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� 
COLEÇÃO 
BIBLIOTECA 
INDISPENSÁVEL 
ESTES SÃO LIVROS QUE NÃO PASSAM. 
CLÁSSICOS DO ESPÍRITO CRISTÃO, 
OU SIMPLESMENTE DO ESPÍRITO, 
REUNIDOS AGORA NUMA COLEÇÃO 
QUE PRETENDE TESTEMUNHAR 
A VITALIDADE, A DIVERSIDADE E A 
SURPRESA DA EXPERIÊNCIA DE DEUS. 
CADA UM DESTES VOLUMES É UM 
PEQUENO GRÃO ONDE A ESPERANÇA 
INTEIRA CINTILA. Ü RESULTADO 
É NÃO SÓ UMA BIBLIOTECA 
INDISPENSÁVEL, QUE O PASSADO DO 
CRISTIANISMO E DA CULTURA LEGAM 
AO PRESENTE, MAS UM TESOURO 
QUE O NOSSO PRESENTE É CHAMADO 
A REENCONTRAR APAIXONADAMENTE 
E A TRANSMITIR AO FUTURO. 
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IMITAÇÃO DE CRISTO 
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Tradução de 
MARIA ISABEL BÉNARD DA COSTA E PEDRO TAMEN 
Prefácio de 
MIGUEL TAMEN 
Coordenação da coleção 
Título original 
Tradução 
Tradutores 
Capa 
Pré-impressão 
Impressão e acabamentos 
Depósito legal 
ISBN 
© 
José Tolentino Mendonça 
De Imitatione Christi 
(1418-1427) 
© Paulinas Editora 
Maria Isabel Bénard da Costa e Pedro Tamen 
Gito Lima 
Paulinas Editora - Prior Velho 
Artipol - Artes Tipográficas, Lda. - Águeda 
389 250115 
978-989-673-437-4 
Março 2015, Inst. Miss. Filhas de São Paulo 
Rua Francisco Salgado Zenha, 11 
2685-332 Prior Velho 
Te!. 219 405 640 - Fax 219 405 649 
e-mail: editora@paulinas.pt 
www.paulinas.pt 
PREFÁCIO 
A
imitação de Cristo causou e ainda causa nervosismo em 
não-cristãos e cristãos. Muitos não-cristãos lamenta­
ram a maneira ríspida como Tomás de Kempis trata os 
nossos desejos, as nossas sensações e a nossa ciência. O livro 
seria um bom exemplo daquilo a que Friedrich Nietzsche fa­
mosamente chamou o ideal ascético, e que acusou de arrui­
nar a nossa saúde. Muitos teólogos cristãos só conseguem 
hoje admirar relutantemente o livro que, no entanto, muitos 
milhares de outros cristãos quase imediatamente leram e 
admiraram. Queixaram-se da versão minimal do cristia­
nismo que ele apresenta : um cristianismo que desconfia das 
relações humanas ( « caridade, não familiaridade » , 1, VIII, 2) , 
de onde estão quase ausentes as outras pessoas, mas a que 
Tomás chamou o cristianismo de um « espírito livre que não 
está preso a nenhuma desordenada afeição das criaturas » 
( III, XXVI, 1 ) ; e em qualquer caso um cristianismo de onde 
parece ter sido erradicada a filosofia, que brilhantemente e 
laboriosamente se tinha pouco a pouco tornado a aliada 
mais importante do Cristianismo ocidental durante a Idade 
Média . 
Estas queixas sugerem uma versão da Imitação de Cristo 
que é ela própria uma versão empobrecida . Com efeito, a 
Imitação de Cristo está saturada de filosofia; não tanto de 
teorias filosóficas sobre o conhecimento, a mente, ou a ação 
[ 5 
humana, mas de uma teoria sobre aquilo que a filosofia não 
pode ou não consegue fazer, e nomeadamente de uma teoria 
sobre os limites da linguagem filosófica . Essa teoria será pes­
simista, mas não é menos fi losófica por isso. Tomás de 
Kempis chama repetidamente a atenção para o problema do 
uso da filosofia na reflexão teológica; nisso se aproxima sur­
preendentemente de Nietzsche . Aconselha-nos a moderar o 
« excessivo desejo de saber» (1, II, 2 ) ; observa que «vale bem 
mais sentir arrependimento do que saber a sua definição » 
(1, 1, 2) ; o seu propósito metodológico, como também diz, é 
o de «evitar as palavras a mais » (1, x). O grande historiador 
holandês Johan Huizinga falou, a este respeito, de Tomás 
como alguém « calado, introvertido, cheio de ternura pelo 
milagre da Missa e com uma perceção muito limitada da 
ajuda divina » . Enquanto muitos dos seus contemporâneos, 
igualmente ou menos notáveis, tentaram corrigir diretamen­
te «a administração da Igreja e a vida secular» , Tomás nunca 
manifestou grande interesse por esses assuntos. 
É o lado taciturno de Tomás, daquilo a que também Hui­
zinga chamou «O ritmo monótono das frases que torna a 
Imitação parecida com o mar numa tarde de chuva » , que 
nos permite perceber mais exatamente o que quer, para ele, 
dizer « imitação de Cristo » . Aristóteles acreditava que as pes­
soas aprendem a agir corretamente por imitação. Muitos 
cristãos, porventura a maioria, entendem nesse espírito que 
a imitação de Cristo deve ser imitação das ações de Cristo, 
por exemplo, como descritas nos Evangelhos. Não é o caso 
de Tomás. A ideia de imitar as ações de Cristo parece-lhe 
suspeita, e a possibilidade de o fazer irrazoável . Em vez 
disso, a imagem que dá de imitação de Cristo é a de uma ati­
vidade silenciosa, conduzida a sós, numa espécie de colóquio 
6 ] 
mental com o próprio Cristo . De tal colóquio são exemplo 
principal os dois últimos livros da Imitação. 
Nesse colóquio mental com Cristo, no entanto, as per­
guntas que se fazem não servem para saber coisas. « Filho » , 
observa Cristo secamente, « não sejas curioso » ( III, XXIV, 1 ) . 
O s objetivos da imitação não são imediatos e não propor­
cionam conhecimento : « Tu pedirás e nada obterás » (Ili, 
xux, 4 ) . Ao contrário de outras tradições de exercícios espi­
rituais em que é possível verificar os progressos, por exem­
plo os progressos cognitivos, que fizemos, muito pouco, 
para Tomás, depende daquilo que fizermos; e em qualquer 
caso tudo depende de Cristo . 
Este modelo de instrução, de consolação e de exercício 
está profundamente ligado a uma invenção quase contem­
porânea deste livro. Trata-se da invenção da tipografia . A 
Imitação de Cristo terá sido escrita na segunda ou na ter­
ceira década do século XV, e terá primeiro circulado em 
cópias manuscritas; porém, a partir de 1471 , sucederam-se 
as versões impressas. Antes do fim do século tinha sido tra­
duzida para quatro línguas e tinha tido mais de cem edições. 
Hoje tem mais de duas mil. O seu êxito esteve sempre, por 
isso, ligado à tipografia e à possibilidade de um grande nú­
mero de pessoas poderem comprar e ler livros . O facto está 
longe de ser trivial . Com efeito, existe uma relação profunda 
entre aquilo que para Tomás de Kempis é a imitação de 
Cristo - uma atividade silenciosa conduzida a sós - e a pos­
sibilidade e a ideia de leitura que tornou necessária a inven­
ção da tipografia. 
Os espíritos livres de fins do século XV eram também espí­
ritos taciturnos e solitários . Na Europa, as pessoas habi­
tuaram-se gradualmente a falar a sós com os livros; e ha-
[ 7 
bituaram-se a ver essa atividade solitária como uma aprendi­
zagem que afetava outros hábitos que tivessem. «Ü hábito» , 
como disse Tomás, «vence-se pelo hábito» (I , XXI, 2 ) ; esse é, 
para ele, o princípio fundamental da imitação. Devemos a 
Tomás a ideia de que a possibilidade da leitura generalizada, 
mais que um modo de instrução, e mais que um modo de 
acesso direto à verdade da letra, é uma atividade que, na 
maneira como se desenrola, retrata a possibilidade de uma 
imitação de Cristo : em silêncio, em paz, e sem esperar res­
postas. Ao ler este livro, cada leitor vai assim, independente­
mente da sua vontade, encontrar-se na posição de que 
Tomás tanto fala, e na posição em que Tomás o quis colocar. 
MIGUEL TAMEN 
8 ] 
LIVRO PRIMEIRO 
Conselhos úteis à vida espiritual 
1 
Da imitação de Cristo 
e do desprezo de todas as vaidades do mundo 
1 . 
Aquele que me segue não anda nas trevas, diz o Senhor 
(Jo 8 , 12 ) . 
São estas a s palavras de Cristo, que nos incitam a que 
imitemos a sua vida e costumes, se quisermos ser verdadei­
ramente iluminados e libertos de toda a cegueira de coração. 
Sej a , pois, nosso fito principal meditar a vida de Jesus 
Cristo . 
A doutrina de Cristo excede todas as doutrinas dos 
santos, e quem nela tenha o seu espírito, aí encontrará o 
maná escondido. 
Acontece, porém, que muitos, porque não têm o espírito 
de Cristo, embora ouçam frequentemente o Evangelho, 
sentem pouco desejo dele. 
Mas quem quiser compreender e saborear plenamente as 
palavras Cristo, terá de se esforçar por moldar em Cristo 
toda a sua vida . 
2. 
Que te aproveitará discorrer sobre a Trindade, se, por 
não teres humildade,com os trabalhos do corpo. 
Quem não evita os defeitos pequenos, cairá pouco a 
pouco nos maiores ( Sir 1 9, 1 ; Lc 1 6, 1 0 ) . 
Alegrar-te-ás sempre à noite, s e passaste u m dia pro­
veitoso . 
Vigia-te a ti próprio, incita-te, castiga-te; e, o que quer 
que suceda aos outros, não te deixes cair na indiferença . 
Tanto mais progredirás, quanto mais te violentares . 
Ámen. 
70 ] 
LIVRO SEGUNDO 
Conselhos para o progresso 
na vida interior 
1 
Da conversão interior 
1. 
O Reino de Deus está dentro de vós ( Lc 1 7,2 1 ) , diz o 
Senhor. 
Volta-te com todo o teu coração para o Senhor e deixa 
este mundo miserável: e a tua alma achará o repouso. 
Aprende a desprezar as coisas exteriores e a entregar-te às 
interiores, e verás chegar para ti o Reino de Deus. 
Na verdade, o Reino de Deus é a paz e a alegria no Espí­
rito Santo (Rm 14 , 1 7) , que não é dado aos ímpios . Cristo 
virá junto de ti, mostrando-te a sua consolação, se lhe tiveres 
preparado interiormente uma morada digna. 
Toda a sua glória e beleza são de dentro e é aí que se 
compraz. 
Ele visita frequentemente o homem recolhido, e a sua 
conversa é doce, a sua consolação agradável, a sua paz 
imensa, o seu convívio admirável. 
2. 
Vai, alma fiel, prepara o teu coração para este Esposo, 
para que se digne vir a ti e em ti habitar. 
Na verdade, Ele diz assim: se alguém me ama, ouvirá a 
minha palavra; e viremos a ele e nele faremos morada (Jo 
1 4,23 ) . 
Dá, pois, lugar a Cristo e nega entrada a todos o s outros. 
Quando possuíres Cristo, serás rico e Ele te bastará. 
[ 73 
Ele será o teu guia e o que cuidará de ti, fielmente, em to­
das as coisas, para que não necessites de esperar nos homens . 
Na verdade, os homens depressa mudam e faltam; mas 
Cristo permanece eternamente, e com firmeza acompanha 
até ao fim. 
Não se deve colocar grande confiança no homem frágil e 
mortal , ainda que sej a útil e amado; nem nos devemos 
entristecer se às vezes nos trair ou contradizer. 
Aqueles que hoje estão contigo podem ser-te contrários 
amanhã, e vice-versa: mudam muitas vezes como a brisa . 
3. 
Põe toda a tua confiança em Deus, e que Ele sej a teu 
temor e teu amor. 
Ele por ti responderá e fará como for melhor. 
Não tens aqui cidade de repouso, e onde quer que estej as 
és estranho e peregrino; e nunca terás repouso, a não ser 
quando estiveres intimamente unido a Cristo. 
4. 
Que procuras à tua volta, se este não é o lugar do teu 
descanso ? 
A tua morada deve ser no Céu, e tudo na terra deve ser 
visto como de passagem. 
Todas as coisas passam, e tu com elas. 
Toma cuidado, não te apegues, para que não sej as apa­
nhado por elas e pereças . 
Que o teu pensamento esteja j unto do Altíssimo, e a tua 
súplica se dirija sem cessar a Cristo . 
Se não consegues contemplar as coisas elevadas e celestes, 
descansa na paixão de Cristo, e habita alegremente nas suas 
santas chagas. 
Se assim te refugiares com devoção nas chagas e nos pre-
74 ] 
ciosos estigmas de Jesus, sentirás grande conforto na tribu­
lação, não te importarás muito com as traições dos homens 
e facilmente suportarás as palavras malévolas . 
5. 
Também Cristo foi desprezado no mundo pelos homens, 
e abandonado, na maior necessidade, pelos conhecidos e 
amigos no meio das afrontas . 
Cristo quis sofrer e ser desprezado, e tu ousas queixar-te 
de alguma coisa ? 
Cristo teve inimigos e adversários, e tu queres que todos 
sejam teus amigos e benfeitores ? 
Onde será coroada a tua paciência, se nada tiveres de 
adverso ? 
Se não queres sofrer nada de penoso, como queres ser 
amigo de Cristo ? 
Mantém-te com Cristo e por Cristo, se queres reinar com 
Cristo . 
6. 
Se uma única vez conseguisses entrar perfeitamente no 
coração de Jesus, e conhecesses um pouco do seu amor 
ardente, não te importarias com o que te é agradável ou 
desagradável, mas alegrar-te-ias de cada ofensa sofrida, pois 
que o amor de Jesus faz o homem desprezar-se a si próprio. 
Aquele que ama Jesus e a verdade, que é verdadeiro, inte­
rior e livre de afeições desordenadas, pode voltar-se facil­
mente para Deus, elevar-se em espírito acima de si próprio e 
descansar com proveito . 
7. 
Aquele para quem as coisas valem segundo o que são, e 
não segundo o que se diz ou pensa, esse é o verdadeiro 
sábio, e mais instruído por Deus do que pelos homens. 
[ 75 
Aquele que sabe caminhar interiormente e pouco se im­
porta com as coisas exteriores, não exige lugares nem espera 
ocasiões para se dedicar aos exercícios de piedade. 
O homem interior depressa se recolhe, pois que nunca se 
dispersa totalmente nas coisas exteriores . 
O trabalho exterior não o prejudica, nem a ocupação por 
vezes necessária; mas, tal como sucedem as coisas, assim a 
elas se acomoda. 
Aquele que é bem formado e ordenado interiormente não 
se importa com as ações admiráveis ou perversas dos 
homens. 
Tanto mais se embaraça o homem e se distrai , quanto 
mais a si atrai as coisas. 
8. 
Se fosses como devias, e perfeitamente purificado, tudo se 
te converteria em bem e em progresso. 
Mas muitas coisas te desagradam e frequentemente per­
turbam, porque ainda não morreste completamente para ti 
próprio nem te separaste de tudo o que é da terra . 
Nada mancha e compromete o coração do homem como 
um impuro amor das criaturas. 
Se renuncias às consolações exteriores, poderás contem­
plar as coisas do Céu e alegrar-te frequentemente em teu 
coração. 
76 ] 
II 
Da humilde submissão 
1 . 
Não te preocupes muito se alguém é por ti ou contra ti, 
mas procede e ocupa-te de modo a que Deus esteja contigo 
em tudo quanto faças. 
Consegue uma consciência pura, que Deus te defenderá 
bem. 
Aquele a quem Deus quer ajudar, não pode prejudicar a 
maldade de ninguém. 
Se sabes calar-te e sofrer, verás sem dúvida o auxílio do 
Senhor. 
Ele conhece o tempo e o modo de te libertar: e por isso a 
Ele te deves submeter. 
É próprio de Deus ajudar e libertar de toda a confusão. 
Muitas vezes é mais útil para a conservação da nossa 
humildade que os outros conheçam os nossos defeitos e os 
censurem. 
2. 
Quando um homem se humilha por causa dos seus defei­
tos, acalma os outros facilmente e satisfaz sem custo os que 
. . consigo se iravam. 
Deus protege e liberta o humilde, ama-o e consola-o. 
Inclina-se para ele e dá-lhe grande graça: e, depois do seu 
abatimento, eleva-o à glória. 
[ 77 
Revela os seus segredos ao humilde, arrasta-o e convida­
-o docemente para si. 
E ele mesmo na confusão vive em paz, porque se firma 
em Deus e não no mundo. 
Não j ulgues ter adiantado em qualquer coisa se não te 
sentires inferior a todos . 
78 ] 
III 
Do homem bom e pacífico 
1 . 
Mantém-te tu em paz; e só então poderás pacificar os 
outros . 
O homem pacífico é mais útil do que o muito instruído. 
O apaixonado, porém, converte o bem em mal e acredita 
facilmente neste. 
O homem bom e pacífico converte todas as coisas em 
bem. 
Aquele que está verdadeiramente em paz não suspeita 
mal de ninguém. 
Mas o que é descontente e inquieto é agitado por várias 
suspeitas. 
Nem descansa, nem deixa descansar os outros. 
Diz muitas vezes o que não devia dizer, e omite fazer o 
que devia. 
Preocupa-se com o que os outros têm de fazer, mas des­
leixa o que lhe compete . 
Tem, antes de tudo, cuidado contigo, e poderás então 
zelar pelo teu próximo. 
2. 
Sabes bem desculpar e colorir as tuas ações, mas não 
queres atender às desculpas dos outros. 
Seria mais j usto que te acusasses e desculpasses o teu 
irmao. 
[ 79 
Se queres ser suportado, suporta tu os outros. 
Vê quão longe estás ainda da verdadeira caridade e humil­
dade, que só sabe indignar-se e irritar-se contra si própria. 
Não tem valor conviver com os que são bons e pacientes: 
pois isto agrada naturalmente a todos; qualquer pessoa quer 
de boa vontade a paz, e gosta mais dos que pensam como 
ela. 
Mas poder viver em paz com os duros e os maus, com os 
indisciplinados, com os que se nos opõem, é grande graçae 
ação digna de louvor e corajosa. 
3. 
Há quem tenha paz consigo e com os outros, e há os que 
nem têm paz, nem deixam em paz os outros . 
Desagradáveis para os outros, ainda o são mais para si 
próprios. 
E há aqueles que se conservam em paz e que a ela pro­
curam trazer os outros. 
Contudo, toda a nossa paz, nesta pobre vida, se deve 
colocar mais no sofrimento humilde do que na ausência do 
sofrimento. 
Aquele que melhor sabe sofrer, maior paz conseguirá . 
Este é o que se vence a si próprio e o senhor do mundo, o 
amigo de Cristo e o herdeiro do Céu. 
80 ] 
IV 
Do espírito puro e da reta intenção 
1. 
O homem eleva-se da terra com duas asas: a simplicidade 
e a pureza . 
A simplicidade deve estar na intenção, a pureza na afeição. 
A simplicidade procura Deus; a pureza toma dele posse e 
nele se compraz. 
Nenhuma boa ação te custará, se estiveres interiormente 
livre de afeições desregradas. 
Se nada procurares ou quiseres, além da vontade de Deus 
e da utilidade do próximo, gozarás de liberdade interior. 
Se o teu coração for reto, então toda a criatura te será 
espelho de vida e livro de santa doutrina. 
Não há criatura, por mais pequena e desprezível, que não 
seja imagem da bondade de Deus. 
2. 
Se fosses interiormente bom e puro, verias todas as coisas 
sem obstáculo e facilmente as entenderias. 
Um coração puro atravessa o Céu e o Inferno. 
Toda a pessoa julga as coisas cá de fora de acordo com o 
que é por dentro. 
Se há alegria no mundo, o homem de coração puro 
possm-a. 
E se em qualquer lugar existe tribulação e angústia, a má 
consciência as conhece. 
[ 81 
Tal como o ferro lançado ao fogo se torna rubro e todo 
incandescente, assim o homem que inteiramente se volta 
para Deus é sacudido do torpor e feito num homem novo. 
3. 
Quando o homem começa a arrefecer, teme o esforço 
pequeno e aceita de boa vontade a consolação exterior. 
Mas quando começa a vencer-se perfeitamente e a cami­
nhar com firmeza na via de Deus, então julga sem importân­
cia o que antes lhe parecia mais duro. 
82 ] 
V 
Da consideração de si próprio 
1 . 
Não podemos contar demasiadamente com nós próprios, 
pois que, muitas vezes, nos falta a graça e o bom senso. 
Pouca luz existe em nós e, mesmo essa, depressa a perde­
mos por negligência. 
Muitas vezes não nos damos conta de como somos inte­
riormente cegos. 
Muitas vezes agimos mal e desculpamo-nos pior. 
Às vezes somos movidos pela paixão e j ulgamos ser por 
zelo . 
Repreendemos coisas pequenas nos outros e passamos 
sobre as nossas, bem maiores. 
Depressa sentimos e pesamos o que aguentamos dos 
outros, mas não nos damos conta de quanto eles sofrem por 
nós. 
Aquele que pesasse bem e retamente as suas ações, não 
haveria nada que julgasse duramente nos outros . 
2. 
O homem que vive pelo espírito prefere o cuidado de si 
próprio a todos os cuidados; e quem se vigia atentamente 
facilmente se cala sobre os outros. 
Nunca serás interior e piedoso se não te calares sobre os 
outros e olhares especialmente para ti. 
[ 83 
Se procurares inteiramente cuidar de ti e de Deus, pouco 
te perturbará o que observares cá fora . 
Onde estás, quando não estás presente a ti próprio ? 
E, quando percorreste todas as coisas, o que aproveitaste, 
se te descuraste ? 
Se desej as paz e verdadeira união, é necessário que 
ponhas tudo para trás e que só tenhas olhos para ti . 
3. 
Por isso, muito progredirás se te conservares livre de toda 
a preocupação temporal . 
Mas cedo desfalecerás , se tiveres em apreço qualquer 
coisa da terra . 
Que nada sej a para ti grande, elevado, grato ou aceite, 
senão Deus ou o que dele seja . 
Considera vã toda a consolação que provenha das cria­
turas. 
A alma que ama a Deus despreza todas as coisas que lhe 
estão abaixo. 
Só Deus eterno e imenso, enchendo tudo, é consolação da 
alma e verdadeira alegria do coração. 
84 ] 
VI 
Da alegria da boa consciência 
1 . 
A glória do homem de bem é testemunho da boa cons­
ciência (2Cor 1 , 1 2 ) . 
Possui uma boa consciência e terás sempre alegria. 
A boa consciência pode suportar muitas coisas, e está 
alegre na adversidade. 
A má consciência está sempre temerosa e inquieta . 
Repousarás calmamente, se o teu coração de nada te 
acusar. 
Não te alegres, senão quando fizeres o bem. 
Os maus nunca têm verdadeira alegria, nem experimen­
tam paz interior: porque não há paz para os pecadores, diz o 
Senhor (Is 48 ,22 ) . 
E s e disserem « estamos em paz, o s males não cairão sobre 
nós, quem nos ousará prej udicar ? » , não os acredites; pois 
que de repente se erguerá a ira de Deus e as suas ações serão 
feitas em nada, e perecerão os seus pensamentos . 
2. 
Glorificar-se na tribulação não é difícil a quem ama: por-
que glorificar-se assim é glorificar-se na Cruz do Senhor. 
Breve é a glória que é dada e recebida dos homens. 
A tristeza acompanha sempre a glória do mundo. 
A glória dos bons está nas suas consciências e não na 
boca dos homens. 
[ 85 
A alegria dos j ustos é de Deus e em Deus, e o seu gozo, 
da verdade. 
Aquele que desej a a verdadeira e eterna glória não se 
preocupa com o mundo. 
E o que procura a glória da terra, ou a não despreza de 
todo o coração, mostra amar pouco a do Céu. 
Grande tranquilidade de coração tem aquele que não se 
importa nem com louvores, nem com injúrias. 
3. 
Facilmente estará contente e em paz aquele cuja cons­
ciência está limpa. 
Não és mais santo porque te louvam, nem mais pecador 
porque te injuriam. 
És aquilo que és: e tudo o que disserem de ti não te fará 
maior do que és aos olhos de Deus. 
Se atenderes ao que és interiormente, não te preocuparás 
com o que os homens dirão de ti . 
O homem vê a cara, mas Deus o coração ( 1 Sm 1 6,7 ) . 
O homem tem em conta as ações; mas Deus considera as 
intenções. 
É indício duma alma humilde agir sempre retamente e 
não se ter em muita conta . 
Não querer ser consolado por nenhuma criatura é sinal 
de grande pureza e confiança interior. 
4. 
Aquele que não procura de fora qualquer testemunho em 
seu favor, mostra claramente que se entrega inteiro a Deus. 
Pois não é o que se recomenda a si próprio que é aprovado, 
diz São Paulo, mas aquele que Deus recomenda (2Cor 1 0, 1 8 ) . 
Caminhar com Deus dentro d e s i e não contar com ne­
nhuma afeição de fora, tal é o estado do homem interior. 
86 ] 
VII 
Do amor a Jesus sobre todas as coisas 
1 . 
Feliz o que percebe o que é amar a Jesus e desprezar-se a 
si próprio por causa dele: é preciso abandonar o que ama­
mos por Aquele que nos ama, pois que Jesus quer ser só Ele 
amado, acima de todas as coisas. 
O amor das criaturas é mentiroso e instável; o amor de 
Jesus é fiel e perseverante . 
Aquele que se apega às criaturas cairá facilmente; o que 
se abraça a Jesus estará firme para sempre. 
Ama e conserva como amigo Aquele que, fugindo todos, 
te não abandonará, nem te deixará perecer. 
Terás de te afastar um dia de todos, quer queiras, quer 
não queiras. 
2. 
Na vida ou na morte, conserva-te junto de Jesus e confia 
na fidelidade do único que, quando todos te faltarem, te 
poderá ajudar. 
Tal é a natureza daquele que assim te ama, que não quer 
admitir mais ninguém e quer possuir só o teu coração e 
sentar-se, como rei, no seu trono. 
Se souberes libertar-te bem de todas as criaturas , Jesus 
virá habitar de boa vontade contigo. 
Verás que quase tudo o que jogaste nos homens, fora de 
Jesus, é perdido. 
[ 87 
Não confies nem te apoies sobre uma cana agitada pelo 
vento: porque toda a carne é como a erva, e toda a sua glória 
como a flor da erva cairá ( Is 40,6) . 
3. 
Muitas vezes te enganarás, se apenas olhares para a apa­
rência exterior dos homens. 
Se procurares nos outros consolação e lucro, experimen­
tarás a maior parte das vezes apenas danos. 
Se procurares Jesus em tudo, em tudo o encontrarás. 
Mas se te procurares a ti próprio, a ti te encontrarás, mas 
para teu mal. 
Pois que o homem, se não procura Jesus, é mais nocivo asi próprio do que todo o mundo e todos os seus inimigos. 
88 ] 
VIII 
Da amizade familiar a Jesus 
1 . 
Quando Jesus está presente, tudo é bom e nada parece 
difícil. 
Mas quando Jesus não está presente, tudo é duro. 
Quando Jesus não fala dentro de nós, qualquer consola­
ção é má. 
Mas se Jesus diz uma só palavra, é grande a consolação. 
Não se ergueu logo Maria Madalena do lugar onde cho­
rava, quando Marta lhe disse : o Mestre chegou e chama-te ? 
(Jo 1 1 ,2 8 ) . 
Feliz a hora em que Jesus chama das lágrimas para a ale­
gria do espírito ! 
Como és seco e duro sem Jesus ! 
Como és insensato e vão, se alguma coisa desej as fora 
dele ! 
Não é isto uma maior perda do que se perdesses todo o 
mundo ? 
2. 
Que pode o mundo trazer-te sem Jesus ? 
Viver sem Jesus é pesado inferno: e estar com Jesus, doce 
paraíso. 
Se Jesus estivesse contigo, nenhum inimigo te poderia 
fazer mal. 
[ 89 
Quem encontra Jesus encontra um bom tesouro, bom 
acima de todo o bem. 
E quem perde Jesus perde muito, e mais do que todo o 
mundo. 
Pobríssimo é o que vive sem Jesus, e bem rico o que está 
com Jesus. 
3. 
É uma grande arte saber conviver com Jesus, e grande 
prudência é saber retê-lo. 
Sê humilde e pacífico: e Jesus estará contigo. 
Sê piedoso e tranquilo: e Jesus permanecerá a teu lado. 
Depressa podes afastar Jesus e perder a sua graça, se qui-
seres inclinar-te para as coisas do mundo. 
E se o afastares e perderes, em quem te refugiarás, que 
amigo arranjarás ? 
Sem amizade não podes viver bem, e se Jesus não for para 
ti o amigo entre todos, ficarás triste e desolado. 
Por isso ages loucamente se confias ou te alegras em qual­
quer outro. 
Deve preferir-se ter todo o mundo contra nós a ofender 
Jesus. 
Assim, que, entre tudo o que amas, sej a Jesus o mais 
amado. 
4. 
Que todos sej am amados por Jesus, mas que Jesus o sej a 
por s1 mesmo. 
Só Jesus Cristo deve ser amado de um modo particular, 
pois que, mais que todos os amigos, Ele é bom e fiel . 
Por causa dele e nele, que tanto os amigos como os inimi­
gos te sej am queridos; deves pedir-lhe por todos, para que 
todos o conheçam e o amem. 
90 ] 
Nunca desejes ser louvado ou amado dum modo especial: 
pois que isso só pertence a Deus, que não tem ninguém 
semelhante a si. 
Nem queiras que alguém te tenha em seu coração, ou tu 
tenhas o teu ocupado pelo amor de alguém; mas que Jesus 
estej a em ti e em todo o homem bom. 
5. 
Sê puro e livre por dentro, sem enredo de qualquer cria­
tura . 
Importa que estej as nu e ofereças a Deus um coração 
puro, se queres estar livre e ver quão suave é o Senhor. 
E é bem verdade que não chegarás a isto, se não fores 
amparado e arrastado pela sua graça; para que, excluídas e 
afastadas todas as coisas, tu só com Ele só te unas. 
Pois quando a graça de Deus vem ao homem, ele torna-se 
capaz de tudo. 
E, quando recua, ficará pobre e doente e como que aban­
donado aos sofrimentos. 
Mas nem nestes ele deve sentir-se abatido ou desesperar, 
mas antes manter-se imperturbável diante da vontade de 
Deus, e sofrer tudo o que aconteça para louvor de Jesus 
Cristo; porque depois do inverno vem o verão, depois da 
noite, o dia, e, depois do temporal, a grande serenidade. 
[ 91 
IX 
Da falta de toda a consolação 
1 . 
Não é difícil desprezar a consolação humana quando a 
divina nos ajuda . 
Mas é admirável, realmente admirável, poder carecer de 
consolação, humana e divina, e querer suportar livremente o 
exílio do coração, não se procurar em nada e não olhar para 
o próprio mérito, em honra de Deus. 
Que há de especial em seres alegre e piedoso quando a 
graça te ajuda ? 
Hora desejável para todos ! 
Caminha suavemente aquele a quem a graça de Deus 
conduz. 
E que admira se não sente a carga quem é levado pelo 
Omnipotente e conduzido pelo supremo guia ? 
2. 
De boa vontade procuramos alguma coisa que nos con­
sole e dificilmente se liberta o homem de si próprio. 
O mártir São Lourenço venceu o mundo, fiel ao seu 
bispo, pois desprezou tudo o que na terra era agradável e , 
por amor de Cristo, suportou pacientemente ser separado de 
Sixto, o Papa, que ele muito amava. 
Superou o amor ao homem pelo amor ao Criador e pre­
feriu o que agradava a Deus, à consolação humana. 
Assim, aprende também tu a deixar o que te é necessário 
92 ] 
e o que te é querido pelo amor de Deus, e não te perturbes 
quando fores abandonado por um amigo, pois sabes que é 
inevitável que todos nos separemos uns dos outros. 
3. 
Muito e muito tempo tem o homem de combater em si 
mesmo, antes que aprenda a vencer-se plenamente e a enca­
minhar todo o seu afeto para Deus. 
Quando o homem se apoia em si próprio, facilmente cai 
nas consolações humanas. 
Mas o que verdadeiramente ama a Cristo e procura inces­
santemente as virtudes, não cai nessas consolações, nem pro­
cura tais doçuras dos sentidos; mas prefere aguentar por 
Cristo duros exercícios e pesados trabalhos . 
4. 
Portanto, quando a consolação espiritual é dada por 
Deus, recebe-a com ação de graças : mas percebe que ela é 
um dom de Deus, e não mérito teu. 
Não te orgulhes , não te a legres demais, não tenhas vã 
presunção; mas sê mais humilde por este dom, mais caute­
loso e prudente em todas as tuas ações, porque essa hora 
passará e virá a tentação. 
Quando a consolação desaparecer, não desesperes logo; 
mas espera com humildade e paciência a visita do Céu, pois 
que poderoso é Deus para te voltar a dar consolação ainda 
maior. 
Isto não é novo nem estranho para os que têm experiên­
cia dos caminhos de Deus, pois que nos grandes santos e nos 
profetas antigos houve muitas vezes esta espécie de altos e 
baixos . 
[ 93 
5. 
Assim, um deles, quando a graça estava presente, dizia : 
eu disse em minha abundância: não serei derrubado para 
sempre ( Sl 30 [29] ,7) . 
Mas quando a graça se afastou, acrescentava: afastaste de 
mim a tua face e fiquei cheio de aflição ( ibid. , 8 ) . 
Contudo, enquanto lhe sucediam estas coisas, não deses­
perava, mas rogava a Deus mais insistentemente e dizia: a ti, 
Senhor, clamarei e ao meu Deus rogarei ( ibid. , 9 ) . 
Finalmente, recolhe o fruto da sua oração e dá testemu­
nho de que foi ouvido, dizendo: o Senhor ouviu-me e com­
padeceu-se de m im. O Senhor tornou- se a minha ajuda 
( ibid. , 1 1 ) . 
Mas como ? 
Converteste, diz, o meu pranto em gozo, e rodeaste-me 
de alegria ( ibid. , 1 2 ) . 
S e assim agiu para com o s grandes santos, não devemos 
desesperar, nós, fracos e pobres, se umas vezes temos fervor 
e outras frieza, porque o Espírito vem e afasta-se, segundo o 
agrado da sua vontade. 
Por isso diz o bem-aventurado Job: Tu o visitas de ma­
nhãzinha e de súbito o experimentas (Jb 7, 1 8 ) . 
6. 
Por isso, em quem posso esperar ou em quem devo con­
fiar, se não somente na grande misericórdia de Deus e na 
esperança da graça do Céu ? 
Pois que, esteja eu com homens de bem, piedosos irmãos 
ou amigos fiéis, quer tenha santos livros, ou belos tratados, 
ou doces cânticos e hinos : tudo isto pouco ajuda e a pouco 
sabe, quando estou longe da graça e abandonado à minha 
pobreza . 
94 ] 
Então não existe remédio melhor do que a minha paciên­
cia e abandono à vontade de Deus. 
7. 
Nunca encontrei ninguém, por mais religioso e devoto, 
que não tivesse tido, por vezes, certa privação da graça ou 
não sentisse diminuição de fervor. 
Nenhum santo foi tão altamente arrebatado e iluminado, 
que, antes ou depois, não tivesse tido tentações . 
Na verdade, não é digno da alta contemplação de Deus 
aquele que, por Ele, se não experimentou em qualquer tri­
bulação. 
A tentação costuma ser sinal da consolação que a segue. 
Assim, é prometida a consolação do Céu aos que são 
experimentados pelas tentações. 
Àquele que vencer, diz, dar-lhe-ei a comer da árvore da 
vida (Ap 2,7) . 
8. 
Porém, é dada ao homem a consolação divina para que 
sej a mais forte para aguentar as adversidades . 
E segue-se a tentação, para que ele se não orgulhe do 
bem. 
O demónionão dorme, e a carne ainda não está morta : 
por isso, não cesses de preparar-te para o combate, pois que, 
à direita e à esquerda, estão inimigos que nunca descansam. 
[ 95 
X 
Da gratidão pela graça de Deus 
1 . 
Porque procuras repouso, se nasceste para o trabalho? 
Dispõe-te à paciência mais do que às consolações, e mais 
ao fardo da cruz do que à alegria. 
Que pessoa do mundo, na verdade, não receberia de boa 
vontade a consolação e a alegria espiritual, se sempre as 
pudesse obter ? As consolações espirituais ultrapassam, real­
mente, todas as delícias do mundo e todos os prazeres da 
carne. 
Pois que todas as delícias do mundo, ou são vãs, ou são 
indignas. 
Mas as espirituais são só castas e alegres, nascidas das 
virtudes e infusas por Deus nas mentes puras. 
Mas ninguém consegue gozar sempre destas consolações 
divinas a seu gosto, porque a tentação não cessa por muito 
tempo. 
2. 
A falsa liberdade de espírito e a muita confiança em si são 
grande impedimento à visita do Alto. 
Deus faz bem dando a graça da consolação; mas o homem 
age mal não retribuindo tudo a Deus com ação de graças . 
E por isso os dons da graça não podem correr em nós, 
porque somos ingratos para com o seu Autor e não atribuí­
mos tudo à primeira origem. 
96 ] 
Pois a graça é sempre devida ao que dignamente sabe dar 
graças, e tira ao soberbo o que costuma dar ao humilde. 
3. 
Não quero a consolação que me afasta o arrependimento, 
nem a contemplação que conduz ao orgulho. 
Pois nem tudo o que é elevado é santo; nem tudo o que é 
doce, bom; nem todo o desejo, puro; nem tudo o que é que­
rido ao homem, grato a Deus. 
Aceito de boa vontade a graça que me torne sempre mais 
humilde, e prudente, e mais pronto a renunciar a mim pró­
prio. 
Aquele que é sábio pelo dom da graça e instruído pelo 
açoite da sua privação não ousará atribuir-se qualquer bem, 
e confessar-se-á ainda mais pobre e nu. 
Dá a Deus o que é de Deus, e reserva para ti o que é teu: 
isto é, dá graças a Deus pela graça e reconhece que só o pe­
cado é teu e que apenas te é devida a j usta pena da culpa. 
4. 
Coloca-te sempre no mais baixo lugar, e ser-te-á dado o 
mais alto, pois que o mais alto se não aguenta sem o mais 
baixo. 
Os maiores santos para Deus são os que a seus próprios 
olhos são menores. 
E quanto mais gloriosos, tanto mais humildes. 
Cheios de verdade e da glória do Céu, não são ávidos de 
vanglória. 
Fundados e confirmados em Deus, de modo nenhum 
podem ser orgulhosos. 
E aqueles que atribuem tudo o que de bom receberam a 
Deus não procuram a glória uns dos outros; mas querem a 
glória que só vem de Deus, e desejam que Deus seja louvado 
[ 97 
em si e em todos os santos sobre todas as coisas, e sempre 
para isso tendem. 
5. 
Por isso sê agradecido pelas mais pequenas coisas: e serás 
digno de receber as maiores . 
Que para ti o mínimo sej a recebido como máximo, e o 
mais desprezível como um dom especial. 
Se se considera a dignidade daquele que dá, nenhuma 
dádiva parecerá pequena ou vil . 
Não é, na verdade, pequeno, o que é dado pelo imenso 
Deus. 
Assim, se te enviar sofrimentos e castigos, deverás ser 
grato; pois que é para nossa salvação que faz ou permite que 
nos suceda qualquer coisa. 
Aquele que deseja conservar a graça de Deus, sej a agra­
decido pela graça dada e paciente pela que lhe é tirada . 
Reze para que ela volte; sej a cauteloso e humilde, não vá 
perdê-la. 
98 ] 
XI 
Do pequeno número dos que amam a cruz de Jesus 
1 . 
Jesus tem agora muitos que amam o seu Reino, mas 
poucos que gostem de carregar a sua cruz. 
Tem muitos que desej am consolação, mas poucos, tri­
bulação. 
Encontra bastantes companheiros de mesa, mas poucos 
de abstinência. 
Todos desej am alegrar-se com Ele; mas poucos querem 
suportar por Ele alguma coisa . 
Muitos seguem Jesus até à fração do pão, mas poucos até 
ao beber do cálice da paixão. 
Muitos veneram os seus milagres, mas poucos seguem a 
ignomínia da cruz. 
Muitos amam a Jesus, enquanto as adversidades não os 
tocam. 
Muitos o louvam e bendizem, enquanto dele recebem 
quaisquer consolações. 
Mas se Jesus se esconder e os abandonar um pouco, caem 
nos queixumes ou em grande abatimento. 
2. 
Aqueles, porém, que amam Jesus por Jesus, e não por si 
próprios, bendizem-no em toda a tribulação e angústia , tal 
como na maior consolação. 
E ainda que Ele nunca lhes quisesse dar consolação, 
louvá-lo-iam sempre e sempre lhe quereriam dar graças . 
[ 99 
Oh, quanto pode o puro amor a Jesus, não misturado a 
nenhuma comodidade pessoal ou amor-próprio ! 
Não são, na verdade, mercenários os que procuram 
sempre consolações ? 
Não provam gostar mais de si próprios que de Cristo 
aqueles que pensam sempre nos seus interesses e lucros ? 
Onde se encontrará quem queira servir a Deus sem re­
compensa ? 
3. 
Raramente se encontra alguém tão só do espírito que 
estej a despoj ado de tudo. 
Quem encontrará o verdadeiro pobre em espírito, nu de 
toda a criatura ? 
Longe e nos confins do mundo se achará o seu valor (Pr 
3 1 , 1 0 ) . 
Se o homem desse toda a sua riqueza (Ct 8 ,7) , isso ainda 
nada seria; e se fizesse grande penitência, seria pouco; e se 
apreendesse toda a ciência, ainda estaria longe; e se pos­
suísse grande virtude e ardente devoção, muito lhe faltaria 
ainda: qualquer coisa que, mais que tudo, lhe é necessária. 
O quê, então? 
Que, deixadas todas as coisas, se deixe a s i próprio e de s i 
próprio saia totalmente, e que nada retenha do amor de si. 
E que, depois de ter feito tudo o que saiba dever fazer, 
sinta que nada fez; que não julgue grande aquilo que possa 
ser j ulgado grande; mas que se confesse servidor inútil, 
segundo a palavra da Verdade: quando tiverdes feito tudo o 
que vos foi mandado, dizei: somos servos inúteis (Lc 1 7, 1 0 ) . 
S ó então poderá ser verdadeiramente despido e pobre em 
espírito, e dizer com o profeta: porque estou sozinho e pobre 
( Sl 25 [24] , 1 6 ) . 
Contudo, ninguém é mais rico, mais poderoso e mais 
livre do que aquele que sabe abandonar-se a si próprio e a 
tudo, e colocar-se no último lugar. 
1 00 ] 
XII 
Do régio caminho da santa Cruz 
1 . 
A muitos parece dura esta palavra : renega-te a ti próprio, 
toma a tua cruz e segue jesus (Lc 9,23 ) . 
Mas muito mais duro será ouvir aquela última palavra : 
afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno (Mt 25,4 1 ) . 
Assim, aqueles que d e boa vontade ouvem e seguem a 
palavra da cruz não temerão ouvir a condenação eterna. 
Estará no céu este sinal da cruz, quando Deus vier para 
julgar (Mt 24,30 ) . 
Então, todos o s servidores d a Cruz, que s e conformaram 
em vida com o crucificado, se aproximarão de Cristo Juiz, 
com grande confiança. 
2. 
Porque temes, pois, levar a cruz pela qual se vai ao Reino? 
Na cruz está a salvação, na cruz, a vida, na cruz, a prote-
ção dos inimigos; da cruz se derrama toda a suavidade do 
Alto, na cruz, a força do espírito, na cruz, a alegria da alma, 
na cruz, a suprema virtude, na cruz, a perfeição da santidade. 
Não há salvação da alma nem esperança de vida eterna 
senão na cruz. 
Pega, pois, na tua cruz e segue-o : caminharás para a vida 
eterna. 
Ele te precedeu, carregando às costas a cruz, e na cruz 
morreu por ti: para que também tu leves a tua e nela queiras 
morrer. 
[ 1 01 
Porque, se morreres com Ele, também com Ele viverás 
(Rm 6,8 ) . 
E s e fores seu companheiro n o sofrimento, também o 
serás na glória. 
3. 
Eis que tudo consiste na Cruz e tudo repousa na morte; e 
não há outro caminho para a vida e para a verdadeira paz 
interior, senão o da santa Cruz e da mortificação de todos os 
dias. 
Anda por onde quiseres, procura o que desejares, e não 
encontrarás mais elevado caminho no alto, nem mais seguro 
cá em baixo, do que o caminho da santa Cruz. 
Dispõe e ordena tudo segundo o que queres ou vês: e não 
encontrarás nada onde não haj a que sofrer, voluntária ou 
necessariamente, e assim sempre encontrarás a cruz. 
Ousofrerás dores no corpo, ou aguentarás tribulação na 
alma. 
4. 
Umas vezes serás abandonado por Deus, outras serás afli­
gido pelo próximo, e, o que ainda é mais, muitas vezes pesa­
rás a ti mesmo; contudo, não poderás ser libertado ou ali­
viado com qualquer remédio ou consolação, mas, até que 
Deus o queira, terás de aguentar. 
Deus quer que aprendas a suportar o sofrimento sem 
consolação e que te submetas a Ele totalmente e te tornes 
mais humilde pela tribulação. 
Na verdade, ninguém sente de todo o coração a paixão 
de Cristo como aquele que sofreu algo de semelhante . 
A cruz está, portanto, sempre preparada e espera-te por 
toda a parte. 
Não podes fugir, para onde quer que corras; pois que, 
1 02 ] 
para onde quer que vás, levas-te contigo e sempre te hás de 
encontrar. 
Olha para cima, para baixo, para fora ou para dentro de 
ti, e em tudo isto encontrarás a cruz; e é necessário que por 
toda a parte tenhas paciência, se queres possuir a paz inte­
rior e merecer a coroa imortal. 
5. 
Se levas a cruz de boa vontade, ela te levará e conduzirá 
ao fim desej ado, onde será o fim do sofrimento; mas não 
será neste mundo. 
Se a levas de má vontade, fazes dela um fardo e te pesará; 
e, contudo, terás de a suportar. 
Se foges a uma cruz, encontrarás sem dúvida outra, e 
talvez ainda mais pesada . 
6. 
Julgas fugir àquilo de que nenhum dos mortais se pôde 
livrar ? 
Qual dos santos viveu neste mundo sem cruz e sem tribu­
lação ? 
Nem mesmo Jesus Cristo, Nosso Senhor, passou uma só 
hora sem a dor da paixão, enquanto viveu. 
Era necessário, diz, que Cristo sofresse e ressuscitasse 
dos mortos (Lc 24,46 ) , e que assim entrasse na sua glória 
( ibid. , 26 ) . 
E como procuras tu outro, além desse régio caminho que 
é o da santa Cruz ? 
7. 
Toda a vida de Cristo foi cruz e martírio : e tu procuras 
para ti descanso e alegria ? 
Erras, erras se procuras outra coisa além de sofrer tribu-
[ 1 03 
lações; porque toda esta vida mortal está cheia de misérias e 
rodeada de cruzes . 
