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Julho/ 2019 Professor: Dr. Wander de Lara Proença Coordenadoria de Ensino a Distância: Dr. Marcos Orison Nunes de Almeida Projeto Gráfico e Capa: Mauro Rota - Depto. Marcom Todos os direitos em língua portuguesa reservados por: Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200 3História do cristianismo | FTSA | SUMÁRIO História do cristianismo I Unidade I - Contexto, temas e personagens da reforma Introdução...............................................................................................................04 1. Motivos e interpretações da reforma na igreja no século XVI.........................05 2. Quem foi Martinho Lutero...................................................................................17 3. Lugares, estratégias e repercussões do movimento reformador....................24 Unidade II - A reforma protestante e seus movimentos Introdução...............................................................................................................33 1. Líderes e movimentos de Reforma....................................................................34 2. Grupos e contexto social da Reforma...............................................................42 3. O papel da leitura nos movimentos de reforma................................................50 4. João Calvino e a Reforma em Genebra.............................................................54 5. O legado luterano e a Contra-Reforma Católica................................................57 Unidade III - Expansão dos movimentos de reforma - Parte I Introdução...............................................................................................................61 1. Moviemntos advindos com a Reforma: Pietistas, Moravianos e Puritanos...61 2. A reforma na Inglaterra e o contexto de surgimento do Metodismo..............68 3. John Wesley e o Metodismo..............................................................................72 4. Protestantismo no E.U.A e (re)avivamentos.....................................................78 Unidade IV - Expansão dos movimentos de reforma - Parte II Introdução...............................................................................................................88 1. Origens do Pentecostalismo..............................................................................89 2. Primeiros contatos da América Portuguesa com o Protestantismo...............96 3. Signifi cados da Reforma Protestante 500 anos depois..................................103 Para assistir os vídeos, ouvir os podcasts e fazer os exercícios, acesse o AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem) Olá, seja bem-vindo(a) ao curso de História do Cristianismo II. Sobre este aconteciemnto, veremos: Como ocorreu? Quem foram seus principais líderes? Que mudanças promoveu? Qual a sua repercussão e alcance social, cultural, político? Quais denominações protestantes surgiram? Quais países foram alcançados? Quais outros movimentos surgiram posteriormente como desdobramentos da Reforma? Ocorrida inicialmente na Europa, expandiu-se logo depois para outros continentes, dentre os quais, a América. Protestantes ou evangélicos, são terminologias que historicamente passaram a designar uma grande parcela de cristãos identificados com estes acontecimentos do Mundo Moderno. Veremos que esse caminho histórico foi marcado pelo surgimento de inúmeros movimentos, denominações e tipologias doutrinárias. Exemplos disto são os movimentos avivalistas e reavivalistas dos séculos XVIII e XIX, com seu impacto e expansão missionária. Nestes acontecimentos, dos séculos XVI e XIX, estão as raízes do que são hoje as diversas denominações que confi guram o cenário evangélico-protestante, em termos de doutrina e prática. Este é, então, um período muito rico da história do cristianismo. E para um desenvolvimento mais dinâmico destas aulas, usaremos textos, vídeos e documentários. Para isto, recomendamos que leia atentamente as aulas escritas, os textos de apoio, veja os vídeos e interaja com as atividades propostas. Evidentemente, muitos outros assuntos ou temas importantes poderiam ser aqui abordados, mas as aulas apresentadas no programa de curso foram cuidadosamente selecionadas, objetivando proporcionar uma compreensão panorâmica deste emblemático e extensivo período histórico. Iniciemos essa jornada instigante, buscando compreender no passado as origens do nosso presente. Bom curso! Prof. Wander de Lara Proença 4 | História do cristianismo II | FTSA 5História do cristianismo | FTSA | UNIDADE I - Contexto, temas e personagens da reforma protestante O movimento de reforma ocorrido na igreja no século XVI representa, ao mesmo tempo, o início e o fi m de acontecimentos que marcam a história do Cristianismo. Representa o fi m, pela consolidação de anseios vivenciados por inúmeros cristãos ao longo do período medieval, que vendo a realidade de uma igreja marcada por interesses e disputas de poder obscuros ao reino de Deus, e pela prática de doutrinas estranhas às Escrituras bíblicas e à tradição apostólica. Representa também o início, ou (re)começo, de um novo tempo para a fé cristã, marcado pelo impacto da leitura e pregação da Bíblia no vernáculo, pelo surgimento de novos valores calcados na ética protestante, com repercussões na cultura, na economia e na política. Nesta primeira unidade de estudos, é quase que natural as atenções estarem voltadas para um personagem, Martinho Lutero, por ser um representante emblemático destes acontecimentos. Costuma-se dizer que “Lutero foi a pessoa certa, no lugar certo, na hora certa”. Pessoa certa (por seu preparo intelectual, liderança, paixão pelas Escrituras), no lugar certo (porque na região onde se defl agrou a Reforma, a Germânia, havia intenso anseio de mudança pelos príncipes que ali governavam, por camponeses, e também por estar ali o berço da invenção da imprensa), na hora certa (por ser aquele momento da história marcado pelo Renascimento, pelo Humanismo, vetores de mudança e gestação do Mudo Moderno). Mas veremos que Lutero não está sozinho. Ele é continuador de líderes pré-reformadores; está acompanhado de estudantes, que o ajudam a escrever as 95 teses; tem o decisivo apoio de príncipes; é seguido e auxiliado por outros infl uentes líderes que espalharam a mensagem reformista em diferentes lugares. | História do cristianismo II | FTSA6 1. Motivos e interpretações da Reforma na igreja no século XVI 1.1. O contexto religioso e teológico Para introduzir os conteúdos que virão pela frente, ao longo do curso, é importante inicialmente perguntar: por que foi necessária uma reforma na Igreja no século XVI? Na disciplina anterior, de História do Cristianismo I, vimos que no período “medieval” ou Idade Média (entre os séculos V e XV) desenvolveu-se o catolicismo institucionalizado, com acentuada estrutura hierárquica, sustentada na fi gura papal e no clericalismo de bispos e sacerdotes. Após a conversão do imperador Constantino, os clérigos passam a ter remuneração do Estado, constroem-se suntuosos templos, o poder religioso passa a estar atrelado ao poder político etc. A igreja alia-se ao Império Romano, contra o qual deixa de exercer função profética de denúncia e reivindicação - O Estado passa agora a benefi ciá-la. A igreja desempenha em tal sociedade, a partir de então, um papel semelhante ao da velha religião estatal, ou seja, concebendo Cristo apenas como um rei celestial que dá apoio ao imperador cristão que governava em seu nome. Aprendemos também que nesse mesmo período foi marcante a vivência de um cristianismo mais popular, folclórico, profundamente arraigado em imaginários religiosos sincréticos, com fortes raízes fi ncadas no elemento da magia. Isso porque, especialmente, a partir do século IV da era cristã, quando o cristianismo se tornou religião livre e ofi cial do Império Romano, desenvolveu-se um intenso e crescente processo de aculturação entredoutrinas cristãs e antigas práticas religiosas que permeavam o universo de crenças do mundo greco-romano. Alguns exemplos das doutrinas e práticas surgidas como sincretismo ou hibridismo formados naquele período são: Jesus deixa de ser o único mediador (também a mãe de Jesus e os apóstolos, especialmente 7História do cristianismo | FTSA | passam a exercer tal função); surge a fi gura papal, como representante de Cristo na Terra; a Bíblia passa a ser lida somente em latim e pelos clérigos, fi cando, portanto, distante do povo; a justifi cação passa a se dar também por obras, daí as penitências, os autofl agelos, as indulgências como meios de redimir pecados; a doutrina do purgatório, mediante a qual era dada a oportunidade de salvação após a morte àqueles que não se preparam devidamente em vida; surgimento da Inquisição, que se constituía numa tribunal eclesiástico que dava à igreja o direito de julgar e punir àqueles que ousassem questionar as doutrinas canônicas ou a verdade que pertencia de forma exclusiva e absoluta à igreja medieval. No chamado “período áureo” da Idade Média, verifi cam-se vários prejuízos à missão da igreja. A preocupação da comunidade cristã ofi cial neste contexto voltou-se quase que exclusivamente para a elaboração dogmática da teologia, fundamentada em categorias fi losófi cas, sob forte infl uência da metafísica. O que mais importava era o Cristo triunfante e transcendental, e não o Jesus histórico. Há também nesta época forte interesse pela vida monástica, a qual levava os cristãos a fugirem do mundo e seus confl itos, com o propósito de se dedicarem à purifi cação e contemplação nos desertos. Também se observou um grande apego à magia. Segundo o sociólogo Leonildo Campos (1997), nesse período a assimilação da fé cristã pela população rural, mediante a catequese, “formou uma camada de verniz sobre uma antiga realidade religiosa” (p.170), desencadeando um intenso