos que eram pais renunciaram voluntariamente ao matrimônio para</p><p>que pudessem “melhor estudar e estar dispostos a morrer e a lutar a qualquer</p><p>hora”. Posteriormente a Sé Romana “interveio” proibindo o casamento aos</p><p>sacerdotes. “Que faremos neste caso?” — perguntou e ele mesmo responde:</p><p>“Aconselho que se deixe de novo a livre critério de cada um casar-se ou não</p><p>casar-se, conforme lhe aprouver”.</p><p>Sobre a questão do voto do celibato, na obra Da Vida Matrimonial, Lutero</p><p>esclarece que:</p><p>Não te deixes enganar, mesmo que tivesses feito dez juramentos, votos, contratos</p><p>ou até mesmo promessas de ferro ou diamantes. Pois assim como não podes</p><p>fazer votos de não querer ser homem ou mulher — e se fizeres seres, seria uma</p><p>loucura e não teria valor nenhum, pois não te podes fazer diferente — tampouco</p><p>faz sentido prometes que não queres reproduzir e multiplicar-te, caso não te</p><p>encontrares em um daqueles três grupos. [Ele se refere aos que nasceram</p><p>castrados, foram castrados ou castraram-se por amor ao Reino].</p><p>Era notória na época a situação de muitos sacerdotes que impossibilitados de se</p><p>casar mantinham relações com prostitutas e com isso vários filhos. Um religioso</p><p>descreveu seu próprio dilema com estas palavras:</p><p>Não posso ficar sem esposa. Se não me é permitido ter uma esposa, sou forçado</p><p>a levar publicamente uma vida vergonhosa, que prejudica minha alma e honra e</p><p>leva outras pessoas, que ficam ofendidas com minha atitude, à condenação.</p><p>Como posso pregar a respeito da castidade e da falta de castidade, do adultério e</p><p>da depravação, se minha prostituta vem abertamente à igreja e se meus</p><p>bastardinhos se sentam à minha frente? Com o poderei rezar a missa nesse</p><p>estado?</p><p>Na obra À Nobreza Cristã da Nação Alemã, Lutero comenta esse fato com a</p><p>declaração: “Vemos também como decaíram os sacerdotes e como mais de um</p><p>pobre padre, sobrecarregado com mulher e filhos, está de consciência pesada e</p><p>ninguém faz alguma coisa para lhe ajudar, se bem que seria perfeitamente</p><p>possível fazê-lo”. Temos também o caso de três sacerdotes que contraíram</p><p>matrimônio mesmo sob perseguição, pois o celibato estava incorporado à lei do</p><p>Império, o que gerou polêmica a ponto de serem julgados. Sob pressão, o Eleitor</p><p>Frederico encaminhou o caso a uma comissão de jurista para decisão... Um deles</p><p>fora aluno de Lutero.</p><p>De forma semelhante podemos perguntar: e Lutero? Aprova o casamento de</p><p>sacerdotes, anulação do voto celibatário, mas continua celibatário. Prega, ensina</p><p>e não pratica? Os comentários iriam se desenvolver diante da incoerência do</p><p>reformador, uma vez que ele tinha um discurso que não se harmonizava com a</p><p>sua própria vivência. Vários reformadores contraiam matrimônios. E você,</p><p>Lutero? Não vai se decidir? O próprio Karlsdadt deu o exemplo casando-se em</p><p>1522. Seu amigo Jonas Justos também. As freiras que ele havia recebido como</p><p>refugiadas, uma após outra se casavam. O próprio Lutero incentiva e arrumava</p><p>casamento para elas. Tal como uma avalanche, os casamentos entre os</p><p>reformados aconteciam. E Lutero? Havia muito medo por parte dos</p><p>companheiros, que seu casamento poderia prejudicar o andamento do</p><p>movimento reformador. Outros achavam que além de trazer prejuízo para a</p><p>Reforma, demonstraria fraqueza deplorável. Está Lutero com 42 anos.</p><p>Realmente ele não pensara em se casar.</p><p>Em novembro de 1524 desenvolvendo o tema família disse: “Pelo que estive</p><p>inclinado até o momento e ainda estou não hei de casar-me”.</p><p>Também escreveu a Spalatino: “Não que não sinta minha carne e meu sexo; não</p><p>sou feito de madeira nem de pedra; mas meu espírito não se orienta para o</p><p>casamento enquanto espero diariamente a morte e o suplício devido aos</p><p>heréticos”.</p><p>No entanto na mesma carta afirmou que: “Estou nas mãos de Deus, como uma</p><p>criatura cujo coração Ele pode mudar e tornar a mudar, que Ele mata ou mantém</p><p>vivo a qualquer hora e qualquer minuto”.</p><p>Seis meses depois desta carta, ele “mudou”. Casou-se a 13 de junho de 1525</p><p>com uma das nove freiras que pedira abrigo em seu convento: Katharina Von</p><p>Bora. Quando se fala do nome da nova esposa cria-se logo o gracejo em que</p><p>Lutero teria dito: “Catarina, ‘vambora’”!</p><p>O casamento foi simples com a presença dos pastores Bugenhagen e Justo Jonas,</p><p>um jurista o professor Appel, e uns poucos amigos. Melanchthon não</p><p>compareceu, pois a princípio era contra. Sobre o casamento do reformador, o</p><p>historiador luterano Martin Dreher nos informa que Justo Jonas escreveu no dia</p><p>seguinte: “Lutero tomou Katharina Von Bora por esposa. Estive presente ontem</p><p>e vi o par deitado no leito conjugal. Não me pude conter e derramei lágrimas</p><p>ante a cena”. Esse episódio contado por Justo Jonas nos parece estranho, no</p><p>entanto, era costume da época em que as testemunhas acompanhavam os recém-</p><p>casados até o quarto e os dois deitavam na cama. Duas semanas depois, os recém</p><p>casados oferecem um almoço em que o pai de Lutero se fez presente e foi</p><p>novamente acolhido em graça, e tornou-se a ser filho amado. Os amigos</p><p>colaboraram enviando alimentos para a festa.</p><p>A oposição muito falou sobre o fato. Procuravam o mínimo deslize na vida de</p><p>Lutero para desmoralizá-lo. Sua vida era vigiada 24 horas por seus oponentes.</p><p>Por causa disso, podemos concluir que se Lutero tivesse cometido alguma falha,</p><p>certamente, iria ser divulgado aos quatro cantos por seus adversários. O próprio</p><p>Erasmo de Roterdã havia declarado que o casamento fora feito às presas, devido</p><p>à gravidez da noiva. Fato não comprovado, pois seu primeiro filho nasceu um</p><p>ano depois. Havia uma crença medieval onde afirmava que do casamento de um</p><p>padre com uma freira, nasceria o anticristo. Quando associaram essa crendice ao</p><p>seu casamento, Lutero teria respondido que, se na relação íntima entre padre e</p><p>freira nascesse o anticristo, a Europa estaria cheia de anticristos.</p><p>Ficou comprovado pelos anos sucessivos que Katharina foi uma bênção para</p><p>Lutero e vice-versa. Tiveram 6 filhos: Hans, o primogênito, nascido em 1526.</p><p>Estudou direito e se tornou jurista na cidade de Weimar, tendo falecido aos 50</p><p>anos. Em dezembro de 1527 nasce Elisabete, que falece aos 8 meses,</p><p>provavelmente de krupp (laringite aguda ou de peste, que assolara</p><p>Wittenberg de</p><p>1527 e 1535). Em maio de 1529 vem ao mundo Madalena, que também falece</p><p>aos 13 anos, nos braços do pai, a 20 de setembro de 1542, provavelmente de</p><p>leucemia.</p><p>O terceiro filho nasce em novembro de 1531, na véspera do aniversário de</p><p>Lutero, que recebe o nome do pai, Martinho. Estudou Teologia, mas não se</p><p>tornou pastor. Em 1533, nasce Paulo que estudou medicina e tornou-se médico</p><p>de família de diversos príncipes de Brandenburg. Margareth a sexta e última</p><p>filha nasce em 1534. O nome foi dado em homenagem à mãe de Lutero. A</p><p>educação que recebera de seus pais não se fazia refletir tanto em Lutero quanto</p><p>em Catarina na educação dos filhos. O tipo de educação que recebera do pai,</p><p>Lutero não aplicava aos filhos. Tomou com seriedade a educação dos filhos e</p><p>com muito amor. “Preferiria, disse certa feita, ter um filho morto a um filho mal</p><p>educado”. Teve tempo de escrever fábulas e reunião de provérbios conservados</p><p>até hoje. Distraía-se na companhia dos filhos passeando pelos jardins e jogava</p><p>bola com eles. Era prática dos genitores orarem com as crianças, quando elas</p><p>cresciam, os 10 Mandamentos, o Credo, o Pai Nosso e um Salmo. Ao se reunir à</p><p>mesa com esposa e filhos, estudantes, hóspedes e quem mais se encontrassem,</p><p>estudavam-se a Palavra. A carta que escreveu ao filho Hans com cinco anos é</p><p>inspiradora e revelava o cuidado, carinho e amor paterno.</p><p>Carta ao Filho Hans em 1505</p><p>Graça e paz em Cristo, meu filho. Estou feliz em saber que você está estudando</p><p>direitinho e fazendo suas orações fielmente. Continue assim, filho querido.</p><p>Quando voltar para casa, levarei para você um belo presente. Conheço um</p><p>jardim, agradável e fascinante, cheio de pequenas crianças que se vestem de</p><p>jaquetas douradas e colhem belas maçãs debaixo das árvores, e peras, e cerejas, e</p><p>ameixas rubras e amarelas. Elas brincam e pulam, estão sempre felizes e têm</p><p>belos cavalinhos com arreios de ouro e selas de prata. Aí, perguntei ao dono do</p><p>jardim quem era aquelas crianças, e ele me respondeu: “Estas são crianças que</p><p>gostam de orar, adoram estudar e são boazinhas”. Então eu disse ao homem:</p><p>“Prezado senhor, tenho um filho cujo nome é Hans Lutero. Será que ele não</p><p>podia vir também a este jardim para comer estas belas peras e maçãs, cavalgar</p><p>estes belos cavalinhos e brincar com as crianças?”. E o homem me respondeu:</p><p>“Ele pode, contanto que ele goste de orar, de estudar muito e seja um bom</p><p>menino. Phil e Justy também podem vir com ele, e eles terão apitos, tambores e</p><p>pífaros, e podem dançar e atirar com pequenos arcos e flechas”. Depois o</p><p>homem me mostrou um bonito gramado no jardim, todo preparado para nele se</p><p>dançar e onde havia apitos, pífaros e tambores e arcos de prata pendendo das</p><p>árvores em redor. Mas era ainda cedo; as crianças tinham ainda terminado de</p><p>comer e eu não podia esperar para vê-las dançar. Aí, eu disse ao homem: “Meu</p><p>caro senhor, preciso ir-me imediatamente e escrever ao meu querido Hans sobre</p><p>todas essas coisas para que ele ore diligentemente, aprenda bem suas lições e</p><p>seja bonzinho, para que ele também possa vir para este jardim. Mas ele tem</p><p>também uma tia. Lena, que deve trazer consigo”. E o homem respondeu: “Muito</p><p>bem, vai e conta ao teu filho sobre essas coisas”.</p><p>Portanto, meu querido Hans, estude e ore direitinho e diga a Phil e Justy que</p><p>façam suas orações e estudem também, pois assim vocês entrarão juntos no</p><p>jardim. Deus abençoe vocês. E dê à tia Lena um beijo por mim e diga-lhe que eu</p><p>a amo.</p><p>Teu pai que te ama.</p><p>— Martinho Lutero</p><p>Assim Lutero, formando um lar cristão no qual reinava o amor em família, a</p><p>simplicidade e a alegria, mostrava a superioridade moral do Evangelho sobre os</p><p>costumes deploráveis dos claustros e condenava com um exemplo digno de</p><p>imitação o celibato clerical.</p><p>Katharina, mulher de espírito forte, corajosa, franca, determinada e consciente de</p><p>suas responsabilidades, coclocou ordem na casa. Lutero era totalmente incapaz</p><p>de organizar qualquer detalhe de uma economia doméstica. Ele mesmo confessa</p><p>nas Conversas à Mesa: antes de me casar, por todo um ano ninguém me fez a</p><p>cama, e a palha dela, apodreceu com meu suor. Cansado e tendo trabalhado todo</p><p>o dia, caia na cama, e nada mais sabia. Segundo relatos e pinturas da época</p><p>demonstram que Katharina não era uma “linda princesa”. Não possuía o que</p><p>hoje colocaríamos como “padrão de beleza”. Tinha uma cabeça alongada, testa</p><p>alta, nariz comprido, maçãs do rosto salientes, queixos pronunciados e era pobre.</p><p>Porém de forte personalidade para “organizar a bagunça”. Não somente</p><p>organizar, mas trabalhar incansavelmente no convento, aliás, sua moradia após o</p><p>casamento cedido pelo príncipe Eleitor para família que aumentava</p><p>gradativamente. O mosteiro era a moradia de Lutero desde 1524, mas, em 1532</p><p>tornou-se sua propriedade, como presente do príncipe João. O mosteiro era uma</p><p>casa muito grande, mas, não adequada e se encontrava em estado deplorável,</p><p>precisando de reformas. Katharina administrava estas reformas: uma verdadeira</p><p>dona de casa. Cremos ser oportuno fazer uma distinção aos dias de hoje. Quando</p><p>se fala de dona de casa nos vem à mente uma esposa ou mulher que cuida dos</p><p>afazeres domésticos. No século XVI não era o caso. Ser dona de casa significava</p><p>ser uma administradora, informa-nos Heloisa G. Dalferth:</p><p>[...] o termo Haus (casa) não era restrito ao que hoje entendemos por lida da</p><p>casa, jardim e pequenas hortas. Entendia-se que também as terras, a agricultura,</p><p>a criação de animais, a comercialização dos produtos agrícolas, a coordenação</p><p>do trabalho dos empregados faziam parte das tarefas do Hausfrau [dona de casa].</p><p>Por causa disso, é possível perceber que a vida de Katharina não era de tédio.</p><p>Aos seus filhos, foram adicionados os filhos da irmã de Lutero por motivo de</p><p>falecimento. Passaram assim a 11 crianças. Somados a isso temos hóspedes,</p><p>estudantes, empregados, fugitivos à procura de abrigo e pessoas a procura de</p><p>conselhos e orientações. Até príncipes eram seus hóspedes. Para se manter e</p><p>ajudar nas despesas criavam porcos, animais, horta e fabricava cerveja para o seu</p><p>ganha pão. Neste sentido é preciso mencionar a ajuda que Lutero recebia, além</p><p>de seu salário anual, uma quantidade fixa de lenha, cereais e malte para a</p><p>fabricação de cerveja. Por parte do príncipe-eleitor vinha também carne de caça,</p><p>e vinhos como presentes e vários outros. Eles certamente tinham ciência da casa</p><p>hospitaleira que Katharina dirigia para família e hospedes.</p><p>Como uma verdadeira empreendedora transformou o mosteiro em pensão, e</p><p>hospedaria, na qual alojavam nobres. Arrendou terra e posteriormente adquiriu</p><p>uma chácara, abrigando cerca de trinta pessoas, entre hóspedes, estudantes,</p><p>empregados, filhos e filhos de parentes.</p><p>Quando Katharina em suas crises, pós-matrimonial, Lutero sempre se</p><p>apresentava. Sabemos que as mudanças nas ideias e costumes são mais lentas a</p><p>serem assimiladas ou dissipadas. Certamente, nos momentos de “recolhimento</p><p>quando fica somente a pessoa e seu travesseiro” mil pensamentos voam à sua</p><p>mente e, consequentemente, dúvidas sobem ao coração. O que dizer de uma ex-</p><p>freira, agora casada? Possivelmente, Lutero argumentou em um desses</p><p>momentos:</p><p>Tu és em verdade minha mulher legítima, podes estar segura disso, e não tens</p><p>por que duvidá-lo. Que o mundo ímpio e cego diga de ti o que quiser, deixa-o</p><p>dizer, toma por regra a Palavra de Deus, e mantém-te firmemente apegada a ela,</p><p>na qual encontrarás uma fonte segura e constante de consolação contra o Diabo e</p><p>contra os caluniadores.</p><p>A ajuda de Lutero à sua companheira era constante. Ainda na obra Da Vida</p><p>Matrimonial afirma de forma irônica:</p><p>Se um homem fosse lavar as fraudas ou realizasse qualquer outro serviço</p><p>desprezível na criança, e todos zombassem dele, dizendo que é um babaca e</p><p>efeminado; no entanto, se ele o fizesse no espírito acima descrito [isto é, obras</p><p>de puro ouro] e na fé cristã — dize-me, agora, quem zomba mais do outro? Deus</p><p>se alegra com todos os anjos e criaturas, não porque [o pai] lava as fraudas, mas</p><p>por fazê-lo na fé.</p><p>Por intermédio das cartas que Lutero sempre endereça</p><p>à esposa, percebe-se o</p><p>carinho dispensado a ela. Dentre os tratamentos temos: Käthe, querida (mais</p><p>usado), dona de casa, doutora, doutora luterana, senhora, fazedora de cerveja,</p><p>juíza no mercado de porcos, a mais sábia mulher, minha graciosa, graciosa</p><p>senhora em mãos e pés, santa e mulher preocupada.</p><p>Ao assinar as cartas usava carinhosamente às expressões: Martinus Luther, teu</p><p>amorzinho, teu querido amorzinho, sua santidade, seu solícito servo.</p><p>Essa família também soube passar pelo vale da sombra e da morte. Sim, Lutero e</p><p>Katharina perdem duas de suas filhas: Elisabeth e Madalena. Sobre Elisabeth</p><p>morta com menos de um ano, Lutero declarou: “Meu coração está doente e</p><p>quase feminino, tanto me lamento. Outrora não pude crer que o coração de um</p><p>pai pudesse vir a amolecer de tal maneira em relação aos seus filhos”.</p><p>Madalena falece aos 13 anos, marcando de tristeza o coração de Lutero. Conta</p><p>regularmente a dor pela perda de sua tão querida adolescente. Morre em seus</p><p>braços, após ter respondido a pergunta do pai: “Madalena, minha filha, gostarias</p><p>de permanecer com teu pai! Vais com também com alegria para aquele Pai?” E a</p><p>menina respondeu: “Sim, querido pai, como Deus quiser”. Dias depois escreve</p><p>ao amigo Justo Jonas sobre a morte da filha:</p><p>Deves saber que minha querida filha Madalena renasceu para o eterno Reino de</p><p>Cristo. Minha mulher e eu deveríamos agradecer e alegrar-nos por um fim tão</p><p>feliz e uma morte tão bem-aventurada. Mas o poder do amor natural é tão grande</p><p>que não podemos fazê-lo sem soluçar e sem gemer o coração, sim sem partir o</p><p>coração. Pois a piedosa e obediente filha que jamais nos incomodou, seu olhar,</p><p>suas palavras, todo o seu ser, assim como foi na vida e na morte, estão por</p><p>demais no fundo do coração, que mesmo Cristo não consegue apagar totalmente</p><p>como deveria ser. Ela tinha um temperamento doce e ensolarado e era amada por</p><p>todos. Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo que a chamou, escolheu e</p><p>glorificou.</p><p>Essa foi em linhas gerais a família de Lutero, tal como qualquer outra, com</p><p>problemas, dificuldades, erros e acertos, no entanto, sempre consciente de que</p><p>Deus não é somente o Senhor da história, mas também de cada família.</p><p>Quando analisamos, mesmo em linhas gerais, o casamento de Lutero parece-nos</p><p>que as coisas estavam se processando normalmente. Puro engano. Tanto a</p><p>Alemanha quanto Lutero atravessavam momentos difíceis. A Guerra Camponesa</p><p>que iniciara em 1524 encontrava-se, no ano do casamento de Lutero em seu</p><p>final, porém, com vários focos de resistência. Resultado da Guerra: Cem mil</p><p>camponeses mortos. Depois em 1525 a grande polêmica entre Lutero e Erasmo,</p><p>o príncipe dos humanistas, que publica a obra Diatribe atacando veemente</p><p>Lutero. A partir desse ponto entramos em outro aspecto do homem Lutero, isto é,</p><p>suas obras.</p><p>As Obras de Lutero</p><p>Quando nos referimos às obras de Lutero, estamos enfocando os seus escritos.</p><p>Escritos estes que se estendem por meio de cartas, estudos bíblicos, teológicos,</p><p>mensagens, teses a serem debatidas, economia, religião, história, exegese,</p><p>hermenêutica, aconselhamentos, sermões, comentários bíblicos, apelações,</p><p>liturgia, manual, hinologia, sexualidade, política, filosofia, sociedade, ética,</p><p>educação, oração e tradução da Bíblia. Sempre respondia sobre as mais a</p><p>diversas questões que se lhe apresentavam sejam por petições, pareceres ou</p><p>defendendo-se contra seus oponentes. Qualquer assunto que viesse a ele, seja a</p><p>curto ou médio, no tempo determinado a resposta, com certeza, seria dada.</p><p>Lutero era daqueles que modernamente diríamos não tem “trava na língua”.</p><p>Lutero foi teólogo, professor e profundamente religioso. Era um intérprete das</p><p>Sagradas Escritura. Mesmo não sendo um especialista em todos os assuntos que</p><p>abordava, os apresentava sempre numa perspectiva bíblico-teológica.</p><p>Ao menos duas observações são necessárias na apresentação destas Obras de</p><p>Lutero. A sua produção literária é vastíssima, basta reler as linhas acima, para</p><p>percebe que seus escritos vão desde simples cartas até apresentação de teses para</p><p>o doutorado de seus alunos, bem como a tradução da Bíblia diretamente dos</p><p>originais hebraico e grego, perpassando por uma vasta área do conhecimento</p><p>humano. Segundo estimativas, a edição completa de suas obras abrange cerca de</p><p>100 volumes, distribuídas em 67 obras em alemão e 33 em latim. Assim sendo,</p><p>nos limitamos a apresentar somente as extraídas das Obras Selecionadas de</p><p>Lutero, em 12 volumes.</p><p>A segunda observação prende-se as datas dos prefácios que aparecem em cada</p><p>livro da Bíblia de Lutero. Solicitando esclarecimento sobre essa questão, recebi a</p><p>resposta de Ricardo W. Rieth, integrante da Comissão Editorial Martinho Lutero</p><p>Obras Selecionadas, tal como segue:</p><p>Lutero redigiu os prefácios aos livros bíblicos à medida que as edições de sua</p><p>tradução para o alemão eram publicadas. Esse processo de</p><p>tradução/edição iniciou em setembro de 1522, com a publicação do Novo</p><p>Testamento, e prosseguiu pelos anos 1520 e começos dos 1530, até, finalmente,</p><p>em 1534, ser publicada a Bíblia completa em alemão, inclusive com a tradução</p><p>dos livros apócrifos ou deuterocanônicos, apensados ao Antigo Testamento.</p><p>Paralelamente, transcorreram os trabalhos de uma comissão permanente de</p><p>revisão da Bíblia. Segundo Lutero, por princípio, a dinâmica de uma língua</p><p>como “organismo” social e cultural vivo impediria chegar-se a uma tradução</p><p>definitiva. Esta comissão, integrada por ele e alguns colegas — Melanchthon,</p><p>Bugenhagen, Jonas —, promoveu alterações mais ou menos significativas nos</p><p>textos já traduzidos e editados anteriormente. Esse processo de revisão</p><p>aconteceu até o ano da morte de Lutero. Em alguns casos, houve mudanças</p><p>também nos textos dos prefácios. O caso mais emblemático é o do prefácio à</p><p>Epístola de Tiago, se compararmos a edição de setembro de 1522 e as edições a</p><p>partir de 1534. Isso está suficientemente sinalizado e descrito nas introduções</p><p>históricas e notas de rodapé integradas ao volume 8 de Obras Selecionadas.</p><p>Examinemos, pois “alguns” de seus títulos:</p><p>1515 Epístola do Bem-Aventurado Apóstolo Paulo aos Romanos</p><p>1517 Debate sobre a Teologia Escolástica</p><p>As 95 Teses</p><p>1518 Relato de Lutero sobre o Encontro com o legado apostólico</p><p>Apelação de Lutero ao Concílio</p><p>Explicações do Debate sobre o Valor das Indulgências</p><p>Um Sermão sobre a Indulgência e a Graça</p><p>Debate de Heldelberg</p><p>Sermão sobre o Poder da Excomunhão</p><p>1519 Breve Instrução como Devemos confessar-nos</p><p>Sermão sobre a Preparação para a Morte</p><p>Sermões sobre os Sacramentos (Batismo, Eucaristia e Penitência)</p><p>1520 Debate e Defesa do Dr. M. Lutero contra as Acusações de Eck</p><p>Comentário de Lutero sobre suas Teses Debatidas em Leipzig</p><p>Comentário de Lutero sobre a 13ª Tese sobre o Poder do Papa</p><p>Sermão sobre as Duas Espécies de Justiça</p><p>Sermão sobre a Contemplação do Santo Sofrimento de Cristo</p><p>Trabalho nos Salmos aos estudantes de Wittenberg</p><p>Modo de Confessar-se</p><p>Breve forma dos Credos</p><p>Breve forma do Pai Nosso</p><p>Breve forma dos Dez Mandamentos</p><p>Resposta de Lutero à condenação das Universidades de Lovaine e Colônia</p><p>Das Boas Obras</p><p>Um Sermão a respeito do Novo Testamento</p><p>A Respeito do Papado em Roma</p><p>À Nobreza Cristã da Nação Alemã</p><p>Carta de Lutero a Leão X, Sumo Pontífice</p><p>Da Liberdade Cristã</p><p>Do Cativeiro Babilônico da Igreja</p><p>Porque os livros do Papa e de seus Discípulos foram Queimados</p><p>Tradução do Novo Testamento para o alemão, por Lutero</p><p>1521 Refutação do Parecer de Látomo</p><p>O Magnificat</p><p>Discurso do Dr. Martinho Lutero diante do Imperador Carlos V</p><p>1522 Uma Sincera Exortação de ML a todos os Cristãos</p><p>Introdução: que se deve procurar e o que esperar dos Evangelhos</p><p>1523 Sétimo Capítulo de 1 Coríntios</p><p>Da Autoridade Secular</p><p>Estatuto para uma Caixa Comunitária</p><p>Ordem do Culto</p><p>Como Instituir Ministros na Igreja</p><p>Formulação da Missa e da Comunidade</p><p>Hinologia. Até 1545, compôs hinos, mais de 30</p><p>1524 Resposta a Ambrosio Catarino</p><p>Os pais e o matrimônio dos filhos</p><p>Carta aos príncipes da Saxônia</p><p>Carta Aberta aos Burgomestres Conselho e toda a Comunidade</p><p>1525 Da Vontade Cativa</p><p>Carta a Respeito do Rigoroso Livrinho</p><p>contra os Camponeses</p><p>Como os Cristãos devem lidar com Moisés</p><p>(?) Capítulos 14 e 15 de João pregado e interpretado</p><p>1526 Acerca da Questão se também Militares Ocupam função</p><p>Bem-Aventurada</p><p>Missa Alemã e Ordem do Culto</p><p>Anotações sobre a Epístola de Paulo a Tito</p><p>1528 Da Ceia de Cristo</p><p>Apontamentos à Primeira Epístola a Timóteo</p><p>1529 Manual da bênção matrimonial para os pastores pouco letrados</p><p>Guerra contra os Turcos</p><p>Catecismo Maior</p><p>Do Credo</p><p>O Pai Nosso</p><p>Do Batismo</p><p>Catecismo Menor</p><p>1530 O Sublime Louvor</p><p>Assuntos Matrimoniais</p><p>Exortação ao Sacramento do Corpo e Sangue de Nosso Senhor</p><p>Carta Aberta a respeito da Intercessão dos Santos</p><p>1530/1532 Prédicas sobre Mateus 5 — 7</p><p>1531 Advertência do Dr. Martinho Lutero aos seus Estimados Alemães</p><p>Resumo sobre os Salmos e Razões da Tradução</p><p>1532 Resumo da Vida Cristã</p><p>O Pai Nosso</p><p>A Vida Matrimonial</p><p>Salmo 101— Interpretado por Martinho Lutero</p><p>Carta do Dr. M. Lutero sobre os Intrusos e Pregadores Clandestinos</p><p>Mateus 5 — 7</p><p>1534 Capítulo 15 de 1 Coríntios</p><p>Publicação da Bíblia Traduzida por Lutero</p><p>1535 Uma Singela Forma de Orar</p><p>Comentário da Epístola aos Gálatas</p><p>1535/1545 Preleções sobre Gênesis</p><p>(?) Capítulo 16 e1João Explicado e Interpretado</p><p>1536 Debate do Rev. Martinho Lutero a Respeito do Homem</p><p>Debate Acerca da Justificação</p><p>1537 a 1540 Lutero e os Antinomistas</p><p>1539 Debate sobre a Sentença: O Verbo se Fez Carne</p><p>Dos Concílios e da Igreja</p><p>Bordeis Públicos não Devem ser Tolerados</p><p>Debate Sobre Mateus 19.21</p><p>1540 Debate do Rev. Lutero Sobre a Divindade e Humanidade de Cristo.</p><p>1541 Exortação à Oração contra os Turcos</p><p>1542 Exemplo de Ordenação de um Legítimo Bispo</p><p>1545 Instrução dos Visitadores (redigiu várias Instruções)</p><p>Prefácio aos livros do AT: (Prática costumeira de Lutero)</p><p>Observação: os prefácios dos livros da Bíblia foram redigidos de 1522 a 1534,</p><p>quando concluiu a tradução de toda a Bíblia. No entanto o processo de revisão,</p><p>feito por Lutero e companheiros, ocorre até a morte do reformador.</p><p>Visão Panorâmica (Pentateuco); Jó; Salmos; Livros de Salomão; Profetas; Isaías;</p><p>Jeremias; Ezequiel; Oséias; Joel; Amós; Obadias; Jonas; Miqueias; Habacuque;</p><p>Sofonias; Ageu; Zacarias; Malaquias; Judite. Sabedoria de Salomão; Tobias;</p><p>Jesus Siraque; Baruque;1Macabeus e 2 Macabeus.</p><p>1546 Prefácio ao Novo Testamento: Visão panorâmica (Evangelhos); Atos; Romanos; 1 Coríntios; 2 Coríntios; Gálatas; Efésios; Filipenses; Colossenses; 1 Tessalonicenses; 2 Tessalonicenses; 1 Timóteo; 2 Timóteo; Tito; Filemon; 1 Pedro; 2 Pedro; Três Epístolas de João; Hebreus; Tiago e Judas e Apocalipse.</p><p>Lutero e a Arte de Viver</p><p>Temos chegado ao final da abordagem de Lutero como homem, isto é, uma vida</p><p>com os desafios inerentes a sua grande obra e que viveu intensamente! Cremos</p><p>que a todos quanto examinam esse homem sentem-se inspirados. Sua vida, seus</p><p>problemas, seus desafios e aspirações em muito coincidem no dia a dia de cada</p><p>um. Mesmo com altos e baixos, a vida de Lutero serviu de inspiração para outras</p><p>milhares e milhares de vidas.</p><p>Neste momento pode-se refletir e retirar lições para nossa própria vida.</p><p>Viver, todos vivem, basta ter nascido. A questão é saber viver, ou melhor, viver a</p><p>vida com intensidade. Não se deve esperar envelhecer, pois segundo Stº</p><p>Agostinho: “ao nascermos, já começamos a envelhecer”. Certamente você já</p><p>ouviu falar que “viver é uma arte”. E, em relação à arte, o teólogo Anselm Grün</p><p>informa que, em alemão, o idioma de Lutero, arte (Kunst) tem a ver com poder</p><p>(könnem). Poder está relacionado a compreender, saber e sabedoria. Então: “[a]</p><p>arte está também ligada ao “conhecido’”. Assim quem aprende a arte de viver ou</p><p>envelhecer torna-se “conhecido aos demais”. Não se vive bem para si mesmo,</p><p>mas também para os outros.</p><p>Assim foi a vida de Lutero. Viveu somente 62 anos, 3 meses e 8 dias. Em sua</p><p>época, a perspectiva de vida ou longevidade era de 25 anos na Alemanha,</p><p>segundo M. Dreher. Isso quer dizer que, aos 62 anos, Lutero encontrava-se tal</p><p>como ele mesmo dizia, “velho, cansado e desgastado. Enxergo somente de um</p><p>olho. Todavia, para um ancião, ainda estou passando regularmente.”</p><p>Se tomarmos como referência o 31 de outubro de 1517, quando redigiu as 95</p><p>teses dando início à Reforma, até sua morte em 18 de fevereiro de 1546, Lutero</p><p>viveu 28 anos, três meses e dezoito dias para a realização de uma obra em que</p><p>somente a eternidade revelará em toda a plenitude a sua importância.</p><p>Lutero soube não somente viver, mas “a arte de viver”.</p><p>Segundo Funck-Brentano calcula-se em 10 anos o tempo necessário para que</p><p>alguém comece a copiar toda a obra de Lutero entre cartas, mensagens,</p><p>comentários, etc. Sua atividade foi não somente intensa, mas diversificada indo</p><p>desde “lavar as fraldas dos filhos” até conselheiro de príncipes, magistrados,</p><p>nobres e líderes religiosos. Escreveu sobre economia, política, pedagogia,</p><p>administração, filosofia, teologia, bíblia, hinologia que, segundo a crença, teria</p><p>composto 137 hinos, o que não passa de especulação, bem como uma gama de</p><p>assuntos, desde enlevo espiritual à radicalização aos recalcitrantes. Musicista,</p><p>tocava flauta, órgão e alaúde (instrumento de corda parecido com o nosso violão</p><p>ou guitara). Falava, além da língua materna, latim, grego e hebraico. Somente</p><p>em três meses traduziu o Novo Testamento do grego para o alemão. Aos 25 anos</p><p>já era professor universitário. Soube utilizar-se da grande arma recém criada, isto</p><p>é, a imprensa de Gutemberg. Basta mencionar que havia 11 firmas tipográficas</p><p>ávidas em publicar o que Lutero escrevia. Ele escreveu muito! Escreveu tanto</p><p>que “nem Lênin, nem Mao Tsé-Tung, nem Thomas Jefferson, nem John Adams,</p><p>nem Patrick Henry chegaram a tanto”, segundo Carter Lindberg.