Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
GOVERNO DE / ^ . S E R G I P E ^J^^l^ PRESENTE E FUTURO GOVERNO DO ESTADO DE SERGIPE Governador Jackson Barreto de Lima Vice-Governador Belivaldo Chagas Secretário de Estado do Governo Benedito de Figueiredo ^ 1 0 1 SÉRVIOS GRÁFICOS DE SERGIPE Pegrase SEGRASE - SERVIÇOS GRÁFICOS DE SERGIPE Diretor-Presidente (em exercício) Carlos Alberto Leite Prado Diretor Industrial Milton Alves fEDISE Gerente Editorial Sônia Pedrosa Conselho Editorial Antônio Amaral Cavalcante Cristiano de Jesus Ferronato Ézio Christian Déda Araújo João Augusto Gama da Silva José Anselmo de Oliveira Jussara Maria Moreno Jacintho Luciano Correia dos Santos Ricardo Oliveira Lacerda de Melo Memórias Reveladas/RJ B r u n o Gsxippo 34 S C H W A N , Gesine. P o l i t i k u n d S c h u l d : Die zerstòrerische Macht des Schweigens. Frankfurt am Main: Fischer, 1997. S E M E L I N , Jacc^ues. Pur i f íer et dé t ru i re : usages politiques des massacres et genocides. Paris: Seuil, 2005. S M I T H , Kathleen. M y t h m a k i n g i n the n e w Rússia: poh- tics and memory during theYeltsin era. Ithaca (N.Y . ) : Cornell University Press, 2002. . R e m e m b e r i n g Stal in 's v i c t i m s : popular memory and the end of the USSR. Ithaca ( N . Y . ) : Cornell University Press, 1996. STRATH, Bo (ed.). M y t h a n d M e m o r y i n the Construct ion o f Community . Histórica! Patterns in Europe and Beyond, Lang, Bern/Berlin/Frankílirt/NewYork, 2000. T R A V E R S O , Enzo. L e passe, modes d ' e m p l o i : histoire, mé- moire, pohtique. Paris: La Fabrique, 2005. T U M A R K I N , Nina. T h e L i v i n g a n d the D e a d : the Rise and Fali of the C u h of World War 2 in Rússia. New York: Basic Books, 1994. U H L , Heidemarie. «Das „erste Opfer". Der õsterreichische Opfermythos und seine Transformationen in der Zweiten Re- publik», Õ s t e r r e i c h i s c h e Z e i t s c h r i f t f u r P o l i t i k w i s s e n s - chaft , 30 (2001), n . 1 , pp. 19-34. . From victims myth to co-responsibility thesis: Nazi rule, World War I I , and the Holocaust in Austrian Memory. In LEBOW, Richard ; K A N S T E I N E R , Wulf e F O G U (eds.). T h e Pol i t ics o f M e m o r y i n Pos twar E u r o p e . Durham/London, Duke University Press, 2006, pp. 40-72. Z E H F U S S , Maja. W o u n d s o f M e m o r y . T h e Pol i t i cs o f W a r i n G e r m a n y . Cambridge: Cambridge University Press, 2007. O SENTIDO DE C L A S S E DG GOLPE DE 1964 E DA DITADURA: U M DEBATE HISTORIOGRÂHCG Marcelo Badaró Mattos' Propõe-se neste texto lançar um olhar específico sobre a Uteratura especializada a respeito do Golpe de 1964 e da Dita- dura que com ele se instalou.^ Assumindo a impossibilidade de uma discussão mais abrangente neste curto espaço,^ o que se pro- curará aqui é estabelecer um parâmetro de avaliação das marcas de continuidade e das mudanças significativas nas grandes linhas interpretativas desses processos históricos, partindo da produção académica dos anos próximos ao golpe e seguindo até os trabalhos mais recentes. Tal parâmetro foi definido em torno de uma questão cen- tral, que demarca terreno do ponto de vista tanto teórico quanto de conteúdo empírico: havia um sentido de classe no processo que gerou a derrubada do governo João Goulart e na Ditadura que então se implantou? A questão demarca terreno por gerar 1 Professor Titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense 2 Tive a oportunidade de debater a questão em Mattos (200S; 2008). Alguns dos argumentos apresentados naqueles artigos foram ora retomados, embora o balanço seja aqui mais amplo e atualizado. 3 Um artigo de balanço historiográfico não pode dar conta das várias questões de conteúdo envolvidas na caracterização do Golpe e da Ditadura, embora elas sejam eventualmente discutidas. Para visões sintéticas de conjunto sobre o Golpe e a Ditadura, ver Fico (2004) e Napolitano (2014). 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado M<ii-i'elo B.iilaró Mattos 36 respostas diferenciadas, que podem ser positivas ou negativas e, se positivas, induzem a uma segunda questão a respeito de qual seria então o sentido de classe desses processos, que classes ou frações de classes sociais apoiaram, agiram para, foram bene- ficiados e, é claro, sobre quais se opuseram, resistiram, foram mais diretamente atingidos. Mas a demarcação principal é feita entre a historiografia que privilegia a questão e aquela que a se- cundariza, ou sequer a propõe. A sequência da exposição procurará, tanto quanto possí- vel, acompanhar uma ordem cronológica da produção de co- nhecimento sobre o tema, relacionando tal cronologia à questão central apresentada. Um episódio da luta de classes Em sua conhecida análise sobre o governo João Goulart e o Golpe de 1964, publicada originalmente em 1978, Moniz Bandeira, após recuperar a dinâmica das lutas sociais do período, afirma que "o golpe de Estado no Brasil, instigado e sustentado pela comunidade dos homens de negócios e pelos proprietários de terras, constituiu nitidamente um episódio da luta de classes [ . . . ] " ( B A N D E I R A , 2001: 204).Tal formulação, aqui recupera- da de forma propositalmente recortada, representa de forma exemplar uma premissa fundamental dos estudos sobre o Golpe e a Ditadura produzidos enquanto ela ainda vigia. A premissa de que o golpe de Estado perpetrado em 1964 possuía um sentido de classe e era explicado, em grande medida, pela dinâmica dos conflitos sociais daquele período histórico é. o S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L P E D E l % 4 E DA DÍ1V\DURA: U m E>ebat*;: Elistoriográlico do ponto de vista teórico, ancorada na lógica mais geral de in- terpretação da vida social proposta pelo materialismo histórico. Por certo que tal lógica interpretativa influenciou fortemente os estudos sobre o tema desenvolvido no Brasil entre os anos 1960 e 1980. Muitos desses estudos, porém, foram muito além de sim- plesmente repetirem esquemas teóricos como fórmulas explica- tivas invariáveis e trataram de demonstrar, recorrendo a fontes as mais diversas e a caminhos distintos de análise, como determina- dos setores da sociedade atuaram organizadamente para derrubar o governo Goulart e de que forma as políticas levadas a cabo pela Ditadura implantada em 1964 eram dirigidas para contemplar os interesses fimdamentais desses mesmos setores. Em escritos publicados no México, em primeira edição no ano de 1969, e só muito mais tarde traduzidos para o português, Ruy Mauro Marini — um dos formuladores da "primeira" teoria da dependência"^ - anafisou o golpe de 1964 e os primeiros anos da ditadura a partir dos conflitos de classe, condicionados pelas condições específicas que o acelerado processo de desenvolvi- mento urbano-industrial brasileiro gerava. Conflitos "verticais", seguindo seu vocabulário, entre a burguesia industrial e o setor agroexportador e, cada vez mais, desde a segunda metade dos anos 1950, conflitos "horizontais", que opunham "as classes do- minantes como um todo e as massas trabalhadoras do campo e da cidade" ( M A R I N I , 2013: 90) . 4 Estamos assim nos referindo à teoria da dependência de bases marxistas desen- volvida por Marini, Theotônio dos Santos, e Vânia Banbirra, bastante distinta das formulações difundidas mais tarde por autores como Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto e José Serra. Para a diferenciação entre as distintas "te- orias da dependência", ver, entre outros, a introdução de Traspadini & Stédile (MARINI, 2005). 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce Marcelo Badan') Mattos 38 Marini, por sua ênfase no caráter dependente da econo- mia capitalista na América Latina, e no Brasil, em especial, era bastante atento ao peso dos condicionantes externos na dinâmi- ca econômico-social brasileira. Porém, em sua análise do golpe de 1964 e do regime implantado a partir de então, avaliava que "aquelesque veem o atual regime militar do Brasil como resul- tado de uma ação externa estão equivocados" ( M A R I N I , 2013: 105). Recuando no tempo e percebendo como as tentativas an- teriores de intervenção militar fracassaram, Marini conferiu re- levo para como o golpe só foi possível em função da edificação de uma base social de apoio aos militares: A tentativa fracassada de 1961 [refere-se ao movi- mento dos ministros militares para impedirem a posse de João Goulart quando da renúncia de Jânio Quadros] expressou claramente que uma interven- ção militar só poderia ter êxito se: a) correspon- desse a uma situação objetiva de crise da sociedade brasileira; e b) estivesse inserida no jogo político das forças em conflito. O respaldo que os milita- res receberam da pequena-burguesia - expresso na 'Marcha da Família', que reimiu, no dia 2 de abril de 1964, um milhão de manifestantes no Rio - é um sinal evidente de que a ação das forças armadas correspondia a imia realidade social objetiva. Outra confirmação é a adesão unânime das classes domi- nantes (MARINI, 2013: 105). Tal movimentação de classe não se deu sem formas or- ganizativas correspondentes e Marini destacou, entre outras, a tarefa de reunir e arrecadar fundos antigovernistas dos empresá- <::> S E N l l D O D E t : 'LASSE D E G O L P E D E 1964 E DA D i l V \ D U R A : U m Debate Historiográfico rios, desempenhada pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e a atividade de propaganda e arregimentação de bases anti-Goulart, apoiada pelo governo estadunidense, do Institu- to Brasileiro de Ação Democrática ( I B A D ) . São esses esforços e manifestações que levam Marini a afirmar que "pela primeira vez desde o 'integralismo' fascista dos anos 1930, a direita mobiliza- va as massas" ( M A R I N I , 2013: 101-103). A fusão do conjunto das classes dominantes em um único bloco favorável ao