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MATTOS, Marcelo Badaró. O sentido de classe do Golpe de 1964 e da Ditadura - um debate historiográfico

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/ ^ . S E R G I P E 
^J^^l^ PRESENTE E FUTURO 
GOVERNO DO ESTADO DE SERGIPE 
Governador 
Jackson Barreto de Lima 
Vice-Governador 
Belivaldo Chagas 
Secretário de Estado do Governo 
Benedito de Figueiredo 
^ 1 0 1 SÉRVIOS GRÁFICOS DE SERGIPE Pegrase 
SEGRASE - SERVIÇOS GRÁFICOS DE SERGIPE 
Diretor-Presidente (em exercício) 
Carlos Alberto Leite Prado 
Diretor Industrial 
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fEDISE 
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Conselho Editorial 
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Cristiano de Jesus Ferronato 
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João Augusto Gama da Silva 
José Anselmo de Oliveira 
Jussara Maria Moreno Jacintho 
Luciano Correia dos Santos 
Ricardo Oliveira Lacerda de Melo 
Memórias Reveladas/RJ 
B r u n o Gsxippo 
34 
S C H W A N , Gesine. P o l i t i k u n d S c h u l d : Die zerstòrerische 
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Duke University Press, 2006, pp. 40-72. 
Z E H F U S S , Maja. W o u n d s o f M e m o r y . T h e Pol i t i cs o f W a r 
i n G e r m a n y . Cambridge: Cambridge University Press, 2007. 
O SENTIDO DE C L A S S E DG GOLPE DE 1964 E 
DA DITADURA: U M DEBATE HISTORIOGRÂHCG 
Marcelo Badaró Mattos' 
Propõe-se neste texto lançar um olhar específico sobre a 
Uteratura especializada a respeito do Golpe de 1964 e da Dita-
dura que com ele se instalou.^ Assumindo a impossibilidade de 
uma discussão mais abrangente neste curto espaço,^ o que se pro-
curará aqui é estabelecer um parâmetro de avaliação das marcas 
de continuidade e das mudanças significativas nas grandes linhas 
interpretativas desses processos históricos, partindo da produção 
académica dos anos próximos ao golpe e seguindo até os trabalhos 
mais recentes. 
Tal parâmetro foi definido em torno de uma questão cen-
tral, que demarca terreno do ponto de vista tanto teórico quanto 
de conteúdo empírico: havia um sentido de classe no processo 
que gerou a derrubada do governo João Goulart e na Ditadura 
que então se implantou? A questão demarca terreno por gerar 
1 Professor Titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense 
2 Tive a oportunidade de debater a questão em Mattos (200S; 2008). Alguns 
dos argumentos apresentados naqueles artigos foram ora retomados, embora 
o balanço seja aqui mais amplo e atualizado. 
3 Um artigo de balanço historiográfico não pode dar conta das várias questões 
de conteúdo envolvidas na caracterização do Golpe e da Ditadura, embora 
elas sejam eventualmente discutidas. Para visões sintéticas de conjunto sobre o 
Golpe e a Ditadura, ver Fico (2004) e Napolitano (2014). 
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M<ii-i'elo B.iilaró Mattos 
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respostas diferenciadas, que podem ser positivas ou negativas e, 
se positivas, induzem a uma segunda questão a respeito de qual 
seria então o sentido de classe desses processos, que classes ou 
frações de classes sociais apoiaram, agiram para, foram bene-
ficiados e, é claro, sobre quais se opuseram, resistiram, foram 
mais diretamente atingidos. Mas a demarcação principal é feita 
entre a historiografia que privilegia a questão e aquela que a se-
cundariza, ou sequer a propõe. 
A sequência da exposição procurará, tanto quanto possí-
vel, acompanhar uma ordem cronológica da produção de co-
nhecimento sobre o tema, relacionando tal cronologia à questão 
central apresentada. 
Um episódio da luta de classes 
Em sua conhecida análise sobre o governo João Goulart 
e o Golpe de 1964, publicada originalmente em 1978, Moniz 
Bandeira, após recuperar a dinâmica das lutas sociais do período, 
afirma que "o golpe de Estado no Brasil, instigado e sustentado 
pela comunidade dos homens de negócios e pelos proprietários 
de terras, constituiu nitidamente um episódio da luta de classes 
[ . . . ] " ( B A N D E I R A , 2001: 204).Tal formulação, aqui recupera-
da de forma propositalmente recortada, representa de forma 
exemplar uma premissa fundamental dos estudos sobre o Golpe 
e a Ditadura produzidos enquanto ela ainda vigia. 
A premissa de que o golpe de Estado perpetrado em 1964 
possuía um sentido de classe e era explicado, em grande medida, 
pela dinâmica dos conflitos sociais daquele período histórico é. 
o S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L P E D E l % 4 E DA DÍ1V\DURA: 
U m E>ebat*;: Elistoriográlico 
do ponto de vista teórico, ancorada na lógica mais geral de in-
terpretação da vida social proposta pelo materialismo histórico. 
Por certo que tal lógica interpretativa influenciou fortemente os 
estudos sobre o tema desenvolvido no Brasil entre os anos 1960 e 
1980. Muitos desses estudos, porém, foram muito além de sim-
plesmente repetirem esquemas teóricos como fórmulas explica-
tivas invariáveis e trataram de demonstrar, recorrendo a fontes as 
mais diversas e a caminhos distintos de análise, como determina-
dos setores da sociedade atuaram organizadamente para derrubar 
o governo Goulart e de que forma as políticas levadas a cabo pela 
Ditadura implantada em 1964 eram dirigidas para contemplar os 
interesses fimdamentais desses mesmos setores. 
Em escritos publicados no México, em primeira edição no 
ano de 1969, e só muito mais tarde traduzidos para o português, 
Ruy Mauro Marini — um dos formuladores da "primeira" teoria 
da dependência"^ - anafisou o golpe de 1964 e os primeiros anos 
da ditadura a partir dos conflitos de classe, condicionados pelas 
condições específicas que o acelerado processo de desenvolvi-
mento urbano-industrial brasileiro gerava. Conflitos "verticais", 
seguindo seu vocabulário, entre a burguesia industrial e o setor 
agroexportador e, cada vez mais, desde a segunda metade dos 
anos 1950, conflitos "horizontais", que opunham "as classes do-
minantes como um todo e as massas trabalhadoras do campo e 
da cidade" ( M A R I N I , 2013: 90) . 
4 Estamos assim nos referindo à teoria da dependência de bases marxistas desen-
volvida por Marini, Theotônio dos Santos, e Vânia Banbirra, bastante distinta 
das formulações difundidas mais tarde por autores como Fernando Henrique 
Cardoso, Enzo Faletto e José Serra. Para a diferenciação entre as distintas "te-
orias da dependência", ver, entre outros, a introdução de Traspadini & Stédile 
(MARINI, 2005). 
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Marcelo Badan') Mattos 
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Marini, por sua ênfase no caráter dependente da econo-
mia capitalista na América Latina, e no Brasil, em especial, era 
bastante atento ao peso dos condicionantes externos na dinâmi-
ca econômico-social brasileira. Porém, em sua análise do golpe 
de 1964 e do regime implantado a partir de então, avaliava que 
"aquelesque veem o atual regime militar do Brasil como resul-
tado de uma ação externa estão equivocados" ( M A R I N I , 2013: 
105). Recuando no tempo e percebendo como as tentativas an-
teriores de intervenção militar fracassaram, Marini conferiu re-
levo para como o golpe só foi possível em função da edificação 
de uma base social de apoio aos militares: 
A tentativa fracassada de 1961 [refere-se ao movi-
mento dos ministros militares para impedirem a 
posse de João Goulart quando da renúncia de Jânio 
Quadros] expressou claramente que uma interven-
ção militar só poderia ter êxito se: a) correspon-
desse a uma situação objetiva de crise da sociedade 
brasileira; e b) estivesse inserida no jogo político 
das forças em conflito. O respaldo que os milita-
res receberam da pequena-burguesia - expresso na 
'Marcha da Família', que reimiu, no dia 2 de abril 
de 1964, um milhão de manifestantes no Rio - é 
um sinal evidente de que a ação das forças armadas 
correspondia a imia realidade social objetiva. Outra 
confirmação é a adesão unânime das classes domi-
nantes (MARINI, 2013: 105). 
Tal movimentação de classe não se deu sem formas or-
ganizativas correspondentes e Marini destacou, entre outras, a 
tarefa de reunir e arrecadar fundos antigovernistas dos empresá-
<::> S E N l l D O D E t : 'LASSE D E G O L P E D E 1964 E DA D i l V \ D U R A : 
U m Debate Historiográfico 
rios, desempenhada pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais 
(IPES) e a atividade de propaganda e arregimentação de bases 
anti-Goulart, apoiada pelo governo estadunidense, do Institu-
to Brasileiro de Ação Democrática ( I B A D ) . São esses esforços e 
manifestações que levam Marini a afirmar que "pela primeira vez 
desde o 'integralismo' fascista dos anos 1930, a direita mobiliza-
va as massas" ( M A R I N I , 2013: 101-103). 
A fusão do conjunto das classes dominantes em um único 
bloco favorável ao golpe e à instalação da ditadura foi por ele atri-
buída, por um lado, aos efeitos da crise económica (visíveis desde 
1962), "que não favorecia a aliança da burguesia com as classes 
populares", devido aos "sacrifícios" que se tentava impor aos traba-
lhadores assalariados, por mais que Goulart representasse a última 
chance do "milagre dessa aliança". Por outro lado, a alteração na 
composição interna da burguesia, decorrente das políticas e das 
mudanças económicas iniciadas em 1955 (a internacionaUzação da 
economia proveniente do modelo desenvolvimentista expresso no 
Plano de Metas do governo J K ) , "com o aumento do setor vincu-
lado ao capital estrangeiro, tornava cada vez menos possível este 
arranjo entre os grupos dominantes" (MARINI , 2013: 107). 