apego às relíquias como fetiches de proteção, com caráter mágico, objetos esses que supostamente teriam sido utilizados pelos apóstolos ou outros mártires do cristianismo e que eram então guardados nos lares dos devotos com o sentido de proteção contra doenças, contra infortúnios do demônio ou como ajuda contra as intempéries que poderiam ameaçar as colheitas. O historiador inglês Keith Thomas também afi rma que no contexto da Idade Média: as relíquias sagradas tornaram-se fetiches milagrosos, tidos como dotados do poder de curar enfermidades e proteger contra perigos [...] atribuía-se igualmente uma efi cácia miraculosa às imagens. A representação de São | História do cristianismo II | FTSA8 Cristóvão, que com tanta frequência (sic) ornamentava as paredes das igrejas das aldeias inglesas, supostamente concedia um dia de imunidade à doença ou à morte a todos os que a fi tassem (p. 36). Este mesmo autor constata que no mundo medieval havia se desenvolvido um “amplo leque de fórmulas para atrair a bênção prática de Deus sobre as atividades seculares”, acrescentando: O ritual básico era o benzimento com sal e água para a saúde do corpo e expulsão dos maus espíritos. Mas os livros litúrgicos da época também traziam rituais para benzer casas, gados, culturas, embarcações, ferramentas, armas, cisternas e fornalhas. Havia fórmulas para abençoar homens que se preparavam para sair em viagem, para travar um duelo, para entrar em batalha ou mudar de casa. Havia métodos para abençoar os doentes e tratar de animais estéreis, para afastar o trovão e trazer a fecundidade ao leito matrimonial [...] Fundamentalmente em todo esse procedimento era a ideia de exorcismo, o esconjuro formal do demônio, expulsando de algum objeto material por meio de preces e da invocação do nome de Deus. A água benta podia ser utilizada para afastar maus espíritos e vapores pestilenciais. Era remédio contra a doença e a esterilidade (Thomas, p.38). Diante desse quadro religioso e teológico, surgiram movimentos de reforma dentro da própria igreja medieval — considerados pré- reformadores — que buscavam mudanças, os quais prepararam o caminho para o advento da Reforma Protestante que viria a ocorrer no século XVI, buscando retomar o caminho bíblico e apostólico dos primeiros séculos. Assista ao vídeo: História do Cristianismo II – AVA –Aula 1 Acesse o AVA para assis� r o vídeo! 9História do cristianismo | FTSA | 1.2. Contexto sócio-político Diante dos aspectos anteriormente apresentados, cabe agora perguntar: em que consiste a Reforma Protestante? Ou ainda: quais possíveis leituras podemos fazer deste movimento naquele período e contexto? O advento de uma nova vertente cristã — o protestantismo — por si só confi gura o cariz essencialmente religioso da Reforma. No entanto, é possível — ou necessário — fazer leituras daqueles acontecimentos do século XVI por outros vieses. Um deles, pelo prisma econômico- social. Nesta perspectiva, a meta primordial daquele movimento teria sido a eliminação do controle social exercido pela igreja, originado a expectativa de ganhos fi nanceiros: do príncipe, que via a possibilidade de tomar para si as terras da igreja; do camponês mais humilde que imaginava não mais ter de pagar dízimos (ou impostos) à igreja. Os anseios de mudança mobilizaram, assim, estratos sociais descontentes com a tarefa de produzir sob o aguilhão de pesada carga tributária que sustentava economicamente as instâncias de poder político e poder religioso: camponeses espoliados, formadores da base da pirâmide social, entenderam ser chegado o tempo de mudanças revolucionárias, quando a terra seria partilhada de modo igualitário entre os trabalhadores. Outro olhar sobre a Reforma, primariamente na Alemanha, poderia considerá-la como uma questão de acentuada natureza política: a convergência entre a causa religiosa e o nacionalismo dos países europeus teria contribuído diretamente para o grande apoio recebido por Lutero do povo e da elite alemã. Lida, por um lado, como um instrumento utilizado pelos governantes locais para eliminar a infl uência externa sobre os seus territórios, a Reforma é entendida, por outro, como um primeiro exemplo do nacionalismo alemão. O aumento contínuo da consciência da nacionalidade e o fortalecimento da autoridade real já haviam sido presenciados no século anterior à Reforma. Decrescia o poder do papa e do imperador, enquanto afi rmava-se o poder dos reis. Além de contestado pelas outras nacionalidades, na Alemanha o imperador não conseguia impor sua autoridade diante da nobreza germânica. O Sacro Império | História do cristianismo II | FTSA10 continuava a ter as suas fronteiras ameaçadas pelos islâmicos. A Dieta Imperial (Parlamento) refl etia a ascensão do autonomismo nacional e o poder dos nobres regionais (Cavalcanti, p.121). Uma das obras importantes de Lutero foi intitulada À Nobreza Cristã da Alemanha, de apelo nitidamente nacionalista. Com isso granjeou a simpatia e o apoio de vários dos poderosos príncipes-eleitores, entre os quais Frederico, o sábio, que corajosamente o protegia. Não tivesse ele o respaldo popular e o apoio de poderosas forças políticas, difi cilmente não seria derrotado, à semelhança do que ocorrera com os pré-reformadores, como John Huss, um século antes. Esse apoio do braço político teria sido, igualmente, decisivo para a expansão do protestantismo. Na Noruega, Dinamarca e Suécia, a Igreja torna-se protestante por decisão do rei e do parlamento. A Reforma, igualmente, concorreu para alterar a ordem política europeia. Os países aderiram ao protestantismo e se separaram do Sacro-Império e do papado, enfraquecendo-os. Esses países separados afi rmariam o princípio da soberania, como estados-nacionais. Exercício de Fixação Sobre as interpretações da Reforma podemos dizer que: a) A análise deve focar exclusivamente na dimensão religiosa, pois, embora tenha atingido outras dimensões da vida social, a reforma foi estritamente religiosa. b) A análise deve levar em consideraçãotanto a dimensão religiosa quanto as dimensões da vida social, pois a reforma correspondeu a essa complexidade das realidades humana. c) A análise deve focar exclusivamente nas dimensões da vida social, pois, embora ela tenha iniciado como uma discussão de cunho religioso, isso não passou de pretexto para a independência política das regiões sob o domínio do Sacro Império. Acesse o AVA para fazer o exercício! 11História do cristianismo | FTSA | 1.3. Mudanças impulsionadas pela reforma O movimento de Reforma se tornaria o marco de profundas mudanças que não se restringiram tão somente ao aspecto religioso, mas que promoveram transformações de âmbito político, sócio-econômico e cultural. João Calvino, outro infl uente líder da Reforma, ao lado de Lutero, foi grande responsável pela formação de um novo conceito em relação ao trabalho. Durante a Idade Média, o trabalho era visto como sinônimo de castigo divino; além do que, a fé cristã projetava a realização de seus sonhos e desejos para o paraíso no “além celestial”. Na compreensão dos reformadores, o trabalho passou a ser visto como vocação divina, que não só dignifi ca o ser humano, como também promove a glória de Deus. Este novo conceito inseriu-se perfeitamente no novo modelo de sociedade que a modernidade passava a exigir. Daí a Reforma ter obtido tanto êxito nos países em que se forjava o moderno modelo econômico, intensamente voltado para a produção. Analisando este importante período da história da igreja, o historiador Éber Silveira Lima comenta que a Reforma Protestante, no século XVI, signifi cou um retorno da igreja aos princípios que sempre marcaram sua identidade: W. Walker, historiador protestante, usa a expressão bíblica “vinho novo em odres velhos”, ao explicar sobre as razões que motivaram a Reforma do século XVI. A Igreja Medieval, trazendo no seu bojo as inserções acumuladas por tantos séculos, se descaracterizara quase que por completo. Perdera, ademais, a vitalidade dos primeiros tempos, em termos de fé e prática neo- testamentárias. O “odre velho”, ou seja, a instituição eclesiástica envelhecida, carcomida, rançosa, herdara do Império Romano sua noção de sociedade, desde o momento em que o Papa passou a ser na prática, o sucessor dos Césares, na mistura da religião com o poder civil, que tanto concorrem para o desfi guramento | História do cristianismo II | FTSA12 da igreja. A Reforma foi, nesse contexto, o resultado de um processo histórico, reconhecida por nós a ação de Deus com o intuito de renovar os odres para a preservação do vinho novo, que é o Evangelho (1988, p. 1). Neste importante período, ocorre, portanto, uma retomada da temática da cruz quando os reformadores objetivam reconduzir a igreja às suas origens doutrinárias e, consequentemente, às suas verdadeiras funções de ser sal da terra e luz do mundo. A teologia da Reforma salienta a cruz por ser esta o lugar único do perdão e da redenção da humanidade, possibilitando a esta a condição para promover o reino de Deus. Por isso Lutero emitiu a célebre frase: “Crux sola nostra theologia” (somente a cruz é a nossa teologia). Lutero, em sua oração pascal, expressa bem a singularidade da obra redentora da cruz de Cristo e a capacitação que da ressurreição provém àqueles que passam a ser instrumentos de Deus na libertação da morte e da estrutura de pecado que ainda existem: Sendo nosso fi ador, Tu foste entregue à morte, mas eis que vives. Tu venceste a morte e aniquilaste aquele que tinha o poder da morte, Tu foste feito o primeiro entre os que dormem. Porque Tu abriste o reino dos céus para todos os que vivem. O verdadeiro cordeiro pascal, que foste oferecido por nós, Tu tiraste o pecado do mundo e pela ressurreição nos restaurastes inocência e vida eterna. Completa, pois, em nós com poder a obra da fé, cuida que ressuscitemos contigo em verdadeiro arrependimento de nossa morte natural de ofensas e