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<p>Padres Népticos</p><p>FILOCALIA</p><p>VOLUME I</p><p>ANTÔNIO O GRANDE</p><p>A</p><p>MARCOS O ASCETA</p><p>Tradução do grego</p><p>Jacques TOURAILLE</p><p>Abbaye de BELLEFONTAINE</p><p>Sob supervisão do</p><p>Pe. Boris BOBRINSKOY</p><p>Tradução</p><p>Luis KEHL</p><p>M M I X</p><p>A todos os mestres,</p><p>para retribuir e para transmitir.</p><p>AMARRA TEU BARQUINHO</p><p>NO NAVIO DE TEUS PAIS.</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>À</p><p>ESPIRITUALIDADE FILOCÁLICA</p><p>por Olivier CLEMENT</p><p>I</p><p>PARA SITUAR A FILOCALIA</p><p>Esta introdução não tem outro objetivo, aliás modesto, senão o de estabelecer</p><p>um vocabulário e de permitir sentir a atualidade de um pensamento. Para</p><p>entender a música secreta da Filocalia, é preciso nos reportar ao belo posfácio</p><p>de Jacques Touraille, que não apenas foi o grande artesão da sua tradução,</p><p>como também, sob muitos aspectos, um “homem filocálico”.</p><p>A palavra filocalia significa “amor à beleza”, esta beleza divino-humana da</p><p>qual diz Denis Areopagita “suscitar toda comunhão”. Porém, na época em que</p><p>a obra foi composta, este termo indicava mais prosaicamente uma antologia</p><p>ou florilégio. De fato, trata-se de uma vasta coletânea, não de extratos, mas de</p><p>tratados integralmente transcritos e que constituem a “escola mística da prece</p><p>interior</p><p>1</p><p>”. Tratava-se de sugerir a ação e a contemplação com o objetivo de</p><p>“descobrir “o reino de Deus em si mesmo, o tesouro escondido no campo do</p><p>coração</p><p>2</p><p>”, alusão à parábola evangélica que descreve um homem que, tendo</p><p>encontrado um tesouro no campo, vende tudo o que possui para adquiri-lo.</p><p>A Filocalia foi publicada – em grego – em Veneza em 1782, pois livros</p><p>cristãos não podiam ser impressos no Império Otomano. Sua redação está</p><p>1</p><p>Prefácio de Nicodemo o Hagiorita.</p><p>2</p><p>Ibidem.</p><p>ligada a uma clara renovação espiritual que se produzia então no mundo</p><p>helênico e na Moldávia, e está fundamentada numa retomada de consciência</p><p>da teologia, da espiritualidade e da vida sacramental ortodoxas. Macário de</p><p>Corinto, que selecionou os textos, e Nicodemos o Hagiorita</p><p>3</p><p>, que os</p><p>introduziu, haviam publicado uma obra recomendando a comunhão freqüente</p><p>(ela se tornara rara tanto no Oriente como no Ocidente) e Nicodemos editava</p><p>as principais obras dos grandes teólogos de Bizâncio.</p><p>O que mais uma vez vem à luz com a Filocalia, é a tradição hesiquiasta</p><p>4</p><p>, que</p><p>está no coração da espiritualidade monástica original, jamais interrompida no</p><p>Oriente. Ao que parece, Macário descobriu na biblioteca do mosteiro de</p><p>Vatopédi, “uma antologia sobre a união do espírito com Deus, recolhida dos</p><p>escritos dos antigos Padres graças aos cuidados de monges piedosos de</p><p>antanho; ele encontrou também outros livros sobre a oração de que ele nunca</p><p>ouvira falar</p><p>5</p><p>”, sem dúvida porque a língua na qual foram escritos havia</p><p>envelhecido até se tornar irreconhecível.</p><p>Pouco conhecida no mundo grego, aonde só seria reeditada em 1893 e depois</p><p>em 1957, a Filocalia espalhou-se principalmente na Rússia. O estaroste</p><p>Païssi Velitchkovsky, instalado na Moldávia, traduziu-a para o eslavo e a fez</p><p>imprimir na Rússia já em 1793. Uma nova edição surgiu em 1822. A</p><p>Filocalia traduzida para o russo por Teófano o Recluso, e publicada em 1877,</p><p>foi reimpressa quatro vezes até as vésperas da guerra. Ela penetrou tanto os</p><p>meios intelectuais como o povo. A “filosofia religiosa” russa foi, por um lado,</p><p>uma tentativa de conceituar a experiência filocálica. No século XX, na</p><p>Romênia, aonde a tradição hesiquiasta é muito antiga, o Padre Dumitru</p><p>Staniloae publicou uma Filocalia ainda mais extensa, com quatro volumes</p><p>entre 1946 e 1948 e mais seis de 1976 a 1981.</p><p>Os textos da Filocalia estão dispostos em ordem cronológica: textos</p><p>monásticos originais, com predominância do pensamento de Evagro o</p><p>3</p><p>Hagiorita significa “da Montanha Santa”, ou seja, do Monte Athos.</p><p>4</p><p>Do grego hésychia: paz, silêncio da união com Deus.</p><p>5</p><p>A. E. Tachiaos, Païssi Velitchkovsky et son école ascétique et philologique,</p><p>Tessalônica, 1964. O próprio Païssi, quando de sua estada em Athos, anterior à de Macário,</p><p>disse ter conhecido estas coleções e que começou a traduzi-las para o eslavo. Tratava-se,</p><p>segundo Tachiaos, dos Cod. Vatop. 650 (séc. XIII) e Cod. Vatop. 262 (séc. XV).</p><p>Pôntico, síntese conclusiva da grande época patrística quando Máximo o</p><p>Confessor deu o tom, movimento carismático do ano mil a meados do século</p><p>XII em que um autor pouco conhecido, Pedro Damasceno, está longamente</p><p>representado (ele sabe unir indicações concretas e profundidade espiritual),</p><p>síntese do século XIV – um quarto da obra – dominada pela teologia</p><p>experimental de são Gregório Palamas; enfim, para encerrar, sete tratados</p><p>breves mais recentes, escritos em linguagem popular.</p><p>A obra, como sublinha Nicodemos em seu prefácio, é destinada “aos monges</p><p>e leigos juntos”. Todos são chamados a “se unificar” interiormente unindo-se</p><p>a Deus e através disto, em Cristo, com todos os homens, segundo a oração</p><p>sacerdotal citada por Nicodemos: “que todos sejam um, como nós somos</p><p>um</p><p>6</p><p>.”</p><p>Os mestres da Filocalia, inquietos com a influência crescente da Aufklärung</p><p>sobre os gregos cultos, quiseram opor à Enciclopédia francesa das “luzes”</p><p>uma espécie de enciclopédia da Luz incriada. Porém, como Païssi que levou a</p><p>obra do mundo grego para os mundos eslavo e romeno, eles trabalharam</p><p>eficazmente com os métodos da erudição ocidental. Do mesmo modo, em</p><p>nossa época, o Padre Staniloae contemplou proveitosamente as aquisições</p><p>científicas do Ocidente, mas ainda tentou criar correspondências, em</p><p>numerosas notas, com as interrogações e descobertas desta, citando tanto</p><p>Heidegger como Maurice Blondel.</p><p>Ora, e o fato é significativo, é na Europa ocidental da segunda metade do</p><p>século XX que a Filocalia parece ser mais conhecida e esperada. Surgiram</p><p>extratos nos anos 50, e no final dos anos 80 e começo dos anos 90, traduções</p><p>integrais na Inglaterra, Itália e França. Afinal de contas, entre os descendentes</p><p>deste Aufklãrung que assustou Macário e Nicodemos, a busca de liberdade</p><p>exige agora uma libertação da morte, e é a mesma inteligência que mergulha</p><p>mais e mais na interioridade depois de ter explorado o mundo exterior.</p><p>A Filocalia não é uma obra confessional. Ao apresentar os textos de Gregório</p><p>Palamas, às vezes furiosamente anti-latinos, Macário e Nicodemos deixaram</p><p>de lado as passagens polêmicas</p><p>7</p><p>. Com a Filocalia e a tradição hesiquiasta –</p><p>6</p><p>João XVII, 22.</p><p>7</p><p>Nicodemo também adaptou para o grego diversas obras católicas.</p><p>como é próxima a hésychia da pax beneditina! – a Igreja ortodoxa traz o</p><p>testemunho da Igreja indivisa em que estão enraizadas todas as confissões</p><p>cristãs. A Filocalia, de fato, é fundamentalmente cristã e eclesial, revelando</p><p>todo o alcance da iniciação batismal. Mas ela assume métodos imemoriais,</p><p>que encontramos da Índia à China: numa perspectiva, é bem verdade, não de</p><p>fusão, mas de comunhão, em que o indivíduo ocidental, longe de se perder, se</p><p>realiza ao se tornar uma existência plenamente pessoal. Como sublinharam</p><p>em nosso século um estaroste Silouane, do monte Athos, um Dumitru</p><p>Staniloae, um “Monge da Igreja do Oriente</p><p>8</p><p>”- cuja obra breve e profunda</p><p>intitulada La prière de Jésus recomendamos –, a eclesialidade da Filocalia</p><p>engloba toda a humanidade e todo o universo</p><p>9</p><p>.</p><p>II</p><p>O HOMEM, IMAGEM DE DEUS</p><p>O homem,</p><p>É somente em Cristo, com efeito, que a</p><p>Bíblia deixa de ser sombra e segredo (skiagraphia e cryptographia). A leitura</p><p>orante da Escritura passa a ter ela também um sabor eucarístico. Tudo, nos</p><p>textos que podemos chamar de divino-humanos, se torna, para a Filocalia,</p><p>“figura” de Cristo, e portanto do Espírito, da Trindade, de sua Mãe e de sua</p><p>Igreja. Corpo do Verbo, a Escritura, lida apenas ao pé da letra, remete às</p><p>vestes de Cristo. É preciso buscar além o Sentido, ou seja o próprio corpo de</p><p>Verbo. O mesmo Espírito age no profundidade da Escritura, na da história e</p><p>no coração batismal do homem. A hinografia litúrgica, os comentários</p><p>patrísticos constituem uma hermenêutica eclesial que devemos saber atualizar</p><p>e prolongar utilizando as pesquisas contemporâneas da exegese. A meditação</p><p>das Escrituras nos permite revelar o trabalho do Espírito em nossa</p><p>historicidade pessoal, tanto quanto na história dos homens. Progredimos na</p><p>intelecção da história à medida em que avançamos na da Bíblia, do Bereschit</p><p>do Gênese ao en archè do Prólogo de João, até a revelação da nova Jerusalém</p><p>no Apocalipse. Temas imensos, a um tempo cósmicos e históricos, a água, o</p><p>fogo, a montanha, a travessia do mar Vermelho, o cântico dos três jovens na</p><p>fornalha, o Servidor sofredor, o Cordeiro, compõem a sinfonia de nosso</p><p>destino que encontra em Cristo seu sentido. Toda a liturgia da Igreja é um</p><p>imenso midrash, e os textos da Quaresma, por exemplo, não fazem senão</p><p>comentar a parábola do filho pródigo. O Antigo Testamento relata o Verbo, o</p><p>Novo não cessa de relatar sua Páscoa.</p><p>Fora da “prece de Jesus”, o único método de oração indicado na Filocalia é</p><p>portanto a leitura orante da Escritura e mais especificamente dos Salmos. O</p><p>monge se apropria deles, eles se tornam o grito a Deus de seus desesperos e</p><p>de seus fervores. “Penetrados pelos mesmos sentimentos nos quais os Salmos</p><p>foram compostos, é como se nos tornássemos seus autores... A alma se</p><p>derrama a Deus com gemidos inenarráveis</p><p>86</p><p>”. Quando uma frase, uma</p><p>palavra, fazem tremer o coração, devemos nos deter, deixar que se irradie na</p><p>alma esta “intuição de Deus”. Na história, os hesiquiastas foram reticentes</p><p>diante da superabundância da hinografia ou da recitação quantitativa dos</p><p>Salmos: “Mais vale uma única palavra na intimidade do que mil no</p><p>distanciamento</p><p>87</p><p>”, dizia Evagro, e “a excelência da oração não consiste na</p><p>86</p><p>João Cassiano, Conferências X, 11.</p><p>87</p><p>Parenétique, ed. Frankenberg, pg. 561.</p><p>quantidade, mas na qualidade, como o prova esta sentença: Quando rezarem,</p><p>não multipliquem as palavras</p><p>88</p><p>”. A porta de ferro que se abre diante de Pedro</p><p>para que ele possa sair da prisão é nosso coração endurecido que se parte</p><p>89</p><p>. O</p><p>mundo, “primeira Bíblia, a Escritura já corpo do Verbo, este corpo liberto no</p><p>batismo e na eucaristia, consiste na Sabedoria construindo sua morada</p><p>misturando seu vinho e pondo sua mesa</p><p>90</p><p>”.</p><p>X</p><p>APÓFASES</p><p>Pouco a pouco, o intelecto compreende que Deus escapa a toda tentativa de</p><p>agarrá-lo, que ele está sempre além. “Supra-essencial”, ou seja, além do ser,</p><p>diz Denis o Areopagita. Hyperthéos, diz ainda, ou seja, além de todas as</p><p>nossas concepções de Deus. Assim começa o primeiro momento da</p><p>“apófase”, ou seja, da “subida” em direção ao Inacessível. Aqui a apófase se</p><p>identifica com a teologia negativa, da qual devemos precisar que não se trata</p><p>de um jogo intelectual mas de uma purificação do intelecto e da linguagem. O</p><p>intelecto, por uma captação intuitiva, pressente o abismo divino, compara a</p><p>este rosnar do silêncio as imagens e os conceitos que empregava a respeito de</p><p>Deus e constata sua impotência, seu caráter quase risível. O Ilimitado</p><p>ultrapassa todo limite conceitual. A teologia negativa rejeita toda tentativa de</p><p>se apropriar de Deus, toda teologia abstrata, puramente conceitual. Deus não</p><p>apenas é infinito mas também é outra coisa e a linguagem atola nesta</p><p>alteridade impronunciável. Chamá-lo de Deus, Vida ou Essência não designa</p><p>mais do que “potências” que descem dele para nos deificar, nos vivificar, nos</p><p>permitir ser. O “Segredo supra-essencial” nos escapa sempre</p><p>91</p><p>. Já um são</p><p>Basílio, um são Gregório de Nysse sublinhavam que os nomes que damos a</p><p>Deus não se referem senão às suas operações</p><p>92</p><p>. É somente pelo</p><p>“desconhecimento”, “além de toda inteligência”, longe do “mundo onde</p><p>88</p><p>Mateus VI, 7 in Capítulos sobre a prece 151.</p><p>89</p><p>Marcos o Asceta, A lei espiritual 21.</p><p>90</p><p>Cf. Provérbios IX, 1-2.</p><p>91</p><p>Denis o Areopagita, Nomes divinos II, 7.</p><p>92</p><p>Basílio de Cesaréia, Contra Eunomo I, 5; Carta 234; Gregório de Nysse, Contra</p><p>Eunomo, livro 12 e 6a. Homília sobre as Beatitudes.</p><p>vemos e somos vistos”, em que o sujeito se opõe ao objeto, que pressentimos</p><p>o Segredo, quando a linguagem perde o pé, diz Palamas, em uma</p><p>“superabundância” de luz</p><p>93</p><p>.</p><p>Mas é preciso ultrapassar também as negações, ou seja toda manobra</p><p>intelectual, num impulso existencial no qual a pessoa se recolhe e se lança</p><p>para além de si mesma, para além de sua natureza, como disse Vladimir</p><p>Lossky. Ela chega então ao segundo momento da apófase: o silêncio em que</p><p>se ora para além mesmo da prece, aquilo que a tradição filocálica denomina</p><p>“prece pura”. O intelecto se concentra no “coração”, se torna “simples”, “nu”,</p><p>“sem forma”, um lago absolutamente calmo onde o Nome de Jesus não é</p><p>mais do que uma onda imperceptível, um lago calmo como um espelho. Ou</p><p>como uma tumba, mas uma tumba vazia.</p><p>Intervém então o terceiro momento em que a apófase se torna antinômica: a</p><p>tumba se enche de luz, luz incriada, treva transluminosa irradiando uma</p><p>presença – Simeão o Novo Teólogo fala de uma voz. Compreendemos então</p><p>da maneira mais concreta o que significa a distinção entre a essência e as</p><p>energias, esboçada pelos Padres capadócios e por Denis o Areopagita (que</p><p>emprega um outro termo: dynameis, as potências) e plenamente definida no</p><p>século XIV por são Gregório Palamas. Deus é inacessível, mas, pela loucura</p><p>do amor, ele se dá. Em Cristo, suas energias participáveis quase se</p><p>identificam ao Espírito Santo e se comunicam a nós no interior do encontro</p><p>ao qual se oferece a “prece pura.</p><p>A essência (ou supra-essência) inacessível e as energias participáveis não são</p><p>duas coisas, não dividem a divindade. São, de certo modo, as modalidades da</p><p>existência pessoal absoluta que se reserva sem recusar e se entrega sem se</p><p>confundir. O Deus vivo transcende sua própria transcendência para se unir</p><p>realmente a nós. Pois ele é ao mesmo tempo Segredo e Amor. “Todo inteiro</p><p>ele se manifesta e todo inteiro ele não se manifesta... Todo inteiro ele</p><p>participa e todo inteiro ele permanece imparticipável</p><p>94</p><p>”. Energeia é um termo</p><p>aristotélico que significa ação, operação. O Deus inacessível age para se dar,</p><p>a ação é também doação que vem da essência: do Princípio a seu Outro, a seu</p><p>Sopro, luz comunicando-se ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo.</p><p>93</p><p>Da luz santa, Coisl. 100, fo. 179v.</p><p>94</p><p>Da participação a Deus, Coisl. 99, fo. 22.</p><p>São Gregório Palamas, com efeito, prefere à noção de energia a de luz, como</p><p>um dado da experiência. Esta luz preencheu o céu e a terra quando de sua</p><p>criação, mas os homens, por uma cegueira parcial, têm a tendência seja de</p><p>ocultá-la, seja de idolatrá-la. Somente na humanidade de Cristo ela se</p><p>concentra e irradia sem ser desnaturada, revelando-se sobre o monte no</p><p>momento da Transfiguração, preenchendo nosso coração pela iniciação</p><p>batismal, antecipando na eucaristia a renovação do céu e da terra pois, diz</p><p>Palamas, a Luz do Tabor “tem o valor da segunda vinda de Cristo</p><p>95</p><p>”.</p><p>Toda a Filocalia implica esta teologia palamita. Não é por acaso que os</p><p>autores do século XIV ocupam um quarto da obra e que Nicodemo o</p><p>Hagiorita</p><p>preparou uma edição integral das obras de Palamas, edição que foi</p><p>impedida pela polícia austríaca! A Filocalia insiste a um tempo na</p><p>aproximação negativa do mistério e na realidade da “deificação”, uma palavra</p><p>empregada seis vezes por Nicodemo na primeira página de seu prefácio.</p><p>As energias divinas penetram o universo de sorte que a antinomia em que</p><p>culmina a apófase abre o espaço para uma aproximação simbólica desta. É</p><p>preciso, escreve Denis, “louvar todo o conjunto da divina Origem por não</p><p>possuir nenhum nome e por possuir a todos... Esta causa de tudo que</p><p>ultrapassa tudo, é a um tempo o anonimato que lhe convém e todos os nomes,</p><p>de todos os seres...” Pois “esta Origem divina está ao mesmo tempo no seio</p><p>do universo e além do céu, Sol, Estrela, Fogo, Água, Sopro, Orvalho, Nuvem,</p><p>Rochedo absoluto, (...) em uma palavra tudo o que é e nada do que é</p><p>96</p><p>”. A</p><p>Páscoa interior confirma e aprofunda a “contemplação da natureza” e a dos</p><p>logoi de Deus na história. A apófase funda uma cosmologia de encarnação e</p><p>uma espantosa filosofia da comunhão dos homens entre si, pois a distinção-</p><p>identidade entre essência e energias, entre segredo e amor, aplica-se</p><p>igualmente às pessoas humanas. “O eu, escreve Serge Boulgakov, deve ser</p><p>sugerido de maneira antinômica, ao modo da teologia negativa (...). A palavra</p><p>“eu” constitui para cada qual um signo a um tempo místico e inteligível que</p><p>nos guia para um abismo inefável, para uma treva de onde jorram sem cessar</p><p>gotas de luz</p><p>97</p><p>”.</p><p>95</p><p>Defesa dos santos hesiquiastas, trad. Meuendorff, Louvain, 1959.</p><p>96</p><p>Nomes divinos I, 1, 6.</p><p>97</p><p>Die tragödie der Philosophie, Darmastadt. pg. 130-142.</p><p>XI</p><p>DEIFICAÇÃO</p><p>Podemos ler, nos Apotegmas, que um irmão, indo à cela do abade Arsênio, ao</p><p>entreabrir a porta “viu o abade inteiramente como um fogo</p><p>98</p><p>”.</p><p>A deificação não é a abolição do humano mas seu cumprimento na graça, pois</p><p>“Deus é ele próprio a vida daqueles que participam dele</p><p>99</p><p>”.</p><p>O lugar da deificação é Cristo. Nele, o Espírito comunica aos homens uma</p><p>filiação divina renovada. O homem, arrastado pelos espaços trinitários,</p><p>participa do nascimento eterno do Filho, ou seja, do mistério, em Deus</p><p>mesmo, da unidade na alteridade e da alteridade na unidade.</p><p>O mundo das “energias” é o Reino dos céus onde Deus inteiro se une a nós ao</p><p>mesmo tempo em que permanece inteiramente inacessível. É por isso que o</p><p>mundo comporta um número infinito de “moradas”.</p><p>O Reino é e será cada vez mais uma visão face a face: na luz do Espírito está</p><p>o rosto de Cristo e, como ele disse, “quem me viu, viu o Pai</p><p>100</p><p>”.</p><p>Daqui de baixo, o homem se torna um ressuscitado. É a “pequena</p><p>ressurreição” de que fala Evagro. Ela reúne, para além do retorno à origem, a</p><p>última parúsia, o último retorno de Cristo sobre a terra, pois Cristo é o alfa e o</p><p>ômega.</p><p>Os santos são os germes da ressurreição. Eles fazem subir à superfície da</p><p>história “o fogo escondido e como que sufocado sob as cinzas deste</p><p>mundo</p><p>101</p><p>”.</p><p>98</p><p>Sentenças dos Padres do deserto, Arsênio 27.</p><p>99</p><p>Irineu de Lyon, Adv. Haer., V, 7,1.</p><p>100</p><p>João XIV, 9.</p><p>101</p><p>Gregório de Nysse, Contra Eunomo 5.</p><p>Na “prece pura”, o intelecto unido ao coração vê “sua própria luz</p><p>102</p><p>”, ele “vê</p><p>seu estado semelhante à safira ou à cor do firmamento</p><p>103</p><p>”. Entretanto a alma</p><p>cristã, diferentemente do que acontece talvez nas asceses asiáticas, não se</p><p>dissolve nesta luz interior. Ela morre para reencontrar a alteridade de Deus – e</p><p>do próximo. Ela morre ao esplendor cristalino de sua própria interioridade</p><p>que, fechada sob si mesma, poderia, num regime bíblico (as experiências de</p><p>outras tradições não correm este risco), se tornar luciferiana. A gnose, aqui, se</p><p>torna amor e primeiro morte por amor.</p><p>Então a graça vem como uma embriaguez. Ela arranca a alma de si mesma,</p><p>de sua própria transparência, de sua própria complacência talvez. O homem</p><p>sente em si forças divinas, mas, com o espanto e a gratidão daquele que</p><p>compreende que elas vêm de fora. As energias de Deus o cumulam, mas ele</p><p>está consciente de recebê-las pela misericórdia do Inacessível, pela mediação</p><p>do Crucificado. É por isso que a deificação implica uma metanoia sempre</p><p>renovada.</p><p>As energias de Deus cumulam a alma aguçando seu desejo. Quanto mais</p><p>Deus enche a alma, mais ela pende para a fonte sempre além de si, para</p><p>receber ainda mais e desejar mais ainda, indefinidamente. Pois o homem,</p><p>passando de “imagem” a “semelhança” assimila-se cada vez mais a Deus sem</p><p>poder jamais identificar-se a ele. Esta é a “epektasis” de Gregório de Nysse: o</p><p>prefixo epi denota a presença, o prefixo ek a tensão. Assim se vai “de começo</p><p>em começo, por começo que nunca têm fim pois jamais aquele que sobe</p><p>detém seu desejo naquilo que já conhece; mas, elevando-se de um desejo</p><p>maior a um maior ainda, ele segue sua rota pelo infinito através de ascensões</p><p>cada vez mais altas</p><p>104</p><p>”. “O amor é um abismo de luz, uma fonte de fogo,</p><p>escreveu são João Clímaco. Quanto mais jorra, mais queima aquele que tem</p><p>sede (...) É por isso que o amor é uma progressão eterna</p><p>105</p><p>”.</p><p>Salvo alguns raros, é por lampejos que sentimos aqui em baixo as</p><p>aproximações da deificação. Toques de fogos discretos, infinitamente doces,</p><p>no coração. Ou um grande balançar deste, quando, tornando-se “olho de</p><p>102</p><p>Diádoco de Foticéia, Cem capítulos espirituais 40.</p><p>103</p><p>Evagro o Pôntico, in Bousset, Apophtegmata, Tübingen, 1923., pg. 316.</p><p>104</p><p>Gregório de Nysse, 8a. Homilia sobre o Cântico dos Cânticos.</p><p>105</p><p>A escada santa XXX, 18.</p><p>fogo”, é invadido pela luz.</p><p>“É fácil saber como e sob quais aspectos a doçura espiritual derruba a alma.</p><p>Às vezes, uma alegria inefável e grandes impulsos (...) Às vezes, toda a alma</p><p>desce e se mantém oculta nos abismos de silêncio (...) Às vezes, enfim, ela</p><p>chega a este ponto cheia de uma dolorosa doçura que somente as lágrimas</p><p>conseguem aliviar</p><p>106</p><p>...”</p><p>Apenas um critério, o da humildade e do amor.</p><p>“Senhor Jesus Cristo, meu Deus, dê-me o arrependimento total, o coração</p><p>contrito</p><p>107</p><p>...”, e a visão – e o serviço – do mundo em Cristo como uma sarça</p><p>ardente, de todos os homens em Cristo como um Adão único, “membros uns</p><p>dos outros”, na imensa “consubstancialidade” humana</p><p>108</p><p>.</p><p>Ao mesmo tempo, cada um é único.</p><p>“Irmão, eu lhe recomendo o seguinte: que em você o peso da compaixão faça</p><p>pender a balança, até que você sinta em seu coração a própria compaixão que</p><p>Deus tem pelo mundo</p><p>109</p><p>”.</p><p>Deificado, portanto capaz de amar, de servir.</p><p>Deificado, portanto crucificado. Crucificado, portanto ressuscitado.</p><p>“Ele se levanta em mim, dentro de meu pobre coração, qual um sol</p><p>110</p><p>”.</p><p>“Eu sei que não morri, porque estou dentro da vida e tenho toda a vida que</p><p>jorra dentro de mim</p><p>111</p><p>”.</p><p>106</p><p>João Cassiano, Conferências IX, 27.</p><p>107</p><p>Isaac o Sírio, 34o. Tratado.</p><p>108</p><p>Cf. Sentenças dos Padres do deserto, cap. XXI, Dos que envelheceram na ascese 24.</p><p>109</p><p>Isaac o Sírio, 34o. Tratado.</p><p>110</p><p>Simeão o Novo Teólogo, Hino I.</p><p>111</p><p>Idem, Hino 13.</p><p>PREFÁCIO</p><p>DE</p><p>NICODEMO O HAGIORITA</p><p>Deus, a Natureza benevolente, a perfeição mais que perfeita, a Origem</p><p>melhor e mais bela, criadora de tudo o que há de bom e belo, tendo decidido</p><p>por toda a eternidade, em seu princípio teárquico, deificar o homem, e, tendo</p><p>colocado previamente, desde o começo, este objetivo em si mesmo, criou o</p><p>homem no tempo que considerou</p><p>bom. Ele tomou da matéria para fazer o</p><p>corpo, e de sua própria natureza para colocar nele uma alma. Neste pequeno</p><p>mundo do corpo, ele a pôs como um grande mundo pelo número de potências</p><p>e por sua eminência. Assim ele fez dele um guardador da criação sensível e</p><p>um iniciado da criação inteligível, segundo Gregório o grande teólogo. Com</p><p>efeito, que era o homem? Na verdade, nada além de uma imagem e um ícone</p><p>cheio de todas as graças, criado por Deus. Tendo Deus a seguir lhe dado a</p><p>lei de sua ordem, como uma prova de sua liberdade, ele soube que deveria</p><p>daí em diante retirar-se na presença desta lei. Como diz o Eclesiástico</p><p>112</p><p>, ele</p><p>foi deixado ao seu próprio discernimento, livre para escolher conforme lhe</p><p>parecesse bom o que lhe fosse apresentado. Se ele mantivesse a ordem, ele</p><p>deveria receber como recompensa a graça anipostática da deificação, tornar-</p><p>se Deus e irradiar a mais pura luz, na eternidade.</p><p>112</p><p>Eclesiastes XV, 14.</p><p>Mas – ó perversidade do ciúme! – aquele que introduziu o mal desde o</p><p>começo não suportou que a deificação fosse posta em marcha. Ele concebeu</p><p>o ciúme contra o Criador e contra a criatura, como diz são Máximo. Contra</p><p>o Criador, para que não fosse reconhecida a celebrada potência da bondade</p><p>que, com sua energia, deifica o homem. Contra a criatura, para que não lhe</p><p>fosse possível participar, pela deificação, a tamanha glória sobrenatural. O</p><p>maligno, em suas intrigas, enganou o infeliz homem. Por meio de sugestões</p><p>aparentemente preciosas, ele fez de tal modo que o homem transgrediu a</p><p>ordem divina. Ao destacá-lo da glória de Deus, aparentemente o rebelde</p><p>venceu como queria, uma vez que ele conseguiu evitar a cumprimento das</p><p>eternas recomendações de Deus.</p><p>Mas segundo o oráculo divino, o conselho de Deus referente à deificação da</p><p>natureza humana permanece na eternidade, e os pensamentos de seu coração</p><p>passam de geração em geração</p><p>113</p><p>. As razões da Providência e, portanto, as</p><p>razões do Juízo, que tendem para este objetivo, sempre acompanharam</p><p>imutavelmente o século presente, bem como o século futuro, como explica são</p><p>Máximo. No final dos dias, nas entranhas de sua misericórdia, ele pediu ao</p><p>Verbo do Pai, à divina Origem, de anular as recomendações dos príncipes</p><p>das trevas, e de ir mais longe para colocar em prática a recomendação</p><p>antiga e verdadeira, que ele estabelecera no princípio. Assim tendo se</p><p>encarnado pela bem-aventurança do Pai e a sinergia do Espírito Santo, ele</p><p>tomou em si toda a natureza e a deificou. Depois, tendo nos confiado a obra</p><p>divina de seus salutares mandamentos, e tendo nos concedido por meio do</p><p>batismo a graça perfeita do Espírito Santo, ele semeou nos corações como</p><p>que uma semente divina. Segundo o Evangelista, a nós que levamos nossa</p><p>vida segundo seus mandamentos vivificantes e as passagens espirituais de</p><p>uma idade a outra, a nós que por meio deste exercício guardamos a graça</p><p>inextinguível, ele permitiu ao final carregarmos os frutos, tornarmo-nos por</p><p>esta graça filhos de Deus</p><p>114</p><p>, e sermos deificados, alcançando o homem</p><p>perfeito, na medida da plenitude de Cristo</p><p>115</p><p>.</p><p>Tal era, em uma palavra, a finalidade, a conclusão de toda a economia do</p><p>Verbo ao nosso respeito. Mas aqui temos motivo para gemer amargamente,</p><p>113</p><p>Salmo XXXIII, 11.</p><p>114</p><p>Cf. João I, 12.</p><p>115</p><p>Cf. Efésios IV, 13.</p><p>como diz João Crisóstomo. Porque teríamos usufruído de tamanha graça,</p><p>teríamos sido dignos de tal nobreza, que nossa alma, purificada pelo Espírito</p><p>no batismo, brilharia mais do que o sol, pois teríamos recebido como</p><p>crianças este esplendor semelhante a Deus. Ora, cegos que fomos pela</p><p>ignorância, mas acima de tudo pela noite escura das preocupações da</p><p>existência, apagamos de tal modo graça sob as paixões, que estávamos a</p><p>ponto de extinguir em nós totalmente o Espírito de Deus, quase como aqueles</p><p>que responderam a Paulo que sequer haviam escutado que havia um Espírito</p><p>Santo</p><p>116</p><p>, e que estávamos como que na partida, quando ainda não começara</p><p>nossa graça. Ora essa, como somos fracos, incapazes de fazer desaparecerem</p><p>a malícia e nossa tendência intempestiva para o sensível! O espantoso é que,</p><p>quando ouvimos dizer que a graça age em outros, ficamos enciumados, e não</p><p>acreditamos que a energia da graça seja capaz de operar no século atual.</p><p>O que acontece com eles? Primeiro o Espírito, que cumulou de sabedoria os</p><p>Padres e, como conseqüência da nepsis – a sobriedade e a vigilância – a</p><p>atenção em tudo e a guarda do intelecto, lhes revelou como descobrir a</p><p>graça, como uma maravilha, em verdade, no coração mesmo da ciência. Por</p><p>outro lado, a prece contínua a nosso Senhor Jesus Cristo Filho de Deus</p><p>117</p><p>,</p><p>devo dizer, não apenas com o intelecto, nem só com os lábios (o que, com</p><p>efeito, ocorre normalmente de forma espontânea em todos os que escolhem</p><p>fazer ato de piedade, e do que qualquer um é capaz com facilidade). Esta</p><p>oração é concedida aos que voltaram seu intelecto inteiramente para a</p><p>interioridade do homem. E é um deslumbramento. Assim, por dentro, nas</p><p>profundezas mesmas de seu coração, eles invocaram o santo nome do Senhor</p><p>esperando a sua piedade, atentos às palavras cruas da oração e só a elas,</p><p>não percebendo nada mais nem do exterior nem do interior, para manter o</p><p>intelecto inteiramente sem forma e sem cor. As razões deste trabalho, e sua</p><p>matéria, se podemos dizê-lo, provêm do ensinamento do Senhor, que tanto</p><p>dizia: “O Reino dos céus está em vocês</p><p>118</p><p>”, como dizia: “Hipócrita,</p><p>purifique antes o interior da taça e do prato, e então o exterior também será</p><p>puro</p><p>119</p><p>”. Isto não deve ser tomado na ordem sensível, mas se aplica ao nosso</p><p>homem interior. Como escreve com justeza o apóstolo Paulo aos Efésios: “É</p><p>116</p><p>Cf. Atos XIX, 2.</p><p>117</p><p>Cf. I Tessalonicenses V, 17.</p><p>118</p><p>Lucas XVII, 21.</p><p>119</p><p>Mateus XXIII, 26.</p><p>por isso que eu dobro o joelho diante do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, a</p><p>fim de que ele lhes conceda ser em potência fortificados pelo seu Espírito, no</p><p>seu homem interior, e que ele faça com que Cristo habite em seus</p><p>corações.</p><p>120</p><p>” Podemos encontrar testemunho mais claro? Em outra parte:</p><p>“Cantando, disse ele, e celebrando o Senhor nos seus corações.</p><p>121</p><p>” Está</p><p>ouvindo? Ele disse: “no coração”. O que é confirmado pelo Corifeu dos</p><p>apóstolos: “Até que brilhe o dia, disse ele, e que a estrela da manhã se</p><p>levante em seus corações</p><p>122</p><p>.” E isto, que é necessário a todo homem votado à</p><p>piedade, o Espírito Santo o ensina igualmente em muitas páginas do Novo</p><p>Testamento, como podem perceber os que se debruçam e refletem sobre elas.</p><p>Graças a este trabalho dedicado ao Espírito e à ciência, tanto quanto</p><p>possível ligado à obra dos mandamentos e à ação das demais virtudes éticas,</p><p>graças ao calor suscitado no coração à invocação do santo nome e pela</p><p>energia espiritual que brota desta invocação, as paixões são consumidas.</p><p>“Pois nosso Deus é um fogo que consome o mal.</p><p>123</p><p>” Pouco a pouco o</p><p>intelecto e o coração são purificados e unem-se um ao outro. Ora, quando</p><p>eles estão purificados e unidos, é mais fácil conduzir-se conforme os</p><p>mandamentos salutares. Logo os frutos do Espírito aparecem na alma, e</p><p>abundam os bens. Numa palavra, é-nos permitido voltar rapidamente à graça</p><p>perfeita do Espírito, que nos foi dada no batismo, que está em nós, mas que</p><p>foi misturada às paixões, como uma brasa em meio às cinzas, e que se</p><p>incendeia com todo o esplendor na alma, para que esta seja reconhecida,</p><p>tenha sua inteligência iluminada e que, por conseguinte esteja terminada, e</p><p>deificada.</p><p>A maior parte dos Padres menciona aqui e ali este trabalho em seus escritos.</p><p>Eles o fazem para aqueles que conhecem a razão. Mas sem dúvida alguns</p><p>deles previram que nossa geração ignoraria e negligenciaria este estudo</p><p>salutar. Tendo</p><p>explicado precisamente o modo prático do estudo por certos</p><p>métodos naturais, eles não hesitaram em no-lo transmitir, a nós seus próprios</p><p>filhos, como uma herança paterna. Eles honraram este estudo com diferentes</p><p>nomes. Eles o chamaram de começo de todo trabalho que praz a Deus, de</p><p>120</p><p>Efésios III, 14-17.</p><p>121</p><p>Efésios V, 19.</p><p>122</p><p>II Pedro I, 19.</p><p>123</p><p>Deuteronômio IV, 24.</p><p>abundância de bens, de sinal puríssimo do arrependimento, de ação que</p><p>aproxima da verdadeira contemplação pelo intelecto. E todos eles nos</p><p>exortam a que nos consagremos realmente a esta obra. Mas eu me lamento</p><p>com o que acontece aqui, e o sofrimento me corta as palavras. Pois estes</p><p>livros, e muitos outros ainda, que tratam da atenção e da nepsis e que são</p><p>chamados de népticos, significam de fato, no amor da sabedoria, o trabalho</p><p>da purificação, da iluminação e da perfeição, para falarmos como o</p><p>Areopagita. Todos, da mesma forma, como outros tantos meios e órgãos</p><p>necessários, vão na mesma direção e têm como único objetivo a deificação</p><p>do homem. Mas, tanto devido à sua antigüidade como por sua raridade, eles</p><p>fizeram falta. Permitam-me dizer que eles jamais foram editados. E, se</p><p>alguns sobreviveram, foram comidos por vermes e deteriorados de todas as</p><p>maneiras. Eles são mencionados quase como se nunca tivessem existido. Eu</p><p>acrescentarei que a maior parte dos nossos caíram na negligência, e se</p><p>ocupam de muitas coisas, quero dizer, das virtudes corporais, das virtudes</p><p>ativas, ou, a bem dizer, somente dos instrumentos das virtudes, e passam toda</p><p>a sua vida nisso. A única coisa necessária, a guarda do intelecto e a prece</p><p>pura, eles sequer sabem que negligenciam, fora de toda ciência. O risco está</p><p>aí, que faltem totalmente a concisão e a doçura de tal trabalho, que a graça</p><p>se ensombreça e se extinga, e que com ela seja subtraída a obra que nos une</p><p>ao nosso Deus. (Como dissemos, esta união era a vontade anterior de Deus,</p><p>em sua benevolência, desde o princípio. Quanto ao fim, que é o objetivo</p><p>supremo – a criação em vista do ser, e a economia do Verbo que nos</p><p>encaminha ao ser-no-bem, e ao ser-no-bem-eterno – isto é simplesmente o</p><p>que Deus fez tanto no antigo como no novo Testamento).</p><p>Aonde, outrora, muitos dos que viviam no mundo, os próprios reis e todos os</p><p>que passavam seu tempo nos palácios, a cada dia tomados por uma</p><p>quantidade de encargos e preocupações inerentes aos seus cargos, não</p><p>perseguiam senão uma única obra, a de orar continuamente em seus</p><p>corações (como encontramos tantos nas Crônicas), atualmente, devido à</p><p>negligência e à ignorância, tornou-se raro – e que vergonha! – e bem difícil</p><p>encontrar tais homens, não apenas dentre os que vivem no mundo, mas</p><p>mesmo entre os monges e aqueles que vivem em solidão. Uma vez que estão</p><p>privados desta obra, e embora levem adiante o combate, cada qual como</p><p>pode, cada qual esforçando-se pela virtude, estes não colherão porém</p><p>nenhum fruto. Pois sem a lembrança contínua do Senhor, sem o coração</p><p>grávido desta lembrança, sem o intelecto purificado de todo mal, é impossível</p><p>dar fruto. Pois foi dito: “Sem mim vocês nada podem fazer”, e também:</p><p>“Aquele que permanecer em mim dará muitos frutos</p><p>124</p><p>”.</p><p>Eu o reconheço, então. Para o fato de faltarem os que se distinguem pela</p><p>santidade e que vivem mesmo após a morte, para o fato de que são tão pouco</p><p>os que se salvam nestes tempos</p><p>125</p><p>, não há outra causa do que esta: nós</p><p>negligenciamos esta obra que leva à deificação. Se a sua inteligência não for</p><p>deificada, diz um Padre, é impossível ao homem ser santificado, e nem sequer</p><p>salvo. O que o Sábio de Deus revela aqui é terrível, até para ser ouvido: ser</p><p>salvo e ser deificado são uma só e mesma coisa. Mas o mais grave é que</p><p>estamos privados até mesmo dos livros que poderiam nos levar lá. Ora, sem</p><p>eles, é quase impossível alcançar o fim.</p><p>Mas eis que surge João Mavrogordatos, este homem bom, amante de Cristo,</p><p>plenamente dotado de todas as qualidades mais importantes que conduzem à</p><p>generosidade, ao amor pelos pobres, à hospitalidade e a todas as virtudes,</p><p>continuamente ardente de zelo pelo bem comum.</p><p>Foi ele quem, inspirado pela graça de Cristo, que quer salvar e deificar todos</p><p>os homens</p><p>126</p><p>, transformou em alegria nossas lamentações e resolveu o</p><p>insuperável. Com efeito, propondo a cada um os meios para a deificação, ele</p><p>fez-se por assim dizer pés e mãos a fim de contribuir por meio desta obra ao</p><p>aconselhamento eterno de Deus, como ele disse. Que glória e que grandeza!</p><p>Pois aqui está o que jamais foi publicado antes. Eis o que estava oculto,</p><p>destinado à obscuridade e ao abandono, estes textos esquecido, comidos de</p><p>vermes, jogados e dispersos por aí. Ei-los aqui, eles que, pela via da ciência,</p><p>conduzem à pureza do coração, à sobriedade e ao despertar do intelecto, à</p><p>rememoração da graça que está em nós, e podemos acrescentar: à</p><p>deificação. Reunindo-os num mesmo livro, João Mavrogordatos os edita à luz</p><p>do dia. E era preciso. Era preciso que alguém expusesse tudo o que se refere</p><p>à iluminação divina, e que o fizesse à luz de uma edição. Com isto, de um</p><p>lado ele alivia aqueles que sabem quantas penas custam a transcrição dos</p><p>manuscritos e, de outro, simultaneamente ele desperta o amor por sua</p><p>aquisição, quero dizer o amor ao próprio ato, naqueles que não sabem. Você</p><p>124 João XV, 5.</p><p>125</p><p>Cf. Lucas XIII, 23.</p><p>126</p><p>Cf. I Timóteo II, 4.</p><p>tem portanto em mãos, caro leitor, graças a ele, sem dificuldade e facilmente,</p><p>o presente livro espiritual, este livro que é o tesouro da nepsis, a guarda do</p><p>intelecto, o ensinamento místico da noera proseuchè – a prece espiritual –</p><p>este livro que é uma admirável exposição da praktiké – a virtude ativa –, um</p><p>guia da contemplação infalível, o Paraíso dos Padres, a áurea catena das</p><p>virtudes, este livro que é uma conversa permanente com Jesus, a trombeta</p><p>que anuncia a graça, em uma palavra o próprio órgão da deificação, o bem,</p><p>mil vezes desejado acima de todos os outros, meditado e buscado desde</p><p>muitos anos, porém inencontrável. É por isso que você, leitor, deve sentir-se</p><p>obrigado pela necessidade e por toda a justiça, de orar ao divino com o</p><p>coração ardente para seu benfeitor e seus colaboradores, a fim de que</p><p>também eles, que se deram ao trabalho, alcancem a justa medida da</p><p>deificação, e sejam os primeiros a provar seus frutos.</p><p>Mas aqui alguém poderá objetar que os testemunhos deste livro não</p><p>deveriam ser publicados, uma vez que são estranhos ao entendimento da</p><p>maioria das pessoas, e que estas coisas não são isentas de perigos.</p><p>Responderemos em duas palavras. Também nós, caro amigo, não entramos</p><p>nesta empresa por nossas próprias idéias, mas partindo do exemplo de</p><p>outros. De um lado, temos o exemplo da Santa Escritura, que pede a todos os</p><p>fiéis, sem distinção, que orem continuamente</p><p>127</p><p>e que tenham sempre o</p><p>Senhor diante dos olhos: seria portanto ímpio dizer que existe um</p><p>impedimento, ou que é impossível seguir os mandamentos do Espírito,</p><p>segundo o grande Basílio. Por outro lado, temos o exemplo da tradição</p><p>escrita dos Padres: de fato, Gregório o Teólogo pede a todos aqueles de</p><p>quem estava encarregado que se lembrassem de Deus mais do que</p><p>respirassem. João Crisóstomo consagrou três sermões inteiros à prece</p><p>contínua do intelecto, e em numerosas falas ele exorta todo mundo a orar</p><p>sempre. Da mesma forma Gregório o Sinaíta, por onde passava, ensinava</p><p>este trabalho salutar. E o próprio Deus, ao enviar milagrosamente um anjo</p><p>do alto, selou esta verdade, fechando aboca do monge que contestava, como</p><p>poderemos ver ao final deste livro. E que mais dizer, quando mesmo os que</p><p>vivem no mundo, que passam seu tempo nos palácios imperiais, e que, como</p><p>dissemos, possuem esta meditação como obra incessante, que dizer quando</p><p>eles confirmam o fato, sendo capazes</p><p>por si sós de fechar a boca dos</p><p>contraditores? E se alguns se desviaram um pouco, o que há de espantoso</p><p>127</p><p>Cf. I Tessalonicenses V, 17.</p><p>nisto? Na maior parte das vezes, foi por presunção que eles se perderam,</p><p>como diz Gregório o Sinaíta. Quanto a mim, penso que a causa desta</p><p>derivação é a seguinte: eles não seguiram rigorosamente e em tudo o</p><p>ensinamento dos Padres sobre este trabalho. Mas a causa não estaria no</p><p>próprio trabalho, longe disto. Pois este trabalho é santo, e é basicamente por</p><p>meio dele que deveremos ser liberados de todo erro. De fato, diz Paulo, os</p><p>mandamentos de Deus que conduzem à vida, aplicado segundo a lei, levaram</p><p>alguns à morte. Mas isto não aconteceu por causa do mandamento. Mas</p><p>como, então?Porque o mandamento é santo, justo e verdadeiro</p><p>128</p><p>? Devido à</p><p>perversidade das tramas do mal? Porque então? Devemos acusar o</p><p>mandamento divino por causa do pecado de alguns? Devemos também</p><p>negligenciar este trabalho salutar, porque alguns se perderam?</p><p>Absolutamente. Nem um, nem outro. Mas, antes de mais nada, tenhamos</p><p>confiança n’Aquele que disse: “Eu sou o caminho e a verdade</p><p>129</p><p>”, e</p><p>coloquemos mãos à obra, com toda a humildade e em estado de luto. Com</p><p>efeito, se alguém se desembaraçou de sua presunção e do desejo de agradar</p><p>aos homens, mesmo que seja agredido por toda uma falange de demônios,</p><p>estes não conseguiriam se aproximar dele, conforme o ensinamento dos</p><p>Padres.</p><p>Sendo as coisas assim, e como este livro expõe o irreprochável, em tudo e por</p><p>tudo, e de todos os lados, como foi dito, este convite da Sabedoria será daqui</p><p>para frente muito oportuno: tomá-lo nas mãos, e proclamar em alto e bom</p><p>tom o apelo que a todos convoca para a mesa espiritual deste livro. Vocês que</p><p>não desdenham o festim de Deus, vocês que não buscam pretexto alegando a</p><p>colheita, os animais e as mulheres, como aqueles que se subtraíram ao</p><p>convite no Evangelho, venham, venham. Comam neste livro o pão gnóstico da</p><p>Sabedoria, e bebam o vinho que alegra o coração com toda a inteligência e</p><p>que o separa de todo o sensível e de todo o inteligível, pela deificação no</p><p>êxtase. Embriaguem-se da embriaguez que dá a verdadeira sobriedade.</p><p>Venham, todos vocês que tomam parte da vocação ortodoxa, leigos e monges,</p><p>vocês que se esforçam por encontrar o Reino de Deus em si mesmos, bem</p><p>como o tesouro escondido no campo do coração, Jesus Cristo, doce e</p><p>humilde, a fim de, com a seu intelecto libertado do cativeiro inferior e de sua</p><p>perdição, e com o coração purificado das paixões pela invocação contínua de</p><p>128</p><p>Cf. Romanos VII, 12.</p><p>129</p><p>João XIV, 6.</p><p>nosso Senhor Jesus Cristo e pelas demais virtudes auxiliares que são</p><p>ensinadas neste livro, vocês estejam unidos a si próprios e através de si</p><p>próprios a Deus, conforme a oração do Senhor ao Pai, quando ele disse:</p><p>“Para que todos sejam um como nós somos um</p><p>130</p><p>”, e que, assim unidos a Ele</p><p>e inteiramente transformados pela posse e o êxtase do Eros divino vocês</p><p>sejam plenamente deificados na noera aisthesis – o sentido do intelecto – na</p><p>plerophoria – a plena certeza indubitável – e que vocês cheguem ao objetivo</p><p>último de Deus, glorificando o Pai, o Filho e o Espírito Santo, a Divindade</p><p>única em sua divina Origem, a ela toda a glória, a honra e a adoração pelos</p><p>séculos dos séculos. Amém.</p><p>130</p><p>João XVII, 22.</p><p>ANTÔNIO O GRANDE</p><p>EXORTAÇÕES</p><p>SOBRE O COMPORTAMENTO DOS HOMENS</p><p>E A VIDA VIRTUOSA</p><p>Antônio o Grande</p><p>Antônio o Grande, nosso Pai, o Corifeu do coro dos ascetas, viveu no reino</p><p>de Constantino, por volta do ano 330. Ele foi contemporâneo de Atanásio,</p><p>que escreveu a história de sua vida. Ele levou ao extremo a virtude e a</p><p>impassibilidade. Embora tenha sido um homem simples e iletrado, foi-lhe</p><p>concedido do alto ensinar a sabedoria do Espírito, que instrui os pecadores e</p><p>as crianças. Com seu intelecto iluminado pela graça desta sabedoria, ele</p><p>explicou diversos e numerosos princípios espirituais, e aos que o</p><p>interrogavam ele deu respostas muito sábias, para grande benefício da alma,</p><p>como podemos ver nos escritos dos Padres do deserto. Além destes</p><p>testemunhos, ele nos deixou 170 capítulos que estão reportados no presente</p><p>livro. Que é ele o verdadeiro autor destes pensamentos, João Damasceno e</p><p>outros o confirmam. A textura das frases exclui a dúvida. Entretanto, ela</p><p>permite interpretações aos que as examinam minuciosamente. Seja como for,</p><p>os pensamentos são contemporâneos de uma santa antigüidade.</p><p>Não é de espantar, assim, que as expressões procedam de uma escrita das</p><p>mais simples, arcaica e sem pesquisas. O espantoso, é que tamanha</p><p>simplicidade coloque o leitor no caminho da salvação e de tanto bem, a</p><p>ponto de nele florescer a convicção, a ponto de nele instilar o regozijo. Direto</p><p>ao ponto em que brilha a doçura e a certeza da vida evangélica. Aqueles que</p><p>provarem deste mel em seu intelecto certamente alcançarão este prazer.</p><p>*</p><p>Estes 170 capítulos, atribuídos a santo Antônio, e que constituem o texto</p><p>inicial da grande Filocalia grega, são a um tempo um paradoxo e um símbolo.</p><p>O Paradoxo é evidente. O texto, o mais antigo da antologia, possui toda uma</p><p>fórmula. Ele anuncia os dados e o alcance do combate espiritual. Mas ele é</p><p>côo que estranho ao apoio bíblico e eclesiástico do corpus filocálico:</p><p>nenhuma citação direta das Escrituras, nenhuma menção ao nome de Cristo,</p><p>nenhuma referência à comunidade cristã. Apenas encontramos, no capítulo</p><p>141, e como uma breve interpolação, uma confissão das pessoas da Trindade.</p><p>Mas o símbolo não é menos claro. Existe aí como que um duplo enraizamento</p><p>da tradição hesiquiasta no nome de santo Antônio e em suas “exortações”</p><p>que, para a crítica moderna, não são mais do que uma compilação de escritos</p><p>estóicos tardios revistos por um monge cristão. Ou então se trata da redação</p><p>direta de um tratado cristão que utiliza premissas estóicas daquilo que os</p><p>Padres chamarão mais tarde de “filosofia pratica”. Em todo caso, a osmose é</p><p>total. A esperança cristã repousa inteiramente na “conduta virtuosa”.</p><p>Simplesmente Deus, a imortalidade, a vida eterna, a salvação, o Reino dos</p><p>céus, constantemente invocados, mas como que separados do Evangelho,</p><p>substituem aqui a ataraxia. Assim, a salvação depende menos da redenção do</p><p>que do princípio da causalidade. O homem é imortal porque é dotado de</p><p>intelecto e de razão, não porque tenha sido remido pela encarnação do Filho</p><p>de Deus. Um abismo. Mas um abismo fecundo, cheio de palavras-chave do</p><p>vocabulário hesiquiasta (o logos e o nous, a razão e o intelecto) que, para os</p><p>Padres, são as próprias mediações que unem Deus e o homem, desde que a</p><p>razão se faz carne em Cristo e que o intelecto se resolve em prece do coração</p><p>e em deificação luminosa. A osmose total não é, assim, gratuita.