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A PATRÍSTICA E OS DONS REVELACIONAIS Marcelo de Oliveira Moraes1 RESUMO O artigo tem por finalidade analisar os documentos da patrística de uma forma analítica e conduzir uma reflexão acerca da atuação dos dons espirituais nesse período. Considero esse período de grande importância para a discussão da atualidade dos dons espirituais, pois é ali onde os Cessacionistas afirmam cessar os dons espirituais. O principal objetivo desse artigo é entender que os dons espirituais sempre estiveram presentes no seio da igreja. Essa reflexão trará informações relevantes acerca de como os pais apostólicos viam à atuação dos dons espirituais, expondo as ideias dos principais representantes dos pais apostólicos e suas visões pneumatológicas. Palavras-chave: Patrística, Dons Espirituais, Revelação, Cessacionistas, Continuístas. PATRISTICS AND THE GIFTS OF REVELATION ABSTRACT The article has the criterion of patristic documents in an analytical way and to conduct a reflection on the performance of spiritual gifts in this period. I consider this period of great importance for the discussion of the actuality of spiritual gifts, as this is where cessationists claim to cease spiritual gifts. The main purpose of this article is the sense that spiritual gifts have always been present within the church. This reflection will bring relevant information about how the apostolic parents saw the performance of spiritual gifts, exposing the ideas of the main representatives of the apostolic parents and their pneumatological views. Keywords: Patristic, Spiritual Gifts, Revelation, Cessationists, Continued. 1 Ministro do Evangelho, Bacharel em Teologia (Universidade Cruzeiro do Sul), extensão em Homilética pela (Faculdade Batista FABAPAR do Paraná), extensão História da Igreja: origem à Reforma pela (Universidade Cruzeiro do Sul), Doutrinas Bíblicas (Faculdade Batista Pioneira), Direitos Humanos (Universidade Católica de Brasília), Didática do Ensino Superior (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia). Áreas de pesquisa: Literatura Bíblica, exegese, História da igreja, Línguas de Religião e Hermenêutica Pentecostal. 1 INTRODUÇÃO O assunto dos dons espirituais tem despertado um interesse sem precedentes em todo o círculo religioso. Com apelo quase universal, a maré da teologia pentecostal tem atravessado todas as barreiras teológicas e instituições religiosas2. Synan concluiu que em 1995, o número agregado de pentecostais/carismáticos no mundo numerado é de 463.000.000, perdendo apenas para a Igreja Católica Romana.3 Esse interesse resultou na publicação de todo um corpo de literatura, tanto dentro como fora da Tradição pentecostal.4 Cristãos perspicazes que abraçam o ensino do cessacionismo, devem levar este assunto a sério, uma vez que quase todos os ramos do cristianismo evangélico abraçaram alguma forma da teologia pentecostal. O nosso objetivo com esse artigo tem como finalidade mostrar como se deu a reflexão teológica acerca do Espírito Santo desde o final do primeiro século até meados do quarto; mas antes veremos como a manifestação dos dons espirituais teve sua importância na igreja primitiva. A escolha desses limites não é tão arbitrária ou artificial como se pode supor à primeira vista. É suficiente para mostrar a partir do corpus de escritos patrísticos a atuação dos dons revelacionais entre os pais da igreja. Os pais da Igreja Apostólica foram contemporâneos dos apóstolos e provavelmente foram ensinados por eles, continuando a tradição e o ensino dos próprios apóstolos como seus sucessores diretos. Exemplos de pais apostólicos incluem Clemente e Policarpo. Os pais Anti-Nicenos foram aqueles que vieram depois dos Pais Apostólicos e antes do Concílio de Nicéia em 325 DC. Irineu e Justino Mártir são os Pais Anti-Nicenos. Os pais da Igreja Pós-Nicéia incluem os Padres após o Concílio de Nicéia, como Agostinho, João Crisóstomo, Jerônimo e Eusébio. Portanto, o termo ―Pais da Igreja finalmente passou a se referir a importantes escritores cristãos após a era do Novo Testamento que, por causa da proximidade com aquela era, testemunham a maneira autenticamente apostólica de interpretar as escrituras e transmiti-las. Esses escritores desempenharam um papel insubstituível na transmissão da doutrina cristã e na sua expressão, pelo menos em seus aspectos mais fundamentais. Embora o entendimento da Igreja sobre a revelação continue a se aprofundar até que o Senhor volte os dogmas da Trindade e da encarnação e sobre os dons espirituais, foram definidos de uma vez por todas durante o período dos pais da igreja (também conhecida como era patrística). Existe um proposito claro em colocar o ponto de partida dessa discussão fora do Novo Testamento, contudo, não deixaremos de mostrar como a atuação dos dons espirituais era poderosa entre os cristãos do primeiro século. Esse propósito está relacionado com a ―Confissão de Fé de Westminster de que os dons espirituais cessaram após o fechamento do cânon do Novo Testamento após a morte do último apóstolo, João. ―Isto torna a Escritura sagrada indispensável, tendo cessado aqueles antigos modos de Deus revelar sua vontade ao seu povo (KERR, 1922). Aqueles que argumentam que os dons de sinais não são para hoje, defendem que, com referência a esses dons, há maior descontinuidade do que continuidade. (Eles são chamados de cessacionistas ou não