pecados. Possamos vencer o mundo e o terror da morte e, na Tua vinda para julgar a mundo, aparecer contigo em glória semelhantes a Ti e com nossos corpos transformados à imagem do Teu próprio corpo glorifi cado. (Liturgia Luterana, p.286-287). É necessário destacar nesta oração de Lutero, a compreensão de que a cruz e a ressurreição não consistem em um fim em si mesmo, mas o meio pelo 13História do cristianismo | FTSA | qual o ser humano é restaurado para agir na promoção do reino de Deus. Assim, para Lutero, a redenção não pode ser desvinculada da missão. João Calvino também fundamenta sua elaboração teológica nos temas “cruz e ressurreição”, ressaltando a interdependência teológica entre os mesmos. Diz ele: Ainda que na morte de Cristo tenhamos pleno cumprimento da salvação, pois por ela somos reconciliados com Deus, o juízo divino é satisfeito, a maldição suprimida e a pena paga. Sem dúvida não se diz que somos regenerados de uma viva esperança pela morte, mas pela ressurreição (1988, p. 539). Ao falar da cruz propriamente, o reformador de Genebra nos diz que ela nos humilha, revela nossa hipocrisia, e nos liberta da confi ança que temos em nossas próprias forças. Nela nos tornamos totalmente dependentes da graça de Deus. E da ressurreição do crucifi cado provém a esperança do triunfo da verdade de Deus para a humanidade e seu futuro (1988, p. 539). Nas palavras de Calvino também encontramos a alusão de que a ressurreição consiste no poder que preenche o vazio outorgado pela cruz: “A cruz de Cristo triunfa de verdade no coração dos fi éis contra o Diabo, contra a carne, contra o pecado e contra os ímpios quando voltam seus olhos para contemplar o poder de sua ressurreição” (l988, p. 551). Para Calvino, a ressurreição de Cristo é fator fundamental de nossa justifi cação, nossa santifi cação e a nossa própria ressurreição. Ele também aponta para a segurança que a ressurreição proporciona aos que percorrem o caminho da cruz no seguimento de Cristo: A nossa santifi cação se deve pelo fato de que, assim como Cristo foi morto na cruz, devemos mortifi car a nossa carne e andarmos, assim como Cristo, em novidade de vida, com uma vida transformada. E é também pela ressurreição de Cristo assegurada a | História do cristianismo II | FTSA14 nossa própria ressurreição, uma vez que, tendo sido Cristo homem também, morreu à semelhança de toda a humanidade, mas não fi cou presa a ela, antes Deus o ressuscitou, vencendo a morte e destruindo o seu poder. Sendo assim, uma vez estando ligados a Cristo pela fé e engajados no seu ministério, é-nos assegurada a nossa ressurreição. Assim como Deus levantou a Cristo dentre os mortos, há também de nos levantar (1988, p. 386-387). Desse modo, o espírito da Reforma do século XVI identifi ca-se bastante com o espírito da missão de Jesus Cristo entre os homens, quando a falsa religião e a hipócrita espiritualidade são denunciadas, juntamente com os abusos de poder que são feitos em nome de Deus. Este espírito de denúncia profética, de inconformismo, e de enfrentamento da realidade levado às últimas consequências, caracteriza o caminho da cruz pelo qual a Reforma Protestante trilhou, caminho este que produziu vida. Também, em termos teológicos, houve a redescoberta do sacerdócio universal de todos os crentes, cujo princípio é o de que todo cristão, e não somente o clérigo, é vocacionado por Deus para exercer dons e ministérios. No período medieval, o exercício ministerial fi cou bastante circunscrito ao controle da instituição católica, sobrevalorizando-se o clericalismo em relação ao laicato (leigos). Afi rma o sociólogo Pierre Bourdieu: A concentração do capital religioso nunca foi talvez tão forte como na Europa Medieval. A igreja, organizada segundo uma hierarquia complexa, utiliza uma linguagem quase desconhecida do povo e detém o monopólio do acesso aos instrumentos do culto, textos sagrados e, sobretudo, os sacramentos (1996, p.62) O fato de a Reforma trazer de volta o sacerdócio universal de todos os crentes, isto não significou desprezo à formação teológica e ausência 15História do cristianismo | FTSA | de preparo de novos líderes para o exercício do pastorado e outros ministérios. Logo no seu início, o protestantismo também criou suas escolas de Teologia, sendo a primeira e mais infl uente, a Academia de Genebra, na Suíça, sob liderança de João Calvino, acerca da qual trataremos com mais detalhes nos tópicos seguintes. Saiba mais Origens do Seminário A palavra “seminário” tem sua origem no latim seminariu, que signifi ca originalmente “viveiro de plantas onde se fazem as sementeiras”. Este termo passou a designar instituição de ensino teológico no século XVI, mais precisamente entre 1545 e 1563, por ocasião do Concílio de Trento, também conhecido como Concílio da Contra-Reforma. Adotou-se ali a expressão para designar os cursos de formação eclesiástica sob controle da Igreja de Roma. A ideia original era a de que, semelhantemente às plantas dos viveiros e herbários, os candidatos às funções clericais também fi cassem separados sob cuidados especiais e protegidos durante seu processo de formação. Especifi camente, naquele momento, deveriam os estudantes fi car protegidos das “tentações do mundo” e das infl uências das “ideias heréticas” propagadas pelos protestantes (Proença, 2004, p.9) Exercício de Aplicação Citação 1: Os melhores pastores não saem dos seminários. Pastor é que nem jogador de futebol: eles saem das escolinhas, eles surgem, aparecem. Depois só precisam ser lapidados. Com o passar dos anos, eles vão fi car muito mais preparados do que jamais fi cariam num seminário normal. Os grandes homens de Deus surgiram do nada, sem preparação (Eclésia, 2004) | História do cristianismo II | FTSA16 Citação 2: Nunca foi tão fácil exercer o ofício de pastor ou pastora no contexto brasileiro como o que se observa atualmente. Pessoas com pouquíssimo tempo de conversão à fé evangélica, ou ainda sem o mínimo preparo teológico ou até mesmo bíblico, se auto-intitulam pastores/as, alugam um salão para o início de suas pregações e logo passam a ter um grupo de seguidores. Contribui para a banalização do ofício pastoral o fato de não existir nenhum órgão que possa – com base em critérios que levem em conta o devido preparo e formação – emitir uma credencial de reconhecimento e legitimidade a quem deseja exercer o ministério pastoral ou então fundar uma nova igreja (Proença, 2004, p.33,34) À luz dos desdobramentos do princípio do sacerdócio universal de todos os crentes na Reforma, qual das afi rmações abaixo demonstra incompreensão desse princípio? O sacerdócio universal de todos os crentes torna desnecessária a formação teológica para o exercício da atividade pastoral. A formação teológica tem um importante papel para o exercício ministerial do cristão. A falta de preparo teológico e o desconhecimento de recursos de interpretação da Bíblia por parte de líderes, podem trazer algum risco à vida cristã da comunidade. Acesse o AVA para fazer o exercício! 17História do cristianismo | FTSA | 2. Quem foi Martinho Lutero 2.1. Os anos de formação Lutero nasceu em Eisleben, região germânica, em 10 de novembro de 1483. Com recursos provenintes do trabalho na mineração, seu pai teve condições de lhe dar estudo, aspecto distintivo em um contexto de predomínio do analfabetismo. Seu processo educacional pode ser dividido em três etapas: alfabetização, bacharelado em Artes e o estudo da Teologia. Sua alfabetização teve início aos cinco anos, na escola municipal de Mansfi eld. Nesta escola, até 1497, Lutero aprendeu noções de latim, música e os princípios da fé cristã: orações, o Credo e os Dez Mandamentos. Esta escola mantinha uma metodologia de ensino conservadora: memorização pela coerção. Seu contato com uma renovação pedagógica se deu quando frequentou a escola de latina de Magdurgo, entre 1497 e 1498. Apesar do pouco espaço de tempo, o jovem aluno deve ter se impressionado com ensino de infl uência humanista que os irmãos da vida comum se empenhavam por introduzir naquele espaço educacional. Em 1501, em Erfurt, Lutero iniciou sua formação universitária. Para essa universidade renomada foi enviado por seu pai com o objetivo de cursar a faculdade de Direito. Como pré-requisito, cursou primeiramente a Faculdade de Artes. Neste curso dedicou-se às disciplinas de gramática, retórica, dialética, geometria, aritmética, música e astronomia, além de estudar ética e metafísica. Neste período é que Lutero leu textos da obra aristotélica. Em 1505 tornou-se mestre, estando apto para ingressar em um dos três cursos superiores: Direito, Medicina e Teologia. Seguindo a vontade do pai, escolheu a carreira jurídica. Uma situação inusitada, em que teve sua vida ameaçada em um tempestade, fê-lo decidir abandonar o Direito e buscar a Teologia. Ingressou-se no convento dos agostinianos, tornado- se monge agostiniano. Lutero, na clausura, autofl agelava-se várias vezes ao dia em busca da segurança da salvação. Chegou, certa vez, indo a | História do cristianismo II | FTSA18 Roma, subir as escadarias da basílica em penitência, recitando o “Pai- Nosso” em favor de seu pai, já falecido. Em 1508 mundou para Wittemberg, onde, em 1509, tornou-se bacharel em Bíblia. Como mestre lecionou por um breve período até tornar-se doutor em Teologia em 1512. Assista ao vídeo: “Os caminhos de Lutero”, EP 1 Acesse o AVA para assistir ao vídeo! 