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com a inteligência humana. Era um racionalista e se declarava inimigo de todo misticismo. Teve, ainda, que usar a ideia de natureza como força externa, que molda os objetivos para os quais o corpo age. Erasístrato compreendeu a ação dos músculos na produção do movimento e atribuiu o encurtamento dos músculos à sua distensão pelo espírito animal.23 Figura 10 – Erasístrato Entretanto, o esplendor das descobertas anatomopatológicas de Herófilo e Erasístrato caíram em infortúnio quando se levantou a suspeita de que escravos e condenados à morte haviam sido dissecados vivos, após a autorização de Ptolomeu I. Machado de Assis, nos “Contos Alexandrinos”, cita Herófilo na história de dois filósofos: Stroibus e Pítias. Tinham sido escalpelados cerca de cinquenta réus, quando chegou à vez de Stroibus e Pítias. Vieram buscá‑los; eles supuseram que era para a morte judiciária, e encomendaram‑se aos deuses. De caminho, furtaram uns figos, e explicaram o caso alegando que era um impulso da fome; adiante, porém, subtraíram uma flauta, e essa outra ação não a puderam explicar satisfatoriamente. Todavia, a astúcia do larápio é infinita, e Stroibus, para justificar a ação, tentou extrair algumas notas do instrumento, enchendo de compaixão os indivíduos que os viam passar, e não ignoravam a sorte que iam ter. A notícia desses dois novos delitos foi narrada por Herófilo, e abalou a todos os seus discípulos (VILICEV, 2002). Conta‑se que Herófilo e outros anatomistas pretenderam saber se “nervo do furto” residia na palma das mãos das pessoas. Pelo que se diz, Herófilo dissecou primeiro Stroibus e a seguir Pítias durante oito dias. 1.2.1 Roma O interesse do Estado em Roma fundamentava‑se em sua arte, que era caracterizada como sendo objetiva, e para a representação do poder de forma realista esculpiam‑se rostos de autoridades, conforme ilustra a figura a seguir. Para que os corpos fossem mitificados e divinizados em paredes de casas era utilizada a pintura mural. ANATOMIA HUMANA 24 Figura 11 – Júlio César Em muitos aspectos, Roma incluiu os progressos científicos e as bases para a Idade Média. O questionamento científico perfaz a teoria pela prática durante esse período. Foram realizadas algumas dissecações de cadáveres humanos, tendendo mais determinar a razão da morte em casos criminais. A medicina não era preventiva, contudo, confinava‑se, quase sem exceção, ao tratamento de soldados lesados em combates. Nos últimos tempos da história romana, as leis eram postas evidenciando a autoridade da Igreja na prática médica. De acordo com as leis romanas, por exemplo, nenhuma gestante morta poderia ser sepultada sem a retirada do feto do útero de maneira que ele pudesse ser batizado. Esse é o caso da morte de Aggrippina, mãe de Nero, cuja história gerou um contrassenso na época pelo viés anti‑Nero que ela apresentava. Nero arquitetou um navio, cujo fundo se abriria quando estivesse no mar, e Aggripina foi colocada a bordo. Quando o fundo se abriu, ela caiu no mar, contudo, conseguiu nadar até a margem e, por isso, Nero enviou um assassino para matá‑la. O imperador afirmou que ela havia tentado assassiná‑lo e depois cometeu suicídio. Suas hipotéticas palavras finais ao assassino quando estava prestes a matá‑la foram “Ataque meu útero!”, insinuando que ela almejava ver destruída a primeira parte de seu corpo que tinha gerado um “filho tão abominável”, conforme ilustra a figura a seguir, em uma associação de ideias entre as palavras de Aggrippina e a xilogravura de Guilherme de Lorris. Figura 12 – O imperador Nero assistindo a dissecação de sua mãe Aggrippina, que ainda está viva e tem as mãos amarradas Unidade I Considerado o príncipe dos médicos, Galeno, conforme ilustra a figura a seguir, foi uma personagem fundamental na história da medicina. Como a dissecação humana era abolida na época, ele não dissecava cadáveres humanos, porém, os humanizava por aproximação, sendo essa talvez a causa de seus erros anatômicos.25 Figura 13 – Bustos de Galeno Galeno utilizava seres humanos para fazer pesquisas, observando feridas profundas ou estudando cadáveres de indigentes encontrados eventualmente. As principais descrições dele encontram‑se no campo do sistema nervoso, sistema muscular, sistema cardiovascular, além de ter estudado o esqueleto humano, conforme ilustra a figura a