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<p>Ao som de uma canção de amor você</p><p>sangrava</p><p>– Série Tempos de Sangue –</p><p>Eduardo Kasse</p><p>primeira edição</p><p>editora draco</p><p>são paulo</p><p>2015</p><p>Eduardo Kasse</p><p>é paulistano, nascido em 10 de abril de 1982. Escritor, palestrante e analista de conteúdos,</p><p>vive nos mundos do planejamento estratégico da informação, edição de textos e literatura.</p><p>Publicou o livro de poesias Enquanto o Sol se põe (2002), um conto em Imaginários v. 5</p><p>(2012) e os romances O Andarilho das Sombras (2012), Deuses Esquecidos (2013) e</p><p>Guerras Eternas (2014), que fazem parte da série Tempos de Sangue.</p><p>© 2015 by Eduardo Kasse</p><p>Todos os direitos reservados à Editora Draco</p><p>Publisher: Erick Santos Cardoso</p><p>Produção editorial: Janaina Chervezan</p><p>Revisão: Ana Lúcia Merege</p><p>Capa e editoração digital: Ericksama</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)</p><p>Ana Lúcia Merege 4667/CRB7</p><p>Kasse, Eduardo</p><p>Ao som de uma canção de amor você sangrava / Eduardo Kasse – São Paulo: Draco,</p><p>2015</p><p>1. Contos brasileiros 2. Literatura Brasileira I. Título</p><p>CDD-869.93</p><p>Índices para catálogo sistemático:</p><p>1. Ficção : Literatura brasileira 869.93</p><p>Primeira edição, 2015</p><p>Editora Draco</p><p>R. César Beccaria, 27 – casa 1</p><p>Jd. da Glória – São Paulo – SP</p><p>CEP 01547-060</p><p>editoradraco@gmail.com</p><p>www.editoradraco.com</p><p>www.facebook.com/editoradraco</p><p>Twitter e Instagram: @editoradraco</p><p>Sumário</p><p>Capa</p><p>Folha de rosto</p><p>Créditos</p><p>Ao som de uma canção de amor você sangrava – Eduardo Kasse</p><p>Contos do Dragão</p><p>Ao som de uma canção de amor você sangrava – Eduardo</p><p>Kasse</p><p>Arrependimento.</p><p>Nunca consegui entender como as pessoas se entregam ao álcool ou à</p><p>ruína por causa das suas ações. Nem como podem passar suas curtas</p><p>vidas choramingando pelos cantos, apáticas ou até mesmo</p><p>desesperadas, em um sofrimento desmedido e, de certa forma,</p><p>caricato. Para mim, o bem ou o mal são apenas circunstanciais. Um</p><p>predador, um lobo que caça uma ovelha pode ser considerado mau?</p><p>Creio que não. São apenas instintos e necessidade de sobrevivência.</p><p>Quando se é imortal, muitos dos sentimentos humanos perdem sua</p><p>força, seu sentido. E, depois de séculos resistindo nessa terra, apenas</p><p>o prazer me interessa. O meu prazer, é claro.</p><p>Sempre fui assim. Desde muito jovem, na bela Atenas, eu buscava o</p><p>deleite nos braços de paixões regadas a vinho e mel. E as descartava</p><p>com a mesma agilidade com que as possuía no meu leito. Já ouvi</p><p>muitas juras de amor, nunca as retribuí. Já se mataram por mim e o</p><p>máximo que fiz foi deixar flores recém-colhidas sobre os corpos</p><p>inertes.</p><p>Patético...</p><p>Pessoas vêm e vão. Nomes são entalhados na madeira, mas, quando</p><p>o incêndio da paixão se apaga, restam apenas cinzas.</p><p>Enquanto muitos choravam eu sorria.</p><p>Todos os amores e amantes que tive são apenas emoções passageiras,</p><p>rostos que se perderam em meio à multidão. De centenas, devo</p><p>recordar o nome de três ou quatro. Meia dúzia, para ser mais</p><p>honesto.</p><p>Por isso fui escolhido. Porque ele sabia que a eternidade nunca seria</p><p>monótona para mim. De fato, continuo me divertindo até hoje,</p><p>gargalhando das coisas mais banais, vivendo de exageros e excessos.</p><p>Amado pelo bem-estar que proporciono, odiado pelo desprezo à</p><p>mesmice, às súplicas por atenção, por amor ou por um simples sinal</p><p>de afeto.</p><p>Não. Não espere isso de mim. Posso ser um monstro, mas saiba que</p><p>sou sincero. E não me importo com os seus desejos, importo-me</p><p>somente com a minha satisfação. Suas dores não me comovem.</p><p>Gosto de jogar com as pessoas. Muitos apostam alto, na ilusão de que</p><p>podem vencer, e eu alimento essa esperança, somente para ver a</p><p>queda, ver os mais confiantes, arrogantes e soberbos desmoronarem.</p><p>Não há como haver dois reis em um mesmo palácio.</p><p>Sinto a repulsa emanando de você. Sinto que você quer se levantar e</p><p>partir. Talvez até cuspir no meu rosto. Será que teria coragem? Vá</p><p>em frente!</p><p>Seria melhor que isso acontecesse, aviso-lhe: evitaria uma grande</p><p>frustração. Mas você não consegue. Parece que sua mente deseja</p><p>correr para fora desse aposento, porém o seu corpo não obedece,</p><p>parece estar colado a essa cadeira.</p><p>Por quê? Você se pergunta.</p><p>Eu lhe respondo: porque você me deseja!</p><p>Por favor, não se culpe. Nem tente me ludibriar com esse falso</p><p>espanto. Seus olhos não mentem. Sua mente já me disse toda a</p><p>verdade assim que nos encontramos.</p><p>Quem não cobiça o que é belo? Quem não admira a perfeição e não</p><p>tem vontade de se entregar ao ser vivo mais próximo de um deus?</p><p>Sei que você já fez essas comparações. E sei que sente um desejo</p><p>incontrolável pela minha divindade, quase como uma adoração. Não</p><p>é?</p><p>Sim, estou certo. Sempre estou.