</p><p>Mas nestas condições, a atribuição do texto a santo Antônio não poderia ser</p><p>senão simbólica. Apenas as datas coincidem aproximadamente: do século I ao</p><p>IV de nossa era para os 170 capítulos, e o II e IV para santo Antônio, que foi</p><p>nos desertos do Egito o Pai do monaquismo cristão: assim, Antônio e suas</p><p>exortações apenas têm em comum o fato de serem os primeiros testemunhos</p><p>daquilo que iria se seguir depois.</p><p>O lugar dos 170 capítulos à frente da antologia filocálica, por paradoxal que</p><p>seja, é, portanto, exemplar. Estes capítulos significam no mínimo que o</p><p>estoicismo, esta esfera fechada em que a um tempo se refinava e petrificava a</p><p>filosofia antiga, acabou por se abrir à esperança cristã, ou, em todo o caso,</p><p>por lhe servir de suporte. Ele chegará aos monges, ao longo dos séculos, pelo</p><p>exercício da humildade e da compaixão</p><p>evangélicas, atribuindo a “filosofia</p><p>prática” unicamente a prece do coração, portanto à pura espera da graça. Mas</p><p>o símbolo está preservado. Na longa história do monaquismo cristão, este</p><p>texto, a seu modo, corresponde exatamente àquilo que foi a experiência</p><p>decisiva de santo Antônio: uma gestação.</p><p>EXORTAÇÕES SOBRE O COMPORTAMENTO DOS HOMENS</p><p>E A VIDA VIRTUOSA</p><p>1. É abusivo dizer que os homens são dotados de razão. Não são racionais</p><p>aqueles que se deixam ensinar pelas palavras e os livros dos sábios antigos.</p><p>Mas são racionais aqueles cuja alma é dotada de razão e que são capazes de</p><p>discernir o que é o bem e o que é o mal. Fugindo de tudo o que é mau e</p><p>nocivo, eles se consagram ao estudo do que é bom e útil. São eles, e somente</p><p>eles, que podemos chamar verdadeiramente de homens dotados de razão.</p><p>2. O homem dotado de razão na verdade não tem senão uma coisa no coração:</p><p>obedecer e agradar ao Deus do universo, e conformar sua alma com a única</p><p>preocupação de lhe ser agradável, dando-lhe graças pela realidade e a força de</p><p>sua providência por meio da qual ele dirige todas as coisas, seja o que for que</p><p>lhe aconteça durante a vida. De fato, seria fora de propósito agradecer pela</p><p>saúde do corpo aos médicos que nos prescrevem remédios amargos e</p><p>desagradáveis, enquanto recusamos a Deus a gratidão por coisas que nos</p><p>parecem penosas, como se não soubéssemos que tudo o que acontece é como</p><p>deve ser, e para nosso bem, pelos cuidados da providência. Pois o</p><p>conhecimento de Deus e a fé nele são a salvação e a perfeição da alma.</p><p>3. A temperança, a resignação, a castidade, a perseverança, a paciência e</p><p>similares, são as correspondentes potências virtuosas consideráveis que</p><p>recebemos de Deus para resistir às dificuldades do momento, fazer-lhes frente</p><p>e nos socorrer. Se exercermos e mantivermos estas potências, perceberemos</p><p>que daí em diante nada mais de difícil, doloroso e intolerável nos acontece,</p><p>com o pensamento de que tudo é humano e pode ser dominado pelas virtudes</p><p>que estão em nós. Os que não têm a inteligência da alma não pensam assim,</p><p>pois eles não compreendem que tudo acontece para o bem e como se deve,</p><p>para nosso benefício, a fim de que brilhem as virtudes, e que sejamos</p><p>coroados por Deus.</p><p>4. Se você pensa que ter dinheiro e mostrar opulência não passam de</p><p>aparência ilusória e passageira, se você sabe que a vida virtuosa que agrada a</p><p>Deus o resgata das riquezas, e se você refletir seriamente nisto e guardar na</p><p>lembrança, você não mais gemerá, nem se lamentará, você não acusará</p><p>ninguém, mas em tudo dará graças a Deus, vendo aqueles que são piores do</p><p>que você apoiarem-se sobre a eloqüência e o dinheiro. Pois este é para a alma</p><p>um mal tão grave como a cobiça, a ambição e a ignorância.</p><p>5. É examinando a si mesmo que o homem dotado de razão experimenta o</p><p>que lhe convém e lhe é útil, o que é apropriado à alma e lhe é vantajoso, e o</p><p>que lhe é estranho. E é assim que ele evita o mal que é nocivo à alma, por ser-</p><p>lhe estranho e separá-la da imortalidade.</p><p>6. Quanto mais modestamente vive a pessoa, mais ela é feliz, porque tem</p><p>poucas preocupações. Ela não precisa se inquietar com servidores e com</p><p>trabalhadores, ela não procura possuir animais. Pois os que se deixam acossar</p><p>pelas preocupações e tombam diante das dificuldades que elas lhes ocasionam</p><p>acabam por desgostar-se de Deus. Mas então este ciúme que não está senão</p><p>em nós irriga a morte, e ficamos a errar pelas trevas de uma vida de pecado,</p><p>sem conhecermos a nós mesmos.</p><p>7. Não se deve dizer que é impossível ao homem alcançar uma vida virtuosa,</p><p>mas sim que isto não é fácil. Esta vida não está ao alcance de qualquer um.</p><p>Mas partilham a vida virtuosa aqueles, dentre os homens, que se consagram à</p><p>piedade e cujo intelecto é amado por Deus. Pois o intelecto comum está</p><p>voltado para o mundo, ele é mutante, ele nutre tanto bons como maus</p><p>pensamentos, ele se altera por natureza e se dirige para a matéria. Mas o</p><p>intelecto amado por Deus sabe preservar-se do mal que a negligência suscita</p><p>no homem.</p><p>8. Os homens incultos e ignorantes transformam em zombaria as palavras dos</p><p>outros e recusam-se a ouvi-la quando sua ignorância é repreendida; eles</p><p>querem que todo mundo seja como eles. Da mesma forma, os homens</p><p>depravados em sua vida e seu comportamento arrumam-se para que todo o</p><p>mundo seja pior do que eles; eles imaginam que, em meio a tantos</p><p>vagabundos, serão considerados irrepreensíveis. A alma descuidada se perde e</p><p>se suja na malícia que lhe apresenta o deboche, o orgulho, a avidez, a cólera,</p><p>a agressividade, a fúria, a brutalidade, os queixumes, a inveja, a cupidez, a</p><p>rapacidade, a dor, a mentira, o prazer, a irresponsabilidade, a tristeza, a</p><p>preguiça, a doença, a raiva, a vergonha, a fraqueza, o erro, a ignorância, as</p><p>mentiras, o esquecimento de Deus. É por estes males, e por outros</p><p>semelhantes, que a pobre alma que se separou de Deus é castigada.</p><p>9. Aqueles que desejam levar uma vida virtuosa, piedosa e louvável, não</p><p>devem ser julgados por seu comportamento, que pode ser simulado, sem por</p><p>sua conduta, que pode ser enganadora. Mas como os artistas, os pintores e os</p><p>escultores, é por suas obras que eles revelam sua conduta virtuosa e amada</p><p>por Deus, e que eles rejeitam como armadilhas todos os prazeres maus.</p><p>10. Aos olhos daqueles que possuem um juízo são, ser rico e bem nascido,</p><p>mas possuir a alma inculta e a vida desprovida de toda virtude, equivale a ser</p><p>infeliz, assim como é feliz aquele que a sorte fez nascer pobre e escravo, mas</p><p>cuja vida é ornada de virtudes. Assim como os estrangeiros se perdem pelos</p><p>caminhos, também os que não têm nenhum cuidado com a vida virtuosa se</p><p>perdem deixando-se enganar pelas ilusões.</p><p>11. Devemos chamar “criador de homens” àquele que é capaz de domar as</p><p>naturezas incultas a ponto de fazê-las amar a instrução e a cultura. Da mesma</p><p>maneira, aqueles que transformam os desviados inspirando-lhes uma conduta</p><p>virtuosa que agrada a Deus, também devem ser chamados “criadores de</p><p>homens”, pois eles remodelam os homens. Pois a doçura e a temperança são</p><p>para as almas humanas uma felicidade e uma boa esperança.</p><p>12. É preciso que os homens se conduzam em verdade como convém a seu</p><p>comportamento e sua conduta. Uma vez operado este redirecionamento,</p><p>torna-se fácil conhecer as coisas de Deus. Com efeito, aquele que venera a</p><p>Deus com todo seu coração e com toda sua fé, recebe da providência divina a</p><p>possibilidade de dominar a cólera e a cobiça. Ora, a cobiça e a cólera são a</p><p>fonte de todos os males.</p><p>13. Que leve o nome de homem aquele que é dotado de razão ou aquele que</p><p>aceita se corrigir. Quem não se corrige é chamado indigno do nome de</p><p>homem: isto é próprio dos seres inumanos. Devemos fugir destes, pois é</p><p>impossível àqueles que vivem no mal serem contados entre os imortais.</p><p>14. Se verdadeiramente a razão nos acompanha, ela nos torna dignos de</p><p>sermos chamados de homens. Mas se abandonamos a razão, é apenas pela</p><p>conformação dos membros e pela voz que diferimos dos animais sem razão.</p><p>Que o homem inteligente reconheça assim que ele próprio é imortal, e ele terá</p><p>aversão por toda cobiça desregrada, que é causa da morte para os homens.</p><p>15. Cada uma das artes, organizando a matéria que lhe é própria, revela sua</p><p>virtude. Um trabalha a madeira, outro o bronze, outro o ouro e a prata. Do</p><p>mesmo modo, nós que ouvimos falar da conduta feliz e virtuosa que agrada a</p><p>Deus, devemos mostrar em verdade que somos homens dotados de razão por</p><p>nossa alma, e não apenas pela conformação do corpo. Ora, a alma que é</p><p>verdadeiramente dotada de razão e amada por Deus conhece no campo todas</p><p>as coisas da vida. Ela ora a Deus com todo seu amor e lhe rende graças na</p><p>verdade, dirigindo a ele todo seu desejo e todos os seus pensamentos.</p><p>16. Assim como os pilotos têm um vigia para dirigir o navio e não atirá-lo</p><p>contra</p><p>algum banco submarino ou um rochedo, também os que aspiram à vida</p><p>virtuosa devem examinar cuidadosamente o que fazer e o que evitar. Que eles</p><p>considerem que seu bem está nas verdadeiras leis, as leis divinas, cortando</p><p>pela raiz as ambições prejudiciais da alma.</p><p>17. Assim como os pilotos e condutores de carros, à força de atenção e</p><p>cuidados, chegam aonde querem, também os que cultivam a vida reta e</p><p>virtuosa devem ter o cuidado de levar uma vida que convenha e agrade a</p><p>Deus. Pois aquele que quer, e que compreende que pode se acreditar, toma o</p><p>caminho da imortalidade.</p><p>18. Considere que são livres, não os que a sorte fez livres, mas os que o são</p><p>por sua vida e seu comportamento. Pois não devemos chamar livres de</p><p>verdade os príncipes que vivem no mal e no deboche: eles são escravos das</p><p>paixões da matéria. A liberdade e a felicidade da alma é a pureza fiel e o</p><p>desdém pelo que acontece.</p><p>19. Lembre-se de que é preciso sem cessar dar seu testemunho aos olhos dos</p><p>outros, mas por sua conduta virtuosa e pelas próprias obras. É assim, não</p><p>pelas palavras mas pelos atos, que os doentes descobrem e reconhecem, em</p><p>seus médicos, os benfeitores e salvadores.</p><p>20. A marca da alma dotada de razão e virtuosa está no olhar, no caminhar, na</p><p>voz, no riso, nas ocupações e nas conversas. Pois tudo se transforma e se</p><p>readapta para se tornar mais nobre. O intelecto amado por Deus guarda suas</p><p>portas, vigilante e sóbria, interditando a entrada à infâmia dos maus</p><p>pensamentos.</p><p>21. Reflita você mesmo, e reconheça que os magistrados e as autoridades têm</p><p>poder somente sobre os corpos, mas não sobre a alma. Guarde sempre</p><p>consigo esta convicção. Se eles ordenam uma violência, ou um absurdo, ou</p><p>uma injustiça nociva à alma, não devem ser obedecidos, mesmo que</p><p>maltratem seu corpo, pois Deus criou a alma livre e capaz de decidir por si</p><p>mesma se ela faz o bem ou o mal.</p><p>22. A alma dotada de razão dedica-se a se livrar da ambição, do orgulho, da</p><p>arrogância, da falsidade, do ciúme, da rapacidade e dos vícios que lhes</p><p>assemelham. Todos esses vícios são obra dos demônios e de uma vontade má.</p><p>Mas um esforço e um cuidado perseverantes corrigem tudo isso no homem</p><p>cujo desejo não se orienta para os prazeres fáceis.</p><p>23. Aqueles que vivem com pouco e não procuram tudo obter, escapam aos</p><p>perigos e não precisam ser vigiados. Quanto aos que dominaram a cobiça em</p><p>todas as coisas, estes encontram facilmente o caminho que leva a Deus.</p><p>24. Não é necessário que os homens dotados de razão possuam muitos</p><p>relacionamentos. Eles só têm necessidade de relacionamentos úteis, dirigidos</p><p>pela vontade de Deus. É assim que os homens retornam à luz e à vida eterna.</p><p>25. Os que aspiram a uma vida virtuosa amada por Deus devem afastar-se do</p><p>orgulho e de toda glória falsa e vã, e se esforçar para bem endireitar sua vida</p><p>e seus pensamentos. Pois o intelecto amado por deus e sempre igual é o</p><p>caminho que nos eleva a Deus.</p><p>26. A ninguém adianta saber falar se lhe falta a conduta da alma da alma que é</p><p>agradável a apraz a Deus. Mas a fonte de todos os males é o erro, a mentira e</p><p>a ignorância de Deus.</p><p>27. É o cuidado com a vida mais bela e com a alma que torna os homens bons</p><p>e amados por Deus. Pois aquele que procura a Deus o encontra: ele domina</p><p>toda cobiça e não se separa da oração. Este homem não teme os demônios.</p><p>28. Os que se perderam por causa das esperanças desta vida e não sabem</p><p>senão em palavras levar a vida mais bela, são um pouco como pacientes que</p><p>buscam os remédios e os instrumentos da medicina, mas que não sabem</p><p>servir-se deles nem se inquietam com isto. É por isso que, quando estamos em</p><p>falta, não devemos jamais acusar nossos pais ou qualquer outra pessoa, mas</p><p>apenas a nós mesmos. Pois se a alma se abandona à negligência, torna-se para</p><p>ela impossível vencer.</p><p>29. A quem não sabe discernir o que é bom do que é mau, é impossível julgar</p><p>quem é bom e quem é mau. Pois o homem é bom se ele conhece a Deus; mas</p><p>se ele não é bom, ele de nada sabe e nunca terá este conhecimento. Pois o</p><p>bem é o modo de conhecimento de Deus.</p><p>30. Os homens bons e amados por Deus não denunciam o mal de outrem</p><p>senão na sua presença, e cara a cara. Eles jamais reprovam os ausentes. E eles</p><p>não aceitam escutar os que assim acusam os outros.</p><p>31. Que em suas conversas seja banida toda duração. Pois a modéstia e a</p><p>reserva ornam o homem dotado de razão, mais ainda do que as virgens. O</p><p>intelecto amado por Deus é a luz que ilumina a alma, como o sol ilumina o</p><p>corpo.</p><p>32. Em todas as provações que couberem à sua alma, lembre-se de que aos</p><p>olhos dos que têm o justo cuidado e a vontade de manter em ordem e em</p><p>segurança o que lhes pertence, não é a posse perecível das riquezas que é</p><p>considerada agradável, mas as doutrinas retas e verdadeiras: são elas que os</p><p>fazem felizes. Pois o rico pode ser despossuído e pilhado pelos que são mais</p><p>poderosos do que ele. Mas a virtude da alma é o único bem seguro e</p><p>inviolável, o único também que, após a morte, salva a quem o possui. Os que</p><p>pensam assim não serão arrastados pelos fantasmas da riqueza e dos prazeres.</p><p>33. Não convém que homens instáveis e incultos se tenham por eminências.</p><p>O homem eminente é aquele que agrada a Deus, que se cala na maior parte</p><p>das vezes, ou que fala pouco e não diz senão o que é preciso e agrada a Deus.</p><p>34. Os que aspiram a viver na virtude e no amor de Deus, cuidam das virtudes</p><p>da alma como de um bem próprio, como de suas próprias delícias eternas.</p><p>Quanto às coisas que passam, eles desfrutam delas na medida do possível, e</p><p>conforme o que Deus dá e quer. A tudo eles usam com toda alegria e gratidão,</p><p>mesmo se estas coisas lhes forem racionadas. Pois comer bem e bastante</p><p>alimenta o corpo e sua matéria. Mas o conhecimento de Deus, a temperança,</p><p>a bondade, a bem-aventurança, a piedade e a doçura deificam a alma.</p><p>35. Aqueles que, dentre os poderosos, obrigam a que sejam feitas ações</p><p>deslocadas e nocivas, enquanto que a alma foi criada livre, não são, portanto,</p><p>senhores. Eles podem aprisionar o corpo, mas não a vontade, pois o homem</p><p>dotado de razão é seu senhor por Deus seu Criador, que é mais forte do que</p><p>qualquer poder, qualquer imposição e qualquer potência.</p><p>36. Os que consideram como uma infelicidade a perda de dinheiro, de filhos,</p><p>de servidores ou de qualquer outro bem, saibam que devemos antes de tudo</p><p>contentarmo-nos com o que Deus dá, e devolver-lhe com entusiasmo e</p><p>gratidão, quando preciso, sem sermos afetados por esta privação, ou antes por</p><p>esta restituição, pois aqueles que se servem daquilo que não lhes pertence não</p><p>cessam de devolver.</p><p>37. É obra do homem justo não vender sua liberdade em troca de bens que lhe</p><p>sejam oferecidos, mesmo que sejam muitos. Pois as coisas da terra são como</p><p>que um sonho, e a riqueza não passa de uma ilusão incerta e efêmera.</p><p>38. Que os que são verdadeiramente dignos de serem chamados de homens se</p><p>dediquem a conduzir suas vidas no amor a Deus e à virtude a fim de que sua</p><p>vida virtuosa brilhe no meio dos outros homens. Assim como a púrpura, por</p><p>pouca que seja, salpicada sobre a brancura de uma vestimenta, a enfeita de</p><p>beleza e a faz distinguir e reconhecer, também estes homens manterão com</p><p>mais segurança o cuidado com as virtudes da alma.</p><p>39. Os homens sábios devotam-se a bem examinar sua força e os recursos da</p><p>virtude que trazem na alma, se eles querem estar prontos para se opor a todas</p><p>as paixões, na medida de suas possibilidades, que lhes são naturalmente dadas</p><p>por Deus. Seus recursos, são a temperança face às seduções da beleza e a toda</p><p>cobiça nociva à alma, a perseverança face às penas e privações, a paciência</p><p>face ao insulto e à cólera, além das correspondentes virtudes.</p><p>40. É impossível que um homem se torne subitamente sábio e bom. É preciso</p><p>um estudo assíduo, a perseverança, a experiência, o tempo, a ascese, e o</p><p>desejo</p><p>pela boa obra. O homem bom e amado por Deus, aquele que em</p><p>verdade conhece a Deus, não cessa de fazer em abundância tudo o que agrada</p><p>a Deus. Mas estes homens são raros.</p><p>41. Não convém aos menos dotados dos homens, os que se desesperam de si</p><p>mesmos, tratar com negligência e desdém a conduta virtuosa amada por Deus,</p><p>sob pretexto de ser-lhes inacessível e fora de alcance. Ao contrário, eles</p><p>devem colocar nisso todas as suas forças e cuidar de si, pois mesmo que não</p><p>possam atingir os cumes da virtude e da salvação, entretanto, por seu esforço</p><p>e seu desejo, ou eles se tornam melhores, ou ao menos não se tornam piores,</p><p>o que para a alma não é pouco benefício.</p><p>42. Por sua natureza racional, o homem se liga a esta faculdade misteriosa e</p><p>divina da razão. Mas por sua natureza corpórea, ele se aparenta aos animais.</p><p>Alguns, pouco numerosos, verdadeiramente homens e verdadeiramente</p><p>dotados de razão, de todo o coração dirigem ao seu Deus e Senhor seus</p><p>pensamentos e afinidades, e o manifestam por seus atos e por uma vida</p><p>virtuosa. Mas a maior parte dos homens, que não têm a inteligência da alma,</p><p>desprezam esta filiação divina e imortal, para se voltar à afinidade com o</p><p>corpo, afinidade morta, infeliz e passageira, e não pensam senão nas coisas da</p><p>carne, como os animais sem razão, ligando-se aos prazeres. Assim eles se</p><p>separam de Deus e, por efeito de sua vontade, separam a alma dos céus e a</p><p>arrastam para o abismo.</p><p>43. O homem dotado de razão, lembrando-se de que participa do divino e que</p><p>está unido a ele, jamais se apaixonará por seja lá o que for de terrestre e vil.</p><p>Ele mantém seu intelecto voltado para o que é celeste e eterno. E ele sabe que</p><p>a vontade de Deus é a salvação do homem, uma vez que Deus é para os</p><p>homens a causa de todos os bens e a fonte da beatitude eterna.</p><p>44. Quando você tiver que se haver com alguém que disputa e combate a</p><p>verdade e a evidência, corte imediatamente a disputa e afaste-se deste homem</p><p>cuja inteligência está petrificada. Da mesma forma, com efeito, com que uma</p><p>água ruim estraga os melhores vinhos, também as conversas sem sentido</p><p>corrompe aqueles que consagram a vida e o pensamento à virtude.</p><p>45. Se nos esforçamos por todos os meios para escapar da morte do corpo,</p><p>muito mais deveríamos fazer para escapar à morte da alma. Diante daquele</p><p>que quer ser salvo, não existe, com efeito, outro obstáculo que a negligência e</p><p>a irresponsabilidade da alma.</p><p>46. Aqueles que têm dificuldade em compreender o que lhes é vantajoso e o</p><p>que lhes é dito a respeito do bem são considerados doentes. Mas quando</p><p>aqueles que compreendem a verdade discutem impudentemente, é a razão que</p><p>está morta e seu comportamento é selvagem. Eles não conhecem a Deus e sua</p><p>alma não está iluminada.</p><p>47. Deus, com sua palavra, destinou as espécies animais a diferentes usos</p><p>sucessivos. Algumas devem ser comidas, outras devem servir. E ele criou o</p><p>homem para contemplar suas vidas e suas obras e para reconhecê-las e</p><p>interpretá-las. Que os homens se apliquem, assim, a não morrer sem antes</p><p>contemplar e entender Deus e suas obras, como os animais desprovidos de</p><p>razão. O homem deve saber que Deus tudo pode, e que nada se opõe Àquele</p><p>que pode tudo. A partir do nada ele fez, e fez tudo o que quis com sua simples</p><p>palavra, para a salvação dos homens.</p><p>48. O que está no céu é imortal, por causa da bondade inerente ao que é</p><p>celeste. Mas o que está na terra tornou-se mortal por causa do mal terrestre</p><p>inerente que está nela. E este mal, pela negligência e pela ignorância de Deus,</p><p>atinge aqueles a quem falta a inteligência.</p><p>49. A morte, se o homem souber compreendê-la, é imortalidade. Mas para os</p><p>ignorantes, que não a compreendem, ela é verdadeiramente a morte. Não é</p><p>esta morte que devemos temer, mas a perdição da alma que está na ignorância</p><p>de Deus. É isto, para a alma, que é temível.</p><p>50. O mal é uma afecção da matéria. Assim, não é possível que o corpo</p><p>permaneça estranho ao mal. A alma dotada de razão, que compreende isto,</p><p>ataca este peso da matéria que é o mal. Recusando-se a carregar tal peso, ela</p><p>se volta para o conhecimento do Deus do universo, considera daí para diante</p><p>o corpo como um inimigo e um adversário em quem não se pode confiar. É</p><p>assim que a alma recebe a coroa de Deus, ao superar as provações do mal e da</p><p>matéria.</p><p>51. Se a alma discerne o mal, ela toma aversão a ele como a um animal mal-</p><p>cheiroso. Mas se o mal é ignorado, ele é amado por quem o ignora, e então</p><p>ele captura a este. Pois o mal sujeita a quem o ama. Então o pobre infeliz não</p><p>vê nem compreende aonde está seu bem, mas pensa que o mal o adorna de</p><p>belezas, e então se regozija com isto.</p><p>52. A alma pura, que é boa, recebe de Deus a luz e o esplendor. Então o</p><p>intelecto compreende o que é bom e suscita palavras amadas por Deus. Mas</p><p>quando a alma é suja pela lama do mal, Deus se afasta dela, ou melhor, ela se</p><p>separa de Deus. Os demônios do mal então penetram em seu pensamento, e</p><p>começam a lhe sugerir ações ímpias, adultérios, violências, roubos,</p><p>sacrilégios e outros malfeitos, que são todos obras do demônio.</p><p>53. Aqueles que conhecem a Deus enchem-se de todas as bem-aventuranças</p><p>da bondade. Aspirando às coisas do céu, eles desdenham as coisas desta vida.</p><p>Tais homens não agradam à maioria, nem tentam agradá-la. Assim, muitos</p><p>dentre os que não compreendem nada, não apenas os detestam, como</p><p>zombam deles. Em sua pobreza, eles aceitam suportar tudo isso, sabendo que</p><p>o que parece um mal à maioria, aos seus olhos é o bem. Pois aquele cujo</p><p>intelecto se abre às coisas celestes, crê em Deus e compreende que todas as</p><p>coisas são criações de sua vontade, enquanto que aquele cujo intelecto não se</p><p>abre, jamais acreditará que este mundo é obra de Deus e que ele foi feito para</p><p>a salvação do homem.</p><p>54. Aqueles que estão cheios do mal e embriagados pela ignorância não</p><p>conhecem a Deus, pois suas almas não são nem sóbrias nem vigilantes. Ora,</p><p>Deus é inteligível. Ele não é visível em si, mas ele se manifesta plenamente</p><p>no visível, como a alma no corpo. É impossível que o corpo se mantenha sem</p><p>a alma, assim como é impossível que todo o visível, tudo o que é, possa se</p><p>manter sem Deus.</p><p>55. Porque o homem vem para a existência? Para que, meditando sobre as</p><p>obras de Deus, ele o contemple e glorifique Aquele que as fez para o bem do</p><p>homem. Mas é a inteligência que recebe o amor de Deus. Ela é o bem</p><p>invisível, que Deus concede aos que dela são dignos, por sua conduta</p><p>virtuosa.</p><p>56. Livre é quem não está sujeito aos prazeres, mas domina o corpo pela</p><p>sabedoria e pela castidade, e se contenta, com toda a gratidão, com os bens</p><p>que lhe são dados, ainda que sejam racionadíssimos. Pois o intelecto amado</p><p>por Deus e a alma, quando estão de acordo, pacificam todo o corpo, mesmo</p><p>conta a vontade deste. Se a alma o quer, todo levante do corpo é reabsorvido.</p><p>57. Quem não se satisfaz com o que possui presentemente para viver, mas</p><p>quer sempre mais, sujeita-se às paixões que perturbam a alma e lhe impõem</p><p>pensamentos e imaginações. Pois possuir mais é um mal em si. Assim como</p><p>uma túnica grande demais atrapalha quem disputa uma corrida, também o</p><p>desejo de aumentar as riquezas impede a alma de combater e ser salva.</p><p>58. As condições nas quais nos encontramos malgrado nós mesmos e sem que</p><p>o desejemos são uma prisão e um castigo. Assim, ame aquilo que você possui</p><p>atualmente. Pois se você o assumir de má vontade, você estará punindo a si</p><p>mesmo por sua própria conta. Na verdade, não existe senão um caminho: o</p><p>desprezo pelas coisas do mundo.</p><p>59. Assim como recebemos de Deus a visão para que possamos distinguir,</p><p>dentre as coisas que temos diante dos olhos, o que é branco do que é negro,</p><p>também a razão nos foi dada por Deus para nos permitir discernir o que é</p><p>bom para a alma. Mas a cobiça, separando-se da razão, engendra o prazer e</p><p>não permite</p><p>que a alma seja salva ou que ela se una a Deus.</p><p>60. O que é conforme a natureza não é pecado. O pecado é a escolha do mal.</p><p>Comer não é pecado. Pecado é comer sem dar graças, sem decência nem</p><p>temperança. Pois convém guardar em vida o corpo fora de toda imaginação</p><p>perversa. O olhar, se é puro, tampouco é pecado. O pecado está em olhar com</p><p>inveja, com orgulho ou com indiscrição. É não escutar pacificamente, mas</p><p>com hostilidade. É não guardar a língua para a ação de graças e a prece, mas</p><p>deixá-la dizer não importa o quê. É não usar as mãos para socorrer os outros,</p><p>mas servir-se delas para matar e roubar. Desta forma, cada um dos nossos</p><p>membros peca por si só, fazendo mal em lugar do bem, contra a vontade de</p><p>Deus.</p><p>61. Se você duvida de que cada uma de suas ações é vista por Deus, considere</p><p>que você, que é homem e poeira, é capaz de num instante observar e conhecer</p><p>toda sorte de lugares. Com mais forte razão pode Deus, ele que vê o universo</p><p>como um grão de mostarda, e que criou e alimentou todas as coisas como</p><p>quis.</p><p>62. Quando você fecha a porta de sua casa e fica só, saiba que um anjo</p><p>designado por Deus a cada homem estará com você. É este anjo que os gregos</p><p>chamam de daimon interior. Ele não dorme jamais. É impossível enganá-lo.</p><p>Ele está sempre com você, ele vê tudo e a escuridão não o atrapalha. Com ele,</p><p>Deus está em toda parte. Pois não existe lugar nem matéria aonde Deus não</p><p>esteja, uma vez que ele é maior do que tudo e tem todos os seres em sua mão.</p><p>63. Se os soldados são fiéis a César porque César lhes garante o alimento,</p><p>com muito mais razão devemos nos aplicar a dar graças com nossas bocas,</p><p>sem jamais nos calarmos, e agradecer a Deus que a tudo criou para o homem.</p><p>64. A gratidão e a conduta virtuosa são os frutos do homem que mais agradam</p><p>a Deus. Ora, os frutos da terra não amadurecem em uma hora: é preciso</p><p>tempo, a chuva, cuidados. Da mesma forma, os frutos do homem não brilham</p><p>senão pela ascese, o estudo, o tempo, a perseverança, a obstinação e a</p><p>paciência. Mas mesmo que, ao ver em você estes frutos, alguns o considerem</p><p>um homem, piedoso, desconfie sempre de si mesmo enquanto você viver em</p><p>um corpo, e considere que nada daquilo que vem de você agrada a Deus.</p><p>Saiba que, de fato, não é fácil um homem permanecer até o fim puro de toda</p><p>falta.</p><p>65. Nada entre os homens é mais precioso do que a palavra. Assim é que a</p><p>palavra permite servir a Deus rendendo-lhe graças. Mas se nos servimos dela</p><p>para dizer o mal e blasfemar, nós condenamos nossa alma. Invocar seu</p><p>nascimento ou qualquer outra razão, quando se está em falta, é assim obra de</p><p>um homem insensato; foi livremente e por sua própria conta que ele permitiu</p><p>uma palavra ruim ou uma má ação.</p><p>66. Se nos esforçamos para cuidar das paixões do corpo para evitar a</p><p>zombaria daqueles com quem encontramos, com mais razão devemos nos</p><p>esforçar para curar as paixões da alma, uma vez que seremos julgados na</p><p>presença de Deus, para que não sejamos submetidos à desonra e ao ridículo.</p><p>Pois nós somos livres. Assim, mesmo quando sentimos em nós o desejo de</p><p>más ações, não querer fazê-las é possível, está ao nosso alcance levar uma</p><p>vida que agrade a Deus. Jamais alguém poderá nos forçar a fazer algo de mal,</p><p>se não quisermos. Combatendo assim, seremos de fato homens dignos de</p><p>Deus, e viveremos como anjos no céu.</p><p>67. Se você quiser, você será escravo das paixões. Se você quiser, e você é</p><p>livre, você não será sujeito às paixões. Pois Deus o criou livre. E aquele que</p><p>sobrepuja as paixões da carne recebe a coroa da incorruptibilidade. Pois se</p><p>não houvesse paixões não haveria virtudes, nem as coroas dadas por Deus aos</p><p>homens que delas são dignos.</p><p>68. Aqueles que não vêem onde está seu benefício e não sabem aonde está o</p><p>bem, são cegos na alma. Seu discernimento foi extinto. É melhor não nos</p><p>ligarmos a estes, para não cairmos fatalmente nos mesmos erros, cegos e</p><p>imprudentes.</p><p>69. Não devemos nos irritar com aqueles que estão em falta, mesmo se o que</p><p>fizeram é reprovável e merece um castigo. Mas devemos endireitar os que</p><p>tombam, em nome da própria justiça. Às vezes é preciso castigá-los, em sua</p><p>pessoa ou de outro modo. Mas não devemos nos irritar nem nos deixar levar</p><p>assim, pois a cólera age unicamente pela paixão, e não de maneira judiciosa e</p><p>justa. Não devemos aprovar aqueles que se deixam levar indevidamente pela</p><p>piedade. Mas é por causa do bem e da justiça que é preciso castigar os que</p><p>fazem o mal, nunca pela paixão da cólera.</p><p>70. Somente os bens da alma são seguros e invioláveis. São a conduta e o</p><p>conhecimento virtuosos, e o exercício das boas obras, que agradam a Deus.</p><p>Pois a riqueza é um guia cego e um conselheiro sem inteligência. Aquele que</p><p>usa a sua riqueza servindo-se dela para o prazer, perde sua alma insensível.</p><p>71. Os homens não devem adquirir nada de mais. Se por acaso eles têm</p><p>muito, será bom para eles saber que tudo nesta vida é, por natureza,</p><p>corruptível, tudo desaparece facilmente, se degrada e se destrói. Assim, eles</p><p>não devem se inquietar com o que quer que aconteça.</p><p>72. Saiba que as dores físicas são naturais do corpo, uma vez que este é</p><p>corruptível e material. Diante de tais sofrimentos, a alma instruída deve</p><p>armar-se de perseverança e paciência, e não reprovar a Deus por haver criado</p><p>o corpo.</p><p>73. Aqueles que participam dos Jogos Olímpicos não recebem a coroa por</p><p>vencerem um, dois ou três adversários, mas após terem vencido a todos os</p><p>que enfrentaram. O mesmo acontece com o homem que quer ser coroado por</p><p>Deus. Sua alma deve dedicar-se à sabedoria, não somente nas coisas do</p><p>corpo, mas em tudo o que se refere a perdas e ganhos, invejas, alimentos, a</p><p>vanglória, as injúrias, a morte e as afecções análogas.</p><p>74. Não busquemos a boa conduta amada por Deus, pelo louvor dos homens.</p><p>Devemos escolher a vida virtuosa para a salvação da alma. Pois a morte está</p><p>presente diante dos nossos olhos a cada dia, e as coisas humanas são cheias de</p><p>incertezas.</p><p>75. Está em nosso poder viver sabiamente, mas não está em nosso poder</p><p>enriquecer. Porque então é preciso condenar a alma, quando ela sonha por um</p><p>instante com uma riqueza que não temos meios de adquirir? Mas se não</p><p>desejamos senão a riqueza, porque corremos sem inteligência, ignorando que</p><p>a humildade precede todas as virtudes, do mesmo modo como a gula e a</p><p>cobiça das coisas desta vida precedem todas as paixões?</p><p>76. Os sábios devem lembrar-se continuamente: se suportamos nesta vida as</p><p>pequenas penas passageiras, nós os homens usufruiremos após a morte de um</p><p>imenso prazer e de delícias eternas. Desde logo, aquele que combate as</p><p>paixões e que quer ser coroado por Deus, se ele cair, não deve se</p><p>desencorajar, nem permanecer em sua queda desesperando de si. Mas é</p><p>preciso que ele se levante, retome o combate, e busque novamente a coroa.</p><p>Até o último suspiro é preciso lembrar-se desta queda que lhe sucedeu. Pois</p><p>os golpes que o corpo recebe são a armadura das virtudes e asseguram a</p><p>salvação da alma.</p><p>77. As dificuldades da vida propiciam aos homens dignos, aqueles que levam</p><p>adiante o combate, ser coroados por Deus. É preciso assim que, ao longo de</p><p>sua vida, eles façam morrer seus membros a todas as coisas do mundo. Pois</p><p>um morto não se preocupará mais com estas coisas.</p><p>78. Não convém que a alma que é dotada de razão e que combate, se deixe</p><p>ficar facilmente apreensiva e medrosa diante das provas que lhe acontecem,</p><p>se ela não quiser ser ridicularizada por sua preguiça. Pois a alma perturbada</p><p>pela imaginação das coisas do mundo esquece o que ela deve a si mesma. São</p><p>as virtudes da alma que nos abrem o caminho aos bens eternos. A causa dos</p><p>castigos está no mal que os homens fazem a si mesmos.</p><p>79. O homem dotado de razão é combatido pelos sentidos de sua natureza</p><p>racional, por meio das paixões da alma. Ora, existem cinco sentidos no corpo:</p><p>a vista, o</p><p>olfato, a audição, o paladar e o tato. A infeliz alma é capturada pelos</p><p>cinco sentidos quando ela se submete às quatro paixões que lhes</p><p>correspondem. Estas quatro paixões são a vanglória, a alegria, a cólera e a</p><p>lassidão. Portanto, a partir do momento em que, com prudência e reflexão, o</p><p>homem levou a bom termo o combate e dominou as paixões, ele não é mais</p><p>combatido. Sua alma está em paz, e ele recebe a coroa de Deus por sua</p><p>vitória.</p><p>80. Dentre aqueles que se encontram num albergue, alguns recebem um leito,</p><p>outros não o obtêm e deitam-se no chão, onde roncam tanto quanto os que</p><p>dormem em sua cama. Após passarem a noite e deixarem pela manhã os</p><p>leitos, eles partem juntos, cada qual levando apenas o que possui. O mesmo</p><p>acontece com todos os que chegam a este mundo. Tanto os que viveram</p><p>pobremente quanto aqueles que passaram a vida entre a glória e a riqueza,</p><p>todos saem da vida como do albergue. Eles não levam consigo nada daquilo</p><p>que fazia as delícias e a riqueza do mundo. Eles não levam senão suas</p><p>próprias obras, boas ou más: aquilo que fizeram durante a vida.</p><p>81. Só porque você possui um grande poder, não é razão para ameaçar</p><p>alguém de morte por qualquer coisa. Saiba que, por natureza, também você</p><p>está submetido à morte, e que a alma se despe do corpo como de sua última</p><p>túnica. Reconheça isto com clareza. Seja doce, faça o bem, e dê graças</p><p>continuamente a Deus. Pois aquele que não é complacente não tem em si a</p><p>virtude.</p><p>82. É impossível e inconcebível escapar da morte. Isto bem o sabem os</p><p>homens verdadeiramente dotados de razão, dedicados às virtudes e aos</p><p>pensamentos amados por Deus. Eles recebem a morte sem gemidos, sem</p><p>medo e sem luto, lembrando-se de que ela é inexorável e que ela liberta dos</p><p>males desta vida.</p><p>83. Não devemos odiar aqueles que negligenciam a conduta virtuosa que</p><p>agrada a Deus e não se preocupam com a justa doutrina amada por ele, mas</p><p>lamentá-los, pois eles são privados de juízo, cegos de coração e de reflexão.</p><p>Eles tomam o mal como bem, e esta ignorância faz com que se percam. Com</p><p>sua alma sem inteligência, esses infelizes não conhecem a Deus.</p><p>84. Recuse-se a conversar sobre a piedade e a vida virtuosa com muitas</p><p>pessoas. Não digo por maldade, mas porque, pensão eu, você se arrisca a ser</p><p>ridicularizado por pessoas irracionais. Pois o semelhante une-se ao</p><p>semelhante. Ora, aqueles que se dispõem a escutar estas conversas são</p><p>poucos. Na verdade, são raríssimos. Assim, é melhor não falar sobre nada,</p><p>senão daquilo que Deus quer para a salvação dos homens.</p><p>85. A alma se compadece do corpo, mas o corpo não se compadece da alma.</p><p>Assim, quando o corpo está moribundo, a alma sofre com ele. E quando o</p><p>corpo está vigoroso e se sente bem, a alma experimenta a mesma alegria. Mas</p><p>quando a alma se põe a refletir o corpo não acompanha esta reflexão. Ele</p><p>permanece abandonado a si mesmo. Pois a reflexão é um estado da alma,</p><p>assim como a ignorância, o orgulho, a perfídia, a cupidez, o ódio, a inveja, a</p><p>cólera, o desdém, a vanglória, a estima, a discórdia, o sentido do bem. Tudo</p><p>isto é suscitado pela alma.</p><p>86. Conceba as coisas de Deus. Seja piedoso, sem inveja, bom, casto, doce,</p><p>contente tanto quanto possível, afável, alheio às disputas. Possua estas</p><p>virtudes e as que lhes assemelham. Pois esta é a fortuna inviolável da alma:</p><p>agradar a Deus pelo exercício dessas virtudes, não julgar ninguém, não dizer</p><p>de ninguém: “Fulano é mau, ele pecou”. É melhor nos ocuparmos de nossos</p><p>próprios males e examinarmos se nossa própria conduta agrada a Deus.</p><p>Porque afinal, que sentido faz nos preocuparmos se o outro é mau?</p><p>87. Um homem verdadeiramente digno deste nome dedica-se à piedade. Ora,</p><p>é piedoso aquele que não deseja para si o que não lhe pertence. Mas todas as</p><p>coisas criadas são alheias ao homem. Assim, despreze-as, porque você é a</p><p>imagem de Deus; e o homem é a imagem de Deus quando sua conduta é reta</p><p>e agrada a Deus. Mas é impossível ao homem tornar-se tal se ele não</p><p>renunciar às coisas desta vida. Aquele que possui um intelecto amado por</p><p>Deus sabe que todo o bem da alma e toda a piedade provêm daí. O homem</p><p>amado por Deus não se apóia em ninguém quando ele próprio está em falta.</p><p>Esta é a marca da alma que foi salva.</p><p>88. Aqueles que procuram adquirir pela força os bens passageiros, aqueles</p><p>que acalentam o desejo pelas obras do mal, ignorando a morte e a perdição de</p><p>suas almas, e que, infelizes, recusam-se a enxergar onde está seu benefício,</p><p>estes não se dão conta daquilo que os homens deverão sofrer pelo mal que</p><p>causaram, após sua morte.</p><p>89. O mal é uma afecção da matéria. Deus não está em causa. Ele deu aos</p><p>homens o conhecimento, o saber, o discernimento do bem e do mal, e a</p><p>liberdade. É a negligência e a irresponsabilidade dos homens que engendram</p><p>as paixões do mal. Portanto, Deus não é sua causa. Os demônios caíram na</p><p>maldade depois de uma escolha deliberada. O mesmo acontece com a maior</p><p>parte dos homens.</p><p>90. Aquele que faz da piedade a companhia de sua vida não permite ao mal</p><p>entrar em sua alma. E se o mal não penetra nela, a alma permanece ao abrigo</p><p>do perigo e da infelicidade. Nem as enganações do demônio, nem os golpes</p><p>da sorte prevalecerão nestes homens. Pois Deus os livra do mal. Eles vivem</p><p>sob sua guarda, longe de toda infelicidade, semelhantes a ele. Se os</p><p>elogiarem, eles rirão de quem os elogia; se os ofenderem, não responderão</p><p>aos insultos. Pois eles não se comovem com o que é dito ou não dito a</p><p>respeito deles.</p><p>91. O mal anda de mãos dadas com a natureza, como a ferrugem com o ferro,</p><p>ou as excreções com o corpo. Mas não foi o ferreiro quem fez a ferrugem,</p><p>nem os pais que fizeram a excreção. Da mesma forma, Deus não criou o mal.</p><p>Ao contrário, ele deu ao homem o conhecimento e o discernimento, para que</p><p>ele pudesse fugir do mal, sabendo que este é nocivo e condenável. Assim,</p><p>quando você ver alguém feliz por ser rico e poderoso, cuidado para não</p><p>invejá-lo. É o demônio que cria esta ilusão. Mas tenha imediatamente a morte</p><p>diante dos olhos, e você não cobiçará jamais nem o mal, nem as coisas deste</p><p>mundo.</p><p>92. Nosso Deus deu a imortalidade às coisas do céu e fez mutáveis as coisas</p><p>da terra. Ele colocou a vida e o movimento no universo. A tudo ele criou para</p><p>o homem. Assim, não se deixe cativar pelas imagens deste mundo que lhe</p><p>chegam pelo demônio, quando ele introduz em sua alma maus pensamentos.</p><p>Mas procure imediatamente os bens celestiais, e diga a si mesmo: “Se eu</p><p>quiser, eu tenho em mim o poder de rechaçar também este ataque da paixão.</p><p>Mas se eu não o fizer, é porque quero satisfazer meu desejo.” Continue assim</p><p>com este combate, que pode salvar sua alma.</p><p>93. A vida é a união e a conexão do intelecto, da alma e do corpo. A morte</p><p>não destrói o que estava unido, mas dissolve seu conhecimento. Pois tudo é</p><p>salvo por Deus, mesmo depois da dissolução.</p><p>94. O intelecto não é a alma, mas um dom de Deus para salvar a alma. O</p><p>intelecto que agrada a Deus ultrapassa e aconselha a alma. Ele a incentiva a</p><p>desdenhar tudo o que é efêmero, material e corruptível, e a se apegar aos bens</p><p>eternos, incorruptíveis e imateriais, a caminhar como um homem num corpo,</p><p>observando e contemplando através dele as coisas celestes, as coisas de Deus,</p><p>e todas as coisas deste tipo. O intelecto amado por Deus é assim o benfeitor e</p><p>o salvador da alma humana.</p><p>95. Por meio da dor e do prazer, a alma que está no corpo é imediatamente</p><p>exposta às trevas e à perdição. A dor e o prazer são como que humores do</p><p>corpo. Para enfrentá-los, o intelecto amado por Deus aflige o corpo e salva a</p><p>alma, como um médico que corta e cauteriza.</p><p>96. As almas que não são conduzidas pelas rédeas da razão nem governadas</p><p>pela inteligência capaz de pressionar, atacar e vencer as suas paixões, ou seja,</p><p>a dor e o prazer, como a animais irracionais, estas almas se perdem, a partir</p><p>do momento</p><p>diz a Escritura, é feito à imagem de Deus. É claro que ele é</p><p>modelado pela matéria do mundo e multiplamente condicionado por sua</p><p>existência cósmica e social. Mas, em última instância, ele escapa a toda</p><p>definição, pois tem sua raiz num “alhures”, ele é livre, de uma liberdade que</p><p>pode ser negada pelo ódio ou realizada no respeito e na comunhão. O Deus do</p><p>qual ele é imagem não é um déspota longínquo, que então seria responsável</p><p>por todos os males que nos assolam. Ele é um oceano de luz, “mar de</p><p>limpidez” como dizem alguns, um abismo sem fundo que só pode ser</p><p>evocado negativamente. Mas este abismo não é impessoal: ele tem em seu</p><p>bojo como que uma pulsação de amor, um Outro no Um, uma Palavra que</p><p>nasce do Silêncio e é transportada por um Sopro imenso. Deus se “extasia”</p><p>neste Sopro e é a beleza de sua criação; este Outro-em-Um vem a nós para</p><p>8</p><p>Recomendamos a curta mas profunda obra La Prière de Jésus (Chevetogne, Livre de</p><p>vie no. 122)</p><p>9</p><p>Nesta introdução tentamos expressar numa linguagem moderna, para homens e</p><p>mulheres cuja vida espiritual não pode ser exclusivamente monástica, as intenções essenciais</p><p>da Filocalia. Não hesitamos em pesquisar em toda a tradição patrística e hesiquiasta, inclusive</p><p>nos textos que Macário e Nicodemos não incluíram em sua coletânea porque haviam sido</p><p>editados (são Isaac o Sírio, em sua versão grega de 1770), ou porque viriam a ser editados por</p><p>eles mesmos.</p><p>nos arrancar do nada perverso que perfura de caos e horror a criação</p><p>boníssima. Em todas as religiões, como em todos os ateísmos, trabalha o</p><p>Espírito</p><p>10</p><p>, manifesta-se o Verbo, desenhando sua encarnação no esplendor das</p><p>coisas e nas revelações da história, no cosmos e nas leis que constituem seus</p><p>textos fundadores.</p><p>O cosmos e a história encontram seu pleno sentido em Jesus de Nazaré, um</p><p>homem, decerto, um rosto, um amigo, mas também o Verbo feito carne, uma</p><p>existência no Espírito, portanto em comunhão sem limites. Aquele que,</p><p>mergulhando por livre amor na morte e no inferno de que somos cúmplices,</p><p>libertou a humanidade e o universo para transformá-los em oferenda de</p><p>eternidade. Ele realiza secretamente, sacramentalmente, e nos oferece – pois a</p><p>imagem significa vocação – toda a condição real (no sentido da majestade) do</p><p>homem, criador criado; ele realiza secretamente, sacramentalmente, e torna</p><p>possíveis para nós as sínteses de que fala são Máximo o Confessor: do</p><p>masculino e do feminino, da terra tornada opaca e de uma transparência a um</p><p>tempo final e original, do carnal e do espiritual que devem simbolizar-se</p><p>mutuamente, do criado e do incriado que ele une sem separação nem</p><p>confusão. A salvação significa o transbordamento de uma vida luminosa, de</p><p>uma vida pura enfim liberada da morte (pois a própria morte biológica se</p><p>inverte e torna-se uma “páscoa”, no sentido próprio da “passagem”). A cruz,</p><p>nova Árvore da Vida, eixo do mundo, significa que Deus conhece</p><p>humanamente toda a tragédia de nossa condição – Deus, por um instante ateu:</p><p>“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?” – e que subitamente a</p><p>descortina sobre a ressurreição. “Era preciso que Deus se encarnasse e</p><p>morresse para que nos pudéssemos reviver”, escreve Gregório de Nazianze</p><p>11</p><p>.</p><p>Daí para frente, o homem é chamado a unir sua liberdade às energias do</p><p>Espírito para fazer chegar a ressurreição a todas as coisas.</p><p>A Cruz, diz Máximo o Confessor, julga e condena todos os julgamentos. A</p><p>contemplação de Deus sofredor, do Deus crucificado sobre todo o mal do</p><p>mundo, quebra o coração mais revoltado, abre-o para a graça que não é outra</p><p>coisa que a própria vida do “Senhor-Amor”, como o chamava o “Monge da</p><p>Igreja do Oriente”. O Cristo médico vem não para os saudáveis, mas para os</p><p>enfermos, ele se senta à mesa dos pecadores. O dono da casa chama para o</p><p>10</p><p>Tanto o hebraico ruah como o grego pneuma significam “sopro”.</p><p>11</p><p>Gregório de Nazianze, Discuro 45 sobre a Páscoa, 28, PG 36,661.</p><p>banquete do Reino “os estropiados, os cegos, os bêbados” e todos aqueles que</p><p>andam “pelos caminhos e ao longo dos muros</p><p>12</p><p>”. Sem outra condição que de</p><p>vestir seu coração com uma roupa de festa, a vestimenta da gratidão e da</p><p>alegria.</p><p>No Corpo de Cristo em que entramos pela iniciação batismal, aonde</p><p>encontramos – trata-se da eucaristia – “a vida em seu mais alto grau de</p><p>intensidade</p><p>13</p><p>”, a existência na morte se transforma em existência no espírito,</p><p>que o Credo define como aquele “que dá a vida”. “O Verbo, escrevia santo</p><p>Atanásio de Alexandria, se fez portador da carne para que pudéssemos ser</p><p>portadores do Espírito</p><p>14</p><p>. E este, na medida de nossa confiança, de nossa</p><p>humildade, de nossa criatividade também, intensifica em nós, pouco a pouco,</p><p>a imagem em uma semelhança que é participação nas energias divinas. “O</p><p>coração se parte e se renova, ele se faz nos mistérios do Espírito (...), ele</p><p>aprende, ele é cumulado de forças místicas até atingir as alturas do amor e até</p><p>que a felicidade more nele.</p><p>15</p><p>”</p><p>Então o homem pode realizar sua condição de “fronteira” entre o invisível e o</p><p>visível, entre o espiritual e o carnal, condição propriamente crística. Ele</p><p>compreende que todos os homens, de todos os tempos, de todos os lugares,</p><p>são “consubstanciais”, compõem um só ser em Cristo, Adão último, Adão</p><p>único, e que cada qual se torna incomparável, um rosto de ícone, na medida</p><p>de sua inserção nesta imensa unidade. Participação da humanidade no</p><p>“movimento imóvel do amor” do divino. Ele compreende também – e esta</p><p>compreensão se torna dever, ação – que é chamado a tomar sobre si todo o</p><p>universo, a revelar nele o dom e a linguagem de Deus.