E quanto mais alto em espírito alguém caminhar, tanto 
mais pesadas cruzes encontrará, porque a dor do seu exílio 
crescerá com o amor. 
8. 
Contudo, este que assim é afligido de tanta maneira, não 
está sem o alívio da consolação, porque sente crescer em si o 
maior fruto pelo sofrimento da sua cruz. 
Assim, enquanto a ela se submete de livre vontade, todo o 
peso da tribulação se converte em confiança de consolação 
divina . 
E quanto mais a carne é humilhada pelo sofrimento, 
tanto mais o espírito se fortalece pela graça interior. 
E às vezes é de tal modo confortado pelo desejo da tribu­
lação e da adversidade, pelo amor de conformidade à cruz 
de Cristo, que não quer viver sem dor e sem tribulação; 
porque se julga tanto mais agradável a Deus, quanto mais e 
mais duras coisas puder suportar por Ele. 
Isto não é virtude do homem, mas graça de Cristo, que 
pode tais coisas e age na frágil carne de tal modo que tudo 
aquilo a que ela naturalmente sempre foge e aborrece é 
empreendido e amado por este fervor do espírito . 
9 . 
Não é próprio d o homem levar a cruz, amar a cruz, cas­
tigar o corpo e submeter-se à servidão, fugir das honras, 
suportar de bom ânimo as injúrias, desprezar-se a si próprio 
e querer ser desprezado, sofrer adversidades e perdas e nada 
de próspero desejar neste mundo. 
Se olhas só para ti, nada de tudo isto conseguirás . 
1 04 ] 
Mas se confias no Senhor, ser-te-á dada a força do Céu, e 
ao teu mando se submeterão o mundo e a carne. 
E nem temerás o inimigo, se estiveres armado de fé e mar­
cado com a Cruz de Cristo . 
1 0 . 
Decide-te, pois, como servo bom e fiel de Cristo, a levar 
com coragem a Cruz do teu Senhor, por teu amor cruci­
ficado. 
Prepara-te para teres de suportar muitas adversidades e 
transtornos vários nesta vida miserável; pois isso haverá 
para ti, onde quer que estej as, e isso encontrarás, onde quer 
que te escondas. 
Assim tem de ser: e não há outro remédio para fugir da 
tribulação dos sofrimentos e da dor, do que suportares-te a ti 
mesmo. 
Bebe amorosamente o cálice do Senhor, se queres ser seu 
amigo e ter com Ele parte. 
Entrega a Deus as consolações : que Ele faça com elas o 
que melhor lhe aprouver. 
E tu, dispõe-te a suportar os sofrimentos e olha-os como 
as maiores consolações : porque os sofrimentos do tempo 
presente não são comparáveis com a glória futura ( Rm 
8 , 1 8 ) , e não a merecerias, ainda que sozinho os pudesses 
suportar a todos . 
1 1 . 
Quando chegares àquele ponto em que a tribulação te 
pareça doce e te agrade por Cristo, então julga-te feliz, pois 
encontraste o paraíso na Terra . 
Enquanto sofrer te é duro e procuras fugir, não esta­
rás em paz e a tribulação seguir-te-á para onde quer que 
fujas. 
[ 1 05 
1 2 . 
Se te esforçares por ser aquilo que deves, ou sej a , por 
sofrer e por morrer, logo tudo melhorará e encontrarás a 
paz. 
Ainda que sej as arrebatado ao terceiro céu, como São 
Paulo, não estás livre de sofrer qualquer contrariedade. 
Eu, diz Jesus, lhe mostrarei o que importa que ele sofra 
pelo meu nome (At 9, 1 6 ) . 
Resta-te, portanto, sofrer, se queres amar Jesus e servi-lo 
continuamente . 
1 3 . 
Oxalá foras digno de sofrer qualquer coisa pelo nome de 
Jesus ! Que grande glória te caberia ! Quanta alegria em 
todos os santos de Deus ! Quanta edificação para o próximo ! 
Na verdade, todos recomendam paciência , embora 
poucos queiram sofrer. 
Com razão deverias sofrer a legremente um pouco 
por Cristo, quando muitos sofrem coisas mais duras pelo 
mundo. 
1 4. 
Tem como certo que te é necessário levar vida semelhante 
a uma morte e que, quanto mais alguém morre para si, tanto 
mais começa a viver para Deus . 
Ninguém está apto a compreender as coisas do Céu, 
senão resignando-se, por Cristo, a carregar as adversidades . 
Nada mais aceitável a Deus, nada mais salutar neste 
mundo, do que sofrer de bom ânimo por Cristo. 
E se tivesses de escolher, deverias preferir sofrer as adver­
sidades por Cristo a alegrar-te com muitas consolações : 
porque serias mais semelhante a Cristo e mais conforme a 
todos os santos. 
1 06 ] 
Na verdade, o nosso merecimento e o adiantamento do 
nosso estado não residem nas muitas doçuras e consolações; 
mas mais no suportar de grandes dores e sofrimentos . 
1 5. 
Se alguma coisa fosse melhor e mais útil à salvação dos 
homens do que sofrer, Cristo tê-lo-ia mostrado pela sua 
palavra e pelo seu exemplo. 
Mas Ele exorta todos os discípulos que o seguem e todos 
os que o desejam seguir a levar a cruz, e diz: se alguém quer 
vir após mim, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga­
-me (Mt 1 6,24 ) . 
Portanto, lidas e estudadas todas as coisas, sej a esta a 
conclusão final: que por muitas tribulações nos é necessário 
entrar no Reino de Deus (At 14, 22 ) . 
[ 1 07 
LIVRO TERCEIRO 
Da consolação interior 
1 
Da conversação interior de Cristo com a alma fiel 
1 . 
Ouvirei aquilo que o Senhor Deus diz em mim ( S l 85 
[ 84] ,9 ) . 
Feliz a alma que ouve o Senhor falar em s i e recebe da 
sua boca a palavra de consolação. 
Felizes os ouvidos que acolhem o sopro divino e não 
atendem aos murmúrios do mundo. 
Felizes, sem dúvida, os ouvidos que não escutam a voz 
que soa fora, mas sim a verdade que ensina por dentro. 
Felizes os olhos que, fechados para as coisas exteriores, 
estão atentos às interiores. 
Felizes os que penetram as coisas escondidas e que pro­
curam todos os dias preparar-se cada vez mais para perceber 
os mistérios do Céu. 
Felizes os que se alegram por se ocuparem de Deus e se 
libertam de todo o embaraço do mundo. 
Considera isto, ó minha alma, e fecha as portas dos teus 
sentidos , para que possas ouvir aquilo que em ti diz o 
Senhor teu Deus. 
2 . 
Isto diz o teu Amado: sou a tua salvação, a tua paz e a 
tua vida . 
Conserva-te junto de mim: e acharás a paz. 
Abandona tudo o que passa e procura o que é eterno. 
[ 1 1 1 
Que são todas as coisas temporais alémde seduções ? 
E que ajudam todas as criaturas, se o Criador te aban­
donar ? 
Largadas todas as coisas, torna-te agradável e fiel ao teu 
Criador, para que consigas alcançar a verdadeira felicidade. 
1 1 2 ] 
II 
Que a verdade fala dentro de nós sem ruído de palavras 
1 . 
Fala, Senhor, porque o teu servo escuta ( 1 Sm 3 , 1 0 ) . 
Eu s o u o teu servidor: dá-me inteligência, para que 
conheça os teus testemunhos ( Sl 1 1 9 [ 1 1 8 ] , 1 25 ) . 
Inclina o meu coração às palavras da tua boca ( ibid. , 36 ) ; 
que elas se derramem como o orvalho (Dt 32,2 ) . 
Diziam outrora o s filhos d e Israel a Moisés: fala-nos tu, e 
ouviremos; mas que nos não fale o Senhor, não aconteça que 
morramos (Ex 20, 1 9 ) . 
Não é assim, Senhor, n ã o é assim que peço : mas rogo 
antes como o profeta Samuel, humildemente, desejosamente: 
fala, Senhor, porque o teu servo escuta ( 1 Sm 3 , 1 0 ) . 
Que não me fale Moisés nem qualquer dos profetas: mas 
fala-me Tu, Senhor Deus, inspirador e luz de todos os profe­
tas, porque só Tu, sem eles, me podes penetrar completa­
mente; mas eles, sem ti, nada conseguem. 
2 . 
Podem dizer palavras, mas não conferem espírito . 
Podem dizê-las bem, mas, se te calas, não ateiam o coração. 
Expõem as letras, mas Tu descobres-lhes o sentido. 
Publicam os mistérios, mas Tu explicas a ideia dos que os 
selaram. 
Ordenam os preceitos, mas Tu ajudas a que se cumpram. 
Mostram o caminho, mas Tu amparas a marcha . 
[ 1 1 3 
Eles agem por fora, mas Tu ensinas e iluminas os corações . 
Eles regam à superfície, mas Tu dás a fecundidade. 
Eles clamam com palavras, mas Tu dás inteligência ao 
ouvido. 
3 . 
Portanto, que me não fale Moisés, mas Tu, Senhor meu 
Deus, Verdade eterna: não vá morrer sem dar fruto, ensi­
nado por fora, mas não ateado por dentro; para que não seja 
j ulgado pela palavra ouvida e não cumprida, conhecida e 
não amada, crida e não observada . 
Portanto, fala, Senhor, porque o teu servo escuta ( 1 Sm 
3 , 1 0 ) : pois tens palavras de vida eterna (Jo 6 ,6 8 ) . 
Fala-me para consolação d a minha alma e para a emenda 
de toda a minha vida; e para teu louvor, glória e eterna 
honra. 
1 1 4 ] 
III 
Que as palavras de Deus devem ser ouvidas com humildade, 
e que muitos as não pesam 
1 . 
CRISTO - Ouve, filho, as minhas palavras, palavras tão 
doces que excedem toda a sabedoria dos filósofos e sábios 
deste mundo. 
As minhas palavras são espírito e vida (Jo 6,63 ), e não 
devem ser pensadas segundo o sentido humano. 
Não se deve tirar delas uma vã complacência; mas devem 
ser escutadas em silêncio e recebidas com toda a humildade 
e com um grande amor. 
DISCÍPULO - E eu disse: feliz aquele a quem Tu ensinas, 
Senhor, e a quem instruis com a tua lei, para o poupares de 
dias maus (Sl 94 [93 ] , 12- 1 3 ) e não ser abandonado na Terra . 
2. 
CRISTO - Eu, diz o Senhor, ensinei os profetas desde o 
início e até agora não cesso de falar a todos; mas muitos são 
surdos e duros à minha Palavra . 
A maior parte ouve de melhor vontade o mundo do que 
Deus, segue mais facilmente o desejo da sua carne do que a 
vontade de Deus. 
O mundo promete coisas pequenas e que passam, e ser­
vem-no com grande ardor; Eu prometo coisas imensas e eter­
nas, e os corações dos homens entorpecem. 
[ 1 1 5 
Quem me serve e obedece em tudo com tanto cuidado 
como serve o mundo e os seus senhores ? 
Cora, Sídon, diz o mar (Is 23,4 ) . 
E se queres saber a razão, ouve-a. 
3 . 
Para conseguir coisas pequenas, percorre-se longo cami­
nho; para a vida eterna, muitos mal erguem um pé do chão. 
Procura-se um ganho vil : por uma só moeda discute-se 
vergonhosamente muito tempo, por uma coisa vã e uma pe­
quena promessa não se teme a fadiga de dia e de noite, mas, 
oh ! vergonha, pelo bem insubstituível , pelo prémio sem 
preço, pela maior honra e pela glória sem fim tem-se pre­
guiça de tentar o mínimo esforço. 
Por isso, cora, servo indolente e queixoso, porque há pes­
soas mais prontas para a sua perda do que tu para a vida. 
Esses se alegram mais pela vaidade do que tu pela 
verdade. 
Contudo, muitas vezes são enganados na sua esperança; 
mas a minha promessa não falta a ninguém, nem deixa de 
mãos vazias o que confia em mim. 
Darei aquilo que prometi, cumprirei o que disse: mas só 
para quem permanecer fiel ao meu amor até ao fim. 
Eu sou o remunerador de todos os bens, aquele que expe­
rimenta todos os fiéis. 
4. 
Grava as minhas palavras no teu coração e considera-as 
diligentemente: serão, na verdade, bem necessárias na hora 
da tentação. 
O que não compreendes, quando lês, conhecê-lo-ás no 
dia da minha visita . 
1 1 6 ] 
Costumo visitar os meus escolhidos de duas formas: na 
tentação e na consolação. 
E dou-lhes todos os dias duas lições: uma, repreendendo 
os seus vícios; outra, exortando-os a crescerem em virtudes. 
O que possui a minha palavra e a despreza, terá quem o 
julgue no último dia (]o 12,47-4 8 ) . 
5. 
Oração para implorar a graça da devoção. 
DISCÍPULO - Senhor, meu Deus, Tu és todo o meu bem. 
Deus, Tu és todo o meu bem. 
E quem sou eu para que ouse falar-te ? 
Sou o mais pobre dos teus servos, e um abjeto verme da 
terra, muito mais pobre e desprezível do que me sei ou ouso 
dizer. 
Contudo, lembra-te, meu Deus, de que nada sou, nada 
tenho e nada posso. 
Só Tu és bom, justo e santo; só Tu podes tudo, tudo dás e 
tudo cumpres, e só o pecador deixas vazio. 
Lembra-te das tuas misericórdias ( Sl 25 [24] ,6 ) e enche o 
meu coração com a tua graça, Tu que não queres que as tuas 
obras sejam ocas . 
Como me poderei aguentar nesta pobre vida, se me não 
confortares com a tua misericórdia e a tua graça ? 
Não afastes de mim a tua face (Sl 27[26] ,9 ) , não adies a 
tua visita, não afastes a tua consolação : para que se não 
torne a minha alma como a terra sem água ( Sl 1 43 [142] ,6 ) . 
Senhor, ensina-me a fazer a tua vontade ( ibid. , 10 ) , en­
sina-me a manter-me diante de ti de modo digno e humilde: 
porque Tu és a minha sabedoria, Tu me conheces verdadei­
ramente e sempre me conheceste, antes que o mundo exis­
tisse e que eu existisse no mundo. 
[ 1 1 7 
IV 
Que se deve viver diante de Deus na verdade e na humildade 
1 . 
CRISTO - Filho, caminha diante de mim na Verdade e 
procura-me sempre na simplicidade do teu coração. 
Aquele que caminha diante de mim na Verdade será se­
guro de quaisquer ataques, e a verdade o libertará das sedu­
ções e das calúnias dos maus. 
Se a Verdade te libertar, serás verdadeiramente livre, e 
não te interessarão as vãs palavras dos homens. 
DISCÍPULO - Senhor, é verdade. 
Como dizes, que assim se faça comigo. 
Que a tua verdade me ensine, que ela me guarde e me 
mantenha até à salvação final. 
Que ela me liberte de toda a má afeição ou desordenado 
amor: e caminharei contigo com grande liberdade de coração. 
2 . 
CRISTO - E u t e ensinarei, diz a Verdade, aquilo que é 
reto e que me agrada. 
Pensa nos teus pecados com grande desagrado e tristeza, 
e nunca te julgues grande por causa das tuas boas obras . 
Pois que, na verdade, és pecador, sujeito a muitas paixões 
e enredado nelas. 
Por ti só, sempre tendes para o nada : depressa cais , 
depressa és vencido, depressa te perturbas e desanimas. 
Não tens nada de que te possas glorificar, mas muito por 
que te deves desprezar: porque és muito mais fraco do que 
consegues perceber. 
1 1 8 ] 
3 . 
Portanto, que nada te pareça grande de tudo quanto 
fazes. Que nada te pareça grande, nada precioso e admirá­
vel, nada digno de louvor, nada elevado, nada verdadeira­
mente louvável e desejável, a não ser o que é eterno. 
Que te agrade, acima de tudo, a Verdade eterna; e que 
sempre te desagrade a tua extrema baixeza. 
Nada temas, nada censures e fujas mais que os teus vícios 
e pecados, que te devem desagradar acima de todos os danos 
do mundo. 
Há quem não caminhe diante de mim com sinceridade; 
mas, levados pela curiosidade e pelo orgulho, querem conhe­
cer os meus segredos ecompreender as coisas elevadas de 
Deus, desprezando-se a si e à sua salvação. 
Estes caem muitas vezes em grandes tentações e pecados 
pela sua soberba e curiosidade, pois que Eu me afasto deles. 
4. 
Teme os juízos de Deus, treme da ira do Omnipotente . 
Não queiras examinar as obras do Altíssimo, mas sim 
perscrutar as tuas iniquidades: em quantas coisas pecaste, 
quantos bens desprezaste . 
Muitos põem toda a sua devoção nos livros, outros nas 
imagens, outros ainda nas figuras e sinais exteriores. 
Muitos têm-me na boca, mas pouco no coração. 
Outros há que, iluminados no seu espírito e purificados 
no seu coração, desejam sempre as coisas eternas, escutam 
com pesar as deste mundo, e cuidam das necessidades da sua 
natureza de mau grado: e estes sentem que o Espírito de ver­
dade fala neles; pois que os ensina a desprezar as coisas ter­
renas e a amar as do Céu, a abandonar o mundo e a desejar 
o Céu dia e noite . 
[ 1 1 9 
V 
Do admirável efeito do amor divino 
1 . 
DISCÍPULO - Eu te bendigo, Pai do Céu, Pai do meu 
Senhor Jesus Cristo: porque te dignaste lembrar de mim, que 
sou pobre. 
Pai das misericórdias, Deus de toda a consolação (2Cor 
1 ,3 ) , eu te dou graças, porque por vezes me alegras com 
a tua consolação, a mim, que sou indigno de toda a con­
solação. 
Eu te bendigo sempre e te glorifico, com o teu Filho uni­
génito e o Espírito Santo Paráclito, pelos séculos dos séculos. 
Oh, Senhor meu Deus, meu santo amor, quando vieres ao 
meu coração, todo o meu ser exultará. 
Tu és a minha glória ( Sl 3 ,4 ) e a alegria do meu coração 
( Sl 1 1 9 [ 1 1 8] , 1 1 1 ) . 
Tu és a minha esperança e o meu refúgio no dia da minha 
tribulação (Sl 59 [5 8 ] , 1 7) . 
2. 
Mas, porque ainda sou fraco no amor e imperfeito na vir­
tude, preciso de ser confortado e consolado por ti. 
Assim, visita-me mais vezes e instrui-me com santas disci­
plinas, liberta-me das más paixões e cura o meu coração de 
todas as afeições desregradas; para que, curado interior­
mente e purificado, me tome apto para amar, forte para 
sofrer, seguro para perseverar. 
1 20 ] 
3 . 
Grande coisa é o amor, bem acima de todos os outros 
bens, que só por si torna leve tudo o que é pesado e suporta 
com igualdade toda a desigualdade. 
Carrega o peso sem peso e torna tudo o que é amargo em 
doce e saboroso. 
O nobre amor de Jesus impele para as grandes obras e 
excita para os desejos sempre mais perfeitos . 
O amor quer estar no alto e não ser retido por quaisquer 
coisas inferiores. 
O amor quer ser livre e alheio a toda a afeição humana : 
para que não seja impedido o seu olhar interior, nem sej a 
sustido por quaisquer embaraços do mundo ou derrotado 
pelas dificuldades. 
Nada é mais doce que o amor, nada mais forte, mais ele­
vado, mais amplo, mais alegre, mais pleno e melhor no Céu 
e na Terra : porque o amor nasceu de Deus e não pode, a não 
ser em Deus, repousar sobre todas as criaturas. 
4. 
Aquele que ama, voa, corre e alegra-se, é livre e não está 
preso. 
Dá tudo por tudo e tem tudo em tudo: porque repousa na 
coisa que é elevada entre todas, da qual se derrama e pro­
cede o bem. 
Não olha ao que é dado, mas, acima de todo o bem, olha 
aquele que dá. 
O amor não conhece medida, mas, fervendo, ultrapassa 
toda a medida. 
O amor sente a carga, não calcula os esforços, tenta mais 
do que pode, não se prende com as dificuldades: porque 
tudo lhe parece possível e permitido. 
[ 1 21 
E, por isso, pode tudo e empreende muitas coisas, conse­
gue onde o que não ama perde as forças e sucumbe. 
5. 
O amor vigia e, dormindo, não adormece, fatigado, não 
se cansa, apertado, não se prende, atemorizado, não se per­
turba: mas, tal como a chama viva e o facho ardente, rompe 
para o alto e tudo atravessa com segurança. 
Se alguém ama, conhece este grito . 
Grande é o clamor aos ouvidos de Deus da alma que, 
abrasada de amor, diz: ó meu Deus e meu amor ! És todo 
meu e eu todo teu ! 
6. 
Dilata-me no amor, para que a boca do meu coração 
prove como é doce amar, e fundir-se, e perder-se no amor. 
Que o amor me prenda, me erga acima de mim próprio 
pelo assombro da sua força . Que eu cante um cântico de 
amor, que eu te siga, ó meu Amado, nas alturas; que a minha 
alma, ao louvar-te, desfaleça, rejubilando de amor. 
Que te ame mais que a mim próprio, e só a mim por ti, e 
em ti a todos os que verdadeiramente te amam, como manda 
a lei de amor que de ti brilha. 
7. 
O amor é rápido, sincero, piedoso, alegre e ameno, forte, 
paciente, fiel, prudente, constante, corajoso, e nunca se pro­
cura a si próprio. 
Pois quando alguém se procura a si próprio, decai no 
amor. 
O amor é discreto, humilde e reto; não procura as coisas 
brandas, ligeiras e vãs; é sóbrio, puro, estável, tranquilo e 
pronto a guardar todos os sentidos. 
1 22 ] 
O amor é submisso e obediente aos superiores, para si vil 
e desprezível, mas dedicado a Deus e agradecido, confiante e 
sempre nele esperando, mesmo quando não o sente; porque 
não se vive no amor sem sofrimento. 
8. 
Quem não está preparado para sofrer tudo e para se 
abandonar à vontade do seu Amado, não é digno de ser cha­
mado amigo. 
É preciso que aquele que ama abrace de boa vontade, 
pelo seu amor, tudo o que é duro e amargo, e que nem a 
adversidade o possa separar dele. 
[ 1 23 
VI 
Da prova do verdadeiro amigo 
1 . 
CRISTO - Filho, não és ainda um amigo firme e prudente. 
DISCÍPULO - Porquê, Senhor ? 
CRISTO - Porque, por qualquer pequena contrariedade, 
desistes do que começaste e procuras consolação com avidez. 
O amigo firme aguenta-se nas tentações e não crê nas 
doces persuasões do inimigo, 
Tal como lhe agrado nos dias bons, também lhe não desa­
grado nos maus. 
2. 
O de amor prudente não se importa tanto com o dom 
como com o amor do que dá. 
A afeição comove-o mais do que o tributo, e põe todas as 
dádivas abaixo do Amado. 
O que ama com nobreza não fica na dádiva, mas em 
mim, acima de toda a dádiva. 
Mas nem tudo está perdido se, às vezes, me tens menos 
amor, a mim ou aos meus santos, do que quererias. 
Aquele bom e doce afeto que às vezes sentes é o efeito da 
presença da graça e como que um antegosto da pátria do Céu. 
Não te deves apoiar muito nele, porque vai e vem. 
Mas combater os movimentos desordenados do espírito e 
desprezar as solicitações do demónio é sinal de virtude e de 
grande mérito . 
1 24 ] 
3 . 
Que não te perturbem, pois, estranhas fantasias de qual­
quer espécie que sej am. 
Mantém um firme propósito e uma reta intenção para 
com Deus . 
Não é ilusão se, de vez em quando, és subitamente arre­
batado em êxtase e voltas de repente às habituais loucuras 
do coração. 
Na verdade, és mais objeto delas que sujeito, e enquanto 
te desagradam e lhes resistes tens mérito, e não perdição. 
4. 
Sabe que o velho inimigo se esforça unicamente por im­
pedir o teu desejo do bem e por te afastar de qualquer exer­
cício piedoso: do culto dos santos, da piedosa lembrança da 
minha paixão, da útil recordação dos teus pecados, da 
guarda do teu próprio coração e do firme propósito de avan­
çar na virtude. 
Introduz-te muitos pensamentos maus para te causar 
tédio e horror, para te afastar da oração e da leitura sagrada. 
Desagrada-lhe a confissão humilde; e, se o conseguisse, 
afastar-te-ia até da comunhão. 
Não o creias nem lhe dês ouvidos, ainda que muitas vezes 
te estenda laços enganadores. 
Atribui-lhe todos os maus e impuros pensamentos. 
Diz-lhe: vai-te, espírito imundo, cora, miserável; és real­
mente imundo para que tais coisas digas aos meus ouvidos. 
Afasta-te de mim, terrível sedutor: não terás em mim 
parte alguma; mas Jesus estará comigo, como um guerreiro 
forte, e tu serás confundido. 
Antes morrer e suportar todo o sofrimento, do que con­
sentir em ti . 
[ 125 
Cala-te e emudece : não mais te ouvirei , ainda que me 
importunes . 
O Senhor é a minha luz e a minha salvação: a quem 
temerei? 
Se os exércitos se formarem contra mim, não temerá o 
meu coração( Sl 27[26] , 1 -3 ) . 
O Senhor é o meu auxílio e o meu redentor (Sl 1 9 [ 1 8] , 15 ) . 
5. 
Combate como um bom soldado: e se alguma vez caíres, 
por tua fraqueza, j unta todas as tuas forças e confia ainda 
mais na minha graça, e teme a vã complacência e a soberba. 
Por isso muitos são levados ao erro e caem por vezes 
numa cegueira quase incurável . 
Que esta ruína dos soberbos que loucamente presumem 
de si te seja causa de cuidado e de permanente humildade. 
126 ] 
VII 
De como se deve ocultar a graça à guarda da humildade 
1 . 
CRISTO - Filho, é-te mais útil e mais seguro esconderes a 
graça da devoção, não te elevares, não falares muito nisso e 
não a considerares demasiado, mas antes desprezares-te 
ainda mais, e temeres um dom de que és indigno. 
Não nos devemos apegar fortemente a esta afeição, que 
bem depressa se pode transformar noutra contrária. 
Pensa, quando estiveres em graça, como és infeliz e fraco 
sem ela . 
O progresso da vida espiritual não está tanto em sentires 
a consolação da graça, mas em sofreres humilde, abnegada e 
pacientemente a sua ausência : para que não ponhas de lado 
o esforço da oração, nem te dissipes, abandonando os traba­
lhos que tens habitualmente de fazer; mas, como melhor 
puderes e compreenderes , faz de boa vontade tudo o que 
conseguires, e não te descures inteiramente por causa da 
aridez ou da ansiedade de espírito que sentes. 
2 . 
Há, n a verdade, muitos que, quando a s coisas lhes não 
correm bem, logo se tornam impacientes e preguiçosos. 
Porém, nem sempre o caminho do homem está no seu 
poder (Jr 1 0,23 ) , mas a Deus pertence dar e consolar, quan­
do quer, quanto quer e a quem quer, tal como lhe agrada, e 
nada mais. 
[ 1 27 
Alguns imprudentes se perderam pela própria graça da 
devoção: pois que quiseram fazer mais do que puderam, não 
atentos à sua pequenez, mas seguindo mais o seu desejo do 
que o juízo da razão. 
E porque aspiraram mais do que aquilo que a Deus agra­
dou, por isso mesmo depressa perderam a graça. 
Tornaram-se fracos e pobres abandonados, que fizeram o 
seu ninho no céu; para que, humilhados e empobrecidos, 
aprendam a não querer voar pelas suas próprias asas, mas a 
pôr a sua esperança ao abrigo das minhas. 
Aqueles que ainda são novos e inexperientes no caminho 
do Senhor, e se não regulam pelo conselho dos prudentes, 
facilmente podem ser enganados e quebrados . 
3 . 
Pois que, s e querem seguir mais a sua opinião d o que 
acreditar nos que têm mais experiência, o resultado ser-lhes­
-á perigoso, se não quiserem abdicar do seu próprio pen­
samento . 
Raramente os que são sábios aos seus próprios olhos se 
deixam conduzir humildemente pelos outros . É melhor saber 
pouco com humildade e pequena inteligência, do que pos­
suir os grandes tesouros das ciências e deleitar-se consigo. 
É melhor para ti teres pouco, do que muito de que te 
possas orgulhar. 
Não age com muito acerto aquele que se entrega todo à 
alegria, esquecendo-se da sua antiga fraqueza e do puro 
temor de Deus que receia perder a graça concedida. 
E também não é muito virtuoso o que desespera no 
tempo da adversidade e do sofrimento, e não tem em mim a 
confiança que deveria ter. 
128 ] 
4. 
Aquele que quer estar bem seguro em tempo de paz, en­
contra-se, muitas vezes, em tempo de guerra bem abatido e 
cobarde. 
Se soubesses manter-te humilde e modesto, moderar e 
governar bem o teu espírito, não cairias tão depressa no 
perigo e no pecado. 
É um bom princípio que, enquanto sentes fervor de espí­
rito, medites no que acontecerá quando a luz se esconder. 
Assim, quando ela se for, pensa que a luz pode voltar de 
novo e que só ta tirei durante um tempo para minha glória e 
para tua prudência. 
5. 
Às vezes é mais útil tal provação do que se tudo corresse 
à tua vontade. 
Pois que os méritos não devem ser avaliados por quem 
tenha maior número de visões ou de consolações, ou por 
quem seja perito nas Escrituras, ou colocado em mais ele­
vada posição, mas sim em quem for firmado na verdadeira 
humildade e cheio de caridade divina, se procurar sempre 
com pureza e lealdade honrar a Deus, se se tiver a si próprio 
como nada e se em verdade se desprezar, alegando-se em ser 
desprezado e humilhado pelos outros, mais do que em ser 
honrado. 
[ 1 29 
VIII 
Da pouca estima de si na presença de Deus 
1 . 
DISCÍPULO - Falarei ao meu Senhor, embora não seja 
mais que pó e cinza (Gn 1 8 ,27) . 
Se me julgar alguma coisa mais, e is que te ergues contra 
mim e que as minhas iniquidades dão um testemunho verda­
deiro que não posso contradizer. 
Se, porém, me tiver por nada e a nada me reduzir, se me 
despoj ar de toda a estima por mim próprio e, tal como sou, 
me reduzir a pó, será em mim propícia a tua graça e a tua 
luz próxima ao meu coração; então toda a estima por mim 
próprio, por mais pequena que sej a, submergirá no abismo 
do meu nada e desaparecerá para sempre. 
Aí me mostras o que sou, o que fui e donde vim: porque 
não sou nada, e não o sabia . 
Se me abandono a mim próprio, eis que nada sou, senão 
fraqueza. 
Mas se, de súbito, me olhares, logo me tornarei forte e 
encherei de nova alegria. 
E enche-me de espanto ser de repente por ti assim elevado 
e abraçado, eu, que sempre sou arrastado pelo meu próprio 
peso para os lugares mais baixos. 
2 . 
É o teu amor que faz isto, que gratuitamente m e acode e 
me ajuda em tantas necessidades, que me guarda de grandes 
perigos e que me arranca, na verdade, a inumeráveis males . 
1 30 ] 
Pois que, amando-me mal, me perdi; procurando-te a ti 
somente e amando-te, te encontrei e me encontrei, e, por esse 
amor, mais profundamente me reduzi ao nada que sou. 
Porque Tu, ó doce Senhor, me fazes bem mais do que eu 
mereço, e mais do que eu ousaria esperar ou pedir. 
3 . 
Bendito sejas, meu Deus, porque, embora sej a indigno de 
todos os bens, a tua nobreza e infinita bondade nunca 
cessam de fazer bem aos ingratos e aos que se afastaram 
para longe de ti . 
Conduz-nos para ti, para que sejamos agradecidos, hu­
mildes e piedosos : porque Tu és a nossa salvação, nossa vir­
tude e fortaleza . 
[ 1 3 1 
1. 
IX 
Que se devem atribuir a Deus, 
como fim último, todas as coisas 
CRISTO - Filho, Eu devo ser o teu fim supremo e último, 
se verdadeiramente desejas ser feliz. 
Nesta intenção se purificará o teu afeto, mais frequente­
mente inclinado para si próprio e para as criaturas . 
Na verdade, se te procuras em qualquer coisa, depressa 
secas e te desencorajas. 
Atribui, pois, principalmente a mim todas as coisas, 
porque Eu sou quem tudo deu. 
Considera cada coisa como derivada do sumo bem: por 
isso é a mim, como sua origem, que tudo deve remontar. 
2 . 
D e mim, o pequeno e o grande, o pobre e o rico, como da 
fonte viva, tiram a água viva : e os que livre e voluntaria­
mente me servem recebem graça por graça. 
Mas o que quiser ser glorificado sem mim, ou deleitar-se 
em qualquer bem pessoal, não será firmado na verdadeira 
alegria , nem dilatado em seu coração, mas por muitas 
formas será embaraçado e apertado. 
Portanto, não deves referir a ti próprio nada de bom, nem 
atribuas a nenhum homem a sua virtude; mas tudo dá a 
Deus, sem o qual o homem nada tem. 
1 32 ] 
Eu dei tudo: quero, pois, tudo reaver, e exijo com grande 
rigor ações de graças . 
3 . 
É esta a verdade, pela qual é dissipada a vaidade da 
glória. 
Se a graça do Céu e a verdadeira caridade estiverem pre­
sentes, não haverá lugar para qualquer inveja ou estreiteza 
de coração, e o amor-próprio não existirá . 
A caridade divina vence tudo e dilata todas as forças da 
alma. 
Se és reto, só em mim te alegrarás, só em mim esperarás: 
pois não há ninguém bom senão Deus (Lc 1 8 , 1 9 ) , o qual 
deve ser louvado sobre todas as coisas e em todas bendito . 
[ 1 33 
X 
Que é doce servir a Deus, desprezando o mundo 
1 . 
DISCÍPULO - Agora falarei de novo, Senhor, e não me 
calarei : direi aos ouvidos do meu Deus, do meu Senhor e 
meu Reique está nos Céus : oh, como é grande a abundância 
da tua doçura, Senhor, que escondeste para os que te temem! 
( SI 3 1 [30] ,20 ) . 
O que Tu é s para o s que te amam, para o s que te servem 
de todo o coração ! 
É, na verdade, inefável a doçura da tua contemplação, 
que aos que te amam dás. 
Mais do que em tudo o resto, me mostraste a doçura do 
teu amor por me teres criado, quando não existia, por me 
teres atraído a ti para que te servisse, quando longe de ti 
vagueava, e por me teres ordenado que te amasse . 
2. 
Ó fonte do amor eterno ! 
Que direi de ti ? 
Como te poderei esquecer, a ti, que te dignaste recordar 
de mim, enfraquecido e morto ? 
Usaste, para além de toda a esperança, de misericórdia 
para com o teu servo, e, para além de todo o merecimento, 
mostraste graça e amizade. 
Que te retribuirei por esta graça ? 
Na verdade, nem a todos é dado que, abandonadas todas 
as coisas, renunciem ao mundo e professem a vida monástica . 
1 34 ] 
Acaso é muito que eu te sirva, a ti, a quem toda a criatura 
deve servir ? 
Não deve parecer-me grande servir-te, mas muito maior e 
mais admirável me parece que te dignes receber um servidor 
tão pobre e indigno e juntá-lo aos servidores que amas. 
3 . 
Eis que é teu tudo quanto tenho e em que te posso servir. 
Contudo, ao contrário, Tu me serves mais a mim do que 
eu a ti. 
Eis que o Céu e a Terra, que criaste em serviço do 
homem, estão presentes, e todos os dias cumprem o que lhes 
mandaste . 
E ainda isto é pouco: porque até mesmo os anjos prepa­
raste em serviço dos homens. 
Ultrapassa, porém, isto tudo que Tu próprio te dignasses 
servir o homem e tivesses prometido entregar-te a ele. 
4. 
Que te darei em troca destes milhares de bens ? 
Oxalá pudesse servir-te em todos os dias da minha vida ! 
Oxalá pudesse servir-te dignamente num só dia ! 
Tu és verdadeiramente digno de todo o serviço, de toda a 
honra e de louvor eterno. 
Tu és verdadeiramente o meu Senhor, e eu o teu pobre 
servo, que te deve servir com todas as forças e nunca se 
cansar de publicar os teus louvores. 
Assim quero, assim desejo; e que te dignes, Tu, remediar 
a tudo o que me falta . 
5. 
Grande honra, grande glória é servir-te e tudo desprezar 
por ti . 
[ 1 35 
Grande graça possuirão os que, de sua livre vontade, se 
submeterem à tua santíssima servidão. 
Encontrarão a tão suave consolação do Espírito Santo 
aqueles que, por teu amor, deixarem todo o prazer da carne. 
Conseguirão grande liberdade de espírito aqueles que, 
pelo teu nome, entrarem no caminho estreito e abandona­
rem toda a preocupação humana. 
6. 
Oh, grata e alegre servidão de Deus, que verdadeiramente 
torna o homem livre e santo ! 
Oh, sagrado estado do religioso, que torna o homem 
igual aos anj os, agradável a Deus, temível aos demónios, 
louvável para todos os fiéis ! 
Oh, ocupação digna de ser abraçada e sempre preferida, 
porque merece o supremo bem e alcança a alegria que há de 
durar para sempre ! 
1 36 ] 
XI 
Que se devem examinar e moderar os desejos do coração 
1. 
CRISTO - Filho, tens ainda muito que aprender, muito 
que ainda não sabes bem. 
DISCÍPULO - O quê, Senhor ? 
CRISTO - A pôr o teu desejo inteiramente conforme ao 
que me agrada, e a não gostar tanto de ti próprio; mas, sim, 
a desejar ardentemente a minha vontade. 
Muitas vezes ardem em ti os desejos e empurram-te com 
força : mas pensa se és movido mais pela minha honra, se 
pela tua comodidade. 
Se sou Eu a causa, estarás sempre satisfeito, sej a o que for 
que Eu te ordene. 
Mas se se esconde em ti qualquer busca de ti próprio, isso 
é o que te embaraça e te pesa. 
2. 
Teme, pois, apoiar-te demasiadamente sobre qualquer 
desej o preconcebido, sem me consultares : não vás depois 
arrepender-te ou aborrecer-te do que primeiro te agradou e 
tiveste como melhor. 
Na verdade, nem toda a afeição que parece boa deve ser 
imediatamente seguida; tal como se não deve fugir logo de 
início a toda a afeição que nos repugne. 
Convém, por vezes, ser moderado, até nos bons interes­
ses e desejos, para que, por indiscrição, não incorras na dis-
[ 1 3 7 
tração do teu espírito, nem dês, por indisciplina, escândalo 
aos outros; ou, então, para que, pela oposição dos outros, 
não te perturbes nem abatas de repente 
3 . 
Convém, assim, usar de violência e contrariar coraj osa­
mente o desejo dos sentidos, não se preocupando com o que 
quer ou não quer a carne, mas procurando antes que, 
mesmo contra vontade, ela se submeta ao espírito . 
E deve ser castigada e obrigada a submeter-se à servidão 
até que estej a preparada para tudo, que aprenda a conten­
tar-se com pouco e a deleitar-se com coisas simples, e ainda 
a não murmurar por qualquer contrariedade. 
138 ] 
XII 
Da prática da paciência e da luta contra os maus desejos 
1 . 
DISCÍPULO - Senhor Deus, como vej o , a paciência 
é-me muito necessária; pois que nesta vida há muitas con­
trariedades . 
Na verdade, por mais que eu disponha as coisas para 
conseguir a paz, a minha vida não pode ser sem luta, e sem 
dor. 
2. 
CRISTO - Assim é , filho. 
Mas sou Eu que quero que tu não procures essa paz 
isenta de tentações ou de contrariedades, mas sim que só 
j ulgues ter encontrado a paz depois de teres sido experi­
mentado por várias tentações e provado em muitas con­
trariedades . 
Se disseres que não podes sofrer tanto, como suportarás 
então o fogo do Purgatório ? 
De dois males, deve escolher-se sempre o menor. 
Assim, para poderes fugir dos futuros suplícios eternos, 
procura suportar de bom ânimo, por Deus, os males presen­
tes. Acaso julgas que os homens do mundo têm pouco ou 
nada que sofrer ? 
Tal não encontrarás, nem mesmo nos que te parecerem 
especialmente protegidos. 
[ 1 39 
3 . 
Mas esses têm, dirás tu, muitos prazeres e seguem as suas 
vontades: por isso pouco lhes pesam as tribulações. 
4. 
Está bem que assim sej a : têm aquilo que querem. Mas 
quanto tempo j ulgas que isso durará ? 
Eis que os ricos deste mundo se desvanecerão como o 
fumo ( Sl 3 7[36 ] ,20 ) e não ficará qualquer lembrança das 
suas alegrias passadas. 
Mas, mesmo enquanto vivem, não repousam sem amar­
gura, sem tédio ou sem temor. 
E assim, onde imaginavam ter prazer, frequentemente 
encontram o castigo do sofrimento. 
E é j usto, visto que procuram e seguem os prazeres desor­
denadamente, que não os satisfaçam sem humilhação e 
amargura. 
Oh, como esses prazeres são breves, falsos, desregrados e 
vis ! Contudo, pela sua embriaguez e cegueira, não o com­
preendem, mas, como mudos animais, causam a morte da 
alma por um pequeno deleite duma vida que acaba. 
Por isso tu, filho, não vás atrás das tuas concupiscências e 
liberta-te da tua vontade ( Sir 1 8 ,30) . 
Deleita-te no Senhor: e Ele dar-te-á o que o teu coração 
lhe pedir ( Sl 37[36] ,4 ) . 
5. 
Mas, se realmente quiseres ser alegrado e abundante­
mente consolado por mim, eis que no desprezo de todas as 
coisas do mundo e no corte de todas as más paixões estará a 
tua bênção e a tua grande consolação. 
E quanto mais te subtraíres a qualquer consolação das 
criaturas, tanto mais suaves e fortes consolações encontrarás. 
1 40 ] 
Mas não as alcançarás, de princípio, sem alguma tristeza 
e esforço de combate. 
Se um mau hábito te resistir, com um outro melhor o 
vencerás . 
Se a carne se queixar, o fervor do espírito a dominará. 
Se a antiga serpente te instigar e te provocar, a oração a 
afastará e, além disso, entregando-te a um trabalho útil lhe 
impedirás a passagem. 
[ 1 41 
XIII 
Da obediência do humilde, a exemplo de Jesus Cristo 
1 . 
CRISTO - Filho, quem procura subtrair-se à obediência, 
logo se subtrai à graça. 
E quem quer possuir sozinho qualquer coisa, perde o que 
é comum a todos. 
O que não se submete livremente e por sua própria von­
tade ao seu superior, é porque a sua carne ainda lhe não obe­
dece perfeitamente, e recalcitra e murmura muitas vezes . 
Aprende, pois, a submeter-te prontamente ao teu supe­
rior, se pretendesdominar a tua carne. 
Pois que o inimigo exterior é vencido mais depressa se o 
homem não estiver interiormente dividido. 
Não há mais prejudicial nem pior inimigo da alma do que 
tu próprio, se não estás bem conforme ao teu espírito. 
É preciso que por todas as formas te revistas do verda­
deiro desprezo de ti mesmo, se queres prevalecer contra a 
carne e o sangue. 
É porque ainda te amas desordenadamente que tens 
medo de te resignar plenamente à vontade dos outros. 
2 . 
Mas que há d e especial e m que tu, que é s p ó e nada, por 
Deus te submetas ao homem, quando Eu, Omnipotente e 
Altíssimo, que tudo criei do nada, me submeti ao homem, 
humildemente, por ti ? 
1 42 ] 
Fiz-me o mais humilde e pequeno de todos, para que ven­
cesses o teu orgulho pela minha humildade. 
Aprende a obedecer, tu, que és pó: aprende a humilhar­
-te, terra e lodo, e a curvar-te sob os pés de todos. 
Aprende a quebrar a tua vontade e a entregar-te a toda a 
su1 e1çao. 
3 . 
Inflama-te contra ti, não deixes que em ti viva o orgulho; 
mas mostra-te humilde e pequeno para que todos possam 
caminhar sobre ti e pisar-te como à lama dos caminhos ( Sl 
1 8 [ 1 7] ,43 ) . 
D e que tens d e te queixar, homem sem nada ? 
Que tens, vil pecador, a retorquir aos que te censuram, tu, 
que tantas vezes ofendeste a Deus e outras tantas mereceste 
o Inferno ? 
Mas o meu olhar perdoou-te, porque a tua alma foi pre­
ciosa diante de mim; para que conhecesses o meu amor e 
fosses sempre agradecido pelo bem que te fiz, para que te 
entregasses à verdadeira suj eição e humildade e sofresses 
com paciência o desprezo de ti próprio. 
[ 1 43 
1 . 
XIV 
Do dever de considerar os juízos ocultos de Deus 
e de não nos orgulharmos do bem que fizemos 
DISCÍPULO - Trovejas sobre mim, Senhor, os teus juízos, 
abalas os meus ossos com temor e tremor, e a minha alma se 
apavora. 
Atónito, considero que os céus não são puros na tua pre­
sença (Jb 1 5 , 1 5 ) . 
Se até nos anjos encontraste maldade (Jb 4, 1 8 ) e não lhes 
perdoaste, que será de mim? 
Caíram as estrelas do céu (Ap 6, 1 3 ) : e eu, que sou pó, o 
que espero ? 
Aqueles cujas obras pareciam louváveis caíram ao mais 
baixo, e vi os que comiam o pão dos anjos deleitarem-se 
com a comida dos porcos. 
2. 
Não há, pois, santidade, se retiras, Senhor, a tua mão; de 
nada serve qualquer sabedoria, se deixas de a dirigir; 
nenhuma fortaleza ajuda, se cessas de a aguentar; nenhuma 
pureza é firme, se a não proteges; de nada serve guardarmo­
-nos sem a tua sagrada vigilância . 
Abandonados, afundamo-nos e perecemos; mas, quando 
nos visitas, erguemo-nos e temos vida. 
Pois, se somos instáveis, por ti nos seguramos; e, se arre­
fecemos, és Tu que nos inflamas. 
1 44 ] 
3 . 
Oh, como me devo sentir humilde e abjeto ! 
Como devo julgar nada aquilo que em mim parece bom! 
Oh, Senhor, como me devo submeter profundamente aos 
teus juízos impenetráveis, onde vejo bem que sou nada, nada 
e só nada ! 
Oh, peso imenso ! Oh, mar intransponível onde me perco 
de mim, como o nada no meio do todo ! 
Onde se esconde, então, a glória ? Onde a confiança na 
virtude ? 
Toda a vã glória é absorvida na profundidade dos j uízos 
que fazes sobre mim. 
4. 
Que é toda a carne na tua presença ? 
Acaso s e elevará o lodo contra aquele que o formou? ( Is 
1 0, 1 5; 29, 1 6 ) . 
Como se poderá erguer com vãs palavras aquele cuj o 
coração está verdadeiramente sujeito a Deus ? 
Nem o mundo inteiro conseguirá erguer aquele a quem a 
verdade subjugou; não será abalado pela boca de todos os 
que o louvam aquele que firmou em Deus a sua esperança. 
Pois os que falam nada são: sumir-se-ão com o som das 
suas palavras; mas a verdade de Deus permanece eterna­
mente ( Sl 1 1 7[ 1 1 6] ,2 ) . 
[ 1 45 
1 . 