</p><p>Vejo que admira o meu sorriso, os dentes brancos perfeitamente</p><p>alinhados e os caninos um pouco mais pontiagudos que o normal.</p><p>Também gosto de me ver nos espelhos de prata. Se, quando mortal,</p><p>eu era lindo, agora sou esplêndido. Ah, sinto-me como Narciso!</p><p>Eu serei belo para sempre. Você, ao contrário, definhará. As rugas no</p><p>seu rosto, que agora são pequenas linhas, charmosas até, se</p><p>aprofundarão, transformando essa pele macia em algo ressequido</p><p>como a terra que há muito não recebe chuva. E os anos voarão até</p><p>você não passar de um ser carcomido, apenas a sombra do que foi</p><p>outrora.</p><p>Uma casca podre que vai ser roída pelos vermes.</p><p>Isso são lágrimas? Eu lhe disse algo que você já não sabia? Vida e</p><p>morte são a base da existência humana. A mais simples de todas.</p><p>Talvez tenha sorte e Tânato não o deixe padecer da velhice. Talvez</p><p>não... Quem sabe os dados já não foram lançados? Os deuses gostam</p><p>de se divertir conosco.</p><p>Essa é a realidade.</p><p>Antes repulsa, depois cobiça, agora é um ódio inflamado que o</p><p>domina, não é? Como vocês, humanos, são instáveis! Incendeiam</p><p>com a mínima fagulha. Mas o fogo não se sustenta, queima rápido e</p><p>logo se apaga como se nunca tivesse existido. Resta apenas fumaça,</p><p>tóxica e debilitante. Não me lembro de ter sido assim um dia, mas</p><p>pode ser que a minha memória não esteja tão clara.</p><p>.</p><p>.</p><p>.</p><p>Adoro quando você cospe essas ofensas contra mim. Os perdigotos</p><p>voando junto à rispidez das palavras! Um hálito tão doce</p><p>contaminado por termos tão feios.</p><p>Tsc, tsc, tsc.</p><p>Você preferia que eu não lhe dissesse a verdade? Mesmo a mais</p><p>óbvia? Creio que já passou da idade da ingenuidade, e sabe tão bem</p><p>quanto eu qual é a minha natureza. Foi por isso que você me</p><p>procurou, que se arriscou durante anos esquadrinhando ruas</p><p>escuras, praças desertas e ruínas atrás do meu rastro. E, tal como os</p><p>ratos, vasculhava os restos que eu deixava para trás.</p><p>O mundo comum é enjoativo. As pessoas comuns são previsíveis e</p><p>cansativas. Em mim você reencontrou um fogo há muito perdido.</p><p>Um motivo para deixar de lado seus problemas e sua rotina</p><p>sufocante.</p><p>Você sentia a minha presença, como se eu estivesse sempre ao seu</p><p>lado, sussurrando nos seus ouvidos, causando-lhe arrepios e desejos</p><p>carnais. Por quantas vezes você não se desesperou depois de mais</p><p>uma noite frustrante, de busca solitária! Dos meus esconderijos ouvi</p><p>você praguejar porque o Sol surgia no horizonte. Até pensei em me</p><p>apresentar mais cedo, contudo eu ainda queria ver até onde você iria.</p><p>Admirei-me com a sua persistência!</p><p>Por quantas vezes você se esqueceu de comer ou beber andando à</p><p>minha procura até os pés sangrarem, até a fadiga e fraqueza</p><p>causarem desmaios? Fui seu parasita sem tocar em você, na mesma</p><p>medida em que lhe dei um novo propósito de vida.</p><p>Confesso que por diversas vezes eu adormeci sorrindo pela sua</p><p>decepção, embalado pelos seus gritos de ódio e dor. Esse jogo de gato</p><p>e rato era uma diversão a mais nas minhas noites. Seu pranto era</p><p>melodia. Será que os deuses se sentem assim a cada pedido</p><p>lamurioso? Divertem-se como eu? Duvido...</p><p>Ahahah! Se eu sou o mal encarnado? Não... Tenho até meus</p><p>momentos de misericórdia. Lembra-se de quando precisou passar</p><p>semanas na prisão porque creditaram a você a responsabilidade por</p><p>algumas mortes que causei?</p><p>Por favor, acalme-se!</p><p>Esse desespero, esse descontrole afetado me dá vontade de ir</p><p>embora. E sair tão rápido que você pensaria que simplesmente</p><p>desapareci no ar. Você me soa como um cão ganindo após ter as</p><p>costelas chutadas. Um pouco de dignidade não dói.</p><p>Respire...</p><p>Isso, melhor assim.</p><p>Escute: não foi de propósito. Tampouco me arrependo disso, como</p><p>pode perceber. Você escolheu me seguir. Você decidiu chafurdar</p><p>atrás de cada passo meu. Que tolice! Já se passaram alguns anos</p><p>desde a sua estadia no cárcere, achei que tinha superado essa,</p><p>digamos, adversidade.</p><p>E não fui de todo mau; fui eu que paguei a sua fiança.</p><p>Sim, fui eu.</p><p>Sua expressão de surpresa é linda! Mas não pense que tem alguma</p><p>dívida comigo. A vantagem de me alimentar dos ricos e poderosos é</p><p>ter o prazer do sangue e das fortunas.</p><p>Dinheiro nunca foi problema para mim. Tenho montes e mais</p><p>montes de moedas, joias, ouro e prata em baús espalhados por essas</p><p>terras. Certamente muitos ficarão perdidos para sempre, outros</p><p>serão encontrados por miseráveis que se acharão sortudos demais ao</p><p>conquistarem migalhas.</p><p>Aliás, perdoe-me pela minha indelicadeza! Não lhe ofereci nada para</p><p>beber ou para comer. A conversa sempre fica mais aprazível com o</p><p>estômago forrado. Ou menos desprezível, não é?</p><p>Releve as minhas divagações. Isso acontece com os velhos e com</p><p>quem passa muito tempo sozinho. É que, ao contrário de você, eu</p><p>tenho todo o tempo do mundo.</p><p>Vejamos o que temos por aqui...