</p><p>O homem unificador unifica-se: “Não é apenas a alma, nem apenas o corpo,</p><p>que define a pessoa; eles estão integrados nela.</p><p>16</p><p>” O homem unificador se</p><p>realiza superando-se: ele se deifica pouco a pouco, vale dizer, ele se torna</p><p>capaz de amar.</p><p>12</p><p>Lucas XIV, 21-23.</p><p>13</p><p>Nicolas Cabasilas, La vie em Christ, ed. Chevetogne, 1960, pg. 187-188.</p><p>14</p><p>De l'Incarnation 8, PG 29,996C.</p><p>15</p><p>Isaac o Sírio, Carta 4.</p><p>16</p><p>João Damasceno, A fé ortodoxa, PG 94, 616.</p><p>III</p><p>A GUARDA DOS MANDAMENTOS E A GRAÇA BATISMAL</p><p>Gratuidade da salvação: é neste contexto que devemos entender a afirmação,</p><p>frequente nesses textos, de que Cristo se entrega a nós primeiro por</p><p>intermédio dos seus “mandamentos”. Estes estão contidos fundamentalmente</p><p>no Sermão da Montanha e, sobretudo, nas Bem-aventuranças, das quais vêm</p><p>em primeiro lugar, como o veremos, as lágrimas e a pureza do coração. A</p><p>pessoa de Cristo é a síntese dos “mandamentos”. Tentar observá-los equivale</p><p>a estreitar com ele uma relação de pessoa a pessoa, de sorte que sua vida</p><p>ressuscitada cresce aos poucos em nós e que, depois de termos sido seus</p><p>servidores, nos tornaremos seus amigos. Pois “a essência de todas as virtudes</p><p>é nosso Senhor Jesus Cristo</p><p>17</p><p>”.</p><p>Orígenes e Máximo o Confessor sustentam que a “guarda dos mandamentos”</p><p>designa na realidade um misterioso percurso de Cristo em nós, de seu</p><p>nascimento até a paixão, de sua transfiguração até sua ressurreição. Nem um</p><p>só instante ele nos abandona, e mesmo nossas agonias, assumidas pela sua, se</p><p>tornam caminhos de ressurreição. Segundo Máximo o Confessor, Cristo</p><p>“sofre misteriosamente conosco por todo o tempo até o fim do mundo por</p><p>causa de sua doçura e de um modo análogo ao sofrimento que se encontra em</p><p>cada um de nós.</p><p>18</p><p>” Ele é a um tempo nosso “lugar” e nosso companheiro,</p><p>combatendo conosco contra o mal, participando com seu Sopro vivificante</p><p>em nossas aspirações criadoras, “preferindo cada um”, como dizia o patriarca</p><p>Athenágoras</p><p>19</p><p>.</p><p>A vinda de Cristo em nós se faz mais especificamente pela iniciação cristã, do</p><p>batismo à crisma e daí à eucaristia. A Filocalia insiste antes de tudo sobre</p><p>em que a razão é arrastada pelas paixões, assim como o condutor</p><p>do carro é derrubado pelos cavalos.</p><p>97. Não conhecer a Deus, que criou o universo para o homem e que lhe deu o</p><p>dom da inteligência e da razão, para que o homem ganhe asas para se unir a</p><p>Deus, concebê-lo e glorificá-lo, é uma grave enfermidade, é a ruína e a</p><p>perdição da alma.</p><p>98. A alma está no corpo. A inteligência está na alma. E a razão está na</p><p>inteligência. Quando é concebido e glorificado por ela, Deus imortaliza a</p><p>alma atribuindo-lhe a incorruptibilidade e as delícias eternas, ele que por sua</p><p>simples bondade fez existir todas as criaturas.</p><p>99. Em sua benevolência e bondade, Deus criou o homem livre e lhe deu o</p><p>poder de agradá-lo, se ele quisesse. Ora, o homem agrada a Deus enquanto</p><p>não existe mal nele. E se os homens louvam as belas obras e as virtudes de</p><p>uma alma santa e amada por Deus, e se condenam as infâmias e as más ações,</p><p>quanto mais Deus, que quer que o homem seja salvo.</p><p>100. Os bens, o homem os recebe da bondade de Deus. Para isto ele foi criado</p><p>por Deus. Mas os males é o homem quem atrai para si. É dele que vem a</p><p>malícia que está nele, a cobiça e a insensibilidade.</p><p>101. A alma que perdeu a razão, embora imortal e senhora do corpo, sujeita-</p><p>se aos prazeres, sem compreender que as delícias do corpo lhe são nocivas.</p><p>Mas, insensível em sua loucura, ela só pensa nessas delícias.</p><p>102. Deus é bom, o homem é mau. Nada é mau no céu, nada é bom na terra.</p><p>Mas o homem dotado de razão escolhe o melhor. Ele reconhece o Deus do</p><p>universo. Ele lhe dá graças e o celebra. Diante da morte, ele tem aversão pelo</p><p>seu corpo, ele não deixa falarem os sentidos, sabendo que eles trabalham para</p><p>sua perdição.</p><p>103. O homem mau quer ter sempre mais, e despreza a justiça. Ele não</p><p>considera que a vida é incerta, instável e passageira, e que a morte é inflexível</p><p>e inexorável. Mas, desprovido da graça e sem inteligência, o velho, como</p><p>madeira podre, não serve mais para nada.</p><p>104. É experimentando o que nos entristece que nos tornamos sensíveis aos</p><p>prazeres e à alegria. Quem não tem sede não sente prazer em beber. Quem</p><p>não tem sono não tem prazer em dormir. Quem nunca teve tristeza não</p><p>conhece o sentido da alegria. Da mesma forma, não desfrutaremos dos bens</p><p>eternos se não desdenharmos os bens passageiros.</p><p>105. A palavra é servidora do intelecto. Aquilo que a inteligência quer, a</p><p>palavra interpreta.</p><p>106. O intelecto a tudo vê, mesmo o que está nos céus. Nada o ensombrece,</p><p>senão o pecado. Mas se ele é puro, nada lhe é inacessível. O mesmo acontece</p><p>com a palavra: nada lhe é indizível.</p><p>107. Pelo corpo, o homem é mortal. Mas pelo intelecto e pela palavra, ele é</p><p>imortal. Mesmo se você se cala, você pensa. E se você pensa você fala. Pois é</p><p>no silêncio que a inteligência engendra a palavra. E a palavra de</p><p>reconhecimento dirigida a Deus é a salvação do homem.</p><p>108. Quem diz palavras desprovidas de razão não tem inteligência, pois fala</p><p>sem compreender. Então considere o que é importante fazer para a salvação</p><p>da sua alma.</p><p>109. A palavra dotada de inteligência e que secunda a alma é um dom de</p><p>Deus. Do mesmo modo, os discursos cheios de palavrório, que buscam as</p><p>dimensões do céu e da terra, ou as grandezas do sol e das estrelas, é uma</p><p>invenção do homem que desperdiça seu esforço. O homem bem falante</p><p>procura em sua oratória vã o que não serve para nada. É como tirar água com</p><p>uma peneira. Pois tais homens não poderiam jamais encontrar o que está em</p><p>causa aqui.</p><p>110. Ninguém pode ver o céu nem compreender o que existe nele, a não ser o</p><p>homem que tem o cuidado de manter a vida virtuosa, que conhece e glorifica</p><p>Aquele que criou este céu para nossa salvação e nossa vida. Pois este homem</p><p>amado por Deus sabe que nada existe sem Deus. Deus está em tudo e em toda</p><p>parte, uma vez que ele é infinito.</p><p>111. Assim como o homem deixa o seio materno nu, também a alma deixa,</p><p>nua, o corpo. Uma o deixa pura e luminosa. Outra coberta de marcas por suas</p><p>faltas. Outra o deixa negra por todas as suas quedas. Desta forma, a alma</p><p>dotada de razão e amada por Deus, lembrando-se dos males que se seguem à</p><p>morte, leva uma vida de piedade, a fim de não cair condenado por suas faltas.</p><p>Quanto aos que não crêem, estes vivem na impiedade e no pecado, e</p><p>desprezam as coisas do além: sua alma é desprovida de inteligência.</p><p>112. Assim como, ao sair nu do seio materno, você não se lembra do que era</p><p>este seio, também ao deixar o corpo, você não se lembrará de como era ele.</p><p>113. Assim como, depois de sair do seio materno, você se tornou mais forte e</p><p>maior no seu corpo, também ao sair do corpo, puro e sem mácula, você se</p><p>tornará mais forte, você será incorruptível, pois você viverá nos céus.</p><p>114. Assim como o corpo nasce quando termina sua gestação no seio</p><p>materno, também é necessário que a alma saia do corpo, quando ela atinge o</p><p>limite que lhe foi assinalado por Deus naquele corpo.</p><p>115. O que você fez da sua alma quando ela estava no seu corpo ela fará com</p><p>você quando deixar o corpo. Pois quem, aqui em baixo, fez a alegria e as</p><p>delícias do corpo, construiu sua própria infelicidade após a morte. Ele</p><p>condenou sua alma por falta de inteligência.</p><p>116. Assim como o corpo não consegue sobreviver se deixar, imperfeito, o</p><p>seio materno, tampouco a alma, se deixar o corpo sem ter alcançado o</p><p>conhecimento de Deus por meio de uma conduta virtuosa, poderá ser salva e</p><p>unir-se a Deus.</p><p>117. O corpo unido à alma passa das trevas do seio materno à luz do dia. Mas</p><p>a alma unida ao corpo permanece ligada às trevas do corpo. Assim, convém</p><p>ter aversão e endireitar o corpo, na medida em que ele se mostra adversário e</p><p>inimigo da alma. A abundância e o prazer das comidas despertam no homem</p><p>as paixões do mal. Mas a temperança reabsorve as paixões e salva a alma.</p><p>118. Para o corpo, a visão são os olhos. Para a alma, a visão é a inteligência.</p><p>Assim como o corpo sem olhos é cego, não vê o sol iluminar a terra e o mar e</p><p>n;ão pode usufruir da luz, também a alma que não tem uma boa inteligência e</p><p>uma conduta virtuosa é cega: ela não conhece nem glorifica a Deus criador e</p><p>benfeitor do universo, e ela não pode desfrutar de sua incorruptibilidade e de</p><p>seus bens eternos.</p><p>119. A ignorância de Deus é uma anestesia e uma loucura da alma. Pois o mal</p><p>nasce da ignorância. Mas o bem nos homens provêm do conhecimento de</p><p>Deus e salva a alma. Portanto, se você se dedica a não realizar suas vontades,</p><p>se você é sóbrio e vigilante, e se você conhecer a Deus, você levará até as</p><p>virtudes a sua inteligência. Mas se você se aplica a satisfazer as vontades</p><p>perversas para não procurar senão o prazer, então, embriagado com sua</p><p>própria ignorância de Deus, você vai se perder como os animais sem razão,</p><p>pois você não pensa nos males que o aguardam após a morte.</p><p>120. A providência é aquilo que acontece por necessidade divina, como fato</p><p>do sol nascer e se por todos os dias, ou de a terra dar frutos. Assim também é</p><p>dito que a lei é aquilo que acontece por necessidade divina. Mas tudo é feito</p><p>para o homem.</p><p>121. Tudo o que Deus faz em sua bondade, ele o faz pelo homem. Mas tudo o</p><p>que o homem faz, ele o faz para si mesmo, tanto o bem como o mal. Não se</p><p>espante com a felicidade dos bandidos, porque também as cidades alimentam</p><p>seus carrascos sem por isto louvar seus maus pendores, mas servindo-se deles</p><p>para castigar os que merecem. Da mesma maneira, Deus permite que</p><p>bandidos oprimam o mundo, a fim de por meio deles corrigir os ímpios. Mas</p><p>depois, também eles serão entregues ao Juízo, porque não foi para servir a</p><p>Deus, mas por se deleitarem em sua própria malícia, que eles fizeram mal aos</p><p>homens.</p><p>122. Aqueles que veneram os ídolos não iriam, infelizes, se perder cada vez</p><p>mais longe da piedade, se eles pudessem ver e saber com o coração o que de</p><p>fato veneram. Mas, contemplando</p><p>a harmonia, a ordem e a providência que</p><p>presidem a tudo o que Deus fez e faz sempre, eles conheceriam Aquele que a</p><p>tudo isto fez pelos homens.</p><p>123. Em sua desonestidade e sua injustiça, o homem pode matar. Mas Deus</p><p>não cessa de dar a vida, mesmo àqueles que são indignos dela. Por repartir</p><p>com abundância e por ser bom por natureza, ele quis que o mundo fosse, e o</p><p>mundo existiu. E ele existe sempre, para o homem e para sua salvação.</p><p>124. Está ao alcance do homem compreender o que é o corpo, ou seja, que ele</p><p>é corruptível e efêmero. E o mesmo homem compreenderá também o que é a</p><p>alma, a saber, que ela é divina e imortal, criada pelo sopro de Deus, e unida</p><p>ao corpo para ser provada e deificada. Ora, quem compreende o que é a alma</p><p>adota a vida reta que apraz a Deus. Ele não obedece mais ao corpo. Mas ele</p><p>vê a Deus por meio de sua inteligência, e nela ele contempla os bens eternos</p><p>que Deus deu à alma.</p><p>125. Deus que é bom e reparte sempre em abundância deu ao homem o poder</p><p>de fazer o bem e o mal, atribuindo-lhe uma consciência a fim de que,</p><p>contemplando o mundo e o que está no mundo, ele possa conhecer Aquele</p><p>que a tudo fez pelo homem. Mas o ímpio pode querer conhecer, e não</p><p>compreender. Pois lhe é dado não crer, lhe é permitido não achar nada, lhe é</p><p>facultado conceber o contrário da verdade, na medida mesma em que o</p><p>homem tem o poder de escolher entre o bem e o mal.</p><p>126. Esta é a ordem de Deus: quando cresce a carne, a alma se enche de</p><p>inteligência, a fim de que entre o bem e o mal o homem possa escolher o que</p><p>quiser. Mas a alma que não escolhe o bem torna-se desprovida de</p><p>inteligência. Assim, todos os corpos têm uma alma, mas não podemos dizer</p><p>que toda alma tenha intelecto. Pois o intelecto amado por Deus cabe aos</p><p>homens sábios, santos, justos, puros, bons, misericordiosos, e aos homens</p><p>piedosos. E a presença do intelecto é para eles um socorro no caminho para</p><p>Deus.</p><p>127. Uma única coisa não é possível ao homem: tornar-se imortal. O que lhe é</p><p>possível é unir-se a Deus, se ele compreende que pode. Se ele o quiser, com</p><p>efeito, se o conceber, crer, amar, o homem, por uma conduta virtuosa, torna-</p><p>se companheiro de Deus.</p><p>128. O olho contempla o visível, e o intelecto concebe o invisível. Pois o</p><p>intelecto amado por Deus é a luz da alma. Aquele cujo intelecto é amado por</p><p>Deus tem seu coração inundado de luz e vê a Deus com sua inteligência.</p><p>129. Ninguém é mau, se for bom. Mas quem não é bom, certamente está</p><p>entregue ao mal e ama o corpo. Ora, a primeira virtude do homem é o desdém</p><p>pela carne. Separar-se do efêmero, do corruptível e do material, se for de livre</p><p>e espontânea vontade e não por necessidade, faz de nós os herdeiros dos bens</p><p>eternos e incorruptíveis.</p><p>130. Quem possui inteligência sabe aquilo que é, a saber, que o homem é</p><p>corruptível. Ora, aquele que conhece a si mesmo sabe que todas as coisas são</p><p>criaturas de Deus e que foram criadas para a salvação do homem. Pois está ao</p><p>alcance do homem ter uma justa concepção de todas as coisas e sobre todas</p><p>elas possuir uma fé justa. Este homem sabe então com toda certeza que</p><p>aqueles que desprezam as coisas do mundo não precisam fazer muito esforço,</p><p>mas recebem de Deus antes da morte as delícias e o repouso eternos.</p><p>131. Assim como o corpo sem a alma é morto, também a alma que não é</p><p>dotada de inteligência é estéril e não pode ser herdeira de Deus.</p><p>132. Deus só escuta o homem. É somente ao homem que Deus se revela.</p><p>Deus ama o homem, até o ponto de fazer dele um deus. Somente o homem é</p><p>digno de adorar a Deus. É para o homem que Deus se transfigura.</p><p>133. É para o homem que Deus fez o céu adornado de estrelas. Para o homem</p><p>ele fez a terra. E os homens a cultivam para si mesmos. Os que não percebem</p><p>esta providência de Deus têm a alma desprovida de inteligência.</p><p>134. O bem não é visível, assim como as coisas do céu. Mas o mal é visível,</p><p>como as coisas da terra. O bem é aquilo que não se pode comparar. Assim, o</p><p>homem que possui inteligência escolhe o melhor. Pois somente ao homem</p><p>Deus e suas criaturas são inteligíveis.</p><p>135. O intelecto se manifesta na alma, e a natureza no corpo. A inteligência é</p><p>a deificação da alma, mas a natureza do corpo é a dissolução. Assim, em todo</p><p>corpo existe uma natureza. Mas nem toda alma possui inteligência, e é por</p><p>isso que nem toda alma é salva.</p><p>136. A alma está no mundo, pois foi engendrada. Mas o intelecto está acima</p><p>do mundo, pois ele não foi engendrado. A alma que conhece o mundo e que</p><p>quer ser salva traz em si constantemente uma lei inviolável. Ela toma</p><p>consciência de que o combate e a provação acontecem agora, de que não lhe é</p><p>permitida uma conciliação no Juízo e de que ela se perde ou se salva por</p><p>causa do menor prazer perverso.</p><p>137. Deus fundou sobre a terra o nascimento e a morte. E ele fundou no céu a</p><p>providência e o destino. A tudo ele fez para o homem e sua salvação.</p><p>Dispondo de todos os bens, Deus criou para os homens o céu a terra e seus</p><p>elementos, por meio dos quais lhe é facultado o usufruto destes bens.</p><p>138. O que é mortal está subordinado ao que é imortal. Mas o que é imortal</p><p>está a serviço do mortal, ou seja, os elementos do mundo estão a serviço do</p><p>homem graças ao amor que em sua natural bondade leva ao homem o Deus</p><p>criador.</p><p>139. Aqueles que nasceram pobres e que não têm o poder de prejudicar</p><p>ninguém, não poderão ser contados dentre os que traduzem a piedade em</p><p>obras. Mas aquele que tem o poder de prejudicar e se recusa espontaneamente</p><p>a não empregá-lo para fazer o mal, e que, ao contrário, trata com doçura os</p><p>mais humildes por amor a Deus, este receberá os bens em retorno, mesmo</p><p>antes da morte.</p><p>140. Graças ao amor que leva o homem a Deus que nos criou, são numerosas</p><p>as vias que levam o homem à salvação, que atraem as almas e as elevam até</p><p>os céus. Pois as almas humanas recebem as recompensas pela virtude, e os</p><p>castigos por suas faltas.</p><p>141. O Filho está no Pai, o Espírito Santo está no Filho, e o Pai está em um e</p><p>no outro. É pela fé que o homem conhece tudo o que é invisível e inteligível.</p><p>A fé é o assentimento voluntário da alma.</p><p>142. Aqueles a quem uma necessidade ou as circunstâncias obrigaram a se</p><p>atirar num rio caudaloso serão salvos se forem sóbrios e vigilantes. Pois</p><p>mesmo que estejam a ponto de se perder, e ainda que as correntes sejam</p><p>violentas, eles poderão se salvar agarrando-se a qualquer coisa na margem.</p><p>Mas os que estão embriagados, ainda que saibam nadar com perfeição,</p><p>vencidos pelo vinho afogam-se na correnteza e desaparecem do mundo dos</p><p>vivos. Da mesma forma, a alma atirada aos redemoinhos e aos turbilhões das</p><p>correntezas desta vida, se ela não se conhece ao emergir do mal da matéria, se</p><p>ela, que é divina e imortal, não sabe que não está ligada à matéria efêmera,</p><p>frágil e mortal senão com o intuito de ser aí provada, e se em sua perdição ela</p><p>se deixa arrastar pelos prazeres do corpo, então, desprezando a si mesma,</p><p>ébria de ignorância, incapaz de se assumir, ela se perde e é levada para longe</p><p>dos que se salvam. Como um rio, de fato, o corpo muitas vezes nos leva a</p><p>prazeres que não têm cabimento.</p><p>143. A alma dotada de razão, que mantém firmemente sua boa resolução,</p><p>conduz como um cavalo o ardor e o desejo, suas paixões privadas de razão.</p><p>Se ela as domina, pressiona, se assenhora delas, ela é coroada e julgada digna</p><p>da vida no céu. Ela recebe de Deus que a criou a recompensa por sua vitória e</p><p>suas provações.</p><p>144. A alma verdadeiramente dotada de razão, quando vê a felicidade dos</p><p>bandidos e a prosperidade dos indignos, não se perturba imaginando aquilo de</p><p>que elas desfrutam nesta vida, como aqueles que, dentre os homens, são</p><p>desprovidos de razão. Pois ela conhece claramente a instabilidade da fortuna,</p><p>a incerteza da vida presente, a brevidade da existência e a integridade do</p><p>Juízo. Esta alma crê que Deus não</p><p>a esquecerá e lhe dará o alimento de que</p><p>ela necessita.</p><p>145. A vida do corpo e o desfrute dos bens terrestres obtidos pelas riquezas e</p><p>poder, são a morte da alma. Mas o sofrimento, a paciência, a pobreza</p><p>assumida com ação de graças, estas são a vida e as delícias eternas da alma.</p><p>146. A alma dotada de razão não concebe senão desdém pela criação material</p><p>e por esta vida efêmera. Ela escolhe as delícias do céu e a vida eterna, que ela</p><p>recebe de Deus por sua conduta virtuosa.</p><p>147. Quem usa uma roupa suja de barro, suja assim a roupa de quem se</p><p>encosta nela. Da mesma forma, os desonestos cuja intenção e conduta não são</p><p>direitos, quando se encostam nas pessoas simples e lhes dizem o que não deve</p><p>ser dito, sujam suas almas como a lama, com aquilo que lhes fazem ouvir.</p><p>148. O começo do pecado é a cobiça com a qual se perde a alma dotada de</p><p>razão. Mas o começo da salvação e do Reino dos céus é o amor que surge na</p><p>alma.</p><p>149. Se o ferro é negligenciado e não recebe a manutenção devida, à força de</p><p>permanecer sempre abandonado sem servir a nada, acaba comido pela</p><p>ferrugem e já não tem mais nem utilidade nem beleza. O mesmo acontece</p><p>com a alma. Se ela permanece inerte, se não se dedica a viver na virtude e a</p><p>se voltar para Deus, se ela se priva da proteção divina por causa de suas más</p><p>ações, em sua negligência ela se destrói sob o efeito do mal que ataca a</p><p>matéria do corpo como o ferro se destrói sob o efeito da ferrugem, e não</p><p>possui mais nem beleza nem utilidade em vista da salvação.</p><p>150. Deus é bom, impassível, imutável. Mas se nós consideramos razoável e</p><p>verdadeiro que Deus não muda, podemos nos perguntar como ele se alegra</p><p>com os bons e se zanga com os maus, como se irrita com os pecadores e é</p><p>benevolente quando homenageado. A resposta é que Deus não se alegra nem</p><p>se irrita, pois alegrar-se e entristecer-se são paixões. Da mesma forma, não há</p><p>como homenageá-lo com presentes, pois então ele seria dominado pelo</p><p>prazer. Ora, é impossível, a partir das coisas humanas, ver no divino o bem e</p><p>o mal. Deus é bom, e ele não nos faz senão o bem, jamais o mal, pois em tudo</p><p>isto ele permanece sempre igual. Também nós, se, por nossa semelhança,</p><p>perseveramos no bem, também nós nos unimos a Deus. Mas se, por dissenso,</p><p>nos entregamos ao mal, nós nos separamos de Deus. Vivendo na virtude,</p><p>ligamo-nos a Deus; mas levados ao mal, fazemos dele nosso inimigo, cuja</p><p>irritação não é gratuita, uma vez que os pecados impedem a Deus de brilhar</p><p>em nós e nos atiram aos demônios que nos castigam. SE, pelas orações e pelo</p><p>bem que fazemos, obtemos a absolvição de nossas faltas, não é por termos</p><p>honrado a Deus ou tê-lo feito mudar, mas porque, curando nosso próprio mal</p><p>com nossas ações e nosso retorno ao divino, desfrutamos novamente de sua</p><p>bondade. Isto equivale a dizer então que Deus se afasta dos desonestos, e que</p><p>o sol se esconde diante dos que são privados de visão.</p><p>151. A alma dotada de piedade conhece o Deus do universo. Pois a piedade</p><p>não é outra coisa do que cumprir a vontade de Deus, vale dizer, conhecê-lo</p><p>sendo generoso, sábio, doce, benevolente tanto quanto possível, afável,</p><p>cordato, em suma fazendo tudo o que agrada à sua vontade.</p><p>152. O conhecimento de Deus e o temor a Deus são o remédio para as</p><p>paixões da matéria. De fato, quando a alma é habitada pela ignorância de</p><p>Deus, as paixões não podem ser curadas; elas permanecem nela e a</p><p>corrompem. É como uma ferida inveterada carcomida pelo mal. Mas Deus</p><p>não é a causa disto, ele que transmitiu ao homem a ciência e o conhecimento.</p><p>153. Deus cumulou o homem de ciência e conhecimento. Pois ele se dedica a</p><p>purificá-lo das paixões e do mal voluntário, e ele quer, em sua bondade, fazer</p><p>o mortal alcançar a imortalidade.</p><p>154. Em uma alma pura cativa de Deus, o intelecto vê verdadeiramente o</p><p>Deus que não foi engendrado, o Deus invisível e inefável, o único puro para</p><p>os corações puros.</p><p>155. A coroa da incorruptibilidade, a virtude, a salvação do homem, consiste</p><p>em suportar as adversidades com coragem e gratidão. Dominar a cólera, a</p><p>língua, o ventre e os prazeres, é também um grande auxílio para a alma.</p><p>156. É a providência divina que dirige o mundo. Nenhum lugar está privado</p><p>dela. A providência é a razão absoluta que modelou a matéria para dela fazer</p><p>o mundo. Ela é o criador e o artesão de tudo o que existe. Pois é impossível</p><p>que a matéria tenha sido organizada sem o poder decisivo da razão, que é a</p><p>imagem, a inteligência, a sabedoria e a providência de Deus.</p><p>157. A cobiça consciente é a raiz das paixões daqueles aparentados às trevas.</p><p>A alma que tem esta visão da cobiça não conhece a si mesma. Ela ignora ter</p><p>sido formada pelo sopro de Deus. Ela assim é arrastada ao pecado, sem</p><p>considerar, por falta de inteligência, os males que se seguirão à morte.</p><p>158. A recusa de Deus e o amor à vanglória são uma grave e incurável doença</p><p>da alma, e sua perdição. Pois o desejo do mal é a privação do bem. Ora, o</p><p>bem consiste em fazer abundantemente tudo o que é bom e agrada ao Deus do</p><p>universo.</p><p>159. O homem é o único ser capaz de receber a Deus. Ele é o único, dentre os</p><p>seres vivos, com quem Deus conversa, à noite por meio dos sonhos, de dia</p><p>através da inteligência. Assim, continuamente, ele anuncia e apresenta</p><p>previamente aos homens que são dignos disto os bens que os esperam.</p><p>160. Nada é difícil para quem crê e quer compreender a Deus. Se você deseja</p><p>contemplá-lo, observe a ordem do mundo e a providência que rege por meio</p><p>da razão divina tudo o que foi criado e tudo o que existe. Observe que tudo</p><p>foi feito para o homem.</p><p>161. É chamado de santo aquele que é puro de todo mal e de todas as faltas.</p><p>Não haver nenhum mal no homem é de fato um alto grau de virtude, que</p><p>agrada a Deus.</p><p>162. O nome designa o ser dentre todo os demais. Seria inconcebível que</p><p>Deus, sendo um só, tivesse outro nome. Pois o nome de Deus significa:</p><p>“Aquele que não teve começo e que a tudo fez para o homem”.</p><p>163. Se você tem más ações na consciência, expulse-as da alma, à espera do</p><p>bem. Pois Deus é justo e ama o homem.</p><p>164. O homem conhece a Deus e é conhecido por Deus na medida em que se</p><p>esforça para jamais separar-se dele. E o homem não se separa de Deus quando</p><p>é bom e domina todo prazer, não por falta de recursos, mas por vontade e</p><p>temperança.</p><p>165. Faça o bem a quem lhe fez o mal, e você terá a afeição de Deus. Não</p><p>acuse seu inimigo diante de ninguém. Pratique a caridade, a reserva, a</p><p>temperança, e as virtudes análogas. Pois nisto consiste o conhecimento de</p><p>Deus: seguir seu exemplo, pela humildade e as virtudes desta ordem. Porém</p><p>estas obras não estão ao alcance de qualquer um, mas apenas das almas</p><p>dotadas de inteligência.</p><p>166. Por causa daqueles que, em sua impiedade, ousam dizer que existe uma</p><p>alma nas plantas naturais e nas cultivadas, eu escrevo este capítulo</p><p>endereçado aos mais simples. As plantas tem vida física, mas não alma. O</p><p>homem é chamado de animal dotado de razão, porque ele possui o intelecto</p><p>que é capaz de receber a ciência. Quanto aos outros animais, que vivem sobre</p><p>a terra e nos ares, eles são dotados de voz, porque eles possuem um espírito e</p><p>uma alma. Todos os seres que crescem e declinam são seres vivos, a partir do</p><p>momento em que vivem e crescem, mas nem todos possuem alma. Existem</p><p>quatro espécies dentre os seres vivos. Us são imortais e possuem alma, como</p><p>os anjos; outros possuem um intelecto, uma alma e um espírito, como os</p><p>homens; outros possuem um espírito e uma alma, como os animais. E outros</p><p>possuem apenas a vida, como as plantas. Nestas, a vida se organiza sem alma,</p><p>nem espírito, nem intelecto, nem imortalidade. Mas as demais espécies não</p><p>poderiam existir sem a vida. Por outro lado, toda alma, e inclusive toda alma</p><p>humana, está em permanente movimento de um lugar para outro.</p><p>167. Quando a idéia de um prazer se apoderar</p><p>da sua imaginação, vigie para</p><p>não se deixar invadir por ela. Apresse-se a se lembrar da morte e observe o</p><p>quanto será melhor para você saber que superou mais esta perdição do prazer.</p><p>168. Assim como a paixão é inerente ao nascimento – pois tudo o que vem à</p><p>vida está destinado à corrupção – também o mal é inerente à paixão. Portanto,</p><p>não diga que Deus não pode extirpar o mal: os que dizem isto não passam de</p><p>insensatos e tolos. Pois seria preciso que Deus suprimisse a própria matéria,</p><p>porque as paixões são feitas de matéria. Deus suprimiu o mal entre os homens</p><p>dando-lhes o intelecto, a ciência, o conhecimento, o discernimento do bem, a</p><p>fim de que, sabendo o quanto o mal nos é nocivo, possamos dele fugir. Mas</p><p>se o homem corta seu intelecto, segue o mal e nele se glorifica, como se</p><p>estivesse lutando apanhado numa rede, incapaz de levantar a cabeça, de ver e</p><p>conhecer a Deus, que criou todas as coisas para a salvação e a deificação do</p><p>homem.</p><p>169. Os seres mortais se recusam a conhecer antecipadamente sua morte. A</p><p>imortalidade é dada à alma santa pelo bem que ela traz em si. Mas a alma</p><p>insensata e infeliz encontra a morte por abrigar em si o mal.</p><p>170. Quando você se recolhe à sua cela dando graças, relembrando as</p><p>benesses de Deus e de toda sua Providência, você se regozija por estar cheio</p><p>de bons pensamentos, e o sono do seu corpo é a vigilância da sua alma.</p><p>Fechar os olhos é uma verdadeira visão de Deus. E o seu silêncio, que é a</p><p>gestação do bem, fazendo-o ouvir o louvor que você ergue a ele, dá glórias ao</p><p>Senhor do universo. De fato, quando o homem se separa do mal, sua simples</p><p>ação de graças agrada mais a Deus do que todos os sacrifícios preciosos. A ele</p><p>a glória pelos séculos dos séculos. Amém.</p><p>ISAÍAS O ANACORETA</p><p>CAPÍTULOS SOBRE A GUARDA DO INTELECTO</p><p>Isaías o Anacoreta</p><p>Nosso santo Padre Isaías o anacoreta viveu ao redor do ano 370. Ele foi</p><p>contemporâneo do Abade Macário o Grande. Noite e dia ele meditava sobre</p><p>as sagradas Escrituras e, bebendo das fontes da salvação a água abundante</p><p>da sabedoria espiritual, ele redigiu muitos textos belíssimos que, sob</p><p>diferentes aspectos sempre úteis à alma, constituem todo um livro. Tomando à</p><p>parte este pequeno tratado, nós o propomos àqueles que desejam trabalhar a</p><p>guarda de seu intelecto. Pois ele ensina em termos breves como refutar as</p><p>sugestões dos pensamentos, como possuir uma consciência irreprochável,</p><p>como meditar em segredo e manter em perfeita impassibilidade e</p><p>conhecimento de causa as três partes da alma.</p><p>*</p><p>De todos os Isaías mencionados nas fontes monásticas egípcias dos séculos</p><p>IV e V, o mais célebre é o autor de tratados ascéticos que se espalharam por</p><p>todo o Oriente cristão. Infelizmente, não encontramos nestes tratados muitas</p><p>informações autobiográficas. Sabemos apenas que o abade Isaías começou</p><p>sua vida monástica no Egito, provavelmente em Sceta, aonde esteve em</p><p>relação com diversos personagens mencionados nas Sentenças dos Padres do</p><p>Deserto: João, Anoub, Poêmio, Paphnúcio, Amoun, Pedro, Lot, Agatão,</p><p>Abrahão, Sisoés, Or, Atreu. Talvez tenha sido discípulo e Ammoés e Aquilas.</p><p>Quando se tornou ele mesmo um ancião, já estava cercado de discípulos,</p><p>dentre os quais destacou-se um de nome Pedro que recolheu cuidadosamente</p><p>seus ensinamentos para por sua vez transmiti-los aos seus próprios discípulos.</p><p>Do Egito, onde se achava ainda em 431, Isaías foi para a Palestina, vindo a</p><p>morrer recluso num mosteiro perto de Gaza em 11 de Agosto de 491, sem</p><p>haver aderido ao Concílio de Calcedônia</p><p>131</p><p>.</p><p>A obra escrita de Isaías é apresentada em seções ou capítulos denominados</p><p>logoi, cujo número e ordem variam bastante nos manuscritos e edições.</p><p>Também o conteúdo de cada qual às vezes varia de uma coletânea a outra. É</p><p>porque a maior parte dos logoi são compilações de trechos díspares nos quais</p><p>131</p><p>Esta ao menos é a tese proposta por G. Krüger e normalmente admitida hoje em dia,</p><p>apesar das objeções formuladas por R. Draguet.</p><p>reconhecemos sentenças, apoftegmas, exortações morais ou cartas</p><p>endereçadas seja a um discípulo, seja a um grupo de monges. É provável que</p><p>o conjunto que possuímos tenha sido reunido e colocado em ordem por Pedro</p><p>no fim da vida do mestre ou logo após sua morte.</p><p>R. Draguet apontou na obra de Isaías diversos copticismos, mas se certas</p><p>palavras do mestre foram pronunciadas em copta, é quase certo que o</p><p>conjunto dos escritos tenha sido redigido em grego. Em todo caso, o</p><p>Ascéticon copta que conhecemos foi seguramente traduzido do grego, assim</p><p>como o Ascéticon siríaco.</p><p>Estreitamente ligada e aparentada a toda a literatura apoftegmática, a obra de</p><p>Isaías é interessante, em primeiro lugar porque ela nos traz um eco fiel do</p><p>ensinamento dos grandes monges do Egito, mas com um caráter mais didático</p><p>e mais sintético. Através das diversas recomendações do ancião, percebemos</p><p>como uma filigrana o motivo que os inspira e a preocupação essencial do</p><p>anacoreta do deserto: como encontrar e manter continuamente a hesychia, a</p><p>bem-aventurada quietude indispensável ao monge? Luta contra os</p><p>pensamentos, leitura e meditação das Escrituras, trabalho manual e</p><p>austeridades, todas as observâncias e ocupações prescritas são regradas e</p><p>medidas de modo a assegurar ao solitário as condições mais favoráveis à</p><p>verdadeira liberdade do coração. Isaías não desdenha descer até os detalhes</p><p>mais minuciosos da vida cotidiana, mas tampouco teme abordar as realidades</p><p>mais profundas da vida espiritual. Ele insiste constantemente nas disposições</p><p>interiores: tudo deve ser feito “com ciência”, ou seja, com discernimento,</p><p>retidão e pureza de intenções. A humildade, virtude primeira e fundamental, é</p><p>mencionada muitas vezes, mas é mais freqüentemente designada por seus</p><p>efeitos, em especial pela “não-estima” de si e o afastamento da vontade</p><p>própria.</p><p>Tudo isto já constava do ensinamento dos Padres do deserto, mas</p><p>encontramo-lo em Isaías sob uma forma original e com um cunho pessoal que</p><p>revelam um discípulo que se tornou um mestre eminente da espiritualidade.</p><p>Podemos admirar especialmente sua discrição e seu equilíbrio, seja nas</p><p>relações entre o corporal e o espiritual ou nas exigências respectivas da vida</p><p>solitária e da vida comunitária.</p><p>Enfim, notaremos o lugar central ocupado por Cristo na ascese, concebida</p><p>como uma imitação fiel de Jesus em sua vida, sua paixão e sua morte. O tema</p><p>de “subir na cruz”, que parece ser uma descoberta de Isaías, pois não o</p><p>encontramos em parte alguma antes dele, é ligado ao ensinamento de são</p><p>Paulo sobre o batismo que nos identifica ao Cristo crucificado. Toda ascese</p><p>leva a uma libertação das paixões que, em Isaías, nada tem de estóico, pois se</p><p>trata do desabrochar pleno da vida do Espírito naquele que ama o Senhor</p><p>Jesus com “inteiro amor”.</p><p>A obra de Isaías é o fruto de uma rica meditação das Escrituras com um</p><p>recurso frequente às interpretações alegóricas. Além Ada influência</p><p>predominante dos Padres do deserto, notaremos ainda a de Evagro, que é</p><p>inegável. Isaías certamente irradiou poderosamente em todas as Igrejas do</p><p>Oriente. Quando em vida, ele teve amigos tanto nos meios que haviam</p><p>aderido ao Concílio de Calcedônia como entre os que não o haviam aceitado.</p><p>Para todos os cristãos, ele permanece um mestre da autêntica espiritualidade.</p><p>Todos os textos de Isaías inseridos na Filocalia acham-se na tradução grega</p><p>de Augustinos.</p><p>CAPÍTULOS SOBRE A GUARDA DO INTELECTO</p><p>CAPÍTULOS SOBRE A GUARDA DO INTELECTO</p><p>1. Existe no intelecto a cólera conforme a natureza (que é perdoada) contra as</p><p>paixões. Sem a cólera,</p><p>não haveria pureza no homem, se ele não se irritasse</p><p>contra tudo o que nele é semeado pelo Inimigo. Quando Jó passou por isto,</p><p>ele injuriou seus inimigos dizendo-lhes: “Infames e desprezíveis, desprovidos</p><p>de todo bem, vocês que eu considero indignos de se misturar aos cães de</p><p>meus rebanhos.</p><p>132</p><p>” Quem deseja obter a cólera conforme a natureza, deve</p><p>afastar todas as suas vontades, até que ela se estabeleça no estado natural do</p><p>intelecto.</p><p>2. Se, estando a ponto de afastar o Inimigo, você o vê fraquejar e bater em</p><p>retirada, não deixe que seu coração se rejubile, pois a malícia dos demônios</p><p>vem depois deles. De fato, eles preparam uma guerra pior do que a primeira:</p><p>eles a deixam na retaguarda da cidadela, com ordens para não se mexer; se</p><p>você se levantar para marchar de encontro a eles, eles fogem mostrando</p><p>fraqueza. Se neste momento seu coração se gloria por tê-los perseguido, e se</p><p>você deixar a cidadela, levantar-se-ão alguns que estavam na retaguarda e</p><p>outros adiante, que cercarão a pobre alma sem fuga possível</p><p>133</p><p>. A cidadela é a</p><p>oração. A resistência, a resposta de Jesus Cristo. A marcha é a cólera.</p><p>3. Devemos nos manter, bem-amados, no temor a Deus, guardando e</p><p>observando a prática das virtudes, sem escandalizar nossa consciência, mas</p><p>vigiando-nos no temor a Deus, até que a própria consciência se liberte</p><p>conosco para realizar a união entre ela e nós; então ela se tornará nossa</p><p>guardiã, mostrando-nos cada ponto em que falhamos. Se não a obedecermos,</p><p>ela se afastará de nós e nos abandonará, e nós cairemos nas mãos dos</p><p>inimigos, que não terão mais piedade, como ensina nosso Mestre quando diz:</p><p>“Entre em acordo com seu adversário enquanto você ainda está a</p><p>caminho</p><p>134</p><p>”, etc. Diz-se que a consciência é um adversário, porque ela se</p><p>opõe ao homem quando ele quer satisfazer as vontades da carne, e se o</p><p>homem não a escuta, ela o entrega aos seus inimigos.</p><p>132</p><p>Jó XXX, 1.</p><p>133</p><p>Cf. Josué VIII.</p><p>134</p><p>Mateus V, 25.</p><p>4. Quando Deus quer que o intelecto se submeta a ele com todas as suas</p><p>forças e que ele não tenha outro sustento do que ele, ele o fortalece, dizendo:</p><p>“Não tema, Jacó, meu filho, pequeno Israel</p><p>135</p><p>”, e também: “Não tema, pois eu</p><p>o resgatei, eu o chamei por seu nome, você é meu. Se você atravessar os rios,</p><p>eu estarei com você, e as águas não o submergirão. Se você atravessar o fogo,</p><p>você não será queimado, as chamas não o consumirão, pois eu sou o Senhor</p><p>seu Deus, o Santo de Israel, Aquele que salva.</p><p>136</p><p>”</p><p>5. Se então o intelecto escuta estas palavras de incentivo, ele desafiará o</p><p>Inimigo, dizendo: “Quem é este que me dá combate? Que se apresente diante</p><p>de mim! Quem é este que me julga? Que se aproxime de mim! Eis que o</p><p>Senhor é meu socorro, quem me prejudicará? Pois todos se desgastarão, como</p><p>uma roupa velha comida de vermes.</p><p>137</p><p>”</p><p>6. Se seu coração realmente detesta o pecado, ele é um vencedor que se</p><p>afastou de tudo o que faz nascer o pecado. Coloque o castigo diante de seus</p><p>olhos e saiba que seu defensor permanece com você. Se você não o</p><p>entristecer, mas chorar em sua presença dizendo: “Só você possui a</p><p>misericórdia para me redimir, Senhor, pois eu sou incapaz de escapar das</p><p>mãos dos inimigos sem seu auxílio”, e se você vigiar seu coração, ele o</p><p>preservará de todo mal.</p><p>7. O monge deve fechar todas as portas de sua alma, ou seja, seus sentidos,</p><p>para não cair por sua causa. E quando o intelecto percebe que ele não está</p><p>mais sob o poder de ninguém, ele se prepara para a imortalidade reunindo</p><p>seus sentidos e fazendo deles um só corpo.</p><p>8. Se o intelecto se liberta de todas as esperanças do mundo das coisas</p><p>visíveis, é o sinal de que o pecado está morto em você.</p><p>9. Se o intelecto é libertado, aquilo que existe entre ele e Deus desaparece.</p><p>10. Se o intelecto é libertado de todos os seus inimigos e celebra o sétimo dia,</p><p>135</p><p>Isaías, XLI, 14.</p><p>136</p><p>Isaías, XLIII, 1-3.</p><p>137</p><p>Isaías, L, 8-9.</p><p>ele está em outro mundo, pensando nas coisas novas e incorruptíveis. Daí em</p><p>diante, “aonde o corpo estiver, aí se reunirão as águias.</p><p>138</p><p>”</p><p>11. Os demônios contêm suas enganações por um tempo, esperando que o</p><p>homem relaxe seu coração imaginando ter um descanso, e assim, de um só</p><p>golpe, eles se precipitam sobre a pobre alma e a capturam como um pardal</p><p>139</p><p>,</p><p>e se apoderam dela humilhando-a sem piedade com todos os pecados cujo</p><p>perdão é mais difícil do que aqueles pelos quais ela rogava inicialmente.</p><p>Permaneçamos assim no temor a Deus e vigiemos nosso coração, cumprindo</p><p>com nossa ascese e guardando as virtudes que fazem obstáculo à malícia dos</p><p>inimigos.</p><p>12. Nosso Senhor Jesus Cristo, conhecendo a grande crueldade [do demônio]</p><p>e cheio de piedade pela raça dos homens, ordenou com firmeza de coração:</p><p>“Estejam prontos a toda hora, pois vocês não sabem a que horas virá o</p><p>ladrão</p><p>140</p><p>, para que ele não os encontre adormecidos.</p><p>141</p><p>” E também: “Vigiem</p><p>para que seus corações não fiquem pesados pela glutoneria, a embriaguez e as</p><p>preocupações da vida, e para que a hora não chegue de surpresa.</p><p>142</p><p>” Domine</p><p>seu coração vigiando seus sentidos, e se sua memória estiver em paz com</p><p>você, você capturará os ladrões que a roubam, pois aquele que examina</p><p>rigorosamente seus pensamentos reconhece aqueles que querem entrar apenas</p><p>para sujar tudo. Com efeito, eles perturbam o intelecto para torná-lo distraído</p><p>e preguiçoso. Mas aqueles que compreendem sua malícia permanecem</p><p>imperturbáveis, orando ao Senhor.</p><p>13. Se o homem não odeia toda atividade deste mundo, ele não poderá servir</p><p>a Deus. Este serviço não é outra coisa do que não ter nada estranho no</p><p>intelecto quando rezamos para ele, nenhum prazer sensível quando o</p><p>louvamos, nenhuma malícia quando o cantamos, nenhum ódio quando o</p><p>adoramos, nenhuma inveja má que nos entrave quando conversamos com ele</p><p>ou quando nos lembramos dele. Pois todas estas trevas formam uma muralha</p><p>que envolve a pobre alma impedindo-a de servir a Deus com pureza enquanto</p><p>138</p><p>Mateus, XXIV, 28.</p><p>139</p><p>Lamentações, III, 51.</p><p>140</p><p>Mateus, XXIV, 42-43</p><p>141</p><p>Marcos XIII, 36.</p><p>142</p><p>Lucas XXI, 34.</p><p>permanecer aí. Elas a seguram no ar e não a deixam ir ao encontro de Deus,</p><p>louvando-o em segredo, orando na suavidade do coração a fim de ser</p><p>iluminada por ele. É por isso que o intelecto fica obscurecido e não consegue</p><p>progredir segundo Deus, por não ter tido o cuidado de afastar estas coisas</p><p>com ciência.</p><p>14. Quando o intelecto resgatar as faculdades da alma das vontades da carne e</p><p>as fizer atravessar o mar, a coluna da divindade separará a alma das vontades</p><p>da carne; então, se Deus quiser que a arrogância das paixões se lance sobre a</p><p>alma tentando manter em pecado suas faculdades, e se o intelecto suplicar a</p><p>Deus em segredo incessantemente, ele enviará seu socorro e dissipará tudo de</p><p>um só golpe.</p><p>15. Eu lhe suplico, enquanto você viver num corpo, não relaxe o coração.</p><p>Pois, assim como o cultivador não pode confiar na semente que cresce em seu</p><p>campo, pois ele não sabe o que advirá antes de ter colhido e armazenado,</p><p>também o homem não pode relaxar o coração enquanto houver um sopro em</p><p>suas narinas</p><p>143</p><p>. E assim como o homem ignora até o último suspiro se alguma</p><p>enfermidade o afligirá, também é impossível a ele relaxar o coração enquanto</p><p>respirar; assim, ele deverá sempre pedir a Deus com grandes lamentos para</p><p>obter sua ajuda e sua misericórdia.</p><p>16. Quem não encontra socorro no momento do combate não pode confiar na</p><p>paz.</p><p>17. Quando alguém se separa daqueles da mão esquerda, passa a conhecer</p><p>exatamente todos os pecados que cometeu contra Deus, porque ninguém vê</p><p>seus pecados se não estiver distanciado deles por uma dolorosa separação.</p><p>São os que chegaram até aí que encontram as</p><p>lágrimas, as súplicas e a</p><p>vergonha diante de Deus lembrando-se de sua ligação perversa com as</p><p>paixões. Lutemos, assim, na medida de nossas forças, irmãos, e Deus nos</p><p>assistirá segundo a abundância de sua misericórdia. E se nós não guardamos</p><p>nossos corações como nossos pais, ao menos façamos o possível para</p><p>guardarmos nossos corpos sem pecado, como o quer Deus, acreditemos que,</p><p>quando a fome nos assaltar, ele terá piedade de nós como teve de seus santos.</p><p>143</p><p>Jó, XXVII, 3.</p><p>18. Aquele que entrega seu coração à verdadeira procura de Deus na piedade</p><p>não pode pensar que ele agrada a Deus, pois enquanto sua consciência</p><p>reprovar-lhe seja lá o que for contra a natureza, ele é estranho à liberdade. De</p><p>fato, enquanto houver alguém que desaprova, existe alguém que acusa, e,</p><p>enquanto houver uma acusação, não há liberdade. Se enfim você perceber</p><p>que, enquanto você ora, absolutamente nenhuma malícia o acusa, então você</p><p>está verdadeiramente liberto e penetrou no santo repouso segundo sua</p><p>vontade. Se você perceber que o bom fruto se fortalece e que a embriaguez do</p><p>inimigo não o sufoca mais</p><p>144</p><p>, que os adversários recuaram, não por si</p><p>mesmos, seguros de sua esperteza, porque você já não luta contra os sentidos,</p><p>se a nuvem encobriu de tenda</p><p>145</p><p>e o sol já não o queima de dia nem a lua à</p><p>noite</p><p>146</p><p>, se você tem em si todo o necessário para erguer e manter a tenda</p><p>segundo a vontade de Deus</p><p>147</p><p>, então a vitória chegou a você vinda dele. E</p><p>daqui em diante ele mesmo cobrirá a tenda, porque ela lhe pertence.</p><p>Enquanto durar a guerra, o homem permanecerá no temor e no tremor,</p><p>vencedor ou vencido hoje, vencido ou vencedor amanhã, pois a luta aperta o</p><p>coração. Ao contrário, a impassibilidade não tem mais o que combater, pois</p><p>ela recebeu o prêmio, e ela não precisa mais se inquietar com a sorte dos três</p><p>que são distintos, porque eles fizeram as pazes entre si graças a Deus. Estes</p><p>três são o corpo, a alma e o espírito, segundo o Apóstolo</p><p>148</p><p>. Assim, quando os</p><p>três se tornam um pela operação do Espírito Santo, eles não podem mais ser</p><p>separados. Não pense, portanto, que você está morto para o pecado enquanto</p><p>você seguir sendo assaltado pelos inimigos, seja na vigília, seja no sono. Pois</p><p>enquanto o pobre homem estiver neste estado, ele nunca estará seguro da</p><p>vitória.</p><p>19. Quando o intelecto se fortalece e se prepara para acompanhar a caridade</p><p>que extingue todas as paixões do corpo</p><p>149</p><p>, ele não permite que nada contra a</p><p>144</p><p>Mateus, XIII, 25.</p><p>145</p><p>Números IX, 15.</p><p>146</p><p>Salmo CXII, 6.</p><p>147</p><p>Esdras II, 68.</p><p>148</p><p>1 Tessalonicenses VII, 14.</p><p>149</p><p>“...a caridade que extingue todas as paixões da alma e do corpo, então esta se torna</p><p>paciente e solícita, ela odeia a inveja e o orgulho, ela não pensa no mal, pois isto é o amor. A</p><p>cólera se torna conforme à natureza no coração, ela não permite que nada contra a natureza</p><p>oprima o espírito...” (texto de Augustinos)</p><p>natureza oprima o espírito, e, com sua força, o intelecto resiste às coisas que</p><p>são contra a natureza, até conseguir separá-las da conformidade à natureza.</p><p>20. Examine-se a cada dia, irmão, observando seu coração: que paixões</p><p>existem nele perante Deus? Rejeite tudo isso de seu coração, a fim de que</p><p>nenhuma sentença nefasta caia sobre você.</p><p>21. Vigie assim seu coração, irmão, e tome cuidado com os inimigos, pois</p><p>eles são espertos em sua malícia. E em seu coração fique certo destas</p><p>palavras: “É impossível ao homem fazer o bem enquanto ele faz o mal, ao</p><p>passo que o homem pode fazer o mal sob pretexto de fazer o bem.” Por isso</p><p>nosso Salvador nos ensinou a vigiar, dizendo: “Estreita é a porta e apertado o</p><p>caminho que conduz à vida, e são poucos os que o encontram.</p><p>150</p><p>”</p><p>22. Portanto, vigie a si mesmo, para que nada da perdição o desvie do amor a</p><p>Deus, e domine seu coração. Nas se deixe desencorajar, dizendo: “Como</p><p>posso guardá-lo, sendo um pecador?” Pois quando um homem abandona seus</p><p>pecados e se volta para Deus, sua penitência o regenera e o faz inteiramente</p><p>novo.</p><p>23. Em toda parte a divina Escritura, a antiga como a nova, fala da guarda do</p><p>coração. Primeiro Davi o Salmista exclama: “Filhos dos homens, até quando</p><p>terão vocês o coração tão pesado?