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Teoria Avançada das Relações Internacionais Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Carlos Henrique Canesin Revisão Textual: Caique Oliveira dos Santos A Transição dos Clássicos aos Científi cos: o Segundo Debate A Transição dos Clássicos aos Científicos: o Segundo Debate • Compreender, a partir da discussão ontológica das teorias clássicas, o conceito de ciência positivista e o Segundo Debate das relações internacionais, opondo a perspectiva episte- mológica clássica ao positivismo científico das teorias modernas das relações internacionais – especialmente refletido no debate entre o realismo clássico e o neorrealismo. OBJETIVO DE APRENDIZADO • Os Clássicos; • O Segundo Debate: a Vitória do Positivismo. UNIDADE A Transição dos Clássicos aos Científicos: o Segundo Debate Os Clássicos Realismo Clássico A célebre obra Guernica, de Pablo Picasso, representa o bombardeio da cidade de Guernica durante a guerra civil espanhola. Figura 1 – Guernica (1937), de Pablo Picasso, óleo sobre tela. Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madri, Espanha Fonte: wikiart.org O realismo clássico constrói uma ontologia pessimista das relações internacionais, projetando uma imagem do mundo de competição contínua entre os Estados sobera- nos, onde as relações internacionais são caracterizadas por relações de poder, impe rando a coerção com o uso ou a ameaça mediante a força na busca dos objetivos ou inte resses dos Estados. Assim, considerações éticas, morais ou de justiça, em suas acepções comuns, não são parte da política internacional. • Poder: trata-se de um atributo transitivo caracterizado pela capacidade que um ator A possui de fazer com que o ator B se comporte da forma desejada por A, independente- mente dos interesses de B (BOBBIO et al., 1998, p. 933-943); • Soberania: indica o poder de mandato de última instância em uma hierarquia política dentro da sociedade ou do Estado, onde o poder soberano se sobrepõe a todos os demais poderes e não se submete a nenhum outro poder, não existindo soberania ou poder aci- ma da soberania do Estado (BOBBIO et al., 1998, p. 1.179-1.188); • Anarquia: ausência de governo ou hierarquia nas relações entre atores dentro de uma sociedade ou domínio político (BOBBIO et al., 1998, p. 23-29). Dessa forma, apenas a força (o poder) pode conter a força. Não há razão ou ética contra o fio da espada. E o poder precisa ser exercido ou projetado, como estabelecido na célebre frase do chanceler alemão Otto von Bismarck (18151898) de que a única coisa que não se pode fazer com uma espada é sentarse sobre ela. Quanto à causa imediata desse estado de coisas, tratase do medo. Medo de ser atacado. Medo de perder espaço ou ativos importantes para o crescimento, o desenvolvimento ou mesmo a sobrevivência do Estado. Esse medo, na visão realista clássica, é justificado 8 9 pela própria organização social e política humana, motivada pela premissa de que a natu- reza humana é má. Essa posição metafísica sobre a causa da competição e da guerra nas relações interna cionais pode ter suas bases traçadas, grosso modo, a partir de duas tradições ou visões epistemológicas que coabitam o pensamento realista clássico no início do século XX. A primeira pode ser caracterizada como uma visão eminentemente racionalista e traçada a partir do desenvolvimento e da influência do pensamento greco-romano desde Tucídides até Maquiavel. A segunda, por sua vez, assentase em premissas epis temológicas empiristas e terá sua máxima expressão no pensamento contratualista, cujo principal expoente dentro da tradição da realpolitik é Hobbes. A cisão radical entre racionalistas e empiristas – e, dentro dos últimos, entre tradi cionalistas e positivistas – viria a ocorrer apenas no pósSegunda Guerra Mundial, o que será nosso tema mais adiante nesta Unidade ao discutirmos o Segundo Debate das relações internacionais. Dentro do pensamento clássico, no entanto, as visões raciona listas e empiristas coabitam bem o mesmo espaço a partir de uma posição metodológica tradicional e de uma filosofia política, em última instância, de base metafísica, conforme discutimos em outro momento dos nossos estudos. Inaugurando a primeira corrente dentro da tradição realista clássica, temos a obra His- tória da Guerra do Peloponeso (2001 [400 a.C.]), do general ateniense exilado Tucídides (460 a 400 a.C.), que produziu o que se considera o primeiro registro escrito da tradição realista das relações internacionais. Mais do que relatar os eventos ocorridos durante o con flito, o objetivo de Tucídides era inquirir, por meio da obra, acerca da natureza da guerra em si, e não de um conflito em particular, expondo suas razões e recorrências. Assim, o general ateniense, que também era historiador, procura separar os eventos ou motivos apontados pelos líderes políticos da época como razões para o conflito, considerados por ele superficiais, e busca compreender quais seriam os fatores mais profundos, que operariam ao longo do tempo e da história, os quais seriam os reais produtores do fenômeno na guerra. A partir de suas observações, Tucídides chega à conclusão de que a guerra teria sido causada pelo crescimento do poder ateniense na Península Helênica e pelo medo de Esparta de que esse crescimento pudesse trazer consequências negativas para o próprio poder e a sobrevivência de Esparta. A incerteza e o medo seriam, portanto, não apenas as causas da Guerra do Peloponeso mas também das guerras em geral. De acordo com Tucídides, tudo se resumiria à distribuição ou ao balanço de poder e aos interesses dos Estados, tendo em vista que, nas relações internacionais, os Estados não se subordinam uns aos outros e podem buscar seus próprios interesses por meio do uso da força. Ademais, aqueles que detêm a força ou o poder não se restringem pela honra ou justiça, apenas pela sua própria capacidade de levar adiante seus interesses. Isso denota a capacidade de os seres humanos agirem de forma egoísta e causarem o mal, bastando que tenham o poder para fazêlo e, assim, levar adiante seus próprios interesses ou objetivos. Conforme Tucídides nos apresenta na famosa passagem de sua obra intitulada de “Diálogo Mélio”: 9 UNIDADE A Transição dos Clássicos aos Científicos: o Segundo Debate (...) 