</p><p>Um bom vinho, pelo que me lembro. Na minha mocidade eu adorava</p><p>abrir as ânforas e sentir o aroma das uvas fermentadas. Ficava</p><p>respirando o vapor delicioso antes de saborear a bebida. Era quase</p><p>um momento sensual, ainda mais se havia alguém me beijando na</p><p>nuca ou qualquer parte mais sensível minha.</p><p>Sirva-se à vontade. E pode comer todas essas frutas e queijos se</p><p>quiser. Eles não terão mais serventia para o dono dessa casa,</p><p>tampouco para mim. Espero que não se ressinta por não ter</p><p>companhia nessa refeição. Estou satisfeito.</p><p>Vejo que gosta da minha risada. Foi uma contração do seu rosto por</p><p>causa do vinho? Ou o esboço de um sorriso?</p><p>Ah! Melhor assim! Vamos nos divertir.</p><p>Parece que o mundo ficou cinzento e as pessoas se esqueceram de</p><p>como festejar e aproveitar a vida. Tudo agora é dor e pecado.</p><p>Você come com gosto. Isso me faz lembrar dos banquetes de que</p><p>participei. Nunca fui tão afoito com a comida, mas me divertia com</p><p>os glutões. Ah, como me aproveitei deles! Em troca de pequenos</p><p>mimos, doces ao paladar, consegui tantas coisas. Para muitos, um</p><p>pouco de ambrosia funcionava melhor do que uma noite de sexo.</p><p>Velhotas felizes ao se empanturrar até ficarem sem fôlego se</p><p>contentavam com alguns beijos no pescoço e carícias no meio das</p><p>pernas roliças.</p><p>Eu sorria ao vê-las tendo espasmos ao simples toque dos meus</p><p>dedos, hábeis pela prática em dedilhar a lira. Elas gemiam e gritavam</p><p>sem qualquer constrangimento, mesmo sob olhares curiosos.</p><p>Aliás, já comentei que sou ateniense, mas creio que não me</p><p>apresentei adequadamente.</p><p>Jura? Você sequer sabe o meu nome? Precisamos reparar esse erro</p><p>agora, e, se você quiser ouvir um pouco da minha história, a noite</p><p>ainda só está no início.</p><p>Pois bem... Está confortável em sua cadeira? Comecemos do</p><p>princípio então.</p><p>Meu nome é Diodoros. Nasci em Atenas em 431 A.C., o primeiro ano</p><p>da Guerra do Peloponeso em que começamos as batalhas contra os</p><p>espartanos. Ou foram eles que começaram? Não me recordo... Mas</p><p>não importa!</p><p>Sim, você ouviu certo, sou bastante antigo. Nasci 431 anos antes do</p><p>tal Cristo, que nem sei ao certo se existiu. E, se existiu, morreu</p><p>crucificado como um ladrãozinho da ralé. Creio que você não</p><p>consegue compreender a dimensão da minha existência. Eu mesmo</p><p>me perco em vários momentos.</p><p>Mas voltando à minha vida, cresci em um período bem turbulento,</p><p>quer dizer, mais turbulento que o normal. O investimento na guerra</p><p>empobreceu a cidade, e nem os eupátridas, como os meus familiares,</p><p>escaparam das dificuldades. Muitas rotas de comércio foram</p><p>interrompidas e muitos homens foram recrutados para as batalhas, o</p><p>que diminuiu a força de trabalho e minguou as riquezas. Não que</p><p>tenhamos ficado pobres, longe disso. Mas quem se acostumou com o</p><p>luxo sofre ao viver com menos.</p><p>Como eu era apenas um rapazola, não senti muito os impactos do</p><p>primeiro e segundo períodos da guerra, época em que deixei de lado</p><p>as brincadeiras de criança e passei a me entreter com jogos, bebidas</p><p>e sexo. Confesso que a guerra era apenas uma sombra distante para</p><p>mim.</p><p>Sombra da qual não pude escapar, pois fui obrigado a me juntar ao</p><p>exército no terceiro período. Caçula de cinco irmãos, meu pai não</p><p>hesitou em me mandar para a batalha. Contudo, pela sua influência e</p><p>importância, não caí em um navio qualquer. Fui enviado como</p><p>tripulante no trirreme sob o comando do estratego Alcibíades.</p><p>Nunca fui um excelente guerreiro, tampouco era o primeiro a investir</p><p>contra os inimigos. Sobrevivi praticamente incólume e com poucas</p><p>cicatrizes. Toquei mais vezes a minha flauta do que saquei a minha</p><p>espada. Eu sabia entreter os homens e conseguir favores dos mais</p><p>experientes, e até mesmo certa proteção.</p><p>Não pense que sou um covarde. Isso nunca fui! Apenas lutei quando</p><p>não tive alternativa, por isso me mantive vivo. E até me saí bem nas</p><p>escaramuças. É mentira que somente os heróis são lembrados. Os</p><p>sobreviventes também ganham suas canções, ainda mais se</p><p>souberem recompensar bem os bardos.</p><p>Vencemos em Cízico e em Arginuse e a nossa confiança estava alta.</p><p>Éramos bem recebidos nas cidades em que aportávamos. Antes de</p><p>seguir para Bizâncio, fui acometido por uma tosse catarrenta,</p><p>cansaço, suores noturnos e uma febre fraca e persistente. Não pude</p><p>embarcar com os meus companheiros, tampouco insisti nisso.</p><p>O próprio Hipócrates, médico amigo de meu pai, me deu o veredito</p><p>depois de me examinar: eu estava com phthisis. Naquela época,</p><p>como hoje, essa doença era quase uma sentença de morte. Fui</p><p>tratado com chá de alho e própolis, poções de agrião, mel e claras de</p><p>ovos. Entupiram-me de infusões de calêndula e me obrigaram a</p><p>inalar vapores de vinagre que me faziam ter náuseas.</p><p>Nada adiantou e a tísica se enraizou nos meus pulmões, fazendo-me</p><p>cuspir sangue a cada acesso de tosse. Por várias vezes quase sufoquei</p><p>nas minhas próprias secreções. Tinha apenas vinte e dois anos.