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Em Defesa dos Direitos Humanos

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" 7 t ô 5 7 t i» 3 Í S H T S"
nacionais epestrang
essenciais |o pensa
Sobdireçãcfcle Viceu
Matthias Kaufmann
Em defesa dos
DIREITOS HUMANOS
1 CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS E DE PRINCÍPIO
EDITORA UNISINOS
Matthias Kaufmann é autor, entre outras obras
de: Recht ohne Regei? [ 1988, traduzido em
espanhol), Begriffe, Sàtze, Dinge. Referenz
und Wahrheit bei Wilhelm von Ockham [ 1994),
Rechtsphilosophie (1996), Aufgeklãrte
Anarchie. Eine Einfuhrung in die politische
Philosophie (1999, traduzido em turco, italiano
e francês). É editor de: Integration oder
Toleram ? Minderheiten ais philosophisches
Problem (2001), fíecht aufRausch und
Selbstverlust durch Sucht. l/o/n Umgang
m/t Drogen in der liberalen Gesellschaft
(2003), Wahn und Wirklichkeit - Mu/t/p/e
Realitaten. DerStreit um einen Grundbegriff
der£rkenntnistheorie (2003),Zurechnung
ais Operationalisierung der Vercntwortung
(2004), Gattungsethik. Schutz fardas
Menschengeschlecht? (2005),Politische
MeWphysik. Die Entstehung mcderner
Rechtskonzeptionen in derSpanischen
Scholastik (200?). Édiretordacolecão
Treffpunkt Philosophie, editora Peter Lang.
Rainer Patriota, tradutor desta obra, é formado pelo
Departamento de Música da Unive'siclade Federal
da Paraíba, mestre em Filosofia pela Universidade
Federal da Paraíba e doutor em Filosofia (Estética)
pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Atualmente, é bolsista-pesquisador nas áreas de
filosofia da música e de estética cio Departamento
de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto.
É músico e tradutor.
EM DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS
Considerações históricas e de princípio
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS
Reitor
Pé. Marcelo Fernandes de Aquino, SJ
Vice-reitor
Pé. José Ivo Follmann, SJ
EDITORA UNISIHOS
x
2013.
Diretor
Pé. Pedro Gilberto Gomes, SJ
Conselho Editorial
Arma Maria Hecker Luz
Pé. Carlos Alberto Jahn, SJ
Luís Henrique Rodrigues
Maria da Graça Krieger
Pé. Pedro Gilberto Gomes, SJ
Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
EDITORA UNISINOS
Av. Unisinos, 950
93022-000 São Leopoldo RS Brasil
Tel.:51-35908239 | 51.35908238
editora@unisinos.br
www.edunisinos.com.br
EM DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS
Considerações históricas e de princípio
Matthias Kaufmann
Tradução
Rainer Patriota
Apresentação
Soraya Nour Sckell
EDITORA UNISINOS
Coleçáo Díke
© Matthias Kaufmann
2012 Direitos de publicação em língua portuguesa no Brasil cedidos sem ónus à
Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
EDITORA UNISINOS
K21 Kaufminn, Matthias, 1955-
Em defesa dos direitos humanos : considerações
históricas e de princípio / Matthias Kaufmann ; tradução
Rainer Patriota. - São Leopoldo : Ed. UNISINOS, 2013.
150 p. ;cm.-(Díke)
ISBN 978-85-7431-549-2
1. Direitos humanos. 2. Direitos humanos - História.
3. Direitos humanos - Filosofia. I. Título. II. Série.
CDD 341.48
CDU 342.7
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Bibliotecário Flávio Nunes, CRB 10/1298)
Coleção Díke
Sob direção de Vicente de Paulo Barretro
Editor
Carlos Alberto Gianotti
Tradução
Rainer Patriota
Editoração
José Luiz Dias da Silva
Revisão
Renato Deitos
Capa
Mari Pini
Impressão, inverno de 2013.
A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio, das páginas que compõem
este livro, para uso não individual, mesmo para fins didáticos, sem autorização
escrita do editor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura.
Foi feito o depósito legal.
SUMÁRIO
Apresentação
11 Introdução - A ameaça aos direitos humanos
Capítulo l
15 Por uma história dos direitos humanos
16 1.1 Os pródromos dos direitos humanos: a ressignificaçáo do
conceito de ius na Idade Média
22 1.2 Escravidão e servidão como desafios teóricos
22 1.2.1 A escolástica espanhola e a problemática da escravidão
28 1.2.2 Reforma e Guerra dos camponeses
30 1.3 Jusnaturalismo e Filosofia Política nos séculos XVII e
XVIII: a descoberta da liberdade
37 1.4 Primeiras institucionalizações dos direitos humanos: as
declarações e constituições do século XVII I e seus limites
39 1.5 Século XIX: questão social e crítica marxista aos direitos
humanos
43 l .6 O século XX e a crítica da opinião pública
Capítulo 2
45 Status, estrutura e fundamentação dos direitos humanos
45 2.1 Tipos e gerações dos direitos humanos
45 2.1.1 Direitos humanos e direitos subjetivos
47 2.1.2 As gerações dos direitos humanos
50 2.2 Entre direito, natureza, religião e moral: possibilidades de
fundamentação e modos de ser
54 2.3 Direitos humanos e dignidade humana
54 2.3.1 Sobre o conceito de dignidade humana
59 2.3.2 Conceito de pessoa e dignidade humana: uma
perspectiva secular
64 2.3.3 Direitos individuais e ética do género: Habermas c .1
proteçáo da natureza humana
MATTHIAS K A U F M A N N
Capítulo 3
77 Direitos humanos e Estado moderno
77 3.1 Direitos humanos e democracia
82 3.2 Direitos humanos e bem comum
90 3.3 Direitos das minorias, tolerância, integração
Capítulo 4
103 Propriedade e justiça
103 4.1 Um direito humano à propriedade?
107 4.2 Aspectos do conceito de justiça
111 4.3 Direitos humanos e justiça internacional
Capítulo 5
119 Direitos humanos: dependência cultural X transculturalismo
119 5.1 A acusação de ideologia e imperialismo
124 5.2 Questões epistemológicas
124 5.2.1 Incompreensão radical: ocaso de Schmitt
127 5.2.2 Incompreensão radical e o significado de
"compreender"
129 5.2.3 Cultura, regra, aplicação da regra
136 5.2.4 Compreensão jurídica e direitos humanos
138 5.3 Um direito à identidade cultural?
145 5.5 A violação dos direitos humanos em nome dos direitos
humanos: o uso internacional da violência como defesa
dos direitos humanos
APRESENTAÇÃO
O livro que o leitor tem em mãos sintetiza as teses que consagraram Mat-
thias Kaufmann como um dos mais importantes filósofos políticos de nossos dias.
De fato, a obra de Kaufmann, professor de ética na Universidade de Halle, tornou-
-se referência obrigatória não apenas nos estudos sobre Cari Schmitt e Guilherme
de Ockham, mas sobretudo em discussões sistemáticas em filosofia do direito,
filosofia política, direitos humanos e mesmo bioética. Em todas as suas obras, o
filósofo percorre com raro rigor e vasta erudição os clássicos do pensamento social
e político, para, enf im, apresentar suas teses - sempre de modo original, convin-
cente e profundamente argumentado - sobre questões contemporâneas cruciais
em debate com os mais conhecidos autores contemporâneos. O leitor pode assim
encontrar em sua obra um material ricamente instrutivo sobre a história das ideias
bem como uma visão crítica sobre o estado atual de discussão de temas centrais do
pensamento social e político.
E esta reflexão crítica e culta que caracteriza a obra Em defesa dos direitos
humanos - considerações históricas e de princípio, reunindo do Prof. Kaufmann pa-
lestras e artigos, dos quais alguns são originais, e outros, previamente publicados
no livro Diritti umani (Nápoles, 2009), foram retrabalhados para a presente edição.
Todo o manuscrito foi primorosamente traduzido pelo professor de filosofia Rainer
Patriota em português a partir do alemão, mesmo os que tiveram uma primeira ver-
são publicada em tradução italiana. É no intuito de decisivamente pôr fim a todos
os argumentos que questionam a legitimidade dos direitos humanos que o autor
reconstrói a história de seus conceitos centrais e enfrenta as questões as mais contro-
versas de nossos tempos a seu respeito. Assim, opondo-se à ideia de que os direitos
humanos são uma criação capitalista, o autor analisa, no primeiro capítulo, a histó-
ria conceituai dos direitos humanos, mostrando que seus conceitos primordiais re-
montam ao direito canónico do século XII e à "querela da pobreza" do século XIV;
8
MATTHIAS K A U F M A N N
estes conceitosdesenvolvem-se posteriormente, no século XVI, sobretudo no debate
jusnaturalista acerca da colonização da América do Sul e do escravismo, e são reto-
mados, adquirindo novo sentido, pelas reflexões sobre o direito natural e o direito
racional nos séculos XVII e XVIII. O segundo capítulo analisa os tipos de direitos
humanos, análise que, como no primeiro capítulo, também é feita historicamente.
Como o princípio cristão que os fundamenta na América e na Europa não pode
mais aspirar à validade universal, trata-se de investigar a. fundamentação dos direitos
humanos pela noção de natureza humana e de dignidade humana, particularmente
como esta aparece na bioética. Sobretudo a relação entre direitos humanos e dig-
nidade humana é então profundamente analisada. Nos três capítulos seguintes,
o autor combate outros argumentos recorrentes contra os direitos humanos. No
capítulo três, o argumento combatido é aquele que questiona os direitos humanos
por entender que eles entram em contradição com a democracia enquanto vontade
da maioria e com o bem comum. O caso de Estados que justificam a violação de
direitos humanos, como a tortura, por exemplo, em nome da defesa da democracia
e do bem comum, é o que Kaufmann mais resolutamente rejeita. A ideia de que os
direitos humanos contradizem a democracia entendida como vontade da maioria
decorre também do fato de os direitos humanos incluírem a proteçáo das mino-
rias. O autor insiste então numa concepção de democracia que compreende tanto
a legitimidade da vontade da maioria como a proteção das minorias. No capítulo
quatro, o autor contesta a tese de que os direitos humanos servem à manutenção
de privilégios e da propriedade, o que é contradito pelo princípio da igualdade. No
quinto capítulo, também é contestada a tese de que os direitos humanos seriam um
instrumento ideológico do Ocidente, tese ancorada na ideia de que um ser humano
não pode entender a estrutura moral e jurídica produzida em outro contexto cul-
tural. Os direitos relativos à identidade cultural não colidem, pois, com os direitos
humanos. Ao contrário, eles devem ser interpretados como o direito de todo ser
humano ao desenvolvimento de sua individualidade e personalidade, tornando-se
um risco quando interpretado no sentido de justificar em nome da "cultura", que
é geralmente a cultura de um grupo dominante sobre outro, a violação aos direitos
humanos. O autor discute, por fim, a controversa questão sobre a legitimidade do
emprego da violência em nome dos direitos humanos.
