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Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto .com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178 -1486 • Vo lu me 4 • Nú mero 12 • ma io 201 4 Ed ição Espec ia l • Homenageado F E R N A N D O T A R A L L O Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 4, nº 12, mai . 2014 492 SOBRE CAMALEÕES E LINGUISTAS: UM DEBATE E MUITAS QUESTÕES Sebastião Carlos Leite Gonçalves1 (UNESP/São José do Rio Preto) scarlos@ibilce.unesp.br RESUMO: Neste artigo, exponho um debate epistemológico entre Fernando Tarallo, de um lado, e José Borges Neto e Ana Lúcia de Paula Müller, de outro, publicado pela revista DELTA, nos anos de 1980 (1986, 1987 e 1988), e me posiciono favoravelmente ao ponto de vista defendido por Fernando Tarallo. O debate parte da análise que Tarallo propõe para um melhor entendimento de estruturas de Tópico e de Deslocamento à esquerda presentes no português Brasileiro, sugerindo a Funcionalistas a incompletude de suas explicações se for levado em conta meramente o plano discursivo, e propondo, ao final, que não há mal nenhum em se adotar uma postura camaleônica na análise de fatos linguísticos, postura que é duramente criticada por Borges Neto & Müller. O debate termina, com Tarallo recusando a má interpretação de Borges Neto & Müller acerca de suas ideias e reafirmando sua posição inicial. Tomando por base o pensamento de alguns filósofos da Ciência (Khun, Lakatos, Hempel, Popper, Bachelard, Fichant), meu propósito ulterior é defender que, a depender do objeto que se toma por investigação, uma intersecção teórico-metodológica na investigação científica pode ser o caminho para um entendimento mais satisfatório do fenômeno, e, aqui, me atenho ao campo da Linguística, mais especificamente entre duas de suas principais correntes: Formalismo e Funcionalismo. PALAVRAS-CHAVE : Fernando Tarallo; Formalismo; Funcionalismo. ABSTRACT : In this paper, I expose a epistemological debate between Fernando Tarallo, on one side, and José Borges Neto and Ana Lúcia de Paula Müller, on the other, published by a brazilian Journal, Revista Delta, in the 1980s. I stand up for the Tarallos‟s point of view. The discussion begins with an analysis that Tarallo proposed for a better understanding of Topic structures and Left deslocation one in Brazilian Portuguese, suggesting the incompleteness of Functionalist explanations if it is taken into account merely the discursive level, and proposing, in the end of his paper, there is no harm in adopting a chameleonic stance in analysis of linguistic facts, stance that is heavily criticized by Borges Neto & Müller. The debate ends with Tarallo refusing to Borges Neto & Müller‟s misinterpretation about his ideas and reaffirming his initial position. Considering philosophers of Science‟s basic ideas (Khun, Lakatos, Hempel, Popper, Bachelard, Fichant), my ulterior purpose is to argue that, depending on the object that is taken for investigation, a theoretical-methodological intersection in scientific research may be the way to a more satisfactory understanding of the phenomenon, and here I refer specifically to two main linguistic currents: formalism and Functionalism. KEY-WORDS : Fernando Tarallo; Formalism; Functionalism. 1 Professor Assistente Doutor. Departamento de Estudos Linguísticos e Literários. UNESP – São José do Rio Preto. Bolsista Produtividade do CNPq. mailto:scarlos@ibilce.unesp.br Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto .com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178 -1486 • Vo lu me 4 • Nú mero 12 • ma io 201 4 Ed ição Espec ia l • Homenageado F E R N A N D O T A R A L L O Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 4, nº 12, mai . 