</p><p>Não, não precisa ter dó de mim, afinal, estou aqui, vivo e perfeito,</p><p>não é? Se o seu tédio ainda não for muito grande, permita-me</p><p>continuar a minha história.</p><p>Aproveite e sirva-se de mais vinho. Adoro quando suas faces se</p><p>ruborizam por causa da bebida.</p><p>Como lhe contei há pouco, sempre fui adepto da diversão. E mesmo</p><p>com a doença me consumindo eu participava constantemente de</p><p>festas e banquetes, nos dias e noites em que não estava tão mal. Eu</p><p>sabia que iria morrer em breve, portanto resolvi aproveitar a vida. E</p><p>deixei a vida se aproveitar de mim. Nós nos usávamos mutuamente.</p><p>Nós nos abusávamos, para ser mais fiel aos fatos.</p><p>Entreguei-me de corpo e alma à esbórnia. Queria provar e provocar</p><p>cada vez mais homens e mulheres. E esse ritmo desregrado apressou</p><p>o meu fim. Talvez eu durasse mais uns anos, quem sabe, com sorte,</p><p>até mesmo uma década.</p><p>Preferi viver intensamente a me fadar às regras e privações do</p><p>tratamento. Monotonia nunca foi uma escolha para mim. Eu tinha</p><p>dor, escolhi aplacá-la com vinho e com o prazer proporcionado por</p><p>cada amante. Mesmo quando não conseguia desfrutar do momento,</p><p>eu fingia. Ah, e que ator eu era! Ri da morte, mesmo estando em seus</p><p>braços. Afinal, quem quer viver para sempre?</p><p>Que ironia!</p><p>Em poucos meses não conseguia mais me alimentar e emagreci de</p><p>saltar as costelas. E a minha estimada beleza me abandonou. E, com</p><p>ela, todos os que viviam ao meu redor nos momentos de farra me</p><p>deixaram. A flor murchou e os insetos que se alimentavam do seu</p><p>néctar partiram.</p><p>Nunca recebi uma visita sequer. Somente a dos cobradores de</p><p>impostos e de thetas desesperados por trabalho. Passei a ficar</p><p>confinado no meu aposento, coberto por lençóis salpicados de</p><p>sangue, respirando um ar constantemente nauseabundo. Eu estava</p><p>apodrecendo, tal como um cadáver</p><p>que se recusava a morrer.</p><p>Comecei a ter nojo de mim mesmo. Senti a angústia da solidão, de</p><p>não ser mais idolatrado por onde passava. Eu sempre quis ser o</p><p>centro das atenções...</p><p>Eu me transformara naquilo que mais desprezava.</p><p>Você se incomoda se eu abrir a porta? Gosto da brisa da noite, do</p><p>aroma das madressilvas que crescem logo depois do pasto. Elas me</p><p>fazem lembrar minha mãe. Sim, até um monstro como eu já teve</p><p>uma mãe, porém deixemos esses sentimentalismos para outro</p><p>momento, pois ainda há muito a ser contado.</p><p>Numa noite insone ele apareceu. Pensei se tratar de um vulto criado</p><p>pela alucinação da febre. Os delírios estavam cada vez mais</p><p>constantes naqueles dias, a ponto de eu confundir a realidade com os</p><p>devaneios. As lamparinas de azeite estavam apagadas e a noite era</p><p>escura, a Lua encoberta por densas nuvens de chuva. Ele se prostrou</p><p>ao lado da cama e ficou imóvel. Esfreguei os olhos remelentos e me</p><p>sentei com dificuldade, sentindo um imenso cansaço, o peito</p><p>queimando. O ar me faltou e a minha respiração emitia um chiado</p><p>agudo, angustiante. Tonteei.</p><p>Parecia que eu tinha corrido por milhas e mais milhas.</p><p>Lutei contra esse sofrimento sufocante por um bom tempo até</p><p>recuperar o fôlego e conseguir raciocinar com certa clareza.</p><p>Queria que as lamparinas estivessem acesas. De súbito isso</p><p>aconteceu e o quarto clareou como se os meus pensamentos tivessem</p><p>sido ouvidos. Não tive tempo para entender o que se passava, pois o</p><p>homem puxou uma cadeira e sentou-se à minha frente.</p><p>Devia ter por volta dos cinquenta anos, talvez menos, os cabelos</p><p>completamente grisalhos e a pele branca como as estátuas de</p><p>mármore. Ele me encarava com seus olhos azuis como o mar, tinha o</p><p>nariz grande e os lábios finos demais. Não posso dizer que era belo,</p><p>contudo senti imensa atração por ele, algo que ia além do carnal.</p><p>Ele vestia um quíton de linho que o cobria somente até as coxas e era</p><p>preso por um cinto de couro na cintura e por um broche de ouro no</p><p>ombro esquerdo. Não usava capa ou qualquer outro adereço. Pude</p><p>perceber que, apesar da idade, seu corpo era bem torneado.</p><p>– Ah, meu querido Diodoros! – Sua voz era rouca e acolhedora. – O</p><p>que você fez aos deuses para ganhar tal castigo? Será que algum</p><p>deles se enciumou com a sua beleza e resolveu fazê-lo definhar tal</p><p>como um cão doente?</p><p>– Quem é você? – Mal consegui falar, a respiração ofegante</p><p>incomodava.</p><p>– Você não se lembra? – Ele se aproximou e segurou as minhas mãos</p><p>entre as suas, frias como metal.</p><p>Neguei com a cabeça e olhei-o fixamente. Seus olhos azuis pareciam</p><p>me desnudar e me penetrar sem qualquer pudor.