A excelente bibliografia brasileira sobre direitos humanos se concentra so-
bretudo na reflexão normativa, legislativa e jurisprudencial, nas análises empíricas
A P R E S E N T A Ç Ã O
de violação aos direitos humanos, e na discussão sobre a contribuição singular de
certos autores. C) livro de Kaufmann se diferencia por percorrer de modo abso-
lutamente inédito os clássicos do pensamento sobre os direitos humanos e pela
discussão engajada com os autores contemporâneos principais, instruindo assim
os leitores - profissionais, estudantes e autores na área de filosofia, ciência políti-
ca, direito, sociologia, antropologia e história - acerca das estações fundamentais
referentes ao tema c oferecendo-lhe um ponto de vista crítico em suas questões as
mais controversas, como a relação com a democracia, a propriedade, os direitos das
minorias, a violência feita em nome da proteçáo dos direitos humanos etc.
Este livro é muito mais do que um tratado sobre os direitos humanos. É
um manifesto pela justiça e para que seja cumprido o direito de cada um a uma
vida digna. Mas é também um manifesto de revolta e indignação face às ofensas
aos direitos humanos e aos sofrimentos que destas ofensas resultam. O tom cien-
tífico não nos deve enganar - o texto expressa uma paixão pela humanidade e um
desejo pungente de d iminu i r seus fardos realizando justiça. Interdisciplinar no
seu enfoque, cosmopolita nas suas referências e no seu escopo, Kaufmann ergue
sua voz onde quer que entenda haver uma violação aos direitos humanos. Com o
vigor de quem participa de uma luta - Em defesa dos direitos humanos é uma luta -
Kaufmann percorre toda a história do conceito e todos os debates contemporâneos
sobre o tema a fim de afirmar a superioridade absoluta dos direitos humanos sobre
qualquer outro critério de justiça ou justificação política. O livro, cultivando o de-
bate com os grandes pensadores, revela ser a defesa dos direitos humanos a síntese
de todos os valores de justiça pelos quais se luta há séculos.
É um livro que conta sobre o que hoje somos e como somos - de como
nasceram nossas aspirações - e também sobre aonde queremos chegar. O Prof.
Kaufmann quer assim recordar a todos os cientistas sociais e das humanidades que
os direitos humanos são o objetivo supremo para o qual devem convergir todos
os esforços de nossos pensamentos e de nossas ações. E um convite para lutarmos
junto com ele em defesa dos direitos humanos.
Soraya Nour Sckell*
OotHora cm Dire i to In te rnac iona l pela USP c cm Filosofia pelas universidades de Frankíurt c Nantcrrc.
F investigadora da Fundação para a Ciência c a Tecnologia de Portugal junto ao Centro de Estudos Ob-
scrvare da Universidade Autónoma de Lisboa e docente desta ins t i tu ição e da Universidade Portucalense.
INTRODUÇÃO
A AMEAÇA AOS DIREITOS HUMANOS
Os homens erguem palácios e monumentos aos direitos humanos, de-
dicam ruas aos direitos humanos... passam por cima dos direitos humanos.
De fato, não é raro que sistemas normativos e profissões de fé — e os direitos
humanos par t i lham um pouco de cada — sejam simultaneamente proclamados
e violados. Na maioria das vezes, as normas jurídicas são promulgadas para que
a sociedade se veja livre de determinados fenómenos indesejáveis. Já no caso das
profissões de fé, uma de suas funções sociais é estabelecer um plano comum
de entendimento e consenso. Alguns a levam a sério e a defendem efetivamen-
te, outros expressam uma adesão meramente verbal. Seus benefícios à imagem
moral também acabam sendo um ótimo convite à hipocrisia. Em alguns casos,
essa hipocrisia é exercida com perfeição justamente por aqueles que se arvoram
os protetores da fé. Maquiavel assim descreve o papa Alexandre VI: "Alexan-
dre VI não pensou e não fez outra coisa que enganar os homens. [...] Jamais
existiu homem que possuísse maior segurança em asseverar, e que afirmasse
com juramentos mais solenes, o que, depois, não observaria"1. Vários críticos
também sugeriram um vínculo entre a Guerra do Iraque em 2003 - levada a
cabo também sob a justificativa de fazer valer os direitos humanos - e os inte-
resses económicos das lideranças políticas2.
O paralelo, ou melhor, a comparação entre os direitos humanos e as
profissões de fé religiosas é um artifício bastante sedutor, e que tanto pode
obscurecer a visão do problema quanto, a uma consideração mais aproximada,
1 N. Maquiavel. (}pnnupf, t rad. Lívio Xavier. Rio de Janeiro: Abril, 1973, p. 80 (Os Pensadores).
2 P.. Woodward. Huifi rm guerra. São Paulo: Arx, 2003; e: Id. Plano d( ataque. Trad. Cid Knipe l . San
Paulo: Globo, 200-4.
12
MATTHIAS K A U F M A N N
lançar alguma luz sobre ele. Cari Schmitt, nos anos 20, já rebateu a acusação
de Proudhon - "quem diz Deus quer enganar" - com a paráfrase: "quem diz
humanidade quer enganar"3. Decerto, não apenas a fé religiosa, mas também
a luta pelos direitos humanos pode ser utilizada abusivamente para fins de cál-
culo político. No entanto, em primeiro lugar, é muito mais fácil verificar se
um homem foi vítima de torturas, desterro, falta de assistência ou preso sem o
julgamento de um tribunal, do que se agiu de forma condizente corn a vontade
de Deus ou contrariamente a ela. Em segundo lugar, num plano elementar, os
homens se assemelham muito em suas necessidades, esperanças e medos4, ao
passo que o credo das religiões reveladas pode destoar drasticamente entre si.
O verdadeiroproblema dos dias de hoje, a verdadeira ameaça aos direitos
humanos nessas décadas iniciais do século XXI, não reside na hipocrisia prati-
cada em seu nome, mas no fato de que muitos ainda ignoram tais direitos ou,
pelo menos, não lhes dão importância. Em determinados países, como China e
inúmeros países árabes, direitos como liberdade de opinião e de imprensa ainda
nem foram introduzidos; já em outros, como na Rússia de Putin, eles sofreram
um considerável retrocesso. E chama a atenção que isso tenha ocorrido aparen-
temente com o consentimento, ou, no mínimo, sem a resistência de uma ampla
camada da população. Para muitas pessoas, a prosperidade económica - ou pelo
menos a esperança de consegui-la - parece pesar mais que as distintas confi-
gurações dos direitos humanos. Os acontecimentos de 2011 no mundo árabe
mostraram que esse suposto pacto contra os direitos civis e de liberdade não está
necessariamente ligado a determinadas identidades regionais ou culturais.
A crítica aos direitos humanos, tão ao gosto desses regimes, consiste ba-
sicamente em afirmar 1) que os direitos humanos são historicamente contin-
gentes e por isso não possuem validade universal; 2) que são decorrentes do
medo burguês diante da ameaça à propriedade e aos privilégios de sua classe,
portanto, expressão de um pensamento egoísta e individualista, incompatível
com os valores comunitários da tradição. Por essa razão, toda uma parte deste
livro será dedicada à pré-história dos direitos humanos, com o que se pretende
r
3 C. Schmitt, Staatscihík und pluralistischcr Staat, ín: Positionen una Begriffe im Kampfmil Weimar-
Genf- Vfríaillfs, Hamburg, 1940, p. 143-
4 Cf. M. Nussbaum, FrontiersofJustice, Cambridge/Mas., Harvard UniPress, 2009, p. 69ss.
13
INTRODUÇÃO - A A M E A Ç A AOS D I R E I T O S H U M A N O S
mostrar, em primeiro lugar, que o vocabulário hoje utilizado é, decerto, de
origem contingente, mas provavelmente remonta mais ao direito da igreja do
século XII e à "querela da pobreza" do século XIV que ao capitalismo do século
XVII. Um momento essencial de seu desenvolvimento posterior foi aquele co-
nexo a uma primeira forma de economia global, à sua juridicidade e moralida-
de, vale dizer, ao debate jusnaturalista do século XVI acerca da justificação da
colonização - especialmente a da América do Sul - e do escravismo, de alcance
mundial. Uma parte essencial dos conceitos e topai argumentativos aí criados
voltaram a ser discutidos — de forma crítica ou afirmativa - nos conhecidos
debates sobre o direito natural e o direito racional dos séculos XVII e XVII I . Eis
um exemplo paradigmático de que as construções jurídicas criadas pelas ins-
tâncias de poder podem, no longo prazo, acabar agindo a favor dos oprimidos e
dos "invisíveis", na medida em que os elevem a uma posição jurídica.
Outra seçáo desse breve esboço histórico — delineado no primeiro ca-
pítulo - procura, por um lado, pontuar as estações principais do processo de
formação dos direitos humanos, e tenta, por outro, contemplar aspectos menos
discutidos nas narrativas correntes, a exemplo do significado de Spinoza como
um precoce defensor dos direitos das mulheres e a duvidosa honestidade argu-
mentativa de Marx na sua polémica contra os direitos humanos.
Para possibilitar uma relação clara com a dimensão conceituai dos di-
reitos humanos, o segundo capítulo, que introduz a reflexão sistemática, dis-
tingue os tipos de direitos humanos que, de certa forma, também obedecem a
uma sucessão cronológica, tendo sido reivindicados mais ou menos dentro de
uma l inha temporal evolutiva (2.1). Investigaremos, em seguida, os possíveis
mecanismos de sua fundamentação, uma vez que, na Europa e na América,
o princípio cristão, vigente por séculos, não pode mais aspirar a nenhuma va-
lidade universal (2.2). Neste contexto, torna-se relevante a referência a uma
natureza humana, suposta até certo ponto, mas também à noção de dignidade
humana tal como ela emerge claramente no debate sobre a ética na medicina,
sobre a pesquisa com embriões etc. (2.2).