</p><p>151</p><p>” E também: “Seu coração é vão.</p><p>152</p><p>” De</p><p>todos aqueles cujos pensamentos são vãos, ele diz: “Pois ele diz em seu</p><p>coração: jamais estremecerei!</p><p>153</p><p>” E ainda: “Pois ele diz em seu coração: Deus</p><p>esquece</p><p>154</p><p>”, e outras coisas do tipo. Com efeito, o monge deve considerar o</p><p>objetivo da Escritura, a quem ela fala e quando ela fala; ele deve sustentar</p><p>continuamente o combate da ascese e tomar cuidado com os ataques do</p><p>Adversário. Como um piloto, ele deve navegar sobre as ondas conduzido pela</p><p>graça, sem se afastar da via reta, atento apenas ao caminho e entretendo-se</p><p>com Deus na hesychia, com sua razão inquebrantável e o intelecto liberto de</p><p>todas as confusões.</p><p>150</p><p>Salmo IV, 3.</p><p>151</p><p>Salmo V, 10.</p><p>152</p><p>Salmo IX, 27.</p><p>153</p><p>Salmo IX, 31.</p><p>154</p><p>2 Coríntios X, 5.</p><p>24. O tempo, com efeito, exige de nós a oração, como dos pilotos diante dos</p><p>ventos, da tripla borrasca e das tempestades dos espíritos. Pois nós estamos</p><p>expostos aos ataques dos pensamentos da virtude e do vício, e é dito que o</p><p>mestre das paixões é o pensamento piedoso e amigo de Deus. De fato,</p><p>convém aos hesiquiastas que somos, discernir e separar com sabedoria,</p><p>sobriedade e vigilância as virtudes dos vícios, nos aplicarmos a esta ou àquela</p><p>virtude em presença dos irmãos e dos padres, a trabalhar uma ou outra</p><p>quando estamos a sós; convém examinarmos qual é a primeira virtude, a</p><p>segunda e a terceira; quais paixões são psíquicas, quais corpóreas; a partir de</p><p>qual virtude o orgulho golpeia o intelecto; qual é acompanhada da vanglória,</p><p>qual leva à cólera e qual engendra a gula. Devemos destruir “os pensamentos</p><p>e toda potência altaneira que se levanta contra o conhecimento de Deus.</p><p>155</p><p>”</p><p>25. A primeira virtude é a ausência de preocupações, ou seja, a morte a todos</p><p>os homens e a todas as coisas. Então nasce o desejo por Deus e este engendra</p><p>a cólera conforme a natureza, que vai opor-se a tudo o que o inimigo semeia.</p><p>A partir daí o temor a Deus encontra no homem um lugar de eleição, e pelo</p><p>temor manifesta-se a caridade.</p><p>26. É preciso rejeitar os assaltos do pensamento ao coração por uma recusa</p><p>piedosa no momento da prece, para que não deixemos os lábios ocupados em</p><p>falar com Deus enquanto o coração se dedica a coisas inconvenientes. Pois</p><p>Deus não aceita uma prece suja e desprezível de um hesiquiasta. Assim é que</p><p>Escritura atesta que devemos supervisionar os sentidos da alma. Se a vontade</p><p>do monge está submetida à lei de Deus e se seu intelecto conduz segundo a lei</p><p>tudo o que está em seu poder, vale dizer todos os movimentos da alma, em</p><p>especial a cólera e a cobiça, submetendo-as à razão, então praticamos a</p><p>virtude e cumprimos a justiça. A cobiça volta-se para Deus e para as suas</p><p>vontades, a cólera é exercida contra o diabo e o pecado. O que estamos</p><p>buscando? A meditação secreta.</p><p>27. Se uma obscenidade for semeada em seu coração, mantenha-se na sua</p><p>cela e vigie para resistir à malícia, para que ela não se apodere de você.</p><p>Apresse-se em se lembrar de Deus que o vê e diante de quem estão a</p><p>descoberto os pensamentos de seu coração. Diga à sua alma: “Se você teme</p><p>155</p><p>Salmo CXXIV, 1.</p><p>que pecadores como você vejam seus pecados, quanto mais a Deus, que tem</p><p>os olhos sobre tudo?”; desta reflexão nascerá em sua alma o temor a Deus, e</p><p>se você permanecer com ele, você se manterá bom, imperturbável em meio às</p><p>paixões, segundo está escrito: “Aqueles que confiam no Senhor são como o</p><p>monte Sião: aquele que habita Jerusalém</p><p>jamais estremecerá.” Em tudo o que</p><p>você fizer, lembre-se de que Deus vê tudo o que você pensa e você não pecará</p><p>mais.</p><p>A ele a glória por todos os séculos. Amém.</p><p>EVAGRO O PÔNTICO</p><p>ESBOÇO MONÁSTICO</p><p>SOBRE O DISCERNIMENTO DAS PAIXÕES</p><p>CAPÍTULOS NÉPTICOS</p><p>CAPÍTULOS SOBRE A ORAÇÃO</p><p>Evagro o Pôntico</p><p>Evagro, este homem sábio e admirável viveu por volta do ano 350. Ele</p><p>recebeu do grande Basílio o cargo de leitor. Ele foi ordenado diácono pelo</p><p>irmão de Basílio, Gregório de Nice. Ele foi iniciado nos textos sagrados por</p><p>Gregório o Teólogo, que fez dele arquidiácono, quando ele recebeu a</p><p>administração da Igreja de Constantinopla, segundo Nicéforas Calixto.</p><p>Depois, tendo renunciado às coisas do mundo, ele mergulhou na vida</p><p>solitária. Dotado de uma real sutileza de inteligência e de uma grande</p><p>habilidade em expressar seu pensamento, ele deixou numerosos escritos,</p><p>como o tratado dirigido aos hesiquiastas e os capítulos, de grande valia,</p><p>sobre o discernimento das paixões e dos pensamentos, que escolhemos para</p><p>expor neste livro.</p><p>*</p><p>Evagro, dito o Pôntico por ser originário da província do Ponto na Ásia</p><p>Menor, nasceu cerca de 345 em Ibora, não distante de Anésia aonde Basílio e</p><p>Gregório iniciaram sua vida solitária em 357. Ordenado leitor por são Basílio,</p><p>Evagro foi em seguida elevado ao diaconato por são Gregório de Nazianze,</p><p>que o levou consigo para Constantinopla em 380. Mas logo, a fim de fugir a</p><p>uma violenta paixão que teve pela esposa de um alto funcionário, ele se</p><p>expatriou e foi para Jerusalém, onde Melânia a Velha o convenceu a renunciar</p><p>ao mundo e se fazer monge no Egito. Depois de passar dois anos em Nitria,</p><p>Evagro retirou-se para o deserto das Kellia, onde viveu até sua morte em 399.</p><p>Ele foi discípulo de Macário de Alexandria e também se relacionou com o</p><p>outro Macário, fundador de Sceta. Ele fez parte de um grupo de monges</p><p>letrados que se distinguiram pela fervorosa aderência às doutrinas origenistas.</p><p>A obra escrita que ele deixou testemunha esta dupla herança. Os extratos que</p><p>nos fornece a Filocalia foram tirados sobretudo dos tratados ascéticos, nos</p><p>quais não encontramos nenhuma das opiniões controversas que levaram à</p><p>condenação do autor das Centúrias gnósticas no Concílio de Constantinopla</p><p>em 553.</p><p>Encabeçando esta antologia vem o Esboço ou Hypotypose, ou ainda, com</p><p>outro título, Bases para a vida monástica. Destinado, com efeito, aos</p><p>iniciantes, este tratado descreve os traços específicos do estado monástico e</p><p>de suas condições essenciais: celibato, renúncia do mundo, pobreza, solidão,</p><p>trabalho manual e meditação sobre os fins últimos.</p><p>O livro seguinte, Capítulos sobre o discernimento das paixões e dos</p><p>pensamentos ou Dos diversos pensamentos, trata do combate espiritual. Ele</p><p>expõe com sutileza e profundidade a estratégia por meio da qual os demônios</p><p>suscitam no monge os maus pensamentos e a maneira de detectar e repelir os</p><p>ataques. Sob o título de Capítulos Népticos, a Filocalia acrescenta a seguir</p><p>cinco extratos do Tratado prático ou O monge, dos quais dois se referem aos</p><p>ensinamentos dos anciãos do deserto, em especial Macário.</p><p>A este florilégio apresentado na Filocalia grega sob o nome de Evagro,</p><p>convém acrescentar o tratado Da prece, atribuído a são Nilo pela tradição</p><p>grega e que deve ser restituído a Evagro, como I. Hausherr demonstrou de</p><p>forma decisiva. Este tratado constitui uma das obras mais extraordinárias de</p><p>Evagro, e nele encontramos os elementos mais valiosos de seu ensinamento</p><p>místico.</p><p>ESBOÇO MONÁSTICO QUE ENSINA O MODO DE EXERCER A</p><p>ASCESE E A HESÍQUIA</p><p>1. Está dito em Jeremias: “Você, não tome esposa neste lugar, pois eis o que o</p><p>Senhor disse dos filhos e filhas engendrados neste lugar: ‘Eles perecerão de</p><p>enfermidade mortal’</p><p>156</p><p>”. Estas palavras mostram que, como diz o Apóstolo,</p><p>“o homem casado se preocupa com as coisas do mundo, do modo de agradar</p><p>à sua esposa, e ele fica dividido. A mulher casada também se preocupa com o</p><p>mundo e com a maneira de agradar ao seu marido</p><p>157</p><p>”. E é claro que o que diz</p><p>o Profeta: “Eles perecerão de uma enfermidade mortal” não se refere apenas</p><p>aos filhos e filhas nascidos da vida conjugal, mas também dos filhos e filhas</p><p>engendrados no coração, ou seja, os pensamentos e os desejos carnais;</p><p>também eles perecerão por assim dizer no entendimento doentio, enfermo e</p><p>lânguido deste mundo e não renascerão para a vida celeste. “Mas aquele que</p><p>não é casado, diz o Apóstolo, preocupa-se com as coisas do Senhor e com o</p><p>modo de agradar ao Senhor</p><p>158</p><p>”, e este produzirá os frutos perpétuos e</p><p>imortais da vida eterna.</p><p>2. Assim é o monge e é assim que ele deve ser: abster-se de esposa, não</p><p>procriando nem filhos nem filhas neste lugar acima referido, acima de tudo</p><p>um soldado de Cristo, imaterial e sem preocupações, desembaraçado de todos</p><p>os cuidados com negócios e com atividades de qualquer tipo, como ainda diz</p><p>o Apóstolo: “Ao se alistar no exército, ninguém se deixará envolver pelas</p><p>questões da vida civil, se quiser satisfazer a quem o alistou no regimento</p><p>159</p><p>”.</p><p>Que assim caminhe o monge, sobretudo o que abandonou toda a matéria deste</p><p>mundo e corre para os magníficos e esplêndidos troféus da hesíquia. Como é</p><p>magnífica e esplêndida a ascese da hesíquia, sim, verdadeiramente magnífica</p><p>e esplêndida! Pois seu jugo é doce e seu fardo é leve</p><p>160</p><p>. Doce é a vida e</p><p>deleitosa a prática.</p><p>156</p><p>Jeremias XVI, 2-4.</p><p>157</p><p>1 Coríntios VII, 33-34.</p><p>158</p><p>1 Coríntios VII, 32.</p><p>159</p><p>2 Timóteo II, 4.</p><p>160</p><p>Cf. Mateus XI, 30.</p><p>3. Você quer mesmo, bem-amado, assumir a vida monástica tal como ela é e</p><p>buscar os troféus [esplêndidos e magníficos] da hesíquia? Deixe para trás as</p><p>preocupações do mundo, os príncipes e os poderes que dele se ocupam, ou</p><p>seja, desembarace-se da matéria e das paixões, sem nenhuma concupiscência,</p><p>a fim de que, tornado alheio a este embaraço, você possa bem praticar a</p><p>hesíquia. Pois se não nos subtrairmos a tudo isso, não teremos como levar a</p><p>bom termo esta vida.</p><p>Contente-se com uma alimentação frugal e barata, em pequena quantidade e</p><p>fácil de achar. E se, sob pretexto de hospitalidade, lhe vêm ao pensamento</p><p>alimentos mais caros, deixe-o ir-se e não o siga, pois com isto o Adversário</p><p>coloca uma armadilha para desviá-lo da hesíquia. Você sabe como o Senhor</p><p>Jesus condena a alma que se preocupa com essas coisas – Marta – dizendo a</p><p>ela: “Porque perturbar-se com tantas coisas? Apenas uma lhe é necessária”, a</p><p>saber, disse ele, escutar a palavra divina; e depois disto tudo fica fácil. É por</p><p>isso que ele acrescenta a seguir: “Pois Maria escolheu a melhor parte, a que</p><p>não poderá ser-lhe tirada</p><p>161</p><p>”. Você tem ainda o exemplo da viúva de Sarepta e</p><p>dos alimentos que ela ofereceu ao Profeta</p><p>162</p><p>. Se você só tiver pão, sal e água,</p><p>você poderá com isto obter a recompensa por sua hospitalidade. E se nem isto</p><p>você possuir, receba seu hóspede com a melhor das disposições e ofereça-lhe</p><p>uma palavra edificante, de maneira a obter a recompensa da hospitalidade. De</p><p>fato, foi dito: “Uma palavra é melhor do que aquilo que se dá</p><p>163</p><p>”. Eis o que</p><p>você deve meditar a respeito da esmola.</p><p>4. Vigie, portanto, para não querer ter riquezas para distribuí-las aos pobres,</p><p>pois esta é mais uma artimanha do Maligno, que muitas vezes conduz à</p><p>vanglória e atira o intelecto numa multidão de preocupações. No Evangelho</p><p>você encontra a viúva de quem o Senhor Jesus deu testemunho que, com duas</p><p>moedinhas, superou os ricos no tocante à intenção e ao valor. Com efeito,</p><p>“estes, disse o Senhor, tiraram um</p><p>pouco do supérfluo de seus tesouros,</p><p>enquanto que ela ofereceu toda a sua subsistência</p><p>164</p><p>”.</p><p>Quanto às roupas, não deseje ter demais. Fique com aquelas que bastam para</p><p>161</p><p>Lucas X, 41-42.</p><p>162</p><p>Cf. 1 Reis XVII, 10-11.</p><p>163</p><p>Eclesiástico XVIII, 16.</p><p>164</p><p>Marcos XII, 44.</p><p>as necessidades do corpo. “Coloque todas as suas preocupações no Senhor e</p><p>ele tudo fará para você</p><p>165</p><p>”. “De fato, ele cuida pessoalmente de nós</p><p>166</p><p>”.</p><p>Se você ficar sem comida nem vestes, não tenha vergonha de aceitar o que</p><p>outros lhe oferecem, pois esta vergonha é uma espécie de orgulho. Mas se</p><p>você tiver o bastante, dê a quem falta. É assim que Deus quer que suas</p><p>crianças sejam providas. Eis porque o Apóstolo, escrevendo aos Coríntios,</p><p>disse a respeito dos indigentes: “Que o seu supérfluo ajude na penúria destes,</p><p>a fim de que o supérfluo deles remedie a sua penúria e que assim haja uma</p><p>equanimidade, como está escrito: ‘Aquele que tinha muito não tem tanto, e o</p><p>que tinha pouco não ficou sem’.</p><p>167</p><p>”</p><p>Tendo assim o necessário para o presente, não se preocupe com o futuro, quer</p><p>se trate de um dia, uma semana ou um mês. Quando amanhã chegar, ele</p><p>mesmo fornecerá o que é necessário, se você, acima de tudo, buscar o Reino</p><p>dos céus e a justiça de Deus. De fato, disse o Senhor: “Procurem o Reino de</p><p>Deus e sua justiça, e tudo o mais lhes será dado em acréscimo.</p><p>168</p><p>”</p><p>5. Não tenha servidor, para que através dele o Adversário não provoque um</p><p>escândalo e não perturbe o seu pensamento com alimentos custosos, pois</p><p>você não poderá mais, sozinho, cuidar dele. E se lhe ocorrer um pensamento</p><p>relativo ao bem estar corporal, pense no que lhe é melhor, quero dizer o bem</p><p>estar espiritual. Com efeito, e em verdade, o bem estar espiritual vale mais do</p><p>que o corporal. E mesmo que o Adversário coloque em sua cabeça os</p><p>benefícios que poderá auferir o rapaz, não o obedeça. De fato, não é trabalho</p><p>para nós, mas para outros santos Padres que vivem em comunidade. Cuide</p><p>apenas de seu próprio benefício e preserve a condição de hesíquia. Não queira</p><p>viver com os homens que estão ligados às coisas materiais e amarrados de</p><p>todos os lados. Viva só, ou com irmãos desembaraçados da matéria e que</p><p>pensam como você. Pois quem vive com os homens que estão ligados às</p><p>coisas materiais e tomados pelos negócios, partilhará necessariamente, ele</p><p>também, dos embaraços e da escravidão das servidões humanas, tais como as</p><p>conversas vãs e todas as outras calamidades: cólera, tristeza, loucura das</p><p>165</p><p>Salmo LIV, 23.</p><p>166</p><p>1 Pedro V, 7.</p><p>167</p><p>2 Coríntios VIII, 14-15, cit. Êxodo XVI, 18.</p><p>168</p><p>Mateus, VI, 33.</p><p>coisas materiais, medo e escândalo.</p><p>Tampouco se deixe prender pelos cuidados de famílias ou pelas afeições ao</p><p>próximo, mas antes evite sua freqüentação, para que eles não o façam perder</p><p>a hesíquia da cela e não o envolvem em seus próprios assuntos. Como diz o</p><p>Senhor: “Deixe que os mortos enterrem seus mortos</p><p>169</p><p>; você, venha e siga-</p><p>me”. Inclusive, se sua própria cela é demasiado acessível, fuja e não a</p><p>conserve, não relaxe por estar ligado a ela. Faça tudo o que puder, aja sempre</p><p>de maneira a poder praticar a hesíquia e para ter tempo livre para se dedicar a</p><p>fazer as vontades de Deus e a se manter em luta contra as potências invisíveis.</p><p>6. Se você não consegue alcançar a hesíquia nas suas redondezas, dirija sua</p><p>intenção para o exílio e apresse-se em fixar aí seu pensamento. Faça como um</p><p>bom homem de negócios, avaliando tudo em função da hesíquia e retendo</p><p>principalmente as coisas que seja úteis e coerentes com ela. Quanto ao mais,</p><p>eu lhe digo, prefira o exílio. Pois ele o desembaraça dos incômodos de sua</p><p>própria terra natal e tira partido apenas daquilo que aproveita à hesíquia. Evite</p><p>as estadias nas cidades e persevere no deserto. “Eis, diz o santo rei, que fugi</p><p>para longe e permaneci no deserto</p><p>170</p><p>”. Tanto quanto possível, não vá nunca à</p><p>cidade, pois você não verá ali nada que lhe convenha, nada útil nem</p><p>aproveitável para seu modo de vida. “Eu vi, diz ainda o santo rei, a iniqüidade</p><p>e as disputas na cidade</p><p>171</p><p>”. Procure, portanto, os lugares afastados e</p><p>tranqüilos. Não tema o eco. Se você enxergar os espectros dos demônios, não</p><p>tenha medo e não abandone o estado que é todo nosso benefício. Persevere</p><p>sem temor e você verá “as maravilhas de Deus</p><p>172</p><p>”, o socorro, a solicitude e</p><p>todas as demais certezas de salvação. Com efeito, é o homem bem-aventurado</p><p>que diz: “Eu esperei aquele que me salvou do desencorajamento e da</p><p>tempestade</p><p>173</p><p>”. Que nenhum desejo de agitação vença seu propósito. Pois “a</p><p>inconstância com a cobiça solapa um espírito inocente</p><p>174</p><p>”. Daí sobrevém</p><p>inúmeras tentações. Tema a queda e mantenha-se sedentário em sua cela.</p><p>169</p><p>Mateus VIII, 22.</p><p>170</p><p>Salmo LIV, 8.</p><p>171</p><p>Salmo LIV, 10.</p><p>172</p><p>Êxodo XIV, 13</p><p>173</p><p>Salmo LIV, 9.</p><p>174</p><p>Sabedoria IV, 12.</p><p>7. Se você tem amigos, evite estar constantemente com eles. Pois, vendo-os</p><p>poucas vezes, você extrairá mais proveito. Mas se você se der conta de que</p><p>está se prejudicando por eles, não se aproxime mais. É preciso, com efeito,</p><p>que seus amigos lhe sejam úteis e que compartilhem seu modo de vida. Fuja</p><p>dos encontros com amigos perversos ou polêmicos e não more com nenhum</p><p>deles. Mais do que isto, repila seus maus projetos, pois eles não estão ligados</p><p>a Deus e não permanecem com ele. Que seus amigos sejam homens pacíficos,</p><p>os irmãos espirituais e os santos Padres. É assim, realmente, que o Senhor os</p><p>denominou quando disse: “Minha mãe, meus irmãos e meus pais são aqueles</p><p>que fazem a vontade de meu Pai que está no céu</p><p>175</p><p>”. Não freqüente pessoas</p><p>agitadas nem vá festejar com elas, para que não o arrastem em suas ilusões e</p><p>o desviem da disciplina da hesíquia, pois é a paixão quem se encontra neles.</p><p>Não dê ouvidos aos seus propósitos e não acolha os pensamentos de seu</p><p>coração, pois eles são verdadeiramente funestos. Que se desejo se volte para</p><p>os fiéis da terra e que o desejo de seu coração seja o de invejar sua</p><p>compunção. De fato, foi dito: “Meus olhos estão fixos nos fiéis da terra para</p><p>fazê-los assentarem-se comigo</p><p>176</p><p>”. Mas se um daqueles que vivem segundo o</p><p>amor de Deus convidá-lo a comer com ele, e se você o quiser, faça-o, mas</p><p>volte logo para a sua cela. Tanto quanto possível, jamais durma fora dela, a</p><p>fim de que sempre permaneça com você a graça da hesíquia, e você poderá</p><p>assim, sem empecilhos, permanecer fiel ao seu propósito.</p><p>8. Não seja amante de bons pratos nem das ilusões da fruição, pois, como diz</p><p>o Apóstolo “quem vive da fruição está morto</p><p>177</p><p>”. Não encha seu ventre como</p><p>alimentos que são para os mundanos, para que sua concupiscência não o</p><p>contamine e não o faça desejar a sua mesa. Com efeito, foi dito: “Não se</p><p>perca locupletando o ventre</p><p>178</p><p>”. E se você for constantemente convidado a</p><p>deixar sua cela, recuse. Pois a permanência prolongada fora da cela é nociva,</p><p>ela desfaz a graça, obscurece o entendimento, extingue o fervor. Veja como</p><p>uma jarra de vinho que permanece por longo tempo em seu lugar, sem ser</p><p>remexida, torna o vinho claro, decantado, perfumado. Se, ao contrário, ela é</p><p>transportada de um lugar para outro, ela produzirá um vinho opaco, misturado</p><p>e que mostra todas as desagregações da borra. Compare-se a esta jarra e faça</p><p>175</p><p>Mateus XII, 50.</p><p>176</p><p>Salmo C, 6.</p><p>177</p><p>1 Timóteo V, 6.</p><p>178</p><p>Provérbios XXIV, 15.</p><p>esta experiência tão útil, rompa relações com a maioria das pessoas para que</p><p>seu intelecto não seja distraído e para que não se perturbe sua condição de</p><p>hesíquia.</p><p>Tenha o cuidado de trabalhar com as mãos noite e dia, se possível, a fim de</p><p>não ser um peso para ninguém e mais ainda para distribuir, como o</p><p>recomenda</p><p>o santo apóstolo Paulo</p><p>179</p><p>, para triunfar com isto também sobre o</p><p>demônio da acídia e para eliminar toda a demais concupiscência do inimigo.</p><p>Pois o demônio da acídia se faz acompanhar do ócio e encontra-se “na</p><p>concupiscência”, como foi dito</p><p>180</p><p>. Fazendo comércio, você não evitará o</p><p>pecado. Vendendo ou comprando, ceda um pouco, para sua própria</p><p>desvantagem, sobre o preço justo, para que não aconteça que, arrastado pelas</p><p>negociações mesquinhas e minuciosas que a ganância comercial inspira, você</p><p>não caia nas causas de dano para a alma, nas disputas, nos falsos juramentos,</p><p>nos perjúrios, e que, por causa de tais procederes, você não se desonre e não</p><p>cubra de vergonha a santa dignidade de nossa profissão. Adote esta idéia,</p><p>evite comprar e vender por si mesmo. É preferível, se possível, atribuir este</p><p>assunto a algum outro, a um homem confiável, a fim de que, estando com o</p><p>espírito tranquilo, você desfrute das esperanças belas e felizes.</p><p>9. Tais são as vantagens que lhe trará a vida da hesíquia. Vou agora expor a</p><p>série de coisas que ela contempla. Você, escute-me e faça o que eu lhe</p><p>ordeno. Sentado em sua cela, recolha seu intelecto, lembre-se do dia de sua</p><p>morte, veja o cadáver que será seu corpo, sinta suas penas, condene a vaidade</p><p>deste mundo, encha-se de cuidado e zelo para poder permanecer sempre</p><p>dentro do mesmo firme propósito da hesíquia sem fraquejar. Lembre-se</p><p>também das condições presentes no inferno, observe como estão as almas lá</p><p>embaixo, em que amargo silêncio, em que gemidos terríveis, em que horror,</p><p>em que agonia, em que espera, a tortura interminável e as lágrimas da alma</p><p>que não podem ser secadas. Mas lembre-se também do dia da ressurreição e</p><p>do comparecimento diante de Deus. Imagine este julgamento apavorante e</p><p>temível, evoque o que está reservado aos pecadores: a vergonha diante de</p><p>Deus e de seu Cristo, dos anjos, dos arcanjos, das potências e de todos os</p><p>homens, todos os suplícios, o fogo eterno, o verme que não morre, o tártaro,</p><p>as trevas, e, além de tudo isto, o ranger de dentes, os terrores e os tormentos.</p><p>179</p><p>1 Tessalonicenses II, 9; Efésios IV, 28.</p><p>180</p><p>Cf. Provérbios XIII, 4.</p><p>Mas evoque também os bens que estão reservados aos justos: a segurança</p><p>diante de Deus pai e de seu Cristo, dos anjos, dos arcanjos, das potências e de</p><p>todo o povo dos santos, o reino e seus dons, a alegria e a felicidade. Destas</p><p>duas perspectivas, guarde em sua memória: sobre a condenação dos</p><p>pecadores, chore, gema e coloque roupas de luto, temendo que também a</p><p>você isto aconteça. Mas quanto aos bens reservados aos justos, rejubile-se,</p><p>exulte e se alegre; esforce-se para poder desfrutá-los; quanto aos outros, trate</p><p>de escapar deles. Vigie para nunca se esquecer disto, quer você esteja dentro</p><p>ou fora de sua cela, não separe seu entendimento desta lembrança a fim de</p><p>que, no mínimo, você evite os pensamentos impróprios e nocivos.</p><p>10. Jejue tanto quanto puder diante do Senhor. O jejum lava as transgressões e</p><p>os pecados, embeleza a alma, santifica o entendimento, põe em fuga os</p><p>demônios e predispõe à aproximação com Deus. Comendo uma vez ao dia,</p><p>não deseje uma segunda refeição, para não ser perdulário nem perturbar o</p><p>entendimento. Assim você terá em abundância para as obras de bem-</p><p>aventurança e poderá mortificar as paixões do corpo. Mas se chegam irmãos e</p><p>você se vê obrigado a comer uma segunda e uma terceira vezes, cuide para</p><p>não gemer nem se afligir; regozije-se e submeta-se à realidade, e, comendo</p><p>pela segunda ou pela terceira vez, dê graças a Deus por cumprir a lei da</p><p>caridade e de ter o próprio Deus como administrador de nossas vidas. Pode</p><p>acontecer que o corpo esteja enfermo e que seja preciso comer duas ou três</p><p>vezes ou mesmo freqüentemente; [esteja pronto para esta eventualidade] e</p><p>não se aflija. Não devemos permitir que os labores corporais do nosso estilo</p><p>de vida sejam mantidos durante as doenças, mas podemos renunciar a</p><p>algumas coisas para recuperar a saúde mais depressa e retomar os mesmos</p><p>labores de nossa vida. A respeito da abstinência de alimentos, a palavra divina</p><p>não proibiu comer nada, mas ela diz: “Eu lhes dei todas as coisas em forma</p><p>de legumes</p><p>181</p><p>”, “comam indistintamente</p><p>182</p><p>” e “Não é o que entra pela boca</p><p>que suja o homem</p><p>183</p><p>”. A abstinência de alimentos deve ser um trabalho de</p><p>nossa livre vontade e de nossa alma.</p><p>11. Suporte alegremente a vigília, o sono em leito duro e todas as demais</p><p>austeridades, considerando a glória futura que lhe será revelada com todos os</p><p>181</p><p>Gênesis IX, 3..</p><p>182</p><p>1 Coríntios X, 25-27.</p><p>183</p><p>Mateus XV, 11.</p><p>santos. É dito, com efeito, que “os sofrimentos do tempo presente não são</p><p>nada comparados com a glória que será revelada em nós</p><p>184</p><p>”. Se você estiver</p><p>abatido, ore, como está escrito</p><p>185</p><p>, mas ore com temor e com tremor, com</p><p>esforço, sobriedade, vigilância e atenção. É assim que se deve rezar,</p><p>sobretudo por causa dos inimigos invisíveis, perversos e enganadores, que</p><p>querem sempre nos causar prejuízos. Cada vez que eles nos vêem em oração,</p><p>apressam-se a vir sugerir ao nosso intelecto aquilo que não deve ser pensado</p><p>nem meditado durante a prece, a fim de levar cativo nosso intelecto e de</p><p>tornar vãs, inúteis e ineficazes a demanda e a súplica contidas na prece. Pois</p><p>vãs e inúteis são a prece, a demanda e a súplica que não são feitas como foi</p><p>dito, como temor, tremor, sobriedade, vigilância e atenção. De fato, se nos</p><p>aproximamos de um rei mortal, tremendo, com temor e circunspecção para</p><p>lhe apresentar um pedido, não seria conveniente sentirmos muito mais ao nos</p><p>apresentarmos assim a Deus, mestre do universo, e a Cristo, Rei dos reis e</p><p>Príncipe dos príncipes</p><p>186</p><p>, e lhe dirigirmos igualmente nossas súplicas e</p><p>demandas? Certamente, pois a ele também dirigem hinos incessantes toda a</p><p>multidão de espíritos angélicos que o temem e adoram em coro, que tremendo</p><p>o glorificam, tanto ao Pai sem começo quanto ao Espírito santíssimo e co-</p><p>eterno, agora e para sempre, por todos os séculos. Amém.</p><p>184</p><p>Romanos VIII, 18.</p><p>185</p><p>Cf. Tiago V, 13.</p><p>186</p><p>Cf. 1 Timóteo VI, 15; Apocalipse XIX, 16.</p><p>CAPÍTULOS SOBRE O DISCERNIMENTO DAS PAIXÕES</p><p>E DOS PENSAMENTOS</p><p>[I]</p><p>187</p><p>1. Dentre os demônios que se opõem à prática os primeiros a se</p><p>apresentar ao combate são aqueles encarregados dos apetites da gula, os que</p><p>nos sugerem a avareza e os que nos estimulam a procurar a glória humana.</p><p>Todos os outros caminham atrás destes, recolhendo aqueles que eles feriram.</p><p>Com efeito, não é possível cair nas mãos do espírito da fornicação, sem antes</p><p>haver sucumbido à gula; não é possível deter a parte irascível se não a</p><p>combatermos por via dos alimentos, das riquezas e da glória; não é possível</p><p>fugir do demônio da tristeza se nos sentirmos privados de tudo isto ou se não</p><p>os pudermos adquirir; tampouco escaparemos do orgulho, o primeiro broto do</p><p>diabo, se não banirmos “a avareza, raiz de todos os males” porque, como</p><p>disse o sábio Salomão, “a pobreza humilha o homem</p><p>188</p><p>”. Em poucas</p><p>palavras, não é possível que alguém sucumba ao demônio, sem antes ter sido</p><p>ferido pelos assaltantes da primeira fileira (protostátai). É por isso que foram</p><p>estes os três pensamentos que o diabo outrora apresentou ao Salvador,</p><p>convidando-o primeiramente a transformar as pedras em pães, prometendo-</p><p>lhe em seguida o mundo inteiro se ele se prosternasse para adorá-lo, e em</p><p>terceiro lugar dizendo-lhe que, se ele o obedecesse, ele seria glorificado por</p><p>não sofrer dano algum de tal queda</p><p>189</p><p>. Mostrando-se superior a estas</p><p>tentações, Nosso Senhor ordenou ao diabo que se retirasse; com isto ele nos</p><p>ensina que não é possível afastar o diabo sem antes desprezar estes</p><p>três</p><p>pensamentos.</p><p>[II] 2. Todos os pensamentos demoníacos introduzem na alma representações</p><p>de objetos sensíveis: impressionado com eles, o intelecto carrega em si as</p><p>formas destes objetos; e assim é conforme o próprio objeto que ele pode</p><p>reconhecer o demônio que se aproximou. Por exemplo, se em meu espírito</p><p>forma-se o rosto de alguém que me fez mal ou que me desonrou, é a prova de</p><p>que o pensamento do rancor e do ressentimento me fez uma visita; ou ainda,</p><p>187</p><p>As indicações entre colchetes referem-se às divisões da P.G. (Patrística Grega)</p><p>LXXIX, 1199-1234.</p><p>188</p><p>Provérbios X, 14.</p><p>189</p><p>Cf. Mateus IV, 1-10.</p><p>se sobrevierem lembranças de riquezas ou de glória, é evidente que será a</p><p>partir destes objetos que poderá ser reconhecido aquele que nos atormenta. O</p><p>mesmo acontece com relação aos outros pensamentos: partindo dos objetos</p><p>você descobrirá quem está presente e faz essas sugestões. Não quero com isto</p><p>dizer que todas as lembranças de tais objetos venham dos demônios – pois o</p><p>próprio intelecto, por ser movido pelo homem, possui a faculdade natural de</p><p>lembrar as imagens do que existe – mas apenas aquelas que forçam contra a</p><p>natureza as partes irascíveis e concupiscentes. De fato, é por causa da</p><p>perturbação destas potências que o intelecto comete em espírito o adultério e</p><p>a violência, tornando-se incapaz de receber a imagem de Deus que lhe impôs</p><p>sua lei, se é verdade que esta claridade se manifesta à faculdade diretora [da</p><p>alma] no momento da prece com a supressão de todas as demais</p><p>representações ligadas aos objetos.</p><p>[III] 3. O homem não pode desembaraçar-se das lembranças apaixonadas</p><p>senão tomando cuidado com suas partes concupiscente e irascível, esgotando</p><p>a primeira por meio dos jejuns, das vigílias e do sono sobre leitos duros,</p><p>aprisionando a segunda através da longanimidade, da ausência de</p><p>ressentimentos e das esmolas. Com efeito, é a partir destas duas paixões que</p><p>se formam quase todos os pensamentos demoníacos que precipitam o</p><p>intelecto “na ruína e na perdição”. Ora, é impossível a alguém triunfar sobre</p><p>estas paixões se não desdenhar completamente as comidas, as riquezas e a</p><p>glória, e até seu próprio corpo, por causa daqueles que tantas vezes tentam</p><p>inflá-lo.</p><p>É assim absolutamente necessário imitar alguém que está em perigo no mar e</p><p>que atira a carga pela amurada, devido à violência dos ventos e às ondas</p><p>desenfreadas. Mas vigiem para não atirar a carga pela amurada diante dos</p><p>homens, fazendo-lhes espetáculos; pois já receberam a paga, e um outro</p><p>naufrágio, mais temível que o primeiro, seguir-se-á, com o demônio da</p><p>vanglória insuflando o vento contrário. É por isso que Nosso Senhor, nos</p><p>Evangelhos, instrui nestes termos o piloto, que é o intelecto: “Guardai-vos de</p><p>fazer vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. Do</p><p>contrário, não tereis recompensa junto de vosso Pai que está no céu</p><p>190</p><p>”; e</p><p>ainda: “Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar de</p><p>pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em</p><p>190</p><p>Mateus VI, 1.</p><p>verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa</p><p>191</p><p>”; e ele diz também:</p><p>“Quando jejuardes, não tomeis um ar triste como os hipócritas, que mostram</p><p>um semblante abatido para manifestar aos homens que jejuam. Em verdade</p><p>eu vos digo: já receberam sua recompensa.</p><p>192</p><p>”</p><p>Mas é o médico das almas que devemos observar aqui: assim como pela</p><p>esmola ele cura a parte irascível, pela prece purifica o intelecto, e pelo jejum</p><p>extenua a parte concupiscente; desta maneira, “o homem novo renova-se à</p><p>imagem de seu Criador</p><p>193</p><p>”, e nele, graças à santa impassibilidade, “não existe</p><p>mais homem nem mulher”, nele “não existe mais grego ou judeu, nem</p><p>circuncisos ou incircuncisos, nem bárbaro, nem cita, nem escravo, nem</p><p>homem livre, mas somente o Cristo, que será tudo em todos.</p><p>194</p><p>”</p><p>[IV] 4. É preciso procurar como, nas imaginações do adormecer, os demônios</p><p>deixam uma marca e uma figura em nossa faculdade diretora. Pois estas</p><p>coisas, parece, produzem-se no intelecto, seja por intermédio dos olhos</p><p>quando ele vê, seja pelo ouvido quando escuta, seja por um sentido qualquer,</p><p>ou então pela memória, que deixa marcas na faculdade diretora, não por meio</p><p>do corpo, mas colocando em movimento aquilo que ela obteve por intermédio</p><p>do corpo. Pois bem, parece-me que é colocando em movimento a memória</p><p>que os demônios deixam marcas na faculdade diretora, visto que o organismo</p><p>se mantém inativo durante o sono. Mas vejamos agora como eles colocam em</p><p>movimento a memória: não seria por intermédio das paixões? Sim,</p><p>evidentemente, porque aqueles que são puros e impassíveis não</p><p>experimentam nada disso. Entretanto existe também um movimento simples</p><p>da memória, provocado por nós ou pelas santas potências, graças ao qual,</p><p>durante nosso sono, possamos reencontrar os santos, conversarmos e</p><p>comermos com eles. Para tanto é preciso lembrar que as imagens que a alma</p><p>recebe por meio do corpo são postas em movimento pela memória, sem o</p><p>corpo; a prova disto está no fato de que freqüentemente experimentamos</p><p>essas coisas mesmo dormindo, enquanto o corpo está em repouso. Assim</p><p>como é possível lembrarmo-nos da água quer estejamos ou não com sede,</p><p>podemos lembrar do ouro com ou sem cupidez, e do mesmo modo qualquer</p><p>191</p><p>Mateus VI, 5.</p><p>192</p><p>Mateus VI, 16.</p><p>193</p><p>Cf. Colossenses III, 10.</p><p>194</p><p>Cf. Gálatas III, 28.</p><p>outra coisa. Que o intelecto encontre tais ou tais variedades de imagens será o</p><p>indício do trabalho pernicioso daqueles lá. E é preciso ainda saber o seguinte:</p><p>os demônios servem-se também de objetos exteriores para produzir uma</p><p>imagem, como por exemplo o ruído das ondas para um navegador.</p><p>5. Quando arrastada contra sua natureza, nossa irascibilidade fornece uma</p><p>enorme ajuda aos demônios para que atinjam seu objetivo, e se presta toda</p><p>útil às suas odiosas maquinações. É por isso que, dia e noite, nenhum deles</p><p>deixa um instante de perturbá-la; e quando eles a vêem enlaçada com a</p><p>doçura, apressam-se a encontrar justos pretextos para separá-la o mais</p><p>depressa possível, a fim de que, colocando-se em prontidão, ela sirva aos seus</p><p>pensamentos ferozes. Também é preciso não provocá-la sob nenhum pretexto,</p><p>justo ou injusto, e não atirar um funesto punhal contra os autores das</p><p>sugestões. Conheço muitos que agem assim freqüentemente e se inflamam</p><p>mais do que o necessário pelas razões mais fúteis.</p><p>[V] Em função de que, diga-me, “você se atira tão depressa numa discussão”,</p><p>se é verdade que você desprezou alimentos, riquezas e glória? E porque você</p><p>alimenta seu cão, se faz profissão de nada possuir? Se ele late e ataca as</p><p>pessoas, é evidente que você possui alguns bens no interior, que ele deve</p><p>guardar. De minha parte, estou convencido de que um tal homem está longe</p><p>da oração pura, sabendo que a irascibilidade é um flagelo para esta oração. E</p><p>é de espantar que ele esqueça assim os santos, como David que clama: “Põe</p><p>fim à tua cólera e renuncie à irascibilidade</p><p>195</p><p>”, como o Eclesiastes que</p><p>proclama: “Afasta a cólera de teu coração e a malícia da tua carne</p><p>196</p><p>”, e como</p><p>o Apóstolo, que prescreve “erguer as mãos em todo lugar sem cóleras nem</p><p>disputas</p><p>197</p><p>”. Porque não nos instruirmos pelo antigo costume dos homens,</p><p>que consistia em expulsar da casa os cachorros no momento da oração? Isto</p><p>significa em termos velados que a irascibilidade não deve estar presente entre</p><p>aqueles que oram. Vejam ainda: “A cólera dos dragões é seu vinho</p><p>198</p><p>”; ora,</p><p>assim os Nazireus abstinham-se de vinho. Acrescento que um sábio pagão</p><p>declarou que a vesícula biliar e a parte lombar não eram comestíveis pelos</p><p>deuses, sem saber, penso eu, o que dizia. Para mim, são símbolos, a primeira</p><p>a</p><p>graça batismal, que é preciso reencontrar e libertar das profundezas do nosso</p><p>ser. Assim poderemos descobrir “a graça perfeita do santíssimo Espírito, que</p><p>o Senhor, pelo batismo, espalhou em nossos corações como uma semente</p><p>17</p><p>Máximo o Confessor, Ambigua, PG 91,1081</p><p>18</p><p>PG 91, 713.</p><p>19</p><p>Cf. Olivier Clement, Dialogue avec le Patriarche Athénagoras, Paris 1976, pg. 149.</p><p>divina</p><p>20</p><p>”. “Raiz de nossa ressurreição, o batismo nos faz morrer para nossa</p><p>própria morte e ressuscitar com Cristo”. Ele inaugura um processo por meio</p><p>do qual esta morte-ressurreição torna-se a própria “cifra” de nossa existência,</p><p>transformando nossas mortes parciais, tanto as do destino como as da ascese,</p><p>em indispensáveis rupturas de nível. A Filocalia fala bastante menos da</p><p>eucaristia, mas gosta de citar uma palavra atribuída a são João Crisóstomo:</p><p>“O coração absorve o Senhor e o Senhor absorve o coração.”</p><p>Se a via hesiquiasta recusa energicamente toda imaginação, tida como</p><p>ilusória, o homem em oração acha-se muitas vezes diante de um ícone e</p><p>chega a acontecer que ele sinta brotar dali a chama que abrasa seu coração. A</p><p>“guarda dos mandamentos” não é assim a tensão moralista que não pode levar</p><p>senão ao aprofundamento da ferida que se quer curar (a derrota, por exemplo,</p><p>torna-se glutoneria, depois esta se torna vampirização das almas...), mas ela</p><p>define uma relação: a meditação das Bem-aventuranças e o ícone atingem</p><p>nosso centro mais central, o coração, a partir do qual a vida de Cristo invade</p><p>todo nosso ser e, se soubermos descartar as peles mortas, o transforma “desde</p><p>dentro”. É assim que, no século VI, no deserto de Gaza, o “grande ancião”</p><p>Barsanulfo estabelece um “contrato” com seu discípulo Doroteu que era</p><p>atormentado pelo pecado da carne: que Doroteu não mais se preocupasse com</p><p>isto, pois era uma falta que Barsanulfo tomava para si, mas que ele reforçasse</p><p>sua relação com Cristo pelo exercício da humildade, da caridade, da prece</p><p>confiante, do humilde serviço ao próximo. Assim foi feito, e o coração do</p><p>discípulo se transformou, e com ele, pouco a pouco, toda sua vida. É por isso</p><p>que a Filocalia não se detém jamais nas observâncias, nas práticas, na “obra</p><p>exterior”, mas insiste, antes de mais nada, no despertar do “homem interior”,</p><p>na tomada de consciência do “reino de Deus em vocês, o tesouro escondido</p><p>no campo do coração</p><p>21</p><p>”.</p><p>IV</p><p>AS PAIXÕES</p><p>20</p><p>Prefácio de Nicodemo o Hagiorita.</p><p>21</p><p>Prefácio de Nicodemo o Hagiorita.</p><p>A primeira etapa da vida espiritual é a “prática” (práxis) que visa liberar o</p><p>homem das paixões para torná-lo capaz de amar.</p><p>Para a Filocalia, a paixão fundamental é a morte. Imagem de Deus, o</p><p>homem deseja a eternidade, mas paradoxalmente sofre a morte. “A angústia</p><p>oculta da morte”, sua recusa (e seu fascínio), constitui a primeira a paixão que</p><p>todas as demais não fazem senão valorar. O homem busca o esquecimento, ou</p><p>a divinização ilusória, na dominação, na fusão, no ódio. Ele tem necessidade</p><p>de escravos (ou de sê-lo) e de inimigos (até odiar a si mesmo). São Paulo</p><p>distingue “a tristeza pela morte” da “tristeza por Deus”. Pelo esquecimento ou</p><p>pela ignorância desta, o homem, mordido pela “tristeza pela morte”, refugia-</p><p>se nas paixões. Existe uma grandeza das paixões, que Péguy celebrava</p><p>quando dizia que somente os pecadores mais trágicos poderiam “banhar-se na</p><p>graça”. A paixão é marcada com o selo do infinito, ela exprime o desejo de</p><p>infinito de nossa alma. Simon Frank notava que “em Dostoievski, o mal tem</p><p>sempre uma origem espiritual... A revolta, o orgulho, a zombaria, a crueldade,</p><p>o ódio, a sensualidade (...) provêm para ele da tendência que a alma tem de</p><p>vingar sua santidade profunda ultrajada e humilhada, a afirmar os direitos</p><p>desta, nem que de uma maneira tola e perversa</p><p>22</p><p>.”</p><p>Seja como for, entretanto, o objeto da paixão não pode corresponder a este</p><p>desejo, a esta santidade secreta. Com efeito, ele próprio permanece</p><p>contingente: absolutizá-lo, equivale a ignorar sua humilde verdade e</p><p>finalmente destruí-lo. “Eu amei de mais, por isso matei”, diz o amante</p><p>assassino.</p><p>Ávido de infinito, ignorante do infinito, o homem se ama e se odeia</p><p>infinitamente, ele se pretende soberano e se descobre escravo. Ele procura o</p><p>absoluto e encontra o nada. A paixão parece exaltá-lo, ela se estende como</p><p>uma doença enganadora e, quando ela se vai, não resta mais do que amargura.</p><p>É um estranho “inflar” e “desinflar” do nada, dizem os ascetas. Sede jamais</p><p>estancada, ela atira o homem nos ciclos do paroxismo e da depressão, do</p><p>prazer e da dor, da tensão e do desânimo. Ela perverte o intelecto e os</p><p>sentidos que só querem conhecer aquilo que lhe corresponde. É uma droga e</p><p>o intelecto diante dela oscila entre a revolta (cada vez menos) e a justificativa</p><p>22</p><p>La crise de l'humanisme du point de vue de Dostoievski, Hochland 28, ano X, pg.</p><p>295</p><p>irracional e encarniçada (cada vez mais).</p><p>A inteligência então se dispersa, as relações entre os homens se desintegram.</p><p>O espírito dissocia-se do “coração”, e o coração profundo envolve-se em</p><p>trevas e lodo, um lodo que endurece de sorte que o coração se torna de pedra.</p><p>O esquecimento, um esquecimento metafísico reina, como sublinhou Marcos</p><p>o Asceta</p><p>23</p><p>: o homem se torna insensível, ele já não sabe amar nem admirar,</p><p>por toda parte ele não vê senão cio e violência; a humanidade, diz são</p><p>Máximo, “divide-se em incontáveis fragmentos e nós, que entretanto</p><p>constituímos uma única natureza, devoramos uns aos outros como serpentes</p><p>furiosas</p><p>24</p><p>”. “Quem não desejou a morte de seu pai?”, pergunta Dostoievski</p><p>em Os irmãos Karamazov. A paixão desemboca assim na pergunta</p><p>desesperada: “Onde está o bem?”, ao constante desânimo e desgosto: “Tudo</p><p>me é igual”. No limite surge a acídia, a morna desesperança que se apodera</p><p>do homem espiritual, talvez porque este tenha se orgulhado de sua ascese,</p><p>talvez porque ele quis ver (a luz do Tabor, por exemplo, esquecendo-se que</p><p>ela irradia de um rosto).</p><p>A Filocalia enumera, numa lista clássica desde as origens do monaquismo,</p><p>sete ou oito paixões: a gula, a cupidez, a avareza, a cólera (que engloba a</p><p>raiva e a inveja), a tristeza (pela morte), a preguiça (como pesandez</p><p>espiritual), a vanglória e o orgulho.</p><p>Dentre essas paixões, duas parecem ser as “mães” fecundas das demais: a</p><p>cupidez, que permanece mais dentro dos limites do corpo, e o orgulho, no</p><p>espírito. Assim estabelecem-se dois circuitos, que finalmente se identificam.</p><p>A gula aparenta-se à cupidez, que é uma gula dos corpos, e ambas</p><p>desembocam na avareza: no primeiro grau para saciar-se mais profundamente</p><p>substituindo o ser pelo haver; assim vem a tristeza (pois o ter é sempre</p><p>ilusório), a inveja (o “desejo mimético” analisado por René Girard), a cólera,</p><p>a violência contra o outro, por exemplo contra aquele que adquiriu primeiro</p><p>um bem que se quer ter.</p><p>O orgulho, esta centralidade fechada e possessiva, suscita a vanglória, um</p><p>desfile de riquezas e de seduções, provoca a cólera e o despeito quando não se</p><p>23</p><p>Carta a Nicolas.</p><p>24</p><p>Questões a Thalassius, PG 90,256.</p><p>obtém a admiração incondicional dos outros, etc.</p><p>Na realidade, a cupidez e o orgulho exprimem o mesmo cativeiro</p><p>fundamental, o enrolamento do mundo ao redor do ego, esta filáucia de que</p><p>fala Máximo o Confessor para dizer que o homem tende a se tornar seu</p><p>próprio ídolo</p><p>25</p><p>.</p><p>Muitos autores da Filocalia analisaram com sutileza o nascimento, o</p><p>desenvolvimento e o enraizamento de uma paixão</p><p>26</p><p>. O “ataque” ou</p><p>“sugestão” designa a aparição na consciência de uma obsessão em estado</p><p>germinativo. A “cumplicidade” mostra o intelecto que brinca, depois se</p><p>enreda e a seguir começa a justificar a paixão</p><p>195</p><p>Salmo XXXVI, 8.</p><p>196</p><p>Eclesiastes XI, 10.</p><p>197</p><p>1 Timóteo II, 28.</p><p>198</p><p>Deuteronômio XXXII, 33.</p><p>da cólera e a segunda da concupiscência irrazoável.</p><p>Quanto ao fato de que não devemos nos preocupar com as vestes nem com a</p><p>alimentação, penso que é supérfluo escrever a respeito, porque o próprio</p><p>Salvador, nos Evangelhos, profere esta proibição: “Não vos preocupeis</p><p>consigo mesmos, com o que comereis ou bebereis, ou o que vestireis</p><p>199</p><p>”. Pois</p><p>é isto o que fazem os pagãos e os descrentes que rejeitam a providência do</p><p>Mestre e renegam o Criador, mas esta atitude é inteiramente estranha aos</p><p>cristãos, uma vez que eles crêem que mesmo “os dois pardais que se vendem</p><p>um centavo” estão sob a administração dos santos anjo. Entretanto os</p><p>demônios têm também o hábito de enviar os pensamentos impuros da</p><p>preocupação, para que Jesus se afaste devido à multidão de representações</p><p>que ocupam o lugar do espírito e para que sua palavra se torne estéril,</p><p>sufocada pelos espinhos da preocupação</p><p>200</p><p>.</p><p>[VI] Portanto, depois de nos havermos desembaraçado dos pensamentos que</p><p>provêm das preocupações, “coloquemos nossas preocupações no Senhor</p><p>201</p><p>”,</p><p>contentando-nos com o que temos no presente</p><p>202</p><p>; e, adotando um modo de</p><p>vida e vestimentas pobres, desnudemos em pleno dia os autores da vanglória.</p><p>Se alguém pensa faltar à decência pela pobreza de suas vestes, que ele</p><p>considere São Paulo que “no frio e na nudez</p><p>203</p><p>” alcançou a coroa da</p><p>justiça</p><p>204</p><p>. E como o Apóstolo chamou de teatro e de estádio o mundo em que</p><p>vivemos</p><p>205</p><p>, vejamos se é possível, vestido com os pensamentos da</p><p>preocupação, correr “pelo prêmio do chamado do alto trazido por Cristo</p><p>206</p><p>”</p><p>ou lutar contra “os principados, as potestades e as dominações destas</p><p>trevas</p><p>207</p><p>”. Da minha parte não sei nada disto, uma vez que fui instruído pelo</p><p>que se passa na realidade sensível: nela, com efeito, nosso lutador se verá</p><p>atrapalhado por sua túnica e será facilmente batido. É o que acontecerá</p><p>199</p><p>Mateus VI, 25.</p><p>200</p><p>Cf. Mateus XIII, 22.</p><p>201</p><p>1 Pedro V, 7; cit. Salmo LIV, 22.</p><p>202</p><p>Cf. Hebreus XIII, 5.</p><p>203</p><p>Cf. 2 Coríntios I, 27.</p><p>204</p><p>Cf. 2 Timóteo IV, 8.</p><p>205</p><p>Cf. 1 Coríntios IV, 9; 1 Coríntios IX, 24.</p><p>206</p><p>Cf. Filipenses III, 14.</p><p>207</p><p>Cf. Efésios VI, 12.</p><p>também com o intelecto, sob os efeitos dos pensamentos preocupados, se é</p><p>verdadeira a palavra que diz que o intelecto é firmemente ligado ao seu</p><p>tesouro: “Aonde estiver seu tesouro, ali estará seu coração</p><p>208</p><p>.