2.2. A infl uência do pensamento agostiniano No período de sua formação teológica, Lutero foi infl uenciado, além dos estudos das Escrituras, pelas leituras que fez de Santo Agostinho. Embora Agostinho (354-430 d.C.) tenha nascido num lar cristão, foi por nove anos maniqueísta, vindo a se converter à fé cristã em 386 d.C., sendo batizado em 387 d.C. por Ambrósio, em Milão. Em 391 d.C. foi ordenado ao sacerdócio, sendo quatro anos mais tarde consagrado bispo coadjutor de Hipona. Em 412 d.C., é que começa a controvérsia que dividiu defi nitivamente as opiniões dentro da Igreja, envolvendo Pelágio. Pelágio era um monge britânico que apareceu em Roma, por volta do ano 400 d.C., para refutar as doutrinas de Agostinho. Escreveu um comentário sobre as epístolas paulinas em 409 d.C. A sua posição teológica pode ser denominada de “monergismo humano”, assim chamado porque para ele o poder da vontade humana é decisivo e sufi ciente na experiência da salvação. Sua célebre frase expressa claramente essa mentalidade, quando ele afi rma “se eu devo, eu posso”. A controvérsia entre Agostinho e Pelágio se resumia em dois pontos teológicos: a liberdade — capacidade — da vontade humana (livre arbítrio); e na maneira como Deus opera sua graça. Quanto ao livre arbítrio, a discussão era se o ser humano é absolutamente capaz de exercer a sua liberdade, ou não. Agostinho ensinava e defendia a doutrina “do pecado original”, e os seus inevitáveis efeitos mortais sobre a vida de todos os descendentes dos primeiros pais. Pelágio, negava tal contaminação, e 19História do cristianismo | FTSA | afi rmava a inocência da alma, como também a absoluta capacidade de escolha tanto moral, quanto espiritual. Como exemplo desta disputa, leia o trecho abaixo: Saiba mais O querer e o agir dependem também da graça de Deus, conforme testemunho de São Paulo Todo o dogma de Pelágio consta no livro terceiro de sua obra em favor do livre arbítrio, transcrito fi elmente com essas palavras. Nele são diferenciados os três fatores, um que é o poder, o outro que é o querer, o terceiro que é o ser, isto é, a possibilidade, a vontade e a ação. Mas lança mão de tanta sutileza nas palavras, que procuremos saber o que ele quer dizer, quando lemos ou ouvimos que ele reconhece a ajuda da graça divina para nos afastarmos do mal e praticarmos o bem, fazendo-a consistir na lei ou na doutrina ou em qualquer outra coisa. Não caiamos no erro de entendê-lo de modo diferente do que pensa. Por isso, devemos ter em conta que ele não crê no auxílio divino paraa vontade e a ação, mas somente para a possibilidade da vontade e da ação. Segundo afi rma, é o único fator, dentre os três, que recebemos de Deus, como se não tivesse capacidade o que o próprio Deus pôs na natureza. Os outros dois, que são nossos, no seu dizer, são tão fi rmes, fortes e autossufi cientes, que não necessitam de auxílio algum. Portanto, Deus não nos ajuda para o querer nem ajuda para o agir, mas somente auxilia para que possamos querer e agir. O Apóstolo, porém, diz o contrário: Operai a vossa salvação com temor e tremor. E para fazê-los saber que não tinham capacidade não somente para poder agir (pois já o haviam recebido na natureza e na doutrina), mas também para o próprio agir, não diz: Deus que opera em vós o poder, como se o querer e o agir, os possuíssem por si mesmos e não necessitassem de ajuda com relação a esses dois fatores, mas diz: Pois é Deus que opera em vós o querer e o agir (et | História do cristianismo II | FTSA20 velle et perfícere), ou como se lê em outros códices, principalmente gregos: et velle et operari (Fl 2:12-13). Percebei como o Apóstolo, inspirado pelo Espírito Santo, previu muito antes os futuros adversários da graça de Deus. Além disso, asseverou que Deus opera em nós os dois, ou seja, o querer e o operar, que os pelagianos pretendem que sejam nossos, como se não necessitassem da ajuda da graça divina. AGOSTINHO, A graça de Cristo e o pecado original, Capítulo V. As ideias de Pelágio foram fortemente refutadas por Agostinho numa série de tratados que se tornaram conhecidos como escritos antipelagianos. O Pelagianismo foi condenado ofi cialmente pela Igreja antiga nos concílios de Cartago (418 d.C.), de Éfeso (431 d.C.) e fi nalmente no Concílio de Orange II (529 d.C.). A partir de então a Igreja Ocidental tornou-se ofi cialmente agostiniana em seu entendimento da doutrina da graça, todavia, essa ofi cialidade estava um tanto que longe da realidade dos clérigos e igrejas locais. Entretanto, durante a Idade Média o semipelagianismo tornou-se a doutrina ofi cial da Igreja Católica Romana, daí a ênfase nas boas obras para fi ns de salvação. Como leitor de Agostinho, Lutero se insurgiu contra este sistema teológico do catolicismo romano no contexto da Reforma. Exercício de Fixação A respeito da doutrina da graça em Lutero podemos afi rmar que: Tanto a leitura bíblica quanto a leitura de textos da tradição cristã contribuíram para a maturação da refl exão teológica de Lutero que, frente ao seu contexto, contextualizou de forma signifi cativa para o seu tempo as implicações da doutrina da graça. Através das leituras de Agostinho Lutero simplesmente reativou uma antiga questão nos mesmos moldes que Agostinho a tinha travado com Pelágio. 21História do cristianismo | FTSA | 2.3. Os anos em Wittemberg Na cidade de Wittemberg, uma recém fundada universidade trazia abertura para as novas correntes de pensamento: utilização de uma gramática humanista e novas traduções de Aristóteles, além do grego e do hebraico. Ali, passaria a dar aulas sob estas perspectivas inovadoras, constituindo-se o espaço da sala de aula em um lugar estratégico para a elaboração, inclusive, das 95 teses reformistas. Tornou-se doutor em Teologia, sacerdote, mas a crise insistia em não lhe abandonar. Até que, fi nalmente, lendo as Escrituras deparou-se com o versículo bíblico de Romanos, "o justo viverá pela fé". Ao tornar-se professor na Universidade de Wittenberg, passou a estudar a estudar a Bíblia com os seus alunos, discutindo temas teológicos decisivos, como por exemplo, o valor das indulgências para o perdão de pecados. No dia 31 de outubro de 1517, véspera do dia de “todos os santos” no calendário católico, o monge agostiniano, afi xou 95 teses na porta da igreja de Wittenberg, na Alemanha, apontando desvios teológicos, doutrinários e institucionais em que a Igreja Católica romana estava incorrendo, fato este que implicaria, posteriormente, na expulsão ou excomunhão deste sacerdote pela referida igreja. Não queria deixar a igreja, mas sim, reformá-la; porém, foi excomungado. Sendo perseguido, refugiou-se em um castelo por quase dez anos; ao ser excomungado pelo papa, estava, pois, criado o Protestantismo. Assista ao vídeo: Aula 2 - História do Cristianismo II / FTSA ] 10 min. Acesse o AVA para assistir ao vídeo! | História do cristianismo II | FTSA22 Saiba mais Debate para o esclarecimento do valor das indulgências pelo Dr. Martin Luther, 1517 Por amor à verdade e no empenho de elucidá-la, discutir-se-á o seguinte em Wittenberg, sob a presidência do reverendo padre Martinho Lutero, mestre de Artes e de Santa Teologia e professor catedrático desta última, naquela localidade. Por esta razão, ele solicita que os que não puderem estar presentes e debater conosco oralmente o façam por escrito, mesmo que ausentes. Em nome do nosso Senhor Jesus Cristo. Amém. 1 - Ao dizer: "Fazei penitência", etc. [Mt 4.17], o nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fi éis fosse penitência. 2 - Esta penitência não pode ser entendida como penitência sacramental (isto é, da confi ssão e satisfação celebrada pelo ministério dos sacerdotes) [...] 21- Erram, portanto, os pregadores de indulgências que afi rmam que a pessoa é absolvida de toda pena e salva pelas indulgências do papa. 22 - Com efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de uma única pena que, segundo os cânones, elas deveriam ter pago nesta vida. 23 - Se é que se pode dar algum perdão de todas as penas a alguém, ele, certamente, só é dado aos mais perfeitos, isto é, pouquíssimos. 24 - Por isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada por essa magnífi ca e indistinta promessa de absolvição da pena [...] 27 - Pregam doutrina humana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando [do purgatório para o céu]. 28 - Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, podem aumentar o lucro e a cobiça; a intercessão da Igreja, porém, depende apenas da vontade de Deus [...] 23História do cristianismo | FTSA | 52 - Vã é a confi ança na salvação por meio de cartas de indulgências, mesmo que o comissário ou até mesmo o próprio papa desse sua alma como garantia pelas mesmas. 53 - São inimigos de Cristo e do papa aqueles que, por causa da pregação de indulgências, fazem calar por inteiro a palavra de Deus nas demais igrejas. 54 - Ofende-se a palavra de Deus quando, em um mesmo sermão, se dedica tanto ou mais tempo às indulgências do que a ela [...] 81 - Essa licenciosa pregação de indulgências faz com que não seja fácil, nem para os homens doutos, defender a dignidade do papa contra calúnias ou perguntas, sem dúvida argutas, dos leigos [...] 