89. (...) Preferimos pensar que esperais obter o possível diante de nossos e vossos sentimentos reais, pois deveis saber tanto quanto nós que o justo, nas discussões entre os homens, só prevalece quando os interesses de ambos os lados são compatíveis, e que os fortes exercem o poder e os fracos se submetem. Tucídides – História da Guerra do Peloponeso: Diálogo Mélio. Disponível em: https://bit.ly/2XcruK8 Seguindo, inclusive de forma autoproclamada, nessa corrente, o diplomata florentino exilado Nicolau Maquiavel (14691527), em sua obra O Príncipe (2010), de 1532, estabelece um inquérito sobre a sobrevivência e a segurança do Estado, tanto domés tica quanto externa. Seu objetivo era constituir um manual prático para o governante, o príncipe, sobre como ganhar, manter e expandir seu poder e, assim, garantir a sua própria sobrevivência e a do Estado. O Estado e o governante são um só, e o último age em nome do primeiro, sendo o principal dever do príncipe garantir a segurança do Estado. Em virtude disso, governantes e súditos são regidos por sistemas éticos distintos. Enquanto os súditos são regidos por códigos éticos baseados na moral – compondo, portanto, uma ética da convicção que contempla o moral e o imoral, o certo e o errado, o justo e o injusto –, o príncipe é regido por um tipo diferente de ética. Na ética do príncipe, não há espaço para a moral, pois tratase de uma ética de responsabilidade. A responsabilidade pelo bemestar e pela sobrevivência do Estado, o que contempla uma noção de finalidades, ou seja, para garantir o bemestar e a sobre vivência do Estado, ao governante é lícito agir de maneira que seria considerada imoral de acordo comuma ética de convicções. O domínio da política seria, assim, uma área amoral. Segundo Maquiavel (2010, p. 7374): Muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais foram vistos e quem nem se soube se existiram na verdade, porque há tamanha distân cia entre como se vive e como se deveria viver, que aquele que trocar o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes a arruinarse que a preservarse; pois um homem que queira fazer em todas as coisas pro fissão de bondade deve arruinarse entre tantos que não são bons. Daí ser necessário a um príncipe, se quiser manterse, aprender a não ser bom. Dessa forma, sendo a política um domínio eminentemente amoral e exigindo do governante a capacidade e a disposição para fazer o mal para preservar o poder e a sobrevivência do Estado, apreendese de Maquiavel que a natureza da política é deter minada pelos interesses e pelas necessidades do Estado. Quanto à satisfação deste, ela é auferida por aqueles que são capazes de não serem bons e não se comportarem de forma moral – denotando não apenas a capacidade mas também a necessidade do mal como fundamento da ação política que está na natureza humana. 10 11 Por sua vez, o filósofo inglês Thomas Hobbes (15881679), embora não rompa com a tradição grecoromana precedente, pelo contrário, sendo o próprio o primeiro tradu tor da obra de Tucídides para o inglês, é o principal expoente da segunda corrente, consolidando, na tradição realista clássica, uma vertente empirista do conhecimento acerca dos efeitos da natureza humana sobre a política internacional. Desse modo, che ga à mesma conclusão dos teóricos precedentes sobre seus efeitos práticos na constru ção de uma ontologia negativa da política internacional. Em Leviatã, ou matéria, forma ou poder de um Estado eclesiástico e civil (2008 [1651]), Hobbes dá à construção realista sobre a natureza humana uma interpretação empi rista e contratualista. Ele argumenta que os seres humanos, antes de viverem em sociedade, representada pelo Estado, viviam em um estado de natureza. Nesse estado de natureza, todos os indivíduos são livres para buscar a satisfação de suas próprias vontades e desejos, não havendo a imposição de nenhuma autoridade ou hierarquia entre eles. Portanto, no estado de natureza, os seres humanos viveriam em uma condição de anarquia. Além disso, nesse estado, os homens expressariam a sua verdadeira má natureza e se utilizariam de suas próprias capacidades, a força, para conquistar a satisfação de suas necessidades e desejos. Isso faria com que o estado de natureza fosse uma guerra de todos contra todos, tornando a vida humana instável, solitária, bruta, pobre e curta. Para vencer esse estado de coisas, os seres humanos teriam entrado em uma espécie de contrato social que dá origem à sociedade e ao Estado, acabando com a anarquia doméstica. Para isso, teriam concordado em renunciar ao uso individual do poder (a força) e consentido com a sua concentração em uma autoridade central, o soberano. Contratualista: compreende todas aquelas teorias políticas que veem a origem da socie- dade e o fundamento do poder político a partir de um contrato, isto é, um acordo tácito ou expresso entre a maioria dos cidadãos, o qual assinalaria o fim do estado de natureza e o início do estado social e político naquela sociedade (BOBBIO et al., 1998, p. 272-283). O Estado possuirá, assim, mais poder do que qualquer indivíduo ou grupo de indiví duos na sociedade doméstica, tendo um poder indisputável como o Leviatã, o monstro bíblico. O Leviatã é, portanto, o Estado, o soberano, que será capaz de utilizar esse poder para manter a ordem dentro das fronteiras domésticas. E, sem ordem, de acordo com o matemático, teórico político e filósofo inglês, o desenvolvimento de nenhuma sociedade é possível. Segundo Hobbes (2008, p. 124): (...) é necessária alguma espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens ao cumprimento de seus pactos, mediante o ter ror de algum castigo que seja superior ao benefício que esperam tirar do rompimento do pacto. A ordem é possível dentro das fronteiras domésticas, pois a anarquia foi suprimida pelo Estado, o Leviatã. No entanto, é fora das fronteiras, na política internacional, que esse monstro se encontrará com outros monstros formados também pela concentração de poder – a essência da política. A relação entre esses monstros, Estados, será, assim, uma relação anárquica mediada por suas próprias capacidades e poder. 