seguir. Figura 14 – Desenho dos ossículos da orelha (círculo branco), presente no livro Ossibus Doctissima et Expertissima Commentaria, de Galeno ANATOMIA HUMANA Galeno descreveu o esterno com sete peças, tanto como as costelas com as quais se articula. Detalha também a cartilagem tireoide com o nome de O Chondros Thyreoides, semelhante ao escudo cretense. Em nenhum período da história o status de um homem prevaleceu tão profundamente em uma ciência como o de Galeno na medicina. Suas inspirações prorrogaram‑se pelos próximos 13 séculos, passando pela Idade Média e chegando até o século XVI, sendo que as obras de Galeno determinaram os princípios dos dados anatômicos. Observação Era uma obrigação religiosa entre os gregos e os romanos cobrir com terra qualquer osso humano encontrado por casualidade. Apenas os condenados e os suicidas poderiam ficar sem enterro. Entre os gregos existia a crença de que as almas dos mortos haviam de vagar pelas margens Rio Estige, o rio da imortalidade, até que seus corpos tivessem sido enterrados. Saiba mais Para saber mais sobre o surgimento e o desenvolvimento do estudo da anatomia, leia: KICKHÖFEL, E. H. P. A lição de anatomia de Andreas Vesalius e a ciência moderna. Scientiæ Zudia, São Paulo, v. 1, n. 3, p. 389‑404, 2003. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2019. ALVES, M. V. A medicina e a arte de representar o corpo e o mundo através da anatomia. In: CATÁLOGOS BNP. Arte médica e imagem do corpo: de Hipócrates ao final do século XVII. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2010, p. 31‑50. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2019. CHEREM, A. J. Medicina e arte: observações para um diálogo interdisciplinar. Revista Acta Fisiátrica, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 26‑32, 2005. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2019. CHIARELLO, M. Sobre o nascimento da ciência moderna: estudo iconográfico das lições de anatomia de Mondino a Vesalius, Scientiæ Zudia, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 291‑317, 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2019. 26 Unidade I 1.2.2 A contribuição do povo islame27 O período entre a morte de Galeno e a primeira tradução de uma obra de material médico no século XI, ocorrida no Mosteiro de Monte Cassino, no sul da Itália, é o chamado de idade das trevas da anatomia. Crê‑se que tanto o estilo de vida quanto os sentimentos nutridos pela sociedade medieval em relação ao corpo humano teriam reduzido a edificação de saberes que abrangeu a anatomia, a medicina e outras áreas do saber. Os séculos X e XI foram marcados pelo aumento demográfico associado à expansão territorial empreendida pelas Cruzadas religiosas, o que possibilitou o renascimento comercial. Com a retomada das atividades comerciais e a instauração de espaços urbanos, as universidades se multiplicaram com a finalidade de acatar às necessidades de expandir o conhecimento por parte dos comerciantes no processo de expansão de seus negócios. Do mesmo modo, a própria maneira de organização social que nascia clamava por certos serviços, como aqueles relativos à jurisprudência e à medicina. Em um clima essencialmente escolástico, o ensino das universidades comumente, assim como o ensino da anatomia, era abalizado nas traduções de textos árabes, como os tratados de Avicena, conforme ilustra a figura a seguir. Como a observação da natureza ainda era inadvertida nessa época, não existia instrumentação prática em anatomia. Figura 15 – Estátua de Avicena Avicenaorganizou e sistematizou os saberes de Hipócrates e Galeno, conforme ilustra a figura a seguir em um compêndio de medicina, considerada uma obra majestosa, conhecida como O Cânone da Medicina. Ela foi publicada pela primeira vez apenas em 1492 e trata‑se de uma mistura de saberes médicos islâmicos e gregos. Esse foi o primeiro livro médico a mostrar a reparação de tendões em um período no qual esse tratamento era equivocadamente contraindicado. ANATOMIA HUMANA 28 Figura 16 – Os três maiores professores de medicina na Antiguidade 1.2.3 O Renascimento A fase conhecida como Renascimento foi determinada pela vida nova das ciências e teve forte influência nas grandes universidades europeias localizadas em Bolonha, Salerno, Pádua, Montpellier e Paris. Apenas no Renascimento seriam aceitos, ainda que com certa cautela e dignidade, os