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Texto sobre Florestan - Dominação Burguesa no Brasil - Ricardo Antunes

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FLORESTAN FERNANDES: TEORIA E POLÍTICA OU
AS FORMAS DA DOMINAÇAO BURGUESA NO BRASIL 
							RICARDO ANTUNES�
 	Como Florestan Fernandes pensou a questão da autocracia burguesa no Brasil no período recente e como este referencial fornece um veio interpretativo rico para o entendimento das formas de dominação burguesa no Brasil?
	 “A Revolução Burguesa no Brasil” talvez se constitua no mais importante livro de Florestan Fernandes. Como foi dito por Jacob Gorender, ela tem o sentido de uma obra inserida nos embates políticos de sua época. Mas, muito do que Florestan Fernandes escreveu depois de “A Revolução Burguesa no Brasil”, acaba sintomaticamente tendo uma presença menor na universidade e nos debates acadêmicos. É um pouco sobre esse período e essas obras que eu quero apresentar algumas questões.
	Inicialmente, vou tentar analisar a idéia da autocracia burguesa em Florestan, entendida como a forma de dominação possível em países como o nosso, que tem uma burguesia débil, de origem senhorial e colonial. Traços que marcam a especificidade da nossa revolução burguesa. 
O segundo ponto que eu vou tentar desenvolver é a idéia de que a partir desse conceito, a discussão que Florestan oferece sobre os anos 70, acaba sendo também bastante rica e original, para o entendimento das formas da dominação burguesa no Brasil. Quero também fazer uma brevíssima indicação de como Florestan Fernandes visualizava os caminhos do que chamou de “revolução social” no Brasil. 
Por fim uma nota do amigo Florestan.
	Como se sabe, com “A Revolução Burguesa no Brasil”, Florestan ofereceu uma densa e sólida análise da especificidade da constituição do capitalismo no Brasil. Análise esta distinta dos paises que vivenciaram uma via clássica de constituição do capitalismo. Ele apontou esses traços peculiares, singulares, da nossa formação social e da nossa revolução burguesa, distinta daquelas revoluções ocorridas na Europa. Enfatizou com muita força a sua ocorrência retardatária e o caráter não democrático das classes proprietárias no Brasil. E, ao fazer isso, demostrou a fragilidade estrutural da burguesia brasileira, herdeira da fração senhorial, da aristocracia cafeeira e da parcela de imigrantes que acabaram ingressando no mundo do comércio e da indústria. 
	Essa burguesia brasileira, fragilizada na sua dimensão econômica, vai recorrer constantemente às formas autocráticas de dominação. As mudanças graduais são, por isso, uma constante, ao invés das vias de rupturas. Essa me parece uma das principais contribuições que aparecem em “A Revolução Burguesa no Brasil”. Quer dizer, as nossas "revoluções" pagaram pesado tributo ao passado, pois tiveram mais mudanças graduais que rupturas. Foram sempre formas de acomodação e arranjo das classes dominantes. 
	“A Revolução Burguesa no Brasil” foi escrito em dois momentos. O primeiro momento em 1966 e o segundo em 1973. No sexto e no sétimo capítulos da terceira parte - que são de 1973 - Florestan trava um diálogo muito fértil com aqueles que procuravam entender os caminhos não clássicos das revoluções burguesas. E nesse diálogo, podemos lembrar as indicações de Marx, especialmente nos estudos de juventude, sobre a miséria alemã e as particularidades de uma revolução de tipo tardio. Podemos lembrar também a idéia da revolução passiva, de revolução/restauração do qual tratou Gramsci. Penso também que a discussão leniniana da via prussiana e da revolução pelo alto, como forma de constituição de um capitalismo tardio, influenciou bastante essa obra de Florestan. Lênin, tematizando a questão da via prussiana, do caso alemão, ofereceu indicações importantes das formas não clássicas de constituição do capitalismo. E, a partir deles, buscou entender os traços particulares e singularidades do capitalismo russo e das vias possíveis para a sua superação. E, poderíamos lembrar também, em relação ao mundo do ideário, da polêmica com o pensamento alemão, as indicações seminais de Lukács, sobre a via prussiana. 
	É exatamente neste complexo problemático, de entender as revoluções burguesas não clássicas, que ganha força a discussão presente em “A Revolução Burguesa no Brasil”. No Brasil presenciamos uma variante de revolução burguesa de tipo não clássico e que, por isso, foi muito distinta dos casos inglês, francês e mesmo norte-americana. E foi também uma "revolução" diferenciada (embora contemplando similitudes) das revoluções tardias, de que são exemplo a alemã e a italiana. 