2014 493 Introdução As reflexões expostas neste artigo encontram inspiração em um debate publicado, em três anos consecutivos, na Revista Delta (1986, 1987 e 1988). De um lado está Fernando Tarallo (1986, 1988), o camaleão-linguista, dignamente homenageado neste volume temático, defendendo e propondo o fazer interdisciplinar, ou o intercruzar de modelos teóricos, e, de outro, José Borges Neto e Ana Lúcia de Paula Müller (1987), pregando a pureza (ou a independência) epistemológica da metodologia dos programas de investigação científica. Insiro-me neste debate, como o próprio título deste artigo sugere, com o propósito de argumentar favoravelmente ao ponto de vista defendido por Tarallo, o qual procuro mostrar ser um fator de promoção do pensamento científico.2 À luz do pensamento de alguns filósofos da ciência (Khun, Lakatos, Hempel, Popper, Bachelard e Fichant), a reflexão que pretendo levantar com este escrito, em vista do pensamento filosófico que permeia o debate entre Tarallo e Borges Neto & Müller (B&M, daqui em diante), é a exequibilidade da intersecção metodológica na investigação científica, e, aqui, me atenho ao campo da Linguística, mais especificamente a duas de suas principais correntes: Formalismo e Funcionalismo. Além desta seção de introdução, a reflexão proposta neste artigo segue estruturada da seguinte forma: na segunda seção, exponho, de modo sucinto, o debate entre Tarallo e B&M, para, na seção seguinte, encaminhar a reflexão que pretendo seja feita, a partir do debate instaurado, tomando por base o pensamento filosófico sobre o fazer científico: um determinado conflito no interior de um campo científico (no caso, a Linguística) deve ser visto apenas como um caso de discordância quanto à solução de um problema ou se trata de uma batalha entre paradigmas que não admitem soluções de 2 Por meio deste artigo, ao mesmo tempo em que rendo homenagem a Fernando Tarallo, com quem não tive o privilégio de conviver, trago à memória a presença de um linguista brilhante e generoso, que teve importância decisiva nas minhas escolhas acadêmicas, o Prof. Dr. Dercir Pedro de Oliveira. Nos idos de 1990, na UFMS, Câmpus de Três Lagoas, o Prof. Dercir não só me inseriu na pesquisa Sociolinguística como também me ensinou a admirar Fernando Tarallo, seu orientador de doutorado na PUC-SP (1985- 1989). Pude testemunhar, nos anos de convivência com Dercir, que, ao modo de Fernando Tarallo, ele também conseguia nutrir em seus orienta(n)dos e seus alunos, em geral, o gosto pela Sociolinguística, com uma generosidade ímpar, que se estendia da transmissão de conhecimentos à acolhida como amigo e conselheiro. Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto .com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178 -1486 • Vo lu me 4 • Nú mero 12 • ma io 201 4 Ed ição Espec ia l • Homenageado F E R N A N D O T A R A L L O Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 4, nº 12, mai . 2014 494 compromisso? Na última seção, apresento minhas considerações finais, às quais se seguem as referencias bibliográficas. Sobre o debate No ano de 1986, Tarallo publica na seção “Debates” da revista DELTA (v.2., n.1), um artigo intitulado “Zelig: um camaleão-lingüista”, em que, valendo-se da metáfora do camaleão humano, um mutante que adaptava sua forma física e sua personalidade às de outras pessoas com as quais se relacionava, propõe a linguistas de orientação discursivo-pragmática (funcionalistas) uma análise alternativa de estruturas topicalizadas (TOP) e deslocadas à esquerda (DESL), presentes no Português Brasileiro (PB). Com resultados mais eficazes,essa alternativa busca respaldo na teoria chomskyana, em vista de o objeto de análise envolver, antes de tudo, um problema sintático, o qual pode se furtar de uma explicação se for levado em conta meramente o plano do discurso, como o intentaram os funcionalistas. Levantados os problemas e apresentada uma solução para explicar TOPs e DESLs em sentenças do PB, Tarallo faz ver que nada há de inconsistente em se adotar um instrumental teórico diferente daquele a que se está filiado para explicar um problema linguístico mais local (a sentença); essa seria uma postura que, em princípio, não invalidaria nem uma nem outra teoria envolvida na análise (Gerativismo e Funcionalismo). Este é o espírito zeligiano de que o linguista necessita; nas palavras de Tarallo, “um certo