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<p>MÚSICA E EDUCAÇÃO</p><p>INFANTIL</p><p>Beatriz Ilari</p><p>Angelita Broock</p><p>(orgs.)</p><p>>></p><p>http://www.papirus.com.br/</p><p>http://www.papirus.com.br/</p><p>SUMÁRIO</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>1. “UMA BORBOLETA NAS TECLAS DO PIANO”: SIGNIFICADO</p><p>E DESENVOLVIMENTO MUSICAIS</p><p>Cecília Cavalieri França</p><p>2. VARIAÇÕES SOBRE TEMAs DE DESENVOlVIMENTO</p><p>MUSICAL E CRIAÇÃO ARTÍSTICA PARA A INFÂNCIA</p><p>Helena Rodrigues, Nuno Arrais e Paulo Maria Rodrigues</p><p>3. HABILIDADES MUSICAIS E CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA:</p><p>REFLETINDO SOBRE O DESENVOLVIMENTO INFANTIL</p><p>Caroline Brendel Pacheco</p><p>4. SINAIS MUSICAIS: O CORPO COMO A PRIMEIRA</p><p>REPRESENTAÇÃO DA LÓGICA MUSICAL PELA CRIANÇA</p><p>Ricardo Dourado Freire e Sandra Ferraz de Castillo Dourado</p><p>Freire</p><p>5. SIGNIFICAÇÕES QUE POSSIBILITAM A COMPREENSÃO</p><p>MUSICAL</p><p>Leda de Albuquerque Maffioletti</p><p>6. CRIANÇAS NA UNIVERSIDADE?</p><p>Angelita Maria Vander Broock</p><p>7. PLANEJAMENTO NA MUSICALIZAÇÃO INFANTIL</p><p>Vivian Agnolo Madalozzo e Tiago Madalozzo</p><p>8. APRENDER NA CASA</p><p>Paulo Maria Rodrigues e Helena Rodrigues</p><p>NOTAS</p><p>SOBRE OS AUTORES</p><p>REDES SOCIAIS</p><p>CRÉDITOS</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>Uma família com cinco crianças, todas com menos de sete anos, se acomoda nas</p><p>poltronas de um ônibus interestadual. Pai, mãe e avó negociam e organizam as</p><p>crianças nas poltronas, inclusive o “quem senta com quem” do início da viagem.</p><p>Vozes e risadas preenchem o ambiente inóspito do ônibus, agora em movimento. A</p><p>paisagem da janela, por vezes monótona e repetida, dá origem a comentários</p><p>animados e risadas empáticos: “Olhe aquele homem de chapéu!”, “Mamãe, tem</p><p>pamonha ali”, “Veja, mano, que vaca magrinha!”.</p><p>O ônibus segue. Outras paisagens, não tão diferentes assim, passam…Uma</p><p>borracharia. Um atacadista. Uma favela. Cachorros correndo. Dentro do ônibus,</p><p>bolachas, laranjas e garrafas de suco quente passam de mão em mão. As crianças</p><p>trocam de lugar, numa constante luta contra o tédio. A viagem é longa.</p><p>De repente, alguém se lembra de cantar. De longe, ouve-se o canto tímido de duas</p><p>meninas. Outra menina une-se ao grupo e em seguida, um divertido jogo de mãos</p><p>acontece. A menina menor às vezes erra um gesto ou verso, o que a irmã mais</p><p>velha não deixa passar, fazendo correções. Entre os passageiros, há os</p><p>incomodados e os indiferentes, porém um grupo maior se rende ao jogo animado,</p><p>acompanhando e cantarolando os versos, que mudam constantemente. O tempo</p><p>passa e o ponto de chegada se aproxima.</p><p>Cenas como esta são comuns no dia a dia das crianças. A música</p><p>está presente na vida delas de inúmeras maneiras – do bebê que move o</p><p>corpo ao som de uma canção conhecida, da criança pequena que inventa</p><p>uma canção ao embalar o urso de pelúcia à outra que dança, imitando os</p><p>gestos de sua banda de axé favorita. Outras crianças participam de</p><p>programas de educação musical formal, sendo expostas, de maneira</p><p>mais direta, às formalidades e regras da música. Essas crianças</p><p>demonstram que não estão apenas aprendendo a música – formal ou</p><p>informalmente –, mas que estão desenvolvendo habilidades musicais e</p><p>extramusicais por meio das experiências. Assim, ao pensarmos na</p><p>música na educação infantil, imediatamente pensamos em</p><p>desenvolvimento musical.</p><p>Este livro nasceu da necessidade de reunirmos, em um único</p><p>volume, textos baseados na teoria e na prática relativas às experiências</p><p>musicais das crianças pequenas. É importante notar que adotamos aqui</p><p>a definição de crianças pequenas[1] como sendo aquelas que estão entre</p><p>o período pré-natal e os oito anos de idade, conforme sugerido pela</p><p>Organização Mundial de Saúde, pela Associação Norte-Americana para</p><p>a Educação das Crianças Pequenas, pela Comissão de Educação</p><p>Musical Infantil da Sociedade Internacional de Educação Musical, entre</p><p>outras. Utilizamos essa definição – e não aquela empregada pela</p><p>legislação brasileira – porque ela se alinha com as principais teorias do</p><p>desenvolvimento musical encontradas na literatura mundial.</p><p>Imaginamos que tal definição daria aos autores maior liberdade em seus</p><p>textos, posto que, em alguns programas de ensino de música, os grupos</p><p>etários são organizados com base em outros critérios que não a idade de</p><p>escolarização obrigatória.</p><p>Partindo dessa definição básica, convidamos especialistas em</p><p>educação musical infantil, do Brasil e de Portugal, para contribuírem</p><p>com um capítulo.</p><p>Não surpreendemente, todos os capítulos estão relacionados, direta</p><p>ou indiretamente, à ideia de desenvolvimento musical, ou às mudanças</p><p>ligadas aos comportamentos, às atitudes, aos significados e aos valores</p><p>associados ao fazer musical, no decorrer do tempo. Alguns autores</p><p>entendem o desenvolvimento musical como um processo atrelado a</p><p>grupos e faixas etárias específicas, aos passo que outros o concebem de</p><p>maneira menos rígida. Além disso, o desenvolvimento musical é</p><p>discutido aqui com base em metodologias e pressupostos teóricos</p><p>distintos, o que só faz enriquecer ainda mais a obra.</p><p>Todos os capítulos combinam teoria e prática em educação musical</p><p>infantil. No entanto, em alguns deles é possível notar uma ênfase maior</p><p>na teoria. Por exemplo, Cecilia Cavalieri França, fundamenta-se em</p><p>trabalhos anteriores do educador musical inglês Keith Swanwick e em</p><p>textos da filosofia para discutir como as criancas pequenas se</p><p>desenvolvem musicalmente. Caroline Brendel Pacheco, por sua vez,</p><p>traz à baila o debate acerca das relações entre as habilidades musicais</p><p>(rítmicas e melódicas) e a consciência fonológica em crianças de quatro</p><p>a cinco anos, usando como referencial teórico diversos estudos recentes</p><p>da psicolinguística e da psicologia da música. Helena Rodrigues, Nuno</p><p>Arrais e Paulo Maria Rodrigues discutem o desenvolvimento musical e</p><p>a criação artística para a infância, tomando por base os trabalhos de</p><p>Edwin Gordon, Colwyn Trevarthen e Ian Cross. O capítulo é ilustrado</p><p>com exemplos extraídos do belíssimo projeto português intitulado</p><p>BebêBabá. Já Leda Maffioletti discorre sobre a questão das</p><p>significações musicais e a compreensão musical, usando como base os</p><p>escritos do musicólogo inglês Ian Cross.</p><p>Outros capítulos do livro tendem a dar mais peso à questão da</p><p>prática, porém sempre sustentada por um rico arcabouço teórico.</p><p>Ricardo e Sandra Freire discutem a constituição dos sinais musicais</p><p>pelas crianças, propondo a ideia do “corpossolfa”. O capítulo de</p><p>Angelita Broock aborda a questão dos programas de extensão</p><p>universitária em educação musical infantil e sua importância para a</p><p>formação de professores. Na sequência, Vivian Agnolo Madalozzo e</p><p>Tiago Madalozzo compartilham suas experiências com o planejamento</p><p>de aulas e desenvolvimento de currículos para a educação musical</p><p>infantil. Por fim, Paulo Rodrigues e Helena Rodrigues apresentam uma</p><p>descrição detalhada dos programas de educação musical para crianças</p><p>pequenas da Casa da Música, em Lisboa, Portugal.</p><p>Em conjunto, esses textos dão a ideia dos desenvolvimentos</p><p>recentes na área da educação musical infantil, sugerindo novas</p><p>possibilidades. Esperamos que este livro inspire novos</p><p>desenvolvimentos na área, na teoria e na prática. Convidamos todos</p><p>para participarem conosco deste grande jogo de mãos que é o estudo da</p><p>educação musical infantil!</p><p>A todos, uma boa leitura.</p><p>Beatriz Ilari e Angelita Broock</p><p>Los Angeles e Salvador, abril de 2013.</p><p>1</p><p>“UMA BORBOLETA NAS TECLAS DO PIANO”:</p><p>SIGNIFICADO E DESENVOLVIMENTO</p><p>MUSICAIS</p><p>Cecília Cavalieri França</p><p>São 8 horas da manhã; 25 crianças do 3º ano de uma escola regular</p><p>saem pulando assim que ligo o som. Não há como evitar. Durante os 30</p><p>segundos de duração da música, elas agitam os braços e batem os pés</p><p>vigorosamente. Zanzam pela sala esbarrando umas nas outras, às</p><p>gargalhadas. A percepção, a prontidão do afeto e a disponibilidade</p><p>corporal atuam em conjunto, impelindo as crianças a se fazerem</p><p>saltitantes e espevitadas – como a música. “De novo!”, pedem em coro.</p><p>A peça “Vermelho” é uma vinheta que começa com um glissando</p><p>do registro grave ao agudo do piano, gerando expectativa quanto ao que</p><p>virá. Entram acordes repetidos no registro médio-agudo, sempre</p><p>staccato, em compasso 5/8, muito rápido. Os baixos vão subindo em</p><p>direção ao agudo, conduzindo a harmonia com os acordes da mão</p><p>ou de demarcação</p><p>territorial nos mamíferos etc.). Nessa perspectiva, segundo artigo de</p><p>Bretherton (1992), John Bowlby desenvolveu estudos sobre a vinculação</p><p>– attachment – nos humanos e, atraído pelo fenômeno de impregnação –</p><p>imprinting –, defendeu a perspectiva segundo a qual há um período</p><p>crítico, necessariamente nos primeiros tempos de vida, em que o bebê</p><p>estabelece uma relação identitária essencial com a mãe. Schaffer (1996)</p><p>diz, a propósito da teoria de Bowlby, que, tal como a alimentação, essa</p><p>relação vinculativa é uma necessidade básica, essencial à sobrevivência</p><p>do bebê. É pelo choro, pelo balbucio ou pelo sorriso que o bebê provoca</p><p>a necessidade de aproximação em seu cuidador, a qual, quando</p><p>estabelecida, passa a ser uma relação privilegiada. No início, essas</p><p>relações são indiscriminadas, mas vão-se focalizando e, com o tempo,</p><p>acabam por se organizar em sistemas de vinculação mais alargados.</p><p>A infância pode ser moldada por relações de vínculo com vários</p><p>indivíduos, e sua escolha depende da qualidade dessas relações.</p><p>Alargando-se gradualmente do núcleo mãe-bebê para outros elementos –</p><p>familiares ou cuidadores –, a vinculação é fundamental no</p><p>desenvolvimento de competências comunicacionais e de relacionamento</p><p>interpessoal. Montagner (1993, p. 225) diz a esse respeito que</p><p>A passagem do ser limitado unicamente às funções biológicas ao indivíduo social já</p><p>não é um salto miraculoso. Constrói-se com escutas e apelos trocados com a mãe,</p><p>balbuciamentos do jogo de interações que abre à criança a via do diálogo. As</p><p>mímicas, o olhar, o sorriso, as posturas, os gestos, os contatos, a voz, ganham</p><p>progressivamente sentido; tornam-se mensagens, trocam conhecimentos e emoções.</p><p>A concepção de “BebêPlimPlim” radica, pois, numa metáfora: à</p><p>monodia do workshop segue-se a polifonia do espetáculo. Ou, em outras</p><p>palavras, o colo é lugar de vinculação, e esta é uma primeira estância da</p><p>socialização. Mas a pequena linha melódica ou a mais sofisticada</p><p>orquestração nada mais são que um hino ao desejo de contato humano</p><p>que nos define como espécie.</p><p>Como foi referido, o mesmo material musical e artístico serve de</p><p>base ao workshop e ao espetáculo “BebêPlimPlim”. Os temas musicais</p><p>são idênticos, embora tratados musical e cenicamente de forma diferente</p><p>e com diferentes níveis de complexidade – uma ideia que, em sua</p><p>essência, terá alguma ligação com a muito difundida ideia de Bruner,</p><p>segundo a qual é possível ensinar qualquer assunto, de forma sincera, a</p><p>qualquer criança, em qualquer estágio de desenvolvimento.</p><p>A voz e o movimento são os principais meios expressivos dos</p><p>músicos que atuam em “BebêPlimPlim”. Caberá aqui lembrar que vários</p><p>estudos têm demonstrado a importância da voz humana para o bebê –</p><p>ver, por exemplo, DeCasper e Fifer (1980) –, e que também no âmbito da</p><p>musicoterapia a voz tem sido vista como um importante “objeto</p><p>intermediário”. Conforme foi anteriormente mencionado, Gordon</p><p>(2000a) refere-se igualmente à voz humana como o meio musical mais</p><p>capaz de captar a atenção dos bebês. Assim, em “BebêPlimPlim”, é dada</p><p>grande primazia à voz. Da voz como brinquedo sonoro até à canção de</p><p>ninar, passando por sofisticadas brincadeiras de fonemas, sílabas e rimas,</p><p>são várias as viagens vocais que estabelecem ligação com sonoridades de</p><p>maior intimidade e interioridade. “BebêPlimPlim” é ainda um gramelot</p><p>de vocalizações de bebês, tratadas eletronicamente, e de variações</p><p>musicais que passam por Bach, Monk, Schwiters, Balla, gamelão e</p><p>música tradicional portuguesa.</p><p>A metáfora está também presente em termos plásticos e visuais:</p><p>assim, o ambiente-alvo que acolhe o workshop transforma-se, no</p><p>espetáculo, numa tela onde se pinta com luz e vídeo e onde se constroem</p><p>formas mundanas a partir de grandes formas redondas. Em permanente</p><p>mutação, e de forma abstrata, o cenário leva o público às florestas, ao</p><p>céu, a um navio, ao fundo do mar, a tantos sítios quantos a imaginação</p><p>produz a partir das cores e das formas. Os atores/cantores de</p><p>“BebêPlimPlim” são seres enigmáticos, divertidos, hesitantes e meigos.</p><p>Habitam um espaço imersivo que por vezes se estende ao público,</p><p>tentando estabelecer contato por meio de um “musiquês universal”,</p><p>como se essa fosse a raiz de toda a comunicação.</p><p>Enfim, é uma forma artística de traduzir uma ideia sobre a qual</p><p>Malloch e Trevarthen nos fizeram pensar e que perpassa ao longo do</p><p>livro Communicative musicality: Exploring the basis of human</p><p>companionship (2008) – a ideia de que existe um fio condutor entre a</p><p>“musicalidade comunicativa” das primeiras interações humanas e a</p><p>comunicação emocional da performance musical. Assim, o imaginário</p><p>gerado pelo conceito de “musicalidade comunicativa” de Malloch e</p><p>Trevarthen foi inspirador para a criação de “BebêPlimPlim” e para a</p><p>renovação do nosso vocabulário.</p><p>Maya Gratier[5] refere-se ao termo cunhado por aqueles autores da</p><p>seguinte forma: “afinal o que é a ‘musicalidade comunicativa’? Ou o que</p><p>não é? Não é ‘música’ no sentido de um conjunto de padrões sonoros</p><p>organizados de uma forma sofisticada. É algo que não requer</p><p>competências especiais ou virtuosismo”. Para aqueles autores, a</p><p>“musicalidade comunicativa” é um princípio de organização intrínseca e</p><p>simpática dos movimentos e gestos (corporais e vocais) presentes na</p><p>interação que se estabelece entre o bebê e os que lhe estão próximos. No</p><p>estudo citado, a interação entre uma mãe e um bebê é descrita em termos</p><p>de pulsação, qualidade e narrativa, parâmetros estes com que os autores</p><p>balizam o conceito e que são de natureza diferente dos usados nos</p><p>estudos sobre o “maternalês”.</p><p>A ideia subjacente à concepção de “BebêPlimPlim” é, pois, a de que</p><p>os germes do ritmo e da vibração – o canto e a dança – nascem no colo,</p><p>no berço das primeiras interações comunicativas. Ou seja, trata-se de</p><p>pensar a música como algo biologicamente inscrito na nossa matriz</p><p>comunicacional que se manifesta quer nas primeiras interações, quer na</p><p>performance de músicos de alto nível. Daí que a criação musical (criação</p><p>em sentido lato – interpretação, composição, audição) seja por nós</p><p>entendida como uma extensão da necessidade de ligação com que se</p><p>nasce. É, pois, um fio comunicacional o que ata o branco, as formas e o</p><p>material musical que compõem o workshop e o espetáculo de</p><p>“BebêPlimPlim”.</p><p>Variação sobre o tema “AliBaBach”</p><p>“AliBaBach” é uma criação artística para pais e bebês que, num</p><p>exercício livre e eclético, explora o universo de J.S. Bach por meio da</p><p>reinvenção de elementos musicais provenientes das Variações Goldberg.</p><p>Num ambiente cênico de grande plasticidade, duas vozes em</p><p>movimento, respirando Bach, traçam uma fluida viagem entre a música</p><p>vocal erudita e étnica, dando a ouvir excertos musicais ricos e</p><p>contrastantes. A peça desenrola-se ao longo de uma série de quadros,</p><p>cruzando música, dança e teatro, sendo pontuada por jogos dramáticos e</p><p>pela intervenção ocasional de instrumentos de brincar. Alguns dos</p><p>elementos cenográficos são por vezes usados como fonte de recursos</p><p>musicais, numa espécie de “variação” sobre a própria ideia cenográfica.</p><p>É o caso, por exemplo, de um balão de látex utilizado como instrumento</p><p>de percussão, de um piano de brincar e de um violoncelo usados como</p><p>contraponto à voz dos intérpretes ou de uma melódica alimentada com o</p><p>ar de um dos balões do cenário.</p><p>"AliBach" apresentado no Teatro Garcia deResende, Évora, Portugal.</p><p>Relativamente ao processo de criação desta obra, há que referir que</p><p>a ideia de “variação” foi desenvolvida de uma forma muito aberta, com</p><p>algumas semelhanças conceituais com a versão das Variações Goldberg,</p><p>de Uri Caine. Nesse caso, cada “variação” é um quadro músico-teatral</p><p>composto por vocabulário cênico, vocal e corporal, que resulta de uma</p><p>troca de recursos expressivos de ambos os intérpretes (uma cantora e um</p><p>bailarino), tendo Bach como principal fonte de inspiração. Elementos</p><p>basilares do discurso musical, de natureza corporal e vocal, são usados</p><p>pelos intérpretes como mediadores de comunicação com os bebês e seus</p><p>cuidadores, convocando pais e filhos para um envolvimento</p><p>muito</p><p>especial e para uma primeira abordagem à construção da compreensão</p><p>musical. A cumplicidade e a interatividade com o público são nota</p><p>distintiva nessa criação, caracterizada por uma atmosfera de íntima</p><p>serenidade e delicado perfume poético.</p><p>À semelhança da criação anterior, as ideias de Colwyn Trevarthen</p><p>inspiraram, de algum modo, o referido trabalho. Num dos contatos tidos</p><p>com esse investigador, fomos despertados para o significado da palavra</p><p>amae, cunhada pelo psicanalista japonês Takeo Doi, que remete para o</p><p>desejo de ser cuidado por alguém, para o apelo “tomem conta de mim!”,</p><p>que é percebido pelo cuidador. É o desejo de um aconchego íntimo que é</p><p>interiormente (subjetivamente) partilhado e percebido por dois sujeitos</p><p>em interdependência. No fundo, uma ideia que não anda muito longe do</p><p>conceito de intersubjetividade presente em obras de autores como</p><p>Trevarthen e Aitken (2001) e Stern (2006). Particularmente inspiradora</p><p>para nós é a seguinte afirmação de Stern (2006, p. 108):</p><p>“Independentemente da maneira como definimos intersubjetividade, ela</p><p>tem de funcionar tanto nos grupos como nas díades. O casal é um</p><p>subsistema das unidades básicas de adaptabilidade evolutiva: a família e</p><p>a tribo”.</p><p>Baseados nesse pensamento, façamos a ponte com “AliBaBach”: a</p><p>experiência de participação coletiva num evento como esse é uma</p><p>experiência de intersubjetividade. E, lá está, há momentos de</p><p>intersubjetividade partilhados pelas díades bebê-cuidador, momentos de</p><p>intersubjetividade partilhados pela “tribo”. Numa peça como</p><p>“AliBaBach”, a utilização pelos intérpretes de um determinado material</p><p>dramático ou musical gera a existência de um dado significado que é</p><p>partilhado – vivenciado coletivamente – pela audiência. Os espectadores</p><p>(adultos ou bebês) podem estar de acordo quanto à atribuição de</p><p>determinado significado ou quanto à divergência deste. O certo é que</p><p>existe sempre a partilha de determinado significado (independentemente</p><p>da descodificação ir no sentido da convergência ou da divergência</p><p>deste).</p><p>Seguindo esse ponto de vista, vemos na contemplação suscitada</p><p>pelas manifestações artísticas, e na própria participação no ato artístico,</p><p>formas primeiras de comunicação. A manifestação artística ou a sua</p><p>contemplação são exercícios de intersubjetividade e ocorrem bem cedo</p><p>na existência humana.</p><p>A contemplação de uma criação artística ou a participação no ato</p><p>artístico podem proporcionar uma experiência de “fluxo”: conceito</p><p>proposto pelo psicólogo Csikszentmihalyi (2002) e que sumariamente</p><p>definimos como um estado de espírito em que o sujeito está totalmente</p><p>imerso e envolvido naquilo que ele está vivenciando. Em nossa opinião,</p><p>a vivência de uma experiência de fluxo coletivo é uma poderosa forma</p><p>de intersubjetividade – estamos ligados emocionalmente ao objeto</p><p>artístico e, simultaneamente, estamos também conectados com os</p><p>sujeitos que se ligam ao mesmo objeto, por meio de determinada energia</p><p>emocional.</p><p>Em “AliBaBach” está, pois, subjacente o fio condutor para a</p><p>interação e a criação artísticas: a expressão emocional. De acordo com</p><p>Schubert e McPherson (2006), não havendo indicadores precisos de que</p><p>a percepção emocional na música seja inata, sabe-se, no entanto, que os</p><p>bebês detectam desde cedo as emoções básicas presentes nas canções de</p><p>ninar e na informação prosódica fornecida por seus cuidadores. A</p><p>complexidade e a variedade de nuances presentes na percepção da</p><p>emoção musical não se limitam a um processo simples e dependente de</p><p>variados fatores de influência ambiental, como a aculturação.</p><p>Schubert e McPherson (ibid.) nos dizem que, aos três anos de idade,</p><p>a correspondência direta entre música e emoções básicas é evidente, e</p><p>que ela se mantém até aos sete anos, idade a partir da qual as associações</p><p>culturais começam a influenciar a apreciação emocional, possibilitando</p><p>também a discriminação de emoções pouco intensas. De acordo com os</p><p>autores, a apreciação emocional da música ao longo do desenvolvimento</p><p>humano vai-se tornando cada vez mais complexa, variando entre o valor</p><p>emocional intrínseco da música (schematic – o que resulta diretamente</p><p>das características acústicas, dos aspectos formais e do conteúdo</p><p>musical) e a informação extrínseca associada à música (veridical – o que</p><p>resulta dos aspectos ecológicos). Veja-se, por exemplo, a adolescência,</p><p>período em que a música tem um papel fundamental no estabelecimento</p><p>de laços afetivos e sociais, e em que o seu valor emocional extrínseco é</p><p>notório. Por seu lado, um adulto com conhecimentos musicais mais</p><p>aprofundados poderá centrar-se na apreciação da arquitetura e da</p><p>composição musical e, cruzando-as com toda a sua imagética e vivência</p><p>musical, retirar um vasto espectro de emoções.</p><p>Também Trehub, Hannon e Schachner (2010) defendem que a</p><p>resposta emocional dos bebês à música é influenciada pela interação</p><p>social com os cuidadores que, por meio da comunicação não verbal,</p><p>estimulam e modulam as suas reações. As primeiras reações emocionais</p><p>aos aspectos intrínsecos da música são evidentes, mas a interação mãe-</p><p>bebê reforça o sentimento de segurança e de conforto que um momento</p><p>musical pode proporcionar, intensificando seu conteúdo expressivo.</p><p>Reiterando a perspectiva de que a experiência emocional pela música</p><p>está intrinsecamente ligada ao plano afetivo, os referidos autores (2010,</p><p>p. 661) alegam: “Até a maturidade, a resposta à música mantém a sua</p><p>função social básica, quer promovendo a regulação emocional –</p><p>incluindo a autorregulação – quer a ligação com os outros”.</p><p>Em “AliBaBach”, tal como na maioria dos projetos da Companhia</p><p>de Música Teatral, o acesso à informação emocional intrínseca está</p><p>presente desde o início. Os espectadores são envolvidos e convidados a</p><p>participar, explorando as matérias musicais e os materiais sonoros,</p><p>acedendo informalmente à matéria expressiva das formas e conteúdos</p><p>utilizados nos workshops e nos espetáculos. Nesse contexto, os adultos</p><p>funcionam também como catalisadores da informação – ao mesmo</p><p>tempo receptores, produtores e emissores do conteúdo emocional –,</p><p>passando-a aos bebês, por meio da interação performática. Por outro</p><p>lado, como nos referimos ao longo deste artigo, a exploração inter-</p><p>relacional da música está na base de todo esse trabalho e é a súmula da</p><p>coexistência música/vivência, com todo o peso emocional que isso</p><p>implica. O reflexo emocional da práxis musical e do sentido de</p><p>integração são tão fortes que, em muitos momentos, parecem preencher</p><p>por si sós e completamente todos quantos participam nessas ações</p><p>performáticas.</p><p>O que aqui defendemos é que a música, a obra artística, tem o</p><p>potencial para despertar determinada energia emocional. Essa energia</p><p>emocional é uma forma de significado partilhado e, nesse sentido, uma</p><p>forma de intersubjetividade. Quando essa intersubjetividade é</p><p>coletivamente vivenciada num estado de satisfação profunda e de intenso</p><p>e total envolvimento, como uma “experiência ótima” – quando se está</p><p>perante uma experiência de “fluxo coletivo” –, a “tribo” emerge.</p><p>No caso da criação artística para a infância, há, ainda, algo de mais</p><p>profundo que pode unir os laços da tribo: a parentalidade, dado que</p><p>todos os espectadores são cuidadores de determinado bebê. Mas, para</p><p>que isso aconteça, para que esse magma venha à tona, os intérpretes têm</p><p>de ser mediadores de energias emocionais para além, obviamente, de</p><p>serem artistas.</p><p>As ideias defendidas por Steven Brown (2000) e Steven Mithen</p><p>(2006) em torno do termo “musilanguage” são também ingredientes do</p><p>caldo criativo de “AliBaBach”. O termo, cunhado por Brown, aponta</p><p>para uma hipótese evolutiva segundo a qual música e linguagem seriam</p><p>especializações de um precursor de natureza comunicacional: a música</p><p>enfatizaria o significado emocional patente no som; a linguagem</p><p>enfatizaria o seu significado referencial. Reforçando a perspectiva de</p><p>interseção entre linguagem e música, Peretz (2010) nos diz que há fortes</p><p>indícios neurobiológicos de que a percepção da emoção na música se</p><p>deve à interação com mecanismos cerebrais ligados à resposta emocional</p><p>a expressões</p><p>vocais.</p><p>Curiosamente, antes de termos tido acesso a essas fontes</p><p>bibliográficas, defendemos essa mesma ideia (Rodrigues 2000, p. 38),</p><p>baseando-nos em observações da nossa experiência de trabalho no</p><p>âmbito das orientações musicais para a primeira infância:</p><p>as interações musicais são formas de comunicação, funcionando de modo análogo</p><p>às interações verbais na aquisição da língua materna. (...) existe uma zona de</p><p>transição entre umas e outras e (...) algumas reações por parte das crianças (e dos</p><p>pais) são, simultaneamente, formas primárias de comunicação linguística e formas</p><p>primárias de comunicação musical.</p><p>Inspirados por uma afirmação do poeta Eugênio de Andrade,</p><p>resumimos assim essa ideia (ibid., p. 42): “dir-se-ia que Palavra e</p><p>Música brotam da mesma fonte; apenas as suas águas – expressividade e</p><p>entoação – correm em leitos diferentes”.</p><p>Dando continuidade a esse raciocínio, no processo de criação de</p><p>“AliBaBach” procuramos encontrar um continuum entre fragmentos das</p><p>Variações Goldberg e formas primárias de comunicação (elementos</p><p>protolinguísticos e musicais no plano da voz e do movimento), tendo</p><p>como linha de horizonte uma fusão entre protocomunicação e música</p><p>propriamente dita. Isto é, a orientação do trabalho foi no sentido de</p><p>desconstruir a organização musical de partida exacerbando o vaivém</p><p>entre música e linguagem.</p><p>Essa opção estética, apoiada na ideia de que a voz humana é um</p><p>instrumento musical universal e ancestral, conduziu a uma exploração</p><p>entre linguagens vocais dentro de uma grande plasticidade. Num tributo</p><p>à voz e às suas imensas possibilidades, chegou-se a um conjunto de</p><p>“variações” diversificado, cruzando mundos vocais tão variados quanto</p><p>os de Meredith Monk, Berio, canções de ninar, árias de ópera de Bellini</p><p>e Donizetti, cantos dos rituais noturnos das pigmeias Baka, da percussão</p><p>vocal dos indianos Konnakol etc.</p><p>O fato de essa criação dirigida à primeira infância ser interpretada</p><p>por uma voz cantada masculina e por uma voz cantada feminina, em</p><p>atividades de movimento pontuado por momentos de silêncio e de</p><p>utilização de padrões rítmicos e tonais, espelha mais uma vez a</p><p>influência que a teoria de aprendizagem musical de Edwin Gordon</p><p>(2000a) tem tido em muitos dos trabalhos da Companhia de Música</p><p>Teatral. Essa influência está igualmente presente na diversidade e no</p><p>contraste dos vários excertos musicais utilizados e/ou criados.</p><p>Efetivamente, “AliBaBach” integra fragmentos musicais em diferentes</p><p>métricas (binária, ternária e mista), tonalidades[6] (diatônica maior,</p><p>harmônica menor, lídia e dória, mixolídia e eólia) e andamentos.</p><p>A ideia de “brincar” esteve sempre muito presente na construção</p><p>dessa peça, abrindo pistas para uma filosofia e uma metodologia de</p><p>criação artística para a infância. Concretamente, em futuras criações,</p><p>ponderaremos fazer com que os intérpretes cheguem à dramatização e à</p><p>musicalização a partir da observação de situações de interação e de jogo,</p><p>e de uma introspecção retrospectiva relativamente às suas brincadeiras</p><p>na infância. Conceber a criação artística para a infância a partir de uma</p><p>extensão e de uma hiperbolização de realidades observadas poderá</p><p>ajudar a consolidar a proximidade com o nosso público-alvo e,</p><p>certamente, trará um conhecimento maior e mais fundamentado da</p><p>psicologia infantil aos próprios intérpretes.</p><p>Variações sobre questões de desenvolvimento musical e</p><p>psicológico, e criação artística para a infância</p><p>As várias criações dirigidas à infância de que temos participado têm-</p><p>nos trazido um conhecimento empírico complementar (e às vezes</p><p>desafiador) do que costuma vir descrito na literatura relativamente ao</p><p>desenvolvimento musical e ao comportamento infantil.</p><p>Temos, pois, alargado o nosso conhecimento no que concerne ao</p><p>comportamento do bebê e da criança, das díades, das famílias e do</p><p>grupo, quer no que diz respeito a aspectos de dinâmica psicossocial, quer</p><p>à aquisição da competência musical e à emergência do sentido estético</p><p>no ser humano.</p><p>Para além de ser uma experiência muito enriquecedora no plano do</p><p>conhecimento empírico do sujeito humano, a variedade e o tipo de</p><p>respostas apresentadas por bebês e seus pais às diferentes criações</p><p>artísticas que realizamos e direcionamos a famílias colocam-lhes</p><p>desafios estéticos e também questões de ordem ética. De fato, os bebês</p><p>não têm a capacidade de se recusar a assistir ou participar em atividades</p><p>artísticas dirigidas à primeira infância e nem sempre os pais estão atentos</p><p>ou capacitados para interpretar os sinais de fruição, tédio ou sobre-</p><p>estimulação que uma obra artística dirigida à primeira infância pode</p><p>provocar em seus bebês. Assim, cabe aos artistas, educadores,</p><p>investigadores e programadores uma reflexão ética sobre o seu impacto.</p><p>Em colaboração com a Universidade de Vrijes e com o apoio da</p><p>Royal Flemish Academy of Belgium for Science and the Arts, estamos</p><p>neste momento procedendo à observação e à codificação das respostas</p><p>dos bebês (estando atentos também aos comportamentos da díade</p><p>constituída pelo cuidador e pelo bebê) em duas de nossas criações –</p><p>“AliBaBach” e “BebêPlimPlim”. Grosso modo, podemos dizer que, no</p><p>que diz respeito aos bebês, interpretamos as suas respostas em quatro</p><p>grandes grupos: resposta neutra, desinteresse, atenção e participação</p><p>ativa. Nesse último grupo podemos, por exemplo, observar</p><p>comportamentos de grande envolvimento rítmico-motor, vocalizações e</p><p>alguns gestos diferenciados (por exemplo: apontar, bater palmas), que</p><p>merecerão uma análise mais detalhada.</p><p>Evidentemente, esses comportamentos são um mundo imenso a</p><p>explorar. Quanto ao envolvimento rítmico-motor, podemos claramente</p><p>observar situações em que os bebês participam ritmicamente na</p><p>performance artística (esse comportamento é claramente visível em</p><p>bebês com seis meses de idade), parecendo querer integrar-se no grupo e</p><p>mostrando reações motoras (por exemplo, no plano de movimentos</p><p>repetidos do dorso ou da movimentação das mãos) que apontam para</p><p>uma precoce sincronização rítmica. Outro exemplo: tem sido muito</p><p>interessante observar o balanceio de bebês com cerca de 20 meses de</p><p>idade que vão alternando movimentos de oscilação pendular das pernas</p><p>em conjugação com a música, ajustando-se ao respectivo andamento</p><p>musical ouvido.</p><p>As vocalizações efetuadas pelos bebês que se podem ouvir durante</p><p>algumas de nossas performances artísticas são também um campo</p><p>imenso a explorar, e aqui o nosso “álbum de recordações” é vasto.</p><p>Recordemos apenas algumas performances ocorridas em</p><p>“BebêPlimPlim”: a gravação inicial do espetáculo, que inclui</p><p>vocalizações de bebês tratadas eletronicamente, costuma suscitar uma</p><p>algaraviada de vocalizações dos bebês sentados na plateia com os seus</p><p>pais; é também frequente os bebês vocalizarem em resposta ao</p><p>intérprete, que tem um solo em “mamanhês”. E no workshop dessa</p><p>criação, já pudemos constatar, várias vezes, que, quando utilizamos uma</p><p>canção pentatônica que se inicia com uma terceira menor, há vários</p><p>bebês que a reproduzem, tentam imitar ou interagem com esse pequeno</p><p>padrão. Não temos também dúvidas de que durante essas atuações</p><p>artísticas os bebês entoam tônicas e dominantes e procuram imitar</p><p>vocalmente, reagindo particularmente bem aos padrões tonais da teoria</p><p>de aprendizagem musical de Edwin Gordon para recém-nascidos e</p><p>crianças em idade pré-escolar.</p><p>Em todo esse processo, os pais são também uma importante fonte de</p><p>informação. Se, por um lado, há que tomar algum cuidado, uma vez que</p><p>eles podem hipervalorizar e fantasiar alguns dos comportamentos de</p><p>“seus meninos”, por outro, eles têm um acesso privilegiado à</p><p>descodificação de suas comunicações, e, portanto, um conhecimento</p><p>mais profundo de seus filhos. Muitos pais relatam-nos que depois de</p><p>uma sessão de orientações musicais para a infância, seus filhos foram</p><p>para casa fazendo “babá bá” e balbuciando muito mais do que de</p><p>costume (fazendo os “trabalhos de casa”, como humoristicamente</p><p>costumamos dizer). Os pais são, pois, colaboradores imprescindíveis</p><p>nessa procura de conhecimento mais profundo acerca do impacto da</p><p>criação artística</p><p>para a infância.</p><p>Há pais que nos contam que depois de uma experiência musical</p><p>bem-sucedida, seus filhos querem sempre voltar para o teatro ou para o</p><p>lugar onde ela aconteceu. Num dos projetos “BebêBabá”, por exemplo,</p><p>um dos bebês participantes sabia a ordem das peças e expressava</p><p>antecipadamente a peça que viria a seguir. Lembramos também uma</p><p>bebê de 14 meses que conhecia o CD Andakibebê, editado pela CMT, e</p><p>que, quando veio ao espetáculo (que usa peças que constam do CD), para</p><p>além de ter percebido que era o mesmo universo musical</p><p>(comportamento este que temos verificado em mais bebês), “reclamou”,</p><p>pois os músicos não tinham cantado o “Gafanhoto canhoto”. Lembramos</p><p>também outra bebê de idade semelhante que, quando ouvia aquele CD</p><p>criteriosamente, pedia para não ouvir as canções de ninar incluídas no</p><p>CD, selecionando as outras para ouvir e dançar. Sem dúvida, um</p><p>muitíssimo precoce juízo musicológico!</p><p>Assim, consideramos que a criação musical e artística é um</p><p>relevante contexto de observação ecológica. Poderá contrapor-se que a</p><p>assistência e a participação em espetáculos dirigidos à infância é uma</p><p>situação algo artificial, contrariando o princípio da observação</p><p>naturalista. Argumentamos que a observação do comportamento no</p><p>contexto de participação num projeto como o “BebêBabá” ou na</p><p>assistência a uma obra como a “BebêPlimPlim” ou a “AliBaBach” – tal</p><p>como na creche ou na casa da família do bebê – permite observar o</p><p>comportamento tal como ele ocorre espontaneamente nessas situações,</p><p>que fazem parte do seu ambiente natural.</p><p>Acreditamos que uma descrição mais objetiva e sistemática do</p><p>comportamento nessa situação é algo de inovador que pode trazer um</p><p>conhecimento mais profundo sobre o efeito da música sobre o ser</p><p>humano e sobre a dinâmica de grupos. É assim que gostamos de pensar</p><p>em nossas criações: como uma espécie de “laboratório ambulante”.</p><p>Precisamos, no entanto, continuar dando alguns passos no sentido do</p><p>rigor das observações e da descrição operacional dos comportamentos,</p><p>sendo importante, evidentemente, estabelecer pontes de convergência ou</p><p>divergência com estudos cuja metodologia de observação ou recolha de</p><p>dados é diferente. O estudo levado a cabo por Reigado, Rocha e</p><p>Rodrigues (2011) sobre a análise acústica das vocalizações de bebês</p><p>diante de estímulos musicais e linguísticos é um primeiro passo nesse</p><p>sentido.</p><p>Lembremos a citação de Popper (1989) com que iniciamos este</p><p>artigo: “a obra do investigador criativo, a teoria, tem muito em comum</p><p>com a obra de arte; e a atividade criativa do investigador assemelha-se à</p><p>do artista”. Em nosso entender, a construção do conhecimento ou a</p><p>criação da obra artística bebem na mesma fonte de criatividade. Ao</p><p>defendermos que a criação artística para a infância é um setting de</p><p>observação natural capaz de enriquecer nosso conhecimento científico</p><p>relativo ao desenvolvimento musical na infância, à emergência do</p><p>sentido estético, à dinâmica social e à construção de um grupo que toma</p><p>por base a música, aos cuidados da parentalidade e ao comportamento</p><p>psicológico, talvez estejamos dando passos no sentido da construção de</p><p>novas abordagens da realidade. Remataremos dizendo que não basta</p><p>atravessar as margens da ignorância dos nossos conhecimentos. Há</p><p>também que atravessar as fronteiras ideológicas que os territorializam.</p><p>Coda: Ad libitum</p><p>Um filho é sempre um recomeço.</p><p>Um filho é a maneira que temos de reiniciar o mundo.</p><p>José Eduardo Agualusa (2010)</p><p>A ideia de que existem características musicais na comunicação que</p><p>se estabelece entre os bebês e seus cuidadores – aliás, presente em</p><p>trabalhos de vários outros autores, entre os quais destacamos Fernald</p><p>(1989, 1991) e os Papousek (1995, 1996) – faz-nos pensar na criação</p><p>musical propriamente dita como uma extensão e um desenvolvimento</p><p>dos elementos protomusicais existentes nas formas primárias de</p><p>comunicação.</p><p>Por outro lado, a própria expressão musical é vista por nós como um</p><p>canal da comunicação humana – ou, como muitas vezes é referido em</p><p>musicoterapia, como um “mediador da comunicação”. Não excluindo a</p><p>contemplação como uma forma especial de ligação (talvez uma forma</p><p>especial de intersubjetividade), para nós, as criações artísticas para a</p><p>infância devem ser mais do que o consumo passivo de produtos sonoros</p><p>ou teatrais feitos por artistas. Pretendemos, antes, que nossas criações</p><p>artísticas promovam uma atmosfera lúdica por meio da qual seja possível</p><p>estabelecer ligações expressivas entre pais, bebês e artistas. Que sejam</p><p>uma experiência de “fluxo” – na acepção de Csikszentmihalyi (2002) –</p><p>na companhia de “outro(s) significativo(s)” – expressão de Mead para os</p><p>relacionamentos que têm importância nos estados emocionais, nos</p><p>comportamentos, e que influenciam o sentido de nós mesmos (cf. Mead</p><p>e Morris 1967). Que sejam experiências coletivas de significado</p><p>partilhado, capazes de acordar o magma de possibilidades de recursos</p><p>expressivos com que todos os seres humanos são dotados.</p><p>Se em Portugal fosse efetuado um levantamento do número de</p><p>iniciativas de caráter artístico dirigidas à primeira infância realizadas</p><p>durante os últimos cinquenta anos, iríamos, com toda a certeza, constatar</p><p>um substancial aumento destas a partir do final do século passado. A</p><p>divulgação das ideias de Edwin Gordon em nosso país terá contribuído</p><p>para essa mudança, dado que seus ensinamentos terão ajudado a tomar</p><p>consciência de que o contato com a música deve iniciar-se o mais cedo</p><p>possível.</p><p>Não obstante, para além desse dado factual, deveríamos interrogar-</p><p>nos acerca das razões da elevada procura – acompanhada de uma</p><p>razoável oferta – de atividades dirigidas a famílias com bebês que existe</p><p>atualmente em nosso país. Talvez isso ocorra porque alguns pais</p><p>necessitam, simplesmente, de algum apoio no que concerne a “estar com</p><p>o seu bebê”. Em nossa experiência, temos verificado que “brincar com o</p><p>bebê” é, muitas vezes, uma vivência que precisa ser despertada e, às</p><p>vezes, recuperada. Temos, simultaneamente, verificado a surpresa e o</p><p>desconhecimento que alguns pais demonstram perante o seu bebê</p><p>(sobretudo quando, nomeadamente por razões laborais, este é entregue</p><p>dez horas por dia aos cuidados de creches e afins) e o prazer que a díade</p><p>reencontra quando afina o brincar.</p><p>Efetivamente, no meio do tráfego e do zapping relacionais da</p><p>sociedade industrializada em que vivemos, muitas vezes não há tempo e</p><p>disponibilidade para os pais brincarem com as suas crias – ao contrário</p><p>do que sucede com os animais que conservam ainda esse privilégio! Não</p><p>admira assim que, por vezes, os pais fiquem meio perdidos e busquem</p><p>nas atividades musicais dirigidas à primeira infância uma espécie de</p><p>tábua de salvação. Buscarão também, talvez, o sentido de comunidade</p><p>que a música ajuda a tecer. Como dizia uma mãe participante numa das</p><p>edições de “BebêBabá”: “já não sou mãe apenas da minha bebê, mas de</p><p>todas as crianças que aqui estão”.</p><p>O sentido de comunidade é ainda mais urgente quando se tem um</p><p>bebê: necessitamos, coletivamente, proteger as nossas crias, tal como o</p><p>fazem alguns animais. Uma comunidade constituída por indivíduos que</p><p>partilham a sua parentalidade é um poderoso contentor social, um forte</p><p>dispositivo de proteção.</p><p>Isto é, se por um lado, na sociedade contemporânea, há hábitos que</p><p>vão desenlaçando e desumanizando as relações, por outro, há também</p><p>movimentos reorganizativos que se estabelecem para reequilibrar essas</p><p>perdas.</p><p>Ou seja, vemos na chamada “música para bebês” uma maneira de</p><p>devolver às famílias uma forma de relação com as artes mais próxima da</p><p>tradição oral e do contato humano. Em nossa opinião, a procura de</p><p>atividades da chamada “música para bebês” corresponde a um dos usos</p><p>da música, identificados por Ilari (2006), no contexto das relações</p><p>interpessoais. A autora defende que a música é facilitadora de</p><p>“atividades que promovem a aproximação de indivíduos e da criação de</p><p>cenários (i.e., a criação dos chamados ‘climas propícios’) para o</p><p>desabrochar das relações interpessoais de natureza amorosa que</p><p>constituem a base da continuação da espécie”.</p><p>À luz dessa ideia, queremos fazer realçar que, justamente, a</p><p>chamada “música para bebês” é um cenário especialmente propício para</p><p>fazer florir relações interpessoais de natureza afetiva. Ao longo de nosso</p><p>trabalho empírico (seja em sessões de orientação musical, seguindo os</p><p>princípios da teoria de aprendizagem musical, seja em criações artísticas</p><p>direcionadas à infância), temos podido observar por parte dos bebês ora</p><p>uma atitude de grande contemplação, ora uma enorme avidez para se</p><p>integrarem nas atividades musicais do grupo. A música tem claramente</p><p>um efeito sobre o bebê, efeito esse que afeta o seu cuidador. As respostas</p><p>dos bebês eliciam respostas em seus cuidadores, e é fácil que o efeito</p><p>sobre uma díade se propague às demais, numa espécie de “efeito</p><p>dominó”.</p><p>No “clima propício” das chamadas sessões de “música para bebês”,</p><p>o bebê torna-se cocriador de um efeito gregário provocado pela música.</p><p>Um bebê energiza a nossa vontade de desenhar “projetos para o futuro”;</p><p>a música que lhes dedicamos é também uma espécie de apelo coletivo</p><p>acerca de nossa sobrevivência. Que prática musical poderá mais</p><p>fortemente apelar à continuação da espécie?</p><p>Em suma, nesse cenário especial, os bebês ajudam a reinscrever a</p><p>música na cultura do cotidiano, numa prática coletiva comunitária de que</p><p>os adultos, afinal, estão tão necessitados quanto os bebês. Prova de que a</p><p>música continua sendo um poderoso meio comunicacional capaz de</p><p>enlaçar e tecer laços, um instrumento agregador de identidades</p><p>relacionais. Ao contrário de Pinker (1999), que sustenta que se a música</p><p>deixasse de existir nossa vida permaneceria inalterada, vemos na forte</p><p>adesão a iniciativas como as relatadas um forte indício de que a música</p><p>continua sendo um mecanismo necessário à sobrevivência da espécie,</p><p>não podendo sua prática coletiva ser dispensada.</p><p>Uma comunidade que recebe seus novos membros com canto e</p><p>dança ritualiza e celebra o desejo de viver. Ao oferecer o “colo da sua</p><p>cultura musical” (Rodrigues 2000), estende-se a vontade de albergar uma</p><p>escuta, declara-se a existência de “lugar para mais um”, para outros que</p><p>vão dar continuação a nós. O ninho da música é a necessidade de sermos</p><p>escutados. O que nos alimenta não é o som, mas a vibração que os</p><p>nossos sons produzem nos outros. O que nos sustenta são alicerces</p><p>afetivos feitos das vozes e do movimento com que fomos embalados. A</p><p>música acorda essas memórias ancestrais. Para o bem ou para o mal, é</p><p>esse o seu poder: vazar o amor ou o desamor com que fomos escutados.</p><p>Este é, pois, o mais profundo significado da criação artística para a</p><p>infância ou da música para pais e bebês.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>AGUALUSA, J. (2010). Um pai em nascimento. Carnaxide: Objectiva.</p><p>BERNE, E. (1949). “The nature of intuition”. Psychiatric Quarterly, n. 23, pp. 203-226.</p><p>________ (2009). Games people play: Psychology of human relationships. Londres: Penguin</p><p>Books.</p><p>BRETHERTON, I. (1992). “The origins of attachment theory: John Bowlby and Mary</p><p>Ainsworthy”. Developmental Psychology, n. 28, pp. 759-775. [Disponível na internet:</p><p>http://www.psychology.sunysb.edu/attachment/online/inge_origins.pdf, acesso em</p><p>10/4/2013.]</p><p>BROWN, S. (2000). “The ‘musilanguage’ model of music evolution”. In: WALLIN, N.L.;</p><p>MERKER, B. e BROWN, S. (orgs.). The origins of music. 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No âmbito da educação musical infantil não é diferente, uma</p><p>vez que bebês e crianças estão fazendo música e brincando com ela em</p><p>seu cotidiano. Elas cantam sozinhas ou em grupo, tocam um</p><p>instrumento musical ou uma latinha, dormem acalantadas por seus pais,</p><p>dançam ouvindo diferentes tipos de música, brincam de jogos de mãos,</p><p>envolvem-se com músicas, independentemente do contexto, da cultura,</p><p>da classe social ou da idade. E como não poderia deixar de ser, nós,</p><p>adultos, colocamo-nos a investigar as diversas facetas do engajamento</p><p>infantil com a música, o que há tempo tem interessado estudiosos de</p><p>diferentes áreas, como a educação musical, a psicologia, as ciências</p><p>cognitivas, entre outras.</p><p>Podemos entender o interesse das diferentes áreas de conhecimento</p><p>na vida musical das crianças, uma vez que elas, fazendo e brincando</p><p>com música, se desenvolvem não só musicalmente, mas em outros</p><p>aspectos também. A reflexão sobre esses fazeres pode ter contribuído</p><p>para que o desenvolvimento musical tenha se configurado como uma</p><p>das principais linhas de pesquisa da psicologia da música e dos estudos</p><p>da cognição musical. Segundo Levitin (apud Ilari 2010), os estudos</p><p>sobre o desenvolvimento das habilidades musicais, da percepção e da</p><p>memória musical, assim como das mudanças de comportamento e das</p><p>preferências musicais de bebês, crianças e adolescentes, estão entre as</p><p>principais produções dessas áreas nos últimos anos. Todavia, não há um</p><p>único educador musical que não tenha ouvido de algum pai ou colega</p><p>de outra área que ensinar música para crianças pequenas é muito</p><p>importante, porque isso as torna mais inteligentes ou porque as auxilia</p><p>em outras áreas do conhecimento – especialmente no aprendizado da</p><p>matemática ou na aquisição de línguas estrangeiras. Essas ideias,</p><p>amplamente divulgadas em nosso dia a dia, têm levado pesquisadores e</p><p>professores à reflexão sobre os efeitos da música no desenvolvimento</p><p>geral da criança. Há estudiosos que buscam verificar a influência de</p><p>determinada exposição ou treinamento musical em outra área de</p><p>conhecimento, ampliando assim o corpo de estudos sobre as</p><p>transferências de habilidades cognitivas entre áreas e/ou contextos.</p><p>Outros, entretanto, procuram estabelecer correlações entre a música,</p><p>assim como entre as habilidades envolvidas no fazer musical, e outras</p><p>áreas de conhecimento. Tal ideia tem sido explorada tanto no sentido de</p><p>buscar correlações entre domínios distintos, quanto no que se refere à</p><p>análise da extensão dos efeitos das intervenções pedagógico-musicais</p><p>propostas em diversos estudos.</p><p>No presente capítulo, discuto o desenvolvimento infantil do ponto</p><p>de vista da interseção entre o desenvolvimento musical e a aquisição de</p><p>habilidades de leitura e escrita em crianças pequenas, principalmente no</p><p>que diz respeito ao desenvolvimento da consciência fonológica, para</p><p>assim contribuir com o pensamento sobre o papel da música na</p><p>educação infantil.