90 - Reprimir esses argumentos muito perspicazes dos leigos somente pela força, sem refutá-los apresentando razões, signifi ca expor a Igreja e o papa à zombaria dos inimigos e desgraçar os cristãos. Exercício de Aplicação Tomando como exemplo a relação entre formação educacional e desafi os ministeriais em Martinho Lutero e tentando aplicar à nossa realidade, podemos dizer que: a) O itinerário acadêmico de Lutero mostra como os diversos conteúdos adquiridos e capacidades desenvolvidas contribuem para o colocar-se diante dos desafi os que se apresentam ao serviço cristão. b) As principais infl uências sobre o pensamento de Lutero vieram exclusivamente de suas experiências devocionais, mostrando que as contribuições de um itinerário acadêmico se limitam apenas às questões secundárias à fé. Acesse o AVA para fazer o exercício! | História do cristianismo II | FTSA24 3. Lugares, estratégias e repercussões do movimento reformador 3.1. Renascimento, humanismo e outros aspectos que contribuíram para a Reforma O movimento de Reforma, do século XVI não está circunscrito apenas às questões religiosas. Ele é parte de um contexto mais amplo, de abrangência política, ecônomica e cultural. Leia o texto a seguir para contextualizar estas abrangências:A Reforma também deve ser vista como uma parte da história da cultura. Parcialmente ela coincide com o Renascimento, iniciado na Itália já no século XIV. O século XVI é também período de humanismo. Grande parcela dos reformadores era humanista ou infl uenciada por essa corrente de pensamento. Melanchthon, Zwínglio e Calvino foram humanistas. Por outro lado, foram também representantes do Renascimento. Muitas vezes, é difícil separar humanismo e Renascimento. Aliás, Renascimento e humanismo são usados muitas vezes como sinônimo, ainda que nos apresentem o mesmo fenômeno sob perspectivas diferentes. É necessário cuidado quando se busca distinguir Renascimento, humanismo e Reforma, para não cair no erro tantas vezes feito, quando se aponta para a discussão entre Lutero e Erasmo em torno do livre e do servo arbítrio. As pessoas que afi rmam que Lutero rompe defi nitivamente com o humanismo, em 1525, com seu escrito De servo arbítrio, com o qual respondeu ao escrito de Erasmo, de 1524, De libero arbítrio diatribe, esquecem que Lutero recorreu em sua tese principal a ninguém mais do que humanistas italianos como Lourenço Valla. A teologia apresentada por Erasmo não era católica e também não pôde ser aceita por teólogos protestantes (Dreher, 1996, p. 11). Em termos culturais, estava em curso naquele momento, um processo chamado Renascimento, que representava mudanças nas artes, na ciência, nas formas de se conceber o mundo, ocorrido entre os séculos XIV e XVI, marcando a passagem do mundo medieval para o mundo 25História do cristianismo | FTSA | moderno. Teve início na Itália, mas espalhou-se posteriormente para outros lugares. A expansão das universidades, em tal período, representou um canal de difusão destas ideias renovadoras. O nome Renascimento quer expressar que naqueles dias a Antiguidade nascia de novo, renascia [...]. Mas o Renascimento não é apenas um retorno à Antiguidade, enquanto estudo das línguas e da literatura clássica. O Renascimento provocou um novo sentimento de vida. É simplista querer afi rmar que o ser medieval tenha estado completamente orientado no transcendente, enquanto que o ser humano do Renascimento tenha estado orientado no imanente. Certo é, porém, que a pessoa do Renascimento tinha uma posição distinta em relação às realidades do imanente. Acentuou a individualidade. História e técnica cresceram em importância. A sensibilidade para o belo, para o sensual fez parte do Renascimento ((Dreher, 1996, pp. 11-12). Simultaneamente, naquele período e contexto, surgia com evidência o Humanismo, enfatizando a centraliade do pensamento no ser humano, e não mais no sagrado, representado pela igreja medieval. Como um contraponto às ideias da igreja, que confi nava o ser humano ao controle dos dogmas e ritos, sem condições de por si decidir, o Humanismo revalorizava a liberdade, a racionalidade, a capacidade do ser humano de gerir suas próprias ações. Sob o ponto de vista religioso, o humanismo é multifacetado. Podemos notar isso no lema humanista ad fontes. O lema pode referir-se tanto á Antiguidade anterior ao cristianismo quanto à Antiguidade cristã. Paulo pode ser tão importante quanto Platão, e um pode ser usado para interpretar o outro. O estudo dos Pais da Igreja, a Patrística, estava tão presente quanto o estudo de Platão. Quando nos dias da reforma se fala da palavra de Deus como norma, a expressão pode signifi car tanto a Bíblia quanto o ensinamento dos Pais da Igreja [...] Praticamente todas as tendências da Reforma têm traços humanistas [...]. Há, isso sim, delimitações frente a determinadas tendências (Dreher, 1996, p. 12). | História do cristianismo II | FTSA26 Há um contexto político e econômico que favorece o avanço do movimento reformista. É bom recordar que a Europa havia saído recentemente de um sistema conhecido como Feudalismo, que subsistiu até o século XV, no qual se destacaram duas principais características: (1) a concentração de pessoas no mudo rural, na condição de servos nas terras concedidas pela Igreja e governadas por senhores feudais; (2) organização econômica voltada apenas à subsistência dos feudos, sustento do clero e da classe senhorial. Este sistema entrou em crise como resultado de guerras, epidemias e fome. Como solução social e econômica foram adotadas três principais estratégias: o êxodo rural, investimentos no comércio marítimo e organização política concentrada em novos Estados independentes, tendo príncipes como governantes, sob a tutela da igreja. Lutero e os demais líderes reformadores se valeram deste contexto para fortalecerem as ações reformistas. Os príncipes queriam maior autonomia administrativa e redução na carga de tributos que eram pagos à igreja de Roma, e por isso vários deles apoirarm Lutero na ruptura com Roma; camponeses viram inicialmente nas reformas luteranas a oportunidade de refazerem a vida no campo, sem a necessidade de aderirem ao êxodo rural, por isso muitos se juntaram inicialmente a Lutero, antes ainda de serem nominados de anabatistas; mais adiante, a ética protestante, que valorizava o trabalho e o lucro como dádivas divinas, não apenas impulsionou o comércio ultramarino, como também legitimou “o espírito do capitalismo” mercantil nascente nos países que aderiram à Reforma. A ética protestante e o espírito do capitalismo ajudaram-se mutualmente naquele momento. 3.2. A Reforma e as estratégias educacionais Outra importante estratégia dos reformadores foi a educação, visando alfabetizar e educar o ser humano, no sentido amplo do termo, para a transformação do novo mundo que acreditavam estar construindo a partir daquele momento. Após um longo período — a Idade Média — em que a educação, ou mesmo a alfabetização, foram privilégios de 27História do cristianismo | FTSA | poucos, Martinho Lutero escreveu diversos textos nos quais a temática da educação foi abordada, visando popularizar este alcane. Dentre estes textos, podem ser citados Aos prefeitos de todas as cidades da Alemanha sobre o dever de fundar e manter escolas, publicado em 1524; e Sermão sobre o dever de mandar os fi lhos à escola, de 1530. O primeiro texto, uma carta aberta, foi enviado aos cidadãos e autoridades como um grande apelo ao investimento na educação cristã dos jovens. Como não podia contar com o auxílio dos bispos e do papa, restavam às autoridades civis o empenho pela educação. Como o movimento reformista havia abalado a vida monástica como um “lugar de perfeição”, muitos pais estavam preferindo encaminhar os fi lhos para o trabalho no comércio nascente ao invés de mandá-los à escola. Como forma de persuasão, Lutero argumentava que, sem o auxílio dos meios pedagógicos e científi cos, os pais não teriam condições de educar corretamente os fi lhos. Discute também que os conselhos municipais, responsáveis pelo bem-estar dos cidadãos e da cidade, precisavam dispor de pessoas aptas, bem instruídas e sábias para a administração das decisões e encaminhamentos sociais. Somente por meio de uma boa e formal educação é que estes cidadãos seriam preparados. A carta é concluída com uma advertência de que as novas escolas fossem construídas com boas bibliotecas, com espaço devido para estudo e leitura, com representativas obras que auxiliassem no estudo das Escrituras, das línguas e das artes liberais. No segundo texto, Lutero defende a importância da educação para o futuro da igreja e da sociedade. Por meio da educação e da Escritura, o cristão seria capacitado a promover a cidadania e a sociedade mais justa. Motiva os pastores a continuarem insistindo na educação dos jovens. Destaca a ideia de que os pais que enviarem seus fi lhos à escola estarão colaborando como o próprio Deus, pois é Ele quem rege o mundo através destes dois poderes, a igreja e a educação. Ressalta também que os estudantes pobres não sejam desprezados; incentiva as pessoas a doarem recursos fi nanceiros para que todas as crianaças frequentassem à escola.| História do cristianismo II | FTSA28 Na visão reformista de Lutero, sem a leitura, a alfabetização e o conhecimento — particularmente das Escrituras bíblicas — o povo permaneceria sob o poder de estruturas eclesiais burocráticas. Para promover a libertação em seu sentido pleno, era preciso um processo educacional abrangente que capacitasse para a leitura e a escrita. Enfatiza a necessidade da educação deixar de ser inacessível para a maioria da população. Sugere a criação de escolas comunitárias, administradas e fi nanciadas pelos cidadãos: [...] Caros senhores. Anualmente é preciso levantar grandes somas para as armas, estradas, pontes, diques e inúmeras outras obras semelhantes para que uma cidade possa viver em paz e segurança temporal. Por que não levantar igual soma para a pobre juventude necessitada, sustentando um ou dois homens competentes como professores? (Lutero, 1995, p.305). No que se refere à metodologia, Lutero propõe uma escola baseada em ideais humanistas, opondo-se aos castigos, insultos e deboches da educação antiga. Repreensão e punições não eram maneiras amáveis de se educar; as crianças deveriam aprender através do lúdico. Segundo Thomas Giles (1987), o reformador sugeriu um método educacional que consistia, primordialmente, no estudo das Sagradas Escrituras e, por conseguinte, das línguas hebraica e grega. Outras matérias deveriam complementar, visando a boa instrução: história, matemática, música e canto. Em 1528, Lutero organizou um novo projeto curricular, dividido em três níveis: aos iniciantes, aos já instruídos e aos que já tiveram êxito. Os iniciantes aprendiam o alfabeto, o Credo e o Pai Nosso. Aos já alfabetizados se designava o estudo da gramática latina, poesia de Plauto e Terêncio, fábulas de Esopo e textos de Erasmo. O terceiro nível, concedido aos melhores alunos, era composto por música, textos de Virgílio e Cícero, gramática, dialética, retórica e formação religiosa (Giles, 1987, p.18-22; 