descomprometimento com o modelo em que atuamos e procurar, em sub-áreas afins, outras possíveis soluções para um problema, soluções estas que, em sua complementariedade, somente enriquecerão a qualidade de nossas análises” (p.142). Indignados com esta forma de conceber a investigação linguística, B&M, no ano seguinte, na mesma seção e revista, apresentam, através do artigo “Lingüistas ou camaleões? Uma resposta a Tarallo”, uma réplica às considerações de Tarallo. Nesse artigo, os autores condenam a sugestão de Tarallo, a de ser camaleão-linguista, julgando-na possível de apresentar resultados extremamente desastrosos, se certos aspectos da epistemologia e da cultura brasileira forem levados em conta. Esquivando- Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto .com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178 -1486 • Vo lu me 4 • Nú mero 12 • ma io 201 4 Ed ição Espec ia l • Homenageado F E R N A N D O T A R A L L O Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 4, nº 12, mai . 2014 495 se de qualquer análise do fato linguístico discutido no artigo do ano anterior, B&M começam por questionar a base epistemológica da postura de Tarallo, orientados pela leitura de A metodologia dos programas de investigação científica, de I. Lakatos. Afirmam, o autores, que concordar com Lakatos (e eles concordam!) é discordar de Tarallo (e eles discordam!), já que funcionalismo e gerativismo, no entender dos autores, não admitem soluções de compromisso: o que se poderia vislumbrar seria um terceiro programa “com núcleo e heurísticas próprias. E aí não se pode mais falar em gerativismo ou em pragmática-discursiva” (p. 91), caso esteja correta a análise do fato linguístico feita por Tarallo. Quanto ao aspecto cultural, B&M consideram que, por natureza, o brasileiro já é dado a incoerências, em vista de sua relação com as ideologias ser extremamente artificial, e, se validada a proposta de Tarallo, o mal poderá ser ainda maior. Um apelo dos autores encerra o artigo, conclamando uma resposta negativa ao camaleão linguista, “porque ele não compreende as necessidades mais gerais da sua ciência e da sua cultura” (p. 94). No ano de 1988, ainda no mesmo espaço do debate dos anos anteriores, Tarallo dirige-se aos seus leitores esclarecendo e reafirmando alguns pontos de seu artigo de 1986, em decorrência da leitura às avessas feita por B&M. Reportando-se a um texto de Labov (1987), Tarallo mostra que, já em seu artigo de 1986, antecipava-se ao criador do variacionismo, defendendo que o racionalismo chomskyano e o empirismo da teoria variacionista cada vez mais se aproximam, o que confirma que “a longevidade de Zelig é inquestionável” (p. 271). Dessa forma, encerra-se o debate que tantas questões levantou. A questão O dilema empirismo vs. racionalismo já rendeu amplos debates e discussões na filosofia do pensamento científico. Apesar de se saber que a contemporização entre essas correntes filosóficas é assunto discutido já há algum tempo, muitas vezes é mister realçar que no meio acadêmico (e aqui, me refiro ao linguístico) a situação continua inalterada, parecendo ser poucos os que compraram essa forma heterodoxa de trabalhar. Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto .com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178 -1486 • Vo lu me 4 • Nú mero 12 • ma io 201 4 Ed ição Espec ia l • Homenageado F E R N A N D O T A R A L L O Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 4, nº 12, mai . 