</p><p>[VII] 6. Dentre os pensamentos, há os que cortam e há os que são cortados: os</p><p>maus cortam os bons e são cortados por eles. Sendo assim, o Espírito Santo</p><p>permanece atento ao pensamento que primeiro foi colocado, e é a partir dele</p><p>que ele nos condena ou aprova. O que quero dizer é o seguinte: eu tenho um</p><p>pensamento de hospitalidade e o tenho por causa do Senhor, mas ele é cortado</p><p>quando o tentador chega e sugere que eu seja hospitaleiro pela glória que isto</p><p>traz. Outro exemplo: eu tenho um pensamento de hospitalidade tendo em</p><p>vista mostrar-me aos homens, mas ele também é cortado, quando se introduz</p><p>um pensamento melhor que orienta minha virtude para o Senhor</p><p>constrangendo-me a não agir assim em função dos homens. Se assim, por</p><p>nossos atos, a partir daí permanecermos com nossos primeiros pensamentos,</p><p>ainda que postos à prova pelos segundos, receberemos a paga pelos</p><p>pensamentos colocados antes, porque, por sermos homens, e por lutarmos</p><p>contra os demônios, não termos a força para guardar incólume um</p><p>pensamento reto nem, inversamente, para mantermos um maus pensamento</p><p>sem tentação, por termos em nós as sementes da virtude. Mas se um dos</p><p>pensamentos que cortam se prolonga, ele se instala no lugar do que foi</p><p>cortado, e será segundo este segundo pensamento que daí em diante o homem</p><p>receberá o impulso que o fará agir.</p><p>7. Após uma longa observação, aprendemos a conhecer a diferença que existe</p><p>entre os pensamentos angélicos, os pensamentos humanos e aqueles que</p><p>provêm dos demônios. Os dos anjos, para começar, perscrutam a natureza das</p><p>coisas e buscam suas razões espirituais. Por exemplo: porque o ouro foi</p><p>criado, porque ele é terroso e está disseminado nas profundezas do solo, e</p><p>porque ele não é descoberto sem muito esforço e pena; e como, uma vez</p><p>descoberto, ele é lavado na água, colocado no fogo, e assim posto nas mãos</p><p>dos artesãos que farão o candelabro da Tenda, o queimador de perfumes, o</p><p>incensório, as taças</p><p>209</p><p>nas quais, pela graça de nosso Salvador, já não é um rei</p><p>da Babilônia que bebe</p><p>210</p><p>, mas Cleófas, que traz um coração ardente destes</p><p>208</p><p>Mateus VI, 21.</p><p>209</p><p>Cf. Êxodo XXXV, 4 ss.</p><p>210</p><p>Cf. Daniel V, 2-3.</p><p>mistérios</p><p>211</p><p>. O pensamento demoníaco não sabe nem quer saber de nada</p><p>disto, mas sugere sem a menor vergonha a simples aquisição do ouro sensível</p><p>e prediz o desfrute e a glória que resultarão disto. Quanto ao pensamento</p><p>humano, ele tanto visa a aquisição quanto perscruta o simbolismo do ouro,</p><p>mas introduz no espírito apenas a forma simples do ouro, fora de qualquer</p><p>paixão de cupidez. O mesmo vale para outros objetos, exercendo-se</p><p>mentalmente a mesma regra.</p><p>[VIII] 8. Existe um demônio a que chamamos de “vagabundo” e que se</p><p>aproxima dos irmãos sobretudo nos começos da aurora; ele passeia o intelecto</p><p>de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, de casa em casa; este é levado</p><p>assim a simples encontros, depois chega aos conhecidos, tagarela longamente,</p><p>e deste modo arruina, no contato destes encontros, seu próprio estado,</p><p>distanciando-se insensivelmente da ciência de Deus e da virtude, esquecendo-</p><p>se até de sua profissão. É preciso assim que o anacoreta observe este</p><p>demônio: de onde ele parte e aonde ele chega, pois não é ao acaso nem</p><p>aventureiramente que ele cumpre este longo circuito, mas é com a intenção de</p><p>arruinar o estado do anacoreta que ele age desta maneira, para que o intelecto,</p><p>inflamado por tudo isso e embevecido por esses encontros, caia rapidamente</p><p>sob o demônio da fornicação, ou sob o da cólera, ou da tristeza, que mais do</p><p>que todos prejudicam a clareza de seu estado. Mas nós, que temos como</p><p>objetivo conhecer exatamente a engenhosidade deste demônio, não lhe</p><p>dirigimos a palavra em seguida nem lhe revelamos o que se passa: como ele</p><p>produz os encontros em pensamento e de que modo ele arrasta</p><p>insensivelmente o intelecto à morte, pois ele fugirá para longe: ele não admite</p><p>ser visto enquanto faz estas coisas; e assim não saberemos nada daquilo que</p><p>nos propomos a aprender. Mas deixemo-lo, dia após dia, chegar até o fim do</p><p>seu jogo, para que, depois de termos aprendido a conhecer em detalhe suas</p><p>maquinações, o coloquemos em fuga, desmascarando-o com uma palavra.</p><p>[IX] Mas, como acontece de no momento da tentação o intelecto achar-se</p><p>confundido e não conseguir perceber com precisão o que se passa, eis o que</p><p>você deve fazer após a retirada do demônio: sente-se e rememore para si</p><p>mesmo os eventos que aconteceram, de onde você partiu e aonde você</p><p>chegou, em que ponto você foi tomado pelo espírito de fornicação, ou de</p><p>cólera, ou de tristeza, e como, ainda, aconteceu o que aconteceu; observe</p><p>211</p><p>Cf. Lucas XXIV, 32.</p><p>estes detalhes e entregue-os à memória, a fim de poder desmascará-lo quando</p><p>ele se aproximar; revele a ele o lugar secreto que ele guarda, e também que</p><p>você não o seguirá mais até ali. Se você quiser enlouquece-lo de furor,</p><p>desmascare-o assim que ele se apresente e, numa palavra, denuncie o</p><p>primeiro lugar por onde ele entrou, e o segundo, e o terceiro: como ele não</p><p>suporta a humilhação, isto será especialmente penoso para ele.</p><p>A fuga do pensamento para longe de você será a prova de que você lhe dirigiu</p><p>a palavra correta, pois é impossível a este demônio permanecer depois de</p><p>ter</p><p>sido abertamente desmascarado. À retirada deste demônio sucede um sono</p><p>pesado, uma espécie de morte acompanhada de um grande esfriamento das</p><p>pálpebras e bocejos sem fim, costas pesadas e inchadas: todos fenômenos</p><p>que, graças a uma intensa prece, o Espírito Santo dissipará.</p><p>[X] 9. A aversão que apresentamos aos demônios contribui de modo especial</p><p>para a nossa salvação e favorece a prática da virtude; mas não temos a força</p><p>para nutri-la em nós como uma espécie de bom embrião, porque os espíritos</p><p>amigos do prazer a destróem e convidam a alma a voltar à sua amizade</p><p>habitual; a esta amizade – ou melhor, esta gangrena dificilmente curável – o</p><p>médico das almas cura com a solidão moral: de fato, ele permite que nós</p><p>padeçamos certo terror com isto noite e dia, para que a alma retorne depressa</p><p>à aversão primitiva, aprendendo com Davi a dizer ao Senhor: “Eu os odeio</p><p>com uma aversão perfeita, eles se tornaram inimigos para mim.</p><p>212</p><p>” Pois ele</p><p>odiava seus inimigos com perfeita aversão, aquela que não peca nem em ato</p><p>nem em pensamento, e que é o maior sinal da primeira impassibilidade.</p><p>[XI] 10. Quanto ao demônio que torna a alma insensível, preciso falar dele?</p><p>Pois, de minha parte, temo até escrever a seu respeito: como a alma sai de seu</p><p>próprio estado quando ele chega e rejeita o temor a Deus e a piedade; ela</p><p>deixa de considerar o pecado como pecado, não mais estima a transgressão</p><p>como transgressão; o castigo e o julgamento eternos são lembrados por ela</p><p>como simples palavras e a alma “se ri”, realmente, “do cismo que abrasará</p><p>tudo”. Ela se diz temente a Deus, mas ignora o que ele prescreve; você</p><p>arranha o peito enquanto ela se volta para o pecado, mas ela permanece</p><p>insensível; você argumenta a partir das Escrituras, e ela permanece insensível;</p><p>você lhe expõe a culpa que vem dos homens, e ela não se dá conta da</p><p>212</p><p>Salmo CXXXVIII, 22.</p><p>vergonha que ela causa entre os irmãos; esta alma está privada de</p><p>inteligência, como um porco com os olhos vendados que destrói seu</p><p>chiqueiro. Este demônio é atraído por persistentes pensamentos de vanglória;</p><p>é dele que foi dito: “Se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma criatura</p><p>se salvaria</p><p>213</p><p>”. E, com efeito, ele se encontra entre aqueles que raramente</p><p>visitam os irmãos, e a razão é evidente: diante do sofrimento de outros que</p><p>são acossados por doenças, ou que vegetam nas prisões, ou sucumbem a uma</p><p>morte súbita, este demônio se põe em fuga, pois a alma é pouco a pouco</p><p>penetrada pela compunção e acede à compaixão quando a cegueira provocada</p><p>por este demônio se dissipa. Tudo isto nos falta, por causa do deserto e</p><p>porque os doentes são raros entre nós.</p><p>[XII] Foi principalmente este demônio que o Senhor quis por em fuga nos</p><p>Evangelhos, quando ele prescreveu ver os doentes e visitar os que estão na</p><p>prisão: “Eu estava doente, disse ele, e vocês vieram me visitar, estava preso e</p><p>vieram até mim</p><p>214</p><p>”. Mas é preciso também saber o seguinte: se um dos</p><p>anacoretas que caiu diante deste demônio não concebeu pensamentos de</p><p>fornicação, ou não deixou sua casa sob os efeitos da acídia, é porque este</p><p>homem recebeu a castidade e a perseverança vindas do céu; bem-aventurado</p><p>é ele por possuir uma tal impassibilidade! Quanto aos que fazem votos de</p><p>piedade e escolhem habitar com os seculares, que se acautelem contra este</p><p>demônio. Quanto a mim, eu ruborizo diante dos homens só de falar dele ou de</p><p>escrever daqui para frente a seu respeito.</p><p>[XIII] 11. Todos os demônios ensinam a alma a gostar do prazer: apenas o</p><p>demônio da tristeza não quer fazê-lo, e ele chega até a destruir os</p><p>pensamentos dos outros que estão ali, destroçando e secando todo o prazer da</p><p>alma por meio da tristeza, se é verdade que “os ossos do homem triste</p><p>secam</p><p>215</p><p>”. E se ele combate moderadamente, ele torna o anacoreta experiente,</p><p>pois o convence a não se aproximar dos bens deste mundo e a evitar todo</p><p>prazer; mas se ele se implanta daí para frente, ele engendra pensamentos que</p><p>aconselham a alma a evadir-se, ou que a obrigam a fugir para longe. É o que o</p><p>santo Jó sofreu e meditou, quando foi atormentado por este demônio: “Se eu</p><p>pudesse, disse ele, dar a mão a mim mesmo, ou ao menos pedir a um outro</p><p>213</p><p>Mateus XXIV, 22.</p><p>214</p><p>Mateus XXV, 36.</p><p>215</p><p>Cf. Provérbios XVII, 22.</p><p>que o fizesse por mim</p><p>216</p><p>.” Este demônio é simbolizado pela víbora, este</p><p>animal cuja substância natural, ministrada em dose suportável ao homem,</p><p>destrói o veneno dos outros animais, mas se tomado em estado puro destrói o</p><p>próprio ser vivo. É a este demônio que Paulo entregou o pecador de Corinto;</p><p>é por isso que ele se apressou a escrever novamente aos Coríntios estas</p><p>palavras: “Assim deveis agora perdoar-lhe e consolá-lo para que não sucumba</p><p>por demasiada tristeza.</p><p>217</p><p>” Mas ele sabia que este espírito que aflige os</p><p>homens pode também trazer-lhes um bom arrependimento: é a razão pela qual</p><p>são João Batista chamava aos que são picados por este demônio e se refugiam</p><p>junto a Deus de “raça de víboras”, dizendo-lhes: “Ao ver, porém, que muitos</p><p>dos fariseus e dos saduceus vinham ao seu batismo, disse-lhes: Raça de</p><p>víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera vindoura? Dai, pois, frutos de</p><p>verdadeira penitência. Não digais dentro de vós: Nós temos a Abraão por pai!</p><p>Pois eu vos digo: Deus é poderoso para suscitar destas pedras filhos a</p><p>Abraão.</p><p>218</p><p>” Mas todo homem que, a exemplo de Abraão, deixou sua terra e</p><p>sua família</p><p>219</p><p>, este se torna mais forte do que este demônio.</p><p>[XIV] 12. Quem dominou a irascibilidade dominou os demônios, mas quem é</p><p>escravo deles é totalmente estranho à vida monástica e está fora dos caminhos</p><p>de nosso Salvador, pois o próprio Senhor disse “ensinar o caminho aos</p><p>mansos</p><p>220</p><p>”. Assim o intelecto dos anacoretas se torna difícil de capturar,</p><p>quando foge pelas planícies da doçura. Pois quase nenhum virtude é tão</p><p>temida pelos demônios como a doçura; é ela que o grande Moisés possuía, ele</p><p>que foi chamado de “o mais doce dos homens</p><p>221</p><p>”; e o santo Davi declarou ser</p><p>digno da lembrança de Deus, ao dizer: “Lembre-se de Davi e de toda a sua</p><p>mansidão.</p><p>222</p><p>” Por outro lado, o próprio Salvador nos ordenou sermos</p><p>imitadores desta doçura, quando ele disse: “Tomai meu jugo sobre vós e</p><p>recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração e achareis</p><p>o repouso para as vossas almas.</p><p>223</p><p>” E se alguém se abstém de comidas e</p><p>216</p><p>Jó XXX, 24.</p><p>217</p><p>2 Coríntios II, 7-8.</p><p>218</p><p>Mateus III, 7-9.</p><p>219</p><p>Cf. Gênesis XII, 1.</p><p>220</p><p>Salmo XXIV, 9.</p><p>221</p><p>Números XII, 3.</p><p>222</p><p>Salmo CXXXI, 1.</p><p>223</p><p>Mateus XI, 29.</p><p>bebidas, mas excita sua parte irascível com maus pensamentos, este se parece</p><p>com um barco que se faz ao largo tendo um demônio como piloto. Assim é</p><p>preciso vigiar, tanto quanto possível, o cão que mora em nós e ensiná-lo a não</p><p>atacar senão os lobos e a não devorar as ovelhas, mostrando toda a doçura</p><p>para com todos os homens.</p><p>[XV] 13. Único dentre os pensamentos, o da vanglória possui muita matéria;</p><p>ele abarca quase toda a terra habitada e abre as portas a todos os demônios,</p><p>como o faria um reles traidor para uma cidade. Ele também humilha</p><p>particularmente o intelecto do anacoreta, enchendo-o com uma multitude de</p><p>palavras e de objetos e corrompendo suas orações, graças às quais ele se</p><p>esforça por curar todas as feridas de sua alma. É este pensamento que faz</p><p>crescer todos os demônios que haviam sido destruídos, e é graças a ele que</p><p>eles todos encontram um acesso para as almas, tornando realmente o “novo</p><p>estado pior do que o primeiro</p><p>224</p><p>”. Deste pensamento nasce também o do</p><p>orgulho, que precipitou dos céus sobre a terra “o selo da semelhança e a coroa</p><p>da beleza”. “Vamos! Deixemos sem tardança este lugar</p><p>225</p><p>”, de medo que</p><p>abandonemos nossa vida</p><p>a outros e nossa existência a pessoas sem piedade.</p><p>Este demônio é afugentado por uma prece intensa e pela recusa em fazer ou</p><p>dizer voluntariamente qualquer coisa que possa contribuir para a glória</p><p>maldita.</p><p>14. Quando o intelecto dos anacoretas adquiriu um início de impassibilidade,</p><p>então ele adquire o cavalo da vanglória e rapidamente desfila pelas cidades,</p><p>locupletando-se com os elogios, vinho puro trazido pela glória. Por um</p><p>desígnio providencial, o espírito da fornicação que vem ao seu encontro e que</p><p>o encerra em alguma porcaria o ensina a não deixar seu leito antes de haver</p><p>recuperado a saúde perfeita, e a não imitar os doentes indisciplinados que,</p><p>mesmo carregando em si as seqüelas da doença, metem-se em caminhadas e</p><p>banhos inoportunos e têm recaídas. É por isso que, permanecendo sentados,</p><p>estejamos mais atentos a nós mesmos; assim, progredindo na virtude, seremos</p><p>difíceis de sermos arrastados pelo mal; renovando-nos na ciência</p><p>226</p><p>,</p><p>receberemos por outro lado uma abundância de contemplações variadas; e</p><p>também elevando-nos pela prece, receberemos uma visão mais clara da luz de</p><p>224</p><p>Cf. Mateus XII, 45.</p><p>225</p><p>Provérbios V, 9.</p><p>226</p><p>Cf. Colossenses III, 10.</p><p>nosso Salvador.</p><p>[XVI] 15. Não posso escrever sobre todas as maquinações dos demônios e</p><p>tenho vergonha de enumerar seus estratagemas, temendo pelos meus leitores</p><p>eventuais mais simplórios. Escutem no entanto como é a engenhosidade do</p><p>demônio da fornicação. Quando alguém adquiriu a impassibilidade da parte</p><p>concupiscente e fez com que os pensamentos vergonhosos sejam doravante</p><p>um pouco esfriados, este demônio introduz homens e mulheres que se</p><p>divertem juntos, e torna o anacoreta espectador de ações e atitudes</p><p>condenáveis. Mas esta tentação não é das que mais duram, pois uma oração</p><p>intensa e um regime estrito unido às vigílias e ao exercício das contemplações</p><p>espirituais a expulsam “como uma nuvem sem água”. Às vezes, ele ataca a</p><p>carne e faz o anacoreta ceder a um abrasamento animal. O maligno demônio</p><p>inventa ainda mil outros estratagemas que não precisamos publicar e confiar à</p><p>escrita.</p><p>Contra tais pensamentos é extremamente eficaz a ebulição da parte irascível</p><p>dirigida contra o demônio, parte que ele teme mais do que tudo quando ela é</p><p>perturbada a propósito de pensamentos e destrói suas representações. É isto</p><p>que significa: “Encolerize-se e não peque mais.</p><p>227</p><p>” Aplicado à alma, é um</p><p>remédio útil nas tentações. Mas o demônio da cólera também sabe imitar este</p><p>outro: ele também inventa parentes, amigos e conhecidos maltratados por</p><p>celerados, e induz a parte irascível do anacoreta contra aqueles que lhe</p><p>aparecem em pensamento; é preciso estar atento a isto e arrancar rapidamente</p><p>do intelecto tais imagens, de medo que, ligando-se a elas, ele não se torne na</p><p>hora da prece um “tição fumegante”. Os irascíveis são vítimas destas</p><p>tentações, pois estão acima de tudo sujeitos às inflamações da cólera; eles</p><p>estão longe da prece pura e da ciência de Cristo nosso Salvador.</p><p>[XVII] 16. As representações deste século foram confiadas pelo Senhor ao</p><p>homem como ovelhas a um bom pastor, pois foi dito: “Ele deu ao mundo o</p><p>seu coração</p><p>228</p><p>”; para ajudá-lo, ele acrescentou-lhe a parte irascível e a parte</p><p>concupiscente, a fim de que pela primeira ele afugente as representações que</p><p>são os lobos, e pela segunda ele cuide das ovelhas, ainda que as chuvas e os</p><p>ventos se abatam sobre ele. Ele lhe deu também “um pasto”, para que as</p><p>227</p><p>Salmo IV, 5.</p><p>228</p><p>Jeremias XXXI, 33.</p><p>ovelhas possam pastar, “um lugar de verdes pastagens e uma fonte de águas</p><p>refrescantes</p><p>229</p><p>”, “uma harpa e uma cítara”, “um bastão e um cajado”, para</p><p>que ele retire do rebanho alimento e vestes para que ele “pise as forrações nas</p><p>montanhas”, pois foi dito: “Quem apascenta um rebanho e não se alimenta de</p><p>seu leite?</p><p>230</p><p>” É preciso assim que o anacoreta guarde noite e dia este pequeno</p><p>rebanho, de medo que uma das representações se torne presa das bestas</p><p>selvagens ou caia nas mãos de algum ladrão, e se qualquer coisa semelhante</p><p>acontecer neste “valezinho florido”, ele deve sem tardança arrancá-la “da</p><p>goela do leão e do urso</p><p>231</p><p>”. A representação concernente a um irmão se torna</p><p>presa dos animais selvagens, se a fazemos pastar em nós com antipatia; a que</p><p>concerne à mulher, se a nutrimos com concupiscência vergonhosa; a do ouro</p><p>e da prata, se ela for guardada com cupidez; e as representações dos santos</p><p>carismas, se a fizermos passear no espírito em companhia da vanglória. O</p><p>mesmo acontecerá com as outras representações, quando se tornam vítimas</p><p>das paixões.</p><p>[XVIII] O anacoreta não deve apenas vigiá-las de dia, mas ainda guardá-las à</p><p>noite velando, pois ele pode também perder seu bem em imaginações</p><p>condenáveis e más. É o que disse o santo Jacó: “Não lhe apresentei os</p><p>animais despedaçados, mas eu os compensava com os meus. Você me pedia</p><p>contas do que era roubado de dia e de noite. De dia, eu era devorado pelo</p><p>calor, e de noite pelo frio, e não conseguia pegar no sono.</p><p>232</p><p>” Mas se, sob o</p><p>efeito da fadiga, nos sobrevier uma certa acídia, refugiemo-nos por um</p><p>momento sobre o rochedo da ciência, tomemos nossa harpa e toquemos com</p><p>as virtudes as cordas da ciência; depois voltemos a apascentar nossa ovelhas</p><p>ao pé do monte Sinai, a fim de que o Deus de nossos pais nos chame, a nós</p><p>também, do interior do arbusto</p><p>233</p><p>e nos faça, a nós também, a graça de</p><p>conhecer as razões “dos sinais e dos prodígios”.</p><p>17. Pela contemplação de todos os mundos, Cristo devolve à vida a natureza</p><p>racional que o pecado havia levado à morte. Mas a alma desta natureza morta</p><p>pela morte de Cristo recebe do Pai a vida pelo conhecimento de si mesmo. É</p><p>229</p><p>Cf. Salmo XXII, 2.</p><p>230</p><p>1 Coríntios IX, 7.</p><p>231</p><p>Cf 1 Samuel XVII, 34 ss.</p><p>232</p><p>Gênesis XXXI, 39-40.</p><p>233</p><p>Cf. Êxodo III, 1-4.</p><p>o que diz são Paulo: “Se nós morremos com Cristo, acreditamos que também</p><p>viveremos com ele</p><p>234</p><p>”.</p><p>18. Quando o intelecto, depois de despir-se do velho homem, reveste-se</p><p>daquele da graça, então ele verá seu próprio estado no momento da oração</p><p>semelhante à safira ou a uma cor celeste, aquilo que a Escritura denomina o</p><p>Lugar de Deus, que foi visto pelos antigos sobre o monte Sinai</p><p>235</p><p>.</p><p>[XXI] 19. Dentre os demônios impuros, alguns tentam o homem enquanto</p><p>homem, enquanto outros perturbam o homem enquanto animal não dotado de</p><p>razão. Quando são os primeiros que nos visitam, eles jogam em nós</p><p>representações de vanglória, de orgulho, de inveja ou de maledicência, todas</p><p>coisas que não atingem os seres desprovidos de razão. Quando são os</p><p>segundos que se aproximam, eles arrastam nossa irascibilidade e nossa</p><p>concupiscência num movimento contrário à sua natureza; pois temos estas</p><p>partes passionais em comum com os animais sem razão, embora dissimuladas</p><p>por nossa natureza racional. É por isso que o Espírito Santo diz àqueles que</p><p>sucumbem aos pensamentos humanos: “Eu declaro: Embora vocês sejam</p><p>deuses, e todos filhos do Altíssimo, vocês morrerão como qualquer homem.</p><p>Vocês, príncipes, cairão como qualquer outro</p><p>236</p><p>”. Aos que são arrastados num</p><p>movimento animal, que diz ele? “Não seja como o cavalo ou o jumento, que</p><p>não compreendem nem rédea nem freio: deve-se avançar para domá-los, sem</p><p>o que eles não se aproximarão de você.</p><p>237</p><p>” Se é verdade que “a alma pecadora</p><p>morrerá</p><p>238</p><p>”, é evidente que os homens que morrem como homens serão</p><p>enterrados por homens, enquanto que os que morrem ou tombam como</p><p>animais serão devorados por abutres ou corvos, cujos filhos tanto “invocam o</p><p>Senhor</p><p>239</p><p>” como “refestelam-se no sangue</p><p>240</p><p>”. “Quem tiver ouvidos para</p><p>ouvir, que ouça!</p><p>241</p><p>”</p><p>234</p><p>2 Timóteo II, 11.</p><p>235</p><p>Cf. Êxodo XXIV,</p><p>10.</p><p>236</p><p>Salmo LXXXI, 6-7.</p><p>237</p><p>Salmo XXXI, 9.</p><p>238</p><p>Ezequiel XVIII, 4.</p><p>239</p><p>Cf. Salmo CXLVI, 9.</p><p>240</p><p>Cf. Jó XXXIX, 30.</p><p>241</p><p>Mateus XI, 5.</p><p>[XIX] 20. Quando um dos inimigos o visitar para feri-lo e você quiser, como</p><p>está escrito, “voltar contra seu coração sua própria espada</p><p>242</p><p>”, aja da seguinte</p><p>maneira. Divida em você o pensamento que ele enviou: o que é ele? De</p><p>quantos elementos se compõe e dentre estes qual o que mais atormenta o</p><p>intelecto? Eis o que quero dizer: admitamos que ele tenha enviado a você um</p><p>pensamento de avareza; divida-o assim: o intelecto que o acolheu, a</p><p>representação do ouro, o ouro em si e a paixão da avareza; pergunte a si</p><p>mesmo qual destes elementos é um pecado. É o intelecto? Mas como? Ele é a</p><p>imagem de Deus. Não seria a representação do ouro? Que homem sensato</p><p>ousaria dize-lo? Não seria o próprio ouro o pecado? Mas com que finalidade</p><p>ele foi criado? Segue-se daí que é o quarto elemento a causa do pecado, o que</p><p>não é nem um objeto subsistindo essencialmente, nem a representação de um</p><p>objeto e muito menos o intelecto incorpóreo, mas um prazer inimigo do</p><p>homem, engendrado pelo livre arbítrio, que constrange o intelecto a fazer um</p><p>mau uso das criaturas de Deus: é este prazer que a lei de Deus está</p><p>encarregada de circuncidar. No decurso de sua investigação, o pensamento,</p><p>reabsorvido no seu próprio exame, será destruído, e o demoníaco fugirá para</p><p>longe de você, pois seu espírito terá sido erguido nas alturas por esta ciência.</p><p>Se você não quiser utilizar a espada do inimigo, mas antes quiser abatê-lo</p><p>com sua funda, lance, você também, uma pedra tirada de seu saco de pastor</p><p>243</p><p>e faça o exame a seguir: como os anjos e os demônios visitam nosso mundo,</p><p>mas nós não visitamos seus mundos, porque não podemos nem unir os anjos a</p><p>Deus nem tornar os demônios mais impuros; como Lúcifer, que se levanta</p><p>antes da aurora, caiu sobre a terra</p><p>244</p><p>e como ele “considera o mar como um</p><p>vidro de perfume e o Tártaro do abismo como um prisioneiro e faz ferver o</p><p>abismo como uma caldeira</p><p>245</p><p>”, perturbando todos os seres com sua malícia e</p><p>tentando dominar a todos. A contemplação dessas coisas fere gravemente o</p><p>demônio e derrota todo seu acampamento. Mas isto só acontece aos que</p><p>atingiram um certo grau de pureza e que começam a entrever as razões do</p><p>seres. Quanto aos impuros, eles ignoram a contemplação dessas coisas, e</p><p>ainda que eles as aprendam de outros e as repitam como um encantamento,</p><p>eles não se farão ouvir, devido à espessa poeira e ao tumulto provocado pelas</p><p>242</p><p>Salmo XXXVI, 15.</p><p>243</p><p>Cf. 1 Samuel XVII, 40.48 ss.</p><p>244</p><p>Cf. Isaías XIV, 12.</p><p>245</p><p>Jó XLI,23</p><p>paixões nesta guerra. É preciso necessariamente que o acampamento dos</p><p>estrangeiros esteja em calma, para que Golias saia sozinho ao encontro do</p><p>nosso Davi</p><p>246</p><p>. Utilizemos do mesmo modo tanto a análise como esta forma</p><p>de guerra em relação a todos os pensamentos impuros.</p><p>21. Quando certos pensamentos impuros são postos em fuga rapidamente,</p><p>busquemos a causa: de onde ele veio? Será devido à raridade do objeto, pelo</p><p>fato de ser difícil encontrar a matéria necessária, ou devido à impassibilidade</p><p>presente em nós, que o inimigo nada pode fazer? Por exemplo: se um</p><p>anacoreta que é atormentado por um demônio põe na cabeça que lhe será</p><p>confiado o governo espiritual da capital, é evidente que ele não imaginará esta</p><p>idéia por muito tempo, e a razão disto é fácil de ver a partir do que já</p><p>dissemos. Mas se se tratar de qualquer cidade ou aldeia, e se ele ainda estiver</p><p>na mesma disposição de espírito, feliz ele será por sua impassibilidade! Da</p><p>mesma maneira, para os outros pensamentos, podemos encontrar um método</p><p>semelhante a este que acabamos de experimentar. É necessário, para nosso</p><p>ardor e nossa força, conhecer estas coisas, a fim de que saibamos se</p><p>atravessamos o Jordão e estamos próximos da cidade das palmeiras</p><p>247</p><p>ou se</p><p>continuamos a viver no deserto, expostos aos ataques dos estrangeiros.</p><p>O demônio da avareza parece-me revestir-se de muitas formas e ser muito</p><p>hábil em enganar</p><p>248</p><p>: encurralado pela suprema renúncia, ele finge ser</p><p>econômico e amigo dos pobres; ele acolhe generosamente os hóspedes que</p><p>não são tão pobres assim, envia auxílio a outros que são abandonados, visita</p><p>as prisões da cidade, resgata os que foram postos à venda; ele não larga as</p><p>mulheres ricas e lhes indica aqueles que devem ser bem tratados; aos que</p><p>possuem uma bolsa rica ele exorta a que a abandonem. E assim, após haver</p><p>pouco a pouco enganado a alma, ele a encerra em pensamentos de avareza e a</p><p>entrega ao demônio da vanglória.</p><p>[XXIII] Este último introduz uma multidão de pessoas que louvam o Senhor</p><p>por tal administração e, insensivelmente, introduz também algumas pessoas</p><p>que começam a falar entre si de uma prelazia; a seguir ele prediz a morte do</p><p>prelado e acrescenta que o homem não escapará [de ganhar a prelazia] depois</p><p>246</p><p>Cf. 1 Samuel XVII.</p><p>247</p><p>Cf. Deuteronômio XXXIV, 3.</p><p>248</p><p>Cf. P.G.: eumèchanos.</p><p>de todo o bem que fez. Assim, o infeliz intelecto, ligado nestes pensamentos,</p><p>rechaça os que não aceitaram a idéia e apressa-se a cumular de presentes os</p><p>que aceitaram, louvando-lhes o bom senso; aos que se revoltam, ele envia a</p><p>lei e pede aos juizes que sejam banidos da cidade. Agora que estes</p><p>pensamentos vão e vêm nele, eis que surge o demônio do orgulho que encena</p><p>ininterruptos clarões no espaço da cela e envia dragões alados até finalmente</p><p>provocar a perda do espírito. Quanto a nós, depois de termos pedido em</p><p>nossas orações a desaparição desses pensamentos, vivamos na pobreza</p><p>rendendo graças: pois “nós evidentemente não trouxemos nada a este mundo</p><p>e dele nada levaremos; uma vez que temos alimentos e vestes, contentemo-</p><p>nos com isto</p><p>249</p><p>”, lembrando-nos de Paulo, que disse que “a avareza é a raiz</p><p>de todos os males</p><p>250</p><p>”.</p><p>22. Todos os pensamentos impuros que persistem em nós por causa das</p><p>paixões fazem o intelecto decair “até a ruína e a perdição”. Pois assim como a</p><p>representação do pão persiste no esfomeado por causa da fome e a</p><p>representação da sede persiste no sedento por causa da sede, também as</p><p>representações de riquezas e bens persistem devido à cupidez, e as</p><p>representações das comidas e dos pensamentos condenáveis engendrados</p><p>pelos alimentos persistem devido às paixões. A mesma evidência se impõe no</p><p>que tange aos pensamentos da vanglória e a outras representações. Não é</p><p>possível que um intelecto inchado por tais representações se apresente diante</p><p>de Deus e cinja-se da coroa da justiça</p><p>251</p><p>. É por ser puxado em todas as</p><p>direções por esses pensamentos que este intelecto triplamente desafortunado,</p><p>nos Evangelhos, recusa a refeição da ciência de Deus</p><p>252</p><p>; e ainda, aquele cujas</p><p>mãos e pés foram amarrados e que foi atirado às trevas exteriores</p><p>253</p><p>, vestia</p><p>uma roupa tecida com pensamentos: o que o convidara declarou que ele era</p><p>indigno de tais bodas, pois a veste nupcial é a impassibilidade da alma</p><p>racional que renunciou às ambições do mundo. A razão pela qual as</p><p>persistentes representações de objetos sensíveis destróem a ciência será</p><p>apresentada nos Capítulos sobre a oração.</p><p>249</p><p>1 Timóteo VI, 7.</p><p>250</p><p>1 Timóteo VI, 10.</p><p>251</p><p>Cf. 2 Timóteo IV, 8.</p><p>252</p><p>Cf. Lucas XIV, 18 ss.</p><p>253</p><p>Cf. Mateus XXII, 2-14.</p><p>[XXIV] 23. Dentre os demônios que se opõem à prática, existem três</p><p>assaltantes de primeira linha, aos quais segue todo o destacamento dos</p><p>estrangeiros: são os primeiros a se apresentar ao combate e convidam as</p><p>almas ao mal por meio de pensamentos impuros: são os encarregados dos</p><p>apetites da gula, os que nos sugerem a avareza e os que nos empurram a</p><p>procurar a glória entre os homens.</p><p>Você que aspira à prece pura vigie sua irascibilidade e você</p><p>que ama a</p><p>continência domine seu ventre; não dê pão ao seu estômago até a saciedade e</p><p>racione a água; vigie durante a oração e afaste de você o rancor; que as</p><p>palavras do Espírito Santo não o abandonem e bata às portas da Escritura</p><p>tendo as virtudes como mãos. Então levantar-se-á para você a impassibilidade</p><p>do coração e você verá na oração seu intelecto semelhante a um astro.</p><p>CAPÍTULOS NÉPTICOS</p><p>1.</p><p>254</p><p>[29] Eis o que dizia nosso mestre santo e prático: é preciso que o monge</p><p>esteja sempre pronto, como se ele fosse morrer amanhã, e, inversamente, que</p><p>ele use seu corpo como se tivesse que viver com ele por inúmeros anos. Isto,</p><p>com efeito, dizia ele, afasta os pensamentos da acídia e torna o monge mais</p><p>zeloso e, por outro lado, mantém seu corpo em boa saúde, e mantém sempre</p><p>constante sua abstinência.</p><p>2. [32] Aquele que alcançou a ciência e que colheu o prazer que ela oferece</p><p>não se deixará mais convencer pelo demônio da vanglória, mesmo que ele lhe</p><p>proponha todos os prazeres do mundo. Com efeito, o que pode ser prometido</p><p>de maior que a contemplação espiritual? Mas, desde que ainda não</p><p>experimentamos a ciência, exerçamo-nos ardentemente à prática, mostrando a</p><p>Deus que nosso objetivo é fazer tudo em vista da ciência.</p><p>3. [91] É preciso também consultar os caminhos dos monges que nos</p><p>precederam no bem e nos regrarmos por eles. Pois podemos encontrar muitas</p><p>coisas bonitas ditas ou feitas por eles, como, por exemplo, isto: que um</p><p>regime seco e regular unido à caridade conduz rapidamente o monge à</p><p>impassibilidade.</p><p>4. [94] Fui visitar, em pleno meio-dia, o santo padre Macário e, queimando de</p><p>sede, pedi para beber um pouco de água. “Contente-se com a sombra, disse-</p><p>me ele, pois muitos dos que agora caminham ou navegam não tem sequer</p><p>isto”. Em seguida, como eu lhe falasse da abstinência: “Coragem, meu</p><p>jovem!, disse ele. Durante vinte anos inteiros, eu não tive o bastante nem de</p><p>pão, nem de água, nem de sono. De fato, eu pesava o pão, media a água de</p><p>beber e, apoiando-me contra a parede, roubava uma pequena parte do sono.”</p><p>5. [15] Quando o intelecto vagueia, a leitura, a vigília e a oração fixam-no.</p><p>Quando a concupiscência se inflama, a fome, a provação e a anacorese a</p><p>extinguem; quando a parte irascível está agitada, a salmódia, a paciência e a</p><p>misericórdia a acalmam. Tudo isso no momento e na medida conveniente;</p><p>pois o que é imoderado e inoportuno dura pouco, e o que dura pouco é mais</p><p>nocivo do que útil.</p><p>254</p><p>Indicamos entre colchetes o capítulo correspondente no Tratado Prático.</p><p>CAPÍTULOS SOBRE A PRECE</p><p>DE NOSSO SANTO PADRE NILO O ASCETA</p><p>Prólogo</p><p>Eu queimava com a febre das paixões impuras quando, como de hábito, o</p><p>contato com sua piedosa carta me restabeleceu. Você reconfortou meu</p><p>intelecto que era presa das maiores vergonhas e você imitou assim com</p><p>grande felicidade o grande Preceptor e Mestre. Isto não é de espantar, pois a</p><p>sua parte sempre foi excelente, como a de Jacó o bendito</p><p>255</p><p>. De fato, depois</p><p>de haver trabalhado por Raquel e recebido Lia, você obteve também aquela a</p><p>quem desejava, tendo cumprido os sete anos convencionados</p><p>256</p><p>. Quanto a</p><p>mim, não negarei que, depois de haver penado toda a noite, não apanhei</p><p>nada</p><p>257</p><p>. Mas, com suas palavras, atirei a rede e pesquei uma quantidade de</p><p>peixes, não muito grandes, penso eu, mas em número de cento e cinqüenta e</p><p>três</p><p>258</p><p>, e eu os envio a você na coroa da caridade, em outros tantos capítulos,</p><p>para cumprir as suas ordens.</p><p>Eu o admiro e invejo o excelente propósito que o fez desejar estes capítulos</p><p>sobre a oração. Pois você não quer apenas os que estão ao alcance da mão e</p><p>que existem, graças à tinta, nos pergaminhos, mas aqueles que a caridade e a</p><p>ausência de ressentimentos fixam no intelecto. Como todas as coisas vêm aos</p><p>pares, face a face, segundo o sábio Jesus</p><p>259</p><p>, receba o que eu lhe envio ao pé</p><p>da letra e também conforme o espírito, dado que sempre a inteligência</p><p>prevalece sobre a letra; se aquela faltar, a segunda nem chega a existir. Assim,</p><p>portanto, a oração comporta dois modos, um ativo e outro contemplativo;</p><p>como acontece com os números, existe aquilo que é palpável, a quantidade, e</p><p>o significado, a qualidade.</p><p>255</p><p>Cf. Gênesis XXX, 43.</p><p>256</p><p>Cf. Gênesis XXIX, 20-30.</p><p>257</p><p>Cf. Lucas V, 5.</p><p>258</p><p>Cf. João XXI, 11.</p><p>259</p><p>Eclesiástico XLII, 24; trata-se de Jesus, filho de Sirac, autor do livro do Eclesiástico</p><p>(cf. LI, 30).</p><p>De fato, nós dividimos o tratado sobre a oração em cento e cinqüenta e três</p><p>capítulos, oferecendo um conjunto bastante evangélico</p><p>260</p><p>. Você encontrará</p><p>aqui o encanto de um número simbólico, uma figura triangular e uma</p><p>hexagonal, que representam ao mesmo tempo o conhecimento da Trindade e a</p><p>circunscrição do mundo presente. O número cem, em si mesmo, é quadrado;</p><p>cinqüenta e três, triangular e esférico; vinte e oito, à parte, é triangular, e vinte</p><p>e cinco, esférico; pois cinco vezes cinco é vinte e cinco. Você tem então no</p><p>número vinte e cinco não apenas a figura quadrada para o quaternário das</p><p>virtudes, mas também o círculo para o conhecimento verdadeiro deste mundo,</p><p>por causa do curso circular dos tempos. Pois eles se desenrolam semana após</p><p>semana, mês após mês, ano após ano, estação após estação, como vemos pelo</p><p>movimento do sol e da lua, da primavera, do verão, e assim por diante. O</p><p>triângulo pode significar também o conhecimento da Santíssima Trindade.</p><p>Segundo outra interpretação, se você tomar cento e cinqüenta e três como</p><p>triangular de uma multitude de números, você verá aí a prática, a</p><p>contemplação natural e a teologia; ou ainda a fé, a esperança e a caridade,</p><p>ouro, prata e pedras preciosas.</p><p>Isto quanto ao número. Quanto aos capítulos, você não os desdenhará por sua</p><p>aparência humilde e saberá se adaptar tanto à abundância quanto à</p><p>carência</p><p>261</p><p>, lembrando-se daquele que não desprezou os dois vinténs da viúva</p><p>e que os recebeu com mais contentamento do que a riqueza de muitos</p><p>outros</p><p>262</p><p>. Reconhecendo assim o fruto da bem-aventurança e da caridade,</p><p>você os guardará para os seus verdadeiros irmãos, rogando-lhes que rezem</p><p>pelo enfermo a fim de que ele se cure e que, carregando sua maca, ele</p><p>caminhe daí por diante pela graça de Cristo [nosso verdadeiro Deus, a quem</p><p>seja dada a glória pelos séculos dos séculos]. Amém.</p><p>Capítulos sobre a prece</p><p>1. Se quisermos preparar um perfume de bom odor, devemos misturar em</p><p>partes iguais, conforme a lei</p><p>263</p><p>, o incenso diáfano, a canela, o ônix e a mirra.</p><p>260</p><p>Cf. João XXI, 11.</p><p>261</p><p>Cf. Filipenses IV, 21.</p><p>262</p><p>Cf. Lucas XXI, 3.</p><p>263</p><p>Êxodo XXX, 34.</p><p>Este é o quaternário das virtudes. Se elas forem completas e iguais, o intelecto</p><p>não será traído.</p><p>2. A alma purificada pelo cumprimento dos mandamentos [pela plenitude das</p><p>virtudes] torna inquebrável a atitude do intelecto, e apto a receber o estado</p><p>estável desejado.</p><p>3. A prece é uma conversa do intelecto com Deus; quanta estabilidade não</p><p>deve ter a inteligência para tender, sem volta atrás, constantemente para o</p><p>Senhor e conversar com ele sem nenhum intermediário?</p><p>4. Se Moisés, quando tentou se aproximar da sarsa ardente, foi impedido até</p><p>que tirasse as sandálias dos pés</p><p>264</p><p>, como pretende você ver Aquele que está</p><p>acima de todo pensamento, sem se desembaraçar de todo e qualquer</p><p>pensamento apaixonado?</p><p>5. Reze primeiro para receber o dom das lágrimas, a fim de amolecer pelo</p><p>luto a dureza inerente à sua alma e para que, confessando contra você mesmo</p><p>suas iniqüidades ao Senhor, você obtenha o seu perdão.</p><p>6. Use as lágrimas para obter sucesso em todas as suas demandas, pois o seu</p><p>Senhor se alegra quando você ora com lágrimas.</p><p>7. Quando</p><p>você verte fontes de lágrimas em sua oração, não se coloque no</p><p>alto, como se você estivesse acima da maior parte dos seus semelhantes; o</p><p>que houve foi simplesmente que a sua oração recebeu uma ajuda para que</p><p>você pudesse com ardor confessar seus pecados e agradar ao Senhor com suas</p><p>lágrimas. Não transforme em paixão o antídoto das paixões, se você não</p><p>quiser começar irritando o doador da graça.</p><p>8. Muitos daqueles que choraram sobre seus pecados, esquecendo-se do</p><p>objetivo das lágrimas, enlouqueceram ou se perderam pelo caminho.</p><p>9. Mantenha-se valorosamente e reze energicamente; afaste as preocupações e</p><p>as cogitações que aparecerem, pois elas perturbam e agitam para enervar o</p><p>seu vigor.</p><p>264</p><p>Cf. Êxodo III, 5.</p><p>10. Quando os demônios o vêem cheio de ardor para a prece verdadeira, eles</p><p>começam então a lhe sugerir idéias sobre certos objetos pretensamente</p><p>necessários; logo eles excitam as lembranças ligadas a eles, forçando o</p><p>intelecto a ir buscá-los; depois, como este não os encontra, ele se entristece e</p><p>se lamenta. Então, no momento da prece, eles lhe rememoram os objetos de</p><p>suas buscas e de suas lembranças, a fim de que o intelecto, levado a deter-se</p><p>neles, perca a oração frutífera.</p><p>11. Esforce-se por tornar seu intelecto surdo e mudo no momento da prece, e</p><p>você poderá orar.</p><p>12. Se lhe sobrevier alguma provocação ou contradição e você se sentir</p><p>irritado e perceber a cólera se levantar para dar o troco ou replicar, lembre-se</p><p>da oração e do julgamento que o aguarda nela, e logo o movimento</p><p>desordenado se acalmará em você.</p><p>13. Tudo o que você fizer para se vingar de um irmão que lhe fez mal, se</p><p>tornará uma pedra de tropeço no momento da oração.</p><p>14. A prece é um broto da doçura e da ausência de cólera.</p><p>15. A prece é o fruto da alegria e da ação de graças.</p><p>16. A prece é a exclusão da tristeza e do desencorajamento.</p><p>17. Vai, vende tudo o que você possui e dê aos pobres</p><p>265</p><p>; depois, tome a sua</p><p>cruz e renegue a si mesmo</p><p>266</p><p>para poder orar sem distração.</p><p>18. Se você quiser orar dignamente, renegue a si próprio todo o tempo; e se</p><p>você suporta todo tipo de barulho e agitação, aceite isto sabiamente para a</p><p>oração.</p><p>19. Para cada pena que você suportar com sabedoria, você colherá o fruto no</p><p>momento da oração.</p><p>265</p><p>Cf. Mateus XIX, 21.</p><p>266</p><p>Cf. Mateus XVI, 24.</p><p>20. Se você quer orar como se deve, não contriste a ninguém, caso contrário</p><p>será vã a sua corrida.</p><p>21. Deixe sua oferenda, como foi dito, diante do altar, e vá primeiro se</p><p>reconciliar com seu irmão</p><p>267</p><p>, para que depois, ao voltar, você possa orar sem</p><p>perturbação. Pois a raiva cega a razão daquele que ora e entenebrece sua</p><p>oração.</p><p>22. Aqueles que acumulam interiormente penas e rancores [e que pensam</p><p>rezar] assemelham-se a alguém que tenta encher com água um balde furado.</p><p>23. Se você for perseverante, você rezará sempre com alegria.</p><p>24. Enquanto você estiver orando como se deve, apresentar-se-ão a você</p><p>coisas tais que você considerará justo o uso da cólera. Ora, não existe cólera</p><p>justa contra o próximo, em hipótese alguma. Se você procurar, verá que</p><p>sempre é possível arrumar as coisas sem cólera. Portanto, use de todos os</p><p>meios para não se deixar explodir pela cólera.</p><p>25. Cuidado para que, sob pretexto de curar alguém, não se torne você mesmo</p><p>incurável e não dê um golpe fatal à sua oração.</p><p>26. Se você se abstiver da cólera, você obterá a misericórdia; você provará</p><p>que você é demasiado prudente para se deixar enganar, e poderá ser contado</p><p>entre aqueles que verdadeiramente oram.</p><p>27. Armado contra a cólera, você não admitirá jamais a concupiscência; pois</p><p>é ela que fornece o material para a cólera, e esta perturba o olho do intelecto,</p><p>destruindo assim o estado de oração.</p><p>28. Não ore somente nas atitudes exteriores, mas coloque sua inteligência no</p><p>sentimento da prece espiritual, com grande temor.</p><p>29. Às vezes, mal iniciada a oração, você estará orando bem; às vezes, ao</p><p>contrário, malgrado todos os seus esforços, você não alcançará este objetivo.</p><p>267</p><p>Cf. Mateus V, 24.</p><p>É para que você procure sempre mais, pois, após obter este resultado, você o</p><p>possuirá ao abrigo de todos os predadores.</p><p>30. Quando um anjo aparece, no mesmo instante todos aqueles que</p><p>perturbavam desaparecem, e o intelecto encontra-se numa grande calmaria na</p><p>qual ele reza alegremente. Às vezes, ao contrário, a guerra cotidiana nos</p><p>acossa; o intelecto se debate sem poder erguer os olhos. É porque ele foi</p><p>afetado pelas paixões. Porém, se procurar mais, ele encontrará; se bater</p><p>vigorosamente, ser-lhe-á aberto.</p><p>31. Não ore para que se cumpram as suas vontades, pois elas não</p><p>necessariamente coincidem com a vontade de Deus. Antes, conforme o</p><p>ensinamento, reze dizendo: Que a sua vontade se cumpra em mim</p><p>268</p><p>; do</p><p>mesmo modo, em todas as coisas, reze para que se faça a vontade de Deus,</p><p>pois ele sempre quer o bem e o que for mais proveitoso para a sua alma, e</p><p>você nem sempre busca a mesma coisa.</p><p>32. Muitas vezes, em minhas orações, eu pedi que se cumprisse aquilo que eu</p><p>estimava bom para mim, e eu me obstinava em meu pedido, violentando</p><p>tolamente a vontade de Deus, sem dirigir-me a ele para que a respeito ele</p><p>ordenasse aquilo que soubesse ser o mais útil para mim; entretanto, ao receber</p><p>a coisa, grande era minha decepção por não ter solicitado o cumprimento da</p><p>vontade de Deus de preferência ao cumprimento do meu desejo, pois nada do</p><p>que recebi de meu pleito era tal como aquilo que eu havia imaginado.</p><p>33. O que há de bom, senão Deus? Por conseguinte, deixemos com ele tudo o</p><p>que nos concerne e ficaremos bem. Pois quem é bom, é necessariamente</p><p>provedor de dons excelentes.</p><p>34. Não se aflija se você não receber imediatamente de Deus aquilo que você</p><p>pede; é que ele quer ainda mais o seu bem, por sua perseverança em</p><p>permanecer com ele na oração. De fato, o que existe de mais elevado do que</p><p>conversar com Deus e recolher-se à sua intimidade?</p><p>35. A oração sem distração é a mais alta compreensão do intelecto.</p><p>268</p><p>Cf. Mateus, VI, 10.</p><p>36. A prece é uma ascensão do intelecto para Deus.</p><p>37. Se você quer orar, renuncie a tudo para obter o todo.</p><p>38. Reze primeiramente para ser purificado das paixões. Depois para ser</p><p>libertado da ignorância e do esquecimento, e finalmente para se livrar de toda</p><p>tentação e de todo o abandono espiritual.</p><p>39. Na oração, procure unicamente a justiça e o reino, ou seja, a virtude e a</p><p>gnose, e todo o mais lhe será acrescentado</p><p>269</p><p>.</p><p>40. É justo orar não apenas por sua salvação, mas pela salvação de todo o seu</p><p>povo, a fim de imitar uma postura angélica.</p><p>41. Verifique se você está realmente presente a Deus em sua oração, ou se</p><p>você foi vencido pelos elogios humanos e levado pelo desejo de obtê-los, sob</p><p>pretexto da duração de sua prece.</p><p>42. Quer você reze com os irmãos, quer só, esforce-se para rezar, não por</p><p>hábito, mas com sentimento.</p><p>43. O sentimento [o caráter próprio] da prece é uma gravidade respeitosa</p><p>acompanhada da compunção e da dor da alma no confessar as faltas, com</p><p>gemidos secretos.</p><p>44. Se o seu intelecto divaga ainda durante o tempo da oração, é porque ele</p><p>ainda não ora como monge, mas ainda permanece no mundo, ocupado em</p><p>decorar a tenda exterior.</p><p>45. Ao rezar, vigie fortemente a memória, de modo a que, ao invés de lhe</p><p>sugerir lembranças, ela o leve à consciência do seu exercício, pois o intelecto</p><p>tem uma terrível tendência a se deixar confundir pela memória no momento</p><p>da oração.</p><p>46. Quando você rezar, a memória lhe apresentará imagens de coisas antigas,</p><p>ou de novos assuntos, ou o rosto de alguém que lhe fez mal.</p><p>269</p><p>Cf. Mateus VI, 33.</p><p>47. O demônio é extremamente ciumento em relação ao homem que ora e ele</p><p>usa de todos os artifícios para fazê-lo perder o objetivo. Ele não cessa de</p><p>reavivar na memória o pensamento das coisas e de despertar na carne todas as</p><p>paixões, a fim de entravar seu curso tão belo e seu êxodo para Deus.</p><p>48. Quando, depois de muitos gemidos, o demônio perverso não conseguiu</p><p>entravar a oração do justo</p><p>270</p><p>, ele então se retira um pouco, mas logo toma a</p><p>revanche sobre aquele que ora. Ele incendeia suas preces para destruir o</p><p>estado excelente que se instalou nele pela oração, ou então ele o excita a</p><p>algum prazer descabido para ultrajar o intelecto.</p><p>49. Depois que você rezou como convém, espere por aquilo que não convém;</p><p>coloque-se virilmente em pé para vigiar o fruto da oração. A isto você foi</p><p>predestinado desde o princípio: trabalhar e vigiar</p><p>271</p><p>. Depois de haver</p><p>trabalhado, portanto, não deixe sem guarda o seu trabalho, caso contrário ele</p><p>não terá lhe servido para nada.</p><p>50. Toda a guerra travada entre nós e os demônios impuros não tem outra</p><p>motivação do que a prece espiritual. Pois esta lhes é hostil e odiosa; mas para</p><p>nós, ela é salutar e agradável.</p><p>51. O que têm em vista os demônios quando despertam em nós a gulodice, a</p><p>impureza, a inveja, a cólera, o rancor e as outras paixões? Eles querem que a</p><p>nosso intelecto, perturbado por elas, não possa rezar como deveria, porque as</p><p>paixões da parte irracional assumem a liderança e o impedem de se mover</p><p>segundo a razão; isto é, segundo as razões dos seres enquanto objeto de</p><p>contemplação, que o intelecto deveria usar para atingir a Razão (o Logos: o</p><p>Verbo) de Deus.