XV 
De como devemos falar e comportar-nos 
em tudo o que desejarmos 
CRISTO - Filho, em todas as coisas diz assim: 
« Senhor, se te agradar, que isto se faça. 
Senhor, se for para tua honra, que isto se faça em teu 
nome. 
Senhor, se achas que isto é para meu bem e que me é útil, 
concede-me que o use para tua glória. 
Mas se souberes que me há de ser nocivo e que me não 
aproveitará à salvação da alma, então afasta de mim esse 
desejo . » 
Na verdade, nem todo o desej o que parece ao homem 
reto e bom é desejo do Espírito Santo. 
É difícil j ulgar com certeza se é um bom ou um mau espí­
rito que te impele a desejar isto ou aquilo, ou mesmo se és 
impelido pelo teu próprio espírito . 
Muitos que se j ulgavam conduzidos por um bom espírito 
acabaram por ser enganados. 
2. 
Por isso, deve-se desejar e pedir sempre, com temor de 
Deus e humildade de coração, qualquer coisa de desejável 
que venha ao espírito, e, sobretudo, pondo de lado a von­
tade, entregar-me tudo e dizer: 
1 46 ] 
« Senhor, Tu sabes o que é melhor: faça-se isto ou aquilo 
conforme quiseres. 
Dá o que queres, quanto queres, quando queres . 
Faça-se comigo como achares e como mais te agradar, e 
como for para tua maior honra . 
Coloca-me onde quiseres e faz em mim em tudo a tua 
vontade. 
Estou nas tuas mãos: vira-me dum e doutro lado. 
Eis que sou o teu servo, preparado para tudo, porque não 
desej o viver para mim, mas para ti; oxalá o pudesse fazer 
digna e perfeitamente . » 
3 . 
Oração para cumprir a vontade de Deus. 
DISCÍPULO - Concede-me, ó bom Jesus, a tua graça, 
que ela esteja comigo e me trabalhe (Sb 9, 1 0 ) e que comigo 
se mantenha até ao fim. 
Faz com que sempre deseje e queira o que for da tua von­
tade e mais te agrade. 
Que a tua vontade sej a a minha, e que a minha sempre 
siga e se conforme à tua. 
Que o meu querer e não querer sej am os teus, e que não 
possa querer ou não querer alguma coisa, senão o que Tu 
queres ou não queres. 
Concede-me que morra para tudo o que é do mundo e 
que, por teu amor, sej a desprezado e desconhecido na Terra . 
Faz com que o meu maior desejo sej a descansar em ti e 
em ti pacificar o meu coração. 
Só Tu és a paz do coração; só Tu és o descanso: fora de ti 
tudo é duro e inquieto. 
Nesta paz - ou sej a, em ti, único Bem, supremo, eterno -
dormirei e terei o meu descanso (Sl 4,9 ) . Ámen. 
[ 1 47 
XVI 
Que só em Deus se deve buscar a verdadeira consolação 
1 . 
DISCÍPULO - Tudo o que posso desejar ou pensar para 
minha consolação, não o espero aqui, mas no futuro. 
Porque, se possuísse, sozinho, todas as consolações do 
mundo e pudesse gozar de todas as delícias, certo é que não 
poderiam durar muito. 
Por isso não poderás, ó minha alma, ser inteiramente 
consolada, nem totalmente alegrada, senão em Deus, conso­
lador dos pobres e acolhedor dos humildes. 
Espera um pouco, ó minha alma, espera a promessa di­
vina: e terás no Céu abundância de todos os bens . 
Se avidamente desejas os bens presentes, perderás os bens 
eternos, os do Céu. 
Usa as coisas da Terra, mas deseja só as eternas. 
Não podes saciar-te com qualquer bem temporal, pois 
não foste criada para eles. 
2 . 
Assim, s e possuísses todos o s bens criados, não poderias 
ser feliz e bem-aventurada; mas toda a tua bem-aventurança 
e felicidade consiste em Deus, que tudo criou, não como a 
veem e louvam os loucos que amam o mundo, mas como a 
esperam os bons fiéis de Cristo e a antegozam por vezes as 
almas espirituais e puras, cuja vida está nos Céus (Fl 3 ,20 ) . 
Toda a consolação humana é v ã e breve. 
1 48 ] 
Feliz e certa é a que a Verdade faz sentir interiormente. 
O homem piedoso, para onde quer que vá, leva consigo 
o seu consolador, Jesus, e diz-lhe: 
« Sê comigo, Senhor Jesus, em todos os lugares e tempos. 
Isto me seja consolação: livremente, não querer qualquer 
consolação humana. 
E, se até a tua consolação me faltar, que a tua vontade e 
essa justa prova sej am a minha suprema consolação. 
Porque não estarás irado para sempre, nem ameaçarás 
eternamente ( SI 1 03 [ 1 02] ,9 ) . » 
[ 1 49 
XVII 
Que se deve entregar a Deus todo o cuidado 
1 . 
CRISTO - Filho, deixa-me fazer de ti aquilo que quero,lhe desagradas? 
Não são, na verdade, as grandes palavras que fazem o 
santo e o justo, pois é a vida virtuosa que tornam o homem 
querido de Deus. 
[ 1 1 
Vale bem mais sentir arrependimento do que saber a sua 
definição. 
De que te serviria saber de cor toda a Bíblia e todos os es­
critos dos filósofos, sem a graça e o amor de Deus? 
Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade ( Ecl 1 ,2 ) , fora 
amar a Deus e só a Ele servir. 
Esta é a suprema sabedoria: caminhar para o Reino de 
Deus pelo desprezo do mundo. 
3 . 
É , portanto, vaidade ambicionar riquezas perecíveis e es­
perar nelas . 
Vaidade, também, procurar as honras e por elas se elevar. 
É vaidade seguir os desejos da carne e desejar aquilo por 
que havemos de ser duramente castigados. 
Vaidade é desej ar uma vida longa, não olhando a que 
seja boa. 
Vaidade é esperar somente nesta vida, e não pôr os olhos 
no que há de vir. 
Vaidade é amar o que depressa passa, e não correr ao 
lugar da alegria que não passa . 
4. 
Lembra-te muitas vezes do provérbio que diz: aos olhos 
não chega ver, nem aos ouvidos ouvir (Ecl 1 , 8 ) . 
Procura, pois, afastar o teu coração das coisas visíveis e 
transferi-lo para as que não se veem. 
Na verdade, os que seguem os sentidos mancham a cons­
ciência e perdem a graça de Deus. 
1 2 ] 
II 
Do humilde sentimento de si próprio 
1. 
Todo o homem desej a naturalmente conhecer, mas que 
importa a ciência sem o temor de Deus ? 
É certamente melhor o humilde camponês que serve a 
Deus, do que o soberbo filósofo que, não se tomando em 
conta, observa o movimento do céu. 
Quem se conhece bem a si próprio, a si próprio despreza, 
e não se deleita nos louvores humanos. 
Se souber todas as coisas do mundo e não tiver caridade, 
de que me aproveitará isso perante Deus, que me j ulgará 
pelo fiz ? 
2. 
Modera o teu excessivo desejo de saber, porque ele só te 
ilude e te dispersa . 
Os sábios gostam de ser vistos e julgados como sábios. 
Muitas são as coisas cuja ciência pouco ou nada apro­
veita à alma, e louco é o que atende àquelas de que não de­
pende a sua salvação. 
Muitas palavras não saciam a alma, mas uma vida boa 
faz fresco o espírito, e a pura consciência dá grande con­
fiança ao pé de Deus. 
[ 13 
3. 
Quanto mais e melhor souberes, tanto mais duramente 
serás julgado, se não viveres também mais santamente. 
Não te orgulhes, pois, da arte ou da ciência, e antes teme 
o que delas sabes. 
Se te parece que conheces e compreendes bem muitas 
coisas, sabe que muitas mais são as que não conheces. 
Não te orgulhes (Rm 1 1 ,20) , e confessa antes a tua igno­
rância . 
Porque te pretendes maior do que os outros, quando há 
tantos mais sábios e doutos que tu na lei de Deus ? 
Se queres saber e aprender alguma coisa com proveito, 
deseja que não te conheçam nem considerem. 
4. 
Eis a maior e mais útil lição: o conhecimento e o desprezo 
de si próprio. 
Ter-se a si por nada e pensar bem dos outros é a grande 
ciência e perfeição. 
Se vires alguém pecar abertamente ou cometer faltas 
graves, não te deves, por isso, considerar melhor, pois não 
sabes até quando te manterás no bem. 
Todos somos fracos, mas não consideres ninguém mais 
fraco do que tu. 
1 4 ] 
III 
Da doutrina da verdade 
1 . 
Feliz aquele a quem a própria verdade ensina, não por 
imagens e palavras que passam, mas tal como é. 
O nosso juízo e os nossos sentidos muitas vezes nos enga­
nam e pouco alcançam. 
De que serve grande subtileza em coisas ocultas e 
obscuras, por cuja ignorância não seremos j ulgados no dia 
do Juízo ? 
Grande loucura é abandonarmos as coisas úteis e neces­
sárias, para nos interessarmos com curiosidade pelas que 
nos prejudicam. 
Tendo olhos, não vemos; porque nos ocupamos dos géne­
ros e das espécies ? 
Aquele a quem o Verbo eterno fala é libertado d e muitos 
falsos pensamentos. 
De um só Verbo, todas as coisas, e todas dele nos falam: 
e é este o Princípio que nos fala (Jo 8 ,25 ) . 
Ninguém compreende o u julga retamente sem Ele . 
Aquele para quem tudo é um, que tudo a um refere e que 
tudo vê uno, esse pode ter o coração em paz e descansar em 
Deus. 
Ó Deus de Verdade, faz-me um contigo no amor eterno ! 
Aborrece-me muitas vezes ler e ouvir muita coisa, porque 
em ti está tudo quanto quero e desejo . 
[ 15 
Calem-se os doutores, e toda a criatura fique muda na 
tua presença: fala-me Tu só. 
2. 
Quanto mais uno e interiormente simples for alguém, tan­
to melhor compreenderá sem esforço as mais diversas e ele­
vadas coisas, pois que lhe vem do alto a luz da inteligência. 
O espírito puro, simples e firme não se dissipa nas coisas 
que faz, porque todas são feitas em honra de Deus, e pro­
cura libertar-se da contemplação de si próprio . 
Que mais te tolhe e te faz mal que as afeições que não 
mortificas ? 
O homem bom e piedoso pensa primeiro no que deve 
fazer. 
Assim, as suas obras não o arrastam para maus desejos, 
mas antes se submetem à reta razão. 
Que maior combate do que pela vitória de si mesmo? 
Esta deveria ser a nossa ocupação: vencermo-nos a nós 
mesmos, e todos os dias mais fortes e melhores em algo nos 
tornarmos. 
3. 
Toda a perfeição nesta vida tem em si qualquer imperfei­
ção; e nada vemos sem uma certa obscuridade. 
O humilde conhecimento de ti é um caminho mais certo 
para Deus do que as profundas investigações da ciência. 
Não que se deva culpar a ciência ou o simples conheci­
mento das coisas, pois ela é boa em si e querida por Deus; 
mas deve preferir-se-lhe sempre uma consciência pura e uma 
vida santa . 
Pouco ou nenhum fruto conseguem, e muitas vezes 
erram, os que preferem a ciência à vida santa . 
1 6 ] 
4. 
Oh, se empregassem tanto esforço em extirpar vícios e 
cultivar virtudes como o que despendem nessas questões vãs, 
não haveria tantos males e escândalos no povo, nem tanta 
dissolução nos conventos ! 
Com certeza que, no dia do Juízo, não nos perguntarão o 
que lemos, mas o que fizemos; não se falámos bem, mas se 
vivemos bem. 
Diz-me : onde estão todos aqueles senhores e mestres 
que tão bem conheceste enquanto viviam e brilhavam nos 
estudos ? 
Já outros agora ocupam os seus lugares , e não sei se 
ainda são lembrados. 
Em vida, pareciam ser alguém, e agora já não se fala 
deles. 
5. 
Oh, como passa depressa a glória do mundo ! 
Prouvera a Deus que a sua vida estivesse de acordo com a 
sua ciência ! Teriam então estudado e lido bem. 
Quantos se perdem pela vã ciência do mundo e pelo 
pouco serviço de Deus ! 
Porque se julgaram maiores do que os humildes, perde­
ram-se em seus pensamentos . 
Na verdade, é grande aquele que tem maior amor. 
Grande, o que se julga pequeno e considera como nada a 
maior honra. 
É, na verdade, sensato aquele que, para ganhar a Cristo, 
tem como lama todas as coisas da Terra. 
E é, na verdade, sábio o que faz a vontade de Deus e 
renuncia à sua. 
[ 1 7 
IV 
Da previdência nas ações 
1 . 
Não se deve crer em toda a palavra ou instinto, mas exa­
minar longa e cuidadosamente as coisas, segundo Deus. 
Mas, ai, muitas vezes acreditamos e dizemos mais facil­
mente mal dos outros do que bem, pois somos fracos. 
Mas os homens perfeitos não creem facilmente em tudo o 
que ouvem, pois sabem que a fraqueza humana é inclinada 
ao mal e leviana em suas palavras. 
2. 
Grande sabedoria é a de não ser precipitado nas obras, 
nem obstinado nas próprias opiniões; e também não acredi­
tar em todas as palavras dos homens, nem dizer logo aos 
outros o que se ouviu ou julgou. 
Aconselha-te com o homem sábio e sensato e prefere 
aprender de alguém melhor que tu a seguires os teus pensa­
mentos. 
A vida santa faz sábio o homem segundo Deus e experi­
mentado em muitas coisas. 
Quanto mais humilde e submisso a Deus, tanto mais 
sábio e cheio de paz. 
1 8 ] 
V 
Da leitura das Sagradas Escrituras 
1 . 
As Sagradas Escrituras se deve ir buscar a verdade, e não 
a eloquência. 
Toda a Escritura deve ser lida com o espírito com que foi 
feita . 
Devemospois Eu sei o que te convém. 
Tu pensas como homem e sentes muitas coisas segundo o 
afeto humano. 
DISCÍPULO - Senhor, é verdade o que dizes. 
É maior o teu cuidado do que toda a preocupação que eu 
possa ter por mim próprio . 
Bem pouco firme está, pois, aquele que a t i não entrega 
todo o seu cuidado. 
Senhor, contanto que a minha vontade se mantenha reta e 
firme em ti, faz de mim o que mais te agradar. 
Porque não pode existir qualquer bem, além do que me 
fizeres . 
Se queres que eu este ja nas trevas, sê bendito; e se me 
queres na luz, bendito sej as, Senhor. 
Se te dignares consolar-me, sê bendito; mas se me queres 
a sofrer, bendito sej as para sempre. 
2. 
CRISTO - Filho, assim te deves manter, s e desejas cami­
nhar comigo. 
Tão pronto para sofrer como para ter alegria; tão livre 
em ser fraco e pobre como rico e cheio de abundância. 
1 50 ] 
DISCÍPULO - Senhor, sofrerei de boa vontade por ti o 
que quiseres que sobre mim desça . 
Quero, indiferentemente, da tua mão, receber o bom e o 
mau, o doce e o amargo, o alegre e o triste, e dar-te graças 
por tudo o que me aconteça . 
Guarda-me de todo o pecado, e não temerei a morte nem 
o Inferno. 
Conquanto não me queiras repelir para sempre ( Sl 77 
[76] , 8 ) , nem risques o meu nome do livro da vida (Ap 3 ,5 ) , 
nenhuma tribulação me prejudicará . 
[ 1 51 
1 . 
XVIII 
Que se devem suportar de boa vontade 
todos os males deste mundo, 
a exemplo de Cristo 
CRISTO - Filho, Eu desci do Céu para tua salvação, car­
reguei todas as tuas misérias, não por necessidade, mas por 
caridade, para que aprendesses a paciência e soubesses 
suportar todos os males deste mundo. 
Na verdade, desde a hora em que nasci até à morte na 
cruz, nunca a dor me abandonou. 
Sofri toda a falta das coisas deste mundo; ouvi muitos 
que se queixavam de mim; suportei de bom ânimo as humi­
lhações e as infâmias; pagaram-me com ingratidão o bem 
que fiz, com blasfémias, os milagres, com injúrias, a dou­
trina . 
2 . 
DISCÍPULO - Senhor, porque foste paciente em tua vida, 
cumprindo nisto, perfeitamente, o que teu Pai te pedia, é 
j usto que eu, miserável pecador, me aguente com paciência, 
segundo a tua vontade, e que, enquanto o quiseres, carregue, 
para minha salvação, o peso da vida corruptível. 
Pois, ainda que se ache pesada a vida presente, ela 
tornou-se, contudo, por tua graça, bem cheia de merecimen­
tos e, pelo teu exemplo e o dos teus santos, tolerável e pre­
ciosa; além disso, ela é ainda bem mais cheia de consolações 
1 52 ] 
do que o fora na antiga Lei: pois que a porta do Céu estava 
fechada e o caminho para lá era mais escuro; poucos se 
preocupavam em alcançar o Reino dos Céus, e nem os que 
eram justos e se deviam salvar lá podiam entrar antes da tua 
paixão e do tributo da tua santa morte. 
3 . 
Oh, quantas graças te devo dar, por te teres dignado mos­
trar, a mim e a todos os fiéis, o caminho direito e bom para 
o teu eterno Reino ! 
Pois que a tua vida é nossa via e, pela santa paciência, 
para ti, nossa coroa, caminhamos. 
Se não nos tivesses precedido e ensinado, quem pensaria 
em seguir-te ? 
Ah, quantos ficariam para trás, se não olhassem os teus 
admiráveis exemplos ! 
Mesmo agora, com todos os teus sinais e doutrinas; 
somos mornos; que seria de nós, se não tivéssemos tanta luz 
para te seguir ? 
[ 1 53 
1 . 
XIX 
Como tolerar as injúrias e· conhecer aquele 
que tem a verdadeira paciência 
CRISTO - Que palavras são essas, filho ? Deixa de te 
queixar, depois de olhares a minha paixão e a dos outros 
santos . 
Ainda não resististe até ao sangue (Heb 12,4 ) . 
O que sofres é pouco em comparação com aqueles que 
tanto sofreram, que tão fortemente foram tentados, tão 
duramente atribulados, de tantos modos provados e experi­
mentados. 
Precisas, por isso, de ter presentes os maiores sofrimentos 
dos outros para melhor suportares os teus, tão pequenos. 
E se não te parecem pequenos, pensa se a causa não 
estará na tua impaciência. 
Mas, grandes ou pequenos, procura suportá-los paciente­
mente . 
2. 
Quanto melhor te dispões a sofrer, tanto mais sabiamente 
ages e mais mereces, e também suportas melhor os sofri­
mentos, visto que a coragem e o hábito a isso te ajudam. 
Não digas: «Não consigo suportar tais coisas de tal ho­
mem; não as posso aguentar porque me fez uma grave ofen­
sa e me censura de coisas que nunca pensei; mas, doutro, 
sofrê-las-ei de boa vontade, como acho dever sofrê-las . » 
1 54 ] 
É louco tal pensamento, pois não considera a virtude da 
paciência, nem como ela há de ser recompensada, mas, pelo 
contrário, tem em conta as pessoas e as ofensas feitas . 
3 . 
Não é verdadeiramente paciente o que não quer sofrer 
senão o que lhe agrada e de quem lhe agrada . 
O que tem real paciência não olha a quem o faz sofrer, se 
é seu superior, se é igual a si ou seu inferior, se é bom e santo, 
ou se é mau e indigno; mas aceita indiferentemente tudo de 
qualquer criatura todas as vezes que lhe sucede algo de mal, 
e tudo recebe reconhecidamente da mão de Deus, tendo-o 
como grande bem; porque, para Deus, qualquer coisa, 
mesmo pequena, por amor dele sofrida, não pode deixar de 
ter merecimento. 
4. 
Sê, pois, pronto para a luta, se queres conseguir vitória. 
Não podes, sem combate, alcançar a coroa da paciência . 
Se não queres sofrer, recusas-te a ganhar. 
Mas, se queres ganhar, combate corajosamente e aguenta 
com paciência . 
Não se alcança o repouso sem trabalho, nem sem luta se 
chega à vitória. 
5. 
DISCÍPULO - Faça-se, Senhor, possível pela graça o que 
impossível me parece pela natureza . 
Sabes o pouco que posso sofrer e quão depressa desa­
nimo à mais pequena adversidade. 
Faz com que eu ame e deseje qualquer sofrimento pelo 
teu nome: pois sofrer e ser humilhado por amor de ti é bem 
salutar à minha alma. 
[ 1 55 
1 . 
XX 
Da confissão da própria fraqueza, 
e das misérias desta vida 
DISCÍPULO - Confessarei contra mim a minha injustiça 
( Sl 32 [3 1 ] ,5 ) , confessar-te-ei, Senhor, a minha fraqueza. 
Muitas vezes, por pouca coisa me abato e torno triste . 
Prometo portar-me com mais coragem, mas, assim que vem 
a tentação, faz-se grande a minha angústia. 
E, por vezes, é bem desprezível a coisa de que me vem a 
grande tentação. 
Quando me j ulgo de certo modo seguro, quando nada 
sinto, dou comigo às vezes quase vencido por um ligeiro sopro. 
2. 
Vê, pois, Senhor, a minha pequenez e a minha fraqueza, 
que em tudo encontras; tem misericórdia de mim, e arranca­
-me do lodo para que não me atole ( Sl 69 [6 8 ] , 1 5 ) e não 
fique caído para sempre. 
O que tantas vezes me dói e me envergonha diante de ti é 
a facilidade com que caio e a minha fraqueza em resistir às 
paixões. 
E, embora não consinta inteiramente nelas, é-me molesto 
o seu ataque, e aborreço-me de viver sempre lutando. 
Por aqui bem vej o a minha fraqueza, visto que essas 
loucas fantasias entram bem mais facilmente em meu espí­
rito do que dele saem. 
1 56 ] 
3 . 
Oxalá, ó forte Deus d e Israel, zelador das almas fiéis, 
olhes para o sofrimento e para a dor do teu servo, e que o 
assistas em todas as coisas, em tudo o que empreender. 
Enche-me com a fortaleza do Céu, para que o homem 
velho, a mísera carne, ainda não totalmente submetida ao 
espírito, e contra a qual teremos de combater enquanto res­
pirarmos nesta triste vida, não consiga dominar. 
Ah, que vida esta, onde não faltam tribulações e misérias 
e onde tudo é cheio de ciladas e de inimigos ! Na verdade, 
mal uma tribulação ou tentação se afasta, logo outra chega, 
e está-se ainda em luta com a primeira e outras vêm, inespe­
radamente . 
4. 
Como se pode amar esta vida, que tantas amarguras tem, 
toda sujeita a calamidades e misérias ? 
Como s e lhe pode chamar vida, sendo fonte d e tantas 
mortes e doenças ? 
E, no entanto, ela é amada, e muitos são os que procuram 
deleitar-se nela. 
Censura-se frequentemente ao mundo o ser mentiroso e 
vão, mas nem por isso o deixamosmais facilmente, pois 
somos dominados pelo desejo da carne. 
Umas coisas levam-nos a amá-lo, outras a desprezá-lo. 
A amá-lo, o desejo da carne, o desejo dos olhos e o orgu­
lho da vida ( 1Jo 2, 1 6 ) ; a odiá-lo e a aborrecê-lo, as penas e 
misérias que justamente os seguem. 
5. 
Mas, oh, desgosto, o mau prazer vence a alma entregue 
ao mundo, e tem-se por delícia o estar sujeito aos sentidos 
[ 1 57 
(Jb 30, 7 ) , pois que ela não vê nem saboreia a suavidade de 
Deus e o encanto interior da virtude. 
Mas os que desprezam completamente o mundo e pro­
curam viver para Deus, na santa disciplina, não igno­
ram esta divina doçura prometida à verdadeira renúncia, e 
veem claramente como erra gravemente o mundo e como é 
iludido. 
1 58 ] 
XXI 
Que se deve descansar em Deus, 
mais do que em todos os bens e em todos os dons 
1 . 
DISCÍPULO - Acima de tudo e em tudo descansarás, ó 
minha alma, no Senhor, pois é Ele o repouso eterno dos 
santos . 
Concede-me, doce e amado Jesus, que em ti descanse 
mais do que em toda a criatura; mais que na saúde e na be­
leza, que em toda a honra e glória, que em todo o poder e 
dignidade; mais que em toda a ciência e subtileza, que em 
todas as artes e riquezas, que em toda a alegria e júbilo; mais 
que em toda a fama e louvor, que em toda a suavidade e 
consolação, que em toda a esperança e toda a promessa; 
mais que em todo o merecimento ou desejo, que em todos os 
bens e tributos que podes dar e derramar, que em todo o 
gáudio e exultação que o espírito pode experimentar e 
sentir; e mais, finalmente, do que nos anjos e arcanjos e todo 
o exército do Céu, mais que em todas as coisas visíveis e in­
visíveis, mais que em tudo o que não és Tu, ó meu Deus. 
2 . 
Porque Tu és, Senhor meu Deus, o melhor entre todas as 
coisas : só Tu altíssimo, só Tu todo-poderoso, só Tu sufi­
ciente e pleno, só Tu suavidade e consolação, só Tu beleza e 
amor, só Tu nobreza e glória sobre todas as coisas, em quem 
[ 1 59 
estão, sempre estiveram e estarão todos os bens, simultânea 
e perfeitamente. 
Por isso me não chega tudo o que me dás fora de ti ou o 
que de ti me revelas ou prometes, se te não vejo e não possuo 
plenamente. 
Porque não pode o meu coração descansar verdadeira­
mente, nem totalmente ser feliz, se em ti não descansar e não 
ultrapassar todos os dons e toda a criatura . 
3 . 
Ó meu Esposo amado! Jesus Cristo, puro Amor, Senhor 
de toda a criatura ! Quem me dará as asas da verdadeira 
liberdade para voar e repousar em ti ? 
Quando me será dado estar vazio deste mundo e ver 
como és suave, Senhor meu Deus ? 
Quando me refugiarei em ti plenamente até que, por teu 
amor, me não sinta a mim, mas só a ti, além de todo o sen­
tido ou medida, de modo não de todos conhecido ? 
Agora choro continuamente e levo com dor a minha infe­
licidade. 
Porque muitos males sucedem neste vale de lágrimas, e 
eles me perturbam, entristecem e toldam; muitas vezes me 
entravam e distraem, me atraem e enredam, impedindo-me 
de me aproximar livremente de ti e de gozar dos felizes 
amplexos sempre preparados para os bem-aventurados. 
4. 
Comovam-te os meus suspiros e a múltipla desolação 
deste mundo, ó Jesus, esplendor da eterna glória, consolação 
da alma peregrina ! 
Diante de ti está muda a minha boca, e o meu silêncio 
fala-te. 
Até quando tardará o meu Senhor ? 
1 60 ] 
Que Ele se aproxime do seu pobre e que o alegre; que 
imponha a sua mão e o arranque de toda a angústia. Vem, 
vem! Porque, sem ti, não haverá hora ou dia alegre - Tu és a 
minha alegria -, e sem ti está vazia a minha mesa. 
Sou infeliz, qual prisioneiro carregado de correntes, até 
que me reanimes com a luz da tua presença, me dês a liber­
dade e mostres a tua face amiga. 
Procuram outros, em vez de ti, algo que lhes agrade; mas 
a mim nada agrada, nem agradará, senão Tu, ó meu Deus, 
minha esperança, eterna salvação. 
Não me calarei, nem cessarei de pedir, até que volte a tua 
graça e fales à minha alma. 
CRISTO - Eis que aqui estou, eis que venho até ti porque 
me invocaste ( 1 Sm 3 ,9 ) . 
As tuas lágrimas e o desejo da tua alma, a tua humilha­
ção e dor vergaram-me e trouxeram-me até ti. 
5. 
DISCÍPULO - E eu disse : Senhor, chamei-te e desej ei 
gozar de ti, pronto a tudo desprezar por ti . 
Mas Tu, primeiro, me levaste a que te procurasse. 
Sê, pois, bendito, Senhor, porque tiveste tal bondade com 
o teu servo, segundo a grandeza da tua misericórdia ( Sl 
1 1 9 [ 1 1 8 ] ,65; 5 1 [50] ,3 ) . 
Que mais terá a dizer diante de t i o teu servo, senão hu­
milhar-se, lembrando sempre a sua iniquidade e vileza ? 
Nada existe, na verdade, de semelhante a ti em todas as 
maravilhas do Céu e da Terra . 
Todas as tuas obras são boas; todos os teus j uízos, verda­
deiros; e a tua providência regula o Universo. 
Louvor a ti e glória, ó Sabedoria do Pai ! A ti te louve e 
bendiga a minha boca, a minha alma e toda a criatura ! 
[ 1 61 
XXII 
Da recordação dos muitos benefícios de Deus 
1 . 
DISCÍPULO - Abre, Senhor, o meu coração à tua lei e 
ensina-me a caminhar nos teus preceitos . 
Faz-me compreender a tua vontade e recordar com gran­
de respeito e consideração os teus benefícios, tanto em geral 
como em particular, para que por eles te consiga dar graças 
de maneira digna. 
Mas reconheço e confesso que nem a mais pequena das 
tuas graças posso agradecer devidamente . 
Sou menos que qualquer dos bens que me deste, e quando 
considero a tua generosidade, o meu espírito perde-se nessa 
grandeza. 
2. 
Tudo o que temos na alma ou no corpo, exterior ou inte­
riormente, tudo o que possuímos de natural ou de sobrena­
tural são benefícios teus, e isso te declara benfeitor, piedoso 
e bom, a ti; de quem nos vêm todos os bens . 
E se um recebe mais e outro menos, tudo é, contudo, teu : 
e sem ti nem a mínima coisa se pode possuir. 
O que recebe mais não pode glorificar-se do seu mereci­
mento nem elevar-se acima dos outros ou insultar o que tem 
menos; porque maior e melhor é o que menos se considera, e 
mais humilde e devoto se mostra ao agradecer. 
Aquele que se julga pior que todos e, entre todos, o mais 
1 62 ] 
indigno, é quem melhor está preparado para receber dons 
maiores . 
3 . 
Mas o que tem menos coisas não se deve entristecer, nem 
portar indignamente ou invej ar o mais rico; mas amar-te 
ainda mais e louvar a tua bondade, pois que com tanta 
abundância, tão bondosa e livremente, sem aceção de pes­
soas, distribuis os teus dons . 
Tudo vem de ti, e por isso deves ser louvado em tudo. 
Tu sabes o que convém dar a cada um e porque este tem 
menos e aquele mais; não nos pertence a nós decidir isso, mas 
a ti, diante de quem são contados os méritos de cada um. 
4. 
Por isso, Senhor Deus, tenho por grande bem não possuir 
muita coisa, donde nascesse, de fora e segundo os homens, 
louvor e glória; de modo a que, considerando alguém a sua 
pobreza e a sua abj eção, não sinta desgosto ou tristeza ou 
desânimo por isso, mas antes consolação e grande alegria, 
porque Tu, meu Deus, escolheste os pobres, os humildes e os 
desprezados neste mundo para teus parentes e amigos . 
Os teus próprios Apóstolos são testemunhas disso, eles 
a quem constituíste príncipes sobre toda a Terra ( Sl 45 
[44] , 1 7) . 
Mas eles viveram no mundo sem queixumes, tão humil­
des e simples, sem qualquer malícia, e engano, que se alegra­
vam em sofrer injúrias pelo teu nome (At 5,41 ) , e abraçavam 
com amor tudo o que o mundo aborrece. 
5. 
Portanto, o que te ama e conhece os teus benefícios de 
nada se deve alegrar tanto como da tua vontade e do cum-
[ 1 63 
primento dos teus desígnios acerca dele, com os quais se 
deverá contentar e consolar de tal modo que de tão boa von­
tade queira ser o mais pequeno, como um outro quereria ser 
o maior; tão pacífico e contente no último, como no pri­
meiro lugar; e de tão boa vontade desprezível, abjeto e sem 
qualquer nome ou fama, como outros quereriam ser os mais 
honrados e os maiores neste mundo. 
Assim, a tuavontade e o amor da tua honra devem exce­
der tudo, e consolá-lo e agradar-lhe mais do que todos os 
benefícios dados ou prometidos por ti . 
1 64 ] 
XXIII 
Das quatro coisas indispensáveis à paz 
1 . 
CRISTO - Filho, ensinar-te-ei agora o caminho da paz e 
da verdadeira liberdade. 
DISCÍPULO - Faz como dizes, Senhor, porque me é grato 
ouvir. 
CRISTO - Procura, filho, fazer mais a vontade dos 
outros do que a tua . 
Prefere sempre ter menos do que mais. 
Procura o pior lugar e submete-te a todos. 
Desej a sempre e reza para que a vontade de Deus se 
cumpra em ti inteiramente. Deste modo, caminha o homem 
nas regiões da paz e do repouso. 
2 . 
DISCÍPULO - Senhor, apesar d e breves, a s tuas palavras 
contêm grande parte da perfeição. 
Pequeno é o discurso, mas cheio de sentido e de fruto. 
Pois, se o pudesse guardar com fidelidade, não me per­
turbaria tão facilmente. 
Porque sempre que me sinto impaciente e atormentado, 
vejo que me afastei de tal doutrina. 
Mas Tu, que tudo podes e sempre desejas o progresso da 
alma, aumenta a tua graça para que possa cumprir as tuas 
palavras e completar a minha salvação. 
[ 1 65 
3. 
Oração contra os maus pensamentos. 
Senhor meu Deus, não te afastes de mim ( SI 71 [70] , 12 ) ; 
Deus meu, vem em meu auxílio, porque em mim se ergue­
ram pensamentos vários e grandes temores que afligem a 
minha alma. 
Como os passarei ileso ? 
Como os esmagarei ? 
Eu, disse o Senhor, irei à tua frente e humilharei os pode­
rosos da Terra (Is 45,2 ) . Abrirei as portas do cárcere e mos­
trar-te-ei o mistério dos segredos. 
Faça-se, Senhor, como Tu dizes : e fujam da tua face todos 
os maus pensamentos. 
Esta é minha esperança e única consolação: refugiar-me 
em ti em toda a tribulação, em ti confiar, invocar-te do fun­
do do meu ser e esperar com paciência a tua consolação. 
4. 
Oração pela luz do espírito . 
Alumia-me, bom Jesus, com a claridade da luz interior, e 
afasta da cela do meu coração todas as trevas . 
Impede as muitas divagações do meu espírito e suprime 
as tentações que me violentam. Luta com força por mim, 
expulsa os animais ferozes, esses desejos atraentes, para que 
encontre a paz na tua força ( SI 1 22 [ 1 2 1 ] ,7) e a abundância 
dos teus louvores ressoe sem cessar na tua santa casa, isto é, 
na consciência pura. 
Ordena aos ventos e às tempestades; diz ao mar: «acalma», 
e ao Aquilão: «não sopres»; e haverá grande paz (Me 4,39 ) . 
Envia a tua luz e a tua verdade (SI 43 [42] ,3 ) para que bri-
1 66 ] 
lhem sobre a terra; pois terra sou, pobre e vazia, até que me 
ilumines . 
Espalha a tua graça lá do alto, derrama no meu coração o 
orvalho do Céu; com a água da devoção rega a face desta 
terra, para que dê um fruto bom e excelente . 
Eleva o espírito abatido pelo peso dos pecados, e o meu 
desejo, suspende-o das coisas do Céu, para que, provando 
da doçura da eterna felicidade, me canse de pensar no que é 
da Terra . 
Livra-me e liberta-me de toda a consolação humana que 
não dura : pois que nenhuma coisa criada pode dar ao meu 
desejo repouso e consolação. 
Liga-me a t i pelo laço indissolúvel do amor: pois que só 
Tu bastas a quem ama, e, fora de ti, todas as coisas são vãs. 
[ 1 67 
XXIV 
De como evitar a curiosidade pela vida dos outros 
1 . 
CRISTO - Filho, não sejas curioso, nem tenhas cuidados 
vãos. 
Que te importa isto ou aquilo? Segue-me (Jo 2 1 ,22) . Que 
te importa, na verdade, se este é desta ou daquela maneira, 
ou se aquele diz isto ou faz aquilo ? 
Não tens de responder pelos outros, mas só de ti próprio 
darás contas . 
Porque te intrometes, então ? 
Eis que sou Eu que a todos conheço, que vejo tudo o que 
sucede sob o sol, que sei como cada qual é, e o que pensa, e 
o que quer, e qual o fim da sua intenção. 
Por isso, a mim se devem entregar todas as coisas; mas tu 
conserva-te em paz, e deixa que o que se agita se agite 
quanto quiser. 
Sobre ele recairá tudo o que fizer ou disser, porque me 
não pode enganar. 
2 . 
Não procures a sombra d e um grande nome, nem queiras 
possuir intimidade com muitos, ou a estima especial dos 
homens. 
Porque tais coisas causam distrações e grandes obscuri­
dades no espírito. 
Dir-te-ei de boa vontade a minha palavra e revelar-te-ei 
coisas escondidas, se estiveres sempre atento à minha vinda e 
me abrires a porta do coração. 
Sê prudente, vigia na oração e humilha-te em tudo. 
1 68 ] 
1. 
XXV 
Em que consiste a firme paz do coração 
e o verdadeiro progresso 
CRISTO - Filho, fui Eu quem disse: deixo-vos a minha 
paz, dou-vos a minha paz; não como o mundo a dá vo-la 
dou (Jo 1 4,27 ) . 
Todos desejam paz, mas poucos são os que se preocupam 
com os meios de alcançar a verdadeira paz. 
A minha paz é com os humildes e mansos de coração . 
A tua paz estará na muita paciência . 
Se me ouvires e seguires as minhas palavras, poderás 
então gozar de grande paz. 
2. 
DISCÍPULO - Que farei, então? 
CRISTO - Em tudo, vê o que fazes e o que dizes : põe o 
teu fito apenas em agradar-me e, fora de mim, nada desejes 
ou procures . 
Não julgues temerariamente as palavras ou as ações dos 
outros, nem te metas no que te não diz respeito; e assim po­
derá acontecer que poucas ou raras vezes sejas perturbado. 
Nunca sentir, porém, qualquer perturbação, nem sofrer 
qualquer doença do espírito ou do corpo, não é para este 
tempo, mas estado de eterno repouso. 
Não j ulgues, pois, ter encontrado a verdadeira paz por 
não sentires qualquer contrariedade, ou que tudo está bem 
[ 1 69 
se ninguém te contradiz, ou que tudo é perfeito se te corre 
segundo o teu desejo; nem te consideres algo de grande ou te 
penses especialmente amado, se sentires grande devoção ou 
consolação. 
Pois não é nisto que se conhece aquele que verdadeira­
mente ama a virtude, nem nisto consiste o progresso e a per­
feição do homem. 
3 . 
DISCÍPULO - Em quê, então, Senhor ? 
CRISTO - Em ofereceres-te de todo o teu coração à von­
tade divina : não procurando o que é teu em coisa pequena 
ou grande, no mundo ou na eternidade; para que, com a 
mesma cara dês graças pelo bem e pelo mal, pesando tudo 
na mesma balança. 
Se és tão forte e perseverante na esperança que, privado 
de consolação interior, preparas o teu coração para suportar 
ainda coisas maiores, sem te justificares pensando não deve­
res suportar tanto, mas a mim me justificando em tudo e me 
dando louvor, então caminhas no verdadeiro e reto caminho 
da paz; e terás segura esperança de haver de ver, com alegria, 
a minha face. 
Porque, se chegares ao completo desprezo de ti mesmo, 
sabe que gozarás então da abundância de paz que é possível 
nesta tua morada. 
1 70 ] 
XXVI 
Da grandeza do espírito livre, 
que mais se adquire pela oração que pela leitura 
1. 
DISCÍPULO - Senhor, pertence ao homem perfeito nunca 
deixar de aplicar o espírito às coisas do Céu e, entre muitos 
cuidados, passar quase sem cuidado, não por preguiça, mas 
pela virtude dum espírito livre, que não está preso a ne­
nhuma desordenada afeição das criaturas. 
2 . 
E u te suplico, ó meu bom Deus, que me preserves dos cui­
dados desta vida, para que me não enrede muito; das muitas 
necessidades do corpo, para que me não seduza o prazer; de 
todos os obstáculos da alma, para que não me despedacem. 
Não falo dessas coisas que a vaidade do mundo procura 
com ardor, mas daquelas misérias que atrasam e pesam na 
alma do teu servo, afligido pela comum maldição da morte, 
e que o impedem de possuir a liberdade de espírito, sempre 
que o quereria. 
3 . 
Ó meu Deus, doçura inefável, converte-me em amargura 
toda a consolação da carne que me afasta do amor das 
coisas eternas e que me atrai maliciosamente para si pela 
visão de qualquer agradável bem presente. 
Que me não vençam, meu Deus, que me não vençam a 
[ 1 71 
carne e o sangue; que não me engane o mundo e a sua breve 
glória; que não sucumba ao demónio e à sua astúcia . 
Dá-me a força para resistir, a paciência para suportar, a 
constância para perseverar.Concede-me, em vez de todas as 
consolações do mundo, a suave unção do teu espírito, e em 
vez do amor carnal, o amor do teu nome. 
4. 
Eis que a comida, a bebida, o vestuário, tudo o que é feito 
para sustentar o corpo pesa ao espírito fervoroso. 
Faz que eu use com temperança de tais consolações, para 
que não me enrede nos excessivos desejos. 
Não se pode pôr tudo isto de parte, pois há que sustentar 
a natureza. Mas a tua santa Lei proíbe que se procure o su­
pérfluo e o que mais deleita, para que a carne não se levante 
contra o espírito. 
Que em tudo isto, peço-te, me dirij a e ensine a tua mão, a 
fim de que não caia nos excessos . 
1 72 ] 
XXVII 
Que o amor de si próprio muito impede o sumo bem 
1 . 
CRISTO - Filho, tens de dar tudo pelo tudo; que nada 
em ti te pertença. 
Sabe que o amor de ti próprio te prejudica mais que qual­
quer outra coisa do mundo. 
Conforme o amor e o afeto que lhe tens, assim te apegas 
. . mais ou menos a uma c01sa. 
Se o teu amor for puro, simples e ordenado, não serás 
prisioneiro das coisas. 
Não desejes o que não te é lícito possuir. 
Não possuas o que te pode embaraçar e privar da liber­
dade interior. 
É de admirar que não te abandones a mim do fundo do 
teu coração, com tudo o que possas desejar ou ter. 
2. 
Porque te consomes em vãs tristezas ? Porque te fatigas 
com vãos cuidados ? 
Mantém-te na minha vontade e não sofrerás qualquer dano. 
Se queres isto ou aquilo, e queres estar aqui ou ali, para 
tua comodidade e por tua vontade, nunca estarás em paz 
nem livre de cuidados; porque em tudo haverá qualquer 
defeito e em toda a parte alguém teu inimigo. 
3 . 
Não ajuda, pois, possuir visivelmente muitas coisas, mas 
sim desprezá-las e desenraizá-las do coração. 
[ 1 73 
E não só entendas isto acerca do dinheiro ou das rique­
zas, mas das honras e do desej o do vão louvor: pois tudo 
passa com o mundo. 
Pouco importa o lugar, se falta o espírito de fervor. 
Não durará muito aquela paz buscada no exterior, se 
falta ao coração o verdadeiro apoio. 
Assim é: se em mim te não firmares, poderás mudar, mas 
não melhorarás. 
Pois, nascida e aceite a ocasião, encontrarás aquilo de que 
fugiste, e ainda mais. 
4. 
Oração para purificar o coração e obter a sabedoria do Céu. 
DISCÍPULO - Confirma-me, ó Deus, pela graça do Es­
pírito Santo. 
Dá-me a força que fortifica interiormente o homem e que 
liberta o meu coração da angústia e de todo o cuidado inútil, 
para que não sej a arrastado aos vários desejos do que quer 
que sej a, vil ou precioso, mas que tudo possa olhar como 
coisas que passam e a mim como quem com elas passa : 
porque nada há de permanente sob o sol, onde tudo é vai­
dade e aflição de espírito (Ecl 2 ,1 1 ; 1 , 1 4 ) . 
Oh, como é sábio quem tal pensa ! 
Concede-me, Senhor, a sabedoria do Céu, para que 
aprenda a procurar-te acima de tudo e a encontrar-te, a dese­
jar-te e a amar-te sobre todas as coisas, a compreender tudo 
o resto como é, segundo a ordem da tua sabedoria . 
Faz como que me afaste com prudência do que me lison­
jeia, e que suporte com paciência o que contra mim se levan­
ta; porque esta é a grande sabedoria: não se agitar a todo o 
vento de palavras nem prestar ouvidos às pérfidas lisonjas da 
sereia; assim continuará com segurança o caminho começado. 
1 74 ] 
XXVIII 
Contra as línguas dos maldizentes 
1. 
CRISTO - Filho, não te irrites se alguém disser ou pro­
nunciar coisas que não gostas de ouvir. 
Tu ainda deves pensar pior de ti próprio e não julgar nin­
guém mais fraco do que tu . 
Se caminhas dentro de ti, não te importarão muito as pa­
lavras que voam. 
Não é pequena prudência calar-se no mau tempo, con­
verter-se interiormente a mim e não se perturbar com o juízo 
humano. 
2 . 
Que a tua paz não estej a n a boca dos homens. 
Porque, quer j ulguem bem, quer mal, não és por isso 
outro homem. 
Onde está a verdadeira paz e a verdadeira glória ? 
Não é em mim? 
E aquele que não procura agradar aos homens nem teme 
desagradar-lhes, gozará de muita paz. 
Do amor desordenado e do medo vão nasce toda a in­
quietação do espírito e a distração dos sentidos. 
[ 1 75 
XXIX 
Como se deve, na tribulação, invocar e bendizer a Deus 
1 . 
DISCÍPULO - Que teu nome, Senhor, sej a bendito pelos 
séculos, que quiseste que esta tentação e tribulação descesse 
sobre mim. 
Não posso fugir dela, mas preciso de me refugiar em ti, 
para que me ajudes e ma convertas em bem. 
Senhor, estou em grande tribulação e para mim não há 
bem; muito me atormenta a paixão desta hora. 
E que direi agora, Pai amado ? 
Rodeiam-me as angústias. 
Livra-me desta hora! 
Mas eu vim nesta hora para que sejas glorificado (Jo 
12 ,27-2 8 ) , quando, estando eu na humilhação, for libertado 
por ti . 
Digna-te, Senhor, livrar-me; pois eu, que sou pobre, que 
posso fazer ? E onde irei sem ti ? 
Dá-me paciência, Senhor, ainda desta vez. 
Ajuda-me, meu Deus, e não temerei, por mais atormen­
tado que seja . 
2. 
E agora, entre tais coisas, que direi ? 
Senhor, faça-se a tua vontade (Mt 6, 1 0 ) : bem mereci eu 
ser atribulado e atormentado. 
1 76] 
Importa, assim, que o suporte, e oxalá com paciência, até 
que passe a tempestade e venha a bonança. 
Mas a tua mão omnipotente pode afastar de mim esta 
tentação e abrandar-lhe a força, como tantas vezes me fizes­
te, Deus meu, minha misericórdia, para que não sucumba. 
E quanto mais difícil me for, tanto mais fácil te é esta 
mudança da direita do Altíssimo ( Sl 77(76) , 1 1 ) . 
[ 1 77 
1 . 