golpe e à instalação da ditadura foi por ele atri- buída, por um lado, aos efeitos da crise económica (visíveis desde 1962), "que não favorecia a aliança da burguesia com as classes populares", devido aos "sacrifícios" que se tentava impor aos traba- lhadores assalariados, por mais que Goulart representasse a última chance do "milagre dessa aliança". Por outro lado, a alteração na composição interna da burguesia, decorrente das políticas e das mudanças económicas iniciadas em 1955 (a internacionaUzação da economia proveniente do modelo desenvolvimentista expresso no Plano de Metas do governo J K ) , "com o aumento do setor vincu- lado ao capital estrangeiro, tornava cada vez menos possível este arranjo entre os grupos dominantes" (MARINI , 2013: 107). Tendo em vista que "as forças populares", por seu turno, "ganhavam autonomia de ação" e as crises "se resolviam cada vez menos facilmente através de acordos palacianos" ( M A R I N I , 2013: 106), a análise do teórico da dependência acentua o sen- tido de classe do golpe, para conter as lutas dos trabalhadores urbanos e rurais. Vale a pena a longa citação, [...] a primeira face mostrada pelo governo miU- tar foi a repressão pohcial contra movimento de 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Sublinhado M arreio BaJarr) M oí:t:o5 40 massas: a intervenção nos sindicatos, a dissolução dos organismos populares de direção (inclusive do C G T ) , a perseguição aos líderes operários e cam- poneses, a supressão de mandatos e de direitos polí- ticos, a prisão e a tortura. Explica também a políti- ca económica desse governo, que foi, antes de mais nada, de contenção dos salários, de restrição do crédito e de aumento da carga tributária. Em linhas gerais, a política de estabilização financeira do atual governo quer criar uma oferta de mão de obra mais abimdante, baixando assim seu preço, e, ao mes- mo tempo, 'racionalizar' a economia, liquidando a concorrência excessiva e favorecendo, portanto, a concentração de capital nas mãos dos grupos mais poderosos. Isso beneficia, claro, os grupos estran- geiros, mas também beneficia a grande burguesia nacional (MARINI, 2013: 107-108). Tais elementos levantados por Marini, ainda nos anos 1960, nesse texto que pouco circulou no Brasil, apareceram de forma semelhante em diversas análises posteriores, cabendo por isso mesmo ressaltar a originalidade de seu raciocínio. Uma outra vertente analítica concomitante, em diálogo maior ou menor, conforme o autor, com as teses da(s) "teoria(s) da dependência", também propugnou o estabelecimento da rela- ção entre a crise política e a dimensão mais propriamente econó- mica da crise de acumulação. Tais análises possuíam em comum com a discussão de Marini a premissa de que, se o novo modelo económico industrializante e dependente, montado principal- mente com Juscelino Kubitschek, vivia uma crise cuja superação exigiria do Estado uma intervenção que garantisse maior abertu- ( ) S E N T I D O D E C L A S S E D E C C J L P E D E 1964 E DA D I T A D U R A : U m Debate Mi:;tori<)grálK;í) ra para o capital estrangeiro e uma política dirigida a privilegiar ainda mais o grande capital, essa política teria que passar por garantir total controle sobre as organizações e as lutas dos tra- balhadores, de forma a viabilizar a manutenção dos salários em patamares muito baixos. Quase sempre apresentado de forma combinada com esse primeiro ponto, encontra-se o segundo, através da tese que derivava o golpe da crise do populismo. Esse era entendido como a base da dominação de classes naquela fase, sustentada no equilíbrio instável que garantiu a incorporação das massas à política pela via controlada do pacto populista. Tal pacto entrara em crise, pois as massas queriam ir além dos limites esta- belecidos pelas classes dominantes para suas concessões. Tomando por exemplo a análise de Octávio Ianni, pu- blicada originalmente em 1968, o populismo envolvia diversas dimensões daquela etapa da trajetória brasileira, associadas em especial às contradições do desenvolvimento capitalista urbano- -industrial e à entrada das massas no plano das disputas de poder. Segundo sua análise, [...] pode-se afirmar que a entrada das massas no quadro das estruturas de poder é legitimada por intermédio dos movimentos populistas. Inicial- mente, esse populismo é exclusivamente getulista. Depois adquire outras conotações e também deno- minações.!...] No conjunto, entretanto, trata-se de uma política de massas específica de uma etapa das transformações económico-sociais e políticas no Brasil. Trata-se de um movimento político, antes do que um partido político. Corresponde a uma parte fundamental das manifestações políticas que 41 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado Marcelo Badarn Mattos 42 ocorrem numa fase determinada das transforma- ções verificadas nos setores industrial e, em menor escala, agrário. Além disto, está em relação dinâ- mica com a urbanização e os desenvolvimentos do setor terciário da economia brasileira. Mais ainda, o populismo está relacionado tanto com o consimio em massa como com o aparecimento da cultura de massa. Em poucas palavras, o populismo brasileiro é a forma política assumida pela sociedade de mas- sas no país (IANNI, 1978: 207). A crise do populismo seria então derivada da exacerbação das contradições do regime, durante o governo Goulart, com a ampliação da participação das massas no jogo político, ao mesmo tempo em que cresciam as pressões das classes dominantes pela limitação dessa participação. Segundo Ianni, Goulart "traz con- sigo todos os compromissos e ambiguidades da política de mas- sas. Governa sempre sob as várias pressões que caracterizam a história do populismo. Agora essas pressões estão concentradas, em força e profundidade". Por isso mesmo, foram os conflitos sociais que desnudaram aquelas ambiguidades. "O populismo terá sido apenas uma etapana história das relações entre as clas- ses sociais. Nesse sentido é que se pode dizer que no limite do populismo está a luta de classes" ( I A N N I , 1978: 209-213). Um passo além na discussão sobre o caráter de classe do Golpe e da Ditadura seria dado na obra de Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil. Escrito entre 1966 e 1974, o livro de Fernandes empenha-se em analisar o processo específico através do qual se pro- cessou a "revolução burguesa" — entendida tanto como "transforma- ção capitaHsta" quanto como "dominação btirguesa" via Estado — em o S E N T M : ) 0 D E C L A S S E D E I Í O L P E D E 1 9 6 4 E [ ) A D l l A D U R A : Ur» Del:>ate Hiftori<:)gráfico luna sociedade periférica e dependente como a brasileira. Em seu estudo, ao revés da associação entre desenvolvimento capitalista e democracia, que caracterizaria um modelo "democrático-btirguês", associado à revolução burguesa em países de desenvolvimento capi- talista mais antigo, o que seria próprio do processo local seria "uma forte associação racional entre desenvolvimento capitalista e auto- cracia" (FERNANDES, 2005: 340). Em tal situação histórica, Florestan Fernandes argumenta- ria, as mais leves demonstrações de manifestação autónoma dos trabalhadores urbanos e/ou rurais seriam tomadas como sérias ameaças ao padrão burguês de dominação autocrática. Daí que tal dominação adquirisse um caráter permanentemente con- trarrevolucionário. O golpe de 1964 é explicado pelo sociólogo como uma resposta "preventiva" da burguesia aos conflitos so- ciais do período: Ao 'defender a estabilidade da ordem', portanto, as classes e os estratos de classe burgueses aprovei- taram aqueles conflitos para legitimar a transfor- mação da dominação burguesa em uma ditadura de classe preventiva e para privilegiar o seu poder real, nascido dessa mesma dominação de classe, como se ele fosse uma encarnação da ordem 'legitimamente estabelecida'(FERNANDES, 2005: 369). A gestão tecnocrática e militar que se seguiu ao golpe re- presentava não a essência do regime mas luna "resultante", ainda que "uma resultante de caráter essencial e primordial" ( F E R N A N - DES, 2005: 395), da forma como a "autocracia burguesa" resolveu o chamado "colapso do populismo", afastando os representantes 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado Marc-olo Badarií Mattos 44 do "radicalismo burguês e da ordem pseudodemocrático-burguesa que o engendrara" (FERNANDES, 2005: 394). Sua análise destaca a especificidade da Ditadura, mas não a trata como uma ruptura completa e sim como lun ajuste autocrático burguês, pois a derro- ta das forças populares em 1964 poderia ser entendida como um "desmascaramento" do caráter autocrático já vigente da domina- ção burguesa: O povo não possuía nem mandatários responsá- veis nem campeões leais no 'campo burguês'; e quando o jogo democrático se tornou demasia- do arriscado, os verdadeiros atores continuaram o baile sem máscaras. Em suma, não existia uma democracia burguesa fraca, mas uma autocra- cia burguesa dissimulada ( F E R N A N D E S , 2005: 394-395). Pode-se argumentar que, embora fortemente amparados em ampla e pertinente literatura especializada, trabalhos como os de Florestan Fernandes e Octávio Ianni se inscrevem numa tradição de ensaios sociológicos voltados para sínteses interpre- tativas de largo fôlego, muitas vezes criticada pela tendência a generalizações de difícil comprovação empírica. No entanto, trabalhos mais fortemente ancorados sobre pesquisa original em fontes primárias, longe de contraditar os insights analíticos desse tipo de ensaística sociológica, vieram a confirmar o sentido de classe da intervenção política que derru- bou Goulart e da Ditadura que a ela se seguiu. O mais importan- te deles foi a obra de René Armand Dreifuss, 1964: a conquista do Estado, publicada originalmente em 1981. o S E N T I D O D E C1,ASSE D E G O L P E D E 1964 E DA D E I A D U R A : Mrn í')(::hat<; í Ijstorioíír.ilico Dreifuss demonstrou que os empresários brasileiros agiam politicamente de forma organizada e documentou o papel de- cisivo do grande capital na articulação do golpe. Estudando o complexo IPES-IBAD, e influenciado pela noção de "intelectual orgânico" de Antônio Gramsci (2000a), mostrou que seus par- ticipantes constituíam a "elite orgânica" dos empresários e dos militares. Essa "elite orgânica" foi por ele mapeada a partir de centenas de documentos do IPES e do IBAD e de um meticuloso trabalho de identificação dos personagens que apareciam nesses documentos, desvelando seus vínculos com grandes empresas multinacionais e associadas. Eles estavam, segundo Dreifuss, (...) no centro dos acontecimentos como homens de ligação e como organizadores do movimento civil-militar, dando apoio material e preparando o clima para a intervenção militar [...] O ocorrido em 31 de março de 1964 não foi um mero golpe militar. Foi (...) um movimento social civil-militar (DREIFUSS, 1981: 397). 