120-121). Sob tais perspectivas, e benefi ciado pelo advento da imprensa, o povo desenvolveu gosto e hábito pela leitura, o que facilitou e popularizou os escritos do reformador. Segundo Marc Lienhard (1998, p.49), com o 29História do cristianismo | FTSA | movimento de reformas do século XVI, “pela primeira vez na história se operava uma aliança entre o material impresso e um movimento popular”. Os números são inaugurais: o Sermão sobre as Indulgências, por exemplo, vendeu 250 mil exemplares em quatro anos; o Manifesto à Nobreza Alemã vendeu 20 mil exemplares no ano de sua publicação. A tradução da Bíblia para o alemão contribuiu para a sistematização desta língua, de modo que passaram a existir uma gramática e um léxico. Conforme destacado por Alvori Ahlert (1996, p.49), a criação do Catecismo Menor contribuiu para a popularização da educação, visto que serviu de livro de alfabetização até o fi nal do século XVII. Outro aspecto da infl uência do movimento da Reforma atingiu o culto. O uso de imagens como elemento de veneração no culto cristão tem origens nos primórdios do cristianismo medieval. A partir da liberdade religiosa proporcionada pelo imperador Constantino, e pela ofi cialização do cristianismo como religião do Estado, pelo imperador Teodósio, ainda no século IV, houve grande afl uência de novos adeptos à fé cristã. Muitos destes eram adoradores de deuses pagãos com altares adornados de imagens e ícones de devoção. Sem experimentarem uma conversão genuína e sem uma doutrinação bíblica devida, parte destes novos cristãos optou por conciliar antigos costumes sagrados com o novo culto. Desse modo, nos altares de antigos deuses foram gradativa e sutilmente sendo introduzidas imagens de líderes cristãos, confi gurando um sincretismo entre cristianismo simbolismos pagãos. Muitos destes deuses antigos eram protetores das cidades; em seus lugares cristãos colocaram imagens de santos protetores, conhecidos até hoje como “padroeiros” das cidades. No período medieval, estes altares, muitos deles domésticos, foram adornados com relíquias (objetos sagrados) trazidos da Terra Santa (hoje Israel e Palestina). Muitos destes objetos eram venerados pela crença em seus poderes miraculosos. Nem todos os cristãos medievais concordavam com isto. Surgiram, inclusive, movimentos iconoclastas. A palavra iconoclastia ou | História do cristianismo II | FTSA30 iconoclasmo vem do grego εικών (eikon) que signifi ca ícone, imagem, e κλαστειν (klastein), que signifi ca quebrar. Desse modo, etimologicamente o termo signifi ca "quebrador de imagem". Um dos primeiros movimentos iconoclastas veio de fora da igreja: surgiu com os mulçumanos no século VII d.C., que orientados pela pregação de Maomé, atacavam igrejas cristãs e destruíam as imagens nela existentes Por infl uência deste contexto, surgiu um forte movimento político-religioso iconoclasta na região de governo do Império Bizantino (parte sobrevivente do antigo Império Romano, no Oriente). Estes cristãos acreditavam que as imagens sacras seriam ídolos e a veneração e o culto de ícones, por conseguinte, uma idolatria. Esse movimento ocorreu durante os séculos VIII e IX. Em razão disto, as igrejas daquela região, conhecida a partir do ano 1054 como Igreja Ortodoxa, retiraram as imagens dos seus templos, inserindo em seu lugar apenas pinturas e símbolos. A pregação da Reforma gerou interpretação pelos ouvintes por vezes carregadas de intolerância em relação às ideias ou práticas que se apresentavam como “diferentes”. Isto acabou levando a comportamentos radicais, inclusive quanto às expressões artísticas e símbolos culturais do período. Debates e tensões ocorreram em relação ao biblicismo e às manifestações simbólicas. As ações iconoclastas atingiram não apenas as imagens religiosas, mas também a música e a arte. Em razão disto, o culto cristão reformando fi cou bastante centralizado na Palavra, como linguagem única, rejeitando a comunicação que possa se comunicar por símbolos. No contexto atual, tem ocorrido com certa frequência comportamentos iconoclastas. No vídeo que mostraremos a seguir, há um episódio que ganhou notoriedade no contexto brasileiro, envolvendo evangélicos e uma imagem de devoção popular. Um acontecimento que foi veiculado pela TV em rede nacional, ocasionando grande polêmica, episódio que fi cou conhecido como “chute na santa”. 31História do cristianismo | FTSA | Assista ao vídeo reportagem do Jornal Nacional: Bispo Sergio Von Helde chutando a imagem de N. S. Aparecida. Acesse o AVA para assistir ao vídeo! Exercício de Reflexão Assista o vídeo que fala sobre a destruição de terreiros de culto de matriz africana, por evangélicos, e sua reconstrução por outros evangélicos (https://www.youtube.com/watch?v=Qco-71blqZ8) Em seguida, construa um texto de refl exão considerando as seguintes questões: 1) Que avaliação é possível fazer sobre o comportamento dos evangélicos que destruíram o local de culto de matriz africana? 2) Que avaliação é possível fazer sobre o comportamento dos evangélicos que reconstruíram o local de culto de matriz africana? 3) A Reforma do século XVI traz alguma mensagem de “tolerância” para as práticas atuais? Bibliografi a AHLERT, Alvori. Modernidade. Ijuí: Inijuí, 1996. BOURDIEU, Pierre. Leitura: uma prática cultural. In: CHARTIER, Roger (org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. CALVINO, João. Apud WILES, J. P. As institutas da religião cristã – um resumo. São Paulo: PES, 1984. CAVALCANTI, Robson. Cristianismo e política. São Paulo: Nascente, 1985. | História do cristianismo II | FTSA32 DREHER, Martin. A crise e a renovação da Igreja no período da Reforma. Vol 3. São Leopoldo: Sinodal, 1996. ECLÉSIA. Rio de Janeiro, ano 9, ed. 97, 2004. LIMA, Eber F. Silveira. Paulo, os pré-reformadores e nós: meditação a propósito dos 471 anos da Reforma Protestante. Londrina – PR: NP, 1988. LITURGIA LUTERANA. Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia, 1987. PROENÇA,Wander de Lara. Cruz e ressurreição: a identidade de Jesus para os nossos dias. Londrina: Descoberta, 2001. PROENÇA, Wander de Lara. De “casa de profetas” a seminários teológicos: a preparação vocacional em perspectiva histórica. In: BARRO, Antonio Carlos; KOHL, Manfred (orgs.). Educação teológica transformadora. Londrina: Descoberta, 2004. THOMAS, Keith. Religião e declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. GILES, Thomas R. História da educação. São Paulo: EPU, 1987. Leituras complementares: DREHER, Martin. A crise e a renovação da Igreja no período da Reforma. Vol 3. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 53-57. 33História do cristianismo | FTSA | UNIDADE II – A reforma protestante e seus movimentos Nos próximos tópicos, desta unidade, conheceremos melhor o contexto dos acontecimentos reformistas, as estratégias utilizadas, os personagens que protagonizaram ações de mudanças, as repercussões e reações ao movimento de Reforma, no século XVI. Veremos que, não obstante a fi gura de Lutero ser diretamente associada àqueles episódios — por sua liderança e ação impactante com a publicação das 95 teses, que se constituíram um marco muito simbólico das mudanças — evidentemente ele não está sozinho neste processo. Ao seu lado, há um número expressivo de outros personagens que ansiavam por transformações e foram protagonistas em diferentes lugares, usando variadas estratégias para que os objetivos de Reforma fossem alcançados. Destacam-se, por exemplo, de Philipp Melanchthon, Ulrico Zwínglio, Erasmo de Roterdã, João Calvino, dentre outros. Todos estes líderes tiveram em comum, e nisto reside o êxito das reformas e mudanças, o uso da leitura da Bíblia como regra de fé e prática. O papel da leitura foi, portanto, elemento decisivo e determinante. Conheceremos, também, que os movimentos de Reforma em dados momentos assumiram rumos violentos, desencadeando confl itos, guerras e até aplicação de penas de morte, ocasionando martírios entre cristãos membros de grupos antagônicos, que buscavam mudanças na igreja, mas que não souberam lidar com a tolerância ao “outro” que agia ou pensava de modo diferente. Por fi m, também veremos que o catolicismo romano não assistiu passivamente ao avanço do protestantismo. Empreendeu reações, destacando-se como um marco de seu posicionamento a realização do Concílio de Trento, também conhecido como Contra-Reforma, que durou cerca de 18 anos. Conheceremos as principais resoluções que ali foram aprovadas e que marcariam a identidade católica pelos séculos subsequentes. | História do cristianismo II | FTSA34 1. Líderes e movimentos de Reforma Nos movimentos de reforma do século XVI se destacaram outros personagens, além de Martinho Lutero. Felipe Melanchthon, por exemplo, era um humanista, considerado “Professor da Alemanha”, por ter sido importante pedagogo que contribuiu diretamente para a valorização da educação como um braço da Reforma Protestante; é autor de livros e textos, além de ser um dos redatores da confi ssão de fé luterana, conhecida como “Confi ssão de Augsburgo”, elaborada em 1530. Outro personagem é Erasmo de Roterdã, escritor holandês e teólogo agostiniano, que se tornou importante propagador das ideias humanistas. Tinha um grande respeito pessoal por Lutero e uma simpatia pelos pontos principais da crítica luterana à Igreja. Lutero sempre se referia a Erasmo com respeito pelo seu conhecimento teológico e esperava dele obter cooperação no trabalho reformista. Na troca de correspondência inicial, Lutero expressou admiração por tudo o que Erasmo tinha feito pela causa de um cristianismo saudável e razoável, encorajando-o a se unir ao movimento. Entretanto, Erasmo não via a saída ou ruptura com a Igreja romana como o caminho ideal; queria nela permanecer para modifi cá-la. Quis evitar alguma hostilidade em relação à organização institucional, ainda que buscasse meios de aplicar seus conhecimentos na purifi cação da doutrina católica. A seguir, veremos com mais detalhes um outro importante líder daqueles acontecimentos. 