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<p>Isabel</p><p>Paterson</p><p>O Deus da Máquina</p><p>O DEUS DA MÁQUINA</p><p>Isabel Paterson</p><p>O DEUS DA MÁQUINA</p><p>1943</p><p>Título original: The God of the Machine</p><p>Tradução: Marcelo Centenaro</p><p>esejo reconhecer uma inestimável dívida para com o Professor</p><p>Thomas T. Read, E.M., Ph.D., por seus comentários críticos</p><p>precisos e fundamentados sobre o manuscrito deste livro, que</p><p>foram extremamente úteis para tornar mais clara a apresentação do tema.</p><p>Isso não implica que o Professor Read necessariamente concorde com</p><p>todas ou com alguma das idéias e conclusões expressas, pelas quais a</p><p>autora é responsável.</p><p>Isabel Paterson.</p><p>D</p><p>Sumário</p><p>Prefácio ............................................................................................. 3</p><p>I. O Ciclo de Energia no Mundo Clássico ............................................. 7</p><p>II. O Poder das Idéias ....................................................................... 17</p><p>III. Roma Descobre a Estrutura Política ............................................ 25</p><p>IV. Roma como uma Demonstração da Natureza do Governo ........... 37</p><p>V. A Sociedade de Status e a Sociedade de Contrato......................... 41</p><p>VI. Liberdade, Cristianismo e o Novo Mundo .................................... 51</p><p>VII. O Nobre Selvagem ..................................................................... 61</p><p>VIII. A Falácia do Anarquismo .......................................................... 69</p><p>IX. A Função do Governo .................................................................. 79</p><p>X. A Economia da Sociedade Livre .................................................... 91</p><p>XI. O Significado da Magna Carta ................................................... 103</p><p>XII. A Estrutura dos Estados Unidos ................................................. 113</p><p>XIII. Escravidão, o Defeito na Estrutura ........................................... 127</p><p>XIV. A Virgem e o Dínamo ............................................................... 135</p><p>XV. As Emendas Fatais .................................................................... 149</p><p>XVI. As Grandes Empresas e a Lei de Status ..................................... 157</p><p>XVII. A Ficção da Propriedade Pública ............................................. 169</p><p>XVIII. Por que Dinheiro Real é Indispensável.................................... 189</p><p>XIX. Crédito e Depressões ............................................................... 205</p><p>XX. O Humanitário com a Guilhotina .............................................. 219</p><p>XXI. Nosso Sistema Educacional Niponizado .................................... 233</p><p>XXII. O Circuito de Energia em Tempos de Guerra............................ 243</p><p>XXIII. A Economia Dinâmica do Futuro ............................................ 259</p><p>Sobre a autora ............................................................................... 271</p><p>Obras de Isabel Paterson ................................................................ 273</p><p>- 3 -</p><p>Prefácio</p><p>Que interesse pode despertar um livro escrito há mais de 70 anos, por</p><p>uma autora pouco conhecida até nos Estados Unidos, que não teve</p><p>educação formal e que usa metáforas difíceis, tiradas da engenharia</p><p>mecânica, elétrica e da arquitetura? Quando vi este texto, fiquei</p><p>fascinado. É uma afirmação apaixonada da liberdade. É também uma</p><p>fundamentação teórica muito bem construída dos valores políticos em</p><p>que acredito. Foi escrito num momento em que a liberdade estava em</p><p>baixa em todo o mundo e muito poucas pessoas se dispunham a defendê-</p><p>la.</p><p>Por isso, resolvi traduzir O Deus da Máquina para o português e tentar</p><p>fazê-lo mais conhecido. Estão nesta edição todos os grifos e todas as</p><p>notas de rodapé que Isabel Paterson colocou no original. Acrescentei</p><p>notas explicativas sempre que achei necessário, para identificar figuras e</p><p>fatos históricos, citações a outros textos e para esclarecer as metáforas</p><p>muito particulares que a autora criou. Procurei ter o máximo respeito por</p><p>seu estilo e sua linguagem. É claro que discordo dela em alguns pontos,</p><p>mas não exprimi essas divergências em minhas notas de rodapé.</p><p>Para Isabel, são três as idéias sobre as quais foi construída a civilização</p><p>ocidental: a ciência dos gregos, a lei dos romanos e a individualidade dos</p><p>cristãos.</p><p>Os gregos perceberam que o conhecimento tinha valor por si mesmo.</p><p>Não estavam preocupados com a aplicação da ciência. Entendiam que</p><p>era possível utilizar o conhecimento obtido em uma área para resolver</p><p>problemas encontrados em outras, que essa busca levava o homem na</p><p>direção da verdade e que isso era um bem, independentemente da</p><p>utilidade prática dessa verdade.</p><p>Politicamente, a democracia grega revelou-se extremamente instável,</p><p>suscetível às arbitrariedades das maiorias de ocasião. A República</p><p>Romana, por outro lado, estabeleceu uma legislação construída em bases</p><p>racionais. Não era uma lei divina e imutável. Era uma lei humana, falível</p><p>e passível de ser melhorada. Criou uma estrutura de Estado com um</p><p>sofisticado mecanismo de freios e contrapesos. Essa legislação estava</p><p>muito longe de ser perfeita e, em muitos casos, era quase bárbara.</p><p>Porém, pelo simples fato de existir e se aplicar indistintamente a todos,</p><p>- 4 -</p><p>criou um ambiente de confiança e estabilidade que fez com que Roma</p><p>perdurasse por tantos e tantos séculos e dominasse o mundo.</p><p>O cristianismo tem como um de seus pilares a crença de que o ser</p><p>humano possui uma alma individual e imortal. Um indivíduo não é</p><p>responsável pelos atos de outro e não pode ser premiado ou punido por</p><p>causa deles. O Império Romano foi a sociedade mais avançada da</p><p>Antigüidade. Chegou perto de colocar essas três idéias em prática,</p><p>juntas. Mas ruiu com o peso de seus domínios antes que isso se</p><p>concretizasse. De qualquer maneira, essas idéias permeiam nossa</p><p>cultura. A Humanidade teve de esperar muitos séculos até que fossem</p><p>novamente reunidas e se transformassem numa experiência de liberdade</p><p>e progresso.</p><p>A descoberta da América criou um laboratório de experiências sociais.</p><p>Os europeus travaram contato com povos então desconhecidos, em</p><p>diversos estágios de desenvolvimento social, e estabeleceram colônias</p><p>que conviviam e interagiam com esses povos. As riquezas da América,</p><p>despejadas sobre a sociedade rígida da Espanha, criaram um curto-</p><p>circuito e esfacelaram o Império espanhol. A Inglaterra, que já era um</p><p>país mais livre que as outras nações européias, desde a Magna Carta,</p><p>permitiu que se criasse um ambiente de notável liberdade em suas</p><p>colônias americanas. Seus habitantes, em grande parte refugiados de</p><p>perseguições religiosas, políticas ou étnicas, viviam de maneira</p><p>surpreendentemente harmoniosa. Os problemas que dividiam os</p><p>diferentes grupos na Europa não foram resolvidos, simplesmente</p><p>evaporaram.</p><p>Isso provocou estupefação no Velho Continente. Como era possível</p><p>existirem selvagens, sem governo, que vivessem razoavelmente em paz?</p><p>Como a liberdade podia funcionar nas colônias? A Europa era capaz de</p><p>conceber que a sociedade pudesse funcionar minimamente sem um</p><p>governo forte. Então, passou a acreditar que os selvagens do Novo</p><p>Mundo eram seres humanos muito superiores aos que eles conheciam na</p><p>Civilização. Surgiu assim a figura do Nobre Selvagem e a idéia européia</p><p>de que a sociedade corrompe o ser humano, originalmente puro no</p><p>estado de Natureza. Uma diferença marcante entre o pensamento</p><p>americano e o europeu é que os americanos acreditam na liberdade do</p><p>indivíduo, um direito nato e inalienável, enquanto os europeus acreditam</p><p>em “liberdades”, ou seja, permissões dadas pelo governo em situações</p><p>determinadas.</p><p>Sobre a função do governo, Isabel diz que ele é única e exclusivamente</p><p>O âmbito ou dimensão</p><p>apropriados se tornam evidentes na extensão territorial estimada com o</p><p>coeficiente da velocidade dos transportes e das comunicações.</p><p>Enquanto estava confinada a uma área apropriada, a estrutura política da</p><p>República Romana era a mais poderosa que já havia sido reunida. Essa</p><p>proporção entre forma e espaço foi bem ajustada um pouco antes e</p><p>durante as Guerras Púnicas. Ainda era possível uma extensão gradual</p><p>sobre áreas imediatamente adjacentes, não muito distantes, admitindo-se</p><p>cuidadosamente a cidadania de alguns povos conquistados e fazendo-se</p><p>alianças auxiliares; mas era necessário certo tempo para a assimilação e</p><p>certamente havia um limite territorial além do qual o sistema se tornaria</p><p>ineficaz. A força militar de Roma derivava da completa subordinação do</p><p>exército à autoridade civil; mas isso não acontece simplesmente por se</p><p>dizer que será assim. Um exército é um desvio de energia da vida</p><p>produtiva de uma nação. Modernos exércitos de massa são abastecidos</p><p>por uma única passagem de energia, mas com um longo e complexo</p><p>sistema de transmissão para a obtenção e novamente para a distribuição,</p><p>o que faz com que uma grande quantidade de energia seja usada nesse</p><p>trânsito. E, se houver uma quebra ou uma sobrecarga ou uma corrente</p><p>inadequada na linha principal, tudo vai ruir. Na República Romana, o</p><p>controle do exército era garantido pelas múltiplas conexões diretas no</p><p>controle local do recrutamento. A recompensa dos soldados por uma</p><p>campanha vitoriosa era voltar para casa. Sua lealdade ao comandante era</p><p>restrita às ordens militares, dadas por delegação do Senado. Se um</p><p>comandante fosse afastado, seus soldados obedeceriam ao Senado; era</p><p>um exército cidadão. Um comandante tinha muito pouca chance de</p><p>estacionar suas tropas e estabelecer um regime independente em uma</p><p>região estrangeira.</p><p>A aquisição permanente de províncias conquistadas mudou todo o</p><p>arranjo. Os exércitos foram engordados enormemente por mercenários e</p><p>aliados duvidosos. As despesas tinham de ser cobertas pelos impostos.</p><p>Grandes riquezas estavam à disposição de um general vitorioso numa</p><p>província distante; e se seu pagamento atrasava, os soldados olhavam</p><p>imediatamente para seu comandante. Também havia chances para</p><p>negociatas de civis com contatos políticos e sem escrúpulos. Era uma</p><p>aposta tentadora para um financista romano apoiar um general com</p><p>empréstimos pessoais para serem pagos com favores. César devia</p><p>milhões antes de conseguir seu cargo. O Senado se dividiu em interesses</p><p>de facções.</p><p>Como visto, o exército da República funcionava espacialmente como um</p><p>instrumento lateral da autoridade civil, um extensor pendurado a uma</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 30 -</p><p>junta cardã9. O extensor se enfraquecia conforme se estendia, enquanto a</p><p>carga que ele sustentava era muito maior. Quando os diversos exércitos</p><p>ocuparam as províncias, os pesos das pontas de fora, que não podiam ser</p><p>soltos nem controlados, os arrancaram das juntas e os impeliram</p><p>novamente contra o centro como gigantescos aríetes. O “exército da lei”</p><p>não era proporcional ao alcance e à ação retrativa exigidos por essa</p><p>expansão inédita de seu campo de ação.</p><p>Portanto, a súbita ascensão ao poder mundial literalmente fez Roma em</p><p>pedaços, nas guerras civis do Triunvirato. O estado não teria sobrevivido</p><p>se o princípio coesivo não tivesse continuado a agir sobre as partículas.</p><p>A República pereceu. O que houve foi que a direção primária da corrente</p><p>de energia foi revertida e, com ela, a incidência de força física também</p><p>se inverteu. A República foi formada por uma comunidade que produzia</p><p>seu próprio sustento, incluindo o fornecimento de soldados e a</p><p>manutenção do exército; a energia se originava dentro do estado.</p><p>Conseguia sustentar eventuais demandas extraordinárias de guerra</p><p>porque as despesas normais do estado não eram excessivas; e as agências</p><p>de autoridade direta eram organizadas de tal maneira que a coleta de</p><p>impostos era bastante moderada. Quando um estado depende de um</p><p>exército cidadão para defesa, a dificuldade intrínseca é encontrar uma</p><p>maneira de mobilizar e desmobilizar o indivíduo para tarefas militares</p><p>intermitentes com a mínima despesa e com o menor prejuízo para a</p><p>economia civil. O problema foi muito bem resolvido pela República,</p><p>com um mecanismo centrífugo conforme a fonte de energia exigia. Esse</p><p>mecanismo não tinha a capacidade de funcionar de maneira reversa.</p><p>Com o mundo dominado, um fluxo incalculável de energia foi despejado</p><p>sobre Roma vindo de fontes externas, uma força centrípeta, carregada</p><p>pelo dinheiro das províncias. O dinheiro é indispensável para um sistema</p><p>de energia de alta carga e de grande extensão. Deve ser usado quando</p><p>um excedente suficientemente grande está sendo produzido, que permita</p><p>uma margem para troca e que cubra o custo do transporte a distâncias</p><p>consideráveis. O dinheiro representa uma bateria carregada quando</p><p>ocioso e um modo generalizado de conversão de energia quando em</p><p>movimento, com a função de equiparar espaço e tempo.</p><p>9 Junta cardã: junção de acoplamento de um eixo que transfere o movimento em</p><p>outra direção sem modificar o sentido de giro. O nome vem do matemático italiano</p><p>Girolamo Cardano, que foi o primeiro a sugerir o seu uso para transmitir potência</p><p>motora, em 1545. (N. do T.)</p><p>III. Roma Descobre a Estrutura Política</p><p>- 31 -</p><p>Para adaptar o mecanismo quebrado de Roma ao novo potencial de</p><p>energia que vinha de fora, as peças tinham que ser novamente</p><p>intertravadas ou deslocadas por um nexo indivisível e um distribuidor</p><p>semi-automático. O melhor que se pôde conseguir numa tentativa</p><p>improvisada e desesperada foi um tipo de mastro-de-emergência.10,11 Um</p><p>homem era usado como se fosse um objeto separado e quebrável, mas</p><p>substituível. Sua nova posição não tinha relação com seu lugar anterior</p><p>no organismo social. Ele era algo como um fusível grosseiro, que pode</p><p>ser queimado; mas devemos ter em mente que a queima de um fusível é</p><p>uma medida de segurança em certas contingências. Praticamente,</p><p>qualquer homem que aceitasse o trabalho serviria; e, se um falhasse,</p><p>outro deveria ser jogado em seu lugar pela seqüência dos</p><p>acontecimentos. Ele era o imperador, enquanto durasse. Devia receber a</p><p>corrente que entrava e redistribuí-la para fora. Portanto, não devia ter</p><p>nenhuma outra função social em particular. Na primeira vez em que um</p><p>homem assumiu essa tarefa, isso aconteceu principalmente por causa</p><p>daquela qualificação negativa: ele não era um grande soldado, nem um</p><p>orador eloqüente, nem uma figura popular. Os diversos homens que</p><p>tinham esses dons — Júlio César, Cícero, Marco Antônio — morreram</p><p>de maneira violenta. Esse era seu fim natural, uma vez que</p><p>representavam os instrumentos em colisão: o exército, o Senado e o</p><p>populacho romano. Acabaram recebendo o impacto que Augusto anulou,</p><p>por não representar nenhuma parte separada. Ele não tinha um partido</p><p>visível; mas usou os novos homens ricos, ou foi usado por eles. Augusto</p><p>quebrou os patrícios por banimento, reduzindo assim o Senado à</p><p>impotência (embora mantendo sua casca); profissionalizou o exército;</p><p>comprou os plebeus com donativos; e organizou uma burocracia que</p><p>forneceu ocupações e privilégios às classes alta e média.</p><p>Há dois mil anos, o exemplo de Roma vem sendo citado erroneamente,</p><p>para a confusão das nações, como se fosse um império militar. Não era.</p><p>Nunca houve um império militar, nem pode haver. É impossível,</p><p>segundo a natureza das coisas. Quando Augusto se tornou imperador,</p><p>sua primeira medida para consolidar o domínio romano foi reduzir o</p><p>tamanho do exército. A seguir, quando Roma incluiu em suas fronteiras</p><p>a maior parte da Europa, o Oriente próximo e o norte da África, a tarefa</p><p>foi executada com menos de quatrocentos mil soldados, dos quais a</p><p>metade era de</p><p>auxiliares, ou seja, regimentos fornecidos pelas nações</p><p>10 Os romanos do Império mantiveram por séculos uma vaga esperança de restaurar a</p><p>República. (N. da A.)</p><p>11 Mastro-de-emergência: em inglês, jury rig. Termo náutico que significa um mastro</p><p>de substituição provisório num veleiro, no caso de perda do mastro original. A</p><p>expressão é usada para qualquer conserto improvisado ou artifício temporário, feito</p><p>com as ferramentas e materiais que estiverem à mão no momento. (N. do T.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 32 -</p><p>submetidas e comandados por romanos. A comparação com a quantidade</p><p>de homens em armas na Europa durante as recentes guerras mundiais é</p><p>prova suficiente de que os exércitos romanos seriam ridiculamente</p><p>inadequados para manter um território tão vasto por seis meses por pura</p><p>força. Em sua estrita competência militar, o exército defendia as</p><p>fronteiras. Sua tarefa interna era principalmente suprimir disputas de</p><p>facções, ou seja, trabalho de polícia. Havia poucos levantes</p><p>genuinamente populares. O homem comum desejava viver sob a lei</p><p>romana. As Legiões vitoriosas eram conseqüência e não causa.</p><p>O teste para dizer se uma sociedade é militar consiste em definir qual</p><p>autoridade é reconhecida como superior, a civil ou a militar. A</p><p>autoridade civil romana era suprema, como mostra a história de Paulo,</p><p>quando o homem da espada estava “com medo” diante de seu</p><p>prisioneiro. Um império só pode existir se oferecer ao mundo algum</p><p>benefício negociável em troca do tributo. A lei romana era a commodity</p><p>de exportação de Roma. Por “um preço elevado”, as nações obtinham a</p><p>lei, mas comparando-a com os poderes arbitrários, acreditavam que valia</p><p>o que custava. É isso o que os cartagineses não tinham para oferecer e</p><p>não entenderam quando viram; nunca souberam o que os atingiu.</p><p>A evidente corrupção da Roma imperial e o poder aparentemente</p><p>despótico do imperador parecem negar a premissa básica de que a</p><p>autoridade moral consiste no conceito de lei. Uma vez que o poder do</p><p>imperador não tinha restrições expressas, podia ser chamado de absoluto;</p><p>mas não é ser minucioso demais perguntar se era assim em teoria ou na</p><p>falta de teoria. A República previa a nomeação de um ditador</p><p>temporário; mas esse cargo é mal compreendido, a menos que todo o</p><p>sistema civil seja levado em consideração. O ditador era nomeado pelo</p><p>consulado, que era auto eternizável. O cargo do ditador expirava</p><p>automaticamente depois de um mandato fixo e curto. Ele não tinha poder</p><p>para conceder cargos e, assim, barganhar apoios no Senado. Suas ordens,</p><p>portanto, tinham de ser cumpridas por uma organização preexistente, de</p><p>caráter complexo e vital, que não devia nada a ele e não esperava nada</p><p>dele. Ele devia exigir serviços e privações de todos, o que não o tornaria</p><p>popular. Finalmente, o que é peculiar à ditadura da República Romana é</p><p>que ela era simplesmente a posição do comandante-em-chefe militar; e</p><p>isso mostra que a República não tinha tal funcionário em tempos</p><p>normais. E o ditador não tinha acesso direto ao tesouro público.</p><p>O imperador, evidentemente, tinha pleno comando do exército, controle</p><p>do tesouro e cargos incalculáveis à disposição para distribuir. Além</p><p>disso, ele era a Suprema Corte em pessoa. Tal concentração de poderes</p><p>sob uma única cabeça é certamente tão próxima do absoluto quanto é</p><p>III. Roma Descobre a Estrutura Política</p><p>- 33 -</p><p>possível imaginar. Como então pode ser dito que Roma não era um</p><p>império militar? Ou como poderia a lei ainda ser respeitada? O</p><p>comportamento de Festo indica a resposta. O próprio imperador ficava</p><p>numa situação precária em meio às forças que nominalmente</p><p>comandava. Se o exército fugisse ao controle, poderia — e algumas</p><p>vezes fez mesmo isso — depor ou assassinar um imperador e nomear</p><p>outro por aclamação. Além disso, o exército tinha de ser pago com</p><p>impostos recolhidos das províncias; enquanto as províncias constituíam</p><p>uma ameaça contínua de insurreições separatistas. Mas esta contingência</p><p>tornava perigosa a posição dos governadores provinciais. Festo não</p><p>ousaria tratar arbitrariamente um humilde cidadão envolvido em um</p><p>distúrbio porque poderia ser denunciado ao imperador como</p><p>patrocinador de um golpe. Seu emprego estava em jogo e, talvez, sua</p><p>vida também; seu dever era manter a província em paz. Da mesma</p><p>maneira, o imperador tinha de manter a disciplina de um exército</p><p>permanente. As províncias e o exército eram forças “puras” agindo por</p><p>freios e contrapesos, que o imperador precisava medir com precisão para</p><p>conseguir equilibrá-las. A necessidade de que o imperador fosse</p><p>substituível se falhasse é, evidentemente, parte do mecanismo. A prova é</p><p>que o intervalo de séculos não estabeleceu o princípio de sucessão</p><p>hereditária. Da mesma maneira que Festo tinha menos chance de ter um</p><p>julgamento justo que Paulo, o fabricante de tendas, o imperador estava</p><p>menos seguro que o menor de seus súditos. Sempre que faltasse</p><p>inteligência a um imperador para compreender a realidade de sua</p><p>situação, as forças puras se desprendiam e o esmagavam; em outras</p><p>palavras, ele era morto. Assassinatos domésticos e políticos eram os</p><p>tutores imperiais, instruindo o imperador sobre onde estavam exatamente</p><p>os limites de seu poder.</p><p>Os terríveis abusos inerentes a tal compromisso — corrupção política,</p><p>desvirtuamento dos donativos do Estado aos pobres, degradação dos</p><p>padrões pessoais por causa da coleta de impostos para Roma e o</p><p>aumento do trabalho escravo originado de guerras punitivas de fronteira,</p><p>que também privavam o cidadão de responsabilidade política — indicam</p><p>que o cidadão comum deve ter tido um motivo compensador para</p><p>convencê-lo a tolerar tais males. De fato, qualquer outro sistema</p><p>conhecido de mesmo nível econômico provocava os mesmos abusos, ou</p><p>piores, com menos esperança de remédio em qualquer situação em</p><p>particular. Mas a razão positiva por que o mundo aceitou Roma foi que,</p><p>sob o domínio romano, a energia produtiva já liberada podia fluir</p><p>continuamente.</p><p>Roma se destacava pela construção de estradas, pontes e aquedutos. São</p><p>as características visíveis de um sistema adaptado ao modo de conversão</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 34 -</p><p>de energia que combina tração animal, a roda d’água, um artesanato</p><p>evoluído até o estágio da forja e da fundição e agricultura especializada.</p><p>O fluxo é o comércio, o intercâmbio de produtos excedentes,</p><p>especialmente a troca de bens acabados por matérias-primas. Roma não</p><p>erigiu barreiras de exclusividade e se absteve de decretar monopólios</p><p>formais. A lei romana assegurava a propriedade privada e, nas</p><p>circunstâncias da época, comprometia-se a ter o máximo de cuidado com</p><p>os direitos do cidadão; tudo isso levava ao individualismo.</p><p>A grande torrente de comércio era incessante. O sistema administrativo</p><p>tomava sua parcela regularmente, para fazer a máquina funcionar, mas</p><p>deixava o canal aberto. A lei era o meio isolante da corrente viva. Se a</p><p>linha caísse em algum lugar, as autoridades mais próximas teriam</p><p>problemas; enquanto o homem no centro, o imperador, enfrentava uma</p><p>parcela líquida do risco de todos os lados. A parte que cabia ao governo</p><p>se resumia aos impostos.</p><p>Obviamente, o produtor pagava os impostos e sentia o ônus. Como todas</p><p>as nações submetidas tinham a mesma queixa, seria de se esperar que</p><p>rejeitassem a autoridade central, se houvesse uma alternativa melhor.</p><p>Mas não havia. No conjunto, a vida e a propriedade estavam seguras sob</p><p>a lei romana; e a cidadania era um sólido ativo, mesmo para um homem</p><p>pobre.</p><p>Podemos questionar se é possível conseguir e preservar a lealdade em</p><p>troca de vantagens materiais, simplesmente; provavelmente, o fator</p><p>decisivo era imponderável. O senso de expansão e elevação de</p><p>personalidade indicado por Paulo ao descrever sua conversão e sua</p><p>crença de ter renascido</p><p>na liberdade são expressos em frases que podiam</p><p>ser compreendidas pela analogia secular a seus direitos de cidadania. A</p><p>explicação de Paulo sobre a lei e a nova revelação, sua opinião de que os</p><p>costumes eram questão de observância local e seu apostolado aos</p><p>Gentios estão impregnados do conceito cívico romano do homem como</p><p>uma entidade. Paulo devotou sua vida à tarefa de afirmar a terceira idéia</p><p>nova, e a mais importante das três: a idéia da alma individual e imortal.</p><p>A fé como sinal de coisas não vistas pode muito bem ser compreendida</p><p>quando alguém diz: “Sou romano”, embora nunca tenha visto Roma.</p><p>Mas Paulo proclamou algo maior, a Cidade de Deus.</p><p>III. Roma Descobre a Estrutura Política</p><p>- 35 -</p><p>Figura 1: Cantaria</p><p>Figura 2: Arcobotante</p><p>Figura 3: Pedra angular</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 36 -</p><p>Figura 4: Polia móvel</p><p>Figura 5: Junta cardã</p><p>- 37 -</p><p>IV. Roma como uma Demonstração da Natureza</p><p>do Governo</p><p>oma governava o mundo. Nunca antes nem depois outra nação</p><p>ocupou uma posição equivalente, exercendo um único papel no</p><p>concerto das nações. O isolamento de um papel é a única</p><p>maneira pela qual sua natureza pode ser determinada. Roma era o poder</p><p>político cristalizado a partir da solução social pela primeira vez e, assim,</p><p>tornou-se uma demonstração histórica da natureza do governo. O que</p><p>essa demonstração revela é um curioso negativo; durante seu regime,</p><p>Roma não contribuiu em nada para os verdadeiros processos produtivos.</p><p>Isso não significa que não houvesse pessoas produtivas entre os</p><p>romanos. Na República, havia artesãos competentes e bons fazendeiros,</p><p>decididos a prosperar; se assim não fosse, não teriam desenvolvido</p><p>nunca seu agudo senso de propriedade. Mas, desde o início do Império, a</p><p>produtividade da população diminuiu em Roma, enquanto o desemprego</p><p>cresceu e se tornou crônico. E, no estabelecimento do Império, Roma era</p><p>estritamente consumidora de bens materiais.</p><p>Toda a energia que mantinha o Império funcionando vinha de fora da</p><p>cidade imperial. Mais ainda, provinha do esforço e da inteligência</p><p>privados, do empreendedorismo e do trabalho de indivíduos, que pediam</p><p>em troca uma única coisa: simplesmente serem deixados em paz. O que</p><p>Roma fazia por eles, em comparação com qualquer outra forma</p><p>conhecida de governo, era não fazer nada; a margem de benefício</p><p>consistia na limitação do governo. O poder político era impedido de</p><p>exercer atividades econômicas e, portanto, a produção era deixada ao</p><p>gerenciamento privado. O governo de Roma era melhor que o de seus</p><p>predecessores porque Roma governava menos. Esta é a primeira</p><p>demonstração do axioma de que o país que é menos governado é o mais</p><p>bem governado.</p><p>A torrente de energia brotava de inúmeras pequenas nascentes e fluía</p><p>para as grandes rotas comerciais. Veio crescendo pouco a pouco por</p><p>séculos, vencendo inúmeros obstáculos, levando de aluvião as ruínas dos</p><p>reinos. Antes que Roma encontrasse sua fórmula, não existia uma</p><p>distinção clara entre o domínio público e o privado. O Egito estava</p><p>fossilizado pela propriedade governamental da terra; o poder absoluto do</p><p>governo tornou o país uma presa impotente dos invasores. A propriedade</p><p>privada era a norma entre os atenienses; mas eles tentaram impor</p><p>monopólios sobre o comércio com suas colônias. Cartago era um estado</p><p>corporativo. Quando os empreendedores de qualquer nação abriam uma</p><p>R</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 38 -</p><p>fonte de comércio, imediatamente tentavam usar o poder político para</p><p>represar completamente o fluxo resultante. Isso é impossível; uma vez</p><p>que a energia é liberada, deve obedecer a suas próprias leis. A Grécia e</p><p>Cartago foram continuamente chacoalhadas e rachadas pela energia que</p><p>retornava e fazia pressão procurando uma saída; essas nações nunca</p><p>alcançaram um equilíbrio. Os fenícios foram arrastados pela trilha de</p><p>energia de Tiro até Cartago. Precisamente porque Cartago de fato</p><p>conseguiu impor um monopólio no principal canal de comércio com a</p><p>Europa, Cartago foi varrida do mapa. Mas, como os romanos não eram</p><p>primariamente comerciantes, tendo ficado ocupados com o grande</p><p>problema de encontrar o princípio político, estavam predispostos a</p><p>permitir que a torrente de energia seguisse seu curso natural.</p><p>A estrutura da República Romana era vertical e sua fonte de energia era</p><p>interna. A República ruiu pela pressão horizontal de uma avalanche de</p><p>energia vinda de fora. O mecanismo do Império trabalhava</p><p>horizontalmente, por uma absorção centrípeta de energia. Dados os</p><p>fatores existentes, era capaz de se estender amplamente; mas sua</p><p>continuidade dependia de que as partes periféricas resistissem</p><p>positivamente às agências de governo. O que de fato mantinha esse</p><p>mecanismo íntegro era a tendência separatista residual das nações que o</p><p>compunham. Enquanto o sentimento ou a aspiração por independência</p><p>permanecia nas províncias, a burocracia ficava impedida de arrecadar</p><p>impostos mais pesados do que o comércio era capaz de suportar. Como</p><p>receptor dos tributos, o governador provincial estava em perigo iminente</p><p>se arrecadasse além do razoável. Então, se Roma exigisse demais, a</p><p>próxima pessoa em risco seria o imperador. Portanto, o mecanismo era</p><p>tal que utilizava em seu funcionamento a pressão da revolta latente para</p><p>recuar, retroceder. Quando finalmente os provincianos passaram a se</p><p>considerar romanos e não mais se imaginaram voltando a ser uma</p><p>nacionalidade separada, o Império acabou. Na verdade, queimou a</p><p>cabeça do cilindro.</p><p>A oposição latente passou a ser insignificante. As exigências da</p><p>burocracia aumentavam e o número de burocratas se multiplicava. Uma</p><p>parte cada vez maior do fluxo era desviada da produção para o</p><p>mecanismo político. Quaisquer que sejam os elementos em movimento</p><p>que compõem uma corrente de energia, uma parcela mínima precisa</p><p>percorrer o circuito completo e renovar a produção. A água que corre em</p><p>um aqueduto para fazer girar uma roda de moinho é uma corrente de</p><p>energia. Também o são a eletricidade que percorre fios isolados e os</p><p>bens no processo entre matérias-primas e produtos acabados, levados por</p><p>um sistema de transporte. Se existem muitos vazamentos no canal de</p><p>água; ou se a eletricidade é desviada para cada vez mais tomadas ou se</p><p>IV. Roma como uma Demonstração da Natureza do Governo</p><p>- 39 -</p><p>os bens são expropriados gradativamente a cada estágio do processo, em</p><p>algum momento não vai sobrar o suficiente para a manutenção do</p><p>sistema. No sistema de energia constituído pela troca de bens, os</p><p>produtores e processadores têm de obter o bastante para que seja</p><p>possível continuar a produzir e a trabalhar as matérias-primas e a prover</p><p>transporte. Perto do final do Império Romano, a burocracia consumia</p><p>uma parcela tão grande que praticamente não sobrava nada para</p><p>percorrer o circuito completo.</p><p>Enquanto isso, os produtores, recebendo cada vez menos em troca de</p><p>seus produtos, ficaram empobrecidos e desencorajados. Naturalmente,</p><p>tendiam a produzir menos, uma vez que não recebiam um retorno justo.</p><p>De fato, um esforço para o qual não há retorno líquido deve</p><p>automaticamente cessar. Passaram a consumir seus próprios produtos em</p><p>vez de colocá-los à venda. Com isso, a arrecadação de impostos</p><p>começou a secar. Os impostos devem vir do excedente. Os burocratas</p><p>inevitavelmente caíram em cima dos produtores, com a intenção de</p><p>seqüestrar a energia diretamente da fonte, por meio de uma economia</p><p>planejada. Prenderam os agricultores ao solo e os artesãos a suas</p><p>bancadas de trabalho; ordenaram aos comerciantes que continuassem em</p><p>seu negócio, embora os impostos e as regulamentações não permitissem</p><p>sua sobrevivência. Ninguém podia mudar de local de residência ou de</p><p>ocupação sem permissão. A moeda foi depreciada. Preços e salários</p><p>foram congelados até que não havia mais nada</p><p>para vender, nem nenhum</p><p>emprego.</p><p>“As reformas de Diocleciano, entre 260 e 268 D.C., tornaram ainda mais</p><p>pesada a já insuportável carga da cidadania.”1</p><p>Homens que haviam anteriormente sido produtivos fugiam para as matas</p><p>e montanhas como criminosos, porque morreriam de fome se</p><p>continuassem trabalhando. Com a energia lacrada na fonte, seu nível</p><p>baixou até que não havia mais o suficiente para fazer o mecanismo</p><p>funcionar. A Muralha Romana, nas ilhas britânicas, marca a maré alta.</p><p>Quando as Legiões foram retiradas da Muralha, não foi porque foram</p><p>derrotadas pelos bárbaros; foram puxadas de volta pela maré vazante de</p><p>energia, pela impossibilidade de fornecer suprimentos e reforços. Os</p><p>bárbaros não eram uma força ascendente; eles flutuaram na maré. Não</p><p>tinham objetivo nem capacidade de tomar ou construir sistema nenhum;</p><p>vieram como animais selvagens que comem em campos cultivados no</p><p>passado, onde o plantador não tem mais energia para manter suas cercas</p><p>em pé. Os comedores de impostos absorveram a energia. Um mapa do</p><p>1 SHOWERMAN, Grant. Rome and the Romans. (N. da A.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 40 -</p><p>Império Romano nos séculos IV e V, com as rotas de migrações bárbaras</p><p>traçadas, é uma rede de linhas vagantes que mostram como os godos do</p><p>leste e do oeste, os hunos e os vândalos simplesmente seguiram as</p><p>principais rotas comerciais. Não havia nada para impedi-los. Os</p><p>produtores já tinham sido vencidos pela burocracia.</p><p>- 41 -</p><p>V. A Sociedade de Status e a Sociedade de</p><p>Contrato</p><p>sentido do passado, que é uma combinação de memórias, não é</p><p>uniformemente contínuo. Olhando para trás, há uma quebra onde</p><p>o conhecimento em primeira mão se fragmenta em material</p><p>secundário de boatos e, num terceiro grau, a crença é extraída do registro</p><p>escrito. Esse registro se classifica em duas divisões principais, que se</p><p>referem a pessoas muito parecidas conosco e a pessoas que quase</p><p>poderiam ser de outra espécie, tendo motivos que se tornaram</p><p>indecifráveis ou incompreensíveis para nós. Dessa gente diferente, certas</p><p>nações que viveram em eras e lugares muito distantes entre si parecem</p><p>ser do mesmo tipo; as rígidas figuras hieráticas dos egípcios, do período</p><p>bizantino e dos incas nos parecem semelhantes. A Idade Média é</p><p>enigmática, não por ser obscura — já que partes imensas da história</p><p>humana sumiram de vista — mas porque ocorreu entre intervalos</p><p>luminosos, como se tivesse acontecido enquanto estávamos dormindo.</p><p>Esses golfos de tempo não podem ser medidos pelo quadrado da</p><p>distância. Encontram-se entre dois conceitos antitéticos de humanidade,</p><p>da relação entre o indivíduo e o grupo, dois métodos de associação. A</p><p>distinção foi estabelecida claramente por Sir Henry Maine1, com os</p><p>nomes de Sociedade de Status e Sociedade de Contrato.</p><p>O axioma da Declaração da Independência, de que todos os homens são</p><p>dotados por seu Criador com o inalienável direito à vida, provavelmente</p><p>é lido hoje por muitos americanos como um truísmo que jamais poderia</p><p>ser negado. É o contrário: essa foi a primeira vez em que esse axioma foi</p><p>declarado como o princípio político de uma nação. É o postulado</p><p>primário da Sociedade de Contrato.</p><p>Na Sociedade de Contrato, o homem nasce livre e toma posse de sua</p><p>herança com a maturidade.</p><p>1 Sir Henry James Sumner Maine (1822 – 1888) foi um jurista e historiador inglês. É</p><p>famoso por sua tese apresentada no livro Direito Antigo de que o direito e a sociedade</p><p>evoluíram “do status para o contrato”. De acordo com essa tese, no mundo antigo os</p><p>indivíduos estavam fortemente ligados a grupos tradicionais, pelo status, enquanto no</p><p>mundo moderno, no qual os indivíduos são vistos como agentes autônomos, eles são</p><p>livres para estabelecer contratos e formar associações com quem quiserem. Por causa</p><p>dessa tese, Maine é considerado um dos pais da moderna sociologia do direito. (N. do</p><p>T.)</p><p>O</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 42 -</p><p>Por esse conceito, todos os direitos pertencem ao indivíduo. A sociedade</p><p>é formada por indivíduos em associação voluntária. Os direitos de cada</p><p>pessoa são limitados apenas pelos iguais direitos de outra pessoa.</p><p>Na Sociedade de Status, ninguém tem nenhum direito. O indivíduo não é</p><p>reconhecido; um homem se define por sua relação com o grupo e</p><p>presume-se que existe apenas por permissão. O sistema de status é</p><p>privilégio e submissão. Pela lógica básica da Sociedade de Status, um</p><p>membro do grupo que não cometeu nem mesmo um delito leve pode ser</p><p>morto pelo “bem da sociedade”2 O Japão é uma Sociedade de Status; até</p><p>a metade do século dezenove, constituía, nos mínimos detalhes, um</p><p>exemplo completo e inigualado dessa ordem social.</p><p>Na Sociedade de Status, do berço ao túmulo, todos devem obedecer; a</p><p>única exceção, pela mesma lógica, é um governante cuja vontade é</p><p>suprema e que, portanto, está livre de qualquer obrigação. Ele não tem</p><p>como cometer injustiças.</p><p>A lógica do status ignora fatos físicos. As funções vitais de uma criatura</p><p>viva não esperam por permissão e, a menos que uma pessoa seja capaz</p><p>de agir por si própria, não pode obedecer a um comando. A Sociedade de</p><p>Status acredita de ter poder de vida e morte; mas, na realidade, apenas</p><p>pessoas tem o dom da vida. A crença da Sociedade de Status se baseia de</p><p>fato no poder do grupo de infligir mortes. Em conseqüência disso, as</p><p>expressões extremas e características de dois notáveis exemplos de</p><p>Sociedade de Status eram mortuárias: sacrifício humano como ritual dos</p><p>Astecas; e as pirâmides do Egito, que eram tumbas.</p><p>Entretanto, em sociedades formalmente organizadas, pode haver uma</p><p>mistura de status e contrato. (A razão pela qual foi possível imaginar que</p><p>o poder da morte deveria ou poderia determinar o princípio de</p><p>associação é importante e será discutida depois.) A República Romana</p><p>se destacava por uma divisão quase perfeita entre contrato e status, meio</p><p>a meio. Politicamente, incluía uma maior base contratual que qualquer</p><p>estado anterior ou contemporâneo dela; muito mais que as democracias</p><p>gregas, já que limitava o âmbito do poder político. No Império, a</p><p>administração da lei por uma autoridade central e os poderes outorgados</p><p>ao imperador tendiam para o status. O cidadão parou de participar</p><p>ativamente do pensamento político. Os homens têm dificuldade de</p><p>entender aquilo de cuja elaboração ou execução não participam. Quando</p><p>os selvagens conseguiam rifles, eles os usavam. Mas não possuíam a</p><p>2 Com essa crença, os cartagineses jogavam crianças pequenas nas fornalhas de</p><p>Moloch. (N. da A.)</p><p>V. A Sociedade de Status e a Sociedade de Contrato</p><p>- 43 -</p><p>compreensão dos princípios mecânicos e do contexto industrial que o</p><p>mais ignorante dos homens brancos tinha como certos. Se o suprimento</p><p>de rifles dos homens brancos cessasse, os selvagens não conseguiriam</p><p>fabricar nenhum; e, nesse meio tempo, sua habilidade para fazer arcos se</p><p>deteriorava. Com a lei imposta por Roma, era improvável que as nações</p><p>submetidas aprendessem o autogoverno.</p><p>Enquanto o Império Romano desmoronava lentamente, como não havia</p><p>uma nação sucessora capaz de assumir seu lugar resolvendo a equação</p><p>espaço-tempo, a responsabilidade política retornou para as comunidades</p><p>separadas. Apareceram combinações paliativas e variações. O Império se</p><p>dividiu em dois. O Império do Oriente retrocedeu para o antigo hábito</p><p>regional de despotismo temperado com anarquia, mas ainda com a</p><p>sombra da lei romana. Enquanto isso, a Europa, o Império do Ocidente,</p><p>desenvolveu um padrão geral de status com exceções parciais, mas com</p><p>a estrutura mais civilizada e humana possível dentro do status, porque</p><p>construída sobre a família monogâmica e sob a égide moral do</p><p>cristianismo. A Sociedade</p><p>de Status trabalha em marcha mais lenta que a</p><p>Sociedade de Contrato, com um potencial de energia mais baixo e,</p><p>portanto, tende a divisões políticas menores; mas a unidade familiar tem</p><p>grande duração e estabilidade quando a estrutura política formal é</p><p>sacudida ou decai. Pode sobreviver a repetidos desastres, como uma</p><p>invasão esporádica, porque os laços familiares são persistentemente</p><p>reatados na ordem da natureza. Em termos de energia — não como uma</p><p>figura de linguagem, mas literalmente — a família é um pequeno dínamo</p><p>completamente equipado com seu próprio circuito apropriado, que gera e</p><p>usa energia, inclusive para manutenção. Uma vez que este livro é um</p><p>estudo do fluxo de energia e da natureza do governo enquanto</p><p>mecanismo, o aspecto relevante do cristianismo aqui é a organização</p><p>temporal da Igreja.</p><p>A Idade Média é quase um vazio para nós porque qualquer potencial de</p><p>energia em uso tem uma equação espaço-tempo traduzível em termos</p><p>dos nossos sentidos físicos. Com um alto potencial, podemos “ver” ou</p><p>“ouvir” através da distância e do tempo, por comunicação veloz e</p><p>notação permanente. O baixo potencial, que é tudo o que a Sociedade de</p><p>Status consegue acomodar, restringe nossa visão a um raio curto; e como</p><p>a Sociedade de Status resiste a mudanças, seus registros comumente são</p><p>escassos, com o efeito curioso de não serem datados. Ela usa uma</p><p>cronologia diferente da Sociedade de Contrato: uma cronologia local que</p><p>marca o tempo por gerações ou pelo ano de um reino, em vez de usar um</p><p>ponto no tempo sideral, marcado por um evento determinado. O</p><p>resultado é que mesmo as mais avançadas culturas de status, como a</p><p>egípcia, nos dão a impressão de tempo aprisionado.</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 44 -</p><p>Mas a Igreja usava o tempo sideral. Por causa de seu contexto histórico,</p><p>costuma-se considerar que a Igreja era idêntica à sociedade medieval em</p><p>sua organização. Não era. Ao contrário, era o elemento “não status” na</p><p>Idade Média, sendo essencialmente um sistema de contrato. Talvez isso</p><p>não seja percebido imediatamente porque sua forma de contrato era</p><p>geralmente indissolúvel; um acordo feito voluntariamente, mas</p><p>obrigatório por toda a vida. Entretanto, era um contrato e determinava a</p><p>função temporal da Igreja como o canal de energia excedente para a</p><p>sociedade secular de status conhecida como feudalismo.</p><p>A produção sob o feudalismo era comparável a tirar água de um poço</p><p>num pátio. Quase tudo o que era produzido era consumido</p><p>imediatamente, no mesmo lugar, e quase tudo o que era consumido tinha</p><p>de ser produzido imediatamente, no mesmo lugar. Ainda assim, é difícil</p><p>manter as nascentes de energia humana vedadas de tal maneira que não</p><p>haja nenhum transbordamento, nenhum excedente. Nada pode fazer isso,</p><p>exceto o estado absoluto — uma laje de pedra.</p><p>A energia fluía para dentro e através da Igreja porque a Igreja</p><p>proporcionava o único meio de emancipação do status e, portanto, uma</p><p>liberação do talento individual. Na sociedade secular, o filho era</p><p>confinado à profissão do pai, independentemente de sua capacidade. Na</p><p>Igreja, o filho de um camponês poderia se tornar um erudito, um soldado</p><p>em ordens militantes, ou até mesmo um príncipe da Igreja; podia</p><p>administrar uma abadia se tivesse inclinações executivas, ou tornar-se</p><p>um núncio apostólico, ou trabalhar simplesmente num ofício do qual</p><p>gostasse. Se quisesse, o filho de um nobre podia escolher a vida</p><p>contemplativa, ou ser um jardineiro, ou um pedreiro, sem se rebaixar.</p><p>Mas, acima de tudo, na Igreja um homem podia mover-se e agir além do</p><p>estreito domínio no qual nasceu. Na vida secular, um camponês andando</p><p>numa estrada pública, se estivesse fora dos limites, podia ser preso por</p><p>estar longe de casa sem permissão; a acusação contra ele era sair por aí</p><p>como “um homem sem senhor”. (Prisão por “vagabundagem” em</p><p>tempos modernos é um anacronismo totalmente injusto, um resquício do</p><p>feudalismo; vagabundagem não significa outra coisa além de viajar.)</p><p>Certamente, os homens na Igreja estavam obrigados à obediência e eram</p><p>impedidos de se casar; mas não estavam presos a um lugar ou a uma</p><p>tarefa por nascimento; tinham uma escolha inicial; e os assuntos da</p><p>Igreja eram mundiais, envolvendo viagens e permitindo promoções. A</p><p>forma da sociedade secular é visível em um uso para o qual a Igreja</p><p>direcionou o excedente de energia: a direção ascendente das grandes</p><p>catedrais. Mas o tamanho e a magnificência das catedrais são o resultado</p><p>do mecanismo lateral da Igreja, pelo qual ela pôde acumular capital</p><p>V. A Sociedade de Status e a Sociedade de Contrato</p><p>- 45 -</p><p>líquido para grandes empreendimentos; e sua continuidade no tempo</p><p>como uma pessoa jurídica, para realizá-los até a conclusão. Era o único</p><p>sistema de longo circuito e grande capacidade para transmissão de</p><p>energia. Por essa razão também, lutaram-se as grandes guerras da Europa</p><p>cristã sob a bandeira da Igreja, nas Cruzadas.</p><p>Como uma organização extraterritorial com autoridade centralizada, a</p><p>Igreja funcionava exatamente pelo mesmo mecanismo que o Império</p><p>secular. A atração das partículas ocorria pela filiação de unidades</p><p>familiares “na casa da fé”. Com isso, a Igreja era capaz de encontrar a</p><p>resistência para a necessária ação recíproca. O impulso separatista</p><p>centrífugo era agora exercido pelas monarquias ascendentes, no lugar</p><p>das antigas províncias. A Igreja recriou um mecanismo de controle ao</p><p>eximir o clero da jurisdição secular e permitir que os leigos apelassem à</p><p>lei canônica em diversos casos que podiam surgir entre a autoridade</p><p>secular e os indivíduos, mesmo que servos. (Os feriados, por exemplo,</p><p>eram declarados pela Igreja.) A Igreja, sediada em Roma, era assim</p><p>capaz de manter a Europa unida ao colocar os senhores feudais na linha,</p><p>assim como o Império fez antes, ao permitir que o indivíduo (em sua</p><p>condição de cristão ou de cidadão) resistisse ao seu governo secular.</p><p>Para garantir-lhe uma base, a Igreja reconhecia a propriedade privada</p><p>como um direito divino, fazendo dela um artigo de fé na doutrina cristã.</p><p>Se um duque ou um rei se tornasse recalcitrante, a Igreja podia</p><p>excomungá-lo, liberando assim seus súditos de seus deveres para com</p><p>ele; e se isso não fosse suficiente para trazê-lo à razão, como último</p><p>recurso a Igreja podia baixar um interdito sobre seu domínio. O resultado</p><p>disso é que a Igreja tinha condições de causar uma revolta negativa, uma</p><p>desobediência passiva à autoridade secular, o que tinha exatamente o</p><p>mesmo efeito na garantia de ação recíproca do mecanismo</p><p>administrativo que a possibilidade de rebelião espontânea das províncias</p><p>tinha no arranjo imperial.</p><p>Num olhar superficial, pode passar despercebido que esse era o mesmo</p><p>princípio que havia sido desenvolvido pela República, por meio de uma</p><p>agência política definida. Como uma proposição da Física, consiste na</p><p>relação entre energia e massa. A propriedade da massa é a inércia. Em</p><p>Política, a inércia é o veto. Uma função ou fator só pode ser encontrado</p><p>onde está. Nenhum plano ou édito pode estabelecê-lo onde não está. O</p><p>tamanho limitado e a conexão direta do mecanismo da República</p><p>permitiam que os tribunos da plebe fossem investidos do poder formal</p><p>de veto. Quando esse era o único instrumento político específico que os</p><p>plebeus tinham, os tribunos da plebe conseguiram sustentá-lo contra o</p><p>Senado. Em uma ocasião, os tribunos da plebe “pararam toda a máquina</p><p>de governo” por alguns anos, recusando-se a aprovar e assim permitir</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 46 -</p><p>qualquer tipo de ato do governo, sem exceção, incluindo a nomeação de</p><p>magistrados curuis3 ou a convocação regular de tropas, até que suas</p><p>queixas fossem atendidas. Eram capazes de fazer isso, porque o poder</p><p>que exerciam era inerente ao grupo que representavam. Ele estava lá. Se</p><p>o povo não se mover, o governo não se moverá. Embora leis sejam</p><p>aprovadas</p><p>e ordens sejam dadas, se a massa inercial estiver em oposição,</p><p>essas leis e ordens não serão cumpridas. No Império, era impossível, por</p><p>causa das condições ampliadas de espaço-tempo, continuar com a</p><p>representação direta do poder de veto do povo; mas esse poder foi</p><p>igualmente utilizado, como indicado. E também foi assim foi com a</p><p>Europa cristã e a Igreja. E as três fases sucessivas de Roma no governo</p><p>cobrem um período de dois mil anos, um recorde de estabilidade sem</p><p>paralelo. Isso foi possível por causa da função da massa, que os</p><p>engenheiros mecânicos conhecem bem e, embora seja normalmente</p><p>ignorada pelos teóricos políticos, foi entendida pelos romanos. Eles a</p><p>usaram no lugar certo para a estabilidade, vinculando-a diretamente à</p><p>parte do mecanismo adequada ao fator de inércia, o dispositivo para</p><p>interromper o motor quando necessário.</p><p>A mesma função é corretamente expressa no governo moderno quando</p><p>se concede o poder da bolsa, finanças públicas, concessão de</p><p>suprimentos aos representantes eleitos pelo povo para mandatos curtos.</p><p>O veto efetivo é exercido assim, como deveria ser, pela negação, pela</p><p>contenção dos suprimentos. Quando suprimentos ilimitados são</p><p>aprovados automaticamente em quantias massivas e desproporcionadas,</p><p>é óbvio que a função da massa, o elemento estabilizador, não está mais</p><p>incluída no governo; a conexão foi rompida em algum lugar. Os</p><p>cidadãos como tais, o povo, não tem mais nenhum representante. Seus</p><p>supostos delegados representam de fato os gastadores de suprimentos,</p><p>como acaba ocorrendo quando as eleições são realizadas por esse gasto.