</p><p>– Eu me chamo Zotikos, e venho observando-o há tempos, desde que</p><p>voltou para Atenas – sorriu e mostrou as presas pontiagudas. –</p><p>Frequentei as mesmas festas que você, caminhei pelas mesmas ruas,</p><p>adentrei os mesmos bordéis e me deliciei vendo-o tentar ludibriar</p><p>cortesãs experientes, que sabiam fingir com maestria teatral. Como</p><p>eu me diverti ao ver as pessoas atiradas aos seus pés enquanto você</p><p>só buscava o seu prazer. Era magnífico vê-lo fazer homens poderosos</p><p>se prostrarem de joelhos e implorarem algum carinho seu. Como a</p><p>sua indiferença esnobe o destacava na multidão! Você me atraiu e eu</p><p>atendi o seu chamado.</p><p>– Eu não me esqueceria de um rosto como o seu – tossi e escarrei</p><p>num pano. – Creio que o senhor me confundiu com outro.</p><p>– Não, Diodoros – o homem afagou meus cabelos. – Não há como</p><p>confundi-lo com mais ninguém. Você é único. De fato você nunca me</p><p>viu, pelo menos não diretamente; é quase certo que você já me olhou</p><p>de relance, sem prestar muita atenção. Eu sei bem me ocultar nas</p><p>sombras, ficar praticamente invisível se assim desejar, dom que</p><p>herdei de Érebo. Nos últimos tempos sempre estive ao seu lado,</p><p>mesmo quando a doença o impedia de sair. Vi o belo jasmim</p><p>murchar até restar isso – encarou-me.</p><p>– E por que resolveu se revelar esta noite? – puxei a minha mão de</p><p>entre as suas. – Veio escarnecer de mim? Não preciso que me lembre</p><p>do que já fui um dia. Sinto essa dor incessantemente.</p><p>– Escarnecer? – suas expressões eram quase imutáveis. – Não, meu</p><p>querido Diodoros. Eu não pretendia me mostrar a você. Não ainda.</p><p>Contudo, sinto que os fios que prendem seu espirito a esse corpo já</p><p>estão sendo cortados, um a um.</p><p>– Quer dizer que irei morrer esta noite? – Eu sabia que não duraria</p><p>muito, porém ouvir isso de uma maneira tão convicta e convincente</p><p>foi como levar um soco na boca do estômago.</p><p>– Essa noite, a outra, quem sabe em mais uns três dias... – O homem</p><p>se levantou e caminhou com as mãos para trás. Seus passos não</p><p>emitiam qualquer ruído. – Pode ser que você sufoque daqui a uns</p><p>instantes.</p><p>Senti algo me tapar a garganta, como se as palavras dele tivessem</p><p>poder.</p><p>– O que é você? O que você quer de mim? – As lágrimas mornas</p><p>escorreram pelo rosto sulcado.</p><p>– O que eu sou? – Zotikos observava o céu lá fora. – É uma boa</p><p>pergunta... Deixei de ser humano há tanto tempo que não posso me</p><p>chamar de homem. Tampouco sou um deus, apesar de ter ganhado</p><p>esta nova vida de um deles. Então, acho que você pode apenas me</p><p>chamar de Zotikos, o imortal, ou Zotikos, o noturno, se assim</p><p>preferir.</p><p>– Imortal?</p><p>– Sim, meu querido Diodoros, eu caminho por essa terra há muitos</p><p>séculos. Nasci em Micenas. Outrora fui um marinheiro que singrava</p><p>o Egeu levando tecidos, alimentos e armas para quem me</p><p>contratasse. Quando meu barco foi destroçado pela tempestade e eu,</p><p>moribundo, fui parar em Creta, renasci como um ser que precisa do</p><p>sangue para existir, que está confinado às trevas e só pode caminhar</p><p>à noite. E assim vivo desde então: como um andarilho das sombras.</p><p>– Você se alimenta de sangue? – Aquilo me enojou. – Que tipo de</p><p>monstro você é?</p><p>– Não me vejo como um monstro – ele se sentou ao meu lado</p><p>novamente. – Confesso que no começo eu sofri e me entristeci por</p><p>cada morte que causei. Praguejei por ter que me enfiar em buracos</p><p>escuros antes do Sol nascer e nunca mais poder ver a beleza dos dias</p><p>claros. Contudo não houve injustiça ou maldição. Eu escolhi isso.</p><p>Quando a vida me abandonava na praia rochosa em Creta, as</p><p>sombras me abraçaram e Érebo me ofereceu outra chance. E eu a</p><p>aceitei sem hesitar.</p><p>– E foi isso que você veio me oferecer, Zotikos? – Eu segurei no seu</p><p>braço frio. – Uma nova chance?</p><p>Sem dizer nada, ele mordeu o pulso e o levou à minha boca. Tentei</p><p>afastá-lo, mas eu estava fraco, impotente. O sangue espesso escorreu</p><p>pela minha garganta, amargo. Eu senti náuseas. Eu me debati e</p><p>chorei.</p><p>Até a magia acontecer.</p><p>Quanto mais sangue eu ingeria, menos cansaço eu sentia e a</p><p>costumeira falta de ar se amenizou. Olhei-o e ele sorria. Vamos beba</p><p>e se fortaleça, Zotikos falou diretamente na minha mente. Dei mais</p><p>alguns longos goles e ele puxou delicadamente o braço. Eu não</p><p>queria soltá-lo, eu queria mais. Ele colocou a mão na minha testa e</p><p>me empurrou. Quase que no mesmo instante o rasgo no seu pulso se</p><p>fechou. E aquilo me espantou.</p><p>– Você pode ficar em pé? – Zotikos levantou-se.</p><p>Firmei os pés no chão e, depois de muitas semanas definhando na</p><p>cama, consegui manter-me em pé sem nenhum cansaço ou vertigem.</p><p>Não lembro ao certo, mas devo ter gargalhado.</p><p>– Que tal um passeio? – ele me convidou. – Acho que lhe fará bem.</p><p>Assenti, animado pela minha melhora. Calcei as minhas sandálias de</p><p>couro e o acompanhei. Andamos pelo pomar e paramos debaixo de</p><p>uma figueira. A mesma que por tantas vezes fora testemunha dos</p><p>meus momentos de prazer, com amigos, amigas ou sozinho.</p><p>Estava um breu, mas eu conseguia enxergá-lo perfeitamente, não</p><p>com os olhos, mas com a minha mente. Era muito estranho. Mas o</p><p>que não estava estranho naquela noite?