No que tange às relações dos direitos humanos com o Estado moderno,
é preciso antes de tudo desmentir certos rumores de que estes se encontram de
algum modo em oposição conceituai à democracia. A verdade é que somente
o princípio da igualdade entre os homens - estreitamente ligado aos direitos
14
MATTHIAS K A U F M A N N
humanos - possibilitou o surgimento de uma democracia no seu sentido atual
(3.1). Além disso, é um erro, como já se mencionou, acusar os direitos humanos
de constituírem um obstáculo sério ao bem comum. O principal motivo pelo
qual hoje em dia as autoridades invocam o bem comum para defender algum
tipo de violação aos direitos humanos é o uso da tortura, contra o qual. se
voltaram todos os pensadores do Estado de direito desde o século XVII e cuja
aceitação implicaria a própria supressão do Estado. Provavelmente, a lenda da
oposição entre democracia e direitos humanos é decorrente de uma ideia ine-
rente aos próprios direitos humanos, a saber, a da proteção das minorias. Mas
acontece que é essencial à democracia assegurar tanto a legitimidade da decisão
da maioria quanto a lealdade das minorias. O que até hoje permanece polémico
é saber até que ponto se deve conceder direitos particulares às minorias, a fim
de, com isso, compensar certas desvantagens (3.3).
Diante da crítica de que a função primordial dos direitos humanos seria a
proteçáo de privilégios e da propriedade, há que observar que o conceito aqui ex-
posto de propriedade, enquanto aquilo que está além do necessário para viver (Le-
bensnotwendigè), se deixa legitimar antes por suas vantagens para o bem comum
que por meio dos direitos humanos (4.1). Neste contexto, os direitos humanos
entram em cena apenas quando, ao lado do bem comum, o segundo princípio de
justiça, ou seja, a igualdade, encontra uma aplicação global (4.2; 4.3).
Na discussão sobre a questão da dependência cultural ou da universali-
dade dos direitos humanos, é preciso considerar tanto a indicação de sua con-
tingência quanto a acusação segundo a qual eles "nada mais seriam que" um
instrumento de luta ideológica criado pelo "Ocidente" (5.1). De resto, a tese
de que um homem não poderia compreender a estrutura moral e jurídica de
uma cultura a ele estranha - e por isso também não poderia julgá-la com base
nos critérios de respeito aos direitos humanos -, tal tese representa, para nós,
um grande desafio moral e intelectual (5.2). Os direitos relativos à identidade
cultural, às vezes referidos como direitos de terceira geração, podem representar
um enorme potencial de risco social quando interpretados numa chave agressi-
va e não como consequência do direito de todo homem ao desenvolvimento de
sua individualidade e personalidade (5.3). Queiramos ou não, também é inevi-
tável enfrentar a questão de saber sob quais circunstâncias é legítimo aplicar a
violência para defender os direitos humanos (5.4).
Capítulo l
POR UMA HISTÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS
No que tange à reflexão sobre os direitos humanos, o exame, ainda que
breve, de sua história reveste-se também de importância sistemática. Afinal, fo-
ram justamente as especulações sobre a origem dos direitos humanos que, tra-
dicionalmente, forneceram os argumentos para a polémica lançada contra eles.
Normalmente, fala-se dos direitos humanos como de um instrumento a serviço
da ganância de lucro dos proprietários burgueses em face do Estado, ou, dito
de outro modo, da comunidade política. Donde a pretensão de que suas ori-
gens remontem aos autores "burgueses" da "propriedade individual" dos séculos
XVII e XVII I . Michel Villey, ao contrário, entende o princípio de um direito
subjetivo - a que estaria subordinado o dos direitos humanos - como produto
do nominalismo medieval, vale dizer, como obra de Guilherme de Ockham.
Este, ao determinar o direito como licitapotestas, teria produzido uma "revoluçãosemântica" e preparado o caminho para que a concepção medieval dos direitos
como ordem racional e objetiva do mundo cedesse lugar a uma interpretação dos
direitos como uma ordenação posta pela força (gewaltsamer Sftzung)1. Em se tra-
tando de uma consideração sistemática dos direitos humanos, o fato de ambas as
leituras serem, no mínimo, incompletas, demonstra que por tais caminhos não
se pode fundamentar a vinculação comumente pressuposta dos direitos humanos
com o egoísmo e a ganância de propriedade e poder.
No que se segue, trataremos mais detalhadamente daqueles aspectos
dos direitos humanos deixados em segundo plano pela literatura de referência.
Sem a pretensão de completude ou mesmo de uma ordenação causal exata,
C li Macphcrson, Irariapolítica da individualismo possessivo de Hobbes a Locke, Rio de Janeiro. Piz
c U-rra. 1979; p. I3s<. . 172ss., 250ss.; Michel Villey, A formafáo do pensamento jurídico moderno, -São
P.iulo. M a r t i n s l-Onics. 2005, p. 248ss., 261, 267.
16
MATTHIAS K A U F M A N N
algumas das múltiplas raízes desta construção tão particular serão enfocadas
aqui justamente em seus começos menos visíveis.
1.1 Os pródromos dos direitos humanos: a ressignificação do
conceito de ius na Idade Média
Na medida em que os direitos humanos sabidamente pertencem aos di-
reitos subjetivos, é coerente que se busque no surgimento deste conceito a origem
histórica daqueles. Apesar de só ter se desenvolvido plenamente no século XIX,
o termo "direito subjetivo", via de regra, é utilizado quando uma pessoa natural
ou de outra espécie faz alguma reivindicação (ou alguma lhe é imputada), repor-
tando-se a normas jurídicas e empregando termos como ius ou expressões equi-
valentes. Acerca das raízes históricas dos direitos na Europa, é legítimo dizer que
não consta, nem da tradição grega ou hebraica, nem do direito romano, qualquer
coisa equivalente a um discurso sobre direitos subjetivos. O Ius - direito - fora
até então compreendido como norma objetiva das relações2. O direito natural,
diferentemente do direito humano, representa uma ordem perfeita, universal-
mente válida, imune a circunstâncias acidentais de caráter espaçotemporal. A
falta de um discurso sobre direitos subjetivos ou algo parecido não significa que a
ideia da dignidade humana fosse necessariamente desconhecida na Antiguidade.
Muitos autores reconhecem pressupostos desse tipo na ética estóica, por exem-
plo. Sêneca atribui um preço aos bens corporais, mas não uma dignidade, já que
esta diz respeito somente aos bens de ordem moral e, consequentemente, como é
válido inferir, também aos possíveis portadores desses bens, a alma humana3. En-
tretanto, não era esta a conotação principal da palavra ius e nem das expressões
2 Richard Tuck, NaturalRights Theories, Cambridge, 1979, p. 8ss.; Brian Tierney, Tht IJea of Natural
Rights, Grand Rapids/Mich. & Cambridge/U.K., 1997, p. 15s., 45s. As citações seguintes dos escritos
e das sumas dos canonistas encontram-se nesta obra, às p. 58-76; R. Weigand, Dir Natumchtslehre
der Legisten und Dfkreíisten von Irneriuí bis Accursius undvort Gratian bisjohannes Teutoniciís, Miin-
chen, Hubner, 1967.
3 L. Aneu Sêneca, Cartas a Lucílio LXXI, 33: "corporum autem bona corporibus quidem bona sunt .
sed in totum non sunt bona. His pretium quidem erit aliquod, ceterum dignitas non erit" ["os pra-
zeres do corpo, de fato, fazem algum bem para o corpo, mas não são inteiramente bons. Eles têm o
seu preço e, ademais, carecem de dignidade"].
17
P c ) R D M A H I S T Ó R I A D O S D I R E I T O S H U M A N O S
similares em outras línguas. O discurso sobre o ;'«jcomo direito subjetivo parece
surgir no contexto das tendências gerais do século XII em prol da individuação e
da subjetivação, num tempo em que, em consequência das mudanças sociais, as
reivindicações tradicionais de direitos começavam a se tornar controversas.
Um papel de destaque ficará a cargo da intensa discussão sobre os direitos
da igreja, iniciada antes da renovação da tradição legista e jurídico-civil do direito
romano. O Decretum Gratiani (na verdade: Concorãantia discordantium canonum,
cerca de 1140) põe em ordem uma massa confusa e obscura de direitos acumula-
dos pela igreja ao longo dos séculos. Nele e, sobretudo, nas glosas redigidas sobre
ele, nota-se uma mutação semântica do conceito de direito natural, que elimina a
ideia de uma ordem universal que a todos dominaria, no sentido da lexaeterrui [lei
eterna] estóica, e incorpora, em seu lugar, a ideia de uma faculdade própria do ho-
mem para decidir entre o certo e o errado (da suma inglesa In nominc: "[...] dicitur
ius naturale habilitas quedam qua homo statim est habilis ad discernendum inter
bonum et malum" ["diz-se que o direito natural é uma habilidade pela qual o ser
humano de imediato se torna capaz de discernir entre o bem e o mal"]).
De tato, no contexto da tradição estóica, essa capacidade de decisão é
vista também sob a ótica do jusnaturalismo4. Entretanto, com os decretalistas,
os pesos se deslocam, uma vez que as prescrições universais - para nós a parte
relevante de uma lei universal que se impõe a todos - não representam mais o
núcleo semântico, mas sim um emprego derivado do ius naturale, ficando atrás
até mesmo do terceiro emprego do termo: iura como necessidade vital, compar-
tilhada com os animais.
Muitos autores estiveram cientes da possível inconsistência que poderia
resultar de um emprego sem limites dos diversos significados do ius naturale.
Assim, Hugúcio (1130/40-1210), membro da escola de Bolonha, na sua summa
do Decretum, começa observando que, neste texto, nem todos os exemplos do
ius naturale referem-se ao mesmo significado, coisa que o bom leitor, a seu ver,
deverá rapidamente perceber. "Iremos indicar tudo com tal cuidado, que nem o
espírito de um idiota ficará confuso" ("Sed ne ydiote animus in hoc confunda-
tur, de quolibet diligenter assignabimus").5
4 C!f. a inda Tomás de Aquino, Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2006, v l (Ia Ilac qu. 91 art . 2).
1 /I/WB. TKTIICV, The Idta of Natural Righti, cit., p. 61.