carismáticos.) Parte integrante desse argumento é a natureza e o propósito desses dons. Essa visão afirma que esses dons foram essencialmente derramados em indivíduos selecionados com o propósito de autenticar que Deus estava fazendo algo novo e que com a morte do último apóstolo os dons cessaram. Há séculos os escritos da igreja primitiva têm servido de base para a nossa teologia, não há dúvidas quanto ao grande legado que eles deixaram tanto para a teologia de sua própria época quanto para a teologia que se tem hoje. Tendo em vista a sua grande dimensão, o esforço deste artigo se limitará ao entendimento dos pais apostólicos sobre os chamados dons revelacionais, contudo, sem deixar de lado os acontecimentos na era apostólica como já citado acima. Para tanto, faz-se necessária uma análise prévia do contexto histórico-teológico no qual os pais apostólicos estavam inseridos. Uma vez munidos desse contexto, será possível uma melhor compreensão acerca das motivações que levaram os mesmos a comporem o seu material. Além disso, entendemos que tais considerações sobre os dons revelacionais nos escritos dos pais apostólicos, trazem implicações relevantes para uma melhor compreensão no debate cessacionista/continuísta que temos no tempo vigente. Enquanto muitas pessoas debatem a teologia, poucas reservam tempo para ver o que a Igreja primitiva disse sobre diferentes tópicos teológicos, como a própria pneumatologia; embora os pais apostólicos não fossem infalíveis, seu amplo consenso sobre as questões deveria dar peso às posições teológicas que defendiam. Apesar do fato de que seus escritos estão disponíveis gratuitamente online, muitas pessoas não têm tido muito tempo para se educar sobre o que os pais da Igreja ensinaram. Este artigo foi criado para ajudar a elucidar a questão do debate teológico acerca da continuidade dos dons espirituais, mesmo sabendo que esse assunto está longe de ser encerrado. 2 A IMPORTÂNCIA DA PATRÍSTICA PARA A PENEUMATOLOGIA Antes de percorrermos alguns dos marcos históricos e conceituais que marcaram a construção da teologia na patrística, e as evidências dos dons espirituais, é preciso lembrar que esse período é o ponto de contato na discussão dos dons espirituais na atualidade, pois é lá onde os cessacionistas afirmam cessar os dons espirituais. E apesar das grandes perseguições a produção teológica sempre foi farta e o fervor do Espírito Santo nunca foi extinto. De acordocom Frangiotti (2006) não houve perseguições gerais em todo império romano, e as perseguições de vasta extensão foram de curta duração. A maior parte delas tinha um caráter local e ocasional. Mas de acordo com as leis locais o cristianismo podia ser perseguido como um crime capital Estado. Para Luís Alberto De Boni, em sua tese de doutorado em Münster/Alemanha (BONI, 2014) As perseguições contra os cristãos constituem um dos acontecimentos mais estudados na História do Cristianismo e na História de Roma. Ele mostra que eram aplicadas contra os cristãos as leis criminais vigentes. Só mais tarde se tornou crime o fato de ser cristão. Mas leis persecutórias válidas em todo o império apenas surgiram a partir do ano 250, e foram abolidas em 313. Mesmo antes das leis de perseguição contra o cristianismo serem abolidas, o cristianismo sempre teve um crescimento expressivo, e isso não impediu a grande inspiração teológica que os pais apostólicos tiveram. Para os professores do departamento de Teologia da FAJE, de Belo Horizonte, esses escritos eram de grandíssima autoridade para as comunidades da época, a ponto de algumas se encontrarem listadas nos elencos primitivos de Escritura canônica (como o Cânon de Muratori ou o Código sinaítico do séc. IV). Mesmo beirando ao dogmatismo apostólico como afirma Kelly (1994). Os pais apostólicos não eram apenas meros intérpretes das escrituras, apesar de seus escritos muitas vezes simplórios e até demandavam muitas vezes graus de ingenuidade, seus ensinamentos foram de grande proveito para as comunidades da época. Para Smeaton (1961) um dos fatores que estimulava os pais da igreja a ensinar a respeito do Espírito Santo, era por esse ensino estar em conexão diretamente com outras doutrinas da bíblia, principalmente com a Trindade. Por essa razão existiu grande contribuição nos ensinos da patrística para a discussão da pneumatologia. Para Padovese (2004) cabia aos pais apostólicos relembrar a importância da teologia do Espírito Santo, e que nunca houve um período em que houvesse tanta preocupação em exaltar a consciência escatológica e o sentido da persuasão do Espírito Santo na igreja. Champlim (2006) também concorda com a preocupação do ensino da pneumatologia nos pais apostólicos. Durante o período patrístico o famoso período dos pais da Igreja, houve uma ênfase acerca da importância dos dons espirituais, como legitimado pelas palavras de Irineu: ―Senhor, único e verdadeiro Deus, faça que domine em nós, por meio do nosso Senhor Jesus Cristo, o Espírito Santo‖. Assim como Irineu, Orígenes também confirmou a importância da ação do Espírito nos primeiros séculos e por volta de 240, escreve: “Ainda hoje se conservam os traços daquele Espírito Santo que foi visto em forma de pomba; os cristãos expulsam os demônios, curam diversas doenças e veem também alguns acontecimentos futuros por vontade do Verbo” (ORÍGENES, p.46). Tertuliano também olhava com bons olhos a operação dos dons e posteriormente