Prévia do material em texto
Fonologia e variação Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Relacionar os processos variáveis na aquisição de língua materna e a construção do conhecimento fonológico. Explicar os processos de aquisição da língua e suas variações. Analisar o processo de aquisição de segunda língua e seus aspectos fonético-fonológicos. Introdução A aquisição da língua materna ocorre ao longo do crescimento da criança e por meio de diferentes processos fonológicos. Todavia, esses processos são sempre iguais? Sofrem influências das variações linguísticas dos adul- tos que fazem parte da comunidade linguística da criança? A fonologia revela aspectos cruciais sobre o processo de aquisição da linguagem, seja na língua materna, seja em língua estrangeira. Neste capítulo, você estudará sobre os processos variáveis na aquisição de língua materna e a construção do conhecimento fonológico. Além disso, compreenderá os processos de aquisição da língua e suas variações, bem como conhecerá o processo de aquisição de segunda língua e seus aspectos fonético-fonológicos. Processos variáveis na aquisição de língua materna e a construção do conhecimento fonológico Historicamente, estudiosos de diversas áreas tentaram entender como um indivíduo passa de não falante a falante de sua língua materna, isto é, como esse indivíduo adquire sua linguagem. Surgiram, então, várias teorias que ancoraram pesquisas sobre a aquisição de subsistemas gramaticais da língua, tais como o fonológico, o morfológico, o sintático, o lexical e o semântico. O subsistema fonológico, campo de interesse deste capítulo, envolve o domínio de um intrincado sistema de especificidades fonológicas, pois, se- gundo Matzenauer e Costa (2017, p. 50), “[...] os traços distintivos apresentam diferentes estádios de aquisição, [...] padrões combinatórios entre os sons e as unidades suprassegmentais, tais como a sílaba e a palavra [...]”. A aquisição do componente segmental de uma língua envolve um processo de desenvolvimento fonológico gradual. Jakobson (1968), estudioso que defen- dia a ideia de que há um ordenamento na aquisição das oposições fonológicas, pressupôs que as pesquisas se voltassem às leis de solidariedade irreversível, visto que, para ele, existem leis linguísticas que estabelecem que a presença de um traço, segmento ou classe implica a presença de outro. Essa proposta evidencia a desconsideração às variações, no entanto, estudos atuais revelam que, de fato, há tendências universais no desenvol- vimento fonológico. Esses padrões gerais demonstram que as unidades não marcadas são primeiro adquiridas, e, na aquisição fonológica de segmentos, há uma tendência de que a vogal baixa /a/ e as vogais altas sejam adquiridas antes das vogais médias. Quanto às consoantes, as oclusivas e nasais são adquiridas antes das fricativas e líquidas, e as labiais e coronais, antes das dorsais. Além disso, as obstruintes não vozeadas são adquiridas antes das vozeadas. No português brasileiro, a ordem geral de aquisição é semelhante à ordem da tendência mundial. O sistema vocálico se integraliza antes do consonântico, e a estabilização do acento silábico ocorre primeiro com as posições tônica e postônica e, depois, com a pretônica. A ordem de aquisição do sistema vocálico tônico e pretônico pode ser representada, respectiva- mente, da seguinte forma: /a, i, u/ >> /e, o/ >> /ɛ, ɔ/ /a, i, u/ >> /e, o/ Fonologia e variação2 É evidente que cada criança pode adquirir o sistema vocálico de forma diferente, porém, de acordo com o padrão geral, primeiro surgem as vogais /a, i, u/, de oposição máxima quanto à altura. Essas diferenças na ordem de aquisição são mais comuns no processo de aquisição consonântica, mas este também obedece a um padrão. Observe, a seguir, a ordem de aquisição das consoantes em posição silábica de ataque absoluto, de ataque medial e em coda, respectivamente: /p, b, t, d, f, v, m, n/ >> /k, ɡ, s, z/ >> /l, R/ >> /ʃ, ʒ/ /p, b, t, d, f, v, m, n/ >> /k, ɡ, ɲ/ >> /ʃ, ʒ/ >> /l, R/ >> /ʎ/ >> /ʃ, ʒ, ɾ/ /N/ >> /l/ >> /s/ >> /ɾ/ Quanto ao modo de