XXX 
De como se deve pedir ó auxílio de Deus 
e confiar na recuperação da graça 
CRISTO - Filho, Eu sou o Senhor; sou Eu que conforta 
no dia da tribulação (Na 1 ,7 ) . 
Vem até mim quando algo te correr mal. 
Eis o que, mais que tudo, te dificulta a consolação do 
Céu: tão tarde te entregares à oração. 
Na verdade, antes de me rezares com todo o teu coração, 
procuras muitas outras consolações e confortas-te com as 
coisas exteriores . 
Por isso sucede que todas essas coisas de pouco valem, 
até que, por fim, percebes que sou Eu que liberto aqueles 
que esperam em mim, e que, além de mim, não há auxílio 
conselho útil ou remédio duradouro. 
Mas, acalmado o espírito depois da tempestade, conva­
lesce na luz das minhas misericórdias; pois que Eu estou 
perto, diz o Senhor, para tudo restaurar, não só completa­
mente, mas com abundância e até à saciedade. 
2 . 
Acaso alguma coisa m e é difícil (Jr 32,27) ? 
Ou serei como aquele que promete e que não faz ? 
Onde está a tua fé ? 
Mantém-te firme e perseverante. 
1 78 ] 
Sê constante, sê forte, que a consolação a seu tempo 
chegará. 
Espera por mim, espera-me: virei e curar-te-ei (Mt 8 ,7 ) . 
É tentação o que te aflige, e medo vão o que te apavora. 
Que te traz o cuidado das incertezas do futuro, senão tris-
teza sobre tristeza ? 
Que a cada dia baste o seu próprio mal (Mt 6,34) . 
É vão e inútil sofrer ou alegrar-se com o que há de acon­
tecer, porque talvez nunca aconteça. 
3 . 
Mas é humano ser deste modo iludido pela imaginação; 
e é sinal dum espírito ainda fraco ser tão facilmente arras­
tado pela sugestão do inimigo. 
Na verdade, a ele é indiferente iludir ou enganar com 
coisas verdadeiras ou falsas, com o amor das presentes ou o 
medo das futuras . 
Não se perturbe, pois, o teu coração, nem tema (]o 14,27). 
Crê em mim ( ibid. , 1 ) , e na minha misericórdia tem con­
fiança (Mt 14,27) . 
É quando te julgas afastado de mim que, muitas vezes, 
estou mais perto . 
É quando pensas que quase tudo está perdido que, muitas 
vezes, tens ocasião de maior mérito . 
Não está tudo perdido quando as coisas são adversas. 
Não deves julgar as coisas segundo o que agora pensas 
delas, nem entregar-te a qualquer sofrimento, donde quer 
que venha, e aceitá-lo como se não existisse nenhuma espe­
rança de sair dele. 
4. 
Não te j ulgues totalmente abandonado quando te ator­
mento com qualquer tribulação ou te tiro a consolação que 
desejas. 
[ 1 79 
Assim, na verdade, seencaminha para o Reino dos Céus . 
E sem dúvida a ti e aos meus outros servidores mais 
convém que sejam experimentados nas adversidades, do que 
tudo tenham como querem. 
Eu conheço os pensamentos escondidos e sei que é muito 
melhor para a tua salvação que por vezes te abandone des­
consolado, para que não te orgulhes no teu êxito nem quei­
ras comprazer-te naquilo que não és. 
O que dei, posso tirá-lo e voltar a concedê-lo quando me 
aprouver. 
5. 
Quando o der é meu; quando o tirar, não to roubo: porque 
minha é toda a dádiva boa e todo o dom perfeito (Tg 1 , 1 7) . 
S e t e enviar sofrimento ou qualquer contrariedade, não te 
indignes, nem sucumba o teu coração; pois depressa posso 
erguer, e transformar todo o fardo em alegria . 
Por isso sou justo e digno de louvor quando tal te faço. 
6. 
Se julgas as coisas com justiça e as olhas segundo a ver­
dade, nunca deverás entristecer-te assim com o que te é 
adverso, mas antes alegrar-te e agradecer e mesmo conside­
rar tua única alegria que, afligindo-te com dores, Eu te não 
poupo (Jb 6,9- 1 0 ) . 
Tal como meu Pai m e amou, assim também E u vos amo, 
disse Eu aos meus discípulos amados (Jo 1 5,9 ) ; não os enviei 
para os prazeres do mundo, mas para grandes lutas; não 
para as honras, mas para o desprezo; não para o ócio, mas 
para os trabalhos; não para o repouso, mas para que dessem 
muito fruto pela paciência. 
Lembra-te, meu filho, destas palavras. 
1 80 ] 
1. 
XXXI 
Do abandono de toda a criatura 
para se poder encontrar o Criador 
DISCÍPULO - Senhor, como preciso ainda de maior 
graça, se tenho de chegar onde ninguém nem nada me possa 
embaraçar ! 
Pois quando alguma coisa me retém, não posso voar 
livremente para ti . 
Bem desejava voar aquele que dizia : quem me dará asas 
como à pomba? Voarei, então, e descansarei ( Sl 55 [54] ,7) . 
Que há de mais pacífico que o homem de olhos simples? 
E que há de mais l ivre que o que nada desej a neste 
mundo ? 
É, por isso, preciso passar além de tudo o que é criado, 
desprezar-se completamente a si próprio, permanecer em 
arrebatamento do espírito e reconhecer que Tu, Criador de 
todas as coisas, em nada és semelhante às criaturas. 
E só quem se libertar de todas as criaturas poderá ocupar­
-se livremente das coisas divinas. 
Por isso poucos chegam a ser contemplativos, porque 
poucos se sabem separar completamente das criaturas e 
daquilo que perece. 
2 . 
Para tal s e requer grande graça, que eleve a alma e a arre­
bate para além de si própria . 
[ 1 81 
E, se o homem não for elevado no espírito, liberto de 
todas as criaturas e totalmente unido a Deus, não é de 
grande peso tudo o que saiba e o que tenha. 
Sempre será pequeno e se manterá em nível inferior o que 
j ulga haver algo de grande além do bem eterno, imenso e 
uno. 
Tudo o que não é Deus nada é, e como tal se deve ter. 
Há grande diferença entre a sabedoria dos homens ilumi­
nados e piedosos e a ciência dos literatos e eruditos. 
Muito mais alta é a doutrina que provém, lá do alto, da 
influência de Deus, do que a que o engenho humano labo­
riosamente consegue. 
3. 
Muitos há que desej am a contemplação, mas não pro­
curam realizar o que a ela conduz. 
Grande obstáculo é manter-se nos sinais e nas coisas sen­
síveis e não ter perfeita mortificação. 
Não sei o que é, por que espírito somos conduzidos e o 
que pretendemos, nós a quem chamam homens espirituais, 
que tanto esforço e solicitude temos por coisas desprezíveis e 
transitórias e que tão raro pensamos recolhidamente no 
nosso mundo interior. 
4. 
Mas, ai ! , logo depois de um pequeno recolhimento nos 
apressamos a sair, e nunca ponderamos num rigoroso exame 
as nossas ações. 
Não vemos onde jazem os nossos afetos nem deploramos 
que tudo sej a impuro. 
Na verdade, toda a carne tinha corrompido o seu cami­
nho (Gn 6 , 12 ) , e por isso se seguiu o grande dilúvio. 
Portanto, como o nosso afeto está corrompido, é forçoso 
1 82 ] 
que a ação que se lhe segue, índice da falta de força interior, 
sej a também corrompida. 
Do coração puro procede o fruto duma boa vida . 
5. 
Preocupamo-nos com a quantidade de coisas que alguém 
faz, mas não se pensa tão atentamente na sua virtude. 
Procura-se saber se é forte, rico, belo, hábil, ou bom es­
critor, bom cantor, bom trabalhador; mas geralmente não se 
diz se é pobre em espírito, se é paciente e manso, se é pie­
doso e interior. 
A natureza só olha o que é exterior no homem; a graça 
volta-se para o interior. 
Uma engana-se frequentemente; mas a outra espera em 
Deus, para que não se iluda. 
[ 1 83 
XXXII 
Da negação de si próprio 
e da renúncia a todo o desejo 
1 . 
CRISTO - Filho, não podes possuir a perfeita liberdade 
se não te negares totalmente a ti próprio . 
Presos estão todos os que possuem coisas, todos os que se 
amam a si próprios, os que são ambiciosos, curiosos, inquie­
tos, que sempre procuram o mais fácil e não o que é de Jesus 
Cristo, os que muitas vezes se iludem e se ligam ao que não 
permanecerá . 
Mas tudo o que não nasceu de Deus, perecerá . 
Conserva estas breves mas perfeitas palavras: deixa tudo 
e tudo encontrarás, deixa toda a cobiça e acharás a paz. 
Medita nisto, e, quando o tiveres cumprido, perceberás 
tudo. 
DISCÍPULO - Senhor, isso não é trabalho de um só dia, 
nem brinquedo de meninos; pelo contrário, em tão breves 
palavras se contém toda a perfeição dos religiosos. 
2 . 
CRISTO - Filho, não te deves afastar nem logo desistir 
ao ouvires falar do caminho dos justos, mas antes mais te 
deves excitar ao que é mais sublime, ou, pelo menos, a isso 
aspirar com todo o teu desejo . 
Oxalá que assim se passasse contigo, e que chegasses ao 
ponto de não gostares de ti próprio, mas de te cingires sim-
1 84 ] 
plesmente à minha vontade e à do superior que te concedi: 
então me conseguirias agradar, e passarias toda a tua vida na 
alegria e na paz. 
Ainda tens de abandonar muitas coisas, e só abando­
nando-as totalmente por mim conseguirás o que procuras . 
Aconselho-te a que me compres ouro passado pelo fogo, 
para te tornares rico (Ap 3 , 1 8 ) , ou seja, a sabedoria do Céu 
que pisa tudo o que é inferior. 
Submete-lhe toda a sabedoria da Terra, toda a compla­
cência nos homens e em ti próprio. 
3 . 
Eu o disse: nas coisas humanas, prefere as desprezíveis às 
que são grandes e preciosas; porque como coisa desprezível, 
pequena e quase esquecida se vê a verdadeira sabedoria do 
Céu, que não se orgulha da sua grandeza nem procura ele­
var-se no mundo, que é pregada de boca por muitos que a 
desmentem com a sua vida; ela é, contudo, a pérola preciosa 
(Mt 1 3 ,46) escondida aos olhos de tantos. 
[ 1 85 
XXXIII 
Da inconstância do coração 
e do dever de tudo orientar para Deus 
1 . 
CRISTO - Filho, não creias na tua disposição, que existe 
agora, mas que depressa se trocará por outra. 
Enquanto viveres estás sujeito à mudança, mesmo que o 
não queiras : umas vezes alegre, outras triste; umas pronto, 
outras perturbado; ora piedoso, ora impiedoso; aplicado ou 
desanimado; preocupado ou não. 
Mas sobre todas estas mudanças se mantém aquele que é 
sábio e bem instruído pelo espírito, que não olha ao que em 
si sente, nem de que parte sopra o vento da instabilidade, 
mas sim a que toda a sua intenção de espírito se encaminhe 
para o verdadeiro e ambicionado fim. 
Assim poderá permanecer um e o mesmo, imperturbável: 
simples na intenção por entre os vários acontecimentos, per­
manentemente a mim dirigido. 
2 . 
Quanto mais puro de intenção for o olhar, tanto mais fir­
memente caminhará entre as procelas. 
Mas em muitos se tolda o olhar da pura intenção e 
depressa se fixa em algo de agradável que suceda; e, assim, é 
raro aquele que se encontra totalmente livre da mancha da 
procura de si mesmo. 
Assim tinham vindo dantes os judeus a Betânia, a casa de 
1 86 ] 
Marta e de Maria, não tanto por causa de Jesus, mas para 
verem Lázaro (Jo 12 ,9 ) . 
Portanto, deve-se purificar a intenção, paraque sej a sim­
ples e reta, e dirigi-la a mim, para além de tudo o que se 
interpõe. 
[ 1 87 
XXXIV 
Aquele que ama saboreia Deus mais que tudo e em tudo 
1 . 
DISCÍPULO - Eis o meu Deus e o meu tudo ! 
Que mais quero ? E que posso desejar de melhor ? 
Oh, gostosa e doce palavra, mas só para aquele que a 
ama, e não ao mundo nem a nenhuma das coisas que estão 
no mundo ! 
Meu Deus e meu tudo ! 
Para o que somente entende, basta dizê-lo uma vez; mas 
para o que ama, é grato repeti-lo. 
Quanto Tu estás presente, tudo é agradável; mas, se estás 
ausente, já tudo aborrece. 
Tu fazes tranquilo o coração e dás grande paz e festiva 
alegria. 
Tu fazes-nos pensar bem de todas as coisas e em todas as 
coisas te louvar, e, sem ti, nada pode agradar por muito tem­
po; pois que, se algo é grato e sabe bem, tem de ser presente 
a tua graça e de ser temperado com o sal da tua sabedoria . 
2 . 
Àquele a quem Tu agradas, o que não lhe agradará ? 
E àquele a quem não agradas, que lhe pode dar alegria ? 
Carecem da tua sabedoria os sábios do mundo e aqueles 
a quem a carne agrada, porque no mundo se encontra gran­
de vaidade, e na carne, a morte . 
Mas os que te seguem, pelo desprezo das coisas do mun-
1 88 ] 
do e pela mortificação da carne, mostram-se verdadeira­
mente sábios, porque passaram da vaidade para a verdade e 
da carne para o espírito. 
Tais pessoas saboreiam Deus; e o que de bom se encontra 
nas criaturas, tudo ordenam ao louvor do Criador. 
Diferente, contudo, muito diferente mesmo, é o gosto do 
Criador e o da criatura, da eternidade e do tempo, da luz 
incriada e da luz refletida. 
3 . 
Oh, luz eterna, que ultrapassas todas a s luzes criadas, 
despede lá do alto um raio que penetre até ao mais íntimo 
do meu coração ! 
Purifica, alegra, aclara e dá vida ao meu espírito e às suas 
faculdades, para que a ti se abrace em alegres transportes. 
Oh, quando virá essa feliz e desej ável hora em que me 
saciarás com a tua presença e me serás tudo em tudo ? 
Enquanto não existir tal dom, não haverá plena alegria. 
Ai, ainda que existe em mim o homem velho, não está 
todo crucificado nem totalmente morto, ainda desej a com 
força coisas contra o espírito e move guerras interiores, não 
sofrendo que a alma reine em paz. 
4. 
Mas, Tu, que submetes o poder do mar e abrandas o mo­
vimento das suas ondas, ergue-te e ajuda-me ( Sl 89 [8 8 ] , 1 0; 
44[43] ,27) . 
Dispersa as nações que desejam as guerras ( Sl 68 [67] ,3 1 ) , 
e contém-nas pela tua força; mostra, eu te rogo, as tuas ma­
ravilhas, e que seja glorificada a tua mão direita ( Sir 1 7,8 ; 
36 , 7 ) ; porque não existe para mim outra esperança ou refú­
gio senão em ti, Senhor meu Deus . 
[ 1 89 
XXXV 
Que nesta vida não se está seguro da tentação 
1 . 
CRISTO - Filho, nunca estarás seguro nesta vida; en­
quanto viveres, sempre te serão precisas as armas espirituais. 
Se, portanto, não usares por toda a parte do escudo da 
paciência, não estarás muito tempo sem qualquer ferida. 
E se, além disso, não puseres o teu coração bem fixo em 
mim, com grande vontade de tudo por mim sofreres, não 
poderás aguentar tal ardor, nem chegar à palma dos bem­
-aventurados. 
Tens, pois, de passar tudo com coragem e usar mão pode­
rosa contra todo o obstáculo. 
Pois o maná é dado ao vencedor (Ap 2,1 7) , e ao indolente 
está reservada muita miséria. 
2. 
Se procuras repouso nesta vida, como alcançarás o 
repouso eterno ? 
Não te prepares para um grande descanso, mas sim para 
uma grande paciência. 
Procura a verdadeira paz, não na Terra, mas nos Céus; 
não nos homens nem nas outras criaturas, mas somente em 
Deus. 
Por amor de Deus deves suportar tudo de boa vontade -
trabalhos e dores, tentações, tormentos, ansiedades, necessi-
1 90 ] 
dades, doenças, injúrias, maledicências, repreensões, humi­
lhações, confusões, correções e desprezos. 
Tudo isto ajuda na virtude, tudo isto põe à prova o sol­
dado de Cristo e prepara a coroa celeste. 
Eu darei o prémio eterno em troca dum breve trabalho, e 
uma glória infinita por uma humilhação que passa. 
3 . 
Julgas que terá sempre à tua vontade consolações espiri­
tuais ? 
Nem sempre os meus santos as tiveram, mas sim muitos 
sofrimentos, tentações de toda a espécie e grandes desolações . 
Mas pacientemente se aguentaram no meio de tudo, mais 
confiando em Deus do que em si, pois sabiam que os sofri­
mentos do tempo presente não têm proporção com a glória 
futura (Rm 8 , 1 8 ) que merecem. 
Queres obter imediatamente o que muitos apenas obtive­
ram depois de tantas lágrimas e grandes trabalhos ? 
Espera o Senhor, tem coragem ( Sl 27[26) , 1 4 ) e anima-te, 
não percas a fé, não te afastes; mas expõe continuamente 
corpo e alma pela glória de Deus. 
Eu retribuirei abundantemente (Mt 1 6,27) . Eu serei con­
tigo em toda a tribulação ( Sl 9 1 [90) , 1 5 ) . 
[ 1 91 
XXXVI 
Contra os vãos juízos dos homens 
1 . 
CRISTO - Lança com firmeza o teu coração no Senhor, 
meu filho, e não temas os j uízos humanos quando em tua 
consciência tiveres sido piedoso e inocente . 
É bom e feliz sofrer assim, nem isto será duro para o de cora­
ção humilde, que mais confia em Deus do que em si próprio. 
Muitas pessoas falam tanto que nos devemos fiar pouco 
no que dizem. 
Além disso, não é possível satisfazer a todos. 
E se Paulo procurou agradar a todos no Senhor e tudo fez 
a todos, pouco lhe importou, contudo, ser julgado à luz dos 
homens ( 1 Cor 4,3 ) . 
Fez, pela edificação e salvação dos outros, tudo quanto 
podia e sabia, mas não pôde evitar ser, por vezes, julgado e 
desprezado por eles. 
Por isso, pôs tudo nas mãos de Deus, que tudo sabia, e, 
pela paciência e pela humildade, se defendeu contra as lín­
guas dos que falavam mal, dos que pensavam coisas vãs e 
mentirosas e dos que se erguiam segundo as suas paixões . 
No entanto, respondeu de vez em quando, para que do 
seu silêncio não nascesse qualquer escândalo para os fracos. 
2 . 
Quem és tu para temer o homem mortal (Is 5 1 , 12 ) ? 
Existe hoje e amanhã j á desapareceu. 
1 92 ] 
Teme a Deus e não te aterrorizarás com o medo dos 
homens. 
Que pode contra ti alguém com quaisquer palavras e 
injúrias ? 
Mais a si se prejudica do que a ti, porque, quem quer que 
sej a, não poderá fugir ao j uízo de Deus. 
Mantém os teus olhos em Deus e não te importes com 
palavras de queixa. 
E se te parecer que agora sucumbes e que não mereceste 
sofrer tal humilhação, não te indignes por isso, nem, por tua 
impaciência, diminuas o teu prémio; mas fita ainda mais os 
teus olhos no Céu, em mim, que sou poderoso para libertar 
de toda a confusão e injúria e dar a cada um segundo as suas 
obras (Rm 2,6 ) . 
[ 1 93 
1 . 
XXXVII 
Da pura e inteira renúncia de si mesmo 
para obter a liberdade de coração 
CRISTO - Filho, abandona-te e encontrar-me-ás. 
Mantém-te sem preferências e sem nada de teu e lucrarás 
sempre. 
Pois que possuirás maior graça quando renunciares a ti e 
não voltares atrás . 
2 . 
DISCÍPULO - Senhor, quantas vezes terei d e me resignar, 
e em que me hei de pôr de lado ? 
CRISTO - Sempre e a toda a hora, tanto nas coisas gran­
des como nas pequenas. 
Nada excetuo, mas em tudo te quero achar despido. 
Como poderias, doutra forma, ser meu e Eu ser teu, se 
não fosses arrancado por dentro e por fora a toda a vontade 
própria ? 
Quanto mais depressa fizeres isto, tanto melhor será para 
ti e, quanto mais plena e sinceramente, tanto mais me agra­
darás e maior será o teu ganho. 
3 . 
Alguns há que renunciam a si, mas com alguma reserva: 
como não confiam inteiramente em Deus, agitam-se a provi­
denciar nos seus assuntos. 
1 94 ] 
Outros, a princípio, oferecem tudo, mas depois, forçados 
pela tentação, voltam às suas coisas, e por isso pouco adian­
tam na virtude. 
Estes não chegam à verdadeira liberdade do coração puro 
e à graça duma alegre intimidade comigo, se não conse­
guiram uma inteira renúncia e uma imolação de todos os 
dias, sem a qual não existe, nemexistirá, uma união com 
proveito . 
4. 
Já muitas vezes te disse e repito-o de novo: abandona-te, 
anula-te, e gozarás de grande paz interior. 
Dá tudo por tudo, nada busques, nada exij as, mantém-te 
pura e firmemente em mim, e ter-me-ás. 
Terás um coração livre e não serás esmagado pelas trevas. 
Isto deseja, isto pede, isto procura: poderes libertar-te de 
tudo o que possuis e nu seguires Jesus nu, morreres para ti e 
viveres eternamente para mim. 
Então se acabarão todas as fantasias vãs, todas as más 
perturbações e cuidados supérfluos. 
Então se afastará o grande medo e morrerá o amor desor­
denado. 
[ 1 95 
1 . 
XXXVIII 
De como nos regermos bem nas coisas exteriores 
e recorrermos a Deus nos perigos 
CRISTO - Filho, deves tender com toda a tua diligência 
para que, em todo o sítio e em toda a ação ou ocupação ex­
terior, sej as interiormente livre e tenhas mão em ti, para que 
tudo te estej a submetido, e não tu submetido a tudo, para 
que sej as dono e senhor das tuas ações, e não seu servo ou 
escravo: e antes, como um verdadeiro hebreu, sê livre, com­
partilhando da liberdade dos filhos de Deus que, embora 
estej am no mundo, olham para o que é eterno; que simulta­
neamente veem o que passa e o que é do Céu; que não são 
arrastados a possuir os bens temporais, mas que, pelo con­
trário, os utilizam para servir, tal como foram pensados por 
Deus e criados pelo sumo Artífice, que nada deixou desor­
denado em suas criaturas . 
2. 
Se, porém, em tudo o que acontece te não ficas na apa­
rência exterior, nem olhas com os olhos da carne o que vês e 
ouves, mas, em qualquer assunto, entras como Moisés no 
tabernáculo para consultar o Senhor, ouvirás muitas vezes a 
resposta divina e voltarás instruído de muitas coisas presen­
tes e futuras. 
Na verdade, Moisés sempre recorreu ao tabernáculo em 
dúvidas e questões a resolver, e sempre se refugiou no auxí-
1 96 ] 
lio da oração para se proteger dos perigos e maldades dos 
homens. 
Assim também tu te deves refugiar no mais secreto do teu 
coração, implorando com maior insistência o socorro de 
Deus. 
Por isso Josué e os filhos de Israel foram enganados pelos 
Gabaonitas, porque não interrogaram primeiro a boca do 
Senhor (Js 9 ,14 ) , mas, acreditando em doces palavras, foram 
iludidos por uma falsa piedade. 
[ 1 97 
XXXIX 
Que o homem não deve ser apressado nos seus afazeres 
1 . 
CRISTO - Filho, entrega-me sempre a tua causa e Eu a 
disporei bem a seu tempo. 
Espera pelo que Eu ordenar, e sentir-lhe-ás o proveito . 
2. 
DISCÍPULO - Senhor, de boa vontade te entrego todas as 
coisas, porque bem pouco adianta o que eu penso. 
Oxalá nunca me apegue ao que me há de suceder e me 
entregue incondicionalmente à tua vontade ! 
3 . 
CRISTO - Filho, muitas vezes se agita o homem forte­
mente por uma coisa que deseja e, quando o consegue, muda 
de opinião a seu respeito; porque as afeições sobre uma 
coisa não se mantêm, mas impelem o homem de um objeto 
para o outro. 
Portanto, não é pouco renunciar a si próprio, mesmo no 
que é pouco . 
4. 
O verdadeiro progresso do homem é a negação de si próprio. 
Aquele que se nega está livre e está seguro. 
Mas o velho inimigo, oposto a todo o bem, não cessa de 
nos tentar e dia e noite prepara armadilhas, em cujos laços 
se possa precipitar o incauto. 
Vigiai e orai, diz o Senhor, para que não entreis em tenta­
ção (Mt 26,4 1 ) . 
1 98 ] 
1 . 
XL 
Que o homem, por si, nada tem de bom, 
e de nada se pode orgulhar 
DISCÍPULO - Senhor, que é o homem para que te lem­
bres dele, e o filho do homem para que o visites? ( SI 8 ,5 ) . 
Que mereceu o homem, para que lhe desses a tua graça ? 
Senhor, de que me posso queixar, se me abandonas ? Ou 
que justa razão posso dar, se não fazes o que eu peço ? 
Em verdade, só posso pensar e dizer : Senhor, nada sou, 
nada posso, por mim nada tenho de bom, mas em tudo des­
faleço e para o nada tendo sempre. 
E, a não ser por ti ajudado e formado interiormente, logo 
me torno morno e lasso. 
2 . 
Mas Tu, Senhor, és sempre o mesmo ( S I 1 02 [ 1 0 1 ] ,2 8 ) e 
eternamente permaneces, sempre bom, justo e santo, tudo 
fazendo bem, justa e santamente, e tudo dispondo em sabe­
doria; mas eu, sempre mais propenso ao regresso que ao 
progresso, não me fico muito tempo num só estado, porque 
sete tempos passaram sobre mim (Dn 4, 1 3 ) . 
No entanto, logo tudo s e torna melhor quando te agrada 
e me estendes o auxílio da tua mão, pois só Tu podes ajudar 
sem a ajuda de ninguém e de tal modo me confirmar que o 
meu rosto não mais mude, mas antes para ti o meu coração 
se converta e ache a paz. 
[ 1 99 
3 . 
Por isso, se souber passar-me d e toda a consolação 
humana, quer para conseguir a devoção, quer pela própria 
necessidade que me obriga a procurar-te - pois não há 
homem que me console -, terei então razão de esperar na tua 
graça e alegrar-me com o dom duma nova consolação. 
4. 
Graças te sejam dadas, a ti donde tudo vem, de cada vez 
que algo de bom me acontece . 
Eu, porém, diante de ti sou vaidade e sou nada, um 
homem inconstante e fraco. 
De que me posso, pois, orgulhar ? Ou porque desejo que 
me considerem? 
Do nada ? 
Como isto é vão ! 
Na verdade, grande mal é a vã glória, vaidade máxima 
que afasta da verdadeira glória e rouba a graça do Céu. 
Pois que, enquanto o homem a si próprio agrada, a ti 
desagrada, e enquanto anseia pelos louvores humanos priva­
-se das verdadeiras virtudes. 
5. 
Verdadeira glória e santa exultação é, porém, glorificar­
-se em ti e não em si próprio, alegrar-se no teu nome e não 
na própria virtude, em nada se deleitar senão por teu amor. 
Que o teu nome, e não o meu, seja louvado. Seja exaltada 
a tua obra, e não a minha. Bendito o teu santo nome, e que 
nada me caiba nos louvores dos homens. 
Tu és a minha glória. Tu, a alegria do meu coração ( Sl 
3,4; 1 1 9 [ 1 1 8 ] , 1 1 1 ) , em ti me glorificarei e exultarei todo o 
dia, mas em mim de nada me glorificarei, a não ser das 
minhas fraquezas (2Cor 12,5 ) . 
200 ] 
Que procurem os Judeus a glória que lhes vem uns dos 
outros, mas que eu procure a que é só de Deus (Jo 5,44 ) . 
N a verdade, toda a glória humana, toda a honra tempo­
ral, toda a elevação do mundo comparada com a tua eterna 
glória é vaidade e loucura . 
Ó minha verdade e minha misericórdia, meu Deus, 
Trindade bendita, só a t i louvor, honra, virtude e glória pelos 
séculos dos séculos sem fim. 
[ 201 
XLI 
Do desprezo de toda a honra do mundo 
1 . 
CRISTO - Não te pese, filho, se vês os outros serem hon­
rados e elevados, e tu abandonado e humilhado. 
Ergue até mim, para o Céu, o teu coração, e já te não en­
tristecerá o desprezo dos homens na Terra . 
2. 
DISCÍPULO - Senhor, nós estamos cegos e depressa a 
vaidade nos seduz. 
Se me observo com justiça, vej o que nunca me foi feita 
inj úria por qualquer criatura e que assim nada de j usto 
tenho por que de ti me queixe. 
Mas, porque contra ti pequei tanto e tão gravemente, é 
com razão que contra mim se ergue toda a criatura . 
Justo é, por isso, que a mim seja atribuída a confusão e o 
desprezo, e a ti o louvor, a honra e a glória . 
E se não me dispuser a querer de boa vontade ser despre­
zado e abandonado por toda a criatura e tido como nada, 
não poderei ter paz e firmeza interior, nem ser iluminado 
espiritualmente e plenamente unido a ti. 
202 ] 
XLII 
Que a paz não deve depender dos homens 
1 . 
CRISTO - Filho, se fizeres depender a tua paz de qual­
quer pessoa, pelos gostos comuns ou pela convivência, 
nunca estarás seguro nem livre . 
Mas se recorreres à verdade imutável e sempre viva, não 
te entristecerá o amigo que se afasta ou que morre. 
Toda a amizade deve ser fundada em mim, e em razão de 
mim deves amar alguém que te pareça bom ou te sej a muito 
querido nesta vida . 
Sem mim, nenhuma amizade tem valor ou duração, nem 
há amor verdadeiro e puro de que Eu não seja o laço . 
Assim, deves estar morto para esses afetos pelas pessoas 
amadasa ponto de, tanto quanto de ti depende, desej ares 
manter-te sem qualquer relação humana. 
Quando mais o homem se aproxima de Deus, tanto mais 
se afasta de toda a consolação terrena. 
Tanto mais sobre para Deus, quanto mais profundamente 
em si desce e se despreza . 
2 . 
Mas aquele que a s i próprio se atribui algo d e bom, im­
pede que a ele venha a graça de Deus, porque a graça do Es­
pírito Santo procura sempre o coração humilde. 
Se soubesses anular-te perfeitamente e esvaziar-te de todo 
[ 203 
o amor criado, então Eu te inundaria com grande abundân­
cia de graça. 
Quando o teu interesse está nas criaturas, é-te negada a 
visão do Criador. 
Aprende a vencer-te em tudo pelo Criador, e assim conse­
guirás chegar ao conhecimento divino. 
Por mais pequeno que sej a, o que se ama ou deseja desor­
denadamente vicia e atrasa a posse do supremo bem. 
204 ] 
XLIII 
Contra a ciência vã deste mundo 
1. 
CRISTO - Filho, que não te perturbem as belas e subtis 
palavras dos homens. 
Na verdade, não está o Reino de Deus na palavra, mas na 
virtude ( 1 Cor 4,20 ) . 
Atende à s minhas palavras que incendeiam o s corações e 
iluminam o espírito, que trazem a compunção e derramam 
toda a espécie de consolações . 
Nunca leias nada com o fim de te mostrares mais douto 
ou sábio. 
Dá-te antes à mortificação dos vícios, porque isso te será 
mais útil do que o conhecimento de muitas questões difíceis. 
2 . 
Depois d e teres lido e conhecido muita coisa, é sempre 
necessário que voltes ao único princípio. 
Eu sou o que ensino a ciência ao homem e que dou maior 
inteligência aos pequeninos ( Sl 94 [93] , 1 0; 1 1 9 [ 1 1 8] , 1 3 0 ) do 
que a que pode ser ensinada pelo homem. 
Aquele a quem Eu falo, depressa será sábio e muito pro­
gredirá em espírito . 
Mas ai daqueles que procuram dos homens muitas curio­
sidades e se preocupam pouco com o caminho para me 
servirem. 
Virá o tempo em que aparecerá Cristo, o Mestre dos mes-
[ 205 
tres, o Senhor dos anjos, para a todos pedir contas do que 
sabem, isto é, para examinar a consciência de cada um; e 
então Jerusalém será perscrutada com lanternas, e as coisas 
escondidas nas trevas serão manifestadas ( Sf 1 , 12; 1 Cor 4,5 ) 
e calar-se-ão os argumentos das línguas. 
3 . 
Eu sou aquele que, num só momento, eleva o espírito hu­
milde, para que compreenda mais coisas da verdade eterna 
do que se tivesse estudado durante dez anos nas escolas. 
Eu ensino sem ruído de palavras, sem confusão de opi­
niões, sem a altivez da honra, sem a luta dos argumentos. 
Eu sou o que ensina a desprezar as coisas terrenas, a 
aborrecer as presentes, a procurar e saborear as eternas, a 
fugir às honras, a suportar os escândalos, a colocar em mim 
toda a esperança, a nada desejar além de mim e a amar-me 
com ardor acima de todas as coisas. 
4. 
Na verdade, um, que me amava intimamente, aprendeu 
as coisas divinas e delas falava de modo admirável . 
Mais adiantou abandonando tudo do que estudando sub­
tilezas. 
Mas a uns digo coisas gerais , a outros especiais; a uns 
apareço docemente em sinais e em figuras, a outros revelo 
com muita luz os mistérios. 
Os livros dizem todos os mesmo, mas nem em todos pro­
duzem os mesmos efeitos; porque Eu sou o que ensina inte­
riormente a verdade, o que perscruta o coração, o que per­
cebe os pensamentos, o que move as ações, distribuindo a 
cada qual o que acho justo . 
206 ] 
XLIV 
De como não se enredar nas coisas exteriores 
1 . 
CRISTO - Filho, de muitas coisas é necessário que te 
mantenhas ignorante, e que te julgues como um morto sobre 
a terra e para quem todo o mundo está crucificado ( Cl 3,3 ; 
Gl 6,14 ) . 
É também preciso que feches os ouvidos ao passares por 
muita coisa, e que penses antes no que importa à tua paz. 
Mais vale afastar os olhos das coisas que nos desagradam 
e deixar cada um com a sua opinião, do que intervir com 
palavras de contenda . 
Se permaneceres bem com Deus e atenderes ao seu juízo, 
mais facilmente aceitarás ser vencido. 
2. 
DISCÍPULO - Oh, Senhor, ao que chegámos ! 
Eis que choramos uma perda temporal, eis que trabalha­
mos e corremos por uma questão sem importância, mas es­
quecemos o prejuízo espiritual ou apenas tarde nos lembra­
mos dele. 
Atende-se ao que de pouco ou nada serve, mas passa-se 
com negligência sobre o que é mais necessário; pois que todo 
o homem se derrama nas coisas exteriores e, se não logo em 
si, nelas permanece de bom ânimo. 
[ 207 
1 . 
XLV 
Que não se deve acreditar em todos, 
e do fácil erro das palavras 
DISCÍPULO - Dá-me, Senhor, auxílio na tribulação, 
porque vã é a salvação que vem do homem ( SI 60[59] , 1 3 ) . 
Quantas vezes e u não encontrei fidelidade onde j ulgava 
achá-la ? 
E quantas vezes a encontrei onde menos pensava ? 
É pois vã a esperança nos homens, e a salvação dos justos 
só em ti está, ó Deus. 
Bendito sej as, ó Senhor meu Deus, em tudo o que nos 
sucede. 
Somos inconstantes e fracos, facilmente nos enganamos e 
mudamos. 
2. 
Qual é o homem que consegue manter-se tão cautelosa e 
prudentemente em tudo que nunca tenha qualquer deceção 
ou dúvida ? 
Mas o que em ti, Senhor, confia e o que te procura com 
um coração simples não cai tão facilmente. 
E se lhe sobrevier qualquer tribulação, por mais enredado 
que nela esteja, depressa dela será arrancado por ti ou con­
solado; porque não abandonas para sempre aquele que em 
ti espera . 
208 ] 
É raro o amigo fiel que como tal se mantém em todas as 
desgraças do seu amigo. 
Só Tu, Senhor, és fiel em todas as coisas, e depois de ti 
não há mais ninguém. 
3 . 
Oh, como o experimentou bem aquela santa alma que 
disse: o meu espírito está soldado e firmado em Cristo 
( «Vida de Santa Ágata » ) . 
S e assim s e passasse comigo, não m e agitaria tão facil­
mente o medo dos homens, nem me moveriam os ataques 
das suas palavras. 
Quem consegue prever tudo ou precaver-se dos males 
futuros ? 
Se aqueles que se preveem, muitas vezes, nos ferem, o que 
não será dos que nos vêm sem esperarmos ! 
Mas porquê, infeliz de mim, não me acautelei melhor ? 
Porque acreditei tão facilmente nos outros ? 
Somos homens e nada mais que homens fracos, mesmo 
que muitos nos julguem ou chamem anjos. 
Em quem acreditarei, Senhor ? 
Em quem, senão em ti ? 
Tu és a Verdade, que não podes enganar nem podes ser 
enganado. 
Mas, pelo contrário, todo o homem é mentiroso (SI 1 1 6 
[ 1 14 - 1 1 5 ] , 1 1 ) , fraco, inconstante e falível, sobretudo nas 
suas palavras, de tal modo que nem se deve acreditar ime­
diatamente naquilo que nos parece verdadeiro. 
4. 
Com que prudência nos aconselhaste a temer os homens, 
porque os inimigos do homem são os da sua própria casa 
[ 209 
(Mt 1 0,36 ) , e não se deve acreditar se alguém disser: eis que 
Ele está aqui, ou ali (Mt 24,23 ) ! 
Aprendi à minha custa, oxalá que para ter maior cuidado 
e não menor sabedoria! 
Tem cuidado, diz um, tem cuidado, guarda para ti o que 
te digo. 
E enquanto me calo e j ulgo guardar um segredo, ele não 
pode guardar segredo do que me pediu que guardasse, mas 
logo me trai e se trai, e vai-se. 
De tais mentiras e de tais homens imprudentes, protege­
-me, Senhor, para que não caia nas suas mãos, nem nunca 
faça tais coisas. 
Dá à minha boca uma palavra firme e afasta de mim a 
linguagem de artifício. 
Que eu fuja de todas as maneiras daquilo que não quero 
suportar. 
5. 
Oh, como é bom, como dá paz não falar dos outros e não 
acreditar indiferentemente em tudo nem repeti-lo com le­
viandade, abrir-se com poucos, procurar-te sempre como 
testemunha do coração e não ser arrastado por todo o vento 
de palavras; mas desejar fazer tudo o que é íntimo ou exte­
rior segundo o agrado da tua vontade! 
Como é seguro para conservar a graça do Céu fugir às 
aparências humanas e não desejar as coisas que suscitam a 
admiração dos outros, mas seguir com toda a dil igência 
aquilo que dá a emenda da vida e o fervor ! 
A quantos prejudicou a virtude conhecidae louvada com 
precipitação ! E quantos, pelo contrário, aproveitaram da 
graça conservada em silêncio durante esta vida frágil, que é 
toda tentação e combate ! 
2 1 0 ] 
1. 
XLVI 
Da confiança que se deve ter em Deus 
quando somos atacados por palavras 
CRISTO - Filho, aguenta-te com firmeza e espera em 
mim. 
Que outra coisa são as palavras, se não palavras ? 
Pelo ar voam, mas não fendem a pedra. 
Se és culpado, pensa que te deves querer emendar de boa 
vontade. 
Mas, se de nada te acusas, pensa que deves querer supor­
tar tudo isso por amor de Deus. 
É bastante pouco que de vez em quando suportes algu­
mas palavras, tu que ainda não consegues aguentar golpes 
ma10res . 
E porque é que coisas tão pequenas te ferem, senão porque 
ainda és carnal e atendes mais do que deves aos homens ? 
Como temes ser desprezado, não queres ser repreendido 
pelos teus excessos e procuras a sombra das desculpas. 
2 . 
Mas examina-te melhor e perceberás que vive ainda e m ti 
o mundo e o vão desejo de agradar aos homens. 
Pois, ao evitares ser humilhado e confundido pelos teus 
defeitos, provas que ainda não és verdadeiramente humilde, 
nem inteiramente morto para o mundo, nem o mundo para 
ti crucificado ( Gl 6, 14 ) . 
[ 21 1 
Mas ouve a minha palavra, e não te importarás com mil 
palavras dos homens. 
Mesmo que contra ti dissesse·m tudo o que a pior mal­
dade pudesse inventar, o que é que isso te prej udicaria, se 
tudo deixasses passar e não lhe desses maior peso que a uma 
palha ? 
Acaso te poderiam arrancar um só cabelo ? 
3 . 
Aquele que não tem u m coração recolhido, nem Deus 
diante dos seus olhos, facilmente se abala com a palavra de 
injúria. 
Mas o que confia em mim e não se compraz na sua opi­
nião, será livre do medo dos homens. 
Na verdade, Eu sou juiz e conhecedor de todos os segre­
dos: Eu sei de que modo as coisas se passaram, conheço o 
que fez a injúria e o que a sofreu. 
De mim saiu tal palavra, fui Eu quem permitiu que tal 
sucedesse, para que fossem revelados os pensamentos de 
muitos corações (Lc 2,35 ) . 
E u julgarei o inocente e o culpado, mas, antes, por um 
juízo oculto, quis experimentar a um e a outro. 
4. 
O testemunho dos homens engana muitas vezes; mas o 
meu juízo é verdadeiro: manter-se-á e nunca será mudado. 
A maior parte das vezes ele esconde-se, e só a poucos se 
descobre; porém, nunca erra, nem pode errar, ainda que não 
pareça justo aos olhos dos insensatos. 
A mim, pois, se deve recorrer em todo o j uízo, e não 
apoiar-se na própria decisão. 
Pois o justo não será perturbado com o que quer que lhe 
suceda (Pr 12 ,2 1 ) que lhe venha de Deus. 
2 1 2 ] 
E assim, mesmo que algo de injusto se propague contra 
ele, não se importará muito. 
Mas também não se alegrará loucamente se outros o des­
culparem com razão. 
Pois ele atenta em que Eu sou o que perscruta os corações 
e os rins (Ap 2,23 ) . Aquele que não julga segundo o aspeto e 
as aparências humanas. 
Na verdade, muitas vezes, a meus olhos é tido como cul­
pado o que ao julgamento dos homens parece louvável. 
5. 
DISCÍPULO - Senhor Deus, justo juiz, forte e paciente, 
que conheces a fragilidade e a maldade dos homens, sê a 
minha força e toda a minha confiança, pois que a minha 
consciência me não basta . 
Tu conheces o que eu não conheço, e, por isso, em toda a 
repreensão me tive de humilhar e aguentar com docilidade. 
Perdoa-me também por todas as vezes que tal não fiz, e 
concede-me a graça de uma maior paciência. 
Porque me é melhor para obter o perdão a tua grande 
misericórdia, do que a minha suposta justiça para defesa da 
minha obscura consciência. 
Embora de nada me acuse, nem por isso me posso ter por 
justificado ( 1 Cor 4,4 ) ; porque, posta de parte a tua miseri­
córdia, nenhum ser vivo é justificado a teus olhos ( SI 143 
[ 1 42] ,2 ) . 
[ 2 1 3 
XLVII 
Que pela vida eterna 
se devem suportar todos os males 
1 . 
CRISTO - Filho, que não te quebrem os trabalhos que 
por minha causa assumiste, nem te abatam de todo as tribu­
lações; mas que a minha promessa te fortaleça e console em 
tudo o que te suceda . 
Eu tenho poder para retribuir além de todo o modo e 
medida . 
Não sofrerás aqui por muito tempo, bem para sempre 
serás atormentado pelas dores. 
Espera um pouco e verás o rápido fim dos males. 
Virá a hora em que cessará todo o trabalho e o tumulto. 
É pequeno e breve tudo o que passa com o tempo. 
2 . 
Faz o que fazes, trabalha fielmente na minha vinha: Eu 
serei a tua recompensa (Gn 1 5 , 1 ) . 
Escreve, lê, canta, geme, cala-te, reza, suporta com 
paciência as adversidades: a vida eterna é digna de todos 
estes e até de maiores combates. 
A paz virá num dia conhecido do Senhor e não haverá 
mais dia nem noite, como neste mundo, mas uma luz eterna, 
uma claridade infinita, uma paz firme e um seguro descanso. 
Não dirás então: quem me libertará deste corpo de morte? 
(Rm 7,24) , nem clamarás: ai de mim, porque o meu exílio se 
2 1 4 ] 
prolongou! ( Sl 120 [ 1 1 9] ,5-6 ) , pois a morte será destruída 
( Is 25, 8 ) e a salvação será indestrutível; não haverá qualquer 
ansiedade, mas alegria feliz, bela e doce companhia . 
3 . 
Oh, se tivesses visto do Céu as coroas eternas dos santos 
e com quanta glória exultam aqueles que neste mundo eram 
j ulgados desprezíveis e quase indignos de viver, depressa te 
curvarias até ao chão, preferindo estar suj eito a todos a 
mandar num só, e não desejarias os alegres dias desta vida; 
mas, antes, te alegrarias de sofrer por Deus e chegarias ao 
ponto de ter como o maior bem ser contado como nada 
entre os homens. 
4. 
Oh, se estas coisas tivessem sabor para ti e penetrassem 
profundamente no teu coração ! Como ousarias queixar-te 
mesmo uma só vez ? 
Acaso não merece a vida eterna que se suporte tudo o que 
custa ? 
Não é pouca coisa perder ou ganhar o Reino de Deus. 
Ergue, pois, a tua face para o Céu; e eis-me, e a todos os 
meus santos comigo, aqueles que grande luta travaram neste 
mundo. 
Muito se alegram, muito são consolados, estão bem segu­
ros e muito descansam, e permanecerão comigo sem fim no 
Reino do meu Pai . 
[ 2 1 5 
XLVIII 
Do dia da eternidade e das angústias desta vida 
1 . 
DISCÍPULO - Ó mansão bem-aventurada da cidade 
suprema ! 
Ó claríssimo dia da eternidade que a noite não obscurece, 
mas onde sempre irradia a suma verdade ! Dia sempre alegre, 
sempre seguro, e que nunca muda ! 
Oh, oxalá resplandecesse esse dia e todas estas coisas 
temporais tivessem o seu fim ! 
Resplandece ele, em verdade, para os santos, com uma 
claridade eterna, mas só de longe e como num espelho para 
os peregrinos na Terra. 
2 . 
Sabem o s habitantes do Céu como esse dia é alegre; 
gemem os degredados filhos de Eva porque o seu dia é de 
amargura e de tédio. 
Os dias deste tempo são curtos e maus (Gn 47,9 ) , cheios 
de dores e de angústias; neles o homem é infetado por muitos 
pecados, enredado em muitas paixões, tolhido por muitos 
medos, aberto a muitos cuidados, distraído com muitas curio­
sidades, envolvido em muitas vaidades, rodeado por muitos 
erros, gasto por muitos trabalhos, curvado pelas tentações, 
amolecido pelo prazeres, atormentado pela pobreza. 
3 . 
Oh, quando virá o fim destes males ? Quando me liberta­
rei da triste servidão dos pecados ? 
2 1 6 ] 
Quando me lembrarei, Senhor, só de ti ? Quando me ale­
grarei plenamente em ti ? 