</p><p>O desenvolvimento da consciência fonológica – entendida como</p><p>habilidade de análise da linguagem oral a partir de suas unidades</p><p>sonoras (Barrera e Maluf 2003) – tem sido apontado como promotor do</p><p>sucesso na aquisição de leitura e escrita em crianças pequenas. Nos</p><p>últimos anos, diversos pesquisadores têm conduzido pesquisas que, de</p><p>alguma maneira, buscaram correlacionar a música e a consciência</p><p>fonológica. A motivação desses estudiosos parece ter uma explicação</p><p>bastante elementar, porém não menos complexa: a percepção auditiva é</p><p>o ponto-chave para as duas áreas. Assim como a percepção musical é</p><p>construto de nosso envolvimento com a música (Krumhansl 2006), a</p><p>consciência fonológica tão somente ocorre a partir da possibilidade</p><p>perceptiva da linguagem oral. A percepção de similaridades, a</p><p>segmentação e a manipulação sonora são algumas das habilidades que</p><p>podem ser acessadas por meio da música e da análise da linguagem</p><p>oral.</p><p>Com o intuito de ampliar a reflexão sobre a temática, este artigo</p><p>está estruturado em quatro partes. Primeiramente, são discutidas as</p><p>diferentes ideias sobre o desenvolvimento musical, a aquisição de</p><p>leitura e escrita, a consciência fonológica, bem como sobre a</p><p>possibilidade de diálogo entre esses conceitos, construída por</p><p>pesquisadores de diversas áreas. Em seguida, uma revisão da literatura</p><p>revela importantes e atuais estudos realizados com crianças americanas,</p><p>canadenses, espanholas, mexicanas e turcas (Anvari et al. 2002; Bolduc</p><p>2008; David et al. 2007; Moyeda, Gómez e Flores 2006; Peynircioglu,</p><p>Durgunoglu e Öney-Küsefoglu 2002; Herrera, Defior e Lorenzo 2007;</p><p>Herrera et al. 2011). A terceira parte deste capítulo apresenta minha</p><p>pesquisa sobre o assunto, realizada com crianças brasileiras de quatro e</p><p>cinco anos, da cidade de Curitiba (Pacheco 2009). Por fim, são</p><p>levantadas questões sobre a prática e a pesquisa da educação musical</p><p>infantil, na tentativa de ampliar a discussão sobre a música e a educação</p><p>musical na vida das crianças pequenas, bem como sobre a relação da</p><p>música com o desenvolvimento geral das crianças.</p><p>Desenvolvimento musical e aquisição de leitura e escrita:</p><p>Construindo conceitos</p><p>O desenvolvimento musical e a aquisição de leitura e escrita em</p><p>crianças pequenas podem ser entendidos como notas de uma mesma</p><p>canção, uma vez que compõem o importante fenômeno do</p><p>desenvolvimento infantil. Para compreender as possíveis relações entre</p><p>as duas áreas – que a alguns podem parecer bastante distintas –, é</p><p>importante refletir sobre os conceitos que constituem a construção das</p><p>habilidades musicais e de consciência fonológica.</p><p>O conceito de desenvolvimento musical vem sendo construído, em</p><p>diferentes momentos, por importantes pesquisadores que buscam</p><p>abarcar as possibilidades que envolvem o termo e o campo de estudo do</p><p>desenvolvimento. Na década de 1980, em seu prestigioso The musical</p><p>mind, Sloboda afirmou que as habilidades musicais são construções</p><p>advindas da interação do indivíduo com o meio musical, tendo como</p><p>base as competências e as tendências inatas, constituindo assim dois</p><p>processos denominados enculturação e treino. A enculturação é a</p><p>aquisição de habilidades musicais, geralmente sem esforço</p><p>autoconsciente ou instrução explícita, que acompanha as crianças do</p><p>nascimento até por volta dos dez anos. O treino, por sua vez, é o</p><p>processo que exige o desenvolvimento de habilidades musicais</p><p>específicas e mais aprofundadas, por meio de um esforço</p><p>autoconsciente e de um ambiente educacional. Para Sloboda (2008), os</p><p>dois processos são igualmente importantes para o desenvolvimento</p><p>musical infantil.</p><p>Um pouco mais adiante, Hargreaves e Zimmerman (2006, p. 232)</p><p>conceituaram o termo desenvolvimento afirmando que, de forma ampla,</p><p>ele se refere “às</p><p>mudanças gerais, decorrentes da idade, e que seguem</p><p>uma seqüência regular e invariável no padrão de comportamento”.</p><p>Entretanto, atualmente as fronteiras se alastraram e o desenvolvimento</p><p>musical infantil está sendo entendido como um processo de</p><p>reorganização do conhecimento musical, que ocorre de modo recursivo</p><p>e multidirecional (Bamberger, apud Ilari 2009).</p><p>Segundo Ilari (2009), o desenvolvimento musical pode ser</p><p>compreendido como um processo biopsicossocial no qual o</p><p>envolvimento de bebês, crianças e adolescentes com a música pode</p><p>acontecer: (i) na vida cotidiana, tendo em vista a exposição aos sons e</p><p>às músicas da cultura que os circundam; (ii) a partir do aprendizado</p><p>musical recebido em aulas específicas de música; e (iii) “tendo por base</p><p>o aprimoramento de habilidades em atividades específicas da área de</p><p>música (...) dentro da estética de um gênero ou cultura em particular”</p><p>(pp. 25-26). Sendo assim, o engajamento de crianças, adolescentes e</p><p>adultos com o fazer musical – em casa, na escola, em aulas de</p><p>instrumento ou em grupos de cultura popular, por exemplo – possibilita</p><p>o desenvolvimento musical de diversas formas.</p><p>Todavia, é evidente que o desenvolvimento musical é somente uma</p><p>parte do amplo desenvolvimento infantil. Também por isso, os</p><p>estudiosos vêm tentando localizar conexões entre o desenvolvimento</p><p>musical e o desenvolvimento geral das crianças. Em uma das</p><p>abordagens possíveis à questão, estão as pesquisas sobre as</p><p>transferências de habilidades cognitivas. Para Stenberg (2000), a</p><p>transferência é um fenômeno amplo no qual o ser humano é capaz de</p><p>transportar conhecimentos ou habilidades de uma situação problemática</p><p>para outra. Portanto, uma transferência poderia ser positiva – quando a</p><p>resolução de um problema atual é auxiliada pela resolução de um</p><p>problema anterior – ou negativa – quando a resolução de um problema</p><p>anterior dificulta a resolução de um problema posterior. Tratando dessa</p><p>questão, alguns pesquisadores elaboraram revisões de estudos</p><p>envolvendo a música que versaram sobre as transferências de</p><p>habilidades cognitivas entre contextos ou áreas de conhecimento,</p><p>iluminando assim as conexões entre a música e outras áreas – como a</p><p>matemática, a linguagem, a leitura, a inteligência, as habilidades</p><p>espaciais e verbais etc. (para outras informações, ver Costa-Giomi</p><p>2006; Ilari 2005; Schellenberg 2004). A relação entre a música e o</p><p>aprendizado da leitura tem sido bastante abordada nesses estudos sobre</p><p>transferências cognitivas entre contextos, uma vez que a análise dos</p><p>estudos sugere “que o aprendizado musical pode ser útil para o</p><p>desenvolvimento da leitura” (Ilari 2005, p. 59).</p><p>Corroborando a afirmação de Ilari (2005), a consciência fonológica</p><p>tem sido apontada – dentre os diversos componentes envolvidos no</p><p>processo de aquisição da leitura e da escrita – como uma área</p><p>amplamente investigada quando se buscam relações com o universo</p><p>musical. Além disso, as descobertas sobre a consciência fonológica</p><p>foram consideradas por muitos pesquisadores como uma das grandes</p><p>conquistas da psicologia moderna (Bryant e Goswani, apud Cardoso-</p><p>Martins 1996). Entretanto, é importante ressaltar que a consciência</p><p>fonológica compõe um mecanismo mais amplo de desenvolvimento</p><p>conhecido como habilidades metalinguísticas. As habilidades</p><p>metalinguísticas envolvem: (i) a já referida consciência fonológica, que</p><p>pode ser entendida como uma habilidade de análise da linguagem oral a</p><p>partir de suas diferentes unidades sonoras; (ii) a consciência lexical,</p><p>compreendida como a habilidade de segmentação da linguagem oral em</p><p>palavras, tomando-se a função semântica e a função sintático-relacional</p><p>destas; e (iii) a consciência sintática, que, por sua vez, abrange a</p><p>habilidade de reflexão e manipulação da estrutura gramatical das</p><p>sentenças (Maluf e Barrera 1997; Barrera e Maluf 2003). Entendendo o</p><p>desenvolvimento da metalinguagem como um componente fundamental</p><p>para o êxito na aquisição da leitura e da escrita (Cardoso-Martins 1995;</p><p>Barrera 2003; Barrera e Maluf 2003; Guimarães 2001, 2003a, 2003b) e</p><p>compreendendo a percepção auditiva como o elo que fomenta o</p><p>interesse e o diálogo nas investigações sobre o desenvolvimento das</p><p>habilidades musicais e a consciência fonológica, faz-se necessário um</p><p>olhar atento à produção da área para que seja possível analisar quais as</p><p>contribuições desses estudos para a prática e a investigação da educação</p><p>musical infantil.</p><p>Aprender em diferentes regiões do globo: Um olhar para os</p><p>estudos atuais</p><p>Considerando as possíveis interseções entre o desenvolvimento</p><p>musical e a aquisição de leitura e escrita em crianças pequenas, bem</p><p>como a quantidade de estudos que vêm sendo desenvolvidos tomando a</p><p>música e a leitura como elementos de análise – principalmente no que</p><p>se refere ao desenvolvimento de habilidades musicais e da consciência</p><p>fonológica –, parece pertinente fazer uma revisão dos principais e dos</p><p>mais recentes trabalhos realizados com crianças americanas,</p><p>canadenses, espanholas, mexicanas e turcas (Anvari et al. 2002; Bolduc</p><p>2008, 2009; David et al. 2007; Moyeda, Gómez e Flores 2006;</p><p>Peynircioglu, Durgunoglu e Öney-Küsefoglu 2002; Herrera, Defior e</p><p>Lorenzo 2007; Herrera et al. 2011). Com o objetivo de contribuir com o</p><p>entendimento das principais características metodológicas das referidas</p><p>pesquisas, primeiramente são revisados estudos que realizaram</p><p>intervenções pedagógicas pertinentes ao tema, para, em seguida, serem</p><p>apresentados estudos que construíram um design correlacional para</p><p>abordar possíveis relações entre as áreas.</p><p>Os estudos de intervenção pedagógica buscam responder às</p><p>questões a partir da análise de pré e de pós-testes, separados entre si por</p><p>um período de intervenção pedagógica. Dessa forma, é possível</p><p>verificar a influência de determinada variável, por meio do desempenho</p><p>de seus participantes antes e após o período de exposição às atividades</p><p>propostas. As pesquisas aqui analisadas ofereceram aulas de música</p><p>para crianças mexicanas, canadenses e espanholas, a fim de encontrar</p><p>possíveis relações entre a música e a aquisição da leitura e da escrita.</p><p>Moyeda, Gómez e Flores (2006) verificaram se o desenvolvimento</p><p>do vocabulário é influenciado pela prática de atividades musicais de</p><p>modo geral ou por atividades musicais específicas que estimulam a</p><p>memória auditiva e a percepção rítmica, melódica e harmônica. Para</p><p>tanto, propuseram uma intervenção pedagógica, que aconteceu por meio</p><p>de aulas de educação musical, para um grupo de 30 crianças mexicanas</p><p>em idade pré-escolar. As crianças foram divididas em dois grupos</p><p>experimentais e um grupo-controle. Cada grupo experimental participou</p><p>de uma proposta metodológica diferenciada e realizou 20 sessões de</p><p>atividades musicais. Uma adaptação para a língua espanhola do</p><p>Peabody Vocabulary Image Test foi aplicada com todas as crianças,</p><p>antes e após a intervenção. Após a realização das atividades de</p><p>educação musical, todos os grupos obtiveram escores mais altos, como</p><p>previsto. No entanto, somente o grupo experimental 1 apresentou</p><p>diferenças estatisticamente significativas em comparação aos demais</p><p>grupos no pós-teste. É possível que tal resultado tenha sido obtido</p><p>porque o programa de intervenção educativo-musical para promover o</p><p>vocabulário (experimental 1) realizou atividades musicais com vistas ao</p><p>desenvolvimento do vocabulário, enfatizando, para tanto, a repetição de</p><p>padrões rítmicos, a memorização de sequências de sons, a</p><p>discriminação e elaboração de representações gráficas de timbres, os</p><p>ritmos e as linhas melódicas, além de atividades musicais associadas a</p><p>estímulos visuais e a movimentos.</p><p>Crianças canadenses francófonas também participaram de um</p><p>estudo sobre o efeito de um programa de ensino de música nas</p><p>habilidades de consciência fonológica (Bolduc 2009). Cento e quatro</p><p>alunos de cinco anos, matriculados em um centro de educação infantil,</p><p>participaram de 15 semanas de aulas de música diárias com professores</p><p>especialistas. As aulas do grupo experimental (n=51) foram conduzidas</p><p>seguindo uma adaptação, para crianças falantes de</p><p>francês de</p><p>desenvolvimento típico, do programa para crianças com necessidades</p><p>especiais de Standley e Hughes (apud Bolduc 2009). Por sua vez, o</p><p>grupo de controle (n=53) participou de aulas de música que seguiam as</p><p>orientações do currículo do Ministério da Educação de Québec (Bolduc</p><p>2009).</p><p>Os grupos foram avaliados com pré e pós-testes do Primary</p><p>Measures of Music Audiation (Gordon 1979, apud Bolduc 2009) e do</p><p>Phonological Awareness Test (Armand e Montésinos-Gelet 2001, apud</p><p>Bolduc 2009). Os resultados indicaram que os dois currículos</p><p>desenvolvidos auxiliaram no desenvolvimento da percepção melódica e</p><p>rítmica das crianças, não havendo diferença significativa entre os</p><p>resultados dos grupos experimental e de controle. Entretanto, no que</p><p>tange à consciência fonológica, os alunos engajados na adaptação da</p><p>proposta de Standley e Hughes obtiveram melhores resultados em</p><p>relação ao grupo de controle. Tal resultado era esperado, uma vez que,</p><p>segundo o autor, um dos objetivos dessa proposta era aumentar o</p><p>interesse das crianças na leitura e na escrita, valendo-se de atividades</p><p>musicais.</p><p>Outro importante estudo foi desenvolvido na Espanha, na Ciudad</p><p>Autónoma de Mellila, área limítrofe com o Marrocos. O processo de</p><p>aquisição de leitura e escrita nessa região possui um desafio a mais:</p><p>tornar fluentes em espanhol crianças cuja língua materna é o tamazight</p><p>– dialeto oral berbere que divide semelhanças (fonética e morfológica)</p><p>com línguas semíticas, como o hebraico e o árabe. Para tanto, Herrera,</p><p>Defior e Lorenzo (2007) e Herrera et al. (2011) desenvolveram uma</p><p>investigação para avaliar dois programas de intervenção para a</p><p>promoção da consciência fonológica e da velocidade de nomeação. A</p><p>diferença entre os dois programas era a música, uma vez que uma das</p><p>estratégias de ação fazia uso de atividades musicais para desenvolver as</p><p>tarefas de consciência fonológica. Participaram da pesquisa 97 crianças,</p><p>com idade entre quatro e cinco anos, que tinham como língua materna o</p><p>espanhol (n=45) e o tamazight (n=52) e eram estudantes de dois centros</p><p>públicos de educação infantil. As crianças foram divididas em três</p><p>grupos: (i) controle; (ii) experimental 1 – com intervenção para</p><p>consciência fonológica, sem atividades musicais; e (iii) experimental 2</p><p>– com intervenção para consciência fonológica com atividades</p><p>musicais. As atividades foram desenvolvidas durante dois anos, período</p><p>no qual as crianças participaram de duas etapas de 16 sessões de</p><p>intervenção (desenvolvidas em oito semanas cada) e foram avaliadas</p><p>com um pré-teste e três pós-testes. As avaliações incluíram o Teste de</p><p>Matrizes Progressivas de Raven e o Peabody Picture Image Test –</p><p>Revised (somente no pré-teste), além de testes de consciência</p><p>fonológica (identificação de rima, fonema inicial e quantidade de</p><p>sílabas), memória verbal de curto prazo, velocidade de nomeação e</p><p>conhecimento de nome e som de letras.</p><p>Os autores verificaram a eficácia dos dois programas de</p><p>intervenção para o desenvolvimento das habilidades de consciência</p><p>fonológica e de velocidade de nomeação. Todavia, as crianças que</p><p>participaram do programa que incluía atividades musicais obtiveram</p><p>melhores resultados no que diz respeito à identificação de rimas e</p><p>fonemas finais, habilidade determinante para o progresso na consciência</p><p>fonológica. Esse resultado levou os autores a afirmar que o uso de</p><p>atividades musicais, em especial as canções, pode aperfeiçoar as</p><p>habilidades de consciência fonológica de crianças pequenas (Herrera,</p><p>Defior e Lorenzo 2007; Herrera et al. 2011).</p><p>Os estudos de intervenção pedagógica aqui revisados demonstram a</p><p>importância das relações entre a música e a aquisição de leitura e escrita</p><p>em crianças da educação infantil, uma vez que o desenvolvimento</p><p>musical – percebido na melhoria das habilidades musicais obtida nas</p><p>avaliações pré e pós-intervenção pedagógica – parece ter contribuído</p><p>com o desenvolvimento do vocabulário, da consciência fonológica,</p><p>principalmente no que diz respeito à identificação de rimas e fonemas.</p><p>Além disso, esses estudos podem nos auxiliar na compreensão da</p><p>importância da educação musical infantil e da consciência fonológica</p><p>no desenvolvimento das habilidades musicais e linguísticas de crianças</p><p>pequenas, contribuindo assim para ampliar a discussão sobre a</p><p>relevância da música e da educação musical na vida das crianças.</p><p>Os estudos correlacionais, por sua vez, permitem que hipóteses</p><p>sejam testadas, a fim de verificar a existência de relações entre as</p><p>variáveis propostas (Henriques, Neves e Pesquita 2004/2005). Assim</p><p>seria possível avaliar, por exemplo, as habilidades musicais e de</p><p>consciência fonológica buscando investigar as correlações existentes</p><p>entre as duas áreas analisadas. No caso do estabelecimento de</p><p>correlações, é possível ainda entender qual o sentido e a extensão em</p><p>que estas ocorrem. No entanto, é importante frisar que as investigações</p><p>correlacionais não permitem que sejam estabelecidas relações causais</p><p>entre as variáveis estudadas (Henriques, Neves e Pesquita 2004/2005;</p><p>Berryman et al. 2002). Os estudos correlacionais aqui revisados foram</p><p>realizados com crianças pequenas canadenses (falantes de inglês e</p><p>francês), turcas e americanas.</p><p>Anvari et al. (2002) realizaram uma pesquisa com crianças de</p><p>quatro e cinco anos com o objetivo de verificar se há correlações entre o</p><p>processamento musical e a consciência fonológica, e de que modo a</p><p>consciência fonológica e as habilidades musicais são encontradas no</p><p>desenvolvimento da leitura das crianças. Cinquenta crianças de quatro</p><p>anos e cinquenta crianças de cinco anos matriculadas em creches ou</p><p>escolas canadenses foram submetidas a cinco sessões de testes</p><p>individuais, que envolviam tarefas de consciência fonológica, leitura,</p><p>vocabulário, música, duração da memória auditiva e matemática. Os</p><p>pesquisadores apontaram o desenvolvimento da consciência fonológica</p><p>como um facilitador na aquisição da leitura, sugerindo também uma</p><p>ligação entre a leitura e as habilidades de análise auditiva. Essa ligação</p><p>seria possível, segundo Anvari et al. (2002), tendo em vista que as</p><p>crianças que são hábeis na audição das categorias sonoras individuais de</p><p>uma palavra também poderiam ter facilidade na associação desses</p><p>fonemas com sua representação escrita. Ainda segundo os autores,</p><p>algumas habilidades de análise auditiva utilizadas na linguagem – como</p><p>a combinação ou a segmentação de sons, por exemplo – são similares às</p><p>habilidades necessárias à percepção musical. Assim sendo, seria</p><p>possível propor a hipótese de que as habilidades de análise auditiva</p><p>utilizadas na percepção musical podem também estar associadas ao</p><p>desenvolvimento da leitura (Anvari et al. 2002).</p><p>Os pesquisadores realizaram uma ampla análise dos dados</p><p>coletados e verificaram uma existência significativa de correlações entre</p><p>a música, a consciência fonológica e a leitura. Por meio da análise de</p><p>regressão hierárquica, foi possível apontar uma relação direta entre</p><p>habilidades musicais e leitura a partir dos resultados obtidos pelo grupo</p><p>de crianças de quatro anos, mesmo quando a variável da consciência</p><p>fonológica foi removida. Todavia, no grupo de crianças de cinco anos,</p><p>as questões rítmicas não apresentaram relevância significativa, e, por</p><p>esse motivo, foram apontadas relações entre a percepção melódica ou</p><p>de alturas e a leitura. Também foram encontrados indícios de que os</p><p>processos auditivos necessários à percepção musical estão presentes</p><p>igualmente nos processos auditivos necessários à consciência</p><p>fonológica e à leitura. Os resultados obtidos nos testes de vocabulário e</p><p>nas habilidades matemáticas não apresentaram correlação significativa</p><p>nem com a música nem com a leitura.</p><p>É importante ressaltar que a conclusão mais relevante apontada por</p><p>Anvari et al. (2002) foi a sugestão do uso dos mesmos mecanismos</p><p>auditivos e/ou cognitivos na percepção musical e na consciência</p><p>fonológica, mecanismos estes que parecem ser acessados</p><p>independentemente do aprendizado da leitura. Uma possível explicação</p><p>para isso diz respeito à habilidade de segmentação, pois a</p><p>consciência</p><p>fonológica requer do ouvinte a habilidade de segmentar a fala em</p><p>pequenos componentes sonoros e o reconhecimento dessas categorias</p><p>sonoras entre as variações de altura, tempo e contexto. Da mesma</p><p>forma, a percepção musical também requer do ouvinte a habilidade para</p><p>segmentar o “fluxo de alturas” em unidades menores relevantes e para</p><p>reconhecer variações de altura, tempo e contexto (para outras</p><p>informações, ver Schön, Magne e Besson 2004; Magne, Schön e Besson</p><p>2006).</p><p>Os estudos sobre possíveis conexões entre as habilidades</p><p>envolvidas na percepção musical e na consciência fonológica têm se</p><p>tornado cada vez mais frequentes. Ainda na década de 1990, os</p><p>pesquisadores Lamb e Gregory (apud Bolduc 2008) realizaram um</p><p>estudo utilizando dois testes de leitura, um teste de consciência</p><p>fonológica, um teste original de habilidades musicais (percepção</p><p>melódica e reconhecimento de timbres) e uma tarefa de controle de</p><p>habilidades não verbais. Esses testes foram aplicados em 18 pré-</p><p>escolares falantes de inglês. As crianças participantes que apresentaram</p><p>os resultados mais altos na percepção melódica também demonstraram</p><p>resultados elevados nos testes de leitura e consciência fonológica. Os</p><p>autores concluíram que as crianças que alcançaram os mais altos</p><p>escores na percepção melódica também foram bem-sucedidas na</p><p>decodificação e na manipulação de diferentes unidades linguísticas</p><p>(como rimas, sílabas e fonemas), apresentando maior facilidade do que</p><p>as crianças que tiveram um desempenho menor nas tarefas de percepção</p><p>melódica (ibid.).</p><p>Seguindo caminhos semelhantes, Peynircioglu, Durgunoglu e</p><p>Öney-Küsefoglu (2002) realizaram um teste de aptidão musical para</p><p>escolher os participantes de dois estudos que investigaram possíveis</p><p>correlações entre aptidão musical, consciência fonológica e habilidades</p><p>de identificação de pseudopalavras. No primeiro experimento, 61</p><p>crianças turcas participaram de um teste de aptidão musical. Partindo do</p><p>resultado do teste de aptidão, os autores selecionaram 32 crianças que</p><p>apresentaram níveis alto ou baixo de aptidão musical para participar da</p><p>segunda etapa do estudo, sendo excluídas, assim, as crianças que</p><p>obtiveram um nível médio de aptidão musical. As 32 crianças</p><p>participantes do primeiro experimento tinham idade entre quatro e seis</p><p>anos, falavam turco, estavam matriculadas em pré-escolas ou creches</p><p>públicas e privadas de Istambul e não sabiam ler. Todas as crianças</p><p>foram submetidas a testes de consciência fonológica e identificação de</p><p>pseudopalavras que envolviam tarefas de subtração de fonemas (iniciais</p><p>e finais) de palavras e pseudopalavras. Além disso, participaram de um</p><p>teste de aptidão musical que envolveu tarefas de percepção melódica e</p><p>de habilidades rítmicas, que incluíam também a subtração de notas</p><p>iniciais e finais de trechos melódicos extraídos de canções familiares às</p><p>crianças. Os resultados encontrados levaram os autores a afirmar que os</p><p>participantes que apresentaram altos escores de aptidão musical também</p><p>alcançaram os escores mais elevados nos testes de consciência</p><p>fonológica.</p><p>O segundo experimento foi idêntico ao primeiro, entretanto foi</p><p>realizado com 40 crianças com idade entre três e seis anos, falantes de</p><p>inglês, que estavam matriculadas em pré-escolas ou creches públicas e</p><p>privadas da região de Washington (EUA) e que também não sabiam ler.</p><p>Os mesmos testes foram aplicados, com a diferença de que os autores</p><p>inseriram novos excertos melódicos desconhecidos que foram</p><p>misturados aos excertos de canções familiares, bem como construíram</p><p>pseudopalavras tendo em vista os sons das palavras em inglês (cf.</p><p>Peynircioglu, Durgunoglu e Öney-Küsefoglu 2002). Ao analisar os</p><p>dados coletados para o segundo experimento, os referidos autores (ibid.)</p><p>encontraram resultados idênticos àqueles encontrados no primeiro</p><p>experimento, ou seja, as crianças com melhores resultados no teste de</p><p>aptidão musical também obtiveram resultados superiores em</p><p>consciência fonológica e identificação de pseudopalavras.</p><p>Outro estudo sobre correlações entre a consciência fonológica e as</p><p>habilidades de percepção musical (melódicas e rítmicas) foi</p><p>desenvolvido por Bolduc e Montésinos-Gelet (2005, apud Bolduc 2008)</p><p>com 13 pré-escolares canadenses de cinco anos, falantes de francês. Os</p><p>pesquisadores realizaram testes para avaliar as habilidades de percepção</p><p>musical e consciência fonológica dos participantes e encontraram</p><p>correlações significativas entre as habilidades de percepção melódica e</p><p>as tarefas de identificação de rimas e sílabas. Todavia, não foram</p><p>encontradas correlações significativas entre as habilidades de percepção</p><p>rítmica e percepção melódica, nem entre as habilidades de percepção</p><p>rítmica e consciência fonológica.</p><p>Assim como Bolduc e Montésinos-Gelet (apud Bolduc 2008) não</p><p>encontraram correlações significativas entre as habilidades de</p><p>percepção rítmica e a consciência fonológica, Anvari et al. (2002)</p><p>também não verificaram correlação entre o ritmo e as habilidades de</p><p>leitura e a consciência fonológica em crianças de cinco anos. No</p><p>entanto, esse resultado encontrado por Anvari et al. (2002) foi posto em</p><p>xeque por David et al. (2007), que propuseram um estudo longitudinal</p><p>para investigar como o ritmo pode predizer a leitura de crianças</p><p>pequenas. A pesquisa foi desenvolvida com 53 crianças de três escolas</p><p>diferentes da província de Ontário (Canadá) que possuíam condições</p><p>socioeconômicas similares. Por se tratar de um estudo longitudinal, as</p><p>crianças responderam a testes de consciência fonológica, habilidade de</p><p>leitura e ritmo durante cinco anos consecutivos, sempre no outono –</p><p>período que coincide com o início do ano letivo no Canadá. A primeira</p><p>sessão de testes foi realizada quando as crianças cursavam a 1ª série. Os</p><p>testes realizados pelos participantes incluíram tarefas de</p><p>velocidade/rapidez de nomeação, consciência fonológica, leitura e</p><p>ritmo.</p><p>Pelos resultados obtidos, os autores sugeriram que o ritmo é um</p><p>elemento importante no desenvolvimento da habilidade da leitura, da</p><p>consciência fonológica e da velocidade de nomeação não somente na 1ª</p><p>série, mas em todas as séries subsequentes. No entanto, quando a</p><p>variável da consciência fonológica foi removida, o ritmo permaneceu</p><p>como influência positiva apenas no caso das crianças da 5ª série e no</p><p>teste de leitura, subteste de ataque da palavra. Quando a variável de</p><p>velocidade de nomeação foi controlada, foi verificado o poder preditivo</p><p>do ritmo em relação ao teste de leitura, ao subteste de identificação da</p><p>palavra na 2ª e 3ª séries e ao subteste de ataque da palavra na 2ª, 3ª e 5ª</p><p>séries. David et al. (2007) concluíram o estudo sugerindo uma relação</p><p>inédita entre ritmo e leitura em uma amostra de leitores de</p><p>desenvolvimento típico, pois, de modo geral, a literatura que traça essa</p><p>relação se refere a leitores com algum tipo de dificuldade de</p><p>aprendizagem. Os autores sugeriram que há evidências de que a</p><p>correlação ritmo-leitura é mais significativa em crianças maiores, posto</p><p>que os resultados mais importantes que demonstraram essa correlação</p><p>na amostra pesquisada foram encontrados quando as crianças já</p><p>estavam cursando a 5ª série. Esse resultado poderia ser explicado pelo</p><p>aumento das dificuldades na leitura, tendo em vista que, segundo David</p><p>et al. (2007), as crianças mais novas só conseguem ler palavras mais</p><p>simples, entretanto, as crianças mais velhas devem ler palavras mais</p><p>complexas, com maior variação de métrica e entoação.</p><p>De maneira geral, o que fica latente com a revisão dos estudos</p><p>correlacionais é a confirmação da existência de correlação significativa</p><p>entre a consciência fonológica e as habilidades musicais nas pesquisas</p><p>analisadas (Bolduc 2008; David et al. 2007; Anvari et al. 2002;</p><p>Peynircioglu, Durgunoglu e Öney-Küsefoglu 2002; Lamb e Gregory,</p><p>apud Bolduc 2008). Vale ressaltar, entretanto, que o melhor</p><p>desempenho nas habilidades musicais – principalmente no que diz</p><p>respeito à percepção melódica – que acompanhou uma melhoria nas</p><p>habilidades de identificação e manipulação de unidades linguísticas –</p><p>destacadamente</p><p>em rimas, sílabas e fonemas iniciais – foi verificado</p><p>tanto em grupos de crianças que não tiveram suas habilidades musicais</p><p>avaliadas antes dos estudos, quanto nas crianças tomadas por</p><p>Peynircioglu, Durgunoglu e Öney-Küsefoglu (2002) – que dividiram</p><p>suas amostras em crianças com maior e menor nível de aptidão musical.</p><p>Com base em minha vivência como educadora musical da educação</p><p>básica e da extensão universitária, bem como na reflexão sobre alguns</p><p>dos estudos revisados nesta seção, construí minha primeira pesquisa[7]</p><p>sobre o desenvolvimento de habilidades musicais e a consciência</p><p>fonológica, realizada com crianças brasileiras de quatro e cinco anos da</p><p>cidade de Curitiba (PR) (Pacheco 2009). Os principais objetivos,</p><p>procedimentos metodológicos e resultados obtidos com a referida</p><p>pesquisa são apresentados a seguir, com o intuito de estabelecer uma</p><p>necessária discussão sobre a criança brasileira, seu desenvolvimento</p><p>musical e as possíveis implicações deste em seu desenvolvimento de</p><p>modo geral.</p><p>Estudando crianças brasileiras: A correlação existe?</p><p>Diversos estudos sobre a consciência fonológica e, mais</p><p>recentemente, sobre o desenvolvimento musical, foram conduzidos com</p><p>crianças brasileiras por estudiosos de diversas áreas do conhecimento,</p><p>como a educação, a música, a fonoaudiologia, a psicologia, entre outras.</p><p>Todavia, ainda é consideravelmente pequeno o número de estudos que</p><p>toma um ou mais componentes das habilidades musicais e da</p><p>consciência fonológica como elementos de análise. Por conseguinte,</p><p>acredito ser relevante a apresentação da pesquisa que desenvolvi com</p><p>crianças do sul do país, para que seja possível fomentar a discussão</p><p>sobre as possíveis relações existentes entre a música e a consciência</p><p>fonológica no desenvolvimento das crianças brasileiras.</p><p>A pesquisa teve como objetivo investigar a existência de</p><p>correlações entre as habilidades musicais e as habilidades de</p><p>consciência fonológica em 40 crianças de quatro e cinco anos da cidade</p><p>de Curitiba, replicando parcialmente o estudo de Anvari et al. (2002).</p><p>Entretanto, como sabemos, o acesso à educação musical no Brasil ainda</p><p>é um processo viável somente a uma pequena parcela de crianças,</p><p>principalmente quando o assunto é a educação infantil (para mais</p><p>informações, ver Ilari 2007). Portanto, foram avaliadas as habilidades</p><p>musicais que são decorrentes de processos de enculturação vivenciados</p><p>pelas crianças participantes do estudo, ou seja, processos de</p><p>aprendizagem musical que ocorrem fora do ambiente da educação</p><p>musical escolar.</p><p>A amostra do estudo foi composta por 20 crianças de quatro anos e</p><p>20 crianças de cinco anos (média de idade = quatro anos e nove meses),</p><p>de classe média baixa, sendo 18 meninos e 22 meninas. Todas as</p><p>crianças estavam regularmente matriculadas em um centro municipal de</p><p>educação infantil da cidade de Curitiba, tinham idade entre quatro e</p><p>cinco anos completos e não apresentavam dificuldade de aprendizagem,</p><p>fala ou audição previamente diagnosticada. As crianças pertenciam a</p><p>duas turmas de educação infantil (maternal III e pré), cada qual com</p><p>cerca de 30 alunos, e a escola não dispunha de aulas de música</p><p>regulares.</p><p>Para avaliar as habilidades musicais e a consciência fonológica,</p><p>cada criança participou de duas sessões individuais de testes</p><p>(aproximadamente 25 minutos por sessão), nas quais foram realizadas</p><p>oito tarefas – detalhadas no Quadro 1. A avaliação das habilidades</p><p>musicais incluiu tarefas de percepção e produção[8] rítmica e melódica.</p><p>Já a avaliação da consciência fonológica teve como base tarefas de</p><p>identificação de rimas, síntese de sílabas e de ataque/rima (onset-rime),</p><p>[9] identificação de sons iniciais diferentes (sílaba, ataque e fonema) e</p><p>identificação de sons diferentes (sílaba inicial, final e medial). As</p><p>tarefas musicais de percepção rítmica e melódica, e de produção</p><p>rítmica, foram baseadas em Anvari et al. (2002). Porém, uma nova</p><p>tarefa de produção melódica foi acrescentada, tendo em vista que</p><p>crianças de quatro e cinco anos, estando em pleno desenvolvimento de</p><p>suas habilidades musicais, já são capazes de cantar melodias curtas e</p><p>imitar o canto de outras pessoas, parecendo estar mais autoconscientes</p><p>da precisão de suas imitações vocais (McDonald e Simons 1989; Parizzi</p><p>2006; Sloboda 2008).</p><p>Para a tabulação dos dados foi utilizada a contagem do número de</p><p>acertos (nas tarefas que exigiam uma resposta correta) e a atribuição de</p><p>notas na avaliação da produção musical. Durante a avaliação das tarefas</p><p>de produção musical foram atribuídas notas entre zero e cinco, tendo em</p><p>vista uma escala crescente iniciada na ausência de semelhança entre as</p><p>melodias ou sequências rítmicas propostas (0,0); alcançando o ponto</p><p>intermediário na preservação do contorno melódico ou do agrupamento</p><p>rítmico (2,5); e finalizada na produção musical idêntica àquela proposta</p><p>– incluindo número de notas, intervalos e afinação ou número de notas,</p><p>agrupamentos rítmicos e pulso (5,0). Após a análise estatística</p><p>descritiva, foram conduzidos dois testes não paramétricos: (i)</p><p>coeficiente de correlação de Spearman, para mensurar as correlações</p><p>entre as variáveis; e (ii) teste de Kruskal-Wallis, para verificar a</p><p>existência de diferenças entre os grupos, tendo em vista o gênero e a</p><p>idade.</p><p>Quadro 1: Detalhamento dos testes realizados por Pacheco (2009)</p><p>Teste de avaliação das habilidades musicais</p><p>Tarefa de percepção rítmica: a criança ouvia duas sequências rítmicas, separadas entre si</p><p>por um curto período de tempo (cerca de três segundos), e deveria indicar se as</p><p>sequências ouvidas eram iguais ou diferentes. Foram realizados dois materiais de treino e</p><p>quatro de exame, e o material musical foi apresentado vocalmente pela pesquisadora.</p><p>Tarefa de percepção melódica: a criança ouvia duas melodias, separadas entre si por um</p><p>período de três segundos, e deveria indicar se as melodias ouvidas eram iguais ou</p><p>diferentes. Foram realizados dois materiais de treino e quatro de exame, e o material</p><p>musical foi apresentado por meio de uma gravação Midi (timbre de piano).</p><p>Tarefa de produção rítmica: a criança ouvia uma sequência rítmica e, em seguida, deveria</p><p>executar a sequência ouvida. Foi realizado um material de treino e quatro de exame. O</p><p>material musical foi apresentado vocalmente pela pesquisadora e toda a tarefa foi gravada</p><p>em áudio.</p><p>Tarefa de produção melódica: a criança ouvia uma melodia e, em seguida, deveria</p><p>executar a melodia ouvida. Foi realizado um material de treino e quatro de exame. O</p><p>material musical foi apresentado vocalmente pela pesquisadora e toda a tarefa foi gravada</p><p>em áudio.</p><p>Teste de avaliação da consciência fonológica</p><p>Tarefa de identificação de rima: a criança deveria identificar, entre três palavras, aquela</p><p>que rimava com uma palavra-estímulo (pião: bruxa-avião-colher). Foram realizados dois</p><p>materiais de treino e seis de exame, apresentados oral e visualmente.</p><p>Tarefa de síntese de sílabas e de ataque/rima (onset/rime): a criança ouvia a palavra de</p><p>forma segmentada (so-pa ou fl-or), e, em seguida, deveria dizer a palavra completa (sopa</p><p>ou flor). Foram realizadas duas palavras de treino e seis de exame em cada tipo de</p><p>síntese (silábica e de ataque inicial).</p><p>Tarefa de identificação de som diferente (sílaba inicial, final e medial): a criança ouvia três</p><p>palavras e deveria indicar qual palavra tinha um som diferente no início (cama-lata-lápis),</p><p>no fim (caça-massa-coco) ou no meio (cereja-morena-sapato). Foram realizados dois</p><p>materiais de treino e quatro de exame para cada grupo (sílaba inicial, final e medial).</p><p>Tarefa de identificação de som inicial diferente (sílaba, ataque e fonema): a criança ouvia</p><p>quatro palavras, sendo que uma apresentava um segmento fonológico diferente das</p><p>demais no que concerne à sílaba inicial (fogão-caneta-foguete-folha), ao ataque inicial</p><p>(flauta-boneca-flor-flecha) e ao fonema inicial (peixe-pato-pião-vassoura). A criança</p><p>deveria indicar qual era a palavra “estranha”. Foram realizados dois materiais de treino e</p><p>três de exame para cada grupo (sílaba, ataque e fonema), apresentados oral e</p><p>visualmente.</p><p>direita: C – F – C – F – C – F – G – C. Essa frase se repete várias vezes</p><p>e, na última repetição, o andamento recua. Um glissando descendente</p><p>espelha o início da música, encerrando-a.</p><p>A próxima faixa, “Amarelo”, é uma miniatura, mais amena e</p><p>delicada. Começa com appoggiaturas que se alternam docemente.</p><p>Surgem braços voando alongados e passos curtos que se desfazem em</p><p>piruetas e rodopios – como a música. Estabelece-se o baixo (lá), e as</p><p>appoggiaturas se abrem em uma melodia em padrão escalar</p><p>descendente que se repete três vezes. Esse padrão aparece então com o</p><p>baixo em ré e a melodia ligeiramente modificada para acomodar a</p><p>harmonia. Tudo é repetido uma oitava abaixo. Uma escala ascendente</p><p>conduz de novo ao padrão inicial, no agudo, e termina com as</p><p>appoggiaturas descendo até o extremo grave. Passa como uma nuvem,</p><p>lembrando móbiles ou caleidoscópios. E alguns gritam: “De novo!”.</p><p>“Azul índigo”, a terceira peça, é bem diferente: muito lenta,</p><p>intimista e hesitante. O tempo se dilata. Sobre um ostinato no grave do</p><p>piano, dois motivos se alternam: um mais agudo, em ritmo pontuado, e</p><p>um no registro médio, com ornamentos e notas repetidas. Assim se</p><p>mantém o piano e sobre ele surge um solo de clarineta, amplo e solene.</p><p>A princípio desconfiadas, as crianças vão se tornando como a música.</p><p>Os movimentos se ampliam. Cavalheiros, astronautas ou equilibristas</p><p>ajoelham-se, expandem-se, preparam saltos imaginários, esboçam</p><p>passos solenes. Por um minuto e meio, não riem nem reclamam que a</p><p>música seja lenta ou chata. Ficam meio que hipnotizados.</p><p>Com pena de quebrar o silêncio e com cuidado para manter a</p><p>energia delicada que se instalara, peço às crianças que se assentem</p><p>calmamente, trazendo papel e lápis. Pergunto-lhes: “O que vocês</p><p>perceberam nessa música? Como a descreveriam para alguém que</p><p>nunca a escutou?”. O corpo que acabara de dançar, deslocando-se no</p><p>espaço, deverá agora movimentar-se em pensamento e transferir suas</p><p>impressões para o papel. Ao saírem para o pátio, observo, entre</p><p>escorregadores e balanços, rodopios e saltos, olhares distantes e risos</p><p>pródigos.</p><p>Tais cenas da vida real se emprestam ao olhar do pesquisador:</p><p>atividades corriqueiras, realizadas segundo alguns cuidados</p><p>metodológicos, convertem-se em fonte de observação, análise e</p><p>reflexão. As respostas das crianças, seus desenhos e relatos, constituem</p><p>expressões de sua vida interior, produtos legítimos de sua experiência</p><p>musical. Tê-los em mãos é como abrir o melhor presente, acolher algo</p><p>precioso.</p><p>Significado</p><p>E assim se faz a música que habita nossa mente: sons individuais</p><p>combinados são percebidos como gestos, motivos e melodias que</p><p>incorporam nuances de expressividade. Brotam impressões, sensações,</p><p>emoções. O caráter expressivo é determinado pelas escolhas dentre um</p><p>amplo cardápio sonoro e pelas maneiras como estas são encadeadas.</p><p>Graus conjuntos tocados lentamente em legato no registro médio</p><p>produzem uma sensação espacial e psicológica muito diferente de, por</p><p>exemplo, saltos irregulares e imprevisíveis executados rapidamente no</p><p>agudo e em staccato.</p><p>Imbuídos de significados, sons tornam-se música. Motivos, gestos,</p><p>temas, melodias, passagens e movimentos inteiros assumem sentidos,</p><p>sugerem ideias, provocam associações, evocam memórias. Como</p><p>escrevia Hanslick (1957, pp. 87-88), arabescos e caleidoscópios de</p><p>sons, formas plásticas e ondas de movimento soam graciosos ou</p><p>desengonçados, delicados ou enérgicos, doces ou agressivos. Vivências</p><p>e memórias de hesitação, monotonia, contraste, continuidade ou</p><p>grandiosidade operam como plano de fundo e espelham padrões</p><p>análogos percebidos nas músicas: frases curtas ou fragmentadas; gestos</p><p>longos, expansivos; frases hesitantes, retraídas; temas assertivos e</p><p>eloquentes.</p><p>Esses gestos, temas, frases, passagens e movimentos sucedem-se no</p><p>tempo e se encadeiam a outros, delineando padrões de força,</p><p>movimento e proporção, categorias apontadas por Hanslick (1957, pp.</p><p>37-38). Podem projetar impressões de monotonia, pela reiteração</p><p>contínua, ou de ansiedade, pela constante quebra da expectativa. Num</p><p>jogo de contrastes, repetições, variações e desenvolvimentos, articula-se</p><p>a estrutura que se desenrola no tempo, desafiando-o.</p><p>Em resumo: materiais sonoros são combinados e produzem caráter</p><p>expressivo; gestos expressivos são organizados em estruturas, formas</p><p>musicais que revelam a vitalidade da música, seu valor como discurso</p><p>simbólico (Swanwick 1994). Tais dimensões se acumulam por meio de</p><p>transformações metafóricas (Swanwick 1999), cuja percepção é vital</p><p>para a compreensão simbólica da música (Figura 1).</p><p>Figura 1: Dimensões do discurso musical</p><p>Fonte: Baseado em Swanwick (1994 e 1999) e em Swanwick e Taylor (1982).</p><p>Ainda que obras musicais não denotem elementos ou emoções</p><p>específicos, nossas vivências e memórias de delicadeza, agressividade,</p><p>vigor, hesitação, monotonia, contraste ou continuidade ateiam brasas à</p><p>imaginação. Eventos plásticos de peso, espaço, movimento e tensão</p><p>relativos, contidos em uma obra, relacionam-se a eventos vividos e</p><p>guardados em nossa memória (Swanwick 1992, pp. 36-37).</p><p>Crescendo e decrescendo, acelerando e retardando, tensão e</p><p>resolução, movimento e repouso, hesitação e determinação, preparação</p><p>e completude, excitação e monotonia, expectativa e mudança súbita,</p><p>entre outras, são propriedades dinâmicas vivenciadas a todo momento</p><p>em nossa experiência cotidiana (Langer 1957, pp. 227-228). A música</p><p>produz uma transmutação simbólica desse fluxo interno, numa tradução</p><p>que nunca é fixa. Basta uma mínima semelhança entre os sons e as</p><p>nossas experiências para que a imaginação ganhe asas (Langer 1957,</p><p>pp. 68-71). Nossa fantasia delineia os mais diversos significados,</p><p>associações que não são lógicas, mas psicológicas.</p><p>Se, quando a criança ouve música, a bailarina se põe a dançar, o</p><p>menino a correr, a borboleta a voar, isso é atributo pessoal e</p><p>intransferível da sua vida interior que se manifesta. É o encontro de</p><p>estruturas sonoras relacionadas entre si e, ao mesmo tempo, com seu</p><p>repertório simbólico particular.</p><p>Desenvolvimento</p><p>Venho me debruçando por quase duas décadas sobre a produção</p><p>musical das crianças, tendo como referencial a Teoria Espiral de</p><p>Desenvolvimento Musical proposta por Swanwick (1988, 1994;</p><p>originalmente em Swanwick e Tillman 1986). A teoria descreve o</p><p>desenvolvimento da compreensão musical em estágios progressivos</p><p>correspondentes a elementos do discurso musical: materiais sonoros,</p><p>caráter expressivo, forma e valor. Esses elementos, cumulativos pela</p><p>própria natureza da música, revelam-se cumulativos também no</p><p>desenvolvimento musical.</p><p>Encontramos na literatura um conjunto consistente de dados</p><p>coletados em vários contextos e em diversas faixas etárias (França e</p><p>Barbosa 2009; Swanwick 2008; Lehmann, Sloboda e Woody 2007;</p><p>Carneiro 2006; Runfola e Swanwick 2002; França e Swanwick 2002;</p><p>França Silva 1998; Stavrides 1995; Hentschke 1993, entre outros).</p><p>Mas não são as estatísticas que me convencem do percurso do</p><p>desenvolvimento musical visualizado por Swanwick, e, sim, o que meus</p><p>olhos veem e o que meus ouvidos escutam. Com a sensação da</p><p>concretude de quem toca uma escultura, tenho observado o</p><p>desenvolvimento musical se desenrolar nas vozes e práticas de alguns</p><p>milhares de crianças e jovens.</p><p>Tenho acompanhado também, dia a dia, semana a semana, ano a</p><p>ano, meus próprios filhos galgando cada aquisição psicológico-musical,</p><p>escalando descobertas como exploradores persistentes, e afirmando</p><p>marcos do seu amadurecimento como bandeiras fincadas na lua. Hoje,</p><p>enquanto escrevo, Fernanda brinca ao piano, improvisando</p><p>especulativos. José Lucas ouve, canta e dança seu rock favorito, que já</p><p>não é o mesmo de ontem e, provavelmente, será substituído amanhã.</p><p>Anos antes, seus balbucios musicais ainda se esboçavam enquanto</p><p>seus ouvidos captavam cada sonoridade, musical ou não. Registravam</p><p>vozes associadas ao conforto, à saciedade, ao aconchego. Associavam o</p><p>canto materno à suprema felicidade. Chocalhos, palhacinhos e móbiles</p><p>musicais tornavam-se companheiros de explorações motoras e</p><p>Os resultados do coeficiente de correlação de Spearman</p><p>encontrados demonstraram a existência de uma correlação significativa</p><p>entre as habilidades musicais e a consciência fonológica em crianças</p><p>brasileiras de quatro e cinco anos (Tabela 1). A correlação encontrada</p><p>entre a consciência fonológica e as habilidades musicais levou a autora</p><p>a especular sobre a possibilidade de haver transferência cognitiva entre</p><p>domínios como a música e a linguagem (para uma revisão, consulte</p><p>Costa-Giomi 2006; Ilari 2005; Schellenberg 2001). Tal análise foi</p><p>baseada na ideia de que a música e a linguagem possuem algumas</p><p>características em comum, como organização temporal (McMullen e</p><p>Saffran 2004), altura, ritmo, melodia e, em alguns casos, prosódia</p><p>(Medeiros 2006). Contudo, foi apontada a necessidade de se realizarem</p><p>estudos futuros para compreender se o que há entre a consciência</p><p>fonológica e as habilidades musicais são realmente transferências de</p><p>habilidades cognitivas (Pacheco 2009).</p><p>Tabela 1: Coeficiente de correlação de Spearman e p-valor –</p><p>Habilidades musicais (HM) e consciência fonológica (CF)</p><p>G4 – Grupo 4 anos</p><p>N coeficiente p-valor</p><p>CF e HM 19 -0,00838 0,972835</p><p>G5 – Grupo 5 anos</p><p>N coeficiente p-valor</p><p>CF e HM 19 0,318625 0,183672</p><p>Total (G4+G5)</p><p>N coeficiente p-valor</p><p>CF e HM 38 0,359585 0,0266</p><p>Durante a análise de dados, as habilidades musicais foram</p><p>segmentadas em três sub-habilidades ou variáveis (percepção musical,</p><p>produção rítmica e produção melódica) e analisadas em relação à</p><p>consciência fonológica e entre elas mesmas (Tabelas 2a e 2b). Tomando</p><p>os dados do total da amostra (n=40), correlações significativas foram</p><p>estabelecidas entre as variáveis musicais (percepção musical e produção</p><p>melódica) e a consciência fonológica; entretanto, tal correlação não foi</p><p>verificada entre a produção rítmica e a consciência fonológica. Quando</p><p>foram analisados os dados por faixa etária, não foi encontrada uma</p><p>correlação significativa entre a percepção musical e a consciência</p><p>fonológica nem no grupo de crianças de quatro anos nem no grupo de</p><p>crianças de cinco anos. Esse resultado é diferente daquele encontrado</p><p>por Anvari et al. (2002). Todavia, Pacheco (2009) argumenta que o</p><p>número da amostra pode ter influenciado tal resultado. A correlação</p><p>estabelecida entre a produção melódica e a consciência fonológica,</p><p>tomando o total da amostra (n = 40), pode estar relacionada com a</p><p>própria natureza das relações entre a música e a linguagem, que, ao que</p><p>tudo indica, decorre da organização temporal (McMullen e Saffran</p><p>2004), da necessidade de organização de sequências sonoras (Patel e</p><p>Daniele 2003) e da necessidade de transmissão através do meio</p><p>auditivo-vocal (Sloboda 2008). Tais questões, presentes na música e na</p><p>linguagem, tiveram que ser exploradas para a demonstração das</p><p>habilidades requeridas tanto na tarefa de produção melódica quanto nas</p><p>tarefas de consciência fonológica.</p><p>Tabela 2a: Coeficientes de correlação de Spearman – Amostra total,</p><p>quatro variáveis</p><p>CF PERC PR PM</p><p>CF 0,395005 0,264797 0,321834</p><p>PERC 0,520337 0,43715</p><p>PR 0,551033</p><p>Onde CF = consciência fonológica; PERC = percepção musical;</p><p>PR = produção rítmica; PM = produção melódica</p><p>Conforme citado anteriormente, na análise das variáveis das</p><p>habilidades musicais, verificou-se que todas as sub-habilidades musicais</p><p>apresentaram correlação significativa entre si quando tomados os</p><p>resultados do total da amostra (ver Tabela 2b). Porém, quando</p><p>analisados os resultados dos grupos por faixa etária, foram encontradas</p><p>correlações significativas entre a percepção musical e a produção</p><p>rítmica das crianças de quatro anos. Com o grupo de cincos anos, tal</p><p>correlação foi significativa entre as variáveis de percepção musical e</p><p>produção melódica, e de produção rítmica e produção melódica.