Tendo em vista que "as forças populares", por seu turno, 
"ganhavam autonomia de ação" e as crises "se resolviam cada 
vez menos facilmente através de acordos palacianos" ( M A R I N I , 
2013: 106), a análise do teórico da dependência acentua o sen-
tido de classe do golpe, para conter as lutas dos trabalhadores 
urbanos e rurais. Vale a pena a longa citação, 
[...] a primeira face mostrada pelo governo miU-
tar foi a repressão pohcial contra movimento de 
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M arreio BaJarr) M oí:t:o5 
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massas: a intervenção nos sindicatos, a dissolução 
dos organismos populares de direção (inclusive do 
C G T ) , a perseguição aos líderes operários e cam-
poneses, a supressão de mandatos e de direitos polí-
ticos, a prisão e a tortura. Explica também a políti-
ca económica desse governo, que foi, antes de mais 
nada, de contenção dos salários, de restrição do 
crédito e de aumento da carga tributária. Em linhas 
gerais, a política de estabilização financeira do atual 
governo quer criar uma oferta de mão de obra mais 
abimdante, baixando assim seu preço, e, ao mes-
mo tempo, 'racionalizar' a economia, liquidando a 
concorrência excessiva e favorecendo, portanto, a 
concentração de capital nas mãos dos grupos mais 
poderosos. Isso beneficia, claro, os grupos estran-
geiros, mas também beneficia a grande burguesia 
nacional (MARINI, 2013: 107-108). 
Tais elementos levantados por Marini, ainda nos anos 
1960, nesse texto que pouco circulou no Brasil, apareceram de 
forma semelhante em diversas análises posteriores, cabendo por 
isso mesmo ressaltar a originalidade de seu raciocínio. 
Uma outra vertente analítica concomitante, em diálogo 
maior ou menor, conforme o autor, com as teses da(s) "teoria(s) 
da dependência", também propugnou o estabelecimento da rela-
ção entre a crise política e a dimensão mais propriamente econó-
mica da crise de acumulação. Tais análises possuíam em comum 
com a discussão de Marini a premissa de que, se o novo modelo 
económico industrializante e dependente, montado principal-
mente com Juscelino Kubitschek, vivia uma crise cuja superação 
exigiria do Estado uma intervenção que garantisse maior abertu-
( ) S E N T I D O D E C L A S S E D E C C J L P E D E 1964 E DA D I T A D U R A : 
U m Debate Mi:;tori<)grálK;í) 
ra para o capital estrangeiro e uma política dirigida a privilegiar 
ainda mais o grande capital, essa política teria que passar por 
garantir total controle sobre as organizações e as lutas dos tra-
balhadores, de forma a viabilizar a manutenção dos salários em 
patamares muito baixos. Quase sempre apresentado de forma 
combinada com esse primeiro ponto, encontra-se o segundo, 
através da tese que derivava o golpe da crise do populismo. Esse 
era entendido como a base da dominação de classes naquela fase, 
sustentada no equilíbrio instável que garantiu a incorporação das 
massas à política pela via controlada do pacto populista. Tal pacto 
entrara em crise, pois as massas queriam ir além dos limites esta-
belecidos pelas classes dominantes para suas concessões. 
Tomando por exemplo a análise de Octávio Ianni, pu-
blicada originalmente em 1968, o populismo envolvia diversas 
dimensões daquela etapa da trajetória brasileira, associadas em 
especial às contradições do desenvolvimento capitalista urbano-
-industrial e à entrada das massas no plano das disputas de poder. 
Segundo sua análise, 
[...] pode-se afirmar que a entrada das massas no 
quadro das estruturas de poder é legitimada por 
intermédio dos movimentos populistas. Inicial-
mente, esse populismo é exclusivamente getulista. 
Depois adquire outras conotações e também deno-
minações.!...] No conjunto, entretanto, trata-se de 
uma política de massas específica de uma etapa das 
transformações económico-sociais e políticas no 
Brasil. Trata-se de um movimento político, antes 
do que um partido político. Corresponde a uma 
parte fundamental das manifestações políticas que 
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Marcelo Badarn Mattos 
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ocorrem numa fase determinada das transforma-
ções verificadas nos setores industrial e, em menor 
escala, agrário. Além disto, está em relação dinâ-
mica com a urbanização e os desenvolvimentos do 
setor terciário da economia brasileira. Mais ainda, 
o populismo está relacionado tanto com o consimio 
em massa como com o aparecimento da cultura de 
massa. Em poucas palavras, o populismo brasileiro 
é a forma política assumida pela sociedade de mas-
sas no país (IANNI, 1978: 207). 
A crise do populismo seria então derivada da exacerbação 
das contradições do regime, durante o governo Goulart, com a 
ampliação da participação das massas no jogo político, ao mesmo 
tempo em que cresciam as pressões das classes dominantes pela 
limitação dessa participação. Segundo Ianni, Goulart "traz con-
sigo todos os compromissos e ambiguidades da política de mas-
sas. Governa sempre sob as várias pressões que caracterizam a 
história do populismo. Agora essas pressões estão concentradas, 
em força e profundidade". Por isso mesmo, foram os conflitos 
sociais que desnudaram aquelas ambiguidades. "O populismo 
terá sido apenas uma etapana história das relações entre as clas-
ses sociais. Nesse sentido é que se pode dizer que no limite do 
populismo está a luta de classes" ( I A N N I , 1978: 209-213). 
Um passo além na discussão sobre o caráter de classe do Golpe 
e da Ditadura seria dado na obra de Florestan Fernandes, A revolução 
burguesa no Brasil. Escrito entre 1966 e 1974, o livro de Fernandes 
empenha-se em analisar o processo específico através do qual se pro-
cessou a "revolução burguesa" — entendida tanto como "transforma-
ção capitaHsta" quanto como "dominação btirguesa" via Estado — em 
o S E N T M : ) 0 D E C L A S S E D E I Í O L P E D E 1 9 6 4 E [ ) A D l l A D U R A : 
Ur» Del:>ate Hiftori<:)gráfico 
luna sociedade periférica e dependente como a brasileira. Em seu 
estudo, ao revés da associação entre desenvolvimento capitalista e 
democracia, que caracterizaria um modelo "democrático-btirguês", 
associado à revolução burguesa em países de desenvolvimento capi-
talista mais antigo, o que seria próprio do processo local seria "uma 
forte associação racional entre desenvolvimento capitalista e auto-
cracia" (FERNANDES, 2005: 340). 
Em tal situação histórica, Florestan Fernandes argumenta-
ria, as mais leves demonstrações de manifestação autónoma dos 
trabalhadores urbanos e/ou rurais seriam tomadas como sérias 
ameaças ao padrão burguês de dominação autocrática. Daí que 
tal dominação adquirisse um caráter permanentemente con-
trarrevolucionário. O golpe de 1964 é explicado pelo sociólogo 
como uma resposta "preventiva" da burguesia aos conflitos so-
ciais do período: 
Ao 'defender a estabilidade da ordem', portanto, 
as classes e os estratos de classe burgueses aprovei-
taram aqueles conflitos para legitimar a transfor-
mação da dominação burguesa em uma ditadura de 
classe preventiva e para privilegiar o seu poder real, 
nascido dessa mesma dominação de classe, como se 
ele fosse uma encarnação da ordem 'legitimamente 
estabelecida'(FERNANDES, 2005: 369). 
A gestão tecnocrática e militar que se seguiu ao golpe re-
presentava não a essência do regime mas luna "resultante", ainda 
que "uma resultante de caráter essencial e primordial" ( F E R N A N -
DES, 2005: 395), da forma como a "autocracia burguesa" resolveu 
o chamado "colapso do populismo", afastando os representantes 
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Marc-olo Badarií Mattos 
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do "radicalismo burguês e da ordem pseudodemocrático-burguesa 
que o engendrara" (FERNANDES, 2005: 394). Sua análise destaca 
a especificidade da Ditadura, mas não a trata como uma ruptura 
completa e sim como lun ajuste autocrático burguês, pois a derro-
ta das forças populares em 1964 poderia ser entendida como um 
"desmascaramento" do caráter autocrático já vigente da domina-
ção burguesa: 
O povo não possuía nem mandatários responsá-
veis nem campeões leais no 'campo burguês'; e 
quando o jogo democrático se tornou demasia-
do arriscado, os verdadeiros atores continuaram 
o baile sem máscaras. Em suma, não existia uma 
democracia burguesa fraca, mas uma autocra-
cia burguesa dissimulada ( F E R N A N D E S , 2005: 
394-395). 
Pode-se argumentar que, embora fortemente amparados 
em ampla e pertinente literatura especializada, trabalhos como 
os de Florestan Fernandes e Octávio Ianni se inscrevem numa 
tradição de ensaios sociológicos voltados para sínteses interpre-
tativas de largo fôlego, muitas vezes criticada pela tendência a 
generalizações de difícil comprovação empírica. 
No entanto, trabalhos mais fortemente ancorados sobre 
pesquisa original em fontes primárias, longe de contraditar os 
insights analíticos desse tipo de ensaística sociológica, vieram a 
confirmar o sentido de classe da intervenção política que derru-
bou Goulart e da Ditadura que a ela se seguiu. O mais importan-
te deles foi a obra de René Armand Dreifuss, 1964: a conquista do 
Estado, publicada originalmente em 1981. 
o S E N T I D O D E C1,ASSE D E G O L P E D E 1964 E DA D E I A D U R A : 
Mrn í')(::hat<; í Ijstorioíír.ilico 
Dreifuss demonstrou que os empresários brasileiros agiam 
politicamente de forma organizada e documentou o papel de-
cisivo do grande capital na articulação do golpe. Estudando o 
complexo IPES-IBAD, e influenciado pela noção de "intelectual 
orgânico" de Antônio Gramsci (2000a), mostrou que seus par-
ticipantes constituíam a "elite orgânica" dos empresários e dos 
militares. Essa "elite orgânica" foi por ele mapeada a partir de 
centenas de documentos do IPES e do IBAD e de um meticuloso 
trabalho de identificação dos personagens que apareciam nesses 
documentos, desvelando seus vínculos com grandes empresas 
multinacionais e associadas. Eles estavam, segundo Dreifuss, 
(...) no centro dos acontecimentos como homens 
de ligação e como organizadores do movimento 
civil-militar, dando apoio material e preparando o 
clima para a intervenção militar [...] O ocorrido 
em 31 de março de 1964 não foi um mero golpe 
militar. Foi (...) um movimento social civil-militar 
(DREIFUSS, 1981: 397). 