45 Esse caráter de classe do golpe e dos governos da Ditadura é o centro da análise de Dreifuss, que toma os representantes do grande capital como protagonistas de uma ação política cons- ciente e dirigida a um fim. Nas suas palavras: As classes dominantes, sob a liderança do blo- co multinacional e associado empreenderam uma campanha ideológica e político-militar em frentes diversas, através de uma série de instituições e or- ganizações de classe, muitas das quais eram parte 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce Marcelo Ba.iaró Mattos 46 integrante do sistema político populista ( D R E I - FUSS, 1981: 483). Através da análise comparativa entre os projetos formu- lados antes do golpe, no interior do IPES e das políticas imple- mentadas nos primeiros anos da Ditadura, combinada a um ma- peamento dos ocupantes de cargos dos primeiros escalões do primeiro governo militar, através do qual constatou a proemi- nência de representantes da "elite orgânica" que se articulou em torno do complexo IPES-IBAD, Dreifuss pode perceber como determinados objetivos conscientes do movimento que levou à derrubada de Goulart estavam sendo perseguidos na Ditadura. Com isso, segundo sua análise, no pós-1964, [...] essa verdadeira elite das classes dominantes [...] preservou a natureza capitalista do Estado, uma tarefa que envolvia sérias restrições à organização autónoma das classes trabalhadoras e a consohdação de [...] um tipo de capitahsmo tardio, dependente, desigual, mas também extensamente industrializado, com uma eco- nomia principalmente dirigida para tmi alto grau de concentração de propriedade na indústria e integração com o sistema bancário (DREIFUSS, 1981: 485). É possível obstar que, mesmo que se constate a existência de tmia articulação tão ampla quanto a demonstrada por Dreifuss, esta não é uma explicação suficiente para o golpe em si, que foi deslanchado por iniciativa imediata dos militares e, como demons- tra a precipitada saída de Mourão Filho com suas tropas de Minas Gerais, não possuía uma única frente de articuladores. No entanto. o S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E DA DÍEADURA: l.!r» Debat e H istoriogri fico O trabalho de Dreifuss tem um sentido bem mais profundo do que a análise do acontecimento Golpe enquanto fenómeno imediato. Seu estudo nos posiciona sobre as condições que viabilizaram o sucesso da tomada do poder pelo movimento "civil-militar" e a natureza das políticas postas em prática nos anos seguintes. A natureza de classe do golpe e do regime ditatorial que ele instala pode ser discutida, como se viu, a partir dos interes- ses sociais representados pelos golpistas e da ação política dire- ta de setores das classes dominantes, que articularam o golpe e participaram ativamente da direção do Estado brasileiro soba Ditadura. Por outro lado, ela se revela também naquilo que o golpe e a Ditadura buscaram conter: a ação política autónoma da classe trabalhadora. De certa forma, boa parte da produção centrada no concei- to de "popuHsmo" e na discussão de sua crise, tendeu a considerar a classe trabalhadora e suas organizações como submetida a um grau elevado de controle por parte da estrutura sindical corporativa e a uma heteronomia poHtica derivada tanto da tendência populista à "manipulação das massas" quanto da Hnha poKtica de alianças de clas- se do PCB.^ O exemplo clássico de análise do populismo que acentua essas dimensões é o trabalho de Francisco Weffort, O populismo na política brasileira, origi- nalmente publicado em 1978. Porém, mesmo Weffort não toma a ideia de manipulação das massas em um sentido unívoco, ressaltando o caráter de aliança de classes do popuhsmo: "A noção de manipulação, tanto quanto a de passividade popular, tem que ser relativizada, concretizada histori- camente, para que possamos entender a significação real do populismo. A imagem, se não o conceito, mais adequado para entendermos as relações entre as massas urbanas e alguns grupos representados no Estado é a de uma aliança (tácita) entre setores de diferentes classes sociais. Aliança na qual evidentemente a hegemonia se encontra sempre com os interesses vincula- 55219 Realce 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Texto digitado Principais contribuições do modelo interpretativo elaborado por Dreifuss 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Realce Mart-cjo tkiiiiró Mattos A noção de "sindicalismo populista" foi a forma mais aca- bada de caracterização negativa da capacidade de intervenção dos trabalhadores no jogo político mais amplo. Na definição mais conhecida, de Francisco Weffort, o sindicalismo populista: [...] no plano da orientação, subordina-se à ideologia nacionalista e se volta para uma política de reformas e de colaboração de classes; no plano da organização, caracteriza-se por uma estrutura dual em que as cha- madas 'organizações paralelas', formadas por iniciativa da esquerda, passam a servir de complemento à es- trutura sindical oficial, inspirada no corporativismo fascista como um apêndice da estrutura do Estado; no plano político, subordina-se às vicissitudes da aUança formada pela esquerda com Goidart e outros poKticos fiéis à tradição de Vargas (WEFFORT, 1973: 67). Esse tipo de caracterização no negativo do sindicalismo da época pode ser atribuído, em grande medida, às decepções po- líticas dos analistas de esquerda com a falta de resistência eficaz da classe trabalhadora ao golpe que derrubou Goulart. De certa forma, tais anáHses deslocam-se para uma responsabilização, em maior ou menor grau, das organizações dos trabalhadores pelo desfecho do golpe de 1964. O próprio Weffort, comentando o fracasso da greve convocada em 31 de março/1°. de abril de 1964 pelo C G T para apoiar Goulart, tratou-a como exemplo claro da fragilidade do sindicalismo populista. dos às classes dominantes, mas impossível de realizar-se sem o atendimento de algumas aspirações básicas das classes populares." (WEFFORT, 1986: 75-76). <::> S E N T I D O D E C1..ASSE D E G O L P E D E 1964 E DA D í l A D U R A : U n i Debata; iUstoiiográíkx) O teste de força para o sindicalismo populista, que alguns acreditavam ser o 'quarto poder' da Repú- blica, veio em 31 de março de 1964. A experiência do C G T em greves políticas feitas, quase todas, para apoiar jogadas do governo, de nada lhe valeu quando, de fato, se tornou necessário ir à greve para sustentar o governo ameaçado de uma der- rubada iminente. As bases sindicais lhe faltaram e a greve fracassou completamente. O governo caiu e, com ele, o 'quarto poder' vem abaixo pratica- mente sem luta. Desmoronou como um castelo de cartas ( W E F F O R T , 1978: 4). As teses sobre o sindicaUsmo populista já foram criticadas à exaustão por um conjxmto de trabalhos produzidos desde a dé- cada de 1990. Com farta pesquisa histórica, demonstraram-se os equívocos de tal interpretação.'' Mesmo que este não seja o espa- ço para desenvolver tal crítica, recupera-se aqui que tais estudos constataram, entre outras coisas, que, apesar dos limites realmen- te existentes da legislação sindical corporativista e da linha política do PCB, algumas das mais importantes organizações sindicais do período possuíam "índices elevados de sindicalização, variadas e ativas organizações por local de trabalho, diversidade de áreas de atuação [...] e sólidos laços de representatividade entre dirigentes e bases". Foram observadas também "greves participativas, organi- zadas a partir do local de trabalho e com uma integração viável en- tre demandas políticas gerais e bem sucedidos encaminhamentos de reivindicações económicas" (MATTOS, 1 : 218-219). 6 Ver, por exemplo, Fortes et. al., (1999); Mattos (1998); Silva (1995); Costa (1995); Leal (2011); Melo (2013), entre outros. 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado Marcelo Badaró Mattos Não fosse assim, pouco sentido faria qualquer interpre- tação que atribuísse aos que deram o golpe a intenção de calar violentamente as vozes da classe trabalhadora organizada, pois, se o controle da estrutura sindical e a subalternização da linha política de aliança de classes eram empecilhos tão eficientes à ação autónoma dos trabalhadores, fica difícil entender o porquê da necessidade de um governo de força para conter suas lutas. No entanto, mesmo que tais elementos possam surgir mixados contraditoriamente, a maior parte das análises sobre o golpe e a implantação da Ditadura que partem da discussão dos conflitos sociais do período atribui às lutas dos trabalhado- res um potencial desestabilizador do "pacto populista". Não há, porém, consenso, na avaliação do grau de instabilidade gerado por essas mobilizações. Em seu estudo sobre a esquerda brasileira nos anos 1960/70, Jacob Gorender defendeu a tese de que o caráter ascendente das lutas dos trabalhadores brasileiros nos primeiros anos da década de 1960 representou uma ameaça real à dominação de classes no Brasil, constituindo-se mesmo imia situação pré-revolucionária na fase imediatamente anterior ao golpe de Estado: Segundo penso, o período 1960-1964 marca o ponto mais alto das lutas dos trabalhadores bra- sileiros neste século, até agora [1987]. O auge da luta de classes, em que se pôs em xeque a esta- bilidade institucional da ordem burguesa sob os aspectos do direito de propriedade e da força co- ercitiva do Estado. Nos primeiros meses de 1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se definiu, por isso mesmo, pelo O S E N T i t X J D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E DA D l 1V\DURA: U m Deí>ate EU?