</p><p>Tabela 2b: P-valor – Amostra total, quatro variáveis</p><p>CF PERC PR PM</p><p>CF 0,011651 0,103295 0,04572</p><p>PERC 0,000685 0,005391</p><p>PR 0,000337</p><p>Onde CF = consciência fonológica; PERC = percepção musical;</p><p>PR = produção rítmica; PM = produção melódica</p><p>A correlação encontrada entre a produção melódica e a percepção</p><p>musical nas crianças de cinco anos parece ser reflexo do próprio</p><p>processo de desenvolvimento musical, resultante da enculturação, uma</p><p>vez que as crianças que participaram do presente estudo não tinham</p><p>aulas de música regulares (Pacheco 2009). As ideias de Sloboda (2008)</p><p>são utilizadas para explicar o aumento da capacidade de organização</p><p>musical em relação às canções nas crianças de cinco anos, visto que elas</p><p>são bastante hábeis para cantar uma canção completa, mantendo a</p><p>tonalidade mesmo que as relações intervalares não sejam perfeitamente</p><p>exatas. Habilidade esta que nem sempre é observada em crianças de</p><p>quatro anos. Além disso, é possível que a correlação verificada entre a</p><p>produção melódica e a percepção musical nas crianças de cinco anos</p><p>esteja relacionada ao aumento da capacidade de organização da própria</p><p>produção melódica por parte delas. A ideia da existência de esquemas</p><p>de contorno, proposta por Hargreaves e Zimmerman (2006), é outra</p><p>possível explicação, posto que o tipo de estratégia utilizada para o</p><p>processamento da percepção musical também guiaria as fases iniciais de</p><p>aquisição do canto.</p><p>No que diz respeito à correlação encontrada entre a produção</p><p>rítmica e a percepção musical nas crianças de quatro anos, foi levantada</p><p>a hipótese de que as habilidades rítmicas podem se desenvolver antes do</p><p>conhecimento melódico e harmônico, e de que a percepção melódica é a</p><p>principal habilidade no que se refere à apreensão, por essas crianças, de</p><p>importantes estruturas sonoras advindas do meio (Anvari et al. 2002).</p><p>Entretanto, para a confirmação dessa hipótese, novos estudos devem ser</p><p>conduzidos, e talvez eles sejam especialmente válidos de serem</p><p>realizados com brasileiros, tendo em vista toda a diversidade rítmica de</p><p>nosso país.</p><p>Em relação aos resultados do teste de Kruskal-Wallis, assim como</p><p>esperado, as meninas de cinco anos alcançaram os maiores escores em</p><p>todas as variáveis analisadas. Segundo Sloboda (2008), esse resultado já</p><p>foi observado em vários estudos sobre o desenvolvimento musical e</p><p>torna-se importante, pois sugere diferenças de gênero relativas ao</p><p>desenvolvimento musical. Contudo, não foram encontradas diferenças</p><p>entre os grupos de idade e gênero quando analisadas as variáveis de</p><p>produção melódica e percepção musical. É possível que essa</p><p>homogeneidade encontrada entre os grupos em relação à percepção</p><p>musical esteja ligada à questão, apontada por Sloboda (2008), de que as</p><p>habilidades perceptivas das crianças têm desenvolvimento anterior às</p><p>habilidades de produção (Pacheco 2009).</p><p>Ainda segundo os resultados do teste de Kruskal-Wallis, e também</p><p>a observação das médias e do desvio-padrão encontrados na análise</p><p>descritiva dos dados, podemos concordar com os estudiosos em relação</p><p>à natureza sequencial do desenvolvimento musical infantil (McDonald e</p><p>Simons 1989; Hargreaves e Zimmerman 2006). O melhor desempenho</p><p>das crianças de cinco anos na maioria das tarefas de avaliação das</p><p>habilidades musicais, segundo os autores, tende a ser o resultado do</p><p>maior tempo de contato com o meio e com as experiências vividas.</p><p>Nesse sentido, as ideias de McDonald e Simons (1989) teriam relações</p><p>estreitas com o conceito de enculturação proposto por Sloboda (2008),</p><p>uma vez que é a articulação entre as tendências inatas, as experiências</p><p>com o meio circundante e seu impacto no sistema cognitivo geral que</p><p>propulsiona tal processo.</p><p>O estudo apresentado contribui para a construção de conhecimento</p><p>sobre o desenvolvimento musical e a aquisição da leitura e da escrita de</p><p>crianças brasileiras, posto que sugere a existência de correlação</p><p>significativa entre as habilidades musicais e a consciência fonológica</p><p>das crianças de quatro e cinco anos estudadas (Pacheco 2009). Tal</p><p>correlação pode ser fruto de um compartilhamento de mecanismos</p><p>auditivos e/ou cognitivos na percepção da música e da linguagem oral.</p><p>Borges (2005) se baseia nas ideias chomskianas acerca da organização</p><p>da mente em módulos autônomos e independentes,</p><p>porém inter-</p><p>relacionados, e percebe a música e a linguagem como sendo dois desses</p><p>módulos. Logo, se a música e a linguagem são tomadas como dois</p><p>desses módulos, a sugestão de que a percepção musical e a consciência</p><p>fonológica façam uso dos mesmos mecanismos auditivos e/ou</p><p>cognitivos poderia ser um dos indicativos da relação independente,</p><p>porém inter-relacionada, desses dois domínios.</p><p>Para concluir: A educação musical infantil e o olhar para o</p><p>futuro</p><p>No presente capítulo buscamos levantar questões a respeito do</p><p>desenvolvimento infantil, abordando importantes aspectos para o pleno</p><p>crescimento das crianças pequenas: a música e a aquisição de leitura e</p><p>escrita. Inicialmente discutimos sobre a trajetória do conceito de</p><p>desenvolvimento musical. Compreendemos que alguns estudiosos já</p><p>concordam com pais, professores e mestres de cultura popular, uma vez</p><p>que percebem que, desde pequenas, as crianças vivenciam diariamente</p><p>oportunidades de aprendizagem musical em diferentes ambientes e</p><p>situações. Ouvir, brincar e fazer música no pátio da escola durante um</p><p>intervalo, na aula de música de um conservatório, no barracão de um</p><p>grupo de cultura popular ou na aula de música de um centro de</p><p>educação infantil empodera a criança, na medida em que a torna</p><p>participante ativa de seu desenvolvimento musical. As crianças são</p><p>participantes ativas de um processo contínuo de reorganização do</p><p>conhecimento musical, que, de uma maneira ou de outra, se repete e</p><p>encontra conhecidas e novas direções (Bamberger, apud Ilari 2009).</p><p>Todavia, a música é uma das competências a serem desenvolvidas na</p><p>infância, e, como sabemos, outra importante trajetória se completa</p><p>quando a criança adquire a habilidade de ler e escrever. Continuamos,</p><p>assim, nosso percurso, refletindo sobre o desenvolvimento da</p><p>consciência fonológica, o componente das habilidades metalinguísticas</p><p>capaz de levar o indivíduo à análise da linguagem oral, tornando-o apto</p><p>a identificar, manipular e segmentar os sons da fala. Além disso, a</p><p>consciência fonológica vem sendo apontada como preditora do êxito na</p><p>aquisição da leitura e da escrita (Cardoso-Martins 1995; Barrera 2003;</p><p>Maluf e Barrera 1997; Barrera e Maluf 2003; Guimarães 2001, 2003a,</p><p>2003b).</p><p>Apresentados os conceitos e estabelecidas as áreas de conhecimento</p><p>que seriam abordadas, passamos a pensar nos pontos de convergência</p><p>entre o desenvolvimento musical e a consciência fonológica. Para tanto,</p><p>revisamos estudos realizados com crianças de diferentes regiões do</p><p>globo (Anvari et al. 2002; Bolduc 2008, 2009; David et al. 2007;</p><p>Moyeda, Gómez e Flores 2006; Peynircioglu, Durgunoglu e Öney-</p><p>Küsefoglu 2002; Herrera, Defior e Lorenzo 2007; Herrera et al. 2011) e</p><p>observamos que, para construir investigações que abordem o</p><p>desenvolvimento musical e a aquisição de leitura e escrita,</p><p>especialmente no que se refere à consciência fonológica, são verificadas</p><p>duas principais orientações metodológicas. A primeira aposta na</p><p>importância dos processos de ensino e aprendizagem escolares e propõe</p><p>metodologias de intervenção pedagógica com o intuito de verificar a</p><p>influência de determinado procedimento pedagógico no desempenho</p><p>das crianças participantes dos estudos. A segunda prefere avaliar</p><p>habilidades já desenvolvidas para, assim, investigar possíveis</p><p>correlações entre diferentes domínios ou entre habilidades</p><p>diversificadas dentro de um mesmo domínio. Logo após a revisão de</p><p>estudos estrangeiros, apresentamos o estudo que desenvolvi com</p><p>crianças brasileiras da cidade de Curitiba, que encontrou uma correlação</p><p>significativa entre as habilidades musicais e a consciência fonológica de</p><p>crianças de quatro e cinco anos (Pacheco 2009), corroborando, assim,</p><p>os resultados encontrados por outros pesquisadores que conduziram</p><p>suas pesquisas com crianças canadenses (falantes de francês e inglês) e</p><p>americanas (Anvari et al. 2002; Bolduc 2008; David et al. 2007).</p><p>Chegado a este ponto, como olhar para a educação musical infantil?</p><p>Compreendendo os conceitos de desenvolvimento musical e</p><p>consciência fonológica, assim como analisando os estudos que se</p><p>propõem a investigar as possíveis interseções entre essas áreas, creio</p><p>que é possível contribuir para o entendimento das funções da música na</p><p>vida e na educação durante a infância. Todavia, a educação musical</p><p>infantil no Brasil ainda está em processo de constituição. Ilari (2007)</p><p>sugere que em nosso país a música ainda não é vista como uma</p><p>competência a ser desenvolvida, e, muitas vezes, pais e até professores</p><p>enxergam-na como um dom ou uma aptidão que não exige</p><p>necessariamente um treino musical específico. A análise dos estudos</p><p>apresentados neste capítulo sugere a direção diametralmente oposta ao</p><p>sentido que a falta de conhecimento de parte da população brasileira</p><p>vem apontando. Os estudos correlacionais aqui expostos tomam a</p><p>análise das habilidades musicais, da consciência fonológica e/ou da</p><p>leitura e demonstram que o desenvolvimento musical infantil –</p><p>construído por meio de processos de enculturação ou de educação</p><p>musical escolar – é um fenômeno contínuo verificado em todas as</p><p>crianças estudadas e que apresenta diferentes características, observadas</p><p>nas habilidades constatadas nas crianças em diferentes faixas etárias</p><p>(Anvari et al. 2002; Bolduc e Montésinos-Gelet 2005, apud Bolduc</p><p>2008; David et al. 2007; Lamb e Gregory 1993, apud Bolduc 2008;</p><p>Pacheco 2009). Analisando os estudos de intervenção pedagógica, é</p><p>possível perceber a força do processo educativo-musical e do processo</p><p>de desenvolvimento infantil. Tendo em vista a comparação das</p><p>avaliações, realizadas antes e depois dos períodos de intervenção, foi</p><p>encontrada uma ampliação das habilidades musicais, assim como um</p><p>benefício no desenvolvimento de habilidades não musicais, como a</p><p>consciência fonológica e o vocabulário. Os autores dos estudos de</p><p>intervenção pedagógica sugeriram que (i) trabalhar com canções pode</p><p>aperfeiçoar as habilidades da consciência fonológica (Herrera, Defior e</p><p>Lorenzo 2007; Herrera et al. 2011); (ii) enfatizar a reprodução de</p><p>padrões rítmicos, a memorização de sequências sonoras ou a</p><p>identificação e reprodução de timbres e melodias pode contribuir com o</p><p>desenvolvimento e a ampliação do vocabulário (Moyeda, Gómez e</p><p>Flores 2006); (iii) o uso de atividades musicais em sala de aula pode</p><p>aumentar o interesse das crianças na leitura e na escrita (Bolduc 2009).</p><p>Todavia, é necessário ponderar atentamente sobre as questões</p><p>levantadas. A educação musical infantil brasileira precisa ser</p><p>constituída, mas seus principais objetivos não podem se resumir a</p><p>auxiliar no aperfeiçoamento dos alunos em outras áreas de</p><p>conhecimento, emocionar familiares em apresentações de datas festivas</p><p>ou fazer parte da “lista de benefícios” elaborada por muitas escolas</p><p>privadas para atrair matrículas. A educação musical infantil precisa ser</p><p>constituída porque é ela uma competência, porque cada criança tem o</p><p>direito de desenvolver sistematicamente suas habilidades musicais,</p><p>assim como ela se desenvolve nas demais áreas do conhecimento. A</p><p>música é uma importante área de conhecimento artístico e acadêmico e</p><p>precisa ser valorizada por si mesma.</p><p>Nesse caso, as investigações sobre as transferências de habilidades</p><p>cognitivas entre as áreas da música e da aquisição de leitura e escrita</p><p>não devem ser realizadas? Ao contrário, devem sim. E olhando mais</p><p>adiante, é possível vislumbrar um longo caminho para a construção do</p><p>conhecimento nessa área. Faz-se necessário conduzir novos estudos que</p><p>consigam explicar a relação do ritmo com a consciência fonológica e a</p><p>leitura, por exemplo. Além disso, ainda não foram realizados estudos de</p><p>intervenção pedagógica com crianças brasileiras, que poderiam</p><p>desvendar questões sobre o papel do processo de ensino e aprendizagem</p><p>em relação à música, à consciência fonológica e à leitura. Por fim, vale</p><p>salientar que estudos longitudinais nessa área ainda não foram</p><p>realizados com crianças brasileiras. Entretanto, a pesquisa pode</p><p>contribuir para a compreensão dos mecanismos cognitivos envolvidos</p><p>no perceber, no fazer e no refletir sobre</p><p>a música e a leitura/escrita; para</p><p>fortalecer as ações pedagógicas da educação infantil; e para ajudar no</p><p>desenvolvimento musical e geral das crianças brasileiras, sem, no</p><p>entanto, descaracterizar ou privilegiar uma área do conhecimento em</p><p>detrimento a outra.</p><p>Para concluir, é preciso compreender que o desenvolvimento</p><p>musical e a aquisição de leitura e escrita das crianças pequenas integram</p><p>o importante e global processo de desenvolvimento infantil. Os</p><p>conceitos e estudos apresentados neste capítulo demonstram que os</p><p>processos de desenvolvimento infantil são amplos e integram</p><p>competências de diferentes domínios, respeitando características</p><p>peculiares de cada um deles e complementando habilidades que</p><p>compartilham propriedades de diferentes áreas do conhecimento</p><p>humano.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>ANVARI, S.H. et al. (2002). “Relations among musical skills, phonological processing, and</p><p>early reading ability in preschool children”. Journal of Experimental Child Psychology, n.</p><p>83, pp. 111-130.</p><p>BARRERA, S.D. (2003). “Papel facilitador das habilidades metalingüísticas na aprendizagem</p><p>da linguagem escrita”. In: MALUF, M.R. (org.). Metalinguagem e aquisição da escrita:</p><p>Contribuições da pesquisa para a prática da alfabetização. São Paulo: Casa do</p><p>Psicólogo, pp. 65-90.</p><p>BARRERA, S.D. e MALUF, M.R. 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A possibilidade de manipular materiais, brincar</p><p>com objetos, montar legos, criar castelos de areia e desmanchá-los,</p><p>empilhar blocos e derrubá-los, tem importante função no processo de</p><p>construção do conhecimento ao longo do desenvolvimento. Entre outras,</p><p>a de emergência e desenvolvimento das representações mentais e da</p><p>linguagem. Essa qualidade concreta da experiência, que envolve</p><p>múltiplos sentidos, pode ser um desafio no ensino de música para</p><p>crianças. A música, compreendida como a arte dos sons, possui</p><p>unicamente o objeto sonoro, que não é palpável nem visível e, à primeira</p><p>vista, demasiado abstrato para se transformar em objeto concreto do</p><p>conhecimento.</p><p>Entretanto, a representação musical pode ser experienciada a partir</p><p>do próprio corpo da criança. Vários educadores musicais, como Émile</p><p>Jacques-Dalcroze, Zoltán Kodály, Gazzi de Sá e Heitor Villa-Lobos,</p><p>criaram metodologias que incluíam o jogo corporal na aprendizagem do</p><p>sistema musical. Tais modelos sugeriam, por metodologias diferentes,</p><p>que a experiência concreta com o som passava pela dimensão sensorial,</p><p>possibilitando a emergência da compreensão do sistema lógico-musical</p><p>pela criança.</p><p>O trabalho de musicalização de crianças desde o nascimento até os</p><p>cinco anos caracteriza-se pelo compartilhamento das experiências</p><p>musicais no processo de aculturação e desenvolvimento do balbucio</p><p>musical (Gordon 2000). Nesse processo, o corpo e principalmente as</p><p>mãos são os elementos de interação e descoberta com o ambiente sonoro.</p><p>Se para aprender as crianças precisam tocar, manipular e descobrir os</p><p>objetos, no caso da música, torna-se importante oferecer-lhes</p><p>oportunidades para que toquem e manipulem sinais musicais que</p><p>favoreçam a descoberta da lógica musical melódica e rítmica.</p><p>O material sonoro pode ser representado por meio de sinais</p><p>corporais. Há alguns gestos musicais que são praticamente universais.</p><p>Por exemplo, gestos ascendentes indicam movimentos sonoros que</p><p>ascendem do grave para o agudo, e gestos descendentes, do agudo para o</p><p>grave. Sinais curtos podem indicar notas curtas, e gestos longos, notas</p><p>longas. No entanto, faz-se necessário organizar um repertório de sinais</p><p>que possam demonstrar visualmente uma lógica dos elementos musicais</p><p>e auxiliar na construção da representação mental da música pela criança.</p><p>Sinais corporais podem ser utilizados como recursos fundamentais</p><p>na construção da representação mental, que servirá de base para o</p><p>reconhecimento da notação musical, e podem ser utilizados como</p><p>experiências de leituras dos sinais no corpo antes da experiência de</p><p>leitura na partitura. Entretanto, algumas questões são fundamentais: os</p><p>sinais devem ser entendidos como gestos ou como código musical?</p><p>Quais experiências corporais concretas podem auxiliar na aprendizagem</p><p>do sistema notacional musical? Experiências concretas (gestos) de</p><p>elementos abstratos (signos) podem ser compreendidas como recursos de</p><p>representação mental? Quais os aspectos desenvolvimentais devem ser</p><p>levados em consideração? Que relações existem entre representações</p><p>mentais e linguagem?</p><p>Ao tomarmos por base o desenvolvimento infantil, mais</p><p>especificamente o das funções representacionais na infância, entendemos</p><p>que o ensino formal da música, em uma perspectiva desenvolvimental,</p><p>se beneficia amplamente com as experiências que a criança teve antes do</p><p>contato direto com o signo musical. A musicalização infantil pode ser</p><p>uma experiência produtiva na construção das bases para o aprendizado</p><p>dos fundamentos da linguagem musical. Entretanto, temos observado</p><p>que, de modo geral, as atividades vivenciadas na musicalização se</p><p>limitam à exploração livre da música, o que nem sempre leva as crianças</p><p>à construção do pensamento musical sobre o qual possa se apoiar o</p><p>ensino da notação musical em um momento posterior. Assim,</p><p>acreditamos ser necessário proporcionar experiências que auxiliem na</p><p>construção representacional da notação musical ainda na musicalização,</p><p>desde que estejam de acordo com o desenvolvimento socioafetivo e</p><p>cognitivo da criança.</p><p>Diante do que foi exposto, o presente artigo se propõe a discutir o</p><p>uso dos gestos corporais como recursos para a construção da</p><p>representação da notação musical por crianças de dois a seis anos, tendo</p><p>por base uma perspectiva desenvolvimental, e a apresentar uma proposta</p><p>para subsidiar o trabalho pedagógico com gestos musicais. Para</p><p>fundamentar o assunto, discorremos primeiramente sobre os processos</p><p>de construção do conhecimento pela criança nesse período, priorizando</p><p>as abordagens cognitivo-desenvolvimentais de Piaget e Vygotsky. Logo,</p><p>fazemos uma exposição sobre as especificidades do sistema de notação</p><p>musical e de seu ensino, priorizando trabalhos de pedagogos que criaram</p><p>e usaram métodos de sinais para representar a escrita musical. Para</p><p>finalizar a fundamentação teórica, discutimos aspectos do</p><p>desenvolvimento de crianças entre dois e seis anos em relação aos</p><p>modelos apresentados de ensino de música baseados em sinais. A última</p><p>parte se destina a apresentar uma proposta pedagógica do ensino do</p><p>pensamento lógico-musical baseada no uso de gestos, organizados de</p><p>acordo com as possibilidades de aprendizagem de crianças de dois a seis</p><p>anos.</p><p>Fundamentação teórica</p><p>A uma lacuna sobre o conhecimento da aprendizagem do sistema de</p><p>notação musical pela criança se refletem algumas inconsistências das</p><p>práticas pedagógicas da educação musical na infância. Isso se deve, em</p><p>parte, por serem recentes as indagações sobre as relações entre ensino e</p><p>aprendizagem no campo musical, no contexto da educação musical e da</p><p>musicalização infantil, em função de uma carência de pesquisa empírica</p><p>na área. Mesmo no campo da educação escolar convencional, o estudo</p><p>efetivo da relação entre ensino e aprendizagem no contexto da sala de</p><p>aula começa a se delinear na Europa e na América do Norte somente a</p><p>partir da década de 1960 (Coll e Solé 2004). Em virtude da carência de</p><p>uma tradição em pesquisa na aprendizagem da notação musical em</p><p>situação de ensino, buscamos apoio em aportes já existentes sobre a</p><p>construção do conhecimento.</p><p>A construção do conhecimento pela criança</p><p>Discutimos os processos de construção representacional pela criança</p><p>com base na psicologia cognitivo-desenvolvimental, uma vez que a área</p><p>investiga a natureza e os processos da representação mental e os</p><p>“processos envolvidos na construção e no uso dessas representações”</p><p>(Lefrançois 2008, p. 224). Entre as competências unicamente humanas,</p><p>está a criação de signos e sistemas simbólicos como forma de auxiliar o</p><p>trabalho mental. Autores como Jean Piaget (1896-1980) e Lev S.</p><p>Vygotsky (1896-1934) desenvolveram importantes estudos no que tange</p><p>à aprendizagem dos signos e ao desenvolvimento do pensamento</p><p>simbólico.</p><p>Piaget (1978, 1990) sugere que a construção das representações</p><p>mentais efetuada pelas crianças inicia-se pelas sensações ou pelos</p><p>esquemas sensoriais antes mesmo do desenvolvimento da fala ou da</p><p>escrita. Com o passar do tempo, graças ao desenvolvimento das funções</p><p>biopsíquicas e às interações com o meio, ocorre o desenvolvimento da</p><p>linguagem e do raciocínio, o qual propicia uma compreensão</p><p>progressivamente mais ampla e abstrata do mundo, de si e das relações</p><p>estabelecidas consigo e com o outro. Vygotsky</p><p>(1991, 2000) considera</p><p>que o pensamento da criança é inicialmente sincrético e totalmente</p><p>vinculado ao mundo do outro social. Com a internalização dos recursos</p><p>de raciocínio lógico-discursivos, compartilhados pelo meio social em</p><p>que a criança vive, ocorre uma individuação subjetiva e a possibilidade</p><p>de que ela tenha uma compreensão de si e do mundo de forma cada vez</p><p>mais conceitual. O pensamento por conceitos tem a função de</p><p>possibilitar as mediações lógicas necessárias para relacionar e</p><p>ressignificar os conhecimentos construídos pela experiência e</p><p>externalizá-los por meio da ação.</p><p>Em ambos os casos, o sujeito em atividade está no centro do</p><p>processo de construção do conhecimento, cuja trajetória começa na</p><p>emergência do pensamento simbólico e se potencializa no pensamento</p><p>lógico-conceitual. No caso da aprendizagem musical, o sistema de</p><p>notação requer o uso do pensamento lógico-conceitual. Portanto, é</p><p>imprescindível considerar atividades que contemplem as diferentes fases</p><p>ou etapas do desenvolvimento do pensamento simbólico.</p><p>Panorama da teoria de Jean Piaget</p><p>Na tentativa de explicar como se desenvolve o pensamento lógico-</p><p>científico no ser humano desde o nascimento, Piaget (1978) propôs uma</p><p>teoria do conhecimento (ou da inteligência humana) e quatro estágios</p><p>para o desenvolvimento cognitivo humano. Sua teoria do conhecimento,</p><p>denominada epistemologia genética, defende a tese sobre a origem e o</p><p>desenvolvimento do pensamento, por meio de um processo de</p><p>assimilação e acomodação entre sujeito e meio, com vistas à adaptação e</p><p>ao ótimo funcionamento entre estes. Assim, a adaptação, ou</p><p>equilibração, é o equilíbrio entre esquemas cognitivos já estabelecidos</p><p>(assimilação) e esquemas cognitivos novos, que são integrados àqueles,</p><p>transformando-os (acomodação). O processo é progressivo e cumulativo</p><p>e envolve o desenvolvimento de todas as funções cognitivas presentes na</p><p>construção do pensamento, como a memória, a representação e a</p><p>linguagem. Dessa forma, por meio das experiências, a criança vai</p><p>desenvolvendo esquemas cognitivos cada vez mais complexos e</p><p>abstratos.</p><p>A respeito dos esquemas cognitivos utilizados pela criança para se</p><p>relacionar e interagir com o meio, Piaget divisou os estágios</p><p>desenvolvimentais. Denominou-os de estágios sensório-motor, pré-</p><p>operacional, operacional-concreto e operacional-formal. Concluiu que os</p><p>bebês até os dois anos de idade aproximadamente estabelecem relações</p><p>sensório-motoras com o mundo. O brincar e a imitação assumem uma</p><p>função capital no desenvolvimento das funções cognitivas, por meio da</p><p>interiorização[10] (Piaget 1990). “(...) brincar envolve preponderância da</p><p>assimilação (...) Em contraposição, a imitação é primariamente</p><p>acomodação” (Lefrançois 2008, p. 247). Nesse período, a atividade</p><p>precede a representação mental e é a forma com a qual a criança constrói</p><p>a noção do seu meio, por meio da experimentação.</p><p>Com a aquisição da linguagem, a criança entra no estágio pré-</p><p>operacional, que se caracteriza pelo desenvolvimento básico de</p><p>conceitos em face da crescente possibilidade de retenção mental ou da</p><p>“permanência” dos objetos e das informações do seu meio, agora</p><p>auxiliado pela palavra (Piaget 1978). Em termos lógicos, os esquemas de</p><p>assimilação e acomodação nesse estágio se dão de duas formas</p><p>sucessivas. Primeiramente, há uma atividade intensa de classificação que</p><p>utiliza diferentes e diversas lógicas. Em seguida, há uma mudança na</p><p>lógica de classificação. A criança passa a explicar ordem e sequência por</p><p>autorreferência, o que foi denominado de egocentrismo.</p><p>A superação do estágio pré-operacional e do egocentrismo se dá</p><p>quando a criança começa a raciocinar por operações e a perceber que há</p><p>regras extrínsecas a ela própria que dominam as ações e as relações entre</p><p>e com os objetos. Esse estágio coincide com o período da escolarização e</p><p>da alfabetização. Com a possibilidade cada vez maior de conservação de</p><p>medidas e formas e com a reversibilidade do pensamento, as regras</p><p>passam a ser dominantes no raciocínio da criança. Entretanto, Piaget</p><p>(1978) acredita que o raciocínio lógico nessa idade ainda depende da</p><p>experiência concreta com essas operações. Por isso a denominação</p><p>estágio operacional ou das operações concretas.</p><p>O ingresso no estágio das operações formais se dá na adolescência:</p><p>“(...) elabora-se, por fim, o pensamento formal, cujos grupamentos</p><p>caracterizam a inteligência reflexiva acabada” (Piaget 1978, p. 127). Há</p><p>o desenvolvimento do raciocínio com hipóteses discursivas, do</p><p>pensamento proposicional, de operações mentais abstratas, enfim,</p><p>predominam as operações formais, sem ser necessária a dimensão</p><p>concreta, o que permite o desenvolvimento de teorias.</p><p>Especialmente neste trabalho, o estágio pré-operacional oferece</p><p>interessantes explicações que podem se relacionar ao processo de</p><p>construção da representação da notação musical por crianças de dois a</p><p>seis anos. Segundo a teoria de Piaget, o estágio pré-operacional é</p><p>marcado por um rápido desenvolvimento das atividades mentais, em</p><p>virtude da emergência dos esquemas simbólicos e representacionais que</p><p>se materializam no desenvolvimento da linguagem. Para Piaget, as</p><p>atividades sensório-motoras proveem o fundamento para a linguagem e,</p><p>a partir de sua aquisição, a linguagem se torna um dos principais meios</p><p>de representação mental. Como já foi mencionado, o brincar e a imitação</p><p>exercem um papel fundamental no processo de desenvolvimento das</p><p>representações mentais desde cedo, pois é por meio do faz de conta e da</p><p>imitação que novos esquemas representacionais são construídos pouco a</p><p>pouco pela criança, ajudando-a a dar um sentido a seu mundo.</p><p>Outro avanço significativo no estágio pré-operacional, e que se</p><p>estenderá até o final dele, são as brincadeiras com os pares. O jogo</p><p>sociodramático permite o desenvolvimento de esquemas com</p><p>combinações mais complexas, que impulsionam a atividade</p><p>representacional e, consequentemente, o desenvolvimento intelectual</p><p>futuro.</p><p>A compreensão relativa da relação entre símbolo e mundo real</p><p>também tem um rápido avanço nesse período, por meio do contato da</p><p>criança com o mundo gráfico que a rodeia. Daí a importância de lhe</p><p>proporcionar um ambiente rico em livros, mapas, desenhos etc., como</p><p>forma de estimular as funções simbólicas que servem de base para o</p><p>desenvolvimento das representações mentais.</p><p>É importante ressaltar a relação entre operações e representações</p><p>mentais. Para Piaget, as operações são representações mentais de ações</p><p>que obedecem a certas regras lógicas. No período pré-operacional, o</p><p>pensamento infantil se limita a um aspecto da situação de cada vez e</p><p>tende a relacionar a regra ou a situação a apenas um aspecto. Embora a</p><p>criança inicialmente tenda a priorizar uma determinada representação em</p><p>uma atividade, atividades vivenciais que envolvam representações</p><p>diversas, embora compreendidas de forma relativamente rígida pela</p><p>criança, devem ser estimuladas para que, futuramente, ela possa</p><p>construir esquemas e combinações de esquemas mais complexos.</p><p>Panorama da teoria de Lev S. Vygotsky</p><p>Os estudos de Vygotsky (1991, 2000) se concentram na interface</p><p>entre os processos de aprendizagem-desenvolvimento e sociedade-</p><p>cultura. Não é seu interesse investigar o funcionamento das funções</p><p>cognitivas básicas para o funcionamento biológico do ser humano. Seu</p><p>interesse é explicar a função e o funcionamento psicológico das</p><p>ferramentas culturais, construídas socialmente, no desenvolvimento de</p><p>funções cognitivas exclusivamente humanas necessárias à vida em</p><p>sociedade. Se considerarmos que a música é uma criação cultural da</p><p>humanidade, então, a abordagem pode ser potencialmente produtiva para</p><p>elucidar alguns processos na aprendizagem musical.</p><p>Para Vygotsky (1991), o funcionamento psicológico humano é</p><p>explicado por dois tipos de funções: as funções psicológicas elementares</p><p>e as funções psicológicas superiores. O desenvolvimento das funções</p><p>psicológicas “superiores”, referente ao pensamento formal, se dá</p><p>mediante a aprendizagem mediada pelos sistemas semióticos construídos</p><p>pela humanidade e</p><p>compartilhados socialmente. As operações lógico-</p><p>discursivas e os sistemas representacionais (de signos) dessas operações</p><p>possibilitam ao ser humano compreender, pensar e agir com maior</p><p>intencionalidade e possibilidade de inovação e criação. Para explicar</p><p>esse processo, vamos nos concentrar em três conceitos básicos de sua</p><p>teoria: a noção de mediação, a zona de desenvolvimento proximal e o</p><p>processo de internalização e externalização.</p><p>Vygotsky (1991) compreende que cultura é a dimensão da atividade</p><p>humana que nos diferencia dos outros animais, em virtude dos processos</p><p>de mediação inerentes à socialização e à comunicação de nossa espécie.</p><p>A mediação, como um fenômeno humano, se revela desde a atividade</p><p>mais concreta e material, na relação mediada por objetos, à mais abstrata</p><p>e simbólica, na relação mediada por signos. Como o que caracteriza a</p><p>mediação são as relações, ela não pode ser definida como um elemento</p><p>estático, mas, sim, dinâmico, processual e relacional. Ela está ligada aos</p><p>dispositivos e processos que têm funções de regulação da ação humana,</p><p>que, por sua vez, estão envolvidos no processo de construção do</p><p>pensamento (Freire 2000).</p><p>Em síntese, a mediação pode ser interpretada como o processo pelo</p><p>qual utilizamos ferramentas ou recursos já existentes para a realização de</p><p>uma atividade ou produção. A cultura organiza e disponibiliza seus</p><p>sistemas semióticos por meio de dispositivos lógico-formais e de</p><p>sistemas de signos. Quando usamos essas ferramentas culturais para</p><p>ativar as funções psicológicas naturais/espontâneas (memória, atenção,</p><p>percepção) na realização de uma atividade, possibilitamos o</p><p>desenvolvimento dessas funções em níveis mais formais.</p><p>Para Vygotsky (2000), a aprendizagem mediada é a única que pode</p><p>levar ao desenvolvimento de novas funções psicológicas. Idealmente,</p><p>toda criança que chega à escola tem uma vivência cultural que</p><p>possibilitou a construção de estruturas e funções psicológicas</p><p>espontâneas. As funções psicológicas espontâneas podem ser a base para</p><p>a aprendizagem escolar, que tem por objetivo o desenvolvimento de</p><p>estruturas e funções de pensamento formais. A função do ensino é, então,</p><p>planejar situações de aprendizagem mediadas por sistemas lógico-</p><p>formais para que as funções elementares ou espontâneas que a criança já</p><p>tem possam ser superadas por funções psicológicas mais formais. Esse</p><p>espaço de aprendizagem é denominado zona de desenvolvimento</p><p>proximal ou iminente (Prestes 2010).</p><p>Esta consiste na situação potencial da aprendizagem e conta com a</p><p>ação significativa de pessoas que já dominam as ferramentas de</p><p>mediação e demonstram sua utilidade na atividade real. Se de fato a</p><p>aprendizagem, como internalização da ferramenta de mediação, se</p><p>efetivar nessa experiência, ela altera o fluxo de desenvolvimento dos</p><p>sujeitos envolvidos. Há uma reorganização no conhecimento. O que era</p><p>antes objeto de aprendizagem adquire uma função reguladora do</p><p>pensamento e funciona como base para um novo processo de (inter)ação.</p><p>Há, então, uma ampliação nas possibilidades de compreensão e ação.</p><p>A aprendizagem mediada que ocorre no contexto espacial e temporal</p><p>da zona de desenvolvimento proximal consiste em um complexo</p><p>processo de internalização e externalização. Na concepção dialética de</p><p>Vygotsky (1991), trata-se de um processo prolongado marcado pela</p><p>mudança não só no pensamento e na consciência de quem aprende, mas</p><p>no das outras pessoas que compartilham o contexto de aprendizagem. O</p><p>signo, inicialmente negociado no plano interpsicológico, quando</p><p>internalizado, passa a fazer parte do funcionamento da dimensão</p><p>intrapsicológica e retorna ao contexto social incorporado a ideias e ações</p><p>novas.</p><p>É importante compreender que, para Vygotsky (1991), a</p><p>aprendizagem é externa, representa o novo, aquilo que o sujeito ainda</p><p>não internalizou. A internalização é o processo de reconstrução</p><p>interiorizada da atividade de aprendizagem. Quando essa atividade de</p><p>aprendizagem é transformada em processo, ocorre, então, o</p><p>desenvolvimento. No caso da aprendizagem musical, é comum o sistema</p><p>de notação ser o primeiro objeto de ensino. Nas práticas tradicionais,</p><p>acredita-se que o conhecimento do signo musical é essencial para a</p><p>prática musical. Entretanto, levando-se em conta que a internalização de</p><p>um signo é um processo prolongado e depende de uma experiência</p><p>social rica de mediações por ferramentas e signos, então a aprendizagem</p><p>do sistema de notação musical deve ser consequência de um rico e</p><p>diverso processo vivencial mediado pela música. Para avançar na</p><p>discussão acerca da aprendizagem da notação musical pela criança, é</p><p>preciso tecer algumas considerações sobre as características e as</p><p>qualidades do signo musical.</p><p>O sistema de notação musical</p><p>O sistema de notação musical é composto por vários sistemas de</p><p>codificação diferentes que são representados simultaneamente.</p><p>Primeiramente, as figuras musicais consistem em um sistema categorial</p><p>hierárquico que, em termos cognitivos, envolve: (1) pensamento lógico-</p><p>matemático – domínio das noções métricas fundamentais para sua</p><p>compreensão e execução, e (2) pensamento conceitual – capacidade de</p><p>rapidamente identificar e classificar os signos de acordo com seus</p><p>atributos lógicos inerentes e relacioná-los com os demais no contexto</p><p>particular em que estão dispostos. Em segundo lugar, as notas musicais</p><p>consistem em um sistema conceitual relacional, cujo conceito (nome da</p><p>nota) dependerá da sua disposição em um pentagrama, da chave na</p><p>cabeça do pentagrama (clave) e das alterações tonais existentes</p><p>(sustenidos, bemóis etc.).</p><p>Enquanto as figuras musicais representam o ritmo, as notas musicais</p><p>representam a melodia. Apenas mediante a compreensão de ambos os</p><p>sistemas, aliada à compreensão de mais um conjunto de convenções</p><p>musicais que indicam alterações tonais, andamento, intensidade etc., é</p><p>possível a leitura e a execução de uma composição musical.</p><p>Nesse sentido, arriscamo-nos a considerar o sistema de notação</p><p>musical o mais complexo dos três sistemas notacionais construído pela</p><p>humanidade,[11] uma vez que o signo musical se apresenta como um</p><p>composto de vários sistemas de codificação que precisam ser</p><p>compreendidos e articulados simultaneamente. Isso nos leva a supor que</p><p>a atividade musical exige processos de representação e significação</p><p>particulares que devem ser considerados da mais alta importância para o</p><p>ensino e a aprendizagem da música.</p><p>Estudos anteriores sugerem o trabalho pedagógico de sinais</p><p>corporais como parte importante do processo de alfabetização musical.</p><p>Liao e Davidson (2007) apresentaram um estudo no qual demonstraram</p><p>que o desenvolvimento da memória tonal se realiza de maneira mais</p><p>rápida e mais segura por meio da sensação cinestésica. As autoras se</p><p>baseiam em pesquisa empírica e em estudos anteriores para indicar que o</p><p>uso de “sinais musicais ou gestos associados ao canto pode ser</p><p>considerado uma abordagem de valor incontestável” (Liao e Davidson</p><p>2007).</p><p>Em uma publicação complementar, Liao (2008) realizou um estudo</p><p>com 80 crianças enquanto cantavam padrões melódicos para avaliar a</p><p>afinação das notas. O estudo demonstrou que “o uso de gestos apresenta</p><p>um efeito positivo imediatamente com crianças e contribui para a</p><p>precisão da afinação” (Liao 2008). A pesquisadora utilizou dois</p><p>conjuntos de gestos para avaliar a precisão da afinação, e, de modo geral,</p><p>as meninas tiveram um desempenho superior ao dos meninos. O</p><p>experimento demonstrou que gestos podem ser um recurso efetivo para</p><p>melhorar a qualidade e a afinação de crianças em idade de</p><p>musicalização.</p><p>Metodologias de sinais musicais: Manossolfa</p><p>As pedagogias de educação musical têm utilizado vários recursos</p><p>didáticos no ensino da leitura musical. O principal recurso pedagógico é</p><p>o uso do solfejo, que permite a associação entre alturas musicais e</p><p>fonemas (sílabas, números ou letras). Associar sons a sílabas é utilizado</p><p>historicamente tanto no processo de transmissão oral quanto no ensino</p><p>da escrita musical. Na dimensão cognitiva, o uso das sílabas do solfejo</p><p>possibilita a organização da representação</p><p>e da linguagem musical</p><p>(Freire 2008), uma vez que a relação entre as alturas sonoras e as notas</p><p>musicais está na base da formação das estruturas musicais.</p><p>Uma das modalidades do ensino das notas musicais que possui</p><p>relação mais próxima com o desenvolvimento do pensamento de sua</p><p>base simbólica para o nível conceitual é a manossolfa. O termo designa a</p><p>associação entre as sílabas de solfejo e os sinais manuais. Os sinais da</p><p>manossolfa foram elaborados para permitir a socialização do</p><p>conhecimento e a execução de peças musicais, principalmente no</p><p>contexto de grupos vocais.</p><p>O primeiro teórico ocidental a propor o uso de um sistema de</p><p>solmização amplamente aceito foi Guido D’Arezzo, no século XI. O</p><p>monge italiano associou as primeiras sílabas do hino a são João Batista</p><p>às notas musicais que iniciavam cada verso, criando nomes para os seis</p><p>primeiros sons da escala maior diatônica. As sílabas ut, re, mi, fa, sol e la</p><p>passaram a servir como referências para alturas a serem cantadas.</p><p>(Randel 1986). D’Arezzo também criou o primeiro sistema ocidental de</p><p>sinais manuais como um recurso pedagógico para o ensino do solfejo. A</p><p>Mão Guidoniana permitia que cada sílaba de solfejo pudesse ser indicada</p><p>com a mão direita, mostrando uma articulação específica da mão</p><p>esquerda (falanges, dedos e falangetas). Nessa situação, um monge</p><p>poderia liderar um grupo na performance do cantochão, sem a</p><p>necessidade de várias cópias da mesma música, o que não era possível</p><p>na época.</p><p>Na Inglaterra, no início do século XIX, ocorreu um grande</p><p>movimento de música coral nas igrejas anglicanas e protestantes. Nesse</p><p>contexto, o trabalho de Sarah Glover foi fundamental para a organização</p><p>de recursos pedagógicos que permitissem a aprendizagem rápida e</p><p>efetiva de grandes grupos vocais. Glover desenvolveu um conjunto de</p><p>sílabas com referência móvel e alterações para sustenidos e bemóis.</p><p>Além do uso das sílabas de solfejo, ela também foi responsável por</p><p>desenvolver um conjunto de sinais manuais para auxiliar na</p><p>aprendizagem do solfejo e na comunicação com grandes grupos (Landis</p><p>e Carder 1990). O modelo foi adotado pelo reverendo John Curwen, que</p><p>o introduziu nos Estados Unidos, e também por Zoltán Kodály, que</p><p>utilizou o mesmo sistema em sua metodologia de educação musical.</p><p>No Brasil, Heitor Villa-Lobos propôs a implantação de um sistema</p><p>nacional de educação musical por meio do canto coral nas escolas</p><p>públicas de ensino fundamental, o canto orfeônico. Villa-Lobos se</p><p>dedicou a elaborar um repertório a duas vozes, o “Guia prático”, no qual</p><p>os professores poderiam utilizar o folclore brasileiro em arranjos</p><p>acessíveis e de alta qualidade composicional. Para promover a</p><p>aprendizagem do repertório, Villa-Lobos desenvolveu um conjunto</p><p>próprio de sinais musicais chamado de manossolfa. Organizou concertos</p><p>com mais de 20 mil crianças sendo regidas por meio de sinais musicais</p><p>(Villa-Lobos 1946).</p><p>Proposta de abordagem pedagógica</p><p>Os sinais corporais vêm a ser uma ampliação do manossolfa. É o uso</p><p>do próprio corpo para representar as alturas sonoras. Valorizam a</p><p>linguagem musical e visual entre professor e aluno e priorizam</p><p>qualidades como simplicidade, objetividade e clareza na comunicação e</p><p>na interação com a música. Entretanto, a elaboração de um sistema de</p><p>sinais corporais exige critérios para a escolha de um conjunto de gestos</p><p>que proporcione coerência entre a relação das alturas e das notas e as</p><p>partes do corpo. Daí a importância da experimentação sensorial e social</p><p>na realização da aprendizagem.</p><p>A proposta da organização de sinais musicais corporais surgiu a</p><p>partir da necessidade didática de representar no corpo a lógica das</p><p>estruturas melódicas, oferecendo uma experiência visual e cinestésica</p><p>para a escala musical. Uma vez que os gestos manuais são</p><p>tradicionalmente chamados de manossolfa no português do Brasil,</p><p>denominamos corpossolfa o uso de gestos corporais associado ao solfejo</p><p>das notas.</p><p>Corpossolfa</p><p>O corpossolfa, termo cunhado por Ricardo Dourado Freire a partir</p><p>de 2005, foi desenvolvido na Universidade de Brasília no contexto do</p><p>projeto de extensão “Música para crianças”. O programa oferece turmas</p><p>de musicalização infantil para crianças desde o nascimento até os cinco</p><p>anos, em que são desenvolvidas atividades de aculturação, imitação e</p><p>assimilação do conteúdo musical de acordo com os princípios</p><p>pedagógicos de Edwin Gordon (2000). A segunda etapa do programa é</p><p>chamada “Curso pré-instrumental”, para crianças de quatro anos e meio</p><p>a seis anos. Trata-se de um curso de transição destinado a introduzir</p><p>elementos formais do código musical. São considerados elementos</p><p>fundamentais para a iniciação nos instrumentos: 1) colocação vocal no</p><p>registro agudo (voz de cabeça), 2) conhecimento das notas musicais, 3)</p><p>uso das sílabas de solfejo, 4) uso de sílabas métricas e 5) exercícios de</p><p>consciência corporal.</p><p>A proposta de corpossolfa é estabelecer experiências socioafetivas</p><p>cuja mediação se dê pela relação entre audição, sílabas de solfejo e sinais</p><p>corporais. Freire (2010) propõe que o método integre os aspectos</p><p>auditivos, visuais e cinestésicos na formação da representação mental da</p><p>música e auxilie no processo de desenvolvimento da audiação (Gordon</p><p>2000). A experiência gestual pode ser realizada, a princípio, com</p><p>músicas conhecidas ou com sílabas neutras; em um segundo estágio, é</p><p>possível a apresentação das sílabas de solfejo. Dessa maneira, permite-se</p><p>a transição do ensino informal (sons e gestos) para o formal (notas e</p><p>sinais corporais).</p><p>O método proporciona uma experiência com as notas musicais,</p><p>valendo-se dos movimentos corporais. Freire (2010) sugere que o corpo</p><p>seja a ferramenta de mediação na aprendizagem do solfejo e que, ao</p><p>longo das experiências, promova a internalização da lógica musical que</p><p>posteriormente continuará sendo desenvolvida pelo sistema de notação</p><p>musical. A integração entre som, nome da nota e parte do corpo cria um</p><p>sinal musical no qual o aspecto motor é integrado à percepção e à</p><p>linguagem, no intuito de promover uma cinestesia musical. O gesto</p><p>associado simultaneamente à altura e ao nome da nota pode atuar na</p><p>recuperação (recall) da memória das alturas e de padrões musicais.</p><p>Nesse contexto, os sinais favorecem a compreensão individual de</p><p>sequências e padrões melódicos, sendo que o corpo pode ser observado</p><p>pelas outras crianças participantes da aula como uma primeira forma de</p><p>leitura melódica.</p><p>Na prática do corpossolfa, a criança vivencia as alturas por meio de</p><p>sinais específicos que permitem a visualização das alturas musicais</p><p>quando o trabalho é realizado em grupo. A experiência com a associação</p><p>entre corpo e solfejo funciona como uma preparação para a leitura</p><p>musical, sendo que a primeira leitura será feita no corpo da própria</p><p>criança. Esta deve vivenciar primeiro gestos amplos, que demonstrem a</p><p>relação entre grave, médio e agudo. Depois que essas relações estão</p><p>claras para ela, o professor pode usar alturas definidas pelos sinais,</p><p>facilitando a leitura melódica. A proposta do uso de gestos deve</p><p>considerar o desenvolvimento da motricidade nessa idade. Podemos</p><p>observar o estágio de desenvolvimento motor fino da criança por meio</p><p>da forma como ela imita os gestos do professor.</p><p>O movimento por meio do corpo é uma questão fundamental no</p><p>processo de ensino e aprendizagem musical, pois, de acordo com Piaget</p><p>(1978), a criança necessita compreender primeiro em um nível concreto,</p><p>para depois ser capaz de desenvolver conceitos abstratos. Pode-se</p><p>considerar que todo fazer musical parte de uma ação corporal – o ato de</p><p>cantar, tocar um instrumento ou mesmo ouvir uma música implica a</p><p>participação ativa da criança não só no processo de execução e</p><p>performance, mas, especialmente, na construção do seu pensamento.</p><p>Portanto, para realizar uma ação musical, é obrigatório o uso do corpo</p><p>para cantar, tocar, dançar e até para escrever uma música. O som precisa</p><p>do movimento, e o movimento precisa do corpo para tornar a experiência</p><p>musical uma experiência significativa.</p><p>Crianças são naturalmente curiosas e interessadas em aprender</p><p>música.</p><p>No entanto, as sílabas de solfejo não fazem parte do vocabulário</p><p>comum das crianças de três a cinco anos. Para que as sílabas de solfejo</p><p>adquiram importância para elas, torna-se fundamental que as</p><p>experiências com as notas e o solfejo sejam significativas. Elas precisam</p><p>vivenciar a sequência das notas musicais e, a partir da sensação corporal,</p><p>ter clareza na relação entre as notas e os movimentos ascendentes e</p><p>descendentes. Dessa maneira, o corpossolfa tem o objetivo de criar uma</p><p>representação mental a partir de uma referência concreta, seja de</p><p>movimento ascendente ou descendente, notas graves ou agudas, e,</p><p>principalmente, criar referências personalizadas para que as crianças</p><p>possam tocar e sentir por si mesmas a relação entre as notas musicais.</p><p>O conjunto de sinais criado para o corpossolfa pode ser utilizado</p><p>tanto em sistemas de solfejo fixo, para mostrar o “dó”, como em</p><p>sistemas de solfejo móvel, para mostrar a tônica da escala (Figura 1). A</p><p>escolha final foi o uso desde a cintura (a nota mais grave) até acima da</p><p>cabeça com as mãos esticadas (nota mais aguda).</p><p>Figura 1: Notas com corpossolfa</p><p>Ilustração: Gabriel Preusse</p><p>A escolha desses pontos corporais proporciona uma boa região para</p><p>distribuir os graus de forma que a distância entre eles fique visualmente</p><p>bem nítida. A simplicidade desse modelo também permite que haja</p><p>condições de se realizar uma atividade de solfejo com os alunos tanto em</p><p>pé quanto sentados. O professor pode cantar uma melodia utilizando os</p><p>sinais, e os alunos o imitarem. Dessa maneira, o professor realiza</p><p>visualmente o conteúdo da aprendizagem do aluno por meio de um</p><p>constante feedback do que ele está percebendo auditivamente (Figura 2).