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michael-sandel-democracia e disconexo

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Universidade Federal do Rio de Janeiro – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais 
Seminário de Ética e Filosofia Política 
Por Antoine Lousao 
 
 
Michael Sandel, Democracy’s Discontent, 1996 
Resumo 
 
 
Prefácio 
O prefácio expõe o objetivo do livro: explorar a teoria atual na qual estão imersos os Estados 
Unidos, identificando a filosofia pública implícita nas práticas e instituições e mostrando 
como as tensões filosóficas emergem na prática. O conceito de filosofia pública é assim 
definido como a teoria implícita em nossas práticas. 
 
Parte I - The Constitution of the State of the Procedural Republic 
O livro parte da constatação segundo a qual cidadãos dos Estados Unidos não acreditam ter 
muito a dizer sobre a maneira como são governados nem confiam no governo para conduzir a 
política corretamente. Apesar das conquistas dos Estados Unidos na última metade do século 
XX, a política americana segue marcada por ansiedade e frustração. 
Segundo o autor, há duas questões principais no centro dessa insatisfação: 
- o medo da perda do controle sobre as forças que governam nossas vidas. 
- o desmantelamento do que é chamado no livro de fábrica moral do senso de 
comunidade (a família, a vizinhança, a nação). 
Esses dois fatores são constituintes da ansiedade da nossa era (“anxiety of the age”). 
 
Liberdade liberal e liberdade republicana 
A teoria política liberal na qual vivem os Estados Unidos estipula que o governo deveria ser 
neutro em relação aos pontos de vistas morais e religiosos adotados pelos cidadãos. Nessa 
concepção, chamada de república processual (“procedural republic”), o papel do Estado é 
garantir um quadro de direitos que respeite as pessoas como seres livres e independentes, 
priorizando a justiça sobre o bem (“the right as prior to the good”, p. 123). 
Não obstante a dominação dessa concepção, os Estados Unidos nem sempre compreenderam 
a liberdade nesse sentido. A concepção liberal só se tornou preponderante nos últimos 
quarenta ou cinqüenta anos do século XX, substituindo gradativamente uma visão rival: a 
visão republicana. Na teoria política republicana, a idéia de liberdade depende da partilha do 
auto-governo. Para isso, ela exige virtudes cívicas, o que significa que a política republicana 
não pode ser neutra em relação aos valores e finalidades escolhidos pelos cidadãos. Isso não 
significa que a dominação da visão republicana corresponderia a uma idade de ouro da virtude 
cívica, uma vez que essa dominação também correspondeu historicamente a um regime de 
escravidão. Malgrado essa ressalva, Michael Sandel sustenta que ao enfatizar a comunidade e 
a autonomia de governo a tradição republicana pode oferecer um corretivo ao caráter 
empobrecido da vida cívica atual. 
Duas questões principais surgem então: quais arranjos econômicos são favoráveis à 
autonomia de governo? Como o discurso político pode endossar as convicções religiosas e 
políticas trazidas pelos cidadãos para a esfera pública, ao invés de evitá-las? 
A resposta a essas perguntas requer um exame aprofundado dos conceitos que sustentam a 
teoria liberal (final da parte 1 do livro) – a neutralidade, o sujeito liberal, o Estado 
minimalista, etc. – assim como uma exposição daquilo a que o autor dá o nome de economia 
política da cidadania. 
 
Parte II - The political economy of citizenship 
A segunda parte do livro começa com a constatação de que o liberalismo ganhou espaço na 
política apesar do importante papel assumido pelo governo na economia moderna. 
 
Prosperidade, Justiça e Virtude Cívica 
Segundo Michael Sandel, na política americana contemporânea os argumentos relativos à 
economia giram em torno de duas considerações principais: o crescimento econômico e a 
distribuição da renda. No entanto ao longo da maior parte da história dos Estados Unidos uma 
questão diferente esteve presente, seguindo a tradição de Thomas Jefferson: quais arranjos 
econômicos são mais propícios ao auto-governo? Em outras palavras, quais são as 
conseqüências cívicas das políticas econômicas? Essa questão esteve por exemplo presente 
historicamente no momento do debate entre defensores de regime de trabalho escravo e 
defensores do regime assalariado. 
 