>t«:)ríi.)£ráfico caráter contrarrevolucionário preventivo ( G O - R E N D E R , 1987: 66-67). A ideia da contrarrevolução preventiva é tomada de em- préstimo, certamente, de Florestan Fernandes. Porém, a obra do sociólogo paulista possui um cuidado maior na qualificação do grau de ameaça à ordem do capital envolvido nas lutas da classe trabalhadora nos primeiros momentos da década de 1960. Segun- do Fernandes, os movimentos de massa antiburgueses do início da década de 1960, embora possuíssem uma ressonância ampla para além de seus quadros sociais, "estavam longe de representar um 'perigo imediato', pelo menos em si e por si mesmos" ( F E R - N A N D E S , 2005: 377). Por isso mesmo, o sentido da expressão "preventiva" adjetivando o caráter contrarrevolucionário da ação de classe que resulta no golpe é diretamente vinculado a imia outra adjetivação - "potencialmente"-, associada à ideia de imia situação pré-revolucionária. Assim, segundo Fernandes: Nunca chegou a existir uma situação pré-revolucio- nária tipicamente fimdada na rebelião antiburguesa das classes assalariadas e destittudas. No entanto,a situação existente era potencialmente pré-revolu- cionária, devido ao grau de desagregação, de desar- ticulação e de desorientação da própria dominação burguesa, exposta ininterruptamente, da segim- da década do século à 'revolução institucional' de 1964, a um constante processo de erosão intestina ( F E R N A N D E S , 2005: 374-375). A ação de classe dos setores burgueses que se aliaram aos conspiradores militares para derrubar o governo de João Goulart 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Realce 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Realce Marcelo Badaró Mattos 52 em 1964 revelava, portanto, além de um projeto de desenvolvi- mento económico associado e centrado no grande capital, que demandava para sua implementação o controle sobre as lutas dos trabalhadores, também o temor diante do potencial contrassis- têmico (ainda que "potencial") de um conjunto de mobilizações sociais dos trabalhadores urbanos e rurais. Um temor derivado da natureza autocrática da dominação de classes típica do capi- talismo periférico e dependente, mas também nas dificuldades internas às diferentes frações burguesas para construírem uma base estável de dominação, pautada pela hegemonia de um de- terminado projeto político, que fosse capaz de revestir de con- senso a coerção típica de qualquer forma de dominação estatal. Carlos Nelson Coutinho assinalou a associação entre a noção da contrarrevolução - prolongada e preventiva - de Fer- nandes e o conceito de "revolução passiva" de Antonio Gramsci ( C O U T I N H O , 2003: 205) . ' Revoluções passivas, na análise de Gramsci, estão associadas a situações históricas em que as no- vas classes dominantes levam adiante projetos de modernização capitalista sem efetuar uma ruptura completa com os interesses dominantes anteriores, pois rejeitam o recurso à mobilização das massas, pelo temor da ação política das classes subalternas ( G R A M S C I , 2002). As revoluções passivas surgem muitas vezes em meio (e também podem criar condições propícias) a situa- ções sociais que adquirem o conteúdo de uma "crise orgânica", usada quase sempre como sinónimo de "crise de hegemonia": Para uma discussão mais aprofundada do que o permitido neste espaço sobre o conceito de revolução passiva e a análise da situação brasileira naquela conjun- tura, ver Mattos (2009: 80-88). O S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E DA D i m O U R A : U m Debate Historiográfico [...] que ocorre ou porque a classe dirigente fra- cassou em algum grande empreendimento político para o qual pediu ou impôs pela força o consenso das grandes massas [...], ou porque amplas massas [...] passaram subitamente da passividade política para a atividade e apresentam reivindicações que, em seu conjimto desorganizado, constituem uma revolução (GRAMSCI , 2000b: 60). Percebe-se com essa passagem por que a noção de crise de hegemonia foi frequentemente empregada pelas análises so- bre a conjuntura que culminou com o golpe de 1964. Pensado nesses termos, tanto os conflitos internos quanto a ação pohtica visando derrubar Goulart, movida por um bloco de interesses de classe dominante, com apoio de outros setores sociais, quanto o papel da classe trabalhadora no início dos anos 1960, e o te- mor por seu potencial disruptivo, foram tomados por toda essa tradição de estudos, em suas variadas matizes, como elementos decisivos para que possamos compreender o golpe. Um consenso autoritário? Nos últimos anos, toda a ênfase dessas análises já clássicas no sentido de classe do golpe e da Ditadura parece ter sido secundari- zada, ou mesmo descartada, por uma literatura especializada mais preocupada em caracterizar o Golpe de 1964, ou simplesmente como movimento militar, ou como resultante de imia convergên- cia antidemocrática ampla. Os agentes de tal "consenso" contrário à democracia nao mais seriam definidos em termos sociais (classes 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Realce Marcelo Badaró Mattos e suas frações), mas em termos políticos "puros", como "direitas" e "esquerdas". Em algumas análises, inclusive, o peso da explicação so- bre o golpe recai sobre o "radicalismo" das "esquerdas". Já a Ditadu- ra é apresentada como uma resultante de tal "consenso" autoritário "da sociedade brasileira", apresentada de forma homogénea como manifestando-se da apatia ao apoio explícito aos governos militares. Nos anos 1990, algumas das mais significativas tentativas de rever a ideia do sentido de classe do Golpe de 1964 derivaram dos resultados da pesquisa de um grupo do C P D O C da FGV-RJ a partir de depoimentos com militares. Dois textos publicados em 1994 podem ser tomados como exemplos dos resultados dessas pesquisas. O primeiro é o artigo de Gláucio Ary Soares. " O golpe de 64" (SOARES, 1994). O objetivo central do artigo é contestar as teses que atri- buem aos fatores económicos mais gerais (resolução da crise de acimiulação capitaUsta), a precedência exphcativa do golpe. Para o autor, buscar os atores seria essencial e, entre eles, privilegiam-se os militares, que, afinal de contas, deram o golpe. A análise se faz quase que exclusivamente a partir do discurso dos militares.* Con- trapondo as memórias dos golpistas às anáUses académicas sobre o golpe. O autor conclui que "há um divórcio entre a caracteriza- ção do Golpe pela literatura político-sociológica e a percepção do que foi o golpe por parte dos próprios militares" (SOARES, 1994: 35); identificando diretamente dos depoimentos os "motivos do golpe" como sendo: " 1 - Caos, desordem, instabilidade; 2- Perigo comunista e subversão; 3- Crise hierárquica militar;4- Interferên- cia do governo nos assuntos, na hierarquia e na disciplina militar; 8 Abre-se por esse tipo de procedimento metodológico um grave risco de queda na armadilha da "ilusão biográfica" (BOURDIEU, 1999). O S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E D A D i T - A D U R A : Utn Debate EíistorhJi^ráÍKrí) 5- Apoio popular ao golpe; 6- Corrupção, roubo de verba pública; 7- Sindicalismo, república sindical." (SOARES, 1994: 30). O autor reconhece a conspiração militar para dar o gol- pe desde a saída de Jânio, mas enfatiza que ela não possuía um comando orgânico. A partir dos depoimentos, que parecem ser tomados quase que como o estabelecimento da versão de- finitiva sobre a participação militar, contesta as teses da his- toriografia, para ele resumidas nas seguintes combinações: de uma conspiração dos grupos económicos brasileiros, de uma conspiração dos grupos económicos brasileiros com apoio do governo americano; de uma conspiração dos grupos económi- cos brasileiros com apoio dos militares e das multinacionais e de uma conspiração dos grupos económicos brasileiros com apoio das multinacionais. Escolhe a opção, apontada pela gran- de maioria de seus entrevistados militares de uma "conspiração dos militares com apoio dos grupos económicos brasileiros" (SOARES, 1994: 34-35). Percebe-se claramente o interlocutor dessa argumenta- ção, pois fica evidente uma contraposição às teses de Dreifuss de que o golpe foi movido pela ação organizada do grande ca- pital nacional e associado, em articulação com um setor mi- litar e apoiado na política externa dos E U A . Mas registre-se que Soares mantém em foco a variável de classe (ainda que por outro referencial teórico) ao mencionar o apoio dos "grupos económicos", e trata respeitosamente as teses de Dreifuss, re- conhecendo que "os grandes avanços, como o livro hoje clássico de Dreifuss a respeito da participação dos grupos económicos organizados, requerem pesquisa detalhada, cuidadosa e cansati- va." (SOARES, 1994: 46). 