</p><p>Figura 2: Notas lá, si, dó</p><p>Ilustração: Gabriel Preusse</p><p>O uso desses sinais também funciona como um meio de visualização</p><p>do conhecimento dos alunos. Assim, o professor pode cantar uma</p><p>melodia fazendo os gestos e pedir que algum aluno o imite. A</p><p>apresentação dessa melodia é analisada em tempo real e permite uma</p><p>melhor avaliação do que foi efetivamente assimilado pelo aluno. As</p><p>correções e sugestões do professor podem ser apresentadas</p><p>imediatamente ao aluno, sinalizando os acertos e indicando rapidamente</p><p>soluções para as dúvidas.</p><p>A partir do estabelecimento da distância corporal de uma oitava,</p><p>estabeleceram-se os demais sinais relacionados aos graus da Tabela 1 e</p><p>das Figuras 1 e 2:</p><p>Tabela 1: Os graus e seus respectivos sinais corporais</p><p>Grau Sinal</p><p>I Cintura</p><p>II Altura das axilas</p><p>III Ombros</p><p>IV Orelhas</p><p>V Canto superior da cabeça</p><p>VI Em cima da cabeça</p><p>VII Mãos cruzadas acima da cabeça</p><p>I (Oitava) Braços estendidos acima da cabeça, com as mãos tocando as pontas dos dedos</p><p>Figura 3: Sustenidos</p><p>Ilustração: Gabriel Preusse</p><p>Caso o professor esteja trabalhando com um sistema que apresente</p><p>alteração para sustenidos ou bemóis, foram estabelecidos padrões para a</p><p>indicação das alterações. Os sustenidos são representados com a mão</p><p>aberta virada apontando para cima (Figura 3), e os bemóis são indicados</p><p>com a mão fechada, no mesmo local das notas naturais (Figura 4).</p><p>Figura 4: Bemóis</p><p>Ilustração: Gabriel Preusse</p><p>O uso dos sinais corporais é muito útil no início do aprendizado</p><p>musical com crianças de dois e três anos, quando a noção das distâncias</p><p>entre alturas musicais é demasiado abstrata para elas. Por meio da</p><p>relação das distâncias de intervalos percebidas pela visão e pelo tato, a</p><p>experiência das alturas passa a ser concreta.</p><p>O corpossolfa é um recurso didático que valoriza tanto a linguagem</p><p>musical quanto a linguagem visual. A visualização das alturas por meio</p><p>do corpo demonstra como uma proposta de sinais corporais pode ser</p><p>utilizada para auxiliar a aprendizagem do solfejo e da leitura musical. Os</p><p>sinais propostos oferecem várias contribuições, tanto para a</p><p>musicalização de crianças pequenas quanto na iniciação musical de</p><p>jovens e adultos, podendo servir como uma experiência de leitura</p><p>corporal que antecede a leitura da grafia musical.</p><p>Considerações finais</p><p>O conjunto de sinais corporais é uma ferramenta pedagógica que</p><p>valoriza a estrutura musical. Nesse contexto, as partes do corpo passam a</p><p>indicar elementos fundamentais do código musical: notas musicais que</p><p>promovem a associação entre sílabas e alturas. A visualização das alturas</p><p>no próprio corpo torna a representação das notas uma experiência</p><p>concreta. A notação passa a ser realizada no corpo da pessoa e cada nota</p><p>pode ser indicada de maneira clara. A associação entre os movimentos de</p><p>graus conjuntos pode ser observada por meio dos sinais contíguos, ao</p><p>passo que saltos intervalares são indicados com movimentos amplos dos</p><p>braços.</p><p>As experiências concretas possibilitam que a criança internalize seu</p><p>processo de construção do conhecimento. Por meio da brincadeira e da</p><p>manipulação, ela é capaz de compreender a lógica do jogo e das</p><p>estruturas. No caso da música, o corpossolfa está sendo proposto como</p><p>uma experiência concreta que permite a associação entre som e gesto, na</p><p>criação de um sinal que representa uma determinada altura musical.</p><p>De acordo com Piaget, a criança desenvolve seu conhecimento a</p><p>partir da experiência concreta, e, no caso da música, a experiência</p><p>concreta está, muitas vezes, vinculada somente ao ensino instrumental.</p><p>No caso de aulas de musicalização infantil, é necessário criar</p><p>ferramentas que sejam pedagogicamente apropriadas para a faixa etária.</p><p>A elaboração dos sinais do corpossolfa seguiu princípios estabelecidos</p><p>para tornar os sinais de fácil realização pelas crianças. A manipulação</p><p>dos sinais oferece um meio real para que a criança manipule conceitos</p><p>abstratos a partir de uma experiência concreta.</p><p>O solfejo, como ferramenta pedagógica, é um recurso fundamental</p><p>para a didática musical, estabelecendo uma relação direta entre o nome</p><p>de nota e a altura musical. O endereçamento de uma nota para uma parte</p><p>do corpo oferece a possibilidade de associação cinestésica, quando várias</p><p>sensações musculares estão associadas com o mesmo objetivo musical.</p><p>O vocabulário de sílabas e o vocabulário de sinais estão relacionados</p><p>para a criação de uma representação mental da notação musical. A</p><p>sequência dos gestos apresenta uma similaridade com as linhas musicais,</p><p>e a questão das alturas musicais também está representada pelas</p><p>diferenças entre sinais graves e agudos.</p><p>A utilização dos sinais corporais em sala de aula torna mais clara a</p><p>relação das alturas para os alunos. Além disso, crianças pequenas</p><p>tornam-se capazes de cantar, acompanhar os colegas e visualizar o</p><p>próprio movimento das notas. A visualização das alturas por meio do</p><p>corpo demonstra como uma proposta de sinais corporais pode mediar o</p><p>solfejo e a leitura musical. Como mencionamos há pouco, os sinais</p><p>propostos oferecem várias contribuições na musicalização de crianças</p><p>pequenas e na iniciação musical de jovens e adultos. O corpossolfa pode</p><p>servir como uma experiência de leitura corporal que antecede a leitura da</p><p>grafia musical, permitindo que o corpo seja a primeira representação da</p><p>lógica musical para a criança.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>ANTUNES, C. (2002). Como transformar informações em conhecimento. 3ª ed. Petrópolis:</p><p>Vozes. (Série: Na sala de aula, n. 2)</p><p>CARDER, P. (1990). The ecletic curriculum in American music education. Ed. rev. Reston:</p><p>Menc.</p><p>COLL, C. e SOLÉ, I. 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O</p><p>poder agregador das atividades musicais propicia às crianças um modo</p><p>peculiar de se relacionarem; cantando, dançando e recitando versos, elas</p><p>aprendem uma linguagem comum capaz de criar e manter seus laços de</p><p>amizade. Compartilhando o mesmo tempo, por meio da música, as</p><p>crianças aprendem o que é preciso saber para viver em grupo.</p><p>Interessar-se pelo modo como as crianças vivem a música pode ser</p><p>uma forma de ampliarmos a visão que temos sobre elas. Ouvir o que</p><p>elas têm a dizer pode nos trazer surpresas e muitas pistas sobre o seu</p><p>jeito de ler a realidade. Mas, principalmente, pode ser uma</p><p>oportunidade, que damos a nós mesmos e a elas, de refletirmos sobre o</p><p>significado da música que nos une.</p><p>Neste artigo, os estudos sobre a natureza das relações do homem</p><p>com a música ajudam a compreender o papel dessa arte em nossa</p><p>cultura. Valendo-nos do estudo sobre a criança e sobre o papel ativo que</p><p>ela assume na cultura atual, podemos obter uma melhor compreensão</p><p>sobre o conhecimento que ela possui. Para tanto, são apresentados</p><p>alguns episódios de crianças realizando atividades musicais,[12] com o</p><p>objetivo de mostrar como elas criam formas de representar, para si</p><p>mesmas, o significado de suas experiências. Defendemos aqui que as</p><p>relações das crianças com a música produzem significações que podem</p><p>ser entendidas como significações que possibilitam a compreensão</p><p>musical. As explicações sobre a importância das significações na</p><p>produção do conhecimento seguem a teoria de Jean Piaget,</p><p>principalmente a obra que trata especificamente do tema (Piaget e</p><p>Garcia 1997).</p><p>O presente artigo traz inicialmente algumas considerações acerca</p><p>do conceito de música, de criança e o significado de ensinar e aprender.</p><p>A seguir, analisa sete episódios de crianças engajadas em atividades</p><p>musicais, dando especial enfoque às significações que promovem a</p><p>compreensão musical. A discussão desses episódios circunscreve o</p><p>trabalho no campo da educação musical e suas práticas de ensinar e</p><p>aprender música.</p><p>O que é preciso saber para ensinar?</p><p>Sobre a música</p><p>Na grande maioria dos contextos onde a música tem participação</p><p>ativa, o significado musical deriva das interações entre as pessoas, em</p><p>que a sensibilidade para perceber e interpretar as intenções do outro</p><p>constitui a base das relações interpessoais. Há uma variedade enorme de</p><p>atividades que podem ser consideradas como música. Ian Cross (2008)</p><p>sugere que a forma mais coerente de compreendê-las é orientar-se pelas</p><p>características das relações das pessoas com a música. A multiplicidade</p><p>de significados e sua intencionalidade flutuante são as propriedades que</p><p>permitem que ela seja uma forma de expressão eficaz em contextos</p><p>individuais e grupais de culturas muito distintas. A música, conforme o</p><p>autor, “não é simplesmente algo que é ouvido e consumido, é algo que é</p><p>feito na interação com os outros”. A música funciona “como uma</p><p>estrutura social e de ação intencional”, cumprindo uma variedade</p><p>enorme de funções sociais (Cross 2008, p. 5). Ainda segundo o referido</p><p>autor, a dimensão social do significado musical pode ter origem nos</p><p>efeitos do som no mundo físico, de onde emanam as características</p><p>próprias das sonoridades, como tempo, timbre, tessitura e modo de</p><p>articulação do som. Embora sejam características reais, a sensibilidade a</p><p>elas não é uma sensibilidade passiva, uma vez que nossa capacidade</p><p>para imprimir significado às sonoridades pode ser empregada de modo</p><p>ativo, com a intenção de regular nossas relações no ambiente social. A</p><p>natureza física do som e o sentido emocional que atribuímos a ele são</p><p>dimensões que se interpenetram na formação do significado musical.</p><p>As interpretações individuais do sentido musical podem ser muito</p><p>diferentes, sem que, contudo, comprometam a integridade do</p><p>comportamento musical coletivo. A respeito disso, Cross (2008) lembra</p><p>que um evento musical nunca é indiferente ao tempo e ao contexto onde</p><p>ele ocorre, nem assume um só significado para todas as pessoas. De seu</p><p>ponto de vista, a indeterminação do sentido ou a ambiguidade de sua</p><p>mensagem permite que diferentes conceitos de música possam ser</p><p>integrados num mesmo grupo social. As interações com a música,</p><p>portanto, podem ajudar a formação de relações sociais mais flexíveis e</p><p>promover capacidades individuais e coletivas.</p><p>De acordo com Cross (2008, p. 13), a musicalidade é parte</p><p>integrante da cultura: “é provável que a musicalidade</p><p>tenha</p><p>desempenhado um papel funcional na emergência e consolidação da</p><p>capacidade humana”, e um papel significativo na evolução dos</p><p>processos cognitivos e sociais do homem que hoje conhecemos. Ela</p><p>facilita as interações e pode envolver as pessoas em objetivos comuns,</p><p>mesmo que as interpretações pessoais sobre o seu significado sejam</p><p>distintas. As diferentes maneiras de interpretar a música e o seu</p><p>significado flutuante contribuem para que ela seja uma prática capaz de</p><p>reforçar a emergência de domínios gerais e os modos de pensamento</p><p>necessários à convivência social.</p><p>Depreende-se das colocações de Cross (2008) que são as interações</p><p>com a música e com as outras pessoas que dão lugar às relações e</p><p>significações que permitem a compreensão dos significados musicais</p><p>em nossa cultura. Na mesma linha de pensamento, Ilari (2009)</p><p>considera que a música pode ser a ponte entre os nossos mundos interno</p><p>e externo, um modo de situar-se na cultura e ter uma identidade própria.</p><p>A autora defende que as experiências com a música facilitam o</p><p>desenvolvimento no que se refere ao senso de pertencimento ao grupo</p><p>familiar e à cultura.</p><p>Como educadores musicais, nossa ação pedagógica pode ser uma</p><p>forma de intervir nessas relações, fortalecendo os vínculos das pessoas</p><p>com a música e das pessoas entre si, a fim de assegurarmos a</p><p>transmissão e a apropriação dos conhecimentos culturalmente</p><p>organizados. As características das interações com a música imprimem</p><p>o rumo e o sentido das práticas educativas musicais.</p><p>Sobre a criança</p><p>O conceito de criança nos estudos atuais vem acompanhado de uma</p><p>nova visão da infância e do seu papel na sociedade e na cultura.</p><p>Percebe-se um grande interesse pelo seu mundo, pelo que fazem,</p><p>pensam, sentem e dizem. Ao mesmo tempo, nota-se um</p><p>comprometimento no sentido de intervir na superação das</p><p>determinações que retiram da criança o direito de brincar (Müller et al.</p><p>2007).</p><p>O que acontece na escola e o que as crianças realmente fazem na</p><p>escola são preocupações que atingem não apenas as famílias, mas as</p><p>organizações educacionais e as políticas de atendimento à infância.</p><p>Novos temas entram em debate, como a “sociologia da infância”, as</p><p>“culturas da infância, a “pesquisa com crianças”, as “crianças como</p><p>atores sociais”, a “participação das crianças em pesquisas”, entre outros.</p><p>Claude Jeveau (2005) analisa o campo semântico dos conceitos de</p><p>criança e de infância desde as primeiras conotações atribuídas a eles.</p><p>Seus estudos mostram que as disciplinas que tiveram origem na</p><p>psicologia comportamental adotaram o discurso das “fases do</p><p>desenvolvimento” da criança como critério ou regra para definir seu</p><p>campo de atuação. Tais disciplinas tiveram forte poder de legitimidade,</p><p>ao adotarem como norma do desenvolvimento infantil as pesquisas de</p><p>Jean Piaget. Como retrata Jeveau (2005, p. 382):</p><p>Depois de Piaget, que se deve evidentemente evitar de caricaturar como o faz uma</p><p>certa doxa para uso de revistas especializadas, assim como de certas escolas onde</p><p>são formadas as puericulturas, construiu-se um objeto abstrato, a “criança”,</p><p>destinada a passar por níveis diversos e sucessivos na aquisição de competências,</p><p>cada um deles constituindo uma etapa na fabricação da personalidade dos</p><p>indivíduos. Em certos textos, essas etapas adquirem uma coloração normativa,</p><p>pouco se importando com a variedade dos contextos efetivos nos quais indivíduos</p><p>concretos são chamados a se “desenvolver”.</p><p>A aquisição de competências, conforme observa Jeveau, remete a</p><p>uma fase histórica da concepção de infância, em que a criança real foi</p><p>substituída pela criança abstrata, criada pelo discurso científico. Os</p><p>professores que atuaram nas escolas primárias na década de 1980</p><p>participaram das discussões que pretendiam pautar o ensino em bases</p><p>científicas confiáveis. Nossas crianças foram medidas e agrupadas em</p><p>turmas A, B ou C, conforme os resultados das provas piagetianas,</p><p>adotadas em algumas escolas como “testes”. Com relação a essa</p><p>distorção teórica, as críticas foram pertinentes e precisavam ser feitas,</p><p>principalmente porque nós, educadores, já estávamos acostumados a</p><p>“medir”, desde o surgimento dos “testes de maturidade” que vigoraram</p><p>nas escolas, muito antes de Piaget.</p><p>Não é demais lembrar que o “movimento dos testes” trazido pela</p><p>Escola Nova teve ampla aceitação no meio educacional. A partir de</p><p>1933, os testes ABC, por exemplo, passaram a ser empregados como</p><p>diagnóstico e prognóstico do que se poderia esperar do rendimento</p><p>escolar das crianças. No prefácio da 11ª edição dos Testes ABC,</p><p>Lourenço Filho, seu idealizador, diz o seguinte (2008, p. 15):</p><p>Os Testes ABC destinam-se fundamentalmente a verificar nas crianças que</p><p>procuram a escola primária o nível de maturidade requerido para a aprendizagem</p><p>da leitura e da escrita. (...) será possível classificar os alunos em três grupos gerais,</p><p>quanto ao que deles se possa esperar: os que, nas condições comuns do ensino</p><p>possam rapidamente, ou seja, num só semestre letivo; os que normalmente venham</p><p>a aprender no decurso de todo o ano; e, enfim, as crianças menos amadurecidas,</p><p>que só lograrão a aquisição da leitura e da escrita nesse prazo, quando lhes</p><p>dediquemos atenção especial, em exercícios preparatórios (...) certo trabalho</p><p>corretivo.</p><p>Chamo a atenção para a concepção de criança, ou melhor, para a</p><p>prescrição de como deveria ser a criança, por conta da objetividade</p><p>científica fundamentada na organização teórica da psicologia aplicada à</p><p>educação. A criança desvinculada dos fatores sociais foi uma limitação</p><p>imposta pelo movimento da Escola Nova, cuja base teórica tinha como</p><p>suporte “uma concepção científica de educação”. O estudo científico da</p><p>criança, das metodologias de ensino e dos fatores ambientais da</p><p>educação foram temas recorrentes na época. Conforme os estudos de</p><p>Monarcha (2001, p. 7), a institucionalização da psicologia acadêmica e</p><p>suas teorizações “influenciaram de forma contínua e intensa o ambiente</p><p>cultural da época que lhe é contemporânea e as décadas seguintes”.</p><p>Não estamos muito distantes desse modo de predefinir e prejulgar</p><p>as crianças, já que, ainda durante a década de 1980, aplicava-se o</p><p>famoso Teste ABC aos candidatos à alfabetização. Na mesma década,</p><p>em 1987, as pesquisas de Emilia Ferreiro sobre a aprendizagem da</p><p>leitura e da escrita foram traduzidas no Brasil, assinalando novas</p><p>perspectivas para a compreensão dos processos de alfabetização. Com</p><p>isso, os testes ABC aos poucos foram perdendo a sua utilidade.</p><p>Esses fatos mostram que os referidos testes e os aportes de Jean</p><p>Piaget tiverem existência paralela dentro da escola. Enquanto um grupo</p><p>de professores aplicava os testes ABC para a seleção das crianças para o</p><p>1º ano, outro grupo, da mesma escola, estudava as pesquisas de Emilia</p><p>Ferreiro.[13] Na década de 1980, portanto, não se tinha clareza da</p><p>distinção entre a concepção de criança segundo o “movimento dos</p><p>métodos” e a de criança na abordagem piagetiana. A criança predefinida</p><p>e prejulgada tinha a força da tradição escolar e, lamentavelmente, nem</p><p>todos os educadores tiveram a oportunidade de rever suas concepções.</p><p>Sem a devida reflexão, a tradição escolar de medir e classificar foi</p><p>substituindo, aos poucos, os testes ABC pelos estágios de</p><p>desenvolvimento previstos por Jean Piaget, para justificar as mesmas</p><p>práticas. Nossas crianças foram do mesmo modo classificadas, desta</p><p>vez, segundo suas etapas de desenvolvimento cognitivo.</p><p>Os pesquisadores que atualmente se dedicam aos estudos sobre a</p><p>criança e a infância questionam o próprio conceito reducionista de</p><p>criança como ser psicológico, desvinculado do seu contexto original, e a</p><p>infância como uma questão simplesmente demográfica e alheia aos</p><p>processos estruturais que afetam sua existência. Sarmento, em entrevista</p><p>concedida a Delgado e Müller (2006), de modo particular, faz forte</p><p>oposição ao que denominou “colonização dos mundos de vida infantis”</p><p>pela indústria cultural e aos comportamentos consumistas incentivados</p><p>pelas mídias. Na concepção do autor, a criança vive o processo de</p><p>transição, cujo lugar é perpassado pela</p><p>sensoriais. Meses desse “treinamento” levariam ao controle do gesto</p><p>que produziria nuances de intensidade e variações de duração em</p><p>qualquer objeto que se emprestasse à sua seriíssima pesquisa. Tal</p><p>controle fazia “durar os espetáculos interessantes”, como observado por</p><p>Piaget (1982, pp. 152-154).</p><p>No início da década de 1980, quando June Tillman estava cursando</p><p>seu doutorado na Universidade de Londres, não era comum falar de</p><p>“ensino de música” para crianças menores de três anos. Sua pesquisa,</p><p>orientada por Swanwick (Swanwick e Tillman 1986), versava sobre</p><p>criatividade. June coletou 745 composições orais (sem notação) de</p><p>crianças de três a 11 anos e meio de idade, seus alunos na escola regular.</p><p>Mas sua extensa revisão de literatura não a ajudava a compreender</p><p>como se desenvolvia o pensamento musical dessas crianças.</p><p>Estudioso de Piaget, Swanwick acreditava que o desenvolvimento</p><p>musical fosse análogo ao desenvolvimento cognitivo global da criança.</p><p>Contribuições de outros autores também ajudaram a iluminar o cenário.</p><p>Moog (1976) observou que a atenção sensorial inicial ao som e ao ritmo</p><p>desabrochava em uma capacidade progressiva de reproduzir e controlar</p><p>os sons, movimentar-se com a música e inventar canções. Bunting</p><p>(1977) definiu diferentes modos de resposta à experiência musical, os</p><p>quais chamou de neurológico, acústico, mecânico, ilustrativo, social,</p><p>vernacular, especulativo e simbólico. Embora não tenha proposto uma</p><p>hierarquia de desenvolvimento desses modos, sua categorização</p><p>influenciou diretamente a nomeação dos níveis do Modelo Espiral. Ross</p><p>(1984) propôs categorias amplas de desenvolvimento estético; em</p><p>música, elas corresponderiam ao engajamento com materiais sonoros</p><p>(de zero a dois anos) em direção a um progressivo domínio de estruturas</p><p>sonoras e da representação expressiva (de três a sete anos), à</p><p>preocupação com as convenções musicais (de oito a 13 anos) e ao senso</p><p>de significado da música como forma simbólica (a partir dos 14 anos).</p><p>Com esses referenciais em mente, June e Keith começaram a ouvir</p><p>repetidamente as composições, procurando padrões que revelassem a</p><p>senha para adentrar os mecanismos da criação. Um dia, estando de</p><p>férias, Swanwick teve o insight: “It’s a spiral!”! O Modelo Espiral não</p><p>foi previsto, não foi teorizado nem inventado: antes, foi descoberto,</p><p>desvelado. Estava diante dos olhos (ouvidos), mas era preciso chegar</p><p>muito perto das crianças, olhar (ouvir) com muito cuidado o que os</p><p>meninos e meninas revelavam por meio das suas criações através do</p><p>tempo. Foi o que os pesquisadores fizeram.</p><p>O mapa foi se delineando. Os dados foram submetidos a análises</p><p>qualitativas e quantitativas até que padrões analíticos começaram a</p><p>emergir. As composições foram agrupadas conforme esses padrões, que</p><p>sugeriam uma sequência de mudanças qualitativas de compreensão</p><p>musical, uma progressiva consciência das camadas do discurso musical,</p><p>materiais sonoros, caráter expressivo, forma e valor. À medida que a</p><p>criança se desenvolvia, começava a notar elementos que antes não lhe</p><p>eram relevantes, mergulhando em novas camadas do discurso musical.</p><p>Essas quatro camadas se desdobram em oito níveis conforme uma</p><p>inter-relação entre tendências assimilativas e acomodativas, entre</p><p>intuição e análise. Alternadamente, tendências intuitivas, impulsos</p><p>internos de exploração e tendências analíticas decorrentes do mundo</p><p>exterior cooperam, conduzindo a criança a um patamar cada vez mais</p><p>complexo de compreensão musical.</p><p>Refazendo o percurso do desenvolvimento: o impulso musical é</p><p>autogerado, dada a disposição inata à música. A brincadeira e a</p><p>exploração sonoras, de naturezas sensoriais, logo são impulsionadas</p><p>pelas trocas com o ambiente (1º nível: sensorial). Com o manuseio</p><p>persistente de fontes sonoras e a maturação sensório-motora, surge a</p><p>capacidade de dominar o gesto e de controlar o som, possibilitando a</p><p>repetição voluntária (2º nível: manipulativo). Quando a estimulação</p><p>musical ocorre paralelamente ao período sensório-motor (zero a dois</p><p>anos), a passagem do nível sensorial ao manipulativo pode ser</p><p>observada já neste momento, em virtude do aparecimento da</p><p>intencionalidade (França e Carneiro 2006).</p><p>“Com os sons sob controle, a expressão musical se torna possível”</p><p>(Swanwick 1994, p. 88), a princípio, de maneira intuitiva e espontânea</p><p>(3º nível: pessoal). Em seguida, o impulso expressivo se apropria dos</p><p>modelos e convenções oferecidos pelo ambiente (4º nível: vernacular).</p><p>Os mecanismos adaptativos da criança são modelados pelos estímulos,</p><p>pelos objetos, pelos instrumentos e pelas convenções musicais aos quais</p><p>ela é exposta. O ambiente, que já havia determinado os materiais</p><p>sonoro-musicais com os quais ela iria lidar, agora determina</p><p>definitivamente o que é convencional. Os modelos oferecidos à criança</p><p>desde o seu nascimento – antes dele, inclusive – serão imitados e</p><p>integrados a seu repertório expressivo.</p><p>Com padrões convencionais assimilados, a criança dá vazão</p><p>novamente à sua motivação interna de experimentar, de especular</p><p>intuitivamente sobre forma musical, incorporando surpresas de maneira</p><p>pessoal e exploratória (5º nível: especulativo). À medida que</p><p>amadurece, começa a ajustar seu desejo de especular em direção a</p><p>estilos e idiomas musicais (6º nível: idiomático). Estes são novamente</p><p>oferecidos pelo ambiente e podem variar enormemente não só entre as</p><p>sociedades, mas dentro delas também. Então, o valor simbólico da</p><p>música é reconhecido: primeiro pelo seu significado pessoal para o</p><p>indivíduo (7º nível: simbólico), depois para a coletividade (8º nível:</p><p>sistemático).</p><p>O desenvolvimento musical, que guarda uma relação estreita com a</p><p>maturação cognitiva, é tonalizado por padrões culturalmente</p><p>específicos. Influências sociais explicam as diferenças na maneira como</p><p>o pensamento musical é expresso: cada ambiente musical enfatiza certas</p><p>características em detrimento de outras. Uma rede de relações vai</p><p>determinar que tipo de música será valorizado. Assim, diferenças</p><p>significativas aparecem entre diferentes sociedades e grupos, não</p><p>obstante o modelo globalizado rock/soul/pop/funk. Isso conduz à</p><p>produção de sistemas conceituais e de representação específicos,</p><p>conduzindo a linguagem musical por caminhos diversos.</p><p>Em observações nas escolas regulares, tenho assistido, ao vivo e em</p><p>cores, a unicidade da criança se manifestar, ainda que dentro dos</p><p>padrões de resposta esperados para cada faixa etária. O individual – a</p><p>expressão única – e o universal – a força propulsora do</p><p>desenvolvimento – operam em dinâmico equilíbrio.</p><p>Convergências entre os olhares filosófico, psicológico e</p><p>pedagógico</p><p>Acredito na importância de buscar convergências entre os pilares</p><p>filosófico, psicológico e pedagógico na educação musical. O diálogo,</p><p>tão necessário entre esses referenciais, pode contribuir efetivamente</p><p>para aproximar teoria e prática educacional. É imprescindível que as</p><p>decisões pedagógicas se alinhem com o percurso do desenvolvimento</p><p>musical, otimizando-o com intervenções de ensino adequadas e</p><p>sensíveis. Fazem parte desse processo a construção e a constante</p><p>revisão de uma matriz curricular de referência para as séries iniciais do</p><p>ensino fundamental (França 2006). A matriz explicita conteúdos e</p><p>habilidades esperados do aluno ao final de cada segmento escolar, e que</p><p>vão sendo construídos gradativamente.</p><p>Neste artigo, debruço-me sobre a apreciação musical. No que tange</p><p>ao desenvolvimento, ela representa um importante indicador da</p><p>maturidade musical dos indivíduos (França e Barbosa 2009; Barbosa</p><p>2009; Carneiro 2006; França 2005; Del Ben 1996-1997; Hentschke</p><p>1993 e outros). A apreciação fomenta o desenvolvimento tanto quanto</p><p>pode facilitar a sua manifestação. Sua relevância musical é</p><p>inquestionável, pois ela é capaz de oportunizar aos alunos uma vivência</p><p>acessível e extremamente rica. A abrangência do repertório disponível</p><p>para escuta confere a essa modalidade uma vantagem com relação às</p><p>demais: é fato que os alunos podem experimentar uma gama de estilos e</p><p>um número de obras muito maior e de complexidade técnica muito</p><p>superior</p><p>cultura adulta, ao mesmo tempo</p><p>em que ocorre seu processo de socialização no coletivo infantil. Diante</p><p>disso, Sarmento acredita que o lugar da criança na sociedade e na</p><p>cultura é uma fusão de tempos, e não mais um tempo de preparação</p><p>para o futuro; não constitui um espaço à parte separado dos adultos, mas</p><p>faz parte integrante do mundo adulto como parte integrante da estrutura</p><p>social. É nesse sentido que ele afirma em sua entrevista que a criança</p><p>vive um entre-lugar, por ser prematuramente induzida ao mundo adulto</p><p>e por nascer no interior de um “mundo simbólico que administra o seu</p><p>espaço social” e que determina o seu modo de pensar e agir. Ainda de</p><p>acordo com o autor entrevistado, as culturas infantis se afirmam nas</p><p>interações das crianças com seus pares e na “socialização horizontal”,</p><p>experimentada no sentimento de acolhida e pertencimento de um</p><p>coletivo infantil (Delgado e Müller 2006, p. 19).</p><p>Os estudos sobre a criança e a infância trouxeram contribuições</p><p>relevantes às reflexões pedagógicas sobre as práticas musicais na</p><p>educação infantil. A maior compreensão das necessidades da criança</p><p>redimensionou a finalidade da musicalização infantil, que deixou de ser</p><p>um período de preparação para outro qualquer, para assumir seu lugar e</p><p>importância na formação da criança como ser humano. É ainda possível</p><p>extrair das novas concepções de criança e infância a relevância da</p><p>socialização horizontal como uma prática própria da cultura infantil. A</p><p>educação musical infantil incorpora esses valores e dá continuidade aos</p><p>processos de aprendizagem musical que se iniciam fora da escola. A</p><p>outra lição que aprendemos é que a concepção de criança abstrata,</p><p>criada pela objetividade científica, criou normas de como a infância</p><p>deveria ser vista e analisada. Os objetivos, métodos e práticas</p><p>pedagógicas que advêm dessa visão equivocada de criança são, por</p><p>conseguinte, processos educativos superados ou fora do seu tempo.</p><p>As características das relações da criança com a música, como a</p><p>forma mais adequada de entender o significado da música na infância, e</p><p>a compreensão da criança em uma sociedade amplamente pedagogizada</p><p>pelas novas formas de comunicação e socialização exigem dos</p><p>educadores musicais o grande desafio de articular os saberes da cultura</p><p>às contribuições da ciência, para que seus alunos possam se apropriar</p><p>dos conhecimentos do seu tempo.</p><p>Então, por onde começar?</p><p>Considerar a criança como ponto de partida pode ter muitos</p><p>significados. Para citar alguns, pode significar considerar o seu contexto</p><p>cultural e social, seus interesses ou suas atividades preferidas. Nesse</p><p>caso, abordar o conhecimento novo com base no que a criança já sabe</p><p>pode ser uma forma de tornar as aprendizagens mais significativas.</p><p>Pode também significar transformar o conteúdo a ser aprendido em uma</p><p>espécie de jogo, característico dessa fase de desenvolvimento humano,</p><p>por meio do qual a criança possa aprender brincando. Podemos ainda</p><p>entender que considerar a criança como ponto de partida é propor</p><p>atividades de som e movimento, de modo que ela vivencie com o corpo</p><p>aqueles elementos necessários à compreensão musical. Por fim, um</p><p>modo antigo e não menos difundido entre os professores é aquele que</p><p>aproveita o mundo mágico, a fantasia e a imaginação infantis como</p><p>motivação para o aprendizado. De modo geral, a reflexão pedagógica</p><p>que dá suporte a esses enfoques tem em comum a preocupação em</p><p>engajar as crianças em atividades que capturem o seu interesse, para</p><p>então introduzir os conhecimentos novos.</p><p>A opção por um desses enfoques não descarta necessariamente o</p><p>outro, no entanto, podemos notar que ouvir o que as crianças têm a</p><p>dizer sobre suas experiências com a música não é o foco de atenção</p><p>dessas pedagogias. Conhecer a criança e o seu modo de interpretar o</p><p>mundo é essencial ao ato de ensinar. Nessa perspectiva, a tarefa de</p><p>ensinar é, antes de tudo, compreender e acolher a criança e o seu</p><p>contexto, envolvendo-se nele como condição para entender o seu</p><p>significado. Na acepção mais simples e ao mesmo tempo mais</p><p>profunda, compreender a criança é entender suas buscas e intenções,</p><p>para organizar as ações de ensinar considerando o contexto e as relações</p><p>da criança com o saber musical.</p><p>O professor de música certamente já ouviu dizer, ou disse: “hoje eu</p><p>dei a colcheia, eles pegaram direitinho!”. A frase chama a atenção pelo</p><p>“dar e pegar”, em vista da concepção de ensinar e aprender que deixa</p><p>transparecer. Brincando um pouco com as palavras, podemos imaginar</p><p>que alguém “arremessa” para o outro que “agarra”, fazendo crer que</p><p>ensinar é “dar” uma explicação e que aprender é “receber” e reter a</p><p>informação para si. Mas há outras concepções de ensinar também muito</p><p>conhecidas entre nós: “Fulano não sabe as notas, ainda não deu o clic!”.</p><p>A argumentação que acompanha essa maneira de conceber a</p><p>aprendizagem costuma ser “cada um tem seu ritmo, um dia ele chega</p><p>lá” ou “ele sabe, mas não pratica em casa”, como se a prática em si</p><p>mesma promovesse a compreensão musical. Em situações como essas,</p><p>cabe ao professor aguardar que seu aluno amadureça para entender ou</p><p>esperar que a repetição produza o aprendizado esperado.</p><p>Conforme observou Roldão (2007), o que se entende por ensino</p><p>deriva de questões históricas e conceituais. Além de ser um tema</p><p>complexo que se polariza nas ideias de ensino transmissivo e ensino</p><p>ativo, ele ocorre num contexto sócio-histórico específico. Quando as</p><p>pessoas deixavam suas cidades do interior e procuravam a cidade</p><p>grande para cursar uma faculdade, o compromisso que se esperava delas</p><p>era de que, quando voltassem, elas “transmitissem” ou “professassem”</p><p>o saber aprendido àqueles que não haviam tido a mesma chance. Porém,</p><p>diz a autora, com o alargamento das oportunidades de frequentar um</p><p>curso superior, o significado social do saber também mudou. Ensinar no</p><p>sentido de transmitir deixou de ser socialmente útil.</p><p>Do ponto de vista de Roldão (2007, p. 3), a afirmação da escola</p><p>como organização pública e do currículo como uma possibilidade de</p><p>formação de cidadãos mais atuantes na vida pública das sociedades</p><p>gradualmente modificou a concepção de ensino e o reconhecimento</p><p>social de um conhecimento profissional específico como necessário à</p><p>formação do professor. Desse modo, Roldão entende que as concepções</p><p>de ensino, escola e currículo e contexto histórico e sociocultural</p><p>caminham juntos na compreensão que hoje temos sobre o significado de</p><p>ensinar e aprender. A autora observa que vivemos a dicotomia e a tensão</p><p>entre “professar um saber” e “fazer aprender alguma coisa a alguém”.</p><p>Citando a si mesma em trabalho que publicou em 2005, Roldão (2007,</p><p>p. 95) admite que:</p><p>Ensinar configura-se assim, nesta leitura, essencialmente como a especialidade de</p><p>fazer aprender alguma coisa (a que chamamos currículo, seja de que natureza for</p><p>aquilo que se quer ver aprendido) a alguém (o ato de ensinar só se atualiza nesta</p><p>segunda transitividade corporizada no destinatário da ação, sob pena de ser</p><p>inexistente ou gratuita a alegada ação de ensinar).</p><p>Tomando por base suas colocações, entendemos que a essência do</p><p>ato de ensinar encontra sentido quando alguém aprende. Esse processo</p><p>não se confunde com “dar” e “pegar”, como mencionado anteriormente:</p><p>“hoje eu dei as colcheias, eles pegaram direitinho!”.</p><p>As significações criadas pelas crianças para obter</p><p>compreensão musical</p><p>A cultura musical infantil é hoje reconhecida como um saber a</p><p>partir do qual as crianças compreendem a vida em sociedade. A</p><p>continuidade dessas aprendizagens na escola traz a necessidade de</p><p>refletirmos sobre os fins da música na educação e de como podemos</p><p>auxiliar as crianças na aquisição de conhecimentos que enriqueçam suas</p><p>experiências cotidianas com a música.</p><p>O que veremos a seguir trata de modo específico das oportunidades</p><p>de aprendizagem que as crianças criam para si mesmas ao explorar os</p><p>instrumentos musicais. O contexto é o de uma aula de música em uma</p><p>escola de educação infantil.</p><p>Episódio 1 – A professora organiza uma bateria de latas. Ao observar que todas as</p><p>crianças faziam o ritmo, percutidos</p><p>da mesma forma, pergunta:</p><p>– Quem consegue fazer diferente?</p><p>Rochelle passa a tocar da esquerda para a direita; Pedro percute com as mãos</p><p>realizando movimento contrário. Ambos modificam o jeito de tocar, mas o ritmo se</p><p>mantém. (5/5/87)</p><p>Episódio 2 – Silvia toca pandeireta. A professora pergunta como consegue som</p><p>fraco no seu instrumento. Silvia muda a posição da baqueta. Alice, que está ao seu</p><p>lado, mostra o suave com movimentos circulares. A intensidade do som não é</p><p>alterada, mas os gestos mostram-se diferentes. (26/4/87)</p><p>Episódio 3 – Mauro sopra a flauta produzindo sempre o mesmo som. A professora</p><p>pergunta: Sabes tocar diferente? Pede para o Renato te mostrar o que ele sabe</p><p>fazer.</p><p>Mauro não procura Renato e tenta outros sons movimentando a cabeça. (4/4/87)</p><p>Fonte: Maffioletti 1988, pp. 31-32.</p><p>Observamos nos episódios acima que as crianças atribuem uma</p><p>significação ao que realizam, tanto que “fazer diferente” é</p><p>compreendido como variar o gesto sobre o instrumento. De maneira</p><p>muito simples, uma significação funciona como se a criança</p><p>perguntasse a si mesma: “o que é isso?” ou “o que se pode fazer com</p><p>isso?”.</p><p>Piaget e Garcia (1997, p. 23), que analisaram com profundidade</p><p>esse processo, compreendem que atribuir significações a objetos ou às</p><p>ações realizadas sobre eles, por exemplo, variar o gesto para obter um</p><p>efeito diferente, são sempre interpretações que a criança faz de suas</p><p>próprias experiências. Esse processo não pode ser considerado banal,</p><p>porque a “interpretação é uma conduta complexa de base</p><p>constantemente inferencial”. Ou seja, ao atribuir significações, a criança</p><p>também faz inferências, criando para si possibilidades de aprender com</p><p>as experiências que realiza.</p><p>Para Rochelle, Pedro, Silvia e Mauro, descritos anteriormente, a</p><p>busca de significações naquele momento envolve claramente a</p><p>experiência corporal. Embora as crianças não tenham explicado com</p><p>palavras as suas experiências, pelo modo como exploravam seus</p><p>instrumentos, podemos supor que, naquele momento, viver a música</p><p>poderia significar inserir-se nela mediante o balanceio do corpo e o</p><p>movimento das mãos, buscando encontrar no gesto uma maneira de</p><p>fazer variar as sonoridades. Para “fazer diferente”, Rochelle e Pedro</p><p>invertem a direção das mãos, Silvia modifica a posição da baqueta e</p><p>passa a fazer gestos circulares; Mauro continua a soprar sem alterar o</p><p>som, mas passa a soprar movimentando a cabeça. Para essas crianças, o</p><p>corpo é o elo e o ponto de referência de suas aprendizagens. Do ponto</p><p>de vista temporal, o que as crianças realizavam naquele momento</p><p>conectou-se com o que elas já sabiam fazer. Alternar ou inverter a</p><p>posição das mãos, girar para um lado e para outro, são ações que elas já</p><p>sabiam fazer, o fato novo foi o emprego desse saber no contexto da</p><p>experiência musical. Quem faz esse trabalho, de ir e vir nas</p><p>experiências antigas e novas, são as significações criadas pela criança.</p><p>Criando formas de representação</p><p>Durante as atividades de exploração, como as descritas acima, as</p><p>crianças até poderão explorar os instrumentos musicais de maneira</p><p>muito semelhante. Contudo, as interpretações que elas fazem são</p><p>distintas, não só por causa da trajetória particular de cada uma, mas</p><p>também pela interpretação que a cultura faz dessas práticas musicais.</p><p>Dentre as construções de natureza social que fazem parte do</p><p>aprendizado musical, uma delas é apontada como necessária ao</p><p>desenvolvimento musical, porém ela cede facilmente seu lugar a outras</p><p>práticas de educação musical. Trata-se da aprendizagem da leitura</p><p>musical. O fato de ser possível aprender a tocar um instrumento sem ler</p><p>uma partitura faz com que o problema da leitura seja minimizado, até</p><p>mesmo camuflado, mas raramente compreendido como uma possível</p><p>dificuldade de aprendizagem musical. Ler música é compreender as</p><p>regras que regem os símbolos. Em algum momento histórico, essas</p><p>regras foram criadas e tornaram-se convenções, pela abrangência do seu</p><p>uso nas práticas musicais cotidianas. Um processo de natureza</p><p>semelhante precisa ser vivido pelas crianças, para que a adoção das</p><p>convenções da escrita musical seja compreendida como uma</p><p>necessidade lógica que torna comum uma forma de comunicação. Não</p><p>importa se estamos trabalhando com a escrita convencional ou com a</p><p>escrita contemporânea, o que importa é a produção de significados e sua</p><p>socialização no grupo, para que sejam compartilhados, discutidos e</p><p>finalmente adotados como uma forma de representação.</p><p>As descrições que seguem ajudam a compreender o ponto de vista</p><p>das crianças e de que modo elas significam para si mesmas algumas</p><p>regras de leitura. O contexto é o de sala de aula de uma escola de</p><p>música para crianças, onde os instrumentos foram colocados à</p><p>disposição para que elas realizassem suas composições. O contato com</p><p>a escrita musical é uma atividade espontânea, cujo papel é</p><p>simplesmente “anotar para não esquecer”.</p><p>Episódio 4 – Representação da duração do silêncio</p><p>Luisa (seis anos) organiza três tambores em fileira horizontal. Toca</p><p>compassadamente uma batida em cada um deles, formando uma sequência da</p><p>esquerda para a direita, voltando a seguir, executando da direita para a esquerda.</p><p>Tenta escrever e pergunta:</p><p>Como se escreve o silêncio?</p><p>– Podes escolher um jeito teu, diz a professora.</p><p>Luisa faz uma pauta de seis linhas e registra três mínimas bem distantes uma da</p><p>outra, e explica: “O silêncio é o espaço entre elas”.</p><p>Figura 1: Partitura de Luisa (22/10/95)</p><p>Fonte: Maffioletti 1995, p. 28.</p><p>Mais tarde, manuseando o material disponível, Luisa encontra um</p><p>cartão contendo uma pausa de semínima (figura musical) e pergunta:</p><p>– “O que é?” [mostra o cartão].</p><p>– É a escrita do silêncio – responde a professora.</p><p>Luisa não modifica a sua escrita original, mantém seu modo de representar o</p><p>silêncio.</p><p>Luisa percebe que entre um golpe e outro há som e silêncio, ou</p><p>seja, que o som provocado se prolonga, mas depois cessa, antes do</p><p>próximo toque. Esse vazio entre o som que cessou e o outro que ainda</p><p>não começou é o que Luisa salienta quando executa para a professora</p><p>ouvir.</p><p>Nas atividades cotidianas realizadas por Luisa, em casa ou na</p><p>escola, a noção de aproximação e afastamento estão sempre presentes.</p><p>Brincando com as colegas, certamente ela já experimentou “estar junto”</p><p>ou “separada”, “dentro” ou “fora” da roda, e o significado afetivo dessa</p><p>movimentação no contexto da brincadeira. Essas experiências são</p><p>evocadas e participam do processo de compreensão, quando a criança</p><p>enfrenta uma situação análoga, qual seja, de fazer notar, por meio de</p><p>uma simbologia, que os sons estão separados, ou que há um vazio entre</p><p>um som e outro.</p><p>Afastar as notas, para dar a ideia de que ali naquele espaço há um</p><p>lugar ocupado pelo silêncio, é uma forma criativa de entender e</p><p>representar o fenômeno sonoro. Desse modo, o que é vivido no contato</p><p>com os outros permite projetar para o papel uma regra de como escrever</p><p>música. No entanto, é importante salientar que os elementos que</p><p>constituem a leitura musical, as figuras e os nomes das notas estão à</p><p>disposição da criança, mas é ela, e somente ela, quem cria a regra que</p><p>dá sentido aos símbolos disponibilizados.</p><p>A escrita criada por Luisa expressa também outros saberes</p><p>construídos nas relações sociais. Distribuir uma porção de balas,</p><p>fazendo corresponder uma bala para cada amigo, é uma atividade</p><p>corriqueira entre as crianças. O que não é tão fácil assim é evocar esse</p><p>saber no contexto da escrita musical e, no momento de registrar, definir</p><p>um símbolo para cada som. O que se generaliza para a pauta não é a</p><p>partilha das balas, mas a relação de equivalência experimentada no</p><p>cotidiano. Assim, as experiências da vida diária se fazem presentes em</p><p>forma de significações que dão sentido aos conhecimentos novos.</p><p>Luisa, porém, avança um pouco mais. Para ela, se o silêncio faz parte da</p><p>música, então é preciso registrá-lo. Levando isso em conta, ela</p><p>generaliza a relação de equivalência, passando a empregá-la também na</p><p>ausência de sons. Nesse contexto, representar o silêncio faz muito</p><p>sentido para Luisa.</p><p>A interpretação que ela</p><p>faz sobre as durações e sua representação</p><p>sugere que a adoção ou não da simbologia musical convencional tem a</p><p>ver com as significações construídas internamente a partir das</p><p>experiências realizadas, não só na área da música, mas outras noções</p><p>que se afiliam à experiência em curso. Isso equivale a dizer que a ponte</p><p>que liga as aprendizagens atuais às experiências anteriores não é um</p><p>dado externo, mas uma construção interna elaborada pela própria</p><p>criança.</p><p>As relações de que as crianças fazem uso são formas de abordar a</p><p>realidade, no intuito de obter algum tipo de compreensão. Ter uma</p><p>compreensão superficial ou uma compreensão mais aprofundada sobre</p><p>um determinado conteúdo vai depender do tipo de relação que a criança</p><p>estabelece no decorrer da experiência. Antes que ela possa estabelecer</p><p>relações que exprimem conexões de compreensão, a sua abordagem da</p><p>realidade apoia-se na apreensão imediata dos dados fornecidos pela</p><p>percepção ou pelas sensações cinestésicas. Assim, para obter</p><p>compreensão sobre algum objeto ou acontecimento, estar próximo,</p><p>tocar e sentir de maneira objetiva é a condição necessária.</p><p>Mas as ações concretas não se transformam em experiências de</p><p>pensamento sem passar por um processo de reconstrução. Nesse</p><p>sentido, as ações concretas de tocar, ouvir, apalpar precisam ser</p><p>interiorizadas, a fim de que imitem internamente o que foi</p><p>objetivamente vivenciado pelo corpo. Uma vez interiorizadas, podemos</p><p>então falar de processos de abstração, os quais representam as ações</p><p>práticas e suas significações no plano do pensamento. Observemos o</p><p>episódio abaixo.</p><p>Episódio 5 – Representação da altura: Agudo/grave</p><p>Lucas (seis anos) toca violão com ritmo cadenciado na mão direita. Tenta</p><p>modificar os dedos da mão esquerda, mas não consegue. Toca, com cuidado, um</p><p>som agudo e um som grave, depois pergunta: “Como eu escrevo minha música?”</p><p>Em resposta, a professora mostra dois cartões contendo fragmentos de escrita</p><p>musical, para que escolha aquele que mais se parece com sua música. Em dos</p><p>cartões contém duas notas, uma aguda e uma grave; outro contém três notas</p><p>graves. Lucas escolhe o primeiro cartão e passa a copiá-lo em seu caderno.</p><p>Primeiro faz as notas, depois traça as linhas da pauta, ao todo quatro linhas. Ensaia</p><p>e apresenta sua música olhando a partitura.</p><p>Figura 2: Partitura 1 de Lucas (15/10/95)</p><p>Fonte: Maffioletti 1995, p. 22.</p><p>As experiências realizadas no violão foram importantes para Lucas,</p><p>e ele quer anotá-las, possivelmente para não esquecer e poder retomá-</p><p>las posteriormente. Essa intenção de Lucas se dá porque ele acredita que</p><p>sua música pode ser escrita – o que também é um ótimo sinal sobre o</p><p>tipo de compreensão que tem da escrita musical. Ele sabe que a música</p><p>tem uma simbologia própria, que agudos e graves são conceitos</p><p>representados na escrita musical.</p><p>Contudo, para que seja possível anotar, Lucas precisa ter uma</p><p>imagem dos sons, para então formar um conceito, conceito este que será</p><p>representado graficamente. Para provocar uma reflexão e criar uma</p><p>oportunidade de formar essa imagem, a professora oferece dois cartões</p><p>a Lucas. Trata-se aqui de uma leitura aproximada. O que importa nesse</p><p>momento não é a escrita exata do nome e da duração da nota executada,</p><p>mas apreender as regras que regem os símbolos musicais, no caso,</p><p>como registrar sons agudos e graves.</p><p>Observamos que Lucas primeiro faz as notas depois traça as linhas.</p><p>A preocupação com a altura exata dos sons ainda não é seu foco de</p><p>atenção, as linhas não cumprem a função de organizar as notas segundo</p><p>sua altura. Ele ainda não compreende qual é o significado das linhas em</p><p>relação às notas colocadas sobre elas. Contudo, elas servem como</p><p>referência para indicar que os sons agudos são escritos na parte superior</p><p>da pauta, e os graves, mais abaixo. Se ele tivesse copiado apenas as</p><p>notas, acredito que a possibilidade de que aprendesse sobre as</p><p>diferenças na forma de registro dos graves e agudos ainda seria</p><p>possível, uma vez que a distância está bem representada. Mas Lucas já</p><p>sabe que existe uma forma própria de escrever música, e a emprega</p><p>utilizando linhas/figuras no contexto de suas invenções.</p><p>Episódio 6 – A presença do corpo na escrita musical</p><p>Na semana seguinte (22/10/95), Lucas faz sua música utilizando vários</p><p>instrumentos: flauta, cabo de madeira contendo pequenas platinelas e pratos. Toca</p><p>uma sequência de sons e pergunta: “Como posso escrever minha música?”</p><p>Para auxiliar esse processo, a professora pede que Lucas organize no chão os</p><p>instrumentos conforme eles aparecem na música, um depois do outro. Lucas</p><p>organiza os instrumentos e executa sua música, guiando-se pela ordem dos</p><p>instrumentos dispostos horizontalmente no chão. Assim que termina, apontando</p><p>para os instrumentos a professora reproduz em palavras a sequência dos sons que</p><p>ouviu:</p><p>– Primeiro ouvi o som da flauta depois... e depois... Agora é só anotar!</p><p>Lucas escreve sua música e executa novamente a peça olhando para a partitura.</p><p>Figura 3: Partitura 2 de Lucas</p><p>Fonte: Maffioletti 1995, p. 25.