1.1. Ulrico Zwínglio Ulrico Zwínglio é quem inicialmente estabeleceu a Reforma na Suíça de língua alemã. Por causa de algumas divergências teológicas com Lutero, as igrejas sob sua liderança e pastoreio, que diziam ser suas fi lhas espirituais, passaram a se chamar “reformadas”, para se diferenciar das que eram “luteranas”. 35História do cristianismo | FTSA | Leia, como introdução, e a título de curiosidade, o texto no box a seguir: Saiba mais A Faculdade Teológica Sul Americana fi ca na esquina das ruas Martinho Lutero e Ulrico Zwínglio, na Gleba Palhano, em Londrina. Apesar de nunca se debater intencionalmente a intersecção teológica de Lutero e Zwínglio, neste ano em que se celebra os 500 anos da Reforma, não deixa de ser sugestivo e pertinente relembrar que na história da Reforma, de fato, houve um, e único, encontro entre Lutero e Zwínglio na tentativa de aproximar dois importantes e independentes movimentos reformadores, e indagar sobre o sentido desse encontro e o que isso pode representar para a continuação do debate teológico em torno da presença de Cristo no sacramento, na igreja e na sociedade (Lane, 2014, p.60) Há autores que estabelecem uma principal diferença entre Lutero e Zwínglio: enquanto para Lutero a motivação para Reforma foi muito mais religiosa, para Zwínglio teria sido muito mais intelectual. O escritor Thomas Lindsay, por exemplo, afi rma que Até em idade bem avançada a questão da piedade pessoal [de Zwínglio] não parecia perturbá-lo, e ele nunca foi como Lutero e Calvino, o tipo de homens que são líderes de um avivamento religioso. Ele se tornou reformador porque era um humanista, que gostava da teologia de Agostinho (apud Lane, 2014, p. 61). Saiba mais sobre quem foi Zwínglio e seu posicionamento teológico nas palavras de Justo Gonzales: Zwínglio, por outro lado, tinha sido ordenado padre em 1506 e por vários anos pastoreou a paróquia de Glaurus até ser transferido para Zurique em 1519. Zwínglio era um estudioso e provavelmente o mais humanista | História do cristianismo II | FTSA36 dos reformadores. Foi através de seus estudos que passou questionar práticas da igreja. Em 1516, quando Erasmo de Roterdã publicou o Novo Testamento Grego, Zwínglio teve um encontro com ele e leu todo o NT em grego. Como cura (clérigo, pároco) da cidade de Zurique, na Suíça, iniciou uma série de leituras e pregações sobre o evangelho de Mateus e passou a criticar o jejum, a abstinência, o celibato, a doutrina do purgatório e outros aspectos doutrinários (Klein, 2014, p. 64). Diferentemente de Lutero, que defendia que as práticas e tradições da igreja que não contradissessem as Escrituras podiam ser mantidas, Zwínglio defendeu uma Reforma eclesiástica baseada no princípio de que tudo o que não fosse explicitamente expresso nas Escrituras tinha de ser abolido (1983, p. 93). A história registra que, não obstante as particularidades do contexto político e religioso da Alemanha e da Suíça, onde viviam Lutero e Zwínglio, das características próprias de cada um e da independência dos movimentos reformadores, houve uma tentativa de aproximação dos movimentos liderados por estes dois reformadores. O encontro dos dois se deu por meio de um debate que foi conhecido por Colóquio de Marburgo. O encontro foi convocado por Filipe I para tratar das diferenças entre Lutero e Zwínglio sobre a presença de Cristo na Ceia ou Eucaristia e outras questões. No entanto, essa tentativa de aproximação de Wittenberg e Zurique não resultou numa síntese e unidade dos dois importantes movimentos reformadores da época. Pelo contrário, apesar de concordarem com 14 dos 15 artigos sobre a fé cristã, não chegaram a um consenso sobre a presença de Cristo na Ceia. Isso foi o sufi ciente para mantê-los à parte (Lane, 2014, p.61). 37História do cristianismo | FTSA | A diferença básica entre os dois posicionamentos, em relaçãoà Ceia eucarística, pode ser resumida nos seguintes termos: para Lutero, havia uma presença espiritual de Cristo nos elementos do pão e do vinho, posição esta que é denominada de consubstanciação; para Zwínglio, o pão e o vinho na celebração eucarística eram apenas um memorial da morte e paixão de Cristo (“fazei isto em memória de mim”), ou seja, ele não se fazia presente por meio dos elementos. Glossário Transubstanciação eucarística: concepção do catolicismo, segundo a qual, o pão e o vinho se transformam em corpo e sangue de Cristo na cerimônia da Ceia (um novo sacrifício se repete). Consubstanciação eucarística: concepção luterana, segundo a qual, há apenas uma presença espiritual de Cristo por meio dos elementos do pão e vinho (a presença espiritual está consubstanciada aos elementos materiais) Memorial eucarístico: concepção zwingliana e calvinista, segundo a qual, o pão e o vinho são apenas lembranças ou memória de Cristo em sua morte salvífi ca (os elementos apenas representam a presença de Cristo) 1.2. Thomas Müntzer e os anabatistas O anabatismo foi um movimento liderado pelo teólogo e também camponês, Thomas Müntzer, no contexto da Reforma do século XVI. Foi característica enfática deste movimento a leitura e interpretação literal de textos bíblicos. Esse movimento assumiu perspectivas de maior radicalidade em relação aos perfi s de mudanças propostos por outros líderes daquele período, como Lutero, Zwínglio e Calvino. Müntzer e seus | História do cristianismo II | FTSA38 seguidores, que eram camponeses, buscavam rupturas mais contundentes, como por exemplo, a distribuição comunitária da terra, sem que ninguém fosse dela proprietário. Fundamentaram tal perspectiva na leitura bíblica: nos textos referentes ao período dos juízes, em que a terra de Canaã foi distribuída entre as tribos; também no texto de Atos 2:44,45 que afi rma: “Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens [...]”. Pregavam uma grande renovação que culminaria com intervenção divina para o estabelecimento de um reino milenarista, a ser instaurado em favor dos eleitos. Podemos dizer, grosso modo, que os anabatistas foram “fi lhos bastardos da reforma”, não para reforçar o teor pejorativo dessa declaração, mas para destacar o lado crítico e periférico de sua relação com os demais movimentos reformadores. Enquanto “fi lhos da reforma”, os anabatistas endossaram alguns dos preceitos nela estabelecidos, como o do apreço pela autoridade das Escrituras. Segundo Earle Cairns (1995, p. 248), “a insistência de Zwínglio na Bíblia como fundamento da ação dos pregadores encorajou a formação de conceitos anabatistas baseados na Bíblia”. Cedo, porém, eles fi caram conhecidos mais por suas discordâncias do que por pontos de concordância com a Reforma. O princípio de sola Scriptura não era mais sufi ciente, especialmente quando, na prática, não havia sido capaz de confrontar certas estruturas temporais. Um aporte mais radical começou a ser desejado por alguns espíritos menos conformados. Conforme o olhar de Bard Thompson, eles começaram a suspeitar da idéia de um corpus Christianum em torno do qual toda a sociedade, inclusive os “mornos na fé”, seria reunida. Também passaram a duvidar da integridade da “Reforma Magisterial” (mais focada no ensino), qual seja, a de Lutero, Zwínglio, Calvino ou da Igreja da Inglaterra, no qual o papel dos ministros não muito se diferenciava do papel do padre na Igreja Católica (centralizador), e em que a autoridade secular (Estado) seria uma expressão da divina providência sobre a criação. O primeiro foco de aparecimento desse descontentamento se deu na Suíça, talvez em função da, até então, ligeira liberdade civil e religiosa 39História do cristianismo | FTSA | que se encontrava no país. No início, associaram-se a Zwínglio por sua ênfase na autoridade das Escrituras e pela reforma social mais ampla por ele proposta. Depois entenderam que seu endosso ao ensino primitivo do batismo infantil, bem como sua prudência, patriotismo e “atraso” (do ponto de vista dos descontentes) em relação a mudanças mais radicais eram um impedimento sério para o avanço da reforma em outras frentes, como a abolição da missa, o uso de imagens e o papel das autoridades em questões religiosas. Assim, por volta de 1523, concluíram que a liderança de Zwínglio era um tanto quanto “conservadora”, resolvendo dele se afastar, não somente nas idéias, como na prática (Walker, 1981, p. 40). Começaram se reunindo em pequenas convenções para estudo da Palavra, ou nas casas onde se tinha maior liberdade para a pregação e um discipulado pessoal. Assim, no outono de 1524, Grebel e seus correligionários passaram a rejeitar a coleta dos dízimos, que eram recolhidos pelo Estado para suporte dos ministros e outras questões, e, principalmente, aboliram o batismo infantil de seu meio. Para os anabatistas, o batismo era o distintivo do discipulado e compromisso cristão. E como somente um adulto seria capaz de se comprometer de tal maneira, então somente o batismo adulto poderia ser legítimo. (Menezes, 2014, p.33-34) O movimento Anabatista envolveu questões não apenas religiosas, em relação à Igreja Romana e mesmo quanto à Igreja que nascia com a Reforma; a pregação deles tinha também implicações sociais: eram camponeses que desejavam o direito de viverem integrados à terra onde trabalhavam, alegando que o mundo criado pertence a Deus, não devendo portanto ser propriedade de senhores ou príncipes, os quais, em razão disto, também não poderiam cobrar tributos pelo que na terra era produzido; a pregação anabatista tinha implicações políticas: questionavam o poder de reis e príncipes, pois o governo a ser instaurado em breve na Terra, de acordo com suas interpretações escatológicas, seria de natureza Teocrática (um governo de Deus). Com este cenário confl ituoso, “não tardaria para que se iniciasse uma verdadeira ‘caça às bruxas’ em relação aos anabatistas” (Menezes, 2014, p. 34). | História do cristianismo II | FTSA40 Saiba mais Perseguição e martírio Em 7 março de 1526, o conselho municipal de Zurique publicou um edito no qual se previa a prisão e morte daqueles que praticassem os atos de rebatismo. Em 19 de novembro do mesmo ano, o conselho aprovou uma nova lei, que não somente condenava à morte os praticantes do rebatismo, como estendeu tal pena aos que pregassem ou simplesmente atendessem às pregações anabatistas. Conrado Grebel, que fora um dos primeiros líderes do movimento, faleceu na prisão no verão de 1526, vítima da peste. Experimentou o princípio da perseguição e capturas, mas não do martírio (assassinato). Já Félix Manz não teve a mesma “sorte”. Como primeiro mártir do movimento anabatismo, morreu afogado no rio Limmat em 5 de janeiro de 1527. Alguns pesquisadores viram nesse tipo de morte, que se seguiu em muitos outros casos de martírio anabatista, um tipo satírico, como se os algozes dissessem: “Gosta de água? Então, toma!”