45 
Esse caráter de classe do golpe e dos governos da Ditadura 
é o centro da análise de Dreifuss, que toma os representantes do 
grande capital como protagonistas de uma ação política cons-
ciente e dirigida a um fim. Nas suas palavras: 
As classes dominantes, sob a liderança do blo-
co multinacional e associado empreenderam uma 
campanha ideológica e político-militar em frentes 
diversas, através de uma série de instituições e or-
ganizações de classe, muitas das quais eram parte 
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Marcelo Ba.iaró Mattos 
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integrante do sistema político populista ( D R E I -
FUSS, 1981: 483). 
Através da análise comparativa entre os projetos formu-
lados antes do golpe, no interior do IPES e das políticas imple-
mentadas nos primeiros anos da Ditadura, combinada a um ma-
peamento dos ocupantes de cargos dos primeiros escalões do 
primeiro governo militar, através do qual constatou a proemi-
nência de representantes da "elite orgânica" que se articulou em 
torno do complexo IPES-IBAD, Dreifuss pode perceber como 
determinados objetivos conscientes do movimento que levou à 
derrubada de Goulart estavam sendo perseguidos na Ditadura. 
Com isso, segundo sua análise, no pós-1964, 
[...] essa verdadeira elite das classes dominantes [...] 
preservou a natureza capitalista do Estado, uma tarefa 
que envolvia sérias restrições à organização autónoma 
das classes trabalhadoras e a consohdação de [...] um 
tipo de capitahsmo tardio, dependente, desigual, mas 
também extensamente industrializado, com uma eco-
nomia principalmente dirigida para tmi alto grau de 
concentração de propriedade na indústria e integração 
com o sistema bancário (DREIFUSS, 1981: 485). 
É possível obstar que, mesmo que se constate a existência 
de tmia articulação tão ampla quanto a demonstrada por Dreifuss, 
esta não é uma explicação suficiente para o golpe em si, que foi 
deslanchado por iniciativa imediata dos militares e, como demons-
tra a precipitada saída de Mourão Filho com suas tropas de Minas 
Gerais, não possuía uma única frente de articuladores. No entanto. 
o S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E DA DÍEADURA: 
l.!r» Debat e H istoriogri fico 
O trabalho de Dreifuss tem um sentido bem mais profundo do que 
a análise do acontecimento Golpe enquanto fenómeno imediato. 
Seu estudo nos posiciona sobre as condições que viabilizaram o 
sucesso da tomada do poder pelo movimento "civil-militar" e a 
natureza das políticas postas em prática nos anos seguintes. 
A natureza de classe do golpe e do regime ditatorial que 
ele instala pode ser discutida, como se viu, a partir dos interes-
ses sociais representados pelos golpistas e da ação política dire-
ta de setores das classes dominantes, que articularam o golpe e 
participaram ativamente da direção do Estado brasileiro soba 
Ditadura. Por outro lado, ela se revela também naquilo que o 
golpe e a Ditadura buscaram conter: a ação política autónoma 
da classe trabalhadora. 
De certa forma, boa parte da produção centrada no concei-
to de "popuHsmo" e na discussão de sua crise, tendeu a considerar a 
classe trabalhadora e suas organizações como submetida a um grau 
elevado de controle por parte da estrutura sindical corporativa e a 
uma heteronomia poHtica derivada tanto da tendência populista à 
"manipulação das massas" quanto da Hnha poKtica de alianças de clas-
se do PCB.^ 
O exemplo clássico de análise do populismo que acentua essas dimensões 
é o trabalho de Francisco Weffort, O populismo na política brasileira, origi-
nalmente publicado em 1978. Porém, mesmo Weffort não toma a ideia de 
manipulação das massas em um sentido unívoco, ressaltando o caráter de 
aliança de classes do popuhsmo: "A noção de manipulação, tanto quanto 
a de passividade popular, tem que ser relativizada, concretizada histori-
camente, para que possamos entender a significação real do populismo. A 
imagem, se não o conceito, mais adequado para entendermos as relações 
entre as massas urbanas e alguns grupos representados no Estado é a de uma 
aliança (tácita) entre setores de diferentes classes sociais. Aliança na qual 
evidentemente a hegemonia se encontra sempre com os interesses vincula-
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Texto digitado
Principais contribuições
do modelo interpretativo
elaborado por Dreifuss
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Mart-cjo tkiiiiró Mattos 
A noção de "sindicalismo populista" foi a forma mais aca-
bada de caracterização negativa da capacidade de intervenção 
dos trabalhadores no jogo político mais amplo. Na definição mais 
conhecida, de Francisco Weffort, o sindicalismo populista: 
[...] no plano da orientação, subordina-se à ideologia 
nacionalista e se volta para uma política de reformas 
e de colaboração de classes; no plano da organização, 
caracteriza-se por uma estrutura dual em que as cha-
madas 'organizações paralelas', formadas por iniciativa 
da esquerda, passam a servir de complemento à es-
trutura sindical oficial, inspirada no corporativismo 
fascista como um apêndice da estrutura do Estado; no 
plano político, subordina-se às vicissitudes da aUança 
formada pela esquerda com Goidart e outros poKticos 
fiéis à tradição de Vargas (WEFFORT, 1973: 67). 
Esse tipo de caracterização no negativo do sindicalismo da 
época pode ser atribuído, em grande medida, às decepções po-
líticas dos analistas de esquerda com a falta de resistência eficaz 
da classe trabalhadora ao golpe que derrubou Goulart. De certa 
forma, tais anáHses deslocam-se para uma responsabilização, em 
maior ou menor grau, das organizações dos trabalhadores pelo 
desfecho do golpe de 1964. O próprio Weffort, comentando o 
fracasso da greve convocada em 31 de março/1°. de abril de 
1964 pelo C G T para apoiar Goulart, tratou-a como exemplo 
claro da fragilidade do sindicalismo populista. 
dos às classes dominantes, mas impossível de realizar-se sem o atendimento 
de algumas aspirações básicas das classes populares." (WEFFORT, 1986: 
75-76). 
<::> S E N T I D O D E C1..ASSE D E G O L P E D E 1964 E DA D í l A D U R A : 
U n i Debata; iUstoiiográíkx) 
O teste de força para o sindicalismo populista, que 
alguns acreditavam ser o 'quarto poder' da Repú-
blica, veio em 31 de março de 1964. A experiência 
do C G T em greves políticas feitas, quase todas, 
para apoiar jogadas do governo, de nada lhe valeu 
quando, de fato, se tornou necessário ir à greve 
para sustentar o governo ameaçado de uma der-
rubada iminente. As bases sindicais lhe faltaram e 
a greve fracassou completamente. O governo caiu 
e, com ele, o 'quarto poder' vem abaixo pratica-
mente sem luta. Desmoronou como um castelo de 
cartas ( W E F F O R T , 1978: 4). 
As teses sobre o sindicaUsmo populista já foram criticadas 
à exaustão por um conjxmto de trabalhos produzidos desde a dé-
cada de 1990. Com farta pesquisa histórica, demonstraram-se os 
equívocos de tal interpretação.'' Mesmo que este não seja o espa-
ço para desenvolver tal crítica, recupera-se aqui que tais estudos 
constataram, entre outras coisas, que, apesar dos limites realmen-
te existentes da legislação sindical corporativista e da linha política 
do PCB, algumas das mais importantes organizações sindicais do 
período possuíam "índices elevados de sindicalização, variadas e 
ativas organizações por local de trabalho, diversidade de áreas de 
atuação [...] e sólidos laços de representatividade entre dirigentes 
e bases". Foram observadas também "greves participativas, organi-
zadas a partir do local de trabalho e com uma integração viável en-
tre demandas políticas gerais e bem sucedidos encaminhamentos 
de reivindicações económicas" (MATTOS, 1 : 218-219). 
6 Ver, por exemplo, Fortes et. al., (1999); Mattos (1998); Silva (1995); Costa 
(1995); Leal (2011); Melo (2013), entre outros. 
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Não fosse assim, pouco sentido faria qualquer interpre-
tação que atribuísse aos que deram o golpe a intenção de calar 
violentamente as vozes da classe trabalhadora organizada, pois, 
se o controle da estrutura sindical e a subalternização da linha 
política de aliança de classes eram empecilhos tão eficientes à 
ação autónoma dos trabalhadores, fica difícil entender o porquê 
da necessidade de um governo de força para conter suas lutas. 
No entanto, mesmo que tais elementos possam surgir 
mixados contraditoriamente, a maior parte das análises sobre 
o golpe e a implantação da Ditadura que partem da discussão 
dos conflitos sociais do período atribui às lutas dos trabalhado-
res um potencial desestabilizador do "pacto populista". Não há, 
porém, consenso, na avaliação do grau de instabilidade gerado 
por essas mobilizações. 
Em seu estudo sobre a esquerda brasileira nos anos 1960/70, 
Jacob Gorender defendeu a tese de que o caráter ascendente das 
lutas dos trabalhadores brasileiros nos primeiros anos da década 
de 1960 representou uma ameaça real à dominação de classes no 
Brasil, constituindo-se mesmo imia situação pré-revolucionária na 
fase imediatamente anterior ao golpe de Estado: 
Segundo penso, o período 1960-1964 marca o 
ponto mais alto das lutas dos trabalhadores bra-
sileiros neste século, até agora [1987]. O auge da 
luta de classes, em que se pôs em xeque a esta-
bilidade institucional da ordem burguesa sob os 
aspectos do direito de propriedade e da força co-
ercitiva do Estado. Nos primeiros meses de 1964, 
esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o 
golpe direitista se definiu, por isso mesmo, pelo 
O S E N T i t X J D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E DA D l 1V\DURA: 
U m Deí>ate EU?>t«:)ríi.)£ráfico 
caráter contrarrevolucionário preventivo ( G O -
R E N D E R , 1987: 66-67). 