</p><p>Significações que geram o conhecimento musical</p><p>Para fazer sua música, Lucas sentiu os instrumentos nas mãos e os</p><p>movimentos que realizou para produzir os sons desejados. Foram</p><p>experiências corporais e cinestésicas vividas no fluir do tempo. O seu</p><p>registro no papel requer que Lucas transforme a ordem temporal em</p><p>organização espacial, criando formas de representação que expressem</p><p>os acontecimentos de sua música. Nesse processo, a sequencialidade do</p><p>tempo cria os elos de sentido que permitem localizar cada som em seu</p><p>espaço-tempo e, assim, recuperar a totalidade de sua música. Atribuir</p><p>um significado, de modo que esses sons possam ser nomeados e</p><p>narrados, é a condição para que Lucas possa transformar a experiência</p><p>musical em conhecimento sistematizado em forma de escrita sobre o</p><p>papel.</p><p>Para os sons da flauta, Lucas logo adotou a simbologia tradicional,</p><p>a nota maior no final na pauta representa o som do prato. Esse detalhe</p><p>pode explicar a razão da figura que representa o som longo ser um</p><p>símbolo bem maior que os demais. Mas a escrita de Lucas chama a</p><p>atenção pelo forte significado da experiência corporal sentida ao</p><p>percutir as platinelas. Para produzir esse som, Lucas segurou firme o</p><p>cabo com as platinelas, levantou o braço e sacudiu com energia,</p><p>realizando movimentos em zigue-zague. Ao perguntar como poderia</p><p>registrar esse detalhe, a professora mostra um cartão contendo duas</p><p>colcheias. Mas Lucas não adota essa simbologia, preferindo o desenho</p><p>em zigue-zague registrado no alto da pauta.</p><p>Por um lado, as significações que permitem compreender sua</p><p>escrita como a representação de sua música mostram a apropriação de</p><p>um conhecimento social organizado, com o qual está em contato; por</p><p>outro, que a compreensão que ele tem da escrita musical é ainda muito</p><p>próxima da experiência corporal e, por isso mesmo, precisa imitar no</p><p>papel o movimento dinâmico da experiência de sacudir as platinelas. A</p><p>sugestão da professora para que usasse os cartões com colcheias</p><p>desenhadas não teve o menor significado para ele.</p><p>No dia que Lucas fez a segunda partitura, mostrou-se muito</p><p>satisfeito e disse: “hoje eu aprendi o grave e o agudo”. Talvez tenha sido</p><p>muito mais do que isso, se considerarmos e emoção que acompanhou</p><p>suas palavras.</p><p>Na cena que segue, observamos que a aprendizagem da leitura e da</p><p>escrita do idioma permite à criança construir suas hipóteses sobre o</p><p>significado de ler e escrever música. Do ponto de vista da leitura</p><p>musical, os conceitos diferem, não só na aparência física da escrita, mas</p><p>no significado das linhas e dos espaços empregados para representar as</p><p>alturas. A criança em processo de alfabetização sabe que, para ler e</p><p>escrever, usam-se letras e palavras e escreve-se acima da linha. No</p><p>entanto, na escrita musical, escrever na linha significa, literalmente,</p><p>colocar a cabeça na nota sobreposta à linha; não usamos letras sobre a</p><p>pauta, lemos as figuras que estão sobre ela. Vejamos o que diz</p><p>Francisco:</p><p>Episódio 7 – A generalização de saberes</p><p>Francisco (seis anos) toca e escreve sua música.</p><p>A professora solicita que explique</p><p>aos colegas.</p><p>– Conte para os colegas como conseguiu fazer o trabalho. O que fez primeiro?</p><p>– Toquei.</p><p>– E depois, escreveu?</p><p>– Não escrevi, eu fazi as notas.</p><p>– Continuando, o que fez depois, leu?</p><p>– Toquei olhando, porque [quem] não sabe tem que olhar.</p><p>(17/6/95)</p><p>Fonte: Maffioletti 1995, p. 49.</p><p>Nesse diálogo, salientam-se as significações construídas por</p><p>Francisco acerca da leitura e da escrita do idioma. No seu entendimento,</p><p>as palavras, ele escreve com letras, ao passo que as notas, ele “faz”.</p><p>Ainda com base em suas experiências de alfabetização, como as notas</p><p>não são palavras nem letras, elas não poderiam ser lidas, então</p><p>Francisco as “olha”.</p><p>Entendendo as significações como interpretações que a criança</p><p>produz para obter compreensão, no caso de Francisco, as significações</p><p>já construídas na alfabetização são evocadas e se implicam nas</p><p>significações que ora experimenta com a música. Uma relação de</p><p>compreensão é generalizada para a situação musical e, comparando-se</p><p>aquela situação com esta, Francisco explica que “fez” as notas e tocou</p><p>“olhando”.</p><p>Conclusões</p><p>Neste artigo foram apresentados alguns episódios de crianças</p><p>realizando atividades musicais, com o objetivo de mostrar como elas</p><p>atribuem significações ao que fazem e como interpretam suas próprias</p><p>experiências, extraindo delas uma forma de compreensão. Alguns</p><p>conceitos que se entrecruzam na leitura do fazer infantil foram</p><p>retomados, como o conceito de música, de criança e as concepções de</p><p>ensinar e aprender. O papel da teoria nas discussões sobre a criança foi</p><p>uma reflexão trazida pela concepção científica de educação que, no</p><p>início do século passado, predefiniu e classificou as crianças em A, B ou</p><p>C. Com esses fatos, aprendemos que o papel da teoria na qualificação</p><p>do trabalho realizado nas escolas não é normatizar. A teoria nasce nas</p><p>experiências das crianças e vai adiante quando consegue criar uma</p><p>ligação contínua entre a experiência e o seu significado. Assim, o</p><p>presente artigo lança, das bases da articulação teórica que encontra nas</p><p>experiências da criança, o fundamento para compreender suas</p><p>conquistas.</p><p>Os breves fatos aqui narrados mostram que a todo instante as</p><p>crianças interpretam o mundo externo, criando e recriando um mundo</p><p>próprio que possa representá-lo. As situações descritas mostram que a</p><p>música pode ser o elo entre esses dois mundos, possibilitando às</p><p>crianças situarem-se na cultura e terem uma identidade própria (Ilari</p><p>2009), como também, segundo Sarmento (apud Delgado e Müller</p><p>2006), experimentarem o sentimento de acolhida e pertencimento a um</p><p>coletivo infantil.</p><p>As crianças não “recebem” o que “damos”, antes, inventam um</p><p>jeito seu de entender, imprimindo significações novas às experiências</p><p>que realizam. Os episódios analisados mostram que a originalidade das</p><p>crianças preserva o caráter flutuante do significado musical e a</p><p>diversidade que enriquece as trocas sociais (Cross 2008). Dessa forma,</p><p>as representações que elas criam possuem um valor ao mesmo tempo</p><p>individual e social. As relações que promovem a compreensão na área</p><p>da música e em outras áreas do conhecimento são relações que</p><p>produzem significações (Piaget e Garcia 1997). Sem elas, os saberes da</p><p>cultura e os conhecimentos sistematizados oferecidos na escola</p><p>perderiam seu valor social.</p><p>Finalizando, aproveito a partitura de Lucas como uma metáfora do</p><p>lugar das crianças no espaço-tempo da cultura compartilhada com os</p><p>adultos. O mundo simbólico que se impõe a elas é representado pela</p><p>pauta, pelas notas e pelos demais sinais da escrita musical; as</p><p>significações criadas para compreendê-lo, representadas pelas linhas em</p><p>zigue-zague, preservam a singularidade que caracteriza o saber infantil,</p><p>impondo um jeito próprio de entender as convenções sociais.</p><p>Apreciando a partitura como uma narrativa que articula saberes</p><p>sistematizados e experiências pessoais, temos a certeza de que o</p><p>processo de ensinar e aprender precisa garantir o espaço de autoria das</p><p>crianças.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>CROSS, I. (2008). “Musicality and the human capacity for culture”. Musicae Scientiae, número</p><p>especial, pp. 127-143. [Disponível na internet:</p><p>http://www.mus.cam.ac.uk/~ic108/PDF/IRMC_MS07_2.pdf, acesso em 5/3/2011.]</p><p>DELGADO, C. e MÜLLER, F. (2006). “Tempos e espaços: Um diálogo com Manuel Jacinto</p><p>Sarmento”. Currículo sem Fronteiras, v. 6, n. 1, jan.-jun. [Disponível na internet:</p><p>http://www.curriculosemfronteiras.org/vol6iss1articles/sarmento.htm, acesso em</p><p>9/8/2011.]</p><p>ILARI, B. (2009). “Sogns of belonging: Musical interactions in early life”. In: KERCHNER,</p><p>J.L. e ABRIL, C.R. Musical experience in our lives. Things we learn and meaning we</p><p>make. Nova York: Rowman & Littlefield Education/Menc, pp. 21-37.</p><p>JEVEAU, C. (2005). “Criança, infância(s), crianças: Que objetivo dar a uma ciência social da</p><p>infância?”. Educ. Soc., v. 26, n. 91, maio-ago. Campinas, pp. 379-389.</p><p>LOURENÇO FILHO, M.B. (2008). Testes ABC: Para a verificação da maturidade necessária</p><p>à aprendizagem da leitura e da escrita. 13ª ed. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e</p><p>Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.</p><p>MAFFIOLETTI, L. de A. (1988). “A relação da criança com a situação de aprendizagem</p><p>musical. Observações das características do comportamento musical, afetivo, psicomotor,</p><p>social e intelectual de crianças durante a realização de atividade musical espontânea”.</p><p>Monografia, jul. Porto Alegre. Resumo expandido publicado nos Anais do I Congresso</p><p>Brasileiro de Psicopedagogia. ABPP-RS, pp. 78-70.</p><p>________ (1995). “A criança da experiência musical. Interpretações que a criança faz de alguns</p><p>conceitos musicais e suas representações”. Monografia. Curso de Formación en</p><p>Psicopedagogía Clínica para Graduados. Buenos Aires: Escuela Psicopedagógica de</p><p>Buenos Aires.</p><p>MONARCHA, C. (2001). “Lourenço Filho e a organização da psicologia aplicada à educação.</p><p>(São Paulo 1922-1933)”. Monografia ganhadora do Prêmio Lourenço Filho, 1998,</p><p>conferido pela Academia Brasileira de Educação. Brasília. [Disponível na internet:</p><p>http://www.mus.cam.ac.uk/~ic108/PDF/IRMC_MS07_2.pdf</p><p>http://www.curriculosemfronteiras.org/vol6iss1articles/sarmento.htm</p><p>http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?</p><p>select_action=&co_obra=5685, acesso em 21/6/2017.]</p><p>MÜLLER, V.R. et al. (2007). “O brincar das crianças: Aproximações às culturas infantis”.</p><p>Revista Digital, ano 11, n. 104, jan. Buenos Aires. [Disponível na internet:</p><p>http://www.efdeportes.com/efd104/o-brincar-das-criancas-aproximacoes-as-culturas-</p><p>infantis.htm, acesso em 21/4/2011.]</p><p>PIAGET, J. e GARCIA, R. (1997). Hacia una lógica de significaciones. 2ª ed. Barcelona:</p><p>Gedisa.</p><p>ROLDÃO, M. do C. (2007). “Função docente: Natureza e construção do conhecimento</p><p>profissional”. Revista Brasileira de Educação, v. 12, n. 34, jan.-abr., pp. 94-181.</p><p>http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=5685</p><p>http://www.efdeportes.com/efd104/o-brincar-das-criancas-aproximacoes-as-culturas-infantis.htm</p><p>6</p><p>CRIANÇAS NA UNIVERSIDADE?</p><p>Angelita Maria Vander Broock</p><p>“Bom dia, bom dia! Pode entrar! A aula vai começar...”</p><p>Uma vez por semana, e lá estão elas, prontas e acompanhadas dos</p><p>pais, sentadas em roda, esperando a aula começar. Quem são elas? De</p><p>onde vieram? Por que estão ali? Para aprender música? Mas assim, tão</p><p>pequenas? O que aprendem? Será que vão sair tocando um instrumento?</p><p>E quem são aqueles professores? Eles estão prontos para lidar com seres</p><p>tão pequeninos? E aquela sala? Crianças na universidade? Mas criança</p><p>não deveria aprender música apenas na escola regular? Qual é a relação</p><p>dessa aula de música com o curso de licenciatura?</p><p>Ao presenciar uma aula de musicalização infantil em um projeto de</p><p>extensão universitária, muitos tendem a fazer uma série de</p><p>questionamentos. Realmente há muito mais nesse cenário do que está</p><p>explícito em uma simples aula de música para crianças na universidade.</p><p>Diante disso, o objetivo deste artigo é discutir alguns aspectos que</p><p>permeiam esse contexto, como a função da extensão nos cursos de</p><p>licenciatura</p><p>em música e a descrição de um projeto de musicalização</p><p>infantil na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia,</p><p>incluindo aspectos de cunho didático, como o planejamento e os planos</p><p>de aula. Também serão fornecidas algumas sugestões para a prática</p><p>docente em aulas de música para crianças, as quais poderão ser úteis em</p><p>qualquer contexto da educação infantil.</p><p>Extensão universitária</p><p>A legislação brasileira assegura o atendimento às crianças de zero a</p><p>seis anos de idade, desde a aprovação da Constituição Federal de 1988.</p><p>A partir de então, a educação infantil em creches e pré-escolas passou a</p><p>ser um dever do Estado e um direito da criança (artigo 208, inciso IV).</p><p>Dessa forma, é parte das atribuições das instituições de ensino superior</p><p>promover a formação de profissionais capazes de lidar com essa faixa</p><p>etária, incluindo o ensino musical.</p><p>Em uma pesquisa realizada em 2008 sobre cursos de licenciatura</p><p>em música, Teresa Mateiro (2011) observou que, de 45 instituições que</p><p>responderam ao questionário, nenhum programa priorizava a formação</p><p>docente para a educação infantil. A autora analisou 15 projetos político-</p><p>pedagógicos de cursos de formação docente em educação musical</p><p>oferecidos por instituições de ensino superior e concluiu que, no Brasil,</p><p>idealiza-se uma mesma formação para todos os professores de música,</p><p>ainda que os documentos oficiais apontem a necessidade da formação</p><p>de profissionais com diferentes perfis. É necessário, portanto, elaborar</p><p>estratégias para que a formação do educador musical possa também</p><p>contemplar a educação infantil, sendo a extensão universitária uma das</p><p>possibilidades.</p><p>A estrutura universitária brasileira deve ser sustentada por ensino,</p><p>pesquisa e extensão, e essas atividades devem ser tratadas de forma</p><p>indissociável. A extensão universitária pode ser entendida como uma</p><p>prática acadêmica que conecta a universidade à sociedade, no que diz</p><p>respeito às atividades de ensino e pesquisa. Ela possibilita a formação</p><p>do profissional cidadão, credenciando-se junto à sociedade como espaço</p><p>privilegiado de produção de conhecimento significativo para a</p><p>superação das desigualdades sociais existentes (Forproex 2001). Além</p><p>disso, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases – lei n. 9.394/96 –, em</p><p>seu artigo 43, parágrafo VII, a educação superior tem como uma de suas</p><p>finalidades “promover a extensão, aberta à participação da população,</p><p>visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação</p><p>cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição”.</p><p>Com essa afirmação, podemos perceber a relevância de projetos de</p><p>extensão universitária que priorizem a formação de professores para a</p><p>educação infantil, como é o caso do projeto “Musicalização infantil”, da</p><p>UFBA,[14] além de outros pelo Brasil afora.</p><p>De acordo com Ricardo Freire (2008), o trabalho de educação</p><p>musical para bebês teve início no Brasil provavelmente na década de</p><p>1970, com iniciativas de Josette Feres, em Jundiaí (SP). Segundo o</p><p>autor, os trabalhos pioneiros nas universidades brasileiras, com a</p><p>implementação de cursos de extensão que atendessem as crianças da</p><p>comunidade, foram de autoria de Esther Beyer, na Universidade Federal</p><p>do Rio Grande do Sul, e de Ilza Joly, na Universidade Federal de São</p><p>Carlos. Motivado por essas iniciativas, o autor criou em 2002 um curso</p><p>de musicalização infantil na Universidade de Brasília. Outra iniciativa</p><p>foi a da professora doutora Beatriz Ilari, que, em 2003, iniciou um</p><p>Programa de Extensão de Musicalização Infantil na Universidade</p><p>Federal do Paraná, que esteve ativo até 2010. Por sua vez, a Escola de</p><p>Música da UFBA vem desenvolvendo projetos de extensão desde a sua</p><p>fundação, em 1954 (Oliveira 1992), incluindo o ensino de música para</p><p>crianças. Desde então, as aulas de música para os pequenos nessa escola</p><p>eram oferecidas para crianças a partir de quatro anos. Em 2006, o</p><p>projeto “Musicalização infantil” foi ampliado e passou a atender</p><p>também os bebês da capital baiana. Inicialmente ele se chamava</p><p>“Musicalização para bebês”, atendendo apenas as crianças de zero a três</p><p>anos. No entanto, em 2008 o projeto uniu-se ao projeto já existente,</p><p>passando então a ser denominado “Musicalização infantil” e incluindo</p><p>crianças de zero a seis anos (Broock 2011).</p><p>Com esses exemplos, podemos notar que algumas universidades</p><p>têm buscado a prática docente em educação musical infantil por meio</p><p>da extensão universitária, e que esta pode exercer um papel relevante na</p><p>formação do educador musical, já que todos os projetos contam com a</p><p>participação dos alunos da graduação. Podemos dizer que os projetos e</p><p>programas extensionistas garantem ao licenciando a oportunidade de</p><p>experimentar por meio da prática, sendo a extensão o seu laboratório</p><p>dentro da universidade. Além disso, o Plano Nacional de Extensão</p><p>Universitária (Forproex 2001) afirma que a extensão é indispensável na</p><p>formação do aluno, na qualificação do professor e no intercâmbio com a</p><p>sociedade. No caso das aulas de música, essa prática pode garantir ao</p><p>licenciando maior autoconfiança ao estagiar e atuar na escola regular ou</p><p>creche, conforme relatos de alguns professores que passaram por essa</p><p>experiência.</p><p>Podemos perceber, portanto, que a extensão universitária pode</p><p>exercer um papel relevante durante a formação do educador musical,</p><p>neste caso, para a educação infantil. Além disso, é uma forma eficaz de</p><p>promover uma interação entre a comunidade e a universidade, por meio</p><p>da música, proporcionando espaços propícios para pesquisas na área de</p><p>educação musical e promovendo o intercâmbio entre ensino, pesquisa e</p><p>extensão.</p><p>Musicalização infantil na UFBA</p><p>O curso de musicalização infantil da UFBA é um dos projetos de</p><p>extensão universitária da Escola de Música. Atualmente o projeto</p><p>atende aproximadamente 180 crianças de zero a seis anos da</p><p>comunidade soteropolitana. Além disso, existe uma turma de Conjunto</p><p>Instrumental voltada às crianças de seis a dez anos. Vale mencionar que</p><p>a Escola de Música oferece diversos cursos para crianças a partir de sete</p><p>anos, como coral e cursos de iniciação ao violão, piano, teclado, flauta,</p><p>violino e harpa.[15] Dessa forma, ao saírem do projeto de</p><p>musicalização, as crianças podem continuar seus estudos musicais</p><p>ingressando em um desses cursos ou na turma de Conjunto</p><p>Instrumental. Todos os cursos oferecidos pela escola são pagos, sendo</p><p>10% das vagas destinadas a alunos bolsistas.</p><p>Com encontros semanais, cada turma do projeto de musicalização</p><p>infantil possui aproximadamente dez crianças, sendo os grupos</p><p>divididos de acordo com a idade das crianças. Até completar três anos,</p><p>as crianças fazem as aulas com duração de 45 minutos e acompanhadas</p><p>por um adulto responsável. Com três e quatro anos, as aulas têm</p><p>duração de uma hora, e a presença dos adultos acontece nos últimos 15</p><p>minutos, quando as atividades realizadas durante a aula são</p><p>compartilhadas e quando acontece a atividade final em conjunto com os</p><p>pais/responsáveis. Também com duração de uma hora, as crianças de</p><p>cinco e seis anos ficam sozinhas em todos os encontros, exceto em duas</p><p>aulas públicas durante o semestre, quando elas podem levar seus pais e</p><p>convidados. Acreditamos ser de extrema relevância a participação dos</p><p>pais ou responsáveis durante o processo de musicalização e sempre</p><p>buscamos incentivá-los a utilizar a música no ambiente familiar.</p><p>Muitos são os objetivos do projeto “Musicalização infantil” da</p><p>UFBA. Entre eles, podemos citar: promover maior interação entre a</p><p>comunidade e a universidade, por meio da música, sendo que este</p><p>também é um dos objetivos dos projetos extensionistas; proporcionar</p><p>aos alunos do curso de graduação em licenciatura em música</p><p>oportunidades guiadas de ensino de musicalização infantil, onde eles</p><p>possam aprender de forma prática; despertar e desenvolver a percepção</p><p>e a produção musicais das crianças da comunidade; transmitir o</p><p>conhecimento musical, por meio do canto, dos jogos musicais, dos</p><p>movimentos, da improvisação, da execução e da apreciação musicais;</p><p>desenvolver a percepção musical das crianças, bem como instigar</p><p>a</p><p>criação espontânea; estimular competências e habilidades, valendo-se</p><p>de atividades musicais; proporcionar aos pais elementos que possam ser</p><p>trabalhados facilmente em casa, com o intuito de reforçar os conteúdos</p><p>aprendidos em aula e propiciar um elemento a mais na relação entre</p><p>pais e filhos (Broock 2011).</p><p>Conjunto instrumental</p><p>Sugerido e implementado em 2010 pela professora Kamile Levek,</p><p>[16] o Conjunto Instrumental visa trabalhar, por meio de arranjos</p><p>musicais, o desenvolvimento da percepção, a performance, a</p><p>composição e a apreciação musicais. Com uma hora e trinta de duração,</p><p>as aulas também são semanais e seguem uma dinâmica um pouco</p><p>diferenciada, já que, além de atividades de musicalização, os alunos</p><p>ensaiam os arranjos criados coletivamente, seguindo os direcionamentos</p><p>dos professores. Esse curso surgiu para dar continuidade ao trabalho que</p><p>vem sendo realizado no curso de musicalização infantil, apesar de ser</p><p>aberto também para alunos de fora e que ainda não possuem experiência</p><p>musical. O Conjunto Instrumental dispõe, primeiramente, de</p><p>instrumentos de pequena percussão, porém permite a inclusão de</p><p>instrumentos musicais que porventura os alunos já toquem. O objetivo é</p><p>o de propiciar o desenvolvimento de habilidades e competências</p><p>musicais, cognitivas, motoras e sociais, por meio da prática</p><p>instrumental.</p><p>Professores</p><p>Os professores do projeto são, em sua maioria, estudantes do curso</p><p>de licenciatura em música da UFBA. No entanto, contamos também</p><p>com a participação de alunos da pós-graduação em educação musical e</p><p>alunos que já concluíram a graduação em música. Todos os licenciandos</p><p>em música são convidados a participar, mas apenas alguns mostram</p><p>interesse em lecionar no projeto. Antes de ingressar como professor,</p><p>cada aluno-professor passa ao menos um semestre acompanhando o</p><p>trabalho, observando as aulas e participando como ouvinte. Inspiradas</p><p>no modelo do Programa de Musicalização Infantil da UFPR, todas as</p><p>aulas são dadas em pares, sendo um professor mais experiente que o</p><p>outro. Alguns pesquisadores têm mostrado que o modelo de</p><p>aprendizagem por pares pode ter uma influência muito positiva na</p><p>formação dos graduandos em educação musical (Haston e Russell</p><p>2011). Pelos relatos dos alunos-professores, o fato de ter mais de um</p><p>professor na sala pode trazer segurança, além de haver uma troca</p><p>contínua de experiências entre os pares.</p><p>Comunidade atendida</p><p>O curso atende crianças de Salvador e da região metropolitana. A</p><p>fim de saber o perfil dos alunos do projeto, uma pesquisa realizada em</p><p>2007 em Salvador (Broock 2009) mostrou que a média de idade dos</p><p>pais dos alunos participantes do projeto era de 37 anos. Os dados</p><p>também mostraram que todos os entrevistados tinham formação</p><p>acadêmica de nível superior e se encaixavam na categoria de classe</p><p>social de nível médio. Atualmente, podemos observar que a</p><p>característica do público atendido permanece a mesma, no entanto, não</p><p>podemos deixar de lembrar que 10% das vagas são destinadas a alunos</p><p>bolsistas, o que garante a participação de crianças com outras realidades</p><p>financeiras.</p><p>Um breve estudo realizado em 2006 (Broock 2007) apontou várias</p><p>razões para os pais matricularem seus filhos nas aulas de música, como:</p><p>inseri-los numa atividade onde possam desenvolver o relacionamento</p><p>com outras crianças, colaborar com a formação de valores nesses</p><p>indivíduos e estimular o desenvolvimento de habilidades, como</p><p>coordenação motora, socialização, sensibilidade musical,</p><p>psicomotricidade, fala e afetividade. Podemos citar aqui que alguns</p><p>estudos sugerem que as práticas musicais das crianças e dos adultos</p><p>auxiliam no desenvolvimento auditivo, motor, cognitivo e social, além</p><p>de ajudarem a fortalecer a relação afetiva entre as pessoas. Afora o</p><p>desenvolvimento das habilidades perceptivo-musicais, o aprendizado</p><p>musical favorece o desenvolvimento da atenção, da memória, da</p><p>sociabilidade e nos sistemas de ordenação sequencial e organização</p><p>espacial (Ilari 2005). Logo, é interessante notar que os pais buscam as</p><p>aulas de música na tentativa de desenvolver algumas habilidades das</p><p>crianças, sejam elas musicais ou não, sugerindo que eles tenham contato</p><p>com os estudos realizados na área de música.</p><p>Planejamento</p><p>O planejamento de cada semestre é criado de forma coletiva e conta</p><p>com a colaboração de todos os professores do projeto. Cada</p><p>planejamento abrange quatro meses de trabalho, ou seja, 16 aulas. Para</p><p>tal, é necessário elaborar estratégias de organização e trabalho, para que</p><p>haja unidade e coerência.</p><p>O planejamento é dividido em algumas etapas. A primeira delas é o</p><p>planejamento em grupo, que é elaborado durante alguns encontros que</p><p>antecedem o início das aulas. Esses encontros são realizados em três</p><p>partes: vivências musicais, discussões e o planejamento em si. Na</p><p>primeira parte, normalmente contamos com a colaboração de algum</p><p>professor convidado para realizar atividades práticas de musicalização</p><p>infantil. Os professores do projeto também são estimulados a</p><p>compartilhar atividades e socializar algumas de suas práticas</p><p>pedagógicas. A segunda parte é movida por discussões em relação ao</p><p>que foi trabalhado e a assuntos relevantes para a prática docente em</p><p>educação musical infantil. É nesse momento que se discutem quais</p><p>metodologias ou métodos podem ser usados, de que forma os conteúdos</p><p>podem ser organizados, e assim por diante. Após a prática e as</p><p>discussões, o grupo constrói as estratégias para os quatro meses de</p><p>trabalho, definindo o tema do semestre, o repertório e os conceitos</p><p>musicais que serão enfatizados em cada aula.</p><p>Ao longo de quase seis anos de trabalho, optamos por organizar o</p><p>planejamento utilizando duas estruturas básicas: a organização por</p><p>temas e repertório e a organização por objetivos pedagógico-musicais.</p><p>Na organização por temas, definimos o tema do semestre e o tema</p><p>de cada aula. Por exemplo: o tema do semestre escolhido foi “Canções</p><p>da Bahia”, que será trabalhado na primeira aula, com a música “O canto</p><p>do povo de um lugar”, de Caetano Veloso. O tema dessa aula será a</p><p>natureza. Assim, definimos pelo menos uma música em comum para</p><p>todas as turmas e sugerimos um tema para as demais canções da aula,</p><p>que serão escolhidas pelos professores no momento de planejar a aula.</p><p>Organização por temas: Repertório</p><p>Tema do semestre Tema das aulas</p><p>Na organização por objetivos pedagógico-musicais, definimos</p><p>quais os objetivos que serão alcançados a longo, médio e curto prazos.</p><p>Os objetivos a longo prazo determinam o que pretendemos que as</p><p>crianças vivenciem durante todo o semestre. Tratando-se de aulas de</p><p>musicalização, vários conceitos musicais são trabalhados em todas as</p><p>aulas, de forma harmoniosa e lúdica. Dessa maneira, as crianças</p><p>vivenciam elementos como: pulsação, andamento, intensidade, altura,</p><p>som e silêncio, timbre, forma musical, exploração de sons, por meio da</p><p>execução de instrumentos e do próprio corpo, apreciação musical, e</p><p>assim por diante. Para organizar esses conteúdos, criamos módulos</p><p>conceituais a cada três ou quatro aulas, que consideramos como os</p><p>objetivos a médio prazo. Nesses módulos, escolhemos um conceito</p><p>musical que será enfatizado em relação aos demais, ou seja,</p><p>trabalharemos todos os conceitos possíveis em uma aula, valendo-nos</p><p>das atividades, mas chamando a atenção ao conceito escolhido. Além</p><p>disso, ao planejar a aula, o professor deverá estar atento e especificar o</p><p>objetivo de cada atividade. Dessa forma, evitamos atividades</p><p>desconexas e com objetivos distintos. Para exemplificar, vamos supor</p><p>que o primeiro módulo seja trabalhar diferentes timbres. Então, o</p><p>professor irá considerar o tema “Canções da Bahia”, com a música de</p><p>Caetano Veloso, terá como tema da aula músicas que falem sobre a</p><p>natureza, enfatizando o conceito de timbre, sem se esquecer, contudo,</p><p>de incluir outros conceitos que podem ser abordados nas aulas de</p><p>musicalização.</p><p>Organização por objetivos pedagógico-musicais</p><p>Objetivos do semestre Objetivos das aulas Objetivos das atividades</p><p>Esse esquema serve como um direcionamento para o planejamento</p><p>das aulas. No entanto,</p><p>vale citar que os professores têm autonomia para</p><p>planejar suas aulas, considerando as especificidades de cada grupo. Os</p><p>conteúdos e temas são os mesmos para todas as crianças do projeto, o</p><p>que muda é a abordagem e a forma de condução, bem como os</p><p>objetivos específicos das atividades. Exemplificando, podemos utilizar</p><p>a mesma música com crianças de dois e seis anos, mas o objetivo da</p><p>atividade será diferenciado e as respostas que esperamos das crianças</p><p>também. Portanto, é necessário levar em consideração as fases do</p><p>desenvolvimento infantil, tendo em mente quais são as capacidades das</p><p>crianças no processo de musicalização. Para citar outro exemplo,</p><p>sugerimos que as crianças de cinco e seis anos tenham acesso à</p><p>iniciação à escrita e à leitura musicais, mas não trabalhamos escrita e</p><p>leitura com as crianças de dois anos.</p><p>Durante todo o período de aulas, realizamos reuniões semanais,</p><p>com o intuito de compartilhar o que vem sendo feito em sala de aula,</p><p>considerando os sucessos e as dificuldades encontradas durante o</p><p>percurso, tanto em relação ao grupo quanto em relação às crianças</p><p>individualmente. Aproveitamos esses encontros para discutir também</p><p>aspectos da organização do projeto e solucionar eventuais problemas.</p><p>Ou seja, os professores e estagiários têm um acompanhamento contínuo</p><p>durante o trabalho.</p><p>É válido dizer que os pais igualmente são encorajados a participar</p><p>ativamente de todas as atividades propostas pelo projeto. Antes do</p><p>início de cada semestre, os professores realizam uma reunião com eles,</p><p>explicando como é o funcionamento do curso, expondo o calendário de</p><p>atividades e explicando a importância da participação dos adultos no</p><p>processo de ensino e aprendizagem. Também aproveitamos esse</p><p>encontro para expor resultados de estudos na área de música e</p><p>relacioná-los ao trabalho, mostrando quais as respostas que esperamos</p><p>das crianças e dos adultos. Além disso, temos um blog,[17] que contém</p><p>todas as informações do projeto, além de um grupo de e-mails para que</p><p>todos possam se relacionar.</p><p>Como formas de enriquecimento pessoal e artístico, sempre</p><p>concluímos as atividades com uma apresentação no final do ano. O</p><p>tema da apresentação é o mesmo trabalhado durante o ano, e é o</p><p>momento em que as crianças e os pais podem mostrar os resultados das</p><p>aulas aos familiares e amigos. A apresentação é como uma aula pública</p><p>e inclui atividades das aulas adaptadas para a mostra. A produção da</p><p>apresentação é feita com a colaboração de todos os professores, e ainda</p><p>há o envolvimento de alguns pais de alunos, amigos e funcionários da</p><p>Escola de Música.</p><p>Atividades extras</p><p>Além das atividades em sala de aula, temos algumas atividades</p><p>extras no projeto. Uma delas é o “Concertando”, que acontece ao menos</p><p>três vezes em cada semestre, desde 2009, e tem como objetivo</p><p>proporcionar aos pais um momento musical com seus filhos, por meio</p><p>do qual, juntos, eles podem apreciar um repertório amplo e</p><p>diversificado. O “Concertando” é um evento organizado pelos</p><p>professores do projeto, que conta com a participação de músicos</p><p>convidados, que tocam estilos musicais variados. Essa atividade surgiu</p><p>como forma de estímulo aos pequenos e de contribuição desde cedo à</p><p>formação de ouvintes. Portanto, é quando nossos alunos exercem</p><p>também a função de plateia. Ainda que o evento seja direcionado aos</p><p>alunos do projeto, o “Concertando” é aberto a toda a comunidade. As</p><p>apresentações são realizadas no Salão Nobre da reitoria da UFBA, e a</p><p>entrada é franca. Esse evento tem trazido um retorno muito positivo</p><p>para o projeto, e a participação dos pais e alunos tem sido cada vez</p><p>maior.</p><p>Além do “Concertando”, desde dezembro de 2009, também como</p><p>parte de atividades extras do projeto, realizamos um trabalho musical</p><p>uma vez por mês no Hospital Universitário Prof. Edgard Santos, da</p><p>UFBA. Trata-se de uma parceria da Escola de Música com o referido</p><p>hospital, que tem o intuito de proporcionar bem-estar aos pacientes</p><p>internados, por meio de trabalhos voluntários. Sendo assim, reunimo-</p><p>nos com as crianças internadas na enfermaria da ala infantil para contar</p><p>histórias musicadas, buscando a participação das crianças de forma</p><p>natural. Os encontros seguem a dinâmica das aulas; no entanto, são</p><p>adaptadas às limitações do espaço e das crianças.</p><p>Planos de aulas</p><p>É nos planos de aulas que os professores podem mostrar suas</p><p>individualidades e colocar em prática seus aprendizados durante o</p><p>processo. Em uma pesquisa, Joan Russell (2005) analisou a estratégia</p><p>de gestão de uma aula utilizada por uma professora de educação</p><p>musical infantil, muito admirada por seus estagiários, sendo considerada</p><p>uma professora-modelo. Em seu texto, além de apresentar a</p><p>metodologia, os resultados e as reflexões, Russell apresentou as</p><p>questões investigadas no estudo. Ao prepararmos uma aula, essas</p><p>questões, que foram aqui adaptadas, podem servir como um</p><p>direcionamento para reflexões a serem realizadas antes e depois de cada</p><p>aula, servindo também como critérios para a avaliação. São elas: “o que</p><p>vou ensinar?”; “que materiais musicais vão ser vivenciados pelas</p><p>crianças?”; “de que maneira esses materiais vão ser experimentados?”;</p><p>“qual vai ser o tópico central enfocado em cada atividade?”; “quais</p><p>serão as relações existentes entre as diversas atividades?”; “como vai se</p><p>estabelecer a sequência das atividades musicais?”; “que habilidades tais</p><p>atividades vão exigir das crianças?”; “quais configurações espaciais</p><p>serão usadas em sala de aula?”; “quais serão os componentes estruturais</p><p>da aula?” (Russell 2005). Partindo de questões como estas, é possível</p><p>visualizar a cena da aula e estabelecer quais serão as expectativas dos</p><p>professores em relação à aula e em relação às respostas das crianças.</p><p>Além disso, ao elaborar o plano de aula, o professor deve ter clareza</p><p>para descrever quais serão o tema, os objetivos gerais e específicos, o</p><p>repertório, os conteúdos, a metodologia, os recursos materiais e os</p><p>critérios de avaliação de cada aula, especificando cada um desses</p><p>pontos.</p><p>As aulas de musicalização infantil seguem, sempre que possível,</p><p>um roteiro de atividades. Cabe a cada professor criar o seu roteiro, mas</p><p>sugerimos que nele sejam incluídas atividades como:</p><p>• cumprimento;</p><p>• atividade de canto;</p><p>• atividade de ritmo;</p><p>• uso de parlendas ou brincadeiras faladas;</p><p>• apreciação musical com repertórios variados;</p><p>• atividade com instrumentos musicais;</p><p>• canção com movimentos contidos e largos, com ou sem</p><p>locomoção;</p><p>• atividades livres;</p><p>• momento da canção das crianças, para que elas possam</p><p>compartilhar as músicas que gostam e que fazem parte do</p><p>seu cotidiano;</p><p>• atividade de notação para as crianças maiores;</p><p>• relaxamento;</p><p>• despedida.</p><p>Para as aulas com os bebês, sugerimos que haja uma rotina, e que a</p><p>estrutura da aula seja mantida durante todo o processo, podendo variar</p><p>quando houver necessidade. Lembramos que não há necessidade de</p><p>incluir todas as atividades listadas em todos os encontros. Com as</p><p>crianças maiores, essa estrutura pode ser mais flexível e variada a cada</p><p>aula. É importante que as atividades sejam intercaladas por elos</p><p>conceituais ou temáticos (Russell 2005), ou seja, que as atividades</p><p>tenham conexão entre si e que as transições sejam feitas de forma suave</p><p>e coerente com os objetivos da aula.</p><p>Sugerimos que o repertório seja variado e que contemple obras de</p><p>música erudita, popular, regional, do cancioneiro infantil, incluindo</p><p>músicas que sugerem movimentos baseados em suas letras, cantigas de</p><p>roda, canções de ninar, rimas, parlendas, brincos etc. Além disso,</p><p>aconselhamos a escuta de obras musicais de diversos gêneros, estilos,</p><p>épocas e culturas, tanto da produção musical brasileira quanto de outros</p><p>povos e países, conforme sugere o Referencial curricular nacional para</p><p>a educação infantil (Brasil 1998).</p><p>Os materiais usualmente utilizados nas aulas incluem instrumentos</p><p>de percussão, como maracas, ovinhos, pandeiros, caxixis, triângulos</p><p>etc., bem como materiais alternativos, como baldes, lenços, bolas,</p><p>fantoches, e assim por diante. Em virtude da flexibilidade sugerida ao</p><p>professor,</p><p>outros materiais podem ser utilizados, de acordo com a</p><p>necessidade e a aquisição deles. A escolha desses materiais está</p><p>relacionada à sua qualidade sonora. De acordo com Feres (1998), é</p><p>necessário também pensar na segurança da criança ao escolher os</p><p>materiais a serem utilizados, preferindo aqueles que possam ser</p><p>higienizados com facilidade e os que sejam fabricados com materiais</p><p>resistentes.</p><p>Reflexões e sugestões didáticas</p><p>Aulas para crianças podem acontecer nos mais diferentes contextos:</p><p>na universidade, em cursos de extensão, na escola regular, na creche, no</p><p>berçário, na comunidade, e assim por diante. Independentemente do</p><p>contexto, questões de cunho didático normalmente trazem algumas</p><p>semelhanças. Por isso, além da apresentação do planejamento e do</p><p>plano de aula aqui realizada, algumas sugestões podem ser úteis a</p><p>contextos distintos:</p><p>– Repertório: é importante que o repertório seja variado e</p><p>que haja equilíbrio entre as músicas novas e as músicas já</p><p>aprendidas pelas crianças em outras aulas. Sugere-se uma</p><p>música nova por aula, no mínimo. No entanto, é muito</p><p>importante a retomada das canções e das atividades que as</p><p>crianças já sabem, pois elas adoram a sensação de</p><p>conhecer e de reconhecer determinada canção ou</p><p>determinado repertório. Além disso, é de extrema</p><p>importância que o professor ensaie as músicas antes de</p><p>ensiná-las para as crianças, passando segurança e evitando</p><p>canções desafinadas e com erros nas letras;</p><p>– Atividades extras: é importante incluir no plano de aula</p><p>algumas atividades extras. As crianças às vezes</p><p>apresentam respostas inusitadas, e cabe ao professor saber</p><p>contornar a situação. Se porventura nada que está no plano</p><p>de aula funcionar, o professor sempre terá algumas “cartas</p><p>na manga”;</p><p>– Conhecer o grupo: cada turma apresenta suas</p><p>particularidades. É comum que o mesmo plano de aula</p><p>seja usado em mais de um grupo. No entanto, as respostas</p><p>das crianças são distintas e únicas. Sendo assim, o</p><p>professor deve desenvolver habilidades de adaptação e</p><p>liderança em qualquer grupo, valendo-se de flexibilidade</p><p>pedagógica. É necessário que o professor tenha</p><p>consciência do planejamento e do que ele espera como</p><p>resultado, ressaltando a relação entre o espontâneo e o</p><p>consciente e entre o planejado e o improvisado. Para evitar</p><p>possíveis frustrações, tanto para o educador musical</p><p>quanto para o aluno, é preciso que o professor esteja</p><p>atento às capacidades de suas crianças, de acordo com o</p><p>desenvolvimento musical, motor e cognitivo delas.</p><p>Segundo Paulo Freire (1996), devemos conhecer as</p><p>técnicas necessárias ao saber o que vamos ensinar, mas</p><p>também precisamos conhecer os grupos que vão ser</p><p>ensinados, bem como entender como eles compreendem o</p><p>mundo;</p><p>– Saber ouvir: normalmente as crianças gostam muito de</p><p>contar histórias. Elas estão sempre fazendo conexões entre</p><p>o que ouvem na aula e suas experiências. É extremamente</p><p>relevante que o professor dê chance para as crianças</p><p>falarem, mas sem perder a autoridade e o controle da</p><p>situação. O mesmo acontece com as experiências e</p><p>respostas musicais. É importante a criança perceber que</p><p>está sendo ouvida, dando ao professor a chance de incluir</p><p>suas respostas às atividades propostas;</p><p>– Aproveitar as atividades ao máximo: todas as atividades</p><p>devem conter introdução, desenvolvimento e conclusão.</p><p>Cabe ao professor definir o andamento da atividade ainda</p><p>no planejamento da aula, de acordo com o seu objetivo</p><p>principal. É importante que, a cada repetição, a música</p><p>traga um elemento novo, garantindo a atenção e a</p><p>curiosidade das crianças. Normalmente são elementos</p><p>simples, como mudar o timbre vocal, o andamento ou a</p><p>intensidade, ou inserir algum instrumento ou movimentos,</p><p>e assim por diante. Também é necessário sentir as</p><p>respostas das crianças e concluir a atividade antes que</p><p>percam o interesse por ela;</p><p>– Comunicação clara: é dever do professor estabelecer uma</p><p>comunicação eficiente com os seus alunos e é necessário</p><p>que os alunos possam compreender o que está sendo</p><p>proposto em cada atividade. Em primeiro lugar, o</p><p>professor deve estar confiante do que deseja propor e ser</p><p>assertivo. No ensino de música para crianças, as ações são</p><p>mais importantes que as palavras. Portanto, sugere-se que</p><p>os professores estabeleçam uma comunicação musical,</p><p>com expressões faciais e corporais exageradas. Nas turmas</p><p>com acompanhantes, é necessário que o professor consiga</p><p>estabelecer também uma boa comunicação e uma boa</p><p>relação com os pais, permitindo que eles compreendam e</p><p>colaborem com o processo de musicalização de seus</p><p>filhos, já que são eles que passam a maior parte do tempo</p><p>com as crianças. O mesmo acontece nas escolas, em</p><p>relação à comunicação com os professores de classe das</p><p>crianças. É importante que o professor de música</p><p>estabeleça uma parceria com as outras pessoas envolvidas</p><p>no processo educativo das crianças;</p><p>– Elos conceituais ou temáticos: conforme mencionado</p><p>anteriormente, sugere-se que as atividades se relacionem</p><p>por meio de elos conceituais ou temáticos (Russell 2005).</p><p>Isso garante que a aula tenha unidade e que as atividades</p><p>dialoguem entre si. Podemos apontar algumas</p><p>possibilidades, como o uso de histórias ou conexões,</p><p>utilizando-se de conteúdos musicais, por exemplo. Porém,</p><p>cabe ao professor identificar a melhor estratégia, sentindo-</p><p>se confortável ao aplicá-la. O importante é que a aula seja</p><p>lúdica, interessante e coerente, do início ao fim;</p><p>– Dinamicidade: habitualmente as aulas de música para</p><p>crianças contêm diversas atividades, com uma média de</p><p>10 a 14 canções por aula, dependendo da idade e das</p><p>respostas dos alunos. Portanto, é necessário que o</p><p>professor esteja preparado para liderar todas as canções de</p><p>forma dinâmica, ágil e enérgica. As transições entre as</p><p>atividades, por meio dos elos temáticos ou conceituais,</p><p>devem ser realizadas a tempo de não permitirem a</p><p>dispersão do grupo. Uma sugestão é incluir durante a aula</p><p>algumas atividades que exijam maior concentração e foco,</p><p>e que elas sejam intercaladas com as atividades mais livres</p><p>e descontraídas;</p><p>– Exigir a participação ativa dos pais: é importante que, nas</p><p>turmas com acompanhantes, o professor exija a</p><p>participação de todas as pessoas presentes nas aulas. É</p><p>comum que algumas crianças às vezes não queiram</p><p>participar das atividades, preferindo apenas observar.</p><p>Nesses casos, é necessário que os adultos acompanhantes</p><p>realizem as atividades sugeridas, seja cantando, dançando</p><p>ou tocando, ainda que suas crianças prefiram ficar</p><p>sentadas ou quietas. Ao perceber que todos estão</p><p>participando, algumas crianças se sentem motivadas a</p><p>participar também. Mas deve-se ter em mente que algumas</p><p>crianças preferem apenas observar, e que essa resposta é</p><p>normal e a criança aprenderá da mesma forma. É comum</p><p>alguns pais relatarem que suas crianças, mesmo não</p><p>participando ativamente das aulas, quando estão no</p><p>ambiente familiar, reproduzem tudo o que foi realizado. É</p><p>preciso também que os adultos tenham consciência de que</p><p>não devem falar com as crianças durante as atividades,</p><p>lembrando que a forma mais eficaz de convidar as</p><p>crianças a participar é realizando as atividades, já que elas</p><p>também aprendem por imitação. O mesmo acontece nas</p><p>escolas, quando os professores de classe estão presentes</p><p>nas aulas. É importante que o professor de música</p><p>converse com os professores sobre essas questões, para</p><p>que eles sejam parceiros no processo de musicalização.</p><p>Essas e outras sugestões foram construídas a partir da experiência</p><p>do grupo de professores do projeto, por meio de experimentações e</p><p>observações. No entanto, temos consciência das particularidades de</p><p>cada grupo e de cada professor. Sendo assim, é necessário refletir sobre</p><p>o que é válido para cada contexto.</p><p>Considerações finais</p><p>Vimos que a extensão universitária pode exercer um papel de</p><p>grande relevância para a formação de professores para a educação</p><p>musical infantil, pois permite que os licenciandos possam atuar como</p><p>professores antes mesmo do estágio obrigatório, num trabalho</p><p>fundamentado, organizado e supervisionado. Muitos alunos que tiveram</p><p>a oportunidade de lecionar em</p><p>projetos como este afirmam que suas</p><p>práticas posteriores, em escolas regulares ou especializadas, têm reflexo</p><p>direto de suas experiências na extensão. É importante que as atividades</p><p>extensionistas sejam complementares ao currículo dos cursos de</p><p>licenciatura, e que o aluno que deseja atuar com educação infantil possa</p><p>ter um espaço dentro da universidade para se desenvolver</p><p>pedagogicamente por meio da prática.</p><p>Além da formação de professores, devemos lembrar que os projetos</p><p>de extensão têm como função a interação entre a universidade e a</p><p>comunidade. Portanto, projetos como o de musicalização infantil têm</p><p>como uma de suas finalidades a prática musical com a comunidade.</p><p>Koopman (2007) descreve três características centrais da música de</p><p>comunidade: o fazer musical colaborativo, o desenvolvimento da</p><p>comunidade e o crescimento pessoal. O autor diz que a prática musical</p><p>em comunidade permite que as pessoas se envolvam com atividades</p><p>musicais coletivamente, além de terem como um de seus objetivos o</p><p>bem-estar pessoal, ajudando as pessoas a compartilharem suas</p><p>experiências e conhecerem umas às outras. Podemos, finalmente,</p><p>identificar essas características na comunidade, por meio do projeto</p><p>“Musicalização infantil”, da UFBA, considerando que os pais e as</p><p>crianças estão se desenvolvendo musicalmente e estabelecendo vínculos</p><p>uns com os outros, por meio da prática musical.</p><p>Concluímos, portanto, que é necessário muita reflexão e trabalho</p><p>para que a cena seja criada, afirmando que realmente há muito mais</p><p>nesse cenário do que está explícito em uma simples aula de música para</p><p>crianças na universidade.</p><p>... A aula acabou, diga tchau, mas não saia só/abra um</p><p>sorriso, calce o sapato e dê um abraço na “pró”!</p><p>Referências bibliográficas</p><p>BRASIL (1996). Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da</p><p>educação nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, n. 248, 23/dez.</p><p>Brasília.</p><p>________ (1998). Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.</p><p>Referencial curricular nacional para a educação infantil. Brasília: MEC/SEF, 3 v.</p><p>BROOCK, A.M.V. (2007). “A influência da música no comportamento de crianças</p><p>participantes do projeto de musicalização para bebês na UFBA”. Anais do III Simpósio</p><p>Internacional de Cognição e Artes Musicais. Salvador, pp. 651-657.</p><p>________ (2009). “A abordagem Pontes na musicalização para crianças entre 0 e 2 anos de</p><p>idade”. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-graduação em Música/Educação</p><p>Musical. Salvador: Universidade Federal da Bahia.</p><p>________ (2011). “Musicalização infantil na UFBA”. In: SANTIAGO, D.; BROOCK, A. e</p><p>CARVALHO, T. (orgs.). Educação musical infantil. Salvador: PPGMUS da UFBA, pp.</p><p>87-99.</p><p>FERES, J.S.M. (1998). Bebê, música e movimento. Jundiaí: J.S.M. Feres.</p><p>FORPROEX (2001). Plano nacional de extensão universitária. Ilhéus: Editus. (Extensão</p><p>Universitária, v. 1)</p><p>FREIRE, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São</p><p>Paulo: Paz e Terra.</p><p>FREIRE, R.J.D. (2008). “Implementação e estruturação de um projeto de musicalização</p><p>infantil: Relato de experiência”. Anais do XVII Encontro Nacional da Abem. São Paulo.</p><p>HASTON, W. e RUSSELL, J. (2011). “Turning into teachers: Influences of authentic context</p><p>learning experiences on occupational identity development of preservice music teachers”.</p><p>Journal of Research in Music Education, 20/9. Sage Publications.</p><p>ILARI, B. (2005). “A música e o desenvolvimento da mente no início da vida: Investigação,</p><p>fatos e mitos”. Anais do I Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais. Curitiba,</p><p>pp. 54-62.