articulação, primeiro são adquiridas as oclusivas e nasais, depois, as fricativas e, por último, as líquidas. Quanto ao ponto de articulação, a tendência segue a seguinte ordem: labial >> coronal [+anterior], dorsal >> coronal [−anterior] É importante salientar que essa ordem é um padrão que pode ser rompido. De acordo com Matzenauer e Costa (2017, p. 65), […] outros padrões de aquisição têm também sido verificados com frequência no PB, particularmente aquele em que as crianças adquirem em primeiro lugar as obstruintes não vozeadas (/p t k f s ʃ/) e depois as vozeadas (/b d ɡ v z ʒ/), ou seja, um percurso de desenvolvimento segmental em que a especificação do traço de vozeamento ([±vozeado]) parece sobrepor-se à especificação do traço [contínuo]. Durante a formação do inventário fonológico, as crianças costumam subs- tituir segmentos ainda não adquiridos por outros que pertencem à mesma classe em que se localiza o segmento-alvo. Esse processo é muito comum na aquisição do modo de articulação. O Quadro 1, a seguir, apresenta os padrões de substituição mais frequentes (MATZENAUER; COSTA, 2017). 3Fonologia e variação Fonte: Adaptado de Matzenauer e Costa (2017). Substituições mais frequentes Exemplos Traço/contraste não adquirido fricativas→ oclusivas faca [̍ pakɐ] [±contínuo]/[−soante] obstruinte vozeada→ obstruinte desvozeada bola [̍ pɔlɐ] [±voz]/[−soante] oclusiva dorsal→ oclusiva coronal quero [̍ tɛlu] [+voz]/[−soante] nasal cor. [−ant]→ nasal cor. [+ant] dinheiro [dʒi̍ nelu] [±anterior]/[+lateral] fricativas cor. [−ant]→ fricativas cor. [+ant] chapéu [sa̍ pɛw] [±anterior]/[cor +cont] fricativas cor. [+ant]→ fricativas cor. [−ant] sapo [̍ ʃapu] [±anterior]/[cor +cont] líquida→ glide barata [ba̍ jatɐ] [±conson]/[+aproximante] líquida lat. [−ant]→ líquida lat. [+ ant] palhaço [pa̍ lasu] [±anterior]/[+lateral] líquida [−lat]→ líquida [+lat] nariz [na̍ lis] [±lateral]/[+aproximante] Quadro 1. Padrões de substituição mais frequentes Outro aspecto fundamental na aquisição da língua materna quanto à fonolo- gia é a aquisição da estrutura silábica. De forma geral, as primeiras produções das crianças são monossilábicas ou dissilábicas e são em formato CV. Esse é, portanto, o estágio inicial da produção de itens lexicais de uma língua-alvo. A importância de se estudar os segmentos também se deve ao fato de que as crianças não os adquirem de forma independente do seu estatuto prosódico. No caso da sílaba, um mesmo segmento pode já ser produzido em uma dada posição silábica, mas não em outra, por exemplo. Outro constituinte fundamental no desenvolvimento fonológico infantil é o ataque. No português, os ataques simples e vazios estão disponíveis desde os estágios iniciais da aquisição da linguagem. Freitas (2017) representa os ataques não ramificados no português da seguinte forma: Estádio I Ataques simples associados à oclusiva e à consoante nasal Ataque vazio Fonologia e variação4 Estádio II outros tipos de ataque simples (fricativa>>líquida ou líquida>>fricativa) A rima é mais um aspecto importante no processo de aquisição. O formato silábico universal CV apresenta uma rima não ramificada, isto é, apenas com núcleo, sem coda. Contudo, ao longo da aquisição linguística, as estruturas silábicas passam de não ramificadas a ramificadas. No caso da rima, cada língua apresentará diferentes sistemas linguísticos. Isso se deve à estrutura da rima, que difere substancialmente de língua para língua. Essas diferenças podem ser vistas inclusive entre o português europeu e o brasileiro. Observe a análise de Freitas (2017, p. 80): As aquisições precoces de /l/ e /n/ no português do Brasil, podendo ser inicial- mente apresentadas como divergentes do percurso descrito para o português europeu, podem ser interpretadas de outra forma: nos dois casos, em portuguêsdo Brasil, o que está em causa é a produção da forma fonética [w] para a coda /l/ e a produção de vogais nasais para coda /n/. Ora, em português europeu como em português do Brasil, a produção de [w] e de vogais nasais emerge precocemente. A questão que se coloca, para observação