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1975 A Prisão Vista por um Filósofo Francês 149 1975 foi, portanto, devido a polêmicas dos reformadores; Beccaria não queria substituir os suplícios e torturas pela prisão. Por que então essa passagem do suplício à prisão? Até século XVIII, com absolutismo su- A Prisão Vista por um Filósofo Francês plício não desempenhava papel de reparação moral; ele tinha, antes, sentido de uma cerimônia política. delito, como tal, devia ser considerado como um desafio à soberania do monar- ca: ele perturbava a ordem de seu poder sobre os indivíduos e sobre as coisas. "Il carcere visto da un filosofo francese" ("A prisão vista por um filósofo entrevista com Scianna: trad. A. Ghizzardi), n. 1.515, 3 suplício público, longo, terrificante, tinha exatamente a de abril de 1975, p. 63-65. finalidade de reconstruir essa soberania; seu caráter espeta- cular servia para fazer participar povo do reconhecimento dessa soberania; sua exemplaridade e seus excessos serviam Por que a prisão, professor? para definir a extensão infinita dessa soberania. O poder do Temos vergonha de nossas prisões. Esses enormes edifi- é excessivo por natureza. Os reformadores, com seu cios que separam dois mundos de homens, construídos outro- projeto de nova economia penal, estavam na esteira de uma ra com orgulho, a ponto de situá-los, com frequência, nos cen- sociedade em plena transformação. A proposta de Beccaria era tros das cidades, hoje nos constrangem. As polêmicas que se uma espécie de lei de talião, mas ela não deixava de ser uma desencadeiam com regularidade a respeito das prisões, e recen- lei, válida para todos, e, portanto, se substraia à arbitrariedade temente devido a numerosas revoltas, testemunham de modo da vontade do príncipe. A proporcionalidade das penas para claro esse sentimento. Polêmicas, constrangimento e ausência os delitos refletia e reflete ainda a nova ideologia capitalista da de amor que, aliás, acompanharam as prisões desde que elas sociedade: para um trabalho, um salário proporcional; para os se afirmaram como pena universal, digamos em torno de 1820. delitos, penas proporcionais. no entanto, essa instituição resistiu 150 anos. É um fato Esse princípio permanece nas variações da duração das pe- bastante extraordinário. Como, eu me perguntei, uma estrutura nas de detenção, mas é contradito pela privação da liberdade que foi tão censurada pôde resistir por tanto tempo? como castigo único. Como nascem as prisões? Como aconteceu então de a forma punitiva ter se im- No começo, eu pensava que era inteiramenete falha de posto? Beccaria, dos reformadores, das Luzes, em suma. Depois, As explicações dadas até o momento se reportavam essen- olhando mais de perto, eu me dei conta de que não era nada cialmente às modificações econômicas da sociedade. No tempo disso. Os reformadores, e em particular Beccaria, que se er- dos em uma sociedade do tipo feudal, o valor de gueram contra a tortura e os excessos punitivos do despotismo mercado do indivíduo como mão de obra era mínimo, a pró- não propuseram absolutamnete a prisão como al- pria vida, por causa das violentas epidemias, da grande mor- ternativa. Seus projetos, os de Beccaria sobretudo, assentavam talidade infantil etc., não tinha de modo algum mesmo valor sobre uma nova economia penal, que tendia a ajustar as penas que nos séculos seguintes. Seja como for, objetivo do castigo conforme a natureza de cada delito: assim, a pena de morte não era levar à a arte do suplício, ao contrário, consistia para os assassinatos, o confisco dos bens para os ladrões e, é em retardar a morte ao máximo em uma "requintada claro, a prisão, mas para os delitos contra a liberdade. como diz um de seus teóricos. que foi organizado, em contrapartida, foi a prisão como Nesse sentido, momento da mudança qualificativa, na filo- pena universal e semelhante para todos, tendo somente uma sofia do castigo, foi a guilhotina. Hoje, tem-se hábito de falar gradação no que concerne à duração. Se isso se produziu, não disso como de um vestígio da barbárie medieval. Não se trata150 Michel Foucault Ditos e Escritos 1975 A Prisão Vista por um Filósofo Francês 151 disso. Em sua época, a guilhotina foi uma engenhosa pequena jogo do sistema, tal como continuam a entrar nele em certas máquina que transformou suplício em execução capital, que se realidades econômicas e sociais particularmente atrasadas. efetuava como um relâmpago, de modo quase abstrato, verda- Lauro dizia que o contrabando em Nápoles é a Fiat do deiro grau zero do sofrimento. Apelava-se sempre ao povo para Sul. que ele assistisse ao ritual teatral da pena, mas somente a fim de Exatamente. Mas no fim do século XVIII a burguesia, com ratificar a execução, e não para que ele participasse dela. as novas exigências da sociedade industrial, com uma maior Com a nova estrutura econômica da sociedade, a bur- subdivisão da propriedade, não pôde mais tolerar os ilegalis- guesia precisa organizar sua chegada ao poder com a ajuda mos populares; ela buscou novos métodos de