A ideia da contrarrevolução preventiva é tomada de em-
préstimo, certamente, de Florestan Fernandes. Porém, a obra do 
sociólogo paulista possui um cuidado maior na qualificação do 
grau de ameaça à ordem do capital envolvido nas lutas da classe 
trabalhadora nos primeiros momentos da década de 1960. Segun-
do Fernandes, os movimentos de massa antiburgueses do início 
da década de 1960, embora possuíssem uma ressonância ampla 
para além de seus quadros sociais, "estavam longe de representar 
um 'perigo imediato', pelo menos em si e por si mesmos" ( F E R -
N A N D E S , 2005: 377). Por isso mesmo, o sentido da expressão 
"preventiva" adjetivando o caráter contrarrevolucionário da ação 
de classe que resulta no golpe é diretamente vinculado a imia 
outra adjetivação - "potencialmente"-, associada à ideia de imia 
situação pré-revolucionária. Assim, segundo Fernandes: 
Nunca chegou a existir uma situação pré-revolucio-
nária tipicamente fimdada na rebelião antiburguesa 
das classes assalariadas e destittudas. No entanto,a 
situação existente era potencialmente pré-revolu-
cionária, devido ao grau de desagregação, de desar-
ticulação e de desorientação da própria dominação 
burguesa, exposta ininterruptamente, da segim-
da década do século à 'revolução institucional' de 
1964, a um constante processo de erosão intestina 
( F E R N A N D E S , 2005: 374-375). 
A ação de classe dos setores burgueses que se aliaram aos 
conspiradores militares para derrubar o governo de João Goulart 
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em 1964 revelava, portanto, além de um projeto de desenvolvi-
mento económico associado e centrado no grande capital, que 
demandava para sua implementação o controle sobre as lutas dos 
trabalhadores, também o temor diante do potencial contrassis-
têmico (ainda que "potencial") de um conjunto de mobilizações 
sociais dos trabalhadores urbanos e rurais. Um temor derivado 
da natureza autocrática da dominação de classes típica do capi-
talismo periférico e dependente, mas também nas dificuldades 
internas às diferentes frações burguesas para construírem uma 
base estável de dominação, pautada pela hegemonia de um de-
terminado projeto político, que fosse capaz de revestir de con-
senso a coerção típica de qualquer forma de dominação estatal. 
Carlos Nelson Coutinho assinalou a associação entre a 
noção da contrarrevolução - prolongada e preventiva - de Fer-
nandes e o conceito de "revolução passiva" de Antonio Gramsci 
( C O U T I N H O , 2003: 205) . ' Revoluções passivas, na análise de 
Gramsci, estão associadas a situações históricas em que as no-
vas classes dominantes levam adiante projetos de modernização 
capitalista sem efetuar uma ruptura completa com os interesses 
dominantes anteriores, pois rejeitam o recurso à mobilização 
das massas, pelo temor da ação política das classes subalternas 
( G R A M S C I , 2002). As revoluções passivas surgem muitas vezes 
em meio (e também podem criar condições propícias) a situa-
ções sociais que adquirem o conteúdo de uma "crise orgânica", 
usada quase sempre como sinónimo de "crise de hegemonia": 
Para uma discussão mais aprofundada do que o permitido neste espaço sobre o 
conceito de revolução passiva e a análise da situação brasileira naquela conjun-
tura, ver Mattos (2009: 80-88). 
O S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E DA D i m O U R A : 
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[...] que ocorre ou porque a classe dirigente fra-
cassou em algum grande empreendimento político 
para o qual pediu ou impôs pela força o consenso 
das grandes massas [...], ou porque amplas massas 
[...] passaram subitamente da passividade política 
para a atividade e apresentam reivindicações que, 
em seu conjimto desorganizado, constituem uma 
revolução (GRAMSCI , 2000b: 60). 
Percebe-se com essa passagem por que a noção de crise 
de hegemonia foi frequentemente empregada pelas análises so-
bre a conjuntura que culminou com o golpe de 1964. Pensado 
nesses termos, tanto os conflitos internos quanto a ação pohtica 
visando derrubar Goulart, movida por um bloco de interesses 
de classe dominante, com apoio de outros setores sociais, quanto 
o papel da classe trabalhadora no início dos anos 1960, e o te-
mor por seu potencial disruptivo, foram tomados por toda essa 
tradição de estudos, em suas variadas matizes, como elementos 
decisivos para que possamos compreender o golpe. 
Um consenso autoritário? 
Nos últimos anos, toda a ênfase dessas análises já clássicas no 
sentido de classe do golpe e da Ditadura parece ter sido secundari-
zada, ou mesmo descartada, por uma literatura especializada mais 
preocupada em caracterizar o Golpe de 1964, ou simplesmente 
como movimento militar, ou como resultante de imia convergên-
cia antidemocrática ampla. Os agentes de tal "consenso" contrário 
à democracia nao mais seriam definidos em termos sociais (classes 
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e suas frações), mas em termos políticos "puros", como "direitas" e 
"esquerdas". Em algumas análises, inclusive, o peso da explicação so-
bre o golpe recai sobre o "radicalismo" das "esquerdas". Já a Ditadu-
ra é apresentada como uma resultante de tal "consenso" autoritário 
"da sociedade brasileira", apresentada de forma homogénea como 
manifestando-se da apatia ao apoio explícito aos governos militares. 
Nos anos 1990, algumas das mais significativas tentativas 
de rever a ideia do sentido de classe do Golpe de 1964 derivaram 
dos resultados da pesquisa de um grupo do C P D O C da FGV-RJ 
a partir de depoimentos com militares. Dois textos publicados 
em 1994 podem ser tomados como exemplos dos resultados 
dessas pesquisas. O primeiro é o artigo de Gláucio Ary Soares. 
" O golpe de 64" (SOARES, 1994). 
O objetivo central do artigo é contestar as teses que atri-
buem aos fatores económicos mais gerais (resolução da crise de 
acimiulação capitaUsta), a precedência exphcativa do golpe. Para o 
autor, buscar os atores seria essencial e, entre eles, privilegiam-se 
os militares, que, afinal de contas, deram o golpe. A análise se faz 
quase que exclusivamente a partir do discurso dos militares.* Con-
trapondo as memórias dos golpistas às anáUses académicas sobre 
o golpe. O autor conclui que "há um divórcio entre a caracteriza-
ção do Golpe pela literatura político-sociológica e a percepção do 
que foi o golpe por parte dos próprios militares" (SOARES, 1994: 
35); identificando diretamente dos depoimentos os "motivos do 
golpe" como sendo: " 1 - Caos, desordem, instabilidade; 2- Perigo 
comunista e subversão; 3- Crise hierárquica militar;4- Interferên-
cia do governo nos assuntos, na hierarquia e na disciplina militar; 
8 Abre-se por esse tipo de procedimento metodológico um grave risco de queda 
na armadilha da "ilusão biográfica" (BOURDIEU, 1999). 
O S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E D A D i T - A D U R A : 
Utn Debate EíistorhJi^ráÍKrí) 
5- Apoio popular ao golpe; 6- Corrupção, roubo de verba pública; 
7- Sindicalismo, república sindical." (SOARES, 1994: 30). 
O autor reconhece a conspiração militar para dar o gol-
pe desde a saída de Jânio, mas enfatiza que ela não possuía um 
comando orgânico. A partir dos depoimentos, que parecem 
ser tomados quase que como o estabelecimento da versão de-
finitiva sobre a participação militar, contesta as teses da his-
toriografia, para ele resumidas nas seguintes combinações: de 
uma conspiração dos grupos económicos brasileiros, de uma 
conspiração dos grupos económicos brasileiros com apoio do 
governo americano; de uma conspiração dos grupos económi-
cos brasileiros com apoio dos militares e das multinacionais e 
de uma conspiração dos grupos económicos brasileiros com 
apoio das multinacionais. Escolhe a opção, apontada pela gran-
de maioria de seus entrevistados militares de uma "conspiração 
dos militares com apoio dos grupos económicos brasileiros" 
(SOARES, 1994: 34-35). 
Percebe-se claramente o interlocutor dessa argumenta-
ção, pois fica evidente uma contraposição às teses de Dreifuss 
de que o golpe foi movido pela ação organizada do grande ca-
pital nacional e associado, em articulação com um setor mi-
litar e apoiado na política externa dos E U A . Mas registre-se 
que Soares mantém em foco a variável de classe (ainda que por 
outro referencial teórico) ao mencionar o apoio dos "grupos 
económicos", e trata respeitosamente as teses de Dreifuss, re-
conhecendo que "os grandes avanços, como o livro hoje clássico 
de Dreifuss a respeito da participação dos grupos económicos 
organizados, requerem pesquisa detalhada, cuidadosa e cansati-
va." (SOARES, 1994: 46). 
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O artigo de Soares sistematizava conclusões que apa-
receram em outrolivro com as entrevistas do mesmo projeto 
(D'ARAÚJO et. a l . , 1994). Na introdução desse último é defen-
dida a tese de que havia não um grupo dirigente, mas pelo menos 
dois grandes poios golpistas entre os militares: a "Sorbonne" (o 
grupo ligado à ESG) e os "da tropa". Aponta-se que os líderes 
(Costa e Silva e Castelo Branco) só aderiram à conspiração no 
último momento. Faz-se também a sugestão de crítica à histo-
riografia a partir da posição dos militares, em pelo menos dois 
pontos centrais. O primeiro deles fixa que: 
A opinião militar dominante define o golpe como re-
siJtado de ações dispersas e isoladas, embaladas, no 
entanto, pelo clima de inquietação e incertezas que 
invadiu a corporação. Esta visão se contrapõe à inter-
pretação predominante entre os analistas que até agora 
examinaram o episódio. Para estes, o golpe teria sido 
produto de imi amplo e bem-elaborado plano cons-
piratório que envolveu não apenas o empresariado 
nacional e os militares, mas também as forças econó-
micas multinacionais (D'ARAÚJO et. al., 1994: 16). 