Capítulo 7 – Community, self-government and progressive reform 
O capítulo 7 da segunda parte é de particular importância no livro na medida em que 
aprofunda as definições e a discussão em torno dos conceitos de comunidade, auto-governo e 
reforma política. 
Segundo o autor, a concepção voluntarista da liberdade (ou concepção republicana) que 
surgiu historicamente com o debate sobre o regime de trabalho (escravo ou assalariado) 
dominou gradativamente outros campos da vida pública e das leis americanas, até o 
surgimento do chamado Welfare State. Mas esse triunfo da concepção voluntarista da 
liberdade coincidiu paradoxalmente com um senso de perda do poder pelos cidadãos: 
 
“even as we think and act as freely choosing, independent selves, we find ourselves implicated in a network 
dependencies we did not choose and increasingly reject” (p. 202). 
 
“The sense of disempowerment that afflicts citizens of the procedural republic may reflect the loss of agency that 
results when liberty is detached from self-government and located in the will of an independent self, 
unencumbered by moral or communal ties it has not chosen. Such a self, liberated thought it be from the burden 
of identities it has not chosen, untitled though it be to the range of rights assured by the welfare state, may 
nonetheless find itself overwhelmed as it turns to face the world on its own resources.” (p. 203). 
 
Do cidadão ao consumidor 
O processo de perda de poder da cidadania corresponde a uma substituição do conceito de 
cidadão pelo conceito de consumidor na vida pública. Michael Sandel cita dois exemplos 
históricos que ilustram essa tese: o movimento anti-oligopólio (anti-trust movement) e o 
movimento contra as grandes cadeias comerciais (anti-chain store movement). Ambos 
movimentos surgiram com o objetivo de preservar a autonomia de governo através da 
proteção das comunidades locais e dos produtores independentes contra os efeitos da 
concentração do poder econômico. No entanto com a progressiva perda de importância das 
considerações cívicas em prol das considerações de consumo na política econômica 
americana, o movimento anti-oligopólio conseguiu sobreviver assumindo uma nova função: a 
regulação do mercado visando garantir preços competitivos e não mais a descentralização do 
poder visando a autonomia de governo. Não tendo demonstrado a mesma flexibilidade, o 
movimento contra grandes cadeias comerciais acabou desaparecendo. 
A tese da substituição da noção de cidadão pela noção de consumidor na vida política resulta 
numa interpretação original da revolução keynesiana, desenvolvida no capítulo 8 do livro. A 
despeito da maior função assumida pelo governo na política econômica do país com a 
revolução keynesiana, essa última está fundamentalmente atrelada ao triunfo da concepção 
liberal da política: 
 
 “As Keynesian fiscal policy emerged from the late 1930s to the early 1960s, it both reflected this liberalism and 
deepened its hold on American public life. […] First, it offered policy makers a way to “bracket” or to aside, 
controversial conceptions of the good life, and so promised a consensus that programs for structural reform could 
not offer. Second, by abandoning the ambition of inculcating certain habits and dispositions, it denied 
government a stake in the moral character of its citizens and affirmed the notion of persons as free and 
independent selves, capable of choices. The Keynesian revolution can thus be seen as the counterpart in political 
economy of the liberalism that emerged in constitutional law after World War II, as the economic expression of 
the procedural republic”. 
 
Conclusão - In Search of a Public Philosophy 
A liberdaderepublicana: dificuldades e perigos 
Qualquer tentativa de revitalização da concepção cívica da liberdade deve ser confrontada a 
duas objeções principais : 
- é possível defender tal concepção ? Dada a escala e a complexidade do mundo 
moderno, não seria irrealista aspirar ao auto-governo tal qual concebido pela tradição 
republicana de Aristóteles a Thomas Jefferson? 
- é desejável implementar tal concepção? Não correríamos então o risco de implementar 
uma concepção exclusiva e coercitiva da cidadania? Afinal da concepção de 
Aristóteles aos Estados Unidos do século XIX a cidadania sempre esteve restrita 
àqueles que possuíam as virtudes relevantes ou que eram capazes de adquiri-las. 
 
A reposta à segunda objeção é dada por Michael Sandel baseada na afirmação de a idéia que 
virtudes inerentes aos indivíduos e determinadas a priori conforme suas identidades não é algo 
inerente à tradição republicana. 
No entanto, a primeira objeção apresenta maior perigo real para as democracias modernas e 
deve ser levada em conta no desenvolvimento do republicanismo. Daí o fato de Michael 
Sandel defender uma visão republicana baseada no pensamento de Alexis de Tocqueville 
(com ênfase na vida associativa), em contraposição a uma visão inspirada no pensamento de 
Jean Jacques Rousseau (que o autor identifica como sendo de cunho coercitivo). Dada essa 
distinção, poderia se dizer que Michael Sandel é um republicano segundo a tradição desse 
pensamento político, tal qual ele mesmo defende? Ou um pensador tão iconoclasta quanto 
aquele no qual ele diz se inspirar?

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