</p><p>52. Nós atingimos as virtudes (primeiro grau: a vida ativa) em vista das</p><p>razões dos seres criados (segundo grau: contemplação inferior), e estas em</p><p>vista do Verbo que as estabeleceu (terceiro grau: teologia); quanto ao Senhor,</p><p>ele costuma aparecer no estado de oração.</p><p>270</p><p>Cf. Tiago V, 16.</p><p>271</p><p>Cf. Gênesis II, 15.</p><p>53. O estado de oração é um hábito impassível que, por um amor supremo,</p><p>transporta aos cumes intelectuais a inteligência ávida de sabedoria espiritual.</p><p>54. Não é somente a cólera e a concupiscência que devem ser dominadas por</p><p>quem aspira a orar verdadeiramente; é preciso ainda desembaraçar-se de todo</p><p>pensamento apaixonado.</p><p>55. Aquele que ama a Deus conversa incessantemente com Ele como com um</p><p>Pai, despojando-se de todo pensamento passional.</p><p>56. Não é por termos atingido a apatheia que iremos rezar verdadeiramente,</p><p>pois podemos nos ater aos pensamentos simples e, mesmo assim, nos</p><p>distrairmos em sua meditação, ficando, portanto, longe de Deus.</p><p>57. Digamos que o intelecto não se detenha nos pensamentos simples; nem</p><p>por isto ele atingiu o lugar da oração, pois pode se encontrar na fase da</p><p>contemplação dos objetos, divagando sobre suas motivações; ora, essas</p><p>motivações, mesmo sendo expressões simples, imprimem, enquanto</p><p>considerações de objetos, uma marca no intelecto que o afastam muito de</p><p>Deus.</p><p>58. Suponhamos que o intelecto se eleve acima da contemplação da natureza</p><p>corporal. Ainda assim ele não terá uma visão completa de Deus, pois ele pode</p><p>se encontrar ainda sujeito à ciência das coisas inteligíveis, participando de sua</p><p>multiplicidade.</p><p>59. Se você quiser orar, você precisará de Deus, que dá a oração a quem</p><p>ora</p><p>272</p><p>. Invoque-o, portanto, dizendo: Santificado seja o seu nome, venha a nós</p><p>o seu reino</p><p>273</p><p>, vale dizer, o Espírito Santo e seu Filho único, pois é isto que</p><p>ele ensinou quando ordenou adorar ao Pai em espírito e verdade</p><p>274</p><p>.</p><p>60. Aquele que reza em espírito e em verdade, não busca nas criaturas os</p><p>louvores que dedica ao Criador: é em Deus mesmo que ele louva a Deus.</p><p>272</p><p>Cf. 1 Samuel II, 9.</p><p>273</p><p>Cf. Mateus VI, 9.</p><p>274</p><p>Cf. João IV, 24.</p><p>61. Se você for um teólogo, rezará verdadeiramente; e se você rezar</p><p>verdadeiramente, será um teólogo .</p><p>62. Quando o seu intelecto, tomado por um ardente amor a Deus, sai, por</p><p>assim dizer, pouco a pouco da sua carne, quando ele rejeita todos os</p><p>pensamentos que provêm dos sentidos, da memória ou do temperamento, ao</p><p>mesmo tempo em que se enche de respeito e de alegria, então você pode se</p><p>considerar próximo dos confins da oração.</p><p>63. O Espírito Santo, compadecido de nossa fraqueza, nos visita ainda que</p><p>não estejamos purificados; se por acaso ele encontrar nosso intelecto orando</p><p>com toda sinceridade, ele surgirá nele e dissipará toda a falange dos</p><p>raciocínios e os pensamentos que o assediam e o transporta ao amor da prece</p><p>espiritual.</p><p>64. Enquanto outros se servem das alterações do corpo para fornecer à</p><p>inteligência raciocínios, conceitos e reflexões, ele, o Senhor, faz o contrário:</p><p>ele se dirige diretamente ao intelecto para colocar aí a gnose conforme sua</p><p>vontade; e, pelo intelecto, ele acalma o desequilíbrio do corpo.</p><p>65. Quem aspira à prece verdadeira mas explode em cólera ou guarda rancor,</p><p>dá mostras de demência. Assemelha-se a alguém que quer ter uma visão</p><p>aguda e para isto fura os olhos.</p><p>66. Não imagine que a divindade está em você quando estiver rezando, nem</p><p>permita que seu intelecto aceite a impressão de uma forma qualquer;</p><p>conserve-se imaterial diante do Imaterial, e assim, você compreenderá.</p><p>67. Tome cuidado com as armadilhas dos adversários: pode acontecer que,</p><p>enquanto você estiver rezando com pureza e sem perturbação, se apresente</p><p>repentinamente na sua frente uma forma desconhecida e estranha, para</p><p>induzi-lo à presunção de nela localizar Deus e fazer com que você tome pela</p><p>Divindade o objeto quantitativo que surgiu repentinamente aos seus olhos;</p><p>ora, a Divindade não tem quantidade nem imagem.</p><p>68. Quando o demônio invejoso fracassa na tentativa de perturbar a memória</p><p>durante a oração, ele tenta violentar a compleição do corpo para despertar na</p><p>inteligência algum fantasma desconhecido e, assim, dar-lhe forma. O</p><p>intelecto, acostumado a ver tudo conceitualmente, é, assim, facilmente</p><p>subjugado: aquele que tendia apenas ao conhecimento imaterial e sem forma,</p><p>se deixa iludir e toma a fumaça pela luz.</p><p>69. Mantenha-se em guarda, defendendo seu intelecto de todo e qualquer</p><p>conceito, no momento da oração, para que ele seja firme na sua tranqüilidade</p><p>própria (de sua natureza original). Então, Aquele que se compadece dos</p><p>ignorantes virá em seu auxílio, e assim você receberá um glorioso dom de</p><p>oração.</p><p>70. Você não poderá possuir a pureza da oração se estiver sobrecarregado de</p><p>coisas materiais e perturbado por preocupações contínuas, pois a oração é a</p><p>supressão dos pensamentos.</p><p>71. É impossível correr travado. O intelecto submetido às paixões não</p><p>consegue encontrar o lugar da oração espiritual porque é arrastado em todas</p><p>as direções pelo pensamento apaixonado e não consegue se manter inflexível.</p><p>72. Uma vez que o intelecto atingiu a prece pura, desembaraçada das paixões,</p><p>os demônios já não a atacam pela esquerda, mas pela direita. Eles lhe</p><p>representam uma visão ilusória de Deus em alguma imagem agradável aos</p><p>sentidos, de modo a fazê-lo acreditar ter obtido completamente a objetivo da</p><p>oração. Ora, dizia um admirável gnóstico, esta é a obra da paixão da</p><p>vanglória e de um demônio cujo toque faz palpitar as veias do cérebro.</p><p>73. Eu penso que o demônio, ao tocar o local mencionado, configura à</p><p>vontade a luz ao redor do intelecto, e assim a paixão da vanglória é posta em</p><p>um raciocínio que o intelecto passa a moldar para localizar, aturdido, a</p><p>ciência divina e essencial. E como a esta altura ele não é mais atacado pelas</p><p>paixões carnais e impuras, mas ora verdadeiramente com pureza, ele imagina</p><p>que nenhuma ação inimiga se exercerá mais obre ele. Assim, ele é levado a</p><p>considerar como divina a aparição produzida nele</p><p>pelo demônio por meio</p><p>deste temível estratagema que consiste, como dissemos, em provocar no</p><p>cérebro certas reações na luz que está ali presente, e assim apresentar uma</p><p>forma ao intelecto.</p><p>74. O anjo de Deus, chegando subitamente, expulsa de nosso interior, com</p><p>uma só palavra, toda ação adversa e devolve a luz do intelecto a uma</p><p>atividade sem desvios.</p><p>75. Quando o Apocalipse fala dos anjos que tomam incenso para colocá-lo</p><p>nas orações dos santos</p><p>275</p><p>, creio que se trata desta graça operada pelos anjos.</p><p>De fato, eles comunicam o conhecimento da oração verdadeira, de sorte que o</p><p>intelecto permaneça daí em diante sem deflexões, desencorajamento ou</p><p>acídia.</p><p>76. Os perfumes das taças são considerados como as preces dos santos</p><p>oferecidas pelos vinte e quatro anciãos</p><p>276</p><p>.</p><p>77. Como taças, devemos entender o amor de Deus, ou seja, a caridade</p><p>perfeita e espiritual na qual a oração se cumpre em espírito e em verdade.</p><p>78. Se lhe parece que em suas orações você não tem necessidade de lágrimas</p><p>pelos seus pecados, considere o quanto você está afastado de Deus quando</p><p>você deveria estar com ele sem cessar, e você chorará mais calorosamente.</p><p>79. Certamente, se você tiver consciência dos seus limites, a compunção lhe</p><p>será mais fácil; você chamará a si mesmo de miserável, como Isaías</p><p>277</p><p>,</p><p>porque, sendo impuro e tendo os lábios impuros, do meio do povo, quero</p><p>dizer, do povo inimigo, você ousará se apresentar ao Senhor dos Exércitos.</p><p>80. Se você rezar verdadeiramente, atingirá uma grande plenitude, os anjos o</p><p>escoltarão como a Daniel e o iluminarão quanto às razões dos seres.</p><p>81. Saiba que os santos anjos nos incitam à oração e que então eles se</p><p>colocam ao nosso lado, felizes e orando por nós. Assim, se formos</p><p>negligentes e acolhermos pensamentos estranhos, nós os irritaremos muito,</p><p>porque, enquanto eles lutam bravamente por nós, nós sequer suplicamos a</p><p>Deus por nós mesmos; desprezando seus serviços, nós abandonamos a Deus</p><p>nosso Senhor para irmos ao encontro dos demônios impuros.</p><p>275</p><p>Cf. Apocalipse VIII, 3.</p><p>276</p><p>Apocalipse V, 8.</p><p>277</p><p>Cf. Isaías VI, 5.</p><p>82. Reze como se deve e sem perturbação; salmodie com atenção</p><p>278</p><p>e</p><p>harmonia, e você será como uma pequena águia planando nas alturas.</p><p>83. O salmodiar acalma as paixões e apazigua a intemperança do corpo; a</p><p>oração faz o intelecto exercer sua atividade própria.</p><p>84. A oração é a atividade que convém à dignidade o intelecto; ela é o seu</p><p>hábito mais excelente, adequado e completo.</p><p>85. A salmódia depende da sabedoria multiforme</p><p>279</p><p>; a oração é o prelúdio do</p><p>conhecimento (gnose) imaterial e uniforme.</p><p>86. O conhecimento (gnose) é excelente, pois ele colabora com a oração</p><p>despertando a potência intelectual do intelecto à contemplação da gnose</p><p>divina.</p><p>87. Se você não tiver ainda recebido o carisma da oração e da salmódia,</p><p>persevere: você o receberá.</p><p>88. Ele lhes contou uma parábola para mostrar que se deve rezar sempre sem</p><p>relaxar</p><p>280</p><p>. Portanto, não relaxe por esperar, não se desencoraje por não haver</p><p>recebido; você receberá em seguida. E ele concluiu a parábola assim:</p><p>“Embora eu não tema a Deus nem me preocupe com os homens, ao menos,</p><p>por causa do embaraço que me faz esta mulher, eu lhe farei justiça. Assim,</p><p>Deus também fará justiça aos que clamam por ele dia e noite, e</p><p>prontamente.</p><p>281</p><p>” Então, tenha coragem e persevere valorosamente na santa</p><p>oração.</p><p>89. Não queira que aquilo que lhe diz respeito se arranje segundo as suas</p><p>idéias, mas segundo o bel prazer de Deus; assim você não terá preocupações e</p><p>estará cheio de gratidão nas suas orações.</p><p>90. Mesmo que lhe pareça estar com Deus, cuidado com o demônio da</p><p>278</p><p>Cf. Salmo XLVI, 8.</p><p>279</p><p>Cf. Efésios III, 10.</p><p>280</p><p>Cf. Lucas XVIII, 1-8.</p><p>281</p><p>Lucas XVIII, 4.</p><p>luxúria, pois ele é muito enganador e extremamente ciumento. Ele é quase</p><p>mais rápido do que o movimento, a sobriedade e a vigilância do intelecto, a</p><p>ponto de arrastá-lo para longe de Deus ao mesmo tempo em que ele</p><p>permanece ao lado deste último com temor respeitoso.</p><p>91. Se você se dedica à oração, prepare-se para os ataques dos demônios e</p><p>suporte valorosamente seus golpes; pois eles se atirarão como feras sobre</p><p>você e farão todo tipo de mal ao seu corpo.</p><p>92. Prepare-se como um lutador experiente para não vacilar, mesmo se de</p><p>repente você vir um fantasma; para não se deixar perturbar, mesmo diante da</p><p>figura de uma espada brandida contra você ou um relâmpago disparado contra</p><p>seu rosto; para não deixar fraquejar minimamente sua coragem, mesmo diante</p><p>de um espectro medonho e sangrento; mantenha-se firme e busque a bela</p><p>profissão de fé</p><p>282</p><p>, e você suportará com o coração leve a visão dos seus</p><p>inimigos.</p><p>93. Quem suportar a agitação obterá também as consolações; e a quem for</p><p>constante nos transes desagradáveis, não faltarão os agradáveis.</p><p>94. Tome cuidado para que os demônios enganadores não o enganem com</p><p>alguma visão; esteja atento, recorra à oração e invoque a Deus, para que, se a</p><p>representação vier dele, ela o esclareça por si só; se não, que ele se apresse a</p><p>expulsar de você o sedutor. Tenha confiança: os cães não conseguirão ficar; se</p><p>você se entregar a uma súplica ardente, sem voltar atrás, invisivelmente e sem</p><p>se mostrar, o poder de Deus os fustigará e os expulsará para bem longe.</p><p>95. É bom que você não ignore o seguinte truque: às vezes, os demônios se</p><p>dividem, e se você parece querer buscar auxílio [contra uns], os outros entram</p><p>em cena sob formas angélicas e expulsam os primeiros, para que você se</p><p>engane pensando serem verdadeiros anjos.</p><p>96. Esforce-se para adquirir muita humildade e muita coragem, e os insultos</p><p>dos demônios não alcançarão a sua alma; nenhum flagelo se aproximará de</p><p>sua tenda, porque ele dará ordens em seu favor aos seus anjos para que eles o</p><p>282</p><p>Cf. 1 Timóteo VI, 12.</p><p>guardem</p><p>283</p><p>; e os anjos expulsarão invisivelmente para longe de você todas as</p><p>empreitadas hostis.</p><p>97. Quem se dedica à oração pura escutará barulhos e agitações, vozes e</p><p>insultos; mas ele não fraquejará, nem perderá o sangue frio, dizendo a Deus:</p><p>“Eu nada temo, porque o Senhor está comigo</p><p>284</p><p>”, e outras coisas assim.</p><p>98. Quando você tiver tentações desse tipo, recorra a uma oração breve e</p><p>veemente.</p><p>99. Se os demônios ameaçam aparecer subitamente nos ares, derrubá-lo e</p><p>saquear seu intelecto, não se apavore; nem dê atenção às suas ameaça. Eles o</p><p>amedrontam para ver se, decididamente, você ainda se ocupa com eles, ou se</p><p>já conseguiu desprezá-los completamente.</p><p>100. Se é na presença de Deus, o Todo-Poderoso, Criador e Providência, que</p><p>você está durante a prece, porque você traz a esta presença o absurdo de</p><p>passar-lhe ao largo para ir ter medo de mosquitos e gafanhotos? Você não</p><p>ouviu Aquele que disse: “Você temerá ao Senhor teu Deus”</p><p>285</p><p>? E também:</p><p>“Ele, diante de cujo poder tudo treme e teme”</p><p>286</p><p>?</p><p>101. O corpo tem o pão como alimento, a alma, a virtude, o intelecto a oração</p><p>espiritual.</p><p>102. Reze não como o fariseu, mas como o publicano no lugar sagrado da</p><p>oração, para que também você seja justificado por Deus</p><p>287</p><p>.</p><p>103. Faça todos os esforços para nada dizer contra ninguém durante a oração;</p><p>será demolir tudo o que você edificou, e tornará sua oração abominável.</p><p>104. Que o devedor de mil talentos lhe sirva de lição: se você não se acertar</p><p>com seu devedor, você tampouco obterá a remissão, pois está escrito: “Ele o</p><p>283</p><p>Cf. Salmo XC, 10-11.</p><p>284</p><p>Salmo XXII, 4.</p><p>285</p><p>Deuteronômio VI, 13 e X, 20.</p><p>286</p><p>Cf. Daniel VI, 26-27.</p><p>287</p><p>Cf. Lucas XVIII, 10-14.</p><p>entregou aos torturadores</p><p>288</p><p>”.</p><p>105. Não escute as exigências</p><p>do seu corpo durante o exercício da oração;</p><p>não deixe que a picada de uma pulga, de um mosquito ou de uma mosca o</p><p>prive do maior benefício da oração.</p><p>106. Aconteceu que a um santo homem que orava, o maligno travou um</p><p>combate tão furioso que, mal ele erguera as mãos e o inimigo travestiu-se em</p><p>um leão que se levantou sobre as patas diante dele e cravou as garras nas</p><p>pernas do atleta, sem deixar a presa para que abaixasse os braços. Mas ele não</p><p>os abaixou até que tivesse terminado todas as suas orações habituais.</p><p>107. Algo assim aconteceu, como o sabemos, com João o Pequeno, ou</p><p>melhor, o grandíssimo monge que levou a vida solitária num buraco: devido à</p><p>sua intimidade com Deus, ele se tornou inalterável enquanto um demônio, sob</p><p>a forma de um dragão enrolado a seu corpo, lhe torturava as carnes e arrotava</p><p>em seu rosto.</p><p>108. Você também leu certamente as vidas dos monges de Tabenesa, aonde,</p><p>diz-se, durante o sermão que o abade Teodoro fazia aos irmãos, duas víboras</p><p>arrastaram-se sobre os seus pés; ele então, sem se perturbar, fez um arco sob o</p><p>manto com as pernas para alojá-las até que terminasse a palestra. Então, ele as</p><p>mostrou a todos, contando o que havia ocorrido.</p><p>109. A respeito de outro irmão espiritual, lemos que foi atacado por uma</p><p>cobra durante o exercício da oração. Mas ele não se moveu até ter acabado</p><p>suas orações habituais e não sofreu nada por isso, porque amou a Deus mais</p><p>do que a si próprio.</p><p>110. Mantenha os olhos baixos durante a sua oração, renuncie à carne e à</p><p>alma e viva segundo a sua inteligência.</p><p>111. Um outro santo que levava a vida solitária e orava corajosamente, foi</p><p>assaltado por demônios que, por duas semanas, jogaram com ele como se</p><p>fosse uma bola e molestaram-no lançando-o pelos ares e amparando-o numa</p><p>rede. Mas nem por um instante eles lograram fazer seu intelecto descer de</p><p>288</p><p>Mateus XVIII, 24-35.</p><p>sua prece inflamada.</p><p>112. Um outro santo, cheio do amor de Deus e de zelo pela oração, encontrou,</p><p>quando andava pelo deserto, dois anjos que o ladearam e caminharam com</p><p>ele. Porém ele não lhes deu a menor atenção para não perder o melhor, pois</p><p>ele se lembrou da palavra do Apóstolo: “Nem anjos, nem príncipes, nem</p><p>potências poderão nos separar da caridade de Cristo.</p><p>289</p><p>”</p><p>113. O monge se torna igual aos anjos pela prece verdadeira.</p><p>114. Você aspira ver a face do Pai que está no Céu</p><p>290</p><p>: não procure, por nada</p><p>deste mundo, ver uma forma ou uma figura no momento da oração.</p><p>115. Não deseje ver sensivelmente os anjos, nem as potências, nem Cristo,</p><p>para não perder totalmente o bom senso e não acolher o lobo ao invés do</p><p>pastor, adorando os demônios inimigos.</p><p>116. A origem das ilusões do intelecto é a vanglória; é ela que incita o</p><p>intelecto a tentar circunscrever a divindade em imagens e formas.</p><p>117. Quanto a mim, direi um pensamento meu que já expressei em outras</p><p>ocasiões: feliz é o espírito desligado de toda forma, no momento da oração.</p><p>118. Feliz é o intelecto que, numa prece sem distração, adquire sempre novos</p><p>aumentos no amor a Deus.</p><p>119. Bem-aventurado o intelecto que, no momento da oração, se torna</p><p>imaterial e desligado de tudo.</p><p>120. Feliz o intelecto que, durante a oração, atinge a perfeita insensibilidade.</p><p>121. Feliz o monge que toma todos os homens por Deus depois de Deus.</p><p>122. Feliz é o monge que vê a salvação e o progresso de todos como se</p><p>fossem seus, com toda a alegria.</p><p>289</p><p>Romanos VIII, 38.</p><p>290</p><p>Cf. Mateus XVIII, 10.</p><p>123. Feliz o monge que se considera “o rejeito de todos</p><p>291</p><p>”.</p><p>124. Monge é aquele que é separado de tudo e unido a todos.</p><p>125. É monge aquele que se sente um com todos, por ver a si mesmo em cada</p><p>um.</p><p>126. Leva a oração à sua perfeição quem faz frutificar, para Deus, toda sua</p><p>inteligência primordial [aquela do seu estado original].</p><p>127. Evite toda mentira e todo juramento se você quiser orar como monge; do</p><p>contrário, é em vão que você prega o que não lhe convém.</p><p>128. Se você quiser orar “em espírito”, não tenha aversão por ninguém e você</p><p>não terá nuvens a obscurecer sua vista durante a oração.</p><p>129. Deixe nas mãos de Deus as necessidades do corpo; será mostrar que nas</p><p>mesmas mãos você também deixará as do espírito.</p><p>130. Se você entrar na posse das promessas, você será um rei; volte seu olhar</p><p>para elas, e você carregará alegremente sua pobreza presente.</p><p>131. Não recuse a pobreza e a aflição, alimentos da prece que não pesam.</p><p>132. Que as virtudes corporais lhe sirvam para obter as da alma; que as da</p><p>alma sirvam às do espírito; e estas para a gnose imaterial e essencial.</p><p>133. Quando você rezar contra um pensamento e ele ceder facilmente,</p><p>examine de onde ele veio, para não cair numa emboscada e trair a si mesmo</p><p>pelo erro.</p><p>134. Pode acontecer que os demônios lhe sugiram pensamentos e, de outro</p><p>lado, o estimulem, como justo, a rezar contra eles e repeli-los; depois eles se</p><p>retiram por contra própria para que, enganado, você seja crédulo imaginando</p><p>que começou a vencer os pensamentos e a colocar em fuga os demônios.</p><p>291</p><p>1 Coríntios IV, 13.</p><p>135. Se você reza contra uma paixão ou contra um demônio inoportuno,</p><p>lembre-se daquele que disse: “Persegui e alcancei meus inimigos e não me</p><p>detive enquanto não se confessaram vencidos; eu os derrotei e eles não</p><p>puderam se levantar, e caíram sob meus pés...</p><p>292</p><p>” Eis o que se deve dizer para</p><p>se armar de humildade contra os adversários.</p><p>136. Não creia ter adquirido a virtude enquanto você não lutar por ela até</p><p>sangrar; pois é preciso resistir ao pecado até a morte, como diz o divino</p><p>Apóstolo, como um lutador irreprochável</p><p>293</p><p>.</p><p>137. Quando você tiver sido útil a alguém, outro o prejudicará, para que no</p><p>sentimento de injustiça o faça dizer ou fazer algo de condenável contra o</p><p>próximo, e que assim você dissipe em infelicidade tudo o que você conseguiu</p><p>juntar de felicidade. Este é o objetivo dos demônios; é preciso vigiar sempre.</p><p>138. Receba sempre os temíveis assaltos dos demônios tentando sempre</p><p>escapar à sua servidão.</p><p>139. À noite, os demônios chamam o mestre espiritual para o perturbar; de</p><p>dia, eles se servem dos homens para rodeá-lo de vicissitudes, calúnias e</p><p>perigos.</p><p>140. Não recuse os espinhos, se eles arranham os pés ao caminhar e se eles</p><p>crescem para cardar; ao menos, assim, sua roupas se tornará de uma brancura</p><p>brilhante.</p><p>141. Enquanto você não renunciar às paixões, enquanto seu intelecto se</p><p>opuser à virtude e à verdade, você não sentirá em seu seio o perfume de bom</p><p>odor.</p><p>142. Você deseja a oração? Emigre aqui e tome domicílio no céu daqui por</p><p>diante</p><p>294</p><p>, não pela simples palavra, mas pela prática angélica e a gnose divina.</p><p>292</p><p>Salmo XVII, 38-39.</p><p>293</p><p>Cf. Efésios VI, 11; Hebreus XII, 4.</p><p>294</p><p>Cf. Filipenses III, 20.</p><p>143. Se somente nas aflições você se lembra do Juízo, de como ele é</p><p>apavorante e incorruptível, você ainda não aprendeu a servir ao Senhor com</p><p>temor e a regozija-se nele com estremecimento</p><p>295</p><p>. Pois saiba que mesmo nos</p><p>despertares e nos descansos espirituais, é preciso ainda mais prestar-lhe um</p><p>culto cheio de piedade e reverência.</p><p>144. Prudente é o homem que, até alcançar a perfeita penitência, não se</p><p>separa da lembrança dolorosa de seus próprios pecados e das sanções do fogo</p><p>eterno que os castigará.</p><p>145. Aquele que, ainda cheio de pecados, ou de acessos de cólera, ousa</p><p>impudentemente chegar ao conhecimento das coisas mais divinas [a um</p><p>conhecimento mais divino das coisas], ou mesmo penetrar na oração</p><p>imaterial, receba ele a reprimenda do Apóstolo e que compreenda que é</p><p>perigoso para si orar com a cabeça descoberta, pois,</p><p>está dito: uma alma</p><p>assim deve levar sobre a cabeça o sinal da dominação, por causa dos anjos</p><p>presentes</p><p>296</p><p>”, cobrindo-se do pudor e da humildade convenientes.</p><p>146. Assim como de nada adianta, a quem está doente dos olhos, fixar a vista</p><p>insistentemente no sol do meio dia, quando ele está no seu máximo</p><p>abrasamento, tampouco de nada serve ao intelecto passional e impuro imitar a</p><p>temível e eminentíssima oração em espírito e em verdade; ao contrário, ele</p><p>provocará contra si a indignação da divindade.</p><p>147. Se aquele que leva uma oferenda ao altar não for recebido pelo mestre</p><p>incorruptível que não precisa de nada, até que se reconcilie com o próximo</p><p>que está contra ele</p><p>297</p><p>, considere quanta sobriedade, vigilância e discernimento</p><p>são precisos para oferecer a Deus um incenso agradável sobre o altar</p><p>imaterial.</p><p>148. Não seja amigo nem da verborragia nem da gabolice, porque assim não</p><p>serão suas costas que serão lavradas pelos pecadores</p><p>298</p><p>, mas seu rosto; você</p><p>servirá de diversão para eles no momento da oração, eles o seduzirão e o</p><p>295</p><p>Cf. Salmo II, 11.</p><p>296</p><p>1 Coríntios XI, 10.</p><p>297</p><p>Mateus V, 23.</p><p>298</p><p>Cf. Salmo CXXVIII, 3.</p><p>arrastarão a pensamentos heteróclitos.</p><p>149. A atenção, em busca da oração, encontrará a oração, porque se a oração</p><p>visa alguma coisa, é precisamente a atenção. Apliquemo-nos nisto.</p><p>150. A vista é o melhor de todos os sentidos; a oração é a mais divina de todas</p><p>as virtudes.</p><p>151. A excelência da oração não está na simples quantidade, mas na</p><p>qualidade, como testemunham os dois que subiram ao templo</p><p>299</p><p>, bem como a</p><p>palavra: “Nas vossas orações, não multiplicai as palavras.</p><p>300</p><p>”</p><p>152. Enquanto você tiver ainda atenção para o que vem do corpo, enquanto</p><p>sua inteligência estiver voltada para os atrativos exteriores, você não terá</p><p>ainda vislumbrado o lugar da oração: estará mesmo longe do caminho bendito</p><p>que o levará a ela.</p><p>153. Porque só quando você atingir, com suas orações, uma alegria acima de</p><p>todas as outras, é que, enfim, verdadeiramente, terá encontrado a oração.</p><p>299</p><p>Cf. Lucas XVIII, 10.</p><p>300</p><p>Mateus VI, 7.</p><p>CASSIANO O ROMANO</p><p>AO BISPO CASTOR SOBRE OS OITO</p><p>PENSAMENTOS DE MALÍCIA</p><p>AO HIGOUMENO LEÔNCIO, SERMÃO CHEIO DE</p><p>BENEFÍCIOS ESPIRITUAIS A RESPEITO DOS</p><p>PADRES DE SCETA E DO DISCERNIMENTO</p><p>Cassiano o Romano</p><p>Cassiano o Romano</p><p>Nosso santo Padre Cassiano o Romano viveu no reinado de Teodósio, por</p><p>volta do ano 430. Dentre as obras que ele escreveu, expomos aqui o tratado</p><p>sobre os oito pensamentos e o tratado sobre o discernimento, que transpiram</p><p>socorro e graça. Photius os menciona nos seguintes termos:</p><p>“O segundo tratado tem como título: “Sobre os oito pensamentos”. Ele trata</p><p>da gula, da prostituição, da avareza, da cólera, da tristeza, da acídia, da</p><p>vanglória e do orgulho. Mais do que quaisquer outros, estes textos vêm em</p><p>auxílio daqueles que escolheram travar o combate da ascese; eu também li</p><p>um terceiro pequeno tratado, no qual é ensinado o sentido do discernimento,</p><p>que ele é a maior das virtudes, de onde nasce e o quanto ele representa o</p><p>mais alto dom do alto.”</p><p>A Igreja celebra a memória de são Cassiano em 29 de fevereiro, honrando-o</p><p>com muitos louvores.</p><p>*</p><p>Cassiano não era romano de nascença. De “nação cita”, segundo Gennade de</p><p>Marselha, ele nasceu perto do ano 360. Vinte anos depois, nós o encontramos</p><p>na Palestina num mosteiro em Belém, de onde ele partiu para o Egito, atraído</p><p>pelo grande renome dos Padres do deserto. Com seu amigo Germano, ele</p><p>visitou os principais centros monásticos do Baixo Egito, em especial Nitria e</p><p>as Kellia, antes de se fixar por muitos anos no deserto de Sceta. Cerca do ano</p><p>400, as controvérsias origenistas que perturbaram o deserto obrigaram à sua</p><p>partida para Constantinopla, aonde ele foi ordenado diácono por são João</p><p>Crisóstomo. Em 404, quando este foi expulso de sua cadeira, Cassiano partiu</p><p>para Roma para interceder em seu favor perante o papa Inocêncio.</p><p>Chegando a Marselha em 415, Cassiano fundou aí a abadia de Saint-Victor e</p><p>um convento de freiras. Foi para estas comunidades e para todas as da</p><p>Provence que ele se dispôs a compor suas duas obras mais célebres, as</p><p>Instituições cenobíticas e as Conferências espirituais, nos quais ele reporta os</p><p>usos e ensinamentos dos monges do Egito. Estas obras fizeram grande</p><p>sucesso não apenas no Ocidente mas também no Oriente. Temos razões para</p><p>pensar que elas foram traduzidas ao menos parcialmente para o grego a partir</p><p>do século V, pois, desde o século seguinte a compilação sistemática dos</p><p>Apophtegma Patrum traduzida por Pelágio e João apresenta muitos extratos</p><p>manifestamente traduzidos do grego. Os extratos contidos na Filocalia</p><p>provêm, seja dos Livros V a XII das Instituições, seja das duas primeiras</p><p>Conferências. O texto grego às vezes resume o original latino, às vezes o</p><p>traduz por inteiro. É este texto grego da Filocalia que seguimos aqui.</p><p>DE SÃO CASSIANO O ROMANO AO BISPO CASTOR</p><p>SOBRE OS OITO PENSAMENTOS DE MALÍCIA</p><p>301</p><p>1. Após termos composto um primeiro sermão sobre as observâncias</p><p>presentes nos mosteiros cenobíticos, apresentaremos agora, fortalecidos pelas</p><p>preces de muitos de vocês, este texto sobre os oito pensamentos de malícia, a</p><p>saber, a gula, a prostituição, o amor ao dinheiro, a cólera, a tristeza, a acídia, a</p><p>vanglória e o orgulho.</p><p>Da continência do ventre</p><p>Trataremos primeiramente da continência do ventre que se opõe à gula, da</p><p>medida dos jejuns, da qualidade e da quantidade dos alimentos. E não</p><p>falaremos por nós mesmos, mas conforme a tradição dos santos Padres. Estes</p><p>não nos legaram uma regra única para o jejum, nem um modo único de tomar</p><p>a refeição, nem uma medida uniforme, pois nem todos possuem o mesmo</p><p>vigor, nem a mesma idade, nem a mesma saúde, nem a mesma constituição</p><p>física. Entretanto, o objetivo que foi transmitido a todos é o mesmo: fugir da</p><p>saciedade e recusar absolutamente a repleção do ventre. Eles consideravam</p><p>que o jejum cotidiano era mais benéfico e favorável à pureza do que um</p><p>jejum prolongado de três ou quatro dias ou mesmo de uma semana. De fato, o</p><p>prolongamento excessivo do jejum é, muitas vezes, pior do que o excesso de</p><p>alimento. Pois na seqüência de uma abstinência imoderada o corpo está</p><p>enfraquecido e não é mais assíduo das liturgias espirituais, enquanto que o</p><p>corpo pesado pelo excesso de comida causa à alma a acídia e o relaxamento.</p><p>[5,2] Por outro lado, eles achavam que não convém a todos comer apenas</p><p>legumes verdes ou secos e que nem todos podem se alimentar só de pão seco.</p><p>Um, diziam eles, come duas libras de pão e ainda tem fome; outro fica</p><p>saciado com uma libra ou mesmo com apenas seis onças. Assim, a todos,</p><p>como foi dito, eles transmitiram uma única regra de continência: não ser</p><p>traído pela saciedade do ventre</p><p>302</p><p>, nem arrastado pelo prazer da boca. Pois</p><p>301</p><p>Cf. Instituições cenobíticas, 5-12; P.G. 28, 872-905.</p><p>302</p><p>Cf. Provérbios XXIV, 15.</p><p>não é somente a qualidade dos alimentos, mas também a quantidade que</p><p>normalmente atiça os tragos inflamados da prostituição.</p><p>[5,6] De fato, qualquer que seja o alimento com o qual o ventre foi</p><p>preenchido, ele engendra uma semente de prostituição. E não é somente o</p><p>excesso de vinho que embriaga a razão, mas também a superabundância de</p><p>água e o excesso de qualquer comida a tornam pesada e sonolenta. A ruína</p><p>dos Sodomitas não foi causada pela embriaguez do vinho e o excesso de</p><p>comidas variadas, mas, segundo</p><p>nascente. Na fase de “adesão”,</p><p>chega a vez de a vontade consentir. Assim vêm a “realização” e o “hábito”,</p><p>gosto e desgosto, fausto e tristeza.</p><p>Mas a admiração dos “padres népticos” pela grandeza e bondade do homem é</p><p>tal que eles costumam ver na paixão, claro que com nossa livre e plena</p><p>cumplicidade, uma espécie de possessão. “Satanás caiu e foi destruído, [mas]</p><p>nossa inteligência não o faz menos forte e ele se orgulha de nós</p><p>27</p><p>.” Nas</p><p>Homílias macarianas, quando se comenta o relato simbólico da queda no</p><p>Gênesis, “a serpente enganadora fez sua morada no homem, e é como se este</p><p>tivesse recebido uma outra alma ao lado da sua própria alma... No homem</p><p>existe um assassino, ou seja, uma força inimiga, que é invisível e se opõe a</p><p>ele</p><p>28</p><p>.” Realidade ou alucinação, pergunta-se Ivan Karamazov, gaiola de</p><p>espelhos aonde o homem se multiplica e se desagrega – pois o demônio</p><p>expulso do possesso geraseno confessa que ele é “legião</p><p>29</p><p>” –, perversidade do</p><p>mal que não é apenas uma tendência da criação na direção do nada de onde</p><p>ela foi extraída, mas que corresponde a um igual número de perspectivas do</p><p>homem secretamente aguilhoado pela morte, tomado pela “força inteligente</p><p>do adversário que age secretamente no seu interior</p><p>30</p><p>”. Dialética do interior e</p><p>do exterior, que seria presunção desembaraçar, pois “somente aqueles que</p><p>25</p><p>Centúrias sobre o amor III, 4.</p><p>26</p><p>P. ex., Hesíquio de Bathos, Capítulos sobre a sobriedade e a vigilância, 44-46.</p><p>27</p><p>Gregório o Sinaíta, 137 sentenças diversas, 70.</p><p>28</p><p>Homilias espirituais de são Macário XV, 48-49.</p><p>29</p><p>Marcos V, 9; Lucas VIII, 30.</p><p>30</p><p>Homilias espirituais de são Macário XV, 48-49.</p><p>obtiveram a paz de Cristo e sua luz sabem de onde ela provém</p><p>31</p><p>”.</p><p>Antecipemos: a impassibilidade (apatheia) à qual se chega pela ascese não é</p><p>insensibilidade, mas liberdade interior, capacidade de conhecer e de amar</p><p>com toda nossa força de paixão transfigurada pelo “amor louco” de Deus pelo</p><p>homem. “A impassibilidade é o objetivo da práxis... ela precede e permite o</p><p>amor, e o amor permite o conhecimento</p><p>32</p><p>.”</p><p>V</p><p>FÉ, TEMOR A DEUS, LEMBRANÇA DA MORTE</p><p>Para a Filocalia, e é o que lhe dá seu caráter propriamente cristão, a fé</p><p>constitui o primeiro e o último passo da vida espiritual. Toda plenitude “está</p><p>concentrada no interior da fé”, diz Máximo o Confessor</p><p>33</p><p>. Somente a fé, não</p><p>como “crença”, mas como relação, como confiança fundamental em Alguém,</p><p>pode nos abrir o caminho para a vida ressuscitada que transformará em</p><p>“virtudes” a energia usurpada pelas paixões.</p><p>A fé é um encontro, ela aprofunda-se em uma “sinergia”, uma colaboração</p><p>entre o Espírito de Deus e a liberdade do homem; através das “virtudes” que</p><p>são outras tantas modalidades da “vida em Cristo”, ela permite a paz, o</p><p>silêncio interior, o amor verdadeiro.</p><p>Em suas Centúrias, Inácio e Calisto Xanthopouloi mostram que a fé está</p><p>ligada à invocação fervente de Jesus; aquele a quem amamos, em quem</p><p>depositamos nossa confiança, a este não cessamos de chamar, pois ele disse:</p><p>“Sem mim vocês nada podem fazer</p><p>34</p><p>”. Eles acrescentam que “a fé celebra</p><p>entre Deus e os santos a liturgia dos mistérios inefáveis” aos quais antecipa-se</p><p>a última</p><p>35</p><p>.</p><p>Agora o intelecto e o coração (cuja ligação fundamental aparece cada vez</p><p>31</p><p>Ibidem</p><p>32</p><p>Evagro o Pôntico, Tratado prático, 53.</p><p>33</p><p>Questões a Thalassius, 55.</p><p>34</p><p>João XV, 5. Inácio e Calixto Xanthopouli, Centúria espiritual 8.</p><p>35</p><p>Ibidem, 16B</p><p>mais) se invertem na metanóia, um termo que, mais do que arrependimento,</p><p>designa uma reviravolta de toda nossa compreensão do real. Verdadeira</p><p>revolução copernicana que substitui o mundo do narcisismo pelo da</p><p>alteridade, o mundo do homem destinado à morte pelo Deus-homem e nele do</p><p>homem-em-comunhão destinado à ressurreição.</p><p>A passagem não é alegria, mas crise, e muitas vezes crise terrível, como o</p><p>amor. A fé nos faz entrar na luz de uma presença, uma luz infinitamente doce,</p><p>mas também infinitamente lúcida (em todos os sentidos do termo), na qual</p><p>nossa consciência julga a si mesma, como às vezes ela o faz num olhar de</p><p>criança. O homem sai então de seu sonambulismo e de suas ilusões para</p><p>conhecer, estreitamente imbricados, o “temor a Deus” e a “lembrança da</p><p>morte”.</p><p>O “temor a Deus”, uma expressão que é quase impossível empregar hoje em</p><p>dia, não implica assim uma concepção terrorista do divino, nem uma obsessão</p><p>malsã da culpabilidade individual. “Deus é amor”, e ele nos chama a tomar</p><p>consciência tanto da condição humana real como de nossa responsabilidade</p><p>para com esta condição.</p><p>O “temor a Deus” nos faz tomar consciência, numa grande convulsão, da</p><p>morte espiritual que nos soterra e da angústia não apenas psicológica: existem</p><p>médicos para esta, não tão metafísica que se enrodilha no mais profundo de</p><p>nós. Sentimos que “este mundo” de “vaidade”, como diz são Paulo</p><p>36</p><p>, ou seja,</p><p>de vazio, de nada, vai nos absorver. E nós sufocamos neste vazio. Mas a</p><p>angústia, quando se abre sobre o nada, abismo e platitude é insuportável, e</p><p>nós nos desembaraçamos dela, como sugerimos, avaliando-a em termos de</p><p>necessidades e medos, medos, a cada vez, como diz Heidegger em O ser e o</p><p>tempo, “de alguma coisa do mundo”, este mundo no qual fomos jogados</p><p>como náufragos perdidos. “É notável como, quando passa a angústia, dizemos</p><p>de bom grado: não era nada – e é justamente este nada que nos angustiava.”</p><p>“Temor a Deus” e “lembrança da morte” desnudam por sob tantas</p><p>preocupações, acusações, justificativas, até mesmo sob tanta agitação</p><p>piedosa, esta angústia fundamental. Esta recusa em nos identificarmos com o</p><p>jogo mortal deste mundo, com suas drogas, suas importâncias, com a</p><p>36</p><p>Romanos VIII, 20.</p><p>impessoalidade da espécie que faz nascer apenas para matar, desperta nossa</p><p>responsabilidade: por nossa cegueira, faltamos ao outro, e em nosso destino</p><p>pessoal, faltamos a Deus! A angústia designa a ausência de Deus, ou antes,</p><p>minha ausência em relação a Deus, e eis, por instantes, na vida mais</p><p>cotidiana, o que se pode bem chamar de inferno.</p><p>Hoje em dia o teatro do absurdo, os aforismas da insignificância, aliás muito</p><p>inspirados por romenos marcados pela literatura ascética da Ortodoxia, como</p><p>Ionesco e Cioran, orquestram na cultura mais profana uma gigantesca</p><p>“lembrança da morte”. Entretanto, esta, na perspectiva da ascese, no grito de</p><p>profundis da fé, não participa desta vertigem. Ela descobre que Alguém, que</p><p>desceu vitoriosamente ao inferno e continua sempre a descer, interpõe-se</p><p>definitivamente entre o nada e nós.</p><p>Então a “lembrança da morte” se torna “lembrança de Deus”. Não de</p><p>qualquer imagem de Deus, mas do Deus humilhado, crucificado, ressuscitado</p><p>e que nos ressuscita. A angústia, com todo seu peso, se torna confiança. E</p><p>docemente, sem franzir o cenho, os olhos ficam marejados. É o penthos, o</p><p>coração de pedra que se parte, o luto dos monges orientais em seus trajes</p><p>negros sobre quê, nos mais avançados, estão representados os instrumentos da</p><p>Paixão. É a nostalgia do Adão que somos todos nós quando nos descobrimos</p><p>exilados do paraíso. Tão próximo este paraíso, num olhar, num sorriso, num</p><p>jardim onde, à noite, canta o rouxinol, e, no entanto, sempre perdido diante do</p><p>triunfo inelutável do horror. No jardim está o túmulo de Narciso, e fechamos</p><p>os olhos que nos iluminavam.</p><p>Então repetimos o Kyrie eleison e, com “lágrimas ascéticas”, entramos no</p><p>mistério da Agonia no Jardim das Oliveiras, na “fonte de lágrimas” aberta</p><p>pela lança no flanco oferecido do Bem-amado.</p><p>Mas Maria de Magdala descobre, junto ao túmulo, o jardineiro. O paraíso se</p><p>reabre, as lágrimas de amargura e de cumplicidade se transformam em</p><p>lágrimas de alegria: “pneumáticas”, espirituais. As lágrimas se</p><p>o profeta, pela saciedade de pão</p><p>303</p><p>.</p><p>[5,7] A fraqueza do corpo não é um obstáculo à pureza do coração, quando</p><p>damos ao corpo o que a fraqueza exige, não o que o prazer deseja. É preciso</p><p>utilizar os alimentos na medida em que são úteis para viver e não a ponto de</p><p>nos tornarmos presas dos assaltos da concupiscência. A absorção moderada e</p><p>razoável de alimentos, para manter a saúde do corpo, não destrói a pureza.</p><p>[5,8] Uma medida e uma regra exata da temperança nos foram transmitidas</p><p>pelos Padres: quando comemos, devemos parar enquanto ainda temos apetite</p><p>sem esperar estarmos saciados. Quando o Apóstolo diz que não devemos nos</p><p>preocupar com a carne no sentido de satisfazer sua concupiscência</p><p>304</p><p>, ele não</p><p>proíbe prover as necessidades da vida, mas condena a busca do prazer.</p><p>[5,10] Por outro lado, para uma perfeita pureza da alma, apenas a abstinência</p><p>de alimento não é suficiente sem o socorro das demais virtudes. Assim, a</p><p>humildade, pela prática da obediência e pelo labor que doma o corpo, nos traz</p><p>grandes benefícios. Abster-se da avareza, não apenas das riquezas, mas até do</p><p>desejo de adquiri-las, conduz à pureza da alma. A abstinência de cólera, de</p><p>tristeza, de vanglória e de orgulho, tudo isto produz a pureza universal da</p><p>alma. Mas para a pureza específica da alma que é obtida pela castidade, a</p><p>abstinência e o jejum possuem uma eficácia notável. É de fato impossível a</p><p>quem enche o ventre, de combater o espírito da prostituição em seu</p><p>pensamento. Eis porque nosso primeiro combate deve ser o de dominar o</p><p>ventre e reduzir o corpo à escravidão, não apenas pelo jejum, mas pelas</p><p>vigílias, a prece, a leitura e a concentração do coração no temor da Geena e</p><p>no desejo pelo Reino dos céus.</p><p>303</p><p>Ezequiel XVI, 49.</p><p>304</p><p>Romanos XIII, 14.</p><p>Do espírito da prostituição e da concupiscência da carne</p><p>2. [6,1] Nosso segundo combate é contra o espírito da prostituição e a</p><p>concupiscência da carne, que começa a atormentar o homem desde a primeira</p><p>idade. É um combate imenso e difícil, pois comporta uma dupla luta.</p><p>Enquanto que os outros vícios são combatidos apenas na alma, este deve sê-lo</p><p>simultaneamente na alma e no corpo: assim, é preciso travar contra ele um</p><p>duplo combate. Com efeito, o jejum corporal não é bastante pata para adquirir</p><p>a castidade perfeita e a verdadeira pureza, se não existir ao mesmo tempo</p><p>também a contrição do coração, uma prece dirigida a Deus com perseverança,</p><p>uma meditação contínua das Escrituras, a fadiga e o trabalho manual, tudo</p><p>aquilo que pode reprimir os impulsos flutuantes da alma e desviá-la das</p><p>imaginações vergonhosas. Mas, sobretudo, é preciso a humildade da alma,</p><p>pois, sem ela, não é possível dominar a prostituição, tanto quanto os outros</p><p>vícios.</p><p>[6,2] É preciso, antes de mais nada, guardar com o maior cuidado o coração</p><p>305</p><p>dos pensamentos impuros. Pois, como disse o Senhor, “é do coração que</p><p>saem os maus pensamentos, homicídios, adultérios, prostituição e todo o</p><p>resto</p><p>306</p><p>”. De fato, o jejum não nos foi ordenado apenas para atormentar o</p><p>corpo, mas também para manter o intelecto sóbrio e vigilante; este,</p><p>obscurecido pelo excesso de comida, é incapaz de supervisionar os</p><p>pensamentos. Certamente, é preciso mostrar o maior zelo no jejum corporal,</p><p>mas também na guarda dos pensamentos e na meditação espiritual; senão é</p><p>impossível elevar-se ao cume da castidade e da pureza. É preciso então, como</p><p>diz o Senhor, purificar primeiro o interior do copo e do prato, a fim de que o</p><p>exterior fique puro</p><p>307</p><p>.</p><p>[6,5] É por isso que, se tivermos no coração a determinação, como diz o</p><p>Apóstolo, de combater segundo as regras e sermos coroados</p><p>308</p><p>por haver</p><p>vencido o espírito da prostituição, não o confiemos à nossa própria força e à</p><p>nossa ascese, mas ao auxílio de Deus nosso Senhor. Pois não haverá repouso</p><p>305</p><p>Cf. Provérbios IV, 23.</p><p>306</p><p>Mateus XV, 19.</p><p>307</p><p>Mateus XXIII, 26.</p><p>308</p><p>Cf. 2 Timóteo II, 5; IV, 7.</p><p>para o homem atacado por este espírito enquanto ele não crer realmente que</p><p>não será nem por sua aplicação nem por suas penas , mas pela proteção e a</p><p>ajuda de Deus, que ele poderá se livrar desta doença e atingir o cume da</p><p>castidade.</p><p>[6,6] A coisa está acima da natureza e se trata, de certa maneria, de sair da</p><p>carne, mais do que pisotear os aguilhões da carne e de seus prazeres sob seus</p><p>pés. Eis porque, é, por assim dizer, impossível ao homem elevar-se com suas</p><p>próprias asas até este cume e esta recompensa celeste, e tornar-se o imitador</p><p>dos anjos; é preciso que a graça de Deus o arranque da terra e da lama. Com</p><p>efeito, nenhuma outra virtude, tanto quanto a castidade, torna iguais os anjos</p><p>e os homens ligados à carne. Por meio desta virtude, ainda que vivam sobre a</p><p>terra, eles possuem, segundo o Apóstolo, “sua cidadania nos céus</p><p>309</p><p>”.</p><p>[6,10] O sinal de que você adquiriu esta virtude com perfeição é que a alma já</p><p>não se volta para nenhuma imagem vergonhosa durante o sonho. Pois, ainda</p><p>que este movimento não seja visto como um pecado, ele é considerado um</p><p>sinal de que a alma ainda está enferma e não se libertou das paixões.</p><p>[6,11] Eis porque devemos crer que as representações vergonhosas que nos</p><p>sobrevêm durante o sonho são provas de nossa negligência passada e de nossa</p><p>enfermidade: a doença oculta nas profundezas da alma se manifesta num</p><p>corrimento favorecido pelo sonho.</p><p>[6,12] É por isso que o médico de nossas almas colocou o remédio nas</p><p>mesmas profundezas da alma, aonde se encontram, como ele bem o sabia, as</p><p>causas da enfermidade: “Aquele que olhar uma mulher para desejá-la,</p><p>cometeu adultério com ela em seu coração</p><p>310</p><p>”. Ao falar assim, ele não</p><p>condenava tanto os olhos curiosos e lascivos, quanto a alma que, escondida</p><p>no interior, fez mau uso dos olhos dados por Deus para o bem. É por isso que</p><p>o Sábio dos Provérbios não disse: “Vigie seus olhos”, mas “Vigie seu</p><p>coração</p><p>311</p><p>”, impondo o remédio àquele que se serve dos olhos ao bel prazer.</p><p>[6,13] Eis, portanto, a primeira precaução que deve tomar nosso coração [o</p><p>309</p><p>Filipenses II,I 20.</p><p>310</p><p>Mateus V, 28.</p><p>311</p><p>Provérbios IV, 23.</p><p>primeiro cuidado com nossa purificação]: quando, pela malícia do diabo, se</p><p>introduzir em nosso pensamento a lembrança de uma mulher, seja da mãe, da</p><p>irmã ou de uma mulher piedosa, devemos tirá-la o quanto antes de nosso</p><p>coração, pois, se demorarmos um pouco só, o demônio enganador e mau</p><p>precipitará o espírito do alto abaixo, destas imagens aos pensamentos funestos</p><p>e vergonhosos. É por isso que Deus deu-nos no princípio o mandamento de</p><p>tomar cuidado com a cabeça da serpente</p><p>312</p><p>, ou seja, ao surgimento dos maus</p><p>pensamentos, por meio dos quais o diabo procura escorregar para dentro de</p><p>nossas almas. Senão, uma vez que a cabeça penetrou, ou seja, o primeiro</p><p>assalto do pensamento, acabamos por acolher o resto do corpo da serpente, a</p><p>saber, o consentimento ao prazer, e a partir daí o espírito será obrigado a fazer</p><p>o que não lhe é permitido. É preciso, ao contrário, dar morte “desde a manhã,</p><p>como está escrito, a todos os pecadores que se erguem da terra</p><p>313</p><p>”, ou seja,</p><p>discernir à luz da ciência e exterminar da terra de nosso coração os</p><p>pensamentos que só conduzem ao pecado, conforme o ensinamento do</p><p>Senhor</p><p>314</p><p>. E, enquanto ainda são pequenas, é preciso exterminar as crias da</p><p>Babilônia, quero dizer os pensamentos perversos, e destroçá-las contra o</p><p>rochedo</p><p>315</p><p>que é Cristo. Pois, se com nosso consentimento, elas chegarem a</p><p>crescer, só as dominaremos à custa de muitos gemidos e penas.</p><p>[6,19] Além dessas palavras da divina Escritura, podemos também mencionar</p><p>as palavras dos santos Padres. São Basílio, bispo de Cesaréia e da Capadócia,</p><p>disse um dia: “Eu nunca conheci mulher, e, no entanto, não</p><p>sou virgem</p><p>316</p><p>”.</p><p>Ele sabia muito bem que o dom da castidade não consiste tanto em se privar</p><p>de mulher, como em guardar a pureza e a castidade da alma, o que</p><p>normalmente se realiza pelo temor a Deus.</p><p>[6,18] Os Padres também disseram o seguinte: Não podemos adquirir com</p><p>perfeição a virtude da pureza sem antes adquirir a verdadeira humildade em</p><p>nosso coração Tampouco receberemos a verdadeira ciência enquanto</p><p>312</p><p>Gênesis III, 15.