Já o segundo argumento centra-se na constatação de que 
"Os depoentes concordam que não havia um projeto de gover-
no entre os vencedores: o movimento foi contra, e não a favor 
de algo" (D'ARAÚJO et. a l . , 1994:18). Percebe-se, novamen-
te, que a "interpretação predominante" a que tais argumentos se 
opõem é a derivada da obra de Dreifuss. Não existiria, segundo 
essa leitura, nem uma única "conspiração" envolvendo militares 
e o empresariado, tampouco um projeto de governo. 
o S E I S T I D O D l : C L A S S E D E G O i P E D E 1964 E DA D I T A D U R A : 
tltti [debate Historiográfico 
É interessante notar que, com um tom um pouco mais in-
cisivo que no caso do argumento do texto escrito só por Soares, 
anteriormente comentado, os autores em questão procuram re-
chaçar a interpretação de Dreifuss com base, exclusivamente, no 
que lhes disseram seus depoentes militares. Tais depoimentos, 
ainda que desprezássemos as já comentadas armadilhas da "ilusão 
biográfica" e os esforços para construir coerência entre as justi-
ficativas públicas do golpe e a ação efetiva dos golpistas, foram 
dados por oficiais de segunda ordem (capitães, coronéis) e que, 
portanto, tinham papel secundário na conspiração, como os pró-
prios autores ressaltam: "Os militares que aqui depõem em sua 
maioria não tiveram uma liderança destacada nos preparativos 
do golpe" (D'ARAÚJO et. a l . , 1994:8). 
Fica então difícil entender como tais fontes podem ser usadas 
para contrapor análises dos registros de quem teve papel de lide-
rança nesses preparativos. E não é preciso, para levantar tal questio-
namento, recorrer apenas às fontes pesquisadas por Dreifuss, que 
documentam fartamente a articulação da "elite orgânica" empresa-
rial-militar em torno, principalmente, do "complexo IPES/ IBAD", 
a qual Dreifuss tratou como "campanha", ou "ação política" (não 
tendo centraHdade em seu livro os termos "conspiração"/"plano 
conspiratório"). Basta recorrer a outras entrevistas conduzidas por 
pesquisadores da mesma instituição com militares, como Cordei-
ro de Farias (1987), e empresários, como Paulo Egydio Martins 
(2007: 168), que comentam fartamente como se articularam mili-
tares e empresários, usando o termo "conspiração", mencionando 
o complexo IPES/ IBAD em seus depoimentos. 
O segimdo ponto — "não havia um projeto de governo" — 
também é passível de questionamentos, quando se constata que. 
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Marcek.i Bariarò Mattos 
logo nos primeiros meses de governo militar, foi aprovada uma 
série de medidas que tinham sido estudadas e sistematizadas pelo 
IPES antes (como demonstra Dreifuss). E quem as executou fo-
ram ministros e outras autoridades o integravam, com destaque, 
os quadros do mesmo IPES. Ou seja, ainda que se possa admitir 
o caráter fragmentado da direção golpista em 31 de março/1°. 
de abril de 1964, é difícil não perceber que o golpe vinha sendo 
preparado de muito antes, por uma articulação que ia além dos 
militares, envolvia os interesses de classe do grande capital e isso 
se demonstra pela própria linha de intervenção do Estado nos 
momentos seguintes. 
De qualquer forma, as hipóteses defendidas pelos pes-
quisadores que conduziram o projeto de entrevistas com mi-
litares partia da premissa de que seria necessário investigar os 
argumentos dos que tiveram o protagonismo na derrubada de 
Goulart. E procuraram debater com uma literatura especiali-
zada ainda dominante, contrapondo às análises que apontavam 
para os condicionantes conjunturais (económicos, mas não só), 
os interesses sociais e a ação política de classe envolvidos na 
derrubada de Goulart, uma investigação das razões alegadas 
pelos golpistas.'' 
Um pouco antes dos debates que marcaram os 30 anos do 
Golpe, porém, já havia sido publicada uma tese que procurava 
ir muito além na crítica às interpretações centradas no sentido 
de classe do Golpe. Faz-se referência aqui ao trabalho de Arge-
9 Em 1994, os debates em torno dos 30 anos do Golpe ainda foram predomi-
nantemente marcados por interpretações que acentuavam o sentido de classe 
do Golpe, como pode ser visto no livro produzido a partir de debates daquele 
ano, coordenado por Caio Navarro de Toledo (1997). 
O S E N r i D D D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E D A D I T A D U R A : 
U m Debate Historiogrático 
lina Figueiredo (1993). A autora também está preocupada em 
contestar as análises anteriores, baseadas em explicações "estru-
turais" (económicas, mas também políticas — como a ideia de 
"crise institucional") e, principalmente, naquelas interpretações 
"intencionais" — leia-se Dreifuss. Para Argelina: 
Este tipo de análise [...] falha em fornecer uma 
explicação real, pois toma a mera existência de 
uma conspiração como condição suficiente para 
o sucesso do golpe político. Os conspiradores 
são vistos como onipotentes. Consequentemente 
a ação empreendida por eles não é analisada em 
relação a outros grupos, nem vista como sendo li-
mitada por quaisquer constrangimentos externos 
( F I G U E I R E D O , 1993: 28). 
Sua opção de análise, em contraposição, é privilegiar os 
momentos críticos do governo Goulart, empregando a teo-
ria da escolha racional. Tal referência teórica pode ser avalia-
da, numa leitura crítica, como uma variante do individualismo 
metodológico, que toma o comportamento dos agentes sociais 
como o dos indivíduos dotados de margens amplas de escolha e 
racionalidade direta na sua ação social. '° 
A autora tenta provar que, durante o governo Goulart, po-
deria ter existido um caminho para reformas moderadas dentro 
da ordem democrática; porém, os "atores" escolheram maximi-
zar suas possibilidades, em detrimento dessa ordem: os refor-
10 A teoria da escolha racional é defendida, entre outros, pelo orientador da tese 
de Argelina Figueiredo, Adam Prezvorski, por exemplo em (PREZVORSKI, 
1991). Para uma crítica desse tipo de concepção ver Bensaid (1999). 
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mistas querendo reformas amplas e os contrários às reformas 
dispostos a tudo para barrá-las. Sua conclusão é explícita e vale a 
pena reproduzir aqui uma citação mais longa, pela presença pos-
terior desses elementos de análise em vários outros trabalhos: 
Além dessas razões [um cálculo oportunista de 
vantagens em tencionar pelas reformas amplas], 
um outro fator contribuiu para impedir a rea-
lização de qualquer das duas possibilidades de 
combinar reforma e democracia, ou seja, a visão 
instrumental de democracia, mantida tanto pela 
direita como pela esquerda. De fato, os grupos 
esquerdistas e pró-reformas buscavam essas refor-
mas ainda que ao custo da democracia. Para ob-
ter as reformas, propunham e estavam dispostosa apoiar soluções não democráticas. Aceitavam o 
jogo democrático somente enquanto fosse com-
patível com a reforma radical. A direita, por ou-
tro lado, sempre esteve pronta a quebrar as regras 
democráticas, recorrendo a essas regras apenas 
quando lhes eram úteis para defender interesses 
entrincheirados. Aceitavam a democracia apenas 
como meio que lhes possibilitava a manutenção de 
privilégios. Ambos os grupos subscreviam a noção 
de governo democrático apenas no que servisse às 
suas conveniências. Nenhum deles aceitava a in-
certeza inerente às regras democráticas ( F I G U E I -
R E D O , 1993: 202). 
Com esse tipo de argumento, Figueiredo não apenas recu-
sou as teses que procuraram entender o Golpe como resultado 
da ação poHtica orientada por interesses de classe que articulou 
o SHN T I D O D E C [ . , \ S S E D E G O L P E D E 1964 E DA D E E . A D U R A : 
Líni Dcibat^: Elistoiiogrãllco 
setores empresariais e militares, mas atribuiu a responsabilidade 
pelo golpe tanto aos que o deram quanto às forças que defendiam 
as reformas e foram atingidas pelo golpe. Essa explicação, do pon-
to de vista teórico, parte do pressuposto de que o Estado é um 
ator neutro, que paira acima das disputas da sociedade, podendo 
caminhar movido pelos dirigentes eleitos ou pelos que o assaltam. 
Além disso, toma a democracia como um tipo ideal, que atende 
a todos os interesses (mesmo que parcialmente ou periodicamen-
te), se todos os atores concordarem com suas regras." 
Por outro lado, empiricamente, é difícil conceber como ra-
dicais as reformas propostas pelo governo e seus defensores, em-
bora a retórica destes últimos em alguns momentos o fosse, pois a 
reforma agrária — a principal reforma de base proposta — era uma 
experiência histórica cumprida por governos da maior parte do 
mundo, muitos de orientação liberal/conservadora, e no Brasil, 
era reconhecida como uma necessidade para resolver os gargalos 
do abastecimento interno, em uma fase de rápida expansão urbana, 
até mesmo pelos setores empresariais que se articularam para der-
rubar Goulart, como se percebe pela proposta de reforma agrária 
articulada pelo IPES e, em grande medida, transformada em lei 
6 1 
11 Sobre os limites da democracia contemporânea e a incompatibilidade entre o 
conceito clássico de democracia e o capitalismo, verWood (2003). No caso 
brasileiro, análises que partem de uma defmição de democracia nos termos 
postos por Figueiredo obrigatoriamente tem que menosprezar o fato de que 
o regime democrático brasileiro de então era restrito até mesmo para os pa-
râmetros daquilo que se costuma adjetivas como democracia "burguesa", ou 
"representativa", ou ainda "liberal". Afinal, o PCB não possuía registro legal, 
a estrutura sindical era a herdada da ditadura varguista, a polícia política tam-
bém era uma permanência daquela fase e mostrava-se cada vez mais especiali-
zada e atuante, apenas para listarmos alguns elementos que dizem respeito aos 
limites para a organização e atuação dos trabalhadores. 
