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pág. 1 HISTÓRIA DO DIREITO Prof.ª M.ª Yolanda Maria de Menezes Speranza Prof. Guilherme Bernardes Filho Diretor Presidente Prof. Aderbal Alfredo Calderari Bernardes Diretor Tesoureiro Prof. Frederico Ribeiro Simões Reitor UNISEPE – EaD Prof. Me. Alexander Lopes Neves Coordenador EaD de área Prof. Dr. Renato de Araújo Cruz Coordenador Núcleo de Ensino a distância (NEAD) Material Didático – EaD Equipe editorial: Fernanda Pereira de Castro - CRB-8/10395 Isis Gabriel Alves Laura Lemmi Di Natale Pedro Ken-Iti Torres Omuro Prof. Dr. Renato de Araújo Cruz – Editor Responsável Apoio técnico: Alexandre Meanda Neves Anderson Francisco de Oliveira Douglas Panta dos Santos Galdino Fabiano de Oliveira Albers Gustavo Batista Bardusco Kelvin Komatsu de Andrade Matheus Eduardo Souza Pedroso Vinícius Capela de Souza Revisão: Miriam da Costa Leite, Maria Ferreira da Conceição. Diagramação: Diego Macedo Pedroso, Hilário Alves Raimundo SOBRE A AUTORA: Advogada. Professora supervisora de estágio acadêmico no Juizado Especial Cível - Anexo Unisantos (2016). Bacharel em Direito (2008) e Mestra em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos (2019). Conciliadora e mediadora judicial capacitada pelo NUPEMEC-TJ/SP (2013), com atividade no anexo do Juizado Especial Cível - Anexo Unisantos. Mediadora certificada pelo Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos (ICFML). Integrante do grupo de pesquisa em Direitos Humanos e Vulnerabilidades, coordenado pela Prof. Dra. Liliana Lyra Jubilut. Professora do curso de Direito da Universidade Católica de Santos na disciplina de Conciliação, Mediação e Arbitragem. SOBRE A DISCIPLINA: A disciplina História do Direito cuida da retrospectiva histórica das bases fundamentais do Direito, procurando formular o alicerce de estudos como matéria propedêutica essencial ao bacharel em Direito com vias à habilitação profissional e formação sólida. A disciplina tem como ementa: O Direito: origem e conceito. Significados múltiplos do termo direito. O Direito na Grécia e em Roma. Os antecedentes das Instituições Jurídicas. O Direito Germânico. O Direto Feudal. O Direito Canônico: Noções Básicas e Normas Gerais. O Código de Direito Canônico. O Direito e Formação do Estado Moderno. O Direito e a Ascensão da Burguesia. O Direito Natural. Sistemas jurídicos comparados. O desenvolvimento do Direito brasileiro. O pensamento jurídico contemporâneo. Pluralismo jurídico. O contexto histórico para a inserção da proteção jurídica às minorias étnico- raciais. A ementa é construída através da cronologia histórica e da evolução dos períodos que marcam a formação do Direito enquanto ciência e enfatiza o seu desenvolvimento social ao longo dos séculos de evolução humana. Os ÍCONES são elementos gráficos utilizados para ampliar as formas de linguagem e facilitar a organização e a leitura hipertextual. SUMÁRIO UNIDADE I .............................................................................................. 05 1º Da antiguidade à Roma............................................................. 05 2º Idade média............................................................................... 17 39 UNIDADE I CAPÍTULO 1 – DA ANTIGUIDADE À ROMA No término deste capítulo, você deverá saber: ✓ Direito nos povos da Antiguidade; ✓ Direito na Grécia; ✓ Direito em Roma. Introdução O ser humano, diferente dos demais animais, é dotado de uma capacidade histórica consciente, pois, enquanto os demais animais desenvolvem sua evolução histórica pela marcação de instintos geneticamente transmitidos, o ser humano é capaz de sintetizar suas evoluções e pensamentos em relatos históricos que são transmitidos aos seus descendentes. Por essa capacidade de transmitir sua história, o ser humano permanece em constante evolução de saberes e constante crescimento em suas práticas sociais e científicas, pois os estudos de uma geração são paulatinamente transmitidos para as próximas que acrescentam saber. É graças a essa capacidade histórica que as ciências se desenvolvem, evoluem e são acrescidas de novas informações, sempre partindo das premissas e verdades já conquistadas pelo ser humano, não havendo a necessidade de redescobertas infinitas. Isto não é diferente com as ciências jurídicas, que se desenvolvem em conjunto com os avanços sociais e ainda são acrescidas em direitos e novos regramentos da sociedade que se sucedem não em grau de importância, mas em complementação uns dos outros. Por uma abordagem mais simplista, pode-se tomar, por exemplo, a evolução dos direitos humanos, que nascem pelos direitos mais básicos de liberdade e proteção da vida e se desenvolvem para direitos sociais, econômicos, transindividuais, se alargam para a consciência sobre a preservação do meio ambiente e ainda abrangem, nos moldes mais atuais, os direitos relativos à informática e à telemática. A natureza historicista do ser humano é inerente à sua origem e com o homem tem caminhado desde o início das civilizações. Essa natureza decorre naturalmente da condição gregária do ser humano, que se reúne em grupos por uma questão social e de preservação e, com esse grupo, tem a necessidade natural de desenvolver suas habilidades e contar suas experiências. Assim, na evolução histórica humana e no seu reflexo sobre o Direito, percebe-se que a referida ciência traz em seu contexto as marcas da evolução humana em sociedade e a crescente produção de conteúdo regulatória à medida que as civilizações crescem, se expandem e interagem. 40 1.1 Direito nos povos da Antiguidade Na Antiguidade, o Direito surgiu com poucas informações históricas, principalmente nos períodos datados antes da escrita, vindo a se considerar, em si, a história do homem, com uma ênfase maior, quando da invenção da escrita. Contudo, desde a pré-história o Direito já é historicamente reconhecido, isso em decorrência de estudos arqueológicos realizados que remontam a uma forma rudimentar e variada de normas de cunho jurídico realizadas nas sociedades mais primitivas. Assim, desde a formação de pequenas tribos pelo homem, é possível reconhecer a existência normativa do Direito, normalmente baseada em costumes e ligada ao culto imposto pelo chefe da tribo, que detinha o poder concentrado de organização da microssociedade. Assim, segundo Albergaria (2019), o direito pré-histórico era marcado pelas características da oralidade, uma vez que inexistia escrita; pela diversidade, variando de tribo para tribo; e era influenciado pela religião ou culto do chefe da tribo. Com a invenção da escrita começaram a surgir também as primeiras codificações ou relatos de normas jurídicas reguladoras da vida em sociedade, tendo a Suméria contribuído fortemente com o surgimento histórico de inúmeros corolários do Direito. Dentre essas normativas ancestrais, cita-se a Estela dos Abutres, conhecida como código-estela, que marcou a definição de fronteiras entre duas civilizações, reconhecendo assim o direito ao território como um dos elementos constitutivos do Estado. Surge também o Código de Ur-Nammu, encontrado na região da Mesopotâmia, que relata inúmeras regras de conduta e suas punições atreladas à égide da lei de Talião, mas que introduziu, no sistema histórico-jurídico a aplicação de penas de cunho pecuniário e o repúdio à violência desmedida nas civilizações. O Código de Nammu é uma das normas mais emblemáticas historicamente consideradas, por ser a codificação que introduziu nos sistemas jurídicos da época o conceito de equidade. De pouco tempo depois é datado o Código de Eshununna, como a codificação variada utilizada por várias civilizações antigas e que trouxe em seu contexto,de forma marcante, não só os regramentos da vida e sociedade, mas também o contexto de organização judiciária para o processamento das infrações legais, bem como a estrutura de organização do Estado. Por fim, marcando o contexto histórico-jurídico de evolução das codificações e normativas, surgiu o Código de Hammurabi, como a codificação de maior importância da Antiguidade antes do período grego. Em seu contexto histórico, foi marcado pela unificação jurídica dos povos da Mesopotâmia sobre uma mesma legislação, com a ampliação do Direito para então toda a civilização conhecida no ocidente, com a exceção do Egito. 