</p><p>Porém, o que tem haver a entrega e a vida de Lutero com a minha e sua vida?</p><p>Muito!</p><p>O filósofo Romano Guardini diz que Deus teria pronunciado sobre cada ser</p><p>humano uma senha que serve apenas para essa determinada pessoa. É</p><p>insubstituível. Somente a própria pessoa deve manuseá-la. Cada vida é um</p><p>milagre único e insubstituível. Vive-se a sua própria vida. E essa vida, mesmo</p><p>depois da morte, não poderá ser destruída. Temos esta única vida e não podemos</p><p>perder esta oportunidade. Somente eu e você sabemos usar a “senha” recebida.</p><p>Não importa a idade que tenhamos. A vida é como as quatro estações:</p><p>primavera, verão, outono e inverno, ou seja, adolescência, adulta, velhice e</p><p>descanso. Em cada dessas estações, podemos “produzir’: Primavera é o</p><p>desabrochar da vida, à jovialidade e vivacidade. Verão nos fala da plenitude da</p><p>vida. O Outono, nos fala da colheita. O Inverno nos fala da quietude e descanso,</p><p>a fim de que nova vida possa surgir. Para cada fase, existe um significado</p><p>correspondente. Não posso fazer planos se estou na fase do “inverno”, como se</p><p>vivesse na “primavera”, porém posso fazer planos mesmo no outono ou inverno.</p><p>Meus planos no “inverno” não podem ser os mesmos do “verão”... e assim por</p><p>diante. Cada etapa da minha vida deverá ser vivida e vivida em seu contexto.</p><p>Tal como Lutero podemos discernir e viver as várias etapas da vida! Ao morrer,</p><p>a 18 de fevereiro de 1546, dois dias antes, estivera viajando na tentativa de</p><p>reconciliar dois príncipes em litígios. Tal como Joabe “caiu como um guerreiro”.</p><p>Devido à brevidade da vida europeia no século XVI, os principais reformadores</p><p>não viveram muitos anos, não obstante terem realizado uma grande obra:</p><p>Calvino, viveu 54 anos; Mützer, 35; John Hus, 44; Melanchthon, 63; Zuínglio,</p><p>47; Karlstadt, 55 e Bucer, 60. Bem como o apóstolo Paulo, que segundo alguns,</p><p>seu ministério não passou de 15 anos. E o que dizer de Jesus Cristo, 33 anos,</p><p>com um ministério de no máximo 4 anos?</p><p>Fica registrado um pensamento oriental:</p><p>Quando nascestes, ao teu redor todos riam,</p><p>só tu choravas.</p><p>Faze por viver de tal modo que,</p><p>à hora da tua morte,</p><p>todos chorem,</p><p>só tu rias.</p><p>Lutero soube viver intensamente o século XVI e, assim, continua vivo com seu</p><p>legado.</p><p>Lutero 16/21</p><p>Até aqui, temos visto o Lutero/16, isto é, o Lutero inserido no século XVI. É o</p><p>homem Lutero filho do seu tempo: com sua visão europocentrista;</p><p>também uma</p><p>Europa em um processo de transição do Feudalismo para o Capitalismo, em que</p><p>um novo mundo coexiste com velhas estruturas; e um Lutero medieval, com</p><p>crendices inerentes a este momento histórico. Foge à natureza deste livro</p><p>discorrermos sobre este momento de passagem de um sistema de produção para</p><p>outro, mesmo porque a discussão tem sido grande, bastando citar as diferentes</p><p>abordagens entre historiadores e economistas, tais como Paul M. Sweezy e</p><p>Maurice Dobb, entre outros. O certo é que a hermenêutica bíblica de Lutero vai</p><p>refletir, mesmo tendo avançando consideravelmente, os ditames da época. Lutero</p><p>desconhece em suas reflexões bíblicas o método de abordagem histórico-crítico</p><p>dos séculos posteriores. Não podemos exigir dele as interpretações que somente</p><p>viriam em séculos subsequentes. Sua preocupação era presentar aos seus leitores</p><p>e leitoras uma hermenêutica e exegese visando puramente à edificação espiritual.</p><p>Não obstante, Lutero não deixa de aplicar o que hoje é um método histórico-</p><p>crítico quando analisa a autoria da Epístola de Tiago, por exemplo: 1º Confronta</p><p>o uso tanto de Paulo quanto de Pedro no uso de Gêneses 15, concluindo que o</p><p>autor não poderia ser um apóstolo; 2º O autor de Tiago não faz referência ao</p><p>sofrimento, morte e ao Espírito de Cristo; 3º Menciona Cristo várias vezes,</p><p>porém, nada ensina a seu respeito. De forma semelhante analisa a Epístola de</p><p>Judas. Mas Lutero não retirou essas epístolas do rol de livros inspirados. Até</p><p>neste ponto devemos inseri-lo em seu contexto de vida. Lutero, mais uma vez,</p><p>reflete o seu tempo.</p><p>Chega agora o momento de refletir sobre o Lutero/21, ou seja, o Lutero do</p><p>século XXI, e quiçá dos seguintes. É aquele que não somente vive o seu próprio</p><p>tempo, mas vislumbra época vindoura. O profeta é aquele que consegue</p><p>discernir o momento histórico em que está inserido e, de posse desta percepção,</p><p>projeta mudanças que ocorrerão somente além de sua própria geração. Assim foi</p><p>Lutero, tal como os antigos profetas sem discernir para si mesmos “os tempos e</p><p>estações” anunciaram “para nós” os valores de um novo mundo (1 Pe 1.12). É a</p><p>esse Lutero que somos devedores. Sua contribuição para o mundo</p><p>contemporâneo é inconteste.</p><p>Discorrer sobre o legado de Lutero é um grande desafio, mas vale a pena tentar,</p><p>pois cada vez que se lê e pesquisa Lutero mais se descobre Lutero. Ele marcou</p><p>profundamente o curso da história ao ponto do teólogo Paul Tillich afirmar: O</p><p>único que realizou uma verdadeira transformação que mudou a face da terra foi</p><p>Martinho</p><p>Lutero. Abalou os fundamentos medievais e abriu novos horizontes para o</p><p>mundo moderno que se descortinava. Embora tendo realizado uma obra</p><p>monumental, humanamente não teve o tempo necessário para vê-la completada,</p><p>porém tal como o preceito bíblico, “remiu o tempo” e, com isso, completou a sua</p><p>carreira e guardou a fé.</p><p>Nestes 534 anos do nascimento de Lutero ele continua vivo e cada vez mais</p><p>moderno. Ele é um dos que, na expressão de Luis Vaz de Camões em Os</p><p>Lusíadas, canto I, “se vão da lei da morte libertando” ou conforme Apocalipse</p><p>14.13, “bem-aventurados os que morrem no Senhor de agora em</p><p>diante...descansarão das suas fadigas ... pois as suas obras os seguirão”... e com</p><p>isso o seu legado!</p><p>O Legado de Lutero</p><p>O legado de Lutero é imenso. Vai desde a popularização da Bíblia para o povo</p><p>até a liberdade de consciência, tão inerente à pessoa como cidadã e hoje inserida</p><p>nas Constituições das nações democráticas. O seu legado passa também pela</p><p>moderna língua alemã; pelo sacerdócio universal dos crentes; de uma igreja</p><p>desvinculada ao Estado; da liturgia dos nossos cultos; da hinologia e de muitas</p><p>outras contribuições. Lutero escreveu, como já dito, desde política a vida</p><p>matrimonial. O luterano Walter Altmann, na obra Lutero e Libertação, associa</p><p>Lutero à Teologia da Libertação, desenvolvida em meados do século XX.</p><p>Discorrer sobre a herança de Lutero é mencionar temas que não só atingem a</p><p>pessoa, individualmente, mas sua aplicação também é normativa e afeta toda</p><p>sociedade. Podemos enumerar muitas contribuições, no entanto, existe uma, que</p><p>é a sua própria experiência com Deus e que nos faz pensar em nós mesmos.</p><p>Lutero, tal como Paulo, descobriu o caráter gracioso de Deus. De nossa parte é</p><p>uma experiência “passiva” em que o Deus é o autor desta relação. Lutero</p><p>descobriu que o cristão ao orar, louvar e exaltar, faz porque o próprio Deus o</p><p>impulsiona a fazer. Deus é o “ativo”. É Ele que realiza “tanto o querer quanto o</p><p>efetuar”. Quando descobrimos essa verdade, tal qual Lutero, “as portas do</p><p>paraíso” se abrem para nós e tudo passa a ter sentido, mesmo as adversidades e</p><p>desafios. “Não me escolhestes vós, disse Jesus, mas eu vós escolhi e vos nomeei</p><p>para que vades e dei fruto e o vosso fruto permaneça” ( Jo 15.16), assim ensinou</p><p>o Mestre dos mestres.</p><p>O legado de Lutero não ocorre somente nas áreas da teológicas, bíblicas ou</p><p>espirituais. Lutero é como um “rio que deságua no mar”. Podemos acompanhar</p><p>Lutero “enquanto rio”, no entanto, suas ideias se ampliam transformando-se num</p><p>“verdadeiro mar”. Teremos que avaliar o reformador “como um rio” para não</p><p>nos afogar em seu “oceano”.</p><p>Claro que podemos ver também em Lutero não somente os prós, mas também os</p><p>contras. Todavia os prós são bem superiores que aos contras. Muitos de seus</p><p>“contras” estão no contexto do “Lutero/16”. Voltamos a afirmar que: Lutero foi</p><p>um filho do seu tempo e refletiu por intermédio de seus escritos, palestras,</p><p>conselhos e cartas o seu ambiente, religioso e sócio-cultural.</p><p>Em meados dos anos 80 as obras do reformador começaram a vir a lume. A</p><p>Comissão Interluterana de Literatura (CIL) constituída e mantida pela Igreja</p><p>Evangélica Luterana do Brasil (IELB) e pela Igreja Evangélica de Confissão</p><p>Luterana (IECLB) iniciaram a publicação das Obras Selecionadas de Lutero,</p><p>com a publicação de 14 volumes. A partir daí temos a grande oportunidade de</p><p>avaliar Lutero pelo que ele mesmo diz, e não somente o que se diz dele.</p><p>Apresentaremos um pouco do legado do reformador, e é vidente que não</p><p>esgotaremos o assunto. Procuraremos estar sempre as margens deste rio. Quando</p><p>mais se ler Lutero, mais e descobrem contribuições. Somente aquele que ler</p><p>concordará. Comecemos pela:</p><p>Nova Compreensão das Escrituras</p><p>Sem sombras de dúvidas podemos afirmar que Lutero trouxe uma nova</p><p>compreensão das Sagradas Escrituras. Vamos relacionar essa verdade com um</p><p>fato que a pesquisa moderna tem contestado historicamente, mas que serve como</p><p>ilustração. O importante é a grande lição que ele nos traz, independente da</p><p>veracidade. Trata-se da Bíblia acorrentada, que Lutero teria visto pela primeira</p><p>vez. Provavelmente, a primeira vez que o reformador deparou-se com uma</p><p>Bíblia, ela estaria acorrentada. Essa prática se prende ao fato de que, uma Bíblia</p><p>de Gutenberg, em fins do século XV e início do XVI, era de grande valor.</p><p>Segundo Martin Dreher, “equivalia a uma junta de bois. Caso fosse roubada, o</p><p>prejuízo seria grande. O jeito era acorrentá-la”.</p><p>Assim Lutero teria contribuído para a libertação das Escrituras seus “grilhões”.</p><p>As Escrituras passaram a falar por si mesmas.</p><p>Embora esse episódio careça de veracidade, a prática de acorrentar Bíblia era</p><p>comum na época evitando-se assim o furto. Por analogia podermos dizer que</p><p>Lutero libertou as mentes cativas de uma interpretação “vinda de cima”, porque</p><p>as pessoas passaram a ler a Palavra de Deus com os seus próprios olhos.</p><p>Afirmava-se na época de Lutero, que só a Igreja e o papa podiam interpretar as</p><p>Escrituras e que não deviam ser toleradas opiniões e liberdades quanto à</p><p>consciência e ao culto. Lutero não pensava e nem agia assim. Ele popularizou a</p><p>Bíblia, fazendo-a chegar ao povo. O medievalista Jacques Le Goff assinala que</p><p>na Idade Média, a igreja utilizava-se de três meios para fazer com que alguém se</p><p>tornasse cristão: primeiro, fazer com que a pessoa fizesse citações bíblicas;</p><p>segundo, a utilização do raciocínio, terceiro, o uso das autoridades. Com esse</p><p>método as Escrituras se encontravam acorrentadas, pois as citações bíblicas não</p><p>podiam</p><p>ser lidas pelos leigos e sim pelos padres da igreja. Não eram os leigos,</p><p>mas os clérigos que se utilizavam da Bíblia; quanto ao uso do raciocínio à</p><p>Escolástica é que dava a palavra final e esta estava associada aos grandes</p><p>pensadores, Tomás de Aquino, o principal teólogo medieval tinha em</p><p>Aristóteles, por exemplo, um referencial. Lutero, na obra Dos Concílios e da</p><p>Igreja, declara como lia as Escrituras: “Quando estudei epístola aos Hebreus com</p><p>as glosas [notas explicativas] de São Crisóstomo, Tito e Gálatas com a ajuda de</p><p>São Jerônimo, Gênesis com a ajuda de Santo Ambrósio e Agostinho, o Saltério</p><p>com todos os escritores que se tem acesso”. Liam-se as Escrituras com olhos</p><p>filosóficos ou dos pais da igreja; e por último somente às autoridades</p><p>eclesiásticas. Declarava-se no século XVI, que as Escrituras eram obscuras e que</p><p>a Igreja reservava a si o direito de interpretá-las, à sua maneira. Não se está</p><p>afirmando que a Bíblia não era examinada, estamos destacando os limites desta</p><p>leitura e interpretação. O próprio Staupitz, Vigário Geral do Mosteiro em Erfurt,</p><p>onde Lutero iniciou seus estudos como monge, distribuía Bíblia para serem lida</p><p>pelos internos e o texto era a versão da Vulgata de S. Jerônimo, inclusive com</p><p>várias porções traduzidas de forma tendenciosas. Dizia-se, principalmente, nos</p><p>mosteiros, que a leitura da Bíblia era perigosa e que provocava rebeliões. Não</p><p>podemos afirmar que era proibida, mas sim uma leitura limitada e interpretada.</p><p>Assim, os monges e padres conheciam somente a versão latina e a Bíblia</p><p>completa estava disponível somente aos professores e pesquisadores.</p><p>Lutero rompe com este modelo e um dos princípios da Reforma do século XVI</p><p>foi Sola Scriptura (somente as Escrituras). A Bíblia passa a ser patrimônio de</p><p>todos: clero, leigos, poderosos, camponeses, homem, mulher, adultos e jovens. A</p><p>Bíblia tornou-se tão popular que, em 1535, um em cada setenta alemães, possuía</p><p>um Novo Testamento.</p><p>Pelo princípio Scriptura Sola dos reformadores, nada poderia ser dito fora das</p><p>Escrituras. Sobre a penitência como tesouro da igreja, Lutero foi categórico:</p><p>Porque (como já disse muitas vezes) isso, não pode ser provada por nenhuma</p><p>passagem da Escritura nem ser demonstrado por argumentos racionais. Além</p><p>disso, os que sustentam isso não o provam, mas simplesmente contam, como</p><p>todos sabem. Ora, eu disse anteriormente que afirmar na igreja alguma coisa,</p><p>para a qual não se pode apresentar qualquer argumento da razão ou passagem da</p><p>Escritura é expor a igreja a prisão dos inimigos e hereges, já que, segundo o</p><p>apóstolo Pedro, devemos prestar contas da fé e esperança que há em nós.</p><p>Para Lutero Jesus Cristo é a Palavra de Deus e ele conseguia relacionar as faixas</p><p>que envolviam o menino Jesus na manjedoura, apontando simbolicamente às</p><p>Escrituras.</p><p>A leitura e interpretação das Escrituras teriam que “vir de cima”, por meio da</p><p>Escolástica, Filosofia (principalmente de Aristóteles) e da Cúria. Lutero dirige-</p><p>se ao povo e faz com que a Bíblia seja compreendida. Ele dizia:</p><p>Muitas vezes nos sucedeu ficarmos, quatorze dias, quatro semanas, buscando e</p><p>perguntando por uma única palavra e, mesmo assim, algumas vezes não a</p><p>encontramos. Em nosso trabalho em Jó. O Mestre Filipe, Aurogado e eu, em</p><p>quatro dias, às vezes, não conseguimos concluir três linhas. Meu caro, agora que</p><p>está traduzido e pronto, qualquer um consegue lê-lo e entendê-lo, percorre três,</p><p>quatro folhas com os olhos e não tropeça, mas não se dá conta das pedras e toras</p><p>que havia ali, onde, ele, agora, passa como sobre uma tábua aplainada, ali,</p><p>tivemos que suar e nos angustiar até tirar do caminho essas pedras e toras para se</p><p>conseguir passar com tanta facilidade.” (O Sel. V.8 p. 108, 110-111) Não se deve</p><p>perguntar às letras na língua latina como se deve falar em alemão, como fazem</p><p>esses burros, e sim, é preciso perguntar a mãe em casa, às crianças na rua, ao</p><p>popular na feira, ouvindo como falam, e traduzir do mesmo jeito, então vão</p><p>entender e notarão que se está falando alemão com eles.</p><p>Ele incessantemente escreve sobre a Filosofia, principalmente de Aristóteles,</p><p>como prejudicial à Teologia. Veja algumas teses de Lutero para seus alunos na</p><p>conclusão do Bacharel em estudos Bíblicos: Tese 41. Quase toda ética de</p><p>Aristóteles é a pior inimiga da graça. Tese 43. É um erro dizer que, sem</p><p>Aristóteles, ninguém se torna Teólogo. Tese 44. Muito pelo contrário, ninguém</p><p>se torna teólogo a não ser sem Aristóteles. Tese 50. Em suma, todo o Aristóteles</p><p>está para a teologia como as trevas estão para a luz.</p><p>Com essas teses para serem analisadas, Lutero rompe com a espinha dorsal da</p><p>teologia romana baseada em Tomás de Aquino. Ele chama a todos para o Debate</p><p>sobre a Teologia Escolástica, predominante na Idade Média. Neste Debate, por</p><p>meio de 97 Teses, propõe um verdadeiro rompimento com Duns Escoto,</p><p>Aristóteles, diversos cardeais, bem como uma crítica a todo o sistema da teologia</p><p>Escolástica. Afirma que a Teologia precisava ser libertada, sobretudo da</p><p>“ditadura” de Aristóteles, a quem, certa vez, Lutero caracterizou como “esse</p><p>palhaço que, com sua máscara grega, tanto enganou a Igreja”. Não que Lutero</p><p>condenasse a razão em si, mas sim quando a razão sobrepusesse à Teologia.</p><p>Cada um em sua esfera de ação, assim preconizava o reformador.</p><p>Tomemos somente um exemplo para demonstrar a aplicação da Bíblia aos</p><p>princípios filosóficos. Platão ensinara que todo o universo está baseado na ordem</p><p>e que esta fora estabelecida pelo próprio Deus. Por intermédio da ordem, o</p><p>universo é o que é, ou seja, um cosmo. Esta ordem é aplicada à estrutura social</p><p>da humanidade. Assim imperadores e reis, fidalgos e camponeses, bispos e</p><p>sacerdotes, todos foram chamados por Deus e estão colocados num lugar para o</p><p>bem dessa ordem. Cada um cumprindo a sua obrigação, o todo prosperará e a</p><p>ordem seguirá o seu curso. Essa interpretação tornou o período medieval</p><p>caracterizado pela imutabilidade. Por que mudar o curso da sociedade, se tudo</p><p>está estabelecido por Deus? Cremos que esse discurso vai atender aos interesses</p><p>de determinados grupos para se manter em seu status quo. A essa ideia de ordem</p><p>podemos adicionar o pensamento de Aristóteles, quando nos fala de seu caráter</p><p>final. Para Aristóteles a ordem tende para um final, portanto, determinado por</p><p>uma finalidade. Tomás de Aquino uniu essas duas preposições — ordem e</p><p>finalidade — com a instalação do Reino de Deus. Ou seja, a grande tarefa é</p><p>transformar o mundo no Reino de Deus. Nessa transformação o ser humano deve</p><p>alcançar a vida em Deus em sua glória: aqui, o Reino de Deus, ali, a bem-</p><p>aventurança do indivíduo. Ir contra essa ordem e finalidade é ir contra a própria</p><p>vontade de Deus estabelecida. Essa é uma das explicações de muitos “hereges”</p><p>terem seu fim em uma fogueira: eles foram “os contras”.</p><p>Como professor em Wittenberg, Lutero vai renovar o currículo sentenciando:</p><p>Nossa Teologia e Santo Agostinho progridem felizmente e reinam em nossa</p><p>Universidade pela vontade de Deus. Aristóteles desaba, está perto de naufragar,</p><p>talvez para sempre. Estamos extremamente enojados das conferências sobre suas</p><p>sentenças. Ninguém pode mais esperar reunir um auditório se não se fala da</p><p>Bíblia, de Santo Agostinho ou de outro mestre de real autoridade eclesiástica.</p><p>Lutero desenvolveu o que poderíamos chamar de “deixe o texto falar. Não fale</p><p>por ele”. Compete-nos examinar as Escrituras e não interpretá-las. Na verdade,</p><p>elas já estão interpretadas. Vejamos o que diz em relação à compreensão do texto</p><p>de Isaías:</p><p>Quem quiser ler o santo profeta Isaías com proveito e compreendê-lo ainda</p><p>melhor não deveria desprezar o meu conselho... É necessário que se saiba qual a</p><p>situação na terra na época em que tiveram lugar as coisas inseridas no livro; se</p><p>saiba o que passava na cabeça das pessoas ou que tipo de planos tinham</p><p>juntamente com ou contra seus vizinhos, amigos e inimigos. E principalmente</p><p>como, em seu país, se postaram diante de Deus e diante dos profetas com suas</p><p>palavras e culto ou idolatria.</p><p>Outra questão fundamental aos nossos dias e que somos devedores</p><p>entrada para o convento, casamento e principais obras. É o Lutero</p><p>com suas crises existências até ao seu “caminho de Damasco”.</p><p>Concluímos com o legado. Que o leitor não pense que o legado de Lutero</p><p>esgotou-se nestas poucas linhas. Para falar sobre a influência do reformador às</p><p>gerações seguintes, teríamos que invadir terrenos nas áreas educacionais,</p><p>políticas, filosofia, ética, moral, economia, etc. e etc. Mesmo não sendo um</p><p>expert em todos os assuntos que discorria, no entanto, ele os respaldava ou</p><p>inseria no que mais entendia: as Sagradas Escrituras. Lutero via na prática das</p><p>Escrituras a solução para todas as questões que se envolvia.</p><p>Consta esta obra de um apêndice, com três vertentes que não estão inseridas no</p><p>texto, mas que se relacionam diretamente a Martinho Lutero. Trata-se da</p><p>cronologia, onde se destacam algumas das suas múltiplas atividades e</p><p>informações sobre a sua vida. Segue-se a contemporaneidade do reformador com</p><p>seus amigos, apoiadores e mesmo oponentes.</p><p>Sobre a conclusão da obra, prefiro deixar que o leitor, por si só faça a sua</p><p>conclusão.</p><p>Parafraseando Pilatos, digo: “Eis aí o ... livro”.</p><p>Sumário</p><p>Apresentação</p><p>Contextualizando</p><p>Experiência de Vida</p><p>Leitura Condicionada</p><p>Nas Entrelinhas</p><p>Primeira Parte: Época</p><p>Lutero e seu Tempo</p><p>Sacro Império Romano-Germânico</p><p>Alemanha do Século XVI</p><p>Wittenberg</p><p>Segunda Parte: Vida</p><p>O Homem Lutero</p><p>Uma Vida Moldada</p><p>Do Nascimento até a Entrada para o Convento</p><p>Mansfeld</p><p>Eisenach</p><p>Universidade de Erfurt</p><p>O Frade no Convento</p><p>O “Pai” Staupitz</p><p>Casamento e Família</p><p>Carta ao Filho Hans em 1505</p><p>As Obras de Lutero</p><p>Lutero e a Arte de Viver</p><p>Terceira Parte: Legado</p><p>Lutero 16/21</p><p>O Legado de Lutero</p><p>Nova Compreensão das Escrituras</p><p>O Atual Cânon e Lutero</p><p>Liberdade de Consciência</p><p>Os Dois Reinos</p><p>O Alemão Moderno e a Tradução da Bíblia</p><p>Desenvolvimento do Estado Moderno</p><p>Sobre a liturgia</p><p>Lutero e a Psicanálise</p><p>Reformulação e formação da identidade católica</p><p>Vozes Dissidentes</p><p>O Concílio de Trento</p><p>Vaticano I e Trento</p><p>Vaticano II</p><p>Situação do Homem Diante de Deus</p><p>Conclusão</p><p>Bibliografia</p><p>Apêndice I: O Legado dos Reformadores</p><p>Apêndice II: Cronologia da Vida de Lutero...</p><p>Apêndice III: Lutero e seus Principais Contemporâneos Reformadores Ligados</p><p>às Reformas</p><p>Contextualizando</p><p>Começaremos o nosso tema invocando uma cantiga mineira, bastante popular, a</p><p>qual reproduzimos parte da letra, na esperança de cantarmos juntos:</p><p>Como pode um peixe vivo</p><p>viver fora da água fria</p><p>como pode um peixe vivo</p><p>viver fora da água fria.</p><p>Como poderei viver</p><p>como poderei viver</p><p>sem a tua, sem a tua</p><p>sem a tua companhia.</p><p>Mesmo sabendo que essa cantiga é uma declaração de amor entre pessoas,</p><p>podemos, no entanto, de forma semelhante, aplicá-la a uma íntima relação entre</p><p>a pessoa e seu meio ambiente. Não existem pessoas alienadas do mundo em que</p><p>vivem. Viver é manter-se em relação. O ser humano sempre reproduzirá a</p><p>realidade em que vive, por meio de sua atitude, mesmo que seja</p><p>inconscientemente. Tal como um peixe não vive “fora da água fria”, de modo</p><p>semelhante não podemos viver sem a “companhia” de tudo que nos rodeia, seja</p><p>por intermédio de ideologia, crença, costumes, valores e, em termos gerais, a</p><p>cultura a qual somos inseridos. Estamos presos ou condicionados à realidade que</p><p>herdamos. Mesmo sabendo dessa verdadeira prisão; tendo consciência dos</p><p>nossos limites frente a essa realidade e até mesmo vislumbrando uma mudança</p><p>deste mundo que nos pressiona, estamos condicionados à esta situação. Jamais</p><p>nos livraremos desta “água fria” ou “companhia”. Caso nos revoltemos e</p><p>rompemos com nossa realidade cairemos em outra que foram construídas.</p><p>Foi assim no passado e assim será para sempre. Tomemos o exemplo do apóstolo</p><p>Paulo. Jamais ele poderia escrever suas cartas às igrejas por ele fundadas, por</p><p>intermédio de e-mail, rede social ou mensagem de texto, pois simplesmente não</p><p>existiam em seu momento histórico. Nunca poderemos pensar num “Paulo</p><p>internauta”. Paulo reproduziu suas cartas ou epístolas o seu próprio mundo</p><p>vivencial, isto é, uma sociedade greco-romana do primeiro século da era cristã,</p><p>bem como o judaísmo da dispersão. Na “cabeça” do apóstolo não havia um</p><p>judeu da Judeia e sim um judeu da diáspora. Tal como todo ser humano, também</p><p>é um “peixe” que não poderia viver “fora da água fria”. Podemos detectar frases,</p><p>expressões, pensamentos e vários aspectos culturais nas palavras do apóstolo que</p><p>faziam parte da cultura de sua época. Somos nós, na verdade, que precisamos</p><p>contextualizar os escritos de Paulo à nossa realidade.</p><p>E assim caminha a humanidade!</p><p>De forma semelhante, ninguém é isento de imparcialidade quando escreve, lê,</p><p>fala ou até mesmo quando pensa. Sempre refletiremos a realidade que vivemos.</p><p>Não somos alienígenas e nem uma ilha, pois, não vivemos isolados. Já dizia o</p><p>sábio Aristóteles que o “homem é um ser político”, isto é, vive na Polis;</p><p>precisando se relacionar com o seu mundo. A prova de nossa humanidade é viver</p><p>e conviver em seu meio.</p><p>Experiência de Vida</p><p>Em minha experiência de professor, ao iniciar a aula, escrevia no canto do</p><p>quadro uma pequena frase para reflexão. Além de escrever, reservava uns</p><p>poucos minutos para a explicação e desafiava as turmas a refletir. Lembro-me de</p><p>que um dos pensamentos preferidos era a afirmação que: “Somos totalmente</p><p>livres quando pensamos”. Esse pensamento transformara-se numa verdade</p><p>insofismável, até mesmo um axioma, isto é, o que não carece de prova, porque</p><p>se prova a si mesmo. Axioma é uma sentença tão abrangente e vigorosa a ponto</p><p>de se constituir a última premissa. Assim, não havia quem contestasse este</p><p>pensamento: somos livres somente no pensar. Puro engano e sofisma: estávamos</p><p>equivocados, tanto o professor quanto o aluno. Até certos gracejos surgiam desta</p><p>“máxima”, pois poderíamos pensar o que quiséssemos e não haveria nenhum</p><p>perigo em ser descoberto. Somos livres para pensar e ninguém é capaz de</p><p>descobrir o que pensamos.</p><p>Assim prosseguia com a aula após ter refletido sobre essa “verdade”. No entanto,</p><p>lendo o psiquiatra Augusto Cury, descobri que não somos livres nem no</p><p>pensamento. Sempre pensamos o que o cérebro projetou, por meio dos nossos</p><p>sentidos. O que vemos, sentimos, experimentamos, em outras palavras, tudo que</p><p>vivenciamos são como “arquivos” que o nosso cérebro armazena e são</p><p>transformados em pensamentos. Estaremos sempre reproduzindo e projetando</p><p>todo um acervo que o nosso cérebro produziu. Ao pensarmos estamos revelando</p><p>a nós mesmos o que o cérebro arquivou. Isso nos revela que, até no pensamento,</p><p>estamos condicionados ao mundo que nos rodeia. Vivemos num ambiente</p><p>cultural e ideológico que nos molda.</p><p>Leitura Condicionada</p><p>Verdade semelhante se aplica à leitura de uma obra. Toda leitura que fazemos,</p><p>projetamos na leitura o nosso mundo, ou seja, “cada um lê com os olhos que</p><p>tem” e interpreta a partir de onde os pés pisam. “Cada ponto de vista é a vista de</p><p>um ponto”, afirmou L. Boff. Na prática, quando lemos, a nossa leitura está sendo</p><p>interpretada por nós mesmos. Ninguém conta uma história, na verdade,</p><p>recontamos. Assim, sempre estaremos projetando sobre o que lemos o nosso</p><p>próprio acervo adquirido ao longo do tempo e, nessa leitura, sempre</p><p>adicionaremos algo de nós mesmos ou que nos foi transmitido. O psiquiatra J.</p><p>Jung sentenciou que: “Nascemos originais e nos tornamos cópias”. Nenhuma</p><p>leitura será imparcial. Haverá sempre o nosso “achômetro”. Nesta linha de</p><p>raciocínio, Frei Betto afirmou que “a cabeça pensa onde os pés pisam”. É de</p><p>Inajá Martins de Almeida a edificante trova:</p><p>Dê-me uma metade de lã e eu teço um agasalho.</p><p>Dê-me uma palavra e eu formulo uma frase.</p><p>Dê-me uma frase e eu escrevo um texto.</p><p>Dê-me um texto e eu componho um livro.</p><p>Podemos detectar também a dimensão da leitura, na medida em que sempre</p><p>estaremos “viajando” por meio dela. Vamos além do que lemos. Certamente,</p><p>você já leu uma determinada obra e posteriormente a assistiu transformada em</p><p>uma novela, filme ou peça teatral. Geralmente, apreciamos mais a sua leitura do</p><p>que a sua visualização, pois na leitura,</p><p>a Lutero é</p><p>quanto ao Cânon das Escrituras.</p><p>O Atual Cânon e Lutero</p><p>É consenso entre os estudiosos que o fechamento do Cânon ocorre em fins do</p><p>século IV, na época do Imperador Teodósio. O historiador eclesiástico Eusébio</p><p>de Cesareia apresentou, de forma sucinta, os livros das Escrituras que</p><p>posteriormente seriam reconhecidos canônicos, ou melhor, inspirados por Deus e</p><p>assim podendo servir de regra para a Igreja.</p><p>Eusébio de Cesareia nasceu aproximadamente no ano 260, na Palestina, e</p><p>morreu em 339. Foi um dos primeiros historiadores do Cristianismo e é</p><p>considerado o “pai da história da igreja”. Sua principal obra História</p><p>Eclesiástica, teve como fontes a Biblioteca que Orígenes (ca. 185 — ca. 254)</p><p>deixara em Cesareia e que Panfílio (morto ca. 309) aumentara. Utilizou-se</p><p>também do trabalho de outro historiador de nome Hegesipo (ca. 105-180) que,</p><p>do pouco que se sabe, conhecemos principalmente de citações do próprio</p><p>Eusébio.