2014 496 Ainda que, nos estudos linguísticos das décadas de 1980 e 1990, trabalhos tenham mostrado que estas posições não são incompatíveis (cf. Tarallo & Kato, 1989; Kato 1996), ainda persistem radicalismos de ambas as partes. Diria, em princípio, que já é passada a hora de empiristas e racionalistas fazerem mais concessões, a fim de que o entendimento de fatos da linguagem seja menos conturbado e não seja colocado em extremos opostos como verdades absolutas. Voltando ao que gostaria de ver arrolado neste artigo, o que está em jogo no debate suscitado por B&M é decidir se um determinado conflito é apenas um caso de discordância quanto à solução de um problema ou se se trata de uma batalha entre paradigmas, nos termos de Kuhn (1987). Para especular sobre tal questão, é necessário fazer uma breve incursão ao que estabelecem alguns pensadores da Filosofia da Ciência sobre o assunto. No modelo de evolução da Ciência, a noção de paradigma de Kuhn (1987) é uma das mais empregadas (e, diga-se de passagem, também bastante questionada, em vista da ambiguidade com que é empregada), estabelecendo, em linhas gerais, o modo como fazer ciência (definição do problema, do objeto de pesquisa, das metodologias etc). Dentro do período de estabilidade, ou período normal de ciência, é possível depreender o sentido sociológico de paradigma, segundo o qual, o paradigma se constitui numa comunidade científica e esta se caracteriza pela adoção de um paradigma, o qual rege o grupo que o adota e não o objeto sobre o qual opera. Se se considerar esse cunho sociológico, parece não haver possibilidades ao cientista de querer ser camaleônico, como propunha Tarallo, pois qualquer desvio do padrão pode colocar o paradigma (ou o cientista) em xeque, marcando o surgimento de um embrião de paradigma, já que, segundo o modelo de evolução científica de Kuhn, num período extraordinário de ciência (crise de um paradigma), um modelo deixa de viger para outro tomar lugar, este, incompatível com aquele. Por conta das interpretações que alguns filósofos fizeram da teoria de Kuhn, a incomensurabilidade de teorias parece ter sido o fator mais ressaltado para demonstrar a Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto .com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178 -1486 • Vo lu me 4 • Nú mero 12 • ma io 201 4 Ed ição Espec ia l • Homenageado F E R N A N D O T A R A L L O Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 4, nº 12, mai . 2014 497 incompatibilidade entre elas. Sobre a incomensurabilidade e suas consequências para os cientistas que debatem sobre a escolha entre teorias sucessivas, Kuhn argumenta que: Se há um desacordo sobre conclusões, as partes comprometidas no debate podem refazer seus passos um a um e conferi-los com as estipulações prévias. Ao final desse processo, um ou outro deve reconhecer que cometeu um erro, violando uma regra previamente aceita. Após esse reconhecimento não são aceitos recursos e a prova do oponente deve ser aceita. Somente se ambos descobrem que diferem quanto ao sentido ou aplicação das regras estipuladas e que seu acordo prévio não fornece base suficientepara um prova, somente então é que o debate continua segundo a forma que toma inevitavelmente durante as revoluções científicas. (...) Nada nessa tese relativamente familiar implica afirmar que não existam boas razões para deixar-se persuadir ou que essas razões não sejam decisivas para o grupo (...) Contudo, queremos sugerir que tais razões funcionam como valores e portanto podem ser aplicados de maneiras diversas, individual e coletivamente, por aqueles que estão de acordo quanto à sua validade. (p. 245-246) Afora a noção da existência apenas de paradigmas sucessivos (pois os paradigmas coexistem), essa argumentação de Kuhn transcrita acima é bastante válida, uma vez que, cauteloso, permite o diálogo entre teorias. O que me parece não ser conciliável na proposta desse pensador é o espírito camaleônico que o cientista possa adotar para explorar seus fenômenos, uma vez que um modelo teórico perde sua credibilidade se outro melhor vir a sucedê-lo. Lakatos (1979), na explicação da evolução do pensamento científico, parece não compartilhar da mesma visão de Kuhn, pois considera que a ciência está em constante revolução, uma vez que coexistem teorias distintas operando sobre um mesmo referencial, ou seja, não existe uma única teoria num determinado estado do tempo; existem amplos programas de investigação científica com numerosas teorias concorrentes. Cabe ao cientista filiado a um programa de investigação proteger o componente metafísico do seu modelo teórico através da formulação de hipóteses auxiliares, as quais, se refutadas não apontarão para o abandono do modelo em questão. Valer-se de outros paradigmas para dar conta de um problema colocado para a teoria não é o procedimento mais correto, na visão de Lakatos, pois, se assim o cientista proceder, o resultado já é um terceiro programa, na forma como B&M analisaram a proposta de Tarallo. Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto .com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178 -1486 • Vo lu me 4 • Nú mero 12 • ma io 201 4 Ed ição Espec ia l • Homenageado F E R N A N D O T A R A L L O Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 4, nº 12, mai . 2014 498 As interpretações que podem ser conferidas a esse pensamento de Lakatos, ao mesmo tempo que revelam a importância da fidelidade a um paradigma para torná-lo sustentável, podem levar o cientista ao dogmatismo característico do obstáculo epistemológico para o crescimento do espírito científico (cf. Bachelard, 1996). No processo de evolução do espírito científico, Bachelard enfatiza o não-dogmatismo como caminho para o progresso da ciência, argumentando que o conhecimento científico deve ser concebido sempre como a reforma da ilusão, ou seja, é um contínuo processo de retificação que, na sua relação com uma psicanálise, cuida de afastar preconceitos e equívocos arraigados na mentalidade corrente. Nesse sentido é que se pode falar que o problema do conhecimento científico deve ser colocado em termos de obstáculo epistemológico, caracterizado, no próprio ato de conhecer, pelo surgimento de conflitos que podem levar à estagnação e até mesmo à regressão do espírito científico. Acrescenta o filósofo que o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, anulando conhecimentos mal estabelecidos, “superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização” (p. 17) Dessa breve exposição de pensamentos circundantes na filosofia da ciências, observa-se que nem o modelo filosófico de Kuhn nem o de Lakatos responderiam positivamente ao “descomprometimento” com o modelo teórico em que se atua, mantendo-o intacto, para a busca de soluções de problemas que se apresentam ao cientista. Talvez, na noção de obstáculo espistemológico, como proposta por Bachelard, seja possível encontrar uma sustentação para a proposta de Tarallo, uma vez que a sugestão deste visa exatamente ao não-dogmatismo e, com isso, ao crescimento do espírito científico, na medida que vê como possível o diálogo entre teorias concorrentes. O posicionamento defendido por B&M, a meu ver, traduz exatamente pelo menos dois dos três principais obstáculos epistemológicos (cf. Bachelard, 1996) que se colocam no caminho da ciência rumo ao progresso, quais sejam: os hábitos intelectuais e a avidez de unidade na ciência. Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto .com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178 -1486 • Vo lu me 4 • Nú mero 12 • ma io 201 4 Ed ição Espec ia l • Homenageado F E R N A N D O T A R A L L O Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 4, nº 12, mai . 2014 499 Ao lado da opinião, os hábitos intelectuais apresentam-se como entraves para a formação do espírito científico. O uso das mesmas ideias com certa frequência acaba por atribuir a estas valores excessivos, os quais impedem o crescimento espiritual, já que o instinto conservativo que passa a imperar atua junto ao espírito científico, levando-o a preferir (por comodismo) o que confirma o saber àquilo que o questiona. Isso equivaleria a dizer que a valorização e o apego do cientista à primeira experiência obstaculizam a capacidade do espírito científico rumo à abstração. O outro obstáculo na evolução do pensamento científico que se pode atribuir ao posicionamento de B&M trata da crença do cientista de que a ciência é ávida de unidade, que tende a considerar fenômenos de aspectos diferentes como fenômenos idênticos, que busca simplicidade ou economia nos princípios e nos métodos. Essa pretensa unidade não seria difícil de ser atingida, se fosse esse um objetivo que pudesse satisfazer o espírito