Quando me encontrarei sem qualquer entrave na verda­
deira liberdade, sem peso de alma ou de corpo ? 
Quando haverá paz segura, imperturbável e certa, paz 
por dentro e paz por fora, paz firme por toda a parte ? 
Bom Jesus, quando estarei a ver-te, quando contemplarei a 
glória do teu Reino? Quando serás para mim tudo em tudo? 
Oh, quando estarei eu contigo no teu Reino, que desde 
sempre preparaste para os que amas? (Mt 25,34 ) . 
Fui abandonado pobre e degredado numa terra hostil, 
onde em cada dia há lutas e as maiores desgraças . 
4. 
Consola o meu exílio, mitiga a minha dor,porque por ti 
suspira todo o meu desejo . 
Tudo o que este mundo me oferece por consolo é para 
mim um fardo. 
Quero fruir de ti intimamente, e não consigo alcançar-te . 
Quero apegar-me às coisas do Céu, mas deprimem-me as 
deste mundo e as paixões não mortificadas . 
Quero elevar-me pelo espírito acima de todas as coisas, 
mas eis que a carne me obriga a sujeitar-me a elas. 
E assim, homem infeliz, comigo mesmo luto e me torno 
pesado a mim próprio, pois que enquanto o espírito procura 
o Alto, a carne quer estar em baixo. 
5. 
Oh, como sofro interiormente quando o meu espírito se 
ocupa das coisas do Céu e, ao rezar, sou assaltado pela mul­
tidão das coisas de Terra ! 
Meu Deus, não te afastes de mim, nem na tua ira aban­
dones o teu servo (SI 71 [70] , 1 2; 27[26] ,9 ) . 
[ 2 1 7 
Faz brilhar o teu raio e dissipa as trevas; lança as tuas setas 
(Sl 144[143] ,6 ) e confundam-se os fantasmas do inimigo. 
Recolhe em ti os meus sentidos; faz-me esquecer todas as 
coisas do mundo; concede-me que fuja e despreze os fantas­
mas dos vícios. 
Socorre-me, ó eterna Verdade, e nenhuma vaidade me 
abalará ! Vem, Suavidade do Céu, e que toda a impureza fuja 
da tua face ! 
Perdoa-me e tem de mim misericórdia todas as vezes que, 
na oração, te esqueço por outras coisas . 
Pois, na verdade, eu confesso que me distraio muitas vezes. 
Frequentemente não estou onde o meu corpo se encontra 
de pé ou sentado, mas sim onde me leva o pensamento. 
Estou onde está o meu pensamento, e o meu pensamento 
está geralmente onde está aquilo que eu amo. 
E ocorre-me mais depressa o que por natureza ou hábito 
me agrada. 
6. 
Por isso, Tu, a Verdade, disseste claramente : onde está o 
teu tesouro, aí está o teu coração (Mt 6,21 ) . 
S e amo o Céu, d e boa vontade penso nas coisas d o Céu. 
Se amo o mundo, alegro-me com as felicidades do mundo 
e entristeço-me com os seus males . 
Se amo a carne, muitas vezes penso no que lhe pertence . 
Se amo o espírito, gosto de pensar nas coisas espirituais. 
Falo e dou ouvidos às coisas que amo, e delas são as ima-
gens que trago para casa. 
Mas feliz o homem que por ti, Senhor, se liberta de todas 
as criaturas, que faz violência à natureza e crucifica os dese­
jos da carne com o fervor do espírito; a fim de que, acal­
mada a sua consciência, te ofereça uma oração pura e se 
torne digno, abandonando as coisas do mundo fora ou 
dentro de si, de se j untar aos coros dos anjos. 
2 1 8 ] 
XLIX 
Do desejo da vida eterna, 
e de quão grandes são os bens prometidos aos que lutam 
1 . 
CRISTO - Filho, quando sentires descer sobre ti, do Alto, 
o anseio da felicidade eterna, e desej ares sair da tenda do 
corpo para poderes contemplar a minha luz sem a sombra 
daquilo que passa, alarga o teu coração e acolhe esta santa 
inspiração com todo o teu amor. 
Dá muitas graças à suprema Bondade que assim se digna 
agir contigo, que te visita com doçura, que te excita com 
ardor, que te eleva com força, para que não caias pelo t,.eu 
peso nas coisas do mundo. 
Não consideres isso como pensamento ou esforço teus, 
mas sim como puro favor da suprema graça e do olhar de 
Deus, para que progridas em virtudes e numa maior humil­
dade, e te prepares para os combates futuros; para que pro­
cures unir-te a mim como todo o amor do teu coração e 
servir-me com uma vontade fervorosa. 
2. 
Filho, muitas vezes arde o fogo, mas sem fumo a chama 
não se eleva . 
Assim também aspiram os desej os de alguns para as 
coisas do Céu, e contudo não se encontram livres da tenta­
ção do amor carnal . 
[ 2 1 9 
E por isso não fazem só para glória de Deus o que tão 
insistentemente lhe pedem. 
Assim é, muitas vezes, o teu desejo, que talvez tão impor­
tunamente insinuaste. 
Pois nada do que é misturado ao amor-próprio é puro e é 
perfeito . 
3 . 
Pede, não o que te é agradável e cómodo, mas o que me é 
aceitável e me honra; porque, se agires com justiça, deves 
preferir e seguir a minha vontade e não o teu desejo ou qual­
quer desejo . 
Conheço o teu desejo e ouvi as tuas contínuas queixas. 
Quererias j á estar na liberdade da glória dos filhos de 
Deus; já suspiras pela morada eterna e pela pátria do Céu 
cheia de alegria ; mas ainda não chegou essa hora, e estás 
ainda noutro tempo, tempo de guerra, de trabalho e de pro­
vação . 
Queres encher-te com o supremo bem, mas ainda não o 
podes conseguir. 
Sou Eu: espera-me, diz o Senhor, até que venha o Reino 
de Deus (Lc 22, 1 8 ) 
4. 
Tens de ser ainda experimentado na Terra e exercitado 
em muitas coisas . 
De vez em quando, é-te dada a consolação, mas não te é 
concedida uma total plenitude. 
Portanto, anima-te e sê forte (Js 1 ,7) , tanto a fazer como 
a sofrer as coisas adversas à natureza. 
Importa que te revistas do homem novo (Ef 4,24 ) ; e que 
te mudes num outro homem ( 1 Sm 1 0,6-9 ) . 
220 ] 
É-te necessário muitas vezes fazer o que não queres e 
abandonar o que desejas. 
O que agrada aos outros seguirá o seu caminho, mas o 
que te agrada não avançará . 
O que os outros dizem será ouvido; o que tu dizes, tido 
como nada. 
Outros pedirão e receberão; tu pedirás e nada obterás. 
Outros serão grandes na boca dos homens; mas de ti não 
se falará. 
A outros se confiará isto ou aquilo; mas tu para nada 
serás julgado útil . 
Por tudo isto a natureza se entristecerá de vez em 
quando: e isso terá muito valor, se o suportares em silêncio. 
5. 
Nestas e em muitas outras coisas semelhantes costuma 
ser experimentado o fiel servo de Deus, para ver se é capaz 
de se negar e se quebrar em todas as coisas. 
Quase nada há que tanto te prove que precisas de ser 
mortificado como veres e sofreres o que é contrário à tua 
vontade, sobretudo quando te ordenam coisas desproposita­
das ou que te não pareçam úteis . 
E como não ousas resistir ao poder do superior a que 
estás subordinado, parece-te duro caminhar à vontade de 
outro e não ter em conta a tua opinião pessoal. 
6. 
Mas pensa, filho, no fruto destes trabalhos, no fim que não 
demora e no tão grande prémio; e não sentirás desgosto por 
isso, mas sim grandíssima consolação para a tua paciência. 
Na verdade, por esta pequena vontade que abandonas 
agora porque queres, farás certamente a tua vontade nos 
Céus. 
[ 221 
Aí encontrarás certamente tudo o que quiseres, tudo o 
que possas desejar; aí todo o bem te será presente, sem medo 
de o perderes. 
Aí, a tua vontade, sempre uma comigo, nada desejará de 
exterior ou de particular. 
Aí, ninguém te resistirá, ninguém se queixará de ti, nin­
guém te entravará, ninguém te contrariará, mas tudo o que 
desej aste estará presente e confortará o teu coração e o 
encherá até ao cimo. 
Aí darei a glória em paga da injúria que sofreste; o manto 
do louvor, pela tristeza; pelo último lugar, um trono no 
Reino para sempre . 
Aí se mostrará o fruto da obediência, aí se alegrará o 
esforço da penitência e será coroada com glória a humilde 
submissão. 
7. 
Por isso, verga-te agora humildemente às mãos de todos e 
não te preocupes com quem é que disse ou ordenou isto ou 
aquilo; mas esforça-te sinceramente, se um teu superior, ou 
inferior, ou igual, te reclamar ou ordenar qualquer coisa, por 
o acolheres de bom ânimo e procurares satisfazê-lo com ver­
dadeira boa vontade. 
Que um procura isto e outro aquilo, que aquele se glori­
fique daquilo e este disto, e que sej a louvado mil e mil vezes; 
mas tu, nem nisto nem naquilo, mas alegra-te sim no des­
prezo de ti próprio, só na minha vontade e glória. 
Deves desejar isto: que, quer pela vida, quer pela morte, 
Deus seja em ti glorificado (Fl 1 ,20 ) . 
222 ] 
L 
De como o homem desolado 
se deve entregar nas mãos de Deus 
1 . 
DISCÍPULO - Senhor Deus, Pai santo, sê bendito agora 
e para sempre porque, tal como queres, assim se fez, e tudo 
o que fazes é bom. 
Que em ti se alegre o teu servo, e não em si próprio ou em 
qualquer outro ; pois que só Tu és a verdadeira alegria , a 
minha esperança e a minha coroa, a minha felicidade eprocurar mais a utilidade nas Escrituras do que 
a subtileza das frases. 
Assim, tanto devemos ler os livros simples e piedosos, 
como os elevados e profundos. 
Não tomes em conta a autoridade do que escreve, se para 
tal tem pouca ou muita ciência; que só o amor da verdade 
pura te leve a ler. 
Não procures quem disse as coisas; atende mais ao que é dito. 
Os homens passam, mas a verdade de Deus permanece 
eternamente (Sl 1 1 7[ 1 1 6] ,2 ) . 
2. 
De muitos modos nos fala Deus, sem atender a pessoas. 
Muitas vezes a nossa curiosidade nos perturba ao lermos 
as Escrituras, por querermos perceber e discutir o que com 
simplicidade deveria ser transposto. 
Se queres tirar proveito, lê humilde, simples e fielmente; 
não queiras para ti nome de sábio. 
Interroga de boa vontade e, em silêncio, ouve as palavras 
dos santos; que as parábolas dos antigos te não desagradem, 
pois que não são ditas sem razão. 
[ 1 9 
VI 
Das afeições desordenadas 
1. 
Assim que o homem deseja desordenadamente qualquer 
coisa, logo se torna inquieto. 
O soberbo e o avaro nunca descansam, mas o pobre e o 
humilde de espírito vivem com abundância de paz. 
O homem que nunca morreu para si perfeitamente, facil­
mente é tentado e sucumbe em coisas pequenas e desprezí­
veis. 
O fraco de espírito, carnal e ainda inclinado para os sen­
tidos, dificilmente pode abstrair de todo dos desejos terre­
nos; e por isso se sente muitas vezes triste quando se lhes 
subtrai, e facilmente irritado se alguém o contradiz. 
Mas se, porém, consegue o seu desej o, logo lhe vem o 
remorso, por ter seguido a paixão, de que lhe não vem a paz 
que quena. 
Por isso, é resistindo às paixões que se encontra a verda­
deira paz do coração, e não servindo-as. 
Não há, na verdade, paz no coração do homem carnal, 
nem no que é dado às coisas exteriores, mas sim no fervo­
roso e dado ao espírito . 
20 ] 
VII 
De como fugir da esperança vã e do orgulho 
1 . 
Vão é aquele que põe a sua esperança nos homens ou nas 
outras criaturas. 
Não te envergonhes de servir os outros por amor de Jesus 
Cristo e de parecer pobre neste mundo. 
Não te apoies em ti, mas põe a tua esperança em Deus . 
Faz o que puderes, que Deus ajudará a tua boa vontade. 
Não confies na tua ciência ou na astúcia de nenhum ho-
mem, mas sim na graça de Deus, que ajuda os humildes e 
abate os orgulhosos. 
2. 
Não te vanglories nas riquezas, se as tens, nem nos ami­
gos por serem poderosos; mas em Deus que tudo dá e que, 
sobretudo, se quer dar. 
Não te envaideças da força ou da beleza do corpo, que 
uma pequena doença corrompe e destrói. 
Não te orgulhes da tua habilidade ou do teu espírito, 
para que não desagrades a Deus, de quem é tudo o que pos­
suis de bom. 
3. 
Não te j ulgues melhor que os outros, para que Deus te 
não julgue pior, Ele que sabe o que há no homem. 
Não te orgulhes das boas obras, pois outros são para 
[ 21 
Deus os juízos dos homens, e muitas vezes lhe não agrada o 
que aos homens apraz. 
Se tiveres algo de bom, acredita-o melhor nos outros, 
para que conserves a humildade. 
Não te prej udicas se te considerares abaixo de todos; 
muito mais te prejudicará colocares-te acima de um só. 
O humilde goza de contínua paz; mas no coração do 
soberbo reina a inveja e é frequente a indignação. 
22 ] 
VIII 
De como evitar a muita familiaridade 
1 . 
Não abras o teu coração a qualquer pessoa ( Sir 8 , 1 9 ) , 
mas apenas a o sábio e temente a Deus . 
Fala pouco com jovens e com estranhos. 
Guarda-te de agradar aos ricos e não gostes de aparecer 
aos poderosos. 
Antes procura os humildes e os simples, os piedosos e os 
de bons costumes, e fala-lhes das coisas que edificam. 
Não tenhas familiaridade com qualquer mulher, mas 
recomenda a Deus as virtuosas. 
Não queiras ser familiar senão com Deus e os seus anjos; 
evita a fama dos homens. 
2. 
Deve ter-se com todos caridade, não familiaridade. 
Às vezes estima-se uma pessoa pelo que dela se sabe, mas 
é a sua presença que destrói esse j uízo. 
Julgamos agradar aos outros com a nossa assiduidade, e 
então, por nossos defeitos, bem mais lhes desagradamos. 
[ 23 
IX 
Da obediência e da submissão 
1. 
Grande coisa é viver na obediência, sujeito a um superior, 
e não depender de si próprio . 
É muito mais fácil obedecer do que mandar. 
Muitos obedecem mais por necessidade do que por amor, 
sofrem por isso, e murmuram; mas não adquirirão liberdade 
de espírito enquanto se não submeterem de todo o coração 
por amor de Deus . 
Por mais que corras, não acharás repouso senão na 
humilde submissão a um superior. 
Muitos são enganados pela ideia de que se melhora ao 
mudar de lugar. 
2. 
É verdade que todos preferem agir segundo o seu espírito, 
e se inclinam mais para os que consigo concordam. 
Mas, se Deus está entre nós, é, por vezes, preciso aban­
donar a nossa opinião, pelo bem da paz. 
Quem é sábio a ponto de poder conhecer todas as coisas ? 
Por isso, não queiras confiar demasiadamente na tua opi­
nião, e antes ouve de boa vontade a dos outros. 
Se o teu parecer é bom, mas segues o de outros por amor 
de Deus, tanto mais lucrarás . 
Sempre ouvi dizer que é mais seguro ouvir e receber con­
selho do que dá-lo . 
Pode uma opinião ser boa, mas é, sinal de orgulho e tei­
mosia não querer concordar com os outros quando a oca­
sião e a razão o pedem. 
24 ] 
X 
De como evitar as palavras a mais 
1. 
Foge quanto puderes do tumulto dos homens, que só te 
embaraçam as coisas do mundo, e mesmo se feitas com reta 
intenção. 
Cedo nos mancha a vaidade, depressa ela nos prende. 
Tantas vezes me quisera ter calado, e não ter estado entre 
os homens. 
Porque falamos e conversamos tão facilmente uns com os 
outros, e tão raro regressamos ao silêncio sem uma cons­
ciência ferida ? 
Falamos assim porque nos queremos consolar com 
muitas palavras e animar o nosso espírito que muitos pensa­
mentos já cansaram. 
E ainda mais gostamos de falar e de pensar naquilo que 
nós queremos ou amamos e no que nos é contrário; mas, ai, 
é muita vez em vão, pois isto que exteriormente nos consola 
não raro é obstáculo à divina e interior consolação. 
2. 
Por isso, vigiemos e oremos, para que não passe ocioso o 
tempo. 
E se falar é lícito e preciso, fala do que edifica . 
Os maus costumes e o não cuidarmos da nossa perfeição 
tornam difícil calar a nossa boca. 
Muito nos ajuda a progredir a piedosa conversa sobre 
coisas da alma, e mais entre pessoas que num mesmo espí­
rito se unem em Deus. 
[ 25 
XI 
De como alcançar a paz e · progredir na virtude 
1 . 
Grande paz poderíamos alcançar, se nos não quiséssemos 
ocupar das palavras e atos alheios e do que não nos diz 
respeito. 
Como poderá permanecer em paz aquele que interfere 
nos problemas dos outros, que busca o que é exterior e 
pouco ou muito raro se recolhe ? 
Felizes os simples, porque terão grande paz. 
2. 
Por que razão qualquer dos santos foi tão perfeito e con­
templativo ? 
Porque a todo o momento eles matavam em si os desejos 
do mundo, de todo o coração pertenciam a Deus e então li­
vremente se ocupavam de si. 
Mas nós ocupamo-nos muito das nossas paixões e da­
quilo que passa . 
Raramente vencemos por completo um defeito, e não 
conseguimos um progresso diário: assim nos mantemos tão 
frios e mornos. 
3. 
Se estivéssemos completamente mortos para nós próprios 
e mais livres por dentro, então saberíamos o gosto do divino 
e alguma coisa da contemplação do Céu. 
26 ] 
O nosso maior e único obstáculo é não estarmos livres de 
paixões e desejos e não nos esforçarmos por entrar na per­
feita via dos santos. 
Quando nos sucede qualquer adversidade, imediatamente 
desanimamos e voltamos às consolações humanas. 
4. 
Se nos mantivermos quais homens fortes no combate, 
depressa veremos sobre nós o auxílio de Deus. 
Na verdade, Ele está pronto a ajudar os que combatem e 
esperam na sua graça; pois é quem nos favorece as ocasiões 
de lutar, para que vençamos. 
Se unicamente pomos o progresso daa 
minha glória, Senhor. 
Que tem o teu servo senão o que de ti recebeu ? ( 1 Cor 
4,7) , e até isso sem que o tenha merecido ? 
É teu tudo o que deste e fizeste . 
Estou pobre e em trabalhos desde a minha juventude (SI 
8 8 [ 8 7] , 1 6 ) , e a minha alma entristece-se por vezes até às 
lágrimas, e , outras vezes, perturba-se em si mesma pelas 
grandes paixões. 
2. 
Desejo a alegria da paz: clamo pela paz dos filhos que por 
ti são apascentados na luz da consolação. 
Se concedes a paz, se infundes santa alegria, a alma do teu 
servo ficará cheia de harmonia e fervorosa em teu louvor. 
Mas se te afastares, como o costumas tantas vezes, não 
poderá correr na via dos teus mandamentos ( Sl 1 1 9 [ 1 1 8 ] , 
3 2 ) ; mas mais s e dobrarão o s seus j oelhos a o bater n o peito : 
[ 223 
porque para ele já não é como ontem e antes de ontem 
( Gn 3 1 ,5 ), quando a tua luz brilhava por sobre a sua cabeça 
(Jb 29,3 ) , e à sombra das tuas asas era protegido das tenta­
ções que o assaltavam. 
3 . 
Pai j usto e sempre digno de louvor, aproxima-se a hora 
em que será julgado o teu servo. 
Pai a quem devemos amar, é justo que, nesta hora, o teu 
servo por ti sofra qualquer coisa. 
Pai eternamente digno de veneração, vem a hora que 
desde sempre sabias haver de vir, em que por pouco tempo o 
teu servo sucumbe cá fora, embora por dentro viva sempre 
junto de ti . 
Por algum tempo é preciso que sej a desprezado, que sej a 
humilhado e desfaleça diante dos homens, esmagado pelas 
paixões e pelos desfalecimentos, para que de novo ressurja 
contigo na aurora duma nova luz e sej a engrandecido no 
Céu. 
Pai santo, Tu assim dispuseste e assim quiseste : e assim se 
fez o que Tu próprio ordenaste. 
4. 
É esta a graça que concedes ao que é teu amigo: sofrer e 
ser atormentado no mundo por teu amor, sempre que o per­
mites e através de quem o permites. 
Sem o teu conselho e a tua providência, e sem uma causa, 
nada se faz na Terra . 
É para mim um bem, Senhor, que me tenhas humilhado, 
para que eu conheça os caminhos da tua justiça ( SI 1 1 9 
[ 1 1 8 ] , 71 ) , e afaste todos os orgulhos do coração e as pre­
sunções. É-me útil que a confusão tivesse coberto a minha 
224 ] 
face ( Sl 69[68 ] , 8 ) , para que procure a tua consolação, mais 
do que a dos homens. 
Aprendi ainda a temer os teus inescrutáveis j uízos, Tu que 
tanto afliges o justo como o pecador, mas não sem equidade 
e sem justiça. 
5. 
Graças te dou porque me não poupaste a sofrimentos, 
mas me gastaste com duros golpes, infligindo-me dores e 
metendo-me em angústias fora e dentro de mim. 
Não há quem me console de tudo o que existe no mundo 
senão Tu, Senhor meu Deus, divino médico das almas: que 
feres e que curas, que conduzes e retiras dos infernos ( 1 Sm 
2,6; Tb 1 3 ,2 ) . 
A tua disciplina está sobre mim: e a tua própria vara me 
ensinará ( Sl 1 8 [ 1 7] , 36 ) . 
6. 
Eis, amado Pai, que estou nas tuas mãos e me inclino sob 
a vara da tua correção; fere-me as costas e o pescoço, para 
que endireite segundo a tua vontade o que em mim há de 
torto. 
Torna-me um discípulo fervoroso e humilde, como tão 
bem o sabes, para que caminhe ao sabor da tua vontade. 
Entrego-me, e a tudo o que é meu, para que o emendes, 
pois é melhor ser emendado neste mundo do que no que há 
de vir. 
Tu conheces todas as coisas e cada uma delas, e nada se te 
esconde na consciência humana. 
Antes que suceda, Tu sabes o que há de vir, e não precisas 
de ninguém que te ensine ou aconselhe sobre o que se passa 
na Terra 
[ 225 
Tu sabes o que convém ao meu progresso e de quanto 
serve a tribulação para limpar a ferrugem dos vícios . 
Faça-se em mim segundo a tua vontade adorável, e não 
abandones a minha vida de pecado, de ninguém melhor e 
mais claramente conhecida que de ti . 
7. 
Concede-me, Senhor, que eu conheça o que deve ser 
conhecido, que eu ame o que se deve amar, que eu louve o 
que mais te agrada, que eu estime o que te é precioso, que eu 
censure o que a teus olhos é vil . 
Não permitas que eu julgue segundo o que meus olhos 
veem, nem me pronuncie segundo o que oiço dos homens 
insensatos (Is 1 1 ,3 ) , mas, sim, que eu distinga com verda­
deiro j uízo as coisas visíveis e as espirituais e que sempre 
procure acima de tudo a tua vontade. 
8. 
Muitas vezes se enganam, ao julgar, os sentidos dos ho­
mens, e enganam-se também os que gostam do mundo ao 
amarem somente as coisas que se veem. 
Em que se torna melhor aquele que pelo homem é tido 
por maior ? 
Ao exaltá-lo, é um mentiroso que engana um mentiroso, 
Um vaidoso que engana outro vaidoso, um cego que engana 
um cego, um fraco que engana outro fraco; e, quando o 
louva sem razão, verdadeiramente mais o confunde. 
Pois aquilo que alguém é a teus olhos, isso é, e nada mais, 
diz o humilde São Francisco (São Boaventura na sua Vida de 
São Francisco de Assis, cap . 6 ) . 
226 ] 
LI 
Como nos devemos ocupar de trabalhos humildes 
quando desfalecemos nos mais altos 
1 . 
CRISTO - Filho, não consegues manter-te sempre no 
mais fervoroso desejo das virtudes, nem deter-te no mais alto 
grau de contemplação, mas tens necessariamente, de tempos 
a tempos, por causa da tua corrupção original, que descer a 
coisas mais baixas e levar, ainda que à força e com tédio, o 
fardo da vida corruptível. 
Enquanto tiveres um corpo mortal, sentirás o tédio e o 
peso de coração. 
É, pois, necessário, enquanto se vive na carne, gemer com 
o peso da carne e por não poderes continuamente abraçar­
-te às coisas do espírito e à contemplação divina. 
2. 
Por isso te convém refugiares-te nos trabalhos humildes e 
exteriores e recreares-te nas boas obras, esperar a minha 
chegada e a suprema visita com firme confiança, aguentar o 
teu exílio e a aridez do espírito com paciência, até que de 
novo sejas por mim visitado e liberto de todas as ansiedades . 
Então te farei esquecer os sofrimentos e gozar de paz inte­
rior: diante de ti estenderei os prados das Escrituras para 
que, de coração dilatado, comeces a correr na via dos meus 
mandamentos (SI 1 1 9 [ 1 1 8 ] ,32 ) . 
E dirás: os sofrimentos do tempo presente não estão em 
proporção com a glória futura, que em nós será revelada 
(Rm 8 , 1 8 ) . 
[ 227 
UI 
Que o homem se não julgue digno de consolação, 
mas antes réu de castigos 
1 . 
DISCÍPULO - Senhor, eu não sou digno da tua consola­
ção nem de qualquer visita ao meu espírito. 
Por isso ages com justiça para comigo, quando me deixas 
pobre e desolado. 
Ainda que chorasse um mar de lágrimas, não seria digno 
da tua consolação. 
Na verdade, apenas sou digno de ser atormentado e 
punido, porque muitas vezes te ofendi gravemente e inúme­
ras vezes pequei . 
Por isso, pensando bem, não sou digno da menor conso­
lação. 
Mas Tu, ó Deus clemente e misericordioso, que não que­
res que as tuas obras tenham fim, para mostrares as rique­
zas da tua bondade em vasos de misericórdia (Rm 9,23 ) , 
sem qualquer mérito dele, dignas-te consolar o teu servo 
dum modo tão superior ao dos homens . 
Na verdade, as tuas consolações não são como as pala­
vras humanas. 
2 . 
Que fiz eu, Senhor, para que me desses qualquer consola­
ção do Céu ? 
Não me recordo de ter feito nada de bom, mas sim de 
228 ] 
sempre ter sido inclinado aos vícios e preguiçoso em emen­
dar-me. 
É verdade, e não o posso negar. 
Se outra coisa dissesse, Tu te erguerias contra mim e não 
haveria quem me defendesse. 
Que mereci pelos meus pecados, senão o Inferno e o fogo 
que não finda? 
Em verdade, confesso que sou digno de toda a troça e 
desprezo, e não mereço ser contado entre os teus fiéis. 
E, embora me custe ouvir tal coisa, confessarei contra 
mim mesmo e por amor da verdade os meus pecados, para 
merecer alcançar mais facilmente a tua misericórdia . 
3. 
Que direi eu, culpado e cheio de toda a confusão ? 
Não tenho boca para falar, senão estas palavras: pequei, 
Senhor, pequei. Tem misericórdia de mim e perdoa-me. 
Deixa-me um pouco, para que chorea minha dor, antes 
que vá para a terra tenebrosa, coberta pela sombra da morte 
(Jb 1 0,20-2 1 ) . 
Que pedes a um tão grande culpado, a um infeliz peca­
dor, senão que se abata e humilhe pelos seus crimes ? 
No verdadeiro arrependimento e humildade de coração 
nasce a esperança de se ser perdoado, reconcilia-se a cons­
ciência inquieta, recupera-se a graça perdida, defende-se o 
homem da ira futura e encontram-se, num beijo santo, Deus 
e a alma penitente . 
4. 
A humilde contrição dos pecados é para ti, Senhor, um 
sacrifício aceitável, incomparavelmente mais perfumado na 
tua presença do que o incenso ardente. 
Ela é o bálsamo que te agrada e que quiseste fosse derra-
[ 229 
mado nos teus pés sagrados, porque nunca desprezaste o 
coração contrito e humilhado (SI 5 1 [50] , 1 9 ) . 
A í é o lugar d e refúgio contra a ira do inimigo, aí se 
emenda e purifica o que em outros· lados se manchou e con­
taminou. 
230 ] 
1 . 
LIII 
Que a graça de Deus se não liga 
aos que saboreiam as coisas da Terra 
CRISTO - Filho, preciosa é a minha graça e não sofre 
ser misturada com coisas estranhas ou com consolações 
terrenas. 
É necessário, por isso, afastar todos os obstáculos à 
graça, se queres por ela ser banhado. 
Procura um lugar escondido, tem gosto em estares só 
contigo, não busques a conversação de ninguém; mas eleva 
antes a Deus uma fervorosa prece, para que obtenhas um 
espírito contrito e uma consciência pura. 
Tem todo o mundo por nada e prefere a todas as coisas 
exteriores o tempo para te ocupares de Deus. 
Na verdade, não te podes ocupar de mim e ao mesmo 
tempo deleitares-te naquilo que passa . 
Precisas de te afastar dos teus conhecidos e amigos e 
manter o espírito separado de toda a consolação temporal. 
Assim insiste o bem-aventurado apóstolo Pedro, que os 
fiéis de Cristo se mantenham tal como estrangeiros e pere­
grinos neste mundo ( 1Pe 2 , 1 1 ) . 
2 . 
Oh, quanta confiança haverá para o que vai morrer e que 
o amor de coisa alguma apega ao mundo ! 
Mas o espírito ainda doente não compreende que se 
[ 23 1 
tenha um coração assim separado de tudo, e o homem 
carnal não conhece a liberdade do homem interior. 
Contudo, se verdadeiramente quer ser espiritual, precisa 
de renunciar tanto aos estranhos como aos próximos, e a 
ninguém temer mais que a si próprio. 
Se te venceres completamente, tudo o resto vencerás com 
maior facilidade. 
A vitória perfeita é triunfar de si próprio. 
Na verdade, aquele que se domina de tal modo que os 
seus sentidos estão submetidos à razão, e a razão em todas 
as coisas me obedece, esse é verdadeiramente o vencedor de 
si e o senhor do mundo. 
3 . 
Se desejas subir a esta altura, tens de começar com cora­
gem e pôr o machado na raiz, para que arranques e destruas 
a oculta e desregrada inclinação para ti próprio e para todos 
os bens pessoais e materiais . 
Deste vício, que é o amor desordenado do homem por si 
mesmo, depende quase tudo o que radicalmente deve ser 
vencido. 
Vencido e submetido esse mal, logo haverá grande paz e 
tranquilidade. 
Mas porque poucos se esforçam por morrer perfeita­
mente para si próprios, ou de si próprios sair plenamente, 
por isso permanecem enredados em si e acima de si nunca se 
podem elevar em espírito. 
Mas àquele que deseja de boa vontade caminhar comigo, 
preciso é que se mortifique de todas as suas afeições más e 
desregradas e que se não apegue cobiçosamente a nenhuma 
criatura com um amor egoísta . 
232 ] 
LIV 
Dos movimentos diversos na natureza e da graça 
1 . 
CRISTO - Filho, repara atentamente nos movimentos da 
natureza e da graça, pois que são bem contrários e subtis e 
mal se podem distinguir, a não ser pelo homem espiritual e 
interiormente iluminado. 
Na verdade, todos desejam o bem e pretendem algo de 
bom com o que dizem ou fazem: por isso muitos se enganam 
sob esta aparência de bem. 
2 . 
A natureza é astuta, arrasta, enreda e engana a muitos, e 
tem-se sempre a si própria como fim; mas a graça caminha 
com simplicidade, evita toda a aparência de mal, não tende 
para a mentira e tudo faz puramente por Deus, em quem, 
sendo seu fim, descansa. 
3 . 
A natureza só à força quer ser mortificada, humilhada ou 
vencida e nunca se submete ou subjuga de bom ânimo; mas 
a graça esforça-se pela sua própria mortificação, resiste à 
sensualidade, procura submeter-se, gosta de ser vencida, não 
quer gozar da sua liberdade; ama a disciplina, não pretende 
dominar ninguém, mas sim viver, manter-se e estar sob a 
vontade de Deus, e por amor de Deus estar preparada a in­
clinar-se humildemente a toda a criatura humana ( 1 Pe 2, 1 3 ) . 
[ 233 
4. 
A natureza trabalha para o seu próprio bem-estar, e pro­
cura tudo o que dos outros lhe venha como lucro; a graça, 
porém, não considera o que lhe possa ser útil ou cómodo, 
mas o que aproveita a muitos. 
A natureza aceita de boa vontade a honra e o respeito; a 
graça atribui fielmente a Deus toda a honra e toda a glória. 
A natureza teme a humilhação e o desprezo; a graça 
alegra-se em sofrer injúrias pelo nome de Jesus (At 5 ,4 1 ) . 
A natureza ama a ociosidade e o repouso do corpo; a 
graça não pode estar parada, mas abraça todo o trabalho de 
bom ânimo. 
5. 
A natureza procura ter o que é curioso ou belo e odeia 
tudo o que é vil e grosseiro; a graça deleita-se nas coisas sim­
ples e humildes, não trata com rudeza o que é rude, não foge 
a cobrir-se com andrajos. 
A natureza olha para o que é da Terra, alegra-se com os 
ganhos deste mundo, entristece-se com as perdas, irrita-se 
com a mais leve ofensa; mas a graça atende ao que é eterno, 
não se apega às coisas temporais, não se perturba com a 
perda delas nem se exalta com as mais duras palavras, 
porque coloca o seu tesouro e alegria no Céu, onde nada 
morre . 
6. 
A natureza é ambiciosa e gosta mais de receber do que 
de dar, ama as coisas próprias e privadas; a graça, porém, 
é piedosa e tudo põe em comum, evita o que é particular, 
contenta-se com pouco, tem por mais feliz dar que receber 
(At 20,3 5 ) . 
A natureza inclina-se para a s criaturas, para a própria 
234 ] 
carne, para as vaidades e para a dispersão; mas a graça leva 
a Deus e às virtudes, renuncia às criaturas, foge do mundo, 
odeia os desejos da carne, limita as divagações, cora de apa­
recer em público. 
A natureza aceita de boa vontade qualquer consolação 
exterior na qual se deleite a seu gosto; mas a graça só em 
Deus procura ser consolada e deleitar-se no supremo bem 
acima de todas as coisas visíveis. 
7. 
A natureza tudo faz por lucro e por sua própria comodi­
dade, e nada pode fazer sem paga, mas espera conseguir 
coisa igual, ou melhor, ou louvor, ou favor pelos bens que 
fez, deseja que sej am exaltados os seus gestos e os seus dons; 
porém, a graça nada de temporal procura, não pede outro 
prémio além de Deus por sua recompensa, nem desej a das 
coisas necessárias deste mundo senão'as que lhe servem para 
alcançar as eternas. 
8. 
A natureza alegra-se com os muitos amigos e parentes, 
orgulha-se com a nobreza da sua posição ou com a origem 
da sua raça, sorri aos poderosos, lisonjeia os ricos, aplaude 
os que lhe são semelhantes; mas a graça ama também os ini­
migos, não se orgulha com o número dos amigos, não consi­
dera a situação ou o nascimento senão onde a virtude for 
maior, favorece os pobres mais que os ricos, compadece-se 
dos inocentes mais que dos poderosos, alegra-se com os que 
são verdadeiros e não com os que mentem, exorta sempre os 
bons a esforçarem-se pelos melhores dons ( 1 Cor 12,3 1 ) e a 
assemelharem-se, em suas virtudes, ao Filho de Deus. 
[ 235 
9 . 
A natureza depressa s e queixa d o que lhe falta, o u da 
doença; a graça suporta a fraqueza com constância. 
A natureza tudo orienta para si, por si combate e discute; 
a graça, porém, tudo reconduz a Deus, donde tudo emana 
na origem, nada de bom se atribui, não presume com arro­
gância, não discute, não prefere a sua opinião à dos outros, 
mas em todo o sentimentoou ideia se submete à eterna sabe­
doria e ao divino exame. 
A natureza gosta de saber segredos e ouvir novidades, 
quer parecer exteriormente e experimentar muitas sensações, 
deseja ser conhecida e fazer aquilo de que provém o louvor e 
a admiração; mas a graça não se importa com o que é novo 
ou curioso, porque tudo isto nasce da antiga corrupção, e 
nada de novo e duradouro existe sobre a Terra . 
1 0. 
Assim ela ensina a refrear os sentidos, a evitar a vã com­
placência e ostentação, a esconder humildemente o que deve 
ser louvado e admirado e a procurar em toda a coisa e em 
toda a ciência o fruto da utilidade e o louvor e glória de 
Deus. 
Não quer que se faça alarde de si, nem das suas obras, 
mas prefere que Deus sej a bendito nos seus dons, Ele que 
tudo concede por pura caridade. 
Esta graça sobrenatural é uma luz e um dom especial de 
Deus, sinal próprio dos eleitos e penhor da salvação eterna, 
ela que arrebata o homem das coisas da terra para o amor 
das do Céu, e que torna espiritual o que é carnal. 
Por isso, quanto mais a natureza é abatida e vencida, 
tanto mais graça se derrama e, todos os dias, com novas visi­
tas, o homem interior se remodela segundo a imagem de 
Deus. 
236 ] 
LV 
Da corrupção da natureza e da eficácia da graça divina 
1 . 
DISCÍPULO - Senhor meu Deus, que me criaste à tua ima­
gem e semelhança, concede-me esta graça que mostraste ser 
tão grande e necessária à salvação, para que eu vença a minha 
tão má natureza que me arrasta ao pecado e à perdição. 
Na verdade, sinto em minha carne a lei do pecado que 
contradiz a lei do meu espírito (Rm 7,23 ) , e sinto-me como 
cativo levado a obedecer em muitas coisas aos sentidos; nem 
mesmo posso resistir às suas paixões, se a tua santa graça, 
difundida ardentemente em meu coração, me não assistir. 
2 . 
É necessária a tua graça e uma grande graça para que sej a 
vencida a natureza, sempre inclinada ao mal desde a sua 
adolescência (Gn 8 ,2 1 ) . 
Pois, manchada e viciada de pecado por Adão, o primeiro 
homem, o castigo dessa mancha desceu a todos os homens, 
de tal modo que a própria natureza, que por ti foi criada boa 
e reta, está disposta ao vício e à fraqueza da natureza cor­
rompida e, assim, o seu movimento, abandonado a si mes­
mo, arrasta para o que é baixo e mau. 
Na verdade, a pequena força que ficou é como uma cen­
telha escondida sob a cinza . 
Esta é a própria razão natural que, embora rodeada por 
muita obscuridade, ainda possui o juízo do bem e do mal, a 
[ 23 7 
distinção do verdadeiro e do falso, ainda que já não possa 
cumprir tudo o que aprova e não possua já a plena luz da 
verdade, nem a pureza das suas afeições. 
3 . 
Daqui vem, meu Deus, que eu me deleite na tua lei se­
gundo o homem interior (Rm 7,22 ) , sabendo que o teu man­
damento é bom, justo e santo ( ibid. , 12 ) , acusando todo o 
mal e fugindo ao pecado; porém, pela carne sirvo a lei do pe­
cado ( ibid. , 2 5 ) , ao obedecer mais à sensibilidade que à 
razão. 
Daí, que eu seja capaz de desejar o bem, mas não consiga 
fazê-lo ( ibid. , 1 8 ) . 
Daí, que me decida, muitas vezes, a muitas coisas boas, 
mas, porque me falta a graça para ajudar a minha fraqueza, 
ao mais pequeno obstáculo recue e caia. 
Daí vem que eu conheça o caminho da perfeição e vej a 
bem claramente o que devo fazer, mas, oprimido pelo peso da 
própria corrupção, me não erga para o que é mais perfeito . 
4. 
Oh, quanto me é necessária, Senhor, a tua graça para 
começar, continuar e conseguir o bem, pois que, se sem ela 
nada posso fazer ! Tudo, porém, posso em ti, com a ajuda da 
graça (Fl 4, 1 3 ) . 
Oh, verdadeira graça d o Céu, sem a qual são nulos todos 
os méritos próprios e de pouco valor os dons da natureza ! 
Sem a graça, Senhor, junto de ti de nada servem as artes, 
as riquezas, a beleza ou a força, nem o engenho ou a elo­
quência . 
Pois que os dons da natureza são comuns aos bons e aos 
maus, mas o dom próprio dos eleitos é a graça ou amor, com 
a qual os que são marcados se tornam dignos da vida eterna. 
238 ] 
Tão elevada é esta graça que nem o dom da profecia, nem 
a virtude dos milagres, nem a mais alta especulação serão 
julgados alguma coisa sem ela. 
Mas nem a fé nem a esperança nem quaisquer outras vir­
tudes te são aceites sem a caridade e a graça. 
5. 
Ó, bem-aventurada graça, que tornas o pobre em espírito 
rico de virtudes e fazes o que é rico em muitos bens humilde 
de coração, vem, desce até mim, enche-me logo de manhã 
com a tua consolação, para que a minha alma não desfaleça 
do cansaço e de secura do espírito . 
Eu te rogo, Senhor, para que ache graça ante os teus 
olhos, pois que a mim basta-me a tua graça ( 2Cor 1 2, 9 ) , 
mesmo que não obtenha o que a natureza deseja . 
Se for tentado e atormentado por muitas tribulações, 
nada temerei, enquanto comigo tiver a tua graça. 
Ela é a minha fortaleza; ela me dá conselho e auxílio. 
É mais poderosa que todos os inimigos e mais sábia que 
todos os sábios. 
6. 
Ela é mestra da verdade, doutora da disciplina, luz do 
coração, consolo das angústias, afastadora da tristeza, dissi­
padora do medo, alimento da devoção, fonte de lágrimas . 
Que sou eu sem ela, senão um tronco seco, um ramo 
inútil e bom para deitar fora ? 
Por isso, Senhor, que a tua graça me previna e siga sem­
pre, que ela me ajude a estar continuamente atento às boas 
obras, por Jesus Cristo, teu Filho ( 1 6 .º Domingo depois do 
Pentecostes ) . Ámen. 
[ 239 
1 . 
LVI 
Como nos devemos negar a nós próprios 
e imitar a Cristo pela Cruz 
CRISTO - Filho, quanto mais conseguires sair de ti pró­
prio, tanto melhor poderás caminhar para mim. 
Tal como não desejar nada cá fora produz a paz interior, 
assim o abandonar-se interiormente une a Deus. 
Quero ensinar-te a perfeita negação de ti próprio na 
minha vontade, sem contradição e sem queixa . 
Segue-me (Mt 8 ,22; Me 2 , 14 ) . 
Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6 ) . 
Sem caminho, não se vai; sem verdade, não se conhece; 
sem vida, não se vive. 
Eu sou o caminho que deves seguir, a verdade em que 
deves crer, a vida que deves esperar. 
Eu sou o caminho seguro, a verdade infalível , a vida 
interminável. 
Eu sou o caminho reto, a suprema verdade, a verdadeira 
vida, a vida feliz, a vida incriada. 
Se permaneceres no meu caminho, conhecerás a verdade, 
e a verdade te libertará e alcançarás a vida eterna (Jo 8 ,32; 
1Tm 6, 1 2 ) . 
2 . 
S e queres entrar na vida, cumpre o s mandamentos (Mt 
1 9 , 1 7) . 
240 ] 
Se queres conhecer a verdade, crê em mim. 
Se queres ser perfeito, vende tudo ( ibid., 2 1 ) . 
S e queres ser meu discípulo, nega-te a ti próprio (Mt 
1 6,24 ) . 
S e queres possuir a vida da bem-aventurança, despreza a 
vida presente. 
Se queres ser exaltado no Céu, humilha-te neste mundo. 
Se queres reinar comigo, leva a minha cruz. 
Na verdade, só os servidores da Cruz encontram a vida 
da felicidade e da luz verdadeira . 
3 . 
DISCÍPULO - Senhor Jesus, porque a tua vida era dura e 
desprezada pelo mundo, faz com que te imite no desprezo 
do mundo. 
Na verdade, não é maior o servo que o seu senhor, nem o 
discípulo está acima do mestre (Mt 1 0,24 ) . 
Que o teu servo se exercite na tua vida, pois que nela está 
a minha salvação e a verdadeira santidade. 
Que tudo quanto eu leia ou ouça fora dela me não alegre 
nem deleite plenamente. 
4. 
CRISTO - Filho, porque sabes tudo isto e tudo leste, 
bem-aventurado serás, se o cumprires (Jo 1 3 , 1 7) . 
O que possui os meus mandamentos e os cumpre, esse é 
aquele que me ama . . . 
E E u o amarei e a ele m e manifestarei (Jo 1 4,2 1 ) e fá-lo­
-ei sentar-se comigo (Ap 3 ,2 1 ) no Reino de meu Pai. 
5. 
DISCÍPULO - Senhor Jesus, tal como disseste e prome­
teste, assim se faça e assim eu consiga merecê-lo. 
[ 241 
Recebi, recebi da tua mão a cruz; levei-a e levá-la-ei até à 
morte, como me mandaste . 
Na verdade, é cruz a vida do bom monge, mas conduz ao 
Paraíso. 
Já se começou:não se pode andar para trás nem desertar. 
6. 
Vamos, irmãos, prossigamos j untos : Jesus estará con­
nosco. 
Por amor de Cristo, aceitámos esta cruz; por Cristo, per­
severemos nela. 
Ele será o nosso auxílio, aquele que nos conduz e nos 
precede . 
Eis que diante de nós caminha o nosso Rei, que por nós 
lutará . 
Sigamo-lo com ânimo: ninguém tema terrores; estej amos 
prontos para morrer corajosamente na guerra, e não faça­
mos injúria à nossa glória, fugindo ( 1 Mac 9, 1 0 ) da cruz. 
242 ] 
LVII 
Que o homem não deve desanimar demasiadamente 
quando cai nalguma falta 
1 . 
CRISTO - Filho, mais me agradam a paciência e a humil­
dade no tempo adverso, que a muita consolação e devoção 
na prosperidade. 
Porque te entristece uma pequena coisa dita contra ti ? 
Nem que fosse maior te deverias perturbar. 
Mas agora, passa por cima dela . 
Não é coisa nova, não é a primeira, nem será a última, se 
viveres muito tempo. 
És bastante forte quando nada te é adverso. 
Aconselhas bem os outros e sabes dar-lhes força com as 
tuas palavras, mas quando à tua porta bate de repente qual­
quer tribulação, falhas no conselho e na força . 
Considera a tua grande fraqueza, que tantas vezes experi­
mentas nas mais pequenas coisas. 
Contudo, isto sucede para tua salvação, quando estas 
coisas e outras semelhantes te acontecem. 
2 . 
Põe-nas, como melhor souberes, para fora d o coração: e, 
se te tocam, que ele não desfaleça nem se enrede por muito 
tempo. 
Aguenta, ao menos com paciência, se o não podes fazer 
com alegria . 
[ 243 
Assim, se ouvires algo que te agrade menos e te sentires 
indignado, reprime-te, para que não deixes sair qualquer 
coisa desregrada da tua boca, que vá escandalizar os mais 
pequenos. 