</p><p>Após a perseguição da igreja em 313, foi eleito Bispo em Cesareia, tendo sido</p><p>discípulo de Panfílio, e vivido nos dias do imperador Romano Constantino e</p><p>comprometido com o mesmo, o qual o chama de “instrumento de Deus para a</p><p>igreja”. Chega mesmo a compará-lo com Moisés (Livro IX, 8).</p><p>Eusébio viveu no contexto da controvérsia ariana, tendo participado do Concílio</p><p>de Niceia (325) que condenou Ário bem como o arianismo, doutrina na qual não</p><p>aceitava a divindade de Jesus. As obras de Eusébio sempre possuíam um cunho</p><p>apologético, tais como Praeparatio Evangelica, dedicada à crítica ao paganismo e</p><p>Demonstratio Evangelica em que refuta os argumentos dos judeus contra os</p><p>cristãos. Escreveu vários comentários bíblicos, obras teológicas e epístolas.</p><p>Na História Eclesiástica, escrita em meados da primeira década do século IV</p><p>(315), Eusébio faz apologia ao cristianismo afirmando que a fé cristã era a</p><p>consumação de toda a história humana.</p><p>Também nesta época discutia-se calorosamente a questão do fechamento do</p><p>Cânon das Escrituras do Novo Testamento, tendo o nosso historiador</p><p>apresentado a relação dos livros envolvidos nesta discussão. Lendo a relação</p><p>apresentada por Eusébio percebe-se o direcionamento pelo qual encaminhava o</p><p>fechamento oficial do Cânon em fins do século IV, época, inclusive, em que o</p><p>historiador já estava morto. O fechamento ocorreu em, aproximadamente, 395 e</p><p>Eusébio morrera em 339.</p><p>O autor da História Eclesiástica dividiu os livros em julgamento em quatro</p><p>categorias, extraídas do Livro III, 25. Eusébio de Cesareia nos informa sobre as</p><p>Escrituras reconhecidas e das que não o são:</p><p>1. Os admitidos [reconhecidos]: Quatro Evangelhos, Atos dos Apóstolos,</p><p>Cartas de Paulo [em um total de 14 — ele incluía Hebreus], 1 João, 1 Pedro</p><p>e Apocalipse de João.</p><p>2. Os discutidos [disputados]: Tiago, Judas, 2 Pedro, 2 e 3 de João. [temos</p><p>aqui — somando os admitidos e discutidos — 27 livros que mais tarde</p><p>foram considerados canônicos, ou seja, inspirados e reconhecidos].</p><p>3. Os espúrios [não autênticos]: Atos de Paulo, pastor de Hermas,</p><p>Apocalipse de Pedro, Carta de Barnabé e Didaquê. [Nesta terceira</p><p>categoria, Eusébio inclui também Apocalipse que em sua época alguns o</p><p>consideravam espúrio].</p><p>4. Os heréticos: Os Evangelhos de Pedro, de Tomé, de Matias, Atos de</p><p>Andre e de João.</p><p>Nota: Lendo as Escrituras do Novo Testamento observamos, “nas entrelinhas”,</p><p>uma filtragem dos temas que seriam considerados ortodoxos (de uma fé reta,</p><p>correta) e consequentemente, canonizados. Examinando com diligência o Novo</p><p>Testamento, em especial o Evangelho de João, percebemos a rejeição que esse</p><p>Evangelho faz de determinadas interpretações sobre a pessoa de Cristo. De</p><p>forma veemente ele reprova as distorções que se faziam em relação à filiação</p><p>com o Pai, sua encarnação, sua unidade com o Pai e divindade, dentre outros. O</p><p>próprio texto de Pedro já destacava os escritos de Paulo em pé de igualdade com</p><p>“as outras Escrituras”, melhor dizendo, as Escrituras inspiradas pelo Espírito</p><p>Santo.</p><p>Desde o fim do século IV até meados do século XVI o processo de canonização</p><p>das Escrituras passou por discussões com avanços e retrocessos para o seu</p><p>fechamento definitivo. Cronologicamente temos:</p><p>V-VIII = Processo de consolidação.</p><p>VIII = Forma definitiva do Cânon.</p><p>IX/XV = Contestação esporádica.</p><p>XVI = Fechamento no Concílio de Trento, no contexto de Lutero.</p><p>Percebe-se que o “fechamento não foi tão fechado” assim. Mesmo decidindo-se</p><p>pelos 66 livros, ao longo dos séculos foram adicionando outros livros e</p><p>contestando os considerados canônicos. Basta tomarmos como exemplo o</p><p>Catolicismo Ortodoxo.</p><p>Não fugindo ao nosso objetivo que é o Cânon luterano, sabemos que existe uma</p><p>diferença em quantidade de livros das Escrituras entre católicos e protestantes. A</p><p>Bíblia protestante é composta de 66 livros. A Bíblia católica, além dos 66 livros,</p><p>comporta ainda mais 7 livros. Os livros de Tobias, Judite, I Macabeus II</p><p>Macabeus, Baruc, Sabedoria, e Eclesiástico. Também os acréscimos de Ester</p><p>10,4 -16, 24 e Daniel 3.24-90 e capítulo 13 e 14.</p><p>Lutero vai promover e desenvolver um “Cânon dentro do Cânon”.</p><p>Vejamos:</p><p>1. A Bíblia possui uma “correlação perfeita entre a Palavra e a fé”. A respeito de</p><p>Maria o Magnificat diz: “[...] após a experiência pessoal em que foi iluminada e</p><p>instruída pelo Espírito Santo. Ninguém compreenderá a Deus ou a sua Palavra se</p><p>não for diretamente esclarecido pelo Espírito Santo”.</p><p>2. Cada livro das Escrituras tem um objetivo próprio, e por isso são classificados</p><p>de acordo com a natureza e o valor de edificação. Assim, Lutero estabelece</p><p>regras na medida em que os livros expressam a realidade de Cristo. Cristo tem</p><p>que estar nas Escrituras.</p><p>3. O Antigo Testamento é o livro da Lei. O Novo Testamento “é a mensagem das</p><p>dádivas de Cristo, das quais nos beneficiaremos se tivermos fé”. Por esse</p><p>motivo, a importância que Lutero dá ao Segundo Testamento. Porém nunca</p><p>abandona o estudo do Antigo Testamento, principalmente os Salmos que declara</p><p>ser: “a síntese e resumo da Bíblia”.</p><p>4. Quanto ao Novo Testamento Lutero terá preferência por certos livros.</p><p>4.1 O Evangelho de João, as Epístolas de Paulo (em especial Romanos) e 1</p><p>Pedro “são o cerne e a medula de todos os outros livros, inclusive superiores aos</p><p>três Evangelhos”. Cada cristão deveria lê-los primeiro e com maior frequência e</p><p>familiarizando-se com eles pela leitura diária como pão de cada dia.</p><p>Não encontrará neles muitas obras e milagres de Cristo, porém, encontrará como</p><p>a fé em Cristo, supera: 1) pecado, morte e inferno; 2) concede vida, justiça e</p><p>salvação, e isso caracteriza o Evangelho.</p><p>As Epístolas de Paulo superam em muito os três Evangelhos.</p><p>4.2 O Evangelho de João e sua 1 Epístola, as Epístolas de Paulo (principalmente</p><p>Romanos), Gálatas, Efésio e 2 Pedro são os que apresentam Cristo e ensinam</p><p>tudo que é necessário e bom saber.</p><p>4.3 “Em comparação, a epístola de Tiago é uma epístola de palha, pois não tem</p><p>caráter evangélico”. (Deve-se observar que Lutero fala em comparação).</p><p>4.4 O menos estimado era o Apocalipse.</p><p>4.5 Lutero rejeitou todos os apócrifos ou deuterocanônicos, aceitos pelo Concílio</p><p>de Trento e promoveu a consolidação da Bíblia aceita pelo protestantismo</p><p>moderno. Por que Lutero rejeitou esses livros? Os teólogos medievais definiam o</p><p>Antigo Testamento como “aquelas obras do Antigo Testamento contidas nas</p><p>Bíblias gregas e latinas”, isso é a Septuaginta que constava os apócrifos,</p><p>diferentemente do Antigo Testamento judaico. Lutero e os reformadores viam</p><p>contradições entre os apócrifos ou deuterocanônicos e o Antigo Testamento</p><p>judaico, assim os rejeitam. Tomemos por exemplo 2 Macabeus 12. 40-46, onde</p><p>consta oração pelos mortos. Assim o princípio Sola Scriptura dos reformadores</p><p>deve prevalecer.</p><p>A sua nova compreensão das Escrituras fez com que Lutero ficasse com a sua</p><p>consciência liberta, todavia, cativa à Palavra de Deus. Ficando escravo da</p><p>Palavra não poderia aceitar o que era contra à Palavra.</p><p>Liberdade de Consciência</p><p>Falar ou discorrer sobre liberdade de consciência em Lutero é falar dos pontos</p><p>centrais de sua postura teológica.</p><p>Ele estava tão consciente deste fato que, em</p><p>hipótese nenhuma abria mão. Jamais poderia “se retratar”. Estava em sua</p><p>natureza não ir contra a sua própria liberdade de consciência, uma liberdade</p><p>presa à Palavra. Essa questão foi tão marcante em Lutero que, em 1793, cerca de</p><p>250 anos após sua morte, já se faziam orações ao reformador invocando sua</p><p>tônica de liberdade: “Ó Jesus e Lutero, santos padroeiros da liberdade, que em</p><p>vossos tempos de humilhação tomastes as cadeias de humanidade e as</p><p>esmagastes com titânico poder, [...] olhai agora de vossas alturas cá para baixo;</p><p>olhai para vossos descendentes e exultai com os grãos que agora germinam e se</p><p>agitam ao vento”.</p><p>De acordo com professor Peter C. Hodgson, podemos colocar Lutero como</p><p>apóstolo da liberdade, tal como Martin Luther King, pelos direitos civis negros,</p><p>nos Estados Unidos, do profeta Amós por seu clamor por justiça ou Paulo, em</p><p>sua ênfase pelo evangelho cristão. Parafraseando Paul Sartre, Lutero estava</p><p>“condenado à liberdade”.</p><p>A sua famosa tese aparentemente paradoxal expressa bem sua liberdade: “O</p><p>cristão é um senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito. O cristão é um</p><p>servo oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito”.</p><p>Lutero faz a distinção da natureza humana entre espiritual e corpórea. Enquanto</p><p>pela natureza espiritual ela é chamada de espiritual, interior e nova, a pessoa,</p><p>cuja fé está em Cristo, é livre. No entanto, pela natureza corpórea, ela é chamada</p><p>pessoa carnal, exterior, velha e com suas necessidades. A fé em Cristo produzirá</p><p>o amor, o qual nos fará devedor. Assim enquanto na fé em Cristo somos livres,</p><p>no amor a Cristo somos devedores. Na primeira premissa, pela fé em Cristo, a</p><p>alma do cristão se une ao seu Noivo e se tornam uma só carne, num verdadeiro</p><p>casamento de Deus e da humanidade em que a liberdade de Deus se torna a</p><p>liberdade dos seres humanos. Pela premissa seguinte, os cristãos estão</p><p>vinculados uns aos outros pelo serviço, pela fé que faz boas obras, pela vida que</p><p>vive não para si mesmo, mas para outros e, consequentemente, estão sujeitos às</p><p>autoridades quando estas não exigem algo contrário a Deus.</p><p>Querer trazer Lutero como pioneiro da liberdade de consciência não condiz com</p><p>a verdade histórica. Antes dele vozes se pronunciaram neste sentido, em especial</p><p>Boécio (480-524) e Cassiodoro (480-575) mencionaram “consciência liberta”.</p><p>Fazer de Lutero o primeiro pensador a ter formulado a expressão “liberdade de</p><p>consciência” é enganosa. No entanto, durante a Idade Média (476-1453)</p><p>raramente foi mencionado esse termo tão comum aos nossos dias. Lutero não</p><p>inventou a expressão, mas contribuiu para sua proeminência. Fazer o que Lutero</p><p>fez e posicionar-se dessa forma foi um dos grandes avanços em sua época.</p><p>Um dos efeitos da descoberta por Lutero da justificação pela fé foi a de “minar</p><p>todo o sofisticado sistema eclesiástico que impunha múltiplas cargas de</p><p>consciência e tributos financeiros ao povo”. Lutero ao apontar a livre graça de</p><p>Deus, abriu espaço para a libertação da consciência e dos corpos. Ele abre as</p><p>portas da graça libertadora. Com a consciência livre, a pessoa está livre para</p><p>pensar e agir. Com a consciência livre, pode-se reivindicar toda mudança sem</p><p>temor, pois a mudança começa na consciência.</p><p>O filósofo prussiano Fichte, afirma, segundo Carter Lindberg, “que a</p><p>contribuição de Lutero à liberdade humana é percebida como uma contribuição</p><p>universal, e não simplesmente nacional”.</p><p>Existem várias citações ao longo da vida e escritos de Lutero quando invoca a</p><p>sua consciência. Porém uma se destaca quando, diante do imperador do Sacro</p><p>Império Romano-Germânico, foi-lhe imposto retratar-se. Ele respondeu:</p><p>Visto que S. Majestade e Vossas Senhorias exigem uma resposta simples, quero</p><p>dá-las sem cornos e sem dentes do seguinte modo. A não ser que seja</p><p>convencido por testemunho das Escrituras ou por argumento evidente (pois não</p><p>acredito, nem nos papas, nem nos concílios exclusivamente, visto que é certo</p><p>que os mesmo erraram muitas vezes e se contradisseram a si mesmos) — estou</p><p>vencido pelas Escrituras por mim aduzidas e minha consciência está presa nas</p><p>palavras de Deus — não posso e não quero retratar-me de nada, porque agir</p><p>contra a consciência não é prudente nem íntegro. Que Deus me ajude. “Amem.</p><p>(Essa última frase está escrito em alemão, dentro do texto latino)</p><p>A questão da consciência é tão marcante em Lutero que ele sempre faz referência</p><p>ao termo em suas obras. Citando uns poucos exemplos temos nas Considerações</p><p>sobre o Sigilo de seu Conselho Confessional, menciona 6 vezes; Da Vida</p><p>Matrimonial, 3 vezes; Comentário de Lutero sobre suas Teses Debatidas em</p><p>Leipzig, 9 vezes; Exortação à Paz: resposta aos doze artigos do campesinato da</p><p>suábia, 11 vezes; Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses, 6</p><p>vezes; em sua Carta, de duas páginas, em resposta a publicação Contra os</p><p>Camponeses Assaltantes e Assassinos, 1 vez; Magnificat, 2 vezes e Comércio e</p><p>Usura, 8 vezes. Raros foram os momentos em que Lutero não usa a palavra</p><p>consciência em seus escritos.</p><p>Deve-se observar que os argumentos de Lutero eram que: 1) sua consciência</p><p>estava cativa à Palavra de Deus; 2) se lhe fosse mostrado o seu erro por</p><p>argumentos tirados das Escrituras, ele se retrataria. Se não, “não é certo nem</p><p>recomendável proceder contrariamente a sua consciência”. O porta-voz da igreja</p><p>disse: “abra mão da consciência. Nada há mais seguro do que submeter-se à</p><p>Igreja”. Tradição acima das Escrituras — isso Lutero não tolerava!</p><p>Um exemplo prático da liberdade de Cristo na vida de Lutero está na própria</p><p>grafia de seu sobrenome Lutero. Martin Dreher informa que o reformador passou</p><p>a utilizar-se deste sobrenome a partir dos seus escritos de 1518. Originalmente</p><p>era Luder ou Lüder. No alemão moderno, Luder é traduzido por “vagabundo”.</p><p>Temos então Martin Luder. Após anos de reflexões principalmente em Paulo, o</p><p>reformador descobriu a liberdade em Jesus. Assim, liberto pela graça e fé em</p><p>Cristo, passou a grafar o sobrenome utilizando-se da palavra grega eleutheria,</p><p>que significa “liberdade”. Surge Eleutherius que deriva a grafia</p><p>Luther/Luthero/Lutero: Martinus Eleutherius (Martinho Lutero), aquele que</p><p>havia descoberto a eleutheria, ou seja, a liberdade em Cristo.</p><p>Os Dois Reinos</p><p>Este é um dos tópicos dos mais melindrosos com diversas interpretações. Por</p><p>isso nos servimos da reflexão sobre Lutero de Walter Altmann. Este mestre com</p><p>equilíbrio nos apresenta a relação igreja e Estado em Lutero. Em outros termos</p><p>“poder temporal” e “poder espiritual”.</p><p>Ele inicia afirmando esta dicotomia “não podemos reportar a Lutero”. Jamais</p><p>Lutero separou igreja e Estado. Jamais os apresentou “como instâncias</p><p>autônomas”. Essa moderna separação tem suas origens no Iluminismo do século</p><p>XVIII. O que Lutero fez foi “voltar-se contra o desvirtuamento da igreja em</p><p>poder temporal e político. Procurou mostrar uma desvinculação de funções.</p><p>Cabe as autoridades realizarem ‘reformas políticas, econômicas e sociais que</p><p>afetassem a igreja; e competia também a esta confrontar as autoridades políticas</p><p>com a vontade de Deus’”.</p><p>Altmann faz um paralelo entre o Estado e igreja, exemplificando-os conforme a</p><p>seguir:</p><p>Estado Igreja</p><p>Secular Espiritual</p><p>Ordem Social Ordem eclesiástica</p><p>Ordem política Ordem privada</p><p>Corpo Alma</p><p>Poder de espada Poder da Palavra</p><p>Lei Evangelho</p><p>Coerção Amor</p><p>Punição Perdão</p><p>Outro fato que devemos levar em consideração sobre este tema é que, ao tratar</p><p>Lutero do assunto, está sendo proibida a “compra e venda” de sua tradução do</p><p>Novo Testamento pelas autoridades seculares, com aquiescência da igreja.</p><p>Queres saber por que Deus leva os príncipes temporais a errar tão</p><p>horrivelmente? Pois eu to direi: Deus lhes perverteu os sentidos e quer</p><p>exterminá-los como exterminou os aristocráticos eclesiásticos. Pois meus</p><p>inclementes senhores, o papa e os bispos, deveriam ser bispos e pregar a Palavra</p><p>de Deus. Neste ponto, porém, são omissos e converteram-se em senhores</p><p>seculares e governam com leis que concernem somente ao corpo e aos bens.</p><p>Inverteram as coisas maravilhosamente. Deveriam</p><p>governar interiormente o país</p><p>e o povo. Isso, porém, não fazem. Nada mais sabem fazer do que esfolar e</p><p>raspar, cobrando imposto sobre impostos, taxa sobre taxa, soltando aqui um urso,</p><p>ali um lobo. Além disso, não conhecem nem fidelidade, nem verdade, e portam-</p><p>se de maneira que até os ladrões e bandidos considerariam excessiva. Seu regime</p><p>secular é tão decadente como o dos tiranos eclesiásticos. Por isso Deus também</p><p>lhes perverte a mente, de modo que também procedem de forma absurda,</p><p>arvorando-se domínio especial sobre as almas, enquanto os outros querem</p><p>governar secularmente.</p><p>Percebe-se que Lutero faz uma crítica veemente quanto à mistura das esferas de</p><p>atuação tanto do temporal quanto do espiritual. Mais uma vez citando sua</p><p>clássica obra À Nobreza Cristã da Nação Alemã, o reformador, apresenta 28</p><p>propostas para o melhoramento da igreja e da própria nação. Ao citarmos</p><p>algumas dessas proposições, podemos perceber a vinculação do “espiritual” com</p><p>o “temporal” e a preocupação de Lutero em separar uma da outra para que cada</p><p>um atue em sua própria esfera.</p><p>Algumas propostas enumeradas por Lutero:</p><p>1. Todo príncipe, toda nobreza e toda cidade devem proibir, sem pestanejar, que</p><p>se entregue as anatas [Imposto paga à Sé Apostólica, correspondente à renda de</p><p>um ano, pelos que recebiam benefícios ou cargos eclesiásticos.] a Roma,</p><p>abolindo-as por completo.</p><p>2. Com suas maquinações romanas, comendas, adjutórios, reservas, gratiis</p><p>expectativis [promessas de cargos eclesiásticos ainda ocupados], meses papais,</p><p>incorporações, uniões, pensões, pálios, regras de chancelaria e outras patifarias</p><p>dessa espécie o papa se apodera de todas as fundações alemãs sem autorização e</p><p>direito para isso.</p><p>3. Que seja emitida uma lei imperial para que, de hoje em diante, não se busque</p><p>mais em Roma nenhuma capa episcopal e nenhuma confirmação de qualquer</p><p>dignidade.</p><p>4. Que nenhuma questão secular seja levada a Roma.</p><p>5. Nenhuma reserva [direito sobre um feudo] deve valer.</p><p>6. Devem ser abolidos também os casus reservati [casos em que a absolvição do</p><p>pecador está reservada ao papa ou a uma pessoa autorizada por ele]</p><p>9 O papa não deve ter qualquer poder sobre o imperador.</p><p>10. O papa deve abster-se e tirar sua colher da sopa, não se arrogando título</p><p>algum sobre o reino de Nápoles e da Sicília.</p><p>16. Abolir ou reduzir os aniversários de falecimentos, ofícios pelos mortos e das</p><p>missas de réquiem.</p><p>17. Abolir algumas penas ou castigo do direito canônico, particularmente o</p><p>interdito</p><p>25. As universidades também precisam de uma boa e profunda reforma.</p><p>Esses exemplos por si só revelam o objetivo de Lutero diante dos nobres alemãs,</p><p>ou seja, chamá-los para si. Discurso este que certamente agradara a classe</p><p>dominante. Em verdade, o que Lutero quer é uma separação de funções. Chega</p><p>mesmo a afirmar:</p><p>Deixai o imperador alemão ser imperador genuína e livremente, não permitindo</p><p>que seu poder e sua espada sejam suprimidos por essas cegas alegações de</p><p>hipócritas papais, como se estivessem eximidos da espada e devessem governar</p><p>sobre todas as coisas.</p><p>Somente a partir do século XVIII o processo de separação entre Estado e religião</p><p>ganha consistência... Lutero foi um dos que lançou a semente!</p><p>O Alemão Moderno e a Tradução da Bíblia</p><p>A questão do moderno alemão e a tradução da Bíblia feita por Lutero estão</p><p>intimamente relacionadas. Ao traduzir as Escrituras dos originais para o alemão,</p><p>Lutero vai modelar o idioma germânico. Sua tradução contribuiu para o</p><p>nascimento do moderno alemão. Não estamos afirmando que ele criou o alemão</p><p>dos nossos dias (embora haja quem defenda), mas contribuiu para tal. Para que</p><p>sua tradução chegasse ao entendimento do povo ele criava novos vocábulos para</p><p>melhor se comunicar, objetivando um “alemão comum”. Esses vocábulos e</p><p>criações foram assimilados na sociedade alemã ao longo dos anos. Vocábulos</p><p>essencialmente alemães e muitos deles passaram para a linguagem corrente. A</p><p>Bíblia de Lutero propagou-se por toda a Alemanha e ainda reina; Lutero fez com</p><p>que “esse velho livro” se tornasse uma fonte de rejuvenescimento eterno do</p><p>idioma alemão. Todas as expressões, todos os movimentos que se encontram na</p><p>Bíblia de Lutero são alemães, os escritores podem empregá-los e como esse livro</p><p>está nas mãos dos mais pobres das classes eles não têm necessidades de lições</p><p>sábias para se exprimir de forma literária. No afã de fazer chegar ao povo um</p><p>texto de fácil assimilação, ele procurava jovens e até mesmo crianças para pode</p><p>se expressar de acordo. Visitava açougue para descobrir a disposição dos</p><p>intestinos dos animais e aplicá-los ao texto. Também procurava informações de</p><p>profissionais para saber o funcionamento de determinadas ferramentas. Para</p><p>traduzir partes do Apocalipse que apresentam pedras preciosas, procurou junto à</p><p>corte do príncipe examiná-las. Cremos que podemos fazer uma analogia da</p><p>Bíblia de Lutero com a Bíblia na Linguagem de Hoje. Funck-Brentano “justifica</p><p>os alemães de terem feito de Lutero herói nacional”. O mesmo autor cita Henri</p><p>Heine, quando diz: “Não sei de que modo nasceu a língua de Lutero, mas sei</p><p>que, por sua Bíblia, a língua luterana propagou-se em toda a Alemanha”.</p><p>Também Nestor I. J. Beck afirma que “a língua alemã sequer era cultivada, pois</p><p>a língua acadêmica nas escolas e universidades, nas igrejas e na esfera</p><p>administrativa e oficial era o latim”. Esse latim por sua vez era taxado de “latim</p><p>de monge” que significava depreciação e de má fama. Lutero observara que o</p><p>latim “nas universidades e conventos nos quais não só se desaprende o</p><p>Evangelho, mas também se corrompe a língua latina e a alemã”.</p><p>Martin Dreher testemunha que a “sua Bíblia [a de Lutero] serviu para a tradução</p><p>em muitos idiomas”. E mais: “sua Bíblia modelou a língua alemã por séculos e</p><p>influenciou o linguajar de todas as camadas sociais”. Lutero diz:</p><p>Percebe-se, porém, muito bem, que, com base na minha tradução e no meu</p><p>alemão, eles estão aprendendo a falar e a escrever o vernáculo, roubando-me,</p><p>portanto, a minha língua, a qual antes pouco conheciam; mas não me agradecem</p><p>por tanto, e sim preferem utilizá-las contra mim. Mas não lhes leve a mal, uma</p><p>vez que me faz muito bem [constatar] que, mesmo aos meus discípulos ingratos</p><p>e até aos meus inimigos, eu ensinei a falar.</p><p>Em fins da Idade Média, a língua alemã não se compunha ainda senão de</p><p>dialetos. Durante o século XV, uma língua nacional, chamada alemão comum ou</p><p>vulgar formou-se. O imperador Maximiliano favoreceu uma difusão; mas esse</p><p>alemão comum não se tornou língua literária senão depois que Lutero o</p><p>divulgou. Se existe um povo que é devedor a Lutero e continuará devendo, é o</p><p>povo alemão.</p><p>O professor Marc Lienhard apresenta algumas considerações da relação Lutero e</p><p>a língua alemã. Ele destaca que o alemão que Lutero forjou era praticado,</p><p>principalmente, na “Alemanha luterana”, isto é, a parte central. O atual alemão,</p><p>mesmo tendo Lutero contribuído, é fruto de um processo que durou séculos,</p><p>culminando com a unificação alemã do século XIX. Havia um interesse não</p><p>somente dos editores de Lutero em publicar seus escritos em alemão, como</p><p>também as lideranças políticas. Em 1520, por exemplo, 90% dos seus escritos</p><p>eram produzidos em latim, tendo decaído para 70, em cerca de 1570. Assim, o</p><p>alemão avança paulatinamente. Um idioma não nasce de um dia para outro. A</p><p>contribuição de Lutero para o alemão se deu, sobretudo, na Alemanha central e,</p><p>a partir daí, se expandiu para todo o país.</p><p>Já em áreas, de forte influência do catolicismo, o latim era a língua utilizada. A</p><p>partir dos séculos XVII e XVIII o alemão vai se impondo como língua nacional.</p><p>Quanto à tradução da Bíblia podemos destacá-la como um dos principais legados</p><p>de Lutero para o mundo contemporâneo. Lutero não foi o pioneiro na versão</p><p>para o alemão, antes dele houve várias outras, no entanto, eram caras e</p><p>destinavam-se às pessoas ricas. Os valdenses e albigenses também haviam feitos</p><p>suas versões. Na verdade, não havia nenhuma versão oficial. Basta dizer que a</p><p>própria Vulgata só foi tornada oficial no Concílio de Trento.</p><p>A tradução</p><p>de Lutero foi feita para o povo. Ele mesmo visitava o homem</p><p>simples, conversava com os mesmos para produzir um texto, não somente</p><p>procurando ser fiel aos originais, mas também acessível ao povo. Em 1530, o</p><p>reformador disse que:</p><p>Não se deve perguntar às letras na língua latina como se deve falar em alemão,</p><p>como fazem esses burros, e sim é preciso perguntar à mãe em casa, às crianças</p><p>na rua, ao popular na feira, ouvindo como falam, e traduzir do mesmo jeito,</p><p>então vão entender e notarão que se está falando alemão com eles.</p><p>Observe o argumento de Lutero ao traduzir Lucas 1.28.</p><p>[...] quando o anjo saúda Maria dizendo: Salve, Maria, cheia de graça, assim é</p><p>que se traduziu até agora, simplesmente seguindo a letra latina. Mas diga-me:</p><p>isso é bom alemão? Quando é que o alemão fala assim: “Estás cheia de graça?”</p><p>Qual o patrício que vai entender o que significa cheia de graça? Ele vai pensar</p><p>num barril cheio de cerveja, ou um saco cheio de dinheiro; por isso eu traduzi:</p><p>graciosa, de modo que um alemão conseguirá associar melhor com o sentido</p><p>pretendido pelo anjo em sua saudação. E se eu tivesse tomado a melhor</p><p>formulação vernácula, traduzindo da seguinte maneira a saudação: Deus te</p><p>abençoe, querida Maria.</p><p>Como era de se esperar, Lutero recebeu ferrenha crítica dos seus oponentes em</p><p>relação à sua tradução. Uma das críticas foi a de incluir o “somente” em sua</p><p>tradução de Romanos 3.28, quando, de fato, não consta essa partícula no original</p><p>grego. Lutero defende-se confirmando que não existe sola (somente pela fé), no</p><p>entanto, ele está traduzindo para o povo alemão e não precisando expressar-se</p><p>em latim ou grego.</p><p>Lembro-me, quando criança, de uma música que fez muito sucesso na época,</p><p>cujo nome era Coração de Luto. Tratava-se de um adolescente que ao chegar a</p><p>casa deparou-se com um grave acidente: sua própria mãe havia sido morta</p><p>causada por um incêndio da casa onde moravam. Foi composta uma música, em</p><p>que parte da letra dizia “morreu queimada no fogo”. A crítica caiu em cima, pois</p><p>se morreu queimada, só podia ser pelo fogo. Havia redundância nesta frase,</p><p>bastava afirmar: morreu queimada. No entanto a crítica parece-me que esqueceu</p><p>que o matuto do interior usava este linguajar simples. Era uma forma de</p><p>enfatizar e trazer maior drama a sua situação. Assim foi a preocupação do</p><p>Reformador, pois para o povo alemão exigia-se o “somente” no texto. Ele</p><p>continua firme em seu propósito. É oportuno apontar que a tradução do Novo</p><p>Testamento foi feita em cerca de três meses, durante o período em Wartburgo.</p><p>Lutero afirmou que conhecia muito bem a arte de traduzir e sentencia que:</p><p>Eu conheço muito bem, eles [porém] (referindo-se aos seus oponentes)</p><p>conhecem menos do que o animal do moleiro (proprietário de moinho) a arte, a</p><p>dedicação, a razão e o entendimento que fazem o bom tradutor, pois eles nem</p><p>sequer o tentaram.</p><p>Em sua tradução Lutero tinha o seu “sinédrio”, como costumava chamar seu</p><p>grupo de auxiliares:</p><p>Muitas vezes nos sucedeu ficarmos, quatorze dias, quatro semanas, buscando e</p><p>perguntando por uma única palavra e, mesmo assim, algumas vezes não a</p><p>encontramos. Em nosso trabalho em Jó. O Mestre Filipe, Aurogado e eu, em</p><p>quatro dias, às vezes, não conseguimos concluir três linhas. Meu caro, agora que</p><p>está traduzido e pronto, qualquer um consegue lê-lo e entendê-lo, percorre três,</p><p>quatro folhas com os olhos e não tropeça, mas não se dá conta das pedras e toras</p><p>que havia ali, onde, ele, agora, passa como sobre uma tábua aplainada, ali,</p><p>tivemos que suar e nos angustiar até tirar do caminho essas pedras e toras para se</p><p>conseguir passar com tanta facilidade.</p><p>Ainda sobre a tradução de sua Bíblia, afirma o reformador:</p><p>Ah, a tradução não é arte para qualquer um, como julgam esses santos malucos,</p><p>para tal é preciso ter um coração forte, probo, fiel, dedicado, temente, cristão,</p><p>estudado, experiente e treinado. Por isso sou da opinião que nenhum falso cristão</p><p>nem espírito sectário consegue traduzir com fidelidade.</p><p>Qual teria sido a tiragem da Bíblia de Lutero? Segundo M. Dreher vai de “cem</p><p>mil exemplares”, a “um milhão de exemplares”, somando-se as impressões fora</p><p>de Wittenberg. Hans Lufft, impressor, ficou rico com essa Bíblia. Lutero nada</p><p>ganhou na tradução da sua Bíblia; procurava, sim, conforme suas palavras:</p><p>“servir”.</p><p>Assim “somos devedores”, parafraseando Paulo, a Lutero. Hoje são poucos</p><p>aqueles que não têm condições de possuir uma Bíblia.</p><p>Desenvolvimento do Estado Moderno</p><p>Não devemos traçar semelhanças entre o pensamento de Lutero e Maquiavel</p><p>sobre essa questão. Ambos, preconizando um controle central, porém, seus</p><p>argumentos são diferentes. Maquiavel redige O Príncipe, em 1513, de publicação</p><p>póstuma em 1532, onde inclusive criou-se a máxima atribuída a ele: “Os meios</p><p>justificam os fins”. Mesmo não afirmando isso, lendo sua obra percebe-se nas</p><p>entrelinhas esse adágio.