</p><p>313</p><p>Salmo C, 8.</p><p>314</p><p>Cf. Mateus XV, 19.</p><p>315</p><p>Cf. Salmo CXXXVI, 9.</p><p>316</p><p>Esta citação não se encontra tal e qual nas obras de são Basílio. Encontramos algo</p><p>próximo (“Eu escapei ao ato da fornicação, mas manchei minha virgindade nos pensamentos</p><p>de meu coração”) na Carta XVII, 4; porém, esta carta parece não ser de são Basílio, mas de são</p><p>Nilo.</p><p>ocultarmos a paixão da prostituição nas profundezas da alma.</p><p>[6,16] E para mostrarmos também pelo testemunho do Apóstolo a</p><p>recompensa da castidade, terminaremos citando uma única sentença:</p><p>“Busquem a paz com todos e a santidade, sem as quais ninguém verá ao</p><p>Senhor</p><p>317</p><p>”. Que se trata da castidade, a seqüência o mostra: “Que ninguém</p><p>seja impudico ou profanador como Esaú</p><p>318</p><p>”. E quanto mais o avanço da</p><p>santidade é celeste e angélico, tanto mais ela é vítima de ataques cada vez</p><p>mais violentos dos adversários. É por isso que devemos nos aplicar não</p><p>somente à continência do corpo, mas também à contrição do coração e às</p><p>penitências [orações] freqüentes com gemidos, a fim de que, pelo orvalho da</p><p>presença do Espírito Santo, possamos extinguir a fornalha da nossa carne, que</p><p>o rei da Babilônia atiça a cada dia com as tochas da concupiscência</p><p>319</p><p>.</p><p>[6,23] Mas acima de tudo, a grande arma que está à nossa disposição para o</p><p>combate, é a vigília com Deus. Pois, assim com a vigilância do dia prepara a</p><p>santidade da noite, também a vigília noturna com Deus prepara a alma para a</p><p>pureza durante o dia.</p><p>Da avareza</p><p>3. [7,1] Nosso terceiro combate é contra o espírito da avareza. Ele é</p><p>manifestamente estranho à nossa natureza e, num monge, ele tem sua origem</p><p>na falta de fé. De fato, os vícios que excitam as demais paixões, vale dizer, a</p><p>cólera e a concupiscência, parecem ter seus princípios no corpo, eles são de</p><p>certa forma inatos e começam já no nascimento; é por isso que é preciso</p><p>muito tempo para vencê-los.</p><p>[7,2] A doença da avareza, que ao contrário provém do exterior, pode ser</p><p>evitada com mais facilidade, se dermos provas de preocupação, sobriedade e</p><p>vigilância. Mas, se a negligenciarmos, ela se tornará mais perigosa do que as</p><p>outras paixões e mais difícil de ser rejeitada, pois ela é “a raiz de todos os</p><p>males”, conforme o Apóstolo</p><p>320</p><p>.</p><p>317</p><p>Hebreus XII, 14.</p><p>318</p><p>Hebreus XII, 16.</p><p>319</p><p>Cf. Daniel III, 19.49 ss.</p><p>320</p><p>Cf. 1 Timóteo VI, 10.</p><p>[7,3] Não vemos, com efeito, os movimentos naturais do corpo, não apenas</p><p>em crianças que ainda não possuem o discernimento do bem e do mal, mas</p><p>até nas menores que sequer desmamaram? Sem ter nelas o menor traço de</p><p>voluptuosidade, elas entretanto mostram em sua carne estes movimentos</p><p>naturais. Da mesma forma, podemos constatar nas crianças o aguilhão da</p><p>cólera quando as vemos irritadas contra alguém que lhes fez mal. Digo isto,</p><p>não para acusar a natureza como causa do pecado, que Deus não permita!,</p><p>mas para mostrar que a cólera e a concupiscência, mesmo estreitamente</p><p>unidas ao homem pelo Criador para seu bem, podem, por negligência,</p><p>transformar de certa maneira os movimentos naturais do corpo em atos contra</p><p>a natureza. Com efeito, o movimento do corpo foi dado por Deus para a</p><p>procriação e o prolongamento da raça, não para a prostituição. A excitação da</p><p>cólera também pode ser salutar, para a dirigirmos contra os vícios e não para</p><p>que fiquemos furiosos com nosso irmãos.</p><p>[7,4] Não, é claro, que a natureza seja má e que possamos responsabilizar o</p><p>Criador; da mesma forma, se dermos um pedaço de ferro a alguém para um</p><p>uso necessário e útil, ele pode também usá-lo para cometer um crime.</p><p>[7,5] Dizemos tudo isso para mostrar que a paixão da avareza não extrai seu</p><p>princípio dos elementos naturais, mas apenas da vontade má e corrompida.</p><p>[7,7] Com efeito, esta doença, quando encontra a alma morna e com pouca fé</p><p>no início da renúncia, lhe sugere motivos justos e aparentemente razoáveis</p><p>para que a pessoa guarde um pouco daquilo que ela possui. A avareza</p><p>apresenta ao espírito do monge uma velhice longa e as enfermidades do</p><p>corpo, alegando que o que é dado pelo mosteiro não é suficiente, não digo aos</p><p>enfermos, mas até aos que gozam de boa saúde, que ninguém ali se preocupa</p><p>muito com os doentes, que eles chegam a ser abandonados, e que se não</p><p>tiverem um pouco de ouro guardado, morrerão de miséria. Finalmente, ela</p><p>sugere ao monge que ele não conseguirá permanecer por muito tempo ainda</p><p>no mosteiro, pela carga das observâncias e o rigor do superior. Quando ela</p><p>logrou desorientar o espírito com estes pensamentos para que ele guarde ao</p><p>menos alguns centavos, ela ainda persuade o monge a aprender, sem que o</p><p>abade saiba, algum trabalho com o qual ele possa aumentar suas economias.</p><p>Assim ela desvia o infeliz para esperanças incertas, sugerindo-lhe os ganhos</p><p>com seu trabalho, o repouso e a despreocupação que ele tirará disso. Entregue</p><p>por completo à idéia de ganhar, ele não vê nada contra; nem a loucura furiosa</p><p>que o tomará se lhe acontecer uma perda, nem as trevas da tristeza caso ele se</p><p>veja privado dos ganhos com os quais contava. Para ele, o ouro tomou o lugar</p><p>de Deus, assim como, para outros, o ventre</p><p>321</p><p>. Assim, o bem-aventurado</p><p>Apóstolo, sabendo disto, chamou a esta doença não somente de “raiz de todos</p><p>os males</p><p>322</p><p>”, mas de “idolatria</p><p>323</p><p>”. Vemos com isto a que ponto de malícia</p><p>esta doença arrasta o homem, até atirá-lo na idolatria.</p><p>[7,8] Depois que o avaro desviou seu intelecto do amor de Deus, ele começa a</p><p>adorar as imagens dos homens gravadas no ouro. Cego por esses pensamentos</p><p>e progredindo no mal, ele já não consegue se manter obediente mas se irrita,</p><p>se indigna e resmunga por qualquer trabalho,opõe-se a ele e, não tendo mais</p><p>nenhum respeito por ninguém, é arrastado ao precipício como um cavalo</p><p>bravo. Descontente com a alimentação costumeira, ele protesta que não</p><p>poderá mais suportar isto, que Deus não está apenas ali, que sua salvação não</p><p>está ligada apenas àquele lugar e que ele vai se perder se não deixar o</p><p>mosteiro.</p><p>[7,9] Tendo dinheiro reservado para apoiar sua opinião corrompida, ele é</p><p>como que levado por suas asas e começa a ruminar sua despedida do</p><p>mosteiro. A partir daí ele responde com insolência e azedume a todas as</p><p>ordens que lhe são dadas e, comportando-se como um hóspede ou um</p><p>estrangeiro, negligencia e despreza tudo o que, no mosteiro, precisa ser</p><p>retificado, e condena tudo o que é feito. Depois ele começa a encontrar razões</p><p>para se irritar ou se entristecer, a fim de não dar a impressão de deixar o</p><p>mosteiro levianamente e sem razão. E ele pode fazer com que, por meio de</p><p>enganações, cochichos e vãos propósitos, algum outro o acompanhe em sua</p><p>saída, para que ele consiga ao menos um cúmplice em sua queda.</p><p>[7,10] Assim inflamado pelo fogo de suas próprias riquezas, o avaro já não</p><p>poderá estar em paz no mosteiro e viver sob uma regra. Então o demônio,</p><p>qual um lobo, o leva da comunidade, o separa da tropa e o agarra como uma</p><p>presa fácil de devorar. Ele o estimula a negligenciar os trabalhos que se</p><p>realizam em horários fixos no mosteiro e a fazê-los zelosamente em sua</p><p>321</p><p>Cf. Filipenses III, 19.</p><p>322</p><p>1 Timóteo VI, 10.</p><p>323</p><p>Colossenses III, 5.</p><p>própria cela noite e dia. Ele não o deixa mais observar as orações habituais,</p><p>nem a medida dos jejuns, nem a regra das vigílias,</p><p>tendo-o laçado com a</p><p>paixão da avareza, e o persuade a empenhar-se no trabalho manual.</p><p>[7,14] Esta doença apresenta três formas que as divinas Escrituras e os</p><p>ensinamentos dos Padres reprovam da mesma maneira. A primeira leva os</p><p>infelizes a adquirir e juntar riquezas que antes não possuíam neste mundo. A</p><p>segunda traz o arrependimento pelas riquezas às quais se renunciou e incita a</p><p>recuperar aquilo que foi oferecido a Deus. A terceira engaja o monge desde o</p><p>início na falta de fé e de ardor, e o impede de se despojar completamente dos</p><p>bens deste mundo, fazendo-o temer o despojamento e duvidar da providência</p><p>de Deus. Ele se mostra assim infiel às promessas que fez ao renunciar ao</p><p>mundo. Encontramos exemplos de condenação destas três formas da avareza</p><p>nas Sagradas Escrituras. Giezi, pretendendo adquirir riquezas que não possuía</p><p>antes, Foi privado do dom da profecia que seu mestre pretendia deixar-lhe em</p><p>herança, e, em lugar da bênção, herdou uma lepra eterna por causa da</p><p>maldição do profeta</p><p>324</p><p>. Judas, que quis reaver os bens aos quais havia</p><p>renunciado ao seguir Cristo, não apenas chegou a trair a Cristo e perder sua</p><p>posição de apóstolo, mas ainda pôs fim à sua vida física por uma morte</p><p>violenta</p><p>325</p><p>. Ananias e Safira, por terem guardado uma parte dos seus bens,</p><p>forma, foram punidos de morte pelas palavras do Apóstolo</p><p>326</p><p>.</p><p>[7,15] O grande Moisés dá esta advertência no Deuteronômio, no sentido</p><p>espiritual, para aqueles que querem renunciar ao mundo, mas permanecem</p><p>ligados às coisas terrestres pelo medo que lhes causa a falta de fé: “Se o</p><p>homem é covarde e tem o coração medroso, é melhor que ele não parta para o</p><p>combate; que ele retorne à sua casa, para não assustar o coração dos seus</p><p>irmãos.</p><p>327</p><p>” O que pode haver de mais claro do que este testemunho? Não</p><p>aprendemos com estas palavras que aqueles que renunciam ao mundo devem</p><p>fazê-lo por completo e apresentar-se assim para o combate, para não desviar</p><p>os outros da perfeição evangélica, inspirando-lhes medo com um começo</p><p>fraco e corrupto?</p><p>324</p><p>Cf. 2 Reis V, 27.</p><p>325</p><p>Cf. Mateus XXVII, 5.</p><p>326</p><p>Cf. Atos V, 5 e 10.</p><p>327</p><p>Deuteronômio XX, 8.</p><p>[7,16] Bem que está dito na divina Escritura que “é melhor dar do que</p><p>receber</p><p>328</p><p>”, mas o avaro entende erradamente a frase e distorce o texto com</p><p>suas manobras e a cobiça de sua avareza, alterando o sentido das palavras e</p><p>do ensinamento do Senhor, que diz: “Se você quiser ser perfeito, vá, venda</p><p>tudo o que possui e dê aos pobres, e você terá um tesouro nos céus; depois,</p><p>siga-me</p><p>329</p><p>”. Eles acham preferível usufruir de suas riquezas e dar o supérfluo</p><p>aos pobres. Estes homens deveriam saber que eles ainda não renunciaram ao</p><p>mundo nem abraçaram a perfeição monástica enquanto ainda ficarem</p><p>vermelhos em assumir o despojamento do Apóstolo e de ajudar os indigentes</p><p>com o trabalho das suas mãos. Se eles quiserem preencher realmente sua</p><p>confissão monástica e, tendo distribuído toda sua riqueza anterior, glorificar-</p><p>se com o Apóstolo “na fome e na sede, no frio e na nudez</p><p>330</p><p>”, eles</p><p>conduzirão, com Paulo, o “bom combate</p><p>331</p><p>”.</p><p>[7,17] Com efeito, se o mesmo Apóstolo achasse necessário para a perfeição</p><p>manter seus antigos bens, ele não teria desdenhado de sua dignidade, ele que</p><p>era de nascimento nobre e cidadão romano</p><p>332</p><p>. E os que, em Jerusalém, eram</p><p>“possuidores de mansões e campos e que deixavam aos pés dos apóstolos o</p><p>dinheiro da venda</p><p>333</p><p>”, não teriam agido assim se soubessem que os apóstolos</p><p>julgavam melhor subsistir de seus próprios recursos do que com o trabalho de</p><p>suas mãos e as doações dos cidadãos. O Apóstolo ensina isto claramente</p><p>quando escreve aos romanos: “Agora eu parto para Jerusalém para servir aos</p><p>santos (de fato, ele pedira, na Macedônia e na Acádia, que se fizesse uma</p><p>coleta para os santos de Jerusalém, ou seja, para os pobres). Ele lhes pediu e</p><p>eles são seus devedores.</p><p>334</p><p>”</p><p>O próprio Apóstolo, muitas vezes encarcerado e cativo ou entravado pelos</p><p>incômodos da viagem, e, por causa disto, incapaz de prover por suas próprias</p><p>mãos sua subsistência, como estava acostumado, declarou haver recebido esta</p><p>subsistência dos irmãos vindos da Macedônia: “Pois, disse ele, o que me</p><p>328</p><p>Atos XX, 35.</p><p>329</p><p>Mateus XIX, 21.</p><p>330</p><p>2 Coríntios XI, 27.</p><p>331</p><p>2 Timóteo IV, 7.</p><p>332</p><p>Cf. Atos XXII, 25-28.</p><p>333</p><p>Atos IV, 34-35.</p><p>334</p><p>Romanos XV, 25-27.</p><p>faltou foi suprido pelos irmãos vindos da Macedônia</p><p>335</p><p>”; e ele escreveu aos</p><p>Filipenses: “Também vocês sabem, Filipenses, que, quando eu parto da</p><p>Macedônia, nenhuma igreja me amparou em termos de contribuição</p><p>pecuniária, salvo a de vocês; pois quando eu estava em Tessalônica, por duas</p><p>vezes vocês me enviaram aquilo de que eu estava necessitado</p><p>336</p><p>”. Teriam sido</p><p>estes cristãos, na opinião dos avaros, mais felizes do que o Apóstolo, porque</p><p>supriram suas necessidades com seus próprios bens? Ninguém será louco de</p><p>dizê-lo.</p><p>[7,18] É por isso que, se quisermos seguir o preceito evangélico e imitar toda</p><p>a Igreja fundada desde a origem sobre os apóstolos, não devemos nos fiar em</p><p>nossas próprias opiniões nem interpretar mal aquilo que foi expresso.</p><p>Rejeitando a perspectiva morna e a falta de fé, sigamos exatamente o</p><p>Evangelho. Assim poderemos caminhar sobre as pegadas dos Padres sem</p><p>jamais nos distanciar da disciplina do mosteiro, e renunciar ao mundo com</p><p>toda a verdade.</p><p>[7,19] É bom lembrar aqui as palavras de um santo. Diz-se que são Basílio,</p><p>bispo de Cesaréia, dirigiu-se a um senador que havia renunciado ao mundo</p><p>sem fervor e reservado para si um pouco de suas posses nestes termos: “Você</p><p>perdeu o senador e não adquiriu o monge</p><p>337</p><p>”. É preciso, assim, que, com o</p><p>maior cuidado, expulsemos de nossa alma a raiz de todos os males, vale dizer,</p><p>a avareza, sabendo que, se a raiz permanecer, os ramos crescerão facilmente.</p><p>[7,29] É difícil adquirir esta virtude sem viver numa comunidade, pois aí</p><p>estaremos livres de toda a preocupação em relação às coisas necessárias.</p><p>[7,30] Lembrando-nos do castigo de Ananias e Safira</p><p>338</p><p>, devemos temer</p><p>guardar para nós seja o que for que possuímos. Temendo o exemplo de Gieze</p><p>que, por sua avareza, foi punido com a lepra eterna</p><p>339</p><p>, evitemos juntar</p><p>riquezas que não tínhamos antes neste mundo. Enfim, pensando na morte de</p><p>335</p><p>2 Coríntios XI, 9.</p><p>336</p><p>Filipenses IV, 15-16.</p><p>337</p><p>Esta sentença, com a passagem das Instituições que a contém, é apresentada nas</p><p>Sentenças dos Padres do deserto, Cassiano 7.</p><p>338</p><p>Cf. Atos V, 5 ss.</p><p>339</p><p>Cf. 2 Reis V, 27.</p><p>Judas por enforcamento</p><p>340</p><p>, vigiemos para jamais tentarmos recuperar algo a</p><p>que já havíamos renunciado. E acima de tudo, mantendo sempre nos olhos a</p><p>perspectiva da morte, cuidemos para que nosso Senhor não venha na hora</p><p>menos esperada e não encontre nossa consciência contaminada pela avareza.</p><p>Ele então poderá nos dirigir as palavras ditas ao rico no Evangelho:</p><p>“Insensato, nesta mesma noite sua alma será levada; aquilo que você reservou</p><p>para si, de que lhe servirá agora?</p><p>341</p><p>”</p><p>Da cólera</p><p>4. [8,1] Nosso quarto combate é contra o espírito da cólera e é preciso que,</p><p>com a ajuda de Deus, extirpemos das profundezas de nossa alma este veneno</p><p>mortal. Pois, enquanto ele se mantiver em nosso coração e cegar os olhos do</p><p>coração com perturbações tenebrosas, não seremos capazes de adquirir o</p><p>discernimento das coisas convenientes, nem encontrar a compreensão da</p><p>ciência espiritual, nem possuir a perfeição do bom conselho, nem participar</p><p>da vida verdadeira, e nosso intelecto não será capaz de contemplar a</p><p>verdadeira luz divina. De fato, foi dito: “Meu olho foi perturbado pela</p><p>cólera</p><p>342</p><p>”. Não será possível participarmos da sabedoria divina, ainda que</p><p>sejamos reputados sábios segundo</p><p>a opinião de todos, pois está escrito: “A</p><p>cólera repousa no seio dos insensatos</p><p>343</p><p>”. Nem poderemos adquirir os</p><p>salutares conselhos do discernimento, mesmo que os homens nos julguem</p><p>prudentes pois também está escrito: “A cólera do homem não cumpre com a</p><p>justiça de Deus</p><p>344</p><p>”. E tampouco poderemos adquirir a moderação e a</p><p>gravidade tão estimadas dos homens, pois está escrito: “O homem colérico é</p><p>indecente</p><p>345</p><p>”.</p><p>[8,5] Portanto, aquele que pretende alcançar a perfeição e que deseja levar</p><p>adiante o combate conforme as regras, deve ser alheio a toda cólera e todo</p><p>furor e escutar a recomendação do vaso de eleição: “Que toda cólera, disse</p><p>340</p><p>Cf. Mateus XXVII, 5.</p><p>341</p><p>Lucas XII, 20.</p><p>342</p><p>Salmo VI, 8.</p><p>343</p><p>Eclesiastes VII, 9.</p><p>344</p><p>Tiago I, 20.</p><p>345</p><p>Provérbios XI, 25.</p><p>ele, fúria, grito e blasfêmia sejam afastados de vocês, bem como toda</p><p>malícia</p><p>346</p><p>”. Quando ele diz “toda”, ele não deixa nenhum pretexto de cólera</p><p>que pudesse ser necessária ou razoável. Assim, quem quiser corrigir o irmão</p><p>que pecou ou lhe infligir um castigo, deve tentar por todos os meios</p><p>permanecer imperturbável, para que não lhe aconteça que, pretendendo curar</p><p>o outro, não contraia ele próprio a doença, e que dele não se diga, conforme o</p><p>Evangelho: “Médico, cure a si mesmo</p><p>347</p><p>”. E ainda: “Porque você critica a</p><p>palha no olho do seu irmão e não percebe a trave no seu próprio olho?</p><p>348</p><p>”</p><p>[8,6] De fato, qualquer que seja a causa, o movimento da cólera, em sua</p><p>ebulição, cega os olhos da alma e impede de contemplar o sol da justiça.</p><p>Quem coloca sobre os olhos folhas de ouro ou de chumbo fica igualmente</p><p>privado da visão, e o valor do metal não tem nenhuma relação com a</p><p>cegueira. Da mesma forma, qualquer que seja a causa, razoável ou não,</p><p>quando a cólera se inflama, ela obscurece a vista.</p><p>[8,7] Nós só usamos a cólera em conformidade com a natureza quando nos</p><p>insurgimos contra os pensamentos passionais ou voluptuosos.</p><p>[8,8] É o que o Profeta nos ensina, ao dizer: “Encolerizem-se e não pequem</p><p>mais</p><p>349</p><p>”.</p><p>[8,9] Isto significa: “Encolerizem-se contra as suas próprias paixões e contra</p><p>os pensamentos perversos, e não pequem cumprindo as suas sugestões.” Este</p><p>sentido aparece com mais clareza ainda no verso seguinte: “Aquilo que vocês</p><p>dizem em seus corações, levem compungidos ao leito</p><p>350</p><p>”, ou seja: quando</p><p>sobrevierem pensamentos perversos em seu coração, depois de rejeitá-los</p><p>encolerizando-se contra eles, você encontrará uma grande paz, como num</p><p>leito de repouso; sinta então a compunção pela penitência. O bem-aventurado</p><p>apóstolo Paulo concorda com isto quando, com testemunho neste versículo,</p><p>diz: “Que o sol não se ponha sobre sua cólera; não abram a porta ao diabo.</p><p>351</p><p>”</p><p>346</p><p>Efésios IV, 31.</p><p>347</p><p>Lucas IV, 23.</p><p>348</p><p>Mateus VII, 3-5.</p><p>349</p><p>Salmo IV, 5.</p><p>350</p><p>Salmo IV, 5.</p><p>351</p><p>Efésios IV, 26.</p><p>Dito de outro modo: não force o sol de justiça, Cristo, a se deitar sobre o seu</p><p>coração irritando-o por sua conivência com os maus pensamentos, para que</p><p>não lhe aconteça que, com sua partida, o diabo encontre um acesso a você.</p><p>[8,10] É deste sol que Deus fala pela boca do Profeta: “Para aqueles que</p><p>temem meu nome erguer-se-á o sol de justiça, que cura com seus raios</p><p>352</p><p>”. Se</p><p>levarmos ao pé da letra o versículo do Apóstolo, não poderíamos, de fato,</p><p>guardar a cólera até o por do sol.</p><p>[8,11] Que diremos então daqueles que, pela selvageria e a loucura da paixão,</p><p>não contentes em conservar sua raiva até o por do sol ainda a prolongam por</p><p>dias a fio, abstendo-se de falar com os outros? Eles não exprimem sua cólera</p><p>em palavras, mas através de seu mutismo para com os demais, eles aumentam</p><p>o veneno do rancor, para sua própria perda.</p><p>[8,12] Eles ignoram que é preciso abster-se da cólera, não apenas em ato, mas</p><p>também em pensamento, para evitar que o intelecto, cego pelas trevas do</p><p>rancor, perca a luz do conhecimento e do discernimento e seja privado da</p><p>presença do Espírito Santo.</p><p>[8,13] É para isto, com efeito, que o Senhor, no Evangelho, ordena deixar a</p><p>oferenda perto do altar para ir reconciliar-se com seu irmão</p><p>353</p><p>. Senão, é</p><p>impossível que a oferenda seja aceita, se estivermos presa da cólera e do</p><p>rancor. Por outro lado, o Apóstolo ordena rezar sem cessar</p><p>354</p><p>, e em toda parte</p><p>erguer as mãos puras, sem cólera nem [maus] pensamentos</p><p>355</p><p>; esta é uma</p><p>lição para nós. Resta-nos, assim, seja não mais orar – mas então pecaríamos</p><p>contra o mandamento do Apóstolo – seja nos apressarmos em seguir este</p><p>mandamento e cessar imediatamente com a cólera e o rancor.</p><p>[8,14] Acontece muitas vezes desdenharmos dos irmãos sofredores ou</p><p>perturbados, dizendo que sua tristeza não foi causada por nós. É por isso que</p><p>o médico de almas, querendo extirpar do coração até as raízes os pretextos da</p><p>alma, nos ordena deixar a oferenda e irmos nos reconciliar, não somente se</p><p>352</p><p>Malaquias IV, 2.</p><p>353</p><p>Cf. Mateus V, 23-24.</p><p>354</p><p>Cf. 1 Tessalonicenses V. 17.</p><p>355</p><p>Cf. 1 Timóteo II, 8.</p><p>fomos nós os ofendidos por um irmão, seja que tenhamos nós o ofendido,</p><p>com ou sem razão. Primeiro devemos remediar a situação com desculpas,</p><p>para em seguida fazermos nossa oferenda.</p><p>[8,15] Mas não precisamos nos deter por mais tempo nos preceitos</p><p>evangélicos, uma vez que a própria lei antiga, que parece ser menos rigorosa,</p><p>nos ensina isto quando diz: “Não odeie seu irmão em seu coração</p><p>356</p><p>”, e</p><p>também: “Os caminhos daquele que guarda rancor levam à morte</p><p>357</p><p>”. A lei</p><p>proíbe não apenas o ato, mas o pensamento. É por isso que aqueles que</p><p>seguem as leis divinas lutam com todas as suas forças contra o espírito de</p><p>cólera e contra esta doença que existe dentro de nós.</p><p>[8,16] Que aqueles que se encolerizam contra seus irmãos não busquem a</p><p>solidão e o isolamento, pensando que assim ninguém mais os levará à cólera,</p><p>e que a virtude da paciência poderá ser mais facilmente adquirida na solidão.</p><p>É por orgulho, e por não querermos acusar a nós mesmos, nem reconhecer em</p><p>nosso descuido a causa da perturbação, que desejamos nos separar dos</p><p>irmãos. Mas enquanto imputarmos aos outros as causas de nossa fraqueza,</p><p>será impossível conseguir a paciência.</p><p>[8,17] O essencial de nosso progresso e de nossa paz não pode provir da</p><p>paciência do próximo para conosco, mas de nossa longanimidade para com o</p><p>próximo.</p><p>[8,18] Se buscarmos o deserto e a solidão para fugirmos ao combate pela</p><p>paciência, todos os vícios que carregamos conosco sem havê-los corrigido</p><p>permanecerão escondidos, mas não suprimidos. E, com efeito, para quem não</p><p>se libertou das paixões, a solidão e o retiro podem não apenas conservá-las,</p><p>mas aumentá-las, a tal ponto que ele se acaba por não saber de qual paixão</p><p>está sendo vítima. A solidão, ao contrário, lhe sugere a ilusão da virtude e o</p><p>persuade de que ele adquiriu a paciência e a humildade, uma vez que não</p><p>existe ninguém ali para provocá-lo e testá-lo. Mas basta que surja uma</p><p>circunstância que o sacuda e o excite, e na mesma hora as paixões que se</p><p>encontram nele e que estavam até então ocultas, como cavalos sem freio que,</p><p>saindo da cocheira após um período de repouso e inatividade, arrastam o</p><p>356</p><p>Levítico XIX, 17.</p><p>357</p><p>Provérbios XII, 28.</p><p>condutor com mais ímpeto e ferocidade. De fato, as paixões são mais</p><p>excitadas em nós quando não somos testados no meio dos homens. E</p><p>perdemos esta sombra de paciência e longanimidade que fingimos possuir</p><p>enquanto não nos misturamos aos irmãos, pelo desleixo causado pela falta de</p><p>exercício e pela solidão.</p><p>[8,19] Assim como as mais venenosas bestas selvagens, em repouso no</p><p>deserto e em suas covas, mostram toda a sua fúria contra qualquer um que se</p><p>aproxime, também os</p><p>homens que são presa das paixões, que são calmos não</p><p>por disposição mas pela necessidade do deserto. Despejam seu veneno cada</p><p>vez que colocam a mão em alguém que se aproxime e os provoque. É por isso</p><p>que aqueles que buscam a perfeição da doçura devem tomar todo o cuidado</p><p>para não se encolerizar contra os homens, mas também para não se irritar com</p><p>os animais nem com as coisas. Eu me lembro, de fato, que, quando vivia no</p><p>deserto, eu me irritava contra uma pena de escrever que eu considerasse</p><p>muito grossa ou muito fina, contra um pedaço de madeira que eu não</p><p>conseguia cortar com a facilidade imaginada, ou contra a pederneira quando</p><p>eu estava com pressa de acender o fogo e a centelha custava a pegar. Assim</p><p>eu descarregava a cólera contra as coisas sensíveis.</p><p>[8,20] Assim, se quisermos obter a beatitude do Senhor, devemos, como foi</p><p>dito, evitar a cólera não apenas em ato, mas também em pensamento. Com</p><p>efeito, não é tão útil dominarmos nossa língua para não proferir palavras de</p><p>furor, quanto purificarmos o coração do rancor e não acalentar em si maus</p><p>pensamentos contra o irmão. Pois o ensinamento evangélico ordena evitar</p><p>antes as raízes dos pecados do que seus frutos. Se a raiz da cólera for</p><p>extirpada do coração, nem o ódio nem a inveja conseguirão se traduzir em</p><p>atos. Com efeito, aquele que odeia seu próximo é chamado de “homicida”</p><p>358</p><p>,</p><p>porque ele o condena à morte pela disposição da raiva que existe em seu</p><p>espírito. Os homens não o vêem verter sangue com seu gládio, mas Deus vê</p><p>que ele o mata em espírito pela raiva que guarda em si, e o Senhor distribui a</p><p>cada um as coroas e os castigos não somente por suas ações, mas também</p><p>pelos pensamentos e os desejos, como diz o Profeta: “Eis que vim para reunir</p><p>suas obras e seus pensamentos</p><p>359</p><p>”. E o Apóstolo diz também: “Seus</p><p>pensamentos ora os acusarão, ora os defenderão, no dia em que Deus julgar</p><p>358</p><p>Cf. 1 João III, 15.</p><p>359</p><p>Isaías LXVI, 18.</p><p>os segredos dos homens</p><p>360</p><p>”.</p><p>[8,12] O próprio Mestre nos ensina a renunciar a toda cólera quando diz nos</p><p>Evangelhos: “Todo aquele que odeia seu irmão deverá ir a julgamento</p><p>361</p><p>”. É</p><p>de fato, o texto que fornecem os exemplos mais exatos. Segundo o contexto,</p><p>o inciso “sem causa” parece ter sido acrescentado. Com efeito, o desígnio do</p><p>Senhor é que evitemos, de todas as maneiras, a raiz e a centelha da cólera,</p><p>sem guardar em nós o menor pretexto de irritação, para que, por nos</p><p>enfurecermos por um bom motivo, não nos aconteça cairmos a seguir numa</p><p>cólera furiosa e irracional. O remédio perfeito contra esta doença é o seguinte:</p><p>devemos acreditar firmemente que jamais é permitido enfurecer-se, seja por</p><p>coisas justas, seja por coisas injustas. Como o espírito da cólera obscurece o</p><p>espírito, nem a luz do discernimento, nem a solidez do conselho justo, nem o</p><p>sentido de justiça permanecerão em nós. Será impossível que nossa alma seja</p><p>o templo do Espírito Santo se o espírito da cólera, tendo obscurecido nosso</p><p>espírito, se apodere de nós. Enfim, a cima de tudo, é preciso que nos</p><p>guardemos da cólera tendo sempre diante dos olhos a incerteza da hora da</p><p>morte. E saibamos também que nem a castidade, nem a renúncia a todos os</p><p>bens, nem os jejuns e as vigílias nos servirão se nos apresentarmos ao Juízo</p><p>cheios de cólera e rancor.</p><p>Da tristeza</p><p>5. [9,1] Nosso quinto combate é contra o espírito da tristeza que rouba a luz</p><p>da contemplação espiritual da alma e a impede de cumprir as boas obras.</p><p>Com efeito, quando este espírito mau se apodera da alma ele a obscurece</p><p>inteiramente, não a deixa mais fazer suas orações com fervor nem se dedicar</p><p>frutiferamente às santas leituras. Ele não permite ao homem ser doce e</p><p>conciliador com seus irmãos; ele lhe inspira raiva a todas as obras que se deve</p><p>praticar e à própria vida que se abraçou. A tristeza perturba todos os desejos</p><p>saudáveis da alma e dissolve seu vigor e sua constância, tornando-a como que</p><p>mole e paralisada, até prendê-la finalmente ao pensamento do desespero.</p><p>360</p><p>Romanos II, 15-16.</p><p>361</p><p>Mateus V, 22.</p><p>[9,2] É por isso que, se quisermos sustentar o combate espiritual e vencer com</p><p>a ajuda de Deus os espíritos de malícia, devemos guardar com o maior</p><p>cuidado nosso coração do espírito da tristeza, pois, assim como a traça nas</p><p>roupas ou o cupim na madeira, a tristeza devora a alma do homem, quando o</p><p>persuade a evitar os bons encontros e não permite receber o conselho dos</p><p>melhores amigos, nem lhes dar uma resposta amável e pacífica. Ela se</p><p>apodera da alma de todos os lados e a enche de amargura e de acídia. Enfim,</p><p>ela instiga a fugir dos homens como se fossem eles os responsáveis pela</p><p>perturbação em que se encontra. E ela não permite à alma reconhecer que sua</p><p>enfermidade não provém de fora, mas nasce no seu interior, coisa que, aliás,</p><p>aparece quando as tentações, surgindo inopinadamente pela prática, a fazem</p><p>vir à luz. De fato, jamais um homem é prejudicado por outro, se não possuir</p><p>em si mesmo as causas das paixões.</p><p>[9,7] Também Deus, criador e médico das almas, o único que conhece</p><p>exatamente as feridas da alma, não nos ordena renunciar à freqüentação dos</p><p>outros, mas a extirpar as causas do mal em nós mesmos. Ele sabe que a saúde</p><p>da alma não é obtida separando-nos uns dos outros, mas vivendo e nos</p><p>exercitando junto a homens virtuosos. Quando abandonamos os irmãos por</p><p>supostos bons pretextos, não suprimimos as ocasiões de tristeza, mas apenas</p><p>as alteramos, pois o mal está em nós e surgirá por outras razões.</p><p>[9,8] É por isso que todo o nosso combate deve ser contra as paixões que</p><p>estão em nós. Uma vez que sejam expulsas de nosso coração com a graça e a</p><p>ajuda de Deus, viveremos com tranqüilidade, já não digo entre os homens,</p><p>mas mesmo entre os animais selvagens, como diz o bem-aventurado Jó: “Os</p><p>animais selvagens viverão em paz com você”</p><p>362</p><p>.</p><p>[9,9] É preciso então combater primeiro contra o espírito da tristeza que lança</p><p>a alma no desespero, a fim de tirá-lo de nossa alma. Foi este espírito, de fato,</p><p>que impediu Caim de se arrepender após o assassinato de seu irmão</p><p>363</p><p>, e</p><p>também Judas, após ter traído o Mestre. Só podemos manter a tristeza trazida</p><p>pelo arrependimento dos pecados que cometemos, mas que é acompanhada da</p><p>boa esperança. Da qual diz o Apóstolo: “A tristeza conforme a Deus causa</p><p>362</p><p>Jó V, 23.</p><p>363</p><p>Cf. Gênesis IX, 4-16.</p><p>uma penitência duradoura para a salvação</p><p>364</p><p>”. Com efeito, a tristeza conforme</p><p>a Deus, que nutre a alma com a esperança da penitência, é mesclada de</p><p>alegria. É por isso que ela torna o homem cheio de ardor para submeter-se às</p><p>boas obras, afável, humilde</p><p>365</p><p>, doce, esquecendo-se das injúrias, paciente para</p><p>suportar todas as penas e aflições, tudo o que vem de Deus. Desta tristeza</p><p>enfim nascem no homem os frutos do Espírito Santo, a saber, “a alegria, a</p><p>caridade, a paz, a longanimidade, a bondade, a fé, a temperança</p><p>366</p><p>”. Da outra</p><p>tristeza, ao contrário, reconhecemos os maus frutos, que são a acídia, a</p><p>impaciência, a cólera, a raiva, a contrariedade, o desencorajamento, a</p><p>negligência na oração.</p><p>[9,12] Assim, devemos nos afastar desta tristeza assim como fazemos com a</p><p>prostituição, a avareza, a cólera e as demais paixões. Ela é curada pela prece,</p><p>pela esperança em Deus, pela meditação nas palavras divinas e pela</p><p>freqüentação dos homens piedosos.</p><p>Da acídia</p><p>6. [10,1] Nosso sexto combate será contra o espírito da acídia que caminha e</p><p>trabalha junto com o espírito da tristeza. Este demônio terrível e opressor está</p><p>sempre em guerra contra os monges.</p><p>[10,2] É ele que ataca o monge na sexta hora, tornando-o lânguido e</p><p>entorpecido, fazendo-o sentir aversão pelo lugar em que vive, pelos irmãos</p><p>que vivem com ele, pelas ocupações e até pela</p><p>leitura das divinas Escrituras.</p><p>Ele lhe sugere que mude de lugar, pensando que, se não partir para outras</p><p>paragens, estará perdendo seu trabalho e seu tempo.</p><p>[10,3] Em primeiro lugar, por volta da sexta hora, ele o faz sentir fome, como</p><p>se tivesse passado três dias sem comer, percorrido um longo caminho ou</p><p>cumprido alguma pesada tarefa. Então ele lhe sugere o pensamento de que</p><p>esta enfermidade poderá ser tratada se ele sair continuamente a ver os irmãos,</p><p>sob pretexto de benefício espiritual ou para visitar os enfermos. Se não</p><p>364</p><p>2 Coríntios VII, 10.</p><p>365</p><p>Existe aqui uma lacuna no texto da P.G. 28, 897D.</p><p>366</p><p>Gálatas V, 22-23.</p><p>consegue fazer com que o monge caia em suas armadilhas, este demônio o</p><p>mergulha num profundo sono, tornando-se assim mais forte e mais poderoso</p><p>contra ele, e então ele só poderá ser expulso pela prece, a fuga da tagarelice, a</p><p>meditação sobre as palavras divinas e a paciência nas provações.</p><p>[10,6] Com efeito, quando não o encontra munido destas armas, ele toma as</p><p>rédeas ao monge, tornando-o instável, errante, negligente e ocioso, fazendo-o</p><p>circular de mosteiro em mosteiro sem se preocupar com outra coisa do que</p><p>encontrar comida e bebida. Pois o espírito do monge que é presa da acídia não</p><p>imagina outra coisa do que distrações deste gênero; e, a partir daí, a acídia o</p><p>prende às coisas do mundo e pouco a pouco o atira às suas ocupações</p><p>nocivas, até que ele decaia totalmente de sua profissão monástica.</p><p>[10,7-8] O divino Apóstolo, sabendo e desejando, como bom médico,</p><p>arrancar de nós esta doença extremamente grave, mostra-nos em primeiro</p><p>lugar as causas das quais ela decorre: “Nós lhes ordenamos, irmãos, em nome</p><p>de nosso Senhor Jesus Cristo, que vocês se separem de qualquer irmão que</p><p>viva na desordem e não na tradição recebida de nós. E vocês sabem, com</p><p>efeito, como é preciso nos imitar, porque nunca vivemos ociosamente entre</p><p>vocês, jamais comemos de graça o pão de quem quer que fosse; ao contrário,</p><p>trabalhamos noite e dia, penando até o esgotamento, para não sermos um peso</p><p>para ninguém.”</p><p>[10,10] “Não que não possuíssemos este direito, mas quisemos nos tornar um</p><p>exemplo vivo para vocês.”</p><p>[10,11] “Da mesma forma, enquanto estivemos entre vocês, nós lhes</p><p>prescrevemos que, se alguém não trabalhar, que também não coma! Ora,</p><p>ficamos sabendo que entre vocês alguns vivem ociosamente, sem nada fazer</p><p>mas sempre parecendo atarefados. A estes, nós pedimos e exortamos em Jesus</p><p>Cristo a que trabalhem em calma para comer um pão que seja seu.</p><p>367</p><p>”</p><p>368</p><p>Vejamos como o Apóstolo nos mostra com sabedoria as causas da acídia.</p><p>De fato, ele chama de rebeldes aos que não trabalham; com uma única</p><p>palavra, ele desvela toda a grande malícia. Pois quem é rebelde não teme a</p><p>367</p><p>2 Tessalonicenses III, 6-12.</p><p>368</p><p>Aqui retoma o texto após a lacuna em P.G. 28,897D.</p><p>Deus, é levado por suas próprias palavras e está sempre inclinado às injúrias,</p><p>sendo, portanto, incapaz de recolhimento e tornando-se escravo da acídia. O</p><p>Apóstolo ordena que nos separemos destes, como nos afastamos de uma</p><p>moléstia pestilenta. Ao dizer a seguir que eles não caminham “segundo a</p><p>tradição recebida de nós”, ele indica que eles são orgulhosos, desdenhosos e</p><p>violadores das tradições apostólicas. E, acrescenta ele, “jamais comemos de</p><p>graça o pão de quem quer que fosse; ao contrário, trabalhamos noite e dia,</p><p>penando até o esgotamento, para não sermos um peso para ninguém.”</p><p>[10,8] O doutor das nações, o arauto do Evangelho, aquele que foi elevado até</p><p>o terceiro céu, aquele que disse que o Senhor declarou que os que predicam o</p><p>Evangelho devem viver do Evangelho, ele próprio trabalha noite e dia</p><p>penando até o esgotamento para não se tornar um peso para ninguém. Que</p><p>faremos nós então, que sentimos desgosto pelo trabalho e não buscamos</p><p>senão o bem estar do corpo? Nós não recebemos nem o encargo de anunciar o</p><p>Evangelho, nem o de administrar a Igreja, mas apenas o de cuidar de nossas</p><p>almas. Depois, mostrando claramente o prejuízo causado pelo ócio, ele</p><p>acrescenta: “sem fazer nada e sempre parecendo atarefados”. Pois do ócio</p><p>nasce a ingerência nos negócios alheios, daí a desordem e da desordem todos</p><p>os males. Preparando em seguida o remédio, ele prossegue: “A estes, nos</p><p>exortamos a trabalhar em calma para comer um pão que seja seu”. E depois</p><p>ele declara ainda mais severamente: “Se alguém não trabalha, que também</p><p>não coma!”</p><p>[10,22] Instruídos por estes mandamentos apostólicos, os santos Padres do</p><p>Egito decretaram que os monges não deveriam ficar ociosos nem por um</p><p>momento, sobretudo os jovens. Eles sabiam que pela perseverança no</p><p>trabalho se expulsa a acídia, se ganha a subsistência e se vem em socorro dos</p><p>indigentes. Com efeito, eles não trabalhavam apenas para suas necessidades,</p><p>mas seu trabalho lhes dava o suficiente para amparar os estrangeiros, os</p><p>pobres e os prisioneiros. Eles estavam persuadidos de que esta benemerência</p><p>era uma santa oferenda agradável a Deus. E os Padres diziam o seguinte:</p><p>quem trabalha luta contra um demônio e é atormentado por ele; mas quem é</p><p>ocioso está sujeito a milhares de demônios.</p><p>[10,25] Por outro lado, é bom lembrar as palavras que o abade Moisés, o mais</p><p>experiente dentre os Padres, me disse pessoalmente. Naquela ocasião eu me</p><p>encontrava há pouco tempo no deserto e fui tomado pela acídia. Fui procurá-</p><p>lo para dizer que, na véspera, eu estivera muito atormentado pela acídia e, no</p><p>fim das forças, só consegui libertar-me dela procurando o abade Paulo. Então</p><p>o abade Moisés me respondeu: “Na verdade, você não se libertou, mas</p><p>escravizou-se ainda mais. Saiba então que este demônio o atacará com mais</p><p>força ainda como desertor, a menos que você se dedique a vencê-lo pela</p><p>perseverança, a prece e o trabalho manual.”</p><p>Da vanglória</p><p>7. [11,1-3] Nosso sétimo combate é contra o espírito de vanglória, paixão que</p><p>se reveste de diversas formas e que é muito sutil. Mesmo os mais experientes</p><p>não conseguem dominá-la facilmente. De fato, os ataques das outras paixões</p><p>são mais manifestos e podemos combatê-los com certa facilidade, pois a alma</p><p>reconhece o inimigo e o afasta rapidamente pela réplica da oração. Mas a</p><p>malícia da vanglória, revestindo-se de numerosas formas, como dissemos, é</p><p>difícil de combater. Com efeito, ela se mostra em todas as ocupações, [nas</p><p>roupas, no modo de andar], na voz, na palavra, no silêncio, na ação e na</p><p>vigília, nos jejuns, na prece, na leitura, no recolhimento e na paciência. Em</p><p>tudo isso, ela se esforça por ferir o soldado de Cristo.</p><p>[11,4] Aquele a quem a vanglória não consegue enganar com a suntuosidade</p><p>das vestimentas, ela busca tentar com um vil uniforme. Aquele a quem ela</p><p>não conseguiu abater com as honrarias, ela tenta empurrar para o orgulho de</p><p>suportar a desonra. Aquele a quem ela não conseguiu bajular pela arte das</p><p>palavras, ela busca seduzir com um silêncio que se faz passar por</p><p>recolhimento. A quem ela não conseguiu convencer de se glorificar por um</p><p>bom regime alimentar, ela atrai com um jejum feito para ser louvado. Numa</p><p>palavra, qualquer obra, qualquer ocupação fornece a este mau demônio uma</p><p>ocasião para atacar.</p><p>[11,14] Ademais, ele sugere também ao monge imaginar-se nas altas patentes</p><p>clericais.</p><p>[11,6] Lembro-me de um ancião, quando eu morava em Sceta. Dirigindo-se à</p><p>cela de um irmão para visitá-lo, ao aproximar-se da porta, ouviu alguém</p><p>falando no interior. Pensando tratar-se de alguma passagem da Escritura, ele</p><p>parou para escutar. Ele então percebeu que o irmão era presa da vanglória,</p><p>que ele imaginava ser diácono e acabava de despachar alguns catecúmenos.</p><p>Após ouvir isto, ele bateu à porta e entrou. O irmão veio ao seu encontro,</p><p>saudou-o segundo o costume e lhe perguntou se ele estava há muito tempo</p><p>diante da</p><p>porta. O ancião lhe respondeu calmamente: “Eu cheguei bem no</p><p>momento em que você despachava os catecúmenos”. Diante destas palavras,</p><p>o irmão caiu aos pés do ancião pedindo-lhe que rezasse por ele, a fim de que</p><p>fosse libertado da ilusão.</p><p>[11,17] Lembrei-me deste acontecimento para demonstrar a que ponto de</p><p>inconsciência este demônio consegue levar o homem.</p><p>[11,19] Aquele que quiser combater à perfeição e conquistar a coroa da</p><p>justiça deve se esforçar por todos os meios para vencer esta besta multiforme,</p><p>tendo sempre em mente as palavras de Davi: “O Senhor reduzirá a pó os</p><p>ossos dos que seduzem os homens</p><p>369</p><p>”. Que ele não faça nada pelo desejo de</p><p>ser louvado pelos homens, mas busque seu salário apenas diante de Deus e,</p><p>sempre rejeitando os pensamentos bajuladores que surgem em seu coração,</p><p>desdenhe de si mesmo em presença de Deus. Assim ele poderá, com a graça</p><p>de Deus, ser libertado do espírito da vanglória.</p><p>Do orgulho</p><p>8. [12,1] Nosso oitavo combate será contra o espírito do orgulho. Ele é mais</p><p>terrível e mais cruel do que todos os precedentes, atacando sobretudo os</p><p>perfeitos e esforçando-se por derrubar aqueles que estão quase alcançando o</p><p>cume das virtudes.</p><p>[12,3] Tal como uma doença infecciosa e fatal que destrói não um membro</p><p>mas o corpo inteiro, também o orgulho não destrói uma parte, mas a alma</p><p>inteira. Cada um dos outros vícios, mesmo perturbando a alma, atacam</p><p>apenas a virtude que lhes é oposta tentando vencê-la; eles não visam nem</p><p>perturbam a alma como um todo. Somente o vício do orgulho a obscurece</p><p>totalmente e a leva à ruína completa. Para melhor captar o que quero dizer</p><p>lembremos que a gula se contrapõe à temperança, a prostituição à castidade, a</p><p>avareza ao despojamento, a cólera à mansidão, e as demais espécies de</p><p>369</p><p>Salmo LII, 5.</p><p>malícias às suas virtudes contrárias. Mas a malícia do orgulho, quando se</p><p>apodera da infeliz alma, como o mais feroz dos tiranos que toma uma grande</p><p>cidade elevada, a destrói inteiramente e a arrasa até as suas fundações.</p><p>[12,4] Testemunho disto é este anjo caído do céu por seu orgulho: ele, que</p><p>havia sido criado por Deus e dotado de toda a virtude e sabedoria, não quis</p><p>atribuir a graça ao Senhor, mas à sua própria natureza. Por isso ele se</p><p>considerou igual a Deus. É esta pretensão que o Profeta reprova quando</p><p>declara: “Você disse em seu coração: ‘Eu me sentarei sobre uma montanha</p><p>elevada, colocarei meu trono sobre as nuvens e serei semelhante ao</p><p>Altíssimo’. Mas você é um homem, não um Deus.</p><p>370</p><p>” Outro profeta disse:</p><p>“Porque você se glorifica no mal?</p><p>371</p><p>”, e o resto do Salmo: “Você está o dia</p><p>todo planejando ciladas; sua língua é navalha afiada, autora de fraudes. Você</p><p>prefere o mal, e não o bem, a mentira, e não a franqueza. Você gosta de</p><p>palavras corrosivas, ó língua fraudulenta. Por isso Deus destruirá você para</p><p>sempre, o abaterá e o varrerá da sua tenda; arrancará suas raízes do solo fértil.</p><p>Os justos verão isso e temerão, e rirão à custa dele, dizendo: Eis o homem que</p><p>não colocou Deus como sua fortaleza. Confiou em sua grande riqueza e se</p><p>fortaleceu com ciladas!</p><p>372</p><p>”</p><p>[12,9] Sabendo disso, enchamo-nos de temor e com toda vigilância</p><p>guardemos nosso coração isento do espírito fatal do orgulho, repetindo-nos</p><p>sempre as palavras do Apóstolo, quando houvermos adquirido esta virtude:</p><p>“Não eu, mas a graça de Deus em mim</p><p>373</p><p>”, e também as palavras do Senhor:</p><p>“Sem mim vocês nada podem</p><p>374</p><p>”, assim como as do Profeta: “Se o Senhor</p><p>não constrói a casa, em vão trabalham os construtores</p><p>375</p><p>”, e: “Isto não</p><p>depende da vontade nem do esforço do homem, mas da misericórdia de</p><p>Deus</p><p>376</p><p>”.</p><p>[12,10] Com efeito, qualquer que seja o fervor de seu zelo e o ardor de seu</p><p>370</p><p>Isaías XIV, 13.</p><p>371</p><p>Salmo LI, 3.</p><p>372</p><p>Salmo LI, 4-9.</p><p>373</p><p>1 Coríntios XV, 10.</p><p>374</p><p>João XV, 5.</p><p>375</p><p>Salmo CXXVI, 1.</p><p>376</p><p>Romanos IX, 16.</p><p>desejo, aquele que está ligado à carne e ao sangue não poderá atingir a</p><p>perfeição a não ser pela misericórdia e a graça de Cristo. Como diz são Tiago,</p><p>“todo dom excelente vem do alto</p><p>377</p><p>”, e o apóstolo Paulo: “O que você possui</p><p>que não tenha recebido? E se você recebeu, porque glorificar-se como se não</p><p>tivesse recebido</p><p>378</p><p>”, e vangloriar-se dos dons de outro como se fossem seus?</p><p>[12,11] Que a salvação nos chega pela graça e a misericórdia de Deus</p><p>379</p><p>, é</p><p>testemunha este lutador que não recebeu o reino dos céus como recompensa</p><p>pela virtude, mas pela graça e misericórdia de Deus.</p><p>[Cf. 12,31-33] Sabendo disso, nossos Pais nos transmitiram este ditame, de</p><p>que não é possível atingir a perfeição da virtude de outro modo que não a</p><p>humildade, a qual decorre naturalmente da fé, do temor a Deus, da doçura e</p><p>do total despojamento. Obtém-se assim a caridade perfeita pela graça e a</p><p>bondade de nosso Senhor Jesus Cristo, glória lhe seja dada por todos os</p><p>séculos. Amém.</p><p>377</p><p>Tiago I, 17.</p><p>378</p><p>1 Coríntios IV, 7.</p><p>379</p><p>Cf. Lucas XXIII, 43.</p><p>DO MESMO CASSIANO AO HIGOUMENO LEÔNCIO</p><p>DISCURSO CHEIO DE BENEFÍCIO ESPIRITUAL</p><p>SOBRE OS PADRES DE SCETA E O DISCERNIMENTO</p><p>DO MESMO CASSIANO AO HIGOUMENO LEÔNCIO</p><p>DISCURSO CHEIO DE BENEFÍCIO ESPIRITUAL</p><p>SOBRE OS PADRES DE SCETA E O DISCERNIMENTO</p><p>[Pref.] Decidi cumprir agora com a promessa feita ao bem-aventurado bispo</p><p>Castor a respeito da vida dos santos Padres e de seus ensinamentos, que já</p><p>quitei parcialmente quando lhe escrevi e enviei, ó santo Leôncio, alguma</p><p>coisa quanto à forma de vida cenobítica e os oito principais pensamentos</p><p>viciosos. Tendo notícia de que este bem-aventurado pontífice nos deixou para</p><p>ir-se a Cristo, pensei em endereçar-lhe, a você que herdou sua virtude e os</p><p>cuidados de seu mosteiro, o restante de meu relato.</p><p>[1,1] Nós nos dirigimos ao deserto de Sceta aonde se encontravam os Padres</p><p>mais renomados, eu e o santo abade Germano, a quem me ligava um amizade</p><p>vinda desde a escola, a milícia e a vida monástica. Lá encontramos o abade</p><p>Moisés, homem santo, que se distinguia não apenas pelas virtudes ascéticas,</p><p>mas também pela contemplação, Nós lhe pedimos com lágrimas um sermão</p><p>edificante por meio do qual pudéssemos atingir a perfeição. Depois de muitas</p><p>preces, ele disse:</p><p>[1,2] “Meus filhos, todas as virtudes e ocupações têm um só objetivo: aqueles</p><p>que mantêm os olhos fixos neste objetivo, em tudo conformando-se a ele,</p><p>obterão o fim desejado. O trabalhador, por exemplo, suportando tanto o calor</p><p>do sol como o frio do inverno, trabalha a terra com zelo; ele quer</p><p>desembaraçar a terra dos espinheiros e das ervas daninhas, mas o fim que ele</p><p>persegue é a colheita dos frutos. Da mesma forma, aquele que se dedica ao</p><p>comércio, enfrentando os perigos marítimos e terrestres, dedica-se com ardor</p><p>aos seus negócios, tendo em vista o ganho que obterá; o fim, para ele, será</p><p>usufruir deste ganho. E também o soldado não teme nem os perigos do</p><p>combate nem as misérias do exílio, tendo por objetivo subir na carreira</p><p>impulsionado por sua coragem; seu fim são as honras que receberá.”