</p><p>Ele colheu um dos figos maduros e me deu. Senti meu estômago</p><p>roncar e consegui comer depois de dias.</p><p>– E se eu lhe dissesse que você também pode viver para sempre? –</p><p>Zotikos me encarou com os olhos azuis fulgurantes.</p><p>– Eu me entregaria à eternidade – respondi, devorando o último</p><p>bocado da fruta doce.</p><p>– Saiba que terá várias privações e muitas provações</p><p>– o homem</p><p>pegou um fruto maduro, cheirou-o e atirou-o longe. – Vê esses figos</p><p>suculentos? Aproveite bem o seu sabor, pois nunca mais poderá</p><p>provar deles ou de outras delícias sem sentir asco.</p><p>– Nada pode ser pior do que morrer jovem – eu estava totalmente</p><p>convicto. – E creio que, quando eu pagar o barqueiro, atravessar o</p><p>rio Aqueronte e a minha alma ficar para sempre no Hades, não terei</p><p>manjar ou carnes tenras. Não! Não quero morrer!</p><p>Ele ficou alguns instantes em silêncio, somente me olhando,</p><p>pensativo.</p><p>– Você vai ser o meu primogênito, talvez o único – Zotikos se</p><p>aproximou devagar. – Estarei ao seu lado nos primeiros passos do</p><p>seu renascimento, mas sinto que por um longo tempo ficaremos</p><p>distantes.</p><p>Então o homem deu o bote e mordeu o meu pescoço ossudo. Sugou</p><p>com força o meu sangue fraco e doentio. Bebeu de mim até me deixar</p><p>no limiar entre a vida e a morte. Ele sustentava o meu corpo</p><p>amolecido com firmeza em seus braços.</p><p>– Você quer mesmo se tornar um filho das sombras? – sua boca</p><p>estava manchada de vermelho.</p><p>Uma coruja deu um rasante ao nosso lado e cravou suas garras em</p><p>um rato. Ele morreu instantaneamente e ela se fartou. Seria um</p><p>presságio dos deuses?</p><p>– Si-sim – a minha voz quase não saiu. – E-eu quero.</p><p>Ele me mordeu novamente e me esvaziou mais. Então, o tempo</p><p>parou e um silêncio opressivo me envolveu. Eu não ouvia mais o</p><p>vento, não sentia mais o chão sob os pés, nem podia sentir os braços</p><p>de Zotikos ao redor do meu corpo desfalecido.</p><p>Pensei que eu havia morrido, que ele havia feito tudo aquilo apenas</p><p>para zombar de mim. Que pelo menos colocasse um óbolo sob a</p><p>minha língua para eu entregar a Caronte.</p><p>Então veio o fogo e retornei ao meu corpo. Senti a brisa, o abraço, o</p><p>aroma dos figos maduros. Eu ainda estava vivo, mas tudo parecia</p><p>diferente. Os sons mais altos, as cores mais vivas, mesmo na</p><p>escuridão.</p><p>Zotikos me soltou e, apesar de fraco, consegui me sustentar. Dei</p><p>alguns passos olhando ao redor. A coruja branca me encarou com os</p><p>olhos enormes, alaranjados, e voou com o restante da carcaça.</p><p>Senti uma pontada no estômago. Soltei uma golfada de vômito, figo</p><p>misturado com sangue. Em seguida minhas tripas se contorceram e</p><p>não consegui segurar: o jorro de merda pastosa me escorreu pelas</p><p>pernas. A dor aumentou, como se todo o meu corpo estivesse sendo</p><p>espetado por agulhas.</p><p>Caí de joelhos, depois de lado, ainda vomitando e me cagando como</p><p>um bebê, sem controle algum sobre o meu corpo.</p><p>Zotikos apenas me observava, o rosto sem qualquer expressão, as</p><p>mãos para trás.</p><p>– Filho de uma cadela, o que você fez comigo!? – praguejei.</p><p>Ele não respondeu.</p><p>Fui tomado por tremores, a visão se embaçou e senti o coração</p><p>acelerar, assim como a minha respiração. Essa agonia pareceu durar</p><p>muito tempo, não sei ao certo quanto, só sei que o meu coração</p><p>parou repentinamente. E a dor cessou. E pela segunda vez naquela</p><p>noite tive a sensação de ter morrido.</p><p>.</p><p>.</p><p>.</p><p>Despertei. Ele estava agachado ao meu lado, afagando os meus</p><p>cabelos. Inspirei e o ar entrou facilmente nos meus pulmões,</p><p>enchendo-os por completo. Fiquei parado por um tempo, apenas</p><p>respirando. Não havia chiados, engasgos ou sufocamento. Eu estava</p><p>limpo, como se nunca tivesse tido a maldita tísica.</p><p>Zotikos me estendeu a mão e eu me levantei com um pulo. E o</p><p>mundo ao meu redor era fascinante.</p><p>– Estou com sede – senti a garganta seca e o estômago vazio.</p><p>Meu criador sorriu.</p><p>– Venha, vamos caçar – ele me guiou pela mão e eu me deixei levar</p><p>como o pupilo que segue seu mestre.</p><p>Caminhamos pela noite e bebemos de mendigos, prostitutas e</p><p>soldados embriagados. Eu queria mais, mas a noite estava quase no</p><p>fim. Zotikos me levou até a sua alcova, que ficava no subterrâneo do</p><p>androceu de uma bela casa, ladeada por jardins bem cuidados. Ele</p><p>tinha alguns empregados e escravos que nos cumprimentaram com</p><p>respeito quando passamos por eles.</p><p>Eles não desconfiam da minha natureza por causa do meu poder,</p><p>da minha vontade – falou diretamente na minha cabeça. Com o</p><p>tempo você ficará cada vez mais forte e desenvolverá dons incríveis.</p><p>Isso me fez sorrir. Ele parou em frente a uma grande porta de</p><p>madeira maciça reforçada com ferro. Fechou os olhos e eu pude ouvir</p><p>o barulho de trancas sendo abertas.</p><p>Ele empurrou a porta com a mão e ela se abriu num rangido.