</p><p>Lutero viveu em uma Alemanha que não conhecia um Estado forte e</p><p>centralizado, assim querer fazer do reformador um “teórico do Absolutismo” é</p><p>extrapolar e ir além da verdade. Deixemos esse título a Nicolau Maquiavel.</p><p>Porém podemos detectar várias colocações de Lutero que, certamente,</p><p>contribuíram para o que se conhece hoje como Estado Moderno, seja ele</p><p>democrático ou autoritário.</p><p>A questão está, especialmente, realçada no seu clássico escrito sobre a A</p><p>Autoridade Secular, até o Ponto a que se lhe Deve Obediência, publicado em</p><p>1523.</p><p>Não podemos exigir de Lutero uma abordagem sobre o regime absolutista tal</p><p>como em desenvolvimento em vários países europeus. Lutero não possui esse</p><p>posicionamento político, todavia, ao escrever defende um tipo de governo que, a</p><p>seu modo, vai descambar num poder central ou centralizador. Sua abordagem é</p><p>numa perspectiva cristã ou “cristãmente”, sempre, invocando as Escrituras.</p><p>Ele divide a obra em três partes. Na primeira, vai justificar a existência de</p><p>autoridade secular na terra e como ela dever ser usada de maneira cristã, não</p><p>ultrapassando seus limites. Na segunda parte, aborda até onde se estende a</p><p>autoridade secular. Na última parte, apresenta o argumento do uso do “direito”</p><p>dos príncipes.</p><p>O trabalho por nós proposto é analisar a primeira parte, pois além de atingir ao</p><p>objetivo proposto de nosso tema, também se evita a extensão demasiada desta</p><p>obra.</p><p>Lutero redige a obra oferecendo ao duque João, duque da Saxônia, e futuro</p><p>Príncipe da Saxônia, substituindo o irmão Frederico, o Sábio. Foi um grande</p><p>amigo de Lutero e de profunda convicção evangélica. Embora escrevesse</p><p>especificamente ao duque, sua obra foi difundida, servindo de orientação aos</p><p>demais príncipes em suas jurisdições. Deve-se observar também que esta obra</p><p>deve ser inserida no contexto da igreja oficial estar se imiscuindo na</p><p>administração secular e esta, por sua vez na esfera espiritual. Lutero procura</p><p>separa as esferas de poder.</p><p>Lutero começa seu argumento fundamentando que o príncipe tem por vontade e</p><p>ordenação de Deus o direito e a espada secular. Esse direito existe desde o</p><p>começo do mundo, cite o caso de Caim que ao matar o irmão Abel teve medo de</p><p>ser morto, subtendendo-se que sabia que o assassino deveria morrer. A partir</p><p>deste exemplo, começa a citar exemplos e mais exemplos do Antigo Testamento</p><p>e também do Novo, principalmente citando os apóstolos Paulo e Pedro.</p><p>Recrimina os “sofistas” (referindo-se aos teólogos escolásticos, ligados à igreja</p><p>que haviam interpretado o uso da espada como “conselho”). Lutero vai defender</p><p>como mandamento. Os príncipes agem como “servidores de Deus”, significando</p><p>que a autoridade é de tal natureza que se pode servir a Deus por meio dela. Ele</p><p>apresenta vários exemplos de homens de Deus e autoridades as quais nunca lhes</p><p>foram impostos que deixassem as armas, tais como Cornélio, o Eunuco em Atos,</p><p>Paulo Sérgio em Atos 13. Isso para citar alguns exemplos. Argumenta que o</p><p>poder secular foi instituído por Deus para manter a ordem entre cristãos e não</p><p>cristãos. Lutero declara: “É certo e suficientemente esclarecido que é da vontade</p><p>de Deus que a espada e o direito secular sejam usados para castigar os maus e</p><p>proteger os piedosos”.</p><p>Também se faz necessário uma observação ou justificação sobre a postura tão</p><p>radical de Lutero ao tratamento que faz em relação aos rebeldes em sua</p><p>sociedade. Hoje diríamos que Lutero está “do lado dos poderosos” em</p><p>detrimento dos “fracos e oprimidos”. A verdade não é essa, pois ele critica tanto</p><p>um como outro. Francamente, Lutero desconhece o que temos hoje como</p><p>democracia. Esse conceito só terá uma aplicação e reivindicação a partir do</p><p>século XVIII. Sua abordagem é bastante “evangélica”.</p><p>Lutero divide os filhos de Adão e todas as pessoas em dois grupos: “uns</p><p>pertencem ao Reino de Deus os outros, ao reino do mundo”. Para que esses</p><p>grupos continuem coexistindo é necessário leis, e pressão para que não se</p><p>destruam. Haveria assim a instituição divina de dois domínios: o espiritual “que</p><p>cria cristãos e pessoas justas por meio do Espírito Santo” e o temporal que</p><p>“combate os cristãos e maus, para que mantenham paz externa e tenham que ser</p><p>cordatos contra sua vontade”.</p><p>A aplicação oposta aos ensinamentos de Lutero ocorreu durante o governo</p><p>Nacional Socialista da Alemanha do século XX que tentava justificar sua prática</p><p>política por intermédio dos escritos de Lutero. De certa forma essa distorção</p><p>evidencia a necessidade de um poder coercitivo e forte na sociedade.</p><p>Sobre a liturgia</p><p>Lutero tratou desse assunto na medida em que a Reforma ia evoluindo. A</p><p>princípio envolveu-se mais com questões diretamente ligadas ao movimento</p><p>reformatório. Questões que eram imprescindíveis para o momento. No entanto a</p><p>Reforma avançava e novos movimentos surgiam, inclusive destoando do</p><p>Reformador. Diversas cidades e regiões alemãs celebravam seus cultos sem uma</p><p>uniformidade.</p><p>Mas desde 1523 os pedidos iam chegando a Lutero para uma uniformização dos</p><p>cultos ou missas realizadas, nos moldes de uma liturgia alemã. Tanto teólogos,</p><p>comunidades, nobres e até o príncipe eleitor da Saxônia se manifestavam neste</p><p>sentido. Lutero relutava, pois não se achava preparado, em relação à música</p><p>nesta liturgia. Mesmo porque estava em pleno calor a disputa com Erasmo de</p><p>Roterdã, sobre o Livre Arbítrio.</p><p>Não houve como continuar postergando. Em 1525 mesmo com a eclosão da</p><p>Revolta Camponesa e sua disputa com Erasmo ele se lança a mais este desafio.</p><p>Será impossível em poucas linhas apresentar toda a reformulação de Lutero, por</p><p>isso estaremos tecendo alguns aspectos normativos lançados por Lutero. Em</p><p>primeiro lugar, Lutero foi “democrático”, ao lançar esta “ordem de culto” em</p><p>fins de 1525. Disse:</p><p>A todos aqueles que chegarem a ver esta ordem de culto ou desejam segui-la</p><p>que, de modo algum, façam dela uma lei compulsória, nem comprometam ou</p><p>prendam a consciência de ninguém, mas façam usa da liberdade cristã.</p><p>Afirmou que esta liturgia seria aplicada em especial à cidade de Wittenberg: “as</p><p>outras regiões não precisariam abandonar para sujeitar-se a nós”. Recomendava,</p><p>sim, que, “em cada região o culto fosse celebrado de modo uniforme, e que os</p><p>lugarejos e aldeias circunvizinhas procedessem da mesma forma como as</p><p>cidades mais próximas”.</p><p>Lutero preconizou três tipos de culto ou missa: Formulário de Missa; Missa ou</p><p>Culto em alemão e Autêntica Ordem Evangélica. No Formulário de Missa era</p><p>uma espécie de ecumenismo de Lutero. Neste culto os católicos deveriam assistir</p><p>na língua latina. Visava também à juventude estudiosa, para fazê-la exercitar o</p><p>idioma. A Missa ou Culto alemão destinava-se ao “povo simples”. Muitos que</p><p>assistiam não eram crentes, mas meros assistentes. “Oficiada em língua alemã,</p><p>promover a fé e conquistar para a fé”. Havia também ao que ele chamou de</p><p>Autêntica Ordem Evangélica para “aqueles que querem ser cristãos sinceramente</p><p>e confessam o Evangelho em palavras e ação”. Neste culto poderiam se reunir</p><p>“para orar, ler as Escrituras, batizar e celebrar a Ceia”. Não estariam aqui os</p><p>germes do que se convencionou chamar hoje de cultos administrativos, de</p><p>ensino, de doutrina, de oração e outros termos a critérios das denominações?</p><p>Em toda a liturgia preconizada por Lutero a exposição das Escrituras ou</p><p>pregação eram prioridades. Steven J. Lawson fornece dados sobre a ênfase de</p><p>Lutero em relação à exposição bíblica:</p><p>• Pregava duas ou três vezes por semana.</p><p>• Aos domingos pregava duas a três vezes.</p><p>• Escreveu sete mil sermões entre 1510 – 1546.</p><p>• Trinta sermões sobre Romanos.</p><p>• Duas mil e trezentas exposições por escrito.</p><p>• Mais de mil sobre os Sinóticos.</p><p>• Durante sua vida, pregou em média dois sermões a cada dois dias.</p><p>• Pregou seu último sermão no dia 14 de fevereiro de 1546, quatro dias antes de</p><p>sua morte, no dia 18, em Mateus 11.25-30.</p><p>A semana de Lutero era totalmente envolvida com a pregação. Afirma-se que ele</p><p>não fazia o trabalho de um homem, mas de dez. O púlpito era o trono da Palavra</p><p>de Deus, assim se expressava. O fio condutor do início ao fim da Reforma foi o</p><p>estudo das Escrituras. Em seus escritos e sermões, apresentava-se sempre como</p><p>Doutor da Bíblia que para a época significava que ele seria um “aluno vitalício</p><p>dela”.</p><p>Pregações de Lutero semanalmente:</p><p>Domingo: Duas ou três vezes</p><p>Culto às 5 horas: Sermão de uma epístola</p><p>Culto das 9 horas: Sermão extraído dos evangelhos</p><p>Culto vespertino: Sermão baseado no Antigo Testamento</p><p>Segunda: Pregação sobre o Catecismo Maior e Menor</p><p>Terça: Pregação sobre o Catecismo Maior e Menor</p><p>Quarta: Pregação em Mateus</p><p>Quinta: Pregação em Epístolas</p><p>Sexta: Pregação em Epístolas</p><p>Sábado: Pregação o principalmente no Evangelho de João</p><p>Existem documentados apenas 30 sermões sobre Romanos, mas sobre os</p><p>evangelhos sinóticos, mais de mil. E centenas sobre o evangelho de João.</p><p>Claro que os hinos não foram deixados de lado. Inclusive eram muitos. Os hinos</p><p>de Lutero passaram a ser cantados nas ruas. Sobre Hinário em nossas igrejas</p><p>hoje, temos também em Lutero o pioneiro. Sabe-se que, em 1524, segundo o</p><p>historiador Martin Dreher, Lutero editou com Johann Walter, “um hinário ‘coral’</p><p>e não um hinário comunitário”. Não estaria aqui a origem da prática de hinários</p><p>em nossas atuais igrejas? O mesmo autor afirma que em fins do século XVI,</p><p>“Lutero teria composto 137 hinos”, o que considera como “não histórico”.</p><p>Atribui-se a Lutero a composição entre 30 a 35 hinos. Quem não conhece o belo</p><p>hino Castelo Forte, inseridos em muitos hinários evangélicos? Segundo alguns</p><p>biógrafos, teria sido composto por ocasião da Dieta de Worms quando se</p><p>apresenta diante do imperador, príncipes alemães e a Cúria Romana.</p><p>Para alguns, a hinologia de Lutero foi mais influente que a tradução das</p><p>Escrituras. Mencionaremos alguns exemplos: Cantor Cristão, nº 323 (Batista);</p><p>Harpa Cristã, nº 581 (Assembleia de Deus); Hinário Adventista, nº 33</p><p>(Adventista); Hinário para o Culto Cristão, nº 406; Novo Cântico nº 155</p><p>(Presbiteriana); Salmos e Hinos, nº 640 (Congregacional); Hinos do Povo de</p><p>Deus, nº197 (Igreja Evangélica Luterana do Brasil) e nº 97 (Igreja Evangélica de</p><p>Confissão Luterana no Brasil).</p><p>Para as crianças, uma deferência especial. Chegava mesmo a dizer que não</p><p>priorizar as crianças na liturgia é “cometer pecado”. Um parêntese sobre as</p><p>crianças é necessário abrir. Trata-se do trabalho fundamental da esposa, Catarina</p><p>Von Bora, mas isso seria um novo capítulo nesta obras.</p><p>Discorrer sobre Lutero é observá-lo também como médico da alma. Esta será</p><p>mais uma contribuição do reformador.</p><p>Lutero e a Psicanálise</p><p>Por meio de uma leitura intensa sobre Lutero descobre-se cada vez mais novos</p><p>afluente para este grande rio.</p><p>Existe um legado em Lutero que necessita ser pesquisado e ampliado. Trata-se</p><p>de Lutero como psicanalista. É indiscutível a pessoa de Freud como “pai” da</p><p>moderna psicanálise. No entanto recentemente lendo Rubem Alves, na obra</p><p>História da Teologia da América Latina, o autor relaciona Lutero à psicanálise.</p><p>Após revelar alguns erros cometidos no passado, Rubem Alves, afirma que</p><p>poderíamos “compreender alguns dos desenvolvimentos históricos, nossos</p><p>contemporâneos, que se geraram naquela época: “de Lutero à Psicanálise, do</p><p>Calvinismo ao Capitalismo, de Münzer a Marx e Engels”.</p><p>Não havia imaginado</p><p>o reformador contribuindo também na área da psicanálise. A partir daí fiz uma</p><p>retrospectiva das minhas leituras sobre Lutero. Comecei a relacionar afirmações</p><p>aqui, posicionamento acolá, diversos conselhos que este apresentava para os</p><p>angustiados e uma gama de procedimentos que me mostravam um médico da</p><p>alma que foi este grande homem do século XVI. Abordar Lutero como psicólogo</p><p>é um desafio que precisa ser feito para descortiná-lo como um doutor da alma</p><p>humana.</p><p>Assim passei a investigar Lutero e a Psicanálise, consciente de todas as minhas</p><p>limitações nesta área. É oportuno realçar a diferença entre Lutero e Freud, que</p><p>viveu mais de 300 anos após a morte do reformador, na análise psicológica do</p><p>ser humano. Freud se utilizava de meios, tais como hipnose, análise e</p><p>interpretação de sonhos, associação livre, Complexo de Édipo, Ato Falho,</p><p>sentido dos sintomas, dentre outros. Lutero por sua vez, utiliza-se e conceitos</p><p>bíblico-teológicos para tratar as pessoas com seus conflitos internos.</p><p>Analisemos a questão do pecado e seus efeitos no ser humano na visão de</p><p>Lutero. Ele descreve uma pessoa afetada pelo pecado como “curvada sobre si</p><p>mesma”. O pecador está tão encurvado que não reconhece a sua própria</p><p>enfermidade espiritual. Ele faz do eu o objeto supremo desta curvatura. No</p><p>comentário que faz sobre Romanos 1.20, Lutero, diz que a raiz de toda idolatria</p><p>é a inclinação do ser humano em “adorar a Deus não como Ele é, mas como</p><p>imaginam a pessoa que Ele é”. Parece-me que Lutero antevê o deus capitalista</p><p>dos nossos dias, quando fazemos de Deus tal como uma mercadoria nas</p><p>prateleiras de um supermercado, em que escolhemos e levamos o que nos</p><p>interessa ou precisamos de imediato. Deus é “esta mercadoria” que está a nossa</p><p>disposição e segundo nossas necessidades. É só determinar o que queremos — e</p><p>pronto — nos será entregue. Chegamos mesmo a determinar o que queremos e</p><p>Deus vai “cumprir o desejo de nosso coração”. É o Deus dos nossos desejos, em</p><p>vez de deixar Deus ser Deus. Tal como a oração de Casaldáliga: “meu deus,</p><p>ajuda-me a ver Deus”. Lutero compreendendo a natureza humana parte para</p><p>desmoronar esta postura carnal que temos com Deus, como consequência do</p><p>pecado em nós. Para Lutero, Deus não nos é revelado, no que classificou de</p><p>Teologia da Glória, ou melhor, uma Teologia das Obras de Deus. Ele se revela</p><p>no sofrimento, no ocultamento. É o Deus Absconditus, aquEle que se revela no</p><p>oculto de nossa alma e de nossa existência pó intemédio da fé.</p><p>Deixemos que o próprio reformador nos fale deste tema tão sublime:</p><p>Para que haja lugar para fé, é necessário que todas as coisas que se creem sejam</p><p>abscônditas. Ora, não podem estar mais remotamente abscônditas do que se</p><p>estão sob o contrário do que se tem à visão, se percebe e experimenta. Assim,</p><p>quando vivifica, Deus o faz matando; quando justifica, o faz incriminando;</p><p>quando leva ao céu, o faz, conduzindo ao inferno, como diz a Escritura: ‘O</p><p>Senhor mata e vivifica, leva o inferno e retira’ (1 Sm 2.6)</p><p>Quando essa verdade não é percebida, o ser humano fica “num beco sem saída”</p><p>e, consequentemente, a frustração, depressão, inquietação, nervosismo e outros</p><p>males começam a fazer parte de nossa psique e criamos imagens deste próprio</p><p>mal que está em nós. Sobre o mal dentro de nós, Lutero afirmou que,</p><p>isto é certo e verdadeiro, quer a pessoa creia, quer não: não pode haver na pessoa</p><p>sofrimento tão grande que seja o pior dos males que estão dentro dela. Os males</p><p>que há dentro dela são muito mais numerosos e maiores do que aqueles que ela</p><p>sente. Porque se sentisse seu mal, sentiria o inferno, pois ela tem o inferno</p><p>dentro de si.</p><p>Essas palavras foram direcionadas para um de seus pacientes e revelam,</p><p>certamente, uma situação vivenciada por ele mesmo.</p><p>A justiça de Deus para Lutero é Deus vindo ao ser humano em Cristo e, por</p><p>Cristo, assumindo nossas dores. É o “médico ferido” tal como Cristo.</p><p>Para a abordagem deste aspecto em Lutero vamos enumerar somente dois</p><p>exemplos que revelam o reformador como médico da alma, que procurava na</p><p>Palavra de Deus a respostas para os anseios do ser humano seja qual for a</p><p>necessidade. Aliás, era sempre o seu método em tratar as questões vindas a ele.</p><p>O primeiro caso a citar nos vem de uma mulher chamada Bárbara Lisskirchen</p><p>que temia não estar entre os eleitos. Lutero responde afirmando que a solução</p><p>está numa fé genuína em Cristo alicerçada nas Sagradas Escrituras, tais como:</p><p>Perguntar que mandamento está escrito em que ela deveria pensar nisto. Quando</p><p>perceber que não existe nenhum mandamento, expulsa esse “Diabo” que quer</p><p>deixá-la preocupada consigo mesmo, sabendo que Deus quer cuidar de nós.</p><p>Manter diante de seus olhos a imagem do seu filho. Diariamente, Cristo deve ser</p><p>seu excelente espelho, para observarmos de quanto Deus nos ama. Lutero</p><p>declara à mulher, que não permita que este espelho seja tirado diante de seus</p><p>olhos</p><p>Contemplar Cristo que foi entregue por nós. “Então a senhora se sentira melhor”.</p><p>O segundo exemplo é mais complexo. Trata-se de escrever ao príncipe</p><p>Frederico, o Sábio, e seu protetor durante os difíceis anos do início da Reforma.</p><p>Em meados de 1519, o príncipe adoecera gravemente, tendo febre, podagra</p><p>(inflamação nas articulações nos dedos dos pés) e cólicas renais. Muitos</p><p>pensavam em sua morte o que não seria nada bom para Lutero e a causa da</p><p>Reforma. O capelão da corte e secretário do príncipe pediu que Lutero redigisse</p><p>um escrito de consolo para o príncipe-eleitor (era um dos sete príncipes que</p><p>escolhiam o sucessor do imperador do Sacro Império Romano-Germânico). Foi</p><p>um momento muito delicado para Lutero com a sua índole crítica, franca e</p><p>sincera, pois o Príncipe era um ávido colecionador de relíquias, o que Lutero</p><p>tanto condenara. Possuía milhares de objetos sacros e todos guardados com</p><p>veneração. Na relação de 1518, mencionam-se 17.443 relíquias, cujas</p><p>indulgências por eles obtidas chegavam a um total de 127.799 anos e 116 dias</p><p>livres do purgatório. Também possuía 14 santos considerados auxiliares das</p><p>necessidades humanas, tais como dores de dentes, garganta e cabeça, peste,</p><p>dores físicas de toda espécie, ataques de maus espíritos e luta contra o bem e o</p><p>mal. Os 14 santos estavam todos num altar na igreja de Maria, frequentada pelo</p><p>príncipe.</p><p>Como agir Lutero diante deste quadro sem ferir a sua própria consciência? Como</p><p>falar a verdade sem ferir a mente doentia, tanto física quanto espiritual do</p><p>príncipe? Quando lemos os conselhos de Lutero percebe-se o equilíbrio,</p><p>discernimento e espiritualidade deste reformador. É neste momento que</p><p>percebemos Lutero como um curador da alma.</p><p>Sabendo que o príncipe tinha diante de si 14 santos que poderiam auxiliar em</p><p>sua doença, Lutero não se atém à imagem e ao que ela apresenta, mas apresenta</p><p>uma reinterpretação. De forma coerente e bíblica, ele vai “levando” a piedade do</p><p>príncipe às Escrituras e, paulatinamente, leva o príncipe do culto às relíquias ao</p><p>próprio Cristo, sem deixar de esconder que os sofrimentos e bens que passamos</p><p>são realidades da vida.</p><p>Lutero se utiliza de 14 consolações, tais como o número dos santos de devoção</p><p>do príncipe sem atacá-los, mas transferindo para uma realidade de fé em Cristo e</p><p>nas Escrituras.</p><p>O reformador apresenta sete males e sete bens como partes da vida do ser</p><p>humano. Os males são apresentados em imagens, tais como: o mal dentro de</p><p>nós; o mal a nossa frente; o mal atrás de nós; o mal abaixo de nós; o mal à</p><p>esquerda; o mal à direita e o mal acima de nós. Num segundo momento, o</p><p>“psiquiatra” Lutero apresenta os sete bens, também em imagens, tais como: o</p><p>bem interno; o bem futuro; o bem passado; o bem abaixo de nós; o bem à</p><p>esquerda; o bem à direita e o bem acima de nós. Ao discorrer sobre o sétimo</p><p>bem, Lutero argumenta, como uma espécie de conclusão, palavras consoladoras</p><p>revelando que os males e os bens atingem a todos, mas tal como Cristo recebeu</p><p>do Pai, assim recebemos dEle força, confiança e benefícios, mesmos nós,</p><p>“indignos”: Cristo é o carro mais agradável “que nos foi feito por Deus justiça,</p><p>santificação,</p><p>redenção, sabedoria”; mesmo pecador que sou “ando em sua justiça</p><p>que me foi dada”; mesmo em minha imundícia, minha santificação “é sua</p><p>santidade na qual ando de modo agradável”; mesmo sendo estulto, “mas sua</p><p>sabedoria me conduz”; sou condenado, mas “sua liberdade é minha redenção,</p><p>um carro seguríssimo”.</p><p>Palavras como essas, somente um “psicólogo”, com uma experiência profunda</p><p>de Deus, poderá transmitir à alma aflita o bálsamo confortador e restaurador. E</p><p>Lutero foi esse psicólogo!</p><p>Devido à impossibilidade em discorrer sobre os males e bens invocados por</p><p>Lutero e não tornar esta exposição por demais extensa limitamo-nos a citá-los. É</p><p>edificante as palavras de Lutero em relação ao sétimo bem e que vale para todos</p><p>os demais:</p><p>Esta única imagem, [a sétima] se outras não houvesse, nos pode imbuir de tanta</p><p>consolação, se considerada bem e de coração atento, que não só não padecemos</p><p>com nossos males, mas inclusive nos gloriamos nas tribulações, por causa da</p><p>alegria que temos em Cristo, quase que não as sentindo.</p><p>O registro de Martin Dreher resume bem a finalidade do reformador:</p><p>A partir dos sete males é apresentada uma descrição da situação do ser humano:</p><p>pecado, medo, perigo, morte, inferno, injustiça e cruz. Essa situação é limitada</p><p>pela solidariedade de Cristo com os sofrimentos, pois Ele também santifica o</p><p>sofrimento. Com isso não só é possível suportar o sofrimento, mas também amá-</p><p>lo. Os sete bens são aplicados à situação do ser humano, pois a ele são dadas a</p><p>Palavra e a fé. A ele são anunciadas a paz e a companhia de Deus. Mesmo no</p><p>inferno.</p><p>Encerraremos este legado com as palavras finais de Lutero ao Príncipe-Eleitor</p><p>Frederico III que, inclusive ao morrer em 1525 (essas Consolações foram</p><p>escritas em 1520), confessou abertamente a fé evangélica, recebendo a Ceia do</p><p>Senhor com as duas espécies, pão e vinho. Conclui Lutero:</p><p>Com estas minhas nugas, (ninharia, bagatela) Ilustríssimo Príncipe, que atestam</p><p>a espécie do ofício de minha pobreza, recomendo-me a Vossa Alteza, muitíssimo</p><p>disposto a oferecer coisas melhores se a faculdade de meu espírito algum dia</p><p>corresponder ao que me proponho. Pois jamais deixarei de ser devedor de</p><p>qualquer próximo meu, principalmente de Vosso Alteza, a qual nosso Senhor</p><p>Jesus Cristo, por sua clemente bondade, nos preserve incólume por muito tempo</p><p>e por fim reconduza a si através de um fim abençoado. Amém.</p><p>De Vossa Ilustríssima Alteza intercessor</p><p>— Frei Martinho Lutero, Agostiniano de Wittenberg</p><p>Reformulação e formação da identidade católica</p><p>Trata-se de um verdadeiro desafio a apresentação deste novo legado de Lutero,</p><p>pois não atinge os protestantes e sim o catolicismo. Cremos não será exagero</p><p>afirmar que, ao menos indiretamente, Lutero também trouxe um legado para o</p><p>catolicismo. De certa forma ele contribuiu para uma reformulação e, mesmo por</p><p>meio de um processo, a formação da identidade católica. Lutero “provocou”,</p><p>após 1517 a igreja católica por ter fixado dogmaticamente as doutrinas da</p><p>tradição, do pecado original, da justificação e muitas outras. De acordo com Kurt</p><p>D. Schmidt “foi apenas uma reflexão parcial”, porém, não deixou de ser o</p><p>começo de uma “renovação”. Claro que a igreja, como instituição, não</p><p>reconhecerá sem restrições essa postura. Será um choque muito grande</p><p>reconhecer que o próprio Lutero contribuiu para o catolicismo de hoje, contudo,</p><p>é o que estaremos discorrendo, uma vez que a intenção original de Lutero era</p><p>trazer um “melhoramento” para a igreja do seu tempo. Lutero não preconizou</p><p>uma nova igreja, inclusive sabe-se que ele deixou o hábito de sacerdote católico</p><p>somente em 1524. O rompimento definitivo foi uma evolução em que houve</p><p>precipitação por parte de alguns clérigos, e com isso o rompimento definitivo.</p><p>Esta, porém, foge ao escopo desta obra.</p><p>Para esta apresentação servimo-nos, principalmente, do artigo de Walter G.</p><p>Kunstmann, O Concílio de Trento e o I Concílio Vaticano, in O catolicismo</p><p>Romano – um simpósio protestante, 1962. Também oportuna foi a obra de</p><p>Alister E. McGrath, O Pensamento da Reforma.</p><p>É por demais conhecido pelos estudiosos que a Igreja oficial, desde a Idade</p><p>Média, se apresentava como uma colcha de retalhos em vários de seus aspectos.</p><p>Faltava unidade em várias questões doutrinárias. Basta citar que em plena época</p><p>da Reforma não havia um posicionamento oficial sobre a questão fundamental</p><p>da fé cristã que é a justificação do pecador diante de Deus. Para o conceito de</p><p>igreja não havia unanimidade. Até mesmo sobre a imortalidade da alma, houve</p><p>um Concílio para ratificar esse ensino. Sem entrar de detalhes podemos</p><p>enumerar diversas crises que a igreja enfrentava às vésperas de Reforma, tais</p><p>como: de autoridade, de unidade, espiritual, moral, intelectual e com resultado a</p><p>existência de uma confusão teológica. Vozes discordantes se ouviam aqui, ali e</p><p>acolá. Diante dessa situação, vozes da própria igreja se levantavam clamando</p><p>por mudanças e a igreja, com todo o seu aparato, agia imediatamente para</p><p>silenciar, seja por meio da Inquisição, Concílios e demais mecanismos.</p><p>Queremos destacar três momentos cruciais e determinantes para o catolicismo</p><p>moderno que se completam, mesmo distantes por séculos. Trata-se do Concílio</p><p>de Trento, século XVI, o Vaticano I, século XIX e Vaticano II, século XX. Esses</p><p>três Concílios vão ajustando o catolicismo frente aos novos desafios que se</p><p>apresentavam. Interessante que esses ajustamentos sempre foram feitos em</p><p>épocas de crises. Nestes pouco mais de 400 anos se foi processando a</p><p>construção, formação e identidade do catolicismo contemporâneo. Inclusive em</p><p>meados do século XVI, durante o Concílio de Trento nasce a nomenclatura</p><p>Igreja Católica Apostólica Romana. Nesse Concílio os desafios eram grandes em</p><p>função das reformas que se alastravam pela Europa. No Vaticano I, as novas</p><p>correntes ideológicas e o liberalismo emergiam de forma contestatória no que se</p><p>convencionou chamar de Antigo Regime, no qual a igreja estava identificada.</p><p>No século XIX, o posicionamento, de forma geral, identificava o catolicismo</p><p>como retrógrado e o protestantismo progressista. No Vaticano II, diante de todo</p><p>um processo de mudanças e transformações do mundo pós guerra, a igreja</p><p>necessitava de uma modernização diante das novas circunstâncias, tais como a</p><p>crescente urbanização, a secularização e emergência de novos fatores sociais.</p><p>Esses ajustamentos não ocorriam de forma moderada, ao contrário, devido às</p><p>circunstâncias, havia uma radicalização, porém, esta não poderia ocorrer no</p><p>Vaticano II, pois os tempos eram outros. Assim há uma “abertura” neste referido</p><p>Concílio. Cremos que o saldo foi positivo para o catolicismo no mundo, pois</p><p>esses desafios levaram a mudanças e ajustes aos novos tempos, garantindo sua</p><p>sobrevivência.</p><p>Temos observado que toda e qualquer instituição quando passa por crises ou</p><p>dificuldades, geralmente, assume uma postura radical em suas medidas ou</p><p>soluções.. É um “cumpra-se” doa a quem doer. Em época de crise, deve-se</p><p>mostrar força, determinação e resolução — muitas vezes arbitrárias. Isso</p><p>também se aplica no dia a dia das pessoas. Basta somente pensar em situações</p><p>difíceis que alguém já passou e procurar ver qual a atitude tomada para sair da</p><p>dificuldade. Não foi diferente com o catolicismo do século XVI. Havia muitas</p><p>vozes ... E vozes dissidentes.</p><p>Vozes Dissidentes</p><p>Ao se falar ou discorrer sobre essas vozes, imediatamente, surge em nossa mente</p><p>os considerados “heréticos”, tais como Wycliffe, Savonarola, Huss e tantos</p><p>outros. No entanto estaremos ouvindo as vozes dos não heréticos, que também</p><p>ansiavam por melhorias na igreja e, até mesmo, uma “reforma em cabeça e</p><p>membros”. O clamor era grande para que a igreja voltasse à pureza do tempo</p><p>apostólico. O bramido crescia à medida em que a igreja não apresentava</p><p>resposta. Quando muito reconhecia a necessidade de realizá-la. São várias</p><p>situações ao longo dos séculos que vão preparando o terreno para uma Reforma</p><p>na própria igreja. O episódio de Avignon, quando se chegou a ter três papas</p><p>simultâneos, inclusive um excomungando o outro, fez do “Bispo</p><p>Universal” um</p><p>simples bispo da corte francesa. O cisma Oriental com o surgimento da igreja</p><p>Ortodoxa foi outro fator desagregador da igreja.</p><p>Francisco de Assim havia traçado normas para a Reforma, mas ele próprio não</p><p>era bem visto pela Cúria Romana. A própria aceitação de sua ordem foi uma</p><p>estratégia para ganhá-lo para si, isto é, para igreja. Trata-se daquele velho</p><p>chavão: “Não posso derrotar meu inimigo, me uno a ele”.