18
MATTHIAS K A U F M A N N
Assim como no direito romano, também entre os canonistas existe, ao lado
dos mandamentos e das proibições, o âmbito das permissões, uma espécie de zona
autónoma, onde é pessoal a decisão de se fazer ou não alguma coisa, mas que, ape-
sar disso, vem colocada numa conexão com o direito natural (assim reza a suma
In nomine: "Secundo modo dicitur ius naturale licitum et approbatum quod nec
a Domino nec constitutione aliqua precepitur prohibiturve" ["Segundo se diz, o
direito natural é um direito lícito e aprovado que não é prescrito nem proibido
nem pelo Senhor nem por qualquer constituição"]). Formulações semelhantes se
encontram, séculos depois, em Christian Wolff, ao passo que em Kant a "lei de
permissão" recebe conotações diferentes6. Parece ser mais ou menos este o contex-
to em que, com Gottfried Achenwall, o termo "direito subjetivo" faz sua primeira
aparição. Após distinguir as ações moralmente impossíveis das moralmente possí-
veis e moralmente necessárias, ele estabelece o seguinte: "uma capacidade física do
homem, desde que não atente contra nenhuma lei moral, é sua capacidade moral,
e é chamada, numa palavra, direito [...] aqui a palavra ius é tomada em sentido
subjetivo, como o que diz de uma qualidade da pessoa"7. Apesar da diferença de
contexto, especialmente em relação ao conceito de sujeito, fala-se aqui de direito
subjetivo, na medida em que se trata de "capacidades físicas" e outras semelhantes.
Entre os canonistas isso aparece no contexto da terceira forma de manifestação do
direito natural divino, as chamadas demonstrationes. Estas "indicações" informam
sobre o que é bom e permitido, como, por exemplo, a propriedade comunal de to-
dos e a liberdade natural de todos. Diferentemente dos mandamentos e proibições
do direito natural, elas podem ser sobrepostas pelo direitopositivo.
A liberdade e a participação na propriedade comunal, nas demonstratio-
nes, junto com a esfera do direito, sempre foram colocadas sob a égide do lícito,
e talvez por isso ou por conta de uma tendência geral do século XII à subjeti-
vação, ambos foram paulatinamente se convertendo em reivindicações naturais.
Cf. C. Wolff, Institutioneí júris naturae etgentium, in: Gesammelte Werke, secão 2, v. 26, 1.1.46, p.
22s.: "Lex naturae [...] permissiva, quae jus dat ad agendum, ad quod agendum tantummodo jus
habemus, licitum dicitur"; sobre Kant cf. M. Kaufmann, Was erlaubt das Erlaubnisgesetz und wozu
bríuchíesKumíJahrkuchftirKechtutiJEM/r.v. 13, 2005, p. 195-219.
G. Achenwall, Proltfomena lurís Naturalis, 3. ed., Halle, 1767, § 44, p. 37: "Facultas hominis physi-
ca, quatenus nulli legi morali contraria est, est eius facultas moralis, et uno verbo ius appcllatur (...],
vocábulo iuris sumto subjective hoc est pró affectione personae".
19
P()R U M A H I S T Ó R I A D O S D I R E I T O S H U M A N O S
Isso compreende ainda uma modificação em relação à esmola, que deixa de ser
um simples dever imposto aos ricos por determinação natural para se tornar um
direito natural dos pobres relativamente ao surplus dos ricos, muito embora, nessa
época, inexista um direito à posse reivindicável de forma legal. Em Hugúcio, ele
é "ainda um tipo obscuro de direito (still a shadowy sort ofrighi)"*, não obstan-
te, por volta de 1200, Alano de Lille já afirme que o pobre não comete roubo,
pois ele apenas obtém o que lhe assegura o ius naturale; e Ostiense já formula o
mainstream da jurisprudência medieval, ao sublinhar, em sua Lectura dos V libras
Decretalium, que, aquele que age em estado de necessidade mais parece fazer um
certo uso de seu direito que planejar um furto ("potius videtur is qui necessitarem
patitur uti iure suo quam furti consilisum inire"). Além disso, vigoram no direito
da igreja, desde mais ou menos 1200, as chamadas denúncias evangélicas, onde
alguém em estado de extrema miséria pode recorrer ao episcopado, de modo que
o bispo, se necessário, por meio da excomunhão, pode obrigar um rico obstinado
a entregar o que possui em excesso.
Um servo liberto, além disso, segundo a concepção de algumas glosas,
não é aquele que goza de uma liberdade nova em sua vida, mas sim aquele que
apenas reconquista uma liberdade da qual esteve privado temporariamente pelo
direito positivo. Essa concepção de um direito próprio do homem enquanto
homem à liberdade e aos meios de vida — embora aqui ele ainda seja atribuí-
do sem nenhuma exigência política direta - iria desaguar, através de algumas
mediações, na formulação dos direitos humanos tal como hoje a conhecemos.
Essa discussão se estende também, por exemplo, ao direito do papa de interferir
na eleição dos bispos (ius potestatis eligerè) e a outros tipos semelhantes de rei-
vindicação de direitos particulares. No direito subjetivo encontramos desde o
começo, portanto, duas vias de leitura: direito como reivindicação de alguma
coisa concedida através de uma dada ordem - mais precisamente, o controle
sobre alguma coisa, concedido através dessa ordem; e autorização, válida po-
tencialmente contra o direito positivo, para garantir a vida e a liberdade. Nem
sempre estes dois tipos de direitos podem ser separados com clareza. Assim,
acordos que originalmente servem para assegurar os direitos e as liberdades de
determinados grupos e classes sociais - o mais conhecido e talvez o primeiro
8 B. Ticrncy. The l/Ira of Natural Righu, cil., p. 110.
20
MATTHIAS K A U F M A N N
documento deste tipo seja a Magna Cana de 1215 - serão interpretados no de-
correr dos séculos como manifestação de direitos universais dos homens livres9.
Um dos primeiros a realmente tentar separar de forma precisa o direito
objetivo do subjetivo, empregando de forma mais ou menos consequente o termo
ius para o direito subjetivo e lex para o direito objetivo, é Marsílio de Pádua. Ele es-
clareceu esta diferença no 12° capítulo do segundo discurso do seu Defensor Pacis,
ao manter separados os diferentes significados do termo "direito" (ius). Primeira-
mente, a palavra foi empregada para um tipo específico de lei10, outra vez, fixada
para todo tipo de açáo humana, toda capacidade e hábito pelos quais alguma coisa
é obtida, usada, conquistada e mantida, de acordo com o direito no sentido pro-
priamente dito". Além disso, Marsílio distingue entre um direito a que é possível
renunciar, por exemplo, o direito a posse (dominium) sobre coisas distintas, e outro
tipo de direito, aquele cuja renúncia representaria uma infraçáo das leis divinas,
na medida em que levaria o homem a um tipo de morte - este direito é o direito
à alimentação e ao vestuário12. A condição de ser irrenunciável (irrenunciabiU) e
inalienável (inalienabile) poderia constituir, ainda hoje, características aplicáveis
também aos direitos humanos, que, por isso mesmo, se diferenciam dos demais.
Muitas vezes os escritos políticos de Guilherme de Ockham foram vistos
como exemplos de uma teoria política cujo fundamento é a aceitação de direi-
tos individuais pré-estatais, dos quais pelo menos o direito de autossustento
deveria ser visto como irrenunciável13. É óbvio que, por razões diversas, estas
teses precisam ser tratadas com cautela, uma vez que, em primeiro lugar, não é
fácil reconstruir uma teoria completa a partir dos escritos de Ockham, que, até
certo ponto, esteve voltado para polémicas de cunho político; em segundo lu-
gar, porque este tema é apenas um dentre muitos presentes nos escritos políticos
de Ockham. Porém, é digno de nota que, daqueles autores mais conhecidos,
Ockham seja o primeiro a ter estabelecido uma efetiva diferença entre o direito
humano natural e o direito positivo.
9 G. Oesrreich, Geschichte der Memchenrcchie una Grundfrdhcitcn im Umrifl, 2. cd., B c r l i n , 1978, p,
25ss.
10 Marsílio de Pádua, Difemor Pacis 11.12 §4 (ed. Scholz, Hannover, 1932, p. 264).
11 ibid., p. 269.
12 Ibid., p. 277; p. 279.
13 B. Tierney, The lata ofNatural Rights, cit., p. 281ss.
21
P O R U M A H I S T Ó R I A D O S D I R E I T O S H U M A N O S
Ele desenvolve esta diferenciação em reação ao que o papa João X X I I
afirma na bula Quia vir reprobus (1329), no auge da discussão teórica em torno
da "querela da pobreza" travada entre a ordem franciscana e a cúria, a saber,
que o uso de um objeto implica um direito de uso (ius utendi)". Pelo uso e
consumo de coisas util izadas por eles, os franciscanos imputaram ao ponto
de vista de João a reivindicação de um direito de uso. Ockham reagiu a isso
com uma diferenciação conceituai entre um direito de uso positivo e um na-
tural. Todo homem, diz Ockham, tem um direito de uso natural que não lhe
dá, entretanto, um direito permanente de uso. Aqueles que abdicaram de seu
direito de propriedade, seja individualmente, seja de forma coletiva, como os
franciscanos, mantêm seu direito de utilizar coisas alheias em caso de necessi-
dade extrema. A este não se pode de modo algum renunciar. Ao contrário, uma
autorização que seja outorgada a um homem por meio de outro pode ser revo-
gada, mesmo na ausência de qualquer atitude culposa por parte do interessado.
Postulando para todos os homens a reivindicação de direitos naturais e
irrenunciáveis à conservação da vida, Ockham consolida um importante passo
em direção à admissão de direitos humanos inalienáveis. Entretanto, no caso
do necessário à vida, os direitos humanos e o direito de apropriação coincidem.
O quanto essa concepção foi influente é evidenciado pelo fato de o próprio
Hobbes ainda defender um direito inalienável de todo homem ao necessário
para viver'\r outro lado, o direito positivo de propriedade, já em Ockham,
não pertence aos direitos irrenunciáveis. Os direitos de posse, concebidos como
privilégios, podem vir a ser cassados a qualquer hora pelo príncipe, que não está
submetido a suas leis (legibus suis est so/utus).Ockham reconhece não apenas o
direito à autoconservação, mas estabelece também o direito do homem tornar
armas contra formas tirânicas de governo.