</p><p>Então, o poder de veto inerente pode mostrar seu peso apenas por</p><p>dispositivos informais, indicando o perigo iminente de sobrecarga do</p><p>motor que, fora de controle, se soltará da base e será esmagado. É</p><p>interessante observar esse verdadeiro poder de veto reafirmando-se</p><p>novamente pelas “pesquisas de opinião pública”. É o primeiro aviso,</p><p>mas é um péssimo agouro; porque a expressão final do veto da massa</p><p>inercial intrínseca, quando privado de representação legítima, consiste</p><p>nos homens abandonando suas ferramentas e cruzando os braços. A</p><p>loucura final dos governos é suprimir esse sinal.</p><p>3 Magistrado curul: autoridade romana como os edis, pretores, censores, cônsules e</p><p>ditadores. (N. do T.)</p><p>V. A Sociedade de Status e a Sociedade de Contrato</p><p>- 47 -</p><p>Como Roma conseguiu controlar o problema da função da massa, foi</p><p>capaz de resistir ao longo de sucessivas fases, até que a parte do</p><p>mecanismo que fazia a transmissão parou de funcionar. Na terceira fase,</p><p>a Igreja permitiu que o feudalismo sobrevivesse, com modificações</p><p>graduais, por séculos, não por louvor irrestrito, mas por desviar o</p><p>excedente de energia da produção local — que se isso não ocorresse teria</p><p>arrebentado os limites — e usá-lo em canais laterais. A defesa das</p><p>fronteiras foi mantida pela Igreja, com uma tendência expansiva, por</p><p>causa das missões para converter os bárbaros.</p><p>Tanto na cultura como na organização, a característica notável da</p><p>civilização romana ao longo de sua trajetória é que a “unidade da</p><p>Europa” consistiu em dualismo, oposição e diversidade.</p><p>A Sociedade de Status é obrigada a restringir a produção à energia</p><p>potencial que ela consegue acomodar. Isso é feito pelo coletivismo.</p><p>Fazer com que a propriedade seja grupal exige que as pessoas não</p><p>tenham liberdade. A posse coletiva da terra resulta em uma agricultura</p><p>inferior e impede a melhoria das ferramentas.4 O trabalho agrícola</p><p>medieval obtinha uma produção miserável. O baixo padrão de vida</p><p>resultante causava fomes e pragas, reduzindo assim a população e</p><p>fazendo-a mais fácil de ser controlada. Apenas a pobreza — dieta</p><p>rústica, trabalho manual, o mínimo de conforto, conveniência e prazer —</p><p>pode se ajustar a uma economia planejada; porque uma economia</p><p>planejada não pode nem ser imaginada exceto num ambiente de</p><p>submissão política. Uma economia complexa necessita da simplicidade</p><p>política do contrato livre. A imposição do poder político sobre a</p><p>produção começa instantaneamente a reduzir a economia a métodos</p><p>primitivos e, em conseqüência, a diminuir a população ótima. Por outro</p><p>lado, uma sociedade altamente produtiva emerge da ultra regulada</p><p>Sociedade de Status ao proclamar liberdade, que requer a abolição do</p><p>controle político sobre as atividades econômicas.</p><p>4 Experimentos de propriedade coletiva tentados por comunidades dentro de uma</p><p>nação de contrato, como os Estados Unidos, não podem ser comparados às condições</p><p>de um coletivo genuíno ou sociedade de status. Tais comunidades têm a propriedade</p><p>de sua terra por títulos privados, com o que é chamado de sociedade indivisível, mas</p><p>que é na verdade individualmente divisível e aberta a processos judiciais por divisão.</p><p>Além disso, os membros entram voluntariamente e podem sair sem impedimentos;</p><p>embora o grupo só admita candidatos escolhidos e possa expulsar membros; ao passo</p><p>que, numa autêntica sociedade coletiva, os membros nascem nela, não são livres para</p><p>deixá-la e devem aceitar o lugar que foi determinado que ocupassem ou são</p><p>exterminados. (N. da A.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 48 -</p><p>Como o nível de energia na Europa cresceu novamente, sendo seu</p><p>primeiro produto os edifícios da Igreja (algumas vezes vários em uma</p><p>pequena cidade), o transbordamento mais uma vez procurou uma saída</p><p>de comércio.</p><p>Isso é normalmente descrito como a emergência de uma classe média. O</p><p>termo é completamente incorreto. Os três estamentos do feudalismo</p><p>eram os nobres, o clero e o povo; duas classes seculares e uma</p><p>coextensiva às outras ou, se formos fazer uma hierarquia, acima das</p><p>outras, o que faria dos nobres a classe média. O que é hoje chamado de</p><p>classe média não era nem é uma classe; é uma forma diferente de</p><p>sociedade, uma sociedade sem classes: a sociedade livre, a Sociedade de</p><p>Contrato. Os comerciantes e artesãos independentes não tinham as</p><p>características de uma classe. Não prestavam serviço feudal, porque</p><p>pagaram uma cessão para isso. Contribuíam para a organização política</p><p>com dinheiro, por meio de impostos, e com sua própria milícia.</p><p>Estabeleceram a soberania cívica de maneira tão inequívoca que, se um</p><p>servo conseguisse fugir para uma cidade e morar lá por um ano, obtinha</p><p>a liberdade em virtude de estar em solo livre. Toda referência feita por</p><p>membros dessa ressurgente Sociedade de Contrato à sua própria</p><p>condição ressaltava o fato de que eram homens livres. E tinham seu</p><p>próprio judiciário. Na Inglaterra, o estranho nome de Tribunal do Pó de</p><p>Torta (Court of Pie Powder) é um resquício da diferença física, real,</p><p>entre dois tipos de sociedade; por que ela foi o Tribunal dos Pés Sujos</p><p>(Court of Pied Poudre), que julgava segundo a Lei Comercial. Os</p><p>homens dos pés sujos eram aqueles que viajavam, os comerciantes, ao</p><p>contrário dos membros da sociedade estática que viviam presos a um</p><p>lugar. Os comerciantes necessariamente formavam uma Sociedade de</p><p>Contrato e viviam segundo leis contratuais. Em qualquer lugar, sempre</p><p>que se proibiu que as pessoas mudassem de lugar ou comprassem e</p><p>vendessem, o tipo de sociedade desse lugar está definido; trata-se de uma</p><p>sociedade estática.</p><p>Mas o conceito de homem livre, embora vislumbrado de maneira</p><p>imperfeita, nunca foi completamente eliminado na Europa. Um</p><p>magistrado inglês, o Juiz Herle, em 1309, prolatou a seguinte sentença:</p><p>“No princípio, todos os homens do mundo eram livres. E o direito é tão</p><p>favorável à liberdade que aquele que já foi livre e esteve em situação de</p><p>liberdade perante um tribunal de registro público deve ser livre para</p><p>sempre, a menos que algum ato dele mesmo o torne um servo.” Foi a</p><p>voz do direito romano quem falou; e o veredito, em sua implicação</p><p>plena, pôs de lado mil anos de status.</p><p>V. A Sociedade de Status e a Sociedade de Contrato</p><p>- 49 -</p><p>Comércio e dinheiro, que andam juntos na torrente de energia,</p><p>inevitavelmente derrubam os muros que cercam uma sociedade de status.</p><p>Infiltram-se por baixo das fundações e penetram cada rachadura. Na</p><p>Europa, a infiltração, sendo gradual, tem muitos efeitos fantásticos e</p><p>aparentemente contraditórios, que podem ser percebidos numa</p><p>perspectiva mais longa. A princípio, parecem fortificar o regime de</p><p>status; e a frase pode ser lida literalmente, como quando Ricardo</p><p>Coração de Leão erigiu a maior parte do Castelo Gaillard com dinheiro</p><p>emprestado pelo qual penhorou seu reino. Gaillard foi projetado para ser</p><p>inexpugnável de acordo com a técnica de combate medieval; e foi um</p><p>anacronismo desde o princípio, não servindo para nada exceto causar a</p><p>completa falência de Ricardo, já afundado nas dívidas que havia</p><p>contraído por sua participação nas Cruzadas. Do século X ao XIV, as</p><p>mudanças externas no aspecto social da Europa eram curiosamente</p><p>comparáveis ao efeito de uma grande enchente que levanta as</p><p>construções de suas fundações para depositá-las em lugares distantes e</p><p>imprevisíveis. As fortalezas de estilo normando levadas por refluxo pela</p><p>rota mediterrânea, em Malta e em Chipre, chegando à Palestina, foram</p><p>carregadas dessa maneira pelo despejo de energia da Europa nas</p><p>Cruzadas. Assim, a maré montante é bem recebida e estimulada por</p><p>aqueles em posição de autoridade, que não prevêem que ela corroerá a</p><p>ordem que os mantém.</p><p>O comércio parecia interessante a um nobre, trazendo a ele novos luxos</p><p>ou pagando-lhe o aluguel em dinheiro em vez de em espécie, quando</p><p>uma aldeia se tornava uma cidade de mercado. O dinheiro permitia que</p><p>um servo comprasse sua liberdade. O comércio podia prover navios para</p><p>que um senhor feudal embarcasse na Guerra Santa; o dinheiro estava</p><p>disponível como garantia de seu domínio para equipá-lo para o combate.</p><p>O dinheiro dava poder aos reis para dominarem os nobres; e não seria</p><p>possível convencê-los de que o comércio iria, no futuro, permitir que</p><p>parlamentos executassem reis.</p><p>A torrente de energia fluiu outra vez de um continente a outro. O império</p><p>árabe surgiu, ocupando grande parte da área que pertenceu a Cartago e</p><p>com muitos outros pontos de semelhança, especialmente o fato de não</p><p>ter estabilidade nem um centro fixo. Recapturou a Espanha e penetrou a</p><p>Europa além das fronteiras da França, até encontrar resistência. Mas o</p><p>impacto enfraqueceu o sistema europeu de status, em vez de consolidá-</p><p>lo. Nada, exceto o dinheiro, poderia prover, pagar, transportar e manter</p><p>uma defesa suficiente; nada, exceto o comércio, poderia suprir o</p><p>dinheiro. O comércio continuou em meio à guerra. Politicamente, o</p><p>império árabe não tinha estrutura e tendia constantemente a se esfacelar.</p><p>A herança romana da Europa foi reafirmada e, na adversidade, tendia à</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 50 -</p><p>coesão. O surgimento dos turcos foi um fenômeno peculiar; porque os</p><p>turcos, como conquistadores, absorveram para uso militar a energia do</p><p>Oriente e a lançaram contra a Europa. Aparentemente, eram invencíveis;</p><p>na verdade, eram um poder declinante a partir do momento em que</p><p>bloquearam as grandes rotas comerciais, por terra e por água, e cortaram</p><p>assim a linha de energia que abastecia seus exércitos. Impuseram uma</p><p>sociedade estática de um tipo singular no Oriente, exatamente quando a</p><p>Europa estava emergindo do status. A Ásia afundou em estagnação mais</p><p>uma vez. E com as rotas comerciais com o Oriente bloqueadas, a Europa</p><p>finalmente alcançou Pítias e olhou para além do Atlântico.</p><p>- 51 -</p><p>VI. Liberdade, Cristianismo e o Novo Mundo</p><p>s idéias vêm antes da realização. Raça é um fato, até o ponto em</p><p>que isso existe. Nações e culturas são idéias. A linhagem racial,</p><p>que aparentemente preserva uma identidade, só o faz por meio</p><p>de uma idéia. Se uma idéia contiver um princípio universal, fará com que</p><p>as raças se mesclem; se contradisser uma idéia anteriormente aceita,</p><p>dividirá as nações numa discórdia fatal. Cada realização é prenunciada</p><p>pela fantasia; cada grande desastre é resultado de falta de adequação, de</p><p>erro ou de perversão da inteligência. Uma idéia pode ser concebida</p><p>originalmente como mito. A Europa foi um mito antes de se tornar uma</p><p>civilização rica e complexa; e é chamada de continente em contradição</p><p>com a geografia, porque a divisão entre Europa e Ásia foi criada pela</p><p>mente dos homens.</p><p>A América era um mito séculos antes de sua realidade física ser</p><p>verificada. Se Platão inventou a Atlântida Perdida ou se a construiu a</p><p>partir de fragmentos de folclore, sua criação é igualmente inexplicável.</p><p>Lendas européias posteriores das Ilhas Afortunadas a oeste, onde não</p><p>havia morte, da Ilha de São Brandão e de Avalon e Hy-Brasil e Tir-n’an-</p><p>Og poderiam ser explicadas por uma pequena hipótese factual nas</p><p>Canárias ou por um vislumbre dos Açores; sua felicidade poderia</p><p>consistir em serem inatingíveis. Até o final do século dezoito, era</p><p>possível dizer (como disse Babeuf1) que a felicidade na Europa era uma</p><p>idéia nova.</p><p>Como pré-requisito para a felicidade, a esperança de liberdade foi</p><p>colocada desde o início na América. De maneira apropriada, a</p><p>descoberta preliminar foi feita numa busca por liberdade. Durante o</p><p>século 10 de nossa era, alguns homens intratáveis de sangue viking se</p><p>exilaram de sua terra natal para não se submeterem à imposição de uma</p><p>monarquia feudal. Os marinheiros errantes escandinavos resumiram, em</p><p>seu desenvolvimento nacional, a história da Europa. Eram praticamente</p><p>os últimos piratas bárbaros; mas se alfabetizaram antes de pararem de</p><p>viver de saques e tinham a clareza e o tipo de mente pragmática dos</p><p>romanos. Conheciam bem o mundo civilizado e forneceram um</p><p>regimento mercenário ao Império do Oriente. Migraram da pirataria para</p><p>o comércio ao mesmo tempo em que adotaram a sociedade estratificada</p><p>de status que o comércio tende a dissolver. Em sua condição</p><p>semibárbara, a igualdade entre seus combatentes os obrigou a</p><p>1 François-Noël Babeuf (1760 – 1797), conhecido como Graco Babeuf, foi um agitador</p><p>político francês. Foi guilhotinado por sua participação na Conspiração dos Iguais. (N.</p><p>do T.)</p><p>A</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 52 -</p><p>desenvolver um tipo de lei contratual e um governo deliberativo local;</p><p>mas quando conquistaram a Normandia e depois a Inglaterra,</p><p>estabeleceram um detalhado sistema feudal. Nessa forma, novamente sua</p><p>tradição anterior de igualdade independente no topo os incitou a resistir</p><p>contra pretensões de absolutismo real fazendo uma rebelião bem</p><p>organizada; e voltaram à lei contratual para incorporar a capitulação em</p><p>um documento escrito, no qual o conceito de homem livre estava outra</p><p>vez implícito, para ser desdobrado no futuro. Desenharam um círculo</p><p>intelectual completo. Perto do fim, o pequeno grupo inconciliável que</p><p>resistiu para manter sua condição original fugiu para o fim do mundo,</p><p>Ultima Thule, e ocupou a Islândia, de onde os mais corajosos seguiram</p><p>para a Groenlândia. Navegando diretamente da Noruega para a colônia</p><p>na Groenlândia no ano 1000 DC, Leif Ericsson foi desviado para sul do</p><p>seu curso por tempestades e neblina, para uma estranha terra, a Costa</p><p>Maravilhosa do novo mundo. É notável que a perspectiva de Vinland2, a</p><p>Boa Terra, tenha sido abandonada depois da menor das tentativas de</p><p>colonização. Isso não ocorreu por desânimo. Os noruegueses foram</p><p>puxados de volta para a Europa por sua aceitação tardia do cristianismo.</p><p>O próprio Leif Ericsson se converteu pouco depois de sua viagem de</p><p>descobrimento. Foi como se o equipamento para a América fosse</p><p>incompleto sem essa fé; o que era verdade se eles buscavam a liberdade</p><p>como uma condição geral, não um privilégio de classe estabelecido por</p><p>braço forte; é fato que tinham escravos.</p><p>A objeção que pode ser</p><p>levantada é que a Europa cristã usava a coleira de ferro da servidão, e</p><p>tolerava a escravidão aberta. Mesmo assim, o axioma da liberdade só</p><p>pode ser postulado se tomarmos por base o que a filosofia cristã afirma.</p><p>Para sua realização, os princípios seculares revelados pela Grécia e por</p><p>Roma são igualmente indispensáveis. Mas considera-se a América como</p><p>sua terra natal.</p><p>Por volta de 1560 ou 1570, Étienne de La Boétie3, o amigo de</p><p>Montaigne, cheio de desespero por causa das guerras de religião,</p><p>escreveu:</p><p>“O que vocês pensam da sorte terrível que nos levou a nascer nestes tempos? E</p><p>o que vocês pensam em fazer? De minha parte, não vejo outro caminho senão</p><p>emigrar, abandonar meu lar e ir para qualquer lugar aonde o acaso me</p><p>carregue. Faz muito tempo que a ira dos deuses me alertou para fugir —</p><p>mostrando-me aquelas terras vastas e abertas além do oceano. Quando, na</p><p>virada do século, um novo mundo emergiu das ondas, os deuses — bem</p><p>2 Colônia viking na América, estabelecida por Leif Ericsson por volta do ano 1000, onde</p><p>hoje é a província canadense de Terra Nova e Labrador. (N. do T.)</p><p>3 Étienne de La Boétie (1530 – 1563), jurista e escritor francês, é um dos fundadores</p><p>da filosofia política moderna na França. (N. do T.)</p><p>VI. Liberdade, Cristianismo e o Novo Mundo</p><p>- 53 -</p><p>podemos crer — o destinaram ao refúgio, onde homens cultivarão campos</p><p>livres sob um céu mais claro, enquanto a cruel espada e a vergonhosa peste</p><p>condenarão a ruína da Europa. Lá há férteis prados esperando o arado, uma</p><p>terra sem rios intermitentes nem senhores — é para lá que irei.”4</p><p>A vida, a liberdade e a busca da felicidade — o que os homens</p><p>encontraram na América foi o desejo que haviam mandado</p><p>antecipadamente. Trouxeram com eles o conhecimento efetivo para</p><p>torná-lo realidade. Portanto, a associação de idéias permaneceu, apesar</p><p>da contradição imediata e atroz representada pelo tratamento dos índios e</p><p>pela rápida importação de escravos africanos. Montaigne mesmo, cuja</p><p>franqueza sutil desestabilizava a autoridade assim como as intempéries</p><p>derrubam uma parede de pedra, comentou: “Se alguma coisa poderia ter</p><p>tentado minha juventude, seria a ambição de participar dos perigos dessa</p><p>nova empreitada.” Mas Montaigne, assim como o seu amigo, não era um</p><p>servo, mas um lorde, desfrutando dos privilégios de classe e de um bom</p><p>patrimônio. Era sua mente que estava tentada a explorar o estrangeiro.</p><p>Ele foi a epítome de sua época, transformando sua torre medieval num</p><p>estúdio no qual ponderava tranqüilamente sobre as idéias que</p><p>destruiriam toda a estrutura.</p><p>A descoberta efetiva da América foi feita pelo capitalismo</p><p>empreendedor. Colombo foi um organizador de empresa com um plano.</p><p>Os navios eram propriedade privada, um deles fretado. Gerentes</p><p>capacitados (capitães) foram contratados. Algum capital em dinheiro foi</p><p>subscrito. A tripulação era assalariada. Tal organização hoje poderia</p><p>empreender qualquer negócio legítimo. Mas a maior parte do dinheiro</p><p>foi adiantada pela Rainha da Espanha; dois dos navios foram confiscados</p><p>pelo governo como multa; e a expedição navegou com um</p><p>comissionamento oficial. Condicionada ao sucesso de sua viagem,</p><p>Colombo recebeu a promessa do título hereditário de Almirante do</p><p>Oceano (Atlântico), e uma porcentagem de todo o comércio a ser aberto</p><p>por sua rota, para ele e para seus herdeiros. Seu objetivo era o Japão e a</p><p>China; mas mesmo que aportasse lá, a cláusula jamais poderia ser</p><p>cumprida. Um oceano não tolera o monopólio. O empreendimento,</p><p>assim, carregou consigo os dois sistemas conflitantes de status e de</p><p>contrato que estavam competindo na Europa. O continente havia sido</p><p>primeiramente civilizado e organizado pela energia fluindo por meio do</p><p>contrato; com o colapso do mecanismo, havia decaído para o status; o</p><p>contrato estava emergindo outra vez com o aumento do comércio. Mas a</p><p>Espanha estava retrocedendo, apanhada por certa onda contrária nos</p><p>Estreitos, na direção do absolutismo, exatamente quando a localização</p><p>4 LOWENTHAL, MARVIN. The Autobiography of Montaigne. (N. da A.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 54 -</p><p>geográfica favorável deu à Península Ibérica a primeira ligação com o</p><p>novo mundo. Obviamente, a menor distância entre a África e a América</p><p>do Sul é menor que a metade do trajeto que Colombo percorreu da</p><p>Espanha às Índias Ocidentais; mas não havia excedente de energia nem</p><p>na África nem na América do Sul. A Europa estava gerando energia; sua</p><p>rota por terra para o Oriente havia sido bloqueada. A viagem de</p><p>Colombo foi como o salto de uma faísca elétrica num arco voltaico.</p><p>A conquista dos povos americanos nativos foi uma conseqüência</p><p>determinada a priori, porque a Europa usava um potencial de energia</p><p>muito superior. A mais avançada cultura americana não empregava nem</p><p>mesmo a tração animal, não tinha ainda inventado a roda, muito menos a</p><p>roda-d’água, nem chegado à idade do ferro. Viajavam a pé e eram suas</p><p>próprias bestas de carga. Seu modo de conversão de energia era o corpo</p><p>humano e os utensílios manuais. Seu terror diante dos invasores</p><p>europeus com cavalos e armas de fogo é normalmente atribuído à</p><p>estupefação com a simples esquisitice do fenômeno. Ao contrário, foi o</p><p>entendimento inteligente de um poder maior que eles não teriam como</p><p>igualar. A ignorância primitiva não se assusta com a novidade. As tribos</p><p>selvagens eram menos submissas que as mais civilizadas, porque não</p><p>tinham noção do domínio da energia, embora estivessem igualmente</p><p>condenadas pelo potencial superior.</p><p>Pode ser estabelecido como axioma que num conflito entre duas nações</p><p>ou culturas, se uma delas usa um potencial superior de energia, deve</p><p>vencer. O diferencial está na equação espaço-temporal, que compensa</p><p>qualquer inferioridade numérica original. Cem homens podem se mover</p><p>tão rápido quanto cinqüenta e são, portanto, duas vezes mais efetivos;</p><p>mas nenhuma quantidade de homens pode se mover tão rápido como</p><p>uma bala e as quantidades são anuladas pela razão inversa de velocidade</p><p>e raio de ação.</p><p>Já entre duas nações usando o mesmo modo de conversão de energia,</p><p>alguém poderia supor que a superioridade numérica e a disponibilidade</p><p>de matérias-primas deveriam determinar a questão. Mas não é assim que</p><p>acontece; como mostrado, os resultados são tão variáveis que nenhuma</p><p>resposta apresentada até aqui serve para explicar dois casos diferentes</p><p>como uma conjectura posterior.</p><p>Se alguma vez uma nação e uma dinastia tiveram os componentes físicos</p><p>de um império atirados em seu colo por pura sorte e de uma vez, essa</p><p>nação é a Espanha. O método pacífico de ampliação de território no</p><p>feudalismo era por casamentos que combinavam as heranças. Na</p><p>Europa, a dinastia de Habsburgo, por um golpe de sorte, tornou-se a</p><p>VI. Liberdade, Cristianismo e o Novo Mundo</p><p>- 55 -</p><p>legatária universal do sistema. Depois da união entre Castela e Aragão, a</p><p>Espanha se uniu ao conglomerado de nações austríaco, incluindo a</p><p>Holanda e boa parte da Itália. Ao mesmo tempo, toda a Península Ibérica</p><p>foi gradativamente incorporada, incluindo depois Portugal por um</p><p>tempo. O governante desses vastos domínios teve sua primazia sobre a</p><p>Europa formalmente reconhecida, por sua posição eletiva como chefe do</p><p>Sacro Império Romano. Presumivelmente, essa glorificação também</p><p>aconteceria se a América não tivesse sido descoberta. Por quanto tempo</p><p>teria se mantido coesa é matéria de conjecturas; mas pelo menos sua</p><p>estabilidade seria tão segura quanto a de qualquer arranjo político</p><p>contemporâneo. Assim, a Espanha controlava a parte mais rica da</p><p>Europa, com as minas espanholas e austríacas, as cidades industriais</p><p>holandesas e uma variedade de outros recursos nesse território tão</p><p>extenso. A posição dominante sobre o Mediterrâneo</p><p>também é</p><p>significativa. E então toda a riqueza da América foi despejada na</p><p>Espanha.</p><p>Em comparação, a força humana e material à disposição da Inglaterra era</p><p>ridiculamente pequena; e o território inglês consistia apenas em metade</p><p>de uma pequena ilha nebulosa e uma base incerta na Irlanda. A</p><p>Inglaterra tinha o porto de Calais, mas o perdeu antes de entrar em</p><p>combate com a Espanha.</p><p>Finalmente, deve ser observado que, dentro de suas fronteiras nacionais,</p><p>a Espanha havia conseguido a unidade perfeita. Nunca um povo havia</p><p>sido tão unânime em sentimento, em pensamento, em costumes e em</p><p>moral e religião e lealdade política, como a Espanha após a expulsão dos</p><p>mouros e dos judeus. Era sólida como uma barra de ferro.</p><p>E esse era justamente o problema. Num organismo vivo, tal condição é</p><p>mais parecida com o rigor da epilepsia; se passa a ser permanente, é a</p><p>morte. Num mecanismo, que funciona pela oposição de suas peças, é</p><p>equivalente ao empenamento. Mesmo que uma nação pareça agir quando</p><p>está assim solidificada, o movimento é o de uma massa deslocada, um</p><p>corpo em queda livre. Não tem direção inteligente nem objetivo</p><p>definido.</p><p>A Espanha foi eletrocutada, consumida, ao receber uma alta voltagem</p><p>em sua estrutura política e mecanismo sem linhas de transmissão</p><p>adequadas, saídas e isolação. Ao fazer contato com a América, a</p><p>Espanha coletou uma vasta carga de energia armazenada na forma de</p><p>metais preciosos que eram conversíveis em moeda européia. Depois</p><p>disso, o país foi palco de um espetáculo quase incrível, com navios do</p><p>tesouro descarregando lingotes de ouro ano após ano em quantidades</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 56 -</p><p>inéditas e o povo se empobrecendo cada vez mais, na razão inversa, até</p><p>que estavam reduzidos à fome e à miséria. Todas as receitas</p><p>recomendadas e aplicadas hoje em nome de uma economia planejada</p><p>foram experimentadas na Espanha nesse período com o mesmo pretexto</p><p>da necessidade pública, com a conseqüência inevitável de parar a</p><p>produção. Negócios só podiam ser feitos com autorização; manufaturas e</p><p>comércio foram restringidos; minas na Espanha foram lacradas por</p><p>decreto; dinheiro real foi tomado dos proprietários privados, que foram</p><p>obrigados a aceitar papéis do governo em troca e presos ou executados</p><p>se tentaram se recusar a aceitá-los. Impostos e tarifas se multiplicaram.</p><p>Tudo foi absorvido pelo governo; e o governo estava sempre falido. E as</p><p>funções de governo, que eram o pretexto para tais medidas, eram</p><p>executadas com grotesca ineficiência. Os maiores esforços militares</p><p>resultaram nas mais desastrosas derrotas e quando a Espanha foi</p><p>vitoriosa, não conseguiu paz. A Holanda se revoltou e não se pacificou</p><p>mais. A Inglaterra também lutou um bocado no mesmo período e nem</p><p>sempre foi vitoriosa; comparado à proporção da população e à riqueza</p><p>disponível, o esforço da Inglaterra foi maior. Mas as perdas inglesas</p><p>foram repostas rapidamente e seu poder aumentado, enquanto a Espanha</p><p>passou para a infeliz posição de campo de batalha da Europa. A</p><p>condição da Espanha enquanto ainda de posse de seu império no Novo</p><p>Mundo (por volta de 1700) foi descrita assim: “Um país sem exército,</p><p>justiça ou polícia e absolutamente sem liberdade.”5 “Os nobres são</p><p>desdenhosos e desprezíveis. Não têm nada exceto orgulho, pobreza,</p><p>preguiça e varíola. Não têm educação e nenhum tipo de conhecimento.”6</p><p>O comércio e a indústria estavam paralisados, a agricultura em</p><p>decadência; e embora ainda houvesse uma receita considerável vinda da</p><p>América, não havia dinheiro em circulação.</p><p>Durante o século dezessete, o declínio da Espanha permitiu que a França</p><p>tentasse alcançar a primazia. Luís XIV conseguiu tornar sua monarquia</p><p>absoluta e assim jogou toda a energia da nação na guerra. Conseguiu</p><p>unidade expulsando os huguenotes. Para não ser incomodado com</p><p>números, “o estúpido símbolo do dólar”, conferiu a um homem,</p><p>Chamillart7, os ministérios da guerra e da fazenda. Um observador de</p><p>primeira mão disse, sem esperança: “Não haverá tesouro que chegue</p><p>5 D’ALLONVILE, Charles Auguste (Marquês de Louville). Mémoires secréts sur</p><p>l’établissement de la maison de Bourbon en Espagne. (N. do T.)</p><p>6 Carta do Duque de Saint-Simon a Michel Chamillart, datada de 23 de agosto de 1703.</p><p>(N. do T.)</p><p>7 Michel Chamillart (1652 – 1721). Estadista francês, ministro de Luís XIV. Tentou</p><p>forçar a circulação de um tipo de papel-moeda, billets de monaie, com resultados</p><p>desastrosos. Renunciou em 1707, ao perceber que toda a receita do reino para o ano</p><p>seguinte já estava gasta por antecipação.</p><p>VI. Liberdade, Cristianismo e o Novo Mundo</p><p>- 57 -</p><p>para um governo descontrolado.” Quando os impostos de Luís lançaram</p><p>seus súditos na fome, adiantando vários anos de receita, desvalorizando a</p><p>moeda e deixando-o sem um centavo do mesmo jeito, o rei sentiu uma</p><p>dor na consciência e se perguntou se tinha o direito moral de extorquir</p><p>mais. Chamou um grupo seleto de professores da grande Universidade, a</p><p>Sorbonne; e eles servilmente o informaram de que, como rei, ele era</p><p>dono de toda a propriedade do reino; seus súditos eram meros ocupantes;</p><p>e se permitisse que eles retivessem qualquer parte de suas posses ou do</p><p>produto de seu trabalho, estaria fazendo um favor. Então ele extorquiu</p><p>mais impostos. Com unidade e controle total, quando envelheceu foi</p><p>obrigado a implorar por paz em quaisquer termos; e, antes de sua morte,</p><p>franceses inteligentes, como Catinat8, previram com pavor a Revolução</p><p>Francesa. Sabiam que a estrutura política e econômica estava fatalmente</p><p>desequilibrada. A unidade orgânica da família como padrão de sociedade</p><p>resistiu à tensão por cem anos, mas não poderia agüentar para sempre.</p><p>Nesse meio tempo, a Inglaterra sobreviveu a uma guerra civil e, sem</p><p>nenhuma ambição particular por um império, alcançou a posição</p><p>dominante pela qual a Espanha e a França se esgotaram em vão. A</p><p>energia em assuntos humanos tende a fluir pelas leis naturais com o</p><p>vento e a água, seguindo a linha de menor resistência, mas com pontos</p><p>intermediários determinados por matérias-primas em quantidade. Das</p><p>viagens de descobrimento, entre 1492 e 1611, apenas quatro saíram da</p><p>Inglaterra e nenhuma delas a tornou rica. Mesmo assim, o mapa-múndi</p><p>mostra que outro fator positivo interveio em seguida, direcionando o</p><p>fluxo entre a Europa e a América um pouco ao norte de seu curso</p><p>natural, ou seja, da Inglaterra para a comparativamente pobre costa</p><p>norte-americana da Nova Inglaterra até a Virgínia. Estas, outra vez se</p><p>tornaram radiais.</p><p>A cadeia de eventos correspondeu, ponto por ponto, aos desdobramentos</p><p>políticos internos da Inglaterra, da Espanha e da França. O âmbito e as</p><p>pretensões do governo na Espanha e na França cresceram</p><p>continuamente. As pretensões do governo na Inglaterra foram</p><p>persistentemente repelidas, diminuídas e condicionadas. Impérios são</p><p>construídos pela iniciativa privada.</p><p>Esta é a regra que determina a vitória entre nações rivais usando o</p><p>mesmo modo tecnológico de conversão de energia: aquela cujo governo</p><p>é mais limitado vencerá. Uma maior extensão territorial e recursos</p><p>concomitantes podem acabar se mostrando uma desvantagem para uma</p><p>nação com um governo absoluto, porque essas condições farão o</p><p>governo irresponsavelmente exorbitante contra seus próprios cidadãos, e</p><p>8 Nicolas Catinat (1637 – 1712), militar francês. (N. do T.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 58 -</p><p>também fornecerão lances de sorte inesperada à nação livre inimiga, que</p><p>será capaz de colocar eventuais recursos que conquiste em uso efetivo. A</p><p>maior parte da energia que a Espanha extraiu do Novo Mundo serviu</p><p>apenas para fundi-la numa rigidez agonizante, mas uma parte teve de</p><p>passar por ela e foi, assim, devolvida aos canais produtivos em outros</p><p>lugares da Europa.</p><p>O dinheiro circulou e estimulou as nações rivais e as</p><p>províncias rebeldes a quebrar o monopólio espanhol, fazendo comércio</p><p>por conta própria. A energia teve um efeito duplo na Europa como um</p><p>todo, rompendo o compromisso feudal exatamente nas mais antigas</p><p>linhas de rachaduras e ao mesmo tempo integrando pequenos</p><p>principados e cidades livres em formas nacionais.</p><p>O equilíbrio de poder pendeu para a Inglaterra porque esta permitiu que</p><p>a energia fluísse de maneira mais livre, o que significa dizer que a</p><p>Inglaterra cedia a maior liberdade ao indivíduo, respeitando a</p><p>propriedade privada e abandonando gradativamente a prática de</p><p>monopólios comerciais políticos. É claro que a Inglaterra não desistiu de</p><p>uma vez de conceder esses monopólios e foi exatamente o que restou</p><p>deles que precipitou a Revolução Americana; mas a livre empresa tinha</p><p>margem de manobra suficiente para suplantar a Espanha e a França.</p><p>O teste crucial da propriedade privada é a atitude do governo em relação</p><p>ao dinheiro. Desvalorização da moeda é expropriação pura e simples. O</p><p>Império Britânico foi fundado quando o sistema monetário, que estava</p><p>depreciado, foi restaurado para um padrão durante os primeiros anos do</p><p>reinado de Elizabeth, seguindo os conselhos de Gresham9. Naquele</p><p>momento, o comércio inglês estava em situação difícil, o tesouro</p><p>nacional vazio, o crédito nacional acabado e o crédito mercantil trôpego,</p><p>a guerra ameaçava e a rebelião era uma possibilidade real. Nessas</p><p>circunstâncias, os governos normalmente recorrem à moratória, ao</p><p>confisco e ao fiat money. Em vez disso, a Inglaterra tomou o caminho</p><p>contrário. O mundo ficou sob seu domínio. O Império Britânico</p><p>terminou trezentos e cinqüenta anos depois, quando a Inglaterra outra</p><p>vez desvalorizou sua moeda, declarou moratória de suas dívidas,</p><p>confiscou a propriedade privada e aboliu a liberdade pessoal.</p><p>Estas considerações não são sentimentalistas; constituem o mecanismo</p><p>de produção e, portanto, de poder. A liberdade pessoal é a pré-condição</p><p>para a liberação de energia. A propriedade privada é o indutor que inicia</p><p>9 Sir Thomas Gresham (1579 – 1579), mercador e financista inglês, criador da Lei de</p><p>Gresham: “Quando um governo sobrevaloriza um tipo de moeda e desvaloriza outro,</p><p>a moeda desvalorizada deixará o país ou desaparecerá em reservas escondidas,</p><p>enquanto a moeda sobrevalorizada inundará a circulação.” Costuma ser resumida</p><p>assim: “A moeda ruim tende a expulsar do mercado a moeda boa.” (N. do T.)</p><p>VI. Liberdade, Cristianismo e o Novo Mundo</p><p>- 59 -</p><p>o fluxo. O dinheiro real é a linha de transmissão; e o pagamento das</p><p>dívidas completa o circuito. Um império é simplesmente um sistema de</p><p>energia de longo circuito. A possibilidade de um curto-circuito, que</p><p>resulte em vazamento e colapso ou explosão, ocorre na conexão da</p><p>organização política aos processos produtivos. Não é uma figura de</p><p>linguagem ou analogia, mas uma descrição física exata do que acontece.</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 60 -</p><p>- 61 -</p><p>VII. O Nobre Selvagem</p><p>primeira generalização abstrata feita pelos europeus sobre os</p><p>aborígenes americanos foi que as tribos menos civilizadas não</p><p>tinham governo.1 A Europa estava tão distante dessa condição</p><p>que foi tomada de assombro. O fato deu origem ao mito do Nobre</p><p>Selvagem. Hoje, esse conceito parece uma fabricação gratuita, porque</p><p>foi traduzido em forma poética e pictórica. O Nobre Selvagem era</p><p>originalmente um silogismo, uma construção lógica a partir das</p><p>premissas da teoria européia de governo. A autoridade secular residia na</p><p>sociedade, que era uma entidade; e os homens nasciam submetidos a ela.</p><p>Imaginava-se que, sem governo, a mão de cada homem se levantaria</p><p>contra seu próximo e todo tipo de crime seria cometido por todos.</p><p>Possivelmente, a memória das invasões bárbaras contribuiu para essa</p><p>crença; ao mesmo tempo, a doutrina do pecado original pode ser</p><p>interpretada de maneira a confirmá-la. E, uma vez que certamente havia</p><p>crimes sendo cometidos em profusão, parecia razoável supor que mais</p><p>crimes haveria se os indivíduos tivessem mais liberdade de ação. Como</p><p>ou por que uma sociedade composta de indivíduos ávidos por assassinar</p><p>restringiria seus membros pela força pode parecer incompreensível,</p><p>especialmente quando a Igreja exercia uma autoridade superior à da</p><p>organização secular, porque apelava à consciência individual, intervindo</p><p>em disputas armadas com prescrições morais. Mas, para explicar essa</p><p>inconsistência, apelava-se à missão divina confiada à Igreja. A ordem da</p><p>sociedade secular fazia necessário prender os homens a uma dada</p><p>localidade e a uma dada classe e, portanto, determinar o que eles deviam</p><p>ou não fazer, dizer, escrever ou pensar. Tanto o exílio como a “prisão</p><p>preventiva”, encarceramento sem julgamento (como por lettre de</p><p>cachet2) são conseqüências extremas dessa teoria.</p><p>Assim, foi um choque profundo descobrir que havia menos crime entre</p><p>selvagens sem governo que numa sociedade com um governo autoritário</p><p>que regulava detalhes da vida dos súditos. Os selvagens praticavam a</p><p>maioria das virtudes seculares: coragem, hospitalidade, sinceridade,</p><p>1 A palavra governo, como usada aqui, significa uma organização política formal de</p><p>pessoas nomeadas com funções definidas e autoridade para impor suas decisões. (N.</p><p>da A.)</p><p>2 Lettres de cachet eram cartas assinadas pelo Rei da França, contendo ordens diretas,</p><p>freqüentemente para impor ações arbitrárias e decisões judiciais contra os quais não</p><p>havia apelo. As mais conhecidas são as que condenavam um súdito à prisão,</p><p>deportação ou banimento, sem julgamento ou oportunidade de defesa. (N. do T.)</p><p>A</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 62 -</p><p>lealdade, talvez até a castidade. É verdade que guerreavam e eram às</p><p>vezes cruéis, mas os europeus guerreavam e haviam legalizado a tortura.</p><p>Porém, os homens não abandonam facilmente uma opinião por meio da</p><p>qual justificaram suas instituições. Portanto, só se podia concluir que os</p><p>selvagens eram peculiarmente nobres por natureza; ou, pelo menos,</p><p>assim eram os selvagens americanos.3 O Nobre Selvagem não era uma</p><p>criação inteiramente nova; Tácito havia idealizado os bárbaros da mesma</p><p>maneira, enquanto os bárbaros permaneciam a uma distância segura. Só</p><p>a racionalização era nova. Mas o Nobre Selvagem passou para a</p><p>mitologia européia sem ter obtido crédito na América. Os primeiros</p><p>colonos brancos, para quem o selvagem era um inimigo presente e</p><p>sanguinário, podiam não tomar conhecimento de suas virtudes.</p><p>Exatamente nesse ponto começou o cisma ou a divisão entre as idéias</p><p>políticas americanas e européias.</p><p>O impacto de um sistema de alta energia em outro de energia menor tem</p><p>um efeito interno sobre este último que é muito mais desagregador e</p><p>conclusivo que as conseqüências diretas da guerra. Por exemplo, se os</p><p>índios norte-americanos recebessem armas de fogo e munição para seu</p><p>próprio uso, mantendo todo o restante como era antes, seu modo de vida</p><p>seria gravemente perturbado. A população ideal que uma economia</p><p>caçadora consegue sustentar é bastante limitada. Passam-se anos</p><p>seguidos em que a caça é escassa de qualquer maneira; nesses períodos,</p><p>os membros mais fracos das tribos selvagens perecem; e em qualquer o</p><p>tempo, as dificuldades para sobreviver são muito grandes. Com armas de</p><p>fogo, seria possível aos caçadores matar mais animais, de maneira que a</p><p>população tenderia a crescer por certo tempo, à custa do suprimento</p><p>futuro de comida conforme a caça rareasse, até que um ano</p><p>excepcionalmente ruim trouxesse uma fome em grande escala. Na</p><p>verdade, algo semelhante foi acontecendo gradualmente. Não houve</p><p>grandes quantidades de índios norte-americanos massacrados por</p><p>homens brancos na guerra. Ao contrário, a economia dos índios</p><p>um freio à ação humana. Freios são necessários e extremamente</p><p>- 5 -</p><p>importantes. Existem coisas que precisam ser proibidas. Para poder</p><p>impor essas proibições, o governo evidentemente precisa de recursos.</p><p>Mas, um governo não tem capacidade ou poder para criar alguma coisa.</p><p>Quem cria qualquer coisa são os indivíduos. O governo pode estabelecer</p><p>proibições e tomar dinheiro dos cidadãos, por meio de impostos, para se</p><p>desempenhar suas atividades. Sempre que faz isso, a sociedade fica</p><p>menor, menos livre e menos produtiva.</p><p>Um capítulo muito divertido é A Economia da Sociedade Livre, em que</p><p>Isabel denuncia a falta de sentido do marxismo. A teoria do materialismo</p><p>dialético é uma corrupção da linguagem semelhante a dizer que um</p><p>triângulo isósceles é verde. Tolos podem argumentar que um triângulo</p><p>isósceles não é verde, mas azul, ou que o triângulo isósceles verde</p><p>produzirá um círculo azul e os dois se sintetizarão em um rombóide</p><p>púrpura; ainda assim, essas afirmações serão vazias. Mas Marx era um</p><p>tolo com um grande vocabulário de palavras longas. Sua teoria de luta de</p><p>classes é um completo nonsense por sua própria definição. Uma vez que</p><p>trata de capital e de trabalho, não faz referência nem à luta nem a classes.</p><p>É impossível que o capital e o trabalho lutem entre si.</p><p>A Constituição dos Estados Unidos resolveu o problema que Roma não</p><p>havia conseguido: como criar bases regionais para uma estrutura política</p><p>sem recorrer a uma aristocracia. O federalismo é essa solução. Os</p><p>Founding Fathers fizeram um trabalho admirável de arquitetura.</p><p>Construíram um mecanismo político que funciona e que permite que a</p><p>nação cresça, aumente sua população e a quantidade de energia</p><p>envolvida no sistema como um todo, sem que se altere o design</p><p>intrínseco. Isabel chama atenção para a cláusula de traição da</p><p>Constituição dos Estados Unidos, uma instituição inédita e singular na</p><p>história. Em primeiro lugar, essa cláusula define que não existe traição</p><p>em tempos de paz. Apenas uma rebelião armada ou unir-se a uma nação</p><p>inimiga constitui traição, e nações só são inimigas quando em guerra.</p><p>Nenhum tipo de oposição pacífica ou pessoal é traição, e nem mesmo o</p><p>ataque armado de uma única pessoa contra o governo americano. Na</p><p>Europa, qualquer ataque à pessoa do rei, mesmo que não fosse por</p><p>razões políticas, seria tratado como traição. Nos Estados Unidos, a</p><p>pessoa e o cargo são conceitos separados. Mas existe outro detalhe</p><p>relevante. A cláusula estabelece que os bens de alguém condenado por</p><p>traição só podem ser confiscados se o réu estiver vivo. Se morrer, os</p><p>bens passam para seus herdeiros legítimos. Ou seja, a culpa é pessoal e a</p><p>propriedade pertence aos indivíduos.</p><p>A escravidão foi o grande defeito na estrutura criada nos Estados</p><p>Unidos. Em nome do federalismo, os constituintes admitiram uma</p><p>- 6 -</p><p>desastrosa e imoral solução de compromisso, que manteve essa</p><p>instituição abominável no sistema que estavam criando. As</p><p>conseqüências disso foram uma instabilidade crescente na nação, que</p><p>resultou na Guerra Civil. A Guerra ensejou emendas à Constituição que</p><p>desfiguraram parte do projeto. A Emenda 14 faz uma referência confusa</p><p>a “poderes implícitos”, que causa discussões judiciais perigosas até hoje.</p><p>A Emenda 15 cancelou a soberania dos Estados, ao impedi-los de</p><p>determinar as qualificações dos seus eleitores. A Emenda 17 criou uma</p><p>nova distorção do projeto original, ao tirar a eleição dos senadores das</p><p>legislaturas estaduais e passá-la para o voto popular. Os senadores</p><p>deveriam ser representantes dos Estados, enquanto os deputados seriam</p><p>os representantes do povo. Da maneira como ficou, os Estados perderam</p><p>essa representação.</p><p>Isabel analisa e desmonta diversos absurdos, como as leis antitruste, a</p><p>chamada propriedade pública, o dinheiro sem lastro (fiat money), as</p><p>teorias educacionais progressistas e a filantropia profissional. O capítulo</p><p>XX, O Humanitário com a Guilhotina, o melhor do livro, trata</p><p>exatamente desse tipo distorcido de filantropia. Ela ainda aborda as</p><p>causas das depressões econômicas e discute como maximizar o poder</p><p>militar de um país livre quando em guerra.</p><p>A conclusão do livro, com a qual concordo totalmente é que a liberdade</p><p>é a maior herança de que o homem já desfrutou. É o resultado do esforço</p><p>heróico de incontáveis pessoas, por muitos milhares de anos. Darmos</p><p>meia volta e nos submetermos à escravidão seria uma traição inominável</p><p>a todas essas pessoas e às gerações presentes e futuras. Mas temos a</p><p>oportunidade grandiosa de justificar a fé depositada por aqueles que</p><p>acreditaram e acreditam na liberdade. Não percamos essa oportunidade!</p><p>Marcelo Centenaro</p><p>27 de setembro de 2014</p><p>- 7 -</p><p>I. O Ciclo de Energia no Mundo Clássico</p><p>ouco antes do fim do quarto século antes de Cristo, um navegador</p><p>de uma colônia grega velejou do porto de Massília (atual</p><p>Marselha), sua cidade natal, através do Estreito de Gibraltar e,</p><p>dali, pela costa da Espanha, da França e das Ilhas Britânicas até Última</p><p>Thule, o nome dado ao fim do mundo. Possivelmente Thule era a</p><p>Islândia; isso ainda é objeto de conjecturas. O nome do ousado</p><p>marinheiro, Pítias, chegou até nós. Ele aparece em nossa imaginação –</p><p>uma figura solitária cercada de luz – como se um portal pendesse aberto</p><p>entre as Colunas de Hércules, em direção ao mundo ocidental.</p><p>Agora, o que é curioso sobre este aspecto da aventura de Pítias é que ele</p><p>não foi de modo algum o primeiro homem civilizado a atravessar o</p><p>lendário portal do Atlântico. Pelo contrário, essa era uma rota comercial</p><p>de navios mercantes fenícios desde tempos imemoriais. Estanho da</p><p>Cornualha e peles e âmbar do Báltico estavam entre as principais cargas</p><p>entregues aos mercados do leste, para o lucro de Cartago, cuja riqueza</p><p>provinha de sua posição de intermediária.</p><p>Quando Pítias fez sua viagem, as Guerras Púnicas e o Império Romano</p><p>ainda estavam no futuro. Não que Cartago estivesse em paz; nunca</p><p>esteve por um período muito longo. Tomada em conjunto, a série de</p><p>guerras que perpassa a história dos fenícios forma um padrão geográfico</p><p>que lembra a trilha de um furacão – o fluxo de energia de um ciclone</p><p>durando quase mil anos e movendo-se irresistivelmente pelo caminho</p><p>marítimo em meio às terras dos grandes continentes da antiguidade</p><p>clássica, Ásia, África e Europa. Essa corrente incessante de atividade</p><p>humana rodopiou através de seu canal sem maré, sempre numa direção</p><p>principal – uma direção que, em vista do conhecimento de geografia da</p><p>época, não tinha sentido, porque levava para o oceano vazio. Não estou</p><p>negando o valor do comércio da costa exterior da Europa, mas o impulso</p><p>daquela região parece desproporcional ao volume de bens. Durante o</p><p>período dessa travessia, os fenícios flutuaram na tempestade, ou fizeram</p><p>parte dela.</p><p>Que tipo de povo eram esses fenícios, aprendemos das Escrituras, com</p><p>outro nome. Foi um fenício, Hirão, rei de Tiro, que enviou seus</p><p>auxiliares a Salomão quando este subiu ao trono e obteve a incumbência</p><p>de construir o palácio de Salomão e, depois, o Templo. Hirão forneceu</p><p>os materiais, transporte e trabalhadores especializados numa estrutura</p><p>pré-fabricada; troncos de cedro cortados sob medida no Líbano foram</p><p>levados a Israel e envolvidos em pedras numa pedreira. Ornamentos</p><p>P</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 8 -</p><p>elaborados de metal foram lavrados segundo especificações, de maneira</p><p>que a residência real foi levantada e “não se ouviu na casa martelo, nem</p><p>machado nem instrumento algum de ferro, enquanto ela se edificava”.1</p><p>Como pagamento, Hirão recebeu “para sustento da sua casa vinte mil</p><p>coros de trigo e vinte coros de azeite batido”,2 e ao final um</p><p>assentamento de “vinte cidades na terra da Galiléia”.3 Hirão não gostou</p><p>das “cidades”, tendo-as aceito sem ver; é uma suposição razoável que ele</p><p>tenha estendido um pouco além da conta o crédito</p><p>foi</p><p>suplantada; e aqueles em contato com o homem branco se perverteram</p><p>muito antes da ocupação total do continente pelos brancos.</p><p>O desvio do Nobre Selvagem de sua virtude imaculada original não pôde</p><p>deixar de ser observado. O mito permaneceu no pensamento europeu,</p><p>mas teve de ser modificado para uma hipótese provisória de que talvez</p><p>todos os homens fossem igualmente nobres até que se corrompessem por</p><p>3 Os teóricos ignoraram os caraíbas, cujas práticas canibais são indescritíveis. E os</p><p>apaches ainda não eram conhecidos. As pessoas simplesmente estavam enjoadas de</p><p>governo demais. (N. da A.)</p><p>VII. O Nobre Selvagem</p><p>- 63 -</p><p>— por quê? Pela “sociedade”, pelo menos a partir do momento em que</p><p>ela se organizou, especialmente em sua forma política. Aproximando-se</p><p>da lei da física que diz que ação e reação são iguais e opostas, as mentes</p><p>européias começaram a balançar para este extremo, a partir de sua teoria</p><p>anterior de status.</p><p>Emigrantes para a América já haviam feito o movimento físico. Portanto,</p><p>seu pensamento tendia a procurar um equilíbrio. Na opinião dos homens</p><p>da fronteira, o único índio bom era o índio morto. Mas o homem da</p><p>fronteira também não tinha uma ligação excessiva com o governo.</p><p>Americanos informados e ponderados permaneceram conscientes do fato</p><p>de que o selvagem, em sua condição original, realmente obedecia a um</p><p>código moral, embora não tivesse governo. Tendo contato direto com as</p><p>limitações da cultura primitiva, esses homens de intelecto não tinham</p><p>nenhum desejo de regredir para a selvageria em busca de uma ilusão</p><p>sentimental; o que os interessava era a questão racional: se o governo</p><p>não impediu o crime e impôs a virtude, o que foi que o fez? Se, em</p><p>certas condições, o governo pode ser completamente dispensável, por</p><p>que e até que ponto ele é realmente necessário em qualquer condição?</p><p>As colônias americanas forneceram outro exemplo prático e campo de</p><p>provas. Nominalmente, estavam sob o mesmo tipo de autoridade que as</p><p>nações européias das quais saíram; mas especialmente as colônias</p><p>inglesas, por razões históricas, tendiam fortemente ao autogoverno, no</p><p>qual o elemento estritamente tradicional ficava diluído ou era eliminado</p><p>e a liberdade do indivíduo era considerada um fato. Mesmo assim, elas</p><p>prosperavam; as pessoas conviviam umas com as outras e, com muito</p><p>menos governo que na Europa, a criminalidade não era maior. A</p><p>existência da escravidão ao mesmo tempo só pode ser entendida se</p><p>compreendermos as duas teorias de sociedade. A escravidão ocorre no</p><p>que foi depois chamado de “economia mista”. O contrato havia se</p><p>tornado a relação predominante, mas a teoria do status não havia sido</p><p>explicitamente rejeitada pela limitação do escopo do governo. O suposto</p><p>valor moral do status é que ele dá “segurança” a todos, um lugar na</p><p>sociedade do qual ninguém pode ser tirado e do qual, reciprocamente,</p><p>ninguém pode sair. Se existia algum benefício no status, o servo</p><p>desfrutava dele tanto quanto seu senhor.4 Pela teoria de status completa e</p><p>absoluta, a terra não podia ser vendida em nenhuma hipótese, apenas</p><p>herdada; e devia ser mantida em arrendamento perpétuo; não podia ser</p><p>4 O servo não era livre para passar fome. Ele tinha de passar fome preso e passava</p><p>fome com freqüência. Fomes eram recorrentes até em regiões férteis. Os Estados</p><p>Unidos são o único país da história onde nunca houve fome desde o surgimento da</p><p>nação. (N. da A.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 64 -</p><p>transferida do cultivador hereditário para outra pessoa. Isso parece tão</p><p>admirável que, ultimamente, foram feitas algumas tentativas de</p><p>reinstituir a posse irrevogável, por esquemas gradativos como</p><p>antiguidade no emprego (começando pelo serviço público) e “colônias</p><p>de subsistência” estabelecidas pelo governo. Essas tentativas são aceitas</p><p>sem que se dê conta da conseqüência inevitável: é o retorno da servidão.