futura, é a de saber se português europeu e português do Brasil são assim tão diferentes nesta matéria ou se é a adoção de diferentes análises fonológicas para os dois sistemas que está a condicionar a descrição dos dados e a formulação de generalizações sobre os mesmos. De modo geral, pode-se representar o processo de aquisição dos consti- tuintes silábicos do português brasileiro da seguinte forma (FREITAS, 2017): Estádio 1 Ataque não ramificado + rima não ramificada: CV / V Estádio 2 Núcleo ramificado: (C)VG Estádio 3 Rima ramificada: (C)VCnasal Estádio 4 Rima ramificada: (C)VCfricativa e (C)VClateral Estádio 5 Rima ramificada: (C)VClíquida não lateral Estádio 6 Ataque ramificado No desenvolvimento da fonologia da língua, a criança precisa adquirir também o acento das palavras. No Brasil, há duas tendências para as primeiras palavras no português: acento na penúltima sílaba e acento final. Contudo, existem poucas pesquisas a respeito desse assunto. Junto com o acento, a palavra prosódica caracteriza-se como um constituinte essencial na aquisição 5Fonologia e variação fonológica infantil. Nesse processo, há um período em que as palavras são minimamente dissilábicas. Em suma, de modo geral, há regularidades no processo de aquisição da linguagem. Contudo, a integralização do domínio fonológico revela o papel das variações. Na seção seguir, serão analisadas essas variações e suas inter- ferências na aquisição fonológica da linguagem. Os processos de aquisição da língua e suas variações Historicamente, as línguas apresentam regras que perpassam suas diferentes fases. Na aquisição de uma língua, as crianças internalizam essas regras e pas- sam a comunicar-se com sua comunidade linguística utilizando esses moldes. No entanto, os fatos linguísticos costumam refletir a correlação entre o linguístico e o social de uma comunidade linguística. Assim, esse contexto contribui para o desenvolvimento de variações, ou seja, na aquisição da fo- nologia da língua materna, também pode haver processos variáveis. Segundo Wiethan, Nóro e Mota (2014, p. 261): A aquisição lexical exige o estabelecimento de uma correspondência entre a forma fonológica de uma palavra e sua representação semântica. Essa cor- respondência é fortalecida a partir da experiência com a nova palavra, que é caracterizada pelo acréscimo de informações perceptuais, contextuais, sintáticas e pragmáticas ao conceito inicialmente estabelecido. Dois fatores contribuem para o desenvolvimento lexical: o input linguístico dos pais e as habilidades cognitivas da criança. Acesse o link a seguir para conhecer o blog de ciência da UNICAMP e confira o significado de input linguístico. https://qrgo.page.link/hUPsC Fonologia e variação6 Todavia, a variação da linguagem da criança é um estudo pouco difun- dido na história da linguística, pois as atenções relacionadas à aquisição da linguagem sempre priorizaram as regularidades e os sistemas tradicionais já concebidos pelas crianças. Dessa forma, as variações sempre foram deixadas de lado, inclusive porque é muito complexa a tarefa de coleta de dados. A seguir, serão dados alguns exemplos de variação fonológica do português brasileiro. As palavras proparoxítonas, embora em menor número que as demais, representam uma parte que identifica a língua portuguesa. No latim, as palavras de três ou mais sílabas tinham a acentuação determinada pela quantidade da penúltima. Dessa forma, se fosse longa, o acento recaía sobre ela; se fosse breve, o acento recaía na sílaba anterior. Daí surgem as proparoxítonas. Entre os séculos XII e XVI, no português arcaico, existiam poucas pro- paroxítonas. No português coloquial, houve uma intensificação do acento, o que levou à ausência de pronúncia da penúltima vogal dessas palavras. Com o tempo, a sílaba postônica átona não final desses vocábulos passou a ser suprimida. Dessa forma, palavras proparoxítonas transformavam-se em paroxítonas. Essa demonstra ser uma tendência da língua portuguesa desde suas origens. Atualmente, nota-se uma persistência desse processo. Os estudos de linguagem regional revelam que as variedades populares seguem essa tendência. Esse fato demonstra um exemplo de ocorrência do fenô- meno chamado síncope, em que um fonema no interior da palavra desaparece. O contexto linguístico reforça essa tendência, e a história do português revela que ela persiste. De acordo com Dubois et al. (2006, p. 551), “[...] a síncope é um fenômeno muito frequente de desaparecimento de um ou mais fonemas no interior de uma palavra. As vogais e sílabas átonas estão particularmente sujeitas a isso [...]”