Também relevante para a discussão posterior foi o debate em torno do con-
ceito de dominium, que, em seu duplo significado, foi usado tanto como "domí-
nio" quanto como "propriedade". João X X I I defenderia, mais tarde, a visão de
14 A bub Quia vir rcprobus é reproduzida l i tera lmente na resposta df Ockham k f Ocklum. ()pfr,j
Política, l e H, Matuhester. 1963, cap. 61. Op. II, p. SSHss.).
15 C'f. T. Hobbes, />« i siiadão, t rad. Renato J an inc Ribeiro. São Paulo: M a r t i n s !:onlcs. 2002. f a p l \-\,
P. 63.
22
MATTHIAS K A U F M A N N
que o dominium, o direito de posse de um homem sobre o que é seu, seja igual
ao dominium de Deus sobre o mundo. Se Adão, antes da criação de Eva, exercia
o dominium isolado sobre as coisas terrenas, de onde decorreriam, através das ge-
rações, todas as posses atuais, a posse privada segundo as leis de Deus pertence
inevitavelmente à natureza do homem. Já Ockham fez valer como dominium no
sentido de "propriedade" apenas aquilo que pode ser reivindicado legitimamente
diante de um tribunal terreno, com isso fazendo da propriedade produto da con-
venção humana16. De fato, os pais primordiais possuíam no paraíso um tipo de
dominium sobre os animais e as plantas, mas eles podiam exercer este dominium
sem nenhuma resistência destes e, portanto, sem uso da coerção, do mesmo modo
que os anjos às vezes conduzem os homens17. Esse tipo de dominium só é relacio-
nado ao instituto jurídico da propriedade por meio de um equívoco. Após a queda
do homem no pecado, um dominium sem coerção, de fato, deixa de ser possível.
1.2 Escravidão e servidão como desafios teóricos
1.2.1 A escolástica espanhola e a problemática da escravidão
A diferenciação conceituai na "querela da pobreza" desempenhou um pa-
pel essencial no interior da escolástica espanhola, em particular, no que tange à
discussão sobre os direitos dos índios da América do sul. Por um lado, pratica-
mente todos os mestres da escolástica espanhola se referiram a esse debate; por
outro, ele enriquece a terminologia de elementos que futuramente serão decisivos
para a discussão sobre os direitos humanos. Em certa medida, essa transforma-
ção surge nos quadros da intensa discussão que, por um lado, forneceria, segun-
do as regras universalmente válidas do direito internacional, uma justificação do
status quo, isto é, da conquista da América do Sul e da posse de escravos, e que,
por outro, não ficaria insensível à ampla injustiça diante da qual alguns teóricos
não quiseram se acomodar incondicionalmente. Em algumas dessas obras, não
16 G. de Ockham, Opus nonaginta dicrum, (ed. Opera Política), v. II, cap. 26, p. 484.
17 Ihid., cap. 14, p. 434.
23
P O R U M A H I S T Ó R I A D O S D I R E I T O S H U M A N O S
fica claro se seu conteúdo consiste em uma apologia revestida de uma crítica aos
excessos ou numa crítica fundamental revestida de uma apologia.
Por muito tempo foi tida como uma questão decisiva saber se os índios
eram proprietários legítimos de suas posses, pois, caso o fossem, ninguém teria
o direito de subtraí-las. Uma discussão bastante citada a esse propósito é a que
versa sobre o conceito de dominium em Domingo de Soto (1494-1560). Sob a
influência de Jean CIcrson, ele define a propriedade da seguinte forma:
A propriedade (dominium), por isso, é uma faculdade (facultas) própria
a qualquer um, expressando o direito (ius) que uma pessoa tem de poder
utilizar-sc (usurpare) de uma coisa qualquer para a sua própria comodidade
e para qualquer finalidade por meio da lei (quociimque ttsu lege fermesso)".
De Soto dist ingue um uso político e um uso segundo o direito privado
do conceito de dominium: na medida em que nenhum dominium é admitido
na esfera política, um domínio (Hemchafi) no sentido de "possuir" deveria ser
definido como despótico.
De Soto afirma que stricto sensu não se poderia falar de um domínio do rei
sobre seus súditos, mas só de sua iurísdictio. A confusão entre os dois âm-
bitos i- .1 transposição do conceito de dominium do âmbito "doméstico" ou
privado ao âmbito político era, de fato, fonte de equívoco, porque não ga-
rantia a esfera da propriedade e da liberdade dos cidadãos. Que o imperador
possa ser dominus totius orbis no primeiro sentido é tida como uma daquelas
opiniões tão insanas que, como diz o filósofo, não merece ser discutida. De
rato, nem mesmo as coisas do rei de Castela são sua propriedade privada'".
O absolutismo, pelo menos na sua versão mais radical, não estava pronto
para aceitar esta divisão. Para Kant, por sua vez, o pensamento de um domi-
nium sobre si mesmo segundo o direito privado não é compatível com o direito
da humanidade na própria pessoa'0.
Note-se que De Soto, por um lado, aceita todos os argumentos em fa-
vor da legi t imidade da escravidão, tanto os da autoescravização em nome da
l H ( ' i t . i d n por ( i . lo.si. I.a teoria delia schiavitú naturale ncl dibattito sul Nuovo Mondo (1510-1573).
"Veri dommi" u "se rv i .1 n.uur.i' r. Diftts Thomas. Bolonha, v. 33. -002. p. 64.
l1; lbirl..f."i-
2 ( i Cl. I . K a n t . / l Met,i/i<i fatiai Costumei. [Md. Edson Bini , São I'aulo: Edipro, 2003, p. 109-111.
24
MATTHIAS K A U F M A N N
sobrevivência quanto o da escravização de prisioneiros numa guerra justa, em
concordância com a suposição aristotélica dos escravos por natureza. Por outro
lado, aqueles que se tornam escravos em virtude de suas pequenas capacidades
espirituais não se convertem em instrumentos vivos ao modo de Aristóteles -
um domínio será exercido sobre eles para o seu bem, não para o bem do senhor:
Aquele que é senhor por natureza não pode utilizar aqueles que são servos
por natureza para uso próprio, como se fossem coisas de sua propriedade,
mas deve servir-se deles como se fossem homens livres e independentes
para o proveito e a utilidade deles próprios, instruindo-os e educando-os
nos costumes21.
Assim, justamente porque se encontra colocado no grau mais baixo do
ordenamento social, ao servo é reconhecida uma espécie de reivindicação natu-
ral em face do senhor.
Central para a discussão sobre a justificação da guerra contra os indígenas
e sua consequente escravização foram as lições De indís recenter inventis proferi-
das por Francisco de Vitória (1483-1546) no ano de 1539 - quatro anos depois da
Relectio de domínio de De Soto. A elas reportam-se tanto os defensores quanto os
críticos do jugo espanhol sobre a América. Para o nosso contexto, ela é importante
sobretudo porque Vitória, de um lado, confessa que os índios, apesar de todas as
acusações legítimas, sáo os possuidores verdadeiros (veri dominf) de seus beos; de
outro, e com base no direito internacional, ele procede a uma justificação da guer-
ra contra os índios, recorrendo a uma reivindicação de direito válido universal-
mente para todos os homens, direito que os índios supostamente teriam violado.
Na primeira lição, Vitoria rejeita alguns possíveis motivos para negar aos
índios o direito à propriedade: nem o pecado mortal, nem a falta de fé, nem
ainda a falta de capacidade espiritual podem retirar deles o status de domini.
Este último ponto representa uma importante inovação de Vitória contra a
tradição aristotélica, na medida em que ele adjudica uma condição de direito
também aos amentes, em virtude de sua similitude com Deus e independente-
mente de suas capacidades atuais para fazer uso das capacidades tipicamente
humanas. "O campo do humanum se alarga a ponto de incluir aqueles que nem
21 G. Tosi, La teoria delia schiavitu naturaíc ncl dibattito wl Nuovo Mondo, cit., p. 69.
25
P O R U M A H I S T Ó R I A D O S D I R E I T O S H U M A N O S
sempre estavam inclusos: também o amem pode ser ofendido em sua dignidade
de homem porque, sendo criado à imagem de Deus, é propter se."22A partir de suas investigações, Vitória chega à seguinte conclusão:
De tudo quanto se disse, resulta que os índios, sem dúvida nenhuma, eram
verdadeiros senhores, pública e privadamente, iguais aos cristãos (sinedúbio
barbari eriint et publicr etprivatim ita veri domini, sicut crisríani); e que, por-
tanto, não podiam ser destituídos, quer enquanto príncipe, quer enquanto
pessoa singular, de seus bens, como se não fossem seus verdadeiros donos21.
Desse modo, ele declara a apropriação total resultante da conquista, e
a própria conquista, como ilegítimos. Se for preciso submeter os índios a um
estado de dependência, dado o atraso de sua condição, então que se estabeleça
como finalidade a sua educação e o seu bem-estar, tal como já exigira De Soto.
Após ter recusado, na segunda lição, oito motivações ilegítimas para uma
guerra movida contra os barbari (dentre as quais aquela resultante da descoberta
ou do fato de que eles não aceitam a fé cristã), na terceira lição, Vitória classifica
sete razões legítimas. As principais estão baseadas em direitos universais, a saber,
o direito à liberdade de circulação, o direito à hospitalidade, o direito ao livre co-
mércio, por um lado, e o direito à pregação do evangelho, por outro. Se os índios
se recusam a conceder tais diteitos aos espanhóis, então existem legítimas razões
para a guerra. Um pretexto mais digno de nota é a defesa de vítimas inocentes
contra os sacrifícios humanos e o canibalismo. Em Vitória temos certamente
pela primeira vez a concepção de um direito universalmente válido com status de
direito internacional, que será exercido pelo indivíduo isolado, autorizado, em casos
extremos, a agir pela força. Embora na situação concreta o direito de praticar o co-
mércio e de pregar o evangelho, supostamente idêntico para todos os homens, se
mostre altamente problemático por conta de seu caráter visivelmente assimétrico,
criou-se com isso uma figura argumentativa altamente eficaz.
Uma at i tude intransigente contra a conquista e todas as reivindicações
jurídicas a ela relacionadas aparece em Bartolomeu de Lãs Casas (1484-1567),
frequentemente celebrado como o primeiro defensor dos direitos humanos.