</p><p>Desde a Idade Média tardia, a linhagem dos Papas era de cultura renascença, o</p><p>dinheiro, volúpia e poder norteavam a prática na igreja, mas orações, cura</p><p>d’alma e vida sacerdotal, bem pouco.</p><p>Nas primeiras décadas do século XIV, quando Wycliffe chama o papa de</p><p>anticristo, é intensificada a crise. Em fins do século XV, havia um clamor contra</p><p>a ditadura do Roma. As incertezas teológicas, a falta de pronunciamento</p><p>determinativo e da clareza dogmática (e isso sem falar dos movimentos</p><p>considerados heréticos), a incerteza da infabilidade papal, a indefinição entre o</p><p>conciliarismo, isto é, o Concílio acima do papa ou supremacia papal, bem como</p><p>os próprios religiosos católicos questionando determinadas doutrinas, aumentava</p><p>consideravelmente a necessidade de reformas. Aliado a tudo isso, ocorriam à</p><p>inquietação geral e o medo do inferno pelos fieis, refletidos nas artes, esculturas</p><p>e gravuras. As epidemias e guerras eram causadas, assim concluíam, não só</p><p>pelas heresias, mas pela situação da igreja. A corrupção do clero e as negociatas</p><p>por meio da venda de indulgência deixavam todos revoltados. Em plena época</p><p>de Lutero se dizia que a desgraça sobreveio à igreja por causa dos pecados dos</p><p>sacerdotes e especialmente da Cúria Romana.</p><p>Diante de todo este quadro, apresentado de forma sucinta, o movimento de</p><p>Lutero eclodiu. Em pleno processo da Reforma, dizia-se no meio católico que</p><p>metade da Alemanha gritava o nome Lutero e a outra metade, que não o apoiava,</p><p>clamava contra Roma.</p><p>O Concílio de Trento</p><p>Diante desta situação, somando-se com o agravamento da divisão da cristandade</p><p>ocidental entre católicos e protestantes, não existia alternativa senão a realização</p><p>de um Concílio que vinha sendo reivindicado e protelado pela Cúria romana,</p><p>pois foi cancelado e remarcado cerca de cinco vezes. Certamente, em função</p><p>disso, Lutero escreveu: “este [refere-se ao papa] se desespera e não sabe o que</p><p>fazer. Ele não pode e nem quer tolerar o concílio [certamente o de Trento], não</p><p>quer que ninguém proceda ou fale às claras a respeito, só pensa abafar à força o</p><p>clamor”. Finalmente o Concilio de Trento — cidade italiana — foi instalado.</p><p>Iniciado em dezembro de 1545 e se prolongou até 1563, sendo interrompido</p><p>diversas vezes por questões políticas. Foi dividido em três fases: 1545-1547,</p><p>1551-1552 e 1562-1563. Esse Concílio foi uma espécie de pedra angular para o</p><p>catolicismo moderno. Basta dizer que reunidos os 18 Concílios anteriores a este,</p><p>não chegaria ao montante de definições e legislação de Trento. Pouco mais de</p><p>dois meses após sua instalação, morria Lutero. Fazendo uma analogia com</p><p>Moisés, que morreu “sem ver a Terra Prometida”, de forma semelhante o</p><p>reformador não pode presenciar esse grande conclave e, infelizmente, deixamos</p><p>de conhecer sua avaliação que, certamente, seria não só contundente, mas,</p><p>sobretudo, com uma visão histórica que pouco fariam de forma tão convincente</p><p>e bíblica.</p><p>Instalado o Concílio, ficou notória a preocupação em “arrumar a casa” e fazer</p><p>frente ao protestantismo que se expandia. De nada valeu a presença dos</p><p>protestantes, inclusive Melanchthon, em suas primeiras sessões. As cartas já</p><p>estavam marcadas, antes da presença dos novos protestantes. Mesmo porque</p><p>havia uma conotação política muito latente na realização ou não do Concílio: por</p><p>parte da igreja, entre seus temores estava a questão do conciliarismo; em relação</p><p>ao Sacro Império o desejo político de uma Alemanha sob a bandeira de uma só</p><p>religião, bem como a diminuição do poder papal e por parte da França o</p><p>esforçava para a não a realização do Concílio preocupada com o fortalecimento</p><p>dos Habsburgo alemão. A tentativa do Concílio em Mântua por parte da igreja</p><p>foi frustrada pelo imperador. A escolha do Trento, por sua vez, atendia aos</p><p>interesses alemães, pois embora esta cidade estivesse na Itália, estava sob a</p><p>jurisdição do império.</p><p>Já em 1546, cerca de quatro meses de instalação do Concílio, decisões foram</p><p>aprovadas oficializando, na prática, o rompimento definitivo entre católicos e</p><p>protestantes. Segue algumas das determinações com os seus cânones:</p><p>1. Sobre as Escrituras. Não somente os livros canônicos foram reconhecidos,</p><p>mas também a tradição. Assim as Escrituras Sagradas foram equiparadas à</p><p>Tradição como fonte e base de fé.</p><p>[...] vendo claramente que esta verdade e disciplina se acham contidas nos livros</p><p>escritos e nas tradições não escritas, recebidas pelos apóstolos, ditando o Espírito</p><p>Santo, chegaram até nós, transmitidas como se fosse de mão em mão...</p><p>2. Sobre os apócrifos. O Concílio julgou que os livros canônicos são deficientes</p><p>e publicou uma lista completa de obras que aceitavam como autorizadas. Assim,</p><p>os livros deuterocanônicos ou apócrifos foram equiparados à tradição e, por</p><p>vez, às Escrituras Sagradas:</p><p>Se alguém não receber integralmente estes livros com todas as suas partes, como</p><p>era de costume os ler na Igreja, e como se encontram na antiga edição da Vulgata</p><p>Latina, e não os tenha por sacros e canônicos, seja anátema.</p><p>3. Sobre a Vulgata</p><p>[...] a Vulgata, antiga edição em latim que tem sido usada por muitos séculos, foi</p><p>aprovada pela igreja e deve ser defendida como autêntica nas palestras, debates,</p><p>sermões e exposições públicas. Que ninguém presuma ou ouse, sob qualquer</p><p>circunstância, rejeitá-la.</p><p>4. Sobre a autoridade da igreja. Foi ratificado o que na prática era costume, isto</p><p>é, só a igreja e o papa podem interpretar as Sagradas Escrituras. Ainda no</p><p>mesmo Cânone: não se deve tolerar opiniões e liberdades quanto à consciência</p><p>e ao culto.</p><p>[...] ninguém ouse interpretar, confiado em sua prudência, nas coisas de fé e de</p><p>costumes pertencentes à edificação da doutrina cristã, a Sagrada Escritura,</p><p>segundo seu próprio modo de crer, contra a orientação que seguiu e segue a</p><p>Santa Madre Igreja a quem pertence julgar do verdadeiro sentido e interpretação</p><p>das Escrituras ou contra o assentimento unânime dos santos padres.</p><p>Se alguém disser que a intolerância, pela qual a Igreja Católica proíbe e condena</p><p>todas as seitas separadas de sua comunhão, não é de direito divino ou que da</p><p>verdade religiosa pode haver opiniões apenas e não certeza e que, portanto, todas</p><p>as seitas religiosas devem ser toleradas pela Igreja, seja anátema.</p><p>5. Sobre publicações. Nenhum católico poderia publicar, escrever, ler, circular</p><p>ou possuir livros anônimos:</p><p>É ilegal que qualquer pessoa imprima, ou publique, qualquer livro que trate de</p><p>questões de doutrina sagrada sem o nome do autor, ou no futuro vendê-lo ou até</p><p>mesmo possuí-los, a não ser que primeiro eles tenham sido examinados e</p><p>aprovados... A aprovação de tais livros será dada por escrito e deverá aparecer na</p><p>página inicial.</p><p>6. Sobre a justificação. A justificação pela fé foi um dos temas fundamentais do</p><p>pensamento da Reforma, em especial em Martinho Lutero. O Concílio, na</p><p>verdade, rejeitou a tese luterana: “Se alguém disser que Deus sempre perdoa</p><p>toda a pena justamente com a culpa, e que a satisfação dos penitentes não é</p><p>senão a fé pela qual creem em que Cristo deu satisfação por eles, seja anátema!.</p><p>Se alguém disser que o ímpio é justificado pela fé somente, de maneira que</p><p>entenda nada mais exigir-se para alcançar a graça justificante e de modo algum</p><p>ser necessário preparar-se (o ímpio) e dispor-se com algum movimento próprio,</p><p>seja anátema!</p><p>Esses poucos decretos revelam a situação da Igreja antes e depois de Trento. Em</p><p>outras palavras, como ela se encontrava e como passou a estar: da indefinição</p><p>para a definição. Surge uma Igreja que diz como é. A igreja a partir de agora</p><p>“mostra a sua cara”. É o momento que se inicia a sua própria e futura identidade.</p><p>A radicalização</p><p>se fazia necessária neste momento crítico. Esse Concílio, de fato,</p><p>lançou as bases em sua caminhada na procura de sua identidade concluída no</p><p>Vaticano I de 1870.</p><p>Vaticano I e Trento</p><p>Embora separados por séculos eles se completam. O tempo passa e com ele as</p><p>condições e contradições. São necessários novos ajustes. No século XIX, o</p><p>Liberalismo, o Nacionalismo, a Maçonaria e o Marxismo são fatos e presenças</p><p>reais. O Capitalismo como modo de produção se instala na Europa. A igreja no</p><p>século XIX está sendo vista como conservadora e aliada ao Antigo Regime em</p><p>decadência. No Brasil, ocorre o que se convencionou chamar de Questão</p><p>Religiosa do Império, quando dois bispos (Olinda e Pará) são presos em</p><p>decorrência do não cumprimento da determinação de D. Pedro II sobre a</p><p>Maçonaria em suas dioceses. Essa questão com roupagem religiosa, na verdade,</p><p>era mais questão política, inclusive visando a separação entre estado e igreja, o</p><p>que ocorreria em fins do século.</p><p>Assim o Concílio Vaticano I deve ser inserido nas transformações capitalistas do</p><p>século XIX. Transformações estas que a igreja enfrenta. Ela é afetada em sua</p><p>espinha dorsal, isto é, a superioridade do espiritual sobre o temporal. Os novos</p><p>ventos atingem em cheio a Igreja Católica. O Estado laico é uma realidade. A</p><p>igreja necessita tomar uma posição e a realização de um novo Concílio se faz</p><p>necessário. Nesse Concílio o objetivo é a continuidade e consolidação da</p><p>herança espiritual, pois perdera a pujança política de outrora. Era necessário</p><p>resgatar o poder espiritual, abalado desde a Reforma, pois o poder temporal</p><p>havia perdido ou secundado. A identidade da igreja necessitava ser resgatada.</p><p>Desde Trento, além de constituir-se “apostólica”, foi também crescente o poder</p><p>que a igreja conferiu às mãos do papa, subordinando a este até os próprios</p><p>Concílios e as deliberações. Foi um longo processo e o Vaticano I vai coroar</p><p>com êxito este objetivo.</p><p>Nesse Concílio, o radicalismo e a centralização se aprofundam. Assim, em 18 de</p><p>julho de 1870, com 533 votos a favor e 2 contra a infabilidade papal é aprovada.</p><p>Quando fala [o Papa] ex-cathedra, isto é, quando desempenhando sua função de</p><p>pastor e mestre de todos os cristãos, define, em virtude de toda sua suprema</p><p>autoridade apostólica, que uma doutrina em matéria de fé ou de costumes deve</p><p>ser admitida por toda a igreja, pela assistência divina a ele prometida na pessoa</p><p>de são Pedro, goza daquela infabilidade da qual o divino Redentor quis que sua</p><p>Igreja fosse provida... Se alguém, Deus não queira, tiver a presunção de</p><p>contradizer nossa definição: seja anátema. ( Capítulo IV, sessão IV, de 18 de</p><p>julho de 1870)</p><p>A partir daí novos dogmas serão apresentados e aprovados, o abismo entre</p><p>católicos e protestantes se aprofunda. Os protestantes são chamados e lhes</p><p>proporcionando a oportunidade de regressarem ao “único aprisco de Cristo”.</p><p>Assim, pouco mais de 300 anos entre Lutero e Vaticano I, a reformulação e</p><p>identidade católica são consolidadas. A igreja Católica Apostólica Romana,</p><p>oriunda de Trento é uma realidade. Conforme afirmamos acima, Lutero, ao</p><p>menos indiretamente, contribuiu para essa reformulação e formação da</p><p>Identidade do Catolicismo, ao longo destes três séculos. Esse tempo “serviu para</p><p>unir a igreja papal pela primeira vez por uma confissão de fé, consolidando o</p><p>poder absoluto do Sumo Pontífice numa igreja que nada mais é do que uma</p><p>instituição hierárquica para “ministrar sacramentos”. Pode assim, fixar de</p><p>maneira irrevogavel e indiscutivelmente suas doutrinas. E por mais paradoxal</p><p>que possa parecer, Lutero deu o “ponta pé inicial” que terá a continuidade, nos</p><p>dois Concílios seguintes. Vaticano II, por exemplo, vai promover uma</p><p>“verdadeira revolução” interna sem ser revolucionário. Ali, ao menos, ficou</p><p>constatada a necessidade de mudanças e aberturas para o mundo. Temas que não</p><p>puderam avançar muito foram discutidos, tais como o ecumenismo, a relação</p><p>com os católicos orientais, a questão da igreja, do estudo das Escrituras sob a</p><p>perspectiva da revelação divina, dentre outros. Foi nesse Concílio que se</p><p>priorizou a utilização da língua vernácula nas missas, aliás o que tanto Lutero</p><p>priorizou.</p><p>Vaticano II</p><p>O Vaticano II fez, ao menos, emergir uma igreja católica “diferente”. Quando se</p><p>pensaria ou discutiria no tempo de Lutero expressões, tais como “irmãos na fé”</p><p>ou “irmãos separados” em relação aos Ortodoxos e Protestantes? Quando se</p><p>pensaria a igreja pedindo perdão “por culpa de ambas as partes?” Leiamos com</p><p>atenção as palavras do papa Paulo VI:</p><p>Se dissermos que não temos pecado [citando o Apóstolo João] fazemo-lo de</p><p>mentiroso e sua palavra não estão em nós (1 Jo 1.10). Por isso pedimos</p><p>humildemente perdão a Deus e aos irmãos separados, assim como também nós</p><p>perdoamos aos que nos tem ofendido.</p><p>É evidente que não devemos ingenuamente acreditar numa unidade de fé entre</p><p>estes “irmãos separados”, porém podemos constatar um verdadeiro divisor de</p><p>águas em que somente o tempo, como um verdadeiro “profeta”, irá revelar o</p><p>alcance das mudanças do Vaticano II.</p><p>A partir do último Concílio uma nova imagem começa a ser delineada no meio</p><p>católico. Ironicamente, um novo retrato emerge daquele que há 500 anos não se</p><p>retratou. Em alguns setores católicos até como “ecumênico” Lutero está sendo</p><p>considerado. Outros até estão descobrindo um “Lutero católico”. Não estamos</p><p>em falando em unidade católico sob católica em relação a Lutero. Sabemos que</p><p>as opiniões se divergem, no entanto, só em detectarmos aspectos positivos sobre</p><p>o reformador já se trata de um grande avanço. Está bem distante o</p><p>posicionamento em que o chamavam de “filho do Diabo” como fruto de um</p><p>incesto com a própria mãe; as alusões indecentes e imorais, as lendas fantásticas</p><p>a respeitos de sua morte, a gravidez da esposa Katarina e, por isso, o seu</p><p>casamento feito com rapidez e “as escondidas”, etc. Hoje temos obras escritas,</p><p>em conjunto, entre católicos e protestantes cujo tema não é outro senão Lutero.</p><p>Essa nova imagem surge paulatinamente. Trata-se um processo com tendência a</p><p>se consolidar. O escritor luterano Harding Meyer, apresenta cinco subdivisões</p><p>em sua exposição para esse novo retrato de Lutero:</p><p>1. A fase de mera calúnia.</p><p>2. Tentativas passageiras de compreensão mais justa.</p><p>3. Recaída da fase da calúnia.</p><p>4. Interrogatório historicizante e psicologizante.</p><p>5. Abertura definitiva para atitude de respeito crítico diante do reformador.</p><p>Essas subdivisões se estendem do século XVI e culminando com o Vaticano II</p><p>em início da década de 1960, e uma prova contundente que os avanços estão</p><p>sendo feitos foi o ocorrido em 31 de outubro de 2016. Por ocasião das</p><p>comemorações dos 500 anos da Reforma, luteranos e católicos do mundo todo</p><p>marcaram presença na Catedral de Lund, na Suécia, celebrando um culto</p><p>ecumênico, com um grande desafio: pedir perdão pelos erros do passado.</p><p>Estiveram presentes representantes de diversas igrejas do mundo. Devido à</p><p>importância histórica do fato estaremos reproduzindo o texto lançado pela igreja</p><p>luterana.</p><p>No altar estavam lado a lado, o Papa Francisco; o presidente da Federação</p><p>Luterana Mundial (FLM), Dr. Munib Younan; o secretário-geral da FLM, Rev.</p><p>Martin Juenge; o presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade</p><p>dos Cristãos, cardeal Kurt Koch; e a primaz da Igreja Luterana da Suécia,</p><p>arcebispa Antje Jackelen.</p><p>Em sua homilia, Junge salientou que as pedras que venhamos a ter em nossas</p><p>mãos no futuro não sejam para ser arremessadas uns contra outros nem para</p><p>construir muralhas que nos separem, mas para construir casas compartilhadas e a</p><p>mesa na qual venhamos a celebrar em comum a Eucaristia. Estamos aqui</p><p>reunidos para redescobrir quem somos em Cristo.</p><p>O Papa, ao tomar a palavra, clamou pelo dom da unidade, insistindo na</p><p>necessidade de um testemunho comum crível para que o mundo creia. Francisco</p><p>expressou gratidão à Reforma por ter trazido a Bíblia para o centro da vida da</p><p>Igreja e exaltou a espiritualidade de Lutero, ao colocar sua fé num Deus</p><p>misericordioso que nos justifica por graça.</p><p>Com a comemoração</p><p>comum da Reforma de 1517 temos uma nova oportunidade</p><p>para acolher um percurso comum, que se foi configurando ao longo dos últimos</p><p>cinquenta anos no diálogo ecumênico entre a Federação Luterana Mundial e a</p><p>Igreja Católica. Peçamos ao Senhor que a sua Palavra nos mantenha unidos,</p><p>porque ela é fonte de alimento e vida; sem a sua inspiração, nada podemos fazer.</p><p>Somente o tempo faz a distinção entre o certo e o errado! Esperamos em Deus</p><p>que essa reaproximação não venha com o comprometimento das cinco solas dos</p><p>reformadores: Sola Scripura, Sola Gracia, Sola fide, Solus Christus e Soli Deo</p><p>Gloria.</p><p>Estamos chegando ao final do legado de Lutero. Ao final do que foi proposto e</p><p>não das riquezas que esse grande reformador nos deu como herança, pois a</p><p>pesquisa deve continuar e novas contribuições de Lutero hão de surgir... basta</p><p>começar.</p><p>Situação do Homem Diante de Deus</p><p>Certamente, o legado de Lutero, que estaremos analisando como último, é um</p><p>dos mais significativos para o fiel em particular. Ele atinge a pessoa como um</p><p>todo, corpo e alma e espírito, segundo os tricotômicos. A pessoa como ser é</p><p>atingida incondicionalmente. E é isso que nos propomos.</p><p>Lutero descobre que o ser humano é nulo diante de Deus. É Deus que vem a ele.</p><p>Nada no ser humano pode ser feito para agradar-lhe. Somente em Cristo, aliás,</p><p>uma das palavras prediletas do reformador: somente. Ao traduzir Isaias 46.5,</p><p>Lutero sentencia que a nossa justiça é como absorvente já usado. Parece forte</p><p>essa tradução, mas é exatamente o que Lutero descobre sobre o que podemos</p><p>fazer para agradar a Deus para a nossa justificação. Para Lutero todo o agrado</p><p>que possamos fazer para Deus, resume-se em Cristo. Ainda está para nascer a</p><p>pessoa que por si só consegue seguir a Deus de coração livre e alegre. O texto</p><p>em Mateus 5.48 afirma: “Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai,</p><p>que está nos céus”. Pergunta Lutero: “Quem é perfeito como Deus?”. Paulo</p><p>responde a essa indagação em Romanos 3.23: “Porque todos pecaram e</p><p>destituídos estão da glória de Deus”. Diante dessa situação — como ser perfeito</p><p>e ao mesmo tempo pecador — abre-se um abismo entre Deus santo e o homem</p><p>pecador. Existe somente uma saída: Deus se inclina ao pecador. E isso Deus faz</p><p>em Cristo. “Nenhum mérito ou dignidade de sua parte”, diz Lutero. O homem é</p><p>impotente. Nenhuma pessoa pode se salvar. Ninguém pode meritoriamente</p><p>alcançar a bem-aventurança. Creio não será exagero colocarmos algumas</p><p>palavras na boca de Lutero como se fosse ele que tivesse escrevendo ou falando.</p><p>Vamos fazer uma pergunta: Lutero, que posso fazer para agradar a Deus? A</p><p>resposta seria: Nada, absolutamente nada! Não tem nenhum valor para a</p><p>salvação tudo o que fazemos para Deus. Em outras palavras, diria Lutero: Não</p><p>adianta dar esmolas, contribuir para igrejas ou instituições de caridade. Não</p><p>adianta orar, jejuar, visitar órfãos, doentes e ajudar todo aquele que necessita. De</p><p>nada vai adiantar você e eu vendermos tudo o que temos e distribuir aos pobres.</p><p>Isso e tudo mais que fizermos de nada adiantará. Então, Doutor — faço uma</p><p>observação — se nada que faço vale para Deus, vou viver minha vida e “não</p><p>estou nem aí para os outros”. Lutero então explicaria: Veja bem, confirmo tudo o</p><p>que digo, porém, se eu e você fizermos tudo aquilo que disse que era inútil, se</p><p>fizermos, repito, se fizermos “em Cristo”: Tudo muda. Deus olha toda nossa</p><p>justiça por intermédio de Cristo. O que faço em Cristo, Deus aceita como cheiro</p><p>suave em sua presença. O que conta são os méritos e obras de Jesus em nós. É a</p><p>“fé ativa no amor”. As obras, diria Lutero, não revelam uma vida em Deus, e</p><p>sim, uma vida com Deus, revelam as boas obras, em outras palavras, a fé em</p><p>Cristo. Nessa fé as obras “se tornam iguais”. Não importa a dimensão da obras,</p><p>sejam elas grandes, pequenas, breves, longas, muitas ou poucas. O que conta não</p><p>são as obras em si, e sim a fé que as produziu. É nessa perspectiva que</p><p>desenrolará a situação do homem diante de Deus. Ele é nada ou é simplesmente</p><p>um pecador, alienado de Deus. É o Senhor que vai em direção ao homem.</p><p>Analisaremos Lutero em relação a este legado utilizando-se de suas próprias</p><p>palavras. Agimos assim, no intuito não só em sermos mais originais, mas</p><p>também permitir que outras conclusões sejam retiradas do seu próprio texto que</p><p>é muito rico.</p><p>Temos na obra Magnificat, escrita em 1521, uma das mais belas páginas de</p><p>Martinho Lutero. Sua intimidade com Deus, coerência bíblica e, sobretudo, seu</p><p>amor a verdade, vão marcar indelevelmente essa obra, que atravessa o tempo</p><p>sem perder sua originalidade e atualidade. É um marco da espiritualidade cristã.</p><p>Nela, utilizando-se da serva do Senhor, revela o caráter de Maria em sua</p><p>aplicação com a vida de cada cristão.</p><p>Alguns aspectos desta obra são relevantes para mostrar a condição do homem</p><p>diante de Deus. Vejamos: um aspecto que Lutero começa a examinar é o</p><p>direcionamento do olhar de Deus. Ele, o soberano Senhor, não olha para cima e</p><p>nem para o lado. Deus olha para baixo.</p><p>Visto que,</p><p>[...] Ele é o mais elevado, e que nada existe acima dEle, Ele não pode olhar para</p><p>além de si; também não pode olhar para os lados, porque ninguém é semelhante</p><p>a Ele. Por isso há que dirigir seu olhar necessariamente para si mesmo e para</p><p>baixo; quanto mais baixo alguém está, tanto melhor Ele o enxerga.</p><p>Assim esse olhar de Deus vai atingir e socorrer “os pobres, desprezados,</p><p>miseráveis, desgraçados, abandonados, e os que são absolutamente nada”. Será</p><p>nessa perspectiva que Deus vai olhar para baixo e contemplar sua serva Maria.</p><p>Ela se considerava “intrinsecamente” sem nenhum valor, porém,</p><p>“extrinsecamente”, isto é, aos olhos de Deus, uma serva fiel. A força da</p><p>argumentação de Lutero para mostrar a situação que Maria se considerava diante</p><p>de Deus é a tradução que ele faz de “não contemplou a humildade de sua serva”.</p><p>Lutero traduz a palavra humilitas não como humildade, mas sim como</p><p>“nulidade” ou “ser insignificante”. É como Maria tivesse dizendo que Deus não</p><p>lançou seu olhar a uma filha de Anás ou Caifás, que seriam as principais do país,</p><p>mas lançou seu olhar sobre mim por “pura bondade”. Assim para Lutero não há</p><p>nenhum mérito de nossa parte em Deus agir por nós. Trata-se de pura</p><p>misericórdia.</p><p>Outro argumento de Lutero sobre a situação espiritual do homem e da mulher</p><p>diante de Deus é o comentário que faz em Tratado Sobre a Liberdade Cristã,</p><p>quando o homem é unido a Cristo, tal como ocorre, por analogia, no casamento.</p><p>Em relação ao casamento ambos, marido e mulher, “se tornam uma só carne”.</p><p>Assim será a minha relação com Cristo, pois por um lado sou pecador, morto e</p><p>condenado. Por outro, Cristo é graça, vida e salvação. São os opostos se</p><p>atraindo. Quando me uno a Cristo o que é meu para ser de Deus, e o que é de</p><p>Cristo passa a ser meu. Deixemos que o próprio Lutero nos fale com a sua</p><p>eloquência peculiar:</p><p>A alma é copulada com Cristo como a noiva com o noivo, sacramento pelo qual</p><p>(como ensina o apóstolo) Cristo e alma são feitos uma só carne. Sendo eles uma</p><p>carne, é consumado entre eles o verdadeiro matrimônio, sim, o mais perfeito de</p><p>todos, enquanto os matrimônios humanos são figuras tênues desse matrimônio</p><p>único. Daí se segue que tudo se lhes torna comum, tanto de coisas boas quanto</p><p>as más, de modo que a alma fiel pode apropriar e gloriar-se de tudo que Cristo</p><p>possui como sendo seu, e de tudo que tem a alma Cristo se apropria como se</p><p>fosse seu. Confirmamos isso, e veremos coisas inestimáveis. Cristo é cheio de</p><p>graça, vida e salvação; a alma está cheia de pecados, morte e condenação.</p><p>Intervenha agora a fé, e acontecerá que os pecados, a morte e o inferno se</p><p>tornam de Cristo, e a graça, vida e salvação são da alma. Pois Ele é o noivo, tem</p><p>que, simultaneamente, aceitar o que é da noiva e compartilhar com a noiva o que</p><p>é seu. Porque, quem lhe dá o corpo e a si próprio, como não lhe daria tudo que é</p><p>seu? E quem aceita o corpo da noiva, como não aceitaria tudo o que é da noiva?</p><p>Assim por intermédio dessa analogia, Lutero revela que somos pecadores,</p><p>mortos e sentenciados ao inferno, mas que</p><p>viajamos. Os olhos vêem a imaginação</p><p>transvê.</p><p>Assim sendo o pensamento, a leitura e o que escrevemos sempre estarão ligados,</p><p>e até mesmos relacionados, à nossa experiência de vida. Conscientes ou não,</p><p>sempre estaremos retirando do nosso acervo psíquico o acumulado em nossa</p><p>existência e tudo estará refletido no que realizamos.</p><p>Nas Entrelinhas</p><p>O que é verdade na ética, política, moral e sociedade, é na teologia. O teólogo H.</p><p>Richard Niebuhr, afirmou que “as opiniões teológicas têm suas raízes na relação</p><p>entre a vida religiosa e as condições culturais e políticas prevalecentes em</p><p>qualquer grupo de cristãos”. Ao escrever, seja em qualquer nível ou situação,</p><p>sempre vamos deixar refletir nossa própria experiência. Tomemos o exemplo de</p><p>K. Barth em sua palestra proferida a 10 de março de 1933, em plena ascensão do</p><p>Nazismo, que deixa transparecer nas entrelinhas, o governo tirano de Hitler:</p><p>“Toda teologia tem ‘outros deuses’, e sem dúvida alguma eles estão ali onde a</p><p>gente e onde ela mesma menos o percebe”. Sempre deixaremos, de forma clara e</p><p>evidente ou, então, “às escondidas” a realidade vivida tanto de quem escreve ou</p><p>para quem se escreve. Por isso, para se compreender um texto de uma</p><p>determinada época, seja de passado remoto ou mesmo recente, se faz necessário</p><p>o prévio conhecimento do contexto sócio-cultural em que foi redigido, para</p><p>melhor conhecer e assimilar o pensamento do autor e seu posicionamento frente</p><p>ao seu momento histórico. Todo texto encontra-se inserido num contexto. Este</p><p>poderá estar nas linhas próximas ao texto ou distante tais como nas instituições</p><p>culturais da época e mesmo numa ideologia dominante. Nunca um texto será</p><p>neutro e imparcial.</p><p>Pode-se ocorrer também o inverso. Muitas vezes nos ajustamos a uma nova</p><p>realidade que experimentamos e temos que nos “enquadrar”. Tenho minha</p><p>própria experiência ministerial em relação à contextualização ou ambiente</p><p>social. Na década de 1980, iniciei o pastoreio de uma igreja em uma comunidade</p><p>carente. Havia, inclusive, nesta comunidade um local em que os próprios</p><p>moradores classificavam-no de “Beco da Miséria”. Era a área mais pobre dentre</p><p>a pobreza da comunidade. Certa feita, no início do meu trabalho, subindo o</p><p>morro em direção ao templo, trajando terno e gravata, um morador, ao passar por</p><p>mim e em resposta ao meu cumprimento, respondeu-me de forma, que para mim</p><p>foi contundente e reveladora: “Bom-dia, Doutor!”. Minha interpretação à</p><p>resposta daquele morador foi um pedido do mesmo para que eu me</p><p>contextualizasse. Descobri que estava “deslocado” da realidade ao iniciar meu</p><p>trabalho pastoral. Sempre estaremos ligados a um contexto e muitas vezes</p><p>precisamos nos “ajustar”.</p><p>De forma semelhante correu com Martinho Lutero.</p><p>Lutero e seu Tempo</p><p>Toda a exposição anterior foi para demonstrar a relação existente entre Lutero e</p><p>seu ambiente europeu ou, utilizando a expressão de Lucien Lefbvre, “Lutero e</p><p>seu destino”. Ele era filho de seu tempo, inserido num ambiente social, político,</p><p>religioso e cultural do fim da Idade Média, período que se estende de 476–1453,</p><p>e início dos chamados Tempos Modernos. Podemos ver um Lutero “medieval” e</p><p>“moderno”, não somente agia, mas também refletia o momento histórico em que</p><p>atuava. Sempre ao fazer história ou escrever faz-se a história do historiador. Ao</p><p>se escrever sobre história, percebe-se a história do próprio historiador, pois ele se</p><p>encontra inserido. Lutero não foge à exceção. Vemos, projetado em todo o</p><p>desenrolar da Reforma, cujo ator principal era ele, acontecimentos simultâneos e</p><p>interligados, próprios de sua sociedade, dos quais o reformador fazia parte.</p><p>Lutero era um dos elos dessa corrente. Aconteceram fatos no século XVI que,</p><p>direta ou indiretamente, contribuíram positivamente para o sucesso da Reforma.</p><p>Alguns posicionamentos de Lutero fazem parte da ideologia daquela época e</p><p>devem ser analisados com nessa perspectiva. Se quisermos avaliá-los devemos</p><p>fazê-lo como filho do seu próprio tempo e não sob a ótica de nossa atual</p><p>sociedade.