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Marcelo Ba(laró Mattos 
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pelo governo Castelo Branco como "Estatuto da T e r r a " . O proje-
to defendido pelos apoiadores da reforma agrária no parlamento, 
que não encontrou espaço para negociação com a maioria repre-
sentante dos interesses da grande propriedade agrária, centrava-se 
em garantir as condições constitucionais para a indenização em 
prazo mais largo (sequer mencionando a expropriação) dos lati-
fundiários. A Reforma Universitária concentrava-se em democra-
tizar a gestão das instituições e ampliar o acesso, etapas já vencidas 
em outros países da América Latina desde o início do século X X . 
Já o controle da remessa de lucros que Goulart sancionou no fim 
de seu período no governo vinha sendo discutido desde mtiito an-
tes, como vima necessidade para equilibrar as contas externas. 
Além disso, uma análise desse tipo não levou em conta que 
as forças mais importantes da esquerda naquele período defen-
diam caminhar dentro da ordem democrática. O PCB, por exem-
plo, defendia a tese terceiro-internacionalista da etapa democrá-
tico-burguesa da revolução no Brasil, ou seja, da aliança com a 
burguesia nacional para viabilizar a fase capitalista das transforma-
ções pelas quais o país deveria passar, aceitando "as regras do jogo 
democrático" nos limites em que elas se apresentavam então. 
Lúcio Flávio Almeida demonstrou o quanto de equívoco 
haveria em "avaliar os programas do Partido Comunista frente à 
questão democrática, atribuir-lhe uma concepção de democracia 
que não era a dele" (ALMEIDA, 2003: 88), como as concepções 
de Norberto Bobbio, ou a concepção procedimental de Schvmi-
peter, que parecem orientar algumas análises. Ainda assim, toda a 
linha política do partido desde a "Declaração de Março", de 1958, 
12 Sobre esse debate ver Mendonça (2010) e Natividade (2013). 
O S E N 1 1 D O D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E DA D E m O U R A : 
Um Debate Hístoríográlico 
estava centrada na defesa de uma frente única, em que os comu-
nistas apoiariam os "elementos nacionaUstas e democráticos" da 
burguesia brasileira e das poHticas de Estado (ALMEIDA, 2003: 
116). Isso, mesmo sendo possível discernir naquele contexto que 
o nacionaHsmo de algumas das lideranças apoiadas pelos comu-
nistas estava longe de ser anti-imperiahsta, sendo suas convicções 
e práticas democráticas definidas pelo autor como de "baixíssima 
intensidade". O problema, portanto, segimdo Almeida, não esta-
ria na falta de compromisso democrático da esquerda identificada 
com essa mobilização, mas, ao contrário, na completa ausência de 
sentido na proposta de uma revolução burguesa para uma burgue-
sia que não precisaria de nenhuma revolução para fazer valer seu 
projeto de classe (ALMEIDA, 2003: 121-122). 
Na prática, a opção pela atuação nos marcos do sistema 
seria demonstrada também pelos principais sindicatos ligados 
ao C G T , quando estes rejeitaram, em fins de 1963, a tentativa 
de Jango de implantar o Estado de Sítio. O próprio Jango, com 
apoio dos comandos militares, encaminhou a solicitação do Es-
tado de Sítio ao Congresso Nacional, aguardou a resposta — ne-
gativa — e desistiu da ideia, demonstrando que, mesmo quando 
ainda contava com sustentação nas Forças Armadas, não estava 
osto a romper com a legalidade vigente. 
Pouco mais de dez anos depois da publicação do livro de 
Argelina Figueiredo, quando dos debates em torno dos 40 anos 
do Golpe de 1964, a defesa de suas teses ganhou um número 
bastante significativo de adeptos. Para situá-los, entretanto, te-
mos que retomar outras discussões. 
Vimos como o conceito de sindicalismo populista tem sido 
duramente questionado por diversos estudos, especialmente na 
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área da história social do trabalho. Porém, a crítica à noção de 
sindicalismo popuHsta não necessariamente deriva em uma rejei-
ção em bloco ao conceito de populismo. John French (1995), por 
exemplo, é um crítico ácido do modelo de anáUse centrado na 
ideia do sindicalismo popuHsta, mas reconhece a existência de um 
sistema político populista, em que atores com recursos sociais e 
pohticos muito distintos envolvem-se em alianças e disputas. Na 
mesma linha, Fernando Teixeira da Silva e Hélio da Costa (2001) 
contestam as definições do sindicalismo populista, porém, apoian-
do-se teoricamente em E . P. Thompson, procuram caracterizar o 
populismo como uma relação de hegemonia, definida como um 
campo de forças, complexo e dinâmico, que comportava ambigui-
dades e espaços para lutas dos trabalhadores.'^ 
Outros autores, no entanto, foram além e questionaram o 
conceito de populismo em seu todo. Centrando a crítica na ideia 
de que o conceito de populismo se baseava numa definição da 
relação entre Estado e trabalhadores pautada pela manipulaçãodestes por aquele, autores como Jorge Ferreira e Daniel Aarão 
Reis Filho propuseram seu abandono e substituição pela noção de 
trabalhismo. Para Reis Filho, populismo seria um rótulo, imposto 
pelos conservadores para apagar a tradição trabalhista, que aca-
bou sendo incorporado por académicos de esquerda no período 
posterior ao golpe em sua análise crítica do regime que ruíra. 
Defmida como nacionalista, estatista e popular, a tradição traba-
lhista é associada por Reis FiUio a uma cornucópia, envolvendo 
elementos como a política externa independente, o intervencio-
nismo desenvolvimentista do Estado, justiça do trabalho, direitos 
13 Um rico balanço dessa discussão foi feito no segundo capítulo de Melo (2013). 
O S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E D A D I T A D U R A : 
U T ! Í Debate Eíístorití^ráíico 
trabalhistas e previdenciários, entre outros elementos (REIS F I -
L H O , 2001: 345-347). 
E m perspectiva muito similar, Jorge Ferreira rejeita não 
apenas o conceito de popuhsmo, pela alegada centrahdade da 
noção de manipulação das massas em sua constituição, mas tam-
bém qualquer referência ao regime político vigente que possa 
ser associada a um sentido político de dominação de classes. 
Por isso, qualquer menção não apenas ao populismo, mas a toda 
perspectiva que encare a "assimetria" no sentido das relações 
entre Estado e classe trabalhadora naquela quadra histórica é 
rejeitada em nome de um "trabalhismo", igualado na análise à 
própria consciência de classe dos trabalhadores. Para o autor, o 
trabalhismo, "compreendido como um conjunto de experiên-
cias políticas, económicas, sociais, ideológicas e culturais [ . . . ] 
expressou uma consciência de classe, legítima porque histórica" 
( F E R R E I R A , 2001: 103).'* 
Em torno dos debates sobre os 40 anos do golpe, a partir 
dessa crítica ao conceito de populismo e de sua defesa da noção 
de trabalhismo para explicar o processo político brasileiro entre 
1945 e 1964, Jorge Ferreira, anaHsando os últimos dias do go-
verno Goulart, afirma o seguinte: 
O conflito político entre esquerdas e direitas to-
mou novos rumos. Não se tratava mais de saber se 
as reformas seriam ou não implementadas. A ques-
tão central era a tomada do poder e a imposição de 
projetos. Os partidários da direita tentariam impe-
14 Para uma leitura crítica mais detida desse tipo de proposta ver Mattos (2003) 
eDemier (2012). 
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dir as alterações económicas e sociais, sem preocu-
pações de respeitar as instituições democráticas. Os 
grupos de esquerda exigiam as reformas, mas tam-
bém sem valorizar a democracia. [...] [Passa a citar 
Argelina Figueiredo, e conclui]. Entre a radicaliza-
ção da esquerda e da direita, uma parcela ampla da 
população brasileira apenas assistia aos conflitos -
em silêncio ( F E R R E I R A , 2004: 35).'= 
Ou seja, segundo essa linha de interpretação, esquerda e di-
reita lutavam naquele momento pela tomada do poder, por vias 
não democráticas, como que numa corrida em que largavam em 
igualdade de condições e objetivos idênticos, tratando-se de ob-
servar apenas quem foi mais forte ou chegou antes para definir 
o rimio do país."" Além disso. Ferreira defende que o momento 
era de radicahzação, mas o povo assistiu a tudo bestializado. Cen-
tenas de milhares nas ruas com Jango, centenas de milhares com 
Deus pela Liberdade contra Jango, greves em quantidades cada vez 
maiores (38 greves em três meses só no Rio de Janeiro em 1964, 
quatro vezes mais que no mesmo período do ano anterior), levan-
tes dos baixa-patente das forças armadas, militares em marcha... 
e o "povo" em silêncio? Ao acreditarmos nessa hipótese estaremos 
concordando que a dinâmica política é dada por esquerda e direita 
em seu jogo pelo poder, pela via democrática ou não. Esquerda, 
15 Esse artigo para uma revista de div-ulgação repetia argumentos de um texto 
de maior fôlego. Ferreira (2003). O autor retomou a mesma reflexão mais 
recentemente em Ferreira (2007) e Ferreira (2011). 
16 A tese de que "havia dois golpes em marcha", o de Goulart "amparado no 
'dispositivo militar' e nas bases sindicais", fora defendida com ainda maior 
repercussão, um pouco antes do artigo de Ferreira, por Gaspari (2002: 51). 
O S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L F E D E 1964 E DA D E I A D U R A : 
i.\m E)ebaív: Mistoriográíico 
direita, "povo", são categorias de análise que, explicitamente, con-
tornam as explicações anteriores, que ressaltavam a ação protagó-
nica de empresários, trabalhadores, setores intermediários. Saem 
de cena, assim, as classes sociais e seus conflitos. 