. Amaral (2002) afirma que o grupo consonantal que se forma com a sín- cope deve apresentar um ataque ou uma coda bem formada. Como o ataque permite, no máximo, dois elementos (sendo o primeiro um fonema oclusivo ou fricativo bilabial e o segundo um soante não nasal), forma-se a sequência obstruinte + líquida. Esse é o caso da vibrante simples ou lateral. Exemplos: br, gl, cl, tl. A coda pode ter as soantes s ou z. O Quadro 2, a seguir, apresenta contextos favoráveis para a ocorrência de síncope (AMARAL, 2002). 7Fonologia e variação Fonte: Adaptado de Amaral (2002). Diante de uma líquida Chácara/chacra Pílula/piula Diante de uma fricativa Príncipe/prinspe Diante de uma oclusiva ou nasal Relâmpago/relampo Perda compensatória Número/numbro Túmulo/tumblu Estômago/istombo Formação da sequência vogal líquida Câmara/camra Quadro 2. Contextos favoráveis para a ocorrência de síncope Esse é apenas um exemplo de que a variação linguística está presente em todos os aspectos da linguagem e, inclusive, na história das línguas, e, portanto, está presente também no processo de aquisição da linguagem. No caso da síncope, sabe-se que este é um fenômeno que ocorre também no desenvolvimento fonológico das crianças. Quando estão tentando falar e se comunicar com eficiência, elas suprimem fonemas mais complicados e apagam alguns sons. Assim, pronunciam a palavra chácara como chacra, por exemplo. Entretanto, percebe-se que esse não é um fenômeno apenas do período de aquisição da linguagem. Adultos, em determinados contextos linguísticos, também realizam a mesma produção e são referência de pronúncia para quem está desenvolvendo a linguagem. Essa situação favorece as variações na aquisição da língua materna. No fim do século XX, surgiram pesquisas sobre aquisição da linguagem que consideravam a variabilidade individual no ritmo e nas estratégias de crescimento linguístico da criança. Nessa perspectiva, (dos interacionistas, i.e., teóricos que defendem que a linguagem é biológica e social), enfatiza-se a influência da interação com falantes da língua de aquisição. Nesse sentido, embora a aquisição da linguagem se mostre como um pro- cesso simples, por ser espontâneo e natural, é também complexo, uma vez que engloba um conjunto de informações prosódicas e melódicas que precisam se articular, pois apenas assim a comunicação linguística da criança se realiza. Miranda e Veloso (2002, p. 441) afirmam que “[...] o património fonológico da criança pode ser observado ainda em revelações das suas habilidades epilinguísticas, as quais derivam do conhecimento implícito já construído e denotam algum controle cognitivo sobre ele [...]”. Nesse sentido, evidencia-se Fonologia e variação8 uma sensibilidade fonêmica. Contudo, esta é construída a partir da escuta. Ou seja, há uma grande importância do papel da comunidade linguística a que a criança pertence. Afinal, a criança interioriza o conhecimento linguístico sobre o funcionamento da gramática sonora (no tocante a sílabas e fonemas) por meio do que aprende com os adultos falantes.Nesse sentido, o desenvolvimento fonológico envolve-se com algumas variá- veis, como: a própria aquisição da linguagem (a fonologia é apenas uma parte); o desenvolvimento das capacidades metafonológicas explícitas; e a aprendizagem da leitura e da escrita. Assim, quando a criança está em processo de aquisição da linguagem, também está contribuindo para a manutenção e para a mudança da língua, por isso é importante analisar as variações também na aquisição. Para Smith, Durham e Fortune (2007 apud LORANDI, 2013, documento