41 O Código surgiu visando à pacificação social, uma das ideias conservadas pelo Direito ao longo dos séculos. Esse documento era pautado pela Lei de Talião e estabelecia regras bastante completas sobre a vida em sociedade e à reafirmação da soberania Estatal. Pelo Código de Hammurabi também houve a colocação do rei como Poder Judiciário e como última palavra na solução de litígios das diferentes classes sociais existentes, com o reconhecimento de direitos para todos os estamentos. Nessa codificação, além das normas de cunho penal, pelas quais é famoso, na aplicação da lei de talião e no chamado “olho por olho, dente por dente”, o Código de Hammurabi também estabelecia normas relativas à propriedade, organização do Estado, formação e preservação da família, além de uma vasta regulamentação quanto ao exercício de diversas profissões. Contemporâneo ao Código de Hammurabi existiu também o Direito Egípcio, que, embora não tenha uma codificação marcante e escrita de forma unificada como na civilização mesopotâmica, é historicamente muito relevante ao Direito, introduzindo conceitos de proporcionalidade do Direito Tributário, bem como na estrutura do judiciário e organização do Estado. Paralelo a isso, e intimamente ligado à face do Direito/Religião, surgiu o Direito Hebreu, com a instituição jurídica baseada nos 10 mandamentos e em comandos imperativos de proibição, porém marcados pela ausência de pena, reservada, então, à punibilidade divina. 1.2 Direito na Grécia O mundo grego foi marcado pelo grande avanço nas ciências em geral, como a matemática, astrologia, dentre outras que tiveram um grande avanço, tudo em decorrência da maneira de pensar do homem grego, que passou a reconhecer o pensar, e o pensar em si próprio como o centro de seu desenvolvimento intelectual. As legislações produzidas no mundo Grego antigo não tiveram tamanho impacto, nem foram tão marcantes quanto às demais ciências, porém, pôde enfatizar que o Direito era intimamente ligado à mitologia e a construção sobre elementos morais e éticos da sociedade. Era marcado também pelo elemento social segregário, deixando as decisões judiciais e sua manipulação aos encargos das elites dominantes que, através da promoção de grandes debates, chegavam a conclusões estratégicas para a manutenção do poder dessas classes sobre as demais. Porém, com vias ao rompimento dessa realidade segregária, surgiu o marco jurídico da Lei de Drácon, buscando um processo judicial mais democrático e transparente. Com isso, a publicidade surgiu no sistema jurídico como aspecto fundamental, assim como algumas instituições cresceu com força, como a legitima defesa, que permitia a realização de homicídios para a defesa própria e dos familiares de seu agente. Essa legislação também foi marcada pelas penalidades extremamente gravosas aos transgressores, o que deu origem ao termo “Lei Draconiana”, que até a atualidade é utilizado para designar leis severas e com alta punibilidade. 42 Diante dessa alta severidade, surgiu, em termos de modificação legislativa no mundo Grego antigo, a Lei de Sólon, que, dentre as principais contribuições para o mundo jurídico, trouxe a proibição da escravidão por dívidas, protegendo, assim, o proletariado e aqueles economicamente menos favorecidos. Dentre suas contribuições, há que se destacar a instituição do regime social censitário, marcado pela concessão de representação política àqueles que contribuíam em mais altos valores aos cofres públicos, trazendo, assim, a possibilidade de modificação de estamentos sociais, que outrora não eram permitidos. Ainda foi com essa legislação que a participação popular na vida política do Estado foi assegurada, pela formação de conselhos de classes, de forma a fomentar a paz social e a preservar a democracia. Porém, a maior contribuição do mundo Grego antigo para os sistemas jurídicos atuais não se fez em suas legislações, mas sim em suas correntes filosóficas, que formaram o nascedouro da filosofia jurídica tal qual é apresentada atualmente. Dentre as correntes, destaca-se a corrente Sofista, pautada pela relativização da verdade e colocação do homem no centro de toda a verdade e conhecimento, de forma que a verdade real não é perceptível por completo, pois passa pelo filtro humano e é carregada da percepção individual de cada sujeito. Com isso, os discursos são formados pela adesão dos interlocutores e daqueles que são convencidos, formando assim os valores sociais que são impostos aos demais, como se verdades fossem, embora esse conceito de verdade seja bastante relativizado. Dentro do universo jurídico, a maior contribuição dos sofistas foi justamente a construção da retórica, oratória e argumentação, que marcam os sistemas atuais e têm enorme relevância no debate jurídico contemporâneo. 1.3 Direito em Roma A Roma antiga sem sombra de dúvidas foi um dos períodos de maior alargamento cultural da humanidade, tendo o Império Romano se expandido para todo o mundo ocidental considerado em sua época o nascedouro cultural de inúmeras correntes filosóficas. Em Roma, também, fundou-se a sede da Santa Sé, com a expansão do Cristianismo e da Igreja Católica, que marcou o desenvolvimento do Direito Canônico, como se verá mais adiante, bem como marcou o berço do Iluminismo. Os conceitos de pátria e nação foram instituídos com maior profundidade pelo Império Romano, marcado pelo nacionalismo e pela definição da estrutura Estatal com a organização do Estado nos três poderes. Ainda no tempo da Monarquia romana, o Poder Legislativo já passava pela intervenção do Senado, composto pelos descendentes livres dos fundadores de Roma, e que detinham influência política sobre o Rei. 43 Dentro do conceito de cidadania romana, apenas os patrícios poderiam ser considerados cidadãos romanos com participação política, enquanto a outra classe livre era composta pelos plebeus, que detinham apenas o direito de domicílio em terras romanas, sem qualquer direito de cidadania. Além dos homens livres, existiam também os estrangeiros, considerados clientes, que eram recebidos e protegidos pelos patrícios, voltando suas atividades ao consumo e produção de riquezas nas terras de propriedade dos cidadãos romanos e sob seu comando. Por fim, ainda, existia na estrutura da civilização romana a figura dos escravos, equiparados às propriedades comuns pertencentes aos seus senhores livres. E é devido à