</p><p>Passamos pelo pórtico e ele a trancou sem tocar nela. Isso me fez</p><p>levar a mão à boca. Zotikos fizera isso somente com um pensamento,</p><p>assim como acendeu velas e lamparinas somente com o estalar dos</p><p>dedos.</p><p>– Que magia é essa? – olhei impressionado para o salão de pedra em</p><p>que nos encontrávamos.</p><p>– Magia? – ele riu. – Se prefere chamar os meus poderes de magia,</p><p>que assim seja!</p><p>Gargalhou.</p><p>Ele me banhou e limpou todas as imundícies do meu corpo. Depois</p><p>de bebermos, a nossa pele não estava tão fria e o seu toque me</p><p>excitava. Penteou os meus cabelos com suavidade e me perfumou</p><p>com água de flores.</p><p>– Agora venha, Diodoros, você precisa descansar – apontou para a</p><p>sua cama.</p><p>Obedeci e deitei-me com ele. Antes do torpor do sono me dominar</p><p>completamente, bebi um pouco mais dele e ele de mim e isso me deu</p><p>um imenso prazer.</p><p>*</p><p>Vejo que ainda não adormeceu. Sou um bom contador de histórias?</p><p>Sim, concordo, tudo isso é fascinante. Eu mesmo me pego lembrando</p><p>esses tempos que passei ao lado do meu mestre, do meu querido</p><p>Zotikos. Ele foi um pai, um amigo, um amante... Foi meu confidente</p><p>sem nunca me julgar, foi aquele que, pela primeira vez na minha</p><p>vida, mostrou-me que eu não estava sozinho.</p><p>Onde ele está? Essa é uma boa pergunta! Nos separamos há dois</p><p>séculos...</p><p>Não, nós não brigamos. Ao contrário, a nossa separação foi com</p><p>muito pesar, com muitas promessas de reencontro. Por mim ainda</p><p>estaria junto dele, absorvendo tudo aquilo que ele me provia,</p><p>contudo ele me disse que tinha assuntos a resolver no Oriente. Não</p><p>me contou detalhes, como era do seu feitio, apenas disse que queria</p><p>conhecer “alguém tão antigo quanto ele”.</p><p>Sim, há vários de nós. Não tantos quanto os mortais, claro. Durante</p><p>meus séculos de vida cruzei com três imortais, todos mais novos do</p><p>que eu. Dois gêmeos recém-renascidos para as trevas, e que fui</p><p>obrigado a matar...</p><p>Ah, essa é uma longa história. Eles eram muito insolentes e estavam</p><p>causando problemas ao caçar desregradamente na minha querida</p><p>Atenas. Isso poderia afetar a minha paz. E o equilíbrio conquistado</p><p>por Zotikos. Eu lhes dei três chances, eles me esnobaram,</p><p>continuaram as matanças. Viraram cinzas ao ser tocados pelo Sol.</p><p>Machuquei-os muito. Destruí seus corpos. Amarrei as carcaças</p><p>moribundas em uma árvore e deixei Hélio fazer o seu trabalho. Ouvi</p><p>os gritos de agonia enquanto suas carnes se transformavam em</p><p>carvão. Confesso que eles me deram muito prazer.</p><p>Viu só, até um monstro como eu segue um padrão, digamos,</p><p>aceitável. Eles poderiam estar vivos, bastava ir embora e nunca mais</p><p>voltar. Sequer me escutaram, ignoraram todos os meus avisos,</p><p>vociferaram maledicências, preferindo continuar com o seu perigoso</p><p>jogo. Eram dois imprestáveis que nunca deveriam ter ganhado o</p><p>nosso dom. Não vão fazer falta. Nenhuma.</p><p>A outra era uma menina, Tita, a romana. Ela tinha um nome</p><p>comprido, difícil e pomposo, do qual não me recordo. Apenas me</p><p>lembro dela como Tita, a garota sardenta que me fez rir pelas várias</p><p>noites que passamos juntos. Não tinha nem cem anos de</p><p>transformada e já era experiente e letal; seus poderes não condiziam</p><p>com a sua pequena estatura e corpo franzino. Ao contrário de mim,</p><p>quem a transformou não lhe ensinou nada, ela foi jogada nas trevas</p><p>sem qualquer ensinamento. A menina Tita teve que aprender tudo</p><p>sozinha e sofreu bastante por isso. Em contrapartida ficou forte. Eu a</p><p>vejo de vez em quando nos meus sonhos, vagando pela Itália, e sei</p><p>que ela também pode me ver.</p><p>O que ela veio fazer aqui? Ela veio procurar os deuses. Como os da</p><p>sua Roma não passavam de estátuas inertes, ela tinha esperança de</p><p>encontrar algum vivo por esses lados. Frustrou-se, a pobrezinha. Eu</p><p>mesmo nunca esbarrei</p><p>em um. E só acredito na existência deles por</p><p>causa do meu mestre Zotikos, que fora transformado em imortal por</p><p>um deus.</p><p>E desde o encontro com Tita eu prossigo sozinho a cada noite. Sei</p><p>que reencontrarei meu salvador, mas não agora. Quem sabe daqui a</p><p>uns anos ou séculos? Nosso destino já está traçado e já percorremos</p><p>os caminhos definidos, e quando for o momento certo, poderei revê-</p><p>lo.</p><p>*</p><p>Sei que você aprecia as minhas histórias, contudo sinto seu espírito e</p><p>sua mente irrequietos. Eles me transmitem a imagem de um mar</p><p>revolto, ondas que se quebram em um rochedo e ventos fortes que</p><p>açoitam as plantas nas encostas.</p><p>Você se deleitou com cada palavra, com total devoção, mas agora</p><p>quer algo mais, não é? Quer ir além e descobrir se minhas histórias</p><p>eram reais. Na verdade você não duvida delas, quer apenas senti-las.</p><p>Você quer algo mais concreto.</p><p>Não precisa olhar para baixo, nem tentar disfarçar, você não</p><p>consegue. Não poderia nem que usasse toda a usa energia para</p><p>ocultar seus pensamentos de mim.