on-line), questões que norteiam os estudos sobre aquisição da variação são: • O input do cuidador da criança difere das normas da comunidade em geral em todas as variáveis linguísticas? • As formas variáveis estão evidentes desde o início do processo de aquisi- ção, ou seja, são aprendidas ao mesmo tempo em que formas categóricas são aprendidas? • Que efeitos o input do cuidador tem sobre as formas produzidas durante seu processo de aquisição, não somente em termos de frequência de uso, mas também em termos de restrições internas e externas na variabilidade? • A competência sociolinguística é adquirida ao mesmo tempo em que a competência gramatical? • Todas as variáveis linguísticas são adquiridas ao mesmo tempo e do mes- mo jeito? Essas questões podem ajudar na análise das entradas linguísticas das crianças, pois elas representam a fala da comunidade da qual a criança faz parte. Assim, pode-se avaliar se o adquirente da língua adquire e aplica regras por si ou as imita. Como se observa, uma das bases do conhecimento linguístico da criança é seu ambiente linguístico, ou seja, o input (entrada), que é repleto de variação. De acordo com Lorandi (2013, documento on-line), [...] as crianças recebem input de diferentes pessoas e ouvem sons e palavras de diferentes vozes. Dessa forma, nenhuma criança experimentaria precisamente o mesmo input. A variabilidade fonética no input, entretanto, conforme con- sideram esses autores, não é puramente idiossincrática; alguma variabilidade provê informação específica de língua, que deve ser adquirida como parte do conhecimento gramatical, o que incluiria alternâncias morfológicas e alofones contextuais, por exemplo. 9Fonologia e variação Ou seja, as variantes locais e as normas de uso da língua são adquiridas no processo de aquisição da língua materna. Assim, as crianças aprendem que as formas variam e que o contexto permite utilizá-las de acordo com a finalidade e a situação. Em resumo, o vocabulário e a memória fonológica são aspectos fundamen- tais desde o início do desenvolvimento da linguagem, ao passo que a memória fonológica se revela como um componente crucial para a aprendizagem de novas palavras, pois está envolvida com a formação de novas formas fonoló- gicas em longo prazo. O processo de aquisição de segunda língua e seus aspectos fonético-fonológicos Os estudos sobre a aquisição da língua materna ocorrem há muito tempo, visto que foram preocupações de diversas correntes teóricas e são resultado de pesquisas em todo o mundo. Entretanto, quais são suas semelhanças e diferenças com o processo de aquisição de uma segunda língua (L2) ou de uma língua estrangeira (LE)? Para analisar esses processos, é preciso primeiro definir didaticamente segunda língua e língua estrangeira. Segunda língua não é a materna, mas tem uma importância reconhecida no território em que o falante vive. Dessa forma, esse falante convive com pessoas que também usam essa língua e tem a oportunidade de praticar a fala em momentos de interação com a comuni- dade linguística. A língua estrangeira, por sua vez, seria aquela desconectada de qualquer relação com o território do falante, isto é, sem relações com o estatuto social e geográfico. Assim, o aprendiz de LE costuma não conviver com outros falantes da língua que ele está adquirindo, de modo que a utiliza em situações de aprendizagem formal. Portanto, a diferença entre as duas línguas está, sobretudo, no contexto das situações de aprendizagem, ou seja, a quantidade e a qualidade de estímulos linguísticos e de oportunidades de variação serão fatores determinantes para classificar uma língua como segunda língua ou como língua estrangeira. Entretanto, há estudos que mostram a pouca influência do contexto no processo de aquisição da língua, por isso se utiliza o termo L2 para referência à língua não materna. Os problemas enfrentados pelo adquirente da língua materna são semelhantes aos enfrentados pelo adquirente da L2: ambos têm de encontrar sentido nas informações linguísticas e produzir um sistema que explique essas informações e que lhe