11 UNIDADE A Transição dos Clássicos aos Científicos: o Segundo Debate Dessa forma, a natureza da política internacional é definida pela transferência da con dição de anarquia do âmbito doméstico para o internacional com a formação do Estado após o contrato social, característica que pode ser empiricamente observada nas rela ções entre os Estados. E, nas condições de anarquia, os seres humanos estão livres para expressar a sua própria má natureza na busca de seus interesses e objetivos egoístas. Liberalismo Clássico Por sua vez, a escola liberal clássica constrói uma ontologia positiva da política internacional, vendo o mundo como um lugar de cooperação entre os seres humanos e enfatizando os ganhos e os aspectos positivos da construção social coletiva humana, que ampliaria nossa capacidade de buscar, conjuntamente, maiores níveis de desenvol vimento e bemestar. Figura 2 – Congreso de los Pueblos por la Paz (1952), de Frida Kahlo, óleo sobre tela. Ramis Barquet, Nova York, EUA Fonte: wikiart.org Para os liberais clássicos, os seres humanos são eminentemente racionais, e é a ra zão humana o farol de nossa construção social, associada ou não à experiência empírica no mundo. Exatamente por sua racionalidade, o ser humano é naturalmente um animal social. A racionalidade humana tornaria os seres humanos capazes de compartilhar determinado conjunto de valores humanos básicos necessários a sua sobrevivência, o que os agruparia. Essa tendência natural dos homens prósociedade manifestase tanto nas nossas fronteiras, em nossas sociedades domésticas dentro do Estado, quanto nas relações internacionais. Estas seriam caracterizadas como relações entre Estados que, da mesma forma que os indivíduos, partilham determinado conjunto de valores na sua interação, formando, mais do que um mero sistema internacional, uma sociedade internacional. 12 13 Você Sabia? O conceito de sociedade internacional foi mais intensamente desenvolvido no âmbito da es- cola inglesa das relações internacionais a partir da década de 1960, sendo popularizado pela famosa obra de Hedley Bull “A sociedade anárquica” (2002 [1977]) (MENDONÇA, 2012). As relações internacionais não seriam, portanto, caracterizadas por uma condição de anarquia crua e inescapável, muito embora só possamos efetivamente falar na existência das relações internacionais na presença da anarquia, pois, sem esta, não há o outro. Em outras palavras, não haveria soberanias múltiplas – estando tudo submetido à mesma soberania. Para a existência do internacional, é necessária a presença de ao menos dois atores sobe ranos no sistema e, por conseguinte, a criação da condição de anarquia entre eles. Assim, conquanto a anarquia exista como fator necessário ao sistema internacional, ela poderia ser mitigada por determinado conjunto de valores comuns que os Estados possuem e por meio do qual intermedeiam suas relações recíprocas. Da mesma forma que em uma sociedade doméstica, os indivíduos possuem um conjunto de valores com partilhados que são responsáveis por amalgamar e dar identidade a essa própria socie dade, muito mais do que as leis e a coerção estatal. Ademais, enquanto a racionalidade e a tendência social dos homens sejam impor tantes nessa construção, elas não são suas causas primeiras. A capacidade humana de mitigar a anarquia nas relações internacionais deriva, na visão liberal clássica, das con sequências da própria organização social e política humana, motivada pela premissade que a natureza humana é boa. Ao contrário da escola realista clássica, cujas bases podem ser traçadas de forma mais ou menos linear a partir de uma bifurcação entre visões mais racionalistas e visões mais alinhadas ao empirismo, a tradição liberal é bem ampla e difusa. O pensamento liberal tem raízes gerais na tradição grecoromana, passando por corolários escolásticos, agostinianos, racionalistas, utilitaristas, entre outros, dentro do desenvolvimento e da expansão de diferentes expressões do iluminismo e do liberalismo europeu. Por razões didáticas, no entanto, agruparemos as distintas perspectivas liberais clássicas no bojo do desenvolvimento de duas tradições, seguindo a mesma aborda gem adotada com a escola realista clássica. Assim, traçaremos o desenvolvimento das premissas metafísicas sobre a natureza humana, que embasam o liberalismo clássico do século XX, a partir de um mesmo recorte epistemológico. No primeiro recorte ou visão, abordaremos a influência do racionalismo dos estoi cos no pensamento grecoromano até Kant, construindo uma tradição racionalista, a qual denominaremos cosmopolitismo. Quanto à segunda visão, trataremos da natu reza empirista, buscando seus elementos na obra de Locke dentro de uma perspectiva contratualista da política. 