converteu-se ao Montanismo, um movimento fundado por Montano, que, apesar de alguns exageros, ensinava sobre a operação dos dons. Apesar do cessacionismo ser muito difundido no meio reformado como afirma Gordon Chow (2016) vemos muitos teólogos de respeito defender um cristianismo mais experiencial. O Cessacionismo: é a teoria de que muitos milagres, bem como dons espirituais, existiam em função da formação do cânon do Novo Testamento – quer dizer que houve um poderoso derramamento de milagres na vida de Jesus, e dos apóstolos, mas que cessou depois de encerrado o cânon do Novo Testamento (CHOW, 2016). Por fim, grandes teólogos como John Wesley, Moody e John Fletcher procuraram influenciar o cristianismo por meio de um cristianismo mais experiencial, mas que não perdesse sua influência bíblica e até hoje temos percebido, como voltar às raízes apostólicas pentecostais tem contribuído para o crescimento do cristianismo. 3 OS DONS ESPIRITUAIS NA IGREJA PRIMITIVA O Novo Testamento está repleto de manifestações dos dons espirituais entre cristãos que não eram apóstolos. Obviamente, as palavras de Pedro no dia de Pentecostes mostrando que essa promessa não era apenas para aqueles dias, ―mas para todos que cressem, influenciou na busca pelos dons do Espírito santo: E disse-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para perdão dos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo; Porque a promessa vos diz respeito a vós, a vossos filhos, e a todos os que estão longe, a tantos quantos Deus nosso Senhor chamar (At 2:38,392). Em outras palavras, numerosos homens e mulheres não apostólicos, jovens e velhos, em toda a amplitude do Império Romano, exerceram consistentemente esses dons do Espírito Outros além dos apóstolos que exerceram dons milagrosos incluem os 70 que foram comissionados e registrados por Lucas. Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões, e toda a força do inimigo, e nada vos fará dano algum. Mas, não vos alegreis porque se vos sujeitem os espíritos; alegrai-vos antes por estarem os vossos nomes 2 Todas as referências bíblicas nesse trabalho foram retiradas da Versão Almeida Corrigida Fiel. escritos nos céus (Lc 10:19,20). Pelo menos 108 pessoas entre as quase 120 que estavam reunidas no cenáculo no dia de Pentecostes receberam o dom do batismo com o Espírito Santo, isso porque não vamos enumerar os apóstolos. “E naqueles dias, levantando-se Pedro no meio dos discípulos (ora a multidão junta era de quase cento e vinte pessoas)” (At 1:15). E, cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todos concordemente no mesmo lugar; E de repente veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem (At 2:1-4). Membros da igreja em Antioquia: E na igreja que estava em Antioquia havia alguns profetas e doutores, a saber: Barnabé e Simeão chamado Níger, e Lúcio, cireneu, e Manaém, que fora criado com Herodes o tetrarca, e Saulo. E, servindo eles ao Senhor, e jejuando, disse o Espírito Santo: Apartai-me a Barnabé e a Saulo para a obra a que os tenho chamado (At 13:1,2). Entre os convertidos anônimos de Éfeso: “E, impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo; e falavam línguas, e profetizavam”. (At 19:6). Também entre as mulheres cristãs de Cesareia: E no dia seguinte, partindo dali Paulo, e nós que com ele estávamos, chegamos a Cesaréia; e, entrando em casa de Filipe, o evangelista, que era um dos sete, ficamos com ele. E tinha este quatro filhas virgens, que profetizavam (At 21:8,9). Entre os irmãos não identificados de Gálatas: Aquele, pois, que vos dá o Espírito, e que opera maravilhas entre vós, o faz pelas obras da lei, ou pela pregação da fé? (Gl 3:5). Entre os irmãos em Roma: De modo que, tendo diferentes dons, segundo a graça que nos é dada, se é profecia, seja ela segundo a medida da fé; Se é ministério, seja em ministrar; se é ensinar, haja dedicação ao ensino; Ou o que exorta, use esse dom em exortar; o que reparte, faça-o com liberalidade; o que preside, com cuidado; o que exercita misericórdia, com alegria. (Rm 12:6-8). Entre os crentes de Corinto: ―De maneira que nenhum dom vos falta, esperando a manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo. (1 Co 1:7); Entre os cristãos em Tessalônica ―Não extingais o Espírito. Não desprezeis as profecias (ACF, 1Ts 5:19,20). Devemos também tomar nota de 1 Coríntios 13:8-12 Aqui Paulo afirma que os dons espirituais não "passarão" (vv. 8-10) até a vinda do que é "perfeitos". Se o "perfeito" é de fato a consumação dos propósitos redentores de Deus expressos no novo céu e nova terraapós a volta de Cristo, podemos esperar que ele continue abençoando e capacitando sua igreja com os dons até aquele momento. O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos; Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido (1Co 13:8-12). Um ponto semelhante é apresentado em Efésios 4: 11-13. Ali Paulo fala dos dons espirituais (junto com o ofício de apóstolo) - e em particular os dons de profecia, evangelismo, pastor e mestre - como edificação da igreja ―até que todos alcancem a unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, à maturidade dos homens, à medida da estatura da plenitude de Cristo (v. 13). Visto que este último com certeza ainda não foi alcançado pela igreja, podemos prever com segurança a presença e o poder de tais dons até que esse dia chegue. 