permita compreender e produzir estruturas na língua. Além disso, as Fonologia e variação10 ferramentas de que esse aprendiz dispõe são as mesmas oriundas da gramática universal, de acordo com os teóricos da gramática gerativa. Aliás, o próprio comportamento criativo dos não nativos revela essa semelhança: assim como os falantes nativos, os aprendizes de segunda língua têm a capacidade de produzir e compreender formas e estruturas que nunca ouviram antes. Além disso, como a performance do falante depende também de faixa etária e do contexto, os problemas encontrados nas produções dos falantes não nativos são muito pare- cidos com as produções dos falantes nativos que são consideradas inadequadas. No entanto, há diferenças entre a aquisição da língua materna (L1) e da L2. Para começar, o aprendiz da L1 é exposto a ela desde os primeiros meses de vida, ao passo que o aprendiz de L2 começa seu processo de aquisição mais tarde, seja na infância, na adolescência ou na fase adulta. Por começar mais tarde, a aquisição da L2 sofre influência de fatores pessoais, como a forma pela qual o adquirente aprende, as estratégias utilizadas para essa aprendizagem e a própria motivação para a aquisição. Além disso, a língua materna produz efeitos diretos no processo de aquisição da língua não materna. Outra diferença interessante é que alguns aprendizes de L2 nunca alcançam o mesmo nível de proficiência de um falante nativo da língua. Mesmo assim, muitos estudiosos sobre o assunto defendem o ensino formal de L2, ao contrário do que ocorre com a L1. Blev-Vroman (1989, p. 43 apud MATTOS, 2000, p. 59) expõe oito diferenças fundamentais: Falta de sucesso (Crianças normais sempre atingem um perfeito comando do sistema linguístico da sua língua materna. O mesmo não se pode dizer de aprendizes adultos de segunda língua […]); Falência geral ([…] o sucesso completo é extremamente raro entre aprendizes adultos de L2 […]); Variação no sucesso, curso e estratégia (Entre crianças, o grau de sucesso na apren- dizagem, o curso da aprendizagem e as estratégias utilizadas são uniformes […]); Variação nos objetivos (Alguns desenvolvem muita fluência na segunda língua, mas atingem um baixo nível de competência; outros preocupam-se com a correção gramatical, embora não sejam muito fluentes; outros, ainda, podem preocupar-se mais com uma boa pronúncia ou com o desenvolvimento lexical […]); Fossilização ([…]aprendizes adultos atingem um determinado grau de desenvolvimento na L2 - bem inferior ao nível atingido pelo nativo - e depois permanecem estáveis neste nível […]);7. Importância da instrução (Crianças em fase de desenvolvimento da linguagem não necessitam de instrução formal para aprender sua língua. No entanto, há consenso quanto à influência positiva da instrução formal na aprendizagem de L2 entre adultos); Papel dos fatores afetivos (O sucesso da aprendizagem da língua materna entre crianças parece não ser afetado por fatores como personalidade, socialização, motivação e atitude. A aprendizagem de uma língua estrangeira por adultos, pelo contrário, parece ser altamente influenciada por tais fatores, ditos afetivos). 11Fonologia e variação Portanto, o aspecto idade é significativo no processo de aquisição de L2. É evidente que, para cada aspecto da competência linguística, pode haver limites etáriosdistintos. Todavia, sabe-se que o domínio da fonologia é maior em idades menores (alguns autores se referem aos 6 anos de idade). Outro aspecto que se destaca na aquisição da L2 é a influência da L1. A fonologia, juntamente com o léxico, é a área mais suscetível à influência da língua materna. O sotaque estrangeiro costuma identificar quem se comunica com a L2. Além disso, as características de pronúncia revelam qual é a língua materna do falante. Como revela Madeira (2017, p. 13): […] diversos estudos demonstram que existe uma correlação entre a regula- ridade e o grau de exposição à língua e o desenvolvimento da competência fonológica: num estudo realizado com falantes não nativos de inglês, Bongaerts et al (1995) verificaram que, aplicando métodos