	Penso que Florestan percebeu isto com muita força. Ele vai dizer que a nossa transição, a constituição do capitalismo brasileiro, foi realizada por uma “burguesia dotada de moderado instinto modernizador”, que recorria frequentemente aos procedimentos autocráticos de dominação. Aqui aparece a similitude com o processo alemão: aquela fração da aristocracia feudal (junker) que se aburguesa e se constitui no segmento fundamental, propulsor do capitalismo alemão, também foi autocrática e não dotada dos referenciais democrático-burgueses. No caso brasileiro, a nossa classe dominante, especialmente a de origem cafeeira, de origem rural, teve papel importante na consolidação do capitalismo industrial em nosso pais. Claro que, na gênese, ambas são muito distintas, bastando lembrar que a alemã era feudal e a brasileira, de origem colonial. 
	Exatamente por isso, o desenvolvimento da burguesia brasileira deu-se de modo associado e subordinado às burguesias centrais hegemônicas, o que resultava, na análise de Florestan Fernandes, numa debilidade, numa incompletude de classe, entendida no sentido da sua incapacidade em gestar uma alternativa autônoma e nacional, para efetivar um projeto econômico que tivesse como corolário uma realização política de corte mais democrático. 
	Ao contrário, essa irrealização e essa fragilidade da forma de ser da burguesia no Brasil, fazia com que ela buscasse, como necessária contrapartida para a preservação da sua dominação, formas frequentemente autocráticas de dominação, de que são exemplos o Estado Novo ou a ditadura militar pos-64, entre outros períodos. E estas formas de autocracia burguesa institucionalizada nunca se aproximam, nunca chegam a assumir uma feição democrática. 
	 Com o Golpe de 1964, por exemplo, a burguesia brasileira, dada a sua debilidade estrutural, impossibilitada de efetivar a constituição de um capitalismo em bases nacionais, abandona qualquer veleidade autonomista e democrática e recorre a uma forma autocrática de dominação acentuada. Florestan vai dizer em “A Revolução Burguesa no Brasil”: 
	“...a reação autodefensiva da burguesia só podia atingir seu ponto de maturação e de eclosão sob forte e persistente impregnação militar e tecnocrática. Era da própria essência do padrão agregado ou articulado de hegemonia burguesa que se transferissem para certos setores burgueses, civis e principalmente militares, as tarefas centrais do movimento histórico auto-defensivo e contra-revolucionário da burguesia... No plano histórico passava-se, pura e simplesmente, de uma ditadura de classe burguesa dissimulada e paternalista para uma ditadura de classe burguesa aberta e rígida”.
	Gestava-se, então, nesta linhagem analítica, uma das mais densas e férteis elaborações no interior do marxismo brasileiro Elaboração que conta, por certo, com aquele traço que se discutiu bastante em mesas anteriores, da síntese que Florestan procura oferecer incorporando vários autores clássicos, em especial aqueles que marcam o pensamento social contemporâneo. 
Mas eu diria que, a partir da “A Revolução Burguesa no Brasil”, e em especial desses capítulos que foram redigidos em 1973, aparece com mais força na sociologia de Florestan Fernandes, o acento de inspiração marxiana e especialmente leniniana.
	É uma clara continuidade e acentuação desta tendência, o livro “A Ditadura em Questão”, publicado em 1982, onde ele retoma teses e idéias que constam de “A Revolução Burguesa no Brasil”. Florestan nos oferece um veio analítico que permite ir além daquela polarizaçãoque marcou em grande medida a caracterização do Estado brasileiro no pos-64. Ele era entendido como um Estado autoritário, no meio do caminho entre um "Estado liberal e um Estado totalitário". 
Essa caracterização do Estado brasileiro paga, como se sabe, um forte tributo ao pensamento liberal. De outro lado, a linhagem aberta por Florestan nos permite ir além também da caracterização que se fazia no interior da esquerda brasileira, especialmente dos intelectuais sob a influência do PCB, que viam o Estado brasileiro pós-1964 como um Estado fascista. 
	A noção de autocracia burguesa institucionalizada nos permite ir além tanto da caracterização do estado brasileiro no pós-64 como autoritário, como na sua caracterização como fascista. A primeira, porque se trata ainda de uma forma abrandada de análise. A segunda, porque transplantada mecanicamente dos experimentos italiano e alemão. A noção de autocracia burguesa nos possibilita inclusive perceber as diferentes fases e matizes da ditadura militar, tanto na sua vertente mais brutal, do AI-5, da fase Médici etc., quanto daquela versão que começa a se gestar em meados dos anos 70, no seio da própria ditadura, com a "política de distensão" de Geisel e com a "política de abertura" de Figueiredo. Aqui Florestan elabora, para a sociologia política de inspiração marxista, uma pista original: a idéia de que a "liberalização" de Geisel e depois com Figueiredo, veio “outorgada” - a expressão é do próprio autor - pelo núcleo do poder militar. Aquela república autocrática institucionalizada que se buscava em meados dos anos 70, era em verdade uma “auto reforma” gestada nos laboratórios políticos da própria ditadura. 