</p><p>Qual o contexto de seu tempo? Em linhas gerais podemos sublinhar os aspectos</p><p>econômicos e tecnológicos. Na época de Lutero a expansão marítima estava a</p><p>todo vapor com as viagens às Índias, facilitada pelas novas caravelas, na busca</p><p>frenética das especiarias; a invenção da imprensa com tipos móveis, em muito</p><p>facilitou a divulgação das obras e ideias de Lutero; e a conquista das colônias</p><p>americanas o que contribuiu para o incremento comercial. No âmbito político</p><p>inicia-se o processo de centralização política, concomitante com a crise do</p><p>feudalismo como modo de produção e a emergência de um grupo social que se</p><p>fortalece ao longo dos séculos e em apoio aos reis: a burguesia. Os camponeses,</p><p>bem como a própria burguesia procuram um “lugar ao sol” nesse momento em</p><p>que se convencionou chamar de transição do Feudalismo ao Capitalismo. O</p><p>Capitalismo ensaiava seus primeiros passos como futuro modo de produção.</p><p>Será o momento dos grandes negócios patrocinados pelas Casas bancárias</p><p>europeias, da intensificação de vendas a crédito, dos juros, lucros, mas valia e</p><p>demais práticas do moderno capitalismo. No contexto cultural temos</p><p>paralelamente o Humanismo e o Renascimento que, dentre suas características</p><p>está a volta às fontes originais (Ad fontes), cujo máximo representante foi o</p><p>humanista Erasmo de Roterdã, que em 1516 traduziu o Novo Testamento</p><p>diretamente do grego, obra que será a base para as traduções da Bíblia pelos</p><p>reformadores e durante 300 anos serviu de texto padrão dos protestantes. Por</p><p>último, para citar somente esses poucos fatos, temos o aspecto religioso. Diante</p><p>de todas essas transformações a igreja oficial resistia, não somente as mudanças</p><p>necessárias inerentes a esse novo mundo ou a essa nova Europa que desponta,</p><p>mas também se mostrava incapaz de atender as necessidades de sua população</p><p>que cada vez mais se secularizava, porém sem perder seus anseios espirituais,</p><p>em especial a preocupação com a salvação. Havia, por parte da igreja, muitas</p><p>incertezas teológicas e conflitos entre as Ordens Religiosas. Quando Leão X</p><p>assumiu o pontificado, foi feita uma procissão em que se podia ler uma grande</p><p>faixa com os dizeres: “Outrora governou Vênus [Alexandre VI], depois Marte</p><p>[Júlio III]; agora Palas Atenas [Leão X] detém o cetro”.</p><p>Estes poucos exemplos revelam a situação da igreja.</p><p>Outros fatores que iremos abordar prepararam um terreno fértil para a obra</p><p>realizada pelo reformador. Há séculos fora tentada por vários “precursores” sem</p><p>sucesso imediato, pois não havia condições estruturais para a realização plena.</p><p>No mundo de Lutero as condições eram outras.</p><p>E é isso que estaremos demonstrando!</p><p>Devido à natureza do tema proposto e com precaução para não estender em</p><p>demasia e, assim, fugir ao objetivo proposto, estaremos discorrendo</p><p>principalmente sobre duas situações diretamente ligadas a Lutero e que irá</p><p>refletir na vida do reformador e, por extensão, à própria Reforma.</p><p>Em primeiro lugar, temos um elemento mais amplo no contexto de Lutero: o</p><p>Sacro Império Romano-Germânico. Sabemos que o Sacro Império era a</p><p>Alemanha e a Alemanha era o Sacro Império, no entanto, havia desdobramento</p><p>de interesses quando se refere ao Império. No momento histórico da atuação de</p><p>Lutero, o seu país, a Alemanha, era o que se chamou posteriormente de 1º Reich,</p><p>diferenciando assim do 2º (1871-1918) e 3º Reich (Alemanha Nazista). Em</p><p>segundo lugar, mais próxima ao reformador será o seu próprio país, a Alemanha</p><p>do século XVI. Para o desenrolar da ação de Lutero, essas duas situações</p><p>formavam “uma mesma moeda com seus lados”. A política externa do Império</p><p>contribuía para a atuação de Lutero.</p><p>Sacro Império Romano-Germânico</p><p>Antes da análise tanto do Sacro Império quanto a situação da Alemanha do</p><p>século XVI cremos ser válida a analogia com as palavras de Paulo em Gálatas</p><p>4.4: “Vindo a plenitude do tempo, Deus enviou o seu filho”. Tem causado</p><p>estranheza para alguns, Paulo utilizar cronos para se referir ao tempo. Cronos é o</p><p>espaço de tempo longo ou breve. Também significa duração, tempos, séculos.</p><p>por intermédio do nosso casamento</p><p>com Cristo passamos a ser um em Cristo.</p><p>Outro grande benefício que Lutero trouxe à luz foi que muitas vezes o viver na</p><p>fé cristã é viver no paradoxo. É viver na contramão da lógica.</p><p>A fé orienta-se às coisas invisíveis; para dar oportunidade à fé, é necessário que</p><p>tudo que se há de crer esteja oculto, e esse ocultamento é tanto mais profundo</p><p>quando o objeto da fé fica em franca oposição ao sentido da vista, da sensação</p><p>dos sentidos, do senso e da experiência.</p><p>Devemos notar que Lutero nos presenteia ao afirmar que a fé atua ou se orienta</p><p>para as “coisas invisíveis” Tudo que se vê não é fé. Quando se recebe, deixou de</p><p>existir fé. A fé se revela quando não recebemos o que almejamos. Somente no</p><p>oculto a fé é revelada.</p><p>Outro ponto que ele destaca é a contradição (oposição) que a fé leva a todo</p><p>aquele que crê. A fé será revelada em seu dia a dia, com todas as vicissitudes,</p><p>derrotas ou vitórias. Para Lutero será nas adversidades que revelamos quem</p><p>somos e o tipo de fé que possuímos. Pela fé tudo poderá se mostrar contrário ao</p><p>plano de Deus na vida do fiel. Sobrevirão fatos em sua vida que nunca serão</p><p>explicados, mesmo depois de sua oração. Muito do que ocorre em sua vida não</p><p>terá sentido, para você, mas saiba que tudo que acontece em nossa vida é da</p><p>vontade de Deus. Para Lutero, passar por provações, decepções, injustiças,</p><p>problemas sem solução a médio ou longo prazo, perguntas que não terão</p><p>respostas e respostas para perguntas que não foram feitas, com certeza, estarão</p><p>na vida daqueles que tem a fé genuína. É o não de Deus que se torna um sim e o</p><p>sim de Deus sendo um não em nós. Quem assim compreende, e consegue</p><p>conviver com esse “ocultamento” ou aparentes contradições da fé, tem a fé pura</p><p>e genuína das Sagradas Escrituras.</p><p>Leia de maneira pausada e reflita como Lutero explica o ocultamento</p><p>(absconditus) da atuação de Deus em nós por meio da fé.</p><p>Ora, não podem estar mais remotamente abscônditas do que se estão sobre o</p><p>contrário do que se tem à vista, se percebe e experimenta. Assim quando</p><p>vivifica, Deus o faz matando; quando o justifica, o faz incriminando; quando</p><p>leva ao céu, o faz conduzindo ao inferno, como diz a Escritura: “O Senhor mata</p><p>e vivifica, leva ao inferno e retira”. (1 Sm 2.6)</p><p>Esse profundo texto se faz refletir nesta oração proferida do fundo de sua alma:</p><p>Tu és um Deus maravilhoso, cheio de amor.</p><p>Tu nos governas maravilhosa e amigavelmente.</p><p>Tu nos levantas quando nos rebaixas.</p><p>Tu nos tornas justos quando de nós fazes pecadores.</p><p>Tu nos levas ao céu quando nos atira no inferno.</p><p>Tu nós dás a vitória quando permites que sejamos vencidos.</p><p>Tu nos consolas quando nos deixas enlutados.</p><p>Tu nos fazes alegres quando nos deixas gritar.</p><p>Tu nos fazes cantar quando nos deixas chorar.</p><p>Tu nos fortaleces quando sofremos.</p><p>Tu nos tornas sábios quando de nos fazes tolos.</p><p>Tu nos tronas ricos quando nos envias pobreza.</p><p>Tu de nós fazes senhores quando nos deixa servir.</p><p>Amém.</p><p>Essa é a fé evangélica que se apresenta por meio de seus escritos! Uma fé que</p><p>convive com os paradoxos da vida.</p><p>Não obstante essa profundidade de fé revelada aos fiéis, ela se apresenta em</p><p>vasos de barro. É pura graça e misericórdia de Deus agindo em nós. Jamais</p><p>devemos nos esquecer de que somos pecadores, tal como Paulo, “o principal”.</p><p>Deus ao olhar para “baixo”, olha com o intuito salvífico. A expressão também</p><p>está registrada em Êxodo 3.8 em relação ao povo da antiga aliança: “desci para</p><p>livrá-los”. De forma semelhante nada havia de positivo dentre o povo para que</p><p>Deus “descesse” e, assim, os libertasse. Foi somente o amor que o fez descer.</p><p>Sobre esse povo, Moisés havia dito: “Vocês tem sido rebeldes contra o Senhor</p><p>desde que os conheço” (Dt 9.2, NVI).</p><p>De forma semelhante ocorre ocorria nos dias de Lutero e em nossos dias: somos</p><p>pecadores necessitando da graça e favor de Deus. O que recebemos dEle revela a</p><p>sua própria empatia sobre nós. É Deus que vem a nós. Que “desce” e “distribui</p><p>dons” por sua misericórdia. Lutero falava de si da seguinte forma, quando</p><p>atribuíam o termo luterano ao novo movimento que surgia: “Que pretensão seria</p><p>essa de um miserável e fedorento saco de vermes como eu se quisesse que os</p><p>filhos de Cristo fossem chamados por seu desastrado nome?”.</p><p>De forma contundente o reformador caracteriza o ser humano diante de Deus, ou</p><p>melhor, um pecador que merece sofrer as consequências de seus pecados.</p><p>É preciso que graves profundamente em teu coração e que não duvides de forma</p><p>alguma de quem tortura Cristo desta forma és tu mesmo, pois teus pecados são,</p><p>com certeza, responsáveis por seu sofrimento. Assim São Pedro, qual trovão,</p><p>atingiu e assustou os judeus ao dizer a todos eles: “Vocês o crucificaram”. (At</p><p>2.37) Por isso, ao verem os pregos atravessarem as mãos de Cristo, podes ter a</p><p>certeza de que são obra tua, ao vires a sua coroa de espinhos, podes crer que são</p><p>os teus maus pensamentos; e assim por diante. Vê, pois, que, quando um espinho</p><p>aguilhoa a Cristo, seria justo que te aguilhoassem mais de cem mil espinhos;</p><p>mais ainda: eles deveriam espetar-te desse jeito e até pior por toda a eternidade.</p><p>Quando um prego, atravessa torturamente as mãos ou os pés de Cristo, tu és que</p><p>deveria sofrer eternamente com os pregos e até piores. É o que também sucederá</p><p>àqueles que fazem com que os sofrimentos de Cristo tenha sido em vão para</p><p>eles.</p><p>O que o reformador preconiza que a pessoa reconheça a si mesmo como</p><p>pecadora e a libertação que há em Cristo.</p><p>Lutero era muito prático na apresentação de sua Teologia. Mesmo por meio de</p><p>grandes argumentos, ele direcionava a pessoa para encontrar suas próprias</p><p>respostas às questões da vida. Como saber de minha situação diante de Deus, já</p><p>que sou um pecador? Como acalmar-me frente às acusações que faço de e para</p><p>mim mesmo? Fazer como Paulo: “Miserável homem que eu sou! Quem me</p><p>libertará do corpo sujeito a esta morte?”. Essas e outras perguntas que nos</p><p>chegam “na calada da noite”, Lutero apresenta o que ao menos será um caminho</p><p>nesta busca para uma boa consciência: considerar-se sempre um pecador.</p><p>Constatar que todo o bem que temos, caso os tenha, vem do Pai das luzes.</p><p>Considerar que Deus é que vai operar em nós, tanto o querer quanto o efetuar. É</p><p>fazer uma introspecção. É voltar-se para si mesmo. Ficar completamente despido</p><p>aos olhos de Deus e deixar-se examinar-se a si mesmo.</p><p>Assim se expressou o reformador:</p><p>Os santos são intrinsecamente, sempre pecadores, por isso, são sempre</p><p>justificados extrinsecamente.</p><p>Mas os hipócritas são, intrinsecamente, sempre justos, e por isso são sempre</p><p>pecadores extrinsecamente. Eu uso o termo “intrinsecamente” para indicar como</p><p>somos em nós mesmo, aos nossos próprios olhos, e nossa própria estimativa;</p><p>mas uso o termo ‘extrinsecamente’ para indicar como somos diante de Deus e</p><p>em seu modo de considerar. Por conseguinte, somos justos extrinsecamente,</p><p>quando não somos justos a partir de nós mesmos e de nossas próprias obras, mas</p><p>somente, a partir da consideração de Deus.</p><p>Podemos associar essas palavras de Lutero com a prática do apóstolo Paulo ao</p><p>afirmar em 2 Coríntios 12.10 “[...] porque, estou fraco, então, sou forte”.</p><p>Também em 1 Coríntios 4.4 (NVI) “[...] embora em nada minha consciência me</p><p>acuse, nem por isso justifico a mim mesmo; o Senhor é quem me julga”.</p><p>Creio que uma das melhores formas de encerrar o tema proposto é reviver e</p><p>colocar em prática os ensinamentos de Lutero, alicerçados nas páginas das</p><p>Escrituras. Particularmente, creio que pelas comemorações dos 500 anos da</p><p>Reforma Protestante, podemos, tal como Lutero praticar, uma ad fontes, ou seja,</p><p>voltar às fontes e beber dos originais... e Lutero é uma das. Ecclesia Reformata</p><p>Semprer Reformanda (a Igreja Reformada deve ser sempre reformada). E aí está</p><p>a oportunidade para permanecermos sempre reformados: uma volta aos</p><p>reformadores, em especial Martinho Lutero. Aliás, era essa a opinião de seu</p><p>discípulo e substituto Felipe Melanchthon ao afirmar:</p><p>Se bem que a virtude deste homem em si seja</p><p>digna de louvor, ele que, com espírito reverente,</p><p>usou os dons que Deus lhe concedeu, devemos,</p><p>antes agradecer a Deus pelo fato de nos ter</p><p>restituído, por intermédio dele, a resplendente</p><p>luz do Evangelho, devendo a sua doutrina não</p><p>somente ser conservada na lembrança.</p><p>Conclusão</p><p>Precisamos encerrar. E encerrar em Lutero é outro grande desafio, pois quanto</p><p>mais vasculhamos ou nos aprofundamos no pensamento desse homem mais</p><p>somos surpreendidos com novas descobertas. Ele é como o garimpeiro que, ao</p><p>trabalhar a sua bateia, entre as pequenas pedrinhas sem valor comercial, encontra</p><p>a pedra valiosa. Assim tem sido Lutero. Quanto mais o examinamos, mais</p><p>descobrimos novos horizontes.</p><p>Em que podemos comparar Lutero? Cremos que podemos relacioná-lo a um</p><p>grande rio que deságua no oceano. Ele é ao mesmo tempo rio e oceano. Tanto</p><p>quanto rio ou oceano, a vida de Lutero é também a vida de todos quantos</p><p>abraçam a fé com as suas crises existenciais e conquistas. O rio que foi sua vida</p><p>teve momentos onde perpassam águas tranquilas e profundas, mas também</p><p>cascatas, pedras no percurso com momentos rasos e de grandes ruídos. As águas</p><p>tranquilas de sua vida foram momentos vividos pela liberdade alcançada pela</p><p>justificação por meio da fé, tal como ele registrou: “as portas do paraíso se</p><p>abriram”; pela descoberta da graça gratuita de Deus por essa justificação</p><p>somente pela fé; bem como pela liberdade alcançada em Cristo a ponto de</p><p>assinar “Lutero, o liberto”. Também o encontro com Katharina que se tornará</p><p>sua eterna “querida Käthe”; pelas tardes a passear nos jardins com seus filhos,</p><p>ensinando-lhes sobre o amor de Deus com sua esposa. O rio que foi a vida de</p><p>Lutero passou por muitos percalços. A vida de Lutero, quanto a minha e de todo</p><p>ser humano, é tal como o rio, tem o seu curso nos lugares rasos e pedregosos e</p><p>nos terrenos difíceis, porém não se nega a atravessá-los. Esses locais fazem parte</p><p>do percurso e ouvem-se à distância o ruído de suas águas. Assim, o reformador</p><p>teve que passar por esses “vales da sombra e da morte”: a perda de filhos que</p><p>tanto o abateu; a incompreensão de sua própria teologia por seus colegas</p><p>reformadores; sua excomunhão; e uma vida durante anos proscrito aguardando a</p><p>morte a qualquer momento.</p><p>Lutero nos ensinou, entre tantas outras lições, a conviver com as contradições e</p><p>paradoxos no exercício de uma fé genuína, não obstante as dúvidas inerentes da</p><p>própria fé quando esta aponta para os riscos sem, no entanto, perder a confiança</p><p>no Deus Todo-Poderoso. Creio que esse foi um dos grandes legados de Lutero</p><p>quando nos ensina a ouvir o não de Deus através do sim, e o sim de Deus,</p><p>através do não.</p><p>O rio também pode desaguar no mar, que por sua vez é parte do oceano. Lutero</p><p>como um rio desaguou e foi-se misturar num grande oceano. Podemos</p><p>compreender Lutero como rio, como nos foi apresentado nesta obra.</p><p>Conhecemos um pouco mais de Lutero sem sair do rio. Seu tempo, sua vida e</p><p>obra. Percorremos esse rio em nossa análise, no entanto, sabendo que</p><p>desembocaria no oceano. Não chegamos ao oceano da vida e teologia de Lutero.</p><p>Há muito mais a se aprofundar nesse oceano. É um longo percurso e este livro</p><p>mostrou, em linhas gerais, que existe o Lutero oceano a ser mergulhado ou</p><p>investigado. Cremos que ao menos chegamos “à beira da praia” e olhando o</p><p>horizonte, a “mar aberto”, despertamo-nos para o fato de que podemos avançar.</p><p>Que esta tarefa seja de todos.</p><p>Há poucas décadas, Lutero começou a ser traduzido de forma mais sistemática.</p><p>Eis a aí a sua e minha oportunidade. Comece a ler, examinar e descubra por si</p><p>mesmo o rico manancial deste que, segundo Paul Tillich, foi o “único que</p><p>realizou uma verdadeira transformação, que mudou a face da terra”.</p><p>Continuamos devendo a Lutero, e nossa dívida é alta por demais. Mesmo sem</p><p>esperança de uma nova Reforma, podemos e devemos, pelo menos, suas grandes</p><p>e profundas ideias. Que esta singela leitura possa ser um reencontro com o Cristo</p><p>sofrido com as necessidades do ser humano, pois não o encontramos, segundo</p><p>Lutero, nas grandes catedrais, nos suntuosos palácios ou em grandes desfiles.</p><p>Esse Cristo é encontrado no meu semelhante caído, ferido à espera de socorro tal</p><p>como o nosso Samaritano que não somente arriscou a vida, mas entregou-se por</p><p>empatia ao necessitado.</p><p>Soli Deo Gloria!</p><p>Bibliografia</p><p>ALTMANN, Walter. Lutero e Libertação. São Leopoldo e São Paulo: Sinodal/</p><p>Ática,1994.</p><p>BARTH, K. Dádiva e louvor. 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São Leopoldo: Sinodal,</p><p>2015.</p><p>Apêndice 1</p><p>O Legado dos Reformadores</p><p>Ao longo deste trabalho, apresentei a vida e o legado de Lutero de forma sucinta.</p><p>Na verdade, o que foi apresentado era, em sua grande maioria, comungado pelos</p><p>outros reformadores, porém a figura central foi Lutero. As linhas que se seguem</p><p>procuram mostrar algumas das heranças, não só de Lutero, mas de alguns dos</p><p>reformadores. É como abrir um parêntese para fazer um tributo honroso aos</p><p>mesmos.</p><p>Alguns veem os reformadores como pessoas que viveram e influenciaram sua</p><p>própria época, isto, é o século XVI. Realmente os principais reformadores</p><p>morreram no referido século, tais como Lutero em 1546, Calvino em 1564,</p><p>Zuínglio em 1531, Heinrich Bullinger em 1575, Melanchthon em 1560, Bucer</p><p>em 1551, Cranmer em 1556, George Baurock em 1529, Farel em 1556, Felix</p><p>Manz em 1527, Tyndale em 1536, Menno Simons em 1561, John Knox em</p><p>1573, Karlsdadt em 1541, Thomas Müntzer em 1525, Capito em 1541 e Ulrich</p><p>Von Hutten, em 1523. O próprio Erasmo de Roterdã, mesmo não sendo</p><p>reformador, mas em sua própria perspectiva almejava uma Reforma, morreu em</p><p>1536. Em verdade, todos souberam discernir sua própria época e puderam</p><p>projetar, como verdadeiros profetas, uma prática contemporânea.</p><p>Somos devedores também a verdadeiros gênios que, mesmo vivendo no século</p><p>em referência, lançaram as bases para o mundo contemporâneo, bastando citar</p><p>alguns nomes: Michelangelo, Rafael, Botticelli, Ticiano, Maquiavel, Copérnico,</p><p>dentre muitos outros. Todos esses “viveram em pleno século XXI”, e acredito</p><p>que viverão por vários outros.</p><p>Cremos não ser exagero afirmar que durante o século XVI, ocorreu o</p><p>“nascimento” do mundo contemporâneo e, à medida que os séculos vão se</p><p>desenrolando, essa “criança” vai amadurecendo e tornando-se “pleno adulto”.</p><p>Foi durante a Idade Média, em especial a partir dos séculos X/XII, que ocorre</p><p>essa “gestação” do mundo contemporâneo tão delineado pelos reformadores.</p><p>Infelizmente, essa vida adulta do nosso mundo fez todos nós vivermos sob a</p><p>Espada de Dâmocles, suspensa por um fio, capaz de ser arrebentada a qualquer</p><p>momento por ganância, erro de cálculo ou mesmo por loucura.</p><p>Assim sendo, todos esses nomes citados que “viveram em pleno século XXI” e,</p><p>acredito, por vários outros séculos, continuarão a viver, tal como afirmou</p><p>Camões em Os Lusíadas, “e a todos quantos da lei da morte se libertando”, ou</p><p>utilizando-se da expressão bíblica: “Bem-aventurados os mortos [...] para que</p><p>descansem das suas fadigas, pois as suas obras os acompanham” (Ap 14.13,</p><p>ARA).</p><p>Este artigo procura mostrar o legado de alguns reformadores. Optamos por</p><p>“alguns” para não o tornar extenso. Mesmo destacando Lutero, Calvino,</p><p>Melanchton e Zuínglio, todos os reformadores, com muito ou pouco, de forma</p><p>direta ou indireta, indistintamente, cada um a seu modo, deixaram seu legado.</p><p>Apresentaremos os legados sem identificar este ou aquele reformador, pois</p><p>conforme registrado, todos comungam, em linhas gerais, as mesmas ideias.</p><p>Convém destacar que esta reflexão está baseada, principalmente, na obra de</p><p>Alister McGrath, O Pensamento da Reforma, editada pela Cultura Cristã,</p><p>capítulo 14, “O Impacto da Reforma na História”, p. 286-302. Faremos a</p><p>exposição em duas fases. A primeira consiste em apresentar, em quadro</p><p>comparativo, um confronto entre a ideologia religiosa medieval, representada</p><p>pela Igreja Católica, e o posicionamento contrário dos reformadores, conforme</p><p>exposto a seguir. Na segunda fase, faremos um comentário das implicações</p><p>dessas diferenças. Oportuno destacar que estamos nos referindo ao que podemos</p><p>classificar como cristianismo monástico que, em verdade, não é o componente</p><p>mais significativo do próprio catolicismo, mas não podemos nos esquecer de que</p><p>essa forma de cristianismo era uma espécie de porta-voz para a cristandade</p><p>católica. Era uma minoria “representativa” que, direta ou indiretamente, formava</p><p>opinião para a maioria de cristãos católicos.</p><p>Ideologia Medieval</p><p>Isolados da dura realidade do cotidiano pelos muros dos monastérios e conventos.</p><p>Deve-se renunciar ao mundo.</p><p>Os cristãos devem se afastar do mundo e entrar na segurança espiritual do monastério.</p><p>A verdadeira vida espiritual está nas celas.</p><p>Crítica aos cristãos que não seguiam a vida independentemente da vida no monastério.</p><p>O cristão vivendo no mundo é uma segunda categoria devido ao risco da degeneração espiritual.</p><p>Para Thomas Kempis, a resposta negativa para o mundo é uma resposta positiva para Deus.</p><p>Isolados, os monastérios não se relacionavam com o leigo e os avanços tecnológicos, da imprensa, por exemplo.</p><p>É impossível avaliar toda implicação que essas diferenciações traziam em curto,</p><p>médio ou longo prazo. Alister McGrath apresenta duas considerações teológicas</p><p>dos reformadores no contexto do esboço acima.</p><p>A primeira consiste em uma nova ênfase nas doutrinas da criação e da redenção.</p><p>Uma nova postura é assumida diante do mundo. Ele (o mundo) é o local de</p><p>trabalho em que o homem necessita desenvolver-se. O mundo não é mau em si.</p><p>“Na verdade, deixar de se comprometer com o mundo é declarar que ele não</p><p>pode ser redimido. Ao se respeitar a natureza como criação divina, se está</p><p>adorando a Deus, não à natureza”, afirma McGrath.</p><p>A segunda consideração do referido autor é que há uma recuperação da ideia da</p><p>vocação do cristão. Esse posicionamento dos reformadores será uma verdadeira</p><p>revira volta no mundo de então. Para eles somos chamados por Deus para atuar,</p><p>transformar e servir a Deus “no mundo”. O termo vocação passou a ser uma</p><p>“atividade ou carreira secular”. Calvino afirmara que o poder cível “é vocação,</p><p>santa, legítima, sacrossanta e honrosa”. (Que os nossos políticos não somente</p><p>saibam disso, mas vivam.) Para Lutero, cada cristão é chamado para servir a</p><p>Deus em sua profissão, e essa profissão é exercida no mundo através do seu</p><p>trabalho. Na Idade Média, os monges e freiras é que teriam uma “profissão” no</p><p>sentido de vocação por parte de Deus. Para ele, a profissão é uma tarefa com a</p><p>qual somos incumbidos por Deus. Daí não fazer diferenças entre “lavar as</p><p>fraudas sujas dos filhos ou realizar a obra redentora de Cristo”. Os reformadores</p><p>não viam diferenças vitais e genuínas entre sagrado e profano e entre temporal e</p><p>espiritual. Lutero afirmou, segundo Alister McGrath, “o que parece ser obras</p><p>seculares na verdade são louvores a Deus e representam uma obediência que</p><p>muito o agrada”. Temos com isso uma valorização do trabalho.</p><p>Precisamos passar para a segunda fase dessa argumentação em que mostra o</p><p>legado dos principais reformadores conforme declarado acima. Essa segunda</p><p>fase consiste em discorrer sobre as implicações implícitas e até mesmo explícitas</p><p>no quadro apresentado acima.</p><p>Uma verdadeira guinada de 360º graus empreendida pelos reformadores foi a</p><p>nova visão do trabalho. Claro que essa visão não foi unicamente dos</p><p>reformadores. Escritores dos séculos XVI e seguintes também destacaram a</p><p>importância do trabalho em outra perspectiva. No entanto, o que nos interessa</p><p>neste artigo é a postura dos reformadores.</p><p>A grande tônica dos reformadores é que eles não diferenciavam o mundo em</p><p>duas instâncias, tais como uma “espiritual” e outra “material”. Eles valorizavam</p><p>o trabalho como uma “vocação” divina. É oportuno destacar que o trabalho, em</p><p>linhas gerais na Idade Média, estava condicionado à ideologia da Igreja, era</p><p>considerado uma “segunda categoria”. O termo vocação no período referenciado</p><p>era compreendido como indicando um chamado à vida monástica, a qual</p><p>envolvia deixar o mundo para trás. O trabalho era uma</p><p>espécie de “maldição”</p><p>herdada desde o jardim do Éden imposta por Deus a Adão. Os reformadores, tais</p><p>como Calvino, Lutero e Tyndale, não faziam diferenciação entre “lavar pratos e</p><p>pregar a palavra de Deus”. Para eles não haveria diferenciação essencial “quanto</p><p>agradar a Deus”.</p><p>Devemos considerar o impacto econômico e ideológico que o pensamento dos</p><p>reformadores vai trazer para o mundo de então e dos séculos posteriores,</p><p>culminando com a tese de Max Weber em sua Ética Protestante e o Espírito do</p><p>Capitalismo, em que relaciona o desenvolvimento das principais nações</p><p>capitalistas europeias às nações protestantes. Weber afirmava que o calvinismo</p><p>gerou as precondições psicológicas essenciais para o desenvolvimento do</p><p>capitalismo moderno. No Brasil, por exemplo, durante o governo de D. Pedro II,</p><p>em pleno século XIX, existia o claro relacionamento do catolicismo com o</p><p>atraso econômico de uma nação e o protestantismo relacionado ao progresso</p><p>capitalista.</p><p>Outro aspecto essencial preconizado por alguns reformadores foi a questão de</p><p>juros, mola mestre para o surgimento do capitalismo moderno. Na Idade Média,</p><p>acerca da questão dos juros, era tão forte a rejeição que aos usurários era-lhes</p><p>negado um enterro cristão. Claro que não foi fácil a aceitação da usura ou</p><p>cobrança de juros, mas sabemos que cerca de 100 anos após Calvino a usura</p><p>passou a ser aceitável.</p><p>Neste momento quero abrir um parêntese nesta análise. Quando trabalhava num</p><p>colégio católico, particularmente gostava de pedir dinheiro emprestado às irmãs</p><p>da Irmandade Santa Clara, pois não cobravam juros — isso em plena década dos</p><p>anos 80.</p><p>A última abordagem baseada no quadro acima mencionado está relacionada às</p><p>mudanças políticas. Há uma unanimidade de que os reformadores mudaram a</p><p>face política da Europa, na medida em que a mutabilidade ganhou forma e força</p><p>em detrimento da irrefutabilidade. Para a Idade Média, a ordem europeia estava</p><p>assentada sobre a conservação de uma ordem já estabelecida havia séculos,</p><p>fundada sobre uma “ordem imaginada como natural e eterna”. No entanto, a</p><p>ordem moderna estava fundada sobre mudanças. Enquanto a cosmovisão</p><p>medieval era estática, ordeira e estabelecida, os reformadores, principalmente os</p><p>calvinistas, apresentavam uma ideologia de transição “na qual a posição das</p><p>pessoas no mundo é declarada estar baseada, pelo menos em parte, nos seus</p><p>esforços”.</p><p>Nessa época de transição, as cidades ganham importância não somente</p><p>ideológica, mas política. As cidades passaram a ser vistas como sinônimo de</p><p>liberdade, de conquistas e realizações. Deve-se observar que as cidades foram</p><p>palcos das Reformas, tais como Wittenberg e Genebra.</p><p>É nesse contexto que classes sociais, tais como a burguesia e o campesinato, se</p><p>sentem atraídas pelos novos tempos. A liberdade de consciência tão assumida</p><p>pelos reformadores ganha espaço entre as massas sofridas ou as que procuravam</p><p>novos espaços sociais. O desdobramento que essa liberdade há de trazer será o</p><p>dever de resistir aos tiranos. O conceito de Direito Divino de governar entra em</p><p>cheque.</p><p>Cremos não ser exagero afirmar que a Revolução Francesa é o reflexo da</p><p>florescência da ideologia que os reformadores plantaram, bem como a ideologia</p><p>burguesa implantada pelo Iluminismo do século XVIII, com a culminância da</p><p>Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948.</p><p>Apêndice 2</p><p>Cronologia da Vida de Lutero</p><p>1483 Nascimento de Lutero, em Eisleben. Seus pais: Hans e Margareth. Batizado com o nome do santo do dia.</p><p>1484 Mudou-se para Mansfeld, onde tem seus primeiros estudos.</p><p>1488/1497 Frequentou a escola municipal de Mansfeld.</p><p>1497 Matriculado em Magdeburg, vivenciando os Irmãos da Vida Comum.</p><p>1498 Transferido para estudar em Eisenach.</p><p>1501 nicia seus estudos na Universidade de Erfurt. Canta em coral diante das casas, ajudando assim nas despesas. Senhora Ursula Cotta o ajuda.