científico. Ao contrário, o progresso científico efetua suas etapas mais marcantes, quando abandona os fatores filosóficos de fácil unificação. Em resumo, percebe-se que a retificação e diversificação são tipos de pensamentos dinâmicos que se contrapõem à certeza e à unidade, e que encontram nos sistemas homogêneos mais obstáculos do que estímulos. Uma outra reflexão que suscito neste ponto é sobre a produção do conhecimento científico. Nunca é demais lembrar que a base da produção do conhecimento científico reside na capacidade do cientista em captar e interpretar fenômenos e pressupõe, ainda, habilidades e conhecimentos já adquiridos na execução de tarefas especiais. Se os fenômenos estão à disposição para serem analisados por diversas teorias, há que se admitir que melhor fará uso aquela teoria que detiver maiores habilidades (conhecimento, técnica etc) para lidar com o fenômeno em análise. Se o conhecimento produzido dentro de um paradigma não deve fugir à objetividade científica, como adverte Hempel (1981), a quem deve servir o resultado de uma investigação? Somente à comunidade científica que o produziu? Essa parece ser a contraparte da reflexão que querem propor B&M, quando, à medida que defendem a pureza dos programas de investigação científica, retal(i)(h)am a postura camaleão no fazer científico. Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto .com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178 -1486 • Vo lu me 4 • Nú mero 12 • ma io 201 4 Ed ição Espec ia l • Homenageado F E R N A N D O T A R A L L O Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 4, nº 12, mai . 2014 500 A função do conhecimento científico produzido é estar à disposição de quem dele precisar e, uma vez colocado à disposição, dado que sua cientificidadejá se encontra testada, nada de imprudente há em um outro paradigma dele se servir. Se qualquer receio, por parte daqueles que se recusam a ser camaleônicos, possa existir quanto à utilização que se faz do conhecimento científico produzido, transcrevo aqui o que diz Popper (1982), ao se referir à atitude dogmática e à atitude crítica no trabalho científico: a atitude dogmática está claramente relacionada com a tendência para verificar nossas leis e esquemas, buscando aplicá-los e confirmá-los sempre, a ponto de afastar refutações, enquanto a atitude crítica é feita de disposição para modificá-los – a inclinação no sentido de testá-los, refutando-os se isso for possível. O que sugere a identificação da atitude crítica com a atitude científica e a atitude dogmática com a que descrevi qualificando-a de pseudocientífica. (...) A atitude crítica requer – como “matéria-prima”, por assim dizer – teorias ou crenças aceitas mais ou menos dogmaticamente. (...) a atitude crítica, tradição de livre debate sobre as teorias para identificar seus pontos fracos e aperfeiçoa-los, é uma atitude razoável e racional. Com efeito, não há nada de irracional na aceitação de uma teoria, como nada há de irracional na admissão de teorias bem testadas, para fins práticos– nenhum outro tipo de comportamento é mais racional. (p.80/81) As palavras de Popper dispensam qualquer comentário sobre o dogmatismo que toma conta de muitos linguistas, como, por exemplo B&M (ainda que quisessem ser vistos como não-dogmáticos). Lembro, neste final, o que diz Fichant (1974), ao comentar pontos de vistas presentes na obra de Bachelard: a filosofia não deve dirigir a ciência, mas a ciência ter sua própria filosofia. “A epistemologia, para ser completa, deve renunciar a toda „filosofia monódroma‟ para aderir a um „polifilosofismo‟” (p. 132). Os cientista têm de verificar todos os ingredientes do seu ofício e não apenas aqueles que os filósofos e os cientistas consideram tipicamente científicos. A este polifilosofismo de que fala Fichant, pode-se contrapor o ecletismo atribuído a Tarallo por B&M. Considerações finais Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto .com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178 -1486 • Vo lu me 4 • Nú mero 12 • ma io 201 4 Ed ição Espec ia l • Homenageado F E R N A N D O T A R A L L O Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 4, nº 12, mai . 