</p><p>Se a relação de trabalho não pode ser encerrada pelo empregador de</p><p>acordo com o contrato, ou o inquilinato não pode ser encerrado pelo</p><p>proprietário quando o período de aluguel terminar, o empregado ou o</p><p>inquilino também devem perder o direito de sair do emprego ou da</p><p>locação. Submetidos ao “estado”, não terão nem mesmo o caráter</p><p>humano que o servo possuía no feudalismo, tão opressivo quanto fosse.</p><p>Não serão nada exceto peças em uma máquina.</p><p>Mas a escravidão era uma combinação monstruosa de status e contrato, a</p><p>epítome da “economia mista”. A condição desigual do escravo é status,</p><p>mas ele é comprado e vendido por contrato. Em teoria, o servo ainda era</p><p>um homem, enquanto o escravo era um objeto.</p><p>Essa anomalia fatalmente perturbaria a consciência dos proprietários de</p><p>escravos exatamente porque eles eram homens livres. Ela deixava a</p><p>liberdade dependente de uma condição acidental. O argumento fácil de</p><p>que o negro era escravo pela maldição de Cam não explicava o fato de</p><p>que homens brancos também eram condenados e embarcados para a</p><p>América para serem vendidos como escravos por crimes políticos.</p><p>Assim, todo o curso da história se repetia, era encenado outra vez, diante</p><p>dos olhos dos americanos. Um homem, durante seu tempo de vida, o</p><p>assistiria inteiro, se se preocupasse em contemplar o que estava à vista;</p><p>as teorias e os argumentos foram colocados em teste por demonstração.</p><p>Voltando a olhar para a Europa, podia ver o sistema de status ainda em</p><p>vigência ou gerando várias modificações. Podia distinguir a posição</p><p>extrema dos homens como súditos daquele estado absoluto; eram</p><p>escravos. Podia estudar a realidade da vida selvagem em seu melhor e</p><p>em seu pior, contrastada com as dificuldades, dores e recompensas da</p><p>civilização. Podia ver homens que haviam renunciado à civilização para</p><p>adotar a selvageria, afundando no pior, em vez de alcançar o melhor.</p><p>Podia ver outros que se embrenharam na natureza com a inocência de</p><p>um cervo ou de um falcão, mas cujos recursos foram suficientes apenas</p><p>para uma geração.</p><p>Podia também ver homens livres em livre associação, produzindo e</p><p>construindo, trabalhando sem mestre e, mesmo assim, diligentemente, e</p><p>relacionando-se com outros homens aproximadamente como iguais sem</p><p>desordem. Surpreendentemente, a maioria dos problemas sociais trazidos</p><p>VII. O Nobre Selvagem</p><p>- 65 -</p><p>da Europa não chegou a ser resolvida nem apaziguada; os problemas</p><p>simplesmente evaporaram. As guerras de religião minguaram para</p><p>pequenas perseguições locais. As barreiras de classe se dissolveram; e</p><p>onde pessoas de várias nacionalidades se misturaram em uma</p><p>comunidade, conviveram amigavelmente. Porém, como indivíduos, eles</p><p>não sofreram nenhuma transformação observável; continuavam sendo</p><p>seres humanos.</p><p>Evidentemente, seu comportamento e modo de associação eram viáveis e</p><p>deviam ter princípios deduzíveis, intrinsecamente diferentes daqueles da</p><p>Europa. A presença de escravos deu a resposta; as outras diferenças</p><p>estavam tão apagadas que as duas condições possíveis ficaram</p><p>completamente evidentes. Ou um homem era livre ou não era livre. E</p><p>onde se havia assumido anteriormente que os homens não se adequavam</p><p>à liberdade, agora se podia supor que somente a liberdade era adequada</p><p>ao homem.</p><p>Durante os séculos anteriores, na Europa, várias “liberdades” foram</p><p>arrancadas ou compradas da autoridade, mas tais concessões sempre</p><p>foram expressas como outorgas vindas de cima, não direitos, mas</p><p>privilégios. Quando a soma delas se tornava considerável, a Sociedade</p><p>do Contrato podia ao menos ser imaginada. Foi imaginada e projetada no</p><p>Novo Mundo. No Novo Mundo, tornou-se um fato. Finalmente, a</p><p>ocasião estava madura para afirmá-la como um conceito político, sem</p><p>restrições.</p><p>Os termos foram encontrados: todos os homens são dotados por seu</p><p>Criador com um direito inalienável à vida, à liberdade e</p><p>à busca da</p><p>felicidade.</p><p>A liberdade era indivisível, era uma pré-condição. Falar em diversas</p><p>“liberdades” é usar a linguagem da Europa, não da América; é abandonar</p><p>o princípio básico sobre o qual foram fundados os Estados Unidos.</p><p>Mas, para o conceito de liberdade, a forma apropriada de governo ainda</p><p>precisava ser criada. A falácia do anarquismo ainda não havia sido</p><p>cogitada. Embora não fosse completamente claro por que algum governo</p><p>era inevitável, sentia-se que era uma necessidade. O enigma dos</p><p>selvagens — por que eles não tinham governo embora fossem sujeitos à</p><p>fraqueza humana — teve de ser deixado sem solução, embora não tenha</p><p>sido esquecido e tenha tido grande influência para confirmar a teoria da</p><p>liberdade. A mudança da base européia de governo para outra base foi</p><p>feita postulando-se que os homens nascem livres. Uma vez que</p><p>começam sem governo, devem, portanto, institui-lo por acordo</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 66 -</p><p>voluntário. Assim, o governo deve ser um agente deles, não um superior.</p><p>A vontade é uma função do indivíduo, logo o indivíduo tem o direito</p><p>prioritário. Então, mesmo que se presuma que o governo resolve</p><p>parcialmente as deficiências morais da humanidade, ainda assim ele deve</p><p>ser limitado e subordinado. Se todos fossem invariavelmente honestos,</p><p>capazes, sábios e bons, não haveria lugar para o governo. Todos</p><p>entenderiam prontamente o que é desejável e o que é possível em</p><p>determinadas circunstâncias, todos contribuiriam com os melhores meios</p><p>para seu objetivo e pela participação equitativa nos benefícios resultantes</p><p>e agiriam sem coação ou omissão. A máxima produção seria certamente</p><p>obtida dessa ação voluntária originada da iniciativa pessoal. Mas, como</p><p>os seres humanos algumas vezes mentirão, quebrarão promessas,</p><p>deixarão de desenvolver suas capacidades, agirão de maneira</p><p>imprudente, tomarão pela violência os bens dos outros e até mesmo</p><p>matarão uns aos outros por fúria ou ganância, um governo precisa ser</p><p>definido como a organização policial. Nesse caso, ele pode ser descrito</p><p>como um mal necessário. Não existiria como entidade separada e não</p><p>teria autoridade intrínseca; não poderia ser habilitado a agir exceto se um</p><p>indivíduo infringisse o direito de outro, quando imporia as penalidades</p><p>previstas. Geralmente, permaneceria como uma testemunha contratual,</p><p>mantendo um penhor das partes. Como tal, a menor quantidade de</p><p>governo seria a melhor. Qualquer coisa além do mínimo seria opressão.</p><p>Dessa perspectiva, os homens não são nem totalmente “nobres” nem</p><p>incorrigivelmente maus, mas sim criaturas imperfeitas dotadas da</p><p>fagulha divina e assim capazes de progredir, talvez no longo curso da</p><p>“perfectibilidade”. Isso é essencialmente uma aplicação secular da</p><p>doutrina cristã da alma individual, nascida para a imortalidade, com a</p><p>faculdade do livre-arbítrio, que inclui a possibilidade do pecado e do</p><p>erro, mas permite igualmente que o homem se empenhe por sua</p><p>salvação, sua herança. Qualquer pessoa que não reconheça a ligação</p><p>entre esses princípios deve tentar reescrever a Declaração da</p><p>Independência sem referência à fonte divina dos direitos humanos. Não é</p><p>possível fazer isso; fica faltando o axioma. A filosofia do materialismo</p><p>não admite nenhum tipo de direito; logo, o mais opressivo despotismo</p><p>jamais conhecido foi o resultado imediato do “experimento” do</p><p>comunismo marxista, que postulava unicamente um processo</p><p>mecanicista para sua validação.</p><p>A idéia cristã foi necessária para o conceito de liberdade. A idéia romana</p><p>foi indispensável para a forma — um governo de leis e não de homens.</p><p>A questão colocada pela ausência de governo na sociedade selvagem</p><p>teve de ser deixada de lado naquela ocasião, porque ninguém a</p><p>VII. O Nobre Selvagem</p><p>- 67 -</p><p>reconhecia como um problema de engenharia; e ela não pode ser</p><p>expressa de outra maneira. É evidentemente um problema moral, uma</p><p>vez que trata da relação entre seres humanos; mas as relações específicas</p><p>envolvidas são aquelas que incluem tempo e espaço. A organização de</p><p>ações no tempo e no espaço constitui a ciência da engenharia.</p><p>De qualquer maneira, a tarefa imediata era determinar o modo de um</p><p>governo mínimo, examinando-se e comparando-se exemplos históricos,</p><p>avaliando-se o desempenho de intenções e dispositivos. Tendo-se</p><p>postulado que a fonte da autoridade secular reside no indivíduo, a</p><p>questão então era impedir que essa autoridade fosse usurpada por seu</p><p>agente. Entretanto, um fator de engenharia foi certamente entendido — a</p><p>função da propriedade privada como a base exclusiva da liberdade. Não</p><p>é por acaso que o rascunho original da Declaração da Independência</p><p>listava a propriedade privada como um direito inalienável do indivíduo.</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 68 -</p><p>- 69 -</p><p>VIII. A Falácia do Anarquismo</p><p>epois de ter afirmado que os selvagens não tinham governo,</p><p>chamar o anarquismo de falácia parece uma clara inconsistência.</p><p>Mas devemos ter em mente que o modo de conversão de energia</p><p>deve corresponder ao modo de associação. A anarquia é viável apenas</p><p>entre os selvagens. Tentou-se adotar a anarquia numa economia agrícola,</p><p>que é mais avançada, e o resultado é altamente instrutivo. A seita</p><p>religiosa dos Dukhobors1 repetiu essa experiência exaustivamente.</p><p>Dentro de seus limites, sua argumentação era completamente</p><p>consistente. Estavam determinados a não ter nenhum tipo de governo,</p><p>nem mesmo autogoverno, como o termo é entendido para descrever uma</p><p>organização formal. Um jornalista2 que estudou uma colônia Dukhobor</p><p>no Canadá pediu que um membro da colônia prometesse não queimar</p><p>algumas anotações manuscritas, se elas fossem largadas por ali. Seria o</p><p>tipo de promessa mais fácil de ser cumprida, consistindo simplesmente</p><p>em se abster de um ato que nenhuma circunstância imaginável poderia</p><p>tornar necessário. O Dukhobor respondeu que “não desejaria queimar</p><p>aquelas anotações”. O jornalista reconheceu que, sem dúvida, o</p><p>Dukhobor naquele momento acreditava que não o faria, mas e se</p><p>mudasse de idéia depois? Nesse caso, disse o Dukhobor, “se o Espírito</p><p>me induzisse a fazê-lo, então eu teria de queimá-las”.</p><p>A essência do autogoverno consiste em manter promessas; a organização</p><p>formal é instituída por acordo e seu poder é delegado com o objetivo de</p><p>sustentar o contrato que se estabeleceu pela livre vontade das partes — o</p><p>contrato encarnado na Constituição e os contratos privados entre</p><p>indivíduos. Os Dukhobors eram completamente lógicos em evitar o</p><p>primeiro passo na direção do autogoverno, uma vez que não desejavam</p><p>ter nenhum tipo de governo. Mas a seita, durante sua existência,</p><p>alternou-se entre disputas que paralisavam a produção e lideranças</p><p>autocráticas que tomavam arbitrariamente para si uma grande parcela do</p><p>que era produzido. Esse é o resultado inevitável da tentativa mais</p><p>cuidadosa de permanecer numa condição de anarquia depois que a</p><p>1 Grupo religioso de origem russa, que surgiu provavelmente no século 18. Eles</p><p>rejeitam o governo secular, os sacerdotes ortodoxos russos, os ícones, a liturgia, a</p><p>Bíblia como fonte suprema da revelação divina e a divindade de Jesus. Por suas</p><p>crenças pacifistas e pelo desejo de evitarem a interferência governamental em suas</p><p>vidas, a quase totalidade do grupo emigrou do Império Russo para o Canadá no final</p><p>do século XIX. Em 2014, a população estimada de Dukhobors é de 40.000 pessoas no</p><p>Canadá e 5.000 nos Estados Unidos. (N. do T.)</p><p>2 WRIGHT, J. F. C. Slava Bohu: The story of the Dukhobors. (N. da A.)</p><p>D</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 70 -</p><p>relação moral entre os membros da comunidade se estendeu no espaço e</p><p>no tempo de maneira a permitir uma economia mais desenvolvida que a</p><p>dos selvagens. Muito trabalho é perdido; e os membros da comunidade</p><p>são submetidos a infortúnios, pobreza e ignorância.</p><p>É fácil descobrir o estágio de desenvolvimento a partir do qual o governo</p><p>se torna necessário; e sua correspondência ao modo de conversão de</p><p>energia pode ser claramente percebida, ou a não-correspondência quando</p><p>a sincronização não está correta. O que ainda não foi elucidado é a</p><p>relação específica entre o mecanismo de governo e a ordem produtiva.</p><p>Isso levou a várias conjecturas conflitantes sobre a origem e a natureza</p><p>do governo. Uma teoria da história afirma que o governo surge da guerra</p><p>e, portanto, é a força em si. Isso é duplamente falso, uma vez que é o</p><p>oposto da relação real. Essa teoria foi adotada por filósofos</p><p>comprometidos com a doutrina do Estado Absoluto, porque é o único</p><p>argumento possível que parece dar a eles uma base factual; mas ela</p><p>reside unicamente no erro de post hoc, ergo propter hoc3.</p><p>Governo pela força é uma contradição em termos e uma impossibilidade</p><p>física. A força é o que é governado. O governo se origina na faculdade</p><p>moral.</p><p>A relação de subordinação da força à faculdade moral é auto evidente se</p><p>considerarmos a localização da fonte da energia aplicada nos assuntos</p><p>humanos; e essa relação pode ser demonstrada pelo mecanismo de todos</p><p>os modos conhecidos ou imagináveis de associação humana. A forma</p><p>mais antiga de sociedade, que se alimentava da extração direta da</p><p>natureza e se mantinha unida pelo instinto de espécie, é a sociedade dos</p><p>selvagens. Acredita-se que os esquimós apresentem uma cultura da Idade</p><p>da Pedra sobrevivendo até hoje, muito pouco modificada até tempos</p><p>recentes. Seu habitat não permite a acumulação de posses além de</p><p>objetos transportáveis e pequenas provisões de alimento; eles não podem</p><p>ter esperanças de melhorias em sua sorte além de uma margem</p><p>obviamente estreita. A velhice é curta; incompetência, doença ou</p><p>incapacidade grave significam a morte. O casamento é uma parceria de</p><p>trabalho facilmente dissolvida; e o comportamento sexual é</p><p>correspondentemente lasso. O processo de conversão de energia tem o</p><p>menor circuito possível, com o homem como caçador trazendo matérias-</p><p>primas e a mulher imediatamente transformando-os em bens de</p><p>3 Expressão latina que significa “depois disto, portanto em conseqüência disto”.</p><p>Falácia lógica que consiste na idéia de que dois eventos que ocorrem em seqüência</p><p>cronológica estão necessariamente ligados por uma relação de causa e efeito. (N. do</p><p>T.)</p><p>VIII. A Falácia do Anarquismo</p><p>- 71 -</p><p>consumo; esse é o circuito de manutenção, e os filhos são o de reposição.</p><p>O grupo não pode crescer demais; precisa se dispersar e vagar, e não</p><p>pode estabelecer um local regular de assembléia. Portanto, não possui</p><p>um chefe secular. Nenhum esquimó tem autoridade sobre outro; mas</p><p>Stefansson4 observa que, sem buscar essa posição, os homens mais</p><p>capazes possuem influência sem terem privilégios. Sob necessidade</p><p>extrema, que é o molde do simples costume, os esquimós realmente não</p><p>têm governo, nem estrutura política, nem qualquer tipo de agência.</p><p>Os esquimós não guerreiam. Sua energia é absorvida na luta imediata</p><p>pela existência; e seu ambiente, a desolação branca do Ártico, elimina o</p><p>possível aspecto da guerra como esporte, que consiste em surpresa, fuga</p><p>e perseguição.</p><p>Em regiões temperadas, os selvagens guerreiam; e ainda assim não têm</p><p>governo formal. Mas a guerra e a liderança, com um conselho informal,</p><p>parecem ser criações síncronas. É o que dá plausibilidade à teoria de que</p><p>o governo se origina na guerra e, portanto, o governo em si é força. O</p><p>erro só pode permanecer se rejeitarmos tanto os fatos do comportamento</p><p>selvagem como os testemunhos específicos de selvagens inteligentes</p><p>sobre o significado e o objetivo do que se chama de conselho de guerra.</p><p>O ponto significativo é que, no início, nem o chefe nem o conselho</p><p>tinham poder algum. Exerciam apenas influência reconhecida. O chefe</p><p>não tinha continuidade de mandato nem autoridade positiva. O conselho</p><p>e o chefe debatiam quando a havia probabilidade de guerra; mas a razão</p><p>manifesta de suas exortações era sugerir prudência, ou seja, falar pela</p><p>paz. Isso foi registrado por um chefe famoso, o velho Seattle5, que foi</p><p>fundamental para unir diversas tribos da costa do Pacífico. Quando os</p><p>homens brancos chegaram, ele percebeu que seu povo estava liquidado.</p><p>Num discurso de despedida, ao concordar com um tratado, explicou,</p><p>recapitulando a função do chefe simplesmente como uma questão de</p><p>fato:</p><p>“A juventude é impulsiva. Quando nossos jovens se enfurecem com alguma</p><p>injustiça real ou imaginária, e desfiguram seus rostos com pintura negra, isso</p><p>indica que seu coração está negro, e então eles costumam ser cruéis e</p><p>implacáveis, e nossos velhos e mulheres são incapazes de contê-los. Assim</p><p>sempre foi. A vingança, para os jovens, é considerada um benefício, mesmo à</p><p>4 STEFANSSON, Vilhjalmur. My life with the Eskimo. The Macmillan Company, New</p><p>York, 1912. (N. do T.)</p><p>5 Seattle foi um chefe dos índios Duwamish, também conhecido como Sealth, Seathle,</p><p>Seathl e See-ahth. Buscou formas de acomodação entre os índios e os colonos</p><p>brancos. A cidade de Seattle, no estado de Washington, tem esse nome em</p><p>homenagem a ele. (N. do T.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 72 -</p><p>custa de sua própria vida, mas os velhos, que ficam em casa em tempos de</p><p>guerra, e as mães, que podem perder seus filhos, não se enganam dessa</p><p>maneira.”6,7</p><p>O chefe Seattle descreveu um fenômeno físico incontestável, um desvio</p><p>do excedente de energia. Obviamente, a guerra primitiva pode ser</p><p>iniciada e realizada por impulso da parte dos combatentes. Nessas</p><p>condições, não poderia ser conduzida por nenhum outro meio. Se os</p><p>jovens estivessem com disposição militante, nada poderia contê-los,</p><p>exceto a persuasão. Eles são a força. Assim, o conselho podia ou impedir</p><p>a guerra por influência moral, ou aprová-la, ou admitir sua incapacidade</p><p>de proibi-la, preparando-se para fazer a paz depois. Em nenhuma</p><p>hipótese o conselho, os velhos, poderia aplicar a força, nem para impedir</p><p>nem para provocar a guerra. O conselho simplesmente não tinha a força.</p><p>Da mesma maneira, nessas hostilidades primitivas, nenhum comando</p><p>oficial é possível; cada homem deve lutar por si mesmo. O chefe poderia</p><p>oferecer conselhos sobre estratégia pura e dar exemplo de bravura e</p><p>habilidade. Isso era tudo. Conseqüentemente, era escolhido tanto pela</p><p>sabedoria como pela coragem. Portanto, sua posição não dependia da</p><p>força contra seu próprio povo. Isso seria impossível. Bravura pessoal não</p><p>é mais que a força de um único homem, enquanto a tribo é composta por</p><p>muitos. Onde a liberdade de movimento é necessária para a</p><p>sobrevivência, um homem forte não tem como dominar um único</p><p>inferior por intimidação; ele obviamente não consegue subjugar muitos.</p><p>O chefe e o conselho não davam ordens positivas porque não tinham</p><p>meios de obrigar a obediência. Crimes contra pessoas estavam sujeitos à</p><p>retaliação pessoal; infrações graves aos costumes podiam ser punidas por</p><p>um comitê de todos, que fariam o infrator passar por um corredor</p><p>polonês, ou o expulsariam da tribo.</p><p>Poder-se-ia sugerir que pelo menos uma minoria composta pelos mais</p><p>fortes poderia comandar pela força os membros mais fracos da tribo;</p><p>mas até para tentar isso, seria necessária uma base de concordância</p><p>adotada pela junta. A expectativa de pilhagem ou tributo requer um</p><p>6 BINNS, Archie. Gateway of the North. (N. da A.)</p><p>7 O discurso que Isabel Paterson cita teria ocorrido em 11 de março de 1854, numa</p><p>reunião convocada pelo governador Isaac Ingalls Stevens, para discutir a venda de</p><p>terra dos nativos para colonos brancos. Seattle falou na língua lushootseed. Alguém</p><p>traduziu o que ele disse para a língua chinook e uma terceira pessoa traduziu dessa</p><p>língua para</p><p>o inglês. Trinta e três anos depois, Henry A. Smith publicou esse texto,</p><p>observando-se que se tratava de um fragmento do discurso. Pode ser encontrado em</p><p>http://www.chiefseattle.com/history/chiefseattle/speech/speech.htm. Não é possível</p><p>se saber realmente o que dizia o discurso original. (N. do T.)</p><p>http://www.chiefseattle.com/history/chiefseattle/speech/speech.htm</p><p>VIII. A Falácia do Anarquismo</p><p>- 73 -</p><p>acordo sobre a divisão do espólio. “Honra entre ladrões” revela que uma</p><p>base moral continua sendo indispensável.</p><p>Para análise, é necessário separar os sucessivos estágios culturais que</p><p>utilizam diferentes modos de conversão de energia. É conveniente</p><p>chamar o passo imediatamente acima da selvageria de barbarismo. A</p><p>cultura bárbara, embora ainda nômade, possui rebanhos. É nesse estágio</p><p>que surge a necessidade de algum tipo de governo, com a extensão das</p><p>relações humanas no tempo e no espaço. Quando o problema é colocado</p><p>nestes termos, podemos pensar que os hábitos errantes dos selvagens</p><p>levam a uma relação espacial. Ao contrário, esses hábitos evidenciam a</p><p>falta dessa relação, porque nada é deixado para trás. As relações morais</p><p>entre indivíduos adultos e as relações de grupo dadas pela economia são</p><p>resolvidas imediatamente. Dois homens que desejam brigar podem lutar</p><p>ali mesmo; o espaço entra na questão apenas como uma possibilidade de</p><p>fuga. Maridos e mulheres que não conseguem concordar podem se</p><p>separar e tomar novos parceiros. Não há como conservar os alimentos,</p><p>então estes devem ser consumidos de uma vez e, portanto, serão</p><p>divididos. Não se conhece o tipo de acordo que precisaria ser executado</p><p>à distância. A relação moral dos selvagens se estende de fato no tempo,</p><p>como a que afeta pais e filhos; mas o instinto governa essa relação,</p><p>exceto em casos extremos. Quando o ônus dos idosos se torna</p><p>impossível de administrar em bases naturais, os velhos são abandonados</p><p>para morrer. Portanto, a idéia de posse, na vida selvagem, é vaga e</p><p>pragmática. Artigos pessoais estão de posse de quem os usa. O uso do</p><p>território é elástico. Em outros casos, “quem chega primeiro é atendido</p><p>primeiro” e “achado não é roubado” funcionam como regras. Na caçada,</p><p>quem vê a caça tem o direito de matá-la. Quem está ausente não pode</p><p>reclamar.</p><p>Mas a pecuária, mesmo que não seja mais que tanger os animais em</p><p>pastos selvagens, envolve uma relação de espaço-tempo entre seres</p><p>humanos. Toda propriedade é um direito que se estende no tempo. É</p><p>necessário vigiar os animais; eles não podem ser mortos nem o produto</p><p>consumido, exceto por seu dono. O fator espaço-tempo é, da mesma</p><p>maneira, introduzido pela agricultura primitiva, entre o plantio e a</p><p>colheita, impondo um direito sobre lotes de terra e sementes a serem</p><p>conservadas. Portanto, os bárbaros concedem poder positivo a seu chefe;</p><p>sua palavra tinha de ser imposta, não imediatamente, mas à distância,</p><p>enquanto estivesse de acordo com os costumes e os direitos de</p><p>propriedade.</p><p>Para evitar uma quebra de autoridade, ou seja, na relação temporal,</p><p>surgiu o princípio hereditário. Suas variações curiosas, como sucessão</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 74 -</p><p>matrilinear e, em alguns lugares, legado ao filho mais novo em vez do</p><p>mais velho (“borough English”), são o que pode ser chamado de</p><p>dispositivos de engenharia para engrenar o sistema no menor espaço e</p><p>distância pela conexão física obviamente existente. O parentesco de uma</p><p>criança com sua mãe é incontestável; e o filho mais novo ainda estaria</p><p>em casa quando os mais velhos saíssem e se tornassem independentes.</p><p>Em qualquer dos casos, a força obedece à sanção moral.</p><p>Entretanto, o sistema hereditário não pode ser invariável; a natureza</p><p>outra vez proíbe essa determinação.8 A sucessão pode falhar ou, se recair</p><p>em um infante, torna-se temporariamente ineficaz e sujeita a ser</p><p>questionada. Para essas emergências, algum recurso que lembre a</p><p>escolha eletiva deve ser postulado. Mesmo com a dinastia “divina” do</p><p>Japão medieval, embora o trono fosse reservado para uma linha de</p><p>descendência, o princípio foi obscurecido porque a monogamia era</p><p>costume; e por costume o imperador abdicava depois de um reinado</p><p>curto e nominal, quando um novo monarca era escolhido pelos grandes</p><p>nobres dentre alguns candidatos de sangue real. No Império Otomano, a</p><p>morte do Sultão significava uma súbita tomada de poder por qualquer de</p><p>seus descendentes ou parentes que tivesse apoio suficiente; então, o novo</p><p>Sultão prontamente exterminava todos os outros pretendentes,</p><p>assassinando seus irmãos, sobrinhos e tios imediatamente. Não há nada</p><p>de novo nos “expurgos de sangue” dos rivais pelos ditadores modernos.</p><p>Sempre que não se tem meios legítimos de sucessão política, esses</p><p>expurgos acabam ocorrendo. E a forma do voto não é suficiente; se a</p><p>energia da nação foi corrompida de maneira que as eleições são</p><p>controladas de cima, compradas com o dinheiro dos impostos, esse</p><p>recurso à violência logo será adotado.</p><p>Uma vez que o princípio eletivo existe na natureza das coisas, sendo a</p><p>base da monarquia, sempre que a monarquia se torna opressiva demais, o</p><p>princípio eletivo é evocado. O que quer que seja que faz os reis pode</p><p>desfazê-los. Na Europa, embora a monarquia feudal fosse o costume</p><p>prevalecente por mil anos e tivesse o suporte triplo do costume</p><p>consolidado, do comando militar e do padrão da sociedade baseada na</p><p>família, ainda assim a pretensão dos reis de governar por direito divino e</p><p>exercer o poder absoluto nunca foi admitida em teoria por nenhuma</p><p>nação, nem tolerada de fato por muito tempo sem franca rebelião. A</p><p>resistência era constante e, como último recurso, a resposta era o</p><p>assassinato. E este é uma refutação genuína à transgressão real em seus</p><p>8 Quando se argumentou que o bem do reinado exigia que Henrique VIII se desfizesse</p><p>de sua rainha e se casasse novamente para gerar um filho que herdasse o trono, um</p><p>opositor perguntou: “Quem prometeu a ele um filho?” (N. da A.)</p><p>VIII. A Falácia do Anarquismo</p><p>- 75 -</p><p>próprios termos, não menos lógico que o regicídio por deliberação legal</p><p>que indicia o rei por traição. Em teoria, o nobre (como chefe de família)</p><p>era nobre por status, tendo nascido nessa condição; o rei era rei apenas</p><p>por contrato, “o primeiro entre seus pares”. O juramento de fidelidade,</p><p>renovado para cada rei, é um contrato. O gravame da acusação de traição</p><p>contra um rei é que ele ultrapassou sua atribuição ou justa autoridade por</p><p>força usurpada. E, em termos de físicos, um homem é aproximadamente</p><p>tão forte quanto qualquer outro. Assim, a verdade inicial é novamente</p><p>exposta sempre que um cidadão ou súdito é suficientemente resoluto; a</p><p>força não pode impor a obediência na ordem social. O que ela pode</p><p>provocar é a morte, seja do súdito, seja do rei.</p><p>Quando o assassino é mentalmente sadio e age por causa de um</p><p>descontentamento estritamente político, o assassinato é um sintoma de</p><p>um grave defeito no mecanismo, uma conexão relativamente fraca, ou</p><p>um ponto de pressão desproporcional, onde ocorre uma ruptura. Em</p><p>termos de mecanismo, ele para a máquina até que a peça quebrada seja</p><p>substituída; mas não institui e não pode instituir um tipo melhor de</p><p>mecanismo. Num dado momento, o governo deixa de existir e tem de ser</p><p>retomado por um ato moral, a aceitação do novo governante. Tais</p><p>quebras repetidas naturalmente enfraquecem a sanção moral. Mas,</p><p>também nisso, evidenciam a relação do governo com a força. Um súdito</p><p>morto deixa de ser súdito; e um rei morto deixa de ser rei. Quando a</p><p>força é o árbitro, o governo cessa.</p><p>É assim por causa da natureza intrínseca do mecanismo político, que é e</p><p>deve ser o mesmo, seja qual for a forma. O governo é um instrumento</p><p>de negação, e nada mais. Quando o governo começa a depender da força</p><p>ou da intimidação, se os vários fatores envolvidos puderem</p><p>ser</p><p>conhecidos com exatidão e expressos numa equação matemática</p><p>relacionada com o aumento da força, a soma informaria o tempo restante</p><p>antes que o governo ou a nação ou ambos ruíssem. O evento dependerá</p><p>do volume de energia em uso para produção e do tipo de governo</p><p>imposto, no que se refere à estrutura, mecanismo e peso morto. Se a</p><p>energia é suficiente para esmagar a estrutura e o mecanismo, isso</p><p>acontecerá (por meio de guerra, guerra civil, revolução). A menos que a</p><p>liberdade seja recuperada, o modo de conversão de energia decairá para</p><p>um nível mais baixo e a população, pela guerra e pela fome, será</p><p>reduzida a uma quantidade menor, que pode subsistir naquele nível. Esse</p><p>processo está ocorrendo agora na Europa. A causa primária foi a</p><p>introdução de um alto potencial de energia — o desenvolvimento</p><p>industrial — na Alemanha, quando a forma política não podia acomodá-</p><p>lo. Enquanto a indústria ganhava velocidade, durante o século dezenove,</p><p>as mudanças políticas foram na direção contrária, mais e mais poder se</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 76 -</p><p>acumulando no governo sob medidas “socializantes”. A explosão</p><p>presente é o resultado.</p><p>Uma tentativa de retornar a um tipo de associação adequado a um</p><p>potencial mais baixo de energia vai resultar nisso. O método de</p><p>aconselhamento informal é adequado a uma sociedade nômade</p><p>selvagem. Em tais condições, a falta de estabilidade do chefe é salutar.</p><p>Uma escolha infeliz tem conserto rapidamente. A liderança é obrigada a</p><p>se justificar diariamente. Numa sociedade assentada e produtiva, a</p><p>liderança é completamente impraticável, porque a continuidade é</p><p>necessária, com o fator espaço-tempo na economia. Os dois não podem</p><p>existir juntos, porque foi perdida a característica essencial da liderança, a</p><p>deposição sem derramamento de sangue do líder pelo abandono de seus</p><p>seguidores. Com instituições permanentes, a forma de governo deve</p><p>incluir mandatos estáveis; isso não significa pessoas irremovíveis, mas o</p><p>contrário; significa a mudança legítima das pessoas em cargos com</p><p>poderes definidos. Quando se experimenta a “liderança”, em vez disso, o</p><p>que pode ocorrer é uma manifestação degenerada e temporária, o</p><p>governo da popularidade, pelo qual as instituições permanentes são</p><p>subvertidas para tornar o líder irremovível. As características de ambos</p><p>são assim negadas, cancelando-se o elemento moral, como se evidencia</p><p>pelo fato de o líder negar suas próprias credenciais por meio do recurso</p><p>imediato à força e à intimidação.</p><p>Em termos de mecanismo, o controle é desconectado com o motor ainda</p><p>funcionando. A conseqüência é a colisão externa e o rompimento</p><p>interno, mais ou menos simultaneamente. Um regime de popularidade é</p><p>eficaz para começar uma guerra; e tem de fazer isso. Se a energia e o</p><p>mecanismo engatado são os de uma sociedade produtiva com uma</p><p>capacidade excedente considerável, o regime provavelmente parecerá</p><p>inicialmente estar tendo um enorme sucesso na agressão, a marcha de</p><p>um Alexandre ou de um Napoleão, para terminar se desintegrando em</p><p>guerra civil e possivelmente com a sujeição a uma potência estrangeira.</p><p>As duas coisas são diferentes aspectos do mesmo fenômeno físico, da</p><p>massa deslocada se espatifando pela quantidade de movimento,</p><p>esmagando qualquer coisa que esteja em seu caminho enquanto se</p><p>despedaça por causa de seu próprio peso e impacto. O império</p><p>napoleônico foi essa trilha de destruição.9 Um século antes, Luís XIV</p><p>preparou o rastilho de pólvora para ela. Seu ministro Colbert estimulou a</p><p>indústria sob monopólio, o que permitiu que Luís reduzisse a ordem</p><p>9 Como parte dessa destruição foi de instituições obstrutivas e obsoletas, não se</p><p>percebia que ela era aleatória, embora certamente fosse. Milhões de pessoas também</p><p>foram destruídas, em pilhas dilaceradas. (N. da A.)</p><p>VIII. A Falácia do Anarquismo</p><p>- 77 -</p><p>aristocrática à impotência e transferisse o mecanismo de governo a uma</p><p>burocracia. Assim, a antiga estrutura da França foi tornada obsoleta, mas</p><p>continuou como um peso morto e manteve a nação mais ou menos</p><p>estacionária, frustrando os esforços de Luís de colocar a massa em</p><p>movimento por meio de suas guerras. Em seguida, quando o peso morto</p><p>(que infelizmente não tinha outro objetivo) foi jogado fora — ou seja, a</p><p>aristocracia foi formalmente despojada de seus privilégios — a energia</p><p>acumulada foi liberada e intensificada pela proclamação de liberdade e</p><p>igualdade. Mas essa energia torrencial foi jogada numa sociedade que</p><p>não entendeu a relação entre o mecanismo e a base. O próprio Napoleão</p><p>era pouco mais que um testa-de-ferro lançado na frente da massa em</p><p>movimento. A energia dilacerou a nação, arremessou fragmentos dela</p><p>em cada canto da Europa na forma de exércitos e só se apaziguou por</p><p>desintegração e inércia. Napoleão foi o primeiro dos “líderes” modernos.</p><p>O que um potencial realmente elevado pode fazer nessa linha é</p><p>dolorosamente evidente.</p><p>Quando a palavra líder10, ou liderança, retorna ao uso corrente, ela</p><p>implica em uma recaída no barbarismo. Para um povo civilizado, é a</p><p>palavra mais agourenta em qualquer idioma.</p><p>10 Em alemão, Führer. Em italiano, duce. (N. do T.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 78 -</p><p>- 79 -</p><p>IX. A Função do Governo</p><p>ma vez que governo e poder sempre foram mais ou menos</p><p>sinônimos, e “política da máquina” é uma expressão popular, é</p><p>curioso que a agência política nunca tenha sido rigorosamente</p><p>examinada a essa luz, como um problema específico de engenharia.</p><p>Quando a energia é usada num mecanismo, o resultado deve estar de</p><p>acordo com o tipo de máquina. A fonte da energia pode ser conhecida; a</p><p>natureza do mecanismo é facilmente descoberta em sua ação; e é</p><p>absurdo esperar qualquer outra ação além daquela da qual as peças</p><p>combinadas são capazes. Mesmo que um dispositivo pare</p><p>completamente de funcionar ou cause apenas destruição, as leis da</p><p>energia e do mecanismo não se alteram nem variam; o defeito está no</p><p>aparelho. Mas isso ainda não foi plenamente entendido com relação aos</p><p>assuntos humanos, por diversas razões implícitas no desenvolvimento da</p><p>inteligência humana.</p><p>Primeiro, a energia é um fenômeno natural. No estágio de associação</p><p>humana no qual a opera apenas por meio das unidades e modos de</p><p>conversão encontrados na natureza, a energia não necessita de uma</p><p>definição abstrata.</p><p>Segundo, em engenharia mecânica, que trabalha com objetos</p><p>inanimados, a primeira consideração é tão óbvia que não precisa ser</p><p>postulada ou receber um valor separado no cálculo consciente. É o fator</p><p>da base subjacente. A base de todos os mecanismos é a terra física. O</p><p>engenheiro só precisa escolher um local, nivelá-lo ou solidificá-lo para</p><p>permitir que o mecanismo repouse sobre ele e, evidentemente, precisa</p><p>equilibrar, pesar ou fixar sua máquina para que ela não tombe. Mas ele</p><p>sabe que o chão está lá; todos os seus cálculos levam esse fator em</p><p>consideração como um componente distribuído; massa, peso, extensão,</p><p>tensões, volume são medidas estabelecidas a partir da base.</p><p>Terceiro, na engenharia mecânica, que é confinada a condições</p><p>materiais, a fonte da energia é determinada; uma unidade pode ser</p><p>estabelecida e a transmissão e a carga ajustadas ao fluxo. Cada fator</p><p>pode ser medido.</p><p>Por último, o ponto mais importante, porque ele obscurece a natureza do</p><p>governo: a física não tem um nome para a função exata que é</p><p>delegada ao governo. É algo que não existe em nenhuma manifestação</p><p>de energia por meio de materiais inanimados. É peculiar às criaturas</p><p>U</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 80 -</p><p>vivas. A energia é pré-existente no universo e não pode ser criada a</p><p>partir do nada; mas, num circuito de energia específico, é possível</p><p>determinar um ponto aproximado através do qual</p><p>uma porção da energia</p><p>universal é introduzida no circuito; esse é o dínamo, gerador, conversor</p><p>ou motor. Na organização social, o homem é o dínamo, em sua</p><p>capacidade produtiva. O governo é um aparelho-fim e um beco sem</p><p>saída no que se refere à energia que usa. Em princípio, um mecanismo</p><p>composto de material inanimado, que utiliza energia, é completamente</p><p>calculável. Um motor de certa potência vai propelir determinada carga a</p><p>um determinado gradiente; se a energia for cortada, a massa e a</p><p>quantidade de movimento vão determinar seu ponto de parada, ou um</p><p>obstáculo de determinada resistência vai pará-lo. Nenhuma previsão</p><p>semelhante pode ser feita sobre as ações de um ser humano funcionando</p><p>assim. É verdade que sua força muscular pode ser medida; mas enquanto</p><p>ele se move com suas próprias forças, não é possível medir nem prever o</p><p>que o fará iniciar um movimento, parar, virar ou acelerar. Tudo isso</p><p>depende do que ele pensa; um fator não mensurável.</p><p>O ser humano tem uma faculdade para a qual não existe equivalente nos</p><p>processos da natureza inanimada. Ele inicia a si mesmo e pode inibir a</p><p>si mesmo.</p><p>A energia é o meio no qual a vida existe. Um bebê é capaz de mover</p><p>seus membros e absorver alimentação (combustível) desde quando</p><p>nasce; cresce em atividade espontânea instintiva e ganha o controle</p><p>necessário simultaneamente. Assim, “na natureza”, a energia, o</p><p>mecanismo e o controle parecem ser uma coisa só e o indivíduo pode</p><p>funcionar sem defini-los separadamente ou de maneira abstrata. As</p><p>relações sociais e econômicas dos selvagens também não precisam de</p><p>tais distinções. Contatos externos fazem funcionar esses diversos fatores</p><p>como se eles fossem um único. A necessidade é imediata; praticamente</p><p>não existem conseqüências posteriores, até onde o selvagem pode</p><p>perceber. Já que não pode guardar provisões para o futuro, é prudente se</p><p>fartar quando existe abundância de comida e, assim, armazenar alguma</p><p>energia em seu corpo. Se encontrar um urso pardo ou brigar com um de</p><p>seus companheiros, deve tomar a decisão imediata entre lutar ou fugir.</p><p>Executa sua própria justiça, se houver uma, individualmente ou por um</p><p>comitê do grupo. Se tiver algum tipo de abrigo, tem de carregá-lo</p><p>consigo. Nessas questões, está lidando com causa e efeito, que são</p><p>fatores da engenharia; mas não incluem transações no espaço e no</p><p>tempo. Por outro lado, em suas relações pessoais, mesmo um selvagem</p><p>reconhecerá que intenções, até certo ponto, qualificam a resposta ou a</p><p>retaliação apropriada. Uma intenção é um imponderável; pertence a uma</p><p>ordem não matemática de abstrações. Assim, embora seja uma</p><p>IX. A Função do Governo</p><p>- 81 -</p><p>consideração adequada nas relações humanas, ela certamente retarda a</p><p>formulação dos princípios da física ou da engenharia. A falta dessa</p><p>distinção é a principal diferença entre o pensamento primitivo e o</p><p>científico; e é uma explicação suficiente para a origem da crença em</p><p>magia. Uma vez que é possível a uma pessoa dissuadir outra ou</p><p>convencê-la a agir usando apenas palavras, não é totalmente irracional,</p><p>embora seja um erro, imaginar que as feras, os objetos, as doenças ou o</p><p>tempo possam ser influenciados por uma abordagem semelhante. Essa</p><p>suposição infeliz está quase inextricavelmente embutida nos hábitos</p><p>mentais da humanidade. A ciência começa por bani-la do campo em que</p><p>ela é irrelevante. A ciência percebe que os objetos inanimados não</p><p>ouvem o que é dito a eles, nem se importam com intenções. Ainda</p><p>assim, o nome da ciência tem sido usado para levar esse erro um passo</p><p>além, numa seqüência em que sua falsidade é ainda mais sutil e mais</p><p>difícil de erradicar, com a proposição de que o homem não é mais que</p><p>um mecanismo físico; e, já que pode ser induzido a liberar sua energia</p><p>por palavras ou compulsão, deve responder infalivelmente segundo uma</p><p>fórmula se for previamente “condicionado”, como a máquina responde</p><p>aos controles. O que se negligencia é o fato de que, mesmo se</p><p>considerado um mecanismo, o homem é uma máquina genuinamente</p><p>automática, iniciando-se por conta própria e agindo por conta própria.</p><p>Nenhum mecanismo inanimado pode ser automático dessa maneira.</p><p>O homem é assim por virtude da iniciativa e da faculdade inibitória. A</p><p>iniciativa é a própria vida. A inibição completa é a morte. Porém, uma</p><p>criatura viva incapaz de inibir a si mesma rapidamente se destruiria.</p><p>Como visto, as inibições requeridas pela vida selvagem funcionam</p><p>diretamente, assim como o resultado da iniciativa retorna diretamente ao</p><p>indivíduo. O caçador faz uma arma para usar, mantém essa arma em sua</p><p>posse, come a caça que mata; sua mulher transforma a pele em roupas.</p><p>Na civilização, os processos para conseguir comida e abrigo são</p><p>prolongados. Leva pelo menos um ano de antevisão para cultivar o solo</p><p>e colher a produção; os grãos precisam ir ao moinho, as peles ao</p><p>curtidor, os têxteis ao tecelão, antes que possam ser usados. Quando um</p><p>homem civilizado constrói uma casa, o projeto precisa ser criado e os</p><p>materiais reunidos por um período considerável. Essas coisas são pagas</p><p>com economias que envolvem a troca de trabalho com muitas outras</p><p>pessoas. Ele deve, portanto, impor restrições a si mesmo por causa de</p><p>objetivos distantes no tempo e que precisam ser dirigidos através do</p><p>espaço. Ele vive no passado e no futuro tanto quanto no presente. Sua</p><p>iniciativa será perdida, a menos que iniba a si mesmo; e, além disso, ele</p><p>precisa poder contar com outras pessoas que participam da troca, e que</p><p>também devem observar inibições de longo prazo. Num estágio ainda</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 82 -</p><p>inicial do comércio, torna-se inconveniente depender do escambo de</p><p>bens entre proprietários. Com objetos de valor desigual, ou numa série</p><p>de trocas, ou no caso de entregas em momentos diferentes, faz-se</p><p>necessário um meio de valor: o dinheiro. E, ao longo da série, uma</p><p>sucessão de inibições deve ser seguida; de outra maneira, em algum</p><p>ponto os bens seriam consumidos e não haveria retorno. O circuito de</p><p>energia seria rompido.</p><p>É por isso que os selvagens não precisam de um governo formal,</p><p>enquanto ele é necessário à civilização. Para uma economia civilizada,</p><p>que consiste em produção e trocas numa seqüência que se estende no</p><p>tempo e no espaço, deve haver uma agência para servir de testemunha</p><p>dos contratos de longo prazo. Essa agência deve garantir que os</p><p>contratos sejam cumpridos na ausência de uma das partes ou impor uma</p><p>penalidade previamente acordada em caso de descumprimento. A</p><p>autoridade apropriada para esse propósito é, portanto, delegada ao</p><p>governo.</p><p>Como a palavra indica, a faculdade inibitória é uma função do indivíduo;</p><p>falando estritamente, não pode ser delegada. Nenhuma faculdade pode</p><p>ser delegada. Um homem pode conceder o produto de seu trabalho e</p><p>talento a outro voluntariamente; um homem pode tomar o produto de</p><p>outro por força ou fraude; ou os homens podem comercializar seu</p><p>trabalho e seus produtos. Mas um homem não pode transferir sua força</p><p>ou inteligência para a estrutura física de outro homem. O que pode ser</p><p>feito, no caso em que um indivíduo não iniba a si mesmo conforme</p><p>havia concordado em fazer, ou se ele infringe a liberdade ou toma a</p><p>propriedade de outro, é obrigá-lo a uma pagar uma multa ou impor</p><p>restrições externas; e agentes públicos podem ser encarregados por</p><p>autoridade delegada de executar a cobrança. Pelos mesmos meios, esses</p><p>agentes podem tomar parte de sua produção, em impostos, para sustentá-</p><p>los e pagar as despesas de sua organização. É isso o que faz o governo e</p><p>é tudo o que ele pode fazer. O governo é uma agência proibidora e</p><p>expropriadora. Seu tipo de mecanismo necessariamente corresponde a</p><p>sua função.</p><p>Se o processo completo não for levado em consideração, é possível</p><p>imaginar erroneamente exceções à afirmação acima. A citação a seguir é</p><p>uma exposição clara e concisa do ponto</p><p>em que ocorre o mal-entendido.</p><p>“O regulador de uma máquina a vapor não é meramente um mecanismo</p><p>proibitório, mas comanda mais vapor quando necessário; e os vários</p><p>controles elétricos funcionam da mesma maneira; por que o governo</p><p>IX. A Função do Governo</p><p>- 83 -</p><p>político não pode funcionar assim? A expedição de Lewis e Clark1 e</p><p>outras expedições exploratórias patrocinadas por governos no oeste não</p><p>foram ações proibitórias. O papel que o governo desempenhou no</p><p>desenvolvimento das terras públicas do oeste não foi meramente</p><p>proibitório.”</p><p>Quando o regulador de uma máquina a vapor comanda mais vapor,</p><p>obviamente o vapor (energia) precisa estar lá para ser comandado; e foi</p><p>previamente confinado. A função do regulador não é obter o vapor, ou</p><p>seja, produzir a energia. Como mecanismo, ele é um instrumento de</p><p>liberação, o que implica em uma restrição prévia. Um mecanismo</p><p>proibitório pode ser feito de tal maneira que posteriormente ele deixe de</p><p>proibir; um freio pode ser desacionado depois que foi acionado, ou ter</p><p>efeito apenas quando alguma força se levante contra ele, de maneira que</p><p>a pressão ceda quando a força diminuir. A lei do contrato é um freio</p><p>desse tipo, que se ajusta automaticamente. Mas a função do freio é, de</p><p>toda maneira, proibitória. Num mecanismo simples desse tipo, não pode</p><p>ser atribuída uma “função” à cessação da função. O regulador da</p><p>máquina a vapor, ou o controle elétrico, são diferentes; a confusão</p><p>procede do nome “regulador”2. Se esse termo for usado, a definição</p><p>exata de sua função é que ele governa o governo; ele coloca uma</p><p>limitação no governo. Numa organização política, essa função é</p><p>realizada por uma constituição, que estabelece um limite além do qual o</p><p>governo não tem poder legítimo.</p><p>Para averiguar qual a ação do governo numa seqüência de ações como a</p><p>da expedição de Lewis e Clark, consideremos todos os fatores e</p><p>condições. A terra virgem estava lá, na ordem da natureza. Muitos</p><p>indivíduos privados haviam explorado boa parte dela. O conhecimento e</p><p>a habilidade dos dois exploradores citados foram desenvolvidos por eles</p><p>mesmos. Por que eles foram até o governo antes de fazer sua expedição?</p><p>1 A expedição de Lewis e Clark foi a primeira expedição americana a cruzar o que é</p><p>hoje a porção oeste dos Estados Unidos. Foi comissionada pelo presidente Thomas</p><p>Jefferson logo após a Compra da Louisiana, ocorrida em 1803. Composta por um</p><p>grupo de voluntários do Exército americano, foi comandada pelo capitão Meriwether</p><p>Lewis e pelo segundo-tenente William Clark. A missão partiu de St. Louis, às margens</p><p>do rio Mississipi, em maio de 1804 e retornou em setembro de 1806. O objetivo</p><p>principal era explorar e mapear o território recém-adquirido, encontrar uma rota</p><p>viável que cruzasse a metade oeste do continente e estabelecer a presença americana</p><p>nessa área, antes que a Grã-Bretanha e outras potências européias reivindicassem</p><p>essas terras. Os objetivos secundários eram científicos e econômicos: estudar as</p><p>plantas, animais e a geografia da região e estabelecer comércio com as tribos</p><p>indígenas. (N. do T.)</p><p>2 Em inglês, governor, governador. Dispositivo que regula a velocidade de uma</p><p>máquina. (N. do T.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 84 -</p><p>Para obter fundos e um comissionamento oficial. O que o governo fez e</p><p>que Lewis e Clark não podiam fazer? Expropriar fundos de outras</p><p>pessoas privadas, pelos impostos. Os suprimentos para a expedição</p><p>vieram da produção privada. A ação do governo foi meramente</p><p>expropriadora. O comissionamento oficial foi o aviso preliminar de que</p><p>haveria uma reivindicação proibitória do território que a expedição</p><p>atravessasse. Outros indivíduos privados foram até lá depois, às suas</p><p>próprias custas, e fizeram o trabalho de tornar aquela terra cultivável. O</p><p>governo exerceu sua função proibitória para registrar e impor os termos</p><p>pelos quais um indivíduo poderia obter títulos de propriedade de</p><p>qualquer parte da terra. Foi para esse propósito que a função proibitória</p><p>foi delegada ao governo em primeiro lugar, para estabelecer títulos de</p><p>registro; mas é um poder proibitório e nada mais. Sua “concessão” é uma</p><p>liberação carimbada. Em qualquer tempo e lugar em que o governo</p><p>intervém em uma seqüência de ações, ele o faz com um ato autorizado</p><p>de proibição ou expropriação. Qualquer outra coisa que ele “faça” é</p><p>simplesmente um ato de liberação, uma cessação de função. Essa é a sua</p><p>natureza, essa é sua função, esse é seu tipo de mecanismo. Isso não é</p><p>menos verdade se dizemos que “o governo constrói uma represa”, ou</p><p>qualquer outra obra. O governo expropria recursos e contrata pessoas</p><p>para fazer o trabalho. A ação peculiar do governo é o ato de</p><p>expropriação.3 Pessoas privadas podem construir represas e de fato o</p><p>fazem. Mas não podem expropriar fundos. Governos despóticos, como o</p><p>do Egito de quando as pirâmides foram construídas, expropriam a</p><p>energia na fonte, pela compulsão de pessoas, ou seja, pelo trabalho</p><p>forçado.