22 Il»d.. p 87.
23 llnd.. p. 88
26
MATTHIAS K A U F M A N N
Originalmente envolvido com a conquista, após passar por uma conversão, ele
irá se afastar dela, tornando-se seu crítico mais mordaz. Sua resposta à questão
de serem ou não os índios escravos por natureza é uma tipologia dos diversos
barbari. Um desses tipos, segundo ele, é aquele presente também na Espanha
e não somente na América. O atraso que caracteriza os demais tipos de barbari
não cria o direito de dominium sobre eles. De forma ainda mais enérgica do que
Vitória, ele acentua que justamente os bárbaros atrasados, graças à sua filiação e
espelhamento divinos, jamais poderiam perder sua dignidade humana'1.
No escrito publicado postumamente em Frankfurt, De Regia Potestate,
Lãs Casas se mostra como um dos primeiros a defender o direito igual e natural
de todos os homens à liberdade:
Dado que por natureza (todos os homens são) iguais (pari), Deus não faz de
ninguém servo de outro (homem), mas a todos concede uma igual liberdade.
E o motivo é que a natureza racional, segundo São Tomás, no que lhe é pró-
pria (quantum est de se), não está ordenada a ser senão como o seu fim, como
o homem ao homem. De fato, a liberdade é um direito inerente ao homem de
um modo necessário e por si, que tem origem na natureza racional e por isso
no direito natural, como se afirma no Decretum Gratiani: existe uma única
liberdade para todos (omnium una libertas). [...] A escravidão é um fenómeno
acidental, infligido ao homem pelo acaso e pela fortuna [...]."".
Mas enquanto Lãs Casas, surpreendentemente, apesar de sua avaliação
muito clara, não é levado a taxar a escravidão como totalmente ilegítima, em
outros lugares, ele extrai consequências absolutamente radicais, por exemplo,
quando exige para os índios a restituição dos bens que lhes foram roubados.
Um bom exemplo de como, no interior da escolástica espanhola, a dis-
cussão sobre os direitos relativos a todos os homens foi conduzida por meio
de procedimentos moralmente ambivalentes, ao menos se julgada segundo os
parâmetros atuais, embora centrada numa argumentação pautada pelo direito
natural, é dado por Luís de Molina (1535-1600). Em sua obra De iustitia et iure
[Da justiça e do direito], ele acentua, em primeiro lugar, que os homens não
possuem nenhum dominium, nenhum direito absoluto sobre sua vida e seus
24 Cf. ibid., p. 174.
25 Ibid., p. 191s.
27
I ' ( ) R U M A H I S T Ó R I A D O S D I R E I T O S H U M A N O S
membros, não estando por isso autorizado a renunciar a eles, razão pela qual
um homem que comete suicídio incorre num pecado mortal contra Deus. Isso
tem, por outro lado, as seguintes consequências: a pátria não está autorizada a
dispor da vida de seus cidadãos, e um escravo não pode ser mutilado ou morto
pelo seu senhor, nem impedido de contrair matrimónio.
No caso de homens que não podem determinar a si próprios é incor-
reto falar em "escravos por natureza" no sentido da tradição aristotélica até
Sepúlveda, uma vez que guiá-los e promovê-los é apenas um ato de justiça. Em
primeiro lugar, todos os homens são livres por natureza. Caso, em função de
determinadas circunstâncias, fosse necessário justificar uma escravização, ela
seria feita a justo t í tu lo pelo iusgentium.
A escravização resultante de uma guerra justa configura justamente estas
circunstâncias. Para os prisioneiros, a quem não restaria outra saída além da
morte, a escravidão surge então como a solução mais grata. Aqui a liberdade
ainda conta de forma inteiramente inequívoca entre as bona fortunae, os bens
do poder e da felicidade, que, a depender das circunstâncias, podem ser arre-
batados. Esta forma de avaliação ainda se mantém até o século XVII I , como
mostra o exemplo de Christian Thomasius, um protoiluminista alemão.
Um outro motivo legítimo para a escravidão é a venda de si mesmo. Tal é
possível porque a liberdade - ao contrário da vida - está sob o dominium de um
homem. Entretanto, Molina se apressa em observar que isso só se justifica em ca-
sos de extrema necessidade. Quem o fizer sem necessidade incorre num pecado
mais grave do que aquele que desiste de seu poder e de sua honra. Ao fim de uma
longa disputa26 baseada, entre outras coisas, em consultas aos comerciantes de
escravos, ele sublinha que, assim como se deve devolver quaisquer bens roubados,
deve-se devolver a liberdade àqueles que foram injustamente escravizados - a eles
e a seus filhos. Depois de ter comparado o título jurídico elaborado por ele a pro-
pósito da possibilidade da escravização com a realidade do comércio de escravos,
ele concluiu que os comerciantes de escravos provavelmente cometem um pecado
mortal c estão, por isso, condenados por toda a eternidade^.
26 />/*/>»/,; 3n. u>l. l H. i n : Luí.s Molina, Diífutófiones deconíractihuí, Veneza : Scssas, 1607.
27 IlispultJ 3V col. 18'J. in: Luís Molina. Disputatwneí dt contractibuí, cil.
28
MATTHIAS K A U F M A N N
Essa ambivalência de Molina entre uma justificação de princípio da ins-
tituição da escravidão e uma condenação de sua prática - que, segundo o pare-
cer de alguns eruditos, irá contribuir mais tarde para a abolição da escravidão -
é, sob muitos aspectos, um traço característico da escolástica espanhola. Junto
com os métodos de argumentação profundamente radicados na Idade Média,
foram criados, em vista dos desafios da nova realidade política, os conceitos e
princípios de que se servirão os jusnaturalistas e filósofos do iluminismo para
a formulação dos direitos humanos. Isso também acontece porque o discurso
relativo ao direito natural, estruturado sobre argumentos de fundo, se estende
para além dos limites religiosos e, como se diz hoje em dia, culturais. Ademais,
surge uma diferenciação entredireito e moral, embora com uma terminologia
distinta: Molina, por um lado, estabelece que aquele que se aproveita de uma
situação de dificuldade para escravizar o outro em vez de ajudá-lo com esmola
está cometendo provavelmente um pecado mortal contra o amor ao próximo,
mas, por outro, ele considera o contrato válido do ponto de vista do direito na-
tural; já em Suárez encontra-se uma espécie de moralização do direito natural
por oposição ao direito positivo.
1.2.2 Reforma e Guerra dos camponeses
Dizer até que ponto os reformadores contribuíram para a formação dos
direitos humanos não é tarefa fácil28. Como mostra o historiador Peter Blickle, o
campesinato alemão foi palco de uma tradição de protestos contra a tendência de
dominação, sobretudo a dos mosteiros, recrudescente desde o século XIV e que
visava transformar os camponeses em servos, revogando seus direitos pessoais
essenciais. Tudo isso numa época em que, a partir da Reforma, reivindica-se a
liberdade contra a servidão29. Os chamados "12 artigos dos camponeses da Suá-
bia" fundamentavam esta reivindicação na ideia de que Jesus havia morrido por
todos os homens; que a ordem da criação colocara o homem sob mandamentos,
não sob o arbítrio humano; e, por fim, que um dos mandamentos era amar o
28 Cf. G. Ocstreich, Geschichti dtr Menschenrechte und Grundfreihciten im Umri/í, cit., p. 32ss.
29 P. Blickle, Von dir Lcibtigrnschaftzuden Menschenrechten, Munchen: Beck, 2003.
29
P O R U M A H I S T Ó R I A D O S D I R E I T O S H U M A N O S
próximo3". Para isso, como salienta Blickle, não havia necessidade de reforma-
dores". Entretanto, os reformadores forneceram um vocabulário extra para a
argumentação, contribuindo, além disso, para que, da reivindicação da liberdade
como eliminação da opressão exercida sobre um grupo, surgisse um discurso
social de caráter global. "O debate sobre a liberdade aos tempos da Reforma
produziu tamanha tensão revolucionária no reino, que o imperador e os prínci-
pes só puderam contê-la mobilizando massivamente todos os recursos militares
à disposição. A revolução em si era a dos homens simples e comuns, não uma
guerra civil. No debate sobre a liberdade, todos os grupos sociais tomavam parte,
do imperador aos camponeses, dos juizes de um tribunal local até os teólogos
reitores da época, A liberdade havia sido transformada em um conceito de luta
empregado e emprcgável por toda a parte"1'.
A liberdade em nome da qual os camponeses, no final das contas, luta-
ram tão em vão, colocando-se contra a corveia, as obrigações tributárias, a par-
ticipação do senhor em herança (no caso de morte), e pela liberdade de êxodo e
pelo casamento livre, talvez tenha muito pouco a ver com os direitos de partici-
pação e proteção, posteriormente incluídos entre os direitos humanos. Todavia,
desse modo, a liberdade tornou-se política. Além disso, pode ter sido relevante
um outro desenvolvimento ocorrido no século XVI, a saber, a decisão por parte
dos senhores de não diferenciar mais entre os homens livres e os "servos" (Ei-
genleuten), considerando indistintamente todos como "súditos", ainda que, de
início, isso excluísse os cidadãos das cidades alemãs livres-". A formulação teó-
rica desta tendência que desde a Reforma se robustece na práxis encontra-se ern
Thomas Hobbes, o qual explicitamente não faz mais nenhuma diferença entre
escravos t cidadãos. Dessa forma, ele pôde contribuir de maneira substancial
para que, no curso do século X V I I I , a liberdade individual passasse da condi-
ção de privilégio de grupo para a de um direito humano igual para todos, na
medida em que os cidadãos tornavam-se cada vez menos dispostos a deixar-se
enquadrar na condição de escravos.
30 Cl. ibul., p. W.
31 Ibid.. p. 7-1.
32 Ibid.. p. 10J.
33 (.'.f.iJtm.
30
MATTHIAS K A U F M A N N
1.3 Jusnaturalismo e Filosofia Política nos séculos XVII e XVIII:
a descoberta da liberdade
A seçáo precedente tratou primordialmente da questão relativa à impu-
tação de direitos concretos a determinados grupos, se bem que isso tenha sido
discutido com argumentos genéricos e no interior de um debate que abrange
uma parte relativamente ampla da sociedade. Também em Lãs Casas o reco-
nhecimento do caráter contingente da escravidão e de seu contraste em relação
à igualdade natural de todos os homens não conduzia à reivindicação de sua
abolição. Um passo decisivo na formação dos direitos humanos foi, certamen-
te, a tendência inerente ao absolutismo de nivelar a diferença entre liberdade e
servidão. Embora nunca tenha sido bem-sucedida na práxis, a reivindicação
dessa igualdade foi expressa com muito rigor teórico por Hobbes, o qual, por
isso, ainda que como efeito colateral de seu pensamento, irá fundar a igualdade
dos cidadãos diante do soberano e a igualdade diante da lei, coisa que aquele
momento não era de nenhum modo evidente.