Depressa se acalmará a emoção provocada e a mágoa 
interior será adoçada com o regresso da graça . 
Assim, se ouvires algo que te agrade menos e te sentires 
indignado, reprime-te, para que não deixes sair qualquer 
coisa desregrada da tua boca, que vá escandalizar os mais 
pequenos. 
Depressa se acalmará a emoção provocada e a mágoa 
interior será adoçada com o regresso da graça. 
Eu vivo ainda, diz o Senhor, pronto para te aj udar, e 
sempre te costumo consolar, se em mim confiares e me invo­
cares com devoção. 
3 . 
Sê constante ( Sir 2,2 ) e prepara-te para aguentares ainda 
mais. 
Nem tudo está perdido, se muitas vezes te encontras ator-
mentado ou em grave tentação. 
És homem, e não Deus. 
És carne, e não anjo. 
Como poderias permanecer sempre em igual estado de 
virtude, se isso faltou ao anjo no Céu e ao primeiro homem 
no Paraíso ? 
Eu sou o que elevo os tristes à segurança e ergo à minha 
divindade os que conhecem a sua fraqueza. 
4. 
DISCÍPULO - Senhor, bendita sej a a tua palavra, mais 
doce do que o mel e do que o favo de mel para a minha boca 
( SI 1 9 [ 1 8] , 1 1 ) . 
244 ] 
Que faria em tantas tribulações e angústias, se me não 
confortasses com as tuas santas palavras ? 
Desde que chegue ao porto de salvação, que me importa 
o que sofri e quanto sofri ? 
Dá-me um bom fim, dá-me uma feliz passagem deste 
mundo. 
Lembra-te de mim, meu Deus, e dirige-me em reto cami­
nho para o teu Reino. 
Ámen. 
[ 245 
1 . 
LVIII 
Que se não devem perscrutar as 
coisas altas e os juízos ocultos de Deus 
CRISTO - Filho, teme discorrer sobre os altos assuntos e 
sobre os ocultos j uízos de Deus: porque é que um é assim 
abandonado e o outro consegue tanta graça, porque é este 
tão afligido e aquele tão grandemente exaltado. 
Estas coisas ultrapassam todas as possibilidades humanas 
e, para investigar o juízo de Deus, nenhuma razão ou dis­
cussão prevalecem. 
Por isso, quando o inimigo te sugerir tais coisas ou quan­
do homens curiosos te interrogarem, responde como o pro­
feta: justo és, Senhor, e reto o teu juízo ( SI 1 1 9 [ 1 1 8] , 1 37 ) . 
Ou então: verdadeiros são os juízos do Senhor e em s i 
próprios justificados ( SI 1 9 [ 1 8 ] , 1 0 ) . 
O s meus juízos devem ser temidos, e não discutidos, pois 
são incompreensíveis para a inteligência humana . 
2. 
Não queiras também investigar ou discutir os méritos dos 
santos : qual será o mais santo ou o maior no Reino dos 
Céus. 
Tais coisas geram, as mais das vezes, discussões e alterca­
ções inúteis, e alimentam o orgulho e a vã glória, donde nas­
cem invejas e dissensões, pois que um teima orgulhosamente 
em preferir este santo e outro aquele . 
246 ] 
Querer saber e investigar tais coisas não traz qualquer 
proveito, mas antes desagrada aos santos; porque não sou o 
Deus da discussão, mas sim da paz ( 1 Cor 14 ,3 3 ) , paz que é 
mais verdadeira humildade do que exaltação de si próprio. 
3 . 
Alguns são atraídos pelo zelo d o amor para estes ou 
aqueles com um maior afeto, mas este afeto é mais humano 
que divino. 
Eu sou o que criei todos os santos: Eu dei a graça, Eu ofe­
reci a glória. 
Eu conheço os merecimentos de cada um, Eu os preveni 
com as bênçãos da minha doçura ( Sl 2 1 [20] ,4 ) , Eu conheci 
os que amo antes de todos os séculos. 
Eu escolhi-os do mundo (Jo 1 5 , 1 9 ) , não foram eles que 
me escolheram; Eu chamei por meio da graça e atraí pela 
misericórdia. 
Eu os conduzi através de várias tentações, Eu lhes con­
cedi enorme consolação, Eu dei perseverança e recompensei 
a sua paciência . 
4. 
Eu conheço o primeiro e o último, e a todos envolvo no 
meu amor sem medida. 
Devo ser louvado em todos os meus santos, bendito sobre 
todas as coisas e honrado em cada um deles, pois que tão 
gloriosamente os elevei e predestinei sem quaisquer anterio­
res méritos seus . 
Por isso, aquele que desprezar o mais pequeno dos meus 
não honra o que é maior: pois Eu fiz o grande e o pequeno 
(Sb 6,7) . 
E quem diminui alguns dos santos, diminui-me a mim e a 
todos os outros no Reino dos Céus . 
[ 247 
Todos são um só pelo vínculo da caridade: sentem o 
mesmo, querem o mesmo, e todos se amam na unidade. 
5. 
E ainda - o que é bem maior - amam-me a mim mais que 
a si próprios ou aos seus méritos. 
Na verdade, arrebatados acima de si �esmos e arrastados 
para fora do seu próprio amor, caminham todos no meu 
amor e aí descansam com proveito . 
Nada há que os possa afastar ou deprimir, pois, cheios da 
verdade eterna, ardem no fogo da eterna caridade. 
Cessem, pois, os homens carnais e animais de discutir o 
estado dos santos, eles que só sabem amar os seus próprios 
prazeres. 
Tiram e acrescentam segundo o que lhes agrada, e não 
segundo o que apraz à eterna verdade. 
6. 
Em muitos há ignorância, sobretudo naqueles que, pouco 
iluminados, nunca são capazes de amar ninguém com verda­
deiro amor espiritual . 
São sobretudo atraídos para estes ou aqueles por um 
afeto natural e uma amizade humana, e tal como se com­
portam com as coisas de Terra assim imaginam as do Céu. 
Mas há uma incomparável distância entre as coisas que 
os homens imperfeitos pensam e as que meditam os que são 
iluminados por uma revelação superior. 
7. 
Teme, pois, meu filho, ocupar-te com curiosidade destas 
coisas que ultrapassam a tua ciência, mas inquieta-te antes e 
esforça-te por poderes encontrar um lugar, ainda que o mais 
pequeno, no Reino de Deus. 
248 ] 
E ainda que alguém soubesse qual era o mais santo ou o 
maior no Reino dos Céus, de que lhe serviria tal conheci­
mento, senão para se humilhar por isso diante de mim e dar 
ainda maior louvor ao meu nome ? 
Muito mais aceitável se torna para Deus aquele que 
pensa na grandeza dos seus pecados, na pequenez das suas 
virtudes e em como está longe da perfeição dos santos, do 
que o que discute a grandeza deles ou a sua pequenez. 
É melhor orar aos santos com fervorosas orações e lágri­
mas e implorar humildemente os seus gloriosos sufrágios, 
que perscrutar-lhes os segredos com vã curiosidade. 
8. 
Bem se contentariam eles, e plenamente, se os homens se 
soubessem contentar e moderar as suas vãs palavras. 
Não se orgulham dos seus próprios méritos , pois que 
nada de bom se atribuem, mas tudo amim, porque tudo lhes 
dei com a minha infinita caridade. 
Estão de tal modo cheios com o imenso amor da divin­
dade e com a alegria superabundante, que nada lhes falta 
para a glória, nada lhes pode faltar à felicidade. 
Todos os santos, tanto mais altos são na glória, quando 
mais humildes são em si próprios, e mais perto de mim 
vivem e mais me são queridos . 
Por isso está escrito: que depunham as suas coroas diante 
de Deus e caíam com o rosto em terra diante do Cordeiro, e 
adoravam o que vive pelos séculos dos séculos (Ap 4 , 1 0; 
5 , 14 ) . 
9 . 
Muitos procuram saber qual será o maior n o Reino de 
Deus (Mt 1 8 , 1 ) , eles que ignoram se serão dignos de ser con­
tados entre os mais pequenos. 
[ 249 
É já grande ser o mais pequeno no Céu, onde todos são 
grandes, porque todos serão chamados filhos de Deus (Mt 
5 ,9 ) , e o serão. 
O mais pequeno estará lá entre mil, e o pecador de cem 
anos morrerá (Is 60,22; 65,20 ) . 
Na verdade, como os discípulos perguntassem qual seria 
maior no Reino dos Céus, ouviram esta resposta : 
Se vos não converterdes e tornardes como meninos, não 
entrareis no Reino dos Céus. 
Assim, o que se fizer como esta criança, esse será o maior 
no Reino dos Céus (Mt 1 8 ,3-4 ) . 
1 0. 
Ai daqueles que não se querem humilhar de sua livre von­
tade como os pequeninos, porque a humilde porta do Reino 
dos Céus os não deixará entrar. 
Ai, também, dos ricos que têm aqui as suas consolações 
(Lc 6,24 ) , porque, ao entrarem os pobres no Reino de Deus, 
eles ficarão de fora a chorar. 
Alegrai-vos, humildes, e exultai, ó pobres, porque vosso 
é o Reino de Deus ( ibid. , 20) , se caminhardes na verdade. 
250 ] 
LIX 
Que só em Deus se deve fixar toda a esperança e confiança 
1 . 
DISCÍPULO - Senhor, qual é a minha confiança nesta 
vida, qual a minha maior consolação entre tudo o que existe 
sob os céus ? 
Não és Tu, Senhor meu Deus, cuja misericórdia não tem 
medida ? 
Ou quando pôde existir mal, estando Tu presente ? 
Antes quero ser pobre por ti, que rico sem ti . 
Prefiro andar contigo como peregrino na Terra, a possuir 
sem ti o Céu. 
Onde Tu, aí o Céu, e só morte e inferno onde não estás. 
Tu és todo o meu desejo: por isso é necessário que gema, 
clame e reze por ti. 
Em nada posso confiar plenamente e finalmente, e que 
melhor me ajude nas necessidades, do que em ti, meu único 
Deus. 
Tu és a minha esperança, a minha confiança; Tu, o meu 
consolador e o mais fiel em tudo. 
2 . 
Todos procuram o que é seu (Fl 2,2 1 ) ; mas Tu só preten­
des a minha salvação e o meu progresso, e tudo me conver­
tes em bem. 
Assim, se me expões a diversas tentações e adversidades, 
é porque tudo ordenas para minha utilidade, pois costumas 
experimentar de mil maneiras aqueles que amas. 
[ 251 
E nessa provação não deves ser menos amado e louvado 
do que ao encheres-me das consolações do Céu. 
3 . 
Por isso, e m ti, Senhor Deus, e u ponho toda a minha 
esperança e meu refúgio, a ti entrego toda a minha tribula­
ção e angústia; porque, do que fora de ti vej o, tudo acho 
fraco e instável. 
Na verdade, de nada servirão muitos amigos; nem fortes 
auxiliares poderão ajudar, nem prudentes conselheiros dar 
uma útil resposta, nem consolar os livros dos doutores, nem 
qualquer preciosa substância libertar, nem qualquer lugar 
secreto e ameno dar segurança, se Tu próprio não assistires, 
ajudares, confortares, consolares, instruíres e guardares . 
4. 
Assim, todas as coisas que parecem ser para a paz ou 
para conseguir a felicidade, sem ti nada são, e verdadeira­
mente nada dão da felicidade. 
Tu és, pois, o fim de todos os bens, a altitude da vida e a 
profundidade das palavras, e em ti, sobre todas as coisas, 
deve esperar a mais forte consolação dos teus servos. 
Em ti estão postos os meus olhos ( Sl 1 4 1 [ 1 40] , 8 ) ; em ti 
confio, meu Deus, Pai das misericórdias. 
Abençoa e santifica a minha alma com a bênção do Céu, 
para que se torne em tua santa casa e em sede da tua eterna 
glória, e para que nada sej a encontrado no templo da tua 
dignidade que ofenda o olhar da tua majestade. 
Olha para mim segundo a grandeza da tua bondade e a 
multidão das tuas misericórdias, e ouve a oração do teu pobre 
servo, degredado para longe, na região da sombra da morte. 
Protege e guarda a alma do teu pequeno servo, no medo de 
todos os perigos da vida corruptível; e, com a tua graça, dirige­
-a pelo caminho da paz para a pátria da eterna claridade. 
Ámen. 
252 ] 
LIVRO QUARTO 
Do Santíssimo Sacramento 
Exortação piedosa à Sagrada Comunhão 
VOZ DE CRISTO - Vinde a mim, todos os que traba­
lhais e estais sobrecarregados, e Eu vos aliviarei, diz o Se­
nhor (Mt 1 1 ,2 8 ) . 
O pão q u e E u darei é a minha Carne, para a vida do 
mundo (Jo 6,5 1 ) . 
Tomai e comei: isto é o meu Corpo, que será entregue por 
vós. Fazei isto em memória de mim (Lc 22, 1 9; l Cor 1 1 ,24 ) . 
O que come a minha Carne e bebe o meu Sangue perma­
nece em mim, e Eu nele (Jo 6,56 ) . 
As palavras que Eu vos disse são espírito e são vida 
( ibid. , 63 ) . 
[ 255 
1 
Com que grande respeito se .deve receber Cristo 
1. 
VOZ DO DISCÍPULO - São estas as tuas palavras, 
Cristo, Verdade eterna, embora não ditas na mesma altura, 
nem escritas num só lugar. 
Como, pois, são tuas e são verdadeiras, a todas devo acei­
tar com gratidão e com fidelidade. 
Tuas são, Tu as proferiste; mas são também minhas por­
que para minha salvação as disseste . 
De boa vontade as recebo da tua boca, para que mais es­
treitamente se gravem no meu coração. 
Animam-me essas palavras de tanta piedade, cheias de 
doçura e de amor. 
Mas assustam-me os meus próprios pecados, e a minha 
consciência impura afasta-me de receber tão grandes misté­
nos. 
Atrai-me a doçura das tuas palavras, mas pesa-me a mul­
tidão dos meus vícios. 
2 . 
Ordenas que d e ti me aproxime com confiança, s e quiser 
ter parte contigo, e que receba o alimento da imortalidade, 
se desejar obter a vida eterna e a glória . 
Vinde, dizes, até mim todos os que trabalhais e estais 
sobrecarregados, e Eu vos aliviarei (Mt 1 1 ,2 8 ) . 
Oh, palavra doce e amiga a o ouvido d o pecador ! Con-
256 ] 
vidares Tu, Senhor meu Deus, o fraco e o pobre à comunhão 
do teu santíssimo Corpo! 
Mas quem sou eu, Senhor, para que ouse aproximar-me 
de ti ? 
Eis que os céus dos céus te não contêm ( 1 Rs 8,27) , e Tu 
dizes : vinde a mim, todos! 
3 . 
Que quer dizer favor tão misericordioso, tão amigo 
convite ? 
Como ousarei aproximar-me, eu que não tenho consciên­
cia de nada de bom de que me possa orgulhar ? 
Como te introduzirei em minha casa, eu que as mais das 
vezes ofendi a tua tão benigna face ? 
Adoram os anjos e arcanjos, temem os santos e os j ustos, 
e Tu dizes : vinde a mim, todos! 
Se não foras Tu a dizê-lo, quem o acreditaria ? 
E se não o ordenaras, quem ousaria aproximar-se ? 
4. 
Eis que Noé, homem justo, trabalhou cem anos na cons­
trução da arca, para que fosse salvo com poucos mais : e 
como poderei eu numa hora preparar-me para receber com 
respeito o construtor do mundo ? 
Moisés, o teu grande servo, o teu especial amigo, fez a 
arca de madeiras que não apodreciam e revestiu-a de ouro 
puríssimo, para nela guardar as tábuas da Lei; e eu, criatura 
de podridão, ousarei receber-te tão facilmente a ti, Criador 
da Lei e dador da vida ? 
Salomão, o mais sábio dos reis de Israel, construiu duran­
te sete anos um templo magnífico em louvor do teu nome, e 
durante oito dias celebrou a festa da sua dedicação, ofereceu 
mil hóstias pacíficas e colocou solenemente a arca da alian-
[ 257 
ça, entre a alegria e o clamor das trombetas, no lugar para 
ela preparado; e eu, infeliz, o mais pobre dos homens, como 
te introduzirei em minha casa, eu- que soube talvez apenas 
passar com devoção uma meia hora, e oxalá que uma vez só 
dignamente o conseguisse ? 
5. 
Oh, meu Deus, o que não procuraram esses fazer para te 
agradar ! 
Ai, mas como é pouco o que eu faço !Que pouco é o 
tempo em que me preparo para comungar ! 
Raras vezes me recolho totalmente, e mais raramente 
ainda estou puro de qualquer distração. 
E, certamente, na tua salutar presença de Divindade, não 
deveria ocorrer-me qualquer pensamento inconveniente, 
nem ocupar-me qualquer criatura, porque vou receber como 
hóspede, não um anjo, mas o Senhor dos anjos. 
6. 
E, contudo, há uma bem grande distância entre a arca da 
aliança, com as suas relíquias, e o teu puríssimo Corpo, com 
as suas inefáveis virtudes; entre esses sacrifícios da Lei prefi­
guradores dos que haviam de vir, e a verdadeira hóstia do 
teu Corpo, em que se consumam todos os antigos sacrifícios. 
7. 
Por isso, porque me não abraso mais com a tua venerável 
presença, porque me não preparo com mais cuidado para te 
receber, quando esses antigos santos patriarcas e profetas, e 
também reis e príncipes com todo o povo, tamanho afeto de 
devoção demonstraram ao culto divino ? 
258 ] 
8. 
Dançou o piedoso rei David diante da arca de Deus com 
todo o ardor, lembrando-se dos benefícios outrora concedi­
dos a seus antepassados; fez instrumentos de diversas espé­
cies, compôs salmos e ordenou que se cantasse com alegria, 
e ele próprio cantou frequentemente ao som da cítara, inspi­
rado pela graça do Espírito Santo . Ensinou o povo de Israel 
a glorificar Deus de todo o coração e a bendizê-lo e louvá-lo 
em coro todos os dias. 
Se então havia tamanha devoção e existia a recordação 
do louvor divino diante da arca do Testamento, que grande 
respeito e devoção não devo eu ter e todo o povo cristão na 
presença do Sacramento, na receção do tão excelente Corpo 
de Cristo ! 
9 . 
Muitos correm a diversos lugares para visitar a s relíquias 
dos santos, admiram, depois de ouvirem os seus feitos, os 
amplos edifícios dos templos, fitam e beij am os seus sagra­
dos ossos envoltos em sedas e em ouro; e eis que Tu aqui 
estás presente, junto de mim, no altar, Deus meu, Santo dos 
santos, Criador dos homens e Senhor dos anjos ! 
Muitas vezes é-se levado a ver tais coisas pela curiosidade 
dos homens e pela novidade das coisas nunca vistas, e traz­
-se pouco fruto de emenda, sobretudo quando se partiu de 
ânimo tão leve, sem verdadeira contrição. 
Porém, aqui, no Sacramento do Altar, estás todo presen­
te, meu Deus, homem Cristo Jesus, onde se recebe o abun­
dante fruto da salvação eterna, todas as vezes que és digna e 
piedosamente recebido. 
Mas para isto não arrasta qualquer leviandade, curiosi­
dade ou sensualidade, mas uma fé firme, uma piedosa espe­
rança e uma sincera caridade. 
[ 259 
1 0. 
Ó invisível Criador do mundo, ó Deus, como é maravi­
lhosa a tua ação junto de nós ! Com que graça e suavidade 
lidas com aqueles que escolheste, aos quais Tu mesmo te 
entregas para seres recebido em sacramento ! 
Na verdade, isto ultrapassa toda a inteligência, isto 
arrasta dum modo especial os corações dos fiéis e ateia o 
amor. 
Assim, os teus verdadeiros fiéis, que tratam toda a sua 
vida de emendar-se, recebem muitas vezes deste tão digno 
sacramento a grande graça da devoção e o amor da virtude. 
1 1 . 
Oh, escondida e admirável graça do Sacramento, que os 
fiéis de Cristo tão bem conhecem, mas que não podem expe­
rimentar os infiéis e os que servem o pecado! 
Neste sacramento se confere a graça espiritual, se recobra 
na alma a força perdida e se restaura a beleza deformada 
pelo pecado. 
E, por vezes, tamanha é esta graça que, da plenitude da 
devoção conferida, não só o espírito, mas também o fraco 
corpo sente que maiores forças lhe são dadas. 
1 2 . 
É muito para chorar e lamentar a nossa mediocridade e 
negligência, por não sermos arrastados por um maior amor 
a recebermos Cristo, no qual reside toda a esperança e 
mérito dos que se hão de salvar. 
Ele próprio é a nossa santificação e redenção, Ele é a con­
solação dos caminhantes e o eterno gozo dos santos. 
E também é grande motivo de dor que tantos tão pouco 
se voltem para este mistério de salvação, que alegra o Céu e 
que mantém todo o mundo. 
260 ] 
Oh, cegueira e dureza do coração humano, que não 
atende a tão inefável dom e que, pelo hábito de todos os 
dias, chega a cair na indiferença ! 
1 3. 
Se, porém, este Santíssimo Sacramento fosse celebrado 
num só lugar e consagrado por um único sacerdote no 
mundo, imagina com que desej o acorreriam os homens 
àquele local e a esse sacerdote de Deus para verem celebrar 
os mistérios divinos! 
Porém, agora, muitos são os sacerdotes e em muitos luga­
res é oferecido Cristo, para que tanto mais se mostre a graça 
e o amor de Deus para com os homens, quanto mais larga­
mente pelo mundo é espalhada a sagrada Comunhão. 
Graças te sejam dadas, bom Jesus, Pastor eterno, que te 
dignaste reconfortar-nos, a nós pobres e degredados, com o 
teu precioso Corpo e Sangue, e nos convidaste pelas palavras 
da tua própria boca a receber tais mistérios, dizendo: vinde a 
mim, todos os que trabalhais e estais sobrecarregados, e Eu 
vos aliviarei (Mt 1 1 ,2 8 ) . 
[ 261 
1 . 
II 
Que a grande bondade e. o amor de Deus 
se manifestam ao homem neste sacramento 
VOZ DO DISCÍPULO - Senhor, confiante na tua bon­
dade e na tua grande misericórdia, doente me aproximo do 
Salvador, esfomeado e sequioso, da fonte da vida, pobre, do 
Rei do Céu, servo, do Senhor, criatura, do Criador, deso­
lado, do meu compassivo consolador. 
Mas como é possível que venhas até mim? Quem sou eu, 
para que a mim te dês ? 
Como ousa aparecer diante de ti o pecador, e como te 
dignas Tu vir até ele ? 
Tu conheces o teu servo e sabes que nada de bom tem em 
si para que tal lhe concedas. 
Por isso, confesso a minha baixeza, reconheço a tua bon­
dade, louvo a tua misericórdia e dou graças por tanta caridade. 
Fazes isso por ti próprio e não por meus méritos, para 
que a tua bondade sej a por mim mais bem conhecida, para 
que o teu amor mais se enraíze e a tua humildade mais per­
feitamente sej a amada. 
Porque assim te agrada e Tu assim o mandaste, que 
também a mim me agrade tal favor, e oxalá o meu pecado o 
não impeça! 
2. 
Ó doce e bondoso Jesus ! Que grande respeito e ação de 
graças, juntos a um eterno louvor, são devidos pela comu-
262 ] 
nhão do teu sagrado Corpo, dignidade que nenhum homem 
é capaz de explicar! 
Mas que pensarei nesta Comunhão, ao aproximar-me do 
meu Senhor, que não sei venerar como devia, mas que, no 
entanto, desejo ardentemente receber? 
Que melhor e mais salutar pensamento, senão o de me 
humilhar totalmente diante de ti e exaltar a tua infinita 
bondade? 
Eu te louvo, meu Deus, e te exalto para sempre, eu me 
desprezo e a ti me submeto, do mais profundo da minha 
baixeza. 
3. 
Eis-te, ó Santo dos santos : e eu, o mais imundo dos pe­
cadores . 
Eis que te inclinas para mim, que nem sou digno de te 
olhar. 
Eis que vens até mim, que queres estar comigo, que me 
convidas para o teu banquete . 
Tu queres dar-me a comer a comida do Céu, o Pão dos 
anjos ( Sl 78 [77] ,25 ) . 
Verdadeiramente, Tu próprio o és, Pão vivo que desceste 
do Céu e dás a vida ao mundo (Jo 6,32-5 1 ) . 
4. 
Eis donde procede todo o amor; como brilha a tua miseri­
córdia, que ações de graças e louvores por tal te são devidos ! 
Que salutar e útil providência , quando instituíste este 
sacramento, que suave e alegre banquete, quando a ti pró­
prio te deste por comida ! 
Que admirável, Senhor, a tua obra, que poderosa força, 
que infalível a tua verdade ! 
Disseste, e tudo foi feito: e fez-se o que ordenaste. 
[ 263 
5. 
Coisa admirável, digna de fé e que vence a inteligência 
humana, que Tu, Senhor meu Deus, verdadeiro Deus e ver­
dadeiro homem, possas estar todo contido sob as espécies do 
pão e do vinho e seres tomado pelo que te recebe, sem que 
sejas consumido. 
Tu, Senhor de todas as coisas, que de ninguém precisas, 
quiseste pelo teu sacramento habitar em nós (2Mac 14,35 ) ; 
conserva imaculados o meu coração e o meu corpo, para 
que possa mais vezes celebrar, com uma consciência alegree 
pura, e receber, para minha eterna salvação, os teus misté­
rios, que estabeleceste e instituíste sobretudo para tua honra 
e eterna memória . 
6. 
Alegra-te, ó minha alma, e dá graças a Deus por tão 
nobre presente, por consolação tão singular, a ti deixada 
neste vale de lágrimas. 
Na verdade, todas as vezes que celebras este mistério e 
recebes o Corpo de Cristo, trabalhas para a tua redenção e 
tornas-te participante de todos os merecimentos de Cristo . 
Pois que a caridade de Cristo nunca diminui, e nunca se 
esgota a grandeza do seu sacrifício . 
Por isso te deves preparar para este ato com um espírito 
sempre renovado e meditar atentamente no grande mistério 
da salvação . 
Assim, quando celebras ou assistes à Missa, isso dever-te­
-ia parecer coisa tão grande, nova e alegre, como se nesse 
mesmo dia Cristo tivesse descido pela primeira vez ao seio 
da Virgem e se tornasse homem, ou, pendente da cruz, so­
fresse e morresse pela salvação dos homens. 
264 ] 
III 
De como é útil comungar muitas vezes 
1 . 
VOZ DO DISCÍPULO - Eis que a ti venho, Senhor, para 
beneficiar da tua dádiva e me alegrar em teu santo banquete, 
que preparaste para o pobre, meu Deus, com a tua ternura 
(S l 68 [67] , 1 1 ) . 
Eis que em ti está tudo o que posso e devo desejar; Tu és 
a minha salvação e redenção, a minha esperança e fortaleza, 
a minha honra e a minha glória. 
A legra, pois, hoje, a alma do teu servo, porque a ti, 
Senhor Jesus, ergui a minha alma ( Sl 86 [85] ,4 ) . 
Desej o agora receber-te com devoção e respeito, quero 
introduzir-te em minha casa, e merecer, como Zaqueu, que 
me abençoes e me contes entre os filhos de Abraão. 
A minha alma deseja o teu Corpo, o meu coração deseja 
unir-se a ti. 
2. 
Entrega-te a mim, e isso basta, porque Tu és a única con­
solação. 
Não posso estar sem ti e não consigo viver sem a tua 
visita . 
Por isso, é necessário que me aproxime de ti muitas vezes 
e te receba como remédio de minha salvação, não vá desfa­
lecer pelo caminho, se for privado do alimento do Céu. 
Assim, Tu, Jesus misericordioso, um dia em que pregavas 
[ 265 
ao povo e curavas várias doenças, disseste: não quero man­
dá-los para casa em jejum, não vão desfalecer pelo caminho 
(Mt 1 5,32 ) . 
Por isso, trata-me também assim, Tu que te deixaste neste 
sacramento para consolação dos fiéis. 
Na verdade, Tu és a suave refeição da alma, e aquele que 
te receber dignamente será participante e herdeiro da eterna 
glória. 
É-me, pois, necessário, a mim que tantas vezes caio e 
peco e tão depressa arrefeço e desfaleço, que por frequentes 
orações e confissões e pela receção do teu sagrado Corpo, 
me renove, me purifique e me inflame, para que, abstendo­
-me por muito tempo, me não afaste desse santo propósito . 
3. 
Na verdade, os sentidos do homem estão inclinados ao 
mal desde a sua adolescência ( Gn 8 ,2 1 ) , e , se o remédio 
divino o não socorrer, cairá nas piores coisas. 
Assim, a sagrada Comunhão afasta do mal e fortalece no 
bem. 
E se sou tantas vezes negligente e medíocre, mesmo 
quando comungo ou celebro, o que seria se não recebesse tal 
remédio nem procurasse tão grande ajuda ? 
E embora em nenhum dia estej a disposto ou bem prepa­
rado para celebrar, não deixarei contudo, de, nas devidas 
alturas, receberas mistérios divinos e me tornar participante 
de tamanha graça . 
Pois que é esta a principal consolação da alma fiel en­
quanto caminha longe de ti num corpo mortal (2Cor 5 ,6 ) , 
que , lembrando-se mais vezes do seu Deus , receba o seu 
Amado com espírito fervoroso. 
266 ] 
4. 
Oh, como é admirável o favor da tua piedade para con­
nosco, que Tu, Senhor Deus, Criador e vida de todos os 
Espíritos, te dignes baixar a uma pobre alma e matar a sua 
fome com toda a tua divindade e humanidade ! 
Oh, feliz espírito e bem-aventurada alma que te merece 
receber com devoção, a ti, Senhor seu Deus, e encher-se com 
a alegria espiritual de te ter recebido ! 
Oh, como é grande o Senhor que recebe ! Que amado o 
hóspede que acolhe ! Que alegre companheiro abriga ! Que 
fiel amigo aceita ! Que belo e nobre esposo abraça, que deve 
ser amado acima de tudo o que é amado e desej ado ! 
Calem-se na tua presença, ó meu doce Amado, o Céu, a 
Terra e todas as suas belezas, porque tudo o que têm de admi­
rável e belo lhes vem do teu favor, e nunca chegarão à beleza 
do teu Nome, cuja sabedoria é sem medida (SI 147[146] ,5 ) . 
[ 267 
1. 
IV 
Que muitos bens são çlispensados 
aos que comungam com devoção 
VOZ DO DISCÍPULO - Senhor meu Deus, conforta o 
teu servo com as bênçãos da tua doçura (Sl 2 1 [20] ,4 ) , para 
que digna e devotamente mereça aproximar-se do teu subli­
me sacramento. 
Chama para ti o meu coração e sacode-me deste pesado 
torpor. 
Visita-me na tua salvação, para que eu saboreie em espí­
rito a tua suavidade que, neste sacramento, como numa 
fonte, tão plenamente está escondida. 
Ilumina também os meus olhos, para que contemplem 
um tão grande mistério, e fortalece-me com uma fé inabalá­
vel, para que nele creia. 
Pois que é pertença tua, e não poder humano; tua santa 
instituição, e não invenção do homem. 
Na verdade, ninguém se encontra por si só apto a aceitar 
e a perceber tais coisas, que transcendem a própria subtileza 
dos anjos . 
Como poderei, pois , eu, pecador indigno, terra e cinza, 
descobrir e entender segredo tão alto e tão sagrado ? 
2 . 
Senhor, na simplicidade d o meu coração, n a fé b o a e 
firme, e como Tu mandaste, aproximo-me de ti com espe-
268 ] 
rança e com respeito, e verdadeiramente creio que estás aqui 
presente, Deus e homem, neste sacramento. 
Queres, pois, que te receba e a ti me una no amor. Por­
tanto, peço a tua clemência, e para isso rogo que me sej a 
dada uma graça especial, a fim de que todo em ti me funda, 
em teu amor me afogue e não deixe que em mim entre qual­
quer outra consolação . 
Com efeito, este tão alto e digno sacramento é a saúde da 
alma e do corpo, o remédio de toda a doença espiritual, pelo 
qual se curam os meus vícios, se refreiam as paixões, se 
vencem ou diminuem as tentações, se infunde maior graça, 
se aumenta a virtude começada, se firma a fé, se fortalece a 
esperança e se ateia e dilata a caridade. 
3 . 
Na verdade, muitos bens dispensaste e ainda dispensas 
muitas vezes neste sacramento àqueles que amas e que 
comungam com devoção, meu Deus, firmeza da minha 
alma, reparador da fraqueza humana e fonte de toda a con­
solação interior. 
Pois lhes infundes muita consolação contra as diversas 
tribulações, os ergues da sua própria miséria à esperança da 
tua proteção e, com uma graça nova, os animas e iluminas 
interiormente, de tal modo que os que se tinham sentido a 
princípio ansiosos e sem fervor antes da Comunhão, se 
sentem transformados, depois de refeitos com essa comida e 
bebida do Céu. 
E assim és generoso para com os que te amam, para que 
verdadeiramente conheçam e claramente experimentem 
quanto têm de fraqueza e quanto conseguem da tua bondade 
e graça, pois que, sendo por si próprios frios, duros e pouco 
fervorosos, merecem por ti ser piedosos, alegres e devotos . 
Quem, com efeito, se aproxima humildemente da fonte de 
suavidade, que não traga também um pouco de suavidade ? 
[ 269 
Ou quem, estando perto de uma grande fogueira, não 
sentirá um pouco de calor ? 
E Tu és fonte sempre cheia e superabundante, fogo conti­
nuamente aceso e que nunca se apaga . 
4. 
Portanto, se não me é permitido tirar água da plenitude 
da fonte, nem beber até me saciar, que, ao menos, eu chegue 
a minha boca à boca do canal que vem do Céu, para que 
consiga qualquer gota para acalmar a minha sede e não 
morrer à míngua de água. 
E se não posso ser todo do Céu, todo de fogo, como um 
querubim ou um serafim, esforçar-me-ei, contudo, por insis­
tir na devoção e preparar o meu espírito para que consiga 
uma pequena chama do fogo divino, pela receção humilde 
deste sacramento de vida . 
E tudo o que me falta, bom Jesus,santo Salvador, supre-o 
Tu por mim com bondade e com graça, Tu que te dignaste 
chamar todos a ti, dizendo: vinde a mim, todos os que traba­
lhais e estais sobrecarregados, e Eu vos aliviarei (Mt 1 1 ,2 8 ) . 
5. 
Pois que, na verdade, eu trabalho com o suor do meu 
rosto, o meu coração é atormentado pela dor, estou carre­
gado de pecados, inquieto com tentações, enredado e esma­
gado por muitas paixões más; e não há quem me ajude, não 
há quem me liberte e me salve, senão Tu, Senhor Deus, meu 
Salvador, a quem me entrego e a tudo o que é meu, para que 
me guardes e conduzas à vida eterna . 
Acolhe-me no louvor e glória do teu nome, Tu que me 
preparaste o teu Corpo e Sangue por comida e por bebida. 
Concede-me, Senhor Deus, minha salvação, que, frequen­
tando este teu mistério, em mim cresça o amor da devoção. 
2 70 ] 
V 
Da dignidade do sacramento e do estado sacerdotal 
1 . 
VOZ DO AMADO - Nem que tivesses a pureza dos 
anjos e a santidade de São João Batista serias digno de rece­
ber este sacramento, ou de o tocar. 
Na verdade, não se deve aos méritos dos homens que o 
homem consagre e administre o Sacramento de Cristo e 
tome por comida o Pão dos anjos. 
Grande ministério e grande dignidade a dos sacerdotes, 
aos quais é dado o que nem aos anjos foi concedido ! 
Com efeito, só os sacerdotes ordenados segundo o rito da 
Igrej a têm o poder de celebrar e de consagrar o Corpo de 
Cristo. 
O sacerdote é verdadeiramente um ministro de Deus, que 
usa a sua palavra por sua ordem e instituição. 
Porém, aqui, o principal autor e a causa invisível é Deus, a 
cuja vontade tudo se submete e a cuja ordem tudo obedece. 
2 . 
Mais deves, portanto, acreditar e m Deus omnipotente 
neste tão alto sacramento, que nos teus próprios sentidos ou 
em qualquer sinal visível. 
Por isso nos devemos aproximar dele com temor e reve­
rência . 
Olha para t i e vê de quem é o ministério que a t i te foi en­
tregue por imposição das mãos do Bispo. 
[ 2 71 
Eis que foste feito sacerdote e consagrado para celebrar. 
Vela, pois, agora, por que a seu tempo ofereças fiel e fervo­
rosamente um sacrifício a Deus, e te mostres irrepreensível . 
Não aliviaste a tua carga, mas foste ligado pelo laço mais 
apertado da disciplina, para conseguires uma maior perfei­
ção de santidade. 
O sacerdote deve ser ornado de todas as virtudes e dar 
aos outros o exemplo duma vida santa . 
A sua vida não está nos vulgares e comuns caminhos dos 
homens, mas sim com os anjos no Céu ou com os homens 
perfeitos na Terra . 
3. 
O sacerdote, revestido das sagradas vestes, faz a s vezes de 
Cristo, para, suplicante e humildemente, implorar Deus para 
si e para todo o povo. 
Tem no peito e nas costas a imagem da Cruz do Senhor, 
para que continuamente se lembre da paixão de Cristo. 
Tem, à frente, uma cruz na casula, para que considere 
com diligência os passos de Cristo e os procure seguir fervo­
rosamente. 
E também atrás é assinalado com a cruz, para que tolere, 
com clemência e por amor de Deus, quaisquer adversidades 
que dos outros lhe venham. 
Leva a cruz à sua frente, para que se entristeça pelos seus 
pecados, e atrás, para que chore também, por compaixão os 
cometidos pelos outros, e para que, sabendo ter sido feito 
medianeiro entre Deus e o pecador, não arrefeça na oração e 
no santo Sacrifício, até que mereça alcançar graça e mi­
sericórdia . 
Quando o sacerdote celebra, honra a Deus , alegra os 
anjos, edifica a Igreja , ajuda os vivos, dá repouso aos mortos 
e torna-se participante de todos os bens. 
272 ] 
VI 
Interrogação sobre os exercícios antes da Comunhão 
1 . 
VOZ DO DISCÍPULO - Quando penso, Senhor, na 
tua dignidade e na minha baixeza, encho-me de temor e de 
confusão. 
Porque se não me aproximo, fujo da vida, e, se me apre­
sento indignamente, incorro em pecado. 
Que farei, pois, meu Deus, meu auxílio e meu conselheiro 
nas necessidades ? 
Ensina-me Tu o caminho reto, ensina-me qualquer breve 
exercício para a sagrada Comunhão. 
Porque é útil que eu saiba como te hei de preparar, com 
devoção e respeito, o meu coração, para receber com pro­
veito o teu sacramento ou para celebrar tão grande e divino 
sacrifício. 
[ 2 73 
VII 
Do exame de consciência e do -propósito de emenda 
1 . 
VOZ DO AMADO - Acima de tudo, é com a maior 
humildade de coração, com um suplicante respeito, com 
uma fé firme e uma fervorosa intenção de honrar a Deus que 
o sacerdote se deve aproximar para celebrar este sacra­
mento, para o administrar ou para o receber. 
Examina cuidadosamente a tua consciência e , tanto 
quanto te for possível, torna-a pura e clara com um verda­
deiro arrependimento e uma humilde confissão, de modo a 
que nada de grave tenhas ou saibas ter, de que sintas remor­
sos e que te impeça de te aproximares livremente . 
Detesta todos os pecados em geral, mas sobretudo la­
menta e chora as tuas faltas de todos os dias. 
E, se tiveres tempo, confessa a Deus, no segredo do cora­
ção, todas as misérias das tuas paixões. 
2. 
Geme e chora porque ainda pertences à carne e ao mun­
do, por seres tão pouco mortificado nas paixões, tão cheio 
de movimentos do desejo, tão pouco resguardado nos senti­
dos exteriores, tão enredado muitas vezes em tantas vãs fan­
tasias, tão inclinado para as coisas de fora e tão pouco aten­
to para as interiores, tão fácil no riso e na negligência, tão 
duro no choro e na compunção, tão pronto para o que é 
fácil e cómodo para o corpo, tão preguiçoso no rigor e no 
274 ] 
fervor, tão curioso em ouvir novidades ou ver coisas belas, 
tão negligente em abraçar o que é humilde e desprezado, tão 
desejoso de possuir muita coisa, tão parco a dar, tão tenaz a 
reter, tão leviano a falar, tão inconstante em calar, tão desre­
grado nos costumes, tão importuno nas ações, tão entregue 
à comida, tão surdo à Palavra de Deus, tão rápido no des­
canso, tão tardo para o trabalho, tão atento às conversas, 
tão sonolento nas sagradas vigílias, tão rápido a ir ao fim, 
tão vago na atenção, tão negligente no cumprimento das 
Horas, tão morno a celebrar, tão seco a comungar, tão 
depressa distraído, tão raramente em ti recolhido, tão subi­
tamente irado, tão fácil em desagradar aos outros, tão incli­
nado a julgar, tão rígido a discutir, tão alegre na prosperi­
dade, mas tão fraco nas tribulações, tantas vezes resolvido 
ao bem, mas tão pouco bem fazendo. 
3. 
Confessados e chorados estes e outros pecados teus, dor e 
grande desagrado da tua própria fraqueza, faz um propósito 
de emendar a tua vida e de melhor progredir. 
Depois, com plena resignação e inteira vontade, oferece­
-te em honra do meu Nome, no altar do teu coração, como 
holocausto eterno, entregando-me fielmente o teu corpo e a 
tua alma, para que assim mereças aproximar-ta para ofere­
cer a Deus o Sacrifício e receber com proveito o sacramento 
do meu Corpo. 
4. 
Não há, na verdade, oblação mais digna e satisfação 
maior para apagar os pecados, do que oferecer-se pura e in­
teiramente a Deus, com a oblação do Corpo de Cristo, na 
Missa e na Comunhão. 
Se o homem fizer tudo o que puder e se arrepender ver-
[ 2 75 
a mim? 
De nada me interessa o que me dás, que não sejas tu; por­
que não procuro a tua dádiva, quero-te a ti. 
2 . 
Tal como não te chegaria possuíres todas a s coisas sem 
mim, assim também me não pode agradar o que quer que 
dês, se te não deres. 
Oferece-te a mim e dá-te todo por amor de Deus: e será 
aceite a ablação. 
Eis que Eu totalmente me entreguei por ti ao Pai; dei todo 
o meu Corpo e o meu Sangue por alimento, para que Eu 
fosse todo teu e tu ficasses a ser meu. 
Se, porém, te fechares em ti e te não entregares livremente 
[ 2 77 
à minha vontade, não haverá ablação plena, nem será total a 
união entre nós. 
Por isso, a ablação espontânea de ti próprio nas mãos de 
Deus deve preceder todas as tuas obras, se queres alcançar a 
liberdade e a graça . 
Se tão poucos são iluminados e se tornam interiormente 
livres, é porque se não sabem renegar totalmente. 
É clara a minha palavra : quem não renuncia a tudo não 
pode ser meu discípulo (Lc 14,33 ) . 
Portanto, tu, se queres s e r meu discípulo, oferece-te a 
mim com todo o teu amor. 
278 ] 
1 . 
IX 
Que nos devemos oferecer a Deus 
com tudo o que é nosso e pedir por todos 
VOZ DO DISCÍPULO - Senhor, tudo é teu: o que há no 
Céu e o que há a Terra. 
Desejo oferecer-me a ti em ablação espontânea e teu per­
manecer para sempre . 
Senhor, na simplicidade do meu coração, ofereço-me a ti, 
hoj e, como teu servo para sempre, em homenagem e em 
sacrifício de louvor eterno. 
Recebe-me com esta santa ablação do teu Corpo precioso 
que hoj e te ofereço na presença dos anj os, invisivelmente 
assistentes, para que sej a para minha salvação e para a de 
todo o teu povo. 
2 . 
Senhor, aqui te ofereço sobre o teu altar d e propiciação 
todos os meus pecados e delitos, que cometi diante de ti e 
dos teus santos anjos desde o dia em que, pela primeira vez, 
pude pecar até a este momento; para que a todos incendeies 
e queimes igualmente com o fogo da tua caridade, para que 
apagues todas as manchas dos meus pecados, tornes a minha 
consciência pura de toda a falta e me restituas a tua graça, 
que perdi, pecando, perdoando-me tudo inteiramente e 
admitindo-me, pela tua misericórdia, ao beijo da paz. 
[ 2 79 
3 . 
Que posso fazer pelos meus pecados, senão confessá-los 
e chorá-los com humildade, pedindo incessantemente a tua 
misericórdia ? 
Eu te suplico, atende-me, propício, enquanto estou diante 
de ti, meu Deus. 
A todos os meus pecados detesto : não quero voltar a 
cometê-los, mas por eles choro e chorarei enquanto viver, 
pronto a fazer penitência e a pagá-los tanto quando puder. 
Perdoa-me, meu Deus, perdoa-me os meus pecados pelo 
teu santo Nome; salva a minha alma, que pelo teu precioso 
sangue redimiste . 
Eis que todo me entrego à tua misericórdia, que me aban­
dono nas tuas mãos: age para comigo segundo a tua bon­
dade, e não segundo a minha malícia e iniquidade. 
4. 
Ofereço-te também tudo o que em mim há de bom, em­
bora sej a pouco e imperfeito, para que o emendes e santifi­
ques, para que te sej a grato e se te torne aceitável e para que 
o tornes sempre melhor; e ainda para que me conduzas a um 
fim feliz e glorioso, a mim, pobre homem preguiçoso e inútil. 
5. 
Ofereço-te também todos os fervorosos desejos dos fiéis; 
as necessidades dos parentes, dos amigos , dos irmãos e 
irmãs, de todos os que me são queridos, daqueles que a mim 
ou a outros fizeram bem por amor de ti e dos que desejaram 
e me pediram que dissesse orações e Missas por si e todos os 
seus, quer estej am vivos segundo a carne, quer já tenham 
deixado este mundo, para que todos sintam chegar para si o 
auxílio da tua graça, o efeito da consolação, a proteção dos 
280 ] 
perigos, a libertação das penas; e para que, livres de todos os 
males, alegres te deem muitas graças . 
6. 
Ofereço-te ainda as minhas orações e hóstias de propicia­
ção especialmente pelos que em alguma coisa me lesaram, 
me entristeceram ou inj uriaram, ou me fizeram qualquer 
dano ou ofensa; e também por todos aqueles que algum dia 
contristei, envergonhei, ofendi ou escandalizei, por palavras 
ou ações, consciente ou inconscientemente: para que a todos 
nós de igual modo perdoes os pecados e as ofensas mútuas. 
Afasta, Senhor, dos nossos corações toda a desconfiança, 
indignação, ira e discussão, e tudo o que possa ferir a cari­
dade e diminuir o amor fraternal. 
Compadece-te, compadece-te, Senhor, dos que suplicam a 
tua misericórdia, dá graça aos que precisam dela e faz-nos 
viver de modo a que sejamos dignos de gozar da tua graça e 
de alcançarmos a vida eterni 
Ámen. 
[ 281 
X 
Que não se deve abandonar por qualquer motivo leve 
a sagrada Comunhão 
1 . 