</p><p>Onde vários fatores operam numa seqüência de ações, a função de cada</p><p>um só pode ser definida por eliminação. Aquela que invariavelmente</p><p>ocorre quando um dado fator está presente e não ocorre em sua falta</p><p>3 A agência dos correios é normalmente apontada como o melhor exemplo de</p><p>empreendimento governamental; mas o serviço postal depende inteiramente dos</p><p>meios de transporte inventados e operados pela iniciativa privada. É a forma mais</p><p>simples de negócio que se pode imaginar, pura rotina; mesmo assim, apesar do</p><p>monopólio estatal, sempre opera no vermelho; e as nomeações lucrativas ocorrem</p><p>por favorecimento partidário, o maior de todos os empregos sendo concedido a um</p><p>homem cujo tempo é ocupado principalmente com a obtenção de votos. Boas</p><p>estradas existem apenas por causa do progresso da iniciativa privada em materiais e</p><p>maquinário. O abastecimento de água das cidades foi fornecido originalmente pela</p><p>iniciativa privada e expropriado pelo governo. Por séculos, o governo promoveu a</p><p>doença, o desconforto e a melancolia com impostos sobre janelas, impostos sobre</p><p>lareiras, impostos sobre o sal. A iniciativa privada cavou o Canal de Suez e forneceu o</p><p>maquinário, o conhecimento e a habilidade para cavar o Canal do Panamá. Sempre e</p><p>em toda parte, o progresso aconteceu exclusivamente por invenção, iniciativa,</p><p>trabalho e poupança privados, e na razão inversa da extensão do governo. (N. da A.)</p><p>IX. A Função do Governo</p><p>- 85 -</p><p>deve ser sua função. Examinemos qualquer seqüência de ações em que o</p><p>governo esteja envolvido. A primeira coisa que o governo faz e deve</p><p>fazer é emitir um decreto ou aprovar uma lei. Nenhum decreto ou lei</p><p>pode conceder a um indivíduo uma faculdade que a natureza tenha</p><p>negado a ele. Uma ordem governamental não pode consertar uma perna</p><p>quebrada, mas pode comandar a mutilação de um corpo sadio. Não pode</p><p>conferir inteligência a alguém, mas pode proibir o uso da inteligência.</p><p>Qual a primeira provisão para pôr uma lei em vigor? Deve haver uma</p><p>“cláusula habilitante”, e uma cláusula habilitante é aquela que toma</p><p>posse de valores ou materiais de impostos pagos com recursos privados,</p><p>em dinheiro, em gênero ou em trabalho. Uma pessoa privada que toma</p><p>os bens de outra é um criminoso; essa ação é reservada ao governo. Da</p><p>mesma maneira, o governo, por seu poder judiciário, pode julgar pessoas</p><p>acusadas de crimes capitais e fazê-las morrer. Faz parte dos poderes</p><p>físicos dos indivíduos matarem uns aos outros; mas não se considera que</p><p>ninguém tenha esse direito, a menos que seja em legítima defesa (da qual</p><p>se considera que a vingança seja uma extensão). Uma vez que um</p><p>homem não pode ser juiz em causa própria, considera-se adequado</p><p>delegar a autoridade de vingança e, na medida do possível, de ajuda na</p><p>autodefesa. Esse é o poder de morte. O poder de vida não pode ser</p><p>delegado. O governo, portanto, é apenas um instrumento ou mecanismo</p><p>de apropriação, proibição, compulsão e extinção; na natureza das coisas,</p><p>não pode ser outra coisa, e não pode funcionar para outra finalidade.</p><p>Sua exata definição em ação mostra o quanto era acurada a frase “um</p><p>mal necessário”. Visto sob essa luz, o governo é tão horrível — e suas</p><p>reais operações no passado foram, às vezes, tão terríveis — que é</p><p>compreensível que não se perceba que ele é necessário. Mas isso</p><p>também tem de ser reconhecido, para descobrirmos sua extensão. O</p><p>governo certamente é necessário para relações econômicas no espaço e</p><p>no tempo; essa necessidade é derivada da necessidade da faculdade</p><p>inibitória no indivíduo. Mas o erro básico da premissa autoritária ou</p><p>estatista consiste em fazer essas necessidades públicas e privadas</p><p>coextensivas. O governo é um requisito marginal, necessário apenas</p><p>quando a faculdade inibitória do indivíduo não é exercida de acordo com</p><p>o consenso e o direito natural (ou seja, liberdade). Além desse mínimo</p><p>infinitesimal, o governo é uma entronização da paralisia e da morte.</p><p>Vem daí a perversão da lógica que afirma que o cidadão existe apenas</p><p>“para o estado” e não tem o direito individual à vida. Na verdade, a vida</p><p>só pode existir por seu próprio direito; ou seja, é ridiculamente fútil para</p><p>o estado (ou para quem quer que seja) ordenar a um homem que viva, se</p><p>suas faculdades estiverem em falência; nem pode uma vida ser criada</p><p>por uma ordem. O processo criativo não funciona por meio de ordens.</p><p>Mas é possível ordenar a morte. Assim, o governo é secundário,</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 86 -</p><p>instituído por acordo; a vida, que pertence ao indivíduo, é primária. O</p><p>governo é um agente, não uma entidade.</p><p>Isto tem de ser reafirmado, porque o significado da afirmação de que os</p><p>direitos à vida e à liberdade são inalienáveis foi esquecido ou</p><p>deliberadamente obscurecido. Pessoas que não tem o costume de</p><p>vincular significados exatos às palavras dirão que o fato de que um</p><p>homem pode ser injustamente executado ou aprisionado contradiz essa</p><p>proposição. Não contradiz. O direito está com a vítima da mesma forma</p><p>e, de maneira completamente literal, não pode ser alienado, porque</p><p>alienar significa passar para a posse de outro. Um homem não pode</p><p>desfrutar nem da vida nem da liberdade de outro. Se matar dez homens,</p><p>não vai viver dez vidas nem dez vezes mais tempo, em conseqüência</p><p>disso; nem será mais livre se colocar outro homem na prisão. Os direitos</p><p>são por definição inalienáveis; somente privilégios podem ser</p><p>transferidos. Mesmo o direito de possuir bens não pode ser alienado ou</p><p>transferido, embora um dado bem possa ser. Se os direitos de um homem</p><p>são desrespeitados, nenhum outro homem os obtém; ao contrário, todos</p><p>os homens são, por conseqüência, ameaçados com a mesma injustiça.</p><p>Não existe bem coletivo. De maneira estrita, não existe nem mesmo um</p><p>bem comum. Existem, na ordem natural, materiais e condições com os</p><p>quais o indivíduo é capaz de experimentar o bem, usando sua vontade e</p><p>suas faculdades receptivas e criativas. Perguntemos: a luz do sol não é</p><p>um bem comum? Não; as pessoas não desfrutam do benefício pela</p><p>comunidade, mas individualmente. Um homem cego não pode enxergar</p><p>pela comunidade. O mesmo grau de exposição solar pode causar</p><p>insolação a uma pessoa, enquanto é benéfico para outra; embora, para</p><p>sermos precisos, não será o mesmo raio de luz solar que cairá sobre</p><p>ambos. Alexandre, o Grande, com o poder do império a seu comando,</p><p>perguntou a Diógenes: “Há alguma coisa que eu possa fazer por você?”</p><p>Diógenes respondeu: “Você pode dar um passo para o lado e parar de me</p><p>fazer sombra.” O homem, como indivíduo, é capaz de experimentar e</p><p>infligir tanto o bem como o mal, desde que tenha escolha. E também terá</p><p>a responsabilidade por seus erros de julgamento. Permitindo a</p><p>possibilidade do erro, o bem é obtido pela recepção e domínio das forças</p><p>da natureza, e por meio da associação voluntária de indivíduos por livre</p><p>escolha. Mas mesmo nessas relações voluntárias entre indivíduos, é</p><p>possível que uma pessoa tenha prazer enquanto outra experimenta dor;</p><p>não há uma soma coletiva ou uma equação do bem. “O maior bem para o</p><p>maior número” é uma frase viciosa; não existe uma unidade do bem que,</p><p>por adição ou multiplicação, possa constituir uma soma de bem a ser</p><p>dividida pelo número de pessoas. Jeremy Bentham, tendo adotado a</p><p>frase, passou o resto de sua vida tentando extrair algum significado de</p><p>IX. A Função do Governo</p><p>- 87 -</p><p>suas próprias palavras. Ele vagueia por imbecilidades quase</p><p>inacreditáveis, sem nunca perceber por que elas não podem significar</p><p>nada. Se dez homens gostam de jogar damas e apenas um aprecia uma</p><p>sinfonia, qual é o maior bem na soma? E se fosse necessária uma escolha</p><p>do que seria feito e fosse possível provar que a sinfonia seria onze vezes</p><p>“melhor” que as damas, o que fazer? O resultado seria ou o maior bem</p><p>para o menor número ou o menor bem para o maior número. Em</p><p>qualquer caso, é impossível esconder o fato de que o bem é feito apenas</p><p>para indivíduos (o “número” trai essa verdade, porque é o número de</p><p>pessoas); mas se admitirmos que o bem de uma pessoa compensa o</p><p>sofrimento de outra, isso é monstruoso. Justificaria torturas abomináveis</p><p>de uma minoria se a maioria afirmasse se beneficiar delas; se o “bem” é</p><p>quantitativo e forma um total por maioria, não pode haver juiz do que é</p><p>bom, exceto a maioria. Essa regra é, de fato, a justificativa alegada pelos</p><p>nazistas para o extermínio dos judeus e pelos comunistas russos para o</p><p>assassinato brutal dos membros mais produtivos da população. Ambos</p><p>agiram segundo a mesma teoria.</p><p>O fato de que não existe bem coletivo não contraria o fato de que o</p><p>homem tem relações sociais e naturais, que também são de ordem</p><p>espiritual. E é a expressão dessa possibilidade espiritual que a sociedade</p><p>coletivista proíbe. A sociedade cristã difere fundamentalmente das</p><p>formas anteriores de associação humana, sendo organizada para o pleno</p><p>desenvolvimento da personalidade. A clivagem é mais evidente na</p><p>instituição do casamento. No regime cristão, um casamento válido pode</p><p>ser feito pelo consentimento das duas partes e não pode ser feito sem ele;</p><p>não pode ser anulado pelos pais, guardiães ou pela comunidade, contra a</p><p>vontade do casal, porque cada pessoa nasce com o direito à sua própria</p><p>vida. E a autoridade paterna, na sociedade cristã, não pode se estender ao</p><p>poder de morte ou dano real aos filhos; é apenas coextensiva à</p><p>necessidade de criação e educação, originando-se da relação natural e da</p><p>obrigação moral assumida voluntariamente no casamento. Os direitos e</p><p>obrigações naturais, os direitos e responsabilidades pessoais, a vontade e</p><p>o senso moral são inseparáveis.</p><p>Em sociedades coletivistas primitivas, os pais têm o poder de morte</p><p>sobre seus filhos. Em reversões modernas a essa regra antinatural, o</p><p>mesmo poder é concedido ao estado. No Japão, a sociedade coletiva</p><p>absoluta, a família tem o poder de forçar os jovens ao casamento; e, na</p><p>verdade, lá não existe outra maneira. Não existe reconhecimento legal de</p><p>um casamento se não for assim. Além disso, divórcios podem ser</p><p>determinados e impostos pela família. Isso pode ocorrer simplesmente</p><p>porque os dois jovens começaram a gostar um do outro. Sua afeição</p><p>pessoal era considerada prejudicial ao interesse coletivo do clã.</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 88 -</p><p>Significativamente, essa característica do coletivismo reapareceu</p><p>espontaneamente a partir do mesmo princípio, na Comunidade Oneida4,</p><p>nos Estados Unidos. Para impedir o “egoísmo”, a promiscuidade era</p><p>praticada e, se dois jovens desenvolvessem uma forte afeição mútua, o</p><p>que era chamado de “amor especial”, isso era denunciado como anti-</p><p>social; o jovem casal era separado e convencido a mudar de parceiros</p><p>freqüentemente. A idéia</p><p>é tão revoltante que parece difícil de acreditar,</p><p>mas é o que era feito. O coletivismo sempre critica as afeições e relações</p><p>naturais e sugere deslocar o objeto das obrigações pessoais para a</p><p>“sociedade”. Promete divórcio fácil, apoio do Estado para cuidar das</p><p>crianças e os prazeres da promiscuidade; termina em escravidão e</p><p>violação da personalidade.</p><p>Então, como o homem tem a capacidade de fazer ou infligir o mal</p><p>deliberadamente, um dispositivo é usado para fazer com que a ação se</p><p>retraia sobre si mesma, na medida do possível. Deve ser ou uma barreira</p><p>estática, ou um mecanismo reativo, ou ambos — proibição e penalidade.</p><p>Esse poder se origina da coletividade e é encarnado no governo, que</p><p>deve agir segundo a lei.</p><p>A confusão a respeito da ação coletiva surge do poder inicial do homem</p><p>de fazer o mal e a conseqüente natureza da lei. Ao propor uma lei</p><p>qualquer, o proponente não percebe o que está fazendo, a menos que se</p><p>pergunte: “É minha intenção impor restrições ou infligir perda ou dor a</p><p>alguma pessoa, na contingência especificada?” Porque é isso o que a lei</p><p>fará. A pergunta que segue é: “A contingência surge da ação inicial</p><p>daquela pessoa infligindo injúria ou perda sobre outra pessoa, por</p><p>intenção ou negligência?” É um erro fundamental supor que uma lei</p><p>possa fazer algum bem e não prejudique ninguém. Se faz algum bem ou</p><p>não, uma lei imposta deve prejudicar alguém. A questão correta é se essa</p><p>pessoa colocou ou não o mecanismo em movimento ao prejudicar</p><p>outra pessoa anteriormente.</p><p>“A lei, em sua majestade, proíbe tanto o rico como o pobre de dormir</p><p>embaixo da ponte”, escreveu Anatole France. Mas isso é tudo o que a lei</p><p>pode fazer, a menos que decrete que tanto o rico como o pobre não</p><p>4 A Comunidade Oneida foi uma comuna religiosa fundada por John Humphrey Noyes</p><p>em 1848, na cidade de Oneida, Nova York. Seus membros acreditavam que Jesus</p><p>voltou no ano 70, possibilitando que eles estabelecessem seu reino milenar e</p><p>estivessem livres do pecado e fossem perfeitos neste mundo, e não apenas no Céu. A</p><p>Comunidade Oneida praticava a propriedade comunal, a poligamia e tentou uma</p><p>espécie de programa de eugenia chamado de estirpecultura. Começando com 87</p><p>membros, chegou a ter 306 em 1878. Foi dissolvida em 1881 e se transformou na</p><p>gigantesca empresa de prataria Oneida Limited. (N. do T.)</p><p>IX. A Função do Governo</p><p>- 89 -</p><p>podem dormir em nenhum outro lugar, ou devem dormir na cadeia. A</p><p>pobreza pode ser causada pela lei; não pode ser proibida pela lei. O que</p><p>se chama de legislação moral deve inevitavelmente aumentar o mal</p><p>alegado. A única maneira de impedir a prostituição completamente seria</p><p>aprisionar metade da raça humana; fora isso, a lei pode tomar uma</p><p>parcela dos ganhos da prostituta, com uma multa, e assim induzi-la a</p><p>ganhar mais e a pagar por “proteção”. O tráfico de drogas se torna</p><p>rentável pela proibição e, portanto, cresce. Os atos proibidos são aqueles</p><p>pelos quais as pessoas prejudicam somente a si mesmas; portanto, a lei</p><p>pode apenas prejudicá-las mais.</p><p>Por outro lado, leis que são projetadas para atuar no caso em que uma</p><p>pessoa prejudica outra voluntariamente não necessariamente conseguem</p><p>dissuadir o perpetrador de prosseguir em seu curso. Se a lei proíbe o</p><p>assassinato, ela pode não ser capaz de impedir completamente os</p><p>assassinatos, mas é razoável supor que deve ser um meio de intimidação.</p><p>A lei também pode exigir a restituição da propriedade roubada —</p><p>embora também tenha de executar uma ação de expropriação, ao cobrar</p><p>um imposto sobre a propriedade, para permitir que os ladrões sejam</p><p>punidos. Sua limitação é que ela deve funcionar sobre uma ação</p><p>exercendo uma ação semelhante, mal por mal. Esse é o poder da</p><p>coletividade e seu uso.</p><p>Mas devemos ter sempre em mente que o elemento constituinte do</p><p>governo não é a força; é a faculdade moral que decide e cria o</p><p>mecanismo pelo qual a força deve recair sobre si mesma. E a faculdade</p><p>moral está no indivíduo.</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 90 -</p><p>- 91 -</p><p>X. A Economia da Sociedade Livre</p><p>história dentro das nações consiste na luta do indivíduo contra o</p><p>governo; e, entre as nações, da economia livre contra a</p><p>economia fechada. São dois aspectos do mesmo processo. A</p><p>vida primitiva da humanidade é uma fase ímpar da história natural,</p><p>ocupada pelo esforço do homem em dominar seu ambiente, em vez de</p><p>simplesmente adaptar-se a ele. O uso do fogo, das armas de caça e a</p><p>domesticação de animais pertencem a esse tipo de esforço. Quando o</p><p>homem obteve sucesso nesses contatos diretos, o próximo passo foi</p><p>começar a mudar o ambiente, pelo cultivo do solo, pela construção de</p><p>abrigos permanentes e locais de armazenamento e, finalmente, pela</p><p>invenção de mecanismos para a conversão de energia; essas atividades</p><p>exigem organização no espaço-tempo, pela delegação de autoridade.</p><p>Mas como essa autoridade só pode ser proibitiva, o problema é manter</p><p>essa agência repressiva subordinada à faculdade criativa. A dificuldade é</p><p>enorme; é necessário um entendimento avançado dos princípios de</p><p>engenharia para a solução desse problema. Pela falta de opções,</p><p>desenvolveu-se o sistema de classes, uma ordem que aprisiona toda a</p><p>comunidade,1 obstrui a energia na fonte e a limita a um circuito local. O</p><p>pensamento original, portanto, torna-se um crime, porque liberta energia.</p><p>Mesmo numa cultura elevada que possua um sistema de classes, o</p><p>princípio repressivo mostra seu caráter ao impor a pena de morte contra</p><p>opiniões não autorizadas, chamadas de heresia ou traição.</p><p>Vemos esse sistema retornando hoje, primeiro gradativamente e depois</p><p>por ordens generalizadas que impedem o movimento de pessoas ou as</p><p>tangem para campos de concentração. Antes da guerra mundial de 1914,</p><p>essa condição medieval de aprisionamento geral havia sido praticamente</p><p>abandonada e meio esquecida em toda a parte, exceto na Rússia Czarista,</p><p>onde subsistia uma mistura de barbarismo, absolutismo e anarquia. As</p><p>nações mais civilizadas não exigiam passaportes, mas os emitiam a</p><p>pedido de seus cidadãos simplesmente porque poderiam ser exigidos</p><p>nessas regiões atrasadas. Os ventos reacionários em direção ao governo</p><p>1 Tão recentemente como no reino de Luís XIV na França, era aconselhável a um nobre</p><p>que estivesse na corte pedir permissão até mesmo para ir para sua propriedade,</p><p>porque corria o risco ser aprisionado pela vontade do rei, por tempo indeterminado,</p><p>sem acusação ou julgamento, por lettre de cachet. Ele também poderia ser proibido</p><p>de deixar sua propriedade ou de retornar a Paris. (N. da A.)</p><p>A</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 92 -</p><p>do status também se percebem pelo persistente descrédito da razão e pela</p><p>corrupção deliberada da linguagem, para impedir a comunicação.2</p><p>O mau uso da linguagem é o meio pelo qual o culto marxista do</p><p>comunismo causou o dano mais grave à inteligência. Existe um</p><p>obstáculo natural ao progresso no pensamento abstrato, que muitas vezes</p><p>atrasou a pesquisa racional: um conceito errôneo ou uma teoria errônea</p><p>podem ser expressos em termos que incorporam o erro, de maneira que o</p><p>pensamento fica bloqueado até que as palavras enganosas sejam</p><p>descartadas do contexto dado. A antiga classificação de terra, ar, fogo e</p><p>água como “elementos” era um erro desse tipo, que teve de ser</p><p>abandonado antes que os elementos pudessem ser identificados e</p><p>denominados como tais. A teoria dos elementos era uma especulação</p><p>correta e perspicaz; mas os fenômenos designados estavam errados. Por</p><p>outro lado, a noção dos quatro “humores” corporais é uma teoria errônea</p><p>que atrasou gravemente a ciência da medicina. De maneira semelhante, a</p><p>teoria cartesiana dos “vórtices” e a suposição da existência de um tipo de</p><p>essência do fogo ou do calor chamada “flogisto”</p><p>foram obstáculos</p><p>verbais à extensão do conhecimento da física. São obsessões infelizes da</p><p>linguagem, que os mais agudos intelectos podem criar nas fronteiras do</p><p>desconhecido. Como não podem ser refutadas até que o conhecimento se</p><p>amplie e, ao mesmo tempo, tendem a impedir o avanço, essas teorias são</p><p>um obstáculo muito maior do que afirmações que são simples e</p><p>demonstravelmente falsas; porém, ocorrem pela própria natureza das</p><p>coisas e não são imunes à razão no longo prazo.</p><p>Mas a terminologia marxista reduz a expressão verbal ao nonsense literal</p><p>com base nos fatos e no uso. Não é uma linguagem obviamente</p><p>inarticulada, nem o nonsense humorístico que algumas vezes elucida</p><p>uma dificuldade intrínseca de expressão ou indica uma falha no</p><p>conhecimento. É um arranjo de palavras de acordo com as regras da</p><p>gramática, no qual cada palavra tomada em separado possui um</p><p>significado habitual. Mas, na seqüência dada na frase, o arranjo não</p><p>significa absolutamente nada. Por exemplo, afirmemos que: “Um</p><p>triângulo isósceles é verde.” As várias palavras são de uso comum e,</p><p>como partes de um discurso, estão colocadas numa ordem apropriada;</p><p>mas a afirmação completa é absurda. Isso já é suficientemente ruim, mas</p><p>seria bem pior se alguém falasse sobre a “redondeza do triângulo”. A</p><p>frase “ditadura do proletariado” é como a “redondeza do triângulo”, uma</p><p>contradição em termos. Não tem significado. A teoria do “materialismo</p><p>dialético” é um abuso dos termos do mesmo tipo que a afirmação de que</p><p>2 Isto foi escrito seis anos antes de George Orwell publicar 1984, em que apresenta os</p><p>termos “duplipensar” e “novilíngua”. (N. do T.)</p><p>X. A Economia da Sociedade Livre</p><p>- 93 -</p><p>um triângulo isósceles é verde. Ela postula uma sucessão inevitável de</p><p>uma tese produzindo seu oposto ou antítese e a abstração fissípara3</p><p>tornando a uni-las numa síntese. Como nada na natureza passa realmente</p><p>por tal transformação grotesca, debates sem fim e sem sentido podem ser</p><p>realizados sobre quais relações sociais exibem em várias fases uma tese,</p><p>antítese e síntese, cada uma supostamente “produzindo” seu “oposto” e</p><p>combinando-se novamente em outra coisa, como o Squidgicum Squee4</p><p>que engole a si mesmo. Tolos podem argumentar solenemente que um</p><p>triângulo isósceles não é verde, mas azul, ou que um triângulo isósceles</p><p>verde produzirá um círculo azul e os dois então se sintetizarão numa</p><p>vaca púrpura ou num rombóide; ainda assim, essas afirmações são</p><p>vazias. Essa é especificamente a linguagem dos tolos; porque a</p><p>deficiência que a palavra tolo indica é a incapacidade de entender</p><p>categorias e a relação das coisas e das qualidades.</p><p>Marx era um tolo com um vasto vocabulário de palavras longas. Mas ele</p><p>tinha de fato uma necessidade não reconhecida de adotar a “dialética”</p><p>ilógica de Hegel. Sendo um pedante parasita, inepto e desonesto, queria</p><p>fazer reivindicações contra a “sociedade” apenas como consumidor.</p><p>Abraçou o comunismo porque nenhuma outra teoria, nem mesmo no</p><p>papel, poderia prometer “a cada um de acordo com suas necessidades”.</p><p>Somente um suposto “estoque comum”, para o qual toda a produção</p><p>fosse expropriada, poderia ser imaginado como disponível para o não</p><p>produtor pegar dali o que quisesse. Mas isso é pura imaginação, o sonho</p><p>do incompetente e do vicioso ou da mente infantil virgem de produção.</p><p>Por outro lado, Marx foi confrontado com o fato histórico de que no</p><p>comunismo, como regra geral, a produção nunca ultrapassa o nível da</p><p>mera subsistência. Como podia imaginar produção abundante no</p><p>comunismo? Apenas supunha que os “meios de produção”, levados a um</p><p>alto nível de produtividade pela propriedade privada e pelo livre</p><p>empreendimento individual, que é o capitalismo, poderiam ser</p><p>expropriados e continuar funcionando igualmente, administrados pelo</p><p>regime sucessor comunista. É fato que nada parecido jamais aconteceu; a</p><p>tentativa mais próxima do comunismo como norma social sempre foi</p><p>muito primitiva; mas, se ele imaginasse primeiro o “materialismo</p><p>dialético”, e então arbitrariamente chamasse o capitalismo de tese; e</p><p>designasse os que não têm propriedade como antítese proletária, poderia</p><p>depois afirmar que os dois se “fundiriam” pelo conflito e produziriam</p><p>uma “síntese”, que teria de ser o comunismo se ele assim dissesse. Já</p><p>3 Fissíparo: que se reproduz pela fragmentação do próprio organismo. (N. do T.)</p><p>4 Squidgicum Squee: criatura do folclore dos lenhadores americanos do século 19.</p><p>Muito tímido, não queria jamais ser visto. Ao ouvir ou ver alguém se aproximando,</p><p>respirava fundo e engolia a si mesmo. (N. do T.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 94 -</p><p>que isso nunca aconteceu, Marx podia dizer que aconteceria</p><p>inevitavelmente no futuro. Podia também, com muita facilidade, chamar</p><p>de “sistema de classes” a sociedade capitalista de contrato, embora ela</p><p>positivamente não fosse isso.</p><p>A teoria de luta de classes de Marx é puro nonsense desde sua definição;</p><p>não se refere nem a classes nem a luta, se está relacionada ao “capital” e</p><p>ao “trabalho”. É fisicamente impossível o “trabalho” e o “capital”</p><p>guerrearem entre si. O capital é a propriedade; o trabalho é o homem.</p><p>Tudo o que pode ocorrer são tumultos esporádicos e, talvez, a destruição</p><p>de propriedade, porque as próprias armas de guerra numa sociedade</p><p>industrial só podem ser produzidas e mantidas pela combinação do</p><p>“capital” e do “trabalho”.</p><p>Numa verdadeira sociedade de classes, as classes são as diversas</p><p>camadas de uma ordem estratificada; classe não é nada mais que a</p><p>posição relativa horizontal. Portanto, uma classe não pode desalojar</p><p>outra, nem aboli-la por sua ação como classe. Se e quando as classes</p><p>existem, as pessoas que ocupam uma dada posição relativa pertencem à</p><p>classe denominada. É concebível que as partículas possam ser</p><p>transpostas, mas as classes permaneceriam como antes — o que quer que</p><p>esteja em cima está em cima, e o que quer que esteja embaixo está</p><p>embaixo. Embora invasores possam depor os membros de uma classe</p><p>originalmente mais alta e ocupar a posição, nada disso alteraria o</p><p>sistema; e tal invasão não é uma luta de classes.</p><p>Mas, como o sistema de classes é imposto sobre a energia criativa para</p><p>restringir seu fluxo, é inevitavelmente sujeito a distúrbios internos. A</p><p>energia pode causar uma clivagem entre as camadas mais altas e mais</p><p>baixas, que fará com que elas entrem em oposição violenta; essa é uma</p><p>genuína luta de classes e ocorreu com freqüência.</p><p>Todavia, como tal, uma luta de classes não pode produzir mudanças e</p><p>nunca o fez. Mesmo a transposição de pessoas como partículas de uma</p><p>classe para outra raramente ocorreu por meios violentos. As repetidas</p><p>revoltas ou jacqueries na sociedade feudal eram abortivas por natureza</p><p>— já que eram conflitos reais de classe.</p><p>Deduz-se — pela afirmação de que a pólvora aboliu a Idade Média —</p><p>que o camponês era impotente contra o cavaleiro. Ao contrário, o</p><p>cavaleiro era desesperadamente vulnerável ao camponês. Um homem em</p><p>uma armadura, dependendo de um cavalo também em uma armadura</p><p>para sua mobilidade, podia ser colocado fora de ação por um ou dois</p><p>homens velozes com foices e forcados. O cavalo seria paralisado e o</p><p>X. A Economia da Sociedade Livre</p><p>- 95 -</p><p>cavaleiro derrubado. O cavaleiro mal conseguia montar sem ajuda; no</p><p>chão, era desajeitado; se caísse, não conseguiria se levantar de um salto.</p><p>Uma tartaruga humana, o cavaleiro estava equipado apenas para</p><p>encontrar outro cavaleiro. E, economicamente, não era menos</p><p>dependente. Sua armadura tinha de ser forjada pelo ferreiro, sua comida</p><p>e suas roupas fornecidas e seu cavalo sustentado pelo trabalho do</p><p>camponês. O cavaleiro não conhecia nenhuma arte útil e era inteiramente</p><p>um produto final de um sistema rígido. Se o sistema fosse interrompido</p><p>de Salomão. Quando</p><p>Salomão enviou seus navios, eles seguiram num comboio fenício.</p><p>Obviamente, os fenícios eram a nação industrial e comercial líder de seu</p><p>tempo. Misteriosamente, não conseguiram montar a estrutura positiva de</p><p>um império e o centro de sua esfera indefinida de autoridade e influência</p><p>foi determinado por forças em movimento, numa linha da Síria até a</p><p>Espanha. Deslocou-se progressivamente passando por Tiro e Sídon até</p><p>sua última capital, de onde eles desapareceram da lista das nações do</p><p>mundo. Seu modo de ser histórico estava implícito no caráter de</p><p>Cartago, sua última e suprema realização, como indicado por sua posição</p><p>entre o mar e o deserto, um nexo sólido de energia confluente num ponto</p><p>determinado. Embora a cidade fosse apoiada por um distrito produtor de</p><p>cereais, a terra arável não mantinha uma relação normal com a</p><p>população, que se estima que tenha chegado a um milhão de pessoas.</p><p>Admitindo que haja algum exagero, o número ainda assim impressiona.</p><p>Cartago era menos uma entidade territorial que um nó amarrado no</p><p>vento e na água.</p><p>Contra as antigas monarquias despóticas do Oriente, os fenícios</p><p>estabeleceram e mantiveram com sucesso seu lugar especial. Contra os</p><p>gregos, defenderam-se bastante bem numa longa luta. Os gregos eram</p><p>claramente seus rivais naturais, habitantes de ilhas fazendo comércio nas</p><p>mesmas águas e, da mesma maneira, espalhando-se de porto em porto</p><p>quando tocavam um continente. Nem os fenícios nem os gregos se</p><p>mostraram capazes de manter suas colônias em estrita confederação; as</p><p>cidades subsidiárias mudavam de lado sob pressão, e faziam seus</p><p>próprios tratados quando tinham coragem para tanto. Algum elemento</p><p>faltava no sistema deles, para amarrar o conjunto.</p><p>Há tantas explicações sobre a dominância e o declínio das nações quanto</p><p>há exemplos. O favor dos deuses ou “as estrelas, desde suas órbitas”4 já</p><p>1 Reis I, 6:7 (N. do T.)</p><p>2 Reis I, 5:11 (N. do T.)</p><p>3 Reis I, 9:11 (N. do T.)</p><p>4 Juízes, 5:20 (N. do T.)</p><p>I. O Ciclo de Energia no Mundo Clássico</p><p>- 9 -</p><p>foram considerados determinantes. A análise moderna se baseia em</p><p>fatores temporais, principalmente matérias-primas, alto desenvolvimento</p><p>econômico, força naval e gênio militar, este último revelado no</p><p>entendimento da estratégia maior, e numa tropa corajosa e preparada que</p><p>utiliza disciplinas ou tipos de armamento especiais. O problema é que</p><p>cada teoria pode ser aplicada apenas a uma época ou a um povo, sem que</p><p>nada prove a real existência do fator considerado. Experimentemos</p><p>algumas comparações de acordo com as regras estipuladas.</p><p>O conflito entre a Grécia e Cartago pode ser chamado propriamente de</p><p>guerra comercial. Os dois lados competiam por posições, bens, cargas e</p><p>clientes. Nesse aspecto, Roma era comparativamente insignificante nesse</p><p>momento. Possivelmente Roma se tornou um povoado permanente já</p><p>como um centro local de comércio. (Mommsen defende essa suposição</p><p>de maneira coerente, baseando-se em evidências internas e históricas.)</p><p>As origens mescladas da população, a localização ao lado de um rio e</p><p>suficientemente próxima do mar para ser alcançada por pequenas</p><p>embarcações, a construção precoce de pontes e o uso de dinheiro</p><p>indicam comércio; e as relações contratuais eram inextricavelmente</p><p>entrelaçadas com o sistema político romano. Aparentemente, o fluxo de</p><p>energia foi suficiente para demandar a acomodação habitual e,</p><p>conseqüentemente, fazer com que os romanos percebessem a</p><p>necessidade equivalente de fortes bases fixas na terra. Mas eles não</p><p>participaram da corrente principal de comércio mundial durante o</p><p>período formativo, em que estabeleceram sua estrutura cívica. “Por</p><p>diversas razões, em momentos diversos, Roma nunca foi, desde sua fundação</p><p>até hoje, uma cidade industrial. […] Para o comércio internacional, Roma</p><p>estava mal localizada. […] Apenas por cortesia o Tibre poderia ser chamado de</p><p>corrente navegável; […] o estuário (era) de pouco valor como porto; e a</p><p>rapidez da corrente fazia com que a jornada de Roma até o mar fosse uma</p><p>tarefa laboriosa mesmo para as barcaças fluviais. […] As imagens familiares de</p><p>mercadores marítimos engajados no comércio geral, velejando regularmente o</p><p>Tibre para os dois lados e usando um porto abaixo do Monte Aventino, podem</p><p>seguramente ser descartadas como produtos da imaginação.” Em seu tratado</p><p>mais antigo, “Cartago, como seria de se esperar, assegurava insistentemente</p><p>seu domínio comercial sobre as regiões que controlava,” enquanto Roma</p><p>“ficava indiferente a considerações que deveriam afetar qualquer comunidade</p><p>que possa ser chamada de industrial”.5</p><p>Comparada à Grécia, Cartago provavelmente estava à frente em</p><p>organização econômica e conhecimento técnico e possuía um maior</p><p>número de navios sob um único comando, monopolizando as mais</p><p>5 LAST, Hugh. Cambridge Ancient History: The Early Republic. Macmillan. (N. da A.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 10 -</p><p>extensas províncias ricas em recursos naturais. A luta entre a Grécia e</p><p>Cartago já vinha ocorrendo havia séculos e ainda não estava decidida</p><p>quando Pítias fez sua viagem. Em cinqüenta anos, Roma se imiscuiu</p><p>entre as duas, iniciando o longo, amargo e intermitente esforço que</p><p>destruiu o poder fenício, arrasou os muros de Cartago e deixou o lugar</p><p>em ruínas. Os gregos não chegaram a se beneficiar do fim de seu</p><p>poderoso antagonista; ao contrário, a submissão da Grécia ocorreria em</p><p>seguida. O determinismo econômico falhou.</p><p>O resultado dessa disputa em particular foi tão definitivo que a questão</p><p>principal se ofuscou. A História é obrigada a recorrer a termos</p><p>geográficos: Roma e Cartago lutaram pelo domínio do Mediterrâneo.</p><p>Conseqüentemente, o cenário de hostilidades é considerado naturalmente</p><p>variável. Cartago estava situada na costa norte da África, e vivia de sua</p><p>marinha. Mesmo assim, vemos o general cartaginês Aníbal conduzindo</p><p>um exército com elefantes contra Roma, numa penosa marcha por sobre</p><p>os Alpes.</p><p>O mais obstinado proponente da interpretação naval dos eventos</p><p>mundiais, o Almirante Mahan, explicou como a idéia lhe surgiu. Lendo</p><p>A História de Roma, de Mommsen, ele se recorda de que: “Subitamente</p><p>me ocorreu […] como as coisas poderiam ter sido diferentes se Aníbal tivesse</p><p>invadido a Itália por mar, como os romanos fizeram tantas vezes com a África,</p><p>em vez da longa rota por terra.” A partir dessa reflexão, Mahan escreveu A</p><p>Influência do Poder Naval na História. Ele poderia também ter chamado</p><p>seu livro de influência da história no poder naval. Sem dúvida, as coisas</p><p>teriam sido diferentes se tivessem sido diferentes. Particularmente, se o</p><p>poder naval – uma marinha superior comandando as principais rotas</p><p>comerciais a partir de bases inexpugnáveis – fosse necessariamente</p><p>decisivo, Aníbal nunca teria sido arrastado para seu desvio alpino e</p><p>Cartago teria vencido. Mais propriamente: por esse critério, Cartago</p><p>deveria ter vencido uma geração antes. Em vez disso, “com a mais forte</p><p>armada dos mares e com uma experiência naval adquirida ao longo de</p><p>séculos, os almirantes cartagineses perderam seis das sete batalhas navais que</p><p>travaram, apesar de os romanos nunca terem possuído um qüinqüerreme</p><p>antes dessa ocasião (a Primeira Guerra Púnica), e pouquíssimos romanos</p><p>terem até então posto os pés a bordo.”6</p><p>Esboçado rapidamente, o método pelo qual Roma varreu os mares beira</p><p>o ridículo. “Enquanto Cartago mantinha uma frota de 120</p><p>qüinqüerremes” (o maior navio de guerra padrão), Roma não tinha nem</p><p>6 FRANK, Tenney. Cambridge Ancient History: The First Punic War. Macmillan. (N. da</p><p>A.)</p><p>I. O Ciclo de Energia no Mundo Clássico</p><p>- 11 -</p><p>navios, nem armadores, nem marinheiros. Para compensar a deficiência,</p><p>os romanos recuperaram uma</p><p>por pouco mais que um tempo muito curto, o cavaleiro fatalmente</p><p>pereceria.5</p><p>E, em muitos casos, as jacqueries obtiveram vitórias imediatas pela</p><p>violência. Em diversas localidades, os camponeses massacraram seus</p><p>senhores e tomaram seus castelos, saqueando-os e destruindo-os. Porém,</p><p>não puderam ir além e foram dominados novamente; nada poderia advir</p><p>dessas revoltas exceto repressão mais severa. Não era possível induzir a</p><p>maioria dos camponeses a elevar uns poucos dentre eles à posição de</p><p>senhores, e não era possível elevá-los todos, porque a ordem da cavalaria</p><p>precisava de camponeses para sustentá-la. Agindo como uma classe, os</p><p>camponeses não podiam ter outra coisa em que se basear, exceto o</p><p>princípio de classes, para reinstituir a sociedade. Portanto, as jacqueries</p><p>estavam destinadas a serem esmagadas, pelos mesmos princípios de</p><p>classe que uniu os camponeses em rebelião.</p><p>Quando a sociedade de contrato começou a emergir novamente e a</p><p>dissolver o sistema de classes, membros de todas as classes e grupos</p><p>lutaram em ambos os lados, com indivíduos tomando parte contra a</p><p>ordem ou a favor dela. Na Revolução Francesa, a mais obstinada defesa</p><p>do antigo regime foi feita na Bretanha rural, por camponeses da Vendéia,</p><p>obedecendo a um comandante camponês. Sua posição era insustentável,</p><p>porque as armas de uma sociedade de classes pertencem a um modo de</p><p>conversão de energia inferior ao de uma sociedade de contrato. Essa é a</p><p>importância da pólvora; é o resultado de uma economia livre, que não</p><p>proíbe a pesquisa e a invenção. É um instrumento, um efeito, não uma</p><p>causa.</p><p>5 Em tempos recentes, tem sido dito que a revolução se torna impossível quando um</p><p>governo tem tecnologia de máquinas a sua disposição, porque a população</p><p>desarmada é impotente contra armas de alto poder. Ao contrário, o exército equipado</p><p>tecnologicamente depende absolutamente do livre funcionamento ininterrupto da</p><p>ordem civil para suas armas e suprimentos. Aviões e tanques são ainda mais</p><p>imediatamente dependentes da produção fabril que o cavaleiro era do forjador. E a</p><p>produção de máquinas não pode ser mantida eficientemente por trabalho forçado.</p><p>(N. da A.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 96 -</p><p>A invenção do maquinário produtivo e seu uso contínuo só são possíveis</p><p>numa economia livre, sendo coerentes com seus axiomas em relação à</p><p>energia. O equivalente da ordem feudal na configuração de uma máquina</p><p>seria carregar o motor com peso morto, de maneira que ele não pudesse</p><p>funcionar até que parte desse peso fosse removida; e ajustar o freio para</p><p>que fosse aplicado sempre que o motor partisse, ou melhor,</p><p>imediatamente antes da partida. Provavelmente, a noção popular atual da</p><p>economia medieval seja que as pessoas comuns eram obrigadas a</p><p>trabalhar exaustivamente. Sem dúvida, eram submetidas a trabalho</p><p>forçado e seu trabalho era executado por métodos exaustivos, lentos e</p><p>pouco produtivos; mas a maior dureza era que eles não tinham</p><p>permissão para trabalhar de outra maneira. O trabalho podia ser</p><p>punido como um crime. Por exemplo, era ilegal construir, possuir ou</p><p>usar um moinho manual em casa. (O mesmo tipo de penalidade foi mais</p><p>tarde reintroduzido com o imposto sobre quotas agrícolas e o imposto de</p><p>processamento.) Mesmo o carro de boi medieval era tão mal projetado</p><p>que, quando o animal o puxava, o peso de alguma maneira o sufocava.</p><p>Assim era com os homens; a competência e a poupança eram</p><p>penalizadas. Aquele que arava a terra não podia ter esperanças de jamais</p><p>possuí-la; benfeitorias eram revertidas ao senhor e havia grande chance</p><p>de causarem obrigações adicionais. Além disso, quando morria um</p><p>servo, o senhor tomava parte dos bens e dos animais, como “melhor</p><p>gado”6, sempre tomando o melhor, não importando quão pouco sobrasse</p><p>para a viúva e os filhos. (A reintrodução das obrigações de morte,</p><p>impostos sobre transmissão de bens, é um retorno à obrigação medieval</p><p>do “melhor gado”. Incidindo inicialmente apenas sobre grandes</p><p>patrimônios, está rapidamente avançando sobre o menor fragmento de</p><p>herança. A obrigação do “melhor gado” era reconhecida como o símbolo</p><p>do servo.)</p><p>Na sociedade feudal, quando os homens falavam sobre direitos ou</p><p>liberdades, reivindicavam esses direitos por licença ou costume, sempre</p><p>com referência a uma concessão permissiva no passado, que deviam</p><p>provar não ter perdido por deixarem de cumprir com suas obrigações</p><p>financeiras ou de trabalho. O princípio era de que os homens deviam</p><p>pagar pela licença para trabalhar ou para ir de um lugar para outro. Por</p><p>último, a restrição ao comércio limitava os materiais disponíveis; as</p><p>pessoas não tinham muito com que trabalhar.</p><p>6 Em inglês, heriot. Era o direito de um senhor na Europa feudal de tomar o melhor</p><p>cavalo e/ou roupa de um servo, quando este morria. Surgiu da tradição do senhor</p><p>emprestar um cavalo ou armadura ou armas de combate, de maneira que quando o</p><p>servo morresse o senhor reivindicaria legitimamente sua propriedade. (N. do T.)</p><p>X. A Economia da Sociedade Livre</p><p>- 97 -</p><p>Quando o elemento produtivo finalmente reconquistou alguma liberdade</p><p>natural, lançou-se como que numa orgia de trabalho, satisfazendo uma</p><p>ânsia anteriormente frustrada. Homens livres exigiram de si mesmos</p><p>muito mais que qualquer senhor jamais foi capaz de exigir de seus</p><p>servos, e produziram três vezes mais com trabalho manual, enquanto</p><p>também desenvolviam maquinário produtivo. Essa explosão inédita de</p><p>energia foi benéfica pelo aumento de bens e de conhecimento. Mas</p><p>ocorreu na Europa enquanto parte da estrutura aristocrática permanecia</p><p>na posse de terras. Bens e trabalho estavam no mercado livre, ou seja, na</p><p>sociedade de contrato; grande parte da terra não estava lá, permanecendo</p><p>sob morgadio7 e arrendada por prazos longos. O trabalhador sem terra</p><p>não tinha onde se amparar e foi pego, por assim dizer, entre um</p><p>automóvel e uma muralha, ou jogado contra uma rocha por uma corrente</p><p>impetuosa. O assalariado nunca conseguiu uma base sólida na Europa. A</p><p>“economia mista” invariavelmente inclui as características onerosas</p><p>tanto do status como do contrato, pioradas pela combinação. No campo</p><p>da indústria, durante o início da era industrial, indivíduos</p><p>excepcionalmente astutos, vigorosos e capazes estabeleceram o ritmo</p><p>para os menos capazes e os mais fracos. Um empregador que começou</p><p>exigindo muito de si mesmo esperava um empenho extremo dos</p><p>trabalhadores que contratava. (Presumia-se que a margem de</p><p>compensação estava nas chances do futuro — mas o trabalho era feito no</p><p>presente e o empregador não podia dar garantias sobre o futuro.) Além</p><p>disso, as horas de trabalho eram um remanescente da economia medieval</p><p>e rural, em que os homens trabalhavam da aurora até a noite; mas o</p><p>ritmo medieval era comparativamente lento, com períodos de inatividade</p><p>e tantos feriados quanto os arrendatários e servos conseguiam por meio</p><p>da Igreja. A economia livre acelerou o ritmo e cortou feriados, mas</p><p>manteve o longo dia de trabalho, até mesmo estendendo-o pela</p><p>iluminação artificial. Mas a aceleração e os salários baixos ocorreram em</p><p>parte por pressão da aristocracia, o que restava do status. Na sociedade</p><p>feudal plena, os senhores tinham de manter as forças combatentes e</p><p>pagar outros custos políticos com recursos obtidos localmente; e o rei</p><p>vivia às suas próprias custas, pela produção de suas propriedades rurais.</p><p>No período de transição, o exército e a verba designada à família real se</p><p>tornaram obrigações nacionais, mantidas pela taxação geral, enquanto a</p><p>nobreza não apenas ocupava os cargos lucrativos, mas tirava recursos da</p><p>indústria pelo aluguel de terras, sem liberar terra ao mercado para</p><p>melhorias pela construção competitiva. Lorde Shaftesbury8, o famoso</p><p>7 Em inglês, entailment. Imóvel herdado que não podia ser vendido, legado livremente</p><p>ou alienado de nenhuma maneira pelo proprietário, mas que devia passar, por lei,</p><p>para os seus herdeiros legais quando ele morresse. (N. do T.)</p><p>8 Anthony Ashley-Cooper (1801 – 1885), 7º Conde de Shaftesbury, foi um político e</p><p>reformador social inglês. Foi parlamentar entre 1826 e 1851. Propôs leis para tornar</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 98 -</p><p>reformador, admitiu privadamente que acusou os industriais, embora</p><p>soubesse que a culpa era igualmente dos donos de terra, porque</p><p>precisava de um partido para aprovar suas leis. O que ele não percebeu é</p><p>que também estava agindo como um aristocrata, porque as leis de</p><p>“reforma” que criou, embora bem-intencionadas, eram leis de status</p><p>numa nova roupagem.</p><p>A pequena nobreza também abusava de sua posição, apoderando-se das</p><p>terras comuns e cercando-as. Essas terras haviam dado aos aldeões um</p><p>pouco de independência, uma base física. Em geral, embora escarnecesse</p><p>da busca de lucro por parte da indústria, a pequena nobreza nunca</p><p>deixava escapar um centavo, viesse do aluguel de um cortiço ou da</p><p>cabana de um pastor ou mesmo do subsídio de alimentação de um</p><p>soldado.</p><p>Assim, a classe alta absorvia a maior parte dos benefícios materiais da</p><p>emergente sociedade de contrato e, ao mesmo tempo, se livrava de suas</p><p>principais obrigações. O único bem que resultou ao trabalhador médio,</p><p>num primeiro momento, foi que a porta se abriu; e a América existia. (Se</p><p>a América não existisse, é impossível saber se a porta seria ou não</p><p>arrombada.) O trabalhador livre podia mudar de emprego, de lugar de</p><p>residência e até mesmo de país, se tivesse coragem para essa aventura.</p><p>Mesmo assim, no período de um século, essa possibilidade foi suficiente</p><p>para, com uma parte das pessoas aproveitando-se dela, elevar o nível dos</p><p>salários e das oportunidades, da limpeza e da conveniência, para um</p><p>padrão que teria parecido fabuloso ao senhor medieval. As horas de</p><p>trabalho foram da mesma maneira encurtadas; o esforço foi transferido</p><p>às máquinas; a liberdade produziu frutos. Agora, com o atual decréscimo</p><p>de liberdade, as horas estão se alongando até na América; a produção</p><p>está diminuindo; e a aceleração está sendo imposta outra vez sobre os</p><p>homens, em vez das máquinas.</p><p>O impasse de classe pode ser quebrado de duas maneiras. Ou</p><p>retornando-se pelo barbarismo (liderança) à selvageria ou avançando-se</p><p>para a organização política apropriada à sociedade de contrato. Mas o</p><p>avanço não pode ser feito até que uma estrutura seja erguida para</p><p>acomodar o mecanismo, incluindo o tipo de controle que é usado na</p><p>mecânica de motores por vários dispositivos de segurança, sejam freios,</p><p>reguladores ou estabilizadores. A característica essencial desses</p><p>mais humano o tratamento de doentes mentais, proibir o trabalho infantil, limitar a</p><p>jornada de trabalho, proibir o trabalho de mulheres e crianças em minas de carvão e</p><p>de crianças como limpadores de chaminés. (N. do T.)</p><p>X. A Economia da Sociedade Livre</p><p>- 99 -</p><p>mecanismos é que eles não agem (e não podem agir) até que surja a real</p><p>necessidade. São projetados para funcionar apenas se o motor ou a</p><p>transmissão funcionarem mal. Um freio pneumático ferroviário trava as</p><p>rodas se o engate se soltar; uma válvula de segurança abre no ponto de</p><p>perigo da pressão do vapor; um fusível queima com uma sobrecarga de</p><p>corrente, salvando os circuitos; um giroscópio é neutro enquanto o avião</p><p>está em equilíbrio. O que devemos ter em mente é que esses controles</p><p>não são preventivos, mas corretivos; não são primários, mas secundários.</p><p>A lei de contrato é o mesmo tipo de mecanismo na organização política.</p><p>A restrição legal não ocorre antes que indivíduos tenham feito um</p><p>contrato voluntário e uma das partes tenha descumprido seus termos. A</p><p>lei contratual não tem autoridade primária ou jurisdição, a menos que</p><p>seja invocada pelo indivíduo; então, ela pode tomar conhecimento</p><p>apenas do ponto em questão, que é determinado pelo acordo anterior</p><p>entre os indivíduos. Incontestavelmente, não é nada além de uma</p><p>agência; a iniciativa cabe exclusivamente ao indivíduo.</p><p>É o único método de organização que dá à faculdade criativa e aos</p><p>processos produtivos resultantes sua liberdade inerente e necessária. O</p><p>instrumento político deve ser de caráter secundário.</p><p>Mas qualquer tipo de organização implica em uma base permanente. Ela</p><p>deve possuir uma localidade fixa para sua estrutura. Isso é verdade até</p><p>para mecanismos expressamente projetados para mobilidade; um avião</p><p>precisa de uma base tanto quanto um antiquado moinho. A base do avião</p><p>é o campo de pouso; mas, numa visão mais ampla, o avião é parte da</p><p>linha de transmissão de um sistema de energia de circuito muito longo,</p><p>que se embasa na propriedade privada como instituição. A propriedade</p><p>privada é necessariamente individual; nem a propriedade grupal nem o</p><p>comunismo estatal podem gerar um potencial de energia tão elevado. As</p><p>nações coletivistas de hoje (Rússia, Itália, Alemanha, Japão) são aviões</p><p>funcionando com a energia extraída do fim de um circuito longo de</p><p>energia gerado pelas economias livres no passado recente.</p><p>O problema da estrutura para a organização política atrasou a fundação</p><p>de uma Sociedade de Contrato plena em milhares de anos. A primeira</p><p>estrutura política que os homens foram capazes de encontrar ou</p><p>desenvolver foi a da aristocracia. Embora deva ter começado como uma</p><p>extensão da família (não justificada na natureza), ela foi posteriormente</p><p>tratada como validada por um conceito ou teoria que tinha ainda menos</p><p>relação com os fatos. O nobre passou a ser considerado, ou a se</p><p>considerar, uma espécie superior, alçado à sua posição por uma diferença</p><p>semimística, semifísica em relação ao camponês ou ao plebeu, uma</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 100 -</p><p>diferença de “sangue” confirmada por ordenação divina. A biologia não</p><p>conseguiu descobrir nenhuma evidência para apoiar essa teoria; embora</p><p>uma família nobre possa ter sido fundada por alguma pessoa de talento</p><p>excepcional, seus descendentes retornam à média. Além disso, a linha</p><p>era rompida com freqüência e o sangue misturado com o de pessoas</p><p>saídas das classes supostamente inferiores. Finalmente, aristocracias</p><p>foram despojadas de sua posição e nenhuma divindade mística interveio</p><p>em favor delas. É impossível definir, em termos racionais, exatamente</p><p>em que consiste a qualidade aristocrática. Aquele epítome da categoria, o</p><p>Duque de Saint-Simon, que “acreditava” fanaticamente nela, descreveu</p><p>muitos de seus companheiros nobres como canalhas, imbecis, lunáticos,</p><p>covardes, mentirosos, bajuladores, alcoviteiros, imprestáveis e libertinos,</p><p>deformados, feios, medíocres, desleais e, de outras maneiras, inúteis ou</p><p>perniciosos. Mesmo assim, sua fé permaneceu inabalada.</p><p>E havia um fato além da fantasia. Embora estivesse obsoleta na França</p><p>quando observada por Saint-Simon e, por tanto, duplamente corrompida,</p><p>a aristocracia teve uma utilidade prática em seu tempo. Ela delimitava as</p><p>bases fixas para a estrutura política, pela soberania local de subdivisões</p><p>territoriais. Os títulos originais, privilégios e incumbências dos grandes</p><p>nobres estavam vinculados a áreas determinadas de terra e eram</p><p>inseparáveis delas.</p><p>Não foi a solidariedade de classe da aristocracia que permitiu que ela</p><p>servisse de estrutura, mas a separação das unidades, um sistema de</p><p>descentralização. As amargas acusações contra as aristocracias eram</p><p>bem reais; a ordem era opressiva não apenas por abuso, mas em</p><p>princípio. Embora os autores de romances medievais possam embelezar</p><p>o quadro em retrospecto, o senhor tinha o direito de extorquir dinheiro</p><p>para permitir que uma garota se casasse</p><p>ou que um menino aprendesse a</p><p>ler; podia tomar uma vaca da viúva enlutada; um direito costumeiro do</p><p>senhor que arrendava terras era recolher o esterco dos animais do</p><p>arrendatário para usar como adubo. A aristocracia bloqueava a luz e o ar.