3.1 O CONTEXTO HISTÓRICO DA PATRÍSTICA O Período Patrístico é um ponto vital na história do cristianismo, uma vez que contextualiza as informações cristãs primitivas desde o tempo da morte do último Apóstolo, João. (100 d.C. até a Idade Média 451 d.C. concílio de Calcedônia). A teologia considera este período da história da igreja de vital importância para o desenvolvimento da teologia, seja continuísta ou cessacionista. Do catolicismo Romano às Igrejas reformadas pós Lutero, Zwínglio e Calvino, muitos conceitos cristãos básicos nasceram durante esta era. Durante os primeiros duzentos anos desta era, a igreja estava sob perseguição de vários imperadores romanos, mas isso fazia com que aqueles que se convertiam tivessem uma experiência verdadeira com o cristianismo: Um fato que deve ser notado e de grande importância é que, nesses tempos, os cristãos podiam e eram perseguidos, mas não podiam, em nenhum caso, ser perseguidores. Em geral, pertencer à nova religião apresentava mais perigos que vantagens, e foi por essa razão que aqueles que a ela se convertiam eram ordinariamente convictos e sinceros (FRANGIOTTI, 2006, p. 11). Esse cenário foi agravado ainda com Diocleciano. No dia 23 de fevereiro de 303, foi emitido um edito contra os cristãos, provavelmente provocado pelos funcionários pagãos da corte e pela insistência astuciosa de Galério. Essa foi, sem dúvida, a mais violenta perseguição sofrida pelos cristãos. Conta-se – mas não se sabe se é verdade que Diocleciano chegou a mandar cunhar uma moeda, ou erigir um monumento, onde constava a inscrição "Christiano nomine deleto" (está apagado o nome cristão) (BONI, 2014). O Cristianismo foi legalizado como religião na era de Constantino (321 d.C.), que era o lado oposto do espectro em relação à perseguição anterior. Várias cidades e áreas geográficas tornaram-se de grande importância. A cidade de Alexandria surgiu como um centro de educação teológica cristã. A cidade de Antioquia também se tornou um importante centro do pensamento cristão. O oeste da África do Norte deu à luz a homens como Tertuliano, Cipriano de Cartago e Agostinho de Hipona. O período patrístico está repleto de importância teológica no desenvolvimento da doutrina cristã. Muitos dos debates desta época são alojados em questões teológicas acerca do Espírito Santo. Sem uma compreensão útil dessa disciplina, encontraremos dificuldade para entendermos a continuidade dos dons espirituais nos dias de hoje. 3.2 OS ESCRITOS DA PATRÍSTICA A patrística compreende-se de uns punhados de documentos que vão do século I ao século III, de autores que teriam contato direto ou indiretos com os primeiros apóstolos. Por esse motivo, essas obras gozaram de grandíssima autoridade na época antiga, ao ponto de algumas se encontrarem listadas nos elencos primitivos de Escritura canônica (como o Cânon de Muratori ou o Código sinaítico10 do séc. IV). Tal corpus, hoje, é variadamente considerado nas edições modernas. Considera-se parte dele a Carta aos Coríntios, de Clemente de Roma, as sete cartas autênticas de Inácio de Antioquia, a Carta aos Filipenses, de Policarpo de Esmirna, e o Martírio de Policarpo, os fragmentos de Papias de Hierápolis, a Carta do Pseudo Barnabé, o Pastor de Hermas, a Didaqué. Hoje se tende a considerar parte desse corpus o A Diogneto e a Homilia do Pseudoclemente.3 A Patrística também foi uma corrente filosófica que coincidiu com os primeiros séculos da era cristã, em que o desenvolvimento filosófico foi realizado por filósofos também chamados de pais da Igreja. Foi designando um grupo de líderes onde foram desenvolvidos vários trabalhos filosóficos por eles. Tendo em Agostinho de Hipona seu principal filósofo, tinha como um de seus principais objetivos a racionalização da fé cristã. 3.3 A TEOLOGIA NA PATRÍSTICA Assim como, praticamente, toda teologia é fruto do seu tempo; em relação aos Pais da Igreja, não poderiam ser diferentes. Toda teologia, de alguma forma, denuncia seu contexto, suas discussões, seus problemas vividos, suas histórias, controvérsias etc. Tal teologia, portanto, se manifesta sintomática às suas circunstâncias. Sendo assim faz- se temerário pensarmos, a partir dos pais, em uma teologia dogmática ou sistematizada acerca de alguma doutrina. Os pais apostólicos foram os primeiros depois dos apóstolos a se posicionarem e darem testemunho escrito das doutrinas basilares do cristianismo. Kelly salienta que eles não eram necessariamente intérpretes que se esforçavam a todo custo por desenvolver ou mesmo compreender os pilares da fé cristã. Aliás, suas ações muitas vezes demandavam certo grau de ingenuidade, pois não havia uma homogeneidade entre eles a despeito das bases sobre as quais sua teologia estava sendo fundamentada (KELLY, 1994, p. 22) Os escritos neotestamentário não haviam dado, de forma direta, todas as respostas que os cristãos precisavam. Assim, mesmo que os escritos apostólicos contivessem todas as doutrinas essenciais da fé cristã, elas ainda não haviam sido organizadas de maneira sistemática, de modo que os que vieram posteriormente não tinham todas as definições tão claras ao seu alcance. Esta foi uma das principais razões para o surgimento de diferentes interpretações por parte daqueles que sucederam os apóstolos. O período patrístico também foi importante para delimitar o espaço entre judaísmo e o cristianismo. Algumas questões teológicas, como o fim da prática da circuncisão, 3 Os Padres Apostólicos, Theological Latino-americana, 2013. Disponível em: http://theologicalatinoamericana.com/?p=1437, acesso: 20/10/2020 eram frutos deste relacionamento mal resolvido entre as práticas características do judaísmo e do cristianismo. O que comprova esta ideia são algumas cartas Paulinas que tinham a nítida preocupação de esclarecer algumas destas discussões presentes nas igrejas do primeiro século, como é o caso da carta aos Gálatas e Atos 15. Estas discussões eram oriundas de uma má compreensão teológica e das tentativas de acomodação das diversas correntes filosóficas da época com as doutrinas bíblicas, especialmente a filosofia platônica. 