coação do indi- de uma nova tecnologia penal muito mais eficaz do que a víduo, de controle, de enquadramento e de vigilância. Os refor- precedente. madores da época das Luzes propunham uma nova economia De todo modo, mais suave. penal, não a nova tecnologia de que se A "suavidade" das penas não tem nada a ver com a efi- Em que tradição se enterram as raízes culturais da cácia do sistema penal. É preciso desembaraçar-se da ilusão prisão? segundo a qual a atribuição das penas se faz com o objetivo de A forma prisão nasce muito antes de sua introdução no reprimir os delitos: as medidas punitivas não desempenham sistema penal. Nós a encontramos em estado embrionário em somente papel negativo de repressão, mas também "po- toda ciência do corpo, de sua "correção", de sua aprendiza- sitivo" de legitimar o poder que edita as regras. Pode-se até gem que era adquirida nas usinas, nas escolas, nos hospitais, afirmar que a definição das "infrações à lei" serve justamente nas casernas. "Mas eles respiram!", comentava com irritação o de fundamento ao mecanismo punitivo. Michele quando assistia a uma parada militar. Com os príncipes, o suplício legitimava o poder absoluto, o novo ideal do poder torna-se a "cidade que é sua "atrocidade" se desdobrava sobre os corpos, porque o cor- também a cidade punitiva. Ali, onde há peste, há a quarentena; po era a única riqueza acessível. A casa de correção, hospi- todo mundo está controlado, catalogado, internado, subme- tal, a prisão, os trabalhos forçados nascem com a economia tido à regra. Para defender a vida e a segurança da coletivi- mercantil e evoluem com ela. excesso não é mais necessário, dade, concede-se direito de matar qualquer um que circule sem autorização, exceto alguns grupos de importância, muito ao contrário. objetivo é a maior economia do sistema os indivíduos descritos por Manzoni, aqueles aos quais eram penal. Este é o sentido de sua "humanidade". atribuídas as tarefas as mais ignóbeis, como transporte dos que é verdadeiramemte importante, de fato, na nova rea- cadáveres pestilentos. A estrutura arquitetural dessa exigência lidade social não é a exemplaridade da pena, mas sua eficácia. tecnológica é fornecida por Bentham, em 1791, com seu pan- Por isso é que o mecanismo empregado consiste menos em punir do que em vigiar. que é o Mas a vigilância não estava excluída da tradição penal É um projeto de construção com uma torre central que vi- até século XIX? gia toda uma série de celas, dispostas circularmente, em direção Sim. Pode-se também afirmar que, apesar do rigor do sis- oposta à luz, nas quais se encarceram os indivíduos. Do cen- tema, sob a monarquia, controle da sociedade era muito mais tro, controla-se qualquer coisa e todo movimento sem ser visto. fraco, mais largas as malhas através das quais passavam os mil e um ilegalismos populares. As condenações permaneciam frequentemente sem um amanhã, uso as fazia cair. contra- bando, a pastagem abusiva, a colheita da lenha nas terras do 1 Bentham Panopticon, Dublin e Londres, 1791 (Le Panoptique. Mémoire rei, embora ameaçados de penas na realidade, não sur un nouveau principe pour construire des maisons d'inspection et nom- ocasionavam perseguições. De certa maneira, eles entravam no mément des maisons de force, Paris, Imprimerie Nationale, 1791).152 Michel - 1975 - A Prisão Vista por um Filósofo Francês 153 de Bentham, 1791. Penitenciária de Millbank. Planta em estilo pan-optico.154 Michel Foucault Ditos e Escritos 1975 A Prisão Vista por um Filósofo Francês 155 poder desaparece, ele não mais se representa, mas interdições, escândalos e repressões em torno da vida sexual; ele se dilui inclusive na infinita multiplicidade de seu único isso permite transformar a necessidade em "mercadoria" se- olhar. xual difícil e cara; depois, exploram-na. Nenhuma grande in- As prisões modernas, e mesmo um grande número dentre dústria de não importa qual país industrializado pode rivalizar as mais recentes chamadas "modelos", se assentam sobre esse com a enorme rentabilidade do mercado da prostituição. Isso é princípio. Mas, com seu Bentham não pensava de válido para álcool na época da proibição; hoje, para a droga maneira específica na prisão; seu modelo podia ser utilizado (cf. acordo turco-americano para a cultura da para e foi por qualquer estrutura da sociedade nova. A contrabando do tabaco, de armas... invenção francesa que fascinou imediatamente os governos eu- Como é mantida a ligação com poder? ropeus, é a gêmea do Essas enormes massas de dinheiro se elevam, se elevam A fiscalização moderna, os asilos psiquiátricos, os fichários, até o momento em que chegam às grandes empresas financei- os circuitos de televisão e tantas outras tecnologias que nos en- ras e políticas da burguesia. Em suma, mantém-se um tabulei- volvem são sua concreta aplicação. Nossa sociedade é muito ro de onde há casas perigosas, e outras seguras. Nas mais benthamiana do que beccariana. Os lugares nos quais se perigosas estão sempre os delinquentes. Esta é a ligação. E encontrou a tradição de conhecimentos