</p><p>Existia para causar ódio, a expressão emocional da energia frustrada. O</p><p>mecanismo de governo que ela usava (a lei de status) é o da embreagem</p><p>preventiva. Sua atmosfera social é tingida pelo desespero; durante a</p><p>Idade Média, quando a aristocracia predominava, os homens tinham</p><p>visões de morte e do inferno e do fim do mundo, miséria aqui e no além.</p><p>Mas toleravam calados porque não sabiam o que colocar em seu lugar.</p><p>Se derrubassem os pilares da estrutura, o teto cairia sobre eles. Tinham</p><p>de ter alguma forma local de resistir tanto aos bárbaros como à</p><p>burocracia centralizada que os havia entregado aos bárbaros. A</p><p>estagnação completa só era evitada pelo fluxo de energia canalizado pela</p><p>sociedade modificada de contrato da Igreja e por algum comércio; e não</p><p>X. A Economia da Sociedade Livre</p><p>- 101 -</p><p>é por acaso que o comércio era feito sob o abrigo da catedral. A Igreja</p><p>também preservou o aprendizado, uma vez que a palavra escrita é</p><p>indispensável para um sistema de energia de circuito longo.</p><p>Assim, as forças de energia estática e cinética produziram um arranjo</p><p>incômodo, embora em constante perigo originado de dentro e de fora.</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 102 -</p><p>- 103 -</p><p>XI. O Significado da Magna Carta</p><p>Inglaterra acabou por fazer os ajustes mais bem-sucedidos no</p><p>Velho Mundo, mas não sem uma luta contínua e crises</p><p>recorrentes de violência, durante cinco séculos. O primeiro e</p><p>crucial esforço dos ingleses para estabelecer as fundações de uma</p><p>estrutura duradoura culminou com a Magna Carta, que o Rei João foi</p><p>obrigado a assinar, por seus súditos rebeldes. As provisões desse</p><p>documento extraordinário quase nunca são mencionadas atualmente,</p><p>com exceção da frase: “A ninguém venderemos, a ninguém negaremos, a</p><p>ninguém protelaremos o direito ou a justiça.” Certamente, isso é</p><p>admirável. Define de maneira abstrata o propósito essencial para o qual o</p><p>governo é instituído. Mas, dada simplesmente como uma promessa do</p><p>chefe do executivo, o rei, seria improvável que fosse cumprida, a menos</p><p>que toda a organização fosse projetada para poder funcionar contra a</p><p>vontade do rei. Mas mesmo sem conhecermos bem o contexto da época,</p><p>as características práticas da Carta ainda nos revelam quais eram as</p><p>bases existentes e as forças em movimento. A estrutura política estática</p><p>era feudal. As cidades maiores, tendo obtido suas “liberdades”,</p><p>contribuíam com o tesouro nacional por meio de diversos impostos,</p><p>diretos ou indiretos, e cobrados de maneira um tanto irregular, portanto</p><p>sujeitos a contestações. A Igreja estava numa perigosa posição</p><p>intermediária, comprometida com o feudalismo pelo sistema de</p><p>arrendamento de terras em suas imensas propriedades, enquanto, pela</p><p>doutrina, afirmava e protegia o princípio primário de contrato pelo qual o</p><p>comércio era realizado. O longo circuito de energia da Igreja, sua ligação</p><p>com Roma, era mantido por dinheiro, fundos enviados a Roma; isso não</p><p>poderia ter sido feito de nenhuma outra maneira.</p><p>A autoridade original da monarquia inglesa derivava completamente da</p><p>ordem feudal, que contém seus próprios freios e contrapesos, regulados</p><p>automaticamente pelo circuito limitado de energia; o excedente podia</p><p>apenas ser entregue ao rei em homens-em-armas e seus suprimentos.</p><p>Mas, na época do Rei João, muitas das obrigações de serviço feudal</p><p>consuetudinário haviam sido substituídas por pagamentos em dinheiro.</p><p>Essas obrigações, somadas às receitas de comércio da coroa, davam ao</p><p>rei uma receita sobre a qual os produtores não tinham controle. Não</p><p>podiam impedir o fornecimento na fonte, exceto por resistência à força,</p><p>nem exercer nenhum tipo de controle legal sobre as despesas do rei</p><p>depois que o dinheiro fosse colocado nas mãos dele. Assim, o rei podia</p><p>estabelecer e manter um exército composto de homens desvinculados de</p><p>bases regionais, ou seja, fragmentos de uma massa deslocada. A energia</p><p>A</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 104 -</p><p>cinética da nação era desviada para colocar essa massa em movimento.</p><p>Esta é a fórmula para guerras iniciadas aparentemente pela vontade de</p><p>um rei, executivo ou ditador; a conexão produz o resultado, e não tem</p><p>como funcionar para nenhuma outra finalidade. O Rei João possuía tal</p><p>exército mercenário, parcialmente recrutado no exterior, como indicado</p><p>pela cláusula da Carta que exige que ele “remova do reino todos os</p><p>cavaleiros, besteiros e soldados assalariados estrangeiros, que vieram</p><p>com cavalos e armas molestar o reino”.</p><p>Nas referências históricas, a conquista da Carta é normalmente creditada</p><p>aos “Barões”. Mas, na verdade, o documento foi escrito ou rascunhado</p><p>pelo Arcebispo da Cantuária, Stephen Langton; e os nomes no</p><p>preâmbulo que encabeçam todo o restante são de dignitários da Igreja: os</p><p>Arcebispos da Cantuária e de Dublin, sete bispos, o Senhor dos</p><p>Templários e o núncio apostólico. A primeira cláusula determina que “a</p><p>Igreja da Inglaterra será livre”, incluindo “liberdade de eleições” para os</p><p>cargos clericais. O objetivo era impedir que o rei fizesse nomeações para</p><p>abadias e prebendas, por meio dos quais poderia sugar as receitas da</p><p>Igreja. Evidentemente, ele vinha fazendo isso.</p><p>A seguir, o interesse da aristocracia feudal tinha de ser protegido do</p><p>poder real ou central, fixando-se as obrigações dos feudos militares pela</p><p>taxa tradicional; e atribuindo-se o estabelecimento de contribuições em</p><p>dinheiro e “ajudas” extraordinárias ao “conselho comum do reino”.</p><p>Obrigações ou ajudas similares tomadas pelos lordes de “seus próprios</p><p>homens livres” também foram limitadas. O objetivo geral era impedir a</p><p>expropriação gradual dos pequenos arrendatários pelos senhores das</p><p>terras, e dos lordes pelo rei. Ou seja, para fortalecer as bases regionais</p><p>contra a autoridade central e as bases individuais contra as autoridades</p><p>regionais. Uma vez que essas bases constituem a estrutura estática da</p><p>organização política, o problema foi pelo menos corretamente entendido,</p><p>embora não fosse expresso em nossos termos.</p><p>Mas a tributação não é o único meio pelo qual a energia cinética pode</p><p>demolir a estrutura estática. Como o único meio imaginado para manter</p><p>bases regionais era a sucessão hereditária de terras, uma cláusula da</p><p>Carta impedia que as terras mudassem de dono pela execução de uma</p><p>hipoteca. As terras podiam ser oferecidas como garantia de um</p><p>empréstimo. Mas, no caso de inadimplência, apenas as receitas da terra</p><p>podiam ser seqüestradas para pagamento da dívida. Além disso, se o</p><p>devedor morresse e seu herdeiro fosse menor de idade, os juros da</p><p>hipoteca cessavam enquanto ele não atingisse a maioridade. Obrigações</p><p>feudais, direitos de dote e provisões para os filhos do devedor falecido</p><p>tinham precedência no pagamento de uma dívida financeira, que só</p><p>XI. O Significado da Magna Carta</p><p>- 105 -</p><p>podia ser liquidada “com o resíduo”. Provavelmente, essa limitação de</p><p>dívida tinha um efeito duplo, parcialmente contrário à intenção,</p><p>especialmente com a baixa expectativa de vida daqueles tempos; tendia a</p><p>manter baixo o principal dos empréstimos e, igualmente, a elevar a taxa</p><p>de juros. A grande usura do período deve ser entendida nesse contexto.</p><p>Temos então uma cláusula curiosa, que indica o efeito centrípeto da</p><p>energia cinética jogada no canal político. A Carta contém uma promessa</p><p>do rei de que, se algum homem morrer devendo “aos judeus”, ou</p><p>emprestadores de dinheiro, “e se essa dívida cair em nossas mãos, não</p><p>tomaremos nada exceto o gado contido no contrato”. É óbvio que donos</p><p>de propriedades eram capazes de fazer empréstimos maiores do que</p><p>poderiam pagar convenientemente; e que os emprestadores</p><p>de dinheiro,</p><p>tendo dificuldades em executar dívidas, especialmente contra o</p><p>patrimônio de menores, estavam descontando suas promissórias com o</p><p>rei, que podia então usar a prerrogativa real de execução. A perseguição</p><p>e expulsão dos judeus de diversas nações européias e o prolongado</p><p>ressentimento expresso pelo anti-semitismo têm origem principalmente</p><p>nessa combinação infeliz do poder do executivo e da ação da energia</p><p>cinética (dinheiro), minando a estrutura estática. Como era fácil focalizar</p><p>a raiva popular contra “os judeus” como não-cidadãos, o rei invariável e</p><p>prontamente se voltava contra eles quando era conveniente, para se</p><p>eximir de culpa e saquear sua fortuna. Mas o processo não tinha</p><p>nenhuma relação com a nacionalidade ou raça das pessoas envolvidas;</p><p>ocorreu outras vezes em outros países onde os financistas eram da</p><p>população nativa, e a fúria pública foi, da mesma maneira, facilmente</p><p>levantada contra as finanças, ou contra os financistas como grupo, pela</p><p>mesma razão intrínseca. O verdadeiro remédio para essa condição</p><p>prejudicial é fortalecer as bases regionais e limitar o controle e a</p><p>absorção das finanças nacionais pelo executivo central. É isso que a</p><p>Carta procurou fazer. Com uma sabedoria à frente do seu tempo, não</p><p>propôs a penalização ou expulsão dos “judeus” ou financistas, mas a</p><p>restrição da autoridade da coroa. Podemos dizer que, em qualquer tempo</p><p>em que as finanças estão sob ataque pela autoridade política, isso é um</p><p>sinal infalível de que a autoridade política já está exercendo um poder</p><p>excessivo sobre a vida econômica da nação por meio da manipulação das</p><p>finanças. Isso pode ocorrer por taxação exorbitante, gastos</p><p>descontrolados, empréstimos ilimitados ou depreciação da moeda.</p><p>A última e não menos vital restrição à autoridade executiva (o rei) é de</p><p>peculiar significância, porque mostra que o grupo industrial-comercial</p><p>deve ter tido forte influência na montagem da Magna Carta, embora não</p><p>tenha sido citado como parte do ato formal. Havia um terceiro método</p><p>pelo qual o rei podia encontrar um pretexto para a expropriação de seus</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 106 -</p><p>súditos de qualquer grau; pela cobrança de multas exorbitantes por</p><p>acusações forjadas. Para impedir isso, foi estipulado que as multas</p><p>poderiam ser estabelecidas apenas proporcionalmente ao delito; com a</p><p>ainda mais vital exceção de preservar para o homem livre sua posse de</p><p>terra; para o mercador sua mercadoria; e para o servo suas carroças e</p><p>outros equipamentos. O que significa que nenhum homem podia ser</p><p>privado de seu capital, e assim de seu meio de vida, por uma multa</p><p>imposta por causa de um suposto delito político. Como uma precaução</p><p>sólida, declarou-se que o valor de tais multas não poderia ser fixado pelo</p><p>rei e nem mesmo pelos juízes; mas deveria ser avaliado por um júri de</p><p>pares do acusado, nobres para nobres e “homens honestos da</p><p>vizinhança” para mercadores, homens livres e servos. Além disso, o</p><p>interesse da indústria e do comércio era resguardado por uma cláusula</p><p>tão avançada em relação aos costumes atuais que causa um choque de</p><p>surpresa. “Todos os mercadores terão sua segurança garantida ao</p><p>entrarem na Inglaterra e saírem da Inglaterra e ao permanecerem e</p><p>viajarem pela Inglaterra, por terra ou por água, para comprarem e</p><p>venderem, sem cobranças injustas.” Em tempo de guerra, mercadores</p><p>estrangeiros de nacionalidade inimiga poderiam ser “apreendidos, sem</p><p>danos a seu corpo e a seus bens”, e deveriam ser mantidos em segurança</p><p>se os mercadores ingleses nos países inimigos estivessem “em segurança</p><p>lá”. Finalmente, “será legal para qualquer pessoa, no futuro, sair do reino</p><p>e retornar a ele, em completa segurança, a menos que seja tempo de</p><p>guerra, por um curto espaço”, excetuando-se apenas “prisioneiros e</p><p>criminosos” e inimigos nacionais. Permitia-se que a energia cinética</p><p>percorresse o longo circuito; e a Inglaterra estava no caminho de se</p><p>tornar uma potência mundial.</p><p>No conjunto, é impossível imaginar uma compreensão mais sólida da</p><p>ciência de governar do que aquela que a Magna Carta revela, dado o</p><p>contexto da época. Por cinco séculos, ela foi corretamente vista como</p><p>um guia e um marco da liberdade inglesa. Seus princípios e algumas de</p><p>suas medidas práticas permaneceram em vigor em algum grau de</p><p>maneira permanente, apesar de abusos e das interrupções de tirania</p><p>temporária. Porém, como ela não encerrou realmente a guerra civil que</p><p>fez com que fosse escrita, nem impediu desordens semelhantes e</p><p>prolongadas subseqüentemente, deve ser instrutivo descobrir quais eram</p><p>os aspectos defeituosos. Pode-se dizer que, provavelmente, dadas as</p><p>circunstâncias, nada melhor poderia ter sido criado; se a Magna Carta</p><p>não chegou a ser totalmente colocada em prática na época, enunciou</p><p>alguns axiomas indispensáveis para referência futura. O defeito é a</p><p>ausência do veto de massa-inércia, como uma função nacional, tanto de</p><p>fato como de direito. A aplicação da Carta contra o rei foi atribuída a um</p><p>comitê eletivo de vinte e cinco barões que, “com a comunidade de toda a</p><p>XI. O Significado da Magna Carta</p><p>- 107 -</p><p>terra”, deveria apreender a pessoa, a família, os castelos e as terras do</p><p>rei, porém sem feri-lo (essa última condição seria naturalmente bastante</p><p>difícil em qualquer tempo e poderia ser impossível). Deveriam detê-lo</p><p>até que ele reparasse as injustiças e, então, a aliança seria retomada —</p><p>outra possibilidade duvidosa. Em termos de organização material, o que</p><p>estava errado com esse esquema é que, na ordem feudal estrita, os servos</p><p>e outros trabalhadores da terra constituíam o fator de massa, e a função</p><p>da massa era exercida passivamente, por inércia, por meio da limitação</p><p>inerente que o feudalismo impôs à produção, e que restringia o esforço</p><p>militar feudal aos recursos dos circuitos locais. O freio ao rei era um</p><p>efeito secundário.</p><p>Em resumo, se os barões eram os “pilares do estado” apoiados em bases</p><p>regionais, sua resistência deveria ser estática, para corresponder a sua</p><p>relação com a coroa. Mas isso era impossível quando o rei tinha as</p><p>grandes receitas dos juros mercantis; e uma resistência ativa por parte</p><p>dos nobres seria simplesmente guerra civil. (Pelo mesmo motivo, falta</p><p>de controle legítimo sobre os recursos que forneciam, os comerciantes</p><p>foram à guerra civil contra o rei no século 17.) De toda forma, não se</p><p>pode pensar em nenhuma medida viável na época em que a Magna</p><p>Carta foi concebida, pela qual o fator geral de massa pudesse ter sido</p><p>levado em conta para toda a nação e sua função representada</p><p>legitimamente no governo nacional. Infelizmente, mesmo a emancipação</p><p>imediata dos servos não teria suprido essa deficiência do veto-massa e</p><p>garantido a estabilidade; ao contrário, se eles tivessem simplesmente</p><p>sido libertados da terra, mais homens seriam jogados no exército</p><p>assalariado do rei, para esmagar a nação. Todo o sistema de títulos de</p><p>terra teria de ser alterado, para se instituir a propriedade individual; e</p><p>uma coisa assim não pode ser feita da noite para o dia. O procedimento</p><p>seria impossível, porque teria de ser feito por um decreto político.</p><p>Portanto, mesmo que fosse tentado nominalmente, o resultado seria</p><p>conferir o título das terras ao poder político, não aos indivíduos a quem a</p><p>transferência deveria ser feita. Ou seja, qualquer que fosse o poder capaz</p><p>de tomar a terra de uma pessoa e dá-la para outra, esse poder sempre</p><p>poderia tomar de volta segundo sua vontade e, portanto, teria o real</p><p>arbítrio sobre a terra.</p><p>Assim, os servos não ganharam com a Carta praticamente nada além da</p><p>proteção de suas ferramentas agrícolas contra multas. Mas a situação dos</p><p>nobres, comerciantes e pequenos proprietários rurais foi protegida,</p><p>conforme validado pelos costumes e leis anteriores, e os meios para que</p><p>eles oferecessem resistência foram suficientemente assegurados. Dessa</p><p>maneira, puderam persistir</p><p>na oposição ao poder do rei, até que</p><p>forjassem o instrumento necessário do veto-massa. Esse instrumento</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 108 -</p><p>viria a ser a Câmara dos Comuns, com seu controle sobre impostos e a</p><p>concessão periódica de suprimentos. No decorrer dessa longa luta, a</p><p>servidão foi abolida gradativamente, até desaparecer por completo. O</p><p>dinheiro, energia cinética, acabou com ela.</p><p>Houve um desvio não previsto, um redemoinho lateral da corrente de</p><p>energia, como resultado quase imediato da assinatura da Carta. O Rei</p><p>João havia estado sucessivamente em desacordo com os nobres, a Igreja</p><p>e os comerciantes, até que todos se uniram contra ele com a Carta.</p><p>Então, o rei negociou um acordo com o Papa, pelo qual seria absolvido</p><p>de seu juramento assinado; em troca, fez um voto de fidelidade temporal</p><p>com o Papa como seu senhor feudal, por meio do qual pretendeu</p><p>submeter todo o reino, como se o reino fosse um feudo. Mas não havia</p><p>lei nem princípio do direito, canônico ou civil, que pudesse autorizar tal</p><p>transação. É verdade que dignitários eclesiásticos poderiam ser senhores</p><p>de terras, fosse por suas propriedades ou em virtude de terras da Igreja; e</p><p>havia príncipes-bispos na Europa, a quem os senhores temporais deviam</p><p>fidelidade feudal. E o homem que era Rei da Inglaterra, se também fosse</p><p>senhor de terras na Inglaterra, não tendo um superior feudal, poderia</p><p>teoricamente declarar-se vassalo do Papa. Mas essa submissão só seria</p><p>válida com relação ao seu próprio feudo. O reino era de outra natureza;</p><p>era composto por um grande número de feudos, cujos senhores tinham</p><p>jurado fidelidade ao rei. Esse juramento não poderia ser transferido pelo</p><p>rei para outra pessoa. A natureza de um voto cristão exige que seja feito</p><p>voluntariamente; e a pessoa que o faz deve estar plenamente informada</p><p>de sua extensão e conseqüências; isso decorre da doutrina de livre-</p><p>arbítrio para a salvação. Na hierarquia feudal, entendia-se que a</p><p>fidelidade de um arrendatário a seu senhor seguia a fidelidade de seu</p><p>senhor ao rei; mas nenhum dos súditos de João, nobres ou não, havia</p><p>concordado nem entendido que o rei poderia fazê-los súditos de outro</p><p>superior temporal. Em síntese, João prometeu ceder algo que era</p><p>intransferível. O acordo era tentador não em seus termos nominais</p><p>feudais, mas por causa das receitas em dinheiro. A corrente cinética era</p><p>tão forte que quase destruiu completamente a estrutura da nação,</p><p>ameaçando levantá-la e carregá-la para uma nova situação, como uma</p><p>enxurrada pode carregar uma casa.</p><p>Lamentavelmente, o papa aceitou o acordo e deixou na mão o corajoso</p><p>Arcebispo Langton e todos os outros eminentes clérigos que haviam</p><p>obtido a Carta de João. Eles haviam exercido a função histórica e própria</p><p>da Igreja de resistir ao Estado; e o chefe terreno da Igreja repudiou sua</p><p>ação. Mas nem o rei nem o papa puderam colocar o acordo para</p><p>funcionar; o resultado imediato foi a retomada da guerra civil. É no</p><p>mínimo defensável que a conseqüência tardia foi o cisma, três séculos</p><p>XI. O Significado da Magna Carta</p><p>- 109 -</p><p>depois, da Inglaterra da comunhão católica. Seqüências históricas</p><p>sempre podem ser rastreadas até causas remotas no tempo; e uma traição</p><p>assim nunca é esquecida. Material e moralmente, esse acordo deixou a</p><p>Igreja inglesa numa posição perigosa. Na luta continuada entre o rei, os</p><p>nobres e os comerciantes, qualquer que fosse a parte que vencesse</p><p>temporariamente, a Igreja acabava sempre perdendo um pouco mais a</p><p>cada vez, já que não tinha mais o prestígio de ser a agência mediadora. A</p><p>servidão obteve algumas terras da Igreja, o que fazia com que a Igreja</p><p>parecesse opressiva aos camponeses e não fosse mais identificada com a</p><p>liberdade. O rei ainda tinha receitas financeiras para sustentar seu</p><p>exército particular. Os comerciantes estavam fortes o bastante para lutar</p><p>por si mesmos, e assim representar a sociedade de contrato. O tamanho</p><p>das posses territoriais da Igreja enfraquecia os nobres, porque eximiam</p><p>os ocupantes do serviço militar feudal. Mas, como riqueza, as terras e</p><p>receitas eclesiásticas eram uma tentação óbvia à pilhagem; enquanto</p><p>qualquer partido que se aliasse à Igreja não podia ter certeza de que não</p><p>seria traído. A energia cinética fluindo para o executivo, o rei, primeiro</p><p>destruiu o feudalismo, o poder dos nobres sobre o rei; então, levou o rei</p><p>(Henrique VII) a uma aliança com os comerciantes, identificando seus</p><p>interesses; então se voltou diretamente contra a Igreja como instituição</p><p>detentora de terras, e acabou com as grandes terras das abadias, para</p><p>reconstituir uma nova aristocracia em conjunto com a nova agência de</p><p>controle que passou a funcionar, a Câmara dos Comuns. Finalmente, a</p><p>energia cinética, sob esse controle, voltou-se contra o executivo, o rei, e</p><p>acabou com a prerrogativa real. Mas, nesse processo, uma quantidade</p><p>excessiva de pessoas perdeu sua base na terra.</p><p>Ensinados pela adversidade na guerra civil do século 17 (que foi o auge</p><p>do processo que reduziu por atrito a pesadíssima carga da aristocracia</p><p>com a Guerra das Rosas, e a destruiu com a tirania centralizada de</p><p>Henrique VIII), os nobres ingleses aceitaram grande parte do mesmo</p><p>compromisso que havia sido feito pela ordem aristocrática na República</p><p>Romana. A característica hereditária foi mantida na câmara alta pelas</p><p>bases regionais; mas o veto efetivo estava nos Comuns; e a lei estava</p><p>acima da coroa. Nesse último avanço, o governo secular aprendeu com a</p><p>Igreja como estabelecer um centro, um problema que era insolúvel no</p><p>Império Romano.1 A autoridade (assim definida como infalibilidade) do</p><p>1 A única falha grave na estrutura política do Império Romano tornava essa solução</p><p>impossível. Na Igreja, a diocese era uma subdivisão regional genuína, seu</p><p>representante (o bispo) era sustentado diretamente pelas receitas locais, das quais</p><p>apenas uma pequena parte ia para Roma. Da mesma maneira, os nobres ingleses</p><p>tiravam suas receitas diretamente de suas próprias posses territoriais locais, para</p><p>sustentar funções políticas locais concomitantes. Nenhum deles dependia da</p><p>redistribuição de recursos (energia) a partir do centro. Mas as autoridades provinciais</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 110 -</p><p>Papa existia apenas no concílio ecumênico e dentro de uma esfera</p><p>prescrita (da fé e da moral). Assim, na forma inglesa de governo secular,</p><p>a autoridade do rei existia apenas em conjunto com o Parlamento e</p><p>dentro do âmbito da lei. Quando Carlos I não percebeu essa distinção, foi</p><p>informado dela pela lâmina do machado.</p><p>Num mecanismo, isso é o centro fixo, que é necessário numa ação</p><p>recíproca. O rei não faz nada; é para isso que ele serve, sendo o ponto no</p><p>qual as forças se encontram. A coroa era indispensável, dado o arranjo</p><p>histórico, para a agregação de domínios, colônias e dependências dos</p><p>tipos mais diversos que formavam o Império Britânico, porque impedia</p><p>arranjos políticos entre dois deles, ou ação primária fora do centro.</p><p>Uma vez que não haviam chegado a acordos específicos, não tinham</p><p>oportunidade de discordar. No início do século 19, a estrutura interna da</p><p>Inglaterra era essencialmente a mesma da República Romana, com uma</p><p>aristocracia modificada ajustada a um sistema eletivo; e como as</p><p>colônias anglófonas foram instituídas com uma grande dose de</p><p>autogoverno, o exército não era um fator político direto e ativo no</p><p>mecanismo administrativo.</p><p>Como ocorreu antes com Roma, o mundo aceitava o Império Britânico</p><p>porque ele abria canais mundiais de energia para o comércio em geral.</p><p>Embora o governo repressivo (de status) tenha sido imposto num grau</p><p>considerável na Irlanda, com resultados muito negativos, no conjunto as</p><p>exportações invisíveis da Inglaterra eram o direito e o livre comércio. Na</p><p>prática, enquanto a Inglaterra governava os mares, qualquer homem</p><p>de</p><p>qualquer nação podia ir a qualquer lugar, levando consigo seus bens e</p><p>dinheiro, em segurança.</p><p>Mas uma estrutura tradicional adaptada para acomodar um alto potencial</p><p>de energia está o tempo todo sob uma pressão enorme. A condição do</p><p>trabalhador sem-terra constitui um problema que ainda não foi resolvido.</p><p>Ele é uma partícula jogada no circuito de energia que vai aderir a uma</p><p>corrente magnética, como se fosse limalha de ferro. Então, sempre que a</p><p>indústria diminui a produção, o que significa dizer que a corrente está</p><p>mais fraca, muitas dessas partículas se desgarram. Trabalhadores</p><p>desempregados, agregados apenas pela inércia, tornam-se assim um</p><p>fragmento de massa deslocada dentro da economia. Como tais, são</p><p>do Império Romano eram dependentes dessa maneira; eram pagas pelo centro; e a</p><p>corrente de energia extraída em impostos para Roma as destruiu; não tinham caráter</p><p>representativo regional. Portanto, o ajuste no centro tinha de ser feito, como</p><p>observado, pelo encontro de “forças brutas” — o exército e o potencial de revolta. (N.</p><p>da A.)</p><p>XI. O Significado da Magna Carta</p><p>- 111 -</p><p>jogados contra a estrutura e, naturalmente, a percebem apenas como uma</p><p>obstrução. É igualmente natural, uma vez que são seres conscientes e</p><p>não meros objetos físicos, que exijam que a estrutura seja abolida; ou,</p><p>pelo menos, porta-vozes aparecerão em nome deles e farão essa</p><p>exigência, como no movimento cartista2. Um homem preso num píer de</p><p>pedra provavelmente não vai considerar se o píer é necessário para</p><p>alguma finalidade ou não, ou o que poderia ser colocado em seu lugar.</p><p>Ninguém espera que ele pense no píer nesses termos.</p><p>A grande desventura do trabalhador produtivo que não tem base é que,</p><p>quando ele é descartado pela corrente enfraquecida, cai na mesma</p><p>categoria material do habitualmente improdutivo. O peso acrescentado</p><p>faz com que o grupo improdutivo se sinta inseguro. Seu desconforto</p><p>encontra expressão emocional na raiva contra o elemento produtivo. Na</p><p>esperança de se prender mais firmemente à linha de produção, eles</p><p>exigirão então regulação restritiva à indústria e ao comércio, sob o</p><p>pretexto (como Shaftesbury inocentemente admitiu) de que é pelo</p><p>benefício do trabalhador.</p><p>Mas uma proposição assim requer a lei de status. A peculiaridade da lei</p><p>de status é que ela interrompe e desvia a energia no início do circuito,</p><p>em vez de fazer isso no fim. Faz com que o que não é produtivo seja</p><p>uma carga inicial sobre a produção, antes da manutenção. Se</p><p>examinarmos os vários impostos criados recentemente em economias</p><p>que antes eram livres, sob o pretexto de ajudar os indigentes, sua</p><p>natureza se torna evidente. Eles têm de ser pagos mesmo que o produtor</p><p>vá à falência.</p><p>Esses esquemas de taxação raramente ou nunca se originam nos</p><p>trabalhadores. São propostos por aqueles que retiram sua renda de</p><p>cobranças fixas — de propriedades de morgadio ou de instituições</p><p>mantidas por doações ou por impostos — e que, portanto, desejam ter</p><p>sua relação com a produção declarada como uma regra de governo. Mas</p><p>o trabalhador desempregado quer trabalhar, ser ativo, viver. As</p><p>exigências de lei de status e de abolição da estrutura serão, portanto,</p><p>mais ou menos simultâneas e ambas podem ser incluídas nas mesmas</p><p>medidas legislativas.</p><p>2 Movimento cartista: Foi um movimento da classe trabalhadora que pedia reformas</p><p>políticas na Grã-Bretanha, entre 1838 e 1848. Começou entre artesãos, como</p><p>sapateiros, gráficos e alfaiates, mas logo atraiu homens que propunham greves,</p><p>greves gerais e violência física, como Feargus O’Connor. Estes eram conhecidos como</p><p>cartistas da força física. (N. do T.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 112 -</p><p>Assim, é provável que ambas entrem em vigor aproximadamente ao</p><p>mesmo tempo. O resultado é visível agora. A verdadeira causa do</p><p>fascismo, ou do nazismo, ou do comunismo, é o estado desestruturado3,</p><p>no qual toda a energia da nação, sua linha de produção, é jogada no</p><p>mecanismo repressivo de governo centralizado com lei de status. É uma</p><p>armadilha mortal.</p><p>Os problemas intrínsecos da ordem aristocrática são tão óbvios e</p><p>inerentemente onerosos, que o fato de que ela tinha uma utilidade foi</p><p>quase completamente esquecido; mas ela supria a estrutura, ao manter</p><p>bases regionais. Sempre que uma aristocracia perde essa função</p><p>representativa local, está à beira da dissolução.</p><p>3 As antigas tiranias ou despotismos eram nações que haviam desenvolvido alguma</p><p>indústria sem ter alcançado nenhum tipo de estrutura. Essa falha de sincronismo</p><p>inevitavelmente causa desencontros, violência e miséria. (N. da A.)</p><p>- 113 -</p><p>XII. A Estrutura dos Estados Unidos</p><p>problema que os fundadores dos Estados Unidos enfrentavam</p><p>era como manter, sem uma aristocracia, bases regionais para a</p><p>estrutura política. Não era assim que o problema era enunciado</p><p>na época, porque esta é uma descrição da solução. Eles só conheciam o</p><p>problema. De maneira semelhante, não poderia ser dito que uma pedra</p><p>angular deveria ser projetada para completar a forma do arco, ou que um</p><p>símbolo zero deveria ser criado para ocupar uma posição nos números,</p><p>até que esses dispositivos fossem encontrados; tais enunciados são</p><p>impossíveis até que o problema tenha sido resolvido. Os revolucionários</p><p>americanos enunciaram o axioma dos direitos do indivíduo, a Sociedade</p><p>de Contrato, como fundamento racional e justificação de sua</p><p>independência. Uma aristocracia nativa anularia essa intenção. Um</p><p>vestígio remanescente, na forma de morgadio (que é a raiz da sociedade</p><p>de status), foi abolido em conformidade. Os estados separados já</p><p>existiam, e não haviam cedido suas várias soberanias à frouxa federação</p><p>original. Sua resistência natural como entidades políticas existentes era</p><p>suficiente para derrubar propostas de extinguir sua autonomia, e</p><p>disfarçou os perigos futuros nessa direção. A questão apresentada de</p><p>imediato era como juntá-los em “uma união mais perfeita” — sem</p><p>escorregar para uma democracia. O que eles queriam era uma República.</p><p>A objeção à democracia era clara e fundamentada; mas por razões</p><p>opostas às do Velho Mundo. Era óbvio que a democracia dissolveria a</p><p>ordem européia de sociedade, que era hierárquica, estruturada em</p><p>classificações hereditárias. A premissa da democracia é a igualdade</p><p>natural. A Sociedade de Status afirmava que a origem de sua ordem</p><p>moral era a família, estendida por analogia para a organização política;</p><p>mas essa hipótese ignora o fato primordial de que todas as pessoas, no</p><p>devido tempo, se tornam adultas. Ao fazer essa extensão, o padrão feudal</p><p>se torna fictício; fora dos assuntos domésticos, não correspondia nem</p><p>poderia corresponder aos fatos, fosse nas relações de sangue ou na</p><p>simples superioridade em idade. Essa idéia justificava o domínio de</p><p>poucos sobre muitos, pela convenção arbitrária de descendência de</p><p>famílias “antigas”. Na natureza, uma família não pode ser “mais antiga”</p><p>que outra. A idade é pessoal. Mas a maturidade, a condição de ser</p><p>adulto, é a igualdade por definição. Por essa conclusão, os poucos não</p><p>podem ter o direito hereditário de comandar os muitos.</p><p>Por outro lado, essa é uma ordem matemática aplicada apenas à</p><p>cronologia. Descreve os homens como iguais quando atingem um dado</p><p>O</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 114 -</p><p>lapso de anos, o período presumido do amadurecimento. Fora dessa</p><p>única classificação, não tem significado positivo ou intrínseco.1 Os</p><p>gregos nunca foram capazes de validar sua hipótese para a democracia,</p><p>porque é um conceito materialista e o materialismo não admite a</p><p>igualdade humana, nem qualquer outro princípio de associação</p><p>humana.</p><p>O materialismo considera a humanidade simplesmente como uma</p><p>espécie animal cujo comportamento é baseado e determinado pelo</p><p>instinto e pela oportunidade. Nessas bases, não existem direitos nem</p><p>questões morais; o que quer que aconteça deve acontecer, e o que quer</p><p>que deva acontecer acontece. Mas, mesmo que esse beco sem saída no</p><p>determinismo materialista seja ignorado e a igualdade seja buscada com</p><p>relação aos fenômenos, não a encontraremos nos seres humanos,</p><p>considerando-os como animais “superiores” ou como objetos da</p><p>natureza. O materialismo estrito acaba por negar que o ser humano seja</p><p>uma entidade; o decompõe em uma massa informe de material plásmico</p><p>“condicionado” a várias “respostas” ou “reações”. Em termos</p><p>materialísticos, a psicologia se torna um ramo da fisiologia: o</p><p>behaviorismo. Então, se as respostas (atributos ou qualidades) são</p><p>comparadas, podemos demonstrar que um homem é mais forte que</p><p>outro, ou dotado de alguma capacidade (música, arte, o que for) que</p><p>outro não possui, ou possui em menor grau num dado momento; mas não</p><p>há uma equação geral para os diferentes dons, mesmo que fosse possível</p><p>descobri-los plenamente. A única definição de igualdade por medida é</p><p>aquela de Euclides: coisas que são iguais à mesma coisa são iguais entre</p><p>si. Isso pede um padrão objetivo fixo, um homem perfeitamente típico,</p><p>que encarne quantitativamente todos os atributos humanos em escala e</p><p>proporção absolutas como norma, e com um inimaginável denominador</p><p>comum pelo qual tais qualidades fossem traduzíveis em números de</p><p>pontos que pudessem ser somados. Assim, os homens como são</p><p>poderiam ser avaliados por comparação e receber cada um uma “nota”.</p><p>(A teoria platônica de arquétipos, ou o Ideal, foi uma tentativa fracassada</p><p>de contornar essa dificuldade.)</p><p>1 A igualdade em si mesma não significa nada, não implica em valor algum; dois zeros</p><p>são iguais. A liberdade associa um valor a ela. Existe um argumento que diz que o</p><p>serviço militar obrigatório é correto porque se aplica igualitariamente. Isso justificaria</p><p>a tortura, se ela fosse aplicada igualitariamente. Esse argumento foi levado mais longe</p><p>por um pseudoliberal: “O sistema voluntário parece bom. Na prática, é um horror</p><p>moral… uma vez que ninguém é capaz de dizer, apenas olhando para um jovem, se ele</p><p>está fazendo seu trabalho básico de guerra, ou é casado ou tem filhos ou, talvez, não</p><p>possui boa saúde. O sistema voluntário não é voluntário. Na prática, é a pior forma de</p><p>compulsão… excelentemente projetado para tornar os jovens infelizes.” Então, a</p><p>escravidão não é escravidão, porque o mundo está povoado de imbecis morais, todos</p><p>igualmente apavorados com o olhar casual de um estranho. (N. da A.)</p><p>XII. A Estrutura dos Estados Unidos</p><p>- 115 -</p><p>Mas o axioma americano declarava a igualdade política como um</p><p>corolário do direito inalienável de todos os homens à liberdade. A</p><p>democracia era inadmissível porque ela precisa negar esse direito e</p><p>transformar-se em despotismo, como sempre aconteceu. Isso é feito de</p><p>maneira abstrata, por sua própria contradição lógica; e, na prática,</p><p>porque a lógica é uma afirmação de seqüência. Não são a liberdade e a</p><p>igualdade que são incompatíveis, mas a liberdade e a democracia.</p><p>A diferença é aquela que existe entre um princípio e um processo; a</p><p>confusão surge de uma identificação imprópria entre uma proposição</p><p>negativa e uma positiva. Admite-se erroneamente que, quando a</p><p>reivindicação de poucos comandarem muitos é refutada, a reivindicação</p><p>oposta de muitos comandarem o indivíduo é comprovada. Isso é</p><p>totalmente indefensável, exceto em termos estritamente materialistas; e,</p><p>nesses termos, o direito é completamente descartado. O direito como um</p><p>conceito é necessariamente oposto à força; se não for, a palavra não</p><p>significa nada.</p><p>A liberdade é uma condição verdadeiramente natural; a própria vida só é</p><p>possível para um ser humano em virtude de sua capacidade de ação</p><p>independente. Se uma criatura viva for submetida à restrição absoluta,</p><p>ela morre. A vida humana é de uma ordem que transcende a necessidade</p><p>determinística da física; o homem existe por vontade racional, livre</p><p>arbítrio. Por isso, os termos racionais e naturais da associação humana</p><p>são de acordo voluntário, não de comando.</p><p>Portanto, a organização adequada da sociedade tem de ser formada por</p><p>indivíduos livres. E sua igualdade é postulada sobre o simples fato de</p><p>que as qualidades e atributos de um ser humano, afinal, não estão</p><p>sujeitos a nenhum tipo de medida; um homem equivale a uma entidade</p><p>espiritual.</p><p>Mas a democracia é um termo coletivo; descreve o agregado como um</p><p>todo, e assume que o direito e a autoridade residem no todo, embora</p><p>derivados da condição adulta dos indivíduos que o compõem. Então, é</p><p>necessário supor que, em um momento desconhecido, por uma sanção</p><p>desconhecida e absolutamente sem nenhuma razão, tal direito e</p><p>autoridade foram irrevogavelmente transferidos dos indivíduos para um</p><p>grupo que não é nada além de uma soma numérica, ou partículas</p><p>fundidas numa massa. A autoridade então não está em parte nenhuma.</p><p>Nenhuma parte dela está em nenhuma parte da massa. Assim, a</p><p>democracia se dissolve em puro processo, e mesmo o processo é fictício,</p><p>porque os indivíduos não podem se fundir realmente, embora um grupo</p><p>possa exercer a função de massa para um dado propósito num dado</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 116 -</p><p>momento, por inação: um negativo. O processo fictício que se imagina</p><p>que funcione na democracia pertence a uma ordem física e matemática e</p><p>não-moral, começando com um número arbitrário delimitado pelo acaso</p><p>do local de residência ou ascendência.</p><p>Mas, se a autoridade reside num todo coletivo, é evidente que, com a</p><p>discordância de uma única pessoa, esse todo não existe ou não funciona</p><p>mais; nesse caso, nenhuma ação geral poderia ser tomada legitimamente.</p><p>A premissa básica desapareceu. Na prática, a democracia deve então</p><p>abandonar sua própria suposta entidade de todo coletivo e contar apenas</p><p>com a maioria. Mas a maioria é somente uma parte; assim, o governo da</p><p>maioria implica, de maneira inconcebível, que a parte é maior que o</p><p>todo. Além disso, às vezes não é possível se obter nem mesmo a maioria;</p><p>existe uma pluralidade de cursos de ação; nesse caso, uma minoria deve</p><p>comandar diversas outras minorias que, se somadas, são maiores que ela</p><p>em número ou peso. Essa é a contradição inerente da teoria da</p><p>democracia. Em qualquer situação, a liberdade pessoal é varrida logo no</p><p>início, com a transição teórica das partículas para a massa ou da unidade</p><p>para a soma. A escravidão de uma minoria, ou de “estrangeiros”, é</p><p>bastante consistente com o governo da maioria.2</p><p>Mas, por justiça, se um homem não tem o direito de comandar todos os</p><p>outros — o recurso do despotismo — também não tem qualquer direito</p><p>de comandar nem mesmo um outro homem; e dez homens, ou um</p><p>milhão, também não tem o direito de comandar nem mesmo um único</p><p>outro homem. Dez vezes nada é nada e um milhão de vezes nada é nada.</p><p>A objeção material à democracia é que ela não tem estrutura. Esse</p><p>defeito prático corresponde ao defeito moral. A gravidade determina os</p><p>movimentos de uma agregação de partículas separadas sobre uma dada</p><p>superfície; com cada perturbação, cada partícula é sujeita ao acaso</p><p>descontínuo das probabilidades; se uma quantidade delas se move em</p><p>conjunto pelo mesmo impulso, é uma massa deslocada. A diferença ativa</p><p>de opinião na democracia ou é o descolamento de uma partícula ou é</p><p>uma massa deslocada. Como disse Madison3: “não há remédio para os</p><p>males da facção”. Uma facção é massa fragmentária, com os diversos</p><p>fragmentos sendo jogados uns contra os outros pela força que ocasionou</p><p>a divisão.</p><p>2 O clichê moderno: “Isto é uma democracia, eu</p><p>sou o governo” não faz sentido.</p><p>Mesmo como uma agência, o governo é uma organização formal com pessoal</p><p>autorizado, da qual o cidadão privado não é membro. Quando várias pessoas</p><p>contratam um árbitro, elas evidentemente não são o árbitro, embora este ocupe a</p><p>função pelo acordo delas. (N. da A.)</p><p>3 James Madison, quarto presidente dos Estados Unidos. (N. do T.)</p><p>XII. A Estrutura dos Estados Unidos</p><p>- 117 -</p><p>Em muitas ocasiões, nações diversas apresentaram certas aptidões em</p><p>um grau incomum. Diferentes períodos e lugares ficaram marcados pelo</p><p>florescimento esplêndido de talentos especiais. Tais manifestações são</p><p>creditadas de maneira vaga ao espírito da raça, mas essa frase não resiste</p><p>a uma análise. Os elementos são normalmente misturados na origem, de</p><p>maneira que uma cultura de certa maneira eclética tornou-se homogênea</p><p>pelo desenvolvimento, embora tenha permanecido aberta a idéias novas.</p><p>(Mesmo uma sociedade rigorosamente fechada como o Japão recebeu</p><p>uma inspiração estética da China.) Mas o pré-requisito deve ser a</p><p>existência de condições, ou de um modo de associação, que não</p><p>impeçam esse desenvolvimento de faculdades inatas.</p><p>Se examinamos as obras e pensamentos dos homens que fundaram os</p><p>Estados Unidos, fica evidente que eles tinham um senso estrutural</p><p>altamente desenvolvido, um notável sentimento e entendimento de</p><p>forma, proporção, perspectiva. Eram uma nação de arquitetos e</p><p>pensavam em matemática tão “naturalmente” como em palavras. São</p><p>indicações do contexto intelectual do período, de forma alguma</p><p>acidentais, que George Washington fosse agrimensor (embora de família</p><p>nobre); que Thomas Jefferson, advogado por profissão, fosse</p><p>apaixonadamente interessado em arquitetura; ou que Benjamin Franklin,</p><p>comerciante e artesão sem experiência náutica, fosse dado à</p><p>experimentação científica e não visse nenhum problema em se propor a</p><p>desenvolver sozinho uma fórmula para encontrar uma posição no mar.</p><p>De fato, o livro-texto padrão sobre navegação foi composto por um</p><p>cidadão da Nova Inglaterra, Nathaniel Bowditch, que não teve educação</p><p>formal avançada e não era navegador. Essa predisposição não era de</p><p>modo algum excepcional. Roger Sherman, formado na humilde</p><p>profissão de sapateiro, estudou matemática por conta própria a tal ponto</p><p>que conseguiu calcular um eclipse lunar. Uma ocasião, foi convidado a</p><p>discursar na inauguração de uma ponte.4 Caminhou cuidadosamente por</p><p>sobre a estrutura e disse uma única frase: “Não vejo, mas a ponte está</p><p>firme.” Quando os habitantes da Nova Inglaterra usavam habitualmente</p><p>a expressão “eu calculo”, é o que queriam dizer. Eles calculavam. Roger</p><p>Sherman foi responsável pelo método dual de representação nas casas do</p><p>Congresso — pelo voto popular na Câmara, com deputados distribuídos</p><p>proporcionalmente à população, e por igualdade entre os Estados no</p><p>Senado. Seu senso estrutural era sólido; conseguiu as bases regionais e a</p><p>função de massa-veto de uma vez. Ele sabia o que ficaria firme.</p><p>4 HENDRICK, Burton J. Bulwark of the Republic. Little, Brown & Co. (N. da A.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 118 -</p><p>Para entender porque as bases não podem ser estabelecidas por sufrágio</p><p>popular sem qualificação de propriedade, é necessário apenas tentar um</p><p>equivalente com qualquer outro material físico. Seja a substância em que</p><p>a estrutura deve se apoiar composta de partículas separadas de igual</p><p>tamanho e peso, cada uma com possibilidade de se mover. Obviamente,</p><p>nada pode se firmar sobre ela. Um pilar ou alicerce não pode ser fixado</p><p>num amontoado de munição ou num monte de areia. Deve haver algo</p><p>sólido, auto contido e imóvel. Uma área regional corresponde a essa</p><p>descrição e sustentará uma base permanente de representação política. A</p><p>área deve estar claramente circunscrita e a representação deve pertencer</p><p>a ela e não aos móveis habitantes, que podem vagar por aí e cruzar as</p><p>fronteiras quando quiserem.</p><p>O não entendimento de que uma organização política é composta de</p><p>estrutura e mecanismo, ou seja, uma base fixa sobre a qual agências de</p><p>ação são acopladas, causou inúmeros desastres ao longo dos tempos.</p><p>Esses componentes foram lamentavelmente confundidos na teoria</p><p>feudal, na qual as áreas regionais eram a base estrutural real, mas se</p><p>acreditava que a família cumpriria essa função. Quando se chegou ao</p><p>ponto em que não havia herdeiros para uma família territorial, outra</p><p>sucessão foi estabelecida; mas ainda assim os homens não entenderam a</p><p>questão. Precisando de uma base imóvel, sua solução incrivelmente</p><p>irracional foi prender os homens à terra, esmagando corpos vivos sob o</p><p>peso dos pilares. Mas tudo o que deveria ter sido feito é distribuir a</p><p>representação conforme a área. Para fazer isso, entretanto, a área precisa</p><p>ser estabelecida como uma entidade política, e ser assim representada;</p><p>isso só pode ser feito nomeando-se o representante pela organização</p><p>política local, e não pelo voto popular. Deve haver soberania local</p><p>delimitada na área.</p><p>Por outro lado, a representação direta dos votantes numa agência</p><p>definida de governo é necessária para utilizar a função da massa, ou seja,</p><p>da população agregada. A representação da massa pode ser efetivada</p><p>apenas por delegados em proporção à quantidade de pessoas,</p><p>independentemente das diversas áreas que formam as bases.</p><p>Assim, usando os materiais disponíveis, de acordo com princípios</p><p>arquitetônicos e mecânicos, os fundadores dos Estados Unidos</p><p>resolveram o problema pelo qual o Império Romano fracassou. A</p><p>Constituição dos Estados Unidos é um croqui arquitetônico e mecânico,</p><p>no qual o projeto é traçado em seus princípios mais gerais. São tão</p><p>simples como o projeto de uma fundação, de um arco, de um cilindro de</p><p>pistão ou de uma transmissão excêntrica; e, como esses fundamentos,</p><p>encarnam relações; e são, portanto, capazes de aplicações de infinita</p><p>XII. A Estrutura dos Estados Unidos</p><p>- 119 -</p><p>complexidade. Mas o projeto intrínseco deve ser mantido sempre. Se</p><p>as fundações forem removidas, ou a pedra angular retirada, o arco cairá;</p><p>se a cabeça do cilindro do pistão for queimada, a ação cessará; se for</p><p>solta uma ponta da haste excêntrica, ela só poderá sair batendo em tudo e</p><p>esmagar o mecanismo inteiro. Um maior volume de energia não altera,</p><p>nem pode alterar, as relações necessárias envolvidas. A crença de que</p><p>alteraria é a ilusão fatal da atualidade. Um maior volume de energia</p><p>tornou-se o pretexto para destruir as bases regionais, quando elas</p><p>deveriam ter sido fortalecidas.</p><p>Examinemos a Constituição como ela foi originalmente criada, incluindo</p><p>o Bill of Rights, estritamente de acordo com seus méritos e à luz de seus</p><p>resultados, como um plano arquitetônico e um aparato mecânico de</p><p>outros tempos pode ser estudado hoje por arquitetos e engenheiros</p><p>modernos. Descobriremos que ela é fantástica em sua correção, no</p><p>respeito à relação entre massa e movimento, que funciona por meio da</p><p>associação entre seres humanos; e com relação à liberação e à aplicação</p><p>de energia.</p><p>O Bill of Rights e a cláusula de traição tomados juntos estabelecem o</p><p>indivíduo como o fator dinâmico. O Bill of Rights protege</p><p>completamente do controle político as faculdades e os instrumentos da</p><p>iniciativa e do empreendedorismo. Nenhuma lei pode ser aprovada</p><p>contra a liberdade da mente, seja na religião, no discurso ou na imprensa;</p><p>nem para restringir o intercâmbio de idéias em reunião pacífica; nem</p><p>para impedir a expressão da opinião particular de indivíduos ao governo,</p><p>por petição. Nenhuma lei pode privar o indivíduo do direito de portar</p><p>armas. Soldados não podem ser aquartelados entre os cidadãos em tempo</p><p>de paz; nem mesmo em tempo de guerra, exceto sob regulação civil. Não</p><p>se pode entrar na casa de nenhum homem, exceto com um mandato</p><p>formal, por causa de uma acusação específica autorizada por</p><p>lei e restrita</p><p>ao propósito expresso. Ninguém pode ser julgado a menos que tenha</p><p>sido indiciado por um crime, nem condenado por julgamento secreto ou</p><p>sem testemunhas e advogado. E o mais importante para a manutenção</p><p>desses direitos, a propriedade privada não pode ser tomada para uso</p><p>público sem justa compensação. Finalmente, tentativas da parte do</p><p>governo de anular essas salvaguardas por meios indiretos, fiança</p><p>excessiva, multas excessivas e tortura (punições cruéis e incomuns)</p><p>foram proibidas. (Fiança excessiva só pode significar fiança fixada em</p><p>uma soma que estaria além dos meios de uma pessoa média conseguir.</p><p>Uma multa excessiva seria uma soma maior do que o delito poderia</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 120 -</p><p>envolver; se isso não fosse proibido, uma multa seria uma maneira fácil</p><p>de confiscar a propriedade de qualquer um ao menor pretexto.)5</p><p>A cláusula de traição permanece singular em todo o longo registro de</p><p>instituições políticas. Em primeiro lugar, ela declara que não existe o</p><p>crime de traição em tempos de paz. “Traição contra os Estados Unidos</p><p>consistirá apenas em mobilizar para a guerra contra eles, ou aderir a seus</p><p>inimigos, dando-lhes auxílio ou conforto.” Nada, exceto rebelião armada</p><p>ou unir-se a uma nação inimiga — e nações, por definição, só são</p><p>inimigas quando em guerra —, pode ser traição. Nenhum tipo de</p><p>oposição pacífica ou pessoal ao governo ou a membros do governo pode</p><p>ser classificado como traição. Mesmo o ataque forçado ou resistência de</p><p>uma única pessoa como tal (não tendo conexão ou acordo com outras</p><p>pessoas ou com um governo estrangeiro para o mesmo fim), dificilmente</p><p>poderia ser interpretada como “traição”, uma vez que não constituiria</p><p>“mobilizar para a guerra”. A traição também deve ser “um ato</p><p>manifesto”, não uma mera expressão de opinião; e a condenação não</p><p>pode ser baseada em evidências circunstanciais; são necessárias duas</p><p>testemunhas do ato. Na teoria européia, era traição atacar a pessoa do rei,</p><p>mesmo por um motivo não político. O homem e o cargo eram</p><p>considerados inseparáveis. Um atentado semelhante contra um membro</p><p>de um governo republicano verdadeiro é um delito criminal estritamente</p><p>pessoal. Por essa inédita limitação da traição, o governo ou a</p><p>administração são impedidos de impor silêncio quando cometem</p><p>transgressões. Os meios de represália contra críticas ou exposição não</p><p>são permitidos a seus membros.