2014 501 Nestas considerações finais, a questão a que volto é se a solução proposta por Tarallo para explicar as sentenças TOP e DESL do PB põe em questão aspectos centrais da teoria funcionalista, a qual parece não ter se bastado para dar uma resposta satisfatória a um problema. Parece não ser este o caso, e Tarallo estava consciente disso quando afirma que o objetivo central do seu trabalho de 1986 era mais sugestivo do que definitivo, sem qualquer intenção de invalidar trabalhos de pesquisa já feitos sobre TOP e DESL do PB. Uma vez que há, de um lado, a teoria funcionalista, operando sobre o discurso e tentando caracterizá-lo a partir de unidades menores – a sentença –, e, de outro, a teoria gerativista, que assume a sentença como objeto de análise, percebe-se um ponto de intersecção entre ambas. Como bem aponta Tarallo, a sintaxe não ultrapassa o nível da instrumentação e somente à definição das estruturas é que ela se presta. A partir daí, qualquer hipótese de trabalho pode ser proposta. Isso revela que é completamente compatível, neste ponto, a intersecção do gerativismo e do funcionalismo, já que este resvala num fator – o sintático – que, antes de tudo, constitui objeto de análise, por excelência, daquele. Quem poderia, nesta questão que é muito local, fornecer uma resposta mais satisfatória para o problema que se coloca? Desde que usado criticamente (como recomenda Hempel) os pressupostos gerativistas, acredito que isso não implicaria no abandono dos princípios pragmático-discursivos. Dois cientistas trabalhando orientados por teorias diferentes, analisando um mesmo fenômeno de pontos de vista diferentes (incomensuráveis, na terminologia de Kuhn), obviamente produzirão análises diferentes. Uma poderá adequar-se mais à realidade do que a outra. Creio isso não colocar em xeque qualquer das teorias envolvidas, mas o modo como o fenômeno foi abordado. Por exemplo, se relações anafóricas constituem uma realidade na língua, é preciso que elas sejam consideradas, também no plano discursivo, como propõe Tarallo, que tem por intenção dar a reconhecer aos funcionalistas uma explicação (distante que seja do empirismo) mais adequada que, em nada, invalida o que já se disse, mais amplamente, sobre o fenômeno em questão. Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto .com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178 -1486 • Vo lu me 4 • Nú mero 12 • ma io 201 4 Ed ição Espec ia l • Homenageado F E R N A N D O T A R A L L O Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 4, nº 12, mai . 2014 502 Diria, em termos concludentes, que é sabido os linguistas nem sempre terem se valido, em suas investigações, do fato interdisciplinar, o que, muitas vezes, tem causado prejuízos aos resultados dos trabalhos acadêmicos, privando os interessados de possíveis soluções para suas incertezas, o que pode constituir-se um obstáculo na evolução do pensamento científico. É por este prisma que fiz uma incursão, enfatizando, neste artigo, que, nos estudos linguísticos, muito mais que nas ciências naturais, há a necessidade de que se realize investigações científicas, valendo-se da intersecção disciplinar, de modo que o enfoque seja dado de acordo com os propósitos da investigação. Desnecessário é dizer que melhor se manipula o expediente com o qual se tem maior familiaridade e que não se pode, por excesso de conhecimento de um, ignorar totalmente o outro. BIBLIOGRAFIA BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Trad.: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro, Editora Contraponto, 1996. BORGES NETO, J., MÜLLER, A.P. Lingüistas ou camaleão: uma resposta a Tarallo. DELTA , v. 3, n. 1, 1987, p. 85-95. FICHANT, M. A epistemologia na França. In: CHÂTELET, F. História da filosofia: idéias, doutrinas – o século XX. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1974. HEMPEL, C.G. Filosofia da ciência natural. 3.ed. 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