4 A PNEUMATOLOGIA NA PATRÍSTICA As discussões teológicas na patrística levaram um longo período, do final do século I até meados do século VIII, época dos chamados pais da igreja e dos grandes concílios do cristianismo. O estudo da doutrina pneumatológica revela que já em seus primórdios, especialmente no segundo século, relativamente pouca atenção foi dada à pessoa do Espírito Santo, tanto ao que concerne à sua personalidade quanto à sua atuação (RYRIE, 1980, p. 111). A discussãosó tomou maior proporção algum tempo depois no I Concílio de Constantinopla no ano 381 d.C. Entretanto, ainda que algumas afirmações tenham sido elaboradas apenas no final do quarto século, é importante dizer que é um equívoco pensar em uma completa falta de interesse teológico na presença e na obra do Espírito Santo por parte dos Pais apostólicos. Ao contrário, Ele foi percebido como uma força divina historicamente operante. Cabia aos teólogos à tarefa de reelaborar teologicamente e com uma linguagem nova essa experiência divina do Espírito, já reconhecida e fixada no material ―bruto da pregação e do culto da Igreja. Deve-se, contudo, rejeitar a ideia de que, na Igreja dos primeiros séculos o Espírito Santo não tenha sido reconhecido em seu agir. É até difícil encontrar outra ideia que tenha exaltado tanto a consciência escatológica e o sentido da comunidade da Igreja como a persuasão do Espírito Santo dado pelo Pai e comunicado por meio de Cristo (PADOVESE, 2004, p. 77). A história da doutrina do Espírito Santo está geralmente em conexão com outras doutrinas da bíblia principalmente com a Trindade (SMEATON, 1961, p. 256). Vale lembrar que, ainda que não tenha sido tão debatido como as outras duas pessoas da Trindade, o Espírito Santo foi mencionado pelos Pais apostólicos como igualmente divino, e este é um fator importante a ser considerado entre os pais apostólicos. Pertence ao grupo dos pais apostólicos segundo vários teólogos, a Didaqué, Clemente Romano, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, Papias, os escritos atribuídos a Barnabé, o Pastor de Hermes e a Carta de Diogneto. Pápias, bispo de Hierapolis, morto cerca do ano 140, escreveu Explicações das Sentenças do senhor, em cinco volumes, dos quais nos chegaram apenas fragmentos, por intermédio de Irineu de Lião em Contra as Heresias e Eusébio de Cesárea em História Eclesiástica. Nesses fragmentos, o Espírito Santo não é mencionado. Na pequena carta a Diogneto, o Espírito Santo não é mencionado, apenas Deus, o Pai, criador do céu e da terra, e o ―Verbo Santo e incompreensível (FRANGIOTTI, 2006). 4.1 NA DIDAQUÉ A Didaqué, também chamada de Ensino dos Doze, estudiosos estima que sejam escritos anteriores à destruição do templo de Jerusalém, entre os anos 60 e 70 d.C. Outros estimam que foi escrito entre os anos 70 e 90 d.C., contudo são unânimes quanto à origem sendo na Palestina ou Síria. Willy Rordorf, ― a Didaqué é uma "compilação anônima de diversas fontes derivadas da tradição viva, de comunidades eclesiais bem definidas (RORDORF, 2002), portanto a questão da datação equivale à questão das datas das tradições ali registradas, que indubitavelmente remontariam ao século I d. C. Quanto à sua autenticidade, é de senso comum que ele não tenha sido escrito pelos doze apóstolos, ainda que o título do escrito lhes faça menção. Contudo, estudiosos acreditam na compilação de fontes orais tendo recebido os ensinamentos que resultaram na elaboração do texto. Também é senso comum que tenha sido escrito por mais de uma pessoa. O texto foi mencionado por escritores antigos, inclusive por Eusébio de Cesaréia que viveu no século III, em seu livro "História Eclesiástica", mas a descoberta desse manuscrito, na íntegra, em grego, num códice do século XI (ano 1056) ocorreu somente em 1873 num mosteiro em Constantinopla, o chamado Códex Hierosolimitanos” (BRYENNIOSs, 2008) A Didaqué refere-se ao Espírito Santo apenas duas vezes e contexto das instruções batismais: Quanto ao batismo procede assim: depois de ditas estas coisas, batizem em água correte, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Se você não tem água corrente, batize em outra água, se não puder batizar em água fria, faça-o em água quente. Na falta de uma e outra, derrame três vezes água sobre a cabeça, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo (1995, p. 202). Embora não haja outras referências direta ao Espírito Santo, sua atuação está implícita nos versos 7, 8, 9 e 12 dos capítulos XI, ao tratar do profeta que fala sob inspiração e do pecado imperdoável que, segundo os Sinóticos, é o pecado contra o Espírito Santo. O verso sete diz: ―Não coloquem à prova nem juguem um profeta que fala sob inspiração, pois todo pecado será perdoado, mas este não será perdoado (1995, p. 202). Contudo, o didaquista aponta alguns critérios para se distinguir os verdadeiros apóstolos e profetas dos falsos: Quanto aos apóstolos e profetas, procedam conforme o princípio do evangelho. Todo apostolo que vem até vocês sejam recebidos como o Senhor. Ele deverá ficar mais de um dia ou, se necessário, mais outro. Se ficar três dias, é um falso profeta. Ao partir, o apostolo não deve levar nada, a não ser o pão necessário até o lugar em que for parar. Se pedir dinheiro é um falso profeta (1995, p. 204). 