</p><p>Mas a cláusula de traição também contém uma provisão significativa e</p><p>singular. “Nenhuma condenação por traição causará corrupção de</p><p>sangue; nem confisco, exceto durante a vida da pessoa condenada”. É</p><p>duvidoso se um americano médio de hoje entenderia prontamente o</p><p>significado da expressão “corrupção de sangue”, ou a limitação do</p><p>confisco ao tempo de vida da pessoa indiciada por traição. Mas a</p><p>primeira restrição definiu a culpa como pessoal; e a segunda definiu a</p><p>propriedade privada como pertencente a indivíduos. Ambas contradizem</p><p>a teoria coletivista do grupo como superior ou antecedente ao indivíduo.</p><p>É evidente, pelos comentários espantados de nossa imprensa</p><p>contemporânea, que os americanos se esqueceram completamente do</p><p>fato de que, antes de os Estados Unidos virem a existir, as leis da Europa</p><p>permitiam a punição de todos os membros de uma família pelo crime de</p><p>5 A proibição constitucional a multas excessivas foi completamente ignorada pela</p><p>legislação recente, sem uma palavra de protesto dos cidadãos e sem nenhuma</p><p>tentativa de apelar aos tribunais. (N. da A.)</p><p>XII. A Estrutura dos Estados Unidos</p><p>- 121 -</p><p>qualquer um de seus membros. Uma vez que a família era a unidade</p><p>política, as honras eram herdadas e o privilégio pertencia em algum grau</p><p>a todos os membros da família, parecia justo e lógico que toda a família</p><p>sofresse proporcionalmente pela delinqüência de qualquer membro. A</p><p>pena capital raramente era aplicada a todos, mesmo nos tempos mais</p><p>remotos. Mas penas menos extremas, como o exílio, o aprisionamento</p><p>ou o rebaixamento de status, não eram incomuns por mero parentesco;</p><p>da mesma maneira, a propriedade da família era sujeita ao confisco total</p><p>por um delito do seu chefe, mesmo que ele fugisse da jurisdição ou</p><p>morresse antes de ser julgado. Tudo fazia parte do mesmo pacote, honras</p><p>familiares, propriedade familiar, culpa familiar e confisco familiar. Era</p><p>naturalmente difícil manter a doutrina eclesiástica de propriedade</p><p>privada contra a ameaça do estado, embora a Igreja nunca tenha</p><p>abdicado dessa posição. A propriedade familiar é evidentemente</p><p>propriedade privada, diferenciada da propriedade estatal ou comunal</p><p>como norma; também segundo a doutrina cristã, a culpa é pessoal. Mas,</p><p>com uma acusação de traição, o governante secular podia usar a unidade</p><p>familiar como pretexto para confiscar toda a propriedade da família; e,</p><p>sob a cobertura desse procedimento, recuar ao sistema político do</p><p>feudalismo e alegar que a propriedade não era realmente privada, mas</p><p>mantida sob posse com usufruto da coroa ou do chefe supremo, e que a</p><p>posse deixaria de existir se a lealdade do possuidor não se mantivesse.</p><p>Títulos de terra vinham de tanto tempo atrás e foram usados tão</p><p>freqüentemente e por tanto tempo dessa maneira, emitidos por senhores</p><p>locais ou conquistadores, que a questão era extremamente complexa.</p><p>Por outro lado, durante o período de estabelecimento das colônias</p><p>americanas, a prática de punir severamente famílias pela culpa de um</p><p>membro foi caindo em desuso, especialmente na Inglaterra, de onde foi</p><p>desaparecendo junto com a servidão. Mas, mesmo na Inglaterra, a</p><p>traição podia ser imputada por uma ampla gama de ações, ou por meras</p><p>palavras; e o confisco podia ser feito após a morte.</p><p>Mas a Constituição Americana dizia, por meio de sua cláusula de</p><p>traição, que a propriedade privada pertence aos indivíduos por título</p><p>irrevogável. Se uma pessoa indiciada ou condenada por traição fugisse,</p><p>suas propriedades poderiam ser seqüestradas (em confisco) enquanto ela</p><p>estivesse viva como fugitiva da justiça; mas, no momento de sua morte,</p><p>o título passaria desimpedido para seu herdeiro legal. Nenhum membro</p><p>de sua família poderia ser punido por mero parentesco; ninguém pode</p><p>ser considerado culpado pelo feito de outra pessoa. Esse é o significado</p><p>da proibição da “corrupção de sangue”. Antes do ressurgimento do</p><p>comunismo, até a Rússia havia em grande medida adotado a prática</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 122 -</p><p>americana; mas foi a América quem primeiro declarou o princípio como</p><p>absoluto.</p><p>Esse dispositivo também impedia o Estado de possuir um poder invisível</p><p>e inespecífico sobre um acusado por meio de ameaças contra sua família.</p><p>Um homem íntegro pode enfrentar sua própria morte com serenidade,</p><p>mas ceder ante o prospecto de tortura ou mesmo de penúria para sua</p><p>mulher, seus filhos, seus pais ou irmãos. É vergonhoso para nossas</p><p>instituições educacionais e para a inteligência política dos americanos</p><p>que, durante a discussão dos famigerados “processos de Moscou”, não</p><p>tenha havido um comentário indicando conhecimento da salvaguarda</p><p>constitucional americana contra julgamentos daquele tipo, e da base</p><p>daquela salvaguarda na propriedade privada individual; nem mesmo da</p><p>teoria política coletivista que admitia o procedimento russo até que o</p><p>exemplo dos Estados Unidos fizesse com que este caísse em desuso, por</p><p>vergonha.</p><p>Para os americanos e pelo axioma moral do seu sistema político,</p><p>julgamentos como os de Moscou são uma perversão abominável da</p><p>justiça. Mas, com o retorno do coletivismo, a imputação legal de culpa</p><p>coletiva também retorna inevitavelmente.</p><p>Todas essas provisões do Bill of Rights e da Constituição são de extrema</p><p>importância para o fluxo de energia; o fato que elas expressam é a causa</p><p>da expansão sem precedentes dos Estados Unidos em extensão territorial</p><p>no tempo dado, por ter provocado a ainda mais extraordinária extensão</p><p>do campo da ciência física e da invenção mecânica. Em cento e</p><p>cinqüenta anos, os homens subitamente ampliaram e corrigiram seu</p><p>conhecimento de princípios científicos que tinham levado muitos</p><p>milhares de anos para serem apenas descobertos; e desenvolveram meios</p><p>de aplicação que possibilitaram um simultâneo crescimento populacional</p><p>e uma elevação do padrão de bem-estar além dos sonhos da humanidade</p><p>no passado. Nada desse tipo jamais havia ocorrido no mundo antes; a</p><p>história não revela nada comparável aos Estados Unidos como nação.</p><p>Pode-se argumentar que as contribuições ao conhecimento científico e à</p><p>invenção prática não se originaram apenas nos Estados Unidos. Mas foi</p><p>a existência dos Estados Unidos e a conseqüente demonstração e difusão</p><p>da liberdade que possibilitaram as conquistas da ciência na Europa.</p><p>O que aconteceu foi que o dínamo da energia usado na associação</p><p>humana foi encontrado. Está no indivíduo. E foi protegido da</p><p>interferência política por uma reserva formal, junto com os meios e</p><p>materiais pelos quais pode organizar o grande circuito mundial de</p><p>energia. O dínamo é a mente, a inteligência criativa, que nosso Bill of</p><p>XII. A Estrutura dos Estados Unidos</p><p>- 123 -</p><p>Rights e nossa a cláusula de traição declararam livres de controle</p><p>político. Os meios materiais sobre os quais a inteligência se lança pela</p><p>iniciativa é a propriedade privada. Nada mais serve.</p><p>Da mesma maneira, a estrutura de governo foi estabelecida sobre uma</p><p>base duradoura, sem prender os homens embaixo da fundação. Áreas</p><p>regionais foram delimitadas e os instrumentos de ação política foram</p><p>vinculados a elas, sem que a lei confinasse ninguém em uma dada área;</p><p>sem que o poder de governar tais instrumentos fosse confiado a pessoas</p><p>por direito hereditário; e sem que tal poder fosse tornado ilimitado. Os</p><p>instrumentos foram devidamente definidos como agências. Pertenciam</p><p>aos diversos estados como tais. Esse efeito foi garantido pelo método de</p><p>nomeação ao Senado. Os senadores eram escolhidos pelos corpos</p><p>legislativos dos estados; ou seja, seu cargo era vinculado ao estado,</p><p>sendo derivado do estado; diferentemente dos governadores provinciais</p><p>romanos que eram nomeados pela autoridade central. O impulso era</p><p>contra o centro, em vez de ser a partir do centro; portanto, se opunha ao</p><p>peso da superestrutura. Por outro lado, o senador não tinha nenhuma</p><p>função política dentro do estado que representava. Assim, o cargo não</p><p>teria nenhuma tendência intrínseca de separatismo. Tinha efeito apenas</p><p>no centro. As pressões eram duplamente equalizadas. Os diversos</p><p>estados também preservavam sua integridade política ao manterem a</p><p>autoridade primária de qualificar eleitores para as eleições federais.6 Em</p><p>todo caso, a cidadania, como condição geral, era um atributo federal; ou</p><p>seja, um cidadão de qualquer estado tinha direitos de cidadania em todos</p><p>os outros estados. Isso dava coesão às partículas para formar uma nação,</p><p>sem prejuízo às bases regionais. Os estados eram limitados a uma “forma</p><p>republicana de governo” pela autoridade federal.</p><p>Os cidadãos, pela instituição da propriedade privada, tinham resistência</p><p>contra todas as agências de governo. A propriedade privada é a base</p><p>permanente do cidadão; não existe outra. O estado tinha de ser uma área</p><p>regional com representantes. Para preservar sua função básica, também</p><p>era necessário que os cidadãos tivessem voto direto para o veto de massa</p><p>inercial; por isso as duas casas legislativas, o Senado para os Estados e a</p><p>Câmara dos Deputados para os cidadãos como indivíduos. A</p><p>possibilidade de legisladores usarem seus cargos para uma tomada direta</p><p>de fundos públicos era evitada ao proibi-los dessa ação com respeito ao</p><p>mandato corrente.</p><p>6 A proposta de abolir, por lei federal, o imposto de capitação (em inglês, poll tax)</p><p>determinado por alguns estados do sul como qualificação do direito de voto é</p><p>absolutamente inconstitucional. (N. da A.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 124 -</p><p>O Senado, tendo o mais longo dos mandatos e representando os estados</p><p>como entidades permanentes, tinha o controle das relações exteriores</p><p>pela ratificação, com as negociações atribuídas ao executivo. O</p><p>executivo não tinha nenhum meio específico de propor legislação</p><p>doméstica e apenas um veto provisório ou protelatório.</p><p>A Câmara dos Deputados, eleita por voto direto dos cidadãos, tinha o</p><p>poder de expressar a propriedade e a função da massa, o veto final pela</p><p>negação, tendo a atribuição da iniciativa de estabelecer tributos e</p><p>conceder suprimentos. Todos os suprimentos deveriam ser concedidos</p><p>apenas em quantias determinadas para objetivos designados; qualquer</p><p>concessão deveria, portanto, ser usada no tempo especificado e teria de</p><p>ser concedida novamente. Se essa concessão não é dada, o veto da</p><p>inércia está em vigor. É necessário apenas não fazer nada.</p><p>Para impedir que os estados maiores, mais ricos ou mais populosos</p><p>jogassem seu peso contra os estados menores, sua representação como</p><p>estados era igual. Para impedir que os estados menores ou mais pobres</p><p>se alinhassem e espoliassem os estados mais opulentos — jogando seu</p><p>peso conjunto — a representação popular era proporcional ao número de</p><p>cidadãos. Para impedir que a autoridade central extorquisse os estados</p><p>mais ricos para comprar os mais pobres, determinava-se que o imposto</p><p>federal sobre as pessoas podia ser arrecadado apenas em proporção à</p><p>população; enquanto tributos sobre bens (tarifas alfandegárias, impostos</p><p>sobre o consumo, taxas) deveriam ser uniformes em todo o país. Ou seja,</p><p>não poderia haver favorecimento de nenhum estado com respeito a</p><p>manufaturas, taxas portuárias, etc. Isso impedia os monopólios políticos</p><p>que eram a ruína da Europa. E os estados não podiam, de maneira</p><p>nenhuma, estabelecer tarifas de fronteira ou portuárias.</p><p>Os diversos estados foram proibidos de cunhar moeda ou emitir papel-</p><p>moeda (“bills of credit”), ou de fazer qualquer coisa, exceto ouro ou</p><p>prata, moeda corrente. Portanto, a linha de transmissão de energia não</p><p>poderia ser cortada ou desviada pela agência política de nenhum estado.</p><p>E o governo federal não foi autorizado a emitir papel-moeda. Embora</p><p>ele tenha feito e faça isso, a autoridade não está na Constituição. É</p><p>expressamente estabelecido pela Constituição que os poderes que não</p><p>foram delegados à autoridade federal não podem ser exercidos por ela.</p><p>Também não foi concedido ao governo federal o poder de cancelar</p><p>contratos, embora ele tenha feito isso recentemente; mas os estados</p><p>foram proibidos expressamente.</p><p>O Judiciário federal deveria ser nomeado vitaliciamente (sujeito a</p><p>impeachment por abuso do cargo) para ser um freio aos ramos</p><p>XII. A Estrutura dos Estados Unidos</p><p>- 125 -</p><p>Legislativo e Executivo. A questão infindavelmente debatida de “revisão</p><p>judicial” é mera estultificação; a jurisdição da Suprema Corte é</p><p>especificada apenas sobre casos “levantados sob esta Constituição, as</p><p>leis dos Estados Unidos e os tratados feitos sob a autoridade delas”,</p><p>enquanto “esta Constituição, e as leis dos Estados Unidos que devem ser</p><p>criadas em conseqüência dela, serão a lei suprema da terra”. Nenhum</p><p>sofisma pode fugir da proposição de que a lei suprema deve governar o</p><p>veredito; é isso que supremo significa. Mas, depois de discutir por cem</p><p>anos contra essa função adequada e indispensável da revisão judicial, os</p><p>pseudoliberais inventaram uma perversão hipotética particularmente</p><p>viciosa dela. O juiz Frankfurter a expressou, escrevendo sobre “os</p><p>perigos e dificuldades inerentes no poder de rever a legislação. Porque é</p><p>uma tarefa sutil decidir, não se a legislação é sábia, mas se os</p><p>legisladores estavam certos em acreditar que ela era sábia.” A tarefa da</p><p>revisão judicial não é decidir</p><p>embarcação púnica encalhada e a usaram</p><p>como modelo para construir uma frota, enquanto treinavam as</p><p>tripulações necessárias em terra, usando bancadas estacionárias dotadas</p><p>de remos. Todos os seus navios foram “construídos, tripulados e</p><p>comandados por romanos”. Quando feitos ao mar, seus verdes pilotos</p><p>ficavam “impotentes sempre que uma tempestade surgia”. É difícil</p><p>conter a sugestão de meu espírito leviano, de que eles ficaram mareados.</p><p>Ignorantes de manobras navais e sem oportunidade de aprender, os</p><p>romanos simplesmente transformavam um encontro no mar na coisa</p><p>mais parecida com uma batalha em terra que conseguiam, e lutavam do</p><p>seu jeito. Tendo equipado seus barcos com gruas e ganchos,</p><p>manobravam para ficar ao lado das galeras cartaginesas, prendiam um</p><p>navio no outro e subiam a bordo. Assim, em seu primeiro combate</p><p>importante, venceram uma frota cartaginesa que tinha trinta navios a</p><p>mais que a esquadra romana. Novamente, em Drepana, os romanos</p><p>estavam aportados quando a frota cartaginesa se aproximou. Caía uma</p><p>tempestade em terra, o que fazia com que os cartagineses tirassem o</p><p>vento dos romanos. Indiferentes a essa desvantagem, os romanos</p><p>atravessaram o curso do inimigo, tomaram setenta navios cartagineses e</p><p>afundaram outros cinqüenta. Entre as vitórias, os romanos geralmente</p><p>naufragavam suas próprias frotas por inexperiência marítima.7 Depois de</p><p>cada perda, punham-se a trabalhar e lançavam novos navios em</p><p>substituição. As despesas pesaram grandemente sobre Roma; Cartago</p><p>tinha vasta vantagem financeira. Nem assim Roma recorreu ao</p><p>absolutismo de estado em face da emergência; não houve confisco de</p><p>meios privados. Quando o tesouro público romano foi exaurido e “os</p><p>impostos não podiam mais ser elevados”, os cidadãos mais ricos</p><p>contribuíram para montar uma nova marinha, com a promessa de que</p><p>seriam reembolsados se vencessem. Venceram.</p><p>Os cartagineses ficaram tão desconcertados por esse desempenho</p><p>inexplicável que chegaram a considerar a idéia de fundar um império em</p><p>terra, imitando Roma. Os recursos estavam à mão. Mas eles não sabiam</p><p>como fazer.</p><p>Também deve ser observado que, embora a disciplina militar romana</p><p>fosse estrita e a consideração pelos militares fosse proporcional a sua</p><p>7 Em 255 AC, uma frota romana recém-construída derrotou a principal frota púnica</p><p>“com facilidade”, mas, na viagem de volta para casa, encontrou uma tempestade</p><p>perto da Sicília. De 364 navios, apenas 80 se salvaram. Calcula-se que mais de 90.000</p><p>pessoas pereceram, na maior parte homens livres; um desastre maior que a perda da</p><p>Invencível Armada pela Espanha. Foi a mais terrível calamidade marítima conhecida</p><p>até então e esse recorde se mantém até hoje. (N. da A.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 12 -</p><p>conduta em campo, um general romano ou seus soldados tinham muito</p><p>menos medo de punições de seu próprio governo que os comandantes</p><p>púnicos. Por perder uma campanha, os cartagineses crucificaram um de</p><p>seus almirantes.</p><p>Com relação a bases navais, Roma começou sem nenhuma. Cartago foi a</p><p>primeira grande nação a ocupar Gibraltar, o que certamente era a chave</p><p>para o futuro naquele tempo. Obviamente, seria fácil adquirir essa</p><p>posição de seus habitantes primitivos. Mas, desde então, Gibraltar</p><p>pertenceu a um império após outro. Sendo a fortaleza pronta para</p><p>defender a Península Ibérica, voltou ao domínio da Espanha em seu</p><p>breve período de glória. O enigma é que foi finalmente perdida para a</p><p>Inglaterra, e isso somente ocorreu depois que a Inglaterra reduziu a</p><p>Espanha a um papel secundário por meio de operações navais. A derrota</p><p>da Invencível Armada é normalmente explicada como resultado de</p><p>gerenciamento inadequado, equipamento ruim e, sobretudo, mau tempo.</p><p>Mas é difícil de acreditar que faltassem marinheiros à Espanha, da raça</p><p>que conquistou todo o oceano ocidental e quase conseguiu mantê-lo. A</p><p>frota inglesa era improvisada, em grande parte composta de piratas;</p><p>havia falta de provisões e de pólvora. Finalmente, quando a Armada foi</p><p>dispersa e destruída, os navios ingleses não estavam em doca seca;</p><p>tiveram de resistir à mesma tempestade. A Espanha sem dúvida teve</p><p>poder naval, enquanto ele durou. A menos que se concorde com o</p><p>absurdo de que o poder naval não consiste em navios, marinheiros,</p><p>portos e oportunidade comercial, ou seja, todos os seus atributos</p><p>tangíveis, o fato é que o poder naval fracassou.</p><p>Por outro lado, se o segredo do desenvolvimento e longevidade do</p><p>domínio romano está na aptidão militar, o regime conquistador de</p><p>Napoleão deveria ter deitado raízes e florescido pela mesma duração.</p><p>Por uma série de ações que figuram entre os clássicos da arte da guerra,</p><p>Napoleão colocou todo o continente europeu sob sua influência. Seus</p><p>exércitos invasores foram tacitamente bem recebidos por parte influente</p><p>dos povos conquistados, que já estavam descontentes com o velho</p><p>regime e imaginavam uma nova ordem. Reis caíram como pinos de</p><p>boliche; a organização de caserna foi exaltada como o instrumento de</p><p>unidade que prenunciaria um milênio de eficiência; a América recebeu</p><p>um sortimento incongruente de exilados. Napoleão surfou na crista da</p><p>onda do futuro. Entretanto, a aparência resplandecente de um Império</p><p>erigido sobre baionetas esfacelou-se em nada depois de uma grande</p><p>derrota na longínqua Rússia. Roma perdeu mais de uma grande batalha e</p><p>reviveu com renovado vigor. O desastre de Napoleão em Moscou, com</p><p>as conseqüências que teve, é atribuído ao frio e à neve. Mas os russos</p><p>não passaram o inverno na Riviera. Os meios militares fracassaram.</p><p>I. O Ciclo de Energia no Mundo Clássico</p><p>- 13 -</p><p>Mais uma vez, se o domínio romano se originou de sua ordem social</p><p>antecedente, os cidadãos de Roma, fossem aristocratas ou plebeus,</p><p>orgulhavam-se de serem simples fazendeiros, alternando entre a espada e</p><p>a pá. Voltando para casa depois das guerras, Cincinato não pediu nada</p><p>além de voltar a arar sua terra. A mais honrosa recompensa que pôde ser</p><p>imaginada por Horácio, aquele que defendeu a ponte,8 foi do mesmo</p><p>tipo:</p><p>They gave him of the corn-land,</p><p>That was of public right,</p><p>As much as two strong oxen</p><p>Could plough from morn till night.9</p><p>Sem dúvida, estas são versões românticas, se não forem puro mito. O</p><p>que expressam é a tradição, com uma origem real por trás. A descrição,</p><p>maquiando inclusive uma cruel fundação na escravidão, se adequa</p><p>igualmente à cultura agrária defendida pela Confederação Sulista.10</p><p>Infelizmente, essas são precisamente as razões aduzidas para indicar</p><p>porque o Sul não teve chance, em nossa Guerra Civil, contra o Norte</p><p>mecanizado e mercantil, reforçado por suas empresas de navegação.</p><p>Acredita-se que Cartago enfraqueceu sua virtude marcial devido ao uso</p><p>de tropas estrangeiras. Em seguida, Roma governou por séculos</p><p>enquanto as famosas legiões eram recrutadas em parte das mesmas</p><p>fontes.</p><p>Na estratégia principal, Cartago tinha uma percepção precisa dos pontos</p><p>vitais. Ao perder a Sicília, foi posta na defensiva no Mediterrâneo</p><p>oriental, espremida entre o poder naval grego e o poder terreno romano.</p><p>A jogada de Aníbal através da Espanha foi um ataque evidentemente</p><p>lógico pelo flanco, e não um expediente desesperado. Ele invadiu o</p><p>8 Públio Horácio Cocles, militar romano que, segundo a lenda, impediu sozinho que</p><p>um exército inimigo invadisse Roma pela Ponte Sublício. (N. do T.)</p><p>9 “Deram a ele milharais que eram de direito público. De tal tamanho que dois bois</p><p>fortes levariam da manhã até a noite para arar.” Do poema Horatius, escrito por Lord</p><p>Thomas Babington Macaulay em 1842. (N. do T.)</p><p>10 Analisando friamente, a pequena nobreza rural romana parece ter sido composta</p><p>também por agiotas, ou muitos deles criariam problemas sem fim, emprestando por</p><p>hipotecas e escravizando credores que não</p><p>se a legislação é sábia ou se os legisladores</p><p>estavam certos em acreditar que ela é sábia. A revisão judicial limita-se a</p><p>determinar se uma dada lei contraria a Constituição, a lei suprema; e ela</p><p>o faz se uma legislatura ultrapassa seu poder constitucional ao aprovar a</p><p>lei em questão — a legislatura não tem nenhuma autoridade fora da</p><p>Constituição.</p><p>A determinação constitucional para a defesa armada era coerente com a</p><p>estrutura política. A autoridade original do governo federal era suficiente</p><p>para alistar e fornecer um exército permanente, sem referência direta aos</p><p>diversos estados; mas os suprimentos só poderiam ser apropriados por</p><p>um período de dois anos. Isso tenderia a manter o exército profissional</p><p>num tamanho razoável. Como o método original era o alistamento</p><p>voluntário, obviamente a intenção era essa. Por outro lado, o direito</p><p>primário de portar armas e formar companhias milicianas era reservado</p><p>aos cidadãos; mas, se tais corpos milicianos devessem servir numa</p><p>guerra declarada, seus oficiais deveriam ser nomeados pelos estados;</p><p>depois disso eles estariam sujeitos à convocação pelo governo federal.</p><p>Por toda parte, a iniciativa permanecia com o indivíduo, como homem</p><p>livre; mas a ação formal repousava sobre as autoridades políticas, que</p><p>possuíam o poder inibitório formal. Embora uma guerra defensiva seja</p><p>justa e necessária, a guerra envolve destruição; por isso, o poder</p><p>inibitório deve regulá-la. Mas a ação criativa deve ser livre.</p><p>Por sua percepção dessas relações morais e por encarná-las</p><p>estruturalmente, a Constituição dos Estados Unidos foi descrita, de</p><p>maneira justa, como o mais notável documento político criado de uma</p><p>vez pela mente do homem.</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 126 -</p><p>- 127 -</p><p>XIII. Escravidão, o Defeito na Estrutura</p><p>s três grandes idéias foram reunidas afinal sem obstáculos; a</p><p>alma individual e imortal, exercendo o autogoverno pela lei e</p><p>livre para buscar o conhecimento por meio da razão. Depois de</p><p>dois mil anos, os recursos da ciência foram liberados para a aplicação</p><p>produtiva. A Declaração da Independência e a Constituição foram os</p><p>instrumentos temporais desse evento.</p><p>Mas, em seu projeto original, a Constituição teve de admitir um defeito</p><p>primordial, uma contradição irreconciliável. A escravidão era uma</p><p>instituição existente. Qualquer que fosse a forma de governo adotada</p><p>pela União, ela devia extinguir a escravidão ab initio (como um fato</p><p>oposto à ordem moral do universo) ou tolerá-la, desviando-se dessa</p><p>declaração axiomática. Aqui, a forma federal, que é indispensável para a</p><p>estabilidade, infelizmente admitiu um expediente ambíguo. Foi possível,</p><p>temporariamente, deixar a escravidão para a jurisdição estadual. Sem</p><p>dúvida, a opinião dos donos de escravos estava lastreada em sua posse</p><p>iníqua; mas havia também um pretexto plausível para o adiamento.</p><p>Havia um temor sincero de que os negros, muitos recém-trazidos da</p><p>África, pudessem constituir um ônus e um perigo se libertados</p><p>imediatamente. Não havia então a questão do voto, resolvida pela</p><p>qualificação de propriedade. Apenas a dificuldade de assimilar à vida</p><p>moderna, fora de uma relação servil, pessoas trazidas das selvas.</p><p>Ninguém sabia exatamente como isso poderia ser feito, se por educação</p><p>gradual dos negros ou se eles deveriam ser mandados de volta para a</p><p>África. Enquanto isso, como o governo federal deve controlar as</p><p>fronteiras externas, tinha autoridade para proibir a importação de</p><p>escravos do exterior, e essa intenção foi indicada indiretamente. O</p><p>sentimento implícito era contrário à escravidão. Por outro lado, a</p><p>escravidão fez com que fosse incluída uma cláusula na Constituição</p><p>provendo a extradição de escravos que fugissem cruzando fronteiras</p><p>estaduais. Que o assunto era embaraçoso, observa-se pela linguagem; as</p><p>palavras escravo e escravidão não são usadas. A expressão é uma</p><p>“pessoa mantida em serviço ou trabalho”. (Na época, a descrição</p><p>incluiria aprendizes brancos livres durante o período de aprendizado.)</p><p>Escravos então eram pessoas, pelo menos; e também eram contados</p><p>como pessoas na distribuição proporcional para a Câmara dos</p><p>Deputados. Mas permanecia o fato inegável de que eram escravos; e a</p><p>Constituição não os declarava livres por direito.</p><p>A</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 128 -</p><p>O dano permanente infligido pela inclusão da escravidão é que ela</p><p>corrompeu o princípio sobre qual a nova nação se criou. A emancipação</p><p>pelos senhores de escravos como um ato de generosidade ou pelos</p><p>estados como um ato de autoridade não poderia jamais equivaler a</p><p>iniciar com a liberdade como o direito universal do qual a autoridade se</p><p>origina.</p><p>Além disso, a continuidade da escravidão tornava impossível que o Bill</p><p>of Rights limitasse os governos estaduais como fazia com o governo</p><p>federal. A existência da escravidão necessariamente prejudica o</p><p>exercício dos direitos dos homens livres. Se o poder do estado faz de um</p><p>homem um escravo, evidentemente ele o priva de sua liberdade de</p><p>expressão e reunião, de segurança pessoal e do direito à propriedade;</p><p>portanto, fica difícil proibir que esses abusos sejam cometidos contra</p><p>qualquer pessoa. A suposta diferença entre “direitos humanos” e</p><p>“direitos de propriedade” é uma confusão verbal; direitos de propriedade</p><p>são direitos humanos. A questão verdadeira é entre o individual e o</p><p>coletivo. Os únicos argumentos apresentados para defender a escravidão</p><p>apelam para o coletivo, seja raça ou estado, para autoridade e coação; ao</p><p>passo que, se os direitos são inerentes ao indivíduo, nenhum homem</p><p>pode ser propriedade e todos os homens devem ter o direito de ter</p><p>propriedade.</p><p>Esse defeito moral causou um defeito estrutural, como não poderia</p><p>deixar de acontecer. A lógica foi invalidada, de maneira que qualquer</p><p>discussão era menos que uma futilidade. Os estados escravagistas</p><p>alegavam que sua soberania de estados era suficiente para fazer de um</p><p>homem um escravo. Então, a mesma soberania num estado livre deveria</p><p>libertar qualquer pessoa que cruzasse a fronteira. Mas a cláusula de</p><p>extradição negava esse atributo; porque a extradição de um escravo</p><p>como tal é completamente diferente da extradição de um criminoso. O</p><p>criminoso não se torna menos culpado depois que cruza a fronteira, ao</p><p>passo que se presume que o escravo se torna livre; ao devolvê-lo, o</p><p>estado livre é obrigado a violar sua própria lei básica.1 É verdade que os</p><p>estados livres aceitaram a condição injusta, para começo de conversa; a</p><p>união parecia tão desejável que eles capitularam sobre esse ponto. Os</p><p>estados escravagistas podiam dizer que os estados livres poderiam ter e</p><p>poderiam extraditar escravos se quisessem. Porém, todos os estados</p><p>tinham lutado por liberdade. Ambos os lados comprometeram</p><p>1 Nações civilizadas não permitem a extradição de criminosos políticos, porque o</p><p>delito é estritamente local; um estado que entrega um refugiado político está assim</p><p>atuando como agente do outro estado, em detrimento de sua própria soberania; ao</p><p>passo que, ao extraditar um criminoso, atua como agente da justiça. (N. da A.)</p><p>XIII. Escravidão, o Defeito na Estrutura</p><p>- 129 -</p><p>irreversivelmente sua posição moral. Se os estados livres diziam que a</p><p>escravidão era errada, continuariam a encorajá-la ou denunciariam a</p><p>Constituição? Mas os estados escravagistas deviam amparar seu pleito</p><p>na Constituição e a Constituição estava aberta para revisões. Se uma</p><p>revisão chegasse a acontecer, eles aceitariam a mudança?</p><p>O conflito ficou suspenso, enquanto permanecia a esperança de que a</p><p>escravidão fosse gradualmente extinta. Mesmo assim, desde o início</p><p>havia uma apreensão sobre a permanência da União. Isso ficou evidente</p><p>no processo contra a nebulosa conspiração Burr-Blennerhasset2, que foi</p><p>uma energia tão forte na direção oeste que ninguém</p><p>sabia exatamente</p><p>qual era a intenção, nem mesmo os supostos conspiradores. O impulso</p><p>continuaria até alcançar o Rio Grande e a Costa do Pacífico, chegar a</p><p>Puget Sound e saltar para o Alasca. E a premonição estava certa; rasgou</p><p>a nação no meio.</p><p>Mas onde estava o verdadeiro ponto fraco? A menos que a questão seja</p><p>colocada nos termos relevantes, não pode existir resposta. Embora a</p><p>Guerra Civil tenha ocorrido há mais de setenta anos, a controvérsia</p><p>continua aberta; o rompimento se deu por causa da escravidão, dos</p><p>direitos dos estados ou da clivagem entre uma economia agrária e outra</p><p>industrial? Os estados exigiram soberania em excesso? Se exigiriam, foi</p><p>por causa da escravidão?</p><p>A divisão dos poderes soberanos entre um governo federal e seus estados</p><p>componentes não é uma questão simples; o passado está cheio dos</p><p>destroços de ligas e federações. A questão completa da soberania é</p><p>complexa demais. Na prática, sempre existe uma margem de discussão.</p><p>A soberania territorial é delimitada por fronteiras. Essa é a virtude do</p><p>nacionalismo; é uma restrição espacial do poder político, uma última</p><p>salvaguarda para o indivíduo, uma chance de fugir da tirania local. O</p><p>avanço do “internacionalismo” sempre implica num correspondente</p><p>prejuízo à liberdade pessoal; mas isso é feito tirando-se a soberania de</p><p>toda parte. A soberania se sustenta na nação; seus poderes são exercidos</p><p>pelo governo. De ordinário, todos os poderes estipulados são</p><p>considerados força num governo; e a ausência de qualquer poder no</p><p>governo é considerada um grau de fraqueza. A verdade é que poderes</p><p>que são essencialmente impróprios, porque contrários à ordem moral do</p><p>universo, são fraquezas; e, da mesma forma, poderes concedidos a uma</p><p>2 Em 1807, o ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Aaron Burr, foi acusado de</p><p>traição pelo presidente Thomas Jefferson. Ele havia reunido uma expedição de cerca</p><p>80 homens, baseada na ilha particular de um rico anglo-irlandês chamado Harman</p><p>Blennerhasset. O objetivo declarado da expedição era colonizar uma área na</p><p>Louisiana. A acusação contra ele nunca foi muito clara, e ele foi absolvido. (N. do T.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 130 -</p><p>agência inapropriada. Impõem peso, estresse ou pressão de maneira que</p><p>nenhuma estrutura consegue suportar. Quando está em questão um</p><p>governo “fraco” ou “forte”, a conotação habitual dos termos se relaciona</p><p>apenas à superestrutura; e o procedimento comum é mais centralização</p><p>de poderes, que é o mesmo que um aumento no volume da</p><p>superestrutura e um maior desvio de energia para ela. Além das forças e</p><p>proporções corretas, isso é fatal; a menos que a resistência da base seja</p><p>maior que o peso ou esforço da superestrutura, o conjunto vai</p><p>desmoronar. Governos fracos são aqueles que não possuem uma</p><p>oposição adequada e com instrumentos legítimos a partir das bases</p><p>regionais e do veto de massa. A incompetência absoluta do governo é</p><p>finalmente alcançada por aquilo que se chama de poder político</p><p>absoluto, seja sob o nome de democracia ou de sincero despotismo.3</p><p>Então, tanto os estados como o governo federal eram fracos demais, por</p><p>exigirem poderes impróprios ou a distribuição imprópria de um poder</p><p>legítimo. O último erro anulou um atributo vital da soberania, sua</p><p>dimensão espacial. A menos que essa diferença entre poderes estipulados</p><p>e força intrínseca seja entendida, não é possível uma discussão relevante</p><p>sobre o assunto.</p><p>A função dos estados numa federação é fornecer bases e estrutura</p><p>vertical; essa função é estática. Espera-se que eles resistam contra</p><p>pressões de cima, que tendem a separá-los, curvá-los para fora. De</p><p>maneira estrita, não é possível que uma parte de uma fundação ou das</p><p>estruturas verticais sobre ela tenha força estática em excesso, verdadeira</p><p>autonomia local. Uma estrutura desmorona por sua fraqueza, não por sua</p><p>força. Se ela se rompe violentamente, deve ser por pressões e estresses</p><p>desbalanceados. Isso pode ocorrer por bases desiguais, conexões</p><p>cruzadas defeituosas, ou uma superestrutura excessiva distribuída</p><p>desigualmente. Se a escravidão não tivesse sido admitida na</p><p>Constituição por tolerância, seu projeto original seria maravilhosamente</p><p>sólido; mas sua inclusão introduziu os três tipos de defeito. Primeiro,</p><p>tornou as bases desiguais. Com isso, causou pressões cruzadas</p><p>desbalanceadas, já que a cláusula de extradição de escravos dava aos</p><p>estados escravagistas um ponto de pressão sobre os estados livres. E, no</p><p>longo prazo, a escravidão tornou-se uma desculpa para acrescentar peso</p><p>excessivo à superestrutura e distribuí-lo desigualmente.</p><p>Assim, todas as três causas alegadas da Guerra Civil fazem parte dessa</p><p>única causa. E, como coroação dos males, mais uma vez o problema</p><p>3 Exemplificados no colapso do velho regime na França, na Rússia czarista, na Turquia,</p><p>etc. (N. da A.)</p><p>XIII. Escravidão, o Defeito na Estrutura</p><p>- 131 -</p><p>aparente mascarou o problema real. O problema aparente era a</p><p>preservação da União. Mas a condição antecedente da união federal é a</p><p>existência de estados. O problema real era a preservação dos estados. Se</p><p>isso não fosse possível, a União deveria ou se desintegrar ou se</p><p>solidificar numa massa.</p><p>Se a estrutura é defeituosa, o fato de que ela é o melhor que os</p><p>construtores puderam fazer, ou pensaram que poderiam fazer, não vai</p><p>evitar as conseqüências físicas. Mas, como os assuntos humanos</p><p>pertencem ao reino da lei moral, que é de uma ordem mais elevada que a</p><p>lei mecânica, o resultado pode confundir todas as probabilidades</p><p>mensuráveis. Uma vez que uma máquina foi concebida, é possível</p><p>calcular seu desempenho. Mas não é possível estimar previamente quais</p><p>máquinas o homem pode inventar. As máquinas não possuem existência</p><p>ativa independente e, sendo criações da mente humana, o sistema em que</p><p>operam deve corresponder à natureza do movedor primordial. É um</p><p>clichê popular hoje em dia que o motor de combustão interna produziu</p><p>ou exigiu de alguma maneira um novo princípio de organização política.</p><p>Isso é ridículo. O próprio homem é um motor de combustão interna; ele</p><p>é o determinante e seus dispositivos são apenas múltiplos de suas</p><p>próprias capacidades e poderes. O motor de combustão interna aumentou</p><p>o volume de produção e de energia num longo circuito que já existia,</p><p>isso é tudo. As relações não se alteram. A linha de transmissão</p><p>necessária é a mesma: a propriedade privada. A condição necessária dos</p><p>seres humanos é a mesma: a liberdade. A única mudança é de grau, que</p><p>pode envolver apenas um requisito de mais do mesmo, segurança</p><p>absoluta da propriedade privada, liberdade pessoal plena e bases</p><p>regionais firmemente autônomas para uma estrutura federal. Por essa</p><p>razão, o potencial de uma nação não pode ser avaliado</p><p>quantitativamente. Consiste em idéias abstratas, nos axiomas de relações</p><p>humanas expressos na organização, não na riqueza material computada</p><p>em uma determinada data. A Guerra Civil exemplifica esse princípio.</p><p>Nos primeiros anos da República, todos os fatores mensuráveis eram</p><p>preponderantemente favoráveis aos estados escravagistas do sul. Eles</p><p>tinham amplos e variados recursos naturais. Seus principais produtos</p><p>agrícolas, algodão e tabaco, tinham forte demanda no mercado mundial,</p><p>gerando dinheiro e crédito. O prestígio legado por seus grandes</p><p>estadistas era um patrimônio político. Praticamente, tinham o governo</p><p>federal, a riqueza e a alavancagem legal.</p><p>O norte tinha o empreendedorismo pessoal de uma população livre.</p><p>Conforme a indústria do norte prosperava, parecia contribuir para a</p><p>dominância do sul, pelo comércio e invenções que aumentavam os</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 132 -</p><p>lucros dos donos de escravos e permitiam que eles estendessem o</p><p>território escravagista.</p><p>Essa aparência</p><p>era ilusória. Subitamente, a economia livre se expandiu e</p><p>começou a ocupar um território maior que a área reservada para a</p><p>escravidão. A riqueza e o poder dos estados livres aumentavam em</p><p>progressão geométrica, dobrando e redobrando. Logo antes da Guerra</p><p>Civil, William Tecumseh Sherman4 advertiu seus amigos sulistas a não</p><p>provocarem a guerra, dizendo que uma economia agrária não pode</p><p>competir com uma economia industrial num conflito armado. Mas a</p><p>verdade é que o sul também não era uma verdadeira economia agrária;</p><p>não tinha economia própria de nenhum tipo, não possuindo um gerador</p><p>para o circuito local. Olhando além dos acasos de uma guerra específica,</p><p>era incapaz de se tornar uma nação independente naquelas condições.</p><p>O sul perdeu a Guerra Civil, como era fatal que acontecesse; e a questão</p><p>da soberania dos estados foi descartada como uma tecnicalidade, deixada</p><p>de lado pelo veredito sobre a escravidão. Ao recorrerem a guerra, os</p><p>estados escravagistas cometeram o erro moral de repudiar um contrato</p><p>depois de obter vantagens especiais por meio dele. O governo federal</p><p>estava claramente obrigado a se defender da agressão e do separatismo.</p><p>Tendo recebido sua autoridade por delegação, não teria o direito de</p><p>abandonar suas funções delegadas, a menos que fosse legitimamente</p><p>dissolvido pelos mesmos meios que o instituíram. O benefício da união</p><p>para todos os estados é tão avassaladoramente evidente que sua</p><p>dissolução, então ou agora, assume o aspecto de insânia violenta; mas se</p><p>os eventos fossem descritos como puros fenômenos, um observador</p><p>inteligente perceberia que deve ter havido algum defeito na estrutura,</p><p>como numa casa que desmorona.</p><p>Assim, a operação e as conseqüências do Ato de Reconstrução5 devem</p><p>levantar sérias dúvidas de que pudesse haver autoridade moral para</p><p>perpetuar pela força uma união de origem voluntária. Também não é</p><p>justificável alterar os termos de um contrato quando uma das partes está</p><p>sendo coagida.</p><p>Sendo feita à força, a estrutura reconstruída ainda continha um defeito</p><p>físico correspondente ao defeito moral. O Ato de Reconstrução era a</p><p>evidência imediata; varreu os estados como entidades políticas.</p><p>4 General do exército da União na Guerra Civil Americana. (N. do T.)</p><p>5 Os Atos de Reconstrução foram as condições impostas aos estados confederados</p><p>para que fossem readmitidos na União. (N. do T.)</p><p>XIII. Escravidão, o Defeito na Estrutura</p><p>- 133 -</p><p>Embora o Ato fosse transitório e tenha deixado de existir no tempo, o</p><p>dano estava feito. Na organização política, o ato específico implicou em</p><p>um poder continuado. Mesmo que seja denominado como exceção,</p><p>como expediente temporário, foi estabelecida a regra de que tais</p><p>expedientes podem ser usados. Os estados do norte não poderiam</p><p>consentir com qualquer extensão do poder federal sobre os estados do</p><p>sul sem se sujeitarem à imposição do mesmo poder sobre eles no futuro.</p><p>Não foi a libertação dos escravos que extinguiu a soberania dos estados.</p><p>A liberdade é uma pré-condição, um universal, que a Constituição</p><p>deveria ter reconhecido como primária. A destruição foi feita pela</p><p>usurpação dos poderes dos estados pelo governo federal como que por</p><p>direito de conquista.</p><p>Se o governo federal lutou e venceu uma guerra de conquista, então os</p><p>estados do norte e do sul perderam essa guerra. No lugar de genuínas</p><p>bases regionais, a Guerra Civil resultou numa divisão artificial com</p><p>interesses faccionários que iriam inevitavelmente tentar usar o poder</p><p>federal para ganhar vantagens partidárias. E, nessa lição, os estados do</p><p>oeste tiveram seu primeiro treinamento político.</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 134 -</p><p>- 135 -</p><p>XIV. A Virgem e o Dínamo</p><p>ra certo que os Estados Unidos afetariam a mente da Europa,</p><p>porque eram uma projeção da experiência e das esperanças</p><p>européias, postas à prova em supostas condições naturais, como</p><p>um caso de teste contra a tradição. Os primeiros colonos trouxeram a</p><p>este país suas habilidades e ferramentas, artes e letras, teologia, moral e</p><p>ciência, seus costumes e leis; mas deixaram para trás quase todo o</p><p>aparato de imposição das leis. Não trouxeram a economia fechada nem a</p><p>religião sacramental; e a natureza fornecia recursos suficientes contra</p><p>que sobrou de autoridade oficial. Podemos assumir que qualquer coisa</p><p>que tenha sobrevivido por si mesma foi validada. A liberdade emergiu e</p><p>triunfou.</p><p>Uma crítica sutil disse: “A Declaração da Independência tirou da Europa</p><p>sua base moral”.1 A frase é perfeita; a Europa não foi colocada em uma</p><p>nova base. A idéia americana jamais chegou à Europa (como, em</p><p>circunstâncias semelhantes, a idéia da lei romana nunca foi</p><p>compreendida na Ásia). Em vez disso, os fenômenos resultantes foram</p><p>profundamente mal interpretados, acabando adaptados a uma teoria</p><p>européia divergente. As conseqüências físicas dessa discrepância moral</p><p>se tornaram evidentes imediatamente na Revolução Francesa, com o</p><p>Terror e a explosão napoleônica; mas o efeito pleno foi adiado até este</p><p>século. Em um passo, os Estados Unidos causaram a atual explosão e</p><p>desintegração da Europa. Nenhuma parcela desse dano foi feita por</p><p>inimizade. Pelo contrário, enquanto persistiu o antagonismo indicado</p><p>pela Doutrina Monroe2, a Europa tinha uma chance de se ajustar. A</p><p>amizade da América, que despejou uma torrente de energia, foi fatal.</p><p>Enquanto os Estados Unidos estavam começando a existir, como um</p><p>punhado de colônias alegremente desprezadas, algo estranho aconteceu</p><p>no pensamento europeu; por causa da ciência, ele retrocedeu ao</p><p>determinismo nas esferas social e política.</p><p>1 COLUM, Mary. From These Roots. (N. da A.)</p><p>2 A Doutrina Monroe foi uma política americana estabelecida em 1823 pelo presidente</p><p>James Monroe. Segundo ela, qualquer esforço de nações européias para colonizar</p><p>novas terras ou interferir em Estados na América do Norte ou do Sul seria considerado</p><p>um ato de agressão, exigindo intervenção dos Estados Unidos. Porém, os Estados</p><p>Unidos não interfeririam em colônias européias existentes nem em conflitos internos</p><p>na Europa. (N. do T.)</p><p>E</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 136 -</p><p>O livre arbítrio como doutrina positiva era a afirmação original do</p><p>Cristianismo. A morte é o único evento inevitável em toda vida humana;</p><p>portanto, foi tomada pelo mundo pagão como prova definitiva de que “o</p><p>destino de cada homem está marcado em sua testa”. Quando a morte</p><p>passou a ser considerada um evento no tempo que emanciparia a alma da</p><p>temporalidade para uma esfera mais ampla, o livre arbítrio passou a fazer</p><p>parte da fé. (As principais heresias do Cristianismo sempre pularam de</p><p>volta para o fatalismo.)3 O Cristianismo tendeu para Roma como seu</p><p>centro de organização, porque no sistema político romano o livre arbítrio</p><p>era considerado legítimo, não em uma margem precária, mas como o</p><p>princípio operativo, em contraste com o determinismo de massa da</p><p>democracia grega ou o beco sem saída do despotismo asiático.</p><p>Mas os mil anos de regime de status na Europa, apesar da modificação</p><p>preservada pela Igreja, cultivaram em seus súditos uma fadiga profunda.</p><p>Era difícil esquecer a queda do Império Romano, uma vez que os</p><p>homens lutaram inutilmente para mantê-lo funcionando; seu fracasso fez</p><p>com que perdessem a confiança em suas próprias capacidades e</p><p>habilidades. A figura do Nobre Selvagem sinaliza o descrédito do</p><p>governo de status, mas apenas por negação. A fusão gradual entre Igreja</p><p>e Estado — que ocorreu tanto nos países católicos como nos protestantes</p><p>— tirou da Igreja sua função de oposição à administração secular e</p><p>facilitou o surgimento do Estado Absoluto. Ao mesmo tempo, a</p><p>explicação de Galileu para o sistema solar, à primeira vista, levou a uma</p><p>filosofia mecanicista. A ciência aplicada</p><p>à invenção mecânica parecia</p><p>confirmar essa implicação; e foi levada a especulações sobre as relações</p><p>sociais, incluindo a economia política. No conjunto, o livre arbítrio</p><p>praticamente desapareceu do contexto intelectual da Europa.</p><p>Não de maneira consciente, mas no fundo de sua mente, os europeus</p><p>sentiam que haviam tentado tanto a política como a religião e nenhuma</p><p>“funcionava”. Esse é o sentido sugerido das reflexões aparentemente</p><p>sem opinião de Montaigne. Ele não chegou à conclusão, mas parou no</p><p>ponto de inflexão. Nunca atacava nem a Igreja nem o Estado</p><p>3 Essa tendência pode não ser evidente à primeira vista, mas é conseqüência de uma</p><p>aberração secundária da lógica. A doutrina mais ampla do Cristianismo engloba tanto</p><p>a Lei Divina como a lei natural agindo sobre um princípio geral superior e um</p><p>Intercessor para moderar a justiça com a misericórdia, em consideração à imperfeição</p><p>humana e ao esforço humano na direção da verdade e do bem. O salto para o</p><p>fatalismo pode ocorrer nas duas direções; o dualismo explícito da heresia maniqueísta</p><p>entregou este mundo ao domínio do mal; por outro lado, o unitarismo absoluto pode</p><p>ser interpretado como uma visão mecanicista do universo. Mesmo a visão jansenista</p><p>da doutrina da graça faz com que a graça se torne uma compulsão, em vez de uma</p><p>oportunidade de libertação pela escolha e aceitação. (N. da A.)</p><p>XIV. A Virgem e o Dínamo</p><p>- 137 -</p><p>diretamente; procurava, em vez disso, um desvio; sua aparência exterior</p><p>de conformidade era uma fuga tácita. Quando disse que, se fosse</p><p>acusado de roubar as torres de Notre Dame, fugiria do país antes de</p><p>tentar defender sua inocência num tribunal, a conclusão é evidente: não</p><p>era possível ter justiça pela lei. A atitude é legítima como um ponto de</p><p>partida para uma investigação, mas racionalmente deveria levar a um</p><p>exame do sistema legal existente e dos corretos axiomas do direito, um</p><p>caminho que seria trilhado em seguida com resultados úteis. O que</p><p>Montaigne fez foi montar, pedaço por pedaço, fragmentos de evidências</p><p>do comportamento humano a partir dos quais o homem “natural”</p><p>pudesse ser sintetizado. Mas ele também nunca disse isso; embora suas</p><p>evidências tendam a indicar primordialmente que o homem é um produto</p><p>do ambiente. Mais tarde, quando a teoria do homem “natural” foi</p><p>formulada, a teoria mecanicista do universo havia conquistado</p><p>credibilidade na filosofia européia. Deus era um matemático; Descartes e</p><p>Newton eram Seus profetas. Na verdade, Descartes admitia que o</p><p>homem era uma exceção em sua filosofia matemática, estando</p><p>“continuamente em contato com a Idéia Divina”, mas os cartesianos de</p><p>uma geração posterior chegaram a afirmar que os animais eram meras</p><p>máquinas, incapazes de sentir dor.4 Um passo a mais e o homem</p><p>estritamente “natural” também foi reduzido a um mecanismo nesse</p><p>universo mecanicista.</p><p>Nesse ponto, alguns pensadores sociais afirmaram que, se as restrições</p><p>artificiais da sociedade fossem abolidas, o homem como mecanismo</p><p>funcionaria perfeitamente e precisamente conforme projetado. Mas não</p><p>tentaram explicar como um mecanismo absolutamente natural num</p><p>4 Foi relatado sobre um grupo de cartesianos em Port Royal (o centro jansenista):</p><p>“Eles espancavam seus cães sem remorso e riam daqueles que sentiam pena dos</p><p>animais quando estes ganiam. ‘Puro mecanismo’, respondiam, dizendo que os ganidos</p><p>e gritos eram resultado de uma pequena mola escondida dentro deles, que eram</p><p>totalmente destituídos de sensações.” Seguindo essa opinião, eles vivissectavam</p><p>animais para estudar a circulação do sangue. Esses eram extremistas. Um pesquisador</p><p>moderado protestaria dizendo que era necessário apenas que uma pessoa observasse</p><p>seus cães de espeto [Em inglês, turnspit dogs. Pequenos cães criados e treinados para</p><p>correr dentro de uma roda que girava um espeto de carne enquanto esta era assada.