13 UNIDADE A Transição dos Clássicos aos Científicos: o Segundo Debate Cosmopolita: conceito formado pela união dos radicais gregos cosmos (universo) e polis (ci- dade, Estado, sociedade), referindo-se à crença de que todos os seres humanos são regidos por leis naturais do universo e que, portanto, formam uma única grande comunidade humana (PETERS, 1983; JAPIASSÚ; MARCONDES, 2008). O estoicismo é uma tradição filosófica iniciada por Zenão de Cítio (333263 a.C.) em torno do século III a.C. Os escritos de Zenão não sobreviveram, a não ser por ex certos e pela compilação de suas ideias por comentadores posteriores ainda durante a antiguidade clássica (LAÉRCIO, 2020). Sua principal obra é a República [300 a.C.], em contraposição à obra de mesmo nome de Platão. Da mesma forma, as ideias de Epiteto (55135 d.C.), um dos principais cosmopolitas estoicos, sobreviveram em partes da obra Discursos [108 d.C.], compilada por um de seus discípulos (ARRIANO, 2020). O estoicismo grego se tornaria extremante influente como base do pensamento ociden tal, influenciando o desenvolvimento de toda a filosofia grecoromana posterior, inclusive o surgimento do cristianismo. De maior relevância para nossa presente discussão são as posições éticas naturalistas e a epistemologia lógica e formal racionalista propaga das pelo estoicismo. Ética: termo derivado do grego ethos (costumes, hábitos), refere-se, na filosofia, ao estudo da moral, isto é, o conjunto de valores de uma sociedade, grupo ou indivíduo do ponto de vista normativo enquanto fundamentos da ação humana e do melhor modo de vida (PETERS, 1983; BLACKBURN, 1997). Dessa forma, a visão estoica sedimenta a premissa de que o mundo é governado por leis naturais. Por sua vez, essas leis se aplicariam tanto ao mundo físico quanto ao mundo social. A ação humana no mundo, assim, deve estar em sintonia com as leis da natureza tanto quanto os objetos observados pela física ou outros campos do conhecimento. A ética, portanto, que deve reger a ação humana no mundo, deriva, então, das leis naturais que regem todas as relações no mundo, sendo, por consequência, universal. Ou seja, como as leis naturais são imutáveis e universais, o comando para a ação humana, em qualquer tempo e em qualquer espaço, é também o mesmo e universal. Como consequência, a partir de seus preceitos éticos naturalistas, o estoicismo é a primeira corrente filosófica a conceber os seres humanos como parte de uma grande comunidade humana, maior do que qualquer cidadeEstado, república, reino ou impé rio. Por sua posição ética, os estoicos abraçam o ideal republicano, mas não qualquer república delimitada geograficamente. A república estoica é o território de toda a humanidade, conceito denominado de cosmopolitismo (STOCK, 2020). Essa ideia seria mais tarde apropriada e desenvolvida por outros expoentes da tradição liberal, entre os quais o de maior interesse para nossos propósitos aqui é Kant. Do ponto de vista epistemológico, a única forma de obter conhecimento, ou de chegar à verdade, sobre o mundo e as pretensas leis naturais que regem este, seria por meio da 14 15 razão. Os estoicos advogam, portanto, por um inquérito da natureza baseado na lógica formal a partir da razão humana. Os seres humanos, assim como todas as coisas no mundo, são seres naturais gover nados por leis naturais universais. E o papel da razão é iluminar os fundamentos éticos que colocam em harmonia a ação humana com as leis naturais. A boa natureza humana se revela, assim, como premissa ética naturalista da harmonia e do lugar do homem na própria ordem natural do mundo. O filósofo moderno Immanuel Kant (17241804), séculos mais tarde, daria à tradi ção do cosmopolitismo, inaugurada pelos estoicos no pensamento grecoromano, a roupagem que conhecemos contemporaneamente. Sua obra mais influente para o cam po das relações internacionais, A paz perpétua: um projeto filosófico (2020 [1795]), compõe as bases teóricas contemporâneas, como a da paz democrática. Kant, ao refletir sobre o histórico e o estado recorrente das guerras no continente europeu, conclui que a instituição do Estado soberano é a responsável pela situação. No entanto, a abolição dos Estados territoriais soberanos em prol da unificação de toda a humanidade seria um projeto político utópico inexequível. Então, os Estados deveriam poder escolher agir de forma cooperativa, respeitando princípios morais, valores compartilhados, em sua interação, da mesma forma que os indi víduos nas sociedades domésticas compartilham valores e devem escolher agir moralmen te uns em relação aos outros para a construção de uma sociedade saudável e desenvolvida. Os Estados soberanos autocráticos que buscam apenas os interesses de uma classe aristocrática dominante seriam, assim, os grandes antagonistas da paz no sistema inter nacional. Eles não poderiam escapar às condições da anarquia do sistema internacional e estão destinados a competirem continuamente. Para promover a paz e a harmonia entre os seres humanos, seria necessária a consti tuição de uma federação internacional de repúblicas representativas (liberais). As repú blicas seriam instituições políticas que poderiam responder aos verdadeiros interesses de seus cidadãos e, da mesma maneira que os indivíduos nas sociedades domésticas, não apenas poderiam mas também deveriam escolher agir moralmente e afastar a guerra a partir da cooperação umas com as outras. As repúblicas tenderiam, desse modo, a respeitar o direito internacional e a buscar soluções pacíficas para seus conflitos. O aumento no número de repúblicas represen tativas levaria a uma redução dos conflitos. Assim, conforme maior a prevalência de repúblicas, mais próximas as relações internacionais de uma paz perpétua. Na base desse processo de transformação da política internacional, estão a natureza e a racionalidade humanas. Os seres humanos possuiriam como imperativo categórico de suas ações um comando moral que os move no mundo. A boa natureza humana é, portanto, a base da capacidade de os homens agirem moralmente e buscarem a har monia entre si, sendo apreensível a partir da razão humana, a qual pode não apenas buscar explicar a realidade mas também alterála em prol de um arranjo moralmente mais elevado, conforme o programa kantiano. Por sua vez, a escola liberal clássica pode ser vista, inclusive, a partir de uma vertente empirista e contratualista. Nesse sentido, essa segunda linha interpretativa é iniciada pelo filósofo inglês John Locke (16321704), amplamente considerado como o pai do liberalismo moderno (VÁRNAGY, 2006). 