4.2 EM CLEMENTE DE ROMA Segundo Orígenes, Clemente de Roma é o mesmo colaborador do apóstolo Paulo, citado em (Filipenses 4.3). Essa afirmação é reiterada por Eusébio (HE, III, 15). Para Irineu de Lião, Clemente ―conhecera pessoalmente a Pedro (1955, p. 12). Clemente de Roma menciona o Espírito Santo junto às demais pessoas da Trindade nos seguintes termos: “Pela vida de Deus, pela vida do Senhor Jesus Cristo e do Espírito Santo” (1995, p. 48). Em tais palavras se nota claramente a unidade dentro da divindade. Além da fórmula triádica, outras referências ao Espírito Santo são mencionadas por Clemente em sua carta aos Coríntios. Analisando o seu conteúdo é possível perceber alguns conceitos importantes: “o Espírito Santo é visto como o agente responsável por mudar o ânimo dos cristãos: Dessa forma, uma paz profunda e radiante fora dada a todos, junto com o desejo insaciável de praticar o bem, e se espalhara sobre toda abundante efusão do Espírito Santo. ” (1995, p. 19); ele também é visto como aquele que capacita os homens a falarem: “Os ministros da graça de Deus falaram sobre arrependimento, por meio do Espírito Santo” (1995, p. 22); Ele é aquele que conhece o mais profundo do coração humano: “Com efeito, em algum lugar se diz: O Espírito do Senhor é lâmpada que perscruta as profundezas das entranhas” (1995, p. 25); ele é aquele por intermédio de quem Jesus falava: ―Com efeito, é ele que nos convida, por meio do Espírito Santo: Vinde, filhos, escutai-me. Eu vos ensinarei o temor do Senhor” (1995, p. 28). 4.3 EM INÁCIO DE ANTIOQUIA Já nos escritos de Inácio de Antioquia o Espírito Santo é mencionado junto com Deus Pai e Jesus Cristo o filho numa espécie de economia divina: Porque sois as pedras do templo do Pai, preparadas para a construção de Deus Pai, levantadas até o alto pela alavanca de Jesus Cristo, que é a cruz, usando a corda, que é o Espírito Santo (1995, p. 54) Ele também estava no nascimento de Jesus: ―De fato, o nosso Deus Jesus Cristo, segundo a economia de Deus, foi levado no seio de Maria, da descendência de Davi e do Espírito Santo (1995, p. 56). Na carta aos Filadelfienses ele é descrito como aquele que fortalece os que são de Jesus (1995, p.109); além de ser descrito como veículo de revelação: “Foi o Espírito que me anunciou, dizendo: Não façais nada sem o bispo, guardai vosso corpo como templo de Deus [...]” (1995, p.58); Nas demais cartas de Inácio de Antioquia não é possível identificar quaisquer menções ao Espírito Santo. 4.4 NO PASTOR DE HERMAS O Pastor de Hermas também fez algumas referências à pessoa do Espírito Santo. Ele o retrata com personalidade e emoções: ―A má consciência não deveria habitar com o espírito da verdade e trazer tristeza ao Espírito Santo e verdadeiro” (1995, p. 115), O cristão é o lugar de sua habitação: ―Quando todos esses espíritos vêm habitar o mesmo vaso, onde já habita o Espírito Santo, o vaso não pode mais conter tudo e transborda (1995, p. 119). Hermas ainda o relaciona com aquilo que ele chama de ―habitar na carne: Deus fez habitar na carne que ele havia escolhido o EspíritoSanto preexistente, que criou todas as coisas. Essa carne, em que o Espírito Santo habitou, serviu muito bem ao Espírito, andando no caminho da santidade e pureza, sem macular em nada o Espírito. Ela se portou dignamente e santamente, participou dos trabalhos do Espírito e colaborou com ele em todas as coisas. Comportou-se com firmeza e coragem e, por isso, Deus a escolheu como companheira do Espírito Santo. Com efeito, a conduta dessa carne agradou a Deus, pois ela não se maculou na terra, enquanto possuía o Espírito Santo (1995, p.99). Pelo que se entende, o pastor de hermas também atribui algum tipo de consequência do pecado humano ao Espírito Santo: Cuida para que nunca entre em teu coração a ideia de que tua carne é perecível. E cuidado para não abusar dela com alguma impureza. Se manchas tua carne, mancharás também o Espírito Santo (1995, p.135). A despeito do que foi analisado nos escritos dos pais apostólicos é possível perceber que o pouco que foi falado acerca do Espírito Santo mostra que estes homens o consideravam como pessoa divina e vividamente atuante no meio da igreja. Isto pode ser percebido especialmente a partir da fórmula triádica, na qual as três pessoas são colocadas sem qualquer distinção ou ainda no relato do nascimento de Cristo. Como pessoa, o Espírito Santo também demonstrava certas ―emoções‖. Em seu relacionamento com as pessoas ele é descrito como portador da revelação e instrutor, de modo que sua atuação é plenamente percebida. Tem-se, portanto, que o cristianismo primitivo era consciente da atuação do Espírito Santo, de modo que os cristãos foram postos numa relação vital e personalíssima com o próprio Deus (HARNACK apud PADOVESE, 2004, p. 77). 