apropriação dos escravos que nasceu o conceito de coisa, res, considerada pelos romanos atrelada ao direito real ou direito de propriedade. Nesse período de monarquia romana, embora existisse o reconhecimento da tripartição dos poderes, todos eles ficavam sob o controle do monarca, com influência legislativa conferida aos patrícios, apenas. Contudo, com a evolução da cultura romana, formou-se a República romana, com uma bipartição substancial dos poderes e sua descentralização das mãos do governante. Os poderes descentralizados passaram a ser exercidos, cada um em sua competência, por órgãos e pessoas distintas. Foram divididos em Poder Consultivo e Poder de Imperium, o primeiro relativo à consultoria legislativa e o segundo relacionado aos poderes executivo e judiciário. No período da República romana, ficaram marcadasas fontes do Direito Romano, que acabaram por servir de base para as fontes modernas. Tais fontes poderiam ser definidas (ALBERGARIA, 2012), como: 1- A Jurisprudência; 2- As definições e edições feitas pelos Magistrados (em uma equiparação à doutrina moderna); 3- O plebiscito (marcando a participação dos patrícios no sistema jurídico); 4- Os costumes; 5- A lei. Embora não hierarquizados em si, percebe-se que as leis assumiram um papel paralelo voltado à aplicação em conjunto com as demais fontes que a complementam. Ainda em relação a este contexto da lei, o Direito Romano trouxe uma contribuição singular para a história do Direito, em uma franca evolução de Direitos Civis e Políticos. Essa evolução foi marcada pela Lei das XII tábuas, que trazia em seu contexto todo o regramento da vida em sociedade e organização do Estado. Ainda, acrescentando, pela primeira vez na história, a clara diferença entre o Direito, a Moral e a Religião, regrando cada competência de per si. Na referida legislação há toda a formação de dogmas jurídicos que se perpetuaram no tempo, e que, até a atualidade, são utilizados nos sistemas modernos, como a força vinculante dos contratos (pacta sunt servanda), ou até mesmo relações de direito de propriedade, marcadas pelo reconhecimento da res e definições dos interesses de todo o Estado, com a definição da res publica (coisa pública). 44 Com o fim da República romana nasce o Império Romano, com a retomada da concentração de todo o poder nas mãos do imperador, que governa absoluto. Contudo, em razão da máxima expansão do Império Romano pelo mundo antigo, e pelo acúmulo de inúmeras pessoas que estavam sobre as regras do então Império, o Direito Romano seguiu em franca expansão. Neste período foi acrescentado que o Direito é uma regulamentação da Justiça e dela deriva, mas com ela não se confunde, de tal sorte que vem para regular a vida e tornar os aspectos sociais mais próximos do justo, mas com a consciência de que não reflete com perfeição esse ideal. O contexto também ficou conhecido pelo início das codificações, pautando-se pela reunião dos éditos dos Magistrados, anunciados como normas de procedimento e que foram compilados em um texto único, dada a sua enorme quantidade, visando à facilitação do entendimento e cumprimento das regras. Em continuidade, durante o Império nasceu a Lex Hortensia, que marcou a concessão de força de lei às decisões dos plebiscitos, enfatizando a soberania popular, bem como permitindo o casamento livre entre os livres (patrícios e plebeus) no Império Romano, ampliando também os conceitos de cidadania. No desenvolvimento histórico da Roma antiga, houve a cisão do Império em Roma Ocidental e Roma Oriental. Na Roma Oriental, cuja capital foi instalada na fundada cidade de Constantinopla, o Direito sofreu grande alargamento e evolução, de forma que foi neste momento histórico que surgiu a base romana da legislação moderna, sobretudo, a Brasileira. O primeiro marco jurídico foi o Corpus Iuris Civilis do Imperador Justiniano, que se desenvolveu pelo marco da vida civil no Império Oriental, sofrendo modificações para o alargamento dos direitos civis e formando a base do Direito Civil moderno. Essa legislação, segundo Albergaria (2019), era composta por quatro partes: O Codex; o Digesto; as Institutas; e as Novelas. O Codex surgiu como a reunião das inúmeras leis romanas até então vigentes, pautando-se pela tentativa de organização de todo o conteúdo legislativo do Império e correspondia ao que atualmente temos nos Códigos ou nas Consolidações de Leis. Os Digestos eram compilações de jurisprudência, focados à reunião dos pensamentos dos jurisconsultos e voltados para a consolidação desta fonte do Direito mais ligada à resolução dos casos concretos. É o que se tem hoje com a jurisprudência e com os repertórios de jurisprudência. As Institutas representavam um manual de procedimentos e normas de estudo para o Direito Romano, com a orientação e os ensinamentos ao aplicador do Direito e aos estudantes da época. Em muito é assemelhado ao que atualmente é feito pela Doutrina. 45 As Novelas, por sua vez, eram as alterações posteriores que vieram sobre o Codex e às leis então vigentes. Nada mais foram do que as normas que se sobrepuseram às presentes no Codex em evolução jurídica, revogando as disposições antigas. Considerações Finais A evolução histórica do Direito, desde a Antiguidade, remonta à evolução e formação da própria sociedade. Como se viu, o homem é um ser gregário e social por natureza, reunindo-se com os demais de sua espécie na formação de sociedades que têm por início histórico pequenos grupos ou tribos para uma evolução que chega na sociedade moderna que se tem hoje. Assim, com o surgimento dessas sociedades, emerge a necessidade de maior exploração do Direito com vias a manter a ordem social e determinar as regras que devem ser seguidas pelos componentes desses grupos gregários. Com isso, veja que a natureza humana proporciona o conhecimento de seus aspectos históricos e a transmissão dessa evolução para as sociedades futuras, o que gera a constante evolução de conceitos e o desenvolvimento da ciência. A história vai sendo passada de geração em geração, postergando-se ainda mais em sucessão no tempo após a invenção da escrita. Diante disso, o Direito também se beneficiou historicamente da construção escrita de seus regramentos, e na transmissão de sua prática, permitindo às civilizações, em sucessão, desenvolverem seus institutos para adequar à sociedade então vigente e ampliar os conceitos de pacificação social e busca da justiça como ideal maior. Porém, em dois marcos históricos de destaques o Direito sofre evoluções mais marcantes, sendo o primeiro deles na Grécia antiga, não como norma em si ou como regramento, mas como prática, principalmente no que concerne à interação com outras ciências, como a retórica e a argumentação, que são assumidas como base para a prática do Direito moderno, e inaugurada pelos Sofistas. O segundo marco de destaque é o Direito Romano, que inaugura as bases fundamentais da estrutura do Estado e o reconhecimento da res publica no Direito, e desenvolve as instituições do Direito Civil, com o estabelecimento de normas e dogmáticas replicadas até o momento atual. É evidente que a história do Direito tem seu berço nas civilizações antigas, mas se desenvolve ao longo da história com inúmeras e crescentes contribuições, com o desenvolvimento do que se verá na Idade Média e no crescimento do Direito Canônico, bem como nas modificações que virão nas eras industriais, coloniais até o Direito Moderno. O que se percebe, da história antiga do Direito é que há, já na Antiguidade, a modificação de conceitos e penalidades que partem de aspectos mais severos para um regramento mais pacífico da ordem social e uma abertura dos direitos com vias à igualdade. 