que conduziram à pri- chegamos ao outro papel da delinquência: a cumplicidade com são mostram por que esta se parece com as casernas, com os as estruturas policiais no controle da sociedade. Um sistema hospitais, com as escolas, e por que esses se parecem com de chantagens e de trocas no qual os papéis são confundidos, as prisões. como em um círculo. Um alcaguete é algo além de um policial- Mas a prisão foi criticada desde o começo. Ela foi defini- delinquente ou de um delinquente-policial? Na França, a es- da como um fracasso penal, uma usina de delinquentes. trepitosa figura símbolo dessa realidade é Vidocq, o famoso Isso, todavia, não serviu para destruí-la. Depois de um bandido que se torna em um certo momento chefe de polícia. século e meio, ela se mantém sempre de pé. Aliás, ela é ver- Os delinquentes têm ainda outra excelente função no meca- dadeiramente um fracasso? Ou não seria, antes, um sucesso, nismo do poder: a classe no poder se serve da ameaça da cri- e justamente pelas mesmas razões pelas quais a acusam de minalidade como um álibi contínuo para endurecer controle fracassar? De fato, a prisão é um sucesso. da sociedade. A delinquência dá medo, e se cultiva esse medo. Que sucesso? Não é a troco de nada que, a cada momento de crise social e A prisão cria e mantém uma sociedade de delinquentes, o econômica, assiste-se a uma "recrudescência da criminalida- meio, com suas regras, sua solidariedade, sua marca moral de de" e ao apelo consecutivo a um governo policial. Pela ordem infâmia. A existência dessa minoria delinquente, longe de ser a pública, se diz. Na realidade, para se pôr um freio sobretudo medida estrondosa de um fracasso, é muito importante para a na ilegalidade popular e operária. Em suma, a criminalidade estrutura do poder da classe dominante. desempenha uma espécie de nacionalismo interno. Tal como o Sua primeira função é a de desqualificar todos os atos ilegais medo do inimigo faz "amar" o exército, o medo dos delinquen- que se reagruparam sob uma comum infâmia moral. Outrora tes faz "amar"o poder policial. não era assim: um bom número de atos ilegais cometidos pelo Mas não a prisão. A prisão, não se consegue fazer amá-la. povo era, na realidade, tolerado. Hoje, isso não é mais Porque há um fundo de suplício nos mecanismos moder- vel; o delinquente, fruto da estrutura penal, é antes de tudo um nos da justiça criminal que não foi completamente exorciza- criminoso como qualquer um que infringe a lei, seja qual for do, ainda que hoje ele seja cada vez mais incluído na nova a razão. Em seguida, cria-se uma estrutura intermediária da penalidade do incorporal. A nova penalidade, de fato, mais do qual se serve a classe dominante para seus ilegalismos: são os que punir, corrige e cuida. juiz torna-se um médico e vice- delinquentes, justamente, que a constituem. exemplo mais versa. A sociedade de vigilância quer fundar seu direito sobre gritante é da exploração do sexo. De um lado, instauram-se a ciência; isso torna possível a "suavidade" das penas, ou me-156 Michel Foucault - Ditos e Escritos lhor, dos das "correções", mas estende seu poder 1975 de controle, de imposição da "norma". Persegue-se "diferen- te". delinquente não é fora da lei, mas ele se situa desde o começo no próprio centro desses mecanismos nos quais se passa insensivelmente da disciplina à lei, do desvio ao delito, Entrevista sobre a Prisão: o Livroe o seu em uma continuidade de instituições que se remetem umas às outras: do orfanato ao reformatório, à penitenciária, da cidade Método operária ao hospital, à prisão. "Entrevista sobre a prisão: livro e seu (entrevista com J.-J. Brochier), Magazine n. junho de 1975, p. 27-33. Uma das preocupações de seu livro é denunciar as la- cunas dos estudos históricos. Por exemplo, o senhor observa que nunca ninguém fez o exame da história: ninguém pensou nisso, mas é impensável que ninguém o tenha pensado. Os historiadores estão, tal como os filósofosou os historia- dores da literatura, acostumados a uma história dos apogeus. Mas, hoje, diferentemente dos outros, eles aceitam com mais facilidade remexer um material "não A emergência des- se material plebeu na história data de uns bons 50 anos. Tem- se então menos dificuldade de se entender com eles. senhor jamais escutará um historiador dizer o que disse alguém cujo nome não importa, em uma revista incrível, Raison présente, a respeito de Buffon e de Ricardo: Foucault só se ocupa com os Quando o senhor estuda a prisão, o senhor lamenta, pa- rece, a ausência de um material, de monografia sobre tal ou tal prisão, por exemplo. recorre-se muito à monografia, mas a mono- grafia considerada menos como o estudo de um objeto parti- cular do que como uma tentativa de fazer emergir novamente os pontos onde um tipo de discurso se produziu e se formou. que seria hoje um estudo sobre uma prisão ou sobre um hospital psiquiátrico? Fizeram-se centenas deles no século XIX, principalmente sobre os hospitais, estudando a história 1 Revault d'Allonnes (O.), "Michel Foucault: les mots contreles Raison n. p. 29-41.