Além disso, também aqui onde encontramos o mesmo 
argumento de Argelina Figueiredo (talvez um pouco mais sim-
plificado), podemos levantar as mesmas ponderações. Além de 
alguns discursos mais radicalizados, de lideranças como Br i -
zola, Julião ou Prestes, onde estariam as evidências concretas 
do tal "golpismo" ("a questão central era a tomada do poder e 
a imposição de projetos") das esquerdas, se os trabalhadores 
— mesmo os que estavam dispostos a tal pra resistir ao golpe — 
não pegaram em armas contra as instituições, os militares fiéis 
a Goulart evitaram o combate aguardando as ordens legais e o 
próprio presidente (que já havia se recusado a impor o Estado 
de Sítio sem o aval do Congresso meses antes) retirou-se evi-
tando a confrontação? 
Caio Navarro de Toledo, criticando tais formulações, 
apontou o seu caráter "revisionista",assinala com precisão que: 
[...] a afirmação de golpismo das esquerdas tem 
efeitos ideológicos precisos; de imediato, ajuda a 
67 
17 Para uma discussão aprofundada sobre os revisionismos contemporâneos 
(como as discussões ao redor da Revolução Francesa, que procuraram negar 
seu conteúdo de revolução social, ou dos regimes fascistas da Europa do Sul, 
que procuraram abrandar seu caráter repressivo violento), que distingue revi-
sionismo de negacionismo (a negação do holocausto promovido pelos nazistas, 
por exemplo) e dos movimentos de revisão historiográfica correntes, apontan-
do as semelhanças no debate brasileiro, ver Melo (2013), especialmente seu 
primeiro capítulo. 
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reforçar as versões difundidas pelos apologetas do 
golpe político-militar de 1964. Mais do que isso: 
contribui para legitimar a ação golpista vitoriosa 
ou, na melhor das hipóteses, atenua as responsabili-
dades dos militares e da direita civil pela supressão 
da democracia política em 1964. A direita golpista 
não pode senão aplaudir esta 'revisão" historiográ-
fica proposta por alguns intelectuais progressistas e 
de esquerda ( T O L E D O , 2004: 44-45). 
Referindo-se a intelectuais de esquerda. Caio Navarro 
centra sua crítica naqueles académicos (algtms com passado de 
luta contra a Ditadura) que agora defendem a tese da resposta de 
direita ao golpe planejado pela esquerda. Algo que atraiu a aten-
ção até mesmo da grande imprensa, pois os debates de 2004 ga-
nharam as páginas dos jornais. Dando foro de maior legitimidade 
à nova proposta interpretativa, por seu passado na luta armada, 
Daniel Aarão Reis Filho, conforme a reportagem do jornal O 
Globo, teria caracterizado as esquerdas na resistência à Ditadu-
ra como anti-democráticas e afirmado que se vitoriosas fossem, 
poderiam ter gerado um confronto ainda pior e um regime de 
exceção mais violento: 
Falava-se em cortar cabeças, essas palavras não 
eram metáforas. Se as esquerdas tomassem o poder, 
haveria, provavelmente, a resistência das direitas e 
poderia acontecer um confronto de grandes pro-
porções no Brasil. Pior, haveria o que há sempre 
nesses processos e no coroamento deles: fuzilamen-
to e cabeças cortadas (O Globo, 29/03/2004). 
O S E N l IDÕ V)E C L A S S E DE GOIPE D E 1964 EDA D I I A D U R A : 
Urn Debate Elísíoríográfic*,) 
Não seria suficiente confiar no registro jornalístico de afir-
mações tão polémicas. No entanto, os argumentos apresentados 
na reportagem de O Globo não diferem muito daqueles presentes 
em pubhcação académica resultante dos debates de 2004. Nela, 
Reis Filho parte do objetivo de demonstrar que a atribuição de 
um caráter de "resistência democrática" à ação das esquerdas 
no período da Ditadura Militar é uma invenção datada da fase 
da redemocratização, pois as esquerdas da luta armada seriam 
anti-democráticas e visariam à implantação do socialismo — por 
elas (e pelo autor) entendido como incompatível com a demo-
cracia — pela via revolucionária. Estendendo seu raciocínio ao 
período anterior. Reis Filho considera que essa perspectiva anti-
-democrática das esquerdas não era uma novidade, pois já no 
início dos anos 1960 o desprezo pela democracia se manifestara, 
no "desafio à legalidade" dessas esquerdas que, "inebriadas pela 
vitória de agosto de 1961 [a posse de Goulart, após a renún-
cia de Jânio Quadros], passaram à ofensiva política, e desafiavam 
abertamente a legalidade existente". Dava-se assim o argumento 
que faltava para que a direita assumisse o discurso da defesa da 
legalidade, conseguindo mobilizar um movimento civil de gran-
des proporções "para legitimar posições favoráveis à intervenção 
militar golpista" (REIS F I L H O , 2004: 38-39). 
O ponto de vista assumido pelo autor, que confunde o ob-
jetivo estratégico da construção do socialismo, compartilhado 
pelos militantes de esquerda, com um suposto uso cínico das 
bandeiras de resistência democrática contra a Ditadura, acaba 
por reforçar o discurso dos militares de que o motor do golpe foi 
a ameaça de uma ditadura comunista, compartilhando com eles 
a perspectiva de que evitava-se um mal maior. 
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Marcelo Bailari i M>i1;1:os 
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Esse parece ter sido o sentido da crítica de Marcelo Ridenti 
às propostas de Reis Filho, defendendo a ideia de que havia um 
componente assumido de resistência nas proposições de várias das 
organizações de esquerda daquele período e que, ainda que muitas 
delas não priorizassem a "resistência democrática", o resultado de 
sua ação foi o de uma luta de resistência contra a Ditadura. Para 
Ridenti, os debates sobre a democracia teriam que avaliar que "nos 
anos 60, antes e depois do Golpe de 1964, a questão da democra-
cia estava no contexto da guerra fria, em que os Estados Unidos 
não hesitavam em apoiar golpes militares para garantir o poder 
de seus aliados na América Latina, ditos Hberais e defensores da 
democracia [ . . . ] " ( R I D E N T I , 2004: 62). Argumentando que, se os 
estudiosos não podem controlar o uso de suas pesquisas histórias 
nos embates políticos do presente, devem ao menos "estar cons-
cientes de que o realce analítico de algims aspectos, em detrimen-
to de outros, pode levar a interpretações equivocadas da realidade 
histórica como um todo" ( R I D E N T I , 2004: 64). As interpretações 
da "falta de democracia das esquerdas" acabaram por ser incorpo-
radas "por aqueles que isentam setores significativos da sociedade 
civil de cumplicidade com a ditadura - e até pelos que chegam a 
justificá-la", ainda que essa não fosse a intenção daqueles estudio-
sos ( R I D E N T I , 2004: 64)."* 
18 A avaliação de Ridenti nos parece precisa e as apropriações continuaram, e não 
apenas na imprensa empresarial, por ele comentada no artigo. Afinal, em 2008, 
um artigo na Revista do Clube Militar sobre o debate da anistia cita em seu 
apoio escritos e entrevistas de Reis Filho, no artigo tratado como "ex-terrorista" 
, como alguém que "desmente categoricamente a mística de que 'lutavam contra 
a ditadura'. Escreveu ele e confirmou em entrevista que não lutavam por De-
mocracia, mas pela ditadura do proletariado, já que eram marxistas e leninistas 
convictos." Revista do Clube Militar, ano LXXXI, n° 430, de 2008. 
O S E N T I D O D E C E A S S E D E G O L P E D E i'>64 E ::)A D Í E A D U R A : 
11 rn Debat í : Historiogrílieo 
71 
A atribuição de um sentido ditatorial ao projeto político 
das esquerdas, no modelo generalizante que as homogeniza apre-
sentado por Reis Filho, encontrou muitos adeptos. Assim, Elio 
Gaspari, no segundo de seus tomos sobre a Ditadura, cita vá-
rios trabalhos do autor como referência para concluir que a luta 
armada fracassou porque o objetivo final das organizações que 
a promoveram era transformar o Brasil numa ditadura, talvez 
socialista, certamente revolucionária (GASPARI , 2002b: 193). 
Em seus estudos sobre a Ditadura Militar, Reis Filho tam-
bém tem sido o principal propagador de uma outra tese: a de que 
o regime instaurado pelo Golpe de 1964 deve ser denominado de 
ditadura civil-militar.'^ Neste caso, o uso de "civil-militar" é dis-
tinto daquele original que, na obra fundamental de René Dreifuss 
associava o elemento civil a um sentido de classe burguês/empre-
sarial da articulação que trabalhou pela derrubada de Goulart e 
viu-se representada nos governos pós-64. Reis FiUio se distancia 
da ideia de um sentido de classe do regime para defender que se 
formou um consenso social, entendido como "a formação de um 
acordo de aceitação do regime existente pela sociedade". Em-
bora sua noção de consenso envolva matizes que vão da defesa 
ativa à impotência conformista, a ideia é que, mais que o papel 
da repressão (que não é negado), o peso do apoio da sociedade 
é decisivo para "a sustentação de um regime politico, ou para o 
enfraquecimento de uma eventual luta contra o mesmo" (REIS 
F I L H O , 2010: 182). 
Reis Filho propugna que a sociedade (sempre vagamen-
te apresentada de forma homogeneizadora) convergiu para o 
19 Para um exemplo mais recente dessas propostas que aparecem em diversas de 
suas intervenções, ver Reis Filho (2010). 