</p><p>Normalmente, as pessoas tinham pares de cães, para que trabalhassem</p><p>alternadamente. Os cães de espeto foram extintos no século 19. (N. do T)] — um,</p><p>preguiçoso, se esconderia quando fosse sua hora de trabalhar, enquanto o outro iria</p><p>atrás do delinqüente e o traria para executar sua tarefa — para perceber que a</p><p>questão envolvia algo mais que mecanismo… Quando Berkeley se perdeu em um</p><p>labirinto de argumentos sobre se alguma coisa existia objetivamente, o Dr. Johnson</p><p>fez um apelo semelhante ao senso comum, com exasperação compreensível,</p><p>chutando uma pedra como refutação. Foi uma resposta concludente; subjetivo é o</p><p>meu pé. O subjetivo é inconcebível sem o objetivo. (N. da A.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 138 -</p><p>universo estritamente mecanicista poderia ter desenvolvido e imposto</p><p>restrições “artificiais” a si mesmo, contrárias à sua própria natureza e</p><p>maquinaria. Quando a questão foi colocada, como pôde a escola</p><p>rigidamente mecanicista negar que “o que quer que seja, é o certo”,</p><p>porque não poderia ser de outra maneira? Porém, se eles desejavam</p><p>mudar a “sociedade”, deveriam supor que alguma coisa estava errada</p><p>com ela. Naquele momento, foram obrigados a ignorar essa dificuldade;</p><p>e, quando Marx avançou contra ela mais tarde com seu materialismo</p><p>dialético, sua suposta solução simplesmente asfixiou a questão,</p><p>postulando que algumas partes do mecanismo poderiam obedecer o</p><p>conselho da merluza ao caracol5, e mover-se um pouco mais rápido se</p><p>quisessem, ou retardar-se, se fossem teimosas. A máquina universal</p><p>absoluta e perfeita tinha uma propensão a ficar maluca.</p><p>Enquanto isso, é extraordinário que os colonos ingleses na América, de</p><p>origem puritana, que eram fatalistas por religião, defendessem o livre</p><p>arbítrio em seus assuntos seculares, contra a corrente da Europa. Mas foi</p><p>o que eles fizeram. Foram capazes de alcançar essa façanha intelectual</p><p>restringindo a predestinação a seu significado exato e literal de um</p><p>destino final, céu ou inferno. Nesta terra, haviam conseguido chegar à</p><p>América por seu próprio esforço, confrontando a autoridade ou</p><p>escapando dela. Então, superaram as enormes dificuldades da terra</p><p>selvagem, acabando por estabelecer um governo local. Portanto, tinham</p><p>fundamentos para acreditar no livre arbítrio político ou temporal; e, em</p><p>boa hora, provaram essa convicção, com a grande demonstração que foi</p><p>a revolução. (Não estou dizendo que somente os puritanos ou seus</p><p>descendentes contribuíram para esse resultado; mas fizeram sua parte, ao</p><p>passo que, na Europa, homens que eram originalmente da mesma fé</p><p>concordaram que a doutrina determinista servisse ao Estado Absoluto.)</p><p>A filosofia mecanicista é uma importação muito posterior na América; e</p><p>é completamente importada. Não decorre de nosso maquinário e</p><p>absolutamente não criou a era das máquinas. Quando os americanos</p><p>começaram a inventá-las e usá-las, eram da firme opinião de que</p><p>produziam e faziam funcionar aqueles dispositivos a seu bel-prazer, sem</p><p>nenhuma bobagem de que as máquinas “determinavam” ou “criavam”</p><p>coisa nenhuma. Máquinas, para um americano, ainda são uma expressão</p><p>do livre arbítrio. É difícil para um americano viajar num carro como</p><p>mero passageiro; mentalmente, ele o dirige.</p><p>5 Referência ao primeiro verso do poema nonsense A Quadrilha da Lagosta, em Alice</p><p>no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. (N. do T)</p><p>XIV. A Virgem e o Dínamo</p><p>- 139 -</p><p>Mas o que os europeus queriam era algo que funcionasse e fizesse a</p><p>humanidade funcionar junto, sem precisar de mais nada dos homens</p><p>exceto sua submissão passiva. Recusando-se a reconhecer que até</p><p>mesmo a vida de um selvagem exige uma adaptação voluntária e</p><p>extremamente ativa, os europeus se imaginaram abaixo da selvageria. A</p><p>“Natureza” se personificou no “despotismo esclarecido”; antes do final</p><p>do século 18, a Europa estava pedindo abertamente por um ditador.</p><p>“A pista central para o programa de reforma dos filósofos era sua fé na lei</p><p>natural. […] Tudo o que era necessário para destravar o milênio era um</p><p>legislador supremo, um Euclides das ciências sociais, que descobriria e</p><p>formularia os princípios naturais da harmonia social. As generalizações</p><p>matemáticas que formaram as bases da física foram propostas por poucos</p><p>pensadores audazes, e parecia uma suposição razoável que as leis</p><p>fundamentais da sociedade humana fossem, da mesma maneira, descobertas</p><p>por algum gênio inspirado, em vez de por uma assembléia parlamentar.”6</p><p>Apesar de falarem em nome da ciência, não se deram ao trabalho de usar</p><p>o método científico de definição de termos; usavam as palavras</p><p>monarquia, democracia e república de maneira permutável e da forma</p><p>mais conveniente para qualquer ditador que pudesse se aproveitar de sua</p><p>oferta. Napoleão foi a resposta. “Ao deixar indefinida a forma ideal de</p><p>governo, possibilitaram que Napoleão unisse as tradições republicana e</p><p>monárquica numa fórmula de despotismo democrático.”</p><p>Napoleão foi a criação dos planejadores acadêmicos. Mas não foi, de</p><p>modo algum, a primeira tentativa, embora normalmente seus</p><p>predecessores não sejam reconhecidos. A consorte de Jorge II7, a Rainha</p><p>Carolina, defendia a mesma doutrina e acreditava que estava colocando-</p><p>a em prática, sem o conhecimento de seus súditos, com Walpole8 como</p><p>seu agente. Mas nenhum dano ocorreu, uma vez que Walpole precisava</p><p>de que suas políticas fossem executadas pelo Parlamento. O método</p><p>indireto, pelo qual Carolina manipulava Jorge e Walpole manipulava</p><p>Carolina, simplesmente completou a transferência de poder da Coroa</p><p>para os Comuns, embora a aristocracia agrária ainda retivesse, durante o</p><p>processo de transição, a maior parte dos cargos executivos. A fonte da</p><p>idéia de “despotismo benevolente” para Carolina foi a avó de Jorge II, a</p><p>6 BRUUN, Geoffrey. Europe and the French Imperium. (N. da A.)</p><p>7 Jorge II (1683 – 1760): Rei da Grã-Bretanha de 1727 a 1760. Foi o último rei britânico</p><p>nascido fora do país. Nasceu e foi criado na Alemanha. (N. do T.)</p><p>8 Robert Walpole (1676 – 1745): estadista britânico, considerado normalmente o</p><p>primeiro homem a ser Primeiro-Ministro do Reino Unido. Esse cargo ainda não existia,</p><p>mas pode-se dizer que Walpole o ocupava de facto por causa de sua influência com o</p><p>Gabinete. (N. do T.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 140 -</p><p>Eleitriz Sofia9, que a aprendeu com Leibniz10. Por outro caminho, a</p><p>mesma idéia foi passada para Jorge III11, que tentou encarná-la como o</p><p>“Rei Patriota”. Seus esforços bem-intencionados eram incompreensíveis</p><p>e exasperadores para os ingleses, que não tinham dissociado a razão do</p><p>senso comum; e quando Jorge tornou-se certificadamente louco,</p><p>ninguém se surpreendeu.</p><p>Mas, no continente, foi em concordância com essa teoria de um</p><p>legislador autocrático inexplicavelmente incumbido de ministrar a “lei</p><p>natural” que Voltaire se aproximou de Frederico, o Grande12, e Diderot</p><p>de Catarina, a Grande13; e Madame de Staël14 estava ansiosa por adular</p><p>Napoleão e disse a Alexandre da Rússia15: “Seu caráter, Majestade, é</p><p>uma constituição.” Atribui-se a Turgot16 a frase: “Dêem-me cinco anos</p><p>de despotismo e a França será livre.” Uma vez que a França já tinha tido</p><p>cem anos de despotismo e não era livre, parece que a única objeção que</p><p>9 Sofia de Hanover (1630 – 1714): casada com o Eleitor de Hanover. Foi declarada</p><p>herdeira do trono inglês, embora nunca tenha estado nos domínios da Grã-Bretanha.</p><p>Morreu menos de dois meses antes de poder se tornar rainha, e o trono passou a seu</p><p>filho Jorge I. Mecenas das artes, patrocinou os filósofos Gottfried Leibniz e John</p><p>Toland. (N. do T.)</p><p>10 Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646 – 1716): matemático e filósofo alemão.</p><p>Desenvolveu o cálculo infinitesimal, ao mesmo tempo que Isaac Newton e de maneira</p><p>independente. Junto com Descartes e Spinoza, foi um dos três grandes racionalistas</p><p>continentais. (N. do T.)</p><p>11 Jorge III (1738 – 1820): Rei da Grã-Bretanha de 1760 a 1820. Terceiro monarca</p><p>britânico da Dinastia de Hanover, foi o primeiro dessa linhagem nascido no país e que</p><p>tinha o inglês como língua materna. Durante seu reinado ocorreram diversos conflitos</p><p>militares, como a Guerra dos Sete Anos, a Revolução Americana e guerras contra a</p><p>França revolucionária e napoleônica. No final da vida, sofreu de uma doença mental</p><p>recorrente e depois permanente. A partir de 1810, seu filho Jorge, Príncipe de Gales,</p><p>foi declarado regente. (N. do T.)</p><p>12 Frederico II, o Grande (1712 – 1786): Rei da Prússia entre 1740 e 1786. Patrono de</p><p>artistas e filósofos, foi um dos propositores do absolutismo esclarecido. Um encontro</p><p>com Johann Sebastian Bach, em 1747, fez com que o músico escrevesse, em</p><p>homenagem ao rei, a Oferenda Musical. Teve uma amizade turbulenta com Voltaire.</p><p>(N. do T.)</p><p>13 Catarina II, a Grande (1729 – 1796): Imperatriz da Rússia entre 1762 e 1796.</p><p>Exemplo notável de déspota esclarecida, foi correspondente de Voltaire, Diderot e</p><p>d’Alembert. (N. do T.)</p><p>14 Anne Louise Germaine de Staël-Holstein (1766 – 1817): literata francesa. Tornou-se</p><p>grande opositora de Napoleão. (N. do T.)</p><p>15 Alexandre I da Rússia (1777 – 1825): Imperador da Rússia entre 1801 e 1825. Na</p><p>primeira metade de seu reinado, tentou introduzir reformas liberais. Na segunda</p><p>metade, tornou-se cada vez mais arbitrário, revogando a maior parte das reformas</p><p>anteriores. (N. do T.)</p><p>16 Anne-Robert-Jacques Turgot, Barão de Laune (1727 – 1781): economista e estadista</p><p>francês. (N. do T.)</p><p>XIV. A Virgem e o Dínamo</p><p>- 141 -</p><p>os filósofos tinham contra os Bourbons é que eles não foram</p><p>suficientemente despóticos. Esta é a vanguarda dos modernos</p><p>“progressistas”.</p><p>A Europa nunca desistiu dessa fantasia do deus ex machina; ela</p><p>reaparece a cada reviravolta dos eventos. Revela-se nas palavras da</p><p>Imperatriz Eugênia17, falando do Império efêmero de Maximiliano18, no</p><p>México, quando ela disse que Maximiliano deveria ter estabelecido uma</p><p>ditadura no padrão daquela de Napoleão III, “uma ditadura que trouxesse</p><p>liberdade e um homem suficientemente capaz para manter as duas lado a</p><p>lado”. As palavras não significam absolutamente nada; ela falava por</p><p>força do hábito. O próprio Maximiliano explicou que “precisava de uma</p><p>grande força para impor reformas e melhorias; o povo aqui tem de ser</p><p>obrigado ao que é bom”. Sua imperatriz Carlota, quando enlouqueceu,</p><p>sonhava que Maximiliano era “rei da terra e soberano do universo”.</p><p>Durante a Revolução Francesa, Burke19 comentou sobre os monarquistas</p><p>franceses exilados na Inglaterra que, exceto por declarações de afeto às</p><p>pessoas do Rei e da Rainha da França, esses refugiados aristocráticos</p><p>“falavam como jacobinos”. Obviamente, eles não estavam conscientes</p><p>disso; e Burke diria a verdade se acrescentasse que os jacobinos, em</p><p>companhia da maioria dos revolucionários europeus dos séculos 18 e 19,</p><p>falavam como monarquistas absolutistas. O slogan dos cartistas ingleses</p><p>era: “Poder político nosso meio, felicidade social nosso fim”. A</p><p>“ditadura do proletariado” de Marx, a partir da qual “o Estado se</p><p>desmancharia”, foi uma repetição posterior. A versão atual desse</p><p>disparate fatal foi ecoada por um jornalista americano depois de uma</p><p>visita à Rússia comunista; na versão dele, “a Rússia está lançando as</p><p>bases de uma sociedade evolucionária, que vai passar por estágios</p><p>previstos e planejados de crescimento, por meio do industrialismo, de</p><p>17 Imperatriz Eugênia de Montijo, esposa de Napoleão III. (N. do T.)</p><p>18 Imperador Maximiliano I do México (1832 – 1867): Único monarca do Segundo</p><p>Império mexicano, entre 1864 e 1867. Irmão mais novo do imperador austríaco</p><p>Francisco José I, Maximiliano foi convidado por Napoleão III a estabelecer</p><p>uma</p><p>monarquia no México. Chegou lá com um exército francês e, apoiado por</p><p>monarquistas mexicanos, declarou-se imperador. Poucos países reconheceram seu</p><p>governo. As forças do presidente Benito Juárez lutaram para restabelecer a república</p><p>e, com auxílio dos Estados Unidos, derrubaram o Império. Maximiliano foi preso e</p><p>executado. (N. do T.)</p><p>19 Edmund Burke (1729 – 1797): político e filósofo britânico. Foi membro da Câmara</p><p>dos Comuns entre 1765 e 1780. É considerado o fundador filosófico do</p><p>conservadorismo moderno. Sua obra mais importante é Reflexões sobre a Revolução</p><p>na França, na qual previu, num momento inicial dos acontecimentos, que a Revolução</p><p>Francesa iria resultar em violência descontrolada, em opressão governamental</p><p>extrema e num futuro governo militar. (N. do T.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 142 -</p><p>uma ditadura política absoluta para a liberdade, democracia e paz…</p><p>Uma cultura científica, não uma cultura moral.” O massacre e a inanição</p><p>de milhões de pessoas, escolhidas como vítimas especificamente por</p><p>causa de seu caráter produtivo e inteligência livre, foi o resultado de</p><p>longo prazo da teoria mecanicista do universo. E o séquito do</p><p>Juggernaut20 sagrado forma uma procissão notável: Frederico, Catarina,</p><p>Carolina, Madame de Staël, os dois Jorges, os dois Napoleões, Eugênia,</p><p>Carlota, Marx, Lênin e uma trilha servil de jornalistas.</p><p>Enquanto isso, John Stuart Mill, declarando-se o paladino da liberdade,</p><p>vendeu-a baratinho outra vez para a “sociedade”. Ou seja, admitiu que a</p><p>liberdade pessoal só se justifica se servir ao bem coletivo. Então, se for</p><p>possível formular um argumento plausível que negue que ela sirva — e</p><p>tal argumento parecerá plausível porque não existe bem comum —,</p><p>obviamente a escravidão será correta.</p><p>Os sonhos persistentes da humanidade são juventude e beleza eternas e</p><p>poder absoluto. Os dois primeiros devem ser buscados por si mesmos,</p><p>uma vez que não podem ser disfarçados por um pretexto moral. Nas</p><p>mitologias mais antigas, são imaginados como presentes dos deuses para</p><p>alguns mortais afortunados. Com a aurora da ciência, a esperança foi</p><p>transferida para a expectativa de um Elixir da Vida, a ser descoberto pela</p><p>pesquisa. Nenhum desses desejos pode fazer grande mal. O Bispo</p><p>Berkeley, o filósofo, estava misteriosamente convencido de que a água</p><p>de alcatrão era uma panacéia para quase todos os males do corpo. Pode-</p><p>se adivinhar porque ele dotou essa prescrição irrelevante de tais</p><p>propriedades mágicas; ele não tinha um motivo mais profundo. O ponto</p><p>significativo não é simplesmente que a água de alcatrão não pode fazer o</p><p>que Berkeley acreditava que podia. Nada pode. O que ele desejava é</p><p>irrealizável na natureza das coisas. Existem drogas mortíferas mas não</p><p>existe um elixir da vida para o corpo físico. Mesmo assim, esse desejo</p><p>tem uma inteligência residual, que leva a resultados benéficos na</p><p>melhoria da saúde e da beleza por meio do estudo racional da biologia e</p><p>da higiene.</p><p>Na mecânica, imaginou-se uma impossibilidade semelhante, um Moto</p><p>Perpétuo. Aqui, a ciência genuína enfrenta uma dificuldade, até aqui não</p><p>resolvida, em definir o que é energia ou descobrir suas propriedades</p><p>definitivas. A ciência estrita é confinada a medições; suas descobertas</p><p>20 Juggernaut, em inglês coloquial, é uma força literal ou metafórica considerada</p><p>impiedosamente destrutiva e irresistível. O termo é uma referência ao carro templo</p><p>Ratha Yatra, que se acreditava erroneamente que esmagasse os devotos sob suas</p><p>rodas. Deriva-se do sânscrito Jagannatha, “senhor do mundo”, um dos nomes de</p><p>Krishna. (N. do T.)</p><p>XIV. A Virgem e o Dínamo</p><p>- 143 -</p><p>têm de ser quantitativas. Trabalhando com matéria inorgânica, a ciência</p><p>postula a Segunda Lei da Termodinâmica, que diz que a energia “decai”,</p><p>pela conversão de uma manifestação cinética para estática. Os dois</p><p>aspectos da energia são exemplificados num homem andando, movido</p><p>pela energia cinética e colidindo contra uma parede de pedra, onde</p><p>encontra energia estática. A parede tem resistência, que é mensurável em</p><p>termos de energia pela força necessária para rompê-la; e a energia</p><p>cinética, reciprocamente, é medida pelo que ela pode mover, em forma</p><p>estática.</p><p>Agora, se considerarmos que a energia do universo inteiro, pela qual ele</p><p>se move, está completamente definida em termos de suas propriedades</p><p>manifestas por meio da matéria inorgânica, a energia universal deve</p><p>existir numa quantidade fixa; e deve também estar sujeita à Segunda Lei</p><p>da Termodinâmica, pela qual o universo inteiro está fadado a “decair”</p><p>finalmente, e tornar-se uma massa escura, congelada e imóvel,</p><p>absolutamente estática, e permanecer assim para todo o sempre.</p><p>Certamente, a Segunda Lei da Termodinâmica é válida com respeito à</p><p>energia utilizada por meio de materiais inanimados; a engenharia e a</p><p>mecânica devem ser governadas por este princípio para chegarem a</p><p>resultados. Mas, se assumíssemos que o mesmo princípio governasse a</p><p>energia universal como tal — em vez de ser simplesmente uma fase de</p><p>sua transmissão através de certos elementos inorgânicos — ele evocaria</p><p>um fenômeno inicial, a “partida” do mecanismo universal em primeiro</p><p>lugar, pela existência primária de uma quantidade fixa de energia</p><p>cinética: como ou de onde a hipótese não pode pretender explicar e nem</p><p>mesmo contemplar.</p><p>A hipótese religiosa na natureza do universo é, na verdade, muito mais</p><p>racional, postulando um Primeiro Princípio (Deus), a Fonte de energia,</p><p>que não “decai”, não é mensurável e se apresenta às nossas faculdades</p><p>racionais tanto em aspectos eternos como temporais, pelos fenômenos</p><p>mensuráveis da matéria inorgânica e pela própria faculdade racional, que</p><p>é de ordem não mensurável, indicando um elemento divino no homem, a</p><p>alma imortal. A partir desse Primeiro Princípio, o universo não precisa</p><p>decair; as fases dos elementos inorgânicos que estão sujeitas à Segunda</p><p>Lei da Termodinâmica seriam secundárias em relação ao Primeiro</p><p>Princípio Criativa que completa o circuito eterno, se renovando</p><p>eternamente, por meio de outros processos nos quais o homem ainda não</p><p>penetrou.</p><p>Agora, a partida do “moto perpétuo”, de maneira confusa, está se</p><p>aproximando do absurdo da visão mecanicista estritamente quantitativa</p><p>do universo, que implica que, de alguma maneira, a maquinaria cósmica</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 144 -</p><p>foi configurada em potencial e, então, posta em movimento com uma</p><p>dada quantidade de energia cinética que devemos supor que já “estava</p><p>lá”; depois disso, continuou funcionando “por si mesma”, sem nenhum</p><p>suprimento posterior, e deve continuar assim até que decaia totalmente,</p><p>pela exaustão da quantidade. Assim, a partida do moto perpétuo,</p><p>aproximando-se do suposto problema, admite que seu mecanismo</p><p>precisa ser iniciado pela introdução normal de energia de uma fonte</p><p>externa. Depois disso, diz-se, ele continuará funcionando por si mesmo</p><p>indefinidamente.</p><p>Essas são a alegação e a exigência feitas por todos os que prometem a</p><p>felicidade final por meio de um despotismo inicial. Poucos anos de força</p><p>externa, a ditadura do proletariado ou da elite, governo absoluto — e,</p><p>então, nada mais de esforço, nada mais de necessidade de inteligência,</p><p>uma máquina funcionando continuamente — até o fim. A teoria do</p><p>comunismo marxista é exatamente a da Máquina de Moto Perpétuo,</p><p>ponto por ponto, porque ela estipula que o sistema produtivo criado pela</p><p>livre iniciativa é um pré-requisito, que será tomado pela máquina</p><p>comunista.</p><p>Assim, o sonho de poder também é suscetível a duas interpretações, uma</p><p>incalculavelmente benéfica e a outra viciosa, causa de miséria infinita.</p><p>Quando direcionado ao domínio da natureza, o ordenamento da matéria</p><p>inorgânica pelo conhecimento da lei natural, é criativo, não apenas em</p><p>bens materiais mas no enriquecimento da personalidade</p><p>humana. O</p><p>desenvolvimento mais recente ocorre porque no homem, o ser pensante,</p><p>a razão é o atributo individualizante. Observadores argutos</p><p>descobriram que povos primitivos, como os esquimós, manifestam uma</p><p>psicologia “coletiva”, a tal ponto que, em ações em grupo, a consciência</p><p>da individualidade fica obscurecida. A razão envolvida na ação se funde</p><p>com o instinto pelo hábito. Não é a ação conjunta nem o pensamento</p><p>semelhante em termos racionais conscientes que induzem essa “unidade”</p><p>coletiva; é o fato de não pensar naquele dado momento. O exercício do</p><p>intelecto no raciocínio abstrato leva os homens inteligentes a conclusões</p><p>semelhantes por meio de seqüências lógicas e, ao mesmo tempo,</p><p>desenvolve sua individualidade; porque pensar é uma função individual.</p><p>Portanto, o coletivista, para alcançar seu objetivo, o estado ou sociedade</p><p>coletivos, busca o único tipo de organização, a agência política, que é</p><p>diretamente proibitória e tende a fazer com que os homens parem de</p><p>pensar. Esta é a interpretação maligna do sonho de poder sua perversão</p><p>na luxúria por poder sobre outros homens, em vez do domínio da</p><p>natureza.</p><p>XIV. A Virgem e o Dínamo</p><p>- 145 -</p><p>A luxúria pelo poder é muito facilmente disfarçada sob motivos</p><p>humanitários ou filantrópicos. Apela naturalmente a pessoas que sentem</p><p>um desconforto emocional pelos infortúnios dos outros, misturado a uma</p><p>ânsia por aprovação imerecida, ainda mais se não são produtivas.21 Uma</p><p>criança amável, que deseja um milhão de dólares vai normalmente</p><p>“pretender” distribuir metade de sua riqueza ilusória. A guinada do</p><p>motivo se mostra pelo fato de que seria igualmente fácil desejar que essa</p><p>sorte inesperada fosse diretamente para os outros, sem se imaginar como</p><p>intermediária de sua felicidade. A criança pode imaginar que ganha o</p><p>dinheiro trabalhando, embora mesmo assim a imaginação também</p><p>pudesse incluir os outros ganhando dinheiro trabalhando; mas, como</p><p>regra, o dinheiro viria de um suprimento indeterminado disponível sem</p><p>esforço e já existente — uma máquina de moto perpétuo. A criança nem</p><p>se dá conta de que pessoas que precisam de ajuda também podem</p><p>imaginar por si mesmas um milhão de dólares. A gratificação dupla, das</p><p>necessidades pessoais e do poder por “fazer o bem”, é estipulada</p><p>inocentemente. Levada aos anos adultos, essa autoglorificação ingênua</p><p>se transforma em ódio positivo a qualquer sugestão de que as pessoas</p><p>ajudem a si mesmas por seu próprio esforço individual, por meios não-</p><p>políticos que não impliquem em poder sobre outros, sem um aparato</p><p>compulsório. O ódio tem um motivo profundo por trás de si; é verdade</p><p>que nada, exceto meios políticos, pode produzir adulação pública</p><p>imerecida. Perguntemos como uma pessoa completamente desprovida de</p><p>talento, habilidade, realizações, sabedoria, beleza, charme ou mesmo da</p><p>capacidade prática de ganhar a vida com um trabalho rotineiro pode se</p><p>tornar objeto de atenção bajulatória, ser saudada com aplauso e ter suas</p><p>mais medíocres futilidades apreciadas — obviamente, a única resposta é</p><p>uma posição política. Uma grande fortuna privada pode granjear um</p><p>círculo privado de sicofantas; mas apenas o decreto imperial poderia dar</p><p>a Nero uma audiência para seu canto ou arrebatar aplausos da multidão</p><p>para Calígula.</p><p>Mas o sonho racionalizado do Estado Absoluto tem uma implicação</p><p>histórica especial em sua repetição. Os períodos em que se cristalizou na</p><p>literatura são imensamente significativos.</p><p>Os três mais famosos esquemas de papel desse tipo são a Politéia, ou o</p><p>estado ideal, de Platão, traduzida erroneamente como A República22, a</p><p>21 Os coletores de impostos na França patrocinaram os proponentes de sistemas</p><p>políticos rígidos, como os fisiocratas e outros teóricos absolutistas que causaram o</p><p>Terror. Conseqüentemente, pelo menos alguns dos coletores de impostos foram</p><p>enforcados em postes de luz quando o Terror se espalhou — mas só alguns. (N. da A.)</p><p>22 Se a linguagem deve ter algum significado, é por causa das distinções. Roma</p><p>forneceu a forma e o significado da República com a palavra; e os gregos da</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 146 -</p><p>Utopia de Thomas More e a Terra Prometida sem nome de Marx, que</p><p>surgiria depois da destruição do capitalismo. O que elas têm em comum</p><p>em sua forma é que todas são finais; são arranjos nos quais os seres</p><p>humanos se encaixam como partes especializadas de um padrão. Suas</p><p>relações sociais e econômicas não admitem nem a ordem biologicamente</p><p>natural mas matematicamente irregular e entrelaçada da família, nem a</p><p>faculdade criativa imprevisível do indivíduo. A fôrma é colocada para</p><p>impedir variação ou mudança. São sociedades estáticas. Platão e More</p><p>fizeram o indivíduo súdito da organização cívica e Marx o fez súdito da</p><p>indústria mecanizada.</p><p>Mas o que elas têm em comum com respeito a época em que foram</p><p>imaginadas revela seu significado verdadeiro. Cada uma marca uma era</p><p>em que novos desenvolvimentos já haviam ocorrido que tornaram</p><p>impossível uma sociedade estática. Os homens que escreveram esses</p><p>sonhos eram sismógrafos. Sentiram a mudança iminente, como se a terra</p><p>se mexesse sob seus pés; e sua mente procurou refúgio numa fantasia de</p><p>um mundo não sujeito à mudança. Platão viveu numa época em que os</p><p>gregos formulavam os princípios básicos da ciência. Sir Thomas More</p><p>viveu nos anos perigosos do Renascimento, o reviver da ciência. Marx</p><p>testemunhou a revolução industrial, a aplicação da ciência. As três</p><p>fantasias são reações da Era da Energia.</p><p>Platão era um literato; seu senso artístico de forma estava inquieto e ele</p><p>tentou compensar isso com um planejamento rigoroso. More era um</p><p>homem inteligente e um sábio; ele rotulou sua criação francamente pelo</p><p>que era: Utopia significa Lugar Nenhum. Marx era um tolo; ofereceu seu</p><p>esquema como uma previsão do futuro.</p><p>É por meio desse modelo imposto de mecanismo que a Europa observou</p><p>os Estados Unidos desde o início; a estultificação não poderia ir além. O</p><p>princípio da harmonia social é a liberdade, os direitos do indivíduo; essa</p><p>é a lei natural do homem, que os Estados Unidos descobriram e</p><p>formularam, antes da Revolução Francesa.</p><p>democracia. O modelo de organização de Platão é o coletivo espartano, um Estado</p><p>Absoluto militar democrático. A distinção entre uma República e uma Democracia é</p><p>evidente pelas palavras; democracia significa literalmente o governo do povo, um</p><p>conceito que não admite qualquer limitação no poder político. República significa uma</p><p>organização que trata de assuntos que se referem ao público, implicando assim que</p><p>existem também assuntos privados, uma esfera de vida social e pessoal, com a qual o</p><p>governo não está e não deve estar envolvido; estabelece um limite ao poder político.</p><p>Os fatos, em cada caso, corresponderam ao significado das palavras. (N. da A.)</p><p>XIV. A Virgem e o Dínamo</p><p>- 147 -</p><p>Henry Adams23, que testemunhou a Era da Energia depois que ela já</p><p>havia avançado muito, passou a vida empenhado em descobrir a ligação</p><p>entre o último século da Idade Média e a moderna explosão de energia</p><p>nas aplicações cinéticas. Ele encontrou a pista, analisou-a e deixou-a</p><p>escapar. Qual a relação, perguntou ele, entre a Virgem e o Dínamo? Sua</p><p>pergunta não era irreverente nem irrelevante. Adams percebeu que</p><p>depois que a majestade da Lei Divina foi estabelecida na filosofia</p><p>medieval por lógica rigorosa, a imagem da Virgem tornou-se mais</p><p>proeminente na religião, como objeto de honras e petições. Reconheceu</p><p>que isso se devia ao fato de que a Virgem representava um elemento não</p><p>constrangido, graça ou misericórdia, que implica no livre arbítrio do</p><p>homem, disponível para decisões contínuas. Então, o homem não estaria</p><p>preso a uma</p><p>seqüência determinada de maneira irrevogável, como é o</p><p>caso de uma máquina. O homem não é uma máquina. Mas, nesse ponto,</p><p>Henry Adams não percebeu que é pela liberdade da vontade pessoal que</p><p>o homem é capaz de perseguir seus questionamentos intelectuais e</p><p>produzir suas invenções. Essa é a gênese do dínamo. Construído de</p><p>acordo com as leis da mecânica, o dínamo é determinístico; ou seja,</p><p>deixado a si mesmo, ele para. Então, se ele vai funcionar, deve ser pela</p><p>vontade e inteligência do homem. Uma economia de máquinas não</p><p>pode funcionar com base em uma filosofia mecanicista.</p><p>23 Henry Brooks Adams (1838 – 1918): historiador americano. Propôs uma teoria da</p><p>história baseada na Segunda Lei da Termodinâmica e no princípio da entropia. (N. do</p><p>T.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 148 -</p><p>- 149 -</p><p>XV. As Emendas Fatais</p><p>s Estados Unidos são a Era do Dínamo. Quando levaram o</p><p>axioma do livre arbítrio da doutrina religiosa para a doutrina</p><p>política, um Niágara de energia cinética foi liberado. O fluxo</p><p>crescente precisa da máxima firmeza das bases, de força elástica na</p><p>estrutura e que a ação e a forma sejam tão pouco obstrutivas quanto</p><p>possível. Infelizmente, com exceção de duas, cada alteração na</p><p>Constituição depois do Bill of Rights1 foi um retrocesso.</p><p>O teste pode ser aplicado a qualquer emenda por estas perguntas</p><p>simples: A emenda nega direitos do indivíduo? Enfraquece as bases,</p><p>debilitando os estados como entidades políticas? Aumenta o peso bruto</p><p>ou contribui para uma distribuição imprópria do peso da superestrutura?</p><p>Se a resposta para qualquer dessas perguntas for positiva, a emenda</p><p>transforma a operação benéfica do sistema de alta energia em um perigo</p><p>de igual magnitude.</p><p>Além disso, todos esses efeitos perniciosos interagem; uma emenda pode</p><p>causar um duplo dano; e um prejuízo pode ensejar ou servir de pretexto</p><p>para outro. Conforme a estrutura racha, cede ou treme, desorganizando a</p><p>economia privada, o ataque alternado dos fervorosos emendadores será</p><p>mais furioso. Há um aumento progressivo na freqüência cronológica de</p><p>emendas à Constituição. E as conseqüências finais são combinadas e</p><p>cumulativas, mostrando seu resultado de uma vez, depois de um lapso de</p><p>tempo, num desmoronamento geral. A situação também é agravada por</p><p>um desvirtuamento simultâneo em decisões judiciais e por extensões do</p><p>poder político por simples usurpação. Um ato de sedição é um exemplo</p><p>dessa usurpação; não há autoridade para ele na Constituição. Houve</p><p>protestos raivosos na primeira ocasião; hoje, é aceito casualmente, quase</p><p>1 O Bill of Rights é integralmente parte da Constituição original, sendo “o preço da</p><p>ratificação”. É uma salvaguarda, em itens, de direitos do indivíduo e da soberania dos</p><p>estados. A única objeção contra ele, na ocasião, foi que a enumeração de direitos</p><p>individuais poderia ser interpretada como a limitação dos direitos aos pontos</p><p>nomeados ou como uma afirmação de que o direito primário do indivíduo não é</p><p>abrangente — a idéia européia de “liberdades”, em vez da liberdade americana. O</p><p>argumento parecia forçado; foi, na verdade, premonitório, porque ultimamente</p><p>aquela exata perversão vem sendo proposta, numa paródia barata, com as expressões</p><p>“liberdade da necessidade”, “liberdade do medo”, etc. Entretanto, é impossível criar</p><p>um instrumento totalmente seguro e o Bill of Rights vem funcionando</p><p>admiravelmente em sua aplicação prática. (N. da A.)</p><p>O</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 150 -</p><p>sem comentários, exceto pelas sugestões de ampliá-lo, freqüentemente</p><p>sob o comando dos supostos “liberais”.</p><p>Uma usurpação inicial há muito tempo esquecida, porém ainda em vigor,</p><p>fez efeito depois de mais de um século, em 1933, com o confisco da</p><p>propriedade privada em ouro. Quando John Jay era presidente da</p><p>Suprema Corte, o primeiro a ocupar esse cargo e um dos autores de O</p><p>Federalista, profundo conhecedor da natureza da Constituição, deu um</p><p>veredito sustentando o direito do cidadão de processar o governo. Jay</p><p>disse que a teoria, a origem e forma de governo dos Estados Unidos</p><p>discordavam da idéia européia sobre a questão do direito precedente do</p><p>cidadão sobre o estado. Pela teoria americana, disse Jay, o governo é o</p><p>agente do cidadão, tendo apenas autoridade delegada; e é absurdo</p><p>sustentar que uma pessoa não possa processar seu agente. Depois disso,</p><p>a posição de Jay foi vencida, embora não possa ser refutada. Mas, desde</p><p>então, o cidadão ficou à mercê do governo nos Estados Unidos como se</p><p>fosse súdito de um rei; não pode nem pleitear a reparação de injustiças</p><p>do governo contra ele, sem permissão. E exatamente a primeira emenda</p><p>(Artigo XI) depois do Bill of Rights estendeu essa prerrogativa usurpada</p><p>aos diversos estados contra os cidadãos de outros estados. A emenda</p><p>seguinte (XII) é técnica.</p><p>Sessenta e dois anos se passaram sem outras alterações, até que a única</p><p>emenda benéfica foi criada, a Décima Terceira, que limita o poder</p><p>político ao proibir a escravidão. A Décima Quarta Emenda confirmou a</p><p>cidadania federal e os direitos civis dos cidadãos por toda a União. Mas</p><p>teria sido melhor se o Bill of Rights tivesse sido explicitamente estendido</p><p>para se aplicar aos governos estaduais. Se fosse dessa maneira, diversas</p><p>questões posteriores não teriam sido encaminhadas a “poderes</p><p>implícitos”, um subterfúgio ignóbil e perigoso.</p><p>A Décima Quinta Emenda perpetuou definitivamente o dano causado</p><p>pelo Ato de Reconstrução. Privou os estados de um atributo</p><p>indispensável de soberania, o poder exclusivo de determinar as</p><p>qualificações dos eleitores, originalmente reservado a eles pela</p><p>Constituição.</p><p>Qual o uso adequado de um poder necessário e qual a agência adequada</p><p>para seu uso são questões inteiramente diferentes. O controle das</p><p>fronteiras externas da nação pertence acertadamente ao governo federal,</p><p>que é a organização que representa a extensão territorial plena. O</p><p>governo federal claramente já praticou discriminação racial nas cotas de</p><p>entrada. A regra adotada era moralmente errada; seria injustificável até</p><p>para rejeitar refugiados. As grandes nações sempre foram liberais na</p><p>XV. As Emendas Fatais</p><p>- 151 -</p><p>admissão de pessoas. Contudo, é necessário que o governo federal tenha</p><p>o poder sobre as fronteiras; caso contrário, a nação não continuaria</p><p>existindo.</p><p>Para formar uma federação verdadeira e funcional, os estados</p><p>componentes devem ceder o atributo da soberania sobre as fronteiras.</p><p>Mas devem reter o controle legítimo sobre a admissão ao corpo político</p><p>do estado, para se preservar como entidades políticas. É o poder de</p><p>conceder o direito ao voto. Raça, cor da pele ou condição prévia de</p><p>servidão são irrelevantes. Não deveriam desqualificar ninguém. As</p><p>qualificações corretas são o local de residência, a lealdade e a</p><p>propriedade real. Só se pode encontrar um princípio moral nesses</p><p>requisitos. Se o direito ao voto exige alguma qualificação, ele é</p><p>claramente condicional, não absoluto. Desde que as condições sejam</p><p>práticas, elas devem se relacionar à função do instrumento. A ação é de</p><p>extensão medida a partir de uma base permanente, portanto deve estar</p><p>ligada à propriedade imóvel local. Capital líquido não serve.2 Essas</p><p>qualificações são morais e materiais, estando todas dentro da</p><p>competência do indivíduo; uma pessoa responsável pode atendê-las por</p><p>sua própria escolha e seus próprios esforços. Mas é absolutamente</p><p>necessário que o poder de designar as qualificações pertença aos estados.</p><p>Se o governo federal tem o poder de determinar ou alterar qualquer</p><p>detalhe, mesmo que negativamente, passa a ter o pleno poder final de</p><p>determinar todos os requisitos a partir dos detalhes. E um defeito</p><p>espalhado por toda a estrutura é muito mais grave que um erro</p><p>localizado.</p><p>A interferência</p><p>neste caso é por decomposição. Passaram-se quarenta</p><p>anos antes que a decomposição das bases se tornasse totalmente visível;</p><p>mas isso viabilizou o ataque seguinte, quando uma função nacional foi</p><p>anulada, pela emenda do imposto de renda. Anteriormente, nenhum</p><p>imposto direto ou pessoal podia ser estabelecido, exceto em proporção à</p><p>população. Então, a ação seria equiparada em cada eleitor e</p><p>representante. Se um imposto fosse proposto, cada um saberia que teria</p><p>de pagar uma parcela proporcional; enquanto que, se alguma região</p><p>fosse receber uma parcela extra de gastos (como em obras num rio ou</p><p>num porto), sua influência seria muito maior que a de outras áreas. A</p><p>inércia de massa é a função estabilizadora; é inerente a qualquer material</p><p>pesado; mas é mais bem entendida quando fornecida separadamente,</p><p>como em lastro. O peso (gravidade) é a força; seu uso está em relação</p><p>2 A propriedade e residência numa cabana de madeira com uma horta de batatas é</p><p>uma qualificação legítima para o voto, enquanto a propriedade de todas as ações da</p><p>Standard Oil Company não é. (N. da A.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 152 -</p><p>constante com um centro de gravidade. Quando o interesse de cada</p><p>eleitor deve ser praticamente o mesmo, o centro de gravidade é</p><p>constante, mesmo que as partículas de lastro sejam móveis. Mas quando</p><p>o governo federal passou a poder extrair impostos de um estado rico de</p><p>maneira desproporcional à população para subornar um estado pobre</p><p>com gastos desproporcionais à população, o equilíbrio desapareceu. O</p><p>veto de inércia-massa se perdeu. (O peso, o interesse, a partir daí passou</p><p>a ser um fator de desequilíbrio, como lastro líquido não</p><p>compartimentado oscilando de um lado para outro, massa deslocada.)</p><p>Provavelmente, a maioria das pessoas não compreendeu que essas</p><p>relações foram alteradas. Pensaram apenas, em termos simples, em taxar</p><p>os ricos, talvez com uma expectativa vaga e infantil de que as receitas</p><p>seriam “dadas aos pobres”. O dinheiro obtido dos ricos de qualquer</p><p>forma que não seja salários nunca é dado aos pobres. Se for tomado por</p><p>um assaltante comum, vai para o assaltante. Se for tomado por uma</p><p>organização filantrópica, vai para a organização. Se for tomado pelo</p><p>governo, vai para os políticos. O aumento da taxação dos ricos nem</p><p>mesmo diminui a taxação dos pobres; acaba aumentando toda a taxação,</p><p>expandindo-se gradualmente até que exproprie uma porção não apenas</p><p>do último dólar de um homem pobre, mas do primeiro dólar que ele</p><p>consiga ganhar. O imposto terá de ser pago antes mesmo que ele toque</p><p>em seu ganho. A taxação atual sobre os salários, precisamente descrita</p><p>como “a safadeza da seguridade social”3, não poderia ter sido imposta de</p><p>acordo com a Constituição original; só é validada pela emenda do</p><p>imposto de renda. Não há meios pelos quais “os ricos” possam ser</p><p>taxados sem que isso acabe taxando “os pobres” de maneira muito mais</p><p>pesada. E um imposto tende a aumentar todos os outros impostos, em</p><p>vez de diminuí-los, porque os gastos governamentais vão para coisas que</p><p>exigem manutenção e não geram retorno (edifícios públicos e empregos</p><p>políticos). A energia cinética é convertida em formas estáticas, que então</p><p>necessitam do desvio de mais energia cinética para carregar o peso</p><p>morto.</p><p>O golpe formal e final para desconstituir os estados foi a Décima Sétima</p><p>Emenda, que tirou a eleição dos senadores da Legislatura Estadual e a</p><p>passou para o voto popular. Desde então, os estados não têm mais</p><p>ligação com o governo federal; a representação em ambas as Casas do</p><p>Congresso se apóia apenas na massa deslocada. A abdicação simultânea</p><p>de ambas as Casas em 1933 foi o resultado. Elas não foram separadas à</p><p>força, nem mesmo se desmantelaram, porque já não tinham nenhuma</p><p>relação estrutural nem com a massa, nem entre si, nem com a</p><p>3 Em inglês, “the Social Security swindle”. (N. do T.)</p><p>XV. As Emendas Fatais</p><p>- 153 -</p><p>superestrutura. Simplesmente, tinham parado de funcionar. O</p><p>aparecimento imediato de uma burocracia imensa foi o fenômeno natural</p><p>de uma nação sem estrutura.</p><p>Ao mesmo tempo e pela interação com esses eventos políticos, a</p><p>economia produtiva foi distorcida e a energia desviada para o canal</p><p>político. A Guerra Civil precipitou a seqüência. A pilhagem dos estados</p><p>sulistas derrotados (sob o comando de filantropos, como sempre em</p><p>colaboração com trapaceiros), foi particularmente prejudicial porque o</p><p>poder político procurou legitimar atos de extorsão. Canalhas eram</p><p>imunes dentro da lei, enquanto homens honestos foram forçados a</p><p>retroceder para modos de associação pré-legais primitivos: o chefe, o</p><p>conselho informal e a posse comitatus.4 Não havia governo, apenas</p><p>força. O controle moral havia sido desconectado. As pessoas</p><p>continuavam vivendo pela ordem moral; não poderiam sobreviver de</p><p>outra maneira. Mas a antiga e errônea identificação do governo com a</p><p>força se tornou plausível novamente. Da mesma maneira, a política se</p><p>tornou lucrativa.</p><p>De maneira geral, até a Guerra Civil, qualquer homem que desejasse</p><p>honras políticas esperaria consegui-las à custa de perdas financeiras;</p><p>vivia por seus meios privados. Apenas quando essa condição prevalece é</p><p>que homens de inteligência, integridade e bom gosto — o caráter</p><p>produtivo — se inclinarão a entrar na vida pública. Lord Acton se referia</p><p>ao poder político quando disse: “Todo poder corrompe e o poder</p><p>absoluto corrompe absolutamente.” O poder político tem esse efeito por</p><p>sua relação com a produção. O homem produtivo tem consciência de que</p><p>o gasto político é uma carga sobre a produção, gasto líquido. Não gosta</p><p>de viver à custa dos outros. Se for obrigado a abdicar de ganhos</p><p>particulares num valor maior do que recebe como remuneração por seu</p><p>cargo, mesmo que não tenha certeza de que seu trabalho vale o que</p><p>ganha, saberá que não procurou o cargo como um parasita. Deve-se</p><p>observar que os homens que hoje recusam pagamento por posições de</p><p>governo são, sem exceção, aqueles que estiveram mais ativamente</p><p>envolvidos na produção, dirigentes industriais. Os antigos “trabalhadores</p><p>sociais”, políticos profissionais e pessoas com ganhos imerecidos se</p><p>destacam pela ânsia com que se prendem à folha de pagamento política,</p><p>ou como mudam de posição política em troca de ganhos suplementares.</p><p>Não têm nenhum objetivo na vida política exceto o parasitismo. A visão</p><p>parasitária da política foi formulada inconscientemente quando começou</p><p>4 Posse comitatus: Autoridade estabelecida pelo direito comum (common law) que</p><p>permite que um xerife convoque qualquer cidadão fisicamente habilitado para auxiliá-</p><p>lo a manter a paz ou capturar um criminoso. (N. do T.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 154 -</p><p>a ser ouvida a discussão de que maiores salários, mordomias, mais</p><p>ostentação em prédios públicos, embaixadas e uniformes precisariam ser</p><p>fornecidos para manter a dignidade do cargo. Se uma posição é</p><p>considerada de acordo com seu gasto ou ostentação, obviamente a</p><p>dignidade e o valor intrínsecos estão faltando. Os embaixadores que</p><p>temem que, em roupas ordinárias, possam ser confundidos com garçons</p><p>provavelmente têm razão. Ninguém tomaria Franklin, Adams ou</p><p>Jefferson por um criado.</p><p>É dessa inversão de valores que o homem produtivo se ressente. Além</p><p>disso, ele sabe que será constantemente importunado por solicitações que</p><p>não tem o direito de atender, por parasitas que nunca encontraria na vida</p><p>produtiva. Por isso, os melhores homens só se acham na vida pública</p><p>quando é perigoso, difícil e à custa deles próprios.</p><p>O custo e a ostentação do governo são sempre inversamente</p><p>proporcionais à liberdade e à prosperidade dos cidadãos, como acontecia</p><p>com a nação depauperada e a monarquia grandiosa</p><p>de Luís XIV. Hoje,</p><p>quando nossa agricultura enfrenta sérias dificuldades, o Departamento de</p><p>Agricultura cresce como um fungo monstruoso. O imenso Departamento</p><p>de Comércio cresceu quando o comércio internacional definhava e o</p><p>comércio interno mergulhava na depressão.</p><p>Além disso, o poder político possui um efeito catraca; só funciona em</p><p>uma direção, para aumentar a si mesmo. Ocorre uma transferência pela</p><p>qual o poder não pode ser retraído depois que é concedido. No exemplo</p><p>mais simples, um candidato a um cargo pode prometer aos eleitores que</p><p>vai reduzir os impostos ou o número de cargos ou os poderes do cargo.</p><p>Mas, uma vez que é eleito, pode usar os impostos, os ocupantes dos</p><p>cargos ou os poderes para garantir sua reeleição; portanto, o motivo da</p><p>promessa não funciona mais. Se cortar os gastos, ou o número de cargos</p><p>ou a corrupção, certamente criará inimigos. Portanto, o motivo inverso,</p><p>que o impele a descumprir sua promessa, é duplicado. O eleitor pode</p><p>apenas evitar reelegê-lo; mas o próximo ocupante do cargo vai encontrar</p><p>esses poderes aumentados e será ainda mais difícil livrar-se deles. A</p><p>dificuldade de tomar de volta poderes uma vez concedidos se mostra na</p><p>abolição da Emenda da Lei Seca; embora essa medida fosse exigida e</p><p>apoiada pelo sentimento avassalador dos cidadãos, o artigo de abolição</p><p>continha um dispositivo que mantinha inúmeros empregos federais; foi</p><p>impossível fazer uma limpeza de todo o poder pernicioso usurpado. A</p><p>Emenda da Lei Seca é uma afirmação de governo absoluto, a indicação</p><p>da completa decomposição do corpo político. A emenda do “pato</p><p>XV. As Emendas Fatais</p><p>- 155 -</p><p>manco”5 é uma trivialidade que indica apenas a degradação da carta, um</p><p>rabisco à margem.</p><p>5 Emenda do pato manco: a Vigésima Emenda à Constituição dos Estados Unidos</p><p>mudou o início e o final dos mandatos do presidente e do vice-presidente de 4 de</p><p>março para 20 de janeiro e dos membros do Congresso de 4 de março para 3 de</p><p>janeiro. O presidente em final de mandato é conhecido como “pato manco” (lame</p><p>duck). (N. do T.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 156 -</p><p>- 157 -</p><p>XVI. As Grandes Empresas e a Lei de Status</p><p>nquanto o poder político se expande, o sistema de produção é</p><p>desorganizado direta e indiretamente. A Guerra Civil teve</p><p>conseqüências de longuíssimo prazo na vida econômica. A</p><p>“reconstrução” do Sul sobrecarregou os estados sulistas com dívidas</p><p>contraídas pelos sequazes do governo conquistador, a administração dos</p><p>aproveitadores. A conseqüência foi recusarem-se a pagar;</p><p>independentemente da solvência, os sulistas não se sentiam moralmente</p><p>obrigados. Não é difícil entender seu ponto de vista. Mesmo assim, eles</p><p>erraram; o repúdio a dívidas aterra a linha de transmissão de energia. O</p><p>Sul continuou prostrado economicamente, enquanto o restante da nação</p><p>progredia.</p><p>A Guerra Civil também levou o governo federal a financiar ferrovias,</p><p>por concessões de terra e subsídios em dinheiro. Com isso, iniciou-se a</p><p>era em que as empresas são acusadas de corromper a política. Mas</p><p>empresas não podem corromper a política. De maneira leviana, seria</p><p>possível dizer que a corrupção não pode corrompida. Mas, dentro de</p><p>limites corretos, a organização política não é corrupção. Esses limites</p><p>são indicados, de maneira aproximada, pela margem onde começa a</p><p>suposta corrupção pelas empresas. É claro que é a política que corrompe</p><p>as empresas. Ela corrompe até o grau em que foi ampliada além do seu</p><p>campo próprio. Negócios consistem em produção e comércio. São</p><p>atividades espontâneas, que são necessariamente executadas em</p><p>liberdade. Por isso, a propriedade privada individual é a condição</p><p>indispensável para um sistema de alta energia; o proprietário não tem de</p><p>esperar por uma permissão para colocá-la em uso. O campo dos negócios</p><p>é primário.</p><p>A política consiste no poder de proibir, obstruir e expropriar. Seu campo</p><p>é marginal. Mas, por essa razão, ela sempre tende a invadir o campo</p><p>primário da liberdade, de tal maneira que o produtor pode ser obrigado a</p><p>obter permissão para conseguir trabalhar. Onde é exigida permissão ou a</p><p>expropriação é possível, um pagamento pode ser extorquido. O elemento</p><p>da corrupção é inerente aos negócios ou à política?</p><p>É errado produzir alguma coisa ou comprar e vender produtos? Não.</p><p>Então, isso não pode levar a corrupção a algum outro lugar. É errado</p><p>restringir, obstruir ou tomar os bens de outra pessoa? Sim. É sempre</p><p>errado se for feito por ação originária (em vez de por reação). O</p><p>potencial de corrupção então reside na política, não nos negócios.</p><p>E</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 158 -</p><p>Quando a política é notavelmente corrupta, isso é um indicativo infalível</p><p>de que existe poder político excessivo, que se estende além de seu</p><p>campo de ação marginal próprio.</p><p>O poder político, tanto de obstruir como de expropriar, foi assim</p><p>estendido no caso das ferrovias. Para integrar o oeste, o governo federal</p><p>concedeu vastas áreas de terra e deu subsídios em dinheiro para uma</p><p>ferrovia transcontinental. Se a Guerra Civil não tivesse acontecido,</p><p>provavelmente o governo federal não teria tomado essa ação. Nessa</p><p>hipótese, ninguém pode dizer quanto tempo levaria para que uma linha</p><p>transcontinental passasse a existir, se é que existiria; mas, sem nenhuma</p><p>dúvida, haveria alguns anos de atraso. Eis aqui a combinação de</p><p>circunstâncias e a seqüência de eventos que dão plausibilidade ao</p><p>argumento de que é correto que a ação política se estenda ao campo</p><p>primário da economia. Não houve um ganho positivo, pelo menos no</p><p>tempo? De fato, como uma linha transcontinental poderia ser construída,</p><p>atravessando a longa extensão selvagem, sem subsídios federais?