55 55219 Realce 55219 Realce 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Realce 55219 Realce Marcelo Badaró Mattos 56 O artigo de Soares sistematizava conclusões que apa- receram em outrolivro com as entrevistas do mesmo projeto (D'ARAÚJO et. a l . , 1994). Na introdução desse último é defen- dida a tese de que havia não um grupo dirigente, mas pelo menos dois grandes poios golpistas entre os militares: a "Sorbonne" (o grupo ligado à ESG) e os "da tropa". Aponta-se que os líderes (Costa e Silva e Castelo Branco) só aderiram à conspiração no último momento. Faz-se também a sugestão de crítica à histo- riografia a partir da posição dos militares, em pelo menos dois pontos centrais. O primeiro deles fixa que: A opinião militar dominante define o golpe como re- siJtado de ações dispersas e isoladas, embaladas, no entanto, pelo clima de inquietação e incertezas que invadiu a corporação. Esta visão se contrapõe à inter- pretação predominante entre os analistas que até agora examinaram o episódio. Para estes, o golpe teria sido produto de imi amplo e bem-elaborado plano cons- piratório que envolveu não apenas o empresariado nacional e os militares, mas também as forças econó- micas multinacionais (D'ARAÚJO et. al., 1994: 16). Já o segundo argumento centra-se na constatação de que "Os depoentes concordam que não havia um projeto de gover- no entre os vencedores: o movimento foi contra, e não a favor de algo" (D'ARAÚJO et. a l . , 1994:18). Percebe-se, novamen- te, que a "interpretação predominante" a que tais argumentos se opõem é a derivada da obra de Dreifuss. Não existiria, segundo essa leitura, nem uma única "conspiração" envolvendo militares e o empresariado, tampouco um projeto de governo. o S E I S T I D O D l : C L A S S E D E G O i P E D E 1964 E DA D I T A D U R A : tltti [debate Historiográfico É interessante notar que, com um tom um pouco mais in- cisivo que no caso do argumento do texto escrito só por Soares, anteriormente comentado, os autores em questão procuram re- chaçar a interpretação de Dreifuss com base, exclusivamente, no que lhes disseram seus depoentes militares. Tais depoimentos, ainda que desprezássemos as já comentadas armadilhas da "ilusão biográfica" e os esforços para construir coerência entre as justi- ficativas públicas do golpe e a ação efetiva dos golpistas, foram dados por oficiais de segunda ordem (capitães, coronéis) e que, portanto, tinham papel secundário na conspiração, como os pró- prios autores ressaltam: "Os militares que aqui depõem em sua maioria não tiveram uma liderança destacada nos preparativos do golpe" (D'ARAÚJO et. a l . , 1994:8). Fica então difícil entender como tais fontes podem ser usadas para contrapor análises dos registros de quem teve papel de lide- rança nesses preparativos. E não é preciso, para levantar tal questio- namento, recorrer apenas às fontes pesquisadas por Dreifuss, que documentam fartamente a articulação da "elite orgânica" empresa- rial-militar em torno, principalmente, do "complexo IPES/ IBAD", a qual Dreifuss tratou como "campanha", ou "ação política" (não tendo centraHdade em seu livro os termos "conspiração"/"plano conspiratório"). Basta recorrer a outras entrevistas conduzidas por pesquisadores da mesma instituição com militares, como Cordei- ro de Farias (1987), e empresários, como Paulo Egydio Martins (2007: 168), que comentam fartamente como se articularam mili- tares e empresários, usando o termo "conspiração", mencionando o complexo IPES/ IBAD em seus depoimentos. O segimdo ponto — "não havia um projeto de governo" — também é passível de questionamentos, quando se constata que. 57 55219 Realce 55219 Realce 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado Marcek.i Bariarò Mattos logo nos primeiros meses de governo militar, foi aprovada uma série de medidas que tinham sido estudadas e sistematizadas pelo IPES antes (como demonstra Dreifuss). E quem as executou fo- ram ministros e outras autoridades o integravam, com destaque, os quadros do mesmo IPES. Ou seja, ainda que se possa admitir o caráter fragmentado da direção golpista em 31 de março/1°. de abril de 1964, é difícil não perceber que o golpe vinha sendo preparado de muito antes, por uma articulação que ia além dos militares, envolvia os interesses de classe do grande capital e isso se demonstra pela própria linha de intervenção do Estado nos momentos seguintes. De qualquer forma, as hipóteses defendidas pelos pes- quisadores que conduziram o projeto de entrevistas com mi- litares partia da premissa de que seria necessário investigar os argumentos dos que tiveram o protagonismo na derrubada de Goulart. E procuraram debater com uma literatura especiali- zada ainda dominante, contrapondo às análises que apontavam para os condicionantes conjunturais (económicos, mas não só), os interesses sociais e a ação política de classe envolvidos na derrubada de Goulart, uma investigação das razões alegadas pelos golpistas.'' Um pouco antes dos debates que marcaram os 30 anos do Golpe, porém, já havia sido publicada uma tese que procurava ir muito além na crítica às interpretações centradas no sentido de classe do Golpe. Faz-se referência aqui ao trabalho de Arge- 9 Em 1994, os debates em torno dos 30 anos do Golpe ainda foram predomi- nantemente marcados por interpretações que acentuavam o sentido de classe do Golpe, como pode ser visto no livro produzido a partir de debates daquele ano, coordenado por Caio Navarro de Toledo (1997). O S E N r i D D D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E D A D I T A D U R A : U m Debate Historiogrático lina Figueiredo (1993). A autora também está preocupada em contestar as análises anteriores, baseadas em explicações "estru- turais" (económicas, mas também políticas — como a ideia de "crise institucional") e, principalmente, naquelas interpretações "intencionais" — leia-se Dreifuss. Para Argelina: Este tipo de análise [...] falha em fornecer uma explicação real, pois toma a mera existência de uma conspiração como condição suficiente para o sucesso do golpe político. Os conspiradores são vistos como onipotentes. Consequentemente a ação empreendida por eles não é analisada em relação a outros grupos, nem vista como sendo li- mitada por quaisquer constrangimentos externos ( F I G U E I R E D O , 1993: 28). Sua opção de análise, em contraposição, é privilegiar os momentos críticos do governo Goulart, empregando a teo- ria da escolha racional. Tal referência teórica pode ser avalia- da, numa leitura crítica, como uma variante do individualismo metodológico, que toma o comportamento dos agentes sociais como o dos indivíduos dotados de margens amplas de escolha e racionalidade direta na sua ação social. '° A autora tenta provar que, durante o governo Goulart, po- deria ter existido um caminho para reformas moderadas dentro da ordem democrática; porém, os "atores" escolheram maximi- zar suas possibilidades, em detrimento dessa ordem: os refor- 10 A teoria da escolha racional é defendida, entre outros, pelo orientador da tese de Argelina Figueiredo, Adam Prezvorski, por exemplo em (PREZVORSKI, 1991). Para uma crítica desse tipo de concepção ver Bensaid (1999). 55219 Realce 55219 Realce 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Realce 55219 Realce Marcelo Badaró Mattos 60 mistas querendo reformas amplas e os contrários às reformas dispostos a tudo para barrá-las. Sua conclusão é explícita e vale a pena reproduzir aqui uma citação mais longa, pela presença pos- terior desses elementos de análise em vários outros trabalhos: Além dessas razões [um cálculo oportunista de vantagens em tencionar pelas reformas amplas], um outro fator contribuiu para impedir a rea- lização de qualquer das duas possibilidades de combinar reforma e democracia, ou seja, a visão instrumental de democracia, mantida tanto pela direita como pela esquerda. De fato, os grupos esquerdistas e pró-reformas buscavam essas refor- mas ainda que ao custo da democracia. Para ob- ter as reformas, propunham e estavam dispostosa apoiar soluções não democráticas. Aceitavam o jogo democrático somente enquanto fosse com- patível com a reforma radical. A direita, por ou- tro lado, sempre esteve pronta a quebrar as regras democráticas, recorrendo a essas regras apenas quando lhes eram úteis para defender interesses entrincheirados. Aceitavam a democracia apenas como meio que lhes possibilitava a manutenção de privilégios. Ambos os grupos subscreviam a noção de governo democrático apenas no que servisse às suas conveniências. Nenhum deles aceitava a in- certeza inerente às regras democráticas ( F I G U E I - R E D O , 1993: 202). Com esse tipo de argumento, Figueiredo não apenas recu- sou as teses que procuraram entender o Golpe como resultado da ação poHtica orientada por interesses de classe que articulou o SHN T I D O D E C [ . , \ S S E D E G O L P E D E 1964 E DA D E E . A D U R A : Líni Dcibat^: Elistoiiogrãllco setores empresariais e militares, mas atribuiu a responsabilidade pelo golpe tanto aos que o deram quanto às forças que defendiam as reformas e foram atingidas pelo golpe. Essa explicação, do pon- to de vista teórico, parte do pressuposto de que o Estado é um ator neutro, que paira acima das disputas da sociedade, podendo caminhar movido pelos dirigentes eleitos ou pelos que o assaltam. Além disso, toma a democracia como um tipo ideal, que atende a todos os interesses (mesmo que parcialmente ou periodicamen- te), se todos os atores concordarem com suas regras." Por outro lado, empiricamente, é difícil conceber como ra- dicais as reformas propostas pelo governo e seus defensores, em- bora a retórica destes últimos em alguns momentos o fosse, pois a reforma agrária — a principal reforma de base proposta — era uma experiência histórica cumprida por governos da maior parte do mundo, muitos de orientação liberal/conservadora, e no Brasil, era reconhecida como uma necessidade para resolver os gargalos do abastecimento interno, em uma fase de rápida expansão urbana, até mesmo pelos setores empresariais que se articularam para der- rubar Goulart, como se percebe pela proposta de reforma agrária articulada pelo IPES e, em grande medida, transformada em lei 6 1 11 Sobre os limites da democracia contemporânea e a incompatibilidade entre o conceito clássico de democracia e o capitalismo, verWood (2003). No caso brasileiro, análises que partem de uma defmição de democracia nos termos postos por Figueiredo obrigatoriamente tem que menosprezar o fato de que o regime democrático brasileiro de então era restrito até mesmo para os pa- râmetros daquilo que se costuma adjetivas como democracia "burguesa", ou "representativa", ou ainda "liberal". Afinal, o PCB não possuía registro legal, a estrutura sindical era a herdada da ditadura varguista, a polícia política tam- bém era uma permanência daquela fase e mostrava-se cada vez mais especiali- zada e atuante, apenas para listarmos alguns elementos que dizem respeito aos limites para a organização e atuação dos trabalhadores. 