</p><p>Sim, eu nunca me engano, suas ideias são claras como uma bela</p><p>noite de lua cheia e céu estrelado. Você clamou tanto por mim que</p><p>resolvi ceder. Queria saber tanto quem eu era e eu lhe contei uma</p><p>parte da minha longa vida. Agora sei que quer mais. Seus olhos</p><p>suplicam. Sua ansiedade é palpável. E dolorosa.</p><p>Agora eu lhe pergunto: por que eu deveria atender aos seus anseios?</p><p>Você pode dar um argumento melhor do que esse. Pare de espernear</p><p>e pense em uma resposta digna!</p><p>Sim, eu quero a verdade nua, não quero meias-palavras, quero que</p><p>você me escancare tudo, apesar de eu já conhecer cada recôndito da</p><p>sua alma.</p><p>Melhor assim. Quem não se fascina com a imortalidade? Quem não</p><p>quer ter o poder de um deus? Ah, como somos atraídos pelo poder!</p><p>Somos como mariposas atraídas pelo brilho das chamas.</p><p>Logo irá amanhecer teremos que ser breves. Ou podemos deixar tudo</p><p>para a próxima noite?</p><p>Ahahaha! Eu sei que você não aguentaria, posso ouvir seu coração</p><p>daqui, explodindo no peito.</p><p>O que aconteceria se eu desaparecesse? Sumisse por umas semanas,</p><p>meses ou anos? Eu tenho todo o tempo do mundo. E você, saberia se</p><p>controlar? Acredito que não. Você viraria um trapo, com a mente em</p><p>frangalhos, enlouqueceria e vagaria pelas ruas imundas sem saber</p><p>para onde está indo.</p><p>Se eu teria coragem de fazer isso com você? Claro! Como já lhe disse,</p><p>não tenho qualquer arrependimento. Essas maldadezinhas me</p><p>animam. Mesmo porque eu não teria qualquer culpa. Você veio a</p><p>mim e eu nunca disse que era bom ou caridoso.</p><p>Não adianta se atirar de joelhos e agarrar as minhas pernas tal como</p><p>uma criança birrenta faz com a sua mãe. Você nunca poderia me</p><p>prender. Levante-se antes que a última migalha da sua dignidade se</p><p>acabe.</p><p>Assim... Eu prefiro o seu abraço, sentir o calor do seu corpo junto ao</p><p>meu.</p><p>Você não sabe o que está me pedindo. O meu beijo não é tão gostoso</p><p>quanto imagina. Por que não esquecemos tudo e você vai viver a sua</p><p>vida? Você ainda tem longos anos pela frente, seu desespero é</p><p>injustificável.</p><p>Como você se oferece com tanta facilidade. Como se apega a uma</p><p>ideia que nem tem certeza de como é na realidade. E se eu for um</p><p>mentiroso? E se a minha vida não passar de uma grande merda? E se</p><p>eu fingi, encenei tudo? Você arriscaria mesmo assim? Jogaria tudo</p><p>para o alto?</p><p>Coragem e convicção não estão muito distantes da idiotice. Andam</p><p>de mãos dadas.</p><p>Nada que eu falar o fará mudar de ideia, certo? Você deseja o meu</p><p>beijo mais que tudo. E sofre por ainda não ter conseguido. E, mesmo</p><p>que eu o abandone, você continuará a me perseguir enquanto viver,</p><p>não é?</p><p>Que seja feita a sua vontade! Você quer o meu beijo? Então você o</p><p>terá!</p><p>.</p><p>.</p><p>.</p><p>Por mais que eu beba, não me enjoo do sangue. E o seu é delicioso,</p><p>sinto a presença do vinho que você acabou de beber.</p><p>Fui generoso em não lhe causar qualquer dor. Eu poderia, se assim</p><p>desejasse, tornar esse momento um fardo, fazer com que as suas</p><p>veias doessem como se estivesse sendo rasgadas. Você não merece.</p><p>Apesar da sua insistência estúpida e patética, gostei de você.</p><p>Descanse na minha cama. Sei que exauri as suas forças, mas logo</p><p>tudo estará acabado.</p><p>Sim, mesmo à beira da morte o seu sorriso é lindo. Gostaria de ouvir</p><p>um pouco de música? Quer me ouvir tocar a lira? Permita-me</p><p>cantarolar uma canção de amor, sei que ela é perfeita para esse</p><p>momento.</p><p>“Quantas vidas vivi sem encontrar o amor?</p><p>Meu coração bate no peito sem qualquer calor</p><p>Caminho no vazio perdido da negra solidão</p><p>A felicidade partiu, restou-me a escuridão.”</p><p>Ouço o badalar do sino. Logo o Sol irá raiar majestoso. Espero que</p><p>você tenha aproveitado muito bem os seus dias, a sua vida, pois</p><p>nunca mais vai desfrutar do amanhecer.</p><p>“Você acreditou nas minhas promessas</p><p>E me entregou seu sangue, seu coração</p><p>Agora sua vida se esvai sem pressa</p><p>Enquanto você ouve ecos dessa canção.</p><p>O sangue mancha o branco lençol</p><p>O brilho das velas tal como um farol</p><p>Que guia a alma atordoada</p><p>Pelo começo da longa jornada.</p><p>Nunca lhe prometi nada, continuo sem arrependimentos</p><p>E agora você dorme e sonha ser imortal</p><p>Aproveite a ilusão desse momento</p><p>Enquanto sua alma se despede do corpo carnal.”</p><p>Depois do meu beijo, o último suspiro. Pousei a lira no peito que já</p><p>não se movia e voei pela noite com a primeira claridade do dia às</p><p>minhas costas. E a canção que acabara de inventar não me saía da</p><p>cabeça.</p><p>Contos do Dragão</p><p>Este livro faz parte da coleção Contos do Dragão, o maior acervo de contos publicados de</p><p>forma individual do Brasil. Fantasia, Ficção Cientifica, Terror, Policial, Chick-Lit, Romance</p><p>Paranormal, Erotismo e muito mais. Conheça outros títulos em</p><p>www.editoradraco.com/contos</p><p>http://www.editoradraco.com/contos</p><p>Capa</p><p>Folha de rosto</p><p>Créditos</p><p>Ao som de uma canção de amor você sangrava – Eduardo Kasse</p><p>Contos do Dragão</p>