procedimentos de violação do corpo por meio de estudos de cadáveres. Com o aumento do mérito na anatomia durante o Renascimento, a aquisição de cadáveres para a dissecação se tornou um problema grave. Estudantes de medicina cometiam repetidamente a invasão de sepulturas para saqueá‑las, até que um decreto oficial foi expedido, possibilitando utilizar os corpos de criminosos executados como espécimes. As aulas de anatomia aconteciam em um teatro anatômico, conforme ilustra a figura a seguir. Figura 17 – Vista panorâmica do teatro anatômico de Pádua Unidade I O teatro anatômico deveria ser vasto e arejado, com bancos organizados em círculos, como os do Coliseu romano, possibilitando a acomodação de muitos alunos sem importunar os movimentos do maestro, o cirurgião. O cadáver era colocado em uma mesa no centro do teatro e os instrumentos em outra, próxima à primeira. Os professores de anatomia pronunciavam suas aulas de cátedras um pouco distante de onde estava o cadáver. A frase “Eu não devo tocá‑lo com uma vara de 10 pés” possivelmente originou‑se durante esse período em menção ao odor de um cadáver em deterioração.29 Saiba mais Para saber mais sobre o teatro anatômico, leia o artigo: ALVES, E. M. O.; TUBINO, P. Proibições das dissecações anatômicas: fato ou mito? Jornal Brasileiro de História da Medicina, Brasília, dez. 2017. Do século XIII ao início do século XVI, os progressos no conhecimento anatômico foram morosos, fundamentados na contínua revisão e extensão de tratados preexistentes. A anatomia macroscópica foi privilegiada nessa época, contudo, para seu desenvolvimento foi imprescindível o aperfeiçoamento das técnicas de observação, dissecação, descrição, ilustração e o gradual refinamento terminológico, processo para o qual Mondino de Luzzi, conforme ilustra a figura a seguir, é considerado o precursor. Figura 18 – Xilogravura da aula de anatomia de Mondino ANATOMIA HUMANA Do século XIII ao século XVI, o desenvolvimento da anatomia concentrou‑se no cenário italiano e ampliou‑se para outros países, em agravo do decreto pontifício propagado em 1300. Sua inserção enquanto disciplina nas universidades foi regularizada também pelo refinamento das formas de representação das estruturas corporais concebidas pelo processo de ilustração do corpo, o que se tornou possível devido à influência do naturalismo na arte italiana.30 Assim, artistas como Leonardo da Vinci e Michelangelo estavam entre os primeiros a efetuar o estudo científico da anatomia humana, devido ao interesse na forma humana. Além disso, a invenção da impressão tornou os livros facilmente acessíveis e as ilustrações necessárias para anatomia poderiam naquele momento ser mais facilmente reproduzidas e distribuídas. A escrita invertida é uma característica das observações de Leonardo da Vinci em seus desenhos. Canhoto, da Vinci produziu centenas de desenhos anatômicos feitos a partir de dissecações. Suas contribuições, do ponto de vista anatômico, só podem ser elencadas retrospectivamente, mas a precisão e a objetividade de suas ilustrações inspiram, ainda hoje, a construção de novos esquemas anatômicos. Ele ponderou o homem como sendo o centro do universo, distendendo a figura humana em duas formas geométricas, uma em relação ao quadrado e a outra em relação ao círculo, sendo que a unidade melodiosa seria dada pelo conjunto. Seu ponto de partida foram os escritos do arquiteto e do engenheiro militar Marco Vitrúvio, o qual constituíra no século I a.C. a doutrina que relacionava a proporcionalidade da soberba arquitetura com as do homem de boa adequação, conforme ilustra a figura a seguir. Figura 19 – O Homem de Vitrúvio Uma das mais apreciadas imagens plásticas do Renascimento, pintada na Capela Sistina por Michelangelo entre 1508 e 1512, se apresenta em A Criação de Adão, conforme ilustra a figura a seguir. Nesse afresco observamos que os membros superiores são simétricos e têm uma composição muito semelhante, fazendo referência à passagem bíblica “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança” (Gênesis, 1.27). De tal modo, por meio dessa simetria, Michelangelo insere um equilíbrio entre os dois lados do afresco, entre a figura divina e a figura humana. image4.png image5.png image6.png image7.png image8.png image9.jpeg image10.png image11.jpeg image12.png image13.png image14.png image15.jpeg image1.png image2.jpeg image3.jpeg