de ensino adequados e asse- gurando uma exposição prolongada e intensa à língua, é possível desenvolver um nível muito avançado de competência fonológica na L2, ultrapassando os efeitos de fossilização que seriam esperados em falantes que iniciam a sua exposição à língua na adolescência ou já em idade adulta. Assim, o que muitos dos trabalhos de investigação no domínio da aquisição da fonologia na L2 mostram é que, apesar do papel incontestável da influência da L1 neste domínio, é necessário considerar também outros fatores – tais como o tipo e a quantidade de dados linguísticos a que o aprendente tem acesso – se queremos compreender plenamente o modo como os falantes não nativos desenvolvem competência fonológica. O sotaque nativo permanece presente na comunicação em língua estran- geira, visto que ocorre uma transferência indevida dos padrões da L1 para a L2. Ou seja, são ativados padrões acústico-articulatórios idênticos ou seme- lhantes aos da L1 no lugar dos padrões da L2. Nesse sentido, o aprendiz da nova língua pronuncia os novos itens lexicais como se estivesse falando sua língua materna, isto é, como se fossem compostos de sequências de unidades acústico-articulatórias da L1. Os princípios dos sistemas alfabéticos da L1 e da L2 também contribuem para a transferência de pronúncia, de modo que línguas com o mesmo sistema alfabético, como o português, o espanhol e o inglês, por exemplo, não têm a mesma relação entre a representação gráfica e a produção de sons. Assim, a transferência grafo-fônico-fonológica revela a tendência, durante a fala ou a leitura oral em L2, de atribuir aos grafemas que compõem as palavras da L2 a mesma ativação fonético-fonológica que estes reforçariam durante a fala ou a leitura oral na L1. Fonologia e variação12 Evidencia-se, portanto, que a pronúncia adequada aos padrões da norma culta é altamente dependente da frequência de uso. Essa premissa serve tanto para a aquisição da língua materna quanto para a aquisição da língua estran- geira. Dessa forma, os aspectos fonológicos são cruciais para o desenvolvimento adequado da linguagem que comunica com eficiência. AMARAL, M. P. A síncope em proparoxítonas: uma regra variável. In: BISOL, L.; BRES- CANCINE, C. Fonologia e variação: recortes do português brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. DUBOIS, J. et al. Dicionário de linguística. São Paulo: Cultrix, 2006. FREITAS, M. J. Aquisição da fonologia em língua materna: a sílaba. In: FREITAS, M. J.; SANTOS, A. L. (org.). Aquisição de língua materna e não materna: questões gerais e dados do português. Berlim: Language Science Press, 2017. JAKOBSON, R. Child language: aphasia and phonological universals. Mouton: The Hague, 1968. LORANDI, A. Aquisição da variação: a interface entre aquisição da linguagem e variação linguística. Alfa: Revista de Linguística, São José Rio Preto, v. 57, n. 1, 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-57942013000100007. Acesso em: 18 ago. 2019. MADEIRA, A. Aquisição de língua não materna. In: FREITAS, M. J.; SANTOS, A. L. (org.). Aquisição de língua materna e não materna: questões gerais e dados do português. Berlim: Language Science Press, 2017. MATTOS, A. M. A. A hipótese da gramática universal e a aquisição de segunda língua. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 9, n. 2, p. 51-71, 2000. MATZENAUER, C.; COSTA, T. Aquisição da fonologia em língua materna: os segmentos. In: FREITAS, M. J.; SANTOS, A. L. (org.). Aquisição de língua materna e não materna: questões gerais e dados do português. Berlim: Language Science Press, 2017. MIRANDA, A. R. M.; VELOSO, J. Consciência linguística: aspetos fonológicos. In: BISOL, L.; BRESCANCINE, C. Fonologia e variação: recortes do português brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. WIETHAN, F. M.; NÓRO, L. A.; MOTA, H. B. Aquisição fonológica e lexical inicial e suas inter-relações. CoDAS, São Paulo, v. 26, n. 4, p. 260-264, 2014. Disponível em: http:// www.scielo.br/pdf/codas/v26n4/pt_2317-1782-codas-26-04-00260.pdf. Acesso em: 18 ago. 2019. 13Fonologia e variação