</p><p>KOOPMAN, C. (2007). “Community music as music education: On the educational potential</p><p>of community music”. International Journal of Music Education, v. 25, n. 2. Sage</p><p>Publications.</p><p>MATEIRO, T. (2011). “A formação profissional para a educação musical infantil: Algumas</p><p>considerações”. In: SANTIAGO, D.; BROOCK, A. e CARVALHO, T. (orgs.). Educação</p><p>musical infantil. Salvador: PPGMUS da UFBA, pp. 111-124.</p><p>OLIVEIRA, A. de J. (1992). “Escola de música da Universidade Federal da Bahia: Cursos de</p><p>Extensão – Salvador – Bahia”. Revista da Abem, n. 1. Salvador, pp. 53-56.</p><p>RUSSELL, J. (2005). “Estrutura, conteúdo e andamento em uma aula de música na 1ª série do</p><p>ensino fundamental: Um estudo de caso sobre gestão de sala de aula”. Revista da Abem, v.</p><p>12, mar. Porto Alegre, pp. 73-88.</p><p>7</p><p>PLANEJAMENTO NA MUSICALIZAÇÃO</p><p>INFANTIL</p><p>Vivian Agnolo Madalozzo</p><p>Tiago Madalozzo</p><p>São diversos os fatores que determinam o processo de planejamento</p><p>de aulas para a musicalização infantil. No entanto, não pretendemos</p><p>esgotar ou enumerar todos eles, visto que muitos são culturais e</p><p>distinguem-se pela formação do educador. Discutiremos neste capítulo</p><p>as questões principais e direcionais que nós, educadores musicais,</p><p>consideramos como fundamentais para um bom planejamento.</p><p>Entendemos musicalização como uma abordagem específica de</p><p>educação musical, a qual é definida no terceiro volume do Referencial</p><p>curricular nacional para a educação infantil, ou seja, por meio de</p><p>canções, jogos, danças, exercícios de movimento, relaxamento, prática</p><p>instrumental, improvisação e audição, certas noções básicas de ritmo,</p><p>melodia, compasso, métrica, som, tonalidade, leitura e escrita musicais,</p><p>que são apresentados à criança, sempre se reportando ao universo lúdico</p><p>da infância – portanto, por meio do jogo musical (Brasil 1998). Dessa</p><p>forma, além de comumente empregada em escolas de ensino de música</p><p>para crianças, a abordagem pode ser adaptada em diferentes contextos –</p><p>mesmo no ensino regular, como comentaremos ao final deste capítulo.</p><p>Como no RCN, Maura Penna (2010) comenta que a estimulação</p><p>musical precoce em crianças tem por objetivo dotá-las de elementos</p><p>característicos da música de determinada cultura, desenvolvendo nelas</p><p>não só a percepção auditiva, mas também o movimento corporal e a</p><p>expressão verbal, para que elas reajam a esses estímulos. Mesmo que</p><p>tudo seja apresentado e aprendido de forma “implícita” – por exemplo,</p><p>chacoalhando caxixis para fazê-las entender o conceito de pulso de</p><p>forma ativa –, é justamente pelo aprendizado desses conceitos básicos</p><p>que se busca formar indivíduos que, mais tarde, possam conhecer e</p><p>expressar-se com música, sendo capazes de emitir um juízo de valor</p><p>sobre aquilo que produzem e ouvem.</p><p>Sendo o nosso foco a musicalização infantil, destacamos o papel do</p><p>jogo musical no processo de musicalização, o que se deve ao fator</p><p>fundamental de que a brincadeira é uma espécie de interface natural da</p><p>criança com o mundo (Joly 2003). Nesse sentido, é importante destacar</p><p>aquilo que Tizuko Kishimoto (1994) discute como “paradoxo do jogo</p><p>educativo”, em que se apresentam simultaneamente duas funções que</p><p>parecem antagônicas: a função lúdica e a função educativa. Por um</p><p>lado, o jogo serve para propiciar a diversão e o prazer; por outro, deve</p><p>ter um objetivo pedagógico claro. Se o equilíbrio entre as duas funções</p><p>não for atingido, ou não haverá ensino, apenas jogo; ou não haverá</p><p>hedonismo, apenas ensino. No caso da musicalização, é fundamental</p><p>tomar cuidado para não se perder de vista o objetivo pedagógico em</p><p>todas as atividades propostas.</p><p>Neste capítulo, tomamos como base para discussão um modelo de</p><p>plano de aula construído de forma coletiva ao longo de sete anos de</p><p>atuação de graduandos e ex-alunos do curso de licenciatura em música</p><p>da Universidade Federal do Paraná em um curso de extensão: o curso de</p><p>musicalização infantil da UFPR. Em primeiro lugar, definimos a</p><p>estrutura que permitiu a idealização desse modelo; em seguida,</p><p>apresentamos o modelo de plano de aula, para finalmente analisá-lo de</p><p>acordo com uma série de pensamentos teóricos que vêm sendo a base de</p><p>discussões em nosso trabalho com musicalização infantil ao longo dos</p><p>anos.</p><p>O curso de musicalização infantil da UFPR</p><p>Atuando na comunidade de Curitiba (PR) entre 2003 e 2010, o</p><p>curso de extensão universitária foi concebido como um laboratório-</p><p>escola para a prática dos acadêmicos de licenciatura em música que, na</p><p>época, não tinham número relevante de opções para estágio em</p><p>educação infantil.</p><p>Ao longo dos anos, a estrutura física e humana do curso se ampliou:</p><p>de 25 alunos – crianças da comunidade curitibana – e cinco professores</p><p>estagiários – discentes do curso de licenciatura – atuando em uma sala</p><p>de aula, em 2003, para 300 alunos atendidos e mais de 100 em lista de</p><p>espera, e 30 instrutores divididos em 19 turmas, em 2010.</p><p>O sistema de ensino-aprendizagem entre os professores estagiários</p><p>é ponto crucial na estrutura logística que se implantou desde o início.</p><p>Em cada sala de aula, um grupo de três professores era responsável pela</p><p>turma, e, dessa combinação de professores mais experientes com novos</p><p>professores, promovia-se um fluxo de ideias, conhecimento, repertório e</p><p>experiência dos mais valiosos, num processo de aprendizagem por</p><p>pares, ou peer-learning system, conforme apontado por Beatriz Ilari,</p><p>criadora e primeira coordenadora do projeto (Madalozzo et al. 2008;</p><p>Ilari 2010).</p><p>A cada novo semestre, o grupo de professores se reunia, definindo</p><p>um tema gerador para as aulas de todas as turmas – não só uma espécie</p><p>de “fio condutor” para os planos de aula, mas também culminando na</p><p>realização de uma aula pública de encerramento, no final do período,</p><p>em que cada turma apresentava músicas e atividades trabalhadas ao</p><p>longo do semestre e ligadas pelo tema geral. A partir disso, os trios</p><p>organizavam o planejamento semestral de suas turmas e passavam a se</p><p>reunir semanalmente para elaborar cada plano de aula.</p><p>Com o decorrer das atividades do curso, após uma série de reuniões</p><p>para troca de ideias e repertórios entre as turmas de professores,</p><p>constatou-se a emergência de um modelo de plano de aula que foi</p><p>autoconstruído. Embora uma versão-padrão desse modelo tenha sido</p><p>adotada por todos os professores do curso a partir de 2009, alguns anos</p><p>antes seria impossível apontar “o autor” do modelo, uma vez que a</p><p>construção foi coletiva e, dessa forma, resultou em um produto original</p><p>e possível apenas com a interferência de diferentes modos de ensinar e</p><p>entender o curso, decorrentes das constantes avaliações do dia a dia de</p><p>sala de aula.</p><p>Para compreender a importância dessa atuação coletiva, é</p><p>importante destacar que, além dos trios de professores, o organograma</p><p>do curso apresentava mais dois níveis, constituindo-se da seguinte</p><p>forma: a) coordenador (professor do Departamento de Artes da UFPR,</p><p>proponente do projeto); b) monitores (três instrutores que se dispunham</p><p>a organizar as questões burocráticas de matrículas, a divisão de turmas,</p><p>os contatos com os pais dos alunos e a organização da aula pública de</p><p>encerramento); e c) professores estagiários (discentes do curso de</p><p>licenciatura organizados em trios) (Ilari 2010).</p><p>A tomada de decisões pedagógicas era coletiva, porém</p><p>supervisionada: acontecia no âmbito do grupo (para a estruturação do</p><p>tema gerador do semestre e a troca de ideias entre turmas de mesma</p><p>faixa etária) e no contexto de cada turma, pelo sistema de trocas entre o</p><p>trio de professores estagiários. No entanto, nada disso deixava de ser</p><p>acompanhado muito de perto pelo coordenador do curso, que</p><p>participava do projeto ativamente, visitando as aulas, tecendo</p><p>comentários para os trios e coordenando todos os momentos de reunião</p><p>do grupo.</p><p>Por esse motivo, podemos resgatar o conceito de community of</p><p>practice e aplicá-lo ao curso da UFPR, pois entendemos que entre os</p><p>professores havia um engajamento mútuo, mas não homogêneo: cada</p><p>membro do trio contribuía para a prática de sala de aula com diferentes</p><p>graus de envolvimento, conhecimento e participação. É assim que</p><p>emergem questões, como a de liderança e de real envolvimento dos</p><p>participantes para um mesmo fim pedagógico, conforme analisadas por</p><p>Ilari (2010). Essa estrutura é importante ao analisarmos o planejamento,</p><p>porque os professores estagiários tinham livre-arbítrio para organizar o</p><p>semestre de sua turma da forma como achassem mais relevante,</p><p>adaptando as sugestões do grupo e do coordenador ao contexto de suas</p><p>turmas.</p><p>Em relato de experiências sobre a organização do curso de</p><p>musicalização infantil da Universidade de Brasília, Ricardo e Sandra</p><p>Freire (2008) afirmam que um planejamento construído no diálogo</p><p>entre os professores, portanto integrativo e flexível, aproveita melhor as</p><p>potencialidades de cada um desses agentes. Assim, planejar é uma</p><p>construção colaborativa que inclui e integra as características de cada</p><p>professor, aproveitando a diversidade de repertórios, propostas, modos</p><p>de pensar e agir em sala de aula.</p><p>A forma de agir em sala de aula no curso de musicalização da</p><p>UFPR era tão diversa, mas ao mesmo tempo tão coesa, que possibilitou</p><p>o surgimento do modelo de plano de aula comum, que será apresentado</p><p>em seguida.</p><p>O modelo de plano de aula do curso de musicalização infantil da</p><p>UFPR</p><p>O modelo que tomamos como base é dividido em cinco seções: a)</p><p>objetivos; b) conteúdos; c) procedimentos; d) atividades extras;</p><p>e) observações.</p><p>No estabelecimento dos objetivos, cabe fazer um destaque como</p><p>complemento ao que afirmamos sobre o jogo educativo. Tratando-se de</p><p>um curso de educação musical para crianças, a função educativa deve</p><p>estar centrada em um objetivo musical. Ainda que essa informação</p><p>pareça redundante, é importante esclarecermos que, no ensino de</p><p>música, o principal objetivo deve ser a aproximação do aluno com a</p><p>música, por meio da vivência musical (Hentschke e Del Ben 2003),</p><p>tomando como foco o fazer musical. Portanto, entendemos a formação</p><p>musical como um fim em si mesmo, e não como um meio de</p><p>desenvolvimento de outro objetivo extramusical.</p><p>Em outras palavras, ainda que seja evidente que a formação em um</p><p>curso de musicalização contribui para o desenvolvimento de outras</p><p>habilidades não musicais, o foco, na aula, deve ser a formação musical,</p><p>e a função lúdica dos jogos musicais deve servir de suporte para essa</p><p>função educativa, não se deixando cair no perigo de que as aulas se</p><p>tornem momentos de simples “recreação musical”. Por isso, ao listar</p><p>uma série de conteúdos para o plano de aula, o professor deve estar</p><p>ciente das potencialidades de sua turma, ajustando as atividades para</p><p>que o ensino seja prazeroso e eficiente.</p><p>A partir da reflexão sobre os objetivos da aula, aplicam-se os</p><p>conteúdos musicais em uma lista de procedimentos ou simplesmente</p><p>atividades, de forma que a “aula” pode ser definida como uma sucessão</p><p>de atividades musicais em que certos elementos são constantes, para</p><p>garantir coesão, e outros são contrastantes, para haver variedade de</p><p>abordagens – o que discutiremos na próxima seção.</p><p>A atuação em sala de aula no curso de musicalização da UFPR</p><p>mostrou que a organização das atividades em tabelas é a forma mais</p><p>eficiente para a consulta do plano durante o desenvolvimento da aula. A</p><p>tabela é composta por linhas, sendo que cada uma contém o registro de</p><p>uma atividade diferente, e por colunas com as seguintes informações:</p><p>tipo de atividade (que comentaremos a seguir), material musical e</p><p>tópicos centrais, tempo médio de duração, principal condutor da</p><p>atividade (para o caso do trabalho em trio) e referências.</p><p>Além da lista de atividades da aula, o plano contém uma lista</p><p>menor com as atividades extras, a serem incluídas na aula caso haja</p><p>necessidade – outra estratégia para garantir coesão.</p><p>Por fim, há um espaço para o registro de observações gerais sobre a</p><p>aula, a fim de que o grupo de professores possa mais tarde discutir o</p><p>comportamento dos alunos em face das atividades e repensar o</p><p>planejamento das aulas seguintes – dessa forma, esse campo constitui a</p><p>base para reflexões sobre a avaliação da aula.</p><p>De modo conclusivo, um semestre de aulas de musicalização pode</p><p>ser pensado estabelecendo-se: a) uma ideia geral de tema, a ser</p><p>trabalhada durante o semestre; b) um eixo temático musical baseado na</p><p>ideia, que vai unir todas as aulas; c) as atividades de cada aula e sua</p><p>organização nos planos de aula; e d) os critérios para avaliação das</p><p>aulas e do semestre, sendo que a avaliação deve estar estritamente</p><p>ligada ao planejamento, e os critérios</p><p>ao que eles seriam capazes de vivenciar por meio da</p><p>performance e da composição. Na apreciação, é possível experimentar</p><p>uma gama interminável de músicas em toda a sua inteireza e fluidez, em</p><p>sua multiplicidade de elaborações expressivas e estruturais.</p><p>Por isso a escolha do repertório é crucial, pois as próprias peças</p><p>podem instigar caminhos de escuta, provocar confrontos com o</p><p>desconhecido, promover descobertas e impulsionar o desenvolvimento.</p><p>Inversamente, as oportunidades de escuta serão subaproveitadas se</p><p>oferecerem um repertório limitado, tendencioso ou excessivamente</p><p>simples, de natureza vernacular, isto é, previsível, convencional,</p><p>estereotipado. É equivocado pensar que se deve oferecer uma dieta</p><p>musical “manipulativa” a alunos que aparentem estar no nível</p><p>manipulativo ou esperar que vençam o vernacular para oferecer-lhes um</p><p>repertório especulativo. Desde as primeiras vivências, é fundamental</p><p>experimentar música em toda a sua riqueza, seu fluxo, suas surpresas e</p><p>sensações. Diferentes culturas, gostos, épocas e estilos são excelentes</p><p>fontes de ideias e significados musicais. Cada criança sorverá a escuta a</p><p>seu modo, conforme seu amadurecimento cognitivo e musical lhe</p><p>permitirem.</p><p>Este estudo concentra-se nos anos iniciais da educação básica,</p><p>equivalentes aos anos finais da educação infantil (zero a oito anos,</p><p>segundo definição internacional da Organização das Nações Unidas</p><p>para a</p><p>Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco). Essa faixa etária se</p><p>configura como o ápice do interesse pelo caráter expressivo, compatível</p><p>com os níveis pessoal e vernacular. Alguns estudos têm encontrado</p><p>indícios desses níveis precocemente, enquanto outros têm localizado os</p><p>níveis especulativo e idiomático já nessa faixa etária (Swanwick 1994;</p><p>França Silva 1998; Fonseca 2005; Carneiro 2006). Essas variações</p><p>podem ser decorrentes de um conjunto de fatores: a natureza e a</p><p>intensidade dos estímulos do ambiente, a predisposição da criança e o</p><p>repertório vivenciado por ela. Peças com o caráter expressivo muito</p><p>acentuado podem evocar respostas nessa direção, assim como um</p><p>insistente rondó pode instigar a percepção da forma.</p><p>Os procedimentos metodológicos de coleta e análise dos dados</p><p>também podem afetar os resultados. Um dos nossos estudos revelou que</p><p>o direcionamento dado pelo professor interfere no resultado da</p><p>apreciação musical, oportunizando uma descoberta assistida e</p><p>conduzindo os alunos a um nível de compreensão musical mais</p><p>avançado (Barbosa 2009; França e Barbosa 2009). Quando</p><p>questionados especificamente sobre a estrutura das peças ouvidas,</p><p>crianças de sete a dez anos de idade revelaram compreensão (ainda que</p><p>intuitiva) da forma musical. Esses achados são consistentes com o</p><p>conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), de Lev</p><p>Vygotsky (1984), constructo que representa a distância entre o nível de</p><p>desenvolvimento apresentado pela criança de maneira independente e o</p><p>nível de desenvolvimento potencial observado quando ela conta com a</p><p>orientação de outra pessoa mais capaz. Se, por um lado, a educação</p><p>musical deve permitir que o impulso autogerado para a exploração</p><p>intuitiva seja liberado, por outro, deve também promover uma</p><p>experiência musical rica e estimulante, para que a criança tenha a</p><p>oportunidade de atingir níveis mais profundos de experiência musical.</p><p>O objetivo da atividade de apreciação musical deste estudo, relatada</p><p>no início deste artigo, era provocar o confronto entre caracterizações</p><p>expressivas extremas. Ela foi realizada com 105 alunos do 3º ano do</p><p>ensino fundamental de duas escolas, ambas de Belo Horizonte. A</p><p>primeira pertence à rede pública e não conta com música no currículo,</p><p>embora projetos musicais ocorram esporadicamente. A segunda trata de</p><p>uma escola particular na qual a música se tornou disciplina curricular há</p><p>quatro anos.</p><p>A análise das respostas das crianças das duas escolas (pública, sem</p><p>aula de música, e particular, com música no currículo) tomadas em</p><p>conjunto, apresentou os seguintes números (x2 = 197,3; p</p><p>de avaliação, aos objetivos deste</p><p>último. Além disso, a avaliação deve ser processual, retroalimentando o</p><p>planejamento ao longo de todo o período.</p><p>Análise do modelo de plano de aula segundo os conceitos de</p><p>estrutura, conteúdo e andamento</p><p>A pesquisadora canadense Joan Russell publicou, em 2005, um</p><p>trabalho em que descreve uma aula de música cuja abordagem é a</p><p>musicalização. A partir da prática, portanto, a autora estabelece três</p><p>conceitos teóricos para analisar a aula: estrutura, conteúdo e andamento.</p><p>No texto de Russell, esses três conceitos foram definidos para amparar a</p><p>análise “pós-aula”, a partir da prática; já no nosso caso, tomaremos cada</p><p>um deles teoricamente para avaliar a proposta do plano de aula</p><p>apresentado.</p><p>Antes, porém, cabe mencionar que a gênese do modelo foi</p><p>justamente a estrutura das aulas de música do curso de musicalização da</p><p>UFPR. Inicialmente os professores costumavam anotar os</p><p>procedimentos – a ordem das atividades – em cadernos. Com a troca de</p><p>ideias entre os trios, a estrutura das aulas começou a tomar forma, com</p><p>início, meio e fim, originando um modelo estrutural básico.</p><p>Apresentamos a seguir um quadro em que se resume a variedade de</p><p>tópicos abordados em aula.</p><p>A estrutura básica da aula contempla inicialmente uma seção de</p><p>saudação, em que os professores recebem os alunos de forma musical.</p><p>Isto é, entoam-se canções com a temática de acolhimento para a aula de</p><p>música, muitas vezes com a menção dos nomes das crianças e com o</p><p>uso de gestual que possibilite a socialização do grupo.</p><p>Tabela 1: Tipos de atividades – Os tópicos iniciais</p><p>que deram origem a um plano comum</p><p>Estrutura da aula Tipo de atividade</p><p>Início</p><p>Saudação /</p><p>Limpeza de ouvidos</p><p>Meio</p><p>Escala musical</p><p>Contorno melódico</p><p>Percussão instrumental</p><p>Gestual</p><p>Percussão corporal</p><p>Dança</p><p>Apreciação ativa</p><p>Apresentação de instrumento musical</p><p>Fim</p><p>Relaxamento</p><p>Apreciação concentrada</p><p>Despedida</p><p>Estrutura</p><p>Essa saudação musical vai ao encontro daquilo que R. Murray</p><p>Schafer define como “limpeza de ouvidos” (1976), ou seja, atividades</p><p>com as quais se tem por objetivo criar um pequeno momento de</p><p>separação entre as atividades cotidianas das crianças, e mesmo a</p><p>paisagem sonora externa ao ambiente da aula de música, e a aula,</p><p>propriamente, que vai começar. Em outras palavras, é o marco musical</p><p>de início do período de aula, em que o professor busca atrair a</p><p>concentração das crianças para os conteúdos musicais a serem</p><p>abordados.</p><p>Em seguida, para trabalhar com um conteúdo musical dos mais</p><p>importantes, a melodia, passa-se às atividades que chamamos de</p><p>contorno melódico, isto é, a entoação da escala musical e de canções</p><p>que remetam à propriedade sonora da altura.</p><p>Com as crianças de zero a quatro anos, trabalha-se colocando as</p><p>mãos nos pés ao cantar a primeira nota da escala, subindo até a cabeça,</p><p>acompanhando as notas da oitava. Costumamos executar essa tarefa</p><p>com os seguintes gestos: dó grave – pés; ré – pernas; mi – joelhos; fá –</p><p>coxas; sol – barriga; lá – peito; si – ombros; dó agudo – cabeça. Em</p><p>seguida, podem-se trabalhar os conceitos de staccato, legato, arpejo e</p><p>oitava, entre outros, de forma progressiva, ao se fazer o movimento de</p><p>sobe e desce com os dedos em forma de pinça (staccato), as mãos</p><p>espalmadas (legato), subindo apenas nas notas dó grave – mi – sol – dó</p><p>agudo (arpejo) ou cantando o dó grave e o dó agudo repetidamente</p><p>(oitava).</p><p>Com os alunos de mais de quatro anos, podem-se trabalhar outras</p><p>escalas, como a menor (pedindo para que as crianças “escorreguem” as</p><p>mãos pouco abaixo dos joelhos na nota mi para verificar a diferença no</p><p>resultado sonoro), e mesmo utilizar outros recursos, como a manossolfa,</p><p>elemento básico do método musical ativo de Zoltán Kodály, adaptado</p><p>de John Curwen (educador que publicou em 1858 os gestos de mão),</p><p>em que cada altura tem um gesto-padrão diferente.</p><p>As canções para se trabalhar nessa seção são aquelas em que o</p><p>parâmetro da altura fica evidente, seja em contornos melódicos</p><p>ascendentes ou descendentes, ou mesmo em músicas em que se</p><p>mencione o nome das notas da escala. O importante é que as crianças</p><p>vivenciem o conceito de altura de forma lúdica.</p><p>A partir do final da primeira seção da aula, com saudação e</p><p>contorno melódico, as outras atividades – a aula propriamente dita – são</p><p>organizadas de acordo com a variedade de possibilidades exposta na</p><p>Tabela 1, nem sempre na mesma ordem, e não necessariamente</p><p>utilizando toda essa variedade em cada aula.[18] Essa parte será</p><p>analisada no próximo tópico deste capítulo.</p><p>Já as atividades finais têm objetivo musical semelhante às iniciais:</p><p>marcarem musicalmente o término da aula. São duas: o relaxamento e a</p><p>despedida. A primeira trata de um momento de apreciação musical</p><p>concentrada – em oposição às audições ativas que mencionaremos em</p><p>seguida –, com o objetivo de focar a atenção das crianças</p><p>exclusivamente para o que vão ouvir. Nesse sentido, é comum utilizar</p><p>recursos materiais, como pequenos lenços ou bolas plásticas, para que</p><p>as crianças se deitem no chão ou para que os pais façam massagem</p><p>enquanto escutam o trecho musical proposto, de modo geral atentando</p><p>para elementos que o professor possa ter questionado antes da audição,</p><p>como: quais instrumentos tocam no trecho; o que a música pretende</p><p>representar (no caso de um programa); quantas vezes se ouve um</p><p>determinado instrumento ou frase musical etc. Por fim, cantam-se</p><p>músicas de despedida para marcar o final da aula.</p><p>Dessa forma, analisando a estrutura global da aula, há a oposição de</p><p>dois momentos intercalados pelas atividades principais: 1) limpeza de</p><p>ouvidos e contorno melódico; e 2) relaxamento e despedida, em</p><p>analogia ao contraste de tensão e relaxamento, ou arsis e thesis,</p><p>princípio básico da música.</p><p>Além disso, é importante resgatar o conceito de totalidade da</p><p>pedagogia musical ativa Orff/Wuytack. Bourscheidt (2008) afirma que</p><p>o conteúdo oferecido em uma aula de música deve ser apresentado de</p><p>forma integral, com início, meio e fim. Se o objetivo da aula é trabalhar</p><p>um conceito musical específico, os elementos devem ser apresentados</p><p>de forma progressiva, mas sempre dentro de uma mesma aula,</p><p>estabelecendo-se relações entre cada elemento e o todo da aula.</p><p>Segundo Jos Wuytack (2007, 2010), essa articulação da aula garante a</p><p>satisfação dos alunos, uma vez que a tomada de consciência musical</p><p>determina a realização de um trabalho bom e prazeroso para todo o</p><p>grupo.</p><p>Ao longo do tempo, as crianças gradativamente parecem mais</p><p>conscientes de que a aula tem uma ordem de procedimentos-padrão, e</p><p>que certas atividades sempre acontecem da mesma forma e no mesmo</p><p>horário. Dessa forma, Russell (2005) destaca que os alunos passam a</p><p>entender o que se espera deles em cada momento da aula, o que</p><p>aumenta seu gosto em participar de cada atividade.</p><p>A estrutura básica da aula, apresentada na Tabela 1, pode ser</p><p>considerada como o principal resultado pedagógico a que se chegou no</p><p>curso de musicalização infantil da UFPR durante seus sete anos, uma</p><p>vez que essa estrutura auxiliou na caracterização do que chamamos de</p><p>“jeito UFPR” de ensinar música. Fazemos referência à lista de</p><p>atividades-padrão das aulas, que analisaremos segundo o critério de</p><p>conteúdo.</p><p>Conteúdo</p><p>Com base nas considerações de Russell (2005), entendemos que</p><p>uma boa aula de música tem significativa variedade de elementos, mas,</p><p>ao mesmo tempo, deve haver um senso de Gestalt ou totalidade. Mais</p><p>uma vez, em analogia com o princípio básico de que a música é uma</p><p>arte em que se mesclam repetição e contraste, é importante que a aula</p><p>de música seja estruturada de acordo com o princípio da unidade na</p><p>variedade.</p><p>A unidade é garantida a partir de duas ações de planejamento por</p><p>parte do professor: a manutenção de uma uniformização de</p><p>procedimentos em todas as aulas (como discutimos ao analisarmos a</p><p>estrutura-padrão da aula e sua repetição durante todo o ano letivo) e o</p><p>estabelecimento de elos temáticos ou conceituais entre as atividades.</p><p>A autora chama a atenção para os elos como os elementos do</p><p>planejamento que garantem que as transições entre as</p><p>atividades em</p><p>uma aula sejam feitas de forma suave, uma atividade que flui</p><p>naturalmente para a outra. Exemplos de elos temáticos são: padrões</p><p>rítmicos, intervalos ou contornos melódicos, ou quaisquer conceitos</p><p>musicais que sejam trabalhados em ao menos duas músicas, fazendo</p><p>com que fique óbvia a ligação entre as atividades.</p><p>Dessa forma, ainda que haja uma profunda lógica interna de</p><p>organização pelos elos temáticos, podemos dizer que a aula é uma</p><p>miscelânea de estratégias, conceitos e repertórios trabalhados: daí o</p><p>princípio da unidade na variedade, em que a aula se configura como</p><p>uma verdadeira “tapeçaria”.</p><p>Os diferentes tipos de atividades apresentados na tabela deixam</p><p>evidente o conceito de variedade. Alguns desses procedimentos são:</p><p>atividades de percussão instrumental (utilizando sempre instrumentos</p><p>de boa qualidade sonora ou objetos sonoros, em oposição aos</p><p>brinquedos sonoros), percussão corporal (procurando partir do uso do</p><p>corpo como instrumento musical principal na aula de música), gestual</p><p>(trabalhando movimentos relevantes para com o objetivo musical, e não</p><p>coreografias com objetivos extramusicais), dança (enfatizando a ligação</p><p>entre as artes, pelo uso do movimento corporal), apresentação de</p><p>instrumentos musicais (fundamental para viabilizar a escolha futura de</p><p>um instrumento musical para estudo), audição ativa (apreciação musical</p><p>não passiva), entre outros.</p><p>Para as crianças a partir de quatro anos, é interessante incluir no rol</p><p>de atividades os jogos de substituição de gestos (em que se canta a</p><p>melodia diversas vezes, substituindo gradualmente certas palavras da</p><p>música por gestos corporais, a fim de estimular a audição interna), os</p><p>cantos em cânone (com o auxílio de mais de um professor, trazendo a</p><p>harmonia para a sala de aula de forma lúdica), os projetos instrumentais</p><p>complexos (trabalho com arranjo instrumental utilizando pequena</p><p>percussão, instrumental Orff quando disponível, canto coral e voz), a</p><p>construção de instrumentos musicais e objetos sonoros (para dotar a</p><p>escola de uma orquestra variada) etc.</p><p>Além desse conjunto de atividades, a variedade está presente em</p><p>uma série de outros elementos no planejamento da aula.</p><p>Em primeiro lugar, o repertório. Atualmente, os estudos da</p><p>neurociência apontam para a infância como um período propício para o</p><p>desenvolvimento do cérebro. Tudo indica que, do nascimento aos dez</p><p>anos de idade, o cérebro da criança está em pleno desenvolvimento e</p><p>apresenta as melhores “condições” de aprendizagem, as chamadas</p><p>janelas de oportunidades (Ilari 2003). Segudo Ilari, não há mágica: para</p><p>desenvolver a inteligência musical e o cérebro da criança, basta fazer</p><p>música. No entanto, certos mitos surgiram com relação ao repertório</p><p>que deve ser utilizado para essa estimulação (como o efeito Mozart, por</p><p>exemplo).[19] Indiferentemente do tipo de obra ou do seu compositor, é</p><p>de suma importância que o professor leve para a sala de aula a maior</p><p>variedade possível de obras musicais, de diferentes gêneros. Apenas</p><p>tendo contato com diferentes materiais é que as crianças terão</p><p>aumentadas as suas possibilidades de preferências e gostos musicais</p><p>futuros. Dessa forma, o professor é um agente importante no</p><p>mecanismo de escolha futura: um ambiente musicalmente rico é</p><p>fundamental na sala de aula.</p><p>Também é interessante variar a configuração espacial dos</p><p>participantes das atividades. As crianças podem desempenhar as tarefas</p><p>da aula sentadas, em roda, em pé, em duplas, em filas, com os pais etc.</p><p>Essa variação garante uma boa dinâmica de aula, como trataremos na</p><p>seção seguinte.</p><p>Ainda como possibilidade de variação na aula, podemos citar o</p><p>trabalho com as propriedades do som: timbre, altura, duração e</p><p>intensidade. Uma mesma música pode ser entoada diversas vezes</p><p>variando-se o uso da voz de forma expressiva, mais grave ou mais</p><p>aguda, com sons mais rápidos ou mais lentos, mais fortes ou mais</p><p>fracos. Além de alongar a duração das atividades, tornando possível um</p><p>maior aproveitamento dos conteúdos, o trabalho lúdico com as</p><p>propriedades do som é fundamental para qualquer curso de formação</p><p>musical, especialmente com crianças menores, uma vez que o som é a</p><p>matéria-prima da música, assunto principal da aula.</p><p>É importante variar, ao longo da aula, os diferentes modos de as</p><p>crianças se relacionarem com as atividades musicais. Jos Wuytack</p><p>(2007, 2010), em sua metodologia, argumenta que na aula de música</p><p>deve-se procurar inspiração na definição grega de música. Segundo o</p><p>pedagogo, o conceito de musikae engloba três diferentes tipos de</p><p>expressão: a expressão musical, a expressão vocal e a expressão</p><p>corporal. Assim, para fazer música, além do ouvir e do tocar</p><p>instrumentos, o movimento corporal e a voz devem ser estimulados. Ao</p><p>se juntar música, voz e corpo, a atividade tem grande potencial lúdico, o</p><p>que diz respeito mais uma vez à própria pedagogia Orff/Wuytack, pois,</p><p>em seus métodos, oferecem-se dezenas de exemplos de exercícios em</p><p>que se utilizam as três expressões para se chegar à totalidade das</p><p>canções, garantindo o prazer coletivo em sua realização.</p><p>Temos insistido nos métodos ativos de educação musical porque</p><p>todos estimulam o ensinar música fazendo música. No período de</p><p>vigência do curso de musicalização infantil da UFPR, diversos</p><p>educadores foram convidados a ministrar palestras e oficinas para os</p><p>professores estagiários em caráter de reciclagem. Certos princípios</p><p>gerais dos métodos ativos (como o foco no fazer musical, o uso de todo</p><p>e qualquer tipo de repertório em aula e a educação musical começando</p><p>desde muito cedo) ficaram evidentes nas aulas. A coluna do plano de</p><p>aula destinada às anotações das referências de cada atividade tem</p><p>justamente esta finalidade: registrar a metodologia empregada na</p><p>execução da atividade. Além de garantir a troca de referenciais teóricos</p><p>entre os professores, um banco de planos de aula tem grande valor para</p><p>pesquisas futuras, uma vez que o pesquisador pode verificar o</p><p>pensamento teórico que influenciou a criação de cada atividade.</p><p>Ao falarmos sobre o foco no fazer musical, é necessário destacar</p><p>um último item que garante a variedade na aula de música: a alternância</p><p>das modalidades do fazer musical segundo o ponto de vista de Cecília</p><p>França e Keith Swanwick (2002). Para os autores, em aulas de música</p><p>deve-se levar em conta o balanceamento de diferentes tipos de</p><p>atividades para que se constitua um processo de educação musical</p><p>abrangente.</p><p>A chamada metodologia triangular de ensino de artes, muito</p><p>difundida no Brasil por Ana Mae Barbosa, leva em conta a necessidade</p><p>de se mesclarem momentos de apreciação, reflexão e produção de obras</p><p>de arte. Ao transportarmos essa tríade para a música, verificamos que a</p><p>produção de obras musicais deve ser dividida em duas atividades: a</p><p>execução e a composição – com significado bastante específico. Assim,</p><p>uma nova tríade é constituída – apreciação, execução e composição –,</p><p>sendo a reflexão a atividade que permeia todo o processo.</p><p>Essa tríade é a mesma proposta por França e Swanwick para se</p><p>chegar ao ensino musical abrangente: as atividades de apreciação,</p><p>criação e performance.</p><p>Sobre a apreciação, os autores fornecem uma série de argumentos</p><p>para justificar a importância das atividades desse tipo em aula. Em</p><p>primeiro lugar, consideram que o ouvir é a forma fundamental de</p><p>abordagem da música e do fenômeno sonoro, ou seja, é pelo ouvir que</p><p>recebemos os estímulos sonoros. Além disso, a maior parte de nossa</p><p>herança musical só será vivenciada pela apreciação – mais do que pela</p><p>criação e pela execução de instrumentos. Ainda assim, é considerada</p><p>por vezes uma atividade musical mais passiva, sendo que, pelo</p><p>contrário, um ativo processo perceptivo é envolvido em nossa</p><p>capacidade de audição, uma vez que o sistema auditivo é responsável</p><p>pela percepção, pela decodificação e pela interpretação dos estímulos</p><p>sonoros que recebe. Por fim, os autores indicam a necessidade de se</p><p>distinguir entre o ouvir como meio – implícito em outras atividades – e</p><p>o ouvir como fim em si mesmo, em atividades cujo objetivo principal</p><p>seja a apreciação.</p><p>Nesse mesmo sentido, Graça Boal Palheiros (2006) estabelece</p><p>diferentes modos de ouvir música: a) como pano de fundo (quando não</p><p>há intenção de ouvir música, e, portanto, a concentração está fixada na</p><p>atividade e o nível de atenção na música é pequeno; por exemplo, em</p><p>supermercados, centros de compras ou outros locais públicos em que há</p><p>música de fundo tocando); b) como acompanhamento (quando se</p><p>escolhe ouvir música, mas passivamente e sem atenção, apenas para</p><p>acompanhar outro afazer mais importante; por exemplo, lavar a louça</p><p>ou fazer uma refeição com os amigos ouvindo música); c) como</p><p>atividade principal (intencionalmente e com grande nível de atenção,</p><p>numa postura mentalmente ativa e fisicamente passiva; por exemplo,</p><p>escutar música em casa, sozinho). Muitas vezes, é esse tipo de atividade</p><p>que caracteriza momentos de apreciação em escolas: ouvir música</p><p>reclinado na carteira, com os olhos fechados e os braços cruzados.</p><p>Palheiros, porém, argumenta que há um quarto modo de ouvir</p><p>música: ouvir e interpretar música, intencionalmente e com um nível</p><p>máximo de atividade. É o que chama de apreciação musical ativa, em</p><p>conceito formulado por ela e por Jos Wuytack (Palheiros e Wuytack</p><p>1995). Para os autores, a apreciação musical ativa implica o</p><p>envolvimento ativo do ouvinte. Wuytack é claro: se a obra musical não</p><p>é palpável como uma pintura ou uma escultura, é necessário que outros</p><p>tipos de atividades sejam vinculados à escuta, a fim de que o aluno</p><p>possa “enxergar” o estímulo musical e, a partir daí, adivinhar a forma</p><p>musical, por exemplo. Desse modo, os autores apresentam há mais de</p><p>quatro décadas dezenas de exemplos de atividades de apreciação</p><p>musical ativa em que trabalham com movimento corporal, dança,</p><p>expressão vocal, objetos gráficos e notação musical não tradicional</p><p>associados à música estudada. Se o aluno puder não só escutar, mas</p><p>dançar, falar ou visualizar uma frase ou uma parte da música que estuda,</p><p>certamente o entendimento será muito maior.</p><p>Assim, se no momento final da aula sugerimos uma apreciação</p><p>passiva para conduzir a um momento de relaxamento, isso acontece</p><p>porque ao longo da aula o professor deve trabalhar outras atividades de</p><p>audição de forma ativa mescladas às de execução e criação.</p><p>França e Swanwick (2002) argumentam que a criação musical,</p><p>também entendida como composição, é uma atividade que, no contexto</p><p>educativo, deve receber especial atenção, pois o foco muitas vezes deve</p><p>ser deslocado do produto final para o processo de composição, isto é, a</p><p>atividade de criação de um trecho musical muitas vezes é mais</p><p>importante do que o produto final. É importante que o professor mostre</p><p>aos alunos que eles podem atuar como compositores mesmo ao criarem</p><p>pequenas células rítmicas ou melodias: o resultado será complexo</p><p>justamente pela atividade intelectual do processo, ainda que soe</p><p>simples.</p><p>Mais uma vez apoiando-nos na metodologia Orff/Wuytack</p><p>(Wuytack 2007 e 2010), lembramos o que o pedagogo destaca sobre a</p><p>criação musical, também dando destaque ao processo: para ele, a</p><p>criação é um dos pilares do desenvolvimento musical e segue uma série</p><p>de atividades: a) exploração (“descobrir” as possibilidades sonoras de</p><p>instrumentos musicais, a voz e o corpo, para se fazer um inventário</p><p>sonoro que possa ser utilizado em futuras composições); b) imitação</p><p>(processo pelo qual o professor apresenta os fundamentos da música de</p><p>determinada cultura aos alunos – reportando-nos à definição de</p><p>musicalizar de Penna, na introdução deste capítulo); c) improvisação</p><p>(atividade criativa do aluno, mas dentro de parâmetros restritos); e,</p><p>finalmente, d) criação propriamente dita (a “composição”, em que o</p><p>aluno cria dentro de parâmetros mais gerais). Desse ponto de vista,</p><p>podemos argumentar que a modalidade da criação musical começa</p><p>desde muito cedo, pois, se as crianças de um a dois anos de idade não</p><p>explorarem e começarem a imitar, quando chegarem à idade escolar,</p><p>terão mais dificuldade em improvisar pequenos trechos musicais. Mais</p><p>uma vez, é fundamental a intervenção do professor no processo de</p><p>desenvolvimento desse tipo de atividade nas aulas.</p><p>Por fim, a terceira atividade, de execução ou performance, engloba</p><p>aquelas mais comumente entendidas como “fazer” música: tocar</p><p>instrumentos e cantar – produzir sons com o corpo e com objetos</p><p>sonoros. Justamente por isso, as atividades de execução costumam</p><p>sobressair às de apreciação e criação em aulas de música; mas é</p><p>importante procurar o balanceamento de que falam França e Swanwick</p><p>(2002).</p><p>David Hargreaves (apud Kruger 2005) entende que há três formas</p><p>de avaliação em música: a) avaliação de aptidão (habilidades musicais</p><p>do aluno); b) avaliação da atuação (atividade do aluno, o fazer musical);</p><p>e c) avaliação de realizações (produto final da atividade). O autor afirma</p><p>que a atuação ativa – nesse caso, as atividades de execução – é a parte</p><p>mais importante do processo, uma vez que, quando o professor observa</p><p>o fazer do aluno, na verdade ele observa também elementos tanto de</p><p>aptidão como de realizações; no processo, ficam visíveis o</p><p>desenvolvimento de habilidades musicais e o produto da atividade. Daí</p><p>a importância do fazer ativo, como temos mencionado.</p><p>Para as atividades de canto com dança ou movimento corporal,</p><p>Wuytack (2007, 2010) sugere um tipo de atividade a ser realizada antes</p><p>das danças para aquecer o corpo. Trata-se de músicas em que se</p><p>estimulam todas as articulações do corpo, assim ordenadas: dedos,</p><p>pulsos, cotovelos, ombros, pescoço, cintura, joelhos e tornozelos. Em</p><p>tais tipos de atividades, o pedagogo trabalha uma pequena frase</p><p>musical, em que cada movimento é apresentado e gradativamente</p><p>incorporado ao movimento geral: os alunos começam mexendo apenas</p><p>os dedos e terminam envolvendo todas as articulações.</p><p>Dessa forma, ao planejar, o professor deve ter em mente esse rol de</p><p>possibilidades de variação: diferentes tipos de atividades; repertório;</p><p>configuração espacial; propriedades do som; modos de expressão;</p><p>metodologias de referência e modalidades do fazer musical. Tudo isso</p><p>contribui para uma aula mais interessante para os alunos, o que nos leva</p><p>ao último conceito empregado por Russell, o andamento.</p><p>Andamento</p><p>Esse conceito, que originalmente diz respeito a um elemento da</p><p>organização musical, é muito bem empregado pedagogicamente por</p><p>Russell (2005). Trata-se de algo bastante subjetivo que o professor</p><p>adquire apenas com extensa experiência de sala de aula. Podemos</p><p>resumir o andamento como a qualidade de o professor calibrar o ritmo</p><p>da aula, fazendo boas transições entre as atividades, com vistas a, além</p><p>de cumprir o planejado, fazer com que os alunos tenham a maior</p><p>concentração e o maior interesse possíveis. Por isso, o andamento nada</p><p>mais é do que a capacidade de uma boa gestão de sala de aula.</p><p>Sugerimos algumas estratégias que se mostram eficientes na gestão de</p><p>sala de aula de musicalização infantil.</p><p>Em primeiro lugar, a economia de linguagem verbal. O professor</p><p>deve ser o mais breve possível em suas explicações, uma vez que temos</p><p>argumentado que o aluno só aprende música fazendo música. Dado o</p><p>fascínio que os alunos demonstram pela manipulação de instrumentos</p><p>musicais, o professor deve entregar os instrumentos e ser muito conciso</p><p>ao explicar o funcionamento da atividade, ou então os alunos deslocarão</p><p>o interesse para o objeto sonoro, e não para a atividade.</p><p>Além desta, a chamada estratégia do “senta-levanta” é bastante</p><p>interessante para que os alunos não fiquem entediados: a mudança de</p><p>posicionamento, ou de configuração espacial dos alunos ao longo da</p><p>aula, garante maior interesse.</p><p>No caso de haver mais de um professor em sala, a condução das</p><p>atividades pode ser revezada entre eles. Assim, as transições entre as</p><p>atividades ficam menos evidentes, e, enquanto um dos professores</p><p>conduz a atividade, explicando o funcionamento, o outro pode auxiliá-</p><p>lo a alcançar os materiais para as crianças.</p><p>O tempo médio de duração das atividades deve ser regulado de</p><p>acordo com a idade das crianças e com a dinâmica de cada turma. De</p><p>modo geral, nas aulas de 45 minutos,</p><p>passa-se de 12 a 15 atividades em</p><p>aulas para crianças de zero a três anos para no máximo seis atividades</p><p>para crianças entre seis e oito anos. Nesse caso, é importante avaliar o</p><p>potencial de concentração e a complexidade de cada atividade para se</p><p>chegar a uma boa calibragem do ritmo.</p><p>Por fim, uma boa estratégia para evitar quebras de andamento é o</p><p>planejamento de atividades extras. Por esse motivo, o modelo de plano</p><p>de aula sugerido incorpora um local para o registro dessas atividades.</p><p>Ainda que o professor de música deva saber improvisar a partir do</p><p>feedback imediato que tem de seus alunos durante a aula, a</p><p>improvisação só acontece se ele tiver extensa experiência de sala de</p><p>aula, ou, então, se tiver refletido sobre isso no momento do</p><p>planejamento, registrando uma pequena lista de atividades para o caso</p><p>de necessidade.</p><p>A prática de ensino de música segundo a abordagem da</p><p>musicalização</p><p>A gestão diária de sala de aula de musicalização deixa evidente a</p><p>importância da mediação do professor no processo de</p><p>ensino/aprendizagem. Nesse sentido, cabe destacar o que afirma Lev S.</p><p>Vygotsky (1998a, 1998b) em seus estudos de psicologia do</p><p>desenvolvimento cognitivo e da aprendizagem. Para o autor, há dois</p><p>níveis de desenvolvimento: o real, que se determina pela capacidade</p><p>que a criança tem para solucionar problemas de forma independente, e o</p><p>potencial, pela capacidade de resolução de questões quando orientada</p><p>por um adulto ou por colegas mais capazes. A distância entre esses dois</p><p>níveis é o que ele conceitua como zona de desenvolvimento proximal.</p><p>Nesse sentido, o papel do educador e dos colegas assume grande</p><p>importância, uma vez que o desenvolvimento de uma criança é indicado</p><p>não pelo limite inferior de suas capacidades, o desenvolvimento real,</p><p>mas por aquilo que ela pode resolver com a colaboração dos outros. Em</p><p>outras palavras, também na aula de musicalização, uma criança pode,</p><p>com o auxílio do professor e dos colegas, fazer muito mais do que</p><p>conseguiria fazer sozinha. Por isso, além das questões básicas de</p><p>sociabilidade, a presença do professor e dos colegas de turma em aulas</p><p>de musicalização é fundamental para a qualidade do aprendizado.</p><p>Igualmente fundamental é o papel dos pais, pois, além da</p><p>participação ativa em sala de aula, eles são os responsáveis por fazerem</p><p>do ambiente familiar a extensão do ambiente escolar. Muitas vezes, pais</p><p>de alunos relatam que seus filhos são muito mais ativos e “musicais” em</p><p>casa do que na aula. Isso mostra o quanto as crianças são atentas e</p><p>absorvem todas as informações durante as aulas, revelando isso em</p><p>casa, na presença dos pais.</p><p>Outro ponto importante para o planejamento de aulas, segundo o</p><p>conceito de Vygotsky, foi pesquisado por Madalozzo (2007), ao</p><p>demonstrar que, dados os diferentes níveis de desenvolvimento real dos</p><p>alunos, uma mesma aula de música deve conter atividades com</p><p>diferentes níveis de dificuldade. Nesse sentido, o autor estabelece três</p><p>diferentes níveis de desenvolvimento musical presentes em aulas de</p><p>música: a) nível implícito (trabalho lúdico, em que muitas vezes a</p><p>música parece ocupar papel secundário na aula, que é bastante lúdica);</p><p>b) nível intuitivo (trabalho com conceitos musicais de forma</p><p>aparentemente superficial, com ênfase na exploração e na</p><p>experimentação musicais); e c) nível intencional (trabalho específico</p><p>com a “linguagem” musical, exigindo-se dos alunos certa precisão na</p><p>execução de atividades – o verdadeiro objetivo da formação musical). O</p><p>processo é sequencial, mas, em sala de aula, sobrepõem-se os níveis</p><p>para que a aula não perca seu caráter lúdico e para que se contemplem</p><p>as diferenças de idade e de desenvolvimento musical real dos alunos.</p><p>Assim, é preciso atender a todas as etapas durante a aula – o que nos</p><p>leva a mais um elemento de variedade no planejamento.</p><p>Em relação aos níveis de desenvolvimento musical, o autor</p><p>estabelece uma tipologia de repertório para trabalho em sala de aula, ao</p><p>argumentar que o professor com consciência de seus objetivos deve</p><p>conhecer a maior diversidade possível de abordagens, para trabalhar os</p><p>conteúdos, e a maior quantidade de repertórios diferentes, para</p><p>possibilitar a construção de atividades com esses conteúdos. Dessa</p><p>forma, os três diferentes tipos de repertório são: a) repertório geral</p><p>(nível implícito, lúdico); b) repertório de teste (nível intuitivo,</p><p>atividades de sensibilização musical); e c) repertório simbólico (nível</p><p>intencional, trabalho musical sistemático). O bom professor de música,</p><p>portanto, é aquele que tem as ferramentas (conhecimento sobre o</p><p>desenvolvimento infantil, abordagens e repertório) e sabe cruzá-las para</p><p>criar atividades musicais relevantes com o seu planejamento.</p><p>Por fim, destacamos ainda duas questões referentes à atividade de</p><p>planejamento para a musicalização infantil. Em primeiro lugar, com o</p><p>atual movimento de retomada da obrigatoriedade do ensino de música</p><p>nas escolas brasileiras, há uma quantidade avassaladora de publicações</p><p>na área de música, especialmente de coletâneas que se vendem como</p><p>métodos para aplicação permanente e universal. De acordo com a</p><p>definição que apresentamos de professor criativo, entendemos que não</p><p>existem métodos definitivos, e que o professor é aquele com melhor</p><p>condição de agir em sala de aula, planejando suas aulas com vistas a</p><p>contemplar as necessidades locais. Dessa forma, ainda que os novos</p><p>métodos tragam infinitas boas ideias, a estruturação de um</p><p>planejamento, esse papel criativo, é atribuição exclusiva do professor.</p><p>Em segundo lugar, é importante destacar a diferença entre o plano</p><p>de aula usado em uma aula de musicalização infantil e em uma aula de</p><p>música do ensino regular – tanto da educação infantil quanto do ensino</p><p>fundamental. Deve-se levar em consideração que o currículo da escola</p><p>regular difere do da escola de música principalmente pelo contexto e</p><p>pelos elementos extramusicais (datas comemorativas, celebrações,</p><p>homenagens etc.). O educador deve, nesse caso, estudar o planejamento</p><p>(macro) minuciosamente, de maneira que possa incluir em seu plano de</p><p>aula (micro), mesmo nas datas comemorativas ou nos ensaios para</p><p>apresentações, elementos musicais formais, garantindo, assim, que a</p><p>linguagem musical não se perca diante das inúmeras formas pelas quais</p><p>a música é usada como um recurso.