46 Nesse capítulo foi vista parte da história antiga do Direito, marcando desde os períodos da pré-história e civilizações antigas até o desenvolvimento das civilizações gregas e romanas, com a ênfase de toda a evolução legislativa e jurídica alcançada pelo homem ao longo dos séculos. Na Antiguidade e pré-história, era marcado pelas características da oralidade, uma vez que inexistia escrita; pela diversidade, variando de tribo para tribo; e era influenciado pela religião ou culto do chefe da tribo. Dentre essas normativas ancestrais, a Estela dos Abutres surgiu reconhecendo o direito ao território como um dos elementos constitutivos do Estado. Ao seu lado, o Código de Ur-Nammu relatava regras de conduta e suas punições atreladas sob a égide da lei de Talião. O Código de Eshununna que trouxe o contexto de organização judiciária para o processamento das infrações legais, bem como a estrutura de organização do Estado, e, por fim, o Código de Hammurabi, pautadopela pacificação social, utilizava-se da Lei de Talião e estabelecia regras bastante completas sobre a vida em sociedade como normas relativas à propriedade, organização do Estado, formação e preservação da família, além de uma vasta regulamentação quanto ao exercício de diversas profissões. O mundo grego foi marcado pelo grande avanço nas ciências em geral, mas as legislações produzidas no mundo Grego antigo não tiveram tamanho impacto, nem foram tão marcantes quanto às demais ciências, porém, pôde enfatizar que o Direito era intimamente ligado à mitologia e a construção sobre elementos morais e éticos da sociedade. O marco jurídico grego da Lei de Drácon, que instituiu um processo judicial mais democrático e transparente fez surgir a publicidade no sistema jurídico como aspecto fundamental, porém, foi um sistema marcado por penalidades extremamente gravosas aos transgressores. Diante dessa alta severidade, surgiu a Lei de Sólon que trouxe a proibição da escravidão por dívidas, bem como a instituição do regime social censitário, marcada pela concessão de representação política àqueles que contribuíam em mais altos valores aos cofres públicos, trazendo, assim, a possibilidade de modificação de estamentos sociais, que outrora não eram permitidos. Porém, a maior contribuição do mundo Grego antigo para os sistemas jurídicos atuais foi a filosofia jurídica tal qual é apresentada nos dias atuais, marcada em destaque pela corrente Sofista, pautada pela relativização da verdade e colocação do homem no centro de toda a verdade, com a construção da retórica, oratória e argumentação, que marcam os sistemas atuais e têm enorme relevância no debate jurídico contemporâneo. A Roma antiga sem sombra de dúvidas foi um dos períodos de maior alargamento cultural da humanidade, introduzindo os conceitos de pátria e nação que foram instituídos com maior profundidade pelo Império Romano. Trouxe também uma definição maior sobre as fontes do Direito, abrangendo não só a lei e os costumes, mas também a jurisprudência. O maior marco jurídico foi o Corpus Iuris Civilis do Imperador Justiniano, que se desenvolveu pelo marco da vida civil no Império Oriental. 47 O ser humano, diferente dos demais animais, é dotado de uma capacidade histórica consciente, pois, enquanto os demais animais desenvolvem sua evolução histórica pela marcação de instintos geneticamente transmitidos, o ser humano é capaz de sintetizar suas evoluções e pensamentos em relatos históricos que são transmitidos aos seus descendentes. Por essa capacidade de transmitir sua história, o ser humano permanece em constante evolução de saberes e constante crescimento em suas práticas sociais e científicas, pois os estudos de uma geração são paulatinamente transmitidos para as próximas que acrescentam saber. É graças a essa capacidade histórica que as ciências se desenvolvem, evoluem, e são acrescidas de novas informações, sempre partido das premissas e verdades já conquistadas pelo ser humano, não havendo a necessidade de redescobertas infinitas. Considerando esse trecho, reflita em como a História da Humanidade contribuiu para o avanço das ciências em geral, com o acúmulo de conhecimento e pela transmissão aos descendentes e gerações futuras, imaginando o tamanho das inovações tecnológicas que foram alcançadas. Tente dentro de sua retrospectiva de vida, verificar quais elementos de sua história contribuíram para o acúmulo de conhecimento que será passado para seus descendentes. A Roma antiga trouxe uma definição maior sobre as fontes do Direito, abrangendo não só a lei e os costumes, mas também a jurisprudência. Ou seja, colocou a Jurisprudência com o status de fonte do Direito e marcou sua importância para os sistemas jurídicos atuais. Embora o Direito tenha historicamente sido marcado pela invenção da escrita e pela formação dos textos jurídicos primitivos, remonta, em verdade, ao nascimento das primeiras sociedades tribais, sendo item naturalmente desenvolvido e intimamente ligado à condição gregária social do homem. Assim, cada fato social repercute diretamente no Direito. E onde há sociedade, há o Direito (ubi societas, ibi ius). 48 Pesquise mais sobre as normas do Corpus Iuris Civilis do Imperador Justiniano, reconhecido como a legislação romana mais marcante e, ainda, verifique a natureza das normas nele contidas, sobretudo, observando que não se trata de um diploma apenas civil, mas de um marco regulatório de toda a estrutura do Estado. Acesse o link e conheça um pouco mais da formação do Direito Romano e como ele repercute na sociedade jurídica atual e perceba, também, a forte influência que tem no sistema jurídico brasileiro. https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-73/o-direito-romano-e-suas-fases-principais-eventos- organizacao-social-politica-judiciaria-e-fontes-do-direito/ QUESTÃO: A natureza historicista do ser humano é inerente à sua origem e com o homem tem caminhado desde o início das civilizações. Essa natureza decorre naturalmente da condição gregária do ser humano, que se reúne em grupos por uma questão social e de preservação e, com esse grupo, tem a necessidade natural de desenvolver suas habilidades e contar suas experiências. Diante disso, é correto afirmar que: A) Não é natural do homem buscar a reunião com seus semelhantes, sendo a sociedade uma construção jurídica; B) A formação da sociedade remonta à natureza humana, mas o Direito é uma construção abstrata e desnecessária, uma vez que os conflitos não existem em sociedades primitivas; C) A existência da sociedade é posterior à formação dos institutos jurídicos; D) A existência da sociedade pressupõe a necessária formação de sistemas jurídicos que têm por intuito a pacificação social; E) O Direito surge historicamente apenas a partir da escrita; A questão é corretamente respondida pela alternativa D, pois o Direito e a formação dos sistemas jurídicos, com vias à pacificação social pressupõe a formação da sociedade, que decorre naturalmente da existência humana. Observe que as alternativas A e C estão incorretas, pois se equivocam quanto à formação da sociedade, respectivamente, quanto à sua natureza intrincada com o ser humano e porque é formada antes da existência do Direito. A alternativa B está incorreta, pois relata que o Direito é uma construção desnecessária, presumindo que não existem conflitos, o que não corresponde à verdade, ainda mais em civilizações primitivas. 