VOZ DO AMADO - Deves recorrer frequentemente à 
fonte da graça e da divina misericórdia, à fonte da bondade 
e de toda a pureza, para que consigas curar-te de todas as 
tuas paixões e vícios e mereças tornar-te mais forte e vigi­
lante contra todas as tentações e mentiras do demónio. 
O inimigo, sabendo que proveito, que eficaz remédio se 
encontra na sagrada Comunhão, esforça-se quanto pode, de 
toda a maneira e em toda a ocasião, por dela afastar e des­
viar as pessoas fiéis e piedosas. 
2 . 
É , pois, quando s e preparam para a sagrada Comunhão 
que alguns sofrem as piores tentações de Satanás. 
O próprio espírito maligno, tal como em Job está escrito, 
vem para o meio dos filhos de Deus ( 1 ,7) para os perturbar 
com a sua costumada maldade ou para os tornar demasia­
damente tímidos e escrupulosos, para que diminua o seu afe­
to ou lhes roube a sua fé, a fim de que abandonem, talvez de 
todo, a Comunhão, ou dela se aproximem sem entusiasmo. 
Mas não há que preocupar-se com as suas astúcias e fan­
tasias, por mais horríveis ou baixas, mas antes se lhe devem 
devolver todos esses fantasmas. 
Deve ser desprezado e troçado, o miserável, e por causa 
282 ] 
dos seus insultos e das perturbações que suscita não se deve 
abandonar a sagrada Comunhão. 
3 . 
À s vezes, também, torna-se obstáculo a demasiada preo­
cupação do fervor e uma certa ansiedade pela confissão a 
fazer. 
Age segundo o conselho dos sábios e põe de parte a ansie­
dade e o escrúpulo que obsta à graça de Deus e destrói a de­
voção do espírito . 
Não abandones a sagrada Comunhão por qualquer pe­
quena perturbação ou falta, mas vai ainda mais depressa 
confessar-te e perdoa de boa vontade aos outros todas as 
ofensas. 
Mas, se ofendeste alguém, pede humildemente perdão, e 
Deus de boa vontade te desculpará . 
4. 
Que adianta tardares em confessar-te ou adiar a sagrada 
Comunhão ? 
Antes de mais nada, purifica-te, expele depressa o ve­
neno, recebe rapidamente o remédio; e sentir-te-ás melhor 
do que se demorasses mais tempo. 
Se hoje deixas de ir por isto, talvez que amanhã suceda 
algo de mais grave e , assim, possas ser impedido durante 
mais tempo da Comunhão e menos preparado fiques. 
Logo que possas sacode o teu peso e a tua preguiça de 
agora, porque para nada serve andar mais tempo inquieto, 
passar mais tempo perturbado e separar-se das coisas de 
Deus pelos obstáculos de todos os dias. 
Pelo contrário, muito prejudica adiar por muito tempo a 
Comunhão, pois que isso costuma trazer um pesado torpor. 
Mas, ai, alguns há, tão mornos e negligentes que acolhem 
[ 283 
de bom ânimo todas as demoras em se confessar e desejam 
também adiar a sagrada Comunhão, para não terem de se 
v1g1ar mais a si próprios. 
5. 
Ah, que pouco amor e fraca piedade têm os que tão facil­
mente adiam a sagrada Comunhão ! 
Como é feliz e aceitável a Deus o que vive de tal modo e 
guarda a sua consciência em tal pureza, que todos os dias 
estaria bem preparado e disposto para comungar, se tal lhe 
fosse possível e o pudesse fazer sem se tornar notado ! 
Se alguém, de vez em quando, se abstém por humildade 
ou por qualquer causa legítima que o impeça, deve ser lou­
vado por esse respeito. 
Mas, se é o torpor que se insinua, deve sacudir-se e fazer 
tudo o que está ao seu alcance; e o Senhor aumentaráo seu 
desejo, vendo essa boa vontade, a que olha especialmente. 
6. 
Mas quando estiver legitimamente impedido, deverá 
guardar sempre boa vontade e a piedosa intenção de comun­
gar, e assim não lhe faltará o fruto do sacramento. 
Na verdade, qualquer pessoa piedosa pode aproximar-se 
com proveito e sem proibição, todos os dias e a todas as 
horas, da Comunhão espiritual de Cristo, mas, contudo, 
deve receber sacramentalmente, com afetuoso respeito, o 
Corpo do seu Redentor em certos dias e em alturas determi­
nadas, e ter mais em vista o louvor e a honra de Deus do que 
a sua própria consolação. 
Com efeito, comunga espiritualmente e refaz-se invisivel­
mente todas as vezes que medita fervorosamente no mistério 
da encarnação de Cristo, e na sua paixão, e se ateia no seu 
amor. 
284 ] 
O que se não prepara senão na altura duma festa, ou 
levado pelo hábito, estará, na maior parte das vezes, mal 
preparado. 
7. 
Feliz o que se oferece ao Senhor em holocausto de todas 
as vezes que celebra ou que comunga. 
Não sej as demasiado lento nem demasiado rápido a cele­
brar, mas guarda a justa medida comum àqueles com quem 
vives . 
Não deves causar enfado e tédio a ninguém, mas seguir o 
caminho comum, conforme foi traçado pelos nossos maio­
res e servir mais a utilidade dos outros que o teu próprio 
afeto ou devoção. 
[ 285 
1 . 
XI 
Que o Corpo de Cristo e a Sagrada Escritura 
são muito necessários à alma fiel 
VOZ DO DISCÍPULO - Ó tão doce Senhor Jesus, que 
grande é, para a alma piedosa, a doçura de participar no 
banquete, onde se lhe não apresenta nada para comer além 
de ti, seu único amor, desejável acima de todos os desejos do 
seu coração ! 
Também a mim, me seria doce derramar lágrimas de ín­
timo amor na tua presença e , como a piedosa Madalena, 
banhar com lágrimas os teus pés ! 
Mas onde está tal devoção ? Onde o copioso derramar de 
santas lágrimas ? 
Decerto que, em tua presença e na dos teus santos anj os, 
todo o meu coração deveria arder e chorar de alegria . 
Pois tenho-te verdadeiramente presente no Sacramento, 
embora oculto sob uma outra espécie. 
2. 
Na verdade, os meus olhos não suportariam olhar-te na 
tua própria e divina luz, nem o mundo inteiro resistiria ao 
brilho de glória da tua majestade. 
Atendes, pois, à minha fraqueza, ao esconderes-te no 
Sacramento. 
Verdadeiramente, eu possuo e adoro aquele que os anjos 
286 ] 
adoram no Céu, mas eu ainda pela fé, e eles face a face e sem 
véus. 
Devo alegrar-me na luz da verdadeira fé e nela caminhar, 
até que nasça o dia da eterna claridade e se esfumem as som­
bras das figuras (Ct 2, 1 7) . 
Quando, porém, vier o que é perfeito ( 1 Cor 1 3 , 1 0 ) , ces­
sará o uso dos sacramentos, porque os bem-aventurados não 
necessitam, na glória do Céu, do remédio sacramental : pois 
alegram-se sem fim na presença de Deus, fitando face a face 
a sua glória e, de claridade em claridade, transformados nos 
abismos divinos, saboreiam o Verbo de Deus feito carne, tal 
como foi no princípio e permanece para sempre. 
3. 
Ao lembrar-me destas maravilhas, até mesmo a consola­
ção espiritual se me torna pesado tédio: porque, enquanto 
não vejo meu Senhor abertamente, na sua glória, tenho por 
nada tudo que no mundo vejo e ouço. 
Tu me és testemunha, ó Deus, de que nenhuma coisa me 
pode consolar, nenhuma criatura dar repouso, senão Tu, 
meu Deus, a quem desejo contemplar eternamente. 
Mas tal não é possível enquanto eu viver neste estado 
mortal, e por isso é necessário que me disponha a uma gran­
de paciência e a ti me submeta em todos os meus desejos. 
Também os teus santos, Senhor, que contigo se alegram já 
no Reino dos Céus, enquanto viviam, com fé e grande pa­
ciência esperavam a chegada da tua glória. 
O que eles acreditaram, acredito; o que esperaram, espe­
ro; aonde chegaram, pela tua graça, confio chegar também. 
Até lá, caminharei na fé , confortado com os exemplos 
dos santos, terei ainda os livros sagrados por consolação e 
espelho de vida, e sobre tudo isto, o teu santíssimo Corpo 
por único refúgio e remédio. 
[ 287 
4. 
E, na verdade, sinto que duas coisas me são sobretudo ne­
cessárias neste mundo, sem as quais esta vida miserável se 
me tornaria impossível . 
Prisioneiro no cárcere deste corpo, confesso faltarem-me 
duas coisas: alimento e luz. 
E assim me deste, a mim, fraco, o teu sagrado Corpo, 
para refeição do espírito e do corpo, e colocaste uma can­
deia, a tua palavra, diante dos meus pés ( Sl 1 1 9 [ 1 1 8] , 1 05 ) . 
Sem estas duas coisas, não poderia viver bem: a Palavra 
de Deus, luz da minha alma, e o teu Sacramento, pão da 
vida . 
Ambos se podem comparar também a duas mesas, postas 
dum e doutro lado do tesouro da santa Igreja . 
Uma das mesas é a do altar sagrado, que tem o Pão santo, 
ou seja, o precioso Corpo de Cristo; a outra é a da lei divina, 
que contém a doutrina santa, instruindo na verdadeira fé e 
conduzindo com firmeza para além do último véu, onde está 
o Santo dos santos . 
5. 
Graças te sej am dadas, Senhor Jesus, Luz da luz eterna, 
pela mesa da sagrada doutrina que nos ensinaste pelos teus 
servos, os profetas, os Apóstolos e os outros doutores . 
Graças a ti, Criador e Redentor dos homens, que, para 
mostrar a todo o mundo a tua caridade, preparaste a grande 
Ceia, na qual ofereceste para comer, não o cordeiro simbó­
lico, mas o teu santíssimo Corpo e Sangue, e alegras todos 
os fiéis com o sagrado banquete, inebriando-os com o cálice 
da salvação, onde se encontram todas as delícias do Paraíso 
e no qual participam connosco os santos anjos, embora com 
mais feliz suavidade. 
288 ] 
6. 
Oh, como é grande e honroso o ministério dos sacerdo­
tes, aos quais é dado consagrar com santas palavras o 
Senhor de Majestade, bendizê-lo com os lábios, tomá-lo nas 
mãos, recebê-lo na própria boca e dá-lo aos outros ! 
Oh, como devem ser puras essas mãos, que pura a boca, 
que santo o corpo, que imaculado o coração do sacerdote, 
ao qual desce tantas vezes o Autor da pureza ! 
Da boca do sacerdote, que tantas vezes recebe o Sacra­
mento de Cristo, só devem sair palavras santas, honestas e 
úteis. 
Os seus olhos devem ser simples e modestos, eles que cos­
tumam olhar o Corpo de Cristo . 
E as suas mãos, puras e erguidas ao céu, pois costumam 
tocar o Cuador do Céu e da Terra . 
Na Lei é dito especialmente aos sacerdotes: sede santos: 
porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo (Lv 1 9,2; 20,7) . 
7. 
Que nos ajude a tua graça, Deus omnipotente, para que 
nós, que recebemos o ministério sacerdotal, consigamos 
servir-te, digna e piedosamente, com toda a pureza e boa 
consciência . 
E, se não podemos viver com tanta inocência de vida 
como devemos, concede-nos, no entanto, que choremos con­
dignamente os males que fizermos e que, em espírito de 
humildade e em propósito de boa vontade, te sirvamos, de 
hoje em diante, com maior fervor. 
[ 289 
1. 
XII 
Que deve preparar-se com grande cuidado 
aquele que vai receber a Cristo 
VOZ DO AMADO - Eu sou Aquele que ama a pureza e 
que dá toda a santidade. 
Eu procuro um coração puro, e aí é o lugar do meu 
repouso. 
Arranja-me um cenáculo grande, preparado: e farei em 
tua casa a Páscoa, com os meus discípulos (Lc 22, 1 2 ) . 
S e queres que a t i venha e que j unto d e t i permaneça, 
purifica-te do velho fermento e limpa a casa do teu coração. 
Expulsa de lá o mundo e todo o tumulto dos vícios, poisa 
como o pardal solitário no telhado, e medita nas tuas faltas 
na amargura da tua alma ( Sl 1 02 [ 1 0 1 ] , 8 ; Is 3 8 , 1 4 ) . 
N a verdade, todo aquele que a m a prepara o melhor e 
mais belo lugar para o seu amado; nisso se conhece o afeto 
de quem recebe aquele a quem ama. 
2 . 
Sabe, porém, que não podes satisfazer nesta preparação 
por teu próprio mérito, ainda que te preparasses durante um 
ano inteiro e não pensasses em mais nada. 
Mas só por minha misericórdia e graça te será permitido 
aproximar da minha mesa, tal como ao mendigo, chamado 
ao banquetereligião em obser­
vâncias exteriores, depressa a nossa devoção acabará . 
Cortemos, pois, o mal pela raiz, para que, libertos das 
paixões, venha a ser nosso um espírito de paz. 
5. 
Se em cada ano nos libertássemos de um vício, depressa 
seríamos perfeitos . 
Mas, pelo contrário, sentimos muitas vezes que éramos 
melhores e mais puros quando nos convertemos do que 
depois de há tantos anos termos professado. 
O fervor e o progresso deveriam crescer todos os dias, 
mas hoje achamos que é j á muito conservar uma parte do 
antigo fervor. 
Se a princípio fizermos um pouco de violência, tudo fare­
mos depois com facilidade e alegria. 
6. 
Custa deixar os hábitos, mas custa mais ainda ir contra a 
própria vontade. 
[ 27 
E, se não vences as coisas pequenas e fáceis, como vence­
rás as mais difíceis ? 
Resiste desde o princípio à tua inclinação e abandona os 
maus hábitos, para que lentamente te não conduzam a maio­
res dificuldades. 
Oh, soubesses tu quanta paz para ti e alegria para os 
outros a tua vida santa causaria , e j ulgo que terias mais 
ardor no teu progresso espiritual ! 
28 ] 
XII 
Das vantagens da adversidade 
1 . 
Bom é para nós ter, de quando em quando, alguns desgos­
tos e contrariedades; porque, muitas vezes, recolhem o ho­
mem em si próprio para que se lembre de que está em exílio 
e não ponha a sua esperança em nenhuma coisa do mundo. 
Bom é que, de vez em quando, soframos contradições e 
que pensem mal e inj ustamente de nós, mesmo quando 
agimos bem e tivemos reta intenção. 
Muitas vezes isto ajuda-nos na humildade e defende-nos 
da glória vã; pois procuramos mais a Deus como testemunha 
interior quando somos desprezados pelos homens e mal 
vistos por eles. 
2. 
Assim se deveria o homem firmar em Deus, para que não 
precisasse de procurar consolações humanas . 
Quando o homem de boa vontade está atribulado ou ten­
tado, ou é afligido por maus pensamentos, percebe melhor 
como Deus lhe é necessário e que, sem Ele, nada de bom 
conseguirá. 
Então se entristece e geme e reza, por causa das misérias 
que sofre; então aborrece viver mais e deseja a morte, para 
que possa, livre das suas cadeias, estar com Cristo (Fl 1 ,23 ) . 
S ó então compreende inteiramente que no mundo não 
pode haver segurança perfeita nem plena paz. 
[ 29 
XIII 
De como resistir às tentações 
1 . 
Enquanto neste mundo vivermos, não nos poderemos li­
bertar do sofrimento e da tentação. 
Por isso está escrito no livro de Job: tentação é a vida hu­
mana sobre a terra (Jb 7, 1 ) . 
Assim, todo o homem deveria estar em guarda contra as 
tentações e vigiar na oração, para que o demónio não encon­
trasse maneira de o enganar, ele que nunca dorme, mas anda 
em redor buscando a quem devorar ( 1 Pe 5 ,8 ) . 
Ninguém é tão perfeito e tão santo que não tenha por 
vezes tentações; elas nunca nos deixam. 
2. 
Contudo, as tentações são muitas vezes úteis, ainda que 
importunas e pesadas, porque por elas é humilhado o ho­
mem, por elas se purifica e aperfeiçoa. 
Todos os santos passaram por muitas tribulações e tenta­
ções, e por elas progrediram; mas os que não quiseram resis­
tir-lhes foram condenados e desfaleceram. 
Não existe ordem tão santa ou lugar tão escondido em 
que não haja tentações e adversidades. 
3. 
Nunca o homem estará totalmente livre das tentações en­
quanto viver, porque em nós próprios está a origem da ten­
tação pela concupiscência em que nascemos. 
30 ] 
Mal uma tentação ou tribulação recua, logo outra avan­
ça, e sempre teremos algo que sofrer, porque perdemos o 
bem da nossa felicidade. 
Muitos querem fugir às tentações e caem mais grave­
mente nelas . 
Não podemos vencer unicamente pela fuga; mas pela pa­
ciência e pela verdadeira humildade tornamo-nos mais fortes 
que todos os inimigos. 
4. 
Aquele que evita apenas exteriormente o mal e não arran­
ca a raiz, pouco progride; mais depressa as tentações volta­
rão e pior se sentirá. 
Mais conseguirás, vagarosamente, pela paciência e pela 
resignação, com a aj uda de Deus, do que com a tua dureza e 
a tua insistência. 
Aconselha-te mais frequentemente na tentação, e não 
trates duramente o que é tentado, mas consola-o como gos­
tarias que te fizessem. 
5. 
A origem de todas as más tentações é a inconstância do 
espírito e a pouca confiança em Deus; porque, tal como o 
barco sem governo é impelido aqui e ali pelas ondas, assim o 
homem negligente e que abandona a sua resolução é de 
várias maneiras tentado. 
O fogo prova o ferro, e a tentação o justo. 
Desconhecemos muitas vezes as nossas forças, mas a ten­
tação mostra-nos o que somos. 
É necessário, contudo, vigiar, sobretudo no início da ten­
tação, pois o inimigo é mais facilmente vencido quando não 
o deixamos transpor a porta da alma, mas, logo que bate, 
lhe é impedida a entrada . 
[ 3 1 
Na verdade, j á alguém disse: resiste logo ao princípio, 
pois o remédio chega tarde, quando o mal já aumentou com 
a longa demora ( Ovídio ) . 
Assim, primeiro ocorre a o espírito u m simples pensa­
mento, depois, já uma forte imaginação, e, finalmente, o 
prazer, o movimento perverso e o consentimento. 
Assim avança o inimigo maligno em toda a alma, se não 
lhe resistimos de princípio. 
E quanto mais indolente se é a resistir-lhe, mais fraco se 
torna o homem e mais poderoso contra ele o inimigo. 
6. 
Uns sofrem mais fortes tentações no início da sua conver­
são, outros no fim. 
Uns padecem durante toda a vida; outros são tentados 
levemente, segundo a sabedoria e a justiça da ordem divina, 
que considera a situação e os méritos dos homens e tudo 
determina para a salvação dos seus eleitos. 
7. 
Não devemos, portanto, desesperar ao sermos tentados, 
mas orar ainda mais fervorosamente a Deus para que se 
digne ajudar-nos em toda a tribulação; pois que, como diz 
Paulo, Ele nos dará proveito com a própria tentação, de 
molde a podermos suportá-la ( 1 Cor 1 0, 13). 
Humilhemos, pois, as nossas almas sob a mão de Deus 
em toda a tentação e tribulação, pois que Ele salvará e exal­
tará os humildes em espírito. 
8. 
É nas tentações e tribulações que se pode ver o progresso 
do homem; aí é maior o mérito e a virtude. 
Pouco valor tem ser-se devoto e fervoroso sem experi-
3 2 ] 
mentar nada de difícil; mas, se em tempo de adversidade se 
aguenta com paciência, haverá esperança de um grande 
avanço. 
Alguns resistem às grandes tentações e são vencidos 
todos os dias nas pequenas, a fim de que, humilhados, 
nunca confiem em si nas grandes, pois, que nas pequenas 
não resistem. 
[ 33 
XIV 
De como evitar os juízos temerários 
1 . 
Põe os olhos em ti e evita julgar as ações dos outros. 
Julgando os outros, o homem trabalha inutilmente, erra 
a maior parte das vezes e peca com facilidade; mas julgando­
-se e examinando-se a si próprio, age sempre com proveito. 
As coisas são, para nós, o que delas o nosso coração 
sente, e assim as j ulgamos muitas vezes, pois alteramos o 
verdadeiro juízo com o nosso amor-próprio . 
Se Deus fosse sempre a pura intenção do nosso desej o, 
não nos perturbaríamos tão facilmente com a resistência ao 
nosso sentimento . 
Mas é vulgar que qualquer coisa, ou dentro ou fora de 
nós, de igual modo nos arraste. 
2. 
Muitos se procuram inconscientemente a si próprios nas 
coisas que fazem, e não o sabem. 
Parecem, na verdade, estar em paz quando as coisas de­
correm como querem ou sentem; mas se sucedem doutro 
modo, depressa são abalados e se fazem tristes. 
Pela diversidade de sentimentos e de opiniões nascem 
muito frequentemente dissensões entre amigos e cidadãos, 
entre religiosos e pessoas devotas . 
34 ] 
3. 
Dificilmente se abandona um velho hábito, e ninguém é 
levado de boa vontade para além da sua própria visão. 
Se te fiares mais na tua inteligência e habilidade do que 
na virtude de sujeição de Jesus Cristo, pouco e tarde serás 
um homem esclarecido; pois Deus quer-nos perfeitamen­
te submetidos a si , transcendendo a razão por um amor 
ardente. 
[ 35do rico e que nada tem para retribuir a sua bon­
dade, só resta humilhar-se e agradecer. 
290 ] 
Faz tudo o que puderes e fá-lo com cuidado, não por 
hábito, não por necessidade; mas com temor, com respeito e 
com afeto recebe o Corpo do amado Senhor teu Deus, que a 
ti se dignou vir. 
Fui Eu que chamei, fui Eu que o ordenei, Eu te darei o 
que te falta : vem e recebe-me. 
3. 
Quando Eu dou a graça da devoção, dá tu graças ao teu 
Deus, não por seres digno, mas porque me compadeci de ti. 
Se não consegues, se te sentes seco, insiste na oração, 
geme e bate à porta; e não desistas até mereceres receber 
uma migalha ou uma gota da graça da salvação. 
Tu precisas de mim, não sou Eu que preciso de ti. 
Não és tu que me vens santificar, mas Eu é que venho 
santificar-te e melhorar-te . 
Tu vens para que por mim sej as santificado e a mim te 
unas, para que recebas uma graça nova e de novo te animes 
a emendar-te . 
Não queiras perder tal graça, mas prepara com toda a 
diligência o teu coração e recebe em ti o teu Amado. 
4. 
Importa , porém, que te não prepares somente para a 
Comunhão, mas que na devoção te conserves com solicitude 
depois de receberes o Sacramento . 
Não se exige menos cuidado depois, do que uma fervo­
rosa preparação antes. 
Na verdade, uma boa vigilância depois é uma ótima pre­
paração para conseguir uma maior graça. 
Por isso, muito pouco preparado se torna aquele que ime­
diatamente se dispersa nas consolações exteriores . 
[ 291 
Teme as muitas palavras, permanece escondido e goza do 
teu Deus . 
Na verdade, possuis aquele que nem todo o mundo 
poderá de ti afastar. 
Eu sou aquele a quem te deves entregar todo, para que j á 
não em ti, mas em mim, vivas, longe de todo o cuidado. 
292 ] 
XIII 
Que a alma fervorosa deve aspirar de todo o coração 
a unir-se a Cristo no Sacramento 
1 . 
VOZ DO DISCÍPULO - Quem me dera, Senhor, encon­
trar-te a ti e só abrir-te todo o meu coração para de ti viver, 
como deseja a minha alma; quem me dera que já ninguém 
me desprezasse, nem qualquer criatura me perturbasse ou 
olhasse, mas que só Tu me falasses e eu a ti, tal como o que 
ama fala com quem ama e o amigo se senta à mesa com o 
amigo. 
Isto peço, isto desejo: que todo a ti me una, que afaste o 
meu coração de todas as coisas criadas e aprenda a saborear 
mais as coisas eternas e do Céu pela sagrada Comunhão e 
pela celebração frequente . 
Ah, Senhor Deus, quando estarei contigo, todo unido e 
absorvido, esquecido totalmente de mim? 
Tu em mim, e eu em ti ! Concede que assim permaneça­
mos um só. 
2 . 
Tu és, n a verdade, o meu Amado, escolhido entre mil ( Ct 
5 , 1 0 ) , no qual a minha alma se agradou de habitar em todos 
os dias da sua vida . 
Tu és, na verdade, o que me dá a paz, em quem existe o 
repouso e o verdadeiro descanso, sem o qual só há trabalho, 
dor e miséria infinita . 
[ 293 
Tu és verdadeiramente o Deus escondido (Is 45 , 1 5 ) e o 
teu conselho não está com os ímpios; mas sim a tua palavra 
com os humildes e com os simples (Pr 3 ,32 ) . 
Oh, como é suave, Senhor, o teu Espírito, Tu que, para 
mostrares a tua doçura aos filhos, os dignaste reconfortar 
com o pão suavíssimo, descido do Céu (ant. do Sacram. ) . 
Na verdade, não existe outra nação tão grande que tenha 
deuses que dela se aproximem, tal como Tu, nosso Deus, 
estás junto (Dt 4 ,7 ) de todos os teus fiéis, aos quais, para 
consolação de todos os dias e para lhes elevares o coração ao 
Céu, te dás por comida e por consolo. 
3 . 
Que outro povo existe tão glorioso como o povo cristão ? 
Ou que criatura, debaixo do céu, tão amada como a alma 
piedosa, j unto da qual Deus vem para a apascentar com a 
sua gloriosa carne ? 
Oh, graça inefável ! Oh, admirável favor ! Oh, amor 
imenso singularmente dado ao homem! 
Mas que retribuirei ao Senhor por esta graça, por tão 
grande caridade ? 
Nada há que eu possa dar de melhor do que entregar o 
meu coração inteiro ao meu Deus e a Ele me unir intima­
mente . 
Então exultarão todas as minhas entranhas, quando a 
minha alma estiver perfeitamente unida a Deus . 
Então me dirá: se queres estar comigo, Eu quero estar 
contigo. 
E eu lhe responderei: digna-te, Senhor, permanecer 
comigo; pois que eu de boa vontade quero estar contigo. 
Tal é todo o meu desejo : que o meu coração esteja unido 
ao teu. 
294 ] 
1 . 
XIV 
Do ardente desejo de algumas almas piedosas 
pelo Corpo de Cristo 
VOZ DO DISCÍPULO - Oh, como é grande a abundân­
cia da tua doçura, Senhor, que guardaste para os que te 
temem! ( Sl 3 1 [30] ,20 ) . 
Quando recordo como algumas almas piedosas se apro­
ximam do teu Sacramento, Senhor, com a maior devoção e 
afeto, então me sinto confundido e coro, porque tão morna 
e friamente me aproximo da mesa da sagrada Comunhão; 
porque assim permaneço seco e sem amor no coração; por­
que me não inflamo totalmente diante de ti, meu Deus, nem 
sou assim atraído com força e transportado de amor, como 
muitos homens fervorosos o foram, os quais não podiam 
conter o choro, tal era o seu desejo de comungar e o seu sen­
sível amor de coração, e te desej avam igualmente, Deus e 
fonte viva, com a boca do coração e com a do corpo, não 
conseguindo acalmar nem saciar-se de outra forma, se não 
tivessem recebido o teu Corpo com toda a alegria e fome 
espiritual. 
2. 
Oh, fé verdadeira e ardente desses, que tal prova dá da 
tua sagrada presença ! 
Estes reconhecem, na verdade, o seu Senhor na fração do 
[ 295 
pão (Lc 24,35 ) , tão intensamente arde o seu coração quando 
Jesus com eles caminha. 
Bem longe de mim está, muitas vezes, tal afeto e devoção, 
amor e fogo tão fortes . 
Sê-me propício, bom Jesus, doce e benigno, e concede ao 
teu pobre mendigo, ao menos de vez em quando, que sinta 
na sagrada Comunhão um pouco do íntimo afeto do teu 
amor, para que a minha fé mais se anime, para que aumente 
a esperança na tua bondade e para que a caridade, uma vez 
perfeitamente inflamada e ateada com o maná do Céu não 
desfaleça nunca . 
Poderosa é, porém, a tua misericórdia, para me conceder 
a graça desejada e, em espírito de fervor, quando vier o dia 
da tua vontade, me visitar com clemência. 
Porque, embora não arda no grande desejo dos que por ti 
têm tão especial fervor, tenho, contudo, o desejo de, com a 
tua graça, possuir esse grande e abrasador desejo, pedindo e 
desejando tornar-me participante de todos esses fervorosos 
amigos teus, e ser contado na sua santa companhia . 
296 ] 
1 . 
XV 
Que a graça da vocação se adquire 
pela humildade e negação de si próprio 
VOZ DO AMADO - É necessário procurar instante­
mente a graça da devoção, pedi-la com desejo, esperá-la com 
paciência e confiança, recebê-la com gratidão, conservá-la 
com humildade, esforçar-se por colaborar com ela e entregar 
a Deus, até que venha, o fim e o modo dessa visita do alto . 
Deves, sobretudo, humilhar-te, quando sentes pouca ou 
nenhuma devoção interior, mas não desfalecer demasiado ou 
entristecer-te desordenadamente. 
Deus concede muitas vezes num breve momento o que 
negou durante largo tempo. 
Dá, por vezes, no fim o que demorou a dar no princípio 
da oração. 
2 . 
S e a graça fosse sempre concedida logo e aparecesse con­
forme é desejada, isso não seria suportável para o homem fraco. 
Por isso se deve esperar a graça da devoção com firme 
esperança e humilde paciência. 
Contudo, quando não te é dada ou te é misteriosamente 
retirada, atribui-o a ti próprio e aos teus pecados. 
É, por vezes, pouca coisa o que impede e esconde a graça, 
se se chamar pouca coisa e não grande ao que de tamanho 
bem nos priva . 
[ 297 
E se afastares e venceres completamente essa pequena ou 
grande coisa, far-se-á como pediste . 
3. 
Na verdade, assim que te entregares a Deus de todo o 
coração e deixares de querer isto ou aquilo segundo a tua 
vontade, mas inteiramente a Ele te confiares, achar-te-ás 
unido e pacificado, pois nada te saberá tão bem e tanto te 
agradará como o que agrada à vontade divina.Aquele, pois, que erguer a Deus com simplicidade de 
coração as suas intenções e se libertar de todo o desregrado 
amor de si ou da aversão por qualquer coisa criada, estará 
bem preparado para receber a graça e digno do dom da 
devoção. 
Porque Deus dá a sua bênção lá onde encontra vasos 
vazios . 
E quanto mais perfeitamente alguém renuncia às coisas 
inferiores e mais se mortifica pelo desprezo de si próprio, 
tanto mais depressa vem a graça, entra mais abundante­
mente e a mais alto eleva o coração livre . 
4. 
Então verá e terá abundância, e se admirará e se dilatará 
o seu coração (Is 60,5 ) dentro de si, porque a mão do Senhor 
está com ele, que para sempre e totalmente se abandonou 
em suas mãos. 
Eis que assim será abençoado o homem que procura 
Deus de todo o seu coração, e que não recebeu em vão a sua 
alma ( Sl 24 [23] ,4 ) . 
Este, recebendo a sagrada Eucaristia, merece a grande 
graça da união com Deus, porque não olhou à sua própria 
devoção e consolação, mas, acima de toda a devoção e con­
solação, à glória e honra de Deus. 
298 ] 
XVI 
Que devemos descobrir a Cristo 
as nossas necessidades e pedir a sua graça 
1 . 
VOZ DO DISCÍPULO - Ó doce e amado Senhor, que 
agora desejo receber fervorosamente, Tu conheces a minha 
fraqueza e a necessidade que padeço, em quantos males e 
vícios estou caído, quantas vezes sou atormentado, tentado, 
perturbado e manchado. 
De ti me aproximo como de meu remédio; a ti clamo 
como consolação e alívio. 
Falo àquele que tudo sabe, a quem é patente tudo o que 
está dentro de mim e que, só Ele, me pode consolar e ajudar 
perfeitamente. 
Tu sabes de que bens eu mais careço e como sou pobre 
em virtudes. 
2 . 
Eis que estou diante d e ti, pobre e nu, pedindo graça e im­
plorando misericórdia. 
Refaz o teu esfomeado mendigo; aquece o frio que eu sou 
com o fogo do teu amor; ilumina a minha cegueira com a 
claridade da tua presença. 
Torna para mim em amargura todas as coisas da Terra; 
tudo o que me é duro e contrário, em paciência; tudo o que 
é inferior e criado, em desprezo e esquecimento. 
[ 299 
Ergue o meu coração para ti no Céu, e não deixes que 
vagueie sobre a Terra . 
Que, de hoj e em diante e para sempre, só Tu me sej as 
doce, pois és a minha única comida e bebida, o meu amor e 
a minha alegria, a minha doçura e todo o meu bem. 
Inflama-me totalmente com a tua presença, queima-me e 
transforma-me em ti, e que eu contigo me torne num só espí­
rito pela graça da união interior e pela fusão dum amor 
ardente ! 
Não deixes que de ti me afaste seco e em j ejum, mas usa 
comigo de misericórdia, tal como tantas vezes fizeste tão 
maravilhosamente com os teus santos. 
Que há de admirar, se por ti todo me inflamo e em mim 
desfaleço, se Tu és o fogo sempre ardente e que nunca se 
apaga, o amor que purifica os corações e que ilumina a in­
teligência ? 
300 ] 
1 . 
XVII 
Do amor ardente e do grande desejo 
com que se deve receber Cristo 
VOZ DO DISCÍPULO - Com a maior devoção e o mais 
ardente amor, com todo o afeto e fervor do coração, te 
desejo receber, Senhor, tal como, comungando, te desejaram 
muitos santos e almas piedosas, que tanto te agradaram pela 
santidade de vida e tão ardente devoção tiveram. 
Ó meu Deus, amor eterno, todo o meu bem, felicidade 
sem fim, desejo receber-te com o maior desejo, com o maior 
respeito que algum dia pôde ter ou sentir qualquer dos 
santos! 
2 . 
E , embora seja indigno d e possuir todos esses sentimen­
tos de devoção, ofereço-te , contudo, todo o afeto do meu 
coração, como se eu sozinho tivesse todos esses gratos dese­
jos ardentes. 
E tudo o que um espírito piedoso pode conceber e desejar, 
tudo te apresento e ofereço, com grande veneração e íntimo 
fervor. 
Nada quero reservar para mim, mas sim imolar-me e a 
tudo o que é meu, a ti, voluntária e livremente . 
Senhor meu Deus, meu Criador e Redentor, desejo rece­
ber-te hoje com tal afeto, respeito, louvor e honra, com tal 
gratidão, dignidade e amor, com tal fé, esperança e caridade, 
[ 301 
como te recebeu e desejou a tua santíssima Mãe, a gloriosa 
Virgem Maria, quando, com humildade e devoção, respon­
deu ao anjo que lhe anunciava o mistério da encarnação: eis 
a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra 
(Lc 1 , 3 8 ) . 
3 . 
E , tal como o teu bem-aventurado precursor, o mais alto 
dos santos, João Batista, alegre exultou em tua presença com 
a alegria do Espírito Santo, enquanto estava ainda encerrado 
no ventre de sua mãe, e, mais tarde, distinguindo Jesus, que 
caminhava entre os homens, se humilhou e disse com amor: 
mas o amigo do esposo, que permanece junto dele e o ouve, 
com alegria se alegra por causa da voz do esposo (Jo 3,29) -
assim também eu desejo ser abrasado por grandes e sagrados 
desej os, e diante de ti me apresentar com todo o coração. 
Por isso te ofereço e apresento as alegrias de todos os 
corações devotos, os amores ardentes, os êxtases do espírito, 
as luzes sobrenaturais e as visões do Céu, juntamente com 
todas as virtudes e louvores celebrados por toda a criatura 
no Céu ou na Terra, por mim e todos os que recomendo na 
oração, para que por todos sej as dignamente louvado e para 
sempre glorificado . 
4. 
Aceita, Senhor meu Deus, os meus votos e os desejos de 
infinito louvor e imensa bênção, que te são devidos por 
direito segundo a imensidade da tua indizível grandeza. 
Isto te entrego e desejo entregar em cada dia e em cada 
momento, e convido e exorto, com orações e desejos, todos 
os espíritos do Céu e todos os teus fiéis a que comigo te 
deem graças e louvores. 
302 ] 
5. 
Que todos os povos, tribos e línguas te louvem, e glorifi­
quem o teu santo e doce Nome, com a maior alegria e a mais 
ardente devoção. 
E que todos os que celebram com respeito e devoção o 
teu altíssimo Sacramento, e o recebem com plena fé, mere­
çam achar graça e misericórdia junto de ti, e por mim, peca­
dor, suplicantemente peçam. 
E que, ao deixarem a santa mesa do Céu, fortalecidos por 
esta devoção e por esta união proveitosa, totalmente conso­
lados e maravilhosamente refeitos , se dignem lembrar da 
minha pobreza . 
[ 303 
1 . 
XVIII 
Que o homem não perscrute 
com curiosidade este sacramento, 
mas imite humildemente a Cristo, 
submetendo a sua opinião à sagrada fé 
VOZ DO AMADO - Deves temer dar-te a uma curiosa e 
inútil investigação deste profundíssimo sacramento, se não 
queres cair nas profundezas da dúvida. 
O que perscruta a Majestade, será oprimido pela glória 
(Pr 25,27) . 
Mais pode Deus fazer que o homem compreender. 
Só se tolera uma piedosa e humilde busca da verdade, se 
ela está sempre pronta a ser guiada e a procurar caminhar 
segundo a sã doutrina dos Padres . 
2 . 
Feliz a simplicidade que deixa os difíceis caminhos das 
perguntas e caminha pelas sendas planas e firmes dos man­
damentos de Deus. 
Muitos perderam a devoção quando quiseram perscrutar 
coisas mais altas. 
Exige-se de ti a fé e uma vida sincera, e não a elevação da 
inteligência ou a sabedoria dos profundos mistérios de Deus. 
Se não percebes nem apreendes o que te é inferior, como 
compreenderás o que te está acima ? 
304 ] 
Submete-te a Deus e humilha o teu parecer à fé; e ser-te-á 
dada a luz da ciência, conforme te for útil ou necessário. 
3. 
Alguns são duramente tentados na fé ou na Eucaristia; 
isso, porém, não se deve atribuir a eles, mas sim ao inimigo. 
Não te importes, não discutas com os teus próprios pen­
samentos, nem respondas às dúvidas insinuadas pelo demó­
nio, mas crê nas palavras de Deus, crê nos seus santos e pro­
fetas e de ti fugirá o inimigo. 
Muitas vezes de muito serve que tais coisas suporte o 
servo de Deus. 
Pois que o demónio não tenta os infiéis e pecadores, que 
já possui com certeza, mas sim os fiéis devotos, que tenta e 
humilha de diversos modos. 
4. 
Caminha, portanto, com uma fé simples e certa, e apro­
xima-te do Sacramento com suplicante respeito; e o que não 
consigas perceber, entrega com confiançaa Deus omnipo­
tente. 
Deus não te engana; mas engana-se aquele que em si pró­
prio crê demais. 
Caminha Deus com os simples, revela-se aos humildes, dá 
inteligência aos pequenos, abre os sentidos aos de espírito 
puro e esconde a graça dos curiosos e soberbos . 
A razão humana é fraca e pode errar; mas não a verda­
deira fé. 
5. 
Todo o raciocínio e investigação natural deve seguir a fé, 
não precedê-la ou infringi-la. 
Na verdade, é aí que brilham sobretudo a fé e o amor, e 
[ 305 
nesse santíssimo e tão excelente sacramento operam de 
maneira oculta . 
Deus eterno e imenso, de poder infinito, faz coisas gran­
des e inescrutáveis no Céu e na Terra, e não há investigação 
possível das suas maravilhas . 
Se as obras de Deus fossem tais que facilmente se apreen­
dessem pela razão humana, não deveriam chamar-se admi­
ráveis nem inefáveis . 
306 ] 
ÍNDICE 
Prefácio 5 
Livro Primeiro 
Conselhos úteis à vida espiritual 
I - Da imitação de Cristo e do desprezo de todas as vai-
dades do mundo 1 1 
II - Do humilde sentimento de si próprio 1 3 
III - Da doutrina da verdade 1 5 
IV - Da previdência nas ações 1 8 
V - Da leitura das Sagradas Escrituras 1 9 
VI - Das afeições desordenadas 20 
VII - De como fugir da esperança vã e do orgulho 2 1 
VIII - De como evitar a muita familiaridade 23 
IX - Da obediência e da submissão 24 
X - De como evitar as palavras a mais 25 
XI - De como alcançar a paz e progredir na virtude 26 
XII - Das vantagens da adversidade 29 
XIII - De como resistir às tentações 30 
XIV - De como evitar os juízos temerários 34 
XV - Das obras feitas por caridade 3 6 
XVI - Da aceitação dos defeitos alheios 3 8 
XVII - A vida monástica 40 
XVIII - Do exemplo dos santos Padres 4 1 
XIX - Dos exercícios de um bom religioso 44 
XX - Do amor da solidão e do silêncio 47 
XXI - Da compunção do coração 5 1 
XXII - Da consideração da miséria humana 54 
XXIII - Da meditação da morte 5 8 
XXIV - Do juízo e das penas dos pecadores 62 
XXV - Da fervorosa emenda de toda a nossa vida 66 
[ 307 
Livro Segundo 
Conselhos para o progresso na vida interior 
I - Da conversão interior 73 
II - Da humilde submissão 77 
III - Do homem bom e pacífico 79 
IV - Do espírito puro e da reta intenção 8 1 
V - D a consideração de si próprio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 3 
V I - Da alegria da boa consciência 8 5 
VII - Do amor a Jesus sobre todas as coisas 8 7 
VIII - Da amizade familiar a Jesus 8 9 
I X - Da falta d e toda a consolação 92 
X - Da gratidão pela graça de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 
XI - Do pequeno número dos que amam a cruz de Jesus 99 
XII - Do régio caminho da santa Cruz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 0 1 
Livro Terceiro 
Da consolação interior 
I - Da conversação interior de Cristo com a alma fiel 1 1 1 
II - Que a verdade fala dentro de nós sem ruído de pa-
lavras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1 3 
III - Que as palavras de Deus devem ser ouvidas com hu-
mildade, e que muitos as não pesam . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1 5 
IV - Que s e deve viver diante d e Deus na verdade e na 
humildade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1 8 
V - D o admirável efeito d o amor divino 1 2 0 
VI - Da prova do verdadeiro amigo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 24 
VII - De como se deve ocultar a graça à guarda da humil-
dade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 2 7 
VIII - Da pouca estima d e si na presença d e Deus . . . . . . . . . . . . 1 3 0 
IX - Q u e s e devem atribuir a Deus, como fim último, to-
das as coisas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 32 
X - Que é doce servir a Deus, desprezando o mundo . . . 1 34 
XI - Que se devem examinar e moderar os desejos do 
coração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 7 
XII - D a prática da paciência e da luta contra os maus 
desejos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 3 9 
XIII - D a obediência d o humilde, a exemplo de Jesus 
308 ] 
Cristo 1 42 
XIV - Do dever de considerar os j uízos ocultos de Deus 
e de não nos orgulharmos do bem que fizemos . . . 1 44 
XV - De como devemos falar e comportar-nos em tudo 
o que desej armos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146 
XVI - Que só em Deus se deve buscar a verdadeira con-
solação . . . .. .. .. .. . . . . . . . . .. .. .. .. . . . . . . . .. .. .. .. . . . . .. . . . . . . .. .. . . . . . . 1 4 8 
XVII - Que d e deve entregar a Deus todo o cuidado 1 5 0 
XVIII - Que s e devem suportar de b o a vontade todos o s 
males deste mundo, a exemplo d e Cristo 1 52 
XIX - Como tolerar as injúrias e conhecer aquele que tem 
a verdadeira paciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 54 
XX - Da confissão da própria fraqueza, e das misérias 
desta vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 5 6 
XXI - Que s e deve descansar e m Deus, mais do que e m 
todos o s bens e e m todos os dons . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 5 9 
XXII - D a recordação dos muitos benefícios d e Deus . . . . . 1 62 
XXIIII - Das quatro coisas indispensáveis à paz 1 65 
XXIV - De como evitar a curiosidade pela vida dos outros 1 6 8 
XXV - Em que consiste a firme paz d o coração e o verda-
deiro progresso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 69 
XXVI - Da grandeza do espírito livre, que mais se adquire 
pela oração que pela leitura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 71 
XXVII - Que o amor de si próprio muito impede o sumo 
bem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 73 
XXVIII - Contra as línguas dos maldizentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 75 
XXIX - Como se deve, na tribulação, invocar e bendizer a 
Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 76 
XXX - De como se deve pedir o auxílio de Deus e con-
fiar na recuperação da graça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 78 
XXXI - Do abandono de toda a criatura para se poder en-
contrar o Criador 1 8 1 
XXXII - D a negação de s i próprio e d a renúncia a todo o 
desejo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 84 
XXXIII - Da inconstância do coração e do dever de tudo 
orientar para Deus 1 8 6 
XXXIV - Aquele que ama saboreia Deus mais que tudo e 
em tudo 1 8 8 
XXXV - Que nesta vida não s e está seguro d a tentação 1 90 
XXXVI - Contra os vãos j uízos dos homens 1 92 
[ 309 
XXXVII -
XXXVIII -
XXXIX -
XL -
XLI ­
XLII ­
XLIII ­
XLIV ­
XLV -
XLVI -
XLVII -
XLVIII ­
XLIX -
L -
LI -
LII -
LIII -
LIV ­
LV -
Da pura e inteira renúncia de si mesmo para obter 
a liberdade de coração 
De como nos regermos bem nas coisas exteriores 
e recorrermos a Deus nos perigos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
Que o homem não deve ser apressado nosseus 
afazeres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
Que o homem, por sim, nada tem de bom, e de 
nada se pode orgulhar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
Do desprezo de toda a honra do mundo 
Que a paz não deve depender dos homens 
Contra a ciência vã deste mundo 
1 94 
1 9 6 
1 9 8 
1 99 
202 
203 
205 
De como não se enredar nas coisas exteriores . . . 207 
Que não se deve acreditar em todos, e do fácil 
erro das palavras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208 
Da confiança que se deve ter em Deus quando 
somos atacados por palavras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 1 1 
Que pela vida eterna se devem suportar todos 
os males . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 1 4 
D o dia d a eternidade e das angústias desta vida 2 1 6 
D o desejo d a vida eterna, e d e quão grandes são 
os bens prometidos aos que lutam 2 1 9 
D e como o homem desolado s e deve entregar nas 
mãos de Deus .. .. . .. . . .. .. .. .. . . . . .. . . .. .. .. .. . . . . . .. .. .. .. .. . . . . 223 
Como nos devemos ocupar de trabalhos humil-
des quando desfalecemos nos mais altos . . . . . . . . . . . 227 
Que o homem se não julgue digno de consolação, 
mas antes réu de castigos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 228 
Que a graça de Deus se não l iga aos que sabo-
reiam as coisas da Terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 1 
Dos movimentos diversos na natureza e da graça 233 
Da corrupção da natureza e da eficácia da graça 
divina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237 
LVI - Como nos devemos negar a nós próprios e imitar 
a Cristo pela Cruz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 240 
LVII - Que o homem não deve desanimar demasiada-
mente quando cai nalguma falta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243 
LVIII - Que se não devem perscrutar as coisas altas e os 
3 1 0 ] 
j uízos ocultos de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 246 
LIX - Que só em Deus se deve fixar toda a esperança e 
confiança 25 1 
Livro Quarto 
Do Santíssimo Sacramento 
Exortação piedosa à Sagrada Comunhão 255 
I - Com que grande respeito se deve receber Cristo 256 
II - Que a grande bondade e o amor de Deus se mani-
festam ao homem neste sacramento 262 
III - De como é útil comungar muitas vezes 265 
IV - Que muitos bens são dispensados aos que comun-
gam com devoção 268 
V - Da dignidade do sacramento e do estado sacerdotal 2 71 
VI - Interrogação sobre os exercícios antes da comunhão 273 
VII - Do exame de consciência e do propósito de emenda 2 7 4 
VIII - Da oblação de Cristo na cruz e do sacrifício de si 
próprio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277 
IX - Que nos devemos oferecer a Deus com tudo o que é 
nosso e pedir por todos 2 79 
X - Que não se deve abandonar por qualquer motivo 
leve a sagrada Comunhão 282 
XI - Que o Corpo de Cristo e a Sagrada Escritura são 
muito necessários à alma fiel 2 8 6 
X I I - Q u e deve preparar-se com grande cuidado aquele 
que vai receber a Cristo 290 
XIII - Que a alma fervorosa deve aspirar de todo o cora-
ção a unir-se a Cristo no Sacramento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293 
XIV - Do ardente desej o de algumas almas piedosas pelo 
Corpo de Cristo 29 5 
XV - Que a graça da devoção se adquire pela humildade 
e negação de si próprio 297 
XVI - Que devemos descobrir a Cristo as nossas necessi-
dades e pedir a sua graça 299 
XVII - Do amor ardente e do grande desejo com que se deve 
receber Cristo 3 0 1 
XVIII - Que o homem não perscrute com curiosidade este 
sacramento, mas imite humildemente a Cristo, sub-
metendo a sua opinião à sagrada fé 304 
[ 3 1 1 
TOMÁS DE KEMPIS - ou Thomas Hremerken von 
Kempen - foi um monge e escritor alemão, e um dos 
expoentes da chamada « devoção moderna » . Nasceu 
em Kempen (Alemanha ) , em 1 3 80 . Com apenas 1 2 
anos acompanhou o seu irmão João a Deventer, dio­
cese de Utrecht, onde conheceu a comunidade dos 
Irmãos da Vida Comum (presidida então por Florên­
cio Radewijn, seu fundador) , e na qual pôde exercer 
o seu talento de copista. Em 1 3 99, o seu irmão tor­
nou-se prior do convento agostinho de Agnetenberg 
(Monte de Santa Inês ) , e Tomás juntou-se a ele. Seria 
aí ordenado sacerdote, em 1 4 1 3 , e, posteriormente, 
nomeado subprior, em 1 429. Isto aconteceu todavia 
em pleno « cisma de Utrecht» , numa altura em que a 
vida da comunidade foi seriamente afetada e os 
monges tiveram de exilar-se. Tomás refugiou-se em 
Arnheim, onde permaneceu até 1432. De regresso a 
Agnetenberg, voltaria a ser reeleito subprior em 
1448, permanecendo nessas funções até à morte, em 
1471 . Durante muito tempo, Tomás teve a seu cargo 
a instrução dos noviços . Foi provavelmente este o 
contexto em que foram escritos os quatro livros que 
vieram a formar a Imitação de Cristo (título dado ao 
primeiro livro da coletânea) . 