</p><p>O educador da escola regular deve, sem dúvida, apropriar-se desse</p><p>modelo aqui apresentado para seus planejamentos. A estrutura que</p><p>discutimos anteriormente pode ser utilizada nas duas realidades: no</p><p>conservatório e/ou escolas de música e na escola regular (tanto na</p><p>educação infantil quanto no ensino fundamental). O professor deve</p><p>apenas adaptar a ordem das atividades e o contexto em que elas vão ser</p><p>inseridas.</p><p>Adaptação é uma palavra recorrente neste capítulo e também deve</p><p>sê-lo no vocabulário de um educador musical. Adaptar-se ao contexto, à</p><p>realidade da escola e dos alunos, aos eventos, ao currículo escolar, às</p><p>necessidades individuais de cada criança e de seus pais, tudo isso faz</p><p>parte do olhar atento do educador não só sobre os seus educandos, mas</p><p>também sobre o seu planejamento, que se modifica a cada nova ideia.</p><p>Figura 1: Modelo de plano de aula do curso de musicalização da</p><p>UFPR</p><p>Referências bibliográficas</p><p>BOURSCHEIDT, L. (2008). “A aprendizagem musical por meio da utilização do conceito de</p><p>totalidade do sistema Orff/Wuytack”. Dissertação de mestrado em Música. Curitiba:</p><p>Departamento de Ciências Humanas, Letras e Artes/Universidade Federal do Paraná.</p><p>BRASIL (1998). Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.</p><p>Referencial curricular nacional para a educação infantil, v. 3. Brasília: MEC/SEF.</p><p>[Disponível na internet: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/volume3.pdf, acesso em</p><p>8/6/2009.]</p><p>FRANÇA, C.C. e SWANWICK, K. (2002). “Composição, apreciação e performance na</p><p>educação musical: Teoria, pesquisa e prática”. Em Pauta, v. 13, n. 21, dez. Porto Alegre,</p><p>pp. 5-41. [Disponível na internet:</p><p>http://seer.ufrgs.br/EmPauta/article/download/8526/4948, acesso em 14/4/2009.]</p><p>FREIRE, R.D. e FREIRE, S.F.</p><p>(2008). “Planejamento na educação musical infantil”. Anais do</p><p>XVIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação (Anppom).</p><p>Salvador: Programa de Pós-graduação em Música da Universidade Federal da Bahia, pp.</p><p>http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/volume3.pdf</p><p>http://seer.ufrgs.br/EmPauta/article/download/8526/4948</p><p>157-161. [Disponível na internet:</p><p>http://antigo.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2008/comunicas/COM383%</p><p>20-%20Freire%20et%20al.pdf, acesso em 21/6/2017.]</p><p>HENTSCHKE, L. e DEL BEN, L. (2003). “Aula de música: Do planejamento e avaliação à</p><p>prática educativa”. In: HENTSCHKE, L. e DEL BEN, L. (orgs.). Ensino de música:</p><p>Propostas para pensar e agir em sala de aula. São Paulo: Moderna, pp. 174-190.</p><p>ILARI, B.S. (2003). “A música e o cérebro: Algumas implicações do neurodesenvolvimento</p><p>para a educação musical”. Revista da Abem, v. 9, set. Porto Alegre, pp. 7-16.</p><p>________ (2010). “A community of practice in music teacher training: The case of</p><p>Musicalização Infantil”. Research Studies in Music Education, v. 32, n. 1, jun., pp. 43-60.</p><p>[Disponível na internet: http://rsm.sagepub.com/cgi/content/abstract/32/1/43, acesso em</p><p>13/9/2010.]</p><p>JOLY, I. 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Porto:</p><p>Associação Wuytack de Pedagogia Musical.</p><p>8</p><p>APRENDER NA CASA</p><p>Paulo Maria Rodrigues</p><p>Helena Rodrigues</p><p>Introdução</p><p>Os primeiros contatos com a música são de importância</p><p>fundamental para o desenvolvimento de competências essenciais à sua</p><p>apreciação e à participação ativa nas várias formas de fazer e criar</p><p>música. A exposição a um ambiente rico e diversificado permite a</p><p>construção progressiva de vocabulário musical próprio sobre o qual se</p><p>baseiam posteriores desenvolvimentos, quer se trate de um futuro</p><p>músico – de qualquer credo musical – quer de alguém que</p><p>simplesmente queira desfrutar do prazer de ouvir música. O ambiente</p><p>familiar, e mais tarde a escola e os vários ritos comunitários, são os</p><p>ambientes onde esses primeiros contatos se desenvolvem. Nos últimos</p><p>anos, e pelo menos em algumas sociedades, têm surgido oportunidades</p><p>adicionais, por meio do desenvolvimento de atividades educativas</p><p>associadas a instituições como orquestras, salas de espetáculo,</p><p>companhias de ópera ou organizações da comunidade. Essas</p><p>oportunidades não substituem as anteriores e dependem obviamente</p><p>delas para poderem ser desenvolvidas, mas criam situações novas que</p><p>importa conhecer, analisar e potenciar. Esse é objetivo deste capítulo,</p><p>que se centra na experiência de coordenação do Serviço Educativo da</p><p>Casa da Música (SE) (Figura 1), entre 2006 e 2010, pelo primeiro autor</p><p>deste artigo. Trata-se de um projeto multifacetado e dirigido a públicos</p><p>diversos e abrangentes, e por isso é importante analisar um conjunto de</p><p>questões gerais, filosóficas e estratégicas, para perceber melhor as</p><p>opções relativas ao público infantil, objeto de estudo deste livro. Assim,</p><p>a presente reflexão tem uma primeira parte que se debruça sobre a</p><p>filosofia do Serviço Educativo, os objetivos e a estrutura de</p><p>programação, à qual se segue uma outra em que se abordam exemplos</p><p>concretos das atividades dirigidas ao público infantil. Aborda-se</p><p>também, de forma sucinta, o modelo organizacional que sustentou essa</p><p>atividade e, por último, reflete-se sobre a importância e o papel dos</p><p>serviços educativos.</p><p>Figura 1: Casa da Música, Porto</p><p>O Serviço Educativo da Casa da Música (CdM): Aspectos gerais</p><p>A filosofia do Serviço Educativo</p><p>Um serviço educativo é, por definição, um agente de educação, mas</p><p>seu âmbito de ação é muito diferente do da escola, principal agente em</p><p>que se baseia a educação nas sociedades ocidentais. Se, por um lado,</p><p>essa distinção implica uma indefinição conceitual (não existe uma</p><p>matriz curricular nem sequer muitos exemplos que tenham sido</p><p>descritos ou analisados), por outro, permite uma oportunidade rara de</p><p>questionar algumas ideias e descobrir, testar e construir modos de ação</p><p>que, por várias razões, não são permitidos à escola. Assim, uma</p><p>primeira questão que se deparou na conceitualização do projeto do SE,</p><p>talvez a mais complexa, foi a de definir uma ideia geral de educação a</p><p>partir da qual se pudesse refletir sobre o papel a desempenhar. Haverá,</p><p>por certo, muitas e mais completas definições de educação, mas talvez</p><p>um de seus grandes objetivos seja o de dar às pessoas formas de</p><p>relacionamento com coisas que precisam ser descobertas e construídas.</p><p>Não se educa para o que é óbvio ou inato, educa-se para que possamos</p><p>construir nossos próprios caminhos, os quais nos permitem encontrar</p><p>mais e mais. Por isso, a educação não é algo que se faça só a certa altura</p><p>da vida ou o privilégio de apenas alguns: faz-se sempre e é infindável.</p><p>No caso da música, isso é tanto mais verdade quanto a música é também</p><p>infinita e indecifrável (Rodrigues 2009).</p><p>Outro aspecto muito importante na estruturação de qualquer serviço</p><p>educativo tem a ver com o contexto da instituição em que se insere. No</p><p>caso da Casa da Música (CdM), existe uma filosofia de base que</p><p>defende uma ideia muito abrangente e eclética de música. A CdM</p><p>pretende ser a casa de todas as músicas. O Serviço Educativo, integrado</p><p>na Direção Artística e de Educação, teria obviamente que refletir essa</p><p>ideia e inspirar-se nessa matriz. Por isso, e porque educação não é</p><p>sinônimo de escola e música é muito mais do que uma atividade dos</p><p>músicos que outros estão destinados a contemplar, defendeu-se a ideia</p><p>de que o Serviço Educativo serve para que todos construam as suas</p><p>relações com a música: superficiais ou profundas, racionais ou afetivas,</p><p>abstratas ou concretas, em um ou em vários estilos, com esses ou</p><p>aqueles meios (Rodrigues 2009). Nesse sentido, conceberam-se</p><p>atividades</p><p>para bebês, crianças, jovens, adultos, idosos, pessoas com</p><p>necessidades especiais, pessoas com ou sem experiência musical,</p><p>professores, comunidades.</p><p>Por outro lado, entendeu-se que a construção dessas relações com a</p><p>música podia ser feita de várias formas. É possível ouvir música, fazer</p><p>música, criar música, saber coisas acerca da música (Figura 2). Quanto</p><p>mais se ouve, faz, cria e sabe, mais se compreende a música, sendo que</p><p>é nessa compreensão que se alicerçam o poder, o prazer e o fascínio que</p><p>a música exerce sobre nós. O Serviço Educativo procurou, assim,</p><p>proporcionar diferentes formas de relacionamento com a música, para</p><p>que a mesma pessoa pudesse participar de diversas maneiras (e</p><p>construir a sua educação) e para que diferentes pessoas tivessem um</p><p>lugar na casa de todas as músicas.</p><p>Figura 2: Aspecto da divulgação do programa do SE</p><p>Os objetivos do Serviço Educativo</p><p>A filosofia descrita anteriormente deu origem ao seguinte conjunto</p><p>de grandes objetivos do trabalho do SE/CdM:</p><p>1) catalisar e nutrir a criação de laços com a música:</p><p>promover o interesse pela sua descoberta – ouvir, fazer,</p><p>criar, saber;</p><p>2) contribuir para a aquisição de ferramentas de</p><p>compreensão musical: proporcionar instrumentos para a</p><p>fruição e a criação livre e autônoma;</p><p>3) tocar um espectro largo de pessoas, tendo em conta suas</p><p>diferenças e necessidades específicas: indivíduos, famílias,</p><p>escolas, comunidades; bebês, crianças, adolescentes,</p><p>jovens, adultos, idosos; especialistas, amadores de música</p><p>ou simples curiosos;</p><p>4) colmatar deficit de oferta no campo da educação e da</p><p>música, nomeadamente abrindo a educação a várias</p><p>músicas e a outras artes e tecnologias;</p><p>5) explorar o papel da música como fator de reabilitação e</p><p>geração de afetos: promover a inclusão de comunidades</p><p>desfavorecidas e de pessoas com necessidades especiais;</p><p>6) contribuir para uma concepção integrada de projetos</p><p>artísticos, promovendo a emergência de discursos</p><p>artísticos verdadeiramente transversais e despretensiosos;</p><p>7) intervir em áreas de formação e investigação que possam</p><p>sustentar projetos educativos dentro da filosofia da Casa</p><p>da Música: formar pessoas, investigar processos e</p><p>metodologias, criar ferramentas;</p><p>8) inspirar outros agentes educativos, sociais e culturais:</p><p>criar ideias e projetos-piloto que possam posteriormente</p><p>ser dinamizados e desenvolvidos por agentes</p><p>especialmente vocacionados para alguns tipos de trabalho</p><p>com escolas, comunidades e outros.</p><p>Além de se definir um conjunto concreto de objetivos, procurou-se</p><p>também defender alguns princípios de identidade, pela enunciação de</p><p>alguns não objetivos ou posições críticas sobre alguns pensamentos</p><p>comuns. É o caso do pensamento corrente de que a principal função dos</p><p>serviços educativos é a formação de públicos no sentido da angariação</p><p>de futuros concert goers. Na nossa opinião, esse não é um objetivo</p><p>educativo. Poderá ser, talvez, um dos resultados de um trabalho</p><p>educativo bem-sucedido, mas nem isso é garantido, porque o gosto pela</p><p>música pode tomar rumos imprevisíveis, eventualmente divergentes de</p><p>uma programação artística, por mais eclética que ela seja. Os objetivos</p><p>enunciados anteriormente baseiam-se na convicção de que a educação e</p><p>a música se justificam por si próprias – não são um meio para um fim,</p><p>são um fim em si mesmas. Outro não objetivo tem a ver com a ideia</p><p>corrente de que a programação educativa deve ser centrada na</p><p>programação artística geral da instituição onde se insere, ou seja, que</p><p>todas as atividades educativas sejam by-products daquilo que está em</p><p>cartaz. Na nossa opinião, a articulação entre as atividades educativas e a</p><p>programação artística geral deve ser natural e resultar da necessidade de</p><p>criar oportunidades educativas originais, interessantes e relevantes. Essa</p><p>articulação, portanto, mais do que uma regra, deve ser encarada como</p><p>uma oportunidade ou uma fonte de inspiração. E, certamente, deve ser</p><p>biunívoca, porque é claro que a agenda educativa pode e deve inspirar a</p><p>programação geral (Rodrigues 2009).</p><p>Por último, procurou-se construir alternativas para o dilema com</p><p>que frequentemente os serviços educativos se deparam, ou seja, entre</p><p>promover atividades que são do âmbito do ensino formal e atividades</p><p>puramente recreativas, muitas vezes com pouco conteúdo musical e</p><p>frequentemente de puro apoio a outras atividades das instituições onde</p><p>se inserem. É óbvio que existe sempre um conteúdo educativo de senso</p><p>lato em praticamente tudo o que se faz à volta do ato performático, e</p><p>também é óbvio que a questão lúdica é importante, aliás, essencial. Mas</p><p>lúdico não significa superficial, e creio que é na vivência profunda da</p><p>música que se deve centrar a ação do Serviço Educativo. No outro lado</p><p>do dilema, estão muitas das atividades que são de natureza formal ou</p><p>técnica, e essas têm já um enquadramento no ensino vocacional,</p><p>profissional e superior da música. Creio que faz sentido que o SE</p><p>promova um conjunto de atividades significativas do ponto de vista</p><p>pedagógico, mas que procure sempre um equilíbrio com aquilo que</p><p>outros agentes educativos já fazem ou podem facilmente fazer,</p><p>especializando-se em áreas em que seja mais premente criar</p><p>oportunidades. Dessa forma, acredito que o oitavo objetivo enunciado</p><p>anteriormente é essencial no cumprimento da missão do SE, e que esse</p><p>será sempre seu legado mais importante, uma vez que a educação</p><p>musical é necessariamente um processo contínuo, lento e minucioso. O</p><p>SE não ensina música, cria oportunidades, coloca desafios, aponta</p><p>pistas, expõe as pessoas a experiências musicais marcantes (Rodrigues</p><p>2009).</p><p>A programação do Serviço Educativo</p><p>Da reflexão anterior resultou a criação da matriz de programação do</p><p>SE, um conjunto de atividades-tipo que tem por finalidade pôr em</p><p>prática os objetivos enunciados. A matriz de 2009-2010, um</p><p>refinamento de sucessivas versões anteriores, tinha duas classes</p><p>principais, atividades regulares e projetos, que depois se desdobravam.</p><p>Essa divisão tinha a ver com o horizonte temporal (as atividades</p><p>regulares eram concebidas como experiências que se completavam</p><p>numa sessão ou num número reduzido de sessões, ao passo que os</p><p>projetos tendiam a desenrolar-se ao longo de vários meses, envolviam</p><p>várias sessões e tendiam a ter um final performático), mas refletia</p><p>também o aspecto prático da gestão dos públicos-alvo (as atividades</p><p>regulares estavam abertas a todos e eram feitas por marcação, ao passo</p><p>que os projetos eram normalmente construídos de uma forma mais</p><p>dirigida a públicos-alvo específicos).</p><p>Atividades regulares – As atividades regulares incluíam as</p><p>seguintes categorias: hot spots; workshops; espetáculos; “Formação” e</p><p>“A Casa vai a casa”.</p><p>Os hot spots eram recursos em que se podia fazer/criar música de</p><p>forma livre e não tutorada dentro do horário normal de abertura da Casa</p><p>da Música. Incluíam a “Digitópia” (plataforma para o desenvolvimento</p><p>de comunidades de criação musical em computador); o “Sound=Space”</p><p>(instrumento eletrônico virtual); e os “Objetos sonoros partilhados”</p><p>(sistema partilhado de criação musical on-line) e estavam instalados em</p><p>três espaços distintos da CdM, permitindo assim que a descoberta do</p><p>espaço arquitetônico se fizesse também por meio de experiências</p><p>musicais. A “Digitópia” era um dos projetos mais emblemáticos do SE e</p><p>pretendia explorar os avanços recentes que os computadores têm</p><p>promovido ao permitirem criar ou fazer música sem necessidade de uma</p><p>educação musical formal. Por meio de um conjunto de recursos</p><p>acessíveis a todos, a “Digitópia” pretendia dinamizar a música e a</p><p>criatividade, numa camada vasta de idades e condições sociais,</p><p>sobretudo entre os jovens, promover o desenvolvimento de software</p><p>livre (alguns programas originais foram criados no âmbito desse</p><p>projeto, como é o caso de Políssonos, Narrativas Sonoras ou Digital</p><p>Jam), promover a inclusão social e a emergência de comunidades</p><p>multiculturais de criadores/utilizadores de música digital, e a criação de</p><p>conteúdos musicais livres (Penha et al. 2008a, 2008b).</p><p>Os workshops eram experiências tutoradas em fazer/criar</p><p>música,</p><p>com abordagens e temas específicos para diferentes grupos e dentro de</p><p>horários definidos – de domingo a quinta-feira. Incluíam os “Primeiros</p><p>sons” (no primeiro, segundo e terceiro domingos de cada mês, para pais</p><p>e bebês); os “Segundos e terceiros sons” (de segunda a quinta-feira,</p><p>para escolas do ensino genérico, a partir da pré-escola, e para</p><p>comunidades – cidadãos seniores, utentes de instituições de</p><p>solidariedade social, Ateliers de Tempos Livres – ATLs etc.); e os “Sons</p><p>do dia” (aos sábados, uma vez por mês, com um período de manhã e</p><p>outro à tarde, dirigidos a escolas do ensino vocacional – incluíam-se</p><p>aqui também vários grupos amadores de música, como coros, bandas</p><p>etc., ou o público de modo geral, sem experiência musical). Cada um</p><p>desses tipos de workshop desdobrava-se novamente em vários, como</p><p>veremos mais adiante.</p><p>Os espetáculos eram experiências de ouvir e conhecer música. Em</p><p>muitos casos, associavam-se à música outras expressões artísticas. Entre</p><p>os espetáculos, incluíam-se os Primeiros concertos, originalmente</p><p>intitulados Concertos para bebês e famílias (normalmente no quarto</p><p>domingo de cada mês) e Música e mais (realizado durante a semana</p><p>para o público escolar, e, aos sábados ou domingos, para as famílias e o</p><p>público de modo geral). Vale dizer que os primeiros tinham um formato</p><p>claramente pensado para o público mais novo, frequentemente</p><p>combinando música vocal e instrumental (normalmente excertos) de</p><p>vários estilos e épocas, e os segundos, um perfil muito mais lato,</p><p>incluindo concertos, tomando-os como base para a explicação de</p><p>aspectos relativos ao funcionamento da música, e espetáculos em que à</p><p>música se associavam imagem, teatro ou dança, alguns dos quais</p><p>resultado de projetos educativos ou de outras atividades desenvolvidas</p><p>pelo SE. Incluíam-se ainda nessa categoria as parties Handmade Music</p><p>@ Digitopia, um misto entre jam sessions e mostras, contando com</p><p>instrumentos, digitais ou não, criados pelas pessoas, que participavam</p><p>livremente nessas sessões.</p><p>A “Formação” era um conjunto de atividades de fazer/criar/saber,</p><p>dirigidas a profissionais que usavam a música no contexto de sua</p><p>atividade artística ou educativa. Dela faziam parte a “Música na sala de</p><p>aula”, o “Curso de formação de animadores musicais”, os seminários e</p><p>o “Saber ouvir” – curso livre de história da música.</p><p>A “Música na sala de aula” era um conjunto de ações de formação,</p><p>de duração de um dia. A atividade era realizada uma vez por mês, aos</p><p>sábados, e destinada aos professores. Nela, abordavam-se temas</p><p>diversos, não relacionados entre si, mas julgados pertinentes ao</p><p>enriquecimento profissional dos professores.</p><p>O “Curso de formação de animadores musicais” tinha por</p><p>finalidade preparar músicos para o trabalho com comunidades. Em</p><p>2009-2010 teve sua quinta edição. Funcionava durante um fim de</p><p>semana por mês, de outubro a julho, e baseava-se na ideia de construção</p><p>de experiências musicais criativas e performáticas fortes, feitas em</p><p>articulação com projetos comunitários que o SE desenvolvia,</p><p>propiciando, assim, aos formandos, um exercício prático.</p><p>Os seminários eram atividades de formação especializada, algumas</p><p>vezes em articulação com a vinda à CdM de alguns nomes importantes</p><p>da programação. Na maior parte dos casos, em 2009-2010, tendiam a</p><p>abordar áreas estratégicas para o desenvolvimento dos projetos do SE,</p><p>como a programação em computador ou vários outros aspectos</p><p>relacionados com a Digitopia.</p><p>A “Casa vai a casa” era um serviço de concepção e realização de</p><p>pequenos projetos musicais na comunidade, e acontecia às segundas,</p><p>terças e quartas-feiras. Funcionava num conjunto muito vasto de</p><p>contextos sociais, que incluía lares de terceira idade, hospitais, prisões,</p><p>unidades de reabilitação social ou instituições de acolhimento de</p><p>pessoas com necessidades especiais. A ideia era construir projetos de</p><p>curta duração concebidos para estimular a criação e contribuir para a</p><p>estima individual e de grupo. Cada projeto era definido em função do</p><p>público-alvo concreto. Portanto, podia tomar formas muito diferentes,</p><p>desde projetos com percussão ou construção de instrumentos musicais</p><p>até composição e gravação de canções.</p><p>A programação regular do Serviço Educativo acontecia durante</p><p>todo o ano (em agosto funcionavam apenas os hot spots), tinha</p><p>articulações naturais com os grandes temas da programação geral e</p><p>possuía alguns períodos temáticos, como é o caso dos projetos “Música</p><p>e matemática”, realizado em outubro, e “Ao alcance de todos: Música,</p><p>tecnologia e necessidades especiais”, realizado em abril. Em julho, o SE</p><p>organizava um conjunto de atividades que denominava “Férias com</p><p>música”, que tinha a forma de pequenos projetos, em atividades que</p><p>envolviam normalmente fazer e criar.</p><p>Projetos – Os projetos desenvolviam-se ao longo de vários meses,</p><p>eram dirigidos a comunidades específicas e tendiam a explorar não só</p><p>aspectos artísticos como também o potencial da música como fator de</p><p>reabilitação, de geração de afetos e de promoção da realização pessoal e</p><p>coletiva. A maior parte deles culminava com um espetáculo,</p><p>apresentado publicamente. Sem dúvida, isso contribuía de modo</p><p>decisivo para a estruturação do trabalho e para a motivação dos</p><p>participantes. Normalmente, eram processos de construção coletiva,</p><p>muito mais do que a execução de uma obra preconcebida – outro fator</p><p>essencial para sua dimensão de empowerment.</p><p>Alguns dos projetos educativos do SE foram dirigidos a pessoas</p><p>com necessidades especiais. Em 2007, construiu-se Corpo todo, mais</p><p>tarde denominado Ícaro (Figura 3), um projeto que aliava música, teatro</p><p>e dança, envolvendo sobretudo pessoas com paralisia cerebral e</p><p>culminado com apresentações no âmbito do “Ao alcance de todos –</p><p>Música, tecnologia e necessidades especiais”, uma espécie de semana</p><p>temática que incluiu ainda conferências, workshops e instalações</p><p>interativas (Brooks et al. 2007; Petersson e Brooks 2007; Gehlhaar,</p><p>Girão e Rodrigues 2011; Almeida et al. 2011). Em 2008, de janeiro a</p><p>abril, foram desenvolvidos “Orquestra digital”, “Carrossel do som” e</p><p>“Sound=Space operas”, que culminaram com apresentações de um</p><p>espetáculo denominado INtermezzo, também no âmbito do “Ao alcance</p><p>de todos” daquele ano. No primeiro projeto, usaram-se sobretudo os</p><p>recursos da Digitópia (teclados, computadores, drum-pads, sensores)</p><p>com um grupo de pessoas com diversos tipos de deficiência. No</p><p>segundo, foram utilizados instrumentos de percussão adaptados às</p><p>necessidades de pessoas com deficiência física e mental, e, no terceiro,</p><p>usou-se o Sound=Space para despoletar conteúdos sonoros e imagens</p><p>produzidos pelos próprios participantes, um grupo de jovens com</p><p>diversas necessidades especiais. Em 2009, criaram-se os espetáculos</p><p>Bayang e Grotox e o projeto “Instrumentos para todos”, que permitiu</p><p>criar instrumentos novos, concebidos para responder às necessidades</p><p>concretas de pessoas de oito instituições parceiras, que posteriormente</p><p>ficaram de posse desses protótipos e os integraram em suas atividades</p><p>regulares. Esse projeto culminou com a composição e a apresentação,</p><p>em 2010, na sala principal, da obra Viagem, baseada no livro de José</p><p>Saramago, A viagem do elefante (Gehlhaar et al. 2010). Ainda em 2010,</p><p>criou-se o espetáculo Border control.</p><p>Figura 3: Ícaro</p><p>As famílias foram outro dos grupos-alvo dos projetos educativos,</p><p>tendo sido realizados a “Orquestra de famílias reais”, a “Orquestra</p><p>gamelão de famílias reais” e o “Coro de famílias reais”. O projeto</p><p>“BebêBabá”, da CMT, teve uma edição produzida pelo SE no</p><p>estabelecimento prisional especial de Santa Cruz do Bispo. Foi um</p><p>projeto iniciado em fevereiro, envolvendo reclusas e bebês, que</p><p>decorreu semanalmente (uma sessão com bebês e mães, e outra com</p><p>mães), durante o mês de março, e que culminou com apresentações no</p><p>estabelecimento prisional e também na Casa da Música (Rodrigues et</p><p>al. 2010; Rodrigues e Rodrigues 2009) (Figura 4).</p><p>Figura 4: BebêBabá</p><p>Os professores de música das atividades de enriquecimento</p><p>curricular da área do Porto (alguns também de áreas mais distantes)</p><p>foram</p><p>o público-alvo do projeto “Grande bichofonia” em 2008. Em</p><p>2009, o mesmo público-alvo participou no projeto “Histórias do sul”,</p><p>que tinha como tema de base o Brasil (país-tema da programação</p><p>daquele ano). Abordaremos esses dois projetos oportunamente. Em</p><p>2008, houve ainda um projeto, “Histórias do norte”, que resultou de um</p><p>desafio lançado a quatro escolas do ensino vocacional de música com</p><p>perfis muito diferentes e vários grupos comunitários e escolares da área</p><p>da dança, animação e multimídia para que construíssem peças cênicas,</p><p>com base na ideia dessa região, em consonância com o tema-base da</p><p>programação geral.</p><p>Outra área importante dos projetos educativos esteve ligada ao</p><p>trabalho com moradores de zonas mais carentes, particularmente</p><p>crianças e jovens. Dentro desse contexto, surgiram projetos como</p><p>“Ritmos da cidade” ou “Sonópolis” (em articulação com o “Curso de</p><p>formação de animadores musicais”). No projeto “Sonópolis” de 2009,</p><p>participaram o Coro Ala dos Afinados (que resultou de um projeto</p><p>realizado no estabelecimento prisional de Custoias), o BeatBox</p><p>Ensemble, a Orquestra de Guitarras e Baixos Elétricos, o Tuba</p><p>Ensemble e os Crassh!. No projeto “Sonópolis” de 2010, participaram o</p><p>Som da Rua, um grupo que resultou de um projeto com pessoas</p><p>desabrigadas ou morando em situação de risco, o Coro de S. Tomé, um</p><p>coro formado numa escola do ensino básico num bairro de habitação</p><p>social (social housing) , e o “ReTimbrar”, um projeto de percussão</p><p>tradicional portuguesa. Essa lógica de integração esteve também patente</p><p>em “Anikibobó”, um projeto com alunos de violoncelo de várias escolas</p><p>do ensino vocacional de música e com grupos de dança de vários</p><p>projetos comunitários do Porto, construído a partir do filme de Manoel</p><p>de Oliveira. Tratou-se de um projeto muito complexo, com cerca de 150</p><p>intervenientes de linguagens artísticas e níveis de desempenho muito</p><p>diferentes. O trabalho com os grupos de dança foi desenvolvido de</p><p>forma regular entre janeiro e junho, com algumas sessões exibidas nos</p><p>bairros e outras na CdM. O trabalho com os violoncelistas foi</p><p>concentrado em duas épocas, primeiro em fevereiro, e depois no final</p><p>de junho. Esse trabalho deixou marcas visíveis nas crianças e jovens</p><p>que estiveram envolvidos no projeto, dada sua natureza continuada,</p><p>seus padrões de exigência e dedicação e sua abertura a estéticas e</p><p>metodologias de trabalho, muito diferentes do habitual.</p><p>Por último, o SE organizou e participou em alguns projetos que não</p><p>se enquadram dentro da descrição feita anteriormente. É o caso dos</p><p>projetos que foram realizados no Dia Mundial da Música, em 2007,</p><p>2008 e 2009. Em 2007, o Serviço Educativo celebrou o Dia Mundial da</p><p>Música com a “Orquestra do dia”, um projeto que envolveu cerca de</p><p>600 pessoas que criaram uma orquestra improvisada que integrou</p><p>músicos das mais diversas proveniências e que trabalhou com vistas a</p><p>exibir um espetáculo que foi apresentado no final do dia na CdM. Em</p><p>2008, essa ideia se expandiu, chegando à rede de metrô do Porto e</p><p>convidando a cidade a participar na composição da “Obra do dia”, uma</p><p>grande colagem musical com cerca de seis horas de duração, construída</p><p>a partir dos sons que músicos e não músicos depositaram em três</p><p>estações de metrô e que foi executada no Sound=Space, na estação de</p><p>São Bento. O projeto incluiu vários elementos teatrais e integrou</p><p>elementos da Quinta sinfonia de Beethoven, executada pela Orquestra</p><p>Nacional do Porto (ONP). Em 2009, em colaboração com os serviços de</p><p>transportes coletivos do Porto, organizou-se uma orquestra, constituída</p><p>por saxofonistas, beatboxers e guitarristas, que levou a música a vários</p><p>espaços públicos da cidade. O SE participou também na organização de</p><p>projetos educativos nascidos diretamente da Orquestra Nacional do</p><p>Porto, como foi o caso dos projetos “Orquestra vai à escola”, “Novas</p><p>colinas douradas do ribeiro” ou “Fantasia sobre a fantasia”, que serão</p><p>abordados a seguir.</p><p>O público do Serviço Educativo: Alguns números</p><p>Os dados de 2007-2009 indicam que o Serviço Educativo realizava</p><p>uma média anual de cerca de 1.200 eventos, que se agrupavam em</p><p>aproximadamente 130 atividades diferentes. O número médio de</p><p>eventos anuais para escolas nesse período foi de 530, sendo o ensino</p><p>pré-escolar e básico uma parte importante, mas não a mais</p><p>representativa. O número anual de eventos para famílias foi em média</p><p>de 185. O número de pessoas envolvidas nessas atividades cresceu de</p><p>34 mil em 2007 para 42 mil em 2009. O público do Serviço Educativo</p><p>era predominantemente do distrito do Porto e de concelhos limítrofes,</p><p>mas abrangia também outros distritos do país, sobretudo do norte.</p><p>Aspectos da programação para a infância</p><p>Nesta seção, são abordados mais detalhadamente alguns exemplos</p><p>concretos da programação para a infância, crianças na faixa etária de</p><p>zero a oito anos, e que, basicamente, foram contempladas em todos os</p><p>itens da grade de programação, que não era organizada em função dos</p><p>públicos, mas, sim, do tipo de atividades. Não se trata de um</p><p>levantamento exaustivo, mas de exemplos selecionados, com vistas a</p><p>dar uma imagem abrangente de conteúdos e estratégias.</p><p>Workshops: “Primeiros sons”</p><p>Os “Primeiros sons” eram experiências musicais para as primeiras</p><p>idades num formato informal e de grande proximidade e interatividade</p><p>(grupos de 12 a 15 crianças acompanhadas dos pais ou de outros</p><p>educadores). De modo geral, funcionavam no primeiro, segundo e</p><p>terceiro domingos do mês, havendo três sessões para grupos etários</p><p>diferentes: 0-18 meses, 18 meses-3 anos e 3-5 anos de idade. Em cada</p><p>temporada, havia três workshops diferentes, baseados em ideias e</p><p>utilizando recursos e estratégias diferenciados, segundo a idade das</p><p>crianças. Um workshop como “GudgiGudgiDada”, por exemplo, refletia</p><p>fortemente as ideias da teoria da aprendizagem musical, de E. Gordon</p><p>(2000), com um predomínio da voz cantada, ao passo que outros, como</p><p>o “Tchika Tchika”, procuravam introduzir o contato com diferentes</p><p>instrumentos. Workshops como “Splash!”, “Circo girassol” ou “Palmo e</p><p>meio” adicionavam à componente musical uma forte ideia teatral e</p><p>adquiriam contornos de pequenos espetáculos. Embora os conteúdos e</p><p>estratégias dos diferentes workshops fossem diferentes, eles partilhavam</p><p>algumas características comuns, nomeadamente: exposição a grande</p><p>variedade e contraste de estímulos musicais, formatos participativos,</p><p>interativos e lúdicos, normalmente com inclusão de atividades de</p><p>movimento. Os workshops “Primeiros sons” eram atividades com</p><p>imensa procura, de modo geral com lotação esgotada, o que, na nossa</p><p>opinião, espelha a crescente sensibilização do público para a</p><p>importância da música nas idades mais precoces, mas, também, um</p><p>interesse crescente por atividades de partilha, de desenvolvimento da</p><p>comunicação e de afetos que a música, mais do que qualquer outra</p><p>atividade, pode nutrir e fomentar.</p><p>Concertos para bebês e famílias (Primeiros concertos)</p><p>Os “Concertos para bebês e famílias” no início tinham um formato</p><p>único (um grupo instrumental com vocal fixo e um instrumento solista</p><p>variável a cada mês) e eram destinados sobretudo para as idades mais</p><p>precoces. Esse modelo foi progressivamente sendo intercalado com</p><p>propostas de estéticas e estratégias mais diversificadas, com o intuito de</p><p>incluir também crianças mais velhas (três a cinco anos), finalmente</p><p>dando origem a uma temporada na qual se privilegiou fomentar a</p><p>criação e a apresentação de propostas que explorassem diferentes</p><p>formas de apresentar a música para crianças pequenas. Esse formato, os</p><p>“Primeiros concertos”, permitiu apresentar propostas de estéticas e</p><p>estratégias contrastantes, umas completamente centradas na música,</p><p>outras combinando elementos cênicos e teatrais, algumas centradas</p><p>numa família de instrumentos ou num compositor, outras tendo como</p><p>ponto de partida outra ideia qualquer, como, por exemplo, as formas e</p><p>as cores desenvolvidas por um artista plástico. Um exemplo interessante</p><p>foi a criação de Gugugaguigoooong! (Figura 5), um espetáculo de</p><p>gamelão e projeção de desenhos feitos em areia em</p><p>tempo real pensado</p><p>para crianças muito pequenas. Essa criação foi desenvolvida a partir do</p><p>material musical e das técnicas de animação visual de uma outra</p><p>criação, Prometeu na Gongolândia (Rodrigues 2011), que incluía já</p><p>uma variedade musical muito grande, uma vez que a ideia foi combinar</p><p>alguns temas tradicionais javaneses com um conjunto de peças</p><p>desenvolvidas de raiz e com características musicais muito</p><p>contrastantes, incluindo a utilização de eletrônica. A adaptação desse</p><p>material incluiu a remoção do texto (passou-se de uma narrativa teatral</p><p>acompanhada de música para um formato exclusivamente musical), a</p><p>introdução de alguns temas musicais desenvolvidos a partir de canções</p><p>de ninar, o aprofundamento dos aspectos contrastantes das vozes e dos</p><p>instrumentos do gamelão, a alteração da duração de algumas peças</p><p>(passaram a ser mais curtas) e o desenvolvimento de vários aspectos da</p><p>interação com o público e do movimento dos músicos/atores. Esse foi</p><p>um dos projetos desenvolvidos pelo Factor E, o grupo de educadores</p><p>residentes da CdM, e teve a participação de um grupo de famílias, a</p><p>Orquestra Gamelão de Famílias Reais, que envolveu também crianças,</p><p>embora mais velhas.</p><p>Figura 5: Gugugaguigooooong!</p><p>Workshops: “Segundos e terceiros sons”</p><p>Existiam 19 workshops “Segundos e terceiros sons”, sendo alguns</p><p>muito específicos em seu público-alvo e em seu formato. Esses</p><p>workshops versavam sobre experiências musicais e tinham a duração de</p><p>75 minutos. Eram exibidos durante a semana, e, portanto, frequentados</p><p>sobretudo por escolas. Havia um grupo de experiências especialmente</p><p>pensadas para crianças do ensino pré-escolar (três a cinco anos) nos</p><p>quais se incluíam, entre outros, os workshops “Princípios do ritmo”,</p><p>“Onde está o som?”, “ZiguizáZiguizú” e “Contar a cantar”. O primeiro</p><p>abordava questões básicas do ritmo e propiciava um primeiro contato</p><p>com instrumentos de percussão; o segundo envolvia sobretudo</p><p>atividades de audição ativa mediadas pelo Sound=Space (Almeida et al.</p><p>2008), um sistema constituído por um conjunto de sensores</p><p>ultrassônicos que monitoriza a presença do corpo num espaço e faz</p><p>corresponder, a certas posições ou movimentos, determinados eventos</p><p>sonoros gerados num computador. Dadas as possibilidades desse</p><p>sistema (o computador pode produzir uma variedade infinita de sons),</p><p>as atividades podem ser organizadas como jogos que lidam com</p><p>questões de desenvolvimento da acuidade auditiva ou discriminação de</p><p>aspectos fundamentais da música (tímbricos, melódicos, harmônicos,</p><p>rítmicos) ou composições/improvisações, sendo que em qualquer dos</p><p>casos a experiência se radica no movimento e no corpo. Por oposição a</p><p>esses exemplos, os workshops “ZiguizáZiguizú” e “Contar a cantar”</p><p>estruturavam as atividades musicais (cantar, ouvir, dançar) a partir de</p><p>uma ideia teatral. No primeiro caso, tratava-se de uma viagem através</p><p>da música do mundo, no segundo, exploravam-se conceitos básicos da</p><p>matemática por meio de atividades musicais com elementos</p><p>contrastantes. Mesmo sendo formatos com uma componente teatral e</p><p>cênica importante, a ideia era desenvolver experiências participativas e</p><p>interativas. Assim, os workshops funcionavam como uma espécie de</p><p>sucessão de quadros articulados, em que a participação ativa das</p><p>crianças era uma componente fundamental.</p><p>Outro grupo de workshops, mais vasto, era proposto para crianças a</p><p>partir dos cinco anos, e, em muitos casos, com a possibilidade de serem</p><p>implementados com grupos de idades muito mais avançadas. Por</p><p>exemplo, vários workshops que envolviam a criação de música com</p><p>computadores podiam ser facilmente adaptados a idades muito</p><p>diferentes. Era o caso de workshops como “Compor com sons do</p><p>cotidiano”, que propunha uma experiência de composição com sons da</p><p>paisagem sonora, “Compor com instrumentos virtuais”, que permitia</p><p>compor com versões digitais de instrumentos musicais analógicos,</p><p>“Bandas sonoras em tempo real”, que permitia uma experiência coletiva</p><p>de improvisação e composição a partir de sequências de imagens,</p><p>“Orquestra Digitópia”, que explorava um conjunto de interfaces e</p><p>programas desenvolvidos na Digitópia, uma plataforma para o</p><p>desenvolvimento de comunidades de criação musical em computador</p><p>que fomentava o desenvolvimento de ideias e tecnologias originais</p><p>(Penha et al. 2009; Rodrigues et al. 2009). No âmbito da Digitópia,</p><p>desenvolveram-se programas como Narrativas Sonoras ou Políssonos,</p><p>especialmente concebidos para tornar acessível e intuitivo o primeiro</p><p>contato com o computador como ferramenta de expressão musical, e,</p><p>assim, com muita frequência, um mesmo programa era usado em</p><p>workshops diferentes.</p><p>A percussão era abordada em vários workshops, com estratégias e</p><p>conteúdos diferentes e em formatos que se adaptavam à capacidade de</p><p>resposta do grupo. Por exemplo, “Ritmos do mundo”, e posteriormente</p><p>“Tambor das sílabas”, propunham uma viagem através de vários tipos</p><p>de percussão existentes no mundo (indiana, africana, brasileira,</p><p>portuguesa), com a aprendizagem dos ritmos sendo centrada em</p><p>atividades com sílabas rítmicas, seguida de prática de instrumentos</p><p>acústicos representativos. Os “Ritmos urbanos” baseavam-se em</p><p>estratégias mais relacionadas com o corpo e a dança, abordando ritmos</p><p>da cultura urbana (hip-hop, kuduro, kizomba) e usando como</p><p>instrumentos objetos do cotidiano (bidões, baldes, vassouras etc.). Por</p><p>sua vez, “Beats and bytes” propunha uma experiência de conjugação de</p><p>instrumentos de percussão, voz e eletrônica, muitas vezes com recursos</p><p>simples, mas eficazes, como construção de peças baseadas em loops,</p><p>que se iam construindo e adicionando, microfones de contato no chão</p><p>ou nas paredes, ligados a processadores de efeitos, vários tipos de</p><p>interfaces, como a Wi, ou sensores básicos de várias origens. “Gamelão,</p><p>gongo sim gongo não” propiciava uma experiência inicial no gamelão</p><p>javanês da CdM, com a aprendizagem de pelo menos um tema</p><p>tradicional.</p><p>Outro grupo de workshops abordava de forma lúdica,</p><p>frequentemente no formato de um jogo com etapas, a obra de um</p><p>compositor relevante no âmbito da programação geral. Por exemplo, o</p><p>“Clip Mozart” e o “Clip Bach” consistiam de várias etapas que</p><p>implicavam a realização de tarefas construídas com base em excertos de</p><p>peças de cada um desses compositores (tipicamente atividades de</p><p>audição ativa ou de execução vocal). No final de cada etapa bem-</p><p>sucedida, havia lugar à gravação, pelo grupo, de um excerto de vídeo de</p><p>alguns segundos com uma nota ou uma pequena célula, que, no final,</p><p>após uma montagem rápida e simples, revelava um tema do compositor</p><p>(como Eine kleine Nachtmusik, de Mozart). Além de Mozart e Bach,</p><p>outros compositores, como Messiaen, Grieg ou Prokofieff, deram</p><p>origem a workshops com esse tipo de formato, nomeadamente</p><p>“Pássaros e cores”, “Clip Pier Gynt” e “Clip Pedro e o lobo”.</p><p>O workshop “Som a som se faz a canção” (Figura 6) era conduzido</p><p>por um grupo, que construía coletivamente uma peça, frequentemente</p><p>vocal, sendo introduzido à ideia da gravação por pistas e sequenciação</p><p>áudio, num ambiente que simulava um estúdio de gravação. A música</p><p>em questão podia ser uma canção previamente trabalhada em sala de</p><p>aula, e, nesse caso, o trabalho envolvia sobretudo o arranjo e a</p><p>gravação, ou uma canção/peça vocal feita a partir de qualquer ideia</p><p>gerada naquele momento e, nesse caso, contemplava-se também a</p><p>construção de pequenas células ou elementos temáticos que</p><p>constituiriam o material básico da composição. Esse workshop foi</p><p>pensado para funcionar como uma experiência em si mesma, mas</p><p>também como apoio a trabalhos que pudessem estar sendo exibidos na</p><p>escola, em qualquer disciplina, para os quais fizesse sentido</p><p>desenvolver uma música ou uma canção. Frequentemente, os grupos</p><p>optavam por criar a sua canção, uma espécie de hino da turma ou da</p><p>escola.</p><p>Figura 6: "Som a som se faz a canção"</p><p>Espetáculos: Música e mais</p><p>Esses espetáculos procuravam adicionar à experiência de ouvir</p><p>música uma outra dimensão, às vezes no sentido de saber coisas sobre</p><p>música, outras vezes procurando estabelecer relações com outras</p><p>artes</p><p>ou áreas do conhecimento. Mesmo no caso em que se abordavam</p><p>conteúdos relacionados a questões musicais, o esforço da programação</p><p>fazia-se no sentido de buscar formatos diferentes dos concertos</p><p>comentados, quer nos conteúdos, quer na forma. Assim, a intenção era</p><p>versar sobre assuntos básicos que permitissem um entendimento de</p><p>alguns aspectos essenciais da música, e, nesse sentido, encontraram-se</p><p>soluções como O que é harmonia?, O que é ritmo?. Por outro lado,</p><p>foram tratados gêneros ou estilos de música diversificados, chegando-se</p><p>a espetáculos como O que é jazz?, O que é música barroca?, O que é</p><p>uma big band?, O que é rock?. Em qualquer dos casos, foram</p><p>encontradas soluções interativas e participativas, frequentemente</p><p>recorrendo a elementos de comunicação teatral que contribuíam para</p><p>que as experiências artísticas fossem informativas sem nunca se</p><p>tornarem explicitamente explicativas ou perderem o ritmo do</p><p>espetáculo.</p><p>Entre os espetáculos que procuravam estabelecer relações entre a</p><p>música e outras artes ou conhecimentos, houve, nesse período, uma</p><p>preponderância para combinações de música com dança e com imagens</p><p>projetadas, destacando-se os que emergiram de projetos desenvolvidos</p><p>de origem, como Anikibobó, Ícaro, Bayang, Grotox, FlatLand ou</p><p>outros. Será interessante analisar o caso do workshop “Contar a cantar”,</p><p>pelo fato de se dirigir a um público especialmente jovem (três a cinco</p><p>anos) e por permitir abordar um conjunto de questões relevantes do</p><p>ponto de vista da organização. Esse workshop, agora transformado em</p><p>espetáculo, integrou-se, no mês temático de outubro, ao projeto “Música</p><p>e matemática”. Durante esse mês, e ao contrário da regra geral durante o</p><p>resto do ano, a programação do Serviço Educativo procurava oferecer</p><p>atividades para os diversos públicos subordinadas a um tema comum,</p><p>extramusical. A matemática oferece oportunidades aliciantes para</p><p>estruturar atividades musicais, mas o fato é que não existiam, àquela</p><p>altura, muitas atividades que pudessem, de forma interessante, mas</p><p>acessível, explorar essas relações. Encontraram-se e criaram-se várias</p><p>soluções, de workshops com computadores e gamelão (“Compor com</p><p>fractais”, “Música com números”, “À procura de Pi” e outros) a</p><p>espetáculos como Zoo lógico, Algo rítmico ou FlatLand, mas o público</p><p>dos três a cinco anos começou a ser abordado com o workshop “Contar</p><p>a cantar”, anteriormente descrito. Desde o início, o workshop incluía</p><p>elementos teatrais. Contudo, a prática de vários meses revelou o</p><p>potencial da ideia para evoluir no sentido de um espetáculo, com mais</p><p>recursos musicais, cênicos e teatrais e para audiências maiores (150</p><p>crianças, por oposição a turmas individuais). Esses meses constituíram</p><p>um bench-test fundamental das ideias e permitiram perceber algumas</p><p>das estratégias que poderiam ajudar a construir um espetáculo bem-</p><p>sucedido com um tema, no início, um pouco difícil de abordar. O</p><p>espetáculo contou com a participação de uma turma de crianças de um</p><p>infantário próximo, e a narrativa teatral desenvolveu-se no sentido de</p><p>uma espécie de jogo de polícia e ladrão, com números desaparecidos e</p><p>pistas à mistura. Adaptou-se um cenário e uma configuração do público</p><p>na sala, que rompeu com a ideia de palco separado da audiência,</p><p>privilegiando a proximidade e a interação direta com os pequenos</p><p>espectadores. Envolveu-se um pequeno grupo instrumental e</p><p>enriqueceu-se o material musical original com arranjos simples, mas</p><p>eficazes, e trabalhou-se um sentido de continuidade. A ideia original do</p><p>workshop “Cantar a contar” evoluiu para um espetáculo especialmente</p><p>bem-sucedido e, na nossa opinião, esse modelo dá pistas muito</p><p>interessantes sobre a forma de trabalhar com essas faixas etárias: as</p><p>ideias foram testadas com crianças e amadurecidas ao longo do tempo, e</p><p>o espetáculo surgiu como um corolário natural do workshop.</p><p>Projetos</p><p>Tendo em conta o âmbito deste livro, a infância, destacaremos,</p><p>entre os projetos, o “Coro de S. Tomé/Sonópolis” e “Fantasia sobre</p><p>fantasia”. O “Sonópolis” foi um dos projetos estruturantes da</p><p>programação do SE e teve o objetivo geral de dar voz à cidade, a seus</p><p>sons e sobretudo a seus habitantes, quer tivessem ou não experiência</p><p>musical prévia. Nos diferentes anos, envolveu diferentes grupos de</p><p>pessoas, alguns já formados, outros que o SE tomava a iniciativa de</p><p>formar, sendo o critério um misto de razões puramente artísticas</p><p>(procurava-se uma combinação de recursos musicais equilibrada e que</p><p>colocasse um desafio interessante aos músicos profissionais e</p><p>formandos que participavam no projeto) e sociais (procurava-se</p><p>explorar o papel da música na geração de afetos, o empowerment e a</p><p>integração das pessoas). A arquitetura do “Sonópolis” envolveu ainda</p><p>um grupo de músicos e professores que frequentavam o curso de</p><p>animadores musicais e que recebiam formação teórica e prática em</p><p>improvisação e liderança musical, além de participarem em projetos</p><p>parciais com várias comunidades com as quais o SE trabalhava. Uma</p><p>das regras era que esse gupo constituía um ensemble de base que</p><p>garantia a integração dos grupos restantes no espetáculo final.</p><p>Em 2009-2010, decidiu-se que seria interessante formar um coro</p><p>infantil numa escola do ensino básico de um bairro de habitação social</p><p>(social housing), S. Tomé. O referido bairro não é especialmente</p><p>complicado, ao contrário de outros com os quais o SE também realizou</p><p>projetos, normalmente com crianças mais velhas, adolescentes e jovens,</p><p>mas apresenta alguns dos problemas recorrentes nesse tipo de</p><p>comunidade urbana (elevados níveis de desemprego, abandono escolar,</p><p>dificuldades econômicas, baixo nível de letramento, criminalidade). O</p><p>trabalho que estava sendo realizado na escola, no âmbito das atividades</p><p>curriculares no domínio da música, fora observado anteriormente</p><p>(2008), e o SE ficara particularmente sensibilizado com a importância</p><p>que os professores e a direção da escola atribuíam à experiência da</p><p>música. Por seu turno, as crianças também mostraram uma grande</p><p>receptividade às atividades que desenvolviam naquele momento. Ainda</p><p>em 2009, foi possível realizar um primeiro projeto de algumas semanas</p><p>com formadores do SE e, dado o êxito dessa experiência e o interesse</p><p>manifestado pela escola em desenvolver uma colaboração mais</p><p>profunda com o SE, decidiu-se que no ano letivo de 2009-2010 o SE</p><p>implementaria semanalmente atividades musicais na escola e que as</p><p>crianças participariam no projeto “Sonópolis”, com a consequente</p><p>integração num conjunto de outros grupos e a apresentação final no</p><p>concerto ao ar livre na CdM, à semelhança de edições de anos</p><p>anteriores. Em virtude do interesse de toda a escola participar e</p><p>desenvolver uma ideia que nutrisse o espírito de comunidade,</p><p>fomentando as interações, optou-se por fazer uma sessão semanal com</p><p>dois formadores do SE, juntando as crianças em grupos de duas turmas</p><p>que periodicamente realizavam sessões conjuntas. As atividades</p><p>centravam-se na voz e no movimento, sendo a construção de</p><p>composições originais uma das características mais importantes. Deu-se</p><p>continuidade a algumas das ideias trabalhadas no primeiro projeto (a</p><p>escola tinha trabalhado no Romance da raposa, de Aquilino Ribeiro, e</p><p>as atividades musicais integraram uma apresentação teatral no final do</p><p>ano letivo) e surgiram novas ideias dentro do espírito do “Sonópolis”</p><p>(trabalhar a partir dos sons e das pessoas do bairro, da escola, da casa,</p><p>da família). Um primeiro cruzamento com o ensemble do curso de</p><p>formadores musicais ocorreu em dezembro, com uma apresentação, na</p><p>CdM, baseada em material desenvolvido pelas crianças com os</p><p>formandos do curso. Nos meses seguintes, o trabalho prosseguiu da</p><p>mesma forma, havendo, em abril, uma interação com o diretor artístico</p><p>do “Sonópolis”, para que ele conhecesse o material desenvolvido e</p><p>trouxesse algumas ideias para a escola trabalhar. O papel do diretor</p><p>artístico era o de articular as ideias e identidades de cada um dos grupos</p><p>e criar um espetáculo que fizesse sentido como um todo. No caso do</p><p>“Sonópolis” (2010), além do Coro de S. Tomé e do ensemble</p><p>Mas, enquanto o</p><p>olhar global confirma a Teoria de Swanwick e os estudos subsequentes,</p><p>o olhar detalhado permite a individualidade da criança se manifestar. O</p><p>contraste expressivo entre as três peças ouvidas certamente colaborou</p><p>para esses achados. Nesse nível, pessoal, o aluno percebe de modo geral</p><p>o caráter expressivo, a atmosfera ou o clima emocional de uma peça,</p><p>talvez por meio de associações e imagens visuais. Ele relaciona</p><p>mudanças de nível expressivo a mudanças no tratamento do material</p><p>sonoro, especialmente no que diz respeito ao andamento e à intensidade,</p><p>mas não observa relações estruturais (Swanwick 1988, pp. 152-153).