A teoria política de Hobbes é bem conhecida. Não obstante, convém
aqui abordá-la em seus traços fundamentais, de modo a se poder discutir seu
papel, ou melhor, o papel do desenvolvimento político formulado por ela de
maneira paradigmática, para a constituição dos direitos humanos.
Para escapar de uma guerra de todos contra todos - num estado de natu-
reza condicionado pela periculosidade dos homens e que para Hobbes é apenas
uma situação hipotética - os homens se submetem, através de um contrato,
a um soberano34, que desse modo detém - falando nos termos de hoje - o
monopólio da violência, o qual, em Hobbes, configura-se até mesmo como
uma autoridade ilimitada sobre todos os seus súditos. A construção jurídica
correspondente a este raciocínio é a seguinte: o direito estatal resulta, no fundo,
do direito subjetivo de autoconservação, que pertence a todo homem enquanto
tal. Condizente com sua igualdade e ameaçabilidade recíproca, os homens pos-
suem um direito natural - um ius naturale - relativo a tudo, inclusive a acionar
34 Cf. T. Hobbes, Lfviatá, trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, São Paulo: Abril
Cultural, 1979, cap. XVII, p. 103-106; e id.. Do cidadão, cit., cap. 1.12, p. 33, e 1.15, p. 35-36.
31
P()R U M A H I S T Ó R I A D O S D I R E I T O S H U M A N O S
todos os meios necessários à sua autoconservação". Desde que não proceda
contra a reta razão (recta ratio), o indivíduo possui o direito de envidar todos
os esforços para obter seu sustento'6. Entretanto, se estes direitos não são úteis
para o indivíduo no estado de natureza, já que todos os outros possuem o mes-
mo direi to ' , eles também não são de muita valia no âmbito de uma realidade
civil em que não possam ser exigidos de forma eficiente.
Em vista da ameaça que se instala no estado de natureza, as leis naturais
- leges naturales - ensinam aos homens "os mandamentos da reta razão a respei-
to daquilo que ele deve fazer e deixar de fazer pela conservação de sua vida e de
seus membros"3", ou seja, como escapar desta situação desfavorável. O primeiro
mandamento reza que o homem precisa buscar a paz enquanto isso for possível,
caso contrário, precisa procurar ajuda para a guerra. Daí se deduz diretamente
outro, segundo o qual os homens devem abdicar dos direitos naturais em um
pacto de submissão com os outros futuros súditos em nome de um soberano
que, por sua vez, na qualidade de protetor, não é parceiro no pacto, mas pre-
serva seus direitos naturais sobre tudo. O direito político objetivo é, assim,
o direito subjetivo do soberano sobre todos, direito proveniente do estado de
natureza. Neste sentido, é secundário se o soberano é uma pessoa isolada, uma
assembleia ou a totalidade dos cidadãos. Para Hobbes não pode haver nenhum
contrato válido pelo qual alguém renuncie a seu direito à vida. Sendo a auto-
conservação o fundamento do direito, tal contrato seria simplesmente absurdo.
Essa construção representa - com algumas modificações - as ideias funda-
mentais de uma teoria do Estado liberal, também com base na tomadade cons-
ciência de que a dominação do homem sobre o homem, o exercício da força sobre
o indivíduo, em si e por si, pressupõe uma legitimação. Hobbes, por sua vez, for-
mulou um esquema teórico onde vigora o direito irrenunciável de todos os homens
e, de fato, de todo indivíduo, perante o Estado. Este direito perante o Estado existe
de acordo com a sua forma de organização. Não se trata apenas do direito de se
colocar contra o rei ou o tirano. Por meio desta primeira fundamentação secular
35 CA. T. Hobbes. Da cidadão, c i i . , cap. 1.9ss., p. 32ss.
36 Cif. i*///., cap. l.7, p. 31.
37 Cf. /An/., cap. 1 . 1 1 . p. 33.
38 linit.. c.ip. 2 . 1 . p r tH.Cf . Id., iccMíá, cit., c»p. XIVcXV, p. 113-133.
32
MATTHIAS K A U F M A N N
da igualdade dos homens, baseada na ideia de que os homens podem assassinar
um ao outro, Hobbes formula, com clareza ímpar, a nova instituição da igualdade
entre os homens. Em última instância, ele realiza a sua legitimação do poder recor-
rendo ao bem conhecido interesse próprio, característico do indivíduo. O direito
individual à vida se mantém constante como fundamento normativo.
Hobbes produz, todavia, uma formulação de particular pregnância -
e que terá lugar no vocabulário da ciência moderna — para aquela analogia,
elaborada já por Hugo Grotius39, entre a autoescravizacão voluntária de um
homem e a submissão de um povo à vontade de um senhor. Ao contrário, Luís
de Molina, cujo nome algumas vezes vem associado à ideia da autoescravizacão
voluntária na sua formulação teorética40, segue De Soto, diferenciando forte-
mente o dominiumproprietatis do dominium iurisdictionis, de modo a reforçar
o direito de resistência perante um senhor tirânico41. Samuel Pufendorf, por
sua vez, retoma a posição adotada por Grotius42. Que desse modo a diferença
perante o soberano entre cidadão e escravo seja completamente anulada, pode-
ria ainda ter servido de motivo para a reflexão sobre o fato de que tal contrato
é fundamentalmente inaceitável, na medida em que pretende que o homem
renuncie a direitos inalienáveis, em particular o direito à liberdade.
A primeira formulação de um direito à liberdade exigível legalmente en-
contra-se no interior de um discurso que, à primeira vista, parece bem distinto
deste, qual seja, o Tractatus Teologico-Politicus de Baruch Spinoza. Spinoza des-
taca que uma democracia, no seu entender a forma de governo mais estável por-
que a mais legítima, não seria ameaçada pelo direito à liberdade de expressão,
mas, ao contrário, seria assim consolidada de modo estável, na medida em que
colocaria as leis inúteis na berlinda43. Já no capítulo XVII ele havia afirmado
39 Cf. H. Grotius, O direito da guerra e da faz, (1625) I, 3 § 8,1-3 (trad. Ciro Mioranza, I juí : Uni ju í ,
2004, 2 v.).
40 J. Eiscnberg, Cultural Encounters, Theoretica! Adventures: The Jesuit Mission in thc New World
and thejustification ofVoluntary Slavery, in: M. Kaufmann, R. Schnepf (Eds.), foliiiscbe Metaphy-
sik, Frankfurt/M., 2007, p. 357-383.
41 L. de Molina, De iustitia et iure II 20ss., III 6 (ed. Moguntia, 1659, col. 539s.).
42 S. Pufendorf, De iure naturae etgentium íibri octo (1682), in: Id., Geíammelte Werke, v. 4, cd. por F.
Bõhling, Bcrlin, 1998, p. 660ss. (VII 3 § 1) e p. 698ss. (VII 6, §§ 5 e 6).
43 Cf. B. Spinoza, Tratado teológico-político, trad. Diogo Pires Aurélio. São Paulo: M a r t i n s Fontes,
2008, cap. XX, p. 300-310.
33
P( )R U M A H I S T Ó R I A D O S D I R E I T O S H U M A N O S
que um homem não pode renunciar aos seguintes direitos: libertar-se do medo,
viver sua emocionalidade e emitir suas opiniões. Por isso, o poder da autoridade
suprema não poderia ser ilimitado, antes, estes direitos deveriam ser concedidos
aos súditos em vista do bem comum.
É evidente que, se os homens pudessem ser privados de seu direito natural
a ponto de não poderem depois fazer senão o que aqueles que detém o di-
reito supremo deixassem, então seria lícito reinar praticando impunemente
as maiores violências para com os súditos, coisa que eu julgo não passar
pela cabeça de ninguém4 '1.
Ao inf r ing i r tais princípios, a autoridade suprema deve temer seus pró-
prios cidadãos. Num capítulo anterior, Spinoza havia estabelecido o direito pri-
vado como âmbito assegurado pelo soberano e, ao mesmo tempo, rejeitado o
pressuposto de que, com o fortalecimento do soberano democrático, os homens
terminar iam por se tornar escravos, sustentando, ao contrário, que eles se tor-
nariam livres (na medida em que as decisões seriam tomadas de modo racional)
e não escravos de suas paixóes4S.
Em 1689, John Locke afirmou que a ninguém deveria ser concedido o
direito de vender a si próprio como escravo, pois a liberdade não é sua proprie-
dade, mas propriedade de Deus46. Mas já na época de Locke, tal argumento
não era uma novidade. Poucos anos antes, Pufendorf já havia assinalado que
tal argumento, assim como o da fundação do Estado, era empregado sem um
conhecimento efetivo, "sem perícia" (imperite)47. É interessante notar como seu
tradutor francês, Barbeyrac, tomou o partido de Locke. No âmbito de uma
discussão escolástica que ainda perdurava em seu tempo, Locke se fazia promo-
tor de uma discussão muito próxima daquela dos jesuítas "radicais-liberais"18.
Entretanto, segundo sua concepção, é totalmente possível que alguém, saído
derrotado de uma guerra, se ponha a serviço como escravo para salvar a própria
4i Ibid.. p. 2 M .
4^ Cl. :bi,i.. p. 241 -24.1.
4d Cf. |. l.ockc. Sfgunthi trnítuío fohre oçpverno, trad. E. Jacy Monteiro, São Paulo: Abril . 1983. cap. IV,
p. 43-44 (Os Pensadores).
47 S. Puícndorf, l)c turc naturae et gentium, ci t . , p. 660 ( V i l 3 $ 1).
48 R. Scliúli lcr. l.uikr. K a s u i s t i k und dic Wurzeln dês Libcralismus. in: M. Kaufmann , R. Schnepf
(KdO. f'olitncl'r Mfiiiphynk. c i t . , p. 257-284.