15 UNIDADE A Transição dos Clássicos aos Científicos: o Segundo Debate As duasobras de Locke de maior interesse para nossa discussão aqui são o Ensaio sobre o entendimento humano (2010 [1689]) e Dois tratados sobre o governo (1998 [1689]). No primeiro, Locke estabelece as bases do pensamento empírico liberal, afir mando que os seres humanos são uma tábula rasa e que, portanto, a estrutura cognitiva e o conhecimento humano são formados a partir de sua experiência prática no mundo. Ao contrário da visão racionalista, o conhecimento não seria puramente racional e dissociado do mundo empírico, mas dependeria da aplicação da razão às observações sobre o mundo. No entanto, poderia iluminar ou revelar atributos ou relações subjacen tes que estão acima da contingência e da realidade física imediata, o que, a despeito do empirismo, permitirá à tradição liberal clássica sua harmonização com uma ontologia de natureza metafísica sobre a política internacional e suas causas primeiras ou universais. Já, na segunda obra, em especial na sua segunda parte, denominada de “Segundo Tratado sobre o Governo Civil”, Locke estabelece as bases da filosofia política liberal moderna a partir de sua visão sobre o contrato social. De acordo com o filósofo inglês, os indivíduos viveriam em um estado de natureza bastante distinto do concebido por Hobbes. Para o primeiro, o estado de natureza seria caracterizado por relações pací- ficas e harmoniosas entre os indivíduos. Isso decorreria do fato de que, no estado de natureza, os indivíduos seriam governados por um conjunto de leis naturais, que resul tam da razão humana. A própria razão humana ensinaria aos indivíduos que estes são todos independentes e iguais entre si. Por esse motivo, não lhes seria lícito prejudicar a vida, a saúde, a liberdade ou a propriedade dos demais indivíduos, seus iguais. Afinal, qualquer indivíduo quer vê las elas próprias respeitadas em seu proveito. Nesse sentido, os seres humanos são detentores de um conjunto de direitos naturais inalienáveis que podem ser indicados pela razão e, portanto, reciprocamente reconheci dos uns aos outros em qualquer comunidade humana, sem a necessidade de uma auto ridade ou poder central. Portanto, a ordem social resultante é eminentemente natural e derivada unicamente da razão humana. Os indivíduos, assim, não são mecânica e inatamente bons ou maus, mas são com pelidos a serem bons pelas próprias leis da natureza iluminadas pela razão. No estado de natureza, portanto, os seres humanos são geralmente bons. Entretanto, isso significa que os indivíduos podem, em situações específicas, não ser bons. Igualmente, podem existir aqueles alheios à razão ou à vida em sociedade. Ademais, embora os indivíduos sejam regidos por leis naturais no estado de natureza, as relações humanas se tornam cada vez mais complexas com o desenvolvimento das sociedades, e a coordenação dessas relações escapa aos comandos objetivos das leis naturais e depende de interpretações e convenções entre os indivíduos. Como se poderia punir comportamentos desviantes? O que seria uma punição justa? Como estabelecer mecanismos de proteção e garantia dos direitos fundamentais dos indivíduos – a igualdade, a propriedade e, acima de tudo, a liberdade? Para isso, seria necessário o estabelecimento de um conjunto de códigos ou leis que dependeriam da vontade e do consentimento dos indivíduos a se sujeitarem coletivamente a eles. 16 17 Essa seria então a gênese do Estado, a partir de um contrato social no qual os cida dãos, titulares dos direitos naturais, em vez de cederem seus direitos ao Estado, como na visão hobbesiana, consentem em se submeterem a um poder civil coletivo, o Estado, com a premissa de que cabe a este garantir exatamente a proteção desses direitos naturais. A liberdade é um direito natural do homem e o Estado deve ser limitado de forma que não possa subjugála. A liberdade é a base da busca dos desígnios humanos no mundo. À vista disso, o Estado não age pelos indivíduos ou em seu lugar, mas age, sim, como representante, em nome dos indivíduos, na busca da garantia dos direitos naturais e do desenvolvimento da sociedade humana. Consequentemente, não é difícil compreender que as relações entre Estados nas rela ções internacionais são, na verdade, relações entre sociedades humanas, que devem basearse, portanto, nas mesmas premissas das relações dos cidadãos entre si. Dentro do Estado, os homens estabeleceram governos civis para regerem suas relações. Já as relações entre os Estados devem pautarse pela busca por seus interesses co muns e pela cooperação, sempre almejando a resolução pacífica dos conflitos e privile giando a edificação de normas e regras que disciplinem essa interação, comandada pela razão humana, que, por seu turno, comanda todos os seres humanos a serem bons por natureza e a buscar coletivamente esse conjunto de valores ou de direitos naturais. O Segundo Debate: a Vitória do Positivismo O fracasso da Liga das Nações no período entreguerras, a aceleração da competição internacional e a eclosão da Segunda Guerra Mundial levaram à vitória da escola realista clássica sobre os liberais no objetivo de influenciar os formuladores de política externa. O cenário pósconflito, a Guerra Fria, parecia impor uma lógica da sobrevivência ao sistema