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce Marcelo Ba(laró Mattos 62 pelo governo Castelo Branco como "Estatuto da T e r r a " . O proje- to defendido pelos apoiadores da reforma agrária no parlamento, que não encontrou espaço para negociação com a maioria repre- sentante dos interesses da grande propriedade agrária, centrava-se em garantir as condições constitucionais para a indenização em prazo mais largo (sequer mencionando a expropriação) dos lati- fundiários. A Reforma Universitária concentrava-se em democra- tizar a gestão das instituições e ampliar o acesso, etapas já vencidas em outros países da América Latina desde o início do século X X . Já o controle da remessa de lucros que Goulart sancionou no fim de seu período no governo vinha sendo discutido desde mtiito an- tes, como vima necessidade para equilibrar as contas externas. Além disso, uma análise desse tipo não levou em conta que as forças mais importantes da esquerda naquele período defen- diam caminhar dentro da ordem democrática. O PCB, por exem- plo, defendia a tese terceiro-internacionalista da etapa democrá- tico-burguesa da revolução no Brasil, ou seja, da aliança com a burguesia nacional para viabilizar a fase capitalista das transforma- ções pelas quais o país deveria passar, aceitando "as regras do jogo democrático" nos limites em que elas se apresentavam então. Lúcio Flávio Almeida demonstrou o quanto de equívoco haveria em "avaliar os programas do Partido Comunista frente à questão democrática, atribuir-lhe uma concepção de democracia que não era a dele" (ALMEIDA, 2003: 88), como as concepções de Norberto Bobbio, ou a concepção procedimental de Schvmi- peter, que parecem orientar algumas análises. Ainda assim, toda a linha política do partido desde a "Declaração de Março", de 1958, 12 Sobre esse debate ver Mendonça (2010) e Natividade (2013). O S E N 1 1 D O D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E DA D E m O U R A : Um Debate Hístoríográlico estava centrada na defesa de uma frente única, em que os comu- nistas apoiariam os "elementos nacionaUstas e democráticos" da burguesia brasileira e das poHticas de Estado (ALMEIDA, 2003: 116). Isso, mesmo sendo possível discernir naquele contexto que o nacionaHsmo de algumas das lideranças apoiadas pelos comu- nistas estava longe de ser anti-imperiahsta, sendo suas convicções e práticas democráticas definidas pelo autor como de "baixíssima intensidade". O problema, portanto, segimdo Almeida, não esta- ria na falta de compromisso democrático da esquerda identificada com essa mobilização, mas, ao contrário, na completa ausência de sentido na proposta de uma revolução burguesa para uma burgue- sia que não precisaria de nenhuma revolução para fazer valer seu projeto de classe (ALMEIDA, 2003: 121-122). Na prática, a opção pela atuação nos marcos do sistema seria demonstrada também pelos principais sindicatos ligados ao C G T , quando estes rejeitaram, em fins de 1963, a tentativa de Jango de implantar o Estado de Sítio. O próprio Jango, com apoio dos comandos militares, encaminhou a solicitação do Es- tado de Sítio ao Congresso Nacional, aguardou a resposta — ne- gativa — e desistiu da ideia, demonstrando que, mesmo quando ainda contava com sustentação nas Forças Armadas, não estava osto a romper com a legalidade vigente. Pouco mais de dez anos depois da publicação do livro de Argelina Figueiredo, quando dos debates em torno dos 40 anos do Golpe de 1964, a defesa de suas teses ganhou um número bastante significativo de adeptos. Para situá-los, entretanto, te- mos que retomar outras discussões. Vimos como o conceito de sindicalismo populista tem sido duramente questionado por diversos estudos, especialmente na 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce Marce lo Badaró Matto? área da história social do trabalho. Porém, a crítica à noção de sindicalismo popuHsta não necessariamente deriva em uma rejei- ção em bloco ao conceito de populismo. John French (1995), por exemplo, é um crítico ácido do modelo de anáUse centrado na ideia do sindicalismo popuHsta, mas reconhece a existência de um sistema político populista, em que atores com recursos sociais e pohticos muito distintos envolvem-se em alianças e disputas. Na mesma linha, Fernando Teixeira da Silva e Hélio da Costa (2001) contestam as definições do sindicalismo populista, porém, apoian- do-se teoricamente em E . P. Thompson, procuram caracterizar o populismo como uma relação de hegemonia, definida como um campo de forças, complexo e dinâmico, que comportava ambigui- dades e espaços para lutas dos trabalhadores.'^ Outros autores, no entanto, foram além e questionaram o conceito de populismo em seu todo. Centrando a crítica na ideia de que o conceito de populismo se baseava numa definição da relação entre Estado e trabalhadores pautada pela manipulaçãodestes por aquele, autores como Jorge Ferreira e Daniel Aarão Reis Filho propuseram seu abandono e substituição pela noção de trabalhismo. Para Reis Filho, populismo seria um rótulo, imposto pelos conservadores para apagar a tradição trabalhista, que aca- bou sendo incorporado por académicos de esquerda no período posterior ao golpe em sua análise crítica do regime que ruíra. Defmida como nacionalista, estatista e popular, a tradição traba- lhista é associada por Reis FiUio a uma cornucópia, envolvendo elementos como a política externa independente, o intervencio- nismo desenvolvimentista do Estado, justiça do trabalho, direitos 13 Um rico balanço dessa discussão foi feito no segundo capítulo de Melo (2013). O S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E D A D I T A D U R A : U T ! Í Debate Eíístorití^ráíico trabalhistas e previdenciários, entre outros elementos (REIS F I - L H O , 2001: 345-347). E m perspectiva muito similar, Jorge Ferreira rejeita não apenas o conceito de popuhsmo, pela alegada centrahdade da noção de manipulação das massas em sua constituição, mas tam- bém qualquer referência ao regime político vigente que possa ser associada a um sentido político de dominação de classes. Por isso, qualquer menção não apenas ao populismo, mas a toda perspectiva que encare a "assimetria" no sentido das relações entre Estado e classe trabalhadora naquela quadra histórica é rejeitada em nome de um "trabalhismo", igualado na análise à própria consciência de classe dos trabalhadores. Para o autor, o trabalhismo, "compreendido como um conjunto de experiên- cias políticas, económicas, sociais, ideológicas e culturais [ . . . ] expressou uma consciência de classe, legítima porque histórica" ( F E R R E I R A , 2001: 103).'* Em torno dos debates sobre os 40 anos do golpe, a partir dessa crítica ao conceito de populismo e de sua defesa da noção de trabalhismo para explicar o processo político brasileiro entre 1945 e 1964, Jorge Ferreira, anaHsando os últimos dias do go- verno Goulart, afirma o seguinte: O conflito político entre esquerdas e direitas to- mou novos rumos. Não se tratava mais de saber se as reformas seriam ou não implementadas. A ques- tão central era a tomada do poder e a imposição de projetos. Os partidários da direita tentariam impe- 14 Para uma leitura crítica mais detida desse tipo de proposta ver Mattos (2003) eDemier (2012). 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce Marcelo Badaró Mattos dir as alterações económicas e sociais, sem preocu- pações de respeitar as instituições democráticas. Os grupos de esquerda exigiam as reformas, mas tam- bém sem valorizar a democracia. [...] [Passa a citar Argelina Figueiredo, e conclui]. Entre a radicaliza- ção da esquerda e da direita, uma parcela ampla da população brasileira apenas assistia aos conflitos - em silêncio ( F E R R E I R A , 2004: 35).'= Ou seja, segundo essa linha de interpretação, esquerda e di- reita lutavam naquele momento pela tomada do poder, por vias não democráticas, como que numa corrida em que largavam em igualdade de condições e objetivos idênticos, tratando-se de ob- servar apenas quem foi mais forte ou chegou antes para definir o rimio do país."" Além disso. Ferreira defende que o momento era de radicahzação, mas o povo assistiu a tudo bestializado. Cen- tenas de milhares nas ruas com Jango, centenas de milhares com Deus pela Liberdade contra Jango, greves em quantidades cada vez maiores (38 greves em três meses só no Rio de Janeiro em 1964, quatro vezes mais que no mesmo período do ano anterior), levan- tes dos baixa-patente das forças armadas, militares em marcha... e o "povo" em silêncio? Ao acreditarmos nessa hipótese estaremos concordando que a dinâmica política é dada por esquerda e direita em seu jogo pelo poder, pela via democrática ou não. Esquerda, 15 Esse artigo para uma revista de div-ulgação repetia argumentos de um texto de maior fôlego. Ferreira (2003). O autor retomou a mesma reflexão mais recentemente em Ferreira (2007) e Ferreira (2011). 