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Texto digitado
tarefa do intelectual 
na sociedade
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apoio ao regime (desde o Golpe) e, a partir de meados dos anos 
1970, convergiu novamente para uma transição pactuada — cons-
truindo uma memória que apagava tanto os elementos revolu-
cionários das propostas de esquerda, que agora apresentavam-se 
como democráticas, quanto silenciava sobre a ação repressiva mais 
violenta dos torturadores e assassinos do regime. Para afirmar que 
"houve apoios, extensos e consistentes" o autor exemplifica com 
três situações: a primeira é a participação de milhões de pessoas nas 
Marchas da Família com Deus pela Liberdade, transformadas em 
"Marchas da Vitória", após o golpe; a segunda acentua a populari-
dade do ditador Medici (ilustrada por uma pesquisa do IBOPE, que 
lhe conferiria 82% de aprovação no início da década de 1970); e, 
por fim, as "expressivas votações obtidas pela Aliança Renovadora 
Nacional (Arena)". Associando a popularidade do regime ao suces-
so do "milagre económico", e vinculando o "consenso" na transição 
a xmia "cultura política" nacional estatista. Reis Filho acrescenta: 
A economia vai bem, mas o povo vai mal, diria o 
general Garrastazu Medici, o ditador mais sinistro 
e mais popular de todo o período ditatorial. E , de-
pois, na segimda metade dos anos 1970, liquidadas 
as alternativas revolucionárias de esquerda, a reto-
mada em grande estilo pelo governo Geisel da cul-
tura politica do nacional-estatismo e a convergência 
de direitas e esquerdas moderadas no processo que 
levou, finalmente, à restauração da democracia 
(REIS F I L H O , 2010: 178). 
Os exemplos que sustentam a análise de Reis Filho, entre-
tanto, são muito frágeis. As "marchas" foram realmente demons-
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U m Debate U!.stori..)t;rjr!(:'o 
trações de apoio ao golpe, como já havia notado Marini (2013), 
nos trechos citados anteriormente. No entanto, longe de tentar 
identificar socialmenteque setores se viam representados na-
quela ação política de apoio à derrubada de Goulart, como faz 
Marini, a proposta de Reis Filho é apresentar tais mobilizações 
como comprovação de uma apoio social generalizado. Se assim 
fosse, como explicar que as pesquisas de opinião das semanas 
anteriores ao golpe atribuíssem índices de aprovação de mais de 
70% ao governo Goulart, percentual semelhante ao dos apoia-
dores de uma reforma agrária, 55% dos paulistanos consideras-
sem como positivas as medidas anunciadas no comício de 13 de 
março de 1964 e uma eventual candidatura sua à Presidência em 
1965 contava com apoio majoritário na maior parte do país.^° 
Claro, pesquisas de opinião podem no máximo medir um posi-
cionamento momentâneo, são influenciadas pela forma como as 
informações são difundidas (ou sonegadas) e informam a partir 
de parâmetros previamente estabelecidos. Nada disso, porém, é 
lembrado por Reis Filho quando toma uma pesquisa IBOPE do 
auge da repressão ditatorial como prova cabal do "extenso e con-
sistente" apoio da sociedade ao regime e ao ditador de plantão. 
Naquele contexto, quantos entrevistados confiariam em expres-
sar livremente sua opinião para alguém que o parasse na rua ou 
batesse à sua porta e perguntasse sobre o que achava do governo 
Medici? ( M E L O , 2013: 54). 
Já quanto às "expressivas votações" da Arena, é difícil loca-
lizá-las da forma como o faz o autor. Afinal, a Arena surge da pri-
20 Dados das pesquisas de opinião recolhidos por Luís Nassif, "Segundo o Ibope, 
Jango teria sido reeleito em 65", In: http://jornaIggn.com.br/noticia/segun-
do-o-ibope-jango-teria-sido-reeIeito-em-65, consultado em janeiro de 2014. 
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74 
meira derrota eleitoral da Ditadura, em 1965, quando o bipar-
tidarismo é implantado e o sistema eleitoral é manietado (com 
o fim das eleições diretas para os executivos, entre outras medi-
das). Mesmo com todos os limites do jogo eleitoral, entretanto, 
a Arena nunca conseguiu (com a exceção de uma pequena mar-
gem - 50,5% - favorável nas eleições proporcionais de 1966) 
ultrapassar o percentual de votantes na oposição somado ao de 
votos nulos e brancos. A partir de 1974, inclusive, o MDB ultra-
passa a Arena em diversos pleitos, especialmente nas eleições de 
1978,^' apresentadas pelo autor como as "últimas eleições sob a 
ditadura" (REIS F I L H O , 2010: 174). 
Ao afirmar que as eleições de 1978 foram as últimas da 
ditadura, Reis Filho está reafirmando uma periodização própria 
sobre o regime, em que considera que a Ditadura de fato só se 
instala com o AI -5 , e termina uma década depois, quando sua vi-
gência é suspensa. Na formulação sintética desse mesmo artigo, 
esclarece que: "para mim, a ditadura encerrou-se em 1979, com 
o fim dos Atos Institucionais e o restabelecimento das eleições, 
da alternância no poder, da livre organização sindical e partidária 
e da liberdade de imprensa" (REIS F I L H O , 2010: 177). Nesse 
caso, pouco importa que os sindicatos sofressem intervenção no 
início dos anos 1980 e seus dirigentes fossem processados pela 
Lei de Segurança Nacional, que a maior parte da legislação di-
tatorial permanecesse de pé até a Constituição de 1988 e que as 
eleições diretas para presidência só tenham retornado em 1989. 
As propostas interpretativas de Reis Filho sobre a ditadu-
ra foram retomadas em diversos trabalhos recentes, sendo até 
21 Para os dados das eleições do período, ver por exemplo Fleischer (1994). 
O S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E DA D I T A D U R A : 
Uru Debate UistoriogriRco 
mesmo generalizadas para outras situações nacionais como, por 
exemplo, no prefácio de uma coletânea sobre o consenso da so-
ciedade em torno das formas ditatoriais de governo no sécu-
lo X X , reunindo artigos sobre Brasil, América Latina, Europa, 
África e Ásia. Nela, as organizadoras partem de uma dupla pro-
blematização, propondo-se a entender: 
[...] como um regime autoritário/uma ditadura 
obteve apoio e legitimidade na sociedade ;[e] como 
os valores desse regime autoritário/ditatorial esta-
vam presentes na sociedade e, assim, tal regime foi 
antes resultado da própria construção social ( R O L -
L E M B E R G & QUADRAT, 2011: 14). 
Novamente, a sociedade aparece aqui caracterizada de 
forma generalizante, suas divisões e os conflitos delas decor-
rentes não se apresentam e a explicação para tal ênfase na acei-
tação consensual do regime é, como em várias passagens de 
Reis Filho, alicerçada no conceito de cultura política," agora 
resumido à dimensão dos valores e referências: "São os valores 
e as referências, as culturas políticas que marcam as escolhas, 
sinalizando relações de identidade e consentimento, criando 
consensos, ainda que com o autoritarismo" ( R O L L E M B E R G & 
Q U A D R A T , 2011: 14). 
Ditaduras que se sustentam mais pelo consenso do que 
pela coerção? "Sociedades" homogéneas a seguir determinados 
rumos políticos por conta de alguma "cultura política" generica-
mente definida? 
22 Uma análise crítica do conceito de cultura política aparece em Cardoso (2012). 
55219
Realce
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Sublinhado
55219
Sublinhado
55219
Sublinhado
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Sublinhado
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Realce
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Texto digitado
conceito de cultura 
política como chave de entendimento 
M;u(x:l<) Badaró Matto? 
76 
Do ponto onde estamos 
As reflexões sobre a ditadura e o golpe, 50 anos após a 
derrubada de Goulart estão se dando em um momento muito 
específico. Vivemos a experiência de trazer à tona sistematica-
mente memórias e documentos da face mais cruel da repres-
são ditatorial, através dos trabalhos de "comissões da verdade" 
(nacional, estaduais, em universidades e outros entes públicos), 
que muito tardaram a ser constituídas e são muito limitadas em 
sua abrangência legal. Os resultados dessas discussões não estão 
pré-determinados. Podemos, ao fim e ao cabo, chegar a alguns 
relatórios oficiais, resultantes da exposição dolorosa de feridas 
abertas pela ditadura, à abertura de alguns novos acervos do-
cumentais que resultarão em novas teses académicas, tudo isso 
muito importante, mas insuficiente se o fim do processo forem 
algumas cerimónias oficiais de "conclusão dos trabalhos", ten-
tando fechar de vez a tampa do caixão em que muitos setores 
pretendem enterrar finalmente essa fase da trajetória histórica 
da sociedade brasileira. Ou podemos ir além. 
A oportunidade de abrir as portas cerradas e expor os es-
queletos do armário deve ser utilizada para expor claramente, 
enquanto muitos de seus protagonistas ainda estão circulando 
normalmente entre nós, quem efetivamente deu o golpe que 
quebrou a frágil institucionalidade do regime democrático ins-
talado a partir de 1945 no Brasil? Que interesses eles represen-
tavam? Que setores do capital foram mais diretamente benefi-
ciados pelas políticas económicas da Ditadura? Quantos e quais 
agentes de instituições públicas agiram à margem da lei, mas 
sob ordens de uma cadeia de comando que ia até o Planalto 
o S K N T I D O D E C L A S S E D E G O l PE D E 1964 E DA D E l - A D U R A : 
U m Debate Historiogr.ítí(-o 
e respaldados por uma política de Estado, cometendo crimes 
contra a humanidade? Quantas e quais empresas sustentaram 
materialmente esse aparato repressivo? Que tipo de transição 
política e qual o caráter do regime político dela resultante, que 
permitiram manter quase 30 anos depois da Ditadura, no palco 
principal da política brasileira, muitos dos personagens desta-
cados da condução da Ditadura, muitas vezes escalados para 
representar seus papéis atuais por dirigentes que estiveram do 
outro lado das trincheiras naqueles tempos? 
Contribuir para responder essas questões é, mais do que 
uma possibilidade, uma responsabilidade social dos historiado-
res e cientistas sociais em geral que se dedicam a refletir sobre 
uma história, ainda do tempo presente, como essa. Este artigo 
procurou lembrar que, enquanto

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