internacional e corroborar a validade dos pressupostos ontológicos negativos dos realistas sobre a política internacional, colocando fim ao primeiro debate. Nesse período, o principal expoente realista foi o teórico alemão radicado nos EUA Hans Morgenthau (19041980) com sua obra A política entre as nações (2003 [1948]). Figura 3 – Medindo o mundo Fonte: Getty Images 17 UNIDADE A Transição dos Clássicos aos Científicos: o Segundo Debate A vitória do realismo clássico não significou, contudo, o fim das controvérsias na teoria das relações internacionais. Dentro do próprio campo realista, emergiriam as bases do próximo grande debate das relações internacionais. O Segundo Debate foi travado, de um lado, por realistas clássicos, adeptos de uma visão mais tradicional do conhecimento e dos métodos de pesquisa, e, de outro, neorrealistas, advogados de uma visão positivista das ciências humanas e sociais e do método científico denomina do behaviorismo. Os realistas clássicos, conforme discutimos anteriormente, vinculavamse a uma visão do conhecimento que, mesmo dentro de uma perspectiva empírica, enfatiza modelos tradicionais de estudo e uma forte influência da filosofia política. O objetivo dos realistas clássicos é entender ou compreender a política internacional em seus aspectos multidi mensionais, considerando os ensinamentos da história, do direito e da filosofia, aliados ao inquérito racional, para estabelecer suas bases. Os realistas clássicos não querem prever os acontecimentos ou qualquer fenômeno em particular. A pretensão clássica é universalista. Do mesmo modo, os clássicos não podem e não se propõem a separar fatos ou informações (pretensamente puros ou neutros) de valores ou posições axiológicas sobre a realidade. Para a tradição clássica, a própria forma como vemos a realidade é orientada a partir de valores. Por sua vez, a conjuntura do sistema internacional do mundo bipolar e da Guerra Fria exigia dos formuladores de política externa e dos tomadores de decisão a capacidade de prever ou antecipar ações e suas consequências imediatas para a segurança dos Estados e para o sistema internacional. A política internacional da Guerra Fria passava a requerer, portanto, instrumentos para a tomada de decisão que pudessem explicar de forma simples a relação entre vari áveis e os fenômenos no curto prazo, em detrimento da compreensão de processos de longo prazo e do entendimento das relações internacionais de forma macro. Dessa maneira, para atender a essas necessidades, estudiosos neorrealistas da po lítica internacional do pósguerra passam a desenvolver suas análises em bases con sistentemente diferentes da tradição realista precedente. O objetivo dos neorrealistasé oferecer uma explicação imediata causal dos fenômenos, a partir de uma pretensa neutralidade científica que distinguiria os fatos da opinião ou dos valores do observador. Os neorrealistas se propõem, portanto, a identificar causas e efeitos, por meio do desenvolvimento de modelos analíticos formais e do uso do método científico, partin do de uma aproximação da investigação nas ciências humanas e sociais aos modelos e métodos das chamadas ciências duras, como a matemática e a física. Essa posição epis temológica empirista radical associada a uma metodologia científica formalista compõe, nas ciências humanas, a corrente denominada de positivismo. O positivismo foi inicialmente formulado pelo filosófico francês Auguste Comte (1798- 1857), cuja principal obra é Curso de Filosofia Positiva (2005 [1848]), como um sistema filosófico para explicar a evolução humana, segundo o qual o espírito humano (a socie- dade) se desenvolveria historicamente em três etapas: teológica, metafísica e positiva. 18 19 Na primeira etapa, o homem procuraria explicações mágicas para os fenômenos do mundo, orientando sua organização social a partir dessas narrativas de natureza teológica. Já, na segunda etapa, os seres humanos evoluiriam no sentido de buscar uma explicação racio- nal do mundo a partir do uso da razão humana, porém dissociada dos fatos e do mundo empírico e refém da metafísica. Por fim, na terceira etapa, a humanidade, ao atingir sua maturidade, abandonaria os paradigmas precedentes em prol de uma organização baseada nas ciências positivas. Entendem-se positivas como sinônimo de empíricas, aquelas que se atêm à observação da realidade positiva, aos fatos que existem, observáveis no mundo real. Positivismo: a utilização desse termo aqui tem sentido bem mais amplo do que o proposto na obra original de Comte. Por positivismo nos referimos ao sentido que o termo adquiriu como sinônimo de ciência moderna ou ciência normativa ao longo, especialmente, dos séculos XIX e XX. De forma ampla, portanto, entendemos aqui o positivismo tanto como uma posição episte- mológica quanto metodológica, que se caracteriza pelo empirismo e pelos métodos formais, so- bretudo quantitativos, aplicados às ciências humanas e sociais (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2008). O positivismo parte, assim, da premissa de que o mundo natural, estudado pela matemática e pela física, por exemplo, e o das ciências humanas e sociais é o mesmo, sendo possível estudar o último da mesma forma que estudamos o primeiro. Ademais, advoga a separação entre fatos e valores, a partir de um paradigma de neutralidade científica no qual os fatos existem por si só no mundo de modo independente e que seria possível observar esses fatos de forma neutra, sem a interferência das opiniões ou dos valores do observador. Assim, da mesma maneira que as ciências naturais buscam identificar os padrões e as regularidades existentes no mundo natural, as ciências humanas e sociais deveriam identificar, na sociedade e no comportamento humano, tais padrões e regularidades. Para isso, elas devem adotar