49 Por fim, a alternativa E é incorreta, pois o Direito surge quase que no mesmo tempo da reunião social, existindo evidências de sua formação mesmo antes da invenção da escrita. Questão Objetiva No período da República romana ficaram marcadas as fontes do Direito Romano, que acabaram por servir de base para as fontes modernas. Tomando essa premissa, não é fonte o que consta na alternativa: A) Jurisprudência; B) Costumes; C) Leis; D) Estratégias de guerra; E) Plebiscito; GABARITO: D Questão Discursiva Por qual motivo a Lei de Drácon foi objeto de reforma pela posterior Lei de Sólon? Explique e justifique com base nos ideais históricos da reforma. Obra: WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de história de direito. 3. ed. 2.tir. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. A obra é composta pela reunião de escritos de vários autores que relatam o desenvolvimento histórico do Direito e suas bases fundamentais. Nessa obra você encontrará diferentes visões sobre a História do Direito, estruturada em períodos marcantes. A leitura contribui para o estudo da disciplina, tem uma agradável condução coesa em relação aos momentos históricos existentes, de forma que proporciona a compreensão mais clara e linear da evolução que existe no Direito ao longo das eras. Paulatinamente: de forma repetitiva Gregário: relativo à formação de grupos 50 Soberania: Poder de comando em última instância; Pode MaiorPunibilidade: relativo à imposição de penas Segregário: que desagrega, separa Transgressores: aqueles que violam as normas e regras Jurisprudência: conjunto de decisões provenientes dos Tribunais ALBERGARIA, Bruno. Histórias do direito: evolução das leis, fatos e pensamentos. 3. ed. São Paulo: Kindle, 2019. WOLKMER, Antônio Carlos (Org.). FUNDAMENTOS de história do direito. 8.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015. ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 16.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa Omega, 1997. 51 UNIDADE I CAPÍTULO 2 – IDADE MÉDIA No término deste capítulo, você deverá saber: ✓ Direito na Idade Média e o Crescimento do Direito Canônico; ✓ A Idade Média e o nascimento do Direito Comercial; ✓ A Idade Média e o nascimento do Constitucionalismo; ✓ A Idade Média e a Herança Brasileira do Ordenamento Português; ✓ O fim da Idade Média e o Renascimento. Introdução Com a queda do Império Romano e a desestruturação do comércio na época, as instituições do Império Romano começaram a ruir e a população anteriormente urbana migrou pra um prisma rural, focado na produção de seu próprio sustento. Assim, com o rompimento das antigas estruturas do Império e sua queda, as invasões de outros povos começaram a ocorrer, o que contribuiu ainda mais para a formação de pequenos núcleos rurais, em que um suserano assumia a propriedade das terras e permitia o cultivo pela plebe sob a proteção de seus muros e guarida contra eventuais invasões. Com isso, surgiram os feudos, sob o domínio absoluto dos senhores feudais, suseranos e proprietários das terras cultivadas pelos camponeses e que ofereciam proteção em contrapartida por parte da produção rural estabelecida. Nesse novo contexto social, com a instituição dos feudos e o distanciamento das normativas reais, a Igreja Católica emergiu como fonte do regramento social, atrelando os conceitos jurídicos aos dogmas religiosos e a transposição dos Tribunais Romanos pela Inquisição Cristã. Com o domínio da Igreja nas relações sociais, o conhecimento das ciências também ficou por seu encargo, com a condensação de todo o conhecimento científico em poder da Religião e em união com seus dogmas. Nesse período, a Igreja detinha o monopólio da escrita e do ensino, fundando as Faculdades que eram as responsáveis pelo ensino de qualquer ciência até então conhecida, dentre as quais o Direito. Assim, o período foi marcado pelo estudo do Direito com base na herança romana e no Direito Romano, mas também com ênfase no chamado Direito Canônico, reconhecido como o Direito da Igreja Católica, calcado em seus dogmas e regras litúrgicas. O ensino jurídico era marcado pela predominância dos dogmas católicos e, ainda, pela limitação do saber científico, com a cisão do pensamento livre que outrora era o cerne filosófico das civilizações, para um conhecimento limitado e direcionado pela Igreja. Nesse contexto histórico, o pensamento filosófico jurídico também era ligado à religião, pautando-se pela existência de uma lei natural, e da lei positiva, proveniente da razão humana e que devia ser 52 orientada pela lei natural e divina, uma vez que apenas esta poderia ser considerada justa, pois emana do próprio Deus. 2.1 Direito na Idade Média e o crescimento do Direito Canônico Foi no contexto da Idade Média que surgiram o Direito Canônico e o domínio da Igreja sobre todo o saber, notadamente o saber jurídico. Tomando a premissa de que todo o conhecimento era proveniente da Igreja Católica e que os senhores feudais, pela ausência de conhecimento, eram a ela subordinados, o Direito Canônico surgiu com a força de todo um sistema jurídico novo e controlado por um centro unificado, a Igreja. Com o empoderamento da Igreja, enquanto instituição e com a concentração de todo o conhecimento em suas mãos, a Igreja viu a necessidade de organizar o seu regramento jurídico interno, com a aplicação de normas para aqueles que compunham o seu corpo organizacional, como padres, monges, entre outros. Nesse momento, surgiu o Código Canônico, dividido em cânones, na forma de artigos tal qual a legislação que conhecemos hoje. Porém, essas normas, em razão do poderio alcançado pela Igreja e pelo domínio de todo o conhecimento e sua capacidade de se impor como representante da vontade divina sobre os suseranos feudais, foram estendidas para toda a população dos feudos, que passaram a viver sob a égide não só da herança do Direito Romano, como agora sob o prisma do Direito Canônico e os dogmas da Igreja Católica. Na estrutura do Direito Canônico, então imposto pela Igreja, toda a sociedade deveria seguir os dogmas impostos para que pudesse, então, ao final da vida, encontrar a salvação divina. Para tanto, escalonava a sociedade em papéis sociais distintos e imutáveis, rompendo, assim, com os antigos conceitos que permitiam a mudança de classe social. Para o Direito Canônico, existiam apenas três estamentos sociais, o clero, composto pelos membros da Igreja, no mais alto escalão, com o fornecimento de todo o conhecimento então disponível; os senhores feudais, que também legitimavam seus exércitos, como suseranos maiores das terras, em representação política e domínio da nobreza; e, por fim, o povo em geral, responsável pelo trabalho e pela alimentação da economia, sendo o escalão mais baixo na sociedade. Através das regras de nascimento se delineavam os ofícios e as posições sociais, para assegurar que não houvesse qualquer mudança de classe ou conturbação da ordem imposta