. Conforme se intensifi cava a perseguição, a tendência de alguns grupos anabatistas foi a de se exilar em outras regiões que, ao menos de início, se mostravam mais tolerantes. Blaurock, por exemplo, por não ser cidadão de Zurique, foi condenado ao exílio perpétuo, após ter sido açoitado pelas ruas da cidade. Caso similar foi o de Baltasar Hubmaier, sacerdote de um povoado austríaco chamado Waldschut, que, depois de ter (re)batizado sua paróquia quase inteira, teve de se exilar “voluntariamente” na região da Moravia, mais precisamente em Nicolsburgo. Após vivenciar problemas, como a controvérsia local entre os anabatistas não violentos e outros, sob a liderança de Hans Hut, que apregoava a não obediência à violência e o pegar em espadas se preciso fosse, Hubmaier foi capturado, conduzido a Viena e, depois de sessões de tortura e interrogatório, foi condenado por heresia e sedição e queimado vivo em praça pública. Sua esposa foi afogada poucosdias depois (cf. Byler, 2000, p. 05; Driver, 2000, p. 08) (Menezes, 2014, pp. 36-37). 41História do cristianismo | FTSA | Perseguido, o movimento se expandiu e na cidade de Zwickau se juntou a um outro ramo anabatista, acentuadamente carismático e totalmente leigo. Seus membros, com interpretações bíblicas bem peculiares, diziam ter experiências diretas com o Espírito Santo e pretendiam erigir o reino de Deus eliminando todos os não-crentes. Sob tal infl uência, Müntzer se sentiu chamado a fundar a Nova Igreja Apostólica. Guiado por interpretações de profecias do livro de Daniel, Müntzer entendeu, no ano 1525, que a hora do novo reino era chegada. Passou a convocar o povo para a “luta do Senhor”, para a guerra santa. Mobilizou inúmeros camponeses que não se furtaram a pegar em armas (espadas) com intuito de apressar o grande advento mediante a “batalha do Armagedom”, o que culminou em violenta guerra religiosa. Müntzer ordenou, na partida para a batalha, que levassem uma grande bandeira branca, na qual estava desenhado o arco-íris, sinal da aliança de Deus com os eleitos. Enquanto proferia sua última pregação, apareceu no céu o arco-íris. Era o sinal que faltava da bênção divina para aquela hora fi nal. Na batalha morreram milhares de camponeses. Müntzer foi aprisionado, torturado e decapitado em 27 de maio de 1525. Suas últimas palavras foram de apelo à leitura bíblica: “leiam o livro dos Reis”. Sufocado, por um tempo, entre 1533-1535 o movimento ressurgiu em outras regiões da Alemanha, ocasionando, inclusive, a tomada de uma cidade e a implantação do que seria um novo reinado davídico na Terra. O novo líder era Melchior Hoffman, refugiou-se em Estrasburgo se dizendo o novo Elias. Anunciava o fi m do mundo para 1533, dizendo que Estrasburgo seria a Nova Jerusalém. Foi perseguido, fugiu, mas no ano marcado voltou para ver o fi m do mundo. Foi então preso, onde permaneceu até morrer em 1543. Houve um sucessor, Jan de Leyden, alfaiate. Com o auxílio de anabatistas tomou a cidade de Munster, em 1534. Proclamou-se rei da Nova Sião. Dizia-se o terceiro Davi. Implantou três práticas: a comunhão de bens; ritos do Antigo Testamento; poligamia. Depois de uma revolta católica, a cidade foi invadida e os líderes anabatistas mortos. | História do cristianismo II | FTSA42 Na Holanda, ramifi cações anabatistas ressurgiram sob a liderança de Menno Simons (1496-1561), dando origem ao movimento Menonita, ou dos “Irmãos Menonitas”, progenitores da futura igreja Batista que surgiria na Inglaterra, no século XVII. Diante de tantas perseguições e ameaça de extinção, o grupo dos anabatistas fi cou mais uma vez disperso pelas muitas regiões por onde havia se espalhado. Um dos grupos que conseguiu sobreviver foi o dos Menonitas. Esse nome foi derivado de seu líder e responsável pela “renascença do Anabatismo”, o holandês Menno Simons (1496-1561). Menno serviu como sacerdote católico em sua terra natal, Friesland ocidental, até que se convenceu de que essa Igreja, Lutero, Zwínglio e Calvino estavam errados, especialmente no consenso quanto ao batismo infantil, e que apenas o batismo adulto tinha base nas Escrituras. Foi então batizado (renunciando sua matriz católica) e passou a atuar como ministro anabatista. Segundo Thompson (1996), Menno foi o maior teólogo da tradição anabatista, defendendo um anabatismo biblicamente fundamentado, e tendo publicado em 1540 sua obra “Fundação da Doutrina Cristã”, que serviu como meio de estabelecimento de sua autoridade perante os anabatistas no norte da Europa. Devido à perseguição e ameaça de morte, viveu na clandestinidade por muito tempo, tendo de se mudar várias vezes, embora tivesse esposa e fi lhos; passou por Bélgica, Dinamarca e Polônia, ajudando a organizar comunidades ali. E, de acordo com Byler (2000, p. 07), apesar dos 100 fl oríns (moeda holandesa na época) oferecidos em ouro por sua cabeça, “Menno foi um dos únicos anabatistas de sua geração que morreu em sua própria cama, já idoso. Sua mulher e seus três fi lhos não puderam sobreviver à dureza da vida de pródigos”. (Menezes, 2014, pp. 38-39) 2. Grupos e contexto social da Reforma Neste tópico, destacaremos dois grupos sociais que marcaram o contexto da Reforma no século XVI: os judeus e as mulheres. 43História do cristianismo | FTSA | 2.1. Os judeus Os judeus eram alvo de hostilidade no mundo medieval cristão. O antijudaísmo, que se estendeu até o período da Reforma, atingira proporções amplas naquela sociedade. Segundo o historiador Jean Delumeau (1989, p.279), eram acusados de “Usurários ferozes, sanguessugas dos pobres, envenenadores das águas bebidas pelos cristãos”. Vistos como pessoas rejeitadas por Deus por negar Jesus e crucifi cá-los; acusados de deicidas (os que “mataram Deus”); denunciados pelo assassinato ritual de jovens cristãos em rituais, inclusive crianças, também de profanação da hóstia eucarística —vilipendiavam a hóstia no intuito de derramarem novamente o sangue de cristo, matando-o novamente —; suspeitos de envenenarem poços de água. O IV Concílio de Latrão, realizado em 1215, exigiu, por exemplo, que os judeus usassem distintivos amarelos para serem facilmente identifi cados; tiveram que concentrar sua habitação em burgos (regiões separadas ou segregadas). Eram discriminados e foram expulsos de vários países. No período da Idade Média Tardia e início da Moderna fl oresciam vários temores e várias acusações contra os judeus, que em dados momentos foram colocados à margem da sociedade. Essas acusações fi zeram com que medidas anti-judaicas tomassem moldes mais violentos, o que gerou a morte ou expulsão dos pertencentes a este grupo social de vários territórios. [...] No fi m da Idade Média e início da Idade Moderna aumentaram as acusações contra os judeus e o medo que se tinha deles esteve mais presente em âmbito religioso, uma vez que foi muito alimentado pela Igreja; esta desempenhou grande esforço em provar sua forte dominação frente ao judaísmo, por isso houve tentativas de destruir todas as bases de religião judaica, assim como todos os seus praticantes, feitas através de expulsões, mortes e todas as maneiras de segregação (Silva, 2014, p. 36,39). O pesquisador Carter Lindberg afi rma que “Inicialmente Lutero se afastou do legado antijudaico da Idade Média. Em seu panfl eto Que Jesus Cristo foi um judeu nato, de 1523, ele enfatizou que Deus honrou os judeus | História do cristianismo II | FTSA44 acima de todos os povos e que por isso, os cristãos deveriam tratar os judeus de modo fraterno” (2001, p.435). Em seus primeiros escritos, Lutero defendeu os judeus, considerando-os como parte de um projeto divino, enxergando uma possibilidade de convertê- los à fé cristã, devendo por isso serem levados amorosamente a Cristo. O primeiro escrito analisado é também o primeiro que foi redigido por Lutero: Que Jesus Cristo foi um judeu nato, de 1523. Nesse texto ele está escrevendo em prol dos judeus e usa de vários argumentos para defendê-los. Foi escrito com a fi nalidade de apresentar uma defesa frente a alguns rumores que haviam sido levantados sobre ele. Isto é o que ele começa dizendo no texto, e também diz que aproveitará desse texto para escrever algo de útil: Uma vez que para o bem dos outros, no entanto, sou obrigado a responder a essas mentiras, eu pensei que eu iria também escrever algo de útil, além disso, para que eu não vá roubar o tempo do leitor com tal negócio sujo (Lutero, [S.l.: s.n., 15--]). Em seguida ele dá início aos vários de seus argumentos em defesa dos judeus. Primeiramente, ele demonstra a esperança de converter alguns deles e tece uma crítica ao papado, chegando a afi rmar que: “Se eu tivesse sido um judeu e tivesse vistos esses imbecis e idiotas governarem e ensinar a fé cristã, eu preferiria ter me tornado um porco do que um judeu” (Ibid.). No fi nal ele oferece conselhos de como lidar com os judeus, sempre de forma positiva, e afi rma que os
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