</p><p>Vou responder primeiro a última questão. Se o poder político</p><p>simplesmente tivesse permitido que qualquer um que quisesse construir</p><p>uma linha transcontinental adquirisse os títulos para o necessário direito</p><p>de passagem nos mesmos termos que qualquer colono no território</p><p>virgem, fosse por compra ou por posse, uso e registro, uma estrada de</p><p>ferro teria sido construída tão logo existisse uma perspectiva razoável de</p><p>tráfego suficiente, ou talvez um pouco antes disso.</p><p>Mesmo assim, nas circunstâncias existentes, houve o “ganho de tempo”</p><p>cronológico. O desenvolvimento pelo capitalismo privado funciona</p><p>numa equação auto-ajustável de espaço e tempo entre os circuitos de</p><p>energia locais e o longo circuito. O solitário caçador na fronteira era um</p><p>capitalista de vanguarda. Podia trazer uma carga de peles para vender</p><p>apenas uma vez por ano; então, essa carga viajava num carroção fretado.</p><p>Pode-se dizer que havia uma distância de um ano ou mais entre ele e seu</p><p>mercado. Por outro lado, seu tempo de produção e venda era mesmo de</p><p>um ano, aproximadamente; ele podia agüentar dois anos, se necessário.</p><p>Mas se os preços das peles e as tarifas dos fretes permitissem, um</p><p>transporte competitivo seria atraído, em um ano ou dois.</p><p>As fazendas também avançaram pelo território selvagem pela iniciativa</p><p>privada, num ritmo que se ajustava, conforme o excedente de produção</p><p>compensasse o tempo e a distância (transporte). Se um grupo de</p><p>fazendeiros tivesse “ganho” tempo, em termos de distância, para dentro</p><p>do território selvagem, isso seria na verdade uma piora em sua situação.</p><p>XVI. As Grandes Empresas e a Lei de Status</p><p>- 159 -</p><p>Por toda a economia privada, os custos e riscos são evidentes por si</p><p>mesmos e as condições são abertas à escolha. Erros são autodestrutivos.</p><p>Havia uma peculiaridade na economia escravagista. Ela era incapaz de</p><p>pioneirismo, não conseguindo ir além dos limites da autoridade política</p><p>estabelecida, do seu tipo singular. Se um senhor obrigasse seus escravos</p><p>a carregar a si e a seus bens além dos limites do poder coletivo por meio</p><p>do qual impunha seus comandos — e</p><p>podiam pagar. Assim também os</p><p>agricultores do Sul eram empresários rurais em vez de reais cultivadores do solo. Nem</p><p>um financista nem um avarento parecem ser soldados ideais; mas não se pode negar</p><p>que aqueles foram excelentes combatentes. Os detalhes são duplamente</p><p>desconcertantes, uma vez que os resultados não foram os mesmos; Roma triunfou, o</p><p>Sul foi derrotado. (N. da A.)</p><p>http://en.wikisource.org/wiki/Lays_of_Ancient_Rome/Horatius</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 14 -</p><p>interior em busca de soldados e suprimentos, inclusive prata, que era</p><p>moeda sonante. Além das montanhas, ele esperava outra circunstância</p><p>compensadora, mas foi frustrado. Muitas das tribos ou cidades do norte</p><p>da Itália eram aliadas de Roma, a quem eram mais ou menos</p><p>subordinadas. Aníbal presumiu que elas se uniriam aos invasores para se</p><p>livrarem do jugo romano. Em vez disso, permaneceram fiéis a Roma,</p><p>pelo menos tacitamente. Porém, quando Cipião levou a guerra à África,</p><p>os mais proveitosos auxiliares locais de Cartago, os Númidas,</p><p>bandearam-se para os romanos e foram vitoriosos. Seja o que for que</p><p>envolva a construção de um império, o comportamento dos povos</p><p>tributários e a confiabilidade dos aliados deve ser parte dela; o ponto</p><p>crucial é aquilo que os induz a escolher um lado. A proximidade não é</p><p>suficiente. As explicações convencionais são meramente declarações</p><p>superficiais do que aconteceu.</p><p>Como evento, o que ocorreu quando Cartago foi destruída foi de</p><p>importância imensa e permanente. Embora a conseqüência não tenha</p><p>podido ser apreendida de uma vez, isso prognosticou a futura ascensão</p><p>da Europa e o declínio, no equilíbrio do poder mundial, do hemisfério</p><p>oriental. Uma pesquisa racional deveria investigar a natureza do</p><p>processo que foi conduzido até então pelos fenícios e que só pôde</p><p>continuar a ser realizado por Roma; e o surgimento aparentemente</p><p>acidental de Pítias, um grego, como aquele que abriu a porta.</p><p>A resposta fácil, por que Pítias é lembrado e seus predecessores</p><p>permaneceram anônimos, é que ele escreveu uma narrativa de sua</p><p>viagem. Como os fenícios eram alfabetizados, isso nos leva a perguntar</p><p>por que não o fizeram muito antes, a partir de sua experiência tão maior.</p><p>Não o fizeram porque pretendiam preservar um completo monopólio do</p><p>Atlântico. Não era uma questão de altas tarifas, ou nações favorecidas,</p><p>ou um bloqueio em tempo de guerra. Com o estreito sob seu domínio,</p><p>nenhuma embarcação podia passar exceto as deles, na paz ou na guerra,</p><p>em qualquer condição. Cartago apostava sua existência nessa política de</p><p>exclusão. Ocasionalmente, sem dúvida algum pirata temerário furava o</p><p>bloqueio. Mas, se o fizesse, poderia não voltar nunca. Onde quer que ele</p><p>aportasse no litoral proibido, arriscava-se a encontrar os fenícios,</p><p>situação em que o navio não autorizado estava sujeito a ser apreendido e</p><p>a tripulação a ser morta. Nenhuma palavra podia retornar. Não era à toa</p><p>que rumores preenchiam aquelas regiões remotas com terrores vagos.</p><p>Supõe-se que Pítias conseguiu fazer sua exploração em segurança e</p><p>escrever seu relato enquanto Cartago estava sendo atacada por Siracusa,</p><p>deixando os estreitos insuficientemente vigiados. Se foi assim, a</p><p>vigilância foi retomada em pouco tempo, e mantida até o fim. Na</p><p>I. O Ciclo de Energia no Mundo Clássico</p><p>- 15 -</p><p>corrente principal, o fluxo de energia enfim esmagou os fenícios na</p><p>estreita eclusa que eles haviam reservado para seu exclusivo benefício.</p><p>Era forte demais e os fez em pedaços.</p><p>No sentido em que os engenheiros falam de carga hidráulica, os romanos</p><p>representaram uma carga de forças canalizadas. Nem por sua localização</p><p>nem por seu progresso material, nenhuma pista econômica explica sua</p><p>função. E, se fosse verdade hoje que mesmo nossa história mais recente</p><p>não serve como instrução porque vivemos num mundo que muda e</p><p>temos de lidar com condições inteiramente novas, então isso sempre</p><p>teria sido verdade. Não é verdade, nem nunca foi. O que o passado</p><p>demonstra, com provas avassaladoras, é que os imponderáveis têm mais</p><p>peso que qualquer artigo material na balança do esforço humano. Nações</p><p>não são poderosas porque possuem terras extensas, portos seguros,</p><p>grandes marinhas, imensos exércitos, fortificações, depósitos, dinheiro e</p><p>crédito. Elas adquirem essas vantagens porque são poderosas, tendo</p><p>desenvolvido sobre princípios corretos a estrutura política que permite</p><p>que o fluxo de energia tome seu curso adequado. A questão é como;</p><p>porque o gerador e as possíveis linhas de transmissão e saídas</p><p>disponíveis tanto para o benefício como para a destruição são sempre os</p><p>mesmos. A única diferença entre o passado e o presente com respeito à</p><p>energia é quantitativa, um maior potencial disponível num maior fluxo, o</p><p>que faz com que uma conexão errada seja mais terrível em seus efeitos</p><p>por uma dada proporção, tornando-se aparente literalmente numa</p><p>explosão mundial. Os princípios de conversão de energia e do</p><p>mecanismo adequado para o uso humano não podem mudar; são</p><p>universais.</p><p>Se Roma, no devido tempo, forçou as travas do Atlântico, havia uma</p><p>razão. Mesmo assim, foi um grego que atravessou sozinho. Além disso,</p><p>o caráter pessoal de Pítias é tão relevante que a ficção dificilmente</p><p>poderia inventá-lo. Ele era um cientista e um aventureiro mercante. Seu</p><p>livro se perdeu; poucos excertos e referências foram preservados na obra</p><p>de geógrafos posteriores. Eles o citam com desprezo; não acreditam nele,</p><p>uma vez que suas observações contradiziam a teoria ortodoxa sobre o</p><p>clima e as condições gerais das latitudes setentrionais. Vilhjalmur</p><p>Stefansson11 reabilitou mais tarde a reputação de Pítias no quesito</p><p>precisão. Embora seus críticos admitissem que Pítias deu contribuições</p><p>valiosas à ciência exata da astronomia, aplicada à navegação, ele foi</p><p>acusado de mentir sobre o que viu com seus próprios olhos, por homens</p><p>que nunca estiveram lá. O que deve ser ressaltado é a forma de oposição</p><p>que ele foi obrigado a enfrentar, banimento político enquanto estava vivo</p><p>11 STEFANSSON, Vilhjalmur. Ultima Thule. Macmillan. (N. da A.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 16 -</p><p>e censura acadêmica após sua morte. Teorias, quando adquirem</p><p>credibilidade, tornam-se direitos adquiridos. O prestígio e o sustento de</p><p>escolas e professores estão vinculados a elas; eles tendem a doutrinas</p><p>fechadas, não a se abrir a informações novas.</p><p>Pítias abriu o caminho, por onde os fenícios, com toda sua astúcia e</p><p>audácia e suas prioridades factuais, não o fizeram; porque era dotado da</p><p>rara combinação de curiosidade desinteressada, intelecto especulativo e</p><p>empreendedorismo ativo, qualidades que o impeliram a escorregar por</p><p>uma barreira oficial de extremo rigor para experimentar os riscos do</p><p>desconhecido. Pítias figura entre os descobridores notáveis, um modelo</p><p>de mente aberta. Ele não podia saber que estava olhando para a América.</p><p>- 17 -</p><p>II. O Poder das Idéias</p><p>a perspectiva histórica, os fenícios são únicos; embora tenham</p><p>tido uma participação ativa e extraordinária nos eventos de seu</p><p>tempo, foi no papel de antagonistas. No instante em que</p><p>desapareceram, desvaneceram-se em irrealidade, sem deixar resíduo.</p><p>Não sentimos que tenham legado nada de substancial a nós, nada que</p><p>tenha se incorporado a nossos ossos, se entrelaçado na textura de nossa</p><p>vida. É extremamente paradoxal, uma vez que nossa herança da Grécia e</p><p>de Roma consiste em abstrações, enquanto os fenícios eram práticos e</p><p>tiveram sucesso com um tipo de organização internacional. Acima de</p><p>tudo, tocaram os pontos em que nossas idéias vitais se originaram. Sua</p><p>atividade estimulou a Grécia a especular e forçou Roma a se expandir;</p><p>erigiram o Templo de Jerusalém e receberam como garantia as humildes</p><p>aldeias da Galiléia. Foram transportadores e catalisadores. Porém, parece</p><p>que começamos novamente</p><p>que, de fato, os fazia escravos —</p><p>não teria mais controle sobre eles. Não voltaria, nem traria seus bens de</p><p>volta da maneira como foi. Aconteceria o mesmo a qualquer pessoa que</p><p>usasse escravos da mesma maneira, por concessão do proprietário.</p><p>Viajantes na África relataram como receberam carregadores sob o</p><p>comando de algum chefe nativo; os carregadores levavam a carga até</p><p>certa distância e, então, passavam a ignorar qualquer ordem. Só podemos</p><p>saber se os viajantes “ganharam tempo” ou não se calcularmos o tempo</p><p>que levaram para encontrar algum outro meio de transporte para sair</p><p>dessa encrenca.</p><p>A situação peculiar dos fazendeiros do oeste fica clara quando</p><p>examinamos suas reclamações. Os fretes ferroviários eram tão mais</p><p>baratos que os fretes de carroça, pela mesma distância, que não há</p><p>comparação. As viagens também eram dez vezes mais rápidas. Mesmo</p><p>assim, os fazendeiros denunciavam as ferrovias por tarifas excessivas; e,</p><p>se ocorria um atraso, isso causava grande irritação. Se alguém sugerisse</p><p>a um fazendeiro do oeste que, se ele achasse os preços excessivos, devia</p><p>usar alguma linha concorrente ou algum outro método de transporte, o</p><p>fazendeiro ficaria indignado. Não havia nenhum, e ele não podia</p><p>esperar até que a concorrência surgisse. O tempo e a distância que</p><p>pareciam ter sido “ganhos” eram simplesmente a medida da distância no</p><p>tempo para a concorrência; o que significa para o mercado. O poder</p><p>político interveio e foi esse o efeito inevitável. Os fazendeiros do oeste,</p><p>que voluntariamente aproveitaram o que parecia ser uma vantagem, ao</p><p>fazê-lo renunciaram ao poder de escolha por tempo indeterminado. A</p><p>intervenção do poder político criou um monopólio. E mesmo seus</p><p>supostos beneficiários o achavam odioso.</p><p>Curiosamente, as pessoas faziam a diferenciação correta</p><p>emocionalmente, embora não conseguissem traduzi-la para a razão.</p><p>Existe uma forte ambigüidade no sentimento despertado pelas ferrovias.</p><p>A visão e o som de uma locomotiva ainda evocam, para os americanos,</p><p>prodígio, romantismo e expectativas esperançosas. Em distritos rurais e</p><p>pequenas cidades, todos gostavam de viajar de trem. As pessoas iam às</p><p>estações para ver o trem chegar. Conheciam os expressos pelo número,</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 160 -</p><p>ouviam o apito como um som amigo, acenavam quando os trens</p><p>passavam. Odiavam “a ferrovia” apenas como uma abstração.1</p><p>Mas o que exatamente eles odiavam? Certamente, não pretendiam abolir</p><p>as ferrovias e nunca mais ver nenhuma. A diferença aparece claramente.</p><p>Tudo o que era criação da iniciativa privada nas ferrovias trazia</p><p>satisfação. A iniciativa privada minerou, fundiu e forjou o ferro,</p><p>inventou a máquina a vapor, desenvolveu instrumentos de controle,</p><p>produziu e acumulou capital, organizou o esforço. Na construção e</p><p>operação de estradas de ferro, tudo o que pertence à esfera da iniciativa</p><p>privada foi feito com competência. A primeira linha transcontinental foi</p><p>o maior problema de engenharia resolvido de uma vez até então. Foi</p><p>construída com uma velocidade inédita do longo circuito de energia de</p><p>alto potencial ao qual pertencia. A mesma competência para organização</p><p>de sistemas de alta energia se incorporou à operação das linhas. Nenhum</p><p>tipo de negócio anterior precisava de um décimo da habilidade desta</p><p>atividade; os horários precisavam ser exatos, contínuos e, mesmo assim,</p><p>instantaneamente ajustáveis em cada detalhe, no tempo e no espaço,</p><p>lidando com quantidades imprevisíveis de pessoas e unidades de bens</p><p>em trânsito entre milhares de pontos intermediários num sistema</p><p>ramificado, em todas as direções, na máxima velocidade. Provavelmente,</p><p>as ferrovias ainda representam o pico de eficiência em gerenciamento</p><p>operacional, porque nenhuma demanda maior foi feita ainda em qualquer</p><p>outro tipo de negócio. E, no conjunto, o público respeitava essa</p><p>realização.</p><p>O que as pessoas odiavam era o monopólio. O monopólio, e nada mais, é</p><p>a contribuição política.</p><p>Mesmo em sua aplicação adequada, o poder político tende a causar</p><p>irritação — muito mais quando ela é indevida. A vida protesta</p><p>instantaneamente contra a compulsão, o aprisionamento ou a</p><p>expropriação de seu produto criativo. A nuvem negra de puro ódio,</p><p>1 Exceto talvez na Califórnia, especialmente em São Francisco, onde não é exagero</p><p>dizer que as pessoas detestavam até o trem, os trilhos e a estação ferroviária, com</p><p>hostilidade concreta. Existem razões para esse sentimento local. A Califórnia tinha</p><p>existência independente antes do surgimento das estradas de ferro. Então, alguns</p><p>magnatas ferroviários moravam lá, visivelmente desfrutando de imensas fortunas</p><p>ganhas pelos subsídios políticos que foram dados as linhas férreas. Além disso, houve</p><p>casos locais flagrantes de fazendeiros positivamente espoliados por uma companhia</p><p>ferroviária em contratos de terra e que nunca foram ressarcidos; aqui, outra vez, o</p><p>poder político foi usado para perpetrar a injustiça. Homens foram mortos por</p><p>defender seus direitos de propriedade. A mistura de poder político à vida econômica</p><p>teve o costumeiro efeito de corrupção insolente. (N. da A.)</p><p>XVI. As Grandes Empresas e a Lei de Status</p><p>- 161 -</p><p>desespero vingativo, que obscurece o mundo civilizado neste momento,</p><p>é evocada pela onipresença de agências políticas. A Gestapo e a Ogpu ou</p><p>Cheka2 são as crias gosmentas do Estado Absoluto.</p><p>A conseqüência direta da intromissão do poder político no campo</p><p>primário da livre iniciativa, com respeito às ferrovias, foi que novos</p><p>Estados foram admitidos na União antes que tivessem tempo de</p><p>desenvolver verdadeiros interesses regionais e entidades políticas. Em</p><p>um caso pelo menos, um Estado foi designado apenas para garantir uma</p><p>maioria política na nação. Sendo de fato criações do governo federal e</p><p>não dos seus cidadãos, os novos Estados tendiam a buscar no governo</p><p>federal legislações especiais, inclusive de caridade.</p><p>A conseqüência indireta é igualmente ruim. Obviamente, se recursos</p><p>públicos foram concedidos para qualquer coisa que se imagine, com o</p><p>pretexto de que é para o benefício geral dos cidadãos, todo cidadão deve</p><p>ter o direito de usar o que foi criado com esse dinheiro em igualdade de</p><p>condições. (Ele pode absolutamente não querer usar; pode até ter sido</p><p>arruinado financeiramente em seu patrimônio por não conseguir</p><p>competir com a companhia mantida pelo governo, mas ninguém</p><p>pergunta isso a ele.) Então, o governo deve ter autoridade para impor</p><p>essa igualdade. (O governo já destruiu o poder natural do indivíduo de</p><p>fazer com que a companhia aceite condições pela competição.) Uma</p><p>“regulamentação governamental” é imposta. Na verdade, isso não trará</p><p>qualquer bem ao cidadão; o resultado é que as estradas de ferro não</p><p>podem fazer as melhorias desejáveis ou descontinuar gastos inúteis.3</p><p>Mas o poder está lá, e fatalmente será usado. (Não traz nenhum bem</p><p>simplesmente porque a “economia mista” não deixa nenhuma base para</p><p>a justiça; não existe nenhuma razão ética pela qual alguém teria o direito</p><p>a um subsídio de dez dólares vindo de recursos públicos, quanto mais</p><p>um subsídio de um milhão de dólares.)</p><p>O gerenciamento bem sucedido e a iniciativa produtiva sempre foram</p><p>admirados e respeitados, como devem ser; atualmente, tornaram-se</p><p>objeto de suspeita e de ressentimento. A mudança de sentimento pode</p><p>ser facilmente rastreada até a origem. Se alguma empresa pode ser</p><p>identificada, depois das estradas de ferro, tendo incorrido nessa desonra,</p><p>2 Gestapo: polícia política da Alemanha nazista. Ogpu e Cheka: nomes da polícia</p><p>política soviética, depois chamada de KGB. (N. do T.)</p><p>3 A melhoria verdadeira do serviço de ferrovias e a economia de gerenciamento</p><p>permaneceram no ritmo do desenvolvimento de métodos competitivos de transporte,</p><p>com automóveis e aviões.</p><p>com a Grécia e com Roma. Racionalmente,</p><p>não pode ser verdade; mas a ilusão deve ter uma razão. É que os fenícios</p><p>eram intrinsecamente um fenômeno físico. Conectaram-se a um circuito</p><p>de energia ao qual seu mecanismo político não podia se ajustar. Nos</p><p>assuntos humanos, o que dura é apenas o que está no pensamento dos</p><p>homens. A humanidade como tal é um conceito intelectual. Como nação,</p><p>os fenícios se desintegraram pelo impacto de uma nova idéia. Mas três</p><p>novas idéias já estavam nascendo, que formariam a estrutura da Europa</p><p>e, mais tarde, recombinando-se, criariam o Novo Mundo. Essas idéias</p><p>complementares precisam ser relembradas.</p><p>A fama da Grécia é normalmente identificada com a arte e as letras; mas</p><p>a influência duradoura da Grécia não deriva de nenhuma das duas. A</p><p>arquitetura grega é do mais simples design, inorgânica como um cristal,</p><p>famosa pela proporção delicada e pela refinada ornamentação, mas sem</p><p>indicar nenhum desenvolvimento posterior. A escultura grega fixava um</p><p>tipo escolhido em perfeição imutável. A arte da Grécia era autocontida e</p><p>estática. Escapa dos limites pela qualidade atemporal de um momento de</p><p>beleza salvo e preservado, desafiando o fluxo eterno. Da mesma</p><p>maneira, os gregos estavam num beco sem saída em seu sistema social.</p><p>Suas divindades não possuíam ordem moral, representando, em vez</p><p>disso, o capricho indiferente da natureza em relação ao homem. Além</p><p>disso, os deuses tornaram-se distantes; para os homens educados, a fé era</p><p>diluída numa fantasia poética. Como conseqüência, os gregos tendiam a</p><p>considerar o universo como fenômeno puro. Os costumes domésticos</p><p>gregos não faziam do lar um centro de forte envolvimento emocional. O</p><p>companheirismo mental era procurado em outro lugar; restrições</p><p>normais foram afrouxadas a um grau sem precedentes. O método</p><p>N</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 18 -</p><p>político grego era análogo a tudo isso, como é de se esperar num lugar</p><p>em que a lógica suplantou a tradição e, mesmo assim, não encontrou um</p><p>princípio. A democracia é puro processo, consistindo em uma série de</p><p>expedientes pragmáticos, aos quais se chegava pelo voto da maioria,</p><p>pelo veredito dos números. Seus resultados são aleatórios e não há</p><p>continuidade, exceto nas pessoas envolvidas. Na verdade, funciona pela</p><p>força do costume e é, portanto, irrealizável exceto com uma pequena</p><p>comunidade de uma cultura completamente homogênea. Mesmo assim,</p><p>pelo hábito grego de pensamento, que era a livre investigação, o costume</p><p>já estava desacreditado. A democracia inevitavelmente descamba em</p><p>tirania; mas enquanto está instável, pode deixar temporariamente uma</p><p>larga margem de conduta e pensamento não regulados. Não se presume</p><p>que seja assim por direito; isso ocorre porque o poder do todo (o povo) é</p><p>teoricamente um poder plenário indiferenciado em suas partes ou</p><p>agências. O que é problema de todos não é problema de ninguém. O</p><p>poder pleno só pode ser exercido em uma economia fechada, como a que</p><p>havia em Esparta, onde realmente não havia nenhuma margem para</p><p>nada. Os atenienses, estando abertos ao comércio, por algum tempo</p><p>tomaram a liberdade de pensar. O comércio e as viagens permitiram que</p><p>fizessem observações comparativas; eram ávidos por ouvir coisas novas.</p><p>A idéia que desenvolveram, tomada por si mesma, corroeu as</p><p>instituições que possuíam; agravou o perigo em que estavam ao</p><p>enfraquecer o tecido social. Ainda assim, eles a formularam</p><p>corajosamente; e foi sua contribuição para o futuro. Pítias a encarnou. Os</p><p>gregos tiveram a idéia da ciência.</p><p>Os selvagens adquirem informações sem classificá-las em categorias</p><p>conforme os atributos ou qualidades das coisas. Sociedades mais</p><p>avançadas, mas ainda estabelecidas sobre a tradição, possuem ramos</p><p>separados de conhecimento que são basicamente considerados como</p><p>dados pela divindade. Assim, uma investigação mais aprofundada de</p><p>certas questões pode ser proibida como ímpia. Os gregos tinham as</p><p>fábulas premonitórias de Prometeu e de Ícaro. Entretanto, perceberam</p><p>que todo conhecimento poderia ser interconectado e que seria possível</p><p>ampliá-lo indefinidamente por meio da pesquisa racional. Examinaram</p><p>os processos do intelecto, aguçaram e testaram suas mentes para se</p><p>concentrarem em generalizações e na busca por axiomas. De maneira</p><p>inconsistente, desprezaram a aplicação prática. Ciência, diziam, deve ser</p><p>buscada pelo prazer intelectual de se conhecer a verdade. Essa atitude</p><p>singular surgiu das condições políticas adversas. A aplicação da ciência</p><p>à produção necessita de respeito à propriedade privada, de trabalho livre</p><p>e de tempo suficiente para que os benefícios oriundos do esforço e do</p><p>capital despendidos possam retornar. No caso dos gregos, a instabilidade</p><p>inescapável da democracia não dava nenhuma segurança ao indivíduo</p><p>II. O Poder das Idéias</p><p>- 19 -</p><p>contra a massa, nem à nação contra um ataque externo. Porém, enquanto</p><p>as idéias de um homem permanecerem puramente especulativas e o</p><p>usufruto confinado ao prazer intelectual, ele não poderá ser privado</p><p>dessas coisas enquanto viver e é assim que ele vai deixar que as coisas</p><p>fiquem. Um homem só pode pensar e trabalhar efetivamente se for por</p><p>seu próprio benefício.</p><p>Ainda assim, essa negação extraordinária pode ter tido alguma utilidade</p><p>naquelas circunstâncias, ao enfatizar o valor intrínseco do pensamento. E</p><p>é verdade que, quando os homens ficam absorvidos em dispositivos</p><p>práticos, correm o risco de estreitar seu campo de visão e perder de vista</p><p>a interconexão entre os vários ramos do conhecimento. Mais que isso,</p><p>como é o caso em questão, irão até se esquecer dos princípios mais</p><p>amplos que aplicaram e dos quais depende seu bem-estar.</p><p>Mas a implicação que os gregos deixaram de lado era, no fim das contas,</p><p>inescapável. A ciência é o governo da razão. Em vez de se resignar ao</p><p>destino inexorável do cego acaso, poderia ser possível, discernindo-se as</p><p>causas dos eventos, ordená-los segundo a vontade e realizar o que os</p><p>homens desejam. Uma abstração moverá uma montanha; nada pode</p><p>resistir a uma idéia. Os gregos encontraram a alavanca.</p><p>Aparentemente, os eventos zombaram deles. Enquanto filosofavam, a</p><p>montanha se moveu numa avalanche; Roma os conquistou. A julgar pela</p><p>aparência, dir-se-ia que foi uma vitória da substância bruta, uma</p><p>refutação da premissa oculta de superioridade da mente sobre a matéria.</p><p>Não foi; ao contrário, mesmo em sua ocorrência imediata, foi uma</p><p>vitória do intelecto. Roma também desenvolveu uma abstração, um</p><p>conceito político, que estava entre os universais. Roma teve a idéia da</p><p>lei.</p><p>Todas as nações possuem leis; os mais primitivos selvagens estão</p><p>obrigados por costumes e um costume que obriga é uma lei. Um tabu é</p><p>uma lei petrificada. Povos primitivos acreditam que suas leis são</p><p>permanentes, mesmo que arbitrárias, como “a lei dos medas e persas,</p><p>que não pode ser alterada”.1 O significado efetivo é que o costume pode</p><p>se alterar somente por graus imperceptíveis, se deve se manter válido.</p><p>Um costume não pode ser novo. A conseqüente desvantagem é que, se</p><p>um costume reinante é subitamente quebrado, não há um substituto</p><p>imediato. O que pode acontecer, por causa de guerra, peste, migração, ou</p><p>até por inovações que seriam benéficas, é um período de confusão, em</p><p>que o hábito é interrompido e são tentados expedientes; mas as</p><p>1 Daniel, 6:8 (N. do T.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 20 -</p><p>instituições resultantes não podem durar a menos que estejam imbuídas</p><p>de sentimentos tradicionais. É claro que o tecido da tradição nunca é</p><p>completamente destruído. Entretanto, uma vez que o costume não pode</p><p>se alterar rapidamente e, acima de um nível elementar de cultura, haverá</p><p>a necessidade ocasional de decidir um curso de ação que pode afetar o</p><p>grupo, um conselho informal e um líder são a evolução óbvia. Parece</p><p>ser</p><p>suficiente para um bando de caçadores nômades. O próximo passo, seja</p><p>um grupo de pastores nômades ou agricultores primitivos, pede uma</p><p>organização mais definida de caráter permanente; para garantir a</p><p>continuidade, a posição do chefe acabava se tornando mais ou menos</p><p>hereditária, com o sistema patriarcal de clãs. O clã era uma família</p><p>permanente; muitos idiomas ainda comprovam desse conceito. Se for</p><p>necessária uma distinção entre um chefe e um rei, no uso moderno é no</p><p>grau de organização formal, marcado pela nomeação ou reconhecimento</p><p>de autoridades com cargo fixo e deveres específicos. A evolução</p><p>simultânea, junto com o governo secular, de um clero com autoridade</p><p>moral é significativa. Teve seu sentido próprio. A “divisão de poderes” –</p><p>ou seja, a existência de agências opostas de autoridade moral e poder</p><p>físico – é uma característica natural da sociedade; portanto, também é</p><p>necessária na forma de governo para garantir a estabilidade.</p><p>Mas todas essas formas de associação são efetivas apenas em condições</p><p>apropriadas e têm seus defeitos inatos. O costume não é capaz de lidar</p><p>com o inesperado. A liderança não funciona com instituições</p><p>organizadas. A monarquia torna-se despótica. Cada tipo de associação</p><p>é adequado a um determinado modo de conversão de energia e vai</p><p>entrar em colapso ou se fundir em rigidez se for obrigada a receber um</p><p>potencial maior do que pode acomodar.</p><p>Quando uma nação passa por condições em que o costume se mostra</p><p>perecível, a liderança desastrosa e a monarquia opressiva, a razão deve</p><p>definir a fonte primária de autoridade, para investi-la em uma forma</p><p>viável.</p><p>Por essa seqüência, provavelmente encurtada, Roma tornou-se um</p><p>laboratório político. O que entrou no cadinho precisa ser deduzido a</p><p>partir dos mitos, lendas, tradições e instituições que se formaram nos</p><p>obscuros séculos da história inicial da cidade. Não parece que Roma</p><p>tenha sido nunca primitivamente bárbara, se a cidade teve seu princípio</p><p>no comércio, usando dinheiro2 e tornando as terras propriedade privada;</p><p>2 A familiaridade com a função do dinheiro permitiu a Roma governar um império no</p><p>devido tempo. Diz-se que os espartanos, não sendo acostumados ao dinheiro, eram</p><p>rapidamente pervertidos quando abandonavam sua modesta economia de</p><p>II. O Poder das Idéias</p><p>- 21 -</p><p>são elementos de uma civilização avançada. E as fábulas são</p><p>freqüentemente inconsistentes, como seria o caso se fossem parcialmente</p><p>importadas e misturadas. Histórias como a de Rômulo e Remo e do</p><p>estupro das Sabinas não podem ser aceitas literalmente; nem precisam</p><p>ser de origem local. O roubo de noivas faz parte de uma cultura bárbara,</p><p>na qual não há desonra. A crença de que uma loba amamentou Roma</p><p>deve ser ainda mais antiga e pode ser derivada de um totem selvagem;</p><p>mas não necessariamente, porque quando a Europa era bárbara, um</p><p>proscrito era uma “cabeça de lobo”, uma antiqüíssima figura de</p><p>linguagem. A sugestão nas três histórias é de que Roma sempre foi mais</p><p>ou menos uma cidade aberta, admitindo refugiados, exilados ou</p><p>imigrantes. Eles trariam costumes variados que deveriam ser</p><p>harmonizados segundo regras gerais.</p><p>De toda forma, a figura do asilo certamente se incorporou ao sistema</p><p>social e legal romano e, por fim, criou o caráter especial da cidadania</p><p>romana. Caracteristicamente, era necessário nascer grego, mas era</p><p>possível se tornar romano.</p><p>Outra vez, podemos suspeitar de um resquício de antigas dificuldades</p><p>em encontrar um modo avançado de associação que funcionasse, por</p><p>causa de uma instituição peculiar a Roma. É uma instituição altamente</p><p>extraordinária num povo civilizado, porque existia completamente fora</p><p>da ordem social. Ninguém sabia exatamente qual a sua função, no</p><p>sentido em que todos sabiam o que significavam as Virgens Vestais.</p><p>Esse cargo realizou seu objetivo de maneira tão completa que o objetivo</p><p>foi esquecido. Embora famosos por sua coragem militar, os romanos não</p><p>praticavam duelos, nem toleravam a vingança privada informal. Porém,</p><p>existia um homem, que devia ser um criminoso, dedicado a uma</p><p>ocupação que tinha de ser conquistada e mantida por assassinato. Esse</p><p>homem era o Sacerdote de Nemi, “beneath Aricia’s trees”.</p><p>Those trees in whose dim shadow</p><p>The ghastly priest doth reign,</p><p>The priest who slew the slayer,</p><p>And shall himself be slain.3</p><p>subsistência. Não conseguiam manter o mínimo de honestidade em relações</p><p>contratuais, tendo sido criados no comunismo. No nível mais baixo, não eram capazes</p><p>nem mesmo de entender os limites da corrupção. (N. da A.)</p><p>3 “Além das árvores de Arícia / Aquelas árvores em cuja sombra escura / O sacerdote</p><p>espectral impera / O sacerdote que assassinou o assassino / E será ele mesmo</p><p>assassinado.” Do poema The Battle of the Lake Regillus (A Batalha do Lago Regilo),</p><p>escrito por Lord Thomas Babington Macaulay em 1842. (N. do T.)</p><p>http://en.wikisource.org/wiki/Lays_of_Ancient_Rome/The_Battle_of_the_Lake_Regillus</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 22 -</p><p>Quem estava incumbido desse posto sanguinário havia obtido essa</p><p>função matando o ocupante anterior. Ele nunca poderia deixar o abrigo</p><p>do bosque sagrado e estava permanentemente sujeito a ser atacado por</p><p>outro fora-da-lei que conseguisse alcançar esse santuário da morte. O</p><p>Sacerdote do Ramo Sagrado foi explicado com referências eruditas a</p><p>ritos de sacrifício, o bode expiatório que carrega os pecados do povo ou</p><p>o deus-rei que morreu e foi ressuscitado, como o sol, para garantir a</p><p>fertilidade dos campos e da tribo. Esses rituais mágicos podem ter sido</p><p>incorporados pelo sacerdócio de Nemi. Mas os romanos eram</p><p>solidamente prosaicos até em suas superstições. Suas divindades eram</p><p>principalmente úteis, com funções práticas definidas. Bem, em sua</p><p>origem, havia um uso prático para o sacerdócio de Nemi. Era</p><p>desestimular atentados contra a liderança. Não se pode imaginar uma</p><p>medida mais ironicamente efetiva para desencorajar tais ambições que a</p><p>determinação de um ponto em que os aspirantes devem enfrentar</p><p>contendores e onde o vencedor deve continuar, para sempre, sujeito ao</p><p>mesmo desafio. Que ele tenha o que pediu e fique satisfeito – o recurso à</p><p>força. Obviamente, apenas homens já banidos procurariam o santuário</p><p>terrível. São esses os termos sob os quais o homem deve existir quando</p><p>não há lei. Estando já muito avançados, tendo superado os estágios do</p><p>costume e da liderança, e sendo conscientes da ineficácia da democracia,</p><p>os romanos foram obrigados a resolver o problema do governo em</p><p>termos racionais, trabalhando com o que tinham. Tinham a família como</p><p>a unidade social, compensada pela lei contratual sobre a propriedade, o</p><p>que fazia do indivíduo a unidade política. Assim, a família não podia se</p><p>dividir numa forma realmente feudal. Tinham clãs (gentes), de antiga</p><p>linhagem local, que podiam ser reconhecidos como uma aristocracia,</p><p>mas não em ordem hierárquica feudal. Tinham uma população grande e</p><p>variada, os plebeus, palavra que significa apenas multidão, as massas;</p><p>mas não necessariamente os pobres. O elemento mais importante eram</p><p>as tribos, ou seja, a divisão da cidade em áreas específicas, que</p><p>supostamente restaram da união prévia de três comunidades. Essas</p><p>divisões eram estritamente territoriais e políticas, com fronteiras fixas; as</p><p>pessoas eram incluídas nelas por local de residência, não por</p><p>descendência. Essas tribos tinham igual representação por direito a partir</p><p>da propriedade de terras, moradia; e tinham a obrigação de suprir</p><p>contribuições iguais para a defesa militar. Representação vinculada à</p><p>área. Mudanças subseqüentes – áreas adicionais, divisões novas ou</p><p>subdivisões por razões políticas – mantiveram essa forma; havia</p><p>fronteiras</p><p>regionais e representação.</p><p>Roma nunca foi um “todo” indiferenciado, uma simples agregação de</p><p>partículas, como postula a teoria da democracia. Desde o início, a cidade</p><p>de Roma foi uma federação, com a forma federal, que engloba bases</p><p>II. O Poder das Idéias</p><p>- 23 -</p><p>permanentes e estrutura, os elementos da arquitetura. Tanto os elementos</p><p>como a forma precisam de um sistema eletivo; e os romanos primeiro</p><p>tentaram um mandato vitalício para um executivo eleito. Foi</p><p>completamente insatisfatório, porque não é possível haver controle</p><p>confiável ou limitação dos poderes executivos nesse caso.4 Tendo-se</p><p>livrado de seus presidentes vitalícios (reis), os romanos tomaram</p><p>rigorosas precauções contra seu retorno por usurpação. Eles não teriam</p><p>só um executivo chefe; e, mesmo em posições mais baixas, inclinavam-</p><p>se por ter dualidade de cargos, o que funcionava muito bem no conjunto.</p><p>Os cargos políticos também eram restritos a mandatos fixos e curtos,</p><p>com rotatividade de exercício e intervalos em que um candidato não</p><p>poderia ser reeleito. Essa última disposição é correta, já que a única</p><p>razão para determinar um tempo de mandato é poder tirar o ocupante. O</p><p>principal objeto de votações, em qualquer caso, era o voto contra pessoas</p><p>ou medidas. Os romanos também suspeitavam continuamente de seus</p><p>generais, proibindo até um comandante vitorioso de reentrar na cidade</p><p>sem permissão formal. Estavam determinados a impedir a tomada militar</p><p>da autoridade civil. E foram assombrosamente bem-sucedidos,</p><p>considerando sua posição, que necessitava de uma boa porção de defesa</p><p>e constante prontidão militar. Nenhuma outra nação antiga manteve esse</p><p>controle civil sobre o exército por centenas de anos.</p><p>Os cargos políticos eram ocupados principalmente pela aristocracia e</p><p>eram em parte eletivos, em parte sujeitos a nomeação ou preenchidos por</p><p>cooptação; os diferentes métodos, com mandato vitalício apenas para</p><p>senadores, impediam a rigidez excessiva ao mesmo tempo em que</p><p>preservavam a continuidade. Também era possível que homens de</p><p>talento excepcional subissem a partir dos escalões inferiores. Nada era</p><p>absolutamente petrificado em status. A igualdade dos senadores</p><p>(diferente do que ocorre em uma aristocracia hierárquica) e a eleição de</p><p>outras autoridades não apenas permitia, mas exigia o debate público no</p><p>corpo de governo e a livre expressão de opiniões pelos cidadãos. Como</p><p>tanto os eleitores como os ocupantes de cargos públicos possuíam</p><p>propriedades, tinham um interesse sólido em manter a nação</p><p>funcionando, com a concomitante obrigação de defesa militar.</p><p>Mas o golpe inigualado de gênio político foi que o estado romano previa</p><p>não apenas o adiamento, mas o impasse concreto. O poder dos plebeus,</p><p>por meio de seus tribunos, era de obstrução manifesta. Os tribunos da</p><p>4 Uma monarquia constitucional hereditária só é possível como um desenvolvimento a</p><p>partir do verdadeiro feudalismo. A condição necessária é a sobrevivência de uma</p><p>aristocracia fundiária com herança inalienável. Quando isso desaparece, a monarquia</p><p>afunda em seguida. (N. da A.)</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 24 -</p><p>plebe não podiam propor nenhuma medida, mas podiam parar os</p><p>trabalhos; e suas pessoas eram invioláveis. Nada é mais essencial ao</p><p>bem-estar de uma nação que a restrição ao governo, por meios legítimos.</p><p>Um mecanismo sem freios, um motor sem dispositivo de corte, foi</p><p>construído para a autodestruição.</p><p>O sistema romano era duradouro porque era organizado de tal maneira</p><p>que as tensões se transformavam em força e o controle era assegurado</p><p>pela separação entre a agência executiva e o dispositivo de corte.</p><p>Essa realização se tornou possível pela definição da fonte de autoridade.</p><p>“Os romanos possuíam, desde os tempos mais antigos o conceito de jus, que é</p><p>mais amplo que o de direito positivo declarado por uma autoridade, e denota</p><p>uma ordem que obriga moralmente os membros da comunidade, tanto</p><p>humanos quanto divinos.”5</p><p>Essa idéia de direito como um conceito abstrato não é dada pelo</p><p>costume, pela liderança, por um conselho ou um rei; tampouco é</p><p>compatível com a democracia. Em todos esses casos, a autoridade é</p><p>arbitrária, tendo sido dada ou num costume particular, ou depositada em</p><p>pessoas por precedência (ancestralidade ou antiguidade) ou determinada</p><p>pelo número. Os romanos afirmaram que há uma ordem moral no</p><p>universo.</p><p>5 JACKSON, H. Stuart. Cambridge Ancient History: The Primitive Institutions of Rome.</p><p>Macmillan. (N. da A.)</p><p>- 25 -</p><p>III. Roma Descobre a Estrutura Política</p><p>ão é necessário dizer que a realidade ficava muito aquém do</p><p>ideal. As punições da lei romana eram excessivas e cruéis. A</p><p>escravidão e os privilégios de classe eram instituições legais; se</p><p>não fossem, não poderiam existir. A igualdade perante a lei era</p><p>exclusividade dos cidadãos, ou seja, apenas dos homens livres; e um</p><p>devedor corria o risco de ser escravizado. Essa visão brutal e irracional</p><p>da dívida, uma equação falsa, algumas vezes causou perturbações sociais</p><p>alarmantes; em momentos de pressão política, um perdão de dívidas</p><p>poderia ser declarado por uma legislação ex post facto, um remédio que</p><p>em certas ocasiões era quase tão injusto quanto o problema que tentava</p><p>resolver e só um pouco menos perigoso. Sentimentalizar a lei romana e</p><p>encobrir seus aspectos cruéis e defeituosos é deixar escapar o essencial.</p><p>Sua virtude incontestável era a sua mera existência, uma vez que, no pior</p><p>dos casos, era melhor que a vontade imprevisível do rei ou do povo. Em</p><p>sua conduta ordinária, os atenienses eram provavelmente mais humanos</p><p>ou tranqüilos que os romanos; mas a qualidade da lei romana era ser</p><p>confiável. A anedota, que conta que um ateniense votou pelo banimento</p><p>de Aristides porque estava cansado de ouvir Aristides ser chamado de o</p><p>Justo, pode ter sido inventada como piada. Mas não é impossível que</p><p>algo assim ocorresse no sistema democrático. Na lei romana, para que</p><p>uma sentença fosse aplicada, um homem precisava ser acusado de um</p><p>ato específico, com penas conhecidas, e condenado por algo mais</p><p>concreto que a opinião. Ninguém poderia ser considerado culpado sem</p><p>uma causa. Um simples exemplo, expresso na mais famosa conversa</p><p>secular da história, mostra como a lei romana criou um império, o</p><p>manteve unido, tornou-o viável e o fez funcionar.</p><p>Por ocasião de uma revolta popular, o Apóstolo Paulo foi preso por</p><p>guardas romanos. Quando estava para ser açoitado, “Paulo disse ao</p><p>centurião que ali estava: ‘É correto açoitar um cidadão romano sem que</p><p>ele tenha sido condenado?’”1 (Escravos eram açoitados quando</p><p>depunham como meras testemunhas; e, aparentemente, esse</p><p>procedimento era admissível, da mesma maneira, com estrangeiros.) O</p><p>centurião informou imediatamente seu superior sobre o protesto de</p><p>Paulo. “Então, o comandante dirigiu-se a Paulo e perguntou: ‘Diga-me,</p><p>você é cidadão romano?’ Ele respondeu: ‘Sim, sou’. Então o comandante</p><p>disse: ‘Eu precisei pagar um elevado preço por minha cidadania’.</p><p>Respondeu Paulo: ‘Mas eu nasci livre.’ […] E o próprio comandante</p><p>1 Atos dos Apóstolos, 22:25. (N. do T.)</p><p>N</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 26 -</p><p>ficou com medo.”2 Uma vez que Paulo estava em perigo por causa de</p><p>opositores fanáticos, recebeu proteção e foi depois levado diante do</p><p>governador Pórcio Festo. Seus inimigos então tentaram, por influências,</p><p>conseguir uma condenação sumária ou que Paulo fosse entregue a eles.</p><p>Festo disse “Não é costume dos romanos entregar um homem à morte,</p><p>sem que seus acusadores estejam presentes e ele possa se defender da</p><p>acusação.”3 Foi apresentada uma acusação de sedição, mas não foi</p><p>possível acrescentar mais nada que a lei romana definisse como esse</p><p>crime. O caso</p><p>era exatamente do tipo mais desagradável para uma</p><p>autoridade romana num posto provincial; mas as razões que o faziam</p><p>desagradável ao governador eram precisamente aquelas que tornavam</p><p>impossível evitá-lo ou tratá-lo arbitrariamente. Aparentemente, Festo</p><p>tentou convencer Paulo, como judeu, a se submeter à jurisdição local sob</p><p>a lei judaica. Evidentemente, o tribunal judeu não poderia julgar Paulo</p><p>por sedição; mas alguma outra acusação poderia ter sido feita, dentro de</p><p>sua competência legal, que não precisava ser assunto do governador</p><p>romano. Presumivelmente, se não encontrasse uma acusação válida,</p><p>Festo poderia simplesmente absolver o prisioneiro. Mas então, se Paulo</p><p>fosse preso pelas autoridades locais sob outra acusação, poderia exigir</p><p>ser julgado pela lei romana da mesma forma; e Festo teria o caso de</p><p>volta a suas mãos, certamente com complicações novas. Ou, se Paulo</p><p>fosse tirado do caminho clandestinamente, Festo seria suspeito de</p><p>conivência com uma perturbação política local em que um cidadão</p><p>romano foi sacrificado.</p><p>Paulo não cedeu: “Eu apelo a César.”</p><p>“Então Festo, tendo falado com o conselho, respondeu: ‘Apelaste a</p><p>César? Para César irás.’”4</p><p>O xis da questão é que um pobre pregador de rua — da classe</p><p>trabalhadora, preso e com inimigos em altas posições — teve apenas de</p><p>reclamar seus direitos civis para que esses direitos não pudessem ser</p><p>negados em nenhuma circunstância. Aqui, todo o processo histórico se</p><p>torna evidente em sua imperial realização.</p><p>É evidente o valor primário da idéia do direito, de estruturar a legislação.</p><p>Ela determina sanções morais que valem mais que a força e, ao mesmo</p><p>tempo, reconhece a falibilidade humana. Homens criaram os estatutos; e</p><p>entende-se que um estatuto pode ser injusto ou imprudente, mas uma lei</p><p>2 Atos dos Apóstolos, 22:27-29. (N. do T.)</p><p>3 Atos dos Apóstolos, 25:16. (N. do T.)</p><p>4 Atos dos Apóstolos, 25:11-12. (N. do T.)</p><p>III. Roma Descobre a Estrutura Política</p><p>- 27 -</p><p>ruim é responsabilidade dos legisladores; os estatutos poderiam ser</p><p>mudados, sem prejudicar a majestade da lei em princípio. Os meios de</p><p>revogação ou alteração eram previstos, sem que se fosse necessário</p><p>recorrer à violência. Assim, a idéia de lei atendia à razão, e era superior à</p><p>simples conveniência. Finalmente, a idéia de lei pressupõe que um</p><p>homem tem direitos que devem ser respeitados, e que ele só pode perder</p><p>por seus próprios atos. Embora nem todos os homens fossem livres, a</p><p>condição de um homem livre tinha sido definida. E, uma vez que se</p><p>descobrisse que a liberdade é inerente à ordem do universo, a lógica</p><p>acabaria por perguntar por que nem todos os homens eram livres.</p><p>O uso prático do conceito de lei na fundação do império começou com</p><p>as relações internacionais. Os hábitos mentais dos romanos faziam com</p><p>que eles fossem mais confiáveis na manutenção de tratados e mais</p><p>constantes contra revogações unilaterais. Portanto, era desejável aliar-se</p><p>a eles. Da mesma maneira, a clareza legal ajudava a especificar</p><p>condições que podiam ser aceitas. Sendo a cidadania formulada como</p><p>uma condição legal, e não um acidente de nascimento, Roma podia</p><p>concedê-la a um povo de outra nação. Esse tipo de concessão geral tinha</p><p>efeito sobre os indivíduos; a atração orbital, exercida primeiramente</p><p>sobre a massa, agia igualmente sobre as partículas separadas. O resultado</p><p>era uma verdadeira fusão ou solda, um composto químico, no lugar de</p><p>uma simples mistura ou encaixe. Era possível permitir que os</p><p>governantes locais anteriores mantivessem uma autoridade subsidiária;</p><p>nenhuma mudança de costumes era forçada sobre o povo; e o risco de</p><p>revolta era minimizado. Em situações de tensão, os cidadãos</p><p>individualmente buscariam proteção contra a tirania local agarrando-se a</p><p>Roma — como fez Paulo, já que a lei romana era supra territorial, da</p><p>mesma maneira que a lei canônica na Idade Média.</p><p>Depois que as partículas formavam uma substância homogênea, essa</p><p>substância era firme o suficiente para constituir uma estrutura duradoura.</p><p>Ao analisar ou descrever os sucessivos estágios e formas de associação</p><p>que os homens desenvolveram, é correto e consistente referir-se à ordem</p><p>representacional como arquitetura e à agência política em ação como</p><p>mecanismo. A estrutura deve acomodar o mecanismo; e cada um deve</p><p>corresponder respectivamente ao tipo de cultura e ao modo de conversão</p><p>de energia. Essas formas e mecanismos não ocorrem nem são montados</p><p>de maneira fortuita por um determinismo material. São criados pela</p><p>inteligência consciente, à luz da experiência. O progresso natural tende a</p><p>ser desigual; a incapacidade, por longo tempo, de fazer com que os</p><p>vários desenvolvimentos estejam em estágios compatíveis é a causa do</p><p>declínio e decadência das nações. Mas os métodos de produção não vão</p><p>ficar para trás das idéias políticas avançadas; mas, se uma avançada</p><p>Isabel Paterson O Deus da Máquina</p><p>- 28 -</p><p>economia física se desenvolve numa estrutura política que não consegue</p><p>acomodá-la, ou a produção é sufocada novamente ou destruirá a entidade</p><p>política, sendo subvertida pelos fins errados. Os gregos de fato</p><p>inventaram uma máquina a vapor rudimentar, mas foram incapazes de</p><p>aperfeiçoá-la e colocá-la em uso, por falta de uma organização política</p><p>que permitisse um potencial tão elevado. Nem o sistema romano poderia</p><p>comportá-la. A organização necessária não foi desenvolvida por quase</p><p>dois mil anos. Mas Roma sozinha, no mundo antigo, encontrou o</p><p>princípio político que acomodaria o potencial de energia já liberado.</p><p>Como arquitetura, a forma da República Romana utilizava os grandes</p><p>princípios da construção em pedra: o arco, por meio do qual a pressão</p><p>das partes opostas contribui para a coesão do peso superposto; a</p><p>cantaria5, em que unidades se sobrepõem em fileiras de tijolos; e o</p><p>arcobotante6, que dá estabilidade. As tribos cívicas, as famílias patrícias</p><p>e os membros do Senado eram os arcos e as pedras angulares7. A dupla</p><p>lealdade do cidadão, à família e ao estado, dava a sobreposição da</p><p>cantaria. A composição do exército republicano, uma milícia com cotas</p><p>fornecidas pelas tribos e oficiais do mais alto escalão pertencendo por</p><p>regra a famílias senatoriais, era idêntica, em sua estrutura vertical, ao</p><p>estado e à sociedade; assim, quando o exército era chamado a serviço,</p><p>permanecia como um arcobotante em relação ao todo.</p><p>A organização política da Roma republicana funcionava como a</p><p>seqüência mecânica de uma polia móvel8, com a linha de força subindo</p><p>uma estrutura vertical a partir de uma base fixa, para acionar um braço</p><p>extensor. Com a ascensão do Império, essa organização se tornou</p><p>inadequada ao campo de ação. O Império usava um sistema de fluxo de</p><p>gravidade com o aparato efetivo para desviar uma parte da energia para</p><p>manter o canal funcionando.</p><p>Tempo e distância são os dois fatores que necessitam de governo formal.</p><p>Por que e como necessitam? Devemos tratar disso mais tarde. Cada tipo</p><p>de governo é adequado a certas relações espaço-temporais dos</p><p>5 Cantaria: técnica de construção que consiste em sobrepor fileiras de pedras cortadas</p><p>que se encaixam. (N. do T.)</p><p>6 Arcobotante: construção em forma de meio arco, erguida na parte exterior dos</p><p>edifícios românicos e góticos, para apoiar as paredes e repartir o peso. Com ele foi</p><p>possível aumentar as alturas das edificações. (N. do T.)</p><p>7 Pedra angular: pedra central de um arco. Segura todas as outras pedras no lugar e,</p><p>se for removida, o arco desmorona. (N. do T.)</p><p>8 Polia móvel: Dispositivo que facilita a tarefa de levantar um objeto pesado. A cada</p><p>polia móvel colocada no sistema, a força necessária para erguer a carga é dividida por</p><p>dois. (N. do T.)</p><p>III. Roma Descobre a Estrutura Política</p><p>- 29 -</p><p>indivíduos entre si e destes com seu ambiente.</p>

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