pelo Direito Canônico, que fazia uma alusão no nascimento como a vontade de Deus. Com o domínio do clero e o monopólio de conhecimento da Igreja para assegurar a manutenção de seus ditames e a difusão do Direito Canônico, cada castelo era habitado por um membro do clero que exercia forte influência sobre os senhores feudais (autoridade política mais alta no feudo). Para a manutenção do poder da Igreja e para a aplicação das normas do Direito Canônico foi criado o Tribunal da Santa Inquisição, focado na persecução e na punição daqueles que transgredissem os 53 dogmas católicos, incumbindo, naturalmente, ao clero selecionado a execução dos julgamentos e aplicação das penalidades. Nesse contexto, nasceu, historicamente, um procedimento inquisitivo, em que não existia a garantia do contraditório, sendo a Igreja responsável pela persecução e julgamento dos infratores. Atrelado a Santa Inquisição, surgiu o instituto da delação premiada, até hoje vigente no sistema penal, mas que se consubstanciava na remuneração com parte dos bens do condenado em favor daquele que realizava a denúncia de infratores. Embora o Código Canônico fosse baseado nos dogmas católicos e não focado à aplicação de penalidades, a Inquisição o fazia em complementação, inclusive se valendo da aplicação de torturas e outras práticas severas para a punição dos transgressores. É um período histórico marcado por um forte rompimento de garantias de não violência, marcado pela aplicação de penalidades severas agressivas contra os, então, ditos transgressores. 2.2 A Idade Média e o nascimento do Direito Comercial A Idade Média, contudo, não foi apenas marcada pela presença da Igreja e do Direito Canônico, sendo também o berço do Direito Comercial, dada a alta movimentação comercial existente na época. Como dito, o período foi marcado pela definição dos ofícios para os camponeses, que desenvolviam a sua atividade de trabalho para o próprio sustento, dotados de especialidade em seus ofícios. Diante dessa realidade, surgiu, naturalmente, uma forte exploração do comércio, seja através do escambo ou da troca por moeda cunhada, retomando alguns preceitos queforam destruídos com a queda do Império Romano. Além disso, a interação com outros povos, como os árabes e judeus tornou propício o alargamento das relações comerciais e o intercâmbio de produções, contribuindo para conceitos básicos que são encontrados no Direito Comercial moderno. No mais, foi no período da Idade Média que surge a classe social dos comerciantes, chamados de burgueses, que, por serem detentores de grandes riquezas, por vezes, assumiam papéis políticos de destaque e de interesse dos governantes e da Igreja. Os comerciantes, não submetidos às regras feudais de convivência e de exploração da terra, bem como aos regramentos do Direito Canônico, desenvolveram um sistema próprio para a solução de conflitos envolvendo suas atividades comerciais. Com isso, inúmeros sistemas de moeda, troca, resolução de disputas, contratos mercantis de comércio contínuo, empréstimos, crédito e sistemas assemelhados aos bancários foram surgindo e sendo regidos por normas costumeiras e uniformes. 54 Nesse contexto, surgiram as sociedades empresariais, com vias a possibilitar as práticas mercantis de maior vulto e esquivar-se de sistemas proibitivos impostos pela Igreja, como a cobrança de juros para créditos concedidos. Esse novel ramo jurídico, de origem feudal, tinha como características ser um direito de origem puramente costumeira, independente dos regramentos da Igreja e dos Senhores Feudais, e, por fim, autorregulado, ou seja, cujos conflitos e normas eram estipulados pelos próprios comerciantes através de seus contratos e práticas corriqueiras. 2.3 A Idade Média e o nascimento do constitucionalismo Além da figura dos senhores feudais, como suseranos das terras exploradas pelos camponeses e da Igreja com o domínio do conhecimento, na época medieval os países, com a reunião dos feudos e em escalas maiores, eram organizados pelos monarcas que detinham o poder absoluto de suas nações. Assim, o que se deve imaginar é que o monarca reinava sob todo o território de sua nação estruturada em um sistema feudal em que os senhores dos feudos eram os nobres proprietários de terras. Os monarcas, na posse do poder absoluto, teriam o poder maior e a última palavra em quaisquer questões do Estado e eram responsáveis pela estruturação da nação em termos gerais. A monarquia da época foi marcada pelo Absolutismo extremo, sobretudo, a monarquia Francesa, marcada pelos reinados como o de Luiz XVI, mas a monarquia também era conhecida na Inglaterra. Porém, foi na Inglaterra que o poder do monarca sofreu as primeiras restrições do Constitucionalismo, com o reconhecimento dos direitos fundamentais da população contra o poder absoluto do rei. Nesse contexto, merece especial destaque a Carta Magna inglesa, que estabeleceu ao então rei João, uma série de limitações em seu poder em prol do povo que almejava melhores condições de vida e maior dignidade. O teor da carta impunha ao rei a criação do parlamento inglês para melhor representação do povo junto ao poder, trazendo o Constitucionalismo à monarquia, de forma a assegurar com maior intensidade a garantia de direitos fundamentais ao cidadão. A carta de caráter garantidor, promulgada em 1215, assumiu papel de tamanha importância que serviu de inspiração para a própria Declaração Universal de Direitos Humanos e consagrou, em seu texto, a ideia de liberdade que foi, além do rei João sem Terra, ratificada pelos seus sucessores, reinado após reinado. Nesse sentido: Por sua vez, a Magna Carta consistiu em um diploma que continha um ingrediente – ainda faltante – essencial ao futuro regime jurídico dos direitos humanos, o catálogo de direitos dos indivíduos contra o Estado. Redigida em latim, em 1215, – o que explicita o seu caráter elitista – a Magna Charta Libertatum consistia em disposições de proteção do Baronato inglês, contra os abusos do monarca João Sem Terra (João da Inglaterra). Depois do reinado de João Sem Terra, a Carta Magna foi confirmada várias vezes pelos monarcas posteriores. Apesar de seu foco nos direitos da elite 55 fundiária da Inglaterra, a Magna Carta traz em seu bojo a ideia de governo representativo e ainda direitos que, séculos depois, seriam universalizados, atingindo todos os indivíduos, entre eles o direito de ir e vir em situação de paz, direito de ser julgado pelos pares, acesso à justiça e proporcionalidade entre o crime e a pena. (RAMOS, 2014) É nesse contexto que nasce o que atualmente se conhece por Estado de Direito, em que nem mesmo o Rei, como governante absoluto, está acima das normas e do ordenamento jurídico estabelecido. O paradigma inglês naturalmente ecoou na história resultando, também, no rompimento de outras ordens monárquicas, que perduraram por mais tempo, mas também não resistiram à instalação do Estado de Direito. 