métodos empíricos com o objetivo de observar, medir e avaliar empiricamente a realidade, produzindo, a partir do teste de hipóteses e de mode los formais, explicações sobre as causas e os efeitos dos fenômenos da vida social. Essa agenda de pesquisa positivista nas ciências humanas e sociais consolidouse e tornouse hegemônica na segunda metade de século XX, ficando conhecida por sua associação ao behaviorismo. Behaviorismo (ou psicologia comportamental): o termo é um neologismo a partir da palavra inglesa equivalente behaviourism, derivada de behaviour (comportamento), que significa, em sentido literal, o estudo do comportamento ou, mais estritamente, o campo da psicologia comportamental. Trata-se de um campo de estudo fundado no começo do século XX nos EUA a partir dos trabalhos do psicólogo John Watson (1878-1958), especial- mente na obra “Behaviourism” (2017 [1925]). Do ponto de vista metodológico, consiste na proposição da aplicação de técnicas de observação e estudo empírico da relação entre os estímulos e as respostas (comportamento) do indivíduo. Parte-se da premissa de que se 19 UNIDADE A Transição dos Clássicos aos Científicos: o Segundo Debate deve estudar apenas os comportamentos concretos, objetivos e observáveis dos indivíduos, desconsiderando especulações filosóficas, introspectivas ou motivacionais não científicas (empíricas) (SCHULTZ, 2005). O behaviorismo escaparia, assim, rapidamente dos domínios da psicologia, e seus corolários seriam estendidos ao estudo dos mais diversos campos das ciências humana e sociais. O que nas relações internacionais significou abandonar tanto quaisquer for mulações teóricas de base metafísica quanto programas de pesquisa considerados não científicos, ou seja, não alinhados a uma concepção behaviorista de observação e men suração de variáveis objetivas e concretas do mundo da política internacional. Neorrealismo O neorrealismo buscará reconstruir a ontologia realista negativa da política interna cional inteiramente em novas bases, procurando se distanciar dos métodos tradicionais em um momento em que a ciência política e as relações internacionais buscam firmarse como ciências, aderindo ao corolário da ciência moderna positivista. A consolidação e vitória do positivismo, não apenas no campo acadêmico das relações internacionais mas também como paradigma universal da pesquisa científica moderna, é talvez o principal marco científico do século XX. Sua hegemonia e seu normativismo levariam ainda um longo tempo para começar a serem erodidos, conforme veremos mais adiante. Dessa forma, o neorrealismo se consolidará a partir da obra Teoria das relações internacionais [Theory of international politics] (2002 [1979]) do cientista político norte americano Kenneth Waltz (19242013), ficando também conhecido como realismo estrutural. O objetivo de Waltz era reescrever as bases de uma teoria sobre a política internacional que abandonasse a noção clássica de natureza humana e de quaisquer ele mentos associados à personalidade, à cognição, à capacidade ou a outros atributos indivi duais dos líderes ou tomadores de decisão, e que seriam, portanto, de natureza subjetiva. O realismo estrutural se propunha, assim, a ser uma teoria estritamente científica, na acepção positivista moderna do termo, da política internacional. Isso significa que o com portamento dos atores na política internacional não poderia ser explicado por sua própria natureza, mas, sim, pelas condições estruturais da política internacional – a estrutura do sistema internacional. Em aderência ao corolário positivista behaviorista, as condições empíricas observá veis da política internacional (a estrutura do sistema internacional) definiriam como os atores se comportam nas relações internacionais. A estrutura do sistema internacional é definida pela distribuição de capacidades ou de poder no sistema. Ela depende dos atributos (capacidades) de cada uma das unidades desse sistema (os Estados soberanos) e do princípio ordenador das relações entre essas unidades (a anarquia). Desse modo, as relações entre Estados soberanos são anárquicas, e, embora todas as unidades sejam igualmente soberanas, suas capacidades ou seu poder são diferentes. Essas diferenças de capacidades levam a um ordenamento do sistema internacional com base na distribuição de poder relativo entre as unidades soberanas. 20 21 A teoria estabelece, ainda, que os Estados ajam como atores racionais monolíticos capazes de hierarquizar seus interesses e suas preferências de forma transitiva em uma escala, sendo seu objetivo ou interesse primário garantir sua própria sobrevivência como ator independente, soberano, no sistema. Sem esse requisito, a busca de nenhum outro interesse ou objetivo do Estado é possível. Os Estados racionais buscariam, então, maxi mizar seu poder relativo na busca da consecução de seus próprios interesses.Esse seria um fato observável concreto e objetivo das relações internacionais, não importando o sistema ou o regime político doméstico do Estado, se se trata de um go verno autocrático ou democrático, das características de seus líderes ou de sua população – permitindome a brincadeira, não importa se a sociedade doméstica está repleta de discípulos de Hitler ou de Madre Teresa –, o Estado, qualquer que seja ele, sempre se comportará da mesma forma na política internacional, pois as condições estruturais de seu comportamento são as mesmas para todos. E a causa desse fenômeno é a anarquia. Dentro do Estado, das fronteiras nacionais, há hierarquia – todos estão submetidos ao poder soberano do Estado. Contudo, fora das fronteiras do Estado, as relações entre os Estados são anárquicas, não hierárquicas, não existindo qualquer relação de subordinação formal de um Estado a outro. A ausência de hierarquia ou subordinação, a anarquia, leva