</p><p>1502 Bacharel em Artes</p><p>1505 Mestre em Artes. Influência de Ockham. Início da Faculdade de Direito (duração de dois meses). Após ser envolvido num temporal, que somente ele relata, entra para o convento de Santo Agostinho.</p><p>1507 Ordenado padre. Celebra 1ª missa. Início dos estudos de teologia.</p><p>1508 Professor de filosofia na Universidade de Wittenberg.</p><p>1509 Volta para Erfurt para lecionar. Bacharel em Bíblia.</p><p>1510 Viagem a Roma.</p><p>1511 Staupitz o reconvoca para Wittenberg.</p><p>1512 Doutor em Teologia. Até o final da vida será professor na Universidade de Wittenberg.</p><p>1513/1518 Reconhece a verdade do Evangelho ou uma nova teologia.</p><p>1515 Lutero é escolhido como vigário do distrito de Gotha da ordem dos Agostinhos, passando a ter sob a sua autoridade entre 10 a 12 conventos.</p><p>1517 Publicação das 95 Teses. Envio das 95 Teses ao arcebispo Alberto de Mogúncia e Jerônimo de Brandenburgo.</p><p>1518 Debate em Heidelberg. Lutero é convocado a Roma. Apela a um Concílio. Interrogado pelo cardeal Caetano em Augsburgo. Sai de Augsburgo. Atacado por Priérias. Apela ao príncipe-eleitor Frederico, o Sábio.</p><p>1520 Ameaçado de excomunhão (Bula Exsurge Domine). Queima a Bula da excomunhão. Três grandes escritos: 1) Das Boas Obras, 2) Discurso à Nobreza Alemã, 3) Do Cativeiro Babilônico da Igreja.</p><p>1521 O Papa excomunga Lutero. É banido para Wartburg (vive pouco mais de 1 ano, como Cavaleiro Jorge). Convocado a Worms. Dieta de Worms (16,17/04), não se retrata.</p><p>1522 Traduz o Novo Testamento. Sai de Wartburg.</p><p>1524 Abandona o hábito (vestes próprias de monge).</p><p>1525 Casa-se com Katharina Von Bora. Polêmica com Erasmo.</p><p>1526 Nasce o filho Hans. Dieta de Espira, suspende a apelação de Worms.</p><p>1527 Nasce Elizabeth. Controversa com Zuínglio.</p><p>1529 Nasce Madalena. Protestação de Espira. Surge o termo protestante.</p><p>1530 Confissão de Augsburgo. Morre Hans Luder.</p><p>1531 Nasce Martinho.</p><p>Nasce Paulo.</p><p>1534 Nasce Margareth. Tradução da Bíblia para o alemão.</p><p>1546 Lutero viaja para Eisleben, para mediar conflito entre dois condes. Morre a 18 de fevereiro (62 anos, três meses e oito dias) é sepultado em Wittenberg, dia 22).</p><p>Suas últimas palavras: “Ó meu amado Pai Celeste, Deus e Pai de nosso Senhor</p><p>Jesus Cristo [...] agradeço por teres me revelado teu amado Filho Jesus Cristo,</p><p>em quem creio, a quem preguei e confessei, a quem amei e louvei, a quem o</p><p>repugnante papa e todos os ímpios ridicularizam [...] Peço-te meu Senhor Jesus</p><p>Cristo, coloca minha alminha sob tuas ordens. Pai celeste, se já agora eu tiver</p><p>que abandonar esse corpo [...] sei com certeza que posso permanecer</p><p>eternamente contigo e ninguém me arranca de tuas mãos”.</p><p>Apêndice 3</p><p>Lutero e seus principais contemporâneos Reformadores Ligados</p><p>às reformas</p><p>1483 ........................................1546</p><p>Reformadores e Nomes de Apoio a Lutero Opositores a Lutero</p><p>Katharina Caetano</p><p>Melanchthon Priérias</p><p>Karlstadt João Tetzel</p><p>Staupitz Eck</p><p>Espalatino Erasmo de Roterdã</p><p>Justo Jonas Frederico III</p><p>Lucas Cranach Maximiliano I</p><p>Ecolampadio Carlos V</p><p>Ulrich Von Hutten Alexandre VI</p><p>Zuínglio Júlio III</p><p>Frederico, o Sábio Leão X</p><p>João, o Constante Adriano VI</p><p>João, o Magnífico Clemente VI</p><p>Calvino Paulo III</p><p>Guilherme Farel</p><p>Teodoro Beza</p><p>Menno Simons</p><p>1. Katharina Von Bora (1499-1552). Esposa de Lutero.</p><p>2. Melanchthon (1497-1560). Professor na Universidade de Wittenberg.</p><p>Reformador, humanista, amigo de Lutero e seu sucessor. Sepultado ao lado de</p><p>Lutero.</p><p>3. Karlstadt (1480-1541). Professor e colega de Lutero na Universidade de</p><p>Wittenberg. Divergiu de Lutero no processo da Reforma optando por uma ala</p><p>mais radical.</p><p>4. Staupitz (1469(?)-1524). O “pai” espiritual de Lutero que muito o influenciou.</p><p>Vigário Geral da Ordem Agostiniana alemã e da qual Lutero fora membro.</p><p>5. Espalatino (1484-1545). Secretário, conselheiro e pregador de Frederico, o</p><p>Sábio. Por sua função, assegurou a proteção para Lutero. Tradutor das obras de</p><p>Lutero e Melanchthon.</p><p>6. Justo Jonas (1493-1555). Jurista, teólogo humanista e grande amigo de</p><p>Lutero. Tradutor de muitas obras de Lutero. Esteve junto ao leito de morte de</p><p>Lutero.</p><p>7. Lucas Cranach (1470-1554). Famoso pintor da Reforma e amigo de Lutero.</p><p>8. Ecolampadio (1483-1531). Reformador da Basileia,</p><p>Suíça. Divergiu de Lutero</p><p>posteriormente.</p><p>9. Ulrich Von Hutten (1480-1523). Apoiou Lutero em sua luta contra Roma.</p><p>10. Caetano (1468-1534). Dominicano e professor de Teologia na Itália. Foi</p><p>procurador geral, mestre-geral, bispo de Gaeta, cardeal, legado papal na</p><p>Alemanha, Hungria, Boêmia e Polônia. Um dos primeiros a ter com Lutero a fim</p><p>de fazê-lo retratar.</p><p>11. Priérias (1456-1523) (Silvestre Mazzoline). Dominicano, inquisidor, mestre</p><p>do sacro palácio, conselheiro e teólogo do papa Leão X. Integrante oficial do</p><p>processo eclesiástico contra Lutero.</p><p>12. João Tetzel (1465-1519). Pregador dominicano, subcomissionário, vendedor</p><p>de Indulgências na Alemanha e inquisidor. Contra essa praticada venda de</p><p>Indulgências Lutero publicou as 95 Teses.</p><p>13. Eck (1468-1543). Professor universitário e ferrenho adversário. Debateu</p><p>contra Lutero várias vezes, obtendo a Bula Excurge Domini, contra o</p><p>Reformador.</p><p>14. Zuínglio (1485-1530). Reformador da igreja da Suíça. Em sua Reforma,</p><p>eliminou quadros, estatuas e a música nas igrejas.</p><p>15. Erasmo (1460-1535). Considerado o príncipe dos Humanistas. Natural da</p><p>Holanda. Editou em 1516 o Novo Testamento grego impresso, do qual Lutero</p><p>utilizou-se em sua tradução. Simpatizou-se inicialmente com Lutero, dele</p><p>divergindo na questão de livre-arbítrio. Foi um dos homens mais cultos de sua</p><p>época.</p><p>16. Frederico III, Maximiliano I e Carlos V. Imperadores do Sacro Império</p><p>Romano-Germânico, entre 1452 a 1556.</p><p>17. Frederico, o Sábio, João Constante e João, o Magnífico. Príncipes-eleitores</p><p>da Saxônia, entre 1486 a 1546.</p><p>18. Alexandre VI, Júlio III, Leão X, Adriano VI, Clemente VI e Paulo III. Papas</p><p>do período das Reformas, Papas de 1492 a 1549.</p><p>19. Calvino (1509-1554). Reformador de Genebra, Suíça.</p><p>20. Guilherme Farel (1489-1565). Reformador e companheiro de Calvino.</p><p>21. Teodoro Beza (1519-1605). Substituto de Calvino.</p><p>22. Menno Simons (1496-1560). Líder anabatista, uma das alas mais radicais das</p><p>Reformas.</p><p>Cover Page</p><p>Capa</p><p>Folha de Rosto</p><p>Créditos</p><p>Apresentação</p><p>Sumário</p><p>Contextualizando</p><p>Experiência de Vida</p><p>Leitura Condicionada</p><p>Nas Entrelinhas</p><p>Primeira Parte: Época</p><p>Lutero e seu Tempo</p><p>Sacro Império Romano-Germânico</p><p>Alemanha do Século XVI</p><p>Wittenberg</p><p>Segunda Parte: Vida</p><p>O Homem Lutero</p><p>Uma Vida Moldada</p><p>Do Nascimento até a Entrada para o Convento</p><p>Mansfeld</p><p>Eisenach</p><p>Universidade de Erfurt</p><p>O Frade no Convento</p><p>O “Pai” Staupitz</p><p>Casamento e Família</p><p>Carta ao Filho Hans em 1505</p><p>As Obras de Lutero</p><p>Lutero e a Arte de Viver</p><p>Terceira Parte: Legado</p><p>Lutero 16/21</p><p>O Legado de Lutero</p><p>Nova Compreensão das Escrituras</p><p>O Atual Cânon e Lutero</p><p>Liberdade de Consciência</p><p>Os Dois Reinos</p><p>O Alemão Moderno e a Tradução da Bíblia</p><p>Desenvolvimento do Estado Moderno</p><p>Sobre a liturgia</p><p>Lutero e a Psicanálise</p><p>Reformulação e formação da identidade católica</p><p>Vozes Dissidentes</p><p>O Concílio de Trento</p><p>Vaticano I e Trento</p><p>Vaticano II</p><p>Situação do Homem Diante de Deus</p><p>Conclusão</p><p>Bibliografia</p><p>Apêndice I: O Legado dos Reformadores</p><p>Apêndice II: Cronologia da Vida de Lutero...</p><p>Apêndice III: Lutero e seus Principais Contemporâneos Reformadores Ligados às Reformas</p><p>Vamos ilustrar a ideia de cronos. Quando se compra algo por meio do crediário,</p><p>leva-se a mercadoria e é estipulado o tempo máximo para que haja pagamento.</p><p>Ao levar a mercadoria, sabe-se que existe um tempo preestabelecido para a</p><p>realização do pagamento. Ao término do pagamento, a mercadoria é do</p><p>comprador. Somente após ter cumprido o tempo para o pagamento, o comprador</p><p>é dono legal do produto adquirido.</p><p>Foi exatamente o que Paulo afirma que Deus fez. Quando “se cumpriu o prazo,</p><p>Deus enviou o seu Filho” para nos livrar tanto da Lei quanto nos receber como</p><p>filhos. Podemos parafrasear o apóstolo afirmando que “vindo a plenitude do</p><p>tempo”... Deus enviou Lutero! Ele viveu num momento histórico sem</p><p>precedentes na realização da Reforma. O século XVI possuía todas as condições</p><p>históricas, culturais, religiosas, políticas, espirituais, morais, entre outras, para a</p><p>eclosão do movimento reformador. Estaremos apresentando como “pano de</p><p>fundo”, o Sacro Império Romano-Germânico e as cidades alemães no momento</p><p>da Reforma. Não pretendemos ser exaustivos na apresentação de ambos, mas</p><p>procuraremos mostrar a inserção de Lutero em seu mundo, o século XVI. Não</p><p>podemos retirar Lutero de sua “água fria”, pois era a sua “companhia”.</p><p>Também é oportuna uma observação. Trata-se da distinção entre o Império</p><p>Romano-Germânico e a Alemanha. Podemos compará-lo a uma moeda que tem</p><p>dois lados, ou seja, são duas realidades que se completam, mas com diferenças</p><p>muito tênues. A Alemanha do século XVI compunha o Sacro Império Romano-</p><p>Germânico, (a partir de agora, o Sacro Império), no entanto, muitos grupos</p><p>sociais divergiam da política do Império, principalmente entre as cidades alemãs.</p><p>O próprio imperador na época de Lutero, Carlos V não era alemão e nem ao</p><p>menos falava o alemão. Alem de imperador do Sacro Império era também Rei da</p><p>Espanha e Arquiduque da Áustria, como Carlos I.</p><p>Não podemos separar a Reforma na Alemanha do século XVI do Sacro Império.</p><p>Várias questões eram prorrogadas por interesses políticos de grupos dominantes</p><p>e, também, devido à situação conflitante na Europa. Muitas vezes sendo</p><p>deixadas para tratamento posterior. Na verdade, política e religião mesclavam-se</p><p>em interesse e com isso “o caso Lutero” ia sendo postergado, favorecendo de</p><p>certa forma o reformador.</p><p>O Sacro Império foi um aglomerado de povos da Europa Central fundado sob a</p><p>aquiescência da igreja visando interesse de sobrevivência na luta pelo poder.</p><p>Com o esfacelamento do Império Romano, no século V, em toda a Europa</p><p>Ocidental, o poder ficou descentralizado pelos chamados reinos bárbaros, tais</p><p>como os godos, visigodos, germânicos, estrogodos, vândalos e francos, citando</p><p>os mais proeminentes. A igreja via uma necessidade urgente não somente em</p><p>ocupar espaços vazios, mas também impor-se em seu mundo hostil. Esse mundo</p><p>hostil estava potencialmente latente, no Oriente, porque o patriarca de</p><p>Constantinopla rivaliza em autoridade com o papa Romano; por causa da</p><p>existência de vários reinos bárbaros que optaram pelo arianismo em seus</p><p>domínios, tais como visigodos e ostrogodos; também pela corrente donatista que</p><p>simultaneamente competia com a Cúria Romana, em especial no norte da África;</p><p>em razão da perseguição de fiéis católicos romanos e o confisco de bens e</p><p>templos. A igreja enfrentava uma situação delicada, pois havia ficado “sem</p><p>chão”, com uma atuação centrada principalmente no sul da Itália. Desde as</p><p>conquistas bárbaras precisava de uma restauração ao status quo e de um respaldo</p><p>político de grande monta. E esse respaldo será o reino mais consistente, forte e</p><p>de conotação católica romana: o reino franco.</p><p>Sob a bênção da igreja, ao longo dos séculos, em especial com os Imperadores</p><p>Carlos Magno, no século IX, e Otão I, em fins do século X, a igreja a “trancos e</p><p>barrancos”, com avanços e recuos, às vezes, como senhora e outras vezes</p><p>vassala, abençoando e sendo abençoada, aliando-se com amigos e inimigos, vai</p><p>se consolidando e ditando muitas vezes as regras para a sociedade do seu tempo.</p><p>Um verdadeiro jogo de equilíbrio e interesses vai se processando, com diversas</p><p>alianças, geralmente escusas.</p><p>De forma didática podemos distinguir cinco períodos na formação do Sacro</p><p>Império: um primeiro, no qual se assiste a uma redistribuição das forças dos</p><p>reinos bárbaros no antigo Império Romano do Ocidente, abrangendo os século V</p><p>e o VI; o segundo, que se inicia pela separação entre o Ocidente e o Oriente,</p><p>ficando o papa do lado do Ocidente; o terceiro, decorre sob o domínio de Carlos</p><p>Magno, que instala a ordem cristã no Ocidente; no decurso do quarto, a igreja,</p><p>chamando a si a herança de Carlos Magno, vinga-se do poder temporal; durante</p><p>o quinto, finalmente, a dinastia dos Otões tenta reconstruir o Império do</p><p>Ocidente. Deve-se observar o jogo de interesses entre o Império e a igreja, pois</p><p>em nome de Deus não somente se busca a supremacia política, mas as vantagens</p><p>oriundas do próprio poder. O Império por sua vez por meio de “conversões”</p><p>procura o controle da grande massa católica. Uma mão, lava a outra.</p><p>Deveras, esse Império sempre foi uma farsa desde a sua origem. Os cronistas da</p><p>época do imperador Otão I (962 - 973), afirmavam da preferência do termo</p><p>“Augusto” (divino) ao invés de Romano. Para o imperador só é romano de um</p><p>ponto de vista muito formal, sobretudo, em matéria de sucessão e inclusive para</p><p>não entrarem confronto com o Império Romano do Oriente. O termo Império</p><p>Romano, será aplicado no momento em que o Imperador de Constantinopla não</p><p>mais o reconhece como tal. A partir daí os partidários de Otão I se empenharão</p><p>para que o imperador se torne o “Imperador dos Romanos”, porém, visando</p><p>mostrar que os romanos estavam sob o seu poder. O embaixador de Otão I,</p><p>Liutprand, segundo Touchard, afirmara que “pelo que nos diz respeito, nós,</p><p>Lombardos, Saxões, Francos, Lotaríngios, Bávaros, Suevos e Borguinhões,</p><p>desprezamo-los tanto [aos romanos] que a maior injúria que podemos fazer aos</p><p>nossos inimigos é chamar-lhes ‘romanos’, estando implícito neste termo tudo o</p><p>que é baixeza, covardia, avareza, luxúria, deslealdade e todos os vícios em</p><p>geral”. Otão III fará o possível para restaurar o antigo império cristão, segundo o</p><p>qual a ele caberia por direito a direção da cristandade, enquanto os papas se</p><p>reduziam ao papel de grandes padres encarregados do ministério da oração.</p><p>Assim, o nome Sacro Império Romano Germânico é resultado de um processo. E</p><p>neste processo, ao longo dos séculos, os imperadores alemães perderam a</p><p>batalha para o papado na Idade Média.</p><p>O historiador luterano Martin Dreher afirma que este Império foi mais “ficção”</p><p>do que uma realidade política dominadora e centralizadora. O próprio nome</p><p>Germânico já revela que não seria mais possível restabelecer o Império Romano</p><p>que sonhara seus fundadores. Voltaire mesmo, afirmara no século XVIII, que o</p><p>Império “não era santo, nem romano e nem germânico”.</p><p>Neste contexto nasceu Lutero. Ele foi contemporâneo a dois Imperadores:</p><p>Maximiliano I, governou de 1493 a 1519 e Carlos V, de 1519 a 1556.</p><p>Maximiliano I nascido em 1459 e morto em 1519, da Dinastia de Habsburgo, foi</p><p>rei de Roma em 1486 e imperador do Sacro Império de 1493 até o ano de sua</p><p>morte. Ligou a sua dinastia às da Espanha e da Polônia. Foi avô do seu substituto</p><p>Carlos V, imperador de 1519 a 1556. Herdeiro dos territórios dos Habsburgo</p><p>(Áustria, Burgúndia, Boêmia e Hungria), dos reinos espanhóis, com Nápoles,</p><p>Sicília e da América espanhola. Em 1519, os príncipes-eleitores, corrompidos</p><p>pelo dinheiro dos Fugger, o elegeram imperador alemão. Essa dinastia perdurou</p><p>até 1806, quando foi derrotada pelos exércitos de Napoleão. Uma das formas de</p><p>expansão desta Casa era a política casamenteira. Casando seus parentes com</p><p>outras Dinastias reinantes, a expansão era uma garantia. Aliás, uma prática</p><p>comum entre os soberanos europeus. Veja por exemplo D. Pedro I, Imperador da</p><p>Dinastia Bragança, casado com D. Leopoldina de Habsburgo. A única força</p><p>paralela em oposição aos Habsburgo, e que não conseguia superá-la era a Casa</p><p>dos Hohenzollenr, que por sua vez pleiteava</p><p>o poder imperial</p><p>Quando se fala em sucessão neste Império imediatamente se relaciona a uma</p><p>crise. Havia uma verdadeira luta e competição para se conseguir a coroa</p><p>imperial. Quem pagasse mais, geralmente, levava a coroa. Milhares de florins</p><p>eram investidos para a compra de apoio político, e sempre havia candidatos se</p><p>apresentando. Com a morte do Imperador Maximiliano, por exemplo, pleiteavam</p><p>ao cargo Carlos V (Rei da Espanha) e Henrique VIII rei da Inglaterra e o próprio</p><p>rei Francisco I com suas pretensões. Todos por sua vez procuravam ganhar apoio</p><p>para suas ambições imperiais, e com isso muitos gastos. Para a eleição de Carlos</p><p>V, este imperador eleito, investiu hum milhão de florins, dinheiro pego da Casa</p><p>bancária dos Fugger. O próprio Jacob Fugger lembrou ao imperador que “é</p><p>sabido e não é preciso enfatizar, que Vossa Majestade, não poderia ter obtido a</p><p>coroa romana sem meu auxílio”. Esse exemplo por si só revela o</p><p>comprometimento dos imperadores com os banqueiros da época. Também para a</p><p>eleição de Carlos V algumas decisões foram tomadas, revelando o tipo e</p><p>limitação política da pessoa do imperador: as principais decisões não deveriam</p><p>ser tomadas sem a consulta dos estados alemães; alemão e latim deveriam ser as</p><p>línguas oficiais; estrangeiros deveriam ser excluídos de cargos imperiais</p><p>alemães; tropas estrangeiras não seriam permitidas na Alemanha e os recursos</p><p>imperiais não deveriam ser usados em favor de interesses dinásticos. Na</p><p>perspectiva de Lutero, outro poder controlava o Sacro Império: a cúria Romana.</p><p>Em uma de suas principais obras, À Nobreza Cristã da Nação Alemã, ele</p><p>declara: “Deixai o imperador alemão ser imperador genuína e livremente, não</p><p>permitindo que seu poder e sua espada sejam suprimidos por essas cegas</p><p>alegações de hipócritas papais como se estivessem eximidos da espada e</p><p>devessem governar sobre todas as coisas”.</p><p>O rei francês Francisco I, por suas pretensões ao Império, pagava mercenários</p><p>“protestantes” em suas guerras contra Carlos V, guerras que perduraram durante</p><p>todo o governo dos Habsburgo. Ao mesmo tempo em se utilizava de</p><p>“protestantes” no conflito com Carlos V, perseguia-os na França. A igreja, por</p><p>sua vez, inclinava-se para o príncipe eleitor da Saxônia e protetor de Lutero,</p><p>Frederico III, o Sábio. O papa Leão X se esforçava para que o referido príncipe</p><p>fosse candidato ao Império, para fazer frente à Casa dos Habsburgo e, com isso,</p><p>hesitava em agir com toda a força contra Lutero. Por cerca de um ano, Roma</p><p>preferiu alcançar as boas graças do príncipe-eleitor para impedir a eleição de</p><p>Carlos V e assim Lutero foi ganhando em extensão e ressonância.</p><p>A história não poder ser feita pelo “se”, ou melhor, “se tivesse acontecido assim</p><p>seria melhor”. Vamos citar um exemplo. É comum ouvir alguém dizer que “se” o</p><p>Brasil não fosse colonizado pelos portugueses, estaria melhor. Seria outra</p><p>realidade. Inclusive citam os Estados Unidos que foram colonizados pelos</p><p>ingleses. Trata-se de um grande equívoco. E países africanos que foram</p><p>colonizados por grandes potências europeias? Como estão hoje? E alguns países</p><p>da América central e sul que também foram colonizados por essas grandes</p><p>nações. Seja qual for o país que nos colonizasse, estaríamos, possivelmente na</p><p>mesma situação, pois fomos descobertos para sermos uma colônia de</p><p>exploração, diferentemente da colônia de povoamento, ocorrida na outra</p><p>América.</p><p>Assim não podemos refletir em história com o “se”. Pergunta-se: seria melhor</p><p>para Lutero a eleição de Francisco I da França? De Henrique VIII da Inglaterra?</p><p>Ou Frederico III da Saxônia Ernestina? Sabemos que tanto a França como a</p><p>Inglaterra não toleravam outra religião em suas terras, pois estavam num</p><p>processo de centralização política e a religião se tornara oficial e atrelada ao</p><p>Estado Absolutista. Não havia tolerância para toda a oposição religiosa nesses</p><p>Estados. Tanto na França quanto na Inglaterra milhares de protestantes foram</p><p>perseguidos e mortos. Basta citar somente um exemplo, quando milhares de</p><p>huguenotes, assim chamados os protestantes franceses, foram mortos na</p><p>chamada “Noite de São Bartolomeu”. O lema do Estado Absolutista Francês era</p><p>“um rei, uma lei, uma fé”. E quanto ao príncipe Frederico, até mesmo declinou</p><p>em favor de Carlos V? Teria tanta autonomia para cuidar do “caso Lutero”</p><p>quanto teve como príncipe da Saxônia? Tal como Carlos V, teria que se envolver,</p><p>caso fosse eleito, com guerras infindáveis com a França de um lado e a ameaça</p><p>turca constante de outro. A história não responde aos “se”, todavia, repetiremos</p><p>o que foi dito anteriormente: “vindo a plenitude dos tempos” ... Deus enviou</p><p>Lutero.</p><p>Nessa disputa pelo poder, os principais banqueiros europeus, os Fugger e os</p><p>Welser, investiam nas suas aspirações e o povo é quem pagava pelos</p><p>empréstimos. As grandes forças políticas no Império eram as Casas bancárias,</p><p>principalmente do Fugger que tinham escritórios em Roma, Cracóvia, Antuerpia</p><p>e Madri. Eles eram proprietários das minas de cobre na Hungria e de sal na</p><p>Transilvânia.</p><p>Os banqueiros Welser, não deixavam por menos, estavam estabelecidos em</p><p>Augsburgo e tendo recebido o direito em explorar o território da Venezuela por</p><p>conta das dívidas dos Habsburgo. Tinham escritórios em Lisboa e Índia.</p><p>Conforme visto acima, a declaração de Jacob Fugger, reivindicando para si a</p><p>eleição de Carlos V como Imperador do Sacro Império, revela o</p><p>comprometimento do governante com determinados grupos econômicos,</p><p>revelando também o que norteava a disputa pelo poder imperial. Sabe-se que o</p><p>imperador era eleito pelo voto de 7 príncipes eleitores desde o século XIII.</p><p>Príncipes que poderiam ser eclesiásticos ou seculares alemães. Eram eles os</p><p>arcebispos de Mogúncia, Colônia, Tréveris, o duque da Saxônia, o margrave de</p><p>Brandenburgo, o rei da Boêmia e o duque do Palatinado junto ao Reno. Nas</p><p>Assembleias do Império as Dietas formavam um colegiado independente e</p><p>defendiam os interesses particulares dos territórios alemães contra a</p><p>administração imperial.</p><p>Para as eleições, tanto do imperador quanto dos príncipes e cargos eclesiásticos</p><p>um grande investimento seria necessário. Alberto de Mogúncia, arcebispo de</p><p>Magdeburgo, quando se candidatou ao arcebispo de Mogúncia, precisou de uma</p><p>vasta importância que os Fugges adiantaram e esses os recursos seriam pagos em</p><p>Roma. Os Fugger conseguiram a publicação de uma indulgência, que consistia</p><p>na venda de remissão da pena temporal devida a Deus por causa do pecado. Na</p><p>referida venda era “formalmente”, usada a expressão do historiador Martin</p><p>Dreher, destinada à construção da Basílica de São Pedro. Na verdade, esse</p><p>empréstimo seria pago com o dinheiro arrecadado da venda de indulgências. A</p><p>Casa Bancária controlando o dominicano João Tetzel, pregador, vendedor de</p><p>indulgências na Alemanha e inquisitor, fazia os acertos com Alberto e Roma. É</p><p>neste contexto que constatamos o Sacro Império constantemente endividado com</p><p>os banqueiros da época, pois estes financiavam as invasões e conquistas do</p><p>Novo Mundo e usufruíam dos enormes lucros advindos daí. O próprio ouro</p><p>vindo da América espanhola não conseguia sanar suas grandes dívidas. É nesse</p><p>contexto que Lutero fará a seguinte pergunta irônica: “Como é possível, num</p><p>procedimento legítimo e conforme a Deus, que um homem [Jacob Fugger?]</p><p>fique rico em tão pouco tempo, a ponto de conseguir comprar reis e</p><p>imperadores?”. Sabe-se que o sobrinho de Jacob Fugger, Anton Fugger,</p><p>financiou expedições de invasão, conquista e colonização por europeus na</p><p>América do Sul, México e Índia, usufruindo lucros de até mil por cento. Foi</p><p>nesse contexto de dívidas, compromissos e acordos financeiros com as Casas</p><p>Bancárias, que a questão das indulgências vai estourar como uma bomba na</p><p>Alemanha de Lutero. E é nesse momento que passaremos a discorrer a segunda</p><p>realidade vivida por Lutero em seu meio ambiente: Alemanha.</p><p>Alemanha do Século XVI</p><p>Não podemos fazer uma analogia com a Alemanha de Lutero com há dos nossos</p><p>dias. Na realidade, não existia Alemanha, e sim “Alemanhas”. Enquanto se</p><p>despontavam grandes nações num processo de</p><p>centralização monárquica, em que</p><p>a figura do rei é fortalecida em detrimento aos senhores feudais, tais como a</p><p>França e Inglaterra, objetivando uma independência em relação a Roma, na</p><p>Alemanha a situação era outra, aliás tal como a Europa Central, o poder estava</p><p>descentralizado com predominância política das cidades. Eram cidades livres</p><p>independentes uma das outras. Podemos constatar essa verdade nas palavras de</p><p>Lutero quando ele pergunta: “Haveria algum sentido se as pessoas de Leipzig</p><p>devessem estabelecer as leis para nós aqui em Wittenberg ou vice-versa?” (Da</p><p>Autoridade Secular). Essas cidades, incrivelmente emanharadas, eram diversas</p><p>em vários aspectos, tanto pela extensão, tanto pela importância e forma de</p><p>governo: ducados, landegraviados, margraviados, (senhor ou governador de uma</p><p>província fronteiriça do Sacro Império Romano-Germânico correspondente ao</p><p>de marquês), condados, arcebispados, bispados, abadias, cidades livres e</p><p>domínios minúsculos de cavaleiros do Império. O imperador Frederico III</p><p>permitira que os senhores territoriais, fossem eles seculares ou eclesiásticos, tais</p><p>como príncipes eleitores ou soberanos de menor importância convivessem com</p><p>relativa independência em relação ao Império. O próprio imperador era</p><p>impotente diante dos nobres alemães. As cidades, cada vez mais poderosas</p><p>faziam oposição ao poder do Império. Não devemos nos esquecer de que as</p><p>grandes e principais cidades alemãs, representadas por seus príncipes-eleitores</p><p>eram quem elegiam o Imperador. Mas esses próprios príncipes eleitores não</p><p>tinham poder sobre as cidades alemãs. Elas formavam ligas para suas próprias</p><p>guerras. Assim, as cidades eram centro de grandes tensões. Grupos diversos</p><p>buscavam o seu espaço político nesta colcha de retalhos que era a Alemanha. Na</p><p>verdade, o Sacro Império é que era a colcha, enquanto a Alemanha era os</p><p>pequenos pedaços que compunham o pano desta colcha. Os príncipes e nobres</p><p>contestavam o imperador eleito por eles. O próprio Imperador Carlos V, tal como</p><p>Herodes, era um intruso, um não alemão, com língua materna francesa e mais</p><p>voltado a Espanha, o qual havia sido rei antes de assumir o trono do Sacro</p><p>Império. Nessa situação, o Imperador não mais representava a unidade, os</p><p>príncipes se achavam os verdadeiros representantes do Império e imperador. A</p><p>dependência econômica do Império aos príncipes, sejam eles católicos ou</p><p>reformados, era visível, pois precisavam de recursos para seus enfrentamentos,</p><p>seja a ameaça contínua de uma invasão turca ou o contínuo conflito com a</p><p>Dinastia francesa que, inclusive tem pretensões ao trono.</p><p>Por parte das cidades havia rebeliões contra os príncipes e bispos. Para citar</p><p>somente um exemplo, em 1510 houve uma insurreição popular em Erfurt,</p><p>devido o aumento dos impostos pelas autoridades tutelares de Mogúncia e da</p><p>Saxônia. O Magistrado (administrador municipal) foi derrubado. O eleitor da</p><p>Saxônia Ducal fez marchar seus soldados e, no dia 4 de agosto, o edifício onde</p><p>funcionavam os cursos da Universidade foi destruído num combate envolvendo</p><p>estudantes. Os plebeus, por sua vez, contra os patrícios e os camponeses já não</p><p>suportavam tantos impostos e exploração pelos monopólios, dos próprios</p><p>governantes e da igreja.</p><p>Nem mesmo um mapa político da Alemanha poderia ser feito com suas</p><p>fronteiras indefinidas no século XVI. Capital da Alemanha? Não havia. Como</p><p>também não havia um imposto válido para todo o império, um exército alemão</p><p>permanente e nem constituição. O imperador “romano” não passava de um</p><p>soberano nominal, preocupado em conservar a sua dinastia no poder. Para isso,</p><p>promovia a “política da boa vizinhança”. Em Sobre a Autoridade Secular, Lutero</p><p>afirma: “Se o imperador fosse retirar deles [referência aos príncipes] um de seus</p><p>castelos ou cidades, ou ordenar qualquer outra coisa e não lhe parecesse justa,</p><p>logo os veríamos procurar razões pelas quais teriam o direito de resistir e</p><p>desobedecer a ele... São esses os príncipes que governam os territórios alemães</p><p>do Império”. Essa foi uma das condições históricas de Lutero não ter sucumbido</p><p>tal como seus antecessores Jerônimo Savonarola, 1452-1498, Influente e</p><p>impetuoso pregador dominicano em Florença. Jan Huss 1370-1414, queimado</p><p>vivo após ter sido condenado como herege. John Wycliff 1320-1384, professor</p><p>da universidade de Oxford, teólogo e reformador inglês e tantos outros.