2.4 A Idade Média e a herança brasileira do Ordenamento português Aproximadamente um século após o início do Constitucionalismo inglês, Portugal estabeleceu em seu sistema jurídico uma série de normativas que se tornariam base para a legislação brasileira em alguns aspectos. Assim, surgiram as Ordenações de Portugal como compêndios de normas que serviriam de bases para os juízes na aplicação do Direito, não como leis em si, mas como norteadores históricos do pensamento jurídico nacional. As primeiras dessas Ordenações foram as Ordenações Afonsinas, que datam de 1446 e continham normas sobre a estrutura do Estado português, estrutura judiciária, regras de processamento e persecução criminal, bem como definiam as regras de relações entre a Igreja e o Estado. Lembrando que ocorreram durante a Idade Média, as ordenações foram feitas levando em consideração a forte influência da Igreja e foram marcadas pela preservação da Religião, bem como pela representatividade política da Igreja, sofrendo fortíssima influência do Direito Canônico. Pelo momento histórico em questão, o Brasil foi descoberto ainda na vigência das Ordenações Afonsinas, sendo, historicamente, essa a primeira normativa nacional a ser considerada dentro do panorama histórico-legislativo nacional. Poucos anos depois do descobrimento do Brasil, Portugal edita novas ordenações em alteração as então vigentes Ordenações Afonsinas, implementando as Ordenações Manoelinas, que, em suma, trouxeram em seu conteúdo a anistia aos mouros e judeus exilados, maior autonomia à Fazenda Nacional e novas diretrizes de interpretação. Além disso, as novas ordenações traziam normas de revogação da anterior, com a determinação de remoção das mesmas e penalização àqueles que as utilizassem. Por fim, e com tamanha importância para o sistema jurídico português e brasileiro, surgiram as Ordenações Filipinas, que ficaram vigentes durante longos períodos na história tanto de Portugal quanto do Brasil. 56 O momento histórico das ordenações Filipinas ocorreu com a morte do Rei português, Dom Sebastião, que não deixou sucessores, sendo que o reino de Portugal ficou sob a regência dos reis espanhóis até a coroação de Dom João IV. As ordenações Filipinas, embora provenientes do reinado espanhol sobre Portugal, foram editadas em atualização às ordenações Manoelinas, sem o acréscimo de conteúdos diferentes, visto que a preocupação do monarca regente era justamente manter a cultura e os costumes portugueses incólumes durante o período de regência. Essas ordenações tiveram sua vigência até a edição do Código Civil Português e do Código Civil Brasileiro, cada qual em seu tempo, respectivamente em 1867 e 1916, com o Brasil já independente, inclusive, perfazendo a primeira legislação civil Brasileira pós-independência. 2.5 O fim da Idade Média e o Renascimento A Idade Média, encerrando o ciclo das civilizações antigas e médias, encontrou seu colapso com o assolamento do povo pela Peste Negra que dizimou grande parte da população da Europa antiga e colapsou o sistema feudal.Com a propagação da peste pela falta de higiene e pela contaminação, inclusive do clero, a Igreja acabou por perder prestígio no seu domínio em monopólio sobre o conhecimento e impôs ao homem a necessidade de uma retomada de pensamentos filosóficos desvinculados dos dogmas católicos e religiosos. Nesse contexto, encerrou-se o ciclo histórico do Direito nas eras mais antigas, e o rompimento do domínio religioso nas normas jurídicas, abrindo espaço para o nascimento de um Direito fundado no pensamento racional e científico. Considerações Finais O período da Idade Média foi marcado pelo forte rompimento dos paradigmas anteriormente conquistados, baseados em um Direito preocupado com o punir e manter a ordem social para um fortalecimento do Direito atrelado à religião. Embora o período da Idade Média tenha sido conhecido, historicamente, como um período de trevas e marcado pela ausência de uma expansão cultural, para o Direito constituiu um marco de extrema importância para os sistemas jurídicos modernos, pela constituição de sistemas jurídicos baseados em estruturas normativas mais sólidas. Foi também nesse período que o Constitucionalismo nasceu na Inglaterra com a promulgação da Carta Magna, reconhecendo os direitos fundamentais basilares e de primeira dimensão, garantindo ao cidadão direitos contra o próprio Estado e contra o exercício arbitrário dos desígnios dos governantes. O Direito Canônico também assumiu enorme relevância na construção estatal, pois, mesmo consubstanciado em dogmas religiosos, traduziu um regramento bastante completo da vida civil, estabelecendo obrigações e incluindo valores morais no sistema jurídico. 57 A inquisição também teve seu papel histórico relevante na supressão de direitos e na necessidade de realização de julgamentos com a garantia do contraditório e da ampla defesa, que não eram considerados pela inquisição, resultando em relatos históricos bastante gravosos à condição humana. No panorama interno do Brasil, foi na Idade Média que surgiram as primeiras ordenações e legislações que vigeram em território nacional, sendo a forma direta de contribuição da herança do Direito Civil Português para o sistema nacional conhecido atualmente. Além disso, foi na Idade Média que surgiu um dos ramos mais significativos do Direito, que permanece autônomo até a atualidade, que é o Direito Comercial, hoje conhecido como Direito Empresarial, bem como inúmeras de suas instituições permanecem inalteradas em substância desde a sua formação. Por fim, com o término da Idade Média o homem buscou, em um novo momento histórico, a reabertura do pensamento filosófico e a redescoberta cultural e de conhecimento, pois, após os momentos de crise enfrentados nesse período de chamadas Trevas, a necessidade de reinvenção motiva o ser humano para novas criações e para a busca de um Estado mais justo e adequado em termos jurídicos. Assim, de todas as contribuições do período da Idade Média, merece destaque absoluto a constituição do chamado Estado de Direito, que se origina do Constitucionalismo e irá se desenvolver, historicamente, pelo acréscimo de novos direitos e novas garantias ao homem, visando não só a pacificação social pretendida na Antiguidade, mas também o bem estar social, a equidade e outros fatores que norteiam o contexto jurídico atual. Foi no contexto da Idade Média que surgiu o Direito Canônico e o domínio da Igreja sobre todo o saber, notadamente o saber jurídico. Com o empoderamento da Igreja, enquanto instituição, e com a concentração de todo o conhecimento em suas mãos, a Igreja viu a necessidade de organizar o seu regramento jurídico interno, com a aplicação de normas para aqueles que compunham o seu corpo organizacional, como padres, monges, entre outros. No Direito Canônico, existiam apenas três estamentos sociais, o clero, composto pelos membros da Igreja, no mais alto escalão, com o fornecimento de todo o conhecimento então disponível; os senhores feudais, que também legitimavam seus exércitos, como suseranos maiores das terras, em representação política e domínio da nobreza; e, por fim, o povo em geral, responsável pelo trabalho e pela alimentação da economia, sendo o escalão mais baixo na sociedade. Com isso, foi criado o Tribunal da Santa Inquisição, focado na persecução e na punição daqueles que transgredissem os dogmas católicos, incumbindo, naturalmente, ao clero selecionado a execução dos julgamentos e aplicação das penalidades. Assim, nasceu, historicamente, um procedimento inquisitivo, em que não existia a garantia do contraditório, sendo a Igreja responsável pela persecução e julgamento dos infratores, surgiu, também, o instituto da delação premiada, até hoje vigente no sistema penal, mas que se consubstanciava na remuneração com parte dos bens do condenado em favor daquele que realizava a denúncia de infratores. 