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	miolo - 0311sharp
	miolo - 0312sharpXV 
Das obras feitas por caridade 
1 . 
Por nenhuma coisa do mundo ou por amor de nenhum 
homem se deve fazer qualquer mal; contudo, em proveito do 
necessitado, pode às vezes adiar-se uma boa ação ou mudá­
-la noutra melhor. 
Assim, a boa obra não é destruída, mas melhorada. 
Sem amor a ação externa de nada aproveita ; todavia 
alguém age pela caridade, ainda que seja humilde e despre­
zado, tudo fará com fruto. 
Pois que Deus considera mais o motivo por que se age do 
que a própria ação. 
2. 
Faz muito, quem muito ama; faz muito, quem faz bem 
aquilo que faz; faz bem, quem serve a comunidade mais que 
a sua vontade. 
Muitas vezes é carnalidade o que parece caridade, pois 
raramente estão ausentes a inclinação natural, a vontade 
própria, a esperança da retribuição e o amor do bem-estar. 
3. 
Aquele que tem a verdadeira e a perfeita caridade em ne­
nhuma coisa se procura, mas apenas deseja em tudo a glória 
de Deus. 
Não invej a ninguém, porque não ama nenhum prazer 
36 ] 
próprio; e não se quer alegrar em si mesmo, mas, sim, ale­
grar-se em Deus, acima de todos os bens. 
Não atribui nenhum bem a nenhuma pessoa, mas total­
mente tudo refere a Deus, donde procedem todas as coisas e 
em quem descansam com proveito todos os santos. 
Oh, quem tivera uma centelha da verdadeira caridade, e 
todas as coisas terrenas lhe pareceriam vãs ! 
[ 37 
XVI 
Da aceitação dos defeitos alheios 
1 . 
O homem deve aguentar pacientemente as coisas que não 
consegue emendar em si e nos outros até que Deus diversa­
mente o ordene. 
Pensa que assim é talvez melhor, para experimentar a tua 
paciência, sem a qual os teus méritos não serão de grande 
peso. 
Contudo, deves orar por tais contrariedades, para que 
Deus se digne ajudar-te e possas sofrê-las com paciência . 
2. 
Se alguém, uma ou duas vezes admoestado, não se sub­
meter, não discutas com ele, mas entrega tudo a Deus, para 
que se faça a sua vontade e honra em todos os seus servos, 
pois Ele sabe bem converter as coisas más em boas. 
Procura ser paciente em tolerar os defeitos e quaisquer 
fraquezas dos outros, pois também tu tens muitas coisas que 
os outros têm de suportar. 
Se não te podes fazer como te queres, como poderás 
transformar um outro à tua vontade ? 
Facilmente fazemos os outros perfeitos e, contudo, não 
nos emendamos a nós próprios . 
3. 
Queremos que os outros sejam corrigidos rigorosamente, 
mas nós não queremos corrigir-nos. 
38 ] 
Desagrada-nos a sua demasiada liberdade, mas não que­
remos recusar-nos o que desejamos. 
Queremos restringir os outros por meio de regras, mas 
não permitimos de forma alguma que nos privem de qual­
quer c01sa. 
Assim se vê como é raro que julguemos os outros à nossa 
medida . 
Se todos fossem perfeitos, que teríamos de sofrer com os 
outros, por Deus ? 
4. 
Mas Deus assim ordenou, para que aprendamos a levar 
os fardos uns dos outros ( Gl 6,2 ) , porque não há ninguém 
sem defeito, ninguém que não tenha fardo, ninguém que se 
baste a si próprio, ninguém suficientemente sábio; mas cum­
pre levarmo-nos uns aos outros, uns aos outros nos conso­
larmos, e, igualmente, ajudarmo-nos, instruirmo-nos e acon­
selharmo-nos. 
Quanto maior virtude alguém tiver, tanto mais o mos­
trará na adversidade. 
As ocasiões não fazem o homem fraco, mas mostram o 
que ele é . 
[ 39 
XVII 
Da vida monástica 
1 . 
É necessário que aprendas a quebrar-te em muitas coisas, 
se quiseres manter com os outros a paz e a concórdia . 
Não é pouco habitar num mosteiro ou congregação, aí 
viver sem queixas e perseverar fielmente até à morte. 
Bem-aventurado o que aí viver santamente e felizmente 
morrer. 
Se queres permanecer firme e progredir, tem-te como 
degredado e peregrino na terra . 
É necessário que te faças louco por Cristo, se queres levar 
vida de religioso. 
2. 
O hábito e a tonsura trazem pouca coisa; mas a modifi­
cação dos costumes e a inteira mortificação das paixões 
fazem o verdadeiro homem de religião. 
Aquele que procura outra coisa além de Deus e da salva­
ção da sua alma, só encontrará tribulação e dor. 
Na verdade, não pode permanecer em paz por muito 
tempo aquele que se não esforça por ser o mais pequeno e 
submisso a todos. 
Vieste para servir, não para governar. 
Conhece-te como chamado ao sofrimento e ao trabalho, 
e não ao descanso ou à tagarelice. 
Aqui se experimenta o homem, tal como o ouro na fornalha. 
Ninguém cá pode ficar, se não quiser de todo o coração 
humilhar-se por Deus. 
40 ] 
XVIII 
Do exemplo dos santos Padres 
1 . 
Contempla os exemplos vivos dos santos Padres, nos 
quais resplandece a verdadeira perfeição e religião, e verás 
como é pequeno ou quase nulo o que fazemos . 
Infelizmente, o que é a nossa vida comparada à deles ? 
Os santos e amigos de Cristo serviram o Senhor na fome 
e na sede, no frio e na nudez, no trabalho e no cansaço, nas 
vigílias e j ej uns, nas orações e santas meditações, nas perse­
guições e nos muitos opróbrios. 
2. 
Oh, quantas e quão pesadas tribulações sofreram os 
Apóstolos, os mártires, os confessores, as virgens e todos os 
outros que quiseram seguir os passos se Cristo ! 
Na verdade, odiaram as suas almas neste mundo para 
que as possuíssem na vida eterna (Jo 12,25 ) . 
Oh, que vida tão dura e despegada levaram o s santos 
Padres no deserto ! Que longas e pesadas tentações sofreram, 
quantas vezes os atormentou o inimigo ! Quão frequentes e 
fervorosas orações ergueram a Deus, que duras abstinências 
suportaram! 
Que grande zelo e fervor mostraram no progresso espiri­
tual. Que forte guerra não travaram para dominar os vícios ! 
Que pura e reta intenção conservaram para Deus ! 
[ 41 
3. 
Trabalhavam de dia e, durante as noites, faziam prolon­
gadas orações; e, mesmo trabalhando, raramente abandona­
vam a oração mental. 
Gastavam utilmente todo o seu tempo; todas as horas 
para se ocuparem de Deus lhe pareciam breves, e tão grande 
era a doçura da contemplação, que se esqueciam do que o 
corpo precisava . 
Renunciavam a todas as riquezas, dignidades, honras , 
amigos e parentes; nada desejavam possuir do mundo; mal 
tomavam o que era necessário à vida; custava-lhes atender 
ao corpo, mesmo na necessidade. 
Assim, eram pobres para as coisas da terra , mas bem 
ricos em graça e virtudes. 
Por fora tudo lhes faltava, mas por dentro eram recon­
fortados com a graça e a consolação divina. 
Eram estranhos ao mundo, mas próximos e amigos ínti­
mos de Deus. 
Tinham-se para si como nada e eram desprezados neste 
mundo; mas, aos olhos de Deus, eram preciosos e queridos . 
Mantinham-se na verdadeira humildade, viviam na sim­
ples obediência. 
Caminhavam na caridade e na paciência, e por isso pro­
grediam em espírito, todos os dias e obtinham grande graça 
junto de Deus . 
Foram dados como exemplo a todos os religiosos e 
devem-nos arrastar mais no caminho do bem do que todos 
os medíocres no da mediocridade. 
4. 
Oh, que grande foi o fervor de todos os religiosos no 
princípio da sua santa instituição ! 
Que piedade na oração, que zelo na virtude ! Que forte 
42 ] 
disciplina se observou, que respeito e obediência pela regra 
do fundador floresceu em todos ! 
São ainda testemunhos os vestígios que deixaram de 
terem sido, na verdade, homens santos e perfeitos, esses sol­
dados corajosos que calcaram a seus pés o mundo. 
Hoje j á é tido como grande o que não transgride a regra 
e aceita com paciência o que escolheu. 
5. 
Oh, mediocridade e negligência do nosso estado ! Tão 
depressa caímos do primitivo fervor, que já nos aborrece 
viver, tal é o nosso cansaço e mediocridade. 
Queira Deus que não adormeça em ti inteiramente o pro­
gresso das virtudes, depois de teres visto tantos exemplos de 
homens piedosos. 
[ 43 
XIX 
Dos exercícios de um bom religioso 
1 . 
A vida do bom religioso deve ser cheia de todas as virtu­
des, de modo a que seja por dentro aquilo que por fora pa­
rece ser. 
E deve ter muito mais valor interiormente do que exte­
riormente, poisDeus é aquele que nos olha, a quem devemos 
venerar onde quer que estej amos, caminhando na sua pre­
sença como os an1 os. 
Todos os dias devemos renovar o nosso propósito e exci­
tar-nos ao fervor, como se hoje mesmo tivéssemos chegado 
pela primeira vez à conversão, e dizer: aj uda-me, Senhor 
Deus, no bom propósito e em teu santo serviço, e faz que eu 
comece hoje em perfeição, pois nada é o que fiz até agora. 
2. 
Tal o nosso propósito, assim o nosso progresso: e é neces­
sária muita diligência àquele que quer avançar. 
Pois que se o que tem propósitos firmes desfalece muita 
vez, o que será do que raro e pouco se propõe a alguma coisa ? 
Contudo, de várias maneiras se abandona a nossa resolu­
ção e raramente uma leve omissão dos nossos exercícios se 
passa sem algo de mais grave . 
O propósito dos justos depende mais da graça de Deus do 
que da sua sabedoria, pois que nele sempre confiam no que 
quer que façam. 
44 ] 
Na verdade, o homem põe e Deus dispõe, e não está na 
mão do homem o seu caminho (Pr 1 6,9 e Jr 1 0,23 ) . 
3. 
Se, por razões de piedade ou pelo bem dos outros, omiti­
mos, de vez em quando, um costumado exercício, será fácil 
recuperar depois. 
Mas, se é por aborrecimento do espírito ou negligência 
que o abandonamos facilmente, então somos culpados dum 
pecado que nos será funesto. 
Esforcemo-nos o mais que pudermos e, mesmo assim, 
cairemos facilmente em muitas coisas. 
Todavia, sempre devemos ter como propósito algo de 
certo, sobretudo contra aquilo que mais nos prende. 
Devemos observar e ordenar tanto o nosso exterior como 
o interior, pois que ambos contam para o nosso progresso. 
4. 
Se não te podes recolher continuamente, fá-lo de tempos 
a tempos e, pelo menos, uma vez por dia, de manhã ou à 
noite. 
Pela manhã, faz o teu propósito; à noite, examina os teus 
hábitos e vê como foste durante o dia em pensamentos, pala­
vras e obras, pois com certeza neles ofendeste muitas vezes a 
Deus e ao teu próximo. 
Arma-te, como um homem forte, contra as malícias do 
demónio; domina a gula e dominarás mais facilmente todo 
o desejo da carne. 
Nunca estej as completamente desocupado, mas lê, ou 
escreve, ou reza, ou medita, ou faz qualquer coisa de útil 
para a comunidade. 
Contudo, os exercícios corporais devem ser feitos com 
cuidado e não igualmente por todos . 
[ 45 
5. 
Aqueles exercícios que não são feitos em comum não se 
devem mostrar cá fora, pois é mais seguro fazer secreta­
mente os de prática privada. 
Teme, contudo, seres mais pronto nos exercícios privados 
do que nos comuns; mas, cumpridos íntegra e fielmente os 
preceitos, se te resta tempo, reserva-te para ti, como a tua 
devoção o quiser. 
Não podem todos ter um mesmo exercício, mas para uns 
é mais adequado isto, para outros aquilo. 
Na verdade, os exercícios agradam segundo os tempos: 
uns nos dias de festa, outros nos comuns. 
Necessitamos de uns na altura da tentação, de outros em 
tempo de paz e de repouso. 
Gostamos de pensar numas coisas quando estamos tristes 
e noutras quando estamos alegres no Senhor. 
6. 
Perto das grandes festas, devemos renovar os bons exer­
cícios e implorar fervorosamente os sufrágios dos santos. 
Devemos viver de festa em festa como se houvéssemos de 
sair deste mundo e entrar na Festa eterna. 
Para isso devemo-nos preparar nestes tempos santos e 
mais santamente nos comportarmos, guardando com maior 
severidade toda a regra, como se fôssemos receber em breve 
de Deus o prémio do nosso trabalho. 
7. 
E se ele demorar, não nos j ulguemos bem preparados, 
mas sim indignos de tanta glória que nos será revelada no 
tempo oportuno; e procuremos preparar-nos melhor para 
essa passagem. 
Feliz o servo, diz o evangelista Lucas, que o Senhor, quan­
do vier, encontrar vigilante. Em verdade vos digo que o esta­
belecerá sobre todos os seus bens (Lc 12,43-44 ) . 
46 ] 
XX 
Do amor da solidão e do silêncio 
1 . 
Busca um tempo próprio para te ocupares de ti, e medita 
frequentemente nas dádivas de Deus. 
Deixa as coisas curiosas e ocupa-te daqueles assuntos que 
aproveitam mais à compunção que à ocupação. 
Se te afastares das palavras supérfluas e das voltas inúteis, 
tal como das novidades e rumores, acharás tempo suficiente 
e próprio para boas meditações. 
Os maiores santos evitavam, sempre que podiam, as com­
panhias humanas, e preferiam servir a Deus em segredo. 
2. 
Disse alguém: quanto mais vivi entre os homens, menos 
homem me tornei ( Séneca ). 
É isto o que experimentamos muitas vezes, quando con­
versamos por muito tempo. 
É mais fácil calarmo-nos inteiramente do que não falar­
mos demais. 
Mais fácil é ficar em casa, do que conseguir guardar-se 
fora dela. 
Portanto, aquele que pretende chegar às coisas interiores 
e espirituais, terá de abandonar, com Jesus, a multidão. 
Só aparece com segurança aquele que livremente se 
esconde. 
Só com segurança fala o que voluntariamente se cala. 
[ 47 
Só está seguramente à frente aquele que de livre vontade 
se submete. 
Ninguém manda com segurança senão o que aprendeu a 
bem obedecer. 
Ninguém se alegra seguramente sem ter em si o testemu­
nho duma boa consciência . 
3. 
Contudo, a segurança dos santos sempre foi cheia do 
temor de Deus, e quanto mais brilharam em grandes virtu­
des e em graça, tanto mais solícitos e interiormente humildes 
foram. 
Mas a segurança dos maus nasce da soberba e da presun­
ção e, no fim, transforma-se na deceção de si próprios. 
Nunca contes com segurança nesta vida, ainda que pare­
ças um bom religioso ou um devoto eremita . 
4. 
Muitas vezes os melhores na opinião dos homens são os 
que mais gravemente caem, pela demasiada confiança em si 
próprios. 
Por isso, é mais útil a muitos que não careçam totalmente 
de tentações, mas que muitas vezes por elas sejam atacados, 
para que, demasiadamente seguros de si próprios, não se 
envaideçam, nem caiam de bom grado em consolações exte­
riores. 
Oh, quem se podasse de todo o vão cuidado e somente 
pensasse em coisas salutares e divinas, colocando a sua espe­
rança toda em Deus, que grande paz e que repouso não teria ! 
5. 
Ninguém é digno da consolação celeste, senão aquele que 
diligentemente se exercita na santa compunção. 
48 ] 
Se queres manter a compunção da alma, entra na tua cela 
e foge ao tumulto do mundo; tal como está escrito : arrepen­
dei-vos nos vossos leitos ( Sl 4,5 ) . 
Encontrarás n a tua cela o que a maior parte das vezes 
perdes lá fora. 
O retiro contínuo torna-se grato, mas, mal guardado, 
gera o aborrecimento. 
Se desde o princípio da tua conversão bem habitares e 
guardares a tua cela, ela será depois para ti uma amiga que­
rida e uma grata consolação. 
6. 
No silêncio e no repouso progride a alma devota e apren­
de os segredos das Escrituras; aí encontra rios de lágrimas 
com que todas as noites se lava e purifica; para que se torne 
tanto mais unida ao seu Criador, quanto mais longe vive de 
todo o tumulto do mundo. 
Aquele que se afasta de amigos e conhecidos, Deus se 
aproximará dele com os seus anjos santos . 
É melhor esconder-se e cuidar de si do que, abandonan­
do-se a si próprio, fazer milagres . 
É louvável para o homem religioso sair raramente e fugir 
de ser visto e de ver os homens. 
7. 
Por que é que queres ver aquilo que não podes possuir ? 
Passa o mundo e o seu desejo ( 1Jo 2, 17 ) . 
Os desejos dos sentidos arrastam para um e outro lado; 
mas, quando o momento passa, o que conservas, senão o 
peso da consciência e a dispersão do coração ? 
A partida alegre prepara muitas vezes u m triste regresso, 
e a vigília alegre faz uma triste manhã. 
[ 49 
Assim todo o prazer carnal se introduz brandamente, 
mas, no fim, morde e mata. 
Que podes ver em qualquer outro sítio que aqui não 
vejas ? 
Eis o Céu e a Terra e todos os elementos : na verdade, 
todas as coisas são feitas deles. 
8. 
Que podes ver em alguma parte que se possa manter por 
longo tempo ? 
Julgas, talvez, saciar-te, mas nunca o conseguirás. 
Se visses todasas coisas ao mesmo tempo, que seria isso, 
mais do que uma vã visão ? 
Ergue os teus olhos para Deus, lá no alto, e reza por 
causa dos teus pecados e negligências . 
Deixa aos homens vãos as coisas vãs: tu, porém, ouve as 
que Deus te ordena. 
Fecha atrás de ti a tua porta e chama para ti Jesus, o teu 
amado. 
Permanece com Ele na cela, pois que em nenhum lado 
encontrarás tanta paz. 
Se nunca saísses nem ouvisses quaisquer rumores, melhor 
permanecenas em paz. 
Mas, porque de vez em quando te dá prazer ouvir coisas 
novas, terás de suportar a perturbação do teu espírito. 
50 ] 
XXI 
Da compunção do coração 
1 . 
Se queres progredir em alguma coisa , mantém-te no 
temor de Deus e não queiras ser demasiado livre, mas refreia 
sob a disciplina todos os teus sentidos, e não te abandones à 
louca alegria. 
Dá-te à compunção, e acharás fervor. 
A compunção abre caminho a muitos bens que a dissolu­
ção costuma perder rapidamente. 
É de admirar que o homem se possa alegrar completa­
mente nesta vida, quando considere e pense no seu exílio e 
nos tão grandes perigos da sua alma. 
2. 
Por causa da leviandade do nosso coração e da negligên­
cia nos nossos defeitos, não sentimos as dores da nossa alma 
e, muitas vezes, rimos loucamente quando deveríamos 
chorar. 
Não há verdadeira liberdade nem santa alegria senão no 
temor de Deus e na boa consciência. 
Feliz o que pode desprezar tudo o que o distrai e recolher­
-se à unidade da santa compunção. 
Feliz o que abdica de si mesmo e de tudo o que possa 
manchar ou pesar à sua consciência . 
Combate virilmente : o hábito vence-se pelo hábito . 
[ 51 
Se sabes abandonar os homens, também eles te deixarão 
fazer o que quiseres. 
3. 
Não chames a ti as coisas dos outros, nem te mistures nos 
problemas dos grandes. 
Tem sempre os olhos abertos primeiro sobre ti próprio e 
censura-te antes de censurares todos os teus amigos. 
Se não tens o favor dos homens, não te entristeças com 
isso; entristece-te, sim, se não viveres bem e vigilantemente, 
como convém a um servo de Deus e a um devoto religioso . 
É muitas vezes mais útil e seguro que o homem não tenha 
muitas consolações nesta vida, principalmente segundo a 
carne. 
Porém, quando não temos ou raramente sentimos as con­
solações divinas, somos culpados, pois não procuramos a 
compunção do coração nem afastamos totalmente as coisas 
vãs e exteriores. 
4. 
Considera-te indigno da consolação divina e apenas 
digno de muita tribulação. 
Quando o homem está perfeitamente compungido, então 
todo o mundo lhe parece pesado e amargo. 
O homem santo encontra suficiente motivo de sofrer e de 
chorar. 
Quer se considere a si próprio, quer pense no próximo, 
sabe que ninguém aqui vive sem tribulação. 
E quanto mais atentamente se observa, mais se dói. 
Os nossos pecados e vícios são motivos de justa dor e de 
compunção íntima, pois por eles somos envolvidos e rara­
mente conseguimos contemplar as coisas do Céu. 
52] 
5. 
Se pensasses mais frequentemente na tua morte do que no 
comprimento da vida, não haveria dúvidas de que te emen­
darias com mais fervor. 
Se meditasses seriamente nas futuras penas do Inferno ou 
do Purgatório, creio que aguentarias de bom ânimo o traba­
lho e o sofrimento e não temerias qualquer dureza. 
Mas porque tais coisas não nos entram no coração e 
amamos ainda o que nos lisonj eia, permanecemos frios e 
pregmçosos. 
6. 
Muitas vezes há pobreza de espírito onde tão facilmente 
se queixa o nosso corpo. 
Por isso reza humildemente ao Senhor para que te dê 
compunção de espírito, e diz com o profeta: alimenta-me, 
Senhor, com o pão das lágrimas e dá-me de beber com lágri­
mas abundantes ( SI 80 [79],6 ) . 
[ 53 
XXII 
Da consideração da miséria humana 
1 . 
Serás infeliz onde quer que estej as e para onde quer que 
te voltes, se não te virares para Deus. 
Porque te perturbas por não te acontecer o que queres e 
desejas ? 
Qual é o que tudo tem conforme a sua vontade ? 
Nem eu, nem tu, nem qualquer dos homens sobre a terra. 
Ninguém vive no mundo sem qualquer tribulação ou 
angústia, mesmo que sej a rei ou papa. 
Quem terá, então, melhor sorte ? 
Só o que quer sofrer alguma coisa por Deus. 
2. 
Dizem muitos, idiotas e fracos: «Vede que boa vida tem 
aquele homem: que rico, que poderoso, que elevado ! » 
Mas olha para os bens do Céu e verás que todas estas 
coisas temporais nada são; incertas e pesadas, nunca se pos­
suem sem cuidado ou sem temor. 
A felicidade do homem não está em possuir bens deste 
mundo em abundância: a mediania basta-lhe . 
Grande miséria é viver sobre a Terra . 
Quanto mais dado ao espírito quiser ser o homem, tanto 
mais esta vida presente se lhe tornará amarga, pois que 
sente melhor e vê mais claramente a fraqueza da corrupção 
humana. 
54 ] 
Na verdade, comer, beber, velar, dormir, repousar, traba­
lhar e atender às outras necessidades da natureza é grande 
desgraça e aflição para o homem piedoso, que queria des­
prender-se e ser livre de todo o pecado. 
3. 
Porque, na verdade, o homem interior é arrastado pelas 
necessidades corporais neste mundo. 
Por isso pede o profeta devotamente, até que sej a liber­
tado delas, dizendo: Senhor, liberta-me das minhas necessi­
dades ( SI 25 [24] , 1 7) . 
Mas, ai dos que não conhecem a sua miséria e , sobre­
tudo, dos que amam esta miséria e esta vida corruptível ! 
Pois alguns se abraçam de tal modo a ela, ainda que 
apenas tenham o necessário trabalhando ou pedindo, que se 
aqui pudessem viver sempre, nunca se ocupariam do Reino 
de Deus. 
4. 
Oh, loucos e infiéis de coração, que tão profundamente 
jazem nas coisas terrenas que só o que é da carne saboreiam! 
Mas, infelizes, perceberão mais duramente no fim como 
era vão e vil aquilo que amavam. 
Os santos de Deus, porém, e todos os verdadeiros amigos 
de Cristo, não se ocuparam com o que agradava à carne, 
nem com o que florescia neste mundo, mas toda a sua espe­
rança e pensamento ansiava pelos bens eternos. 
Todo o seu desejo era levado para o alto, para o que per­
manece e se não vê, a fim de que, pelo amor das coisas visí­
veis, não fossem arrastados para as que não impo�tam. 
Não queiras, irmão, perder a confiança em progredir nas 
coisas do espírito, pois que ainda estás a tempo e horas. 
[ 55 
5. 
Porque adias a tua resolução ? 
Ergue-te e começa já, e diz: agora é tempo de agir, agora 
é tempo de lutar, agora é o tempo oportuno de emendar. 
Quando sofres e estás em tribulação, então é tempo de 
merecer. 
Cumpre-te passar pelo fogo e pela água até que chegues 
ao lugar da frescura { Sl 66 [65], 1 2 ) . 
S e não te fizeres violência, não vencerás o vício . 
Enquanto tivermos este frágil corpo, não poderemos 
estar sem pecado, nem viver sem aborrecimento e sem dor. 
De boa vontade gozaríamos de um repouso isento de 
toda a miséria, mas, porque pelo pecado perdemos a inocên­
cia, perdemos também a verdadeira felicidade. 
Assim, é necessário termos paciência e esperarmos na 
misericórdia de Deus; até que passe esta iniquidade e a 
morte seja absorvida pela vida {Sl 67[66],2; 2Cor 5,4 ) . 
6. 
Oh, como é grande a fragilidade humana, sempre incli­
nada ao mal ! 
Hoje confessas os teus pecados e, amanhã, os farás de 
novo. 
Agora decides ter cuidado e, passada uma hora, fazes 
como se nada tivesses decidido. 
Com razão nos podemos humilhar e nunca nos sentir­
mos grandes em qualquer coisa, pois que somos tão frágeis e 
instáveis. 
Depressa se pode perder pela negligência o que talvez 
com muito trabalho pela graça se alcançou. 
56 ] 
7. 
Que será de nós no fim, se j á tão no princípio arrefece­
mos ? 
Ai de nós, se assim queremos repousar, como se j á hou­
vesse paz e segurança, embora não apareça ainda em nossa 
vida vestígio de verdadeira santidade. 
Bom seria que de novo fôssemos instruídos, tal como 
bons noviços, nos hábitos do bem, a ver se haveria em nós 
esperança de futura emenda e de maior progresso. 
[ 57 
XXIII 
Da meditação da morte 
1 . 
Bem depressaacabarás: por isso, vê como vives. 
Hoje ainda existe o homem e amanha j á se foi . 
E logo que desapareça dos nossos olhos, depressa desa­
parecerá dos espíritos. 
Oh, estupidez e dureza do coração humano, que só con­
sidera o presente em vez de antever o futuro ! 
Assim, deverias comportar-te em todas as ações e pensa­
mentos como se houvesses de morrer hoje . 
Se tiveres a consciência limpa, não temerás muito a 
morte . 
Antes temer pecados do que fugir à morte . 
Se não estás hoje preparado, como o estarás amanhã ? 
Amanhã é dia incerto; e, até, como sabes que terás um 
amanhã ? 
2. 
De que nos serve viver muito tempo, quando tão pouco 
nos emendamos ? 
Ah, nem sempre uma vida longa emenda, mas, muitas 
vezes, aumenta mais a culpa ! 
Oxalá tivéssemos vivido bem neste mundo durante um só 
dia ! 
Muitos contam os anos da sua conversão, mas, muitas 
vezes, é pequeno o fruto da sua emenda. 
58 ] 
E se é terrível morrer, talvez que seja ainda mais perigoso 
viver mais tempo. 
Feliz o que tem sempre ante os seus olhos a hora da sua 
morte, e que todos os dias está disposto para morrer. 
Se algum dia viste morrer um homem, pensa que também 
tu seguirás esse caminho. 
3. 
Quando amanhecer, imagina que não hás de chegar à 
tarde. 
E ao anoitecer, não ouses afirmar que verás a madrugada. 
Portanto, está sempre preparado, e vive de tal modo que 
nunca a morte te encontre desprevenido. 
Muitos morrem súbita e inesperadamente : na verdade, na 
hora em que não julgais, virá o Filho do Homem (Lc 1 2,40 ) . 
Quando chegar essa última hora, começarás a ver dife­
rente a tua vida passada, e muito te arrependerás de teres 
sido tão fraco e negligente . 
4. 
Como é feliz e prudente aquele que procura viver agora 
tal como deseja ser encontrado na morte ! 
Dar-lhe-á, na verdade, grande confiança de morrer em 
paz o completo desprezo do mundo, o desej o ardente de 
progredir nas virtudes, o amor da disciplina, o esforço da 
penitência, a prontidão da obediência, a negação de si pró­
prio e o suportar de qualquer adversidade por amor de 
Cristo . 
Podes fazer muitas coisas boas enquanto tens saúde, mas, 
doente, não sei do que serás capaz. 
Poucos progridem pela doença, tal como poucos se santi­
ficam pelas peregrinações. 
[ 59 
5. 
Não queiras confiar nos teus amigos e parentes nem adies 
a tua salvação para o futuro, pois mais depressa do que 
julgas esquecerão os homens. 
Mais vale prevenir a tempo e fazer-se preceder de alguma 
coisa de bem, do que esperar pelo auxílio dos outros. 
Se não te ocupas de ti próprio, quem se ocupará de ti no 
futuro ? 
Agora é tempo precioso; agora os dias de salvação, o 
tempo favorável (2Cor 6,2 ) . 
Mas, ai, não aproveitas utilmente aquilo por que pode­
rias viver na eternidade ! 
Tempo virá em que hás de desejar um só dia ou uma só 
hora para te emendares, e não sei se a conseguirás . 
6. 
Oh, amigo, de quanto perigo te poderias livrar, de quanto 
temor fugir, se sempre temesses a morte e dela desconfiasses ! 
Procura, pois, viver agora de tal modo que, à hora da 
morte, mais possas alegrar-te que temer. 
Aprende agora a morrer no mundo, para que comeces a 
viver com Cristo . 
Aprende a desprezar todas as coisas agora, para que 
possas depois caminhar livremente para Cristo . 
Castiga agora o teu corpo pela penitência , para que 
possas mais tarde ter segura confiança . 
7. 
Ah, louco, porque pensas viver, muito tempo, se nenhum 
dia tens de certo ? 
Quantos têm sido enganados e inesperadamente arranca­
dos do corpo! 
Quantas vezes ouviste dizer que este morreu pela espada, 
60 ] 
que outro se afogou, que aquele, ao cair, partiu a cabeça, 
que este morreu a comer, outro ainda a jogar, um pelo fogo, 
outro pelo ferro, um pela peste, outro assassinado: e assim a 
morte é o fim de todos, e a vida do homem, como a sombra, 
passa de repente . 
8. 
Quem se lembrará de ti depois da morte, e quem rezará 
por ti ? 
Trabalha agora, irmão, trabalha enquanto podes, porque 
não sabes quando morrerás nem o que para ti se seguirá à 
morte . 
Enquanto tens tempo, j unta os tesouros imortais. 
Não penses em mais nada, além da tua salvação : trata 
apenas das coisas de Deus . 
Arranja agora amigos, venerando os santos de Deus e 
imitando as suas ações, para que, quando desfaleceres nesta 
vida, eles te recebam nos tabernáculos eternos (Lc 1 6,9 ) . 
9 . 
Considera-te peregrino e hóspede neste mundo, a quem 
nada interessa das coisas terrenas. 
Conserva um coração livre e erguido ao alto, para Deus, 
pois que não é aqui a cidade do repouso. 
Para lá dirige em cada dia as preces, os clamores e as lá­
grimas, para que, após a morte, o teu espírito mereça passar 
a Deus com alegria. 
Ámen. 
[ 61 
XXIV 
Do juízo e das penas ·dos pecadores 
1 . 
Em todas as coisas olha para o fim e lembra-te de como 
estarás diante do severo Juiz para quem nada é oculto, a 
quem os presentes não aplacam, que não atende a desculpas, 
mas que julgará o que é j usto. 
Miserável e louco pecador, que responderás a Deus, que 
conhece todos os teus pecados, tu que tantas vezes temes o 
rosto do homem irado ? 
Porque não te imaginas no dia do Juízo, quando ninguém 
poderá ser desculpado ou defendido, mas cada um será para 
si próprio suficiente peso ? 
Agora é o teu trabalho proveitoso, aceitável o teu choro, 
ouvido o teu gemido, a tua dor satisfatória e purificadora. 
2. 
Tem grande e salutar purgatório o homem paciente que, 
recebendo ofensas, se condói mais com a maldade dos outros 
do que com a sua ofensa; que reza de boa vontade pelos 
quais o contrariam e perdoa de todo o coração as culpas 
alheias; aquele que não demora em pedir é mais fácil compa­
decer-se do que irar-se, que muitas vezes se violenta a si pró­
prio e em tudo se esforça por submeter a carne ao espírito. 
É melhor pagar agora os pecados e refrear os vícios, do 
que guardar-se para os expiar depois. 
Na verdade, enganamo-nos a nós próprios pelo desorde­
nado amor que temos à carne. 
62 ] 
3. 
Que outra coisa aquele fogo devorará, senão os teus 
pecados ? 
Quanto mais agora te poupas e segues a carne, mais 
pagarás depois e mais lenha juntarás para queimar. 
Naquilo em que o homem pecou, nisso será duramente 
punido. 
Aí os indolentes serão impelidos por aguilhões de fogo e 
os que pecaram por gula atormentados pela fome e pela 
sede. 
Lá os luxuriosos e os que amavam o prazer serão banha­
dos em pez ardente e fétido enxofre; e, como cães raivosos, 
os invejosos uivarão de dor. 
4. 
Nenhum vício haverá que não tenha o seu tormento pró­
prio . 
Aí os orgulhosos serão cheios de toda confusão e os ava­
rentos reduzidos à maior pobreza. 
Aí será mais dura uma hora de pena do que aqui cem 
anos de duríssima penitência . 
Lá não há qualquer repouso, qualquer consolação aos 
condenados; cá, porém, cessam por vezes os trabalhos e 
goza-se das consolações dos amigos. 
Está, pois, atento e arrependido das tuas faltas, para que, 
no dia do Juízo, estej as seguro com os bem-aventurados. 
5. 
Então, na verdade, os justos permanecerão em grande 
segurança diante daqueles que os angustiaram e deprimiram 
(Sb 5 , 1 ) . 
Então s e erguerá, para julgar, aquele que hoje s e submete 
humildemente aos j uízos dos homens. 
[ 63 
Então grande confiança terá o pobre e o humilde, e o 
orgulhoso se apavorará por toda a parte. 
Então se verá ter sido sábio neste mundo aquele que, por 
Cristo, aprendeu a ser louco e desprezado. 
Então agradará toda a tribulação sofrida com paciência, 
e toda a iniquidade fechará a sua boca ( SI 1 07[ 1 06] ,42 ) . 
Então s e alegrará todo o j usto, e todo o ímpio se an­
gustiará. 
Então mais exultará a carne sofredora do que se sempre 
houvera sido alimentada em delícias. 
Então resplandecerá o pano pobre, e as vestes finas per­
derão seu brilho. 
Então será mais gabada a casa humilde do que o palácio 
de oiro. 
Então ajudará mais uma paciência constante do que todo 
o poder do mundo. 
Então será mais exaltada a simplesobediência do que 
toda a astúcia do século. 
Então mais se alegrará a pura e reta consciência do que a 
sábia filosofia. 
Então mais pesará o desprezo das riquezas que todo o 
tesouro dos filhos da Terra . 
Então serás mais consolado pela piedosa oração do que 
por uma refeição esmerada. 
Então mais te alegrarás com o silêncio guardado do que 
com o longo discurso. 
Então mais valerão as ações santas do que muitas pala­
vras belas. 
Então mais agradará a vida severa e a dura penitência do 
que todo o humano deleite . 
64 ] 
6. 
Aprende agora a sofrer um pouco, para que te possas 
livrar de coisas mais duras. 
Experimenta agora o que poderás depois . 
Se agora consegues suportar tão pouco, como poderás 
aguentar os tormentos eternos ? 
Se agora um pequeno sofrimento causa tanta impaciên­
cia, que te fará o Inferno ? 
Eis que, na verdade, não podes ter as duas alegrias: delei­
tar-te neste mundo e reinar depois com Cristo . 
7. 
Se até ao dia de hoje sempre tivesses vivido nas honras e 
nos prazeres, de que te serviria tudo isso se tivesses de 
morrer de repente ? 
Tudo é vaidade, além de amar a Deus e só a Ele servir. 
Aquele que, na verdade, ama a Deus de todo o seu cora­
ção, não teme a morte, nem o suplício, nem o juízo, nem o 
Inferno; pois que o amor perfeito talha um caminho certo 
para Deus . 
Mas aquele que ainda ama o pecado, não admira que 
tema a morte e o juízo. 
Contudo é bom que, se o amor ainda te não afasta do 
mal, ao menos que o temor do Inferno to impeça. 
Aquele que, na verdade, despreza o temor de Deus, não 
conseguirá perseverar por muito tempo no bem; mas de­
pressa cairá nas armadilhas do demónio. 
[ 65 
XXV 
Da fervorosa emenda de toda a nossa vida 
1 . 
Sê vigilante e diligente no serviço de Deus, e pensa muitas 
vezes ao que vieste e por que deixaste o mundo. 
Não foi para viveres para Deus e te tornares um homem 
espiritual ? 
Portanto, ferve no desej o de avançar: porque em breve 
receberás o prémio dos teus esforços e não mais haverá 
temor ou dor para ti . 
Trabalharás agora um pouco, mas acharás um grande 
repouso, e até uma alegria eterna. 
Se permaneceres fiel e fervoroso nas tuas ações, Deus, 
sem dúvida, será fiel e abundante na recompensa. 
Deves conservar uma boa e firme esperança de que che­
garás à glória, mas não deves entregar-te a uma segurança 
demasiada, tal que caias no torpor ou na presunção. 
2. 
Como certo homem, ansioso, vogasse muitas vezes entre 
o medo e a esperança, e, nesse dilema, atormentado pela 
tristeza, se tivesse curvado em oração na igreja, diante de um 
altar, pensou dentro de si todas estas coisas, dizendo: oh, se 
eu soubesse que haveria de perseverar ! 
No mesmo instante ouviu dentro de si a resposta divina: 
« Se soubesses isso, o que farias ? Faz agora o que quere­
rias fazer então, e serás seguro. » 
66 ] 
E, depressa consolado e reconfortado, se entregou à von­
tade divina e cessou aquela ansiosa alternativa. 
Já não quis investigar com curiosidade para saber as 
coisas que lhe haviam de suceder, mas procurou antes conhe­
cer qual seria a vontade de Deus, agradável e perfeita (Rm 
1 2,2 ) , para começar e completar toda a boa obra. 
3. 
Espera no Senhor e faz o bem, diz o profeta, e habita a 
terra: e serás apascentado nas suas riquezas ( SI 37[36] ,3 ) . 
Uma só coisa afasta muitos d o progresso e d a fervo­
rosa emenda: o horror da dificuldade, ou seja, o esforço do 
combate . 
Mas, na verdade, progridem muito mais que os outros 
em virtudes aqueles que se esforçam por vencer coraj osa­
mente aquelas coisas que lhes são mais duras e contrárias. 
Na verdade, o homem avança mais e merece maior graça 
onde mais se vence a si próprio e mortifica em espírito . 
4. 
Mas nem todos têm de combater igualmente para se 
vencer e mortificar. 
Contudo, o homem que é animado de zelo será mais 
corajoso, ainda que tenha muitas paixões, do que outro mais 
moderado, mas menos fervoroso em virtudes. 
Duas coisas aj udam especialmente para a verdadeira 
emenda: subtrair-se violentamente daquilo para que a natu­
reza viciosamente se inclina e teimar continuadamente para 
alcançar a virtude de que mais se necessita . 
Procura, assim, temer e vencer aquelas coisas que mais 
frequentemente te desagradam nos outros. 
[ 67 
5. 
Aproveita tudo para o teu progresso: para que, se vires 
ou ouvires bons exemplos, te animes a imitá-los. 
Se, porém, vires qualquer coisa de condenável, acautela­
-te, para que a não faças. 
E, se alguma vez a fizeste, procura emendar-te o mais 
depressa possível . 
Tal como os teus olhos observam os outros , assim 
também és notado por eles. 
Como é consolador e alegre ver irmãos fervorosos e 
devotos, obedientes e disciplinados ! 
Mas como é triste e duro ver os que andam desordenada­
mente e que não cumprem aquilo para que foram chamados ! 
Como prej udica desprezar o intento da sua vocação e 
inclinar o coração para o que não interessa ! 
6. 
Lembra-te dos propósitos tomados e conserva para tua 
imagem Jesus crucificado. 
Bem podes envergonhar-te, pondo os olhos na vida de 
Jesus Cristo, pois que não procuraste conformar-te a Ele, 
embora há muito estivesses no caminho de Deus. 
O religioso que se exercita cuidadosa e devotamente na 
santíssima vida e paixão do Senhor, aí encontrará em abun­
dância todas as coisas que lhe são úteis e necessárias, e não 
precisa de procurar outra coisa de melhor além de Jesus. 
Oh, como seríamos depressa e suficientemente instruídos, 
se Jesus crucificado viesse ao nosso coração ! 
7. 
O religioso devoto suporta e recebe bem todas as coisas 
que lhe são ordenadas. 
O religioso negligente e medíocre tem tribulação após tri-
68 ] 
bulação e de toda a parte sofre angústia; pois que carece de 
consolação interior e é impedido de procurar a exterior. 
O religioso que vive à margem da disciplina expõe-se a 
uma grave queda. 
Aquele que procura coisas mais brandas e menos severas 
estará sempre em angústia, pois qualquer coisa que tenha lhe 
desagradará. 
8. 
Como fazem tantos outros religiosos que tão apertados 
estão sob a disciplina monástica ? 
Raramente saem, vivem retirados, comem muito pouco, 
vestem-se grosseiramente, trabalham muito, falam pouco, 
velam longas horas, levantam-se cedo, fazem prolongadas 
orações, leem muito e guardam-se em toda a disciplina. 
Olha para os Cartuxos, para os Cistercienses e para os 
monges e monjas de diversas ordens: vê como toda a noite 
estão levantados para cantar ao Senhor. 
Seria bem vergonhoso que tivesses preguiça naquele 
tempo santo em que tamanha multidão de religiosos começa 
a louvar a Deus. 
9 . 
Oh, se não necessitássemos de fazer mais nada, a não ser 
louvar o Senhor, nosso Deus, de todo o coração e boca ! 
Oh, se nunca precisasses de comer e beber, nem de dor­
mir, mas pudesses sempre louvar a Deus e ocupar-te unica­
mente de coisas espirituais ! Serias, então, bem mais feliz do 
que agora, que és escravo da carne em toda a espécie de 
necessidades. 
Oxalá tais necessidades não existissem, mas apenas hou­
vesse para a alma as refeições do espírito que, infelizmente, 
tão raras vezes saboreamos. 
[ 69 
1 0. 
Quando o homem chega a este ponto de não buscar a sua 
consolação em nenhuma criatura·, só então começa a com­
preender Deus, e então tirará contentamento de tudo o que 
acontece. 
Então não se alegrará com o muito, nem se entristecerá 
com o pouco; entregar-se-á inteira e fielmente a Deus, que é 
para si tudo em tudo, para quem nada perece ou morre, mas 
para quem tudo vive e a cuj o aceno tudo obedece sem 
demora. 
1 1 . 
Lembra-te sempre do fim, e de que o tempo perdido não 
volta . 
Sem solicitude e sem esforço nunca conseguirás virtudes . 
Se começas a esfriar, começarás a andar mal. 
Mas se te deres à devoção, acharás grande paz; e senti­
rás o trabalho mais leve, pela graça de Deus e pelo amor da 
virtude. 
O homem fervoroso e diligente está preparado para tudo. 
Maior esforço é resistir aos vícios e paixões, do que suar

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