4.5 NA CARTA DE BARNABÉ Clemente de Alexandria e Orígenes atribuíram a Barnabé, companheiro do apostolo Paulo, tendo-a por canônica. O escrito, porém, segundo a crítica, deve ser datado em torno de 134 e 135. Após a saudação ―em nome do Senhor que nos amou‖ o autor enaltece a fé dos destinatários: Grandes e ricos são os decretos de Deus a vosso respeito [...] Por isso, eu me alegro mais na esperança de me salvar, porque verdadeiramente vejo em vós que o Espírito da fonte abundante do Senhor foi derramado sobre vós (1995, p 167). A carta contem mais duas referências ao Espirito Santo: ―Eis, diz o Senhor, que arrancarei deles — isto é, daqueles que o Espírito do Senhor via de antemão‖ — ―os corações de pedra, e implantarei neles corações de carne (1995, p. 173), e outra um tanto obscura: ―O Senhor de este, porque também ele devia oferecer a si próprio pelos nossos pecados, como receptáculo do Espirito, a fim de que fosse cumprida a prefiguração manifestada em Isac, oferecida sobre o altar (1995, p. 173). 5 A PATRÍSTICA E A PROVA DOS DONS REVELACIONAIS Como vimos anteriormente após o período apostólico, os dons proféticos continuaram a exercer seu papel na vida da Igreja, por séculos. É sabido que personagens como Inácio de Antioquia (cf. Carta aos Filadelfos 7,1-2) e Policarpo de Esmirna, profetizavam. O tema da profecia está presente também nos primeiros documentos litúrgicos e devocionais da Igreja (como na Didaqué 11,3-12; 13,1 e 3-4; e O pastor de Hermas 11). Tais documentos estabeleciam orientações sobre a atividade dos profetas, além de fornecer às comunidades os critérios específicos para discernir entre quem seria verdadeiro ou falso profeta. Por séculos o carisma de profecia seguiu manifestando-se entre fiéis leigos e ministros ordenados, tanto nas comunidades locais quanto em mosteiros e conventos. A seguir discorreremos melhor sobre esse assunto. 5.1 A DIDAQUÉ E OS DONS REVELACIONAIS A Didaqué fala de algumas instruções quanto ao cuidado que a comunidade deveria ter com todos aqueles que eram portadores de dons carismáticos. Dentre essas instruções estavam aquela em que os membros da comunidade deveriam ser capazes de diferenciar os falsos pregadores dos verdadeiros, assim como falsos profetas e verdadeiros profetas: Mas se aquele que ensina for perverso e expuser outra doutrina para destruir, não lhe deem atenção. Contudo, se ele ensina para estabelecer a justiça e o conhecimento do Senhor, vocês devem acolhê-lo como se fosse o Senhor (1995, p. 204). E acrescenta: Quanto aos apóstolos e profetas, procedam conforme o princípio do evangelho. Todo apóstolo que vem até vocês sejam recebidos como o Senhor. Ele não deverá ficar mais que um dia ou, se for necessário, mais outro. Se ficar por três dias, é um falso profeta (1995, p.204). Como se pode perceber a Didaquê, e as igrejas reconheciam tanto apóstolos quanto profetas e mestres, posto que os termos sejam usados para tratar de homens responsáveis pelo ensino e pregação. Estes homens tinham os dons de profecia e de ensino atestados pela inspiração (11.8, 9, 12,) e pelo reconhecimento das comunidades cristãs. Para tanto, o Didaquê mostra que havia critérios segundo os quais tais homens eram postos a prova: eles deveriam ensinar a justiça e o conhecimento do Senhor (11. 2); seu ensino deveria estar sob inspiração (11.7); eles deveriam viver como o Senhor (11. 8); e seu ensino deveria ser atestado pela prática (11.10). Em contrapartida, os maus profetas eram pessoas que exploravam a comunidade e não viviam o que ensinavam (11.5, 6, 9). A Didaqué no capítulo XI ressalta como dissemos acima o cuidado que a comunidade deveria ter com os falsos profetas: Nem todo aquele que fala inspirado é profeta, a não ser que viva como o Senhor‖. É assim que vocês reconhecerão o falso e o verdadeiro profeta. Todo profeta que, sob inspiração, manda preparar a mesa, não deve comer dela. Caso contrário, trata-se de um falso profeta. ―Todo profeta que ensina a verdade, mas não pratica o que ensina, é um falso profeta. (1955, p. 204) Como vimos acima, fica evidente que o dom de profecia era algo comum entre os pais da igreja. Havia, porém, casos de grupos problemáticos, quando os que diziam falar da parte de Deus mediante profecia geravam problemas, mas que ao confrontar com a as autoridades da igreja e os ensinamentos logo era descartado. 5.2 O PASTOR DE HERMAS E OS DONS REVELACIONAIS Aqui também vemos a indicação da presença do dom profético. Encontramos no capítulo 43.1-21. Aqui, à semelhança do Didaqué, Hermas fala sobre a identificação do verdadeiro e do falso profeta. O modo como ele fala mostra que havia ambas as categorias de profetas, de modo que se fazia necessária uma regra geral que distinguisse um do outro. O que chama atenção é o fato de que a distinção tinha necessidade de ser feita. Ao que parece, a presença de profetas era relativamente prolífera. A regra era que o profeta legítimo tinha o espírito divino e era completamente passivo à atuação deste: Quando um homem, que tem o espírito de Deus, entra numa assembleia de homens justos, crentes no espírito divino, e nessa assembleia de homens justos se suplica a Deus, então o anjo do espírito profético que está junto dele, plenifica esse homem, e ele, pleno do Espírito Santo, fala à multidão conforme quer o Senhor (1995, p. 124). Percebesse que a quantidade de pessoas que tinha o dom de profecia era muito grande, daí a necessidade de haver ordem nos cultos, para evitar desagrados como vimos nas recomendações da Didaquê. 