à incerteza nas relações entre os Estados. Cada Estado está sempre incerto sobre os interesses e objetivos dos outros Estados, bem como de suas capacidades ou poder e de sua disposição para o uso da força na busca desses interesses. Tudo o que podemos conhecer eventualmente são as intenções comunicadas por esses demais Estados e o que podemos observar. Em face da incerteza e da necessidade de garantir a sobrevivência do Estado, os Estados se comportarão de forma realista no sistema internacional, não em razão de nenhum outro atributo, mas exatamente pelo fato de serem atores racionais. Esse é o único comportamento racional diante da condição de incerteza. Dessa maneira, os Estados buscarão aumentar seu estoque de capacidades ou po der, para garantir sua sobrevivência e realizar seus demais interesses. A anarquia é, portanto, o princípio ordenador do sistema internacional. Por sua vez, sua estrutura é caracterizada pela distribuição de poder relativo dentro deste sistema. É essa estrutura que constrange o comportamento de todos os atores nesse sistema, independentemente de suas características particulares. A escola realista, mais tarde, passaria por uma clivagem entre o que se designou como realismo defensivo e realismo ofensivo, a partir da obra A tragédia da polí- tica das grandes potências [The tragedy of great power politics]” (2007 [2001]) do cientista político norteamericano John Mearsheimer (nascido em 1947). A partir das formulações de Mearsheimer, os pressupostos iniciais do realismo estrutural de Waltz são mantidos, mas as duas vertentes neorrealistas divergem sobre qual é o objetivo últi mo dos Estados. Para a vertente waltziniana, rebatizada de realismo defensivo, a premissa é de que os Estados buscam maximizar sua segurança. Os Estados não buscariam, assim, acumu lar capacidades ou poder indiscriminadamente, mas, sim, de forma estratégica, de acor do com a necessidade para garantir a sua própria sobrevivência no sistema internacional – possuindo, portanto, um comportamento de natureza defensiva. O comportamento dos Estados privilegiaria, desse modo, estratégias de equilíbrio ou balanço de poder. 21 UNIDADE A Transição dos Clássicos aos Científicos: o Segundo Debate Já, para a nova vertente estruturalista inaugurada por Mearsheimer, o realismo ofensivo, os Estados buscariam maximizar seu poder ou sua capacidade. Isso quer dizer que os Estados buscam todas as oportunidades possíveis de aumentar seu estoque de capacidades de forma ativa e contínua – possuindo, assim, um comportamento ofen sivo ou agressivo. O comportamento desses Estados privilegiaria, dessa maneira, estratégias evasivas, de comportamento carona (free rider), traição, deserção e outras ligadas à autopromo ção. O objetivo dessas estratégias é elevar seu próprio poder relativo no sistema a fim de atingir a hegemonia regional e, em última instância, do sistema internacional – única posição em que o Estado se encontrará livre das restrições da estrutura do sistema inter nacional para almejar seus próprios interesses. Na próxima Unidade, exploraremos o diálogo entre o neorrealismo e a escola neo liberal, no chamado Terceiro Debate ou debate interparadigmático. Por fim, explorare mos outras perspectivas teóricas relevantes alinhadas ao paradigma positivista introdu zido na presente Unidade. 22 23 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Filmes Limite de segurança Nesse filme, podemos observar variáveis no nível dos indivíduos relacionadas à liderança, à percepção, à informação e à natureza humana, sob a concepção realista clássica do medo. Em virtude de uma falha técnica nos computadores de uma instalação militar norteamericana , os EUA ordenam a seis bombardeiros que ataquem alvos na União Soviética, expondo o mundo ao risco de uma guerra nuclear durante a Guerra Fria. https://youtu.be/filmUN4W59I Independence Day Nesse filme, identificamos como a humanidade se une contra um inimigo comum, os inva sores alienígenas, mesmo na ausência de uma coordenação ou autoridade central. Em um mundo anárquico, onde muitos Estados soberanos sucumbiram, os seres humanos deixam de lado suas diferenças para uniremse em prol de um bem maior, superando eles próprios a anarquia internacional, movidos por princípios éticos ou morais (WEBER, 2005). Desse modo, colocase a presente representação do mundo dentro da tradição liberal clássica. https://youtu.be/B1E7h3SeMDk O senhor das moscas Esse filme retrata os efeitos da anarquia quando um grupo de jovens tenta sobreviver após um acidente, passando de um tipo de organização social, caracterizado por uma ordem ba seada na hierarquia, para outro tipo, caracterizado pela anarquia. Isso, portanto, reverbera a teoria realista estruturalista de Waltz (WEBER, 2005). Se possível, prefira a versão britânica de 1963 dessa obra à sua versão norteamericana de 1990. Em qualquer caso, não deixe de se divertir e aprender, na prática, sobre os efeitos da anarquia na perspectiva neorrealista. https://youtu.be/AnIXPoTY2LQ Leitura The New Great Debate: Traditionalism vs. Science in International Relations https://bit.ly/37uBNuW Teoria das relações internacionais https://bit.ly/3xBUIhU 23 UNIDADE A Transição dos Clássicos aos Científicos: o Segundo Debate Referências ARRIANO, F. O manual de Epicteto. São Paulo: Editora Auster, 2020. (e-book) BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. Brasília: Editora UnB, 2008. BULL, H. A sociedade anárquica. Brasília: Funag, 2002. COMTE, A. Curso de Filosofia Positiva. São Paulo: Abril Cultural, 2005. (Coleção os Pensadores). HOBBES, T. Leviatã, ou matéria, forma ou poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martins Fontes, 2008. JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 5. ed. 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