16 A tese de que "havia dois golpes em marcha", o de Goulart "amparado no 'dispositivo militar' e nas bases sindicais", fora defendida com ainda maior repercussão, um pouco antes do artigo de Ferreira, por Gaspari (2002: 51). O S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L F E D E 1964 E DA D E I A D U R A : i.\m E)ebaív: Mistoriográíico direita, "povo", são categorias de análise que, explicitamente, con- tornam as explicações anteriores, que ressaltavam a ação protagó- nica de empresários, trabalhadores, setores intermediários. Saem de cena, assim, as classes sociais e seus conflitos. Além disso, também aqui onde encontramos o mesmo argumento de Argelina Figueiredo (talvez um pouco mais sim- plificado), podemos levantar as mesmas ponderações. Além de alguns discursos mais radicalizados, de lideranças como Br i - zola, Julião ou Prestes, onde estariam as evidências concretas do tal "golpismo" ("a questão central era a tomada do poder e a imposição de projetos") das esquerdas, se os trabalhadores — mesmo os que estavam dispostos a tal pra resistir ao golpe — não pegaram em armas contra as instituições, os militares fiéis a Goulart evitaram o combate aguardando as ordens legais e o próprio presidente (que já havia se recusado a impor o Estado de Sítio sem o aval do Congresso meses antes) retirou-se evi- tando a confrontação? Caio Navarro de Toledo, criticando tais formulações, apontou o seu caráter "revisionista",assinala com precisão que: [...] a afirmação de golpismo das esquerdas tem efeitos ideológicos precisos; de imediato, ajuda a 67 17 Para uma discussão aprofundada sobre os revisionismos contemporâneos (como as discussões ao redor da Revolução Francesa, que procuraram negar seu conteúdo de revolução social, ou dos regimes fascistas da Europa do Sul, que procuraram abrandar seu caráter repressivo violento), que distingue revi- sionismo de negacionismo (a negação do holocausto promovido pelos nazistas, por exemplo) e dos movimentos de revisão historiográfica correntes, apontan- do as semelhanças no debate brasileiro, ver Melo (2013), especialmente seu primeiro capítulo. 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Realce 55219 Realce Marcelo Badaró Mattos reforçar as versões difundidas pelos apologetas do golpe político-militar de 1964. Mais do que isso: contribui para legitimar a ação golpista vitoriosa ou, na melhor das hipóteses, atenua as responsabili- dades dos militares e da direita civil pela supressão da democracia política em 1964. A direita golpista não pode senão aplaudir esta 'revisão" historiográ- fica proposta por alguns intelectuais progressistas e de esquerda ( T O L E D O , 2004: 44-45). Referindo-se a intelectuais de esquerda. Caio Navarro centra sua crítica naqueles académicos (algtms com passado de luta contra a Ditadura) que agora defendem a tese da resposta de direita ao golpe planejado pela esquerda. Algo que atraiu a aten- ção até mesmo da grande imprensa, pois os debates de 2004 ga- nharam as páginas dos jornais. Dando foro de maior legitimidade à nova proposta interpretativa, por seu passado na luta armada, Daniel Aarão Reis Filho, conforme a reportagem do jornal O Globo, teria caracterizado as esquerdas na resistência à Ditadu- ra como anti-democráticas e afirmado que se vitoriosas fossem, poderiam ter gerado um confronto ainda pior e um regime de exceção mais violento: Falava-se em cortar cabeças, essas palavras não eram metáforas. Se as esquerdas tomassem o poder, haveria, provavelmente, a resistência das direitas e poderia acontecer um confronto de grandes pro- porções no Brasil. Pior, haveria o que há sempre nesses processos e no coroamento deles: fuzilamen- to e cabeças cortadas (O Globo, 29/03/2004). O S E N l IDÕ V)E C L A S S E DE GOIPE D E 1964 EDA D I I A D U R A : Urn Debate Elísíoríográfic*,) Não seria suficiente confiar no registro jornalístico de afir- mações tão polémicas. No entanto, os argumentos apresentados na reportagem de O Globo não diferem muito daqueles presentes em pubhcação académica resultante dos debates de 2004. Nela, Reis Filho parte do objetivo de demonstrar que a atribuição de um caráter de "resistência democrática" à ação das esquerdas no período da Ditadura Militar é uma invenção datada da fase da redemocratização, pois as esquerdas da luta armada seriam anti-democráticas e visariam à implantação do socialismo — por elas (e pelo autor) entendido como incompatível com a demo- cracia — pela via revolucionária. Estendendo seu raciocínio ao período anterior. Reis Filho considera que essa perspectiva anti- -democrática das esquerdas não era uma novidade, pois já no início dos anos 1960 o desprezo pela democracia se manifestara, no "desafio à legalidade" dessas esquerdas que, "inebriadas pela vitória de agosto de 1961 [a posse de Goulart, após a renún- cia de Jânio Quadros], passaram à ofensiva política, e desafiavam abertamente a legalidade existente". Dava-se assim o argumento que faltava para que a direita assumisse o discurso da defesa da legalidade, conseguindo mobilizar um movimento civil de gran- des proporções "para legitimar posições favoráveis à intervenção militar golpista" (REIS F I L H O , 2004: 38-39). O ponto de vista assumido pelo autor, que confunde o ob- jetivo estratégico da construção do socialismo, compartilhado pelos militantes de esquerda, com um suposto uso cínico das bandeiras de resistência democrática contra a Ditadura, acaba por reforçar o discurso dos militares de que o motor do golpe foi a ameaça de uma ditadura comunista, compartilhando com eles a perspectiva de que evitava-se um mal maior. 69 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Realce Marcelo Bailari i M>i1;1:os 70 Esse parece ter sido o sentido da crítica de Marcelo Ridenti às propostas de Reis Filho, defendendo a ideia de que havia um componente assumido de resistência nas proposições de várias das organizações de esquerda daquele período e que, ainda que muitas delas não priorizassem a "resistência democrática", o resultado de sua ação foi o de uma luta de resistência contra a Ditadura. Para Ridenti, os debates sobre a democracia teriam que avaliar que "nos anos 60, antes e depois do Golpe de 1964, a questão da democra- cia estava no contexto da guerra fria, em que os Estados Unidos não hesitavam em apoiar golpes militares para garantir o poder de seus aliados na América Latina, ditos Hberais e defensores da democracia [ . . . ] " ( R I D E N T I , 2004: 62). Argumentando que, se os estudiosos não podem controlar o uso de suas pesquisas histórias nos embates políticos do presente, devem ao menos "estar cons- cientes de que o realce analítico de algims aspectos, em detrimen- to de outros, pode levar a interpretações equivocadas da realidade histórica como um todo" ( R I D E N T I , 2004: 64). As interpretações da "falta de democracia das esquerdas" acabaram por ser incorpo- radas "por aqueles que isentam setores significativos da sociedade civil de cumplicidade com a ditadura - e até pelos que chegam a justificá-la", ainda que essa não fosse a intenção daqueles estudio- sos ( R I D E N T I , 2004: 64)."* 18 A avaliação de Ridenti nos parece precisa e as apropriações continuaram, e não apenas na imprensa empresarial, por ele comentada no artigo. Afinal, em 2008, um artigo na Revista do Clube Militar sobre o debate da anistia cita em seu apoio escritos e entrevistas de Reis Filho, no artigo tratado como "ex-terrorista" , como alguém que "desmente categoricamente a mística de que 'lutavam contra a ditadura'. Escreveu ele e confirmou em entrevista que não lutavam por De- mocracia, mas pela ditadura do proletariado, já que eram marxistas e leninistas convictos." Revista do Clube Militar, ano LXXXI, n° 430, de 2008. O S E N T I D O D E C E A S S E D E G O L P E D E i'>64 E ::)A D Í E A D U R A : 11 rn Debat í : Historiogrílieo 71 A atribuição de um sentido ditatorial ao projeto político das esquerdas, no modelo generalizante que as homogeniza apre- sentado por Reis Filho, encontrou muitos adeptos. Assim, Elio Gaspari, no segundo de seus tomos sobre a Ditadura, cita vá- rios trabalhos do autor como referência para concluir que a luta armada fracassou porque o objetivo final das organizações que a promoveram era transformar o Brasil numa ditadura, talvez socialista, certamente revolucionária (GASPARI , 2002b: 193). Em seus estudos sobre a Ditadura Militar, Reis Filho tam- bém tem sido o principal propagador de uma outra tese: a de que o regime instaurado pelo Golpe de 1964 deve ser denominado de ditadura civil-militar.'^ Neste caso, o uso de "civil-militar" é dis- tinto daquele original que, na obra fundamental de René Dreifuss associava o elemento civil a um sentido de classe burguês/empre- sarial da articulação que trabalhou pela derrubada de Goulart e viu-se representada nos governos pós-64. Reis FiUio se distancia da ideia de um sentido de classe do regime para defender que se formou um consenso social, entendido como "a formação de um acordo de aceitação do regime existente pela sociedade". Em- bora sua noção de consenso envolva matizes que vão da defesa ativa à impotência conformista, a ideia é que, mais que o papel da repressão (que não é negado), o peso do apoio da sociedade é decisivo para "a sustentação de um regime politico, ou para o enfraquecimento de uma eventual luta contra o mesmo" (REIS F I L H O , 2010: 182). Reis Filho propugna que a sociedade (sempre vagamen- te apresentada de forma homogeneizadora) convergiu para o 19 Para um exemplo mais recente dessas propostas que aparecem em diversas de suas intervenções, ver Reis Filho (2010). 