58 A interação com outros povos, como os árabes e judeus tornou propício o alargamento das relações comerciais e o intercâmbio de produções, contribuindo para conceitos básicos que são encontrados no Direito Comercial moderno. Os comerciantes, não submetidos às regras feudais de convivência e de exploração da terra, bem como aos regramentos do Direito Canônico, desenvolveram um sistema próprio para a solução de conflitos envolvendo suas atividades comerciais. Com isso, inúmeros sistemas de moeda, troca, resolução de disputas, contratos mercantis e as sociedades empresariais, surgiram com a mesma estrutura que se vê atualmente. Além da figura dos senhores feudais, como suseranos das terras exploradas pelos camponeses e da Igreja com o domínio do conhecimento, na época medieval os países, com a reunião dos feudos e em escalas maiores eram organizados pelos monarcas que detinham o poder absoluto de suas nações. Porém, foi na Inglaterra que o poder do monarca sofreu as primeiras restrições do Constitucionalismo, com o reconhecimento dos direitos fundamentais da população contra o poder absoluto do rei. Nesse contexto, merece especial destaque a Carta Magna inglesa, que estabeleceu ao então rei João, uma série de limitações em seu poder em prol do povo que almejava melhores condições de vida e maior dignidade. O paradigma inglês naturalmente ecoou na história resultando, também, no rompimento de outras ordens monárquicas, que perduraram por mais tempo, mas também não resistiram à instalação do Estado de Direito. Observe o trecho a seguir: “O direito canônico nasce como discurso que exclui a cultura e o diferente quando se autodenomina único e natural através do processo de “canonização” das interpretações e, principalmente, quando, sob esse pretexto, funda e pune o comportamento herético e também quando especifica as práticas de excomunhão e penitência. A lógica dogmática se materializa enquanto prática repressiva institucionalizada, como formadora do comportamento humano através da supressão de quaisquer realidades simbólicas distintas da “verdade” codificada”. (WOLKMER, 2006). Tomando as informações por base, reflita em como o monopólio de todo o conhecimento da Idade Média em poder do clero repercutiu para a imposição do dogma religioso e na consagração do Direito Canônico como realidade jurídica na Idade Média. As primeiras legislações brasileiras foram provenientes do contexto jurídico de Portugal, de tal forma que, mesmo após a independência do Brasil, vigeu no território nacional a legislação portuguesa das Ordenações Filipinas, que foram criadas pela realeza espanhola durante o período de regência sobre Portugal. 59 O Constitucionalismo nascido na Inglaterra no tempo de João sem terra repercutiu em efeitos por todas as demais civilizações da Europa e se tornou a base do Constitucionalismo moderno. Antes das grandes Guerras Mundiais, o movimento do Constitucionalismo sofreu inúmeros acréscimos em seus Direitos, sempre somando novas limitações ao Estado e cobrançasde sua participação como ente regulador da vida social, com vias a garantir os Direitos do povo. Com o Constitucionalismo, o centro do Poder migra dos governantes e regentes para o Povo, demonstrando a perfeita ideia que hoje é esposada pela Constituição Federal Brasileira, que define, como um dos fundamentos do Estado que todo o poder emana do povo. Pesquise mais sobre a Santa Inquisição e seus procedimentos de persecução das infrações aos cânones da Igreja. Busque sobre procedimentos e julgamentos, sempre com vias a estabelecer um paralelo na atividade inquisitória do inquérito de polícia moderno. Consulte a íntegra das ordenações Filipinas para verificar seu conteúdo e observar a influência dentro do Direito Brasileiro. http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm Leia o trecho a seguir: Como dito, o período foi marcado pela definição dos ofícios para os camponeses, que desenvolviam a sua atividade de trabalho para o próprio sustento, dotados de especialidade em seus ofícios. Diante dessa realidade, surge, naturalmente, uma forte exploração do comércio, seja através do escambo, ou da troca por moeda cunhada, retomando alguns preceitos que foram destruídos com a queda do Império Romano. 60 Diante dessa situação, é possível concluir que o Direito Comercial sofreu grandes avanços durante o período da Idade Média. Para isso, pode-se atribuir como fatores para esses avanços: A) A desvinculação das práticas comerciais do domínio dos senhores feudais e da Igreja; B) A compra de liberdade pelos comerciantes; C) A prática de usura (cobrança de juros) permitida pela Igreja; D) O interesse dos senhores feudais nas riquezas dos comerciantes; E) A Santa Inquisição que eliminava a concorrência; A questão remonta à formação do Direito Comercial como prática de pacificação de conflitos na Idade Média, cobrando que o candidato encontre os fatores que estimularam seu desenvolvimento. Notoriamente, neste quesito, a alternativa A se faz como correta, uma vez que o desinteresse e ausência de comando do Senhor Feudal e da Igreja fomentaram o desenvolvimento das questões, forçando os comerciantes a se autorregulamentarem, uma vez que a nenhuma guarida de seus conflitos era fornecida pelos então governantes. Questão Objetiva São institutos jurídicos relevantes criados pela Santa Inquisição: A) A ampla defesa e o contraditório; B) O Direito Positivo e as Sociedades Comerciais; C) O procedimento de inquérito e a delação premiada; D) A ampla defesa e as sociedades comerciais; E) As práticas comercias e de crédito. GABARITO: C Questão Discursiva Até a vigência do Código Civil de 1916, o Brasil manteve em seu ordenamento jurídico as ordenações portuguesas. Aponte, em ordem cronológica, quais ordenações fizeram parte da herança histórica Brasileira, considerando, inclusive, o período de colonização. OBRA: ALBERGARIA, Bruno. Histórias do direito: evolução das leis, fatos e pensamentos. 3. ed. São Paulo: Kindle, 2019. Na obra em comento, verifica-se uma digressão bastante detalhada sobre o fim da Idade Média, demostrando quais foram os fatores que contribuíram para o rompimento do domínio Católico sobre as civilizações. O marco do avanço da peste e a retomada do pensamento livre são postos como fatores indissociáveis e fundamentais para a queda do sistema feudal e do domínio da Igreja Católica sobre a Antiguidade medieval, de tal sorte que o Renascimento surge como um rompimento de era focado à retomada dos períodos romanos e marcado pela expansão do Constitucionalismo. 61 Suserano: aquele que tinha domínio do feudo Ditames: dizeres relativos às regras de conduta Persecução: perseguição de provas e investigação Vigente: na produção de efeitos Escambo: troca de mercadorias entre si, sem a utilização de moedas MACIEL, José Fabio Rodrigues; AGUIAR, Renan. História do direito. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2014. LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na história: lições introdutórias. 5.ed. São Paulo: Max Limonad, 2014. WOLKMER, Antônio Carlos (Org.). FUNDAMENTOS de história do direito. 8.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015. WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.