5.3 INÁCIO E OS DONS REVELACIONAIS Sobre os dons revelacionais, algumas passagens nos escritos de Inácio chamam atenção pelo modo como ele os ressalta. A primeira delas está na carta que ele escreve a Policarpo de Esmirna, bem conhecido por seu martírio. Aqui, Inácio tencionava que Policarpo pedisse que as coisas invisíveis fossem manifestas a ele e que nada lhe faltasse, bem como tivesse abundância em toda ―graça (1995, p. 121). Isto é corroborado pelo fato de que a palavra usada aqui é uma forma de charisma12 na língua grega. Também é interessante notar que o conselho de Inácio a que Policarpo busquerevelação das coisas invisíveis é uma linguagem que se assemelha bastante com a de Paulo em Romanos 12.6 e 1 Coríntios 12.4 (KIDD, 1984, p. 15-16). Inácio também se via como profeta: Estando no meio de vós, gritei, disse em alta voz, uma voz de Deus: Permanecei unidos ao bispo, ao presbítero e aos diáconos! Aqueles suspeitaram que eu disse isso porque previ a divisão de alguns, mas aquele pelo qual estou acorrentado é minha testemunha de que eu não o sabia através da carne. Foi o Espírito que me anunciou, dizendo: Não façais nada sem o bispo, guardai vosso corpo como templo de Deus, amai a união, fugi das divisões, sede imitadores de Jesus Cristo, como ele também o é do seu Pai (1995, p. 112). Sua reivindicação profética é percebida quando ele diz que falou com voz de Deus sem, no entanto, saber previamente da divisão entre alguns que se encontravam com ele. Em nenhum momento este detalhe em sua fala parece ser trivial, pelo contrário, ele admite que estivera sob o controle de Deus em caráter profético. A visão de Inácio como profeta também parece ser atestada por outras de suas cartas, como por exemplo, (Romanos 7.2; Efésios 20.2; Tralianos 5). Em linhas gerais, Inácio se mostra familiarizado com os dons revelacionais. 6 A CONTRIBUIÇÃO DA PATRÍSTICA PARA O ESCLARECIMENTO DO ARGUMENTO CESSACIONISTA Como vimos no decorrer deste artigo após o período apostólico, os dons proféticos continuaram a exercer seu papel na vida da Igreja, por séculos. Para estes, o Espírito Santo continuou capacitando a igreja com os dons espirituais, de modo que tais dons podiam ser vistos, principalmente, no testemunho pessoal da liderança. Logo, havia uma estreita ligação entre a capacitação com dons revelacionais e a reinvindicação de autoridade por parte dos líderes da igreja. Vale destacar também que a revelação profética era acolhida pela comunidade cristã com peso autoritativo. Uma das maiores objeções aos dons espirituais em nossos dias, como falar em línguas e profecia (entre outros), é que eles desapareceram no final do primeiro século, após a morte do último apostolo (João). De acordo com essa teoria, não devemos esperar ser dotado de dons espetaculares do Espírito Santo, visto que pertencem inteiramente ao passado, essa visão, entretanto, está perdendo crédito rapidamente em nossos dias. Graças ao grande interesse dos estudos patrísticos ao longo do século passado, a teologia contemporânea tem tido um papel muito importante em tomar nota da vitalidade espiritual em curso nos anos de formação da Igreja recém-estabelecida. Teólogos importantes como Justino Mártir, Irineu, Tertuliano, Orígenes, Novaciano e Cirilo de Jerusalém são apenas alguns exemplos de homens que estavam totalmente convencidos que os dons do Espírito ainda estavam muito operacionais em seus dias. Levando-se isso em consideração, pode-se afirmar que a posição cessacionista não encontra base histórica nos pais apostólicos para afirmar que os dons carismáticos cessaram imediatamente após o fim do período apostólico, especialmente os de cunho revelacional, pois se percebe uma forte ênfase na autoridade profética no segundo século. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar de pouco estudado os documentos da patrística são de grande importância para o debate cessacionista/continuísta dos dias atuais, e apesar de antigos, os escritos dos pais apostólicos não poderiam ser mais atuais. A análise do contexto histórico-teológico do segundo século mostrou que os dons revelacionais tinham o seu lugar de destaque bem definido no seio da igreja, mesmo não sendo a principal ênfase da comunidade cristã em seus primórdios. Ressaltou-se que eles serviam, entre outras coisas, para atestar a autoridade dos líderes da igreja diante da própria comunidade, bem como dos seus opositores em dias de perseguição. Verificou-se também que os pais apostólicos se valiam de sua importância para ensinar as igrejas àquilo que era essencial à crença comum, ao passo que também serviam como instrumento de identificação dos falsos profetas. Além disso, a percepção dos pais apostólicos quanto à temporalidade dos dons é significativa para uma melhor compreensão das questões pertinentes ao debate continuísta/cessacionista dos dons revelacionais. Consequentemente, seria um erro crasso negar o seu valor histórico e teológico para as demandas dos dias atuais, posto que tais escritos são os documentos cristãos mais próximos do período apostólico que relatam como pensavam e agiam os primeiros cristãos. 8 REFERÊNCIAS FRANGIOTTI, Roque. Cristãos, judeus e pagãos: acusações, críticas e conflitos no cristianismo antigo. Aparecida: Ideias & letras, 2006. KERR, Guilherme, A Assembleia De Westminster. São Jose dos Campos, editora FIEL, 1992 HUNERMANN, Denzinger. 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