</p><p>Também nossa profissão tem seu objetivo e seu fim específico, pelo qual nós</p><p>suportamos voluntariamente todos os trabalhos e fadigas. É por isso que a</p><p>fome dos jejuns não nos cansa; a fadiga das vigílias se torna um prazer; a</p><p>leitura e a meditação das Escrituras são feitas de bom coração. As penas do</p><p>trabalho, a obediência, a privação de todas as coisas terrestres e a vida neste</p><p>deserto são facilmente assumidas. Vocês mesmos, desprezaram pátria, família</p><p>e todos os prazeres do mundo para partir para longe</p><p>e vir até nós que não</p><p>passamos de rústicos e ignorantes. Digam-me: qual é o seu objetivo? Que fim</p><p>vocês perseguem ao fazer isto?</p><p>[1,3] Nós lhe respondemos: “Pelo reino dos céus”.</p><p>[1,4] Então o abade Moisés falou: “Muito bem, vocês me indicaram o fim.</p><p>Mas o objetivo que devemos ter em vista, sem nos afastarmos da via reta,</p><p>para obter o reino dos céus, isto vocês não disseram”. Depois que</p><p>confessamos nossa ignorância, o ancião retomou a palavra:</p><p>“O fim da nossa profissão é, realmente, como vocês disseram, o reino de</p><p>Deus; mas o objetivo, é a pureza do coração, sem a qual é impossível alcançar</p><p>este fim. Então, que nosso intelecto esteja sempre orientado para este</p><p>objetivo. Mesmo que aconteça às vezes do coração se afastar da via direita, é</p><p>preciso reconduzi-lo imediatamente, nos orientando para este objetivo por</p><p>meio de uma regra.”</p><p>[1,5] Sabedor disto, o bem-aventurado apóstolo Paulo disse: “esquecendo-me</p><p>do que fica para trás avanço para o que está na frente. Lanço-me em direção à</p><p>meta, em vista do prêmio do alto, que Deus nos chama a receber em Jesus</p><p>Cristo</p><p>380</p><p>”. É em vista deste objetivo que devemos, também nós, tudo fazer. É</p><p>em vista deste objetivo que desdenhamos tudo, pátria, família, riquezas e o</p><p>mundo inteiro, a fim de adquirir a pureza do coração. E, se esquecermos este</p><p>objetivo, é inevitável que, caminhando nas trevas e deixando a via reta,</p><p>façamos inúmeras voltas e desvios.</p><p>[1,6] É o que aconteceu a muitos que, no começo de sua renúncia,</p><p>desprezaram a riqueza, os bens e o mundo inteiro, mas se deixavam tomar de</p><p>cólera e furor por uma foice, uma agulha, uma pena ou um livro. Eles não</p><p>precisariam passar por isso, se se lembrassem do objetivo pelo qual</p><p>desprezaram aquelas coisas. É de fato por amor ao próximo que desprezamos</p><p>380</p><p>Filipenses III, 13-14.</p><p>a riqueza, para não entrar em querelas a respeito e perdermos a caridade</p><p>dando lugar à cólera. Então, se por bagatelas manifestamos irritação contra</p><p>um irmão, afastamo-nos do objetivo e não tiramos nenhum benefício de nossa</p><p>renúncia. É por isso que o Apóstolo dizia: “Mesmo que eu atire meu corpo ao</p><p>fogo, se não for pelo amor, isto de nada servirá</p><p>381</p><p>”. Aprendemos assim que</p><p>não se atinge a perfeição de uma só vez pelo despojamento e pela renúncia às</p><p>coisas, mas pelo crescimento do amor, cujas características o Apóstolo</p><p>descreve: “O amor, diz ele, não tem inveja, não se enche de orgulho, não se</p><p>irrita, não denigre, não faz nada que seja frívolo, jamais pensa o mal</p><p>382</p><p>”. Tudo</p><p>isto assegura a pureza do coração.</p><p>[1,7] É por ela que tudo deve ser feito: desprezar os bens terrestres, sofrer</p><p>com facilidade os jejuns, dedicar-se à leitura e à salmódia. Não quer dizer que</p><p>a negligenciemos, se, por qualquer necessidade ou por algum assunto de</p><p>Deus, sejamos impedidos de fazer o jejum e a leitura habitual. Porque menos</p><p>se ganha com o jejum do que se perde com a cólera, e o benefício de uma</p><p>leitura não iguala o dano produzido se desprezarmos ou contristarmos nossos</p><p>irmãos. Com efeito, como eu disse, nem os jejuns, nem as vigílias, nem a</p><p>meditação das Escrituras, nem o despojamento das riquezas, nem a renúncia</p><p>ao mundo constituem a perfeição, mas instrumentos da perfeição. E como a</p><p>perfeição não se encontra nestas práticas, mas vem por meio delas, é em vão</p><p>que glorificamos o jejum, a vigília, a pobreza e a leitura das Escrituras se não</p><p>observamos o amor a Deus e ao próximo. Pois quem tem amor tem Deus em</p><p>si, e seu intelecto estará sempre com Deus.</p><p>[1,12] Diante dessas palavras, Germano disse: “Que homem, ligado a esta</p><p>carne, pode ter o intelecto sempre em Deus, sem jamais pensar em outra</p><p>coisa? Não existem doentes a visitar? Hóspedes a receber? E o trabalho</p><p>manual e as outras necessidades que são indispensáveis e que o corpo exige?</p><p>Finalmente, como pode a razão do homem ver sempre a este Deus invisível e</p><p>incompreensível e nunca se afastar dele?”</p><p>[1,13] Moisés respondeu: “Ver sempre a Deus e jamais afastar-se dele, da</p><p>maneira como você diz, sim, isto é impossível ao homem revestido de carne e</p><p>ligado à fragilidade. Mas de uma outra maneira, é possível ver a Deus.”</p><p>381</p><p>1 Coríntios XIII, 3.</p><p>382</p><p>1 Coríntios XIII, 4-5.</p><p>[1,15] Com efeito, a contemplação de Deus pode ser entendida e encarada de</p><p>muitas maneiras. Pois Deus não pode ser conhecido apenas em sua essência</p><p>bem-aventurada e incompreensível, o que está reservado aos santos do século</p><p>futuro, mas ele pode ser conhecido também a partir da grandeza e da beleza</p><p>de suas criaturas, de seu governo e de sua providência que se exercem a cada</p><p>dia, de sua justiça e de suas maravilhas que ele revela aos santos de geração</p><p>em geração. Quando pensamos na imensidão de seu poder e na continuidade</p><p>de seu olhar ao qual não podem se esconder os segredos do coração nem</p><p>nenhum outro, como o coração cheio de temor, nós o admiramos e adoramos.</p><p>Quando imaginamos que ele conhece o número de gotas de água e de grãos</p><p>de areia do mar</p><p>383</p><p>, e dos astros no céu, ficamos estupefatos diante da</p><p>grandeza de sua natureza e de sua sabedoria. Quando refletimos em sua</p><p>sabedoria inefável e indescritível, na bondade e na paciência incansável com</p><p>que ele suporta as faltas sem número dos pecadores, nós lhe rendemos graças.</p><p>Quando pensamos no grande amor que ele nos demonstra, sem nenhum</p><p>mérito de nossa parte, ao se fazer homem, ele que era Deus, para nos salvar</p><p>de nossa perdição, somos levados a aspirar por ele. Quando consideramos que</p><p>após termos vencido em nós nosso adversário o diabo, como prêmio pelo</p><p>simples assentimento de nossa boa vontade, ele nos gratifica com a vida</p><p>eterna, nós nos prosternamos diante dele. E existem ainda inumeráveis</p><p>considerações que nascem em nós na medida de nossa conduta e conforme o</p><p>grau de nossa pureza, pelas quais Deus pode ser visto e conhecido.</p><p>[1,16] Então Germano colocou uma nova questão: “Como é possível que</p><p>frequentemente, contra nossa vontade, muitas idéias e maus pensamentos nos</p><p>assaltem e nos enganem quase sem que percebamos, introduzindo-se em nós</p><p>discreta e furtivamente, de tal sorte que é muito difícil, não apenas impedir a</p><p>sua entrada, mas até reconhecê-los? Também queremos saber se é possível</p><p>que nosso pensamento seja completamente libertado e não se perturbe mais?”</p><p>[1,17] “É impossível, respondeu Moisés, que o pensamento não seja</p><p>perturbado por tais idéias, mas é permitido a qualquer um acolhê-los e deter-</p><p>se neles ou rejeitá-los. Pois sua chegada não depende de nós, mas está em</p><p>noso poder afastá-los, e a retificação de nosso pensamento dependem de nosa</p><p>vontade e de nosso zelo. Se meditarmos atenta e continuamente na lei de</p><p>383</p><p>Jó, XXXVI, 27.</p><p>Deus, se nos dedicarmos ao canto dos salmos e dos hinos, se não cessarmos</p><p>de praticar os jejuns e as vigílias, se nos lembrarmos constantemente do reino</p><p>dos céus, da geena de fogo e de todas as obras de Deus, os maus pensamentos</p><p>cederão e não encontrarão lugar em nós. Mas se, ao contrário, nos dedicamos</p><p>às coisas do mundo e às coisas carnais, se nos dedicamos a propósitos</p><p>frívolos e inúteis, os baixos pensamentos se multiplicarão em nós.”</p><p>[1,18] Assim como um moinho de água não pode ser detido, mas está no</p><p>poder do moleiro moer trigo ou cevada, também nosso pensamento, sendo</p><p>móvel, não pode permanecer vazio de i déias, mas cabe a nós fornecer-lhe</p><p>uma meditação espiritual ou uma ocupação carnal.</p><p>[1,23] O ancião, vendo-nos cheios de admiração e animados por um</p><p>insaciável ardor por suas palavras, calou-se por um instante, depois retomou:</p><p>“Como sua sede me fez prolongar este discurso e mesmo assim vocês</p><p>permanecem ávidos da doutrina da perfeição, eu vou lhes falar da excelência</p><p>da virtude do discernimento que, dentre todas, é a cidadela e</p><p>a rainha. E eu</p><p>lhes mostrarei sua preeminência, sua grandeza e sua utilidade não apenas por</p><p>palavras, mas pelos antigos oráculos dos Padres, com a graça do Senhor que</p><p>inspira aqueles que falam segundo o mérito e o desejo dos que escutam.”</p><p>[2,1] De fato, a virtude do discernimento não é pequena, ao contrário, ela é</p><p>contada entre os mais nobres carismas do Espírito Santo, do qual diz o</p><p>Apóstolo: “A um é dada pelo Espírito uma palavra de sabedoria; a outro, uma</p><p>palavra de ciência, segundo o mesmo Espírito; a um terceiro, a fé, no mesmo</p><p>Espírito; a outro, o carisma das curas; a um quinto, o discernimento dos</p><p>espíritos.</p><p>384</p><p>” Logo, após terminar a lista dos carismas, ele acrescenta: “Tudo</p><p>isto é produzido por um só e mesmo Espírito</p><p>385</p><p>”.</p><p>Como vocês vêem, o dom do discernimento não é nem terrestre nem</p><p>pequeno, mas um grande presente da graça divina. Se o monge não puser</p><p>todos os seus esforços e seu zelo em obter e adquirir o discernimento seguro</p><p>dos espíritos que lhe sobrevêm, segue-se forçosamente que, como alguém</p><p>perdido na noite, não apenas ele cairá nos horríveis precipícios, mas</p><p>384</p><p>1 Coríntios XII, 8-9.</p><p>385</p><p>1 Coríntios XII, 10.</p><p>estrebuchará até nos caminhos retos e planos.</p><p>[2,2] Isto me lembra quando, nos meus anos de juventude. Eu me encontrava</p><p>na região de Tebaida, aonde vivia o bem-aventurado Antônio. Alguns anciãos,</p><p>reunidos com ele, se perguntavam sobre qual seria a virtude mais perfeita,</p><p>qual dentre todas poderia melhor proteger o monge ao abrigo das armadilhas</p><p>e das ilusões do diabo. Cada qual emitia sua opinião, segundo a concepção de</p><p>seu pensamento. Uns diziam ser o jejum e a vigília, pois, pela sua observação,</p><p>o pensamento, tornado mais leve e puro, pode se aproximar de Deus mais</p><p>facilmente. Outros pensavam ser o despojamento e o desprezo por todas as</p><p>coisas pessoais, na medida em que o pensamento, liberado dos múltiplos</p><p>laços das preocupações do mundo, pode se aproximar de Deus com mais</p><p>comodidade. Outros ainda julgavam ser a virtude da esmola, porque o Senhor</p><p>disse no Evangelho: “Venham, benditos de meu Pai, entrem na posse do reino</p><p>que lhes foi reservado desde a origem do mundo. Pois eu tive fome, e vocês</p><p>me deram de comer</p><p>386</p><p>”, etc.</p><p>É assim que cada um dava sua opinião sobre as diferentes virtudes pelas quais</p><p>o homem poderia se aproximar cada vez mais de Deus, e a maior parte da</p><p>noite passou-se nesta pesquisa. O último de todos, o bem-aventurado Antônio,</p><p>tomou a palavra: “Todas essas práticas de que vocês falaram são certamente</p><p>necessárias e úteis aos que buscam a Deus e aspiram alcançá-lo. Mas não me</p><p>parece que devamos dar o primeiro prêmio a essas virtudes, pois todos</p><p>conhecemos muitos que se extenuaram em jejuns e vigílias, que se retiraram</p><p>para o deserto, que levaram o despojamento ao ponto de não reservarem</p><p>sequer o alimento cotidiano, que praticaram a esmola até distribuir tudo o que</p><p>tinham e, depois disso tudo, caíram miseravelmente da virtude e</p><p>escorregaram para o mal. O que os fez se desviarem da via reta? Não foi</p><p>outra coisa, segundo meu sentimento e minha opinião, do que a falta de</p><p>discernimento. Pois é o discernimento que ensina o homem a caminhar sobre</p><p>a via real mantendo-se à distância de dois excessos: ele impede de se perder à</p><p>direita por uma temperança exagerada e de se deixar levar à esquerda pela</p><p>negligência e o relaxamento.”</p><p>O discernimento é, com efeito, como que o olho e a lâmpada da alma,</p><p>segundo estas palavras do Evangelho: “A lâmpada do corpo é o olho. Se seu</p><p>386</p><p>Mateus XXV, 34-35.</p><p>olho for puro, todo seu corpo será luminoso; mas se seu olho é tenebroso,</p><p>todo seu corpo será tenebroso</p><p>387</p><p>”. O discernimento examina todas as idéias e</p><p>ações do homem, rejeita e dispensa o que é mau e o que desagrada a Deus,</p><p>protegendo-nos assim da perdição.</p><p>[2,3] Podemos também aprender essas coisas pelos relatos das santas</p><p>Escrituras. Pois Saul, o primeiro a receber a realeza em Israel, não possuía o</p><p>olhar do discernimento, e por isso seu pensamento estava obscurecido e não</p><p>conseguia discernir se era mais agradável a Deus oferecer um sacrifício ou</p><p>obedecer ao mandamento do profeta Samuel. Quando ele pensava estar</p><p>honrando a Deus, na verdade ofendeu-o e perdeu a realeza</p><p>388</p><p>.</p><p>É também o discernimento que o Apóstolo chama de “sol” quando diz: “Que</p><p>o sol não se ponha sobre a sua cólera”. Podemos vê-lo também como o leme</p><p>de nossas vidas, segundo o que está escrito: “Aqueles que não têm direção</p><p>caem como as folhas</p><p>389</p><p>”. A Escritura também o designa como prudência, sem</p><p>a qual nos é proibido fazer seja lá o que for, até mesmo beber o vinho</p><p>espiritual que alegra o coração do homem</p><p>390</p><p>, conforme as palavras: “Beba o</p><p>vinho com prudência</p><p>391</p><p>”. E também é dito: “Uma cidadela com as muralhas</p><p>derrubadas e sem defesa, assim é o homem que faz qualquer coisa sem</p><p>prudência.</p><p>392</p><p>” No discernimento cresce a sabedoria, o intelecto e o juízo, sem</p><p>os quais não podemos construir nossa moradia interior nem juntar as riquezas</p><p>espirituais, conforme as palavras: “É pela sabedoria que uma casa se ergue e</p><p>pelo intelecto que ela se torna firme, pelo juízo que seus cofres se enchem de</p><p>riquezas.</p><p>393</p><p>” Ela é o alimento sólido dos homens feitos, cujo senso é</p><p>exercitado pelo hábito de discernir o bem do mal</p><p>394</p><p>. Todos esses textos</p><p>mostram claramente que, sem o carisma do discernimento, uma virtude não</p><p>consegue se estabelecer nem permanecer firme até o fim, pois é o</p><p>discernimento que engendra e protege todas as virtudes.</p><p>387</p><p>Mateus VI, 22-23.</p><p>388</p><p>Cf. 1 Samuel XV, 17-23.</p><p>389</p><p>Provérbios XI, 14.</p><p>390</p><p>Cf. Salmo CIII, 15.</p><p>391</p><p>Provérbios XXXI, 3.</p><p>392</p><p>Provérbios XXV, 28.</p><p>393</p><p>Provérbios XXIV, 3-4.</p><p>394</p><p>Hebreus V, 14.</p><p>[2,5] Todos os Padres concordaram com esta opinião e este julgamento de</p><p>Antônio. E podemos confirmar a sentença de santo Antônio por exemplos</p><p>recentes acontecidos em nosso tempo. Vocês se lembram da miserável queda</p><p>do velho Heron, que aconteceu a poucos dias debaixo de nosso olhos: de que</p><p>maneira, pela ilusão do diabo, ele se atirou do alto de sua prática virtuosa para</p><p>as goelas da morte. Nós nos lembramos, com efeito, que ele passou cinqüenta</p><p>anos no deserto próximo daqui, vivendo numa grande austeridade e numa</p><p>severa temperança, buscando e procurando mais do que todos os lugares mais</p><p>desertos e solitários. E depois de tantas penas e lutas, tornado joguete do</p><p>diabo, ele se deixou escorregar para o abismo e lançou num luto inconsolável</p><p>todos os Padres e irmãos deste deserto. Ele não teria sofrido isto se tivesse</p><p>observado a virtude do discernimento, ele que aprendera a não se fiar no seu</p><p>próprio julgamento, mas no conselho dos Padres e dos irmãos. Pois foi</p><p>seguindo seu próprio julgamento que ele prolongou seu jejum e seu</p><p>isolamento até durante os festejos da santa Páscoa, não aceitando encontrar os</p><p>Padres e os irmãos na igreja para comer com eles, pois seria constrangido a</p><p>tomar sua parcela de legumes ou de algum outro alimento apresentado à mesa</p><p>e assim pareceria ter renunciado a seu propósito e à sua regra. Por longo</p><p>tempo separado dos demais por sua própria vontade, ele recebeu o anjo de</p><p>Satanás e o venerou como se fosse um anjo de luz</p><p>395</p><p>. Este lhe ordenou que se</p><p>atirasse no meio da noite dentro de um poço profundo para que soubesse pela</p><p>própria experiência que ele daí por diante estava protegido de todos os</p><p>perigos por sua grande virtude e seu perseverante trabalho por Deus. Não</p><p>discernindo mais em seu pensamento o inspirador deste desígnio, com o</p><p>espírito entenebrecido, ele se atirou em plena noite no poço. Pouco depois os</p><p>irmãos se deram conta do acontecido e resgataram-no com muito trabalho, já</p><p>semimorto. Dois dias depois ele expirou, deixando os irmãos</p><p>e o abade</p><p>Paphnúcio num luto inconsolável. Este, movido por sua grande bondade e</p><p>lembrando-se dos numerosos trabalhos e de tantos anos que o ancião passara</p><p>no deserto, não o separou da lembrança e da oferenda que fazemos para todos</p><p>os defuntos, a fim de que ele não fosse contado entre os suicidas.</p><p>[2,6] E que dizer destes dois irmãos que habitavam para além do deserto de</p><p>Tebaida, lá aonde o bem-aventurado Antônio havia residido, e que, levados</p><p>pela falta de discernimento, decidiram-se a marchar para o interior do deserto,</p><p>395</p><p>Cf. 2 Coríntios XI, 14.</p><p>imenso e estéril, sem receber alimento dos homens, mas contentando-se</p><p>apenas com aquilo que o Senhor lhes fornecesse milagrosamente? Perdidos</p><p>no deserto e morrendo de fome, eles foram vistos de longe pelos Maziques.</p><p>Este povo é o mais selvagem e cruel de todos quantos existem. Mas mudando,</p><p>pela providência divina, sua selvageria e crueldade em benevolência, eles</p><p>foram ao encontro dos irmãos com pães. Um deles, inspirado pelo</p><p>discernimento, recebeu os pães com alegria e reconhecimento, dizendo para si</p><p>mesmo que se homens tão cruéis e selvagens, que tinham prazer em derramar</p><p>sangue, foram movidos pela compaixão diante de seu esgotamento e lhes</p><p>ministraram alimento, isto só poderia ser por impulsão divina. Mas o outro,</p><p>recusando o alimento oferecido por homens e permanecendo provado de</p><p>discernimento, morreu de fome. Todos os dois, de início, haviam tomado uma</p><p>decisão errônea, partindo de uma opinião irracional e funesta. Entretanto o</p><p>primeiro, lembrando-se do discernimento, fez bem em renunciar ao seu</p><p>propósito temerário e imprudente. O segundo, ao contrário, obstinado em sua</p><p>tola presunção e em sua falta de discernimento, entregou-se à morte da qual</p><p>Deus tentara desviá-lo.</p><p>[2,7] Que dizer ainda deste outro, que não nomearei porque vive ainda? Ele</p><p>acolheu por inúmeras vezes o demônio como se fosse um anjo, recebendo</p><p>dele revelações e vendo brilhar continuamente em sua cela a luz de uma</p><p>lâmpada. Finalmente, ele recebeu do anjo a ordem de imolar a Deus em</p><p>sacrifício seu filho que habitava com ele no mesmo mosteiro, para</p><p>compartilhar do mérito de Abraão. Esta sugestão o iludiu de tal maneira que</p><p>ele teria matado o próprio filho se este, vendo-o afiar seu cutelo de forma</p><p>inusitada e preparar as cordas com as quais iria amarrá-lo como vítima, não</p><p>tivesse assegurado sua salvação pela fuga.</p><p>[2,8] Para terminar contarei ainda a ilusão daquele monge da Mesopotâmia</p><p>que praticava uma extrema temperança, recluso por anos a fio em sua cela, e</p><p>que, finalmente, enganado por revelações e sonhos diabólicos que depois de</p><p>anos de trabalho e virtudes que o haviam elevado acima de todos os monges</p><p>da região, converteu-se ao judaísmo e se fez circuncidar. Para enganá-lo, o</p><p>diabo lhe mostrou em diversas ocasiões verdadeiras visões, a fim de torná-lo</p><p>mais disposto a crer nas falsidades que ele lhe iria apresentar. Ele lhe mostrou</p><p>então, numa noite, de um lado o povo cristão com os apóstolos e os mártires</p><p>como tenebrosos e cheios de vergonha, mergulhados na tristeza e no luto; e de</p><p>outro lado o povo judeu, com Moisés e os profetas, irradiando uma luz</p><p>deslumbrante e vivendo na alegria e na felicidade. O sedutor lhe propôs, caso</p><p>quisesse partilhar da alegria e da beatitude do povo judeu, que se fizesse</p><p>circuncidar. E assim iludido, o monge se dez circuncidar. É evidente que, de</p><p>todos estes monges, nenhum teria sucumbido tão triste e miseravelmente à</p><p>ilusão, se possuíssem o carisma do discernimento.</p><p>[2,9] Neste momento, Germano disse: “Tanto os exemplo recentes como as</p><p>sentenças dos antigos Padres mostram suficientemente que o discernimento é</p><p>a fonte, a raiz, a cabeça e a ligação de todas as virtudes. Mas como podemos</p><p>adquiri-la, é o que queremos saber: como reconhecer o verdadeiro</p><p>discernimento que vem de Deus daquele que é falso, enganador e diabólico?”</p><p>[2,10] Então o abade Moisés respondeu: “O verdadeiro discernimento só é</p><p>dado, ao preço de uma verdadeira humildade, a quem revela aos Padres não</p><p>apenas suas ações, mas também seus pensamentos, e que jamais confia em</p><p>seu próprio senso, mas segue em tudo as palavras dos antigos, só</p><p>considerando como bom o que foi aprovado por eles. Esta prática não só</p><p>permite ao monge permanecer sem prejuízo no caminho reto através do</p><p>verdadeiro discernimento, mas o protege ao abrigo de todas as armadilhas do</p><p>diabo. De fato, é impossível a alguém que regrou sua vida sobre os conselhos</p><p>e a opinião dos que o antecederam, cair na ilusão dos demônios. Pois mesmo</p><p>antes de obter o carisma do discernimento, o fato de manifestar e confessar</p><p>aos Padres os maus pensamentos, faz com que estes se consumam e percam</p><p>toda a força. Assim como uma serpente que é levada das profundezas de seu</p><p>antro tenebroso até a luz apressa-se em fugir e desaparecer, também os</p><p>pensamentos perversos, postos à luz pelo excelente reconhecimento da</p><p>confissão, apressam-se em se afastar do homem. A fim de que vocês</p><p>aprendam mais facilmente esta virtude por meio de um exemplo, eu lhes</p><p>contarei um fato que o próprio abade Serapião contava àqueles que o vinham</p><p>ver, para colocá-los em guarda.”</p><p>[2,11] Eis o que ele dizia: Quando eu era jovem, eu morava com meu abade.</p><p>Quando levantávamos da mesa após o repasto, por ação do demônio, eu</p><p>roubava um pão para comê-lo depois, sem que o abade soubesse. Tendo feito</p><p>isto por muito tempo, chegou um momento em que eu não mais dominava</p><p>esta paixão; minha consciência me condenava, mas eu tinha vergonha de</p><p>contar ao ancião. Por uma disposição da bondade de Deus, aconteceu de</p><p>alguns irmãos virem ver o ancião para sua edificação e eles o interrogaram</p><p>sobre seus pensamentos. O ancião lhes respondeu: Nada prejudica mais os</p><p>monges, nada alegra mais os demônios, do que esconder os pensamentos dos</p><p>pais espirituais. E ele lhes falou da temperança. Ao ouvir estas palavras, eu</p><p>caí em mim e pensei que Deus havia revelado minhas faltas ao ancião;</p><p>movido pela compunção, comecei a chorar e tirei da algibeira o pão que havia</p><p>roubado conforme meu mau hábito. Atirando-me por terra, pedi perdão aos</p><p>que me rodeavam e solicitei suas orações para não cair novamente no futuro.</p><p>Então o ancião disse: “Sem que eu tivesse dito uma só palavra, sua confissão</p><p>o libertou, e você estrangulou este demônio que o feria graças ao seu silêncio</p><p>ao revelar os segredos de seu coração. Até o presente, você o fizera seu</p><p>mestre, por não contrapor-se a ele nem denunciá-lo; agora ele não terá mais</p><p>lugar em você, pois você o expulsou do seu coração em pleno dia.” Mal ele</p><p>acabara de falar e a potência demoníaca apareceu como uma lâmpada de fogo</p><p>saindo de meu peito e enchendo o ambiente com um odor infecto, de tal modo</p><p>que os presentes acharam que o que queimava era uma porção de enxofre.</p><p>Então o ancião retomou a palavra: “Agora o Senhor demonstrou com este</p><p>sinal a verdade das minhas palavras e da sua libertação”. Foi assim que a</p><p>confissão expulsou de mim o vício da gulodice e esta ação diabólica, a tal</p><p>ponto que nunca mais eu tive complacência para com este desejo.</p><p>Dessas palavras do abade Serapião, aprendemos que não iremos obter o</p><p>carisma do discernimento senão fiando-nos não nos critérios de nosso próprio</p><p>pensamento, mas no ensinamento e no exemplo dos Padres. Pois não existe</p><p>caminho mais fácil para o diabo precipitar o monge no abismo do que</p><p>persuadindo-o a rejeitar as lições dos Padres e a confiar em seu próprio</p><p>julgamento e em sua vontade própria. Se considerarmos o exemplo das artes e</p><p>das ciências humanas, vemos realmente que é impossível adquiri-las por nós</p><p>mesmos, utilizando-nos apenas de nossas mãos, olhos e ouvidos: temos</p><p>necessidade de um mestre e de uma regra. Que loucura, então, imaginar que</p><p>não precisamos de mestre para a prender a arte espiritual, que é a mais difícil</p><p>de todas! Ela é, com efeito,</p><p>identificam à</p><p>água do batismo, tornam ativa a graça batismal. Nelas se “liquefaz” o</p><p>coração, dissolve-se a crosta que o encerrava. Lágrimas de morte e de</p><p>ressurreição, água batismal, sem dúvida também as águas primordiais sobre</p><p>as quais pairava o Espírito. “Aquele que se revestiu de lágrimas bem-</p><p>aventuradas como um traje nupcial conhece o sorriso espiritual da alma”,</p><p>escreve são João Clímaco</p><p>37</p><p>, aludindo à parábola do festim para o qual os bons</p><p>e os maus foram convidados sem outra condição justamente que a de vestir-se</p><p>com seus trajes de núpcias.</p><p>Léon Chestov, nas Revelações da morte, lembra a lenda russa segundo a qual</p><p>Deus envia o anjo da morte para carregar a alma de um agonizante. Mas às</p><p>vezes acontece que no último instante o anjo seja chamado e o homem</p><p>sobreviva. Mas o anjo tem as asas cobertas de olhos. Ao se ir, ele substitui os</p><p>olhos do homem por olhos que ele tem sobre as asas. Daqui em diante, o</p><p>homem enxergará de outro modo, com a “lembrança da morte”, com a</p><p>“lembrança de Deus”, com um desembaraço infinitamente aprazível e uma</p><p>ternura em todo o seu ser. Nós vimos este olhar, na Rússia, entre os</p><p>prisioneiros libertados dos campos, estes campos da morte que foram</p><p>verdadeiros mosteiros em nosso século.</p><p>O “temor a deus” agora é transfigurado pelo amor. Ele não é mais do que o</p><p>espanto diante do “oceano de limpidez”, em cujo horizonte o céu e a água</p><p>refletem um ao outro, como, em Cristo, o divino e o humano.</p><p>“O puro temor não cessará jamais... ele expressa a estupefação do homem</p><p>diante da glória de Deus</p><p>38</p><p>.”</p><p>VI</p><p>AS VIRTUDES, FORÇAS DIVINO-HUMANAS</p><p>Quando deixamos a vida ressuscitada crescer em nós, ela instaura pouco a</p><p>pouco a pessoa em sua verdadeira natureza que, segundo a Filocalia, é</p><p>inseparável da graça. Em Cristo, as forças do humano são vivificadas pelas</p><p>energias divinas, pelos Nomes divinos que elas refletem. Criado à imagem de</p><p>Deus, o homem esconde, com efeito, forças que o levam a ele e se desdobram</p><p>na irradiação de sua essência. As “virtudes” do homem – seria melhor, fora de</p><p>qualquer moralismo, evocar suas forças, suas energias (de resto, este é o</p><p>37</p><p>A escada santa VIII, 41.</p><p>38</p><p>Máximo o Confessor, op. cit., 10,289.</p><p>sentido etimológico da palavra virtude, pois virtus, em latim, designa a força</p><p>viril) – são participações às energias divinas, ao modo de ser de Deus</p><p>revelado por Cristo. O homem é chamado a manifestar a beleza, a bondade, a</p><p>sabedoria, a forte mansidão que são como que raios disto que são João</p><p>denomina “a luz da vida”. Estes Nomes divinos, que Denis o Areopagita</p><p>comentou com incomparável poesia, são muitas vezes aplicados pela</p><p>Escritura e pelos Padres ao Espírito Santo, “que dá a vida”: “Espírito de</p><p>sabedoria”, “de força”, “de glória”, “de liberdade”; o homem “à imagem do</p><p>Espírito”, dizem as Homilias Macarianas</p><p>39</p><p>, é coroado por uma chama de</p><p>Pentecostes. “A glória de Deus é ‘o homem vivo’, dizia santo Irineu de Lyon,</p><p>precisando: É somente onde está o Espírito Santo que existe o homem vivo e</p><p>verdadeiro</p><p>40</p><p>”. Podemos ainda citar um dos grandes poetas de nosso século,</p><p>Rainer-Maria Rilke, que dizia em seu leito de morte: “Não se esqueçam de</p><p>que viver é glória”.</p><p>As “virtudes” aparecem assim numa relação antinômica com as “paixões”:</p><p>elas libertam e transfiguram a energia que as “paixões” desviam, confiscam,</p><p>bloqueiam. O ímpeto da natureza, usurpado nos descaminhos do nada,</p><p>provoca as “paixões” que desagregam a pessoa. Tomado, reforçado,</p><p>iluminado pelo dinamismo da ressurreição, ele suscita as “virtudes”: ele</p><p>unifica e exalta a pessoa no “mistério de Cristo”. São Máximo o Confessor</p><p>compara esta metamorfose a afiar uma espada: retirar a ferrugem equivale a</p><p>permitir que a luz do aço brilhe</p><p>41</p><p>.</p><p>A cólera, perversão do ardor (o thymos que reside no peito, segundo a velha</p><p>tripartição indo-européia retomada pelos Padres), torna-se, no cadinho da</p><p>graça, domínio e mansidão, a mansidão dos fortes. O desejo das entranhas – a</p><p>epithymia – pode da mesma forma se transformar em eros por Deus: “Que o</p><p>amor carnal, diz João Clímaco, nos sirva de modelo para nosso desejo por</p><p>Deus. Nada impede de tomar exemplos para as virtudes naquilo que lhes é</p><p>contrário</p><p>42</p><p>”. E o nous, a inteligência da cabeça, pode encontrar sua raiz no</p><p>coração.</p><p>39</p><p>Homilias 46, 5-6.</p><p>40</p><p>Adv. Haer. V, 9, 163.</p><p>41</p><p>Disp. Pyrrhus, PG 91,312A.</p><p>42</p><p>A escada santa XXVI, 34.</p><p>Máximo o Confessor, nas suas Centúrias sobre o amor, nota que “no homem</p><p>cujo intelecto (nous) se volta para Deus, mesmo a concupiscência (epithymia)</p><p>dá forças ao amor ardente por Deus, mesmo a violência da cólera (thymos) se</p><p>põe no mesmo movimento em direção ao amor divino. Pois, a longo prazo, a</p><p>participação na luz divina (...) unindo toda a força de suas potências, a</p><p>transforma em um amor ardente, insaciável</p><p>43</p><p>”. Sem dúvida, apenas Denis o</p><p>Areopagita soube dar a chave desta metamorfose que entranha nos espirituais</p><p>um estranho respeito das “paixões”: “Aquele que deseja a pior das vidas, diz</p><p>ele (...) por seu próprio desejo tem parte no Bem”.</p><p>Tudo é levado pela humildade e tudo, por intermédio da paciência, da</p><p>esperança e da “impassibilidade” desemboca no amor, no amor</p><p>desinteressado e criador.</p><p>Para se reencontrarem Deus e o homem saem cada qual de si mesmo: esta</p><p>humilhação de Deus “até a morte, e morte na cruz</p><p>44</p><p>”, a partir do momento em</p><p>que o homem se conforma com isto pelo laço infinitamente confiante da</p><p>humildade, permite a verdadeira comunicação da vida divina. “Aprendam</p><p>comigo que sou manso e humilde de coração</p><p>45</p><p>”, diz Jesus. A “escada” das</p><p>virtudes, tantas vezes comentada e representada de uma maneira quase</p><p>estóica, é na realidade um mergulho na humildade. Santificar-se significa</p><p>tornar-se um pecador consciente, e com isto abrir-se para a graça. Os mais</p><p>rudes, os mais severos consigo mesmos não se enganaram nisto e é</p><p>justamente em sua Escada santa que João do Sinai anotou: “Não foi dito: eu</p><p>jejuei, eu velei, eu dormi sobre o chão duro, mas: eu me humilhei e logo o</p><p>Senhor me salvou</p><p>46</p><p>”. A humildade é esta despossessão de si, este abandono</p><p>ativo que permite a Deus nos iluminar.</p><p>A humildade está ligada à “ruptura” em relação ao mundo, tipicamente</p><p>monástica mas que todo cristão pode experimentar por meio de um discreto,</p><p>quase imperceptível, distanciamento. Ela permite a paciência nas vicissitudes</p><p>da vida, esta paciência da qual os espirituais dizem que vale, para os que</p><p>permanecem no século, por todas as disciplinas monásticas de abstinência. A</p><p>43</p><p>Centúrias sobre o amor II, 48.</p><p>44</p><p>Filipenses II, 8.</p><p>45</p><p>Mateus XI, 29.</p><p>46</p><p>XXV, 14.</p><p>paciência nos configura à de Deus, figura maior de sua Paixão, pois este não</p><p>tem ideia do mal</p><p>47</p><p>e o recebe em plena face como Cristo recebe as bofetadas</p><p>com os olhos tapados. “A face de Deus verte sangue na sombra”, dizia Léon</p><p>Bloy e Serge Boulgakov escreveu páginas maravilhosas sobre esta paciência-</p><p>paixão do Pai</p><p>48</p><p>.</p><p>Da humildade e da paciência nasce uma nova relação com o tempo que é</p><p>designada pela virtude da esperança. Para Heidegger, a estrutura fundamental</p><p>da temporalidade, sua “existencial”, é a angústia. Para o cristão, é a</p><p>esperança. Como a angústia, a esperança mira o devir, mas este não é o nada,</p><p>mas o Reino. O futuro suposto pela angústia dá medo, e é por isso que os</p><p>homens multiplicam ridiculamente seguros e garantias de segurança. O futuro</p><p>suposto pela esperança triunfa sobre a usura do tempo, atravessa-o em direção</p><p>à eternidade. É por isso que os mártires morrem num êxtase de ressurreição e</p><p>os monges, que interiorizam o martírio, puderam criar o adágio: “Dê seu</p><p>sangue e receba o Espírito”. Em seus pequenos tratados, Marcos o Asceta</p><p>escreve que “A esperança alarga</p><p>invisível, escondida e percebida apenas pela</p><p>pureza do coração, e nesta arte o fracasso não conduz apenas a um prejuízo</p><p>temporário, mas à perda da alma e à morte eterna.</p><p>[2,12] “Parece-me, disse Germano, que habitualmente, uma causa da</p><p>vergonha e um pretexto a uma piedade nociva vêm do fato de que muitas</p><p>vezes certos Padres que ouvem os pensamentos dos irmãos não apenas não os</p><p>curam como ainda os condenam e os levam ao desespero, fato que aconteceu</p><p>na Síria, como todos sabemos. Um irmão foi revelar seus pensamentos a um</p><p>ancião de lá com toda a simplicidade e verdade, revelando sem falsa vergonha</p><p>os segredos de seu coração; o ancião, ao ouvi-lo, começou a se indignar e a</p><p>levantar-se contra ele, repreendendo-o por ter tido tais maus pensamentos, a</p><p>tal ponto que o irmão, tendo ouvido tudo, deixou de manifestar seus</p><p>pensamentos aos anciãos.”</p><p>[2,13] O abade Moisés respondeu então: “É bom, como eu disse, não</p><p>esconder os pensamentos dos Padres, mas não a qualquer um. É preciso</p><p>revelá-los a anciãos espirituais que tenham discernimento, não àqueles cujos</p><p>cabelos embranqueceram com o tempo. Com efeito, muitos, iludidos pela</p><p>idade e revelando seus pensamentos, caíram no desespero por causa da</p><p>inexperiência dos que os ouviram.”</p><p>Havia, com efeito, um irmão muito fervoroso que era violentamente</p><p>atormentado pelo demônio da prostituição. Ele foi procurar um ancião e lhe</p><p>revelou seus pensamentos. Este, que era inexperiente, indignou-se ouvindo-o</p><p>e o tratou como um miserável e indigno do hábito monástico por ter tido tais</p><p>pensamentos. Ao ouvir estas coisas, o irmão caiu em desespero, e,</p><p>abandonando sua cela, retornou ao mundo. Mas, pela providência divina, o</p><p>abade Apolo, o mais experiente dos anciãos, o encontrou e, vendo-o</p><p>perturbado e abatido, perguntou-lhe: “Meu filho, qual é a causa de tamanha</p><p>tristeza?” Primeiro o irmão nada respondeu, tal era seu desencorajamento.</p><p>Longamente instado pelo ancião, ele acabou por dizer o que era: “Certos</p><p>pensamentos me atormentavam freqüentemente e eu fui confessá-los a tal</p><p>ancião, e pelo que ele me disse, não tenho mais esperança de salvação.</p><p>Desencorajado, preferi voltar para o mundo.” Ao ouvir isto, a padre Apolo o</p><p>consolou e animou, dizendo: “Não fique transtornado, meu filho, nem perca a</p><p>esperança. Pois até eu, com minha idade e meus cabelos grisalhos, continuo</p><p>muito atormentado por esses pensamentos. Não se inquiete com esta febre,</p><p>não será tanto o esforço humano que irá curá-la, mas a bondade de Deus. Dê-</p><p>me apenas um dia e retorne para sua cela.” E assim fez o irmão.</p><p>Depois de deixá-lo, o abade Apolo foi até a cela do ancião a quem o irmão</p><p>havia feito sua confissão e, ficando do lado de fora, pediu com lágrimas a</p><p>Deus: “Senhor que envia as tentações para o benefício de cada um, faça</p><p>passar o combate daquele irmão para este velho, para que ele aprenda com a</p><p>experiência, em sua velhice, aquilo que ele não aprendeu em tantos anos de</p><p>vida: a ser compassivo com aqueles que têm contra quê lutar.”</p><p>Mal ele terminara sua prece e viu um etíope hediondo perto da cela, lançando</p><p>raios contra o velho. Tendo sido atingido, logo ele começou a caminhar</p><p>apressadamente em todas as direções como um homem ébrio. Incapaz de</p><p>permanecer no lugar, ele deixou sua cela e dirigiu-se para o mundo pelo</p><p>mesmo caminho do irmão. Vendo o que acontecia, o abade Apolo foi ao seu</p><p>encontro e lhe disse: “Aonde vai você assim? Qual é a causa do transtorno</p><p>que o tomou?” Dando-se conta de que seu estado era conhecido pelo santo,</p><p>ele se encheu de vergonha e não dizia nada. Então o abade Apolo lhe disse:</p><p>“Volte para sua cela e daqui em diante reconheça a sua fraqueza; reconheça</p><p>que se até o presente você foi ignorado ou desdenhado pelo diabo, é porque</p><p>você não era digno de lutar contra ele. Mais do que isto: você não conseguiu</p><p>sustentar sequer um dia seu assalto. Isto aconteceu porque, ao receber um</p><p>jovem irmão atacado pelo inimigo comum, ao invés de alentá-lo para o</p><p>combate, você o atirou ao desespero sem levar em conta a consideração do</p><p>Sábio: “Liberte os condenados à morte e resgate os que são levados ao</p><p>suplício</p><p>396</p><p>”. Você tampouco se lembrou das palavras do nosso Salvador, de</p><p>“não esmagar a cana quebrada, nem apagar o pavio que ainda fumega</p><p>397</p><p>”.</p><p>Pois ninguém é capaz de sustentar os ataques nem extinguir os ardores da</p><p>natureza, se a graça de Deus não o proteger da fraqueza humana.</p><p>Convencidos portanto da providência salutar que vela por nós, unamos nossas</p><p>orações a Deus a fim de que ele o libere do castigo que lhe foi enviado. Pois</p><p>“aquele que aflige é o mesmo que restaura, ele fere mas suas mãos curam</p><p>398</p><p>”;</p><p>“ele rebaixa e ele ergue; ele faz morrer e faz viver; ele conduz aos infernos e</p><p>de lá resgata</p><p>399</p><p>”. Ao pronunciar estas palavras, ele imediatamente liberou o</p><p>ancião da combate que deveria sofrer, e o exortou a pedir a Deus uma língua</p><p>que soubesse dizer a palavra certa no momento oportuno.</p><p>De tudo isto, aprendemos que não existe outro caminho de salvação que o de</p><p>revelar seus pensamentos aos Padres que têm mais discernimento e deles</p><p>receber a regra da virtude, antes de seguir seu próprio julgamento e seu</p><p>396</p><p>Provérbios XXIV, 11.</p><p>397</p><p>Mateus XII, 20.</p><p>398</p><p>Isaías l, 4.</p><p>399</p><p>1 Samuel II, 6-7.</p><p>próprio senso. E se acontecer de, por acaso, cairmos nas mãos de um ancião</p><p>demasiado simples e sem grande experiência, esta não é uma razão para nos</p><p>abstermos de revelar os pensamentos aos mais experientes dentre os Padres e</p><p>de desprezar a tradição dos antigos. Pois não foi de sua própria iniciativa, mas</p><p>foi de Deus e das santas Escrituras que eles transmitiram aos que vieram</p><p>depois deles a prática de interrogar os antecessores.</p><p>[2,14] Podemos aprender isto a partir de muitas outras passagens da Escritura</p><p>inspirada, em especial da história de Samuel</p><p>400</p><p>. Consagrado a Deus por sua</p><p>mãe desde a sua infância e admitido a conversar com Deus, Samuel jamais</p><p>confiava em seu próprio julgamento, mas, chamado por Deus uma e duas</p><p>vezes, ele correu ao velho Eli e com as instruções deste pode responder a</p><p>Deus adequadamente. Aquele a quem Deus considerara digno de ser chamado</p><p>por ele, Deus também quis que fosse dirigido pelo exemplo e as ordens do</p><p>ancião, a fim de que fosse conduzido à humildade.</p><p>[2,15] E Cristo, que havia chamado Paulo e falado com ele, poderia ter-lhe</p><p>aberto os olhos logo e lhe mostrado o caminho da salvação. Mas ele o enviou</p><p>a Ananias e lhe ordenou expressamente que aprendesse com ele o caminho da</p><p>verdade: “Levante-se, entre na cidade e lá lhe será dito o que fazer</p><p>401</p><p>”. Assim</p><p>ele nos ensina a nos deixarmos guiar pelos que nos antecederam, para que não</p><p>sejam mal interpretadas as coisas ditas de Paulo e para que elas não se tornem</p><p>um exemplo de presunção para seus descendentes, cada qual pretendendo ser</p><p>conduzido diretamente à verdade por Deus, quase como são Paulo, e não por</p><p>intermédio dos Padres. Vemos isto claramente, não só pelo que foi dito, mas</p><p>pelo que o próprio Apóstolo escreve: “voltei a Jerusalém (...) Expus a eles o</p><p>Evangelho que anuncio aos pagãos, mas o expus reservadamente às pessoas</p><p>mais notáveis, para não me arriscar a correr ou ter corrido em vão</p><p>402</p><p>”. E no</p><p>entanto a graça do Espírito Santo caminhava ao seu lado, pelo poder dos</p><p>milagres que ele fazia.</p><p>Quem será assim tão orgulhoso e tão pretensioso para ousar se fiar em seu</p><p>próprio senso e julgamento, quando este vaso de eleição atesta ter tido</p><p>necessidade do conselho daqueles que eram apóstolos antes dele? Fica</p><p>400</p><p>Cf. 1 Samuel, 3.</p><p>401</p><p>Atos IX, 6.</p><p>402</p><p>Gálatas II, 2.</p><p>claramente provado com isso que o Senhor não revela a ninguém o caminho</p><p>da perfeição se não for por meio dos Padres espirituais que marcham sobre a</p><p>via. É como foi dito pelo Profeta: “Interrogue seu pai, e</p><p>o coração, enquanto a angústia o</p><p>encolhe...</p><p>49</p><p>” E também: “O coração em que habita Cristo desde o batismo não</p><p>pode ser aberto (...) senão pela esperança que abarca tudo</p><p>50</p><p>”.</p><p>Assim as “virtudes” - fé, temor a Deus, humildade, paciência e mansidão,</p><p>esperança – culminam na “impassibilidade” (apathéia). Esta não tem nada de</p><p>negativo, mas designa uma paz profunda (hésychia) que não se compraz</p><p>absolutamente em si mesma, mas, penetrada pelo silêncio de Deus, se abre ao</p><p>infinito sobre os seres e as coisas. A alma não ignora as “paixões”, ela as vê</p><p>lucidamente nascer e fenecer, mas não se deixa perturbar por elas. A apathéia</p><p>sintetiza todas as “virtudes”: “A coroa de um rei não é feita de uma única</p><p>pedra preciosa, e a impassibilidade não atinge sua perfeição se</p><p>negligenciarmos uma única virtude, seja lá qual for</p><p>51</p><p>”. É assim que podemos</p><p>ver ascetas que praticam quase todas as virtudes abandonarem-se de repente a</p><p>uma paixão desenfreada, com uma violência que pecadores humildes</p><p>desconhecem, e tornarem-se, por exemplo, fanáticos atrozes.</p><p>47</p><p>Cf. J-M Garrigues, Dieu sans l'idée du mal. Limoges, 1984.</p><p>48</p><p>Epílogo a seu tratado Le Paraclet, trad. fr. Paris, 1946, pg.343s.</p><p>49</p><p>Dos que pensam ser justificados... 114.</p><p>50</p><p>Do batismo.</p><p>51</p><p>João Clímaco, A escada santa XXIX, 12.</p><p>A impassibilidade une o homem e a obra ao amor divino pela criação, este</p><p>“amor louco” de que falam Máximo o Confessor e Nicolas Cabasilas. O</p><p>homem pode então amar com um amor que não mais sujeita – nem a ele nem</p><p>ao outro – mas liberta. “A impassibilidade não exclui absolutamente o amor,</p><p>mas o engendra</p><p>52</p><p>”. Aquele que sabe, com todo seu ser, que Cristo ressuscitou</p><p>e que tudo, definitivamente, vive nele, este pode amar mesmo seu inimigos e</p><p>“derrubar o muro de separação que nós mesmos construímos</p><p>53</p><p>”. A</p><p>“impassibilidade” afina os sentimentos, permite sentir os seres e as coisas</p><p>como que do interior, torna as intuições, pensamentos e atos, infinitamente</p><p>mais delicados e mais atentos. Simultaneamente, algo de real se define no</p><p>homem: “Seja como um rei em seu coração, sobre o trono da humildade.</p><p>Você ordenará ao riso que venha, e ele virá. Ordenará às lagrimas que</p><p>venham, e elas virão. Ordenará ao corpo, não mais tirano, mas servidor: fala</p><p>isto, e ele fará</p><p>54</p><p>.”</p><p>VII</p><p>O SENTIDO DA ASCESE A A GUARDA DO CORAÇÃO</p><p>A Filocalia abre um caminho de liberdade. Ela não detalha as observâncias da</p><p>ascese, mas extrai o sentido desta.</p><p>Ascese significa “exercício”, “combate”, “o combate interior, mais duro que a</p><p>batalha dos homens”, dizia Rimbaud.</p><p>A ascese cristã não é, contrariamente a um preconceito tenaz, uma questão de</p><p>masoquismo e de mortificação. “Não nos é pedido que arranquemos de nós e</p><p>neguemos as atividades naturais da alma, mas que as purifiquemos</p><p>55</p><p>”, diz</p><p>Orígenes. Ou antes, seu verdadeiro objetivo é o de mortificar em nós a morte</p><p>e vivificar a vida. Trata-se de eliminar ou de metamorfosear os germes da</p><p>52</p><p>Máximo o Confessor, Centúrias sobre o amor I, 2.</p><p>53</p><p>A escada santa XXIX, 13.</p><p>54</p><p>Ibidem VII, 43.</p><p>55</p><p>22a. Homília sobre Josué.</p><p>morte que parasitam nossa existência, a fim de deixar crescer em nós a vida</p><p>de Cristo, o ímpeto do Sopro, “que dá a vida”, as forças da ressurreição que</p><p>libertam nossa verdadeira natureza.</p><p>A ascese é uma “física do corpo de glória”, ela permite uma visão</p><p>transfigurante do universo. É uma marcha da cruz em direção à ressurreição,</p><p>da morte para a não-morte, ou seja, para a alegria pascal. Ela transforma o</p><p>“corpo de morte” em corpo litúrgico, corpo de celebração, corpo-igreja como</p><p>diz Máximo o Confessor em sua Mystagogia, igreja cujo coração-espírito</p><p>constitui o altar. Ela nos liberta “deste mundo” como rede de hipnoses e de</p><p>ilusões para nos fazer descobrir o mundo de Deus, esta linguagem que deve</p><p>se tornar diálogo, estes “vivos” a quem devemos “nomear</p><p>56</p><p>”. Ela derruba o</p><p>“muro da separação” entre os homens e também entre as coisas e nós, este</p><p>muro opaco e impuro de que falam Hipólito</p><p>57</p><p>e Sartre. Cada rosto, cada pedra</p><p>e até os veios e os nós da madeira sobre minha mesa se tornam caminhos de</p><p>luz. Como disse Jacó depois de seu sonho, “este lugar é santo e eu não</p><p>sabia</p><p>58</p><p>”, por toda parte se ergue a escada dos anjos. A ascese alivia o olhar,</p><p>seca a concupiscência, permite ver a beleza de uma mulher ou ouvir músicas</p><p>profanas com maravilhamento e gratidão.</p><p>A ascese se define como jejum, castidade e vigilância (ou vigília).</p><p>Num sentido geral, o jejum é a limitação voluntária das necessidades para</p><p>devolver o desejo ao seu impulso natural, ou seja, para Deus e para a criação</p><p>de Deus. O jejum exorciza as duas “paixões-mãe” que são, como dissemos, a</p><p>avidez e o orgulho. As expressões populares “mastigar qualquer coisa”, “o</p><p>que cai sob os sentidos” sugerem nossa relação mortífera com o mundo. O</p><p>jejum nos liberta das imagens carnívoras, nos ajuda a descobrir a infinita</p><p>profundidade dos seres e que cada um merece atenção e respeito. É a um</p><p>tempo retiro e abertura, leveza interior e acolhimento.</p><p>Bem entendido, o jejum de alimentos não tem sentido se não estiver ligado ao</p><p>“jejum de paixões”. É preciso aprender a jejuar do amor ao poder, do fascínio</p><p>56</p><p>Cf. Gênese II, 19.</