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Texto digitado tarefa do intelectual na sociedade 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Realce Marcfrio BaiUn') Mat;1:<)5 apoio ao regime (desde o Golpe) e, a partir de meados dos anos 1970, convergiu novamente para uma transição pactuada — cons- truindo uma memória que apagava tanto os elementos revolu- cionários das propostas de esquerda, que agora apresentavam-se como democráticas, quanto silenciava sobre a ação repressiva mais violenta dos torturadores e assassinos do regime. Para afirmar que "houve apoios, extensos e consistentes" o autor exemplifica com três situações: a primeira é a participação de milhões de pessoas nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, transformadas em "Marchas da Vitória", após o golpe; a segunda acentua a populari- dade do ditador Medici (ilustrada por uma pesquisa do IBOPE, que lhe conferiria 82% de aprovação no início da década de 1970); e, por fim, as "expressivas votações obtidas pela Aliança Renovadora Nacional (Arena)". Associando a popularidade do regime ao suces- so do "milagre económico", e vinculando o "consenso" na transição a xmia "cultura política" nacional estatista. Reis Filho acrescenta: A economia vai bem, mas o povo vai mal, diria o general Garrastazu Medici, o ditador mais sinistro e mais popular de todo o período ditatorial. E , de- pois, na segimda metade dos anos 1970, liquidadas as alternativas revolucionárias de esquerda, a reto- mada em grande estilo pelo governo Geisel da cul- tura politica do nacional-estatismo e a convergência de direitas e esquerdas moderadas no processo que levou, finalmente, à restauração da democracia (REIS F I L H O , 2010: 178). Os exemplos que sustentam a análise de Reis Filho, entre- tanto, são muito frágeis. As "marchas" foram realmente demons- O S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L F E D E 1964 E DA D I T A D U R A : U m Debate U!.stori..)t;rjr!(:'o trações de apoio ao golpe, como já havia notado Marini (2013), nos trechos citados anteriormente. No entanto, longe de tentar identificar socialmenteque setores se viam representados na- quela ação política de apoio à derrubada de Goulart, como faz Marini, a proposta de Reis Filho é apresentar tais mobilizações como comprovação de uma apoio social generalizado. Se assim fosse, como explicar que as pesquisas de opinião das semanas anteriores ao golpe atribuíssem índices de aprovação de mais de 70% ao governo Goulart, percentual semelhante ao dos apoia- dores de uma reforma agrária, 55% dos paulistanos consideras- sem como positivas as medidas anunciadas no comício de 13 de março de 1964 e uma eventual candidatura sua à Presidência em 1965 contava com apoio majoritário na maior parte do país.^° Claro, pesquisas de opinião podem no máximo medir um posi- cionamento momentâneo, são influenciadas pela forma como as informações são difundidas (ou sonegadas) e informam a partir de parâmetros previamente estabelecidos. Nada disso, porém, é lembrado por Reis Filho quando toma uma pesquisa IBOPE do auge da repressão ditatorial como prova cabal do "extenso e con- sistente" apoio da sociedade ao regime e ao ditador de plantão. Naquele contexto, quantos entrevistados confiariam em expres- sar livremente sua opinião para alguém que o parasse na rua ou batesse à sua porta e perguntasse sobre o que achava do governo Medici? ( M E L O , 2013: 54). Já quanto às "expressivas votações" da Arena, é difícil loca- lizá-las da forma como o faz o autor. Afinal, a Arena surge da pri- 20 Dados das pesquisas de opinião recolhidos por Luís Nassif, "Segundo o Ibope, Jango teria sido reeleito em 65", In: http://jornaIggn.com.br/noticia/segun- do-o-ibope-jango-teria-sido-reeIeito-em-65, consultado em janeiro de 2014. 55219 Realce 55219 Realce 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado Marcelo BadariS Mattos 74 meira derrota eleitoral da Ditadura, em 1965, quando o bipar- tidarismo é implantado e o sistema eleitoral é manietado (com o fim das eleições diretas para os executivos, entre outras medi- das). Mesmo com todos os limites do jogo eleitoral, entretanto, a Arena nunca conseguiu (com a exceção de uma pequena mar- gem - 50,5% - favorável nas eleições proporcionais de 1966) ultrapassar o percentual de votantes na oposição somado ao de votos nulos e brancos. A partir de 1974, inclusive, o MDB ultra- passa a Arena em diversos pleitos, especialmente nas eleições de 1978,^' apresentadas pelo autor como as "últimas eleições sob a ditadura" (REIS F I L H O , 2010: 174). Ao afirmar que as eleições de 1978 foram as últimas da ditadura, Reis Filho está reafirmando uma periodização própria sobre o regime, em que considera que a Ditadura de fato só se instala com o AI -5 , e termina uma década depois, quando sua vi- gência é suspensa. Na formulação sintética desse mesmo artigo, esclarece que: "para mim, a ditadura encerrou-se em 1979, com o fim dos Atos Institucionais e o restabelecimento das eleições, da alternância no poder, da livre organização sindical e partidária e da liberdade de imprensa" (REIS F I L H O , 2010: 177). Nesse caso, pouco importa que os sindicatos sofressem intervenção no início dos anos 1980 e seus dirigentes fossem processados pela Lei de Segurança Nacional, que a maior parte da legislação di- tatorial permanecesse de pé até a Constituição de 1988 e que as eleições diretas para presidência só tenham retornado em 1989. As propostas interpretativas de Reis Filho sobre a ditadu- ra foram retomadas em diversos trabalhos recentes, sendo até 21 Para os dados das eleições do período, ver por exemplo Fleischer (1994). O S E N T I D O D E C L A S S E D E G O L P E D E 1964 E DA D I T A D U R A : Uru Debate UistoriogriRco mesmo generalizadas para outras situações nacionais como, por exemplo, no prefácio de uma coletânea sobre o consenso da so- ciedade em torno das formas ditatoriais de governo no sécu- lo X X , reunindo artigos sobre Brasil, América Latina, Europa, África e Ásia. Nela, as organizadoras partem de uma dupla pro- blematização, propondo-se a entender: [...] como um regime autoritário/uma ditadura obteve apoio e legitimidade na sociedade ;[e] como os valores desse regime autoritário/ditatorial esta- vam presentes na sociedade e, assim, tal regime foi antes resultado da própria construção social ( R O L - L E M B E R G & QUADRAT, 2011: 14). Novamente, a sociedade aparece aqui caracterizada de forma generalizante, suas divisões e os conflitos delas decor- rentes não se apresentam e a explicação para tal ênfase na acei- tação consensual do regime é, como em várias passagens de Reis Filho, alicerçada no conceito de cultura política," agora resumido à dimensão dos valores e referências: "São os valores e as referências, as culturas políticas que marcam as escolhas, sinalizando relações de identidade e consentimento, criando consensos, ainda que com o autoritarismo" ( R O L L E M B E R G & Q U A D R A T , 2011: 14). Ditaduras que se sustentam mais pelo consenso do que pela coerção? "Sociedades" homogéneas a seguir determinados rumos políticos por conta de alguma "cultura política" generica- mente definida? 22 Uma análise crítica do conceito de cultura política aparece em Cardoso (2012). 55219 Realce 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Sublinhado 55219 Realce 55219 Texto digitado conceito de cultura política como chave de entendimento M;u(x:l<) Badaró Matto? 76 Do ponto onde estamos As reflexões sobre a ditadura e o golpe, 50 anos após a derrubada de Goulart estão se dando em um momento muito específico. Vivemos a experiência de trazer à tona sistematica- mente memórias e documentos da face mais cruel da repres- são ditatorial, através dos trabalhos de "comissões da verdade" (nacional, estaduais, em universidades e outros entes públicos), que muito tardaram a ser constituídas e são muito limitadas em sua abrangência legal. Os resultados dessas discussões não estão pré-determinados. Podemos, ao fim e ao cabo, chegar a alguns relatórios oficiais, resultantes da exposição dolorosa de feridas abertas pela ditadura, à abertura de alguns novos acervos do- cumentais que resultarão em novas teses académicas, tudo isso muito importante, mas insuficiente se o fim do processo forem algumas cerimónias oficiais de "conclusão dos trabalhos", ten- tando fechar de vez a tampa do caixão em que muitos setores pretendem enterrar finalmente essa fase da trajetória histórica da sociedade brasileira. Ou podemos ir além. A oportunidade de abrir as portas cerradas e expor os es- queletos do armário deve ser utilizada para expor claramente, enquanto muitos de seus protagonistas ainda estão circulando normalmente entre nós, quem efetivamente deu o golpe que quebrou a frágil institucionalidade do regime democrático ins- talado a partir de 1945 no Brasil? Que interesses eles represen- tavam? Que setores do capital foram mais diretamente benefi- ciados pelas políticas económicas da Ditadura? Quantos e quais agentes de instituições públicas agiram à margem da lei, mas sob ordens de uma cadeia de comando que ia até o Planalto o S K N T I D O D E C L A S S E D E G O l PE D E 1964 E DA D E l - A D U R A : U m Debate Historiogr.ítí(-o e respaldados por uma política de Estado, cometendo crimes contra a humanidade? Quantas e quais empresas sustentaram materialmente esse aparato repressivo? Que tipo de transição política e qual o caráter do regime político dela resultante, que permitiram manter quase 30 anos depois da Ditadura, no palco principal da política brasileira, muitos dos personagens desta- cados da condução da Ditadura, muitas vezes escalados para representar seus papéis atuais por dirigentes que estiveram do outro lado das trincheiras naqueles tempos? Contribuir para responder essas questões é, mais do que uma possibilidade, uma responsabilidade social dos historiado- res e cientistas sociais em geral que se dedicam a refletir sobre uma história, ainda do tempo presente, como essa. Este artigo procurou lembrar que, enquanto
Compartilhar