34
MATTHIAS K A U F M A N N
vida49. Além disso, Locke considera importante que a propriedade - "property"
- se subtraía às intervenções do Estado, lá onde ele, sob o termo "property",
compreende os três elementos: "da vida, da liberdade e dos bens"50. Essa ligação
entre liberdade e posse, ao lado do direito de resistência defendido por Locke
contra um governante que os viole ilegalmente, foi um dos motivos para que
muitos viessem a considerar a exigência da observância dos direitos humanos
como expressão do medo burguês para com seu património. Sem dúvida, a
ligação entre liberdade e posse já é visível no começo do século XV em Jean
Gerson; por outro lado, é verdade que na época de Locke surge pela primeira
vez um grupo social dotado de poder económico e político, a burguesia, que faz
da defesa de ambos uma questão íntima e vital.
Para Rousseau, não existe mais nenhuma possibilidade de se chegar à
escravidão por vias jurídicas. Em sua argumentação, nota-se o quão presente
é o debate ocorrido à época da escolástica espanhola em torno da justificação
da escravidão, naturalmente uma presença mediada por Grotius, Pufendorf e
outros. Rousseau argumenta, em primeiro lugar, que ninguém em sã consciên-
cia seria capaz de firmar um contrato estabelecendo a própria escravidão. E
como se esse tipo de atitude em desfavor de si próprio traísse a incapacidade da
pessoa para estipular qualquer contrato. Em segundo lugar, ninguém tem au-
torização para renunciar à condição de homem, coisa que, para Rousseau, está
indissoluvelmente ligada à capacidade de livre escolha. Em terceiro lugar, e este
é o argumento principal, por meio dessa renúncia, o sujeito abdicaria de toda
responsabilidade perante seus atos futuros, coisa a que nenhum homem dotado
de entendimento está autorizado a fazer. Também na guerra, e aqui Rousseau
se distancia radicalmente de Locke, de sua posição e fundamentação, ninguém
pode se fazer escravo legitimamente, porque a guerra é uma relação entre Esta-
dos, portanto, entre entidades abstratas, não entre pessoas singulares. O argu-
mentoaparece de modo mais detalhado em Montesquieu, que lamenta o fato
de que, a partir de uma falsa premissa, qual seja, que um Estado possa anular
outro pela conquista, seja extraída de forma ilícita a falsa conclusão de que os
conquistadores possam assassinar os vencidos. De fato, um Estado destruído é
49 Cf. J. Locke, Segundo tratado, cit., cap. XV, p. 102-103.
50 Cf. itij., cap. IX, P- 82-84 (citação p. 82) e cap. XI, p. 86-90.
35
P O R U M A H I S T Ó R I A D O S D I R E I T O S H U M A N O S
uma união de homens, mas não os homens mesmos. Além disso, mesmo que
já não houvesse mais nenhum motivo para a autodefesa, não haveria nenhum
direito de matar na guerra e nem de escravizar os prisioneiros51. Rousseau sinte-
tiza esse argumento e chega à seguinte conclusão: "Cês mots, esclavage et droit,
sont contradictoires; ils sexcluent mutuellement"52.
Também para Kant, qualquer escravização, incluindo a autoescraviza-
çáo, é incompatível com a dignidade humana53. De um modo geral, pode-
-se observar em Kan t , com a máxima clareza possível, o estreito vínculo dos
direitos humanos com a ideia da dignidade humana. Para Kant "só há um
direito inato: a liberdade (ser independente do arbítrio coercitivo de outrem),
na medida em que pode coexistir com a liberdade de todos os outros de acordo
com uma lei universal, é o único direito original pertencente a todos os homens
em virtude de sua humanidade"54. Todos os outros direitos, em particular a
igualdade inata e o direito de se comunicar com outrem, já estão contidos nele.
Contra a escravização de prisioneiros numa guerra justa, Kant apresenta
um argumento que, embora não desenvolva, revela uma nova concepção da
guerra em relação àquela da escolástica espanhola: "nenhuma guerra de Esta-
dos independentes entre si pode ser uma guerra punitiva (bellumpunitivum)"'1'',
razão pela qual ninguém pode reclamar indenizaçáo por custos de guerra, por-
tanto, como era comum no passado, reclamar a escravização dos súditos.
Rousseau e Kant também estão entre os autores nos quais, com uma cla-
reza desconhecida até então, entra em cena outro aspecto característico dos direi-
tos humanos em sua forma moderna: o direito de defender a própria autodeter-
minação, na medida em que se toma parte institucional mente dos mecanismos
de decisão políticos. Rousseau atribuiu grande importância à ideia de que, so-
mente quando a comunidade política atua segundo a vontade universal é que os
51 ( f . Montesquieu. l)« nprriio das Ifii, trad. Fernando I Icnriquc Cardoso c Lcóncio Mar t in s Rodri-
gues. São Paulo: Abril . 1979. p. 213ss. (livro XV, cap. I I ) .
52 "As pa lavras 'escravidão't ' direito'são contraditórias, cxclucm-sc mutuamcme": J. J. Rousseau, O
contrato meia!, t r . id . l . imdcr Santos Machado. São Paulo: Abri l . 1978. Livro l. cap. IV. p. 26-30 (Os
Pensadores). A ci tação se acha na página 29.
53 Cf- I. K a n t . A mfttifiín-a daí coítumtí, p. 126-128.
54 Ibtd.. p. 83. l Fraduc-io l igeiramente modificada. (N. T.)]
55 //>/>/, p. 189-190
36
MATTHIAS K A U F M A N N
cidadãos são efetivamente livres. Paralelamente a isso, o segundo maior expoente
daquela que mais tarde será chamada de liberdade "positiva", Immanuel Kant,
segundo o axioma voltnti nonfit iniuria, concede, na ideia, ao cidadão de seu
Estado o direito de "obedecer unicamente à lei à qual deu seu consentimento"56.
A concepção de que a liberdade, como penhor da liberdade de decisão, é um
direito universal, toma forma pouco a pouco na discussão travada no princípio do
século XVIII, ao passo que no século XVII a liberdade ainda é vista, na maior parte
das vezes, como privilégio de grupo (Spinoza é uma exceção), embora se aceitasse
aí uma liberdade natural do homem em geral. A extensão efetiva da influência
dos teóricos dos séculos XVII e XVIII na reviravolta política ocorrida ao final do
século XVIII não é certamente fácil de fixar. Se no passado falou-se da devoção de
John Wise, um dos primeiros pais da independência norte-americana, por Samuel
PufendorP", parte-se hoje da ideia de que a influência de Wise, através de seus tex-
tos mais relevantes, na luta pela independência e formação da constituição, foi na
verdade bem modesta'8. Também o papel de Rousseau como ascendente imediato
da Revolução Francesa tem sido considerado com cautela. Blickle costuma ser bas-
tante cético em relação à influência das ideias filosóficas sobre o desenvolvimento
político. Entretanto considera possível que os textos filosóficos representem uma
exposição discursiva condensada do percurso feito pelo processo social.
1.4 Primeiras institucionalizações dos direitos humanos: as
declarações e constituições do século XVIII e seus limites
De fato, dois dos elementos vistos como especialmente importantes para
a constituição da ideia dos direitos humanos surgem claramente muito mais da
prática jurídica e política do que da reflexão filosófica: o primeiro é o princípio
do habeas corpus - que a Petition of Rights [Petição de direitos] inglesa de 1628
56 Ihid., p. 156.
57 H. Welzel, Naturrecht unamatfrialc Gertchtígktit, 4. ed., Gõttingen, 1990, p. M2ss.
58 Cf. D. Klippd, Politiíche Freiheit una Freiheitsrechtc ini Deutíchen Naturrecht dei 18. Jiihrlniiifierts,
Paderborn, 1976, p. 79s.
37
I ' ( ) R U M A H I S T Ó R I A D O S D I R E I T O S H U M A N O S
toma do artigo 39 cia Magna Charta Libertatum [A carta magna das liberdades]
de 1215 -, isto é, a proteção contra a captura arbitrária, que pela primeira vez
foi garantida universalmente pelo Habeas Corpus Act [Lei do habeas corpus}
através da luta do Parlamento inglês de 1679VI. O direito à liberdade religiosa,
considerado por muitos historiadores e juristas como a raiz dos direitos hu-
manos, foi visto, nas colónias americanas, antes como uma penosa tolerância
do que como uma garantia. E justamente no texto definitivo da Virginiii Bill
of Rights [Carta de direitos da Virgínia] de 12 de junho de 1776, a primeira
constituição redigida em solo norte-americano, ela chega, ao que parece, mui to
tarde''", como artigo § 16, bem depois dos direitos iguais para todos: vida e li-
berdade (§ 1), ordem política democrática (§§ 2,3) separação dos poderes (§> 4),
liberdade de imprensa (§ 12) etc.
Além disso, não totalmente independente da nacionalidade e das incli-
nações pessoais individuais, se discute até que ponto as diferentes declarações
e constituições norte-americanas serviram de modelo, na França, para a Décla-
ration dês droits de l 'Homme et du citoyen {Declaração dos direitos do homem e
do cidadão], de 26 de agosto de 1789. O nome dessa última, pela primeira vez
uma declaração expressa dos direitos humanos, parece, entretanto, remontar a
um dos mais importantes livros doutrinários sobre os direitos humanos, aquele
escrito por Samuel Pufendorf e denominado De officiis hominis et civis [Dos
deveres do homem e do cidadão]. Os revolucionários colocaram programatica-
mente os direitos contra os deveres.
Km relação ao significado histórico destes documentos, é preciso ter sem-
pre claro que nenhum deles tratou efetivamente dos direitos de todos os homens.
Em muitos estados norte-americanos, apesar de todas as declarações, permaneceu
lícita a posse de escravos até depois da Guerra Civil norte-americana. Em Massa-
chusetts, entretanto, já em 1783, ela foi abolida após a sentença de um tribunal' '1.
Também os direitos das mulheres não foram levados em consideração
até o século XX. A Déclaration dês droits de La femme et de La citoyenne [Declara-
ção dos direitos da mulher e da cidadã], de Olympe de Gouges, publicada cm
59 O. M. Kr idc , hnfiihrun£indieSuatslthrt, Kcinbrk Iwi H a m h u r p . W5. p.
6(1 Cf. ,*;,/.. P. 151 .
61 l |. Hiddddt, /Vn/«,,ifl,ie <trr Mrmfhrnrrchie. Darmsladt, 19'»K. p. 82.
38
MATTHIAS K A U F M A N N
1791, não obteve nenhum efeito, e isso não só porque a autora, em virtude de
sua tomada de posição a favor dos girondinos,

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