</p><p>Tal condição musical se reflete, na matriz curricular, no descritor</p><p>“identificar o caráter expressivo de peças do repertório de apreciação”</p><p>(França 2006).</p><p>Algumas crianças apresentaram todas as suas respostas no nível</p><p>pessoal, seja por meio do desenho (Figura 5) ou de relatos.</p><p>Figura 5: Respostas à escuta das três peças</p><p>Vemos aqui elementos psicológicos e filosóficos convergirem.</p><p>Eventos plásticos de peso, espaço, movimento e tensão relativos</p><p>(Swanwick 1992), padrões de força, movimento e proporção (Hanslick</p><p>1957) convidam a imaginação a derivar significados com base nas</p><p>vivências e memórias acumuladas. Quanto mais específico o caráter das</p><p>músicas, mais explicitamente as associações são delineadas: delicadeza,</p><p>agressividade, vigor, hesitação, monotonia... Basta uma mínima</p><p>semelhança (Langer 1957), e o individual se revela, ainda que dentro do</p><p>padrão psicológico esperado:</p><p>(1) “Felicidade.”</p><p>(2) “Solidão.”</p><p>(3) “Tristeza.”</p><p>(1) “Desengonçado.”</p><p>(2) “Amor e tranquilidade.”</p><p>(3) “Paz e prosperidade.”</p><p>(1) “Alegre e legal.”</p><p>(2) “Sentimento e alegre!”</p><p>(3) “Suave como as ondas do mar.”</p><p>E a fantasia comparece com os mais diversos significados:</p><p>(1) “A 1ª música parece sapateado.”</p><p>(2) “A 2ª música parece música de fadas.”</p><p>(3) “A 3ª música parece de balé.”</p><p>(1) “Pato dançando.”</p><p>(2) “Menino correndo.”</p><p>(3) “Homem meditando.”</p><p>(1) “Piano e música alegre.”</p><p>(2) “Balé e um filme.”</p><p>(3) “Música de tristeza, piano e solidão.”</p><p>(2) “Uma bailarina sobre o teclado.”</p><p>(2) “Um pianista tocando e uma dançarina dançando balé.”</p><p>(2) “Tipo está no céu, muito lindo, de amor, coisa da</p><p>imaginação, branca.”</p><p>A terceira música, bastante intimista e de caráter sóbrio, incitou</p><p>diferentes respostas na dimensão do caráter expressivo. Mesma música,</p><p>reações diversas: o balé (Figura 6), a mãe embalando o bebê (Figura 7),</p><p>o choro (Figura 8), associações que não são lógicas, mas psicológicas:</p><p>Figura 6: Resposta à escuta da peça 3</p><p>Figura 7: Resposta à escuta da peça 3</p><p>Figura 8: Resposta à escuta da peça 3</p><p>E ainda:</p><p>(3) “Homem meditando.”</p><p>(3) “Eu chorando e minhas lágrimas derrapando.”</p><p>(3) “Eu sonhando que estou dançando balé.”</p><p>(3) “Alguém perdido (‘onde eu estou?’).”</p><p>(3) “Uma pessoa triste rodando no céu, perdeu uma pessoa,</p><p>muito triste, aflita.”</p><p>Assimetria entre as respostas</p><p>É comum as crianças apresentarem níveis diferentes em seus</p><p>produtos musicais. Em minha pesquisa de doutorado (França Silva</p><p>1998), essa assimetria ocorreu entre os produtos da composição, da</p><p>apreciação e da performance, e também entre produtos da mesma</p><p>modalidade. No referido estudo, ocorreram diferenças entre as respostas</p><p>relativas às três músicas ouvidas, como nestas respostas de uma mesma</p><p>criança:</p><p>(1) “Esta música demonstra uma pessoa feliz.” (Nível pessoal)</p><p>(2) “Esta música tem o instrumento teclado.” (Nível</p><p>manipulativo)</p><p>(3) “Esta música é assustadora.” (Nível pessoal)</p><p>A assimetria também se revelou nos desenhos (Figura 9):</p><p>Figura 9: Resposta à escuta das três peças: (1) (manipulativo); (2)</p><p>(pessoal); (3) (manipulativo)</p><p>Essa oscilação entre níveis adjacentes tem importantes implicações.</p><p>Primeira: é imprescindível realizar observações repetidas, ou seja,</p><p>coletar múltiplos produtos de uma criança, para aumentar as chances de</p><p>seu nível ótimo se manifestar, minimizando as chances de erro na</p><p>avaliação. Segunda: o próprio repertório pode provocar determinados</p><p>padrões de resposta. Mais uma vez, vivências diversificadas com</p><p>repertórios ecléticos permitirão maior variedade nas respostas. Terceira:</p><p>uma vez que a Teoria Espiral é um modelo psicológico de avaliação,</p><p>procuramos localizar o nível mais alto revelado por cada criança,</p><p>embora essa condição ainda não se apresente de maneira consistente em</p><p>todos os seus produtos musicais.</p><p>Materiais explicam o caráter</p><p>O requinte da apreciação musical se dá quando as crianças nos</p><p>oferecem os porquês das suas respostas: como os materiais sonoros</p><p>provocam diferenças de caráter expressivo. Essa habilidade é expressa</p><p>na matriz curricular pelo descritor “associar o caráter expressivo a</p><p>andamento, alturas, padrões rítmicos, intensidade e outros elementos”</p><p>(França 2006).</p><p>(1) “Legal porque é um pouco infantil.”</p><p>(2) “Boa, feliz, legal porque remexe muito.”</p><p>(3) “Um pouco ilegal [sic], porque é triste.”</p><p>(1) “A música é muito divertida, rápida e alegre.”</p><p>(2) “De balé, tipo aguda.”</p><p>(3) “A música é muito lenta e calma.”</p><p>Não tivemos respostas no nível vernacular, no qual “o aluno</p><p>percebe procedimentos de organização métrica, seqüências, repetições,</p><p>síncopes, pedais, ostinatos, motivos musicais convencionais e tipos</p><p>previsíveis de fraseado” (Swanwick 1988, pp. 152-153). Isso pode ter</p><p>acontecido em virtude da natureza do repertório, que fugia do vernáculo</p><p>praticado pelas crianças em seu cotidiano (funk, pop, pagode, sertanejo,</p><p>axé, rock).</p><p>A compreensão musical vernacular associa-se, na matriz curricular,</p><p>a descritores como: “identificar e delimitar frases”; “identificar a</p><p>repetição de frases musicais”; “identificar cânones”; “identificar</p><p>ostinatos”; “identificar o procedimento de pergunta e resposta</p><p>(antecedente e conseqüente)”; “compreender o conceito de melodia”;</p><p>“compreender o conceito de acompanhamento”; “associar melodias e</p><p>acompanhamentos aos parâmetros musicais” etc. (França 2006).</p><p>Indícios da percepção da forma: Nível especulativo</p><p>Seguindo a trilha do desenvolvimento, os padrões previsíveis do</p><p>vernacular começam a ser desafiados pela percepção da forma. A</p><p>percepção da sucessão linear dos eventos é propiciada pela aquisição da</p><p>reversibilidade ao longo da segunda infância (Inhelder e Piaget 2007).</p><p>Com a estabilização da conservação, a criança passa a ser capaz de</p><p>considerar relações simultâneas entre elementos ou objetos. Essas</p><p>aquisições cognitivas subsidiam a percepção da relação temporal entre</p><p>os eventos musicais, favorecendo a transição entre os níveis vernacular</p><p>e especulativo.</p><p>No nível especulativo, o aluno percebe relações estruturais,</p><p>identificando o que é incomum ou inesperado em uma peça; relações</p><p>entre as frases, como os motivos musicais são repetidos, transformados,</p><p>contrastados ou conectados entre si; mudanças de caráter associadas a</p><p>cor instrumental, altura, andamento, ritmo, intensidade e tamanho das</p><p>frases, podendo ser capaz de avaliar a magnitude de tais mudanças</p><p>(Swanwick 1988, pp. 152-153).</p><p>Na matriz curricular, esses pontos são correlatos aos descritores</p><p>“associar variações de andamento a mudanças de caráter e à forma”;</p><p>“identificar a repetição de eventos e frases musicais”; “identificar</p><p>(delimitar) introdução”; “associar a articulação estrutural a mudanças de</p><p>caráter e organização do material sonoro” (França 2006).</p><p>Nos dados coletados, identificamos seis crianças que estavam</p><p>ensaiando o especulativo. Encontramos expressões ou palavras que</p><p>denotavam passagem do tempo (início, meio e fim), organização</p><p>sequencial (antes e depois) e alusão a elementos musicais estruturantes</p><p>da forma (silêncio, partes):</p><p>(1) “Eu percebi que a música sempre tinha um piano no meio.”</p><p>(1) “Tipo o balé, coisa agitada, alegre, bom de ouvir, acaba</p><p>lenta.”</p><p>(1) “Piano, clássica, devagar, rápida e depois devagar.”</p><p>(1) “Rápida, só tem piano, parece formiguinhas, poucos</p><p>segundos de duração, tocou 4 vezes, trim 2 vezes.”</p><p>(2) “Na música 2 já foi diferente, eu percebi que havia muitas</p><p>partes com flauta.”</p><p>(3) “Já a música 3 era bem diferente, tinha uns silêncios,</p><p>do curso</p><p>de animadores musicais, participaram ainda o ReTimbrar e o Som da</p><p>rua, mencionados anteriormente. Tratou-se de uma experiência</p><p>marcante para todos, e para a escola também. A adesão da comunidade</p><p>escolar foi excelente, e o projeto dinamizou as famílias e o bairro. O</p><p>Coro de S. Tomé continuou após o “Sonópolis” e participou num</p><p>concerto com a Orquestra Nacional do Porto (ONP) em dezembro de</p><p>2011.</p><p>O projeto “Fantasia sobre fantasia” apareceu na sequência do</p><p>desenvolvimento de ideias que se aliam à sensibilização para a música</p><p>com orquestra. Um desses projetos, “A orquestra vai à escola”, consistia</p><p>na apresentação da ONP em escolas do distrito do Porto durante uma</p><p>semana. O concerto era precedido pela preparação antecipada das</p><p>crianças e tinha um formato informal e interativo, mediado por um</p><p>formador do SE. Outra experiência foi o projeto “Novas colinas</p><p>douradas do ribeiro”, formado pelo trabalho de músicos da ONP com</p><p>várias comunidades (toxicodependentes em recuperação, crianças</p><p>superdotadas, pessoas com deficiência mental), objetivando a criação de</p><p>novas variações a partir das Variações Goldberg. O projeto “Fantasia</p><p>sobre fantasia” envolveu vários níveis do ensino (básico, secundário,</p><p>universitário e pós-graduação) e consistiu em tomar como ponto de</p><p>partida as peças orquestrais usadas por Walt Disney no filme Fantasia,</p><p>propondo aos diferentes grupos a realização de um filme de animação</p><p>original baseado em determinada peça. O SE envolveu várias</p><p>associações e escolas que trabalham com cinema de animação e, no</p><p>caso das crianças do ensino básico, o trabalho foi realizado com escolas</p><p>de bairros da zona antiga do Porto e de Matosinhos. As crianças</p><p>realizaram várias sessões musicais genéricas com o formador do SE</p><p>envolvido no projeto, visitaram a CdM, trabalharam na Digitópia,</p><p>assistiram a um ensaio da ONP e finalmente foram introduzidas às</p><p>peças em questão (a “Dança da fada açucarada” e a “Valsa das flores”,</p><p>da suíte O quebra-nozes, de Tchaikovsky), por meio de atividades de</p><p>audição ativa. Numa segunda fase, trabalharam com o formador</p><p>responsável pelo trabalho com cinema de animação e criaram histórias e</p><p>guiões para cada uma das peças, desenvolvendo posteriormente</p><p>desenhos que serviram de parâmetro para animações baseadas em</p><p>sequências de fotografias digitais desses desenhos. As diferentes escolas</p><p>que participaram no projeto produziram filmes com guiões, técnicas e</p><p>estéticas muito diversas. O caso das duas escolas do ensino básico foi</p><p>especialmente interessante pela originalidade dos guiões e pela</p><p>vivacidade das formas animadas. Em um caso, da música surgiu uma</p><p>história de polícias e ladrões, no outro, uma história com as pontes e</p><p>casas da zona ribeirinha do rio Douro. Nas duas situações, foi</p><p>particularmente interessante observar como a estrutura e os gestos da</p><p>música orquestral foram claramente compreendidos e expressos de</p><p>forma imaginativa, por meio de imagens. Finalmente, as animações</p><p>foram projetadas em concertos com a ONP, para o público geral e</p><p>também numa sessão para escolas, com grande receptividade por parte</p><p>das crianças, e, obviamente, com um sentido de grande orgulho por</p><p>parte do grupo restrito, que teve oportunidade de realizar o projeto. Não</p><p>obstante o trabalho ter tido um alcance limitado no número de</p><p>participantes diretos, teve um grande impacto na comunidade escolar.</p><p>Foi possível perceber que o cinema de animação, quando colocado no</p><p>centro de atividades criativas ao alcance de muitos, possibilita</p><p>estratégias aliciantes e imaginativas para se entrar no mundo rico, mas</p><p>às vezes complexo, da música orquestral.</p><p>A formação de professores e a articulação com as escolas</p><p>Embora não se tratando de trabalho direto com crianças, importa,</p><p>por último, mencionar um tipo de atividade que tem implicações sobre</p><p>elas de modo muito prático e visível. Trata-se das atividades de</p><p>formação para professores, pensadas com vistas a providenciar pistas e</p><p>materiais de trabalho concretos para o trabalho com crianças, valendo-</p><p>se de ações de formação sobre tópicos específicos, com a duração de</p><p>um dia (“Formação música na sala de aula”) ou de projetos que se</p><p>desenrolavam ao longo de vários meses. A primeira incluiu alguns</p><p>títulos irreverentes ou provocativos, por exemplo, “Como sobreviver ao</p><p>Natal sem ter que cantar o pinheirinho”, “Eu consigo ser o mais chato</p><p>da minha escola”, entre outros, que se destinavam a fomentar o espírito</p><p>crítico, questionar algumas das práticas estagnadas da escola e procurar</p><p>soluções criativas para atividades musicais. Outros tópicos, contudo,</p><p>abordavam algumas das atividades específicas mais comuns, como o</p><p>coro infantil, a flauta de bisel ou a construção de instrumentos,</p><p>propondo uma reciclagem e um aprofundamento dos conhecimentos dos</p><p>participantes.</p><p>Entre os projetos realizados com professores, incluem-se a “Grande</p><p>bichofonia” (Rodrigues e Rodrigues 2008) (Figura 7) e “Histórias do</p><p>sul”. Trata-se de projetos que se realizaram ao longo de seis meses com</p><p>sessões mensais de um dia e que culminaram na apresentação de um</p><p>espetáculo final dirigido a crianças, entre as quais aquelas com quem os</p><p>professores foram trabalhando ao longo do processo, aplicando</p><p>estratégias e transmitindo conteúdos aprendidos nas sessões de</p><p>formação. Embora os dois casos sejam muito diferentes em termos</p><p>temáticos e estéticos, perfiguram um modelo que tem claramente duas</p><p>características fundamentais: providenciar conhecimentos e ferramentas</p><p>que são imediatamente aplicados na escola e investir no</p><p>desenvolvimento artístico do professor, colocando-lhe desafios</p><p>performáticos exigentes. O primeiro aspecto é importante por criar</p><p>oportunidades de partilha e reflexão dentro do grupo, as quais permitem</p><p>avaliar a implementação das ideias nas crianças. Ele também assegura,</p><p>de início, a preparação antecipada das crianças que vinham ao concerto</p><p>final, mas de forma informal e natural. O segundo aspecto é, no nosso</p><p>entender, especialmente importante, porque dá oportunidade aos</p><p>professores de música de se desenvolverem e se afirmarem como</p><p>artistas. É frequente ver professores de música que acabaram por se</p><p>distanciar da prática musical em virtude da falta dessa oportunidade. A</p><p>criação de desafios performáticos é, não só, uma forma de aprofundar</p><p>capacidades musicais necessárias à atividade docente, mas, também,</p><p>uma forma de reabilitar ou reconciliar o professor e o artista, com</p><p>evidentes ganhos na capacidade de autoestima e de trabalho destes,</p><p>além de exercer um efeito muito positivo na imagem que transmitem</p><p>aos alunos (as crianças percebem e apreciam o fato de verem os seus</p><p>professores no papel de artistas).</p><p>Figura 7: "Grande bichofonia"</p><p>A estrutura e o modo de operação do Serviço Educativo</p><p>A “Casa da Música” é um projeto que surgiu no âmbito da</p><p>programação do “Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura”. Não</p><p>obstante o edifício só ter sido concluído em 2005 e a CdM ter sido</p><p>inaugurada naquele ano, a atividade, e particularmente a atividade</p><p>educativa, iniciou-se alguns anos antes. A missão educativa está, assim,</p><p>inscrita na raiz do projeto, tratando-se de um cenário muito diferente do</p><p>de vários teatros de ópera europeus, por exemplo, onde a existência de</p><p>serviços educativos é uma adição recente, com consequências notórias</p><p>na afirmação dentro da instituição a que pertencem. Na Casa da Música,</p><p>o SE está integrado à direção artística e de educação, conta com uma</p><p>equipe de cinco pessoas, que garante a concepção e a gestão das</p><p>atividades que organiza, possui um orçamento de funcionamento e gere</p><p>um orçamento de eventos que se destina à implementação das</p><p>atividades educativas. Estas últimas eram implementadas por músicos e</p><p>educadores de fora da CdM, alguns portugueses, outros estrangeiros,</p><p>contudo, nesse período, foi criada uma equipe de base, denominada</p><p>Factor E – grupo de formadores residentes –, responsável por uma parte</p><p>considerável das atividades regulares.</p><p>O Factor E, composto por dez músicos/educadores, trabalhava em</p><p>laboratório, criando e implementando propostas educativas para a CdM,</p><p>as quais eram também</p><p>é</p><p>legal.”</p><p>O passo seguinte</p><p>Ouvindo o que as crianças têm a dizer, podemos preparar</p><p>intervenções de ensino mais direcionadas e efetivas. Conhecendo o</p><p>percurso do desenvolvimento e os alunos, podemos individualizar as</p><p>intervenções e atuar nas dificuldades e facilidades de cada um.</p><p>Às crianças que estão focadas nos materiais sonoros, podemos</p><p>apresentar desafios mais analíticos quanto aos timbres, à direção</p><p>melódica e ao andamento, ao mesmo tempo em que oferecemos</p><p>oportunidades para que explorem a expressividade desses materiais. Por</p><p>exemplo: “o ‘nã nã nã’ da música 1 é igual ao ‘nã nã nã’ da música 2?</p><p>Por quê?”; “por que você achou a música com o piano bem agudo mais</p><p>legal?”; “o que você achou do crescendo e do diminuindo da peça 1?”;</p><p>“vamos inventar uma música com crescendo e diminuindo?”; “e se</p><p>tocarmos agora bem devagar e fraquinho?”.</p><p>Para as crianças que descreveram o clima emocional da peça, é</p><p>importante perguntar quais elementos sonoro-musicais provocaram tais</p><p>associações: “como são os sons dessa música que parece de tristeza?”;</p><p>“por que parece desengonçado?”; “por que essa música lhe transmite</p><p>paz?”; “por que a música 1 não combina com ‘um homem</p><p>meditando’?”; “por que a música 2 parece de fadas?”; “como são as</p><p>músicas de balé?”; “por que você pensou em um pato dançando?”.</p><p>Para promover a percepção de padrões vernaculares, direcionamos</p><p>a percepção para as frases, a ocorrência de ostinatos, as repetições e</p><p>sequências: “as frases são do mesmo tamanho?”; “como são as frases da</p><p>clarineta?”; “como é o acompanhamento da música 3?”; “essa música se</p><p>parece com alguma que você conheça? Por quê?”.</p><p>Se alguns estão percebendo a forma intuitivamente, devemos ajudá-</p><p>los a clarear sua compreensão da estrutura da peça: “se a música acaba</p><p>lenta, como é o início e o meio dela?”; “em que partes a clarineta</p><p>aparece?”; “todas as frases são iguais?”; “onde os silêncios aparecem, e</p><p>por quê?”; “quando é que as frases da música 2 mudam?”; “por que</p><p>você acha que o compositor colocou um ‘trim’ no começo e outro no</p><p>final?”.</p><p>Vigilância</p><p>O processo educacional resulta mais efetivo quando se torna</p><p>sensível à individualidade da criança. Devemos manter constante</p><p>vigilância, perguntando-nos sempre: “o que há de desenvolvimento</p><p>revelado nos movimentos, nos desenhos, nos adjetivos expressos pelas</p><p>crianças?”; “o que elas estão apresentando espontaneamente e também</p><p>de maneira assistida?”; “o que há de aprendizado brotando das</p><p>experiências?”.</p><p>Somos capazes de ver a individualidade, a riqueza, o pormenor, ou</p><p>seguimos repetindo atividades, pasteurizando experiências,</p><p>compactando resultados em uma linha do diário de classe? Estamos</p><p>traçando objetivos para atender às nossas expectativas (e às do sistema</p><p>educacional), ou estamos prontos para, junto com as crianças, construir</p><p>percursos musicais originais?</p><p>Pois a experiência musical ocorre na interseção entre indivíduo e</p><p>música, na interação entre vivências, memórias, preferências,</p><p>idiossincrasias e padrões psicodinâmicos resultantes das combinações</p><p>sonoras. As crianças mergulham na escuta com uma prontidão que não é</p><p>simplesmente do ouvido, mas do corpo, da mente e do afeto. Ouvem</p><p>com sabor de estreia e nos devolvem pérolas como “uma borboleta</p><p>pisando nas teclas do piano”.</p><p>Portanto, se a música tiver que estar na escola, que não seja</p><p>subvertida em notas e sufocada em cronogramas; que não se corrompa à</p><p>facilidade das teorias, claves e colcheias. Se a música tiver que estar na</p><p>escola, que seja pelo seu potencial de converter experiências com sons</p><p>em oportunidades de articulação expressiva e simbólica. Que conserve</p><p>sua essência, tornando-se, fortuitamente, símbolo de nós mesmos.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>BARBOSA, K.J. (2009). “Conexões entre o desenvolvimento cognitivo e o musical: Estudo</p><p>comparativo entre apreciação musical direcionada e não direcionada de crianças de sete a</p><p>dez anos em escola regular”. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: Departamento de</p><p>Música/Universidade Federal de Minas Gerais.</p><p>BUNTING, R. (1977). “The common language of music. Music in the secondary school</p><p>curriculum”. Working Paper Six, Schools Council, York University.</p><p>CARNEIRO, A.N. (2006). “Desenvolvimento musical e sensório-motor da criança de zero a</p><p>dois anos: Relações teóricas e implicações pedagógicas”. Dissertação de mestrado. Belo</p><p>Horizonte: Departamento de Música/Universidade Federal de Minas Gerais.</p><p>CARNEIRO, A.N. e FRANÇA, C.C. (2006). “O desenvolvimento de condutas sensório-</p><p>motoras dos bebês: Implicações para a estimulação musical no primeiro ano de vida”.</p><p>Anais do XV Encontro Anual da Abem. João Pessoa.</p><p>DEL BEN, L.M. (1996-1997). “A utilização do Modelo Espiral de Desenvolvimento Musical</p><p>como critério de avaliação da apreciação musical em um contexto educacional brasileiro”.</p><p>Revista Em Pauta, v. 12, n. 13, nov.-abr. Porto Alegre, pp. 35-54.</p><p>FONSECA, M.B.P. (2005). “O canto espontâneo da criança de três a seis anos como indicador</p><p>de seu desenvolvimento cognitivo-musical”. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte:</p><p>Departamento de Música/Universidade Federal de Minas Gerais.</p><p>FRANÇA, C.C. (2005). “Apreciação musical como indicador da compreensão musical no</p><p>vestibular da UFMG”. Anais do XIV Congresso da Anpom. Rio de Janeiro.</p><p>________ (2006). “Do discurso utópico ao deliberativo: Fundamentos, currículo e formação</p><p>docente para o ensino de música na escola regular”. Revista da Abem, n. 15. Porto Alegre,</p><p>pp. 67-79.</p><p>FRANÇA, C.C. e BARBOSA, K.J. (2009). “Estudo comparativo entre a apreciação musical</p><p>direcionada e não direcionada de crianças de sete a dez anos em escola regular”. Revista</p><p>da Abem, n. 22. Porto Alegre, pp. 7-18.</p><p>FRANÇA, C.C. e CARNEIRO, A.N. (2006). “O desenvolvimento de condutas sensório-</p><p>motoras dos bebês: Implicações para a estimulação musical no primeiro ano de vida”.</p><p>Anais do XV Encontro Anual da Abem. João Pessoa, pp. 1-6.</p><p>FRANÇA, C.C. e SWANWICK, K. (2002). “Composição, apreciação e performance na</p><p>educação musical: Teoria, pesquisa e prática”. Revista Em Pauta, v. 13, n. 21. Porto</p><p>Alegre, pp. 5-42.</p><p>FRANÇA SILVA, M.C.C. (1998). “Composing, performance and audience listening as</p><p>symmetrical indicators of music understanding”. Tese de doutorado (PhD). Londres:</p><p>Institute of Education/University of London.</p><p>HANSLICK, E. (1957). The beautiful in music. Indianápolis: Bobs-Merril.</p><p>HENTSCHKE, L. (1993). “Musical development: Testing a model in the audience-listening</p><p>setting”. Tese de doutorado. Londres: Institute of Education/University of London.</p><p>INHELDER, B. e PIAGET, J. (2007). A psicologia da criança. Trad. Octavio Mendes Cajado.</p><p>3ª ed. 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Cambridge</p><p>University Press, pp. 305-339.</p><p>VYGOTSKY, L.S. (1984). A formação social da mente: O desenvolvimento dos processos</p><p>psicológicos superiores. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes.</p><p>2</p><p>VARIAÇÕES SOBRE TEMAS DE</p><p>DESENVOLVIMENTO MUSICAL E CRIAÇÃO</p><p>ARTÍSTICA PARA A INFÂNCIA[2]</p><p>Helena Rodrigues</p><p>Nuno Arrais</p><p>Paulo Maria Rodrigues</p><p>Nota prévia</p><p>(…) a obra do investigador criativo, a teoria, tem muito</p><p>em comum com a obra de arte; e a atividade criativa do</p><p>investigador assemelha-se à do artista (...)</p><p>Karl Popper (1989)</p><p>Há um tempo para o método científico e um tempo para a</p><p>intuição, o primeiro traz-nos mais certezas, o segundo</p><p>oferece-nos mais possibilidades e os dois juntos são a</p><p>base sólida de um pensamento criativo.</p><p>Berne (1949)</p><p>Se a realidade fosse objeto de estudo por outros seres que não os</p><p>humanos talvez se chegasse à conclusão de que na produção científica</p><p>ou na criação artística os humanos se organizam em bandos e cardumes</p><p>tal como acontece com outras espécies de bichos. Talvez no lugar dos</p><p>hormônios e feromônios – que parecem estar na base de comportamentos</p><p>de atração ou repulsão por parte dos seres humanos – ou do imprinting</p><p>que Konrad Lorenz identificou, encontrássemos ideologias e credos a</p><p>atar as pontas de seres que não se querem sozinhos. Ou, talvez,</p><p>concluíssemos existir nos humanos insondáveis mistérios de</p><p>dependências e lideranças, subespécies miméticas das orfandades com</p><p>que nascemos, a fazer lembrar a organização das abelhas e das suas</p><p>colmeias. Ou, talvez ainda, encontrássemos no submundo dos afetos,</p><p>circunstanciais mas sempre identitários (a existência só é confirmada</p><p>pelos outros), razões para, pelo menos temporariamente, nos ligarmos a</p><p>uma dada opção metodológica ou a determinada preferência estética.</p><p>O apelo ao “conhecimento interdisciplinar” expõe um pedido de</p><p>salvação: o diálogo entre as disciplinas é mais importante do que o</p><p>conhecimento propriamente dito porque a sobrevivência da espécie</p><p>humana depende mais da pacificação da tribo do que da produção de</p><p>conhecimento. Ora, o conhecimento é apenas conhecimento e, por isso,</p><p>não deveria ser necessário referir a interdisciplinaridade. Os apelos ao</p><p>conhecimento “interdisciplinar” são disfarces de tentativas de governo</p><p>das urbes gnósticas, não vão elas – também – contribuir para o mal-estar</p><p>social. Uni-vos e interdisciplinai-vos, oh saberes do mundo!</p><p>É esse o espírito que inspira a questão que guia este texto, e que,</p><p>pelas hostes que mobiliza, bem pode ser uma espécie de amor entre</p><p>Romeu e Julieta: pode a criação artística para a infância ser fonte de</p><p>inspiração para o estudo do desenvolvimento musical na infância? Pode</p><p>aplicar-se o paradigma do pensamento científico ao estudo da criação</p><p>artística nessa etapa da vida?</p><p>Isto é, estamos confinados a manter as aparências do entendimento</p><p>fundado na consanguinidade gnosológica comunicando apenas com os</p><p>da mesmo tribo – dum lado “les artistes”, do outro “the scientists”? Ou</p><p>ousamos atravessar as margens de ignorância de todos os conhecimentos</p><p>e, levados pela via da vontade de pertença universal e pelo fascínio da</p><p>clandestinidade, conseguimos criar novas fórmulas de trabalho? Esse é o</p><p>ponto de partida do presente capítulo: atravessar fronteiras (as da tribo,</p><p>já que o conhecimento não as tem); correr o risco de ficar sós em terra de</p><p>ninguém e, certamente, fazer jus ao título do livro de Popper acima</p><p>citado.</p><p>Assim, com base na descrição de algumas das criações da</p><p>Companhia de Música Teatral, procuramos, por um lado, mostrar como é</p><p>que conhecimentos vindos da psicologia e da pedagogia musical têm</p><p>inspirado o trabalho artístico da CMT, e, por outro, demonstrar como é</p><p>que a própria criação artística pode inspirar novas questões e trazer</p><p>informação relevante no âmbito do estudo do desenvolvimento musical</p><p>na infância.</p><p>Variação sobre o trabalho artístico e educativo da</p><p>Companhia de Música Teatral</p><p>Situada dentro de uma estética que vai da “música cênica” ao</p><p>“teatro-musical”, a Companhia de Música Teatral tem-se distinguido no</p><p>panorama musical europeu pela concepção de uma série de projetos de</p><p>caráter artístico e educativo com uma filosofia muito própria. Entre</p><p>produções como Uma prenda para Eugênio de Andrade (projeto de</p><p>música e poesia em parceria com um coro e um artista plástico) a</p><p>Cyberlieder (projeto de arte digital), é possível encontrar no historial da</p><p>CMT uma diversidade de criações que foram desenvolvidas e</p><p>apresentadas para vários tipos de público, com recurso a meios e</p><p>linguagens artísticas diversificadas e frequentemente associadas a</p><p>suportes educativos.</p><p>Não obstante, em todas as criações da CMT há um fio condutor</p><p>estruturante: a música é ponto de partida e, simultaneamente, ponto de</p><p>encontro entre várias expressões artísticas. Há ainda outra nota</p><p>dominante nos trabalhos concebidos pela CMT: apresentam uma forte</p><p>vertente educativa, como se evidencia, aliás, nas publicações (livros ou</p><p>suportes multimídia) que, regra geral, acompanham as criações do grupo.</p><p>Contudo, no âmbito deste artigo, limitaremos nossas reflexões a um</p><p>projeto educativo (“BebêBabá”) e a duas produções dirigidas à primeira</p><p>infância (“BebêPlimPlim” e “AliBaBach”), dada a especificidade de</p><p>questões que permitem levantar.</p><p>Variação sobre o tema “BebêBabá”</p><p>Desde o nascimento, os bebês são seres sociáveis capazes</p><p>de apreciar a companhia festiva de um grupo (...)</p><p>(...) o trabalho (da Companhia de Música Teatral) é o da</p><p>descoberta artística na intimidade, tendo como inspiração</p><p>a musicalidade das crianças. Creio mesmo que a</p><p>mensagem mais importante do seu trabalho é como é que</p><p>uma festa de Música pode construir uma comunidade.</p><p>Trevarthen, apud Rodrigues, Rodrigues e Nunes 2003, p.</p><p>7</p><p>O projeto “BebêBabá” (Rodrigues, Rodrigues e Nunes 2003;</p><p>Rodrigues e Rodrigues 2005 e Rodrigues, Rodrigues e Correia 2008)</p><p>surgiu na sequência de uma série de sessões de orientações musicais para</p><p>pais com bebês inspiradas na teoria de aprendizagem musical de Edwin</p><p>Gordon, com quem temos tido o privilégio de contactar desde 1994. De</p><p>acordo com essa teoria, as bases do vocabulário musical firmam-se num</p><p>processo de aquisição semelhante ao da língua falada, sendo importante</p><p>proporcionar ao bebê, desde o nascimento, um ambiente musical rico e</p><p>diversificado.</p><p>O projeto “BebêBabá” adveio desse tipo de trabalho, tendo sido</p><p>concebido como o híbrido de um percurso formativo e de uma</p><p>apresentação artística. Inspirado e dedicado a Edwin Gordon, o projeto</p><p>ganhou identidade própria e integra influências variadas, quer do</p><p>domínio da psicologia, quer do da música. No nosso entender, é um</p><p>exemplo bem-sucedido do que se costuma designar como trabalho de</p><p>“investigação-ação”.</p><p>A primeira realização de “BebêBabá” ocorreu em 2001, e, desde a</p><p>sua estreia, o projeto tem sido reconstruído com outros pais e bebês</p><p>participantes.[3] Em 2008, em colaboração com o Serviço Educativo da</p><p>Casa da Música do Porto e o Estabelecimento Prisional Especial de</p><p>Santa Cruz do Bispo, foi adaptado e realizado com mães reclusas e seus</p><p>respectivos filhos.[4]</p><p>A estrutura do projeto é a seguinte: uma série de workshops para</p><p>adultos; uma série de workshops para bebês dos zero aos 24 meses,</p><p>acompanhados de seus pais (ou avós, irmãos ou outros educadores); uma</p><p>apresentação final aberta ao público, em que os bebês e os adultos</p><p>acompanhantes tembém participam. As várias produções de “BebêBabá”</p><p>obedecem a uma estrutura comum, mas sua concretização adapta-se</p><p>sempre à dinâmica e aos recursos musicais de cada grupo de</p><p>participantes. Cada edição de “BebêBabá” é, pois, sempre diferente da</p><p>anterior.</p><p>Nos workshops realizados exclusivamente com os adultos, procura-</p><p>se explorar as capacidades musicais e expressivas</p><p>dos participantes. Por</p><p>meio de jogos dramáticos, musicais e de movimento, enfatizam-se</p><p>aspectos relacionais e de interação entre os membros do grupo. É uma</p><p>relaxada vivência musical e comunicacional, em que os participantes</p><p>aproveitam para exteriorizar seu “estado de ego de criança” (utilizando a</p><p>expressão da análise transacional de Berne 2009) e para partilhar suas</p><p>experiências de parentalidade. Trata-se de uma experiência intensa que</p><p>marca os pais dos bebês: eles encontram apoio entre si, trocam</p><p>experiências (e, sobretudo para os pais que o são pela primeira vez, isso</p><p>é muito relevante) e enriquecem as possibilidades de interação com os</p><p>seus filhos, compreendendo como a música pode estar presente na</p><p>brincadeira do cotidiano e em suas práticas educativas.</p><p>Nos workshops realizados com pais e bebês, seguem-se os</p><p>princípios da teoria da aprendizagem musical de Edwin Gordon (2000a).</p><p>Os workshops constituem uma oportunidade de aculturação musical por</p><p>parte do bebê, mas também uma oportunidade de enriquecimento da</p><p>interação entre as díades constituídas pelo bebê e seu respectivo adulto</p><p>prestador de cuidados, bem como das formas de comunicação entre todo</p><p>o grupo. De qualquer modo, os bebês e a inter-relação adulto-bebê são</p><p>sempre o principal foco de atenção.</p><p>Em ambos os tipos de workshops, o canto – solo e acompanhado – e</p><p>a dança são os meios musicais privilegiados, funcionando os materiais</p><p>musicais propostos e a própria atuação dos intérpretes da Companhia de</p><p>Música Teatral como catalisadores da dinâmica de grupo que se vai</p><p>gerando. Os workshops – quer os destinados exclusivamente a adultos,</p><p>quer os destinados a bebês acompanhados dos pais – são espaço para</p><p>“brincar musicalmente”, a partir de atividades previamente definidas,</p><p>deixando sempre lugar para a imaginação e para a experimentação de</p><p>cada um dos participantes.</p><p>Ao longo desse processo e por meio de diversas formas de interação</p><p>mediadas pela música e por um conjunto de adereços cênicos, vai-se</p><p>afinando a relação dos participantes consigo próprios, entre todo o grupo</p><p>e, mais especificamente, entre as díades adulto-bebê. O objetivo é a</p><p>cocriação de uma apresentação final, sendo que a existência dessa meta é</p><p>importante para galvanizar e dar sentido ao trabalho de todo o grupo.</p><p>Note-se, contudo, que a apresentação final é algo mais do que um</p><p>simples espetáculo: trata-se de organizar, transposta para o palco, uma</p><p>espécie de festa em que participam pais, bebês e intérpretes. Essa meta</p><p>ajuda a congregar o grupo, tal como defende a teoria de dinâmica de</p><p>grupos, a qual nos ensina que a “celebração” é uma fase importante na</p><p>evolução de um grupo. Essa espécie de festa é, com toda a sua</p><p>genuinidade, naturalidade e simplicidade, partilhada com quem está</p><p>sentado na plateia e que, de modo geral, inclui muitos familiares dos</p><p>bebês que atuam no palco. Por outro lado, o processo de construção da</p><p>apresentação final é, em si mesmo, talvez o mais importante de tudo.</p><p>Assim, ao longo dos workshops, são recolhidas imagens que são depois</p><p>integradas no espetáculo final, procurando-se, de algum modo, que o</p><p>público possa ter acesso à riqueza das experiências previamente vividas.</p><p>A componente musical desse projeto é fortemente estruturante.</p><p>Seguindo de perto as ideias da teoria de aprendizagem musical de</p><p>Gordon, foi criado um conjunto de canções curtas, com características</p><p>musicais contrastantes, e também fragmentos musicais que se</p><p>aproximam daquilo que o autor designa de “cantos” rítmicos. As ideias</p><p>de repetição, contraste e variabilidade nas características musicais dos</p><p>exemplos utilizados, e aquelas relativas à importância de alternar a</p><p>exposição à música com o silêncio, estiveram igualmente presentes.</p><p>Um conjunto de canções de ninar, de canções tradicionais</p><p>portuguesas e de lenga-lengas também faz parte do material utilizado em</p><p>atividades de movimento e improvisação musical, na exploração</p><p>onomatopaica de sons etc. A tudo isso, acrescenta-se o recurso a</p><p>elementos cênicos – como um conjunto colorido de boias insufláveis –,</p><p>como forma de proporcionar a exploração expressiva transmodal,</p><p>tornando “BebêBabá” um projeto verdadeiramente multidisciplinar.</p><p>Temos utilizado o termo “abordagem sistêmica” para caracterizar</p><p>esse projeto (Rodrigues, Rodrigues e Nunes 2003). Embora ele seja</p><p>utilizado de modo aproximativo e metafórico, a verdade é que, pela</p><p>leitura da bibliografia que faz a sua aplicação a situações educativas e</p><p>clínicas, desde há muito que essa perspectiva vem influenciando nossa</p><p>forma de pensar. Reconhecemos claramente essa influência em nossa</p><p>perspectiva filosófica sobre a educação e nomeadamente na concepção</p><p>desse projeto.</p><p>Um sistema é uma totalidade organizada, em que vários elementos</p><p>distintos coexistem em interação e em função de um determinado fim.</p><p>Os vários elementos em relação são participantes de um todo, de um</p><p>conjunto coerente e indivisível; por seu lado, a modificação de um</p><p>elemento acarreta alterações nos outros e, consequentemente, em todo o</p><p>sistema. Dias (2004) diz-nos que embora essa ideia possa parecer</p><p>simples, veio causar um impacto tremendo na comunidade científica e</p><p>afetar a maior parte das áreas de conhecimento que, até à década de</p><p>1950, encontravam-se submersas no pensamento analítico linear. Com a</p><p>visão sistêmica, que propõe uma abordagem holística do conhecimento,</p><p>vimos introduzidos conceitos muito importantes, como o de</p><p>retroatividade dos efeitos sobre as causas, de equilíbrio, relação interna e</p><p>externa dos sistemas etc.</p><p>A delimitação de um sistema, neste caso, depende do que se quer</p><p>observar, da nossa posição no campo de observação. Em “BebêBabá”,</p><p>olhamos para a música como o “ponto crítico” capaz de otimizar o</p><p>funcionamento do sistema. A dinâmica gerada pela prática musical faz</p><p>parte de uma estratégia que possibilita o surgimento de novas dinâmicas</p><p>na teia relacional. Em nossa prática, temos observado uma espécie de</p><p>“efeito dominó”: a música tem um efeito sobre os bebês participantes;</p><p>por sua vez, as respostas do bebê afetam o respectivo acompanhante</p><p>adulto, que se envolve mais musicalmente e com o seu bebê; o</p><p>envolvimento de uma díade tem um efeito contagiante sobre as outras</p><p>díades e rapidamente se passa a ter um grupo unido, numa interação</p><p>emocional muito própria.</p><p>O conceito de não diretividade, ligado a Carl Rogers (2009), pode</p><p>também ajudar a descrever a atmosfera do projeto: os workshops não são</p><p>usados para “montar” um espetáculo final predeterminado, mas, antes,</p><p>para criar uma dinâmica de exploração de meios rumo a uma construção</p><p>artística coletiva. Rogers defende que, em qualquer encontro humano</p><p>que vise potenciar o crescimento, devem existir três condições básicas e</p><p>simultâneas: a consideração positiva incondicional, a empatia e a</p><p>congruência. Ao praticarem e vivificarem essas condições, os membros</p><p>da equipe do projeto inspiram os cuidadores dos bebês a procurarem por</p><p>si próprios o seu espaço de autodescoberta e autorrealização, dando lugar</p><p>ao estabelecimento de diferentes diálogos com os bebês e entre o próprio</p><p>grupo.</p><p>Assim, para além de serem artistas versáteis, os membros da equipe</p><p>do projeto “BebêBabá” devem ser facilitadores de libertação do núcleo</p><p>positivo existente em qualquer ser humano. Da mesma forma que na</p><p>psicoterapia rogeriana existe um trabalho de cooperação entre psicólogo</p><p>e cliente, visando à pessoa aberta à experiência, vivendo de maneira</p><p>existencial – tornando-se ela própria –, em “BebêBabá”, os facilitadores</p><p>do projeto devem fazer com que, ao longo de todo o processo, cada</p><p>participante encontre a sua própria forma de expressão, manifestando-a</p><p>nos cuidados com o seu bebê. Por exemplo, na edição especial de</p><p>“BebêBabá”, realizada numa prisão de mulheres, tivemos vários relatos</p><p>de que as mães ensaiavam com os seus filhos, nas celas, o repertório</p><p>aprendido. E foi-nos igualmente reportado que, ao “terem de ensaiar”</p><p>para o espetáculo, passaram a se dar com as outras reclusas, com quem</p><p>anteriormente não conviviam.</p><p>De acordo com investigadores como H. Papousek (1995; 1996) e M.</p><p>Papousek (1996),</p><p>há nos pais “predisposições intuitivas” para uma</p><p>primeira estimulação musical e linguística. A comunicação pré-verbal</p><p>que se estabelece entre pais e filhos é não só fundamental em termos</p><p>linguísticos como também uma importante fonte de estimulação musical.</p><p>Isto é, pequenas brincadeiras que os pais estabelecem com os seus bebês</p><p>– como cantar, dançar, dar palmadinhas, jogar com sons variados – são a</p><p>base da comunicação emocional, mas também as primeiras lições na</p><p>aquisição de competências linguísticas e musicais.</p><p>Ao longo do processo de “BebêBabá”, há quem, naturalmente, passe</p><p>a cantar e a se movimentar com o seu bebê encavalitado, quem o</p><p>balanceie ao som de elementos rítmicos básicos, quem o coloque em</p><p>concha na barriga, quem dê palmadinhas ritmadas em seu corpo, quem</p><p>mime um animal, quem passe a interagir em pequenos jogos etc. Ou</p><p>seja, por meio desse projeto, procura-se despertar a “musicalidade</p><p>comunicativa” (Malloch 1999; Trevarthen 1999; Trevarthen e Malloch</p><p>2002) dos pais na relação que eles têm com os seus bebês, incentivando-</p><p>os a que assim continuem a brincar, em seu cotidiano familiar.</p><p>As características rogerianas da personalidade dos facilitadores e o</p><p>potencial de intermediação não verbal da música são, pois, dois</p><p>ingredientes essenciais num projeto que desperta e/ou se constrói a partir</p><p>das “predisposições intuitivas” dos pais. O projeto “BebêBabá” é um</p><p>projeto educativo e artístico, mas é também um momento de encontro</p><p>em que se espera potenciar o que de melhor existe em cada ser humano.</p><p>O nascimento de um ser da nossa espécie, o nascimento de um filho, é</p><p>um momento de transição muito especial e, nesse sentido, seguindo</p><p>passos rogerianos, diríamos que projetos como o “BebêBabá”, que</p><p>atuam no plano da prevenção primária nos cuidados da infância, podem</p><p>ajudar a aperfeiçoar a condição humana.</p><p>Na concepção do referido projeto, há vários ingredientes que podem</p><p>torná-lo especialmente adequado para uma intervenção em contextos</p><p>particularmente necessitados de uma refuncionalização das relações</p><p>parentais e do relacionamento social de modo geral. À agenda artística</p><p>do projeto é, pois, possível acrescentar uma agenda de caráter</p><p>terapêutico, em sentido desenvolvimental e/ou remediativo. Para vários</p><p>participantes, não há dúvida de que esse projeto constitui um ponto de</p><p>encontro entre pessoas que estão aprendendo a ser pais e que encontram</p><p>no grupo uma certa forma de suporte emocional.</p><p>Ao longo do projeto, foi também interessante notar como algumas</p><p>das ideias de Gordon (2000a) encontraram, de algum modo, uma forma</p><p>de validação. Por exemplo, Gordon refere ser a voz humana o meio</p><p>musical mais capaz de captar a atenção dos bebês. Pudemos constatá-lo:</p><p>no sentido de manter vivo o interesse dos bebês pelas atividades</p><p>musicais que se foram realizando, veio a revelar-se absolutamente</p><p>necessário alternar o acompanhamento musical do piano com momentos</p><p>em que se usava exclusivamente a voz humana. Em “BebêBabá”,</p><p>pudemos ainda constatar a necessidade de alternar fragmentos musicais</p><p>com diferentes características – como a necessidade de ir</p><p>permanentemente criando “surpresas musicais”. E, sem dúvida,</p><p>verificamos que os momentos de silêncio – ou de muito menor</p><p>estimulação – são fundamentais se se pretende manter a criança</p><p>interessada. Digamos que é como que um tempo necessário para</p><p>interiorizar o que foi ouvido. Um tempo necessário para se processar a</p><p>informação, para poder ouvir-se a si próprio e apresentar a sua reação ao</p><p>ouvido. Só depois de assimilado o anterior se tem disponibilidade para</p><p>ouvir o que vem a seguir.</p><p>E, note-se, pelas nossas observações, podemos dizer que é</p><p>importante termos os pais como participantes, pois o modo como os</p><p>bebês reagem ao pai ou à mãe que canta é diferente do modo como</p><p>reagem a outro adulto que cante. É como se, nessa idade, as crianças</p><p>olhassem para seus pais como um modelo, como os gansos de Konrad</p><p>Lorenz: se os seus pais cantam ou dançam, isso significa dizer que cantar</p><p>e dançar é bom, e, portanto, é algo a imitar. Trata-se, pois, de uma matriz</p><p>de comportamento que se inscreve na mais tenra infância da construção</p><p>dessas famílias, pois os pais atuam simultaneamente como modelos e</p><p>como supervisores (ou aprovadores) do comportamento de seus</p><p>pequenos “discípulos”.</p><p>Gostaríamos, pois, de pensar que os germes do ritmo e da vibração</p><p>ficarão para sempre inscritos, em completa efervescência, nos</p><p>subterrâneos afetivos dos bebês e dos pais que estiveram conosco ao</p><p>longo das várias edições de “BebêBabá”. E que esses afetos, pilares na</p><p>construção de uma comunidade, renascerão sempre que se afloram as</p><p>raízes da sua musicalidade.</p><p>Variação sobre o tema “BebêPlimPlim”</p><p>A ideia de ninho, ovo e embrião está presente no imaginário dessa</p><p>criação germinada a partir do branco, quer no imaginário visual criado,</p><p>quer na concepção musical. A produção “BebêPlimPlim” engloba um</p><p>workshop dirigido a um pequeno grupo de bebês – acompanhados pelos</p><p>respectivos cuidadores – e um espectáculo (um pequeno excerto dessa</p><p>produção pode ser visto em http://vimeo.com/9046786). Esse espetáculo</p><p>http://http//vimeo.com/9046786</p><p>é normalmente realizado no dia seguinte ao do workshop, sendo dirigido</p><p>ao público de modo geral (a ideia é que os bebês participantes do</p><p>workshop voltem, acompanhados de seus cuidadores e outros</p><p>familiares).</p><p>O workshop permite uma grande interatividade, pois é</p><p>especificamente dirigido a bebês e seus cuidadores. Como extensão</p><p>desse momento musical altamente participativo, o espetáculo do dia</p><p>seguinte, dirigido a toda a família, possui uma natureza performática</p><p>mais contemplativa. Workshop e espetáculo são, pois, criações artísticas</p><p>complementares, existindo pontes entre ambas as manifestações</p><p>artísticas, estabelecidas por material musical e cenográfico comum.</p><p>É como se as manifestações expressivas dos bebês diante da música,</p><p>durante o workshop, inspirassem a gestação de novos elementos</p><p>artísticos. Como se a magia do branco, continente de todas as cores,</p><p>incubasse elementos musicais primários e daí surgissem materiais mais</p><p>complexos. Por isso, na sinopse artística de “BebêPlimPlim” descreveu-</p><p>se assim a relação entre workshop e espetáculo: “como se de um dia para</p><p>o outro, os germes do ritmo e da vibração (ou o desejo de comunicar) se</p><p>pudessem transformar em músicas mais elaboradas capazes de envolver</p><p>toda uma comunidade em fios de voz e movimento”.</p><p>Um workshop para bebês acompanhados dos pais ou um workshop</p><p>para pais acompanhados dos bebês? É difícil dizer, pois, ao longo da</p><p>nossa experiência, se, por um lado, temos observado uma enorme</p><p>capacidade de resposta à música e um grande interesse por parte dos</p><p>bebês, também não é menos verdade que esses workshops são sempre</p><p>um tempo de descoberta e de partilha muito grande entre pais que, muito</p><p>frequentemente, vêm buscar algum apoio e companhia para estarem com</p><p>o seu bebê. É uma espécie de necessidade de paternalidade partilhada:</p><p>busca de apoio no saber cuidar; busca de companhia para proteger</p><p>coletivamente. No fundo, o que nos define como comunidade. E aqui, tal</p><p>como noutros contextos, a música ajuda a ligar os membros da tribo.</p><p>Efetivamente, no workshop, a música é não só fruída como objeto</p><p>estético que vale por si próprio, mas usada para promover interações</p><p>estabelecidas entre a díade constituída pelos pais e o bebê e entre o</p><p>grupo como um todo. A voz, o corpo e o movimento fazem parte dum</p><p>grande brinquedo musical por meio do qual se orquestram afetos em</p><p>permanente afinação das interações que espontaneamente a música vai</p><p>fazendo vibrar. Viaja-se assim dos pequenos ninhos que albergam cada</p><p>ser único (a díade cuidador-bebê) para uma comunidade em vibração.</p><p>A vinculação é um modelo teórico adaptado da etologia de Konrad</p><p>Lorenz, que defende o princípio de que os comportamentos sociais são</p><p>essenciais à sobrevivência das espécies e que, na sua base, estão</p><p>determinadas características morfológicas ou comportamentais que</p><p>despoletam essas relações de interdependência produtiva (por exemplo,</p><p>plumagem nas aves, vocalizações de atração sexual</p>

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