</p><p>Wittenberg</p><p>Quando se refere às cidades alemãs, não podemos deixar de discorrer sobre</p><p>aquela que foi o berço, centro e quartel general da reforma e das lutas teológicas,</p><p>a “Roma” protestante, a cidade universitária onde viveu, estudou, trabalhou,</p><p>morreu e foi sepultado Lutero — a cidade de Wittenberg. Sabemos que não</p><p>existe na tradição protestante a peregrinação em cidades, que se tornaram</p><p>referências originais em suas histórias. Não é o caso para o catolicismo quando</p><p>temos a Aparecida do Norte, em São Paulo, Juazeiro do Norte, no Ceará,</p><p>Vaticano, Santiago de Compostela, a Terra Santa, o Santo Sepulcro, para citar</p><p>uns poucos exemplos. Bem como Meca para o Islamismo. E a cidade do</p><p>Reformador, Wittenberg? Ao entrar na cidade, respira-se Lutero e reformadores</p><p>por meio de estátuas, museus, templos, mausoléus, etc. Cerca de 500 anos depois</p><p>da Reforma Protestante e do início de uma nova era, é possível sentir a</p><p>atmosfera dessa época nas cidades de Eisleben, onde nasceu e Wittenberg, onde</p><p>viveu. Há monumentos especiais que mantém viva a memória de Lutero nestas</p><p>cidades como a casa de seu nascimento, o mosteiro onde viveu e a igreja na qual</p><p>ele teria fixado suas 95 Teses e onde repousa o corpo.</p><p>A cidade atual está localizada na Saxônia-Anhalt, tendo uma população pouco</p><p>superior a 50 mil habitantes, no início da década de 2010. Para chegar à cidade o</p><p>viajante percorre uma estrada em meio a uma linda floresta, ao lado existe uma</p><p>trilha para se locomover de bicicleta, aliás um costume salutar dos moradores, o</p><p>que torna a viagem um encanto. Não é sem motivo que atrai mais de 400 turistas</p><p>por ano. Na igreja principal da cidade, encontra-se a sepultura do reformador.</p><p>A Wittenberg de Lutero era bem diferente. Localizava-se na Saxônia, região que</p><p>dividida em 1485, entre os dois filhos do príncipe-eleitor Frederico II, Ernesto</p><p>(1441-1486, príncipe-eleitor desde 1464) e Albérico ou Alberto (1443-1500),</p><p>governante desde 1464. Enquanto o primeiro governava a Saxônia Eleitora, o</p><p>segundo a Saxônia Ducal. Lutero, habitante da Saxônia Eleitora, teve como</p><p>contemporâneo os governos de Frederico III, o Sábio, (1486-1525); João, o</p><p>Constante, (1525-1532) e João Frederico I (1532-1547).</p><p>Em 1509 Lutero recebe a ordem de seu superior Stauptiz para ir a Wittenberg e</p><p>assumir a docência de Filosofia e Moral. Constata uma cidade pobre, pequena e</p><p>insignificante, na verdade, uma aldeia com uma população com pouco mais de</p><p>3500 habitantes. O povo é classificado por Lutero como grosseiro, sem cultura e</p><p>sem desejo de adquirir. O reformador afirmará que: “A preguiça é grande na</p><p>cidade e não se pode convencer um pobre que deve trabalhar: preferem</p><p>mendigar”. A cidade estava localizada as margens do rio Elba, “pequena, feia,</p><p>baixa e composta de casinhas de madeira”. O nome Wittenberg, montanha</p><p>branca, relacionava-se ao seu tipo de terreno, arenoso e pedregoso de onde se</p><p>erguia a cidade. Lutero residirá no mosteiro de Wittenberg e ali permaneceria até</p><p>o fim de seus dias, sendo um dos 22 professores.</p><p>O príncipe Frederico III resolveu investir na cidade em função de seus rivais, a</p><p>Saxônia Ducal e Brandenburgo, construindo um castelo, a igreja de Todos os</p><p>Santos e uma Universidade em 1502, sendo seus professores tirados do convento</p><p>dos Agostinianos, da própria Wittenberg. Ele transformara a cidade num centro</p><p>de relíquias religiosas, tendo entre outras: ossos dos santos, pedaços da sarça</p><p>ardente, leite da Virgem Maria, pedaços da manjedoura e da Cruz de Jesus.</p><p>Somente o príncipe possuía mais de 17 mil relíquias. O objetivo de guardar</p><p>tantas relíquias era promover a cidade, incentivar as peregrinações e,</p><p>consequentemente, angariar recursos.</p><p>Com a chegada de Lutero e outros</p><p>professores de renome para a Universidade,</p><p>tudo começou a mudar. Lutero aos poucos se tornou um grande orador, cujas</p><p>palavras possuíam grandes persuasões. Voz delicada, não alta, clara, firme,</p><p>límpida, doce e harmoniosamente timbrada, conquitou corações. Tanto para o</p><p>canto quanto para a palavra. Segundo Melanchthon, amigo e substituto de</p><p>Lutero, suas palavras nasciam, não de seus lábios, mas de sua alma. Um é</p><p>intérprete, outro é logicista, outro orador, mas Lutero é tudo em todos. Também</p><p>afirmara Pedro Moselano, que dirigiu as sessões na disputa de Leipzig: “Sua voz</p><p>é clara e melodiosa. Na conversação, ele possuiu rico armazenamento de</p><p>assuntos que dominava, uma vasta flores de pensamentos e palavras a seu dispor.</p><p>Não havia nada estóico ou arrogante nele, e ele entende bem como se adaptar a</p><p>diferentes pessoas e horas. Em sociedade ele é vivaz e agradável. Sempre está</p><p>renovado, animado e à vontade, de semblante agradável, por mais duras que</p><p>sejam as ameaças feitas por seus inimigos, de modo que não se pode deixar de</p><p>crer que o céu está com ele em sua grande empreitada”.</p><p>Lutero promoveu uma reforma na Universidade quebrando o predomínio da</p><p>filosofia de Aristóteles, da teologia escolástica e do Direito Canônico. Colocou a</p><p>Bíblia como centro do estudo teológico, inserindo o estudo das línguas bíblicas</p><p>(hebraico, grego) e do latim. A Universidade atingiu o auge na época de Lutero,</p><p>tendo-o como um dos seus melhores professores. A Universidade possuía mais</p><p>de 2000 estudantes, entre eles 15% de estrangeiros. Lembre-nos de que a cidade</p><p>de Wittenberg possuía apenas 3500 pessoas.</p><p>Este homem do qual o teólogo Paul Tillich afirmou: “O único que realizou uma</p><p>verdadeira transformação e que mudou a face da terra foi Martinho Lutero”.</p><p>Sim, é sobre esta vida que passaremos a refletir, vivida com os seus 62 anos, 3</p><p>meses e 18 dias, mas que extrapolou este efêmero tempo e, tal como Luis Vaz de</p><p>Camões, seu contemporâneo, afirmou em Os Lusíadas, canto I, “E aqueles, que</p><p>por obras valerosas [valorosas] se vão da lei da morte libertando”.</p><p>O Homem Lutero</p><p>Neste primeiro momento estaremos apresentando alguns aspectos da vida de</p><p>Lutero, isto é, Lutero como ser humano. Vamos discorrer sobre seu nome,</p><p>nascimento, família, casamento, obras e curiosidades envolvendo esse religioso</p><p>que viveu intensamente o século XVI.</p><p>Segundo alguns analistas da teologia bíblica, Deus se revela através da história.</p><p>Somente o tempo nos fará ver o que Deus estava realizando. Muitas vezes o</p><p>momento presente ofusca para o ser humano a ação de Deus, e se Ele age através</p><p>da história, não podemos nos esquecer de que a história é um processo contínuo.</p><p>O próprio Lutero, comentando suas teses debatidas em Leipzig, afirmou que “o</p><p>tempo presente julga mal, melhor será o juízo da posteridade”. Apresentar a vida</p><p>de Lutero como o agir de Deus poderá nos apresentar contradições em cima de</p><p>contradições. Somente o tempo pode revelar a importância do que ocorrera</p><p>durante os anos vividos por Lutero. Ele mesmo dissera: “O que Deus faz,</p><p>somente o compreendemos depois que Ele realizar a sua obra”. Bem como Jesus</p><p>afirmara aos seus discípulos “o que eu faço não o sabes tu agora, mas tu o</p><p>saberás depois” (Jo 13.7).</p><p>Uma Vida Moldada</p><p>Lembro-me de quando criança ficava admirado ao contemplar o bolo que minha</p><p>mãe fazia. Ficava imaginando como ela teria feito aquele “buraco” no meio... E</p><p>as curvas? Tudo certinho e lisinho. Lembro-me de que ela passava a mão</p><p>contornando o bolo já feito e me perguntava sobre tamanha perfeição. Hoje</p><p>compreendo que a massa mole pré-cozida era colocada numa forma de bolo que</p><p>serviria de molde. Pronto. é só colocar no forno e o milagre do “tudo certinho”</p><p>vai aparecer. O segredo era a forma! Fico pensando sobre a personalidade, o</p><p>temperamento e o caráter de Lutero, como era o reformador como pessoa. Por</p><p>que ele foi assim? Por que tanta exigência consigo mesmo? Por que queria</p><p>“certinho” em tudo que fazia? Acredito que Lutero era o que hoje conhecemos</p><p>como perfeccionista. Creio que ele foi o resultado, tal como nós, de toda uma</p><p>vida moldada ao longo dos anos. Já dissemos que “nascemos originais e nos</p><p>tornamos cópias”. Ao longo dos anos, a educação, o companheirismo, as</p><p>observações do dia a dia, a leitura, as informações ou conselho que recebemos</p><p>marcam a nossa vida e acumulam um verdadeiro acervo psíquico: o resultado é o</p><p>que somos hoje. Somos um ímã e atraímos outros. O apóstolo Paulo nos fala do</p><p>“cheiro do seu conhecimento” [de Cristo] em nós. Essas palavras nos falam da</p><p>boa influência que recebemos dEle. Existe um adágio popular que diz: “Diga-me</p><p>com quem andas e mostrarei os seus defeitos”.</p><p>Assim foi Lutero! Toda a sua vida foi marcada por fatos, acontecimentos e</p><p>situações inusitadas que contribuíram para fazer dele um grande homem. Claro</p><p>que não estaremos dando a palavra final como explicação definitiva, mas,</p><p>certamente “escreviam” na “página em branco” da psique de Lutero. O que se</p><p>passou na cabeça do reformador quando soube que Cardano, influente médico,</p><p>matemático e filósofo italiano que estimou o 10 de novembro de 1483, data de</p><p>seu nascimento, sob uma má constelação astrológica? Inclusive disse que</p><p>haveria de acabar como herege. Sabe-se que o próprio Lutero preferiria ter</p><p>nascido um ano após. Alias profecias a respeito da vida de Lutero, não faltavam!</p><p>E sua família? Filho de pais pobres, não se envergonhava de sua origem social:</p><p>“Sou filho de camponês, meu pai, meu avô, meus antepassados eram verdadeiros</p><p>camponeses”. Lutero declarou que seus pais foram no começo muito pobres e</p><p>sua mãe, para criá-los, teve que carregar lenha frequentemente sobre os ombros.</p><p>Levavam uma vida de extrema dureza. Lutero teve em seus primeiros anos de</p><p>vida uma situação econômica difícil. Em Eisenach, onde morou por um bom</p><p>tempo, cantava e mendigava pelas ruas para receber uns trocados e era, de certa</p><p>forma, bem-sucedido. Além disso, teve uma educação à moda antiga, bem</p><p>severa. Relata-se que certa vez o pai de Lutero o castigou fisicamente de maneira</p><p>tão rude que o menino fugiu dele e guardou ressentimento. Certa vez, por ter</p><p>comido uma noz, sem autorização da mãe, esta o bateu “até sangrar”. “Meus pais</p><p>foram muito severos comigo e me tornei tímido”, disse ele. Com o tempo Lutero</p><p>soube compreende a postura do pai e o perdoou. Disse certa feita, que seus pais</p><p>só queriam seu bem, mas, não sabiam discernir os espíritos e eram desmedidos</p><p>nos castigos. O seu pai Hans ao comentar a decisão do filho de ingressar no</p><p>mosteiro, inclusive contra sua vontade, disse aos frades: “Não ouviste nunca que</p><p>os filhos devem obedecer aos pais? E vós, homens doutros, não haveis nunca</p><p>lido na Santa Escritura que está ordenado os filhos que honrem seu pai e sua</p><p>mãe? Praza a Deus que a tranquilidade e a paz de que falais não venha a ser</p><p>enganosas mentiras do Príncipe do Mal”. As boas relações entre pai e filho</p><p>surgem somente em 1526 quando do nascimento de seu primeiro neto, sendo</p><p>honrado com o nome Hans. Mesmo havendo a reconciliação, o pai nunca aceitou</p><p>a entrada de Lutero no convento.</p><p>Certamente, que a imagem do pai exigente, severo e autoritário poderá ter</p><p>contribuído para o nascimento deste tipo de deus na psique de Lutero. Segundo</p><p>Freud a ideia de Deus se baseia nas relações que a criança estabelece em fase</p><p>muito inicial da evolução do self [eu], a partir de seus vínculos com as figuras da</p><p>mãe e do pai. Teria ocorrido com Lutero? Possivelmente! Também neste</p><p>contexto é oportuna a análise que o psicoterapeuta Tilmman Moser faz sobre o</p><p>“envenenamento de Deus” em nós. Esse envenenamento é um processo longo e,</p><p>por isso, muito difícil de nos libertarmos. Muitas vezes projetam em nós,</p><p>conscientes ou não, um Deus vingativo, exigente, distante e outras formas</p><p>distorcidas do Deus revelado nas Escrituras e que Jesus chamava de Pai.</p><p>Sua formação educacional também está inserida na cultura da época. As</p><p>correções por meio da vara eram constantes. Certa vez, em apenas uma manhã,</p><p>recebeu quinze varadas do professor devido não dominar as tabelas da gramática</p><p>latina. Alunos despreparados</p><p>eram obrigados a exibir a imagem de um jumento e</p><p>eram assim tratados, o que hoje chamamos de bullying. Naquela época, o</p><p>currículo escolar não era amplo, pois se ensinava principalmente a ler, escrever e</p><p>conhecer o latim, a língua da igreja, dos negócios e da vida pública. Ao reviver a</p><p>sua própria vida de estudante, Lutero, sugere aos conselhos das cidades que</p><p>incluíssem História, Geografia e Matemática.</p><p>Também houve uma ocorrência que, certamente, marcou de forma indelével a</p><p>vida Lutero. Trata-se da insurreição que a população revoltada promoveu em</p><p>Erfurt no ano de 1510. Os documentos da época informam Funck-Bretano,</p><p>chamam-no de “ano maluco”. A população revoltada com a administração</p><p>municipal promove uma destruição no edifício da Universidade... E Lutero</p><p>encontrava-se na cidade. Não estaria aqui, a origem da postura de Lutero na</p><p>terrível revolta camponesa ocorrida 15 anos mais tarde?</p><p>A igreja por sua vez não deixava por menos. Além de não corresponder aos</p><p>anseios espirituais dos fiéis, contribuía para o aprofundamento das crises</p><p>existenciais dos cristãos. Ao invés de uma mensagem libertadora, possuía uma</p><p>mensagem opressora. A salvação, o grande tema e preocupação da época, estava</p><p>condicionada em “fazer algo”. Cristo era apresentado sob os traços de um juiz</p><p>longínquo e exigente. O culto aos santos, a adoração de relíquias, indulgências e</p><p>peregrinações, eram situações sem as quais não aplacariam a justiça ou a ira de</p><p>Deus sobre o pecador. A virgem Maria e os santos eram os intermediários</p><p>insubstituíveis para se chegar a Deus. Uma das formas para o perdão dos</p><p>pecados, não somente nesta vida, mas também na vindoura, era a venda de</p><p>indulgências (o perdão dos pecados), autorizados pela Cúria, que variavam de 1</p><p>a 25 florins para pessoas com melhores rendas. Um florim equivalia à</p><p>sobrevivência de uma semana para uma pessoa. O que irritava Lutero era o</p><p>comércio desvairado das indulgências, havendo até tabelas de preço, tais como:</p><p>príncipes, 25 florins; prelados e barões, 10 florins; burgueses bem situados, 6</p><p>florins; menos bem situados, 1 florim; pobres, meio ou um quarto de florim por</p><p>indulgência. Chegava-se a dizer que as mulheres poderiam adquirir indulgências</p><p>contra a vontade do marido. A confissão era uma prática corriqueira para</p><p>amenizar uma mente cativa. Lutero, que se confessava rotineiramente ao seu</p><p>conselheiro Staupitz, teve que ouvir dele a seguinte declaração:</p><p>Queres ser sem pecado e não tens pecado verdadeiro! Cristo é o perdão para o</p><p>perdão dos verdadeiros pecados, como assassinar os pais, blasfemar</p><p>publicamente, desprezar a Deus, cometer adultério, etc., estes são os verdadeiros</p><p>pecados. Tens que ter registro, no qual se encontrem verdadeiros pecados, caso</p><p>Cristo te deva auxiliar; não deves andar por aí te preocupando com obras mal</p><p>feitas e pecados de boneca, e fazendo de cada peido um pecado.</p><p>Em outras palavras: Vá mate sua mãe, pai ou cometa adultério e depois volte</p><p>para se confessar.</p><p>A igreja estabelecera que a criança a partir dos 7 anos, deveria se confessar, pois</p><p>já se encontrava na “idade da responsabilidade”. Leia com atenção o que se</p><p>perguntava a uma criança no momento da confissão e, em seguida, tire sua</p><p>conclusão sobre seus efeitos.</p><p>Você acredita em magia? Ama mais a seus pais do que a Deus? Você alguma vez</p><p>não ajoelhou com os dois joelhos ou não tirou seu chapéu durante a comunhão?</p><p>Esses são pecados contra o primeiro Mandamento.</p><p>Você cortou madeira, fez alçapões para passarinhos, fugiu da missa, ou dos</p><p>sermões, ou dançou num domingo, ou em dias santos? — Esses são pecados</p><p>contra o terceiro Mandamento. Você jogou bolas de neve ou pedras nas pessoas?</p><p>Foi cruel com galinhas ou patos? Você matou o imperador com um machado</p><p>duplo? [Uma pergunta capciosa para ver se a criança estava prestando atenção]</p><p>— Esses são pecados contra o quinto Mandamento.</p><p>Esses exemplos nos falam que certamente a personalidade do reformador foi</p><p>marcada de forma indelével. Possivelmente, encontramos nesses poucos</p><p>exemplos a origem e formação de uma crise existencial; as negociatas para a</p><p>aquisição de cargos; a imoralidade desde o papa ao pároco; o comércio</p><p>descabido das indulgências e assim por diante. Preferimos que o grande filósofo</p><p>humanista Erasmo de Roterdã (1466-1536), contemporâneo e crítico de Lutero,</p><p>nos fale um pouco por intermédio de sua obra Elogio da Loucura, de 1511. Neste</p><p>livro ele questiona, por meio de um estilo profundamente irônico, toda a</p><p>sociedade europeia. Em sua crítica à indulgência, afirma:</p><p>Tantos falsos juramentos, tantas impurezas, tantas bebedeiras, tantas brigas,</p><p>tantos assassínio, tantas imposturas, tantas perfídias, tantas traições, numa</p><p>palavra, todos os delitos se redimem com um pouco de dinheiro, e de tal maneira</p><p>se redimem que se julga poder voltar a cometer de novo toda sorte de más ações.</p><p>Sobre os sermões do clero, assinala:</p><p>Ide assistir a um sermão, e vereis que, quando o cacarejador (Oh! Que injúria!</p><p>Enganei-me, desculpai-me), queria dizer, quando pregar aborda o assunto com</p><p>seriedade e apoiado em argumentos, o auditório dorme, boceja, tosse, assoa o</p><p>nariz, relaxa o corpo, inteiramente enjoado.</p><p>Em relação aos papas, Lutero sentenciou:</p><p>Eu desejaria saber, porém, se haverá para a Igreja inimigos mais perniciosos do</p><p>que esses ímpios pontífices, os quais, em lugar de pregar Jesus Cristo, deixam no</p><p>esquecimento o seu nome e o põem de lado com leis lucrativas, alteram a sua</p><p>doutrina com interpretações forçadas e, finalmente, o destroem com exemplos</p><p>pestilentos.</p><p>Lutero, ao escrever para Erasmo em sua famosa polêmica sobre a questão do</p><p>livre-arbítrio, afirmou em Da Liberdade Cativa que: “Os papista te perdoam</p><p>essas monstruosidades e as toleram, porque escreves contra Lutero. Do</p><p>contrário, se Lutero estivesse ausente e tu escrevesses tais coisas, eles te</p><p>lacerariam com os dentes”.</p><p>Assim, Erasmo só não foi considerado um herege ou mesmo perseguido pela</p><p>Igreja, em razão de sua oposição ao reformador.</p><p>Mas convém assinalar alguns fatos positivos na vida de Lutero que, certamente,</p><p>marcaram positivamente o coração do jovem reformador. O primeiro exemplo</p><p>foi a convivência, na cidade de Magdburgo, onde viveu e estudou em uma escola</p><p>dos Irmãos da Vida Comum. Os Irmãos era uma comunidade fundada por</p><p>Gerhard de Groot, nascido em 1340, na Holanda. Podemos afirmar que esse</p><p>movimento foi tal como alguns outros, de cunho um tanto quanto independente</p><p>da religião oficial, mas sem romper com esta, devido principalmente ao conceito</p><p>de igreja prevalecente em meados e fim da Idade Média. Surgiu no século XIV e</p><p>se entregavam à obra de pregação do arrependimento, à educação e à produção</p><p>literária. Pregavam com ardor a justificação pela fé e a necessidade de uma vida</p><p>pura e consagrada a Deus. Seguramente, viram com bons olhos o movimento da</p><p>Reforma, no entanto, não se comprometeram. Dedicavam-se principalmente ao</p><p>ensino e ao serviço da coletividade. Em vez de abrirem escolas, preferiam servir</p><p>como mestre em escolas já existentes, visando proporcionar uma educação</p><p>cristã. Do seu meio saíram grandes vultos tais como Tomás de Kempis, João</p><p>Wessel, Agrícola, Erasmo e outros. Por cerca de um ano, foi um refrigério para a</p><p>alma e coração de Lutero que encontrou nessa escola os fundamentos de sua</p><p>futura Teologia, pois enalteciam a imitação de Jesus Cristo, a humildade, o</p><p>exame de consciência, a censura fraterna, a leitura da Bíblia, a oração, bem</p><p>como a piedade e a compaixão com o Cristo sofredor. Além disso, a escola dos</p><p>Irmãos preconizava a renovação da Pedagogia, fato defendido posteriormente</p><p>por Lutero, inclusive nas universidades. Segundo alguns autores (H. Ströel), o</p><p>primeiro contato de Lutero com a Bíblia teria sido nesta época, pois os Irmãos da</p><p>Vida Comum espalhavam o livro, que podia ser consultado nas salas dos</p><p>copistas, todavia, muitas lendas ocorreram na vida de Lutero e essa pode ser uma</p><p>delas.</p><p>Outra experiência bastante positiva para a formação psicológica e espiritual de</p><p>Lutero foi a sua relação com as famílias de Úrsula Cotta e seu irmão Schalbe,</p><p>marcadas por uma espiritualidade</p><p>franciscana e apaixonados pela cultura.</p><p>Sabemos que Lutero, adolescente, cantava, juntamente com outros amigos, em</p><p>frente às casas ou mesmo nas janelas de pessoas mais abastardas a troco de</p><p>dinheiro, a fim de ajudar nas despesas de casa. Isso era comum na Alemanha do</p><p>século XVI. Em uma destas casas, o jovem Lutero conheceu Cotta que por sua</p><p>vez se encantou com a sua voz. Com o tempo, a confiança nasceu no coração da</p><p>senhora da casa que o convidou para entrar e fazer refeições com ela e o marido,</p><p>Conrado Cotta, homem ilustre da cidade. E deu-lhes presentes. Lutero</p><p>apresentava seus lindos acordes emanados de seu belo tenor. Nasce assim uma</p><p>amizade sincera entre ambos. Anos mais tarde, após a morte de Cotta, ocorrida</p><p>em 1511, ele acolheu em sua casa e em sua mesa um filho de Cotta, na qualidade</p><p>de estudante em Wittenberg. Segundo alguns, Lutero teria escrito em sua Bíblia,</p><p>no livro de provérbios, uma afirmação que aprendera com Úrsula Cotta, “Nada</p><p>há mais doce sobre a terra do que o coração de uma mulher quando alguém é</p><p>bastante feliz para o obter”.</p><p>No entanto, o mais importante foi a vida deste homem, independente de suas</p><p>crises existenciais. Mesmo diante de todos os problemas vivenciados, soube</p><p>aproveitar, superar e viver intensamente. E tirar de sua própria vida lições não</p><p>somente para si, mas também para o semelhante. Aprendera também que a sua</p><p>própria dor não poderia ser transportada para a dor alheia. Uma das provas que</p><p>soube discernir foi que, aquilo que vivenciou como filho, não poderia aplicar em</p><p>sua prole. Aprendeu a amar e cuidar com longanimidade de seus filhos a ponto</p><p>de ser admoestado pela esposa Catarina a ser mais enérgico com as crianças. Foi</p><p>esse homem, com todas as vicissitudes que passou ao longo da vida, contribuiu</p><p>para mudar o próprio curso da civilização ocidental.</p><p>Passemos agora a examinar alguns aspectos de sua vida.</p><p>Do Nascimento até a Entrada para o Convento</p><p>Nasceu em Eisleben, Alemanha, no dia 10 de novembro de 1483, filho</p><p>primogênito de Hans Luder e Margareth Luder. Podemos saber com mais</p><p>detalhes sobre a vida de Lutero a partir de 1517, quando o seu nome começa a</p><p>ser conhecido por toda a Alemanha e Europa, do que nos anos de infância e</p><p>adolescência. As informações são parcas e não somente para seus primeiros anos</p><p>de existência, mas, durante os primeiros tempos do convento. Alias seus</p><p>biógrafos divergem em várias informações sobre a sua vida e fatos que hoje se</p><p>tornaram históricos, porém, sem documentação comprobatória. Começando</p><p>pelas datas do nascimento e separação para o sacerdócio. Em relação do</p><p>nascimento a maioria dos biógrafos optou pelo ano de 1483, segundo informação</p><p>de Melanchton, que por sua vez baseou-se no testemunho de Tiago (Jacó), irmão</p><p>mais novo do reformador. Assim registrou: “O seu irmão Jacó, homem honrado</p><p>e digno de confiança, assegurou-me que, na opinião unânime da família,</p><p>Martinho nascera mesmo no ano de 1483”. Também sobre o incidente do raio</p><p>em que teria feito dele um monge é hoje posto em dúvida. Há divergências sobre</p><p>a época em que o reformador tocou pela primeira vez em uma Bíblia. Várias</p><p>informações que temos nos vem do próprio Lutero, em data bem posterior ao</p><p>ocorrido e, em alguns casos, em Conversa sobre a Mesa, que consistia em</p><p>compilação de anotações feitas por alunos e colaboradores de Lutero durante</p><p>encontros informais.</p><p>Também os primeiros escritos sobre ele foram apresentados de forma</p><p>tendenciosa, parcial e até mesmo distorcidos. Já no fim de sua vida, em 1545, ele</p><p>apresentou um resumo ou uma espécie de retrospectiva destacando suas</p><p>experiências, em algumas introduções de suas obras. Cremos ser convincente a</p><p>declaração de Lucien Febvre, em 1927, ao afirmar que devemos deixar “de lado</p><p>tantas conjecturas, que não passam de conjeturas e tantas opções e escolhas que</p><p>não passam de opções e escolhas por preferências, direcionemos nossos esforços</p><p>para o essencial”.</p><p>Sabe-se que foi batizado no dia 11 de novembro e recebeu o nome Martinho em</p><p>honra ao santo do dia: Martinho de Tours, grande impulsionador da</p><p>cristianização da Europa. Neste ponto os “Martinhos” se coincidem. Novamente,</p><p>Melanchthon nos diz que Margareth Luder “costumava dizer que se lembrava</p><p>bem do dia e da hora em que o fato ocorrera, mas que não tinha certeza quanto</p><p>ao ano”.</p><p>Procurando ser o mais didático possível vamos apresentar, em linhas gerais,</p><p>algumas fases da vida de Lutero, ou seja, desde o nascimento até a entrada para</p><p>o convento agostiniano.</p><p>Mansfeld</p><p>Será sempre uma fonte de inspiração discorrer sobre a vida deste homem que</p><p>trilhava um caminho, mesmo sem ter consciência no início, em direção ao plano</p><p>que o próprio Deus traçara para ele. Muitas vezes somos alvos de Deus e</p><p>somente o tempo revelará, em plenitude, os seus desígnios. Bajezid Bostani,</p><p>místico muçulmano, afirmou que durante 25 anos procurou Deus e, ao final</p><p>desses anos, abriu os olhos e descobriu que era Ele quem o procurava. É o que</p><p>ocorria com Lutero mesmo em seus conflitos. Sua vida foi um mar de agitação</p><p>interna numa desenfreada procura em agradar a Deus, chegando mesmo a</p><p>exaustão quando, em certa vez, acometido de grande terror retirou-se para uma</p><p>cela contígua, onde se jogou em uma cama repetindo reiteradamente versos das</p><p>Escrituras. Melanchthon afirma que ao ingressar na vida monástica, ele se</p><p>esforçava na busca de uma verdadeira piedade. Staupitz havia dito que não era</p><p>Deus que se encontrava em conflito com ele, mas sim o próprio Lutero com</p><p>Deus. E, nesta caminhada para uma paz com Deus, Lutero terá um longo</p><p>caminho a percorrer. A procura de Lutero foi à procura do próprio Deus. E ao</p><p>encontrá-lo ou ser encontrado por Ele, foram abertas as portas do paraíso em sua</p><p>vida.</p><p>Neste “caminho de Damasco” na vida de Lutero, ainda criança, seus pais se</p><p>transferem para Mansfeld. Hans não era o filho caçula e como tal não tinha</p><p>direito a herança na propriedade do pai. Tal como Abrão, foi “cavar o poço” para</p><p>dar “água à família”. Emigra para o Condado de Mansfeld a procura de melhores</p><p>condições de vida para o sustento de sua prole, permanecendo ali até 1496/7, dos</p><p>5 aos 13 anos, quando é matriculado na Escola Municipal. O Condado de</p><p>Mansfeld era o maior e o mais importante de todos e, por isso mesmo chamado</p><p>de Alemanha. Região rica em minérios, tais como cobre e prata, não foi difícil</p><p>para o pai de Lutero formar pequenos grupos de trabalhadores para extrair e</p><p>fundir minério em pequenos fornos, com isso a vida família começa a melhorar</p><p>em Mansfeld. A matrícula na Universidade de Erfurt, objetivo do pai Hans, era</p><p>uma questão de tempo. Com a ascensão dos Luder, Hans chega à qualidade de</p><p>vereador do Condado que era governado por dois irmãos condes jurados de</p><p>morte. Foi nesse conflito, que durou anos, que Lutero, posteriormente, em</p><p>meados da década de 1540, se dirige à região na tentativa de apaziguar a briga de</p><p>ambos. Ali estuda os rudimentos do latim, canto e as expressões principais da fé:</p><p>os Dez Mandamentos, o Pai Nosso, Ave Maria e o Credo. Lutero iria registrar a</p><p>rigidez na educação que, na verdade, fazia parte do método de estudo da época.</p><p>É nesse contexto de Mansfeld que ocorre um bálsamo em sua educação de</p><p>adolescente. Após conclusão dos estudos na referida Escola Municipal, seu pai</p><p>Hans o envia para Magdeburgo. Foi um curto período, não excedendo a um ano,</p><p>em que conviveu com a Escola dos Irmãos da Vida Comum. Ali, certamente teve</p><p>uma experiência espiritual mais profunda em sua religiosidade. A Pedagogia da</p><p>“varologia”, ou seja, uma educação aliada ao castigo com varas chegara ao fim</p><p>na Escola Municipal. Na Escola dos Irmãos a situação é outra e Lutero fica</p><p>impressionado pelo exemplo de renúncia, caridade e piedade de seus mestres.</p><p>Era um adolescente com 14 anos e passava por uma experiência que marcou a</p><p>sua vida. Foi entre os Irmãos que, segundo alguns biógrafos, Lutero teve contato</p><p>pela primeira vez com a Bíblia. Também a permanência entre os Irmãos trouxe</p><p>novas experiências espirituais que seguramente marcaram a personalidade do</p><p>jovem Lutero. Foi também nesta época que a prática de</p>