	A idéia que Florestan Fernandes desenvolve é a de que aquilo que equivocadamente foi denominado como “abertura”, não foi um projeto onde a centralidade da ação das oposições levou à derrota do Regime Militar, como defendiam os teóricos do Estado autoritário. Tratava-se, em verdade, de uma “auto reforma” da ditadura “... destinada a provocar uma gradual desconcentração militar do regime.”.
Ele vai dizer, ainda, que “...a liberalização outorgada é mais um fator de continuidade que um fator de colapso da Ditadura”. E mais: “... a burguesia deveria perder o despotismo de seu braço militar, embora este se mantivesse atento, em posições chave, para moldar a transição e converter a ditadura por outros meios em uma democracia tutelar.” De modo que “não foram, portanto, as forças organizadas da sociedade que desgastaram a contra-revolução. Foram as forças espontâneas que emergiram das alterações mais recentes do regime de classes e da luta de classes”, das quais ele identifica, “...entre essas ações espontâneas mais recentes, a ação sindical, a oposição religiosa e a luta política da esquerda e as ações estudantis”. 
	Nesse campo das “ações espontâneas” encontravam-se os pólos que de algum modo opunham-se ao projeto de auto-reforma da ditadura. É claro que Florestan percebia que esta “auto-reforma” era uma resposta do poder em função de pressões sociais. Mas há embutido aqui uma discussão importante: essa “abertura”, teve a centralidade das "oposições parlamentares" que "derrotaram" a ditadura ou, ao contrário, a "auto reforma" teve o controle da ditadura e somente foi de fato questionada pelas ações de massa da segunda metade dos anos 70, das quais as greves operárias do ABC paulista foram suas principais expressões? Penso que Florestan Fernandes nos indica claramente o sentido de auto-reforma da ditadura. É nessa sequencia que em seu livro posterior, intitulado “Nova República”, caracterizará o governo Sarney como um prolongamento da ditadura, como uma democracia forte (no sentido autocrático) e tutelada pelos militares. 
	Lembro que, quando houve o massacre militar aos operários de Volta Redonda, durante o Governo Sarney, Florestan escreveu artigos mostrando essa “manu-militare” que estava sempre de prontidão e era acionada (ou se auto-acionava) quando a autocracia institucionalizada tinha a necessidade de conter as lutas sociais. Desse modo, com Sarney, não se gestou a "Nova República" (por isso Florestan usa aspas), mas uma variante mais branda da república autocrática. E ela é uma variante do Estado autocrático burguês, desprovida de qualquer conteúdo progressista e democrático. 
	O que faz Florestan Fernandes concluir (em textos como O que e Revolução? e vários outros diretamente políticos), que existem duas alternativas para a superação da crise: 	
1) a revolução dentro da ordem, ou em suas palavras, a “reforma capitalista do capitalismo”, que teria como prioridade implementar um conjunto de transformações estruturais que, embora não abolissem a propriedade privada e o capitalismo, iniciariam um processo gradativo de transformações estruturais, abrindo caminho para uma segunda fase de transição; ou então caminharíamos diretamente para 
	 
	2) uma revolução que desde logo transcendesse à ordem e que já tivesse, em sua própria origem, um nítido caráter socialista. Menos que reformas, nesta variante, as mutações já estariam carregados de sentido e significado revolucionário.
	Com isso retomo o que disse anteriormente, sobre esta última fase da produção teórico-política de Florestan Fernandes. Parece-me nítido que nas suas indicações sobre as possibilidades da Revolução Social no Brasil, existe um forte acento marxiano, do Marx político, do Marx das “Lutas de Classes em França”, do Marx do “Manifesto”. 
E penso também que, no recolhimento que vivenciou no Canadá, ele absorveu muito da leitura política leniniana. Penso que ele fez um sistemático estudo da obra de Lênin, do qual a dualização presente na revolução “dentro da ordem” ou na revolução “contra a ordem”, está muito inspirada. (Lembre-se, por exemplo, da discussão leniniana sobre os caminhos da social-democracia e da revolução nos países de capitalismo tardio). Quer dizer, no primeiro caso, a “revolução capitalista do capitalismo” é impulsionada pelas classes trabalhadoras, na impossibilidade da própria burguesia realizá-la. No segundo caso, é uma revolução que transcende a ordem. Eu penso que Florestan Fernandes estava, neste ultimo período, refletindo sobre estas alternativas. Aquela que contemplava a possibilidade de uma revolução democrática dentro da ordem, impulsionada pelos trabalhadores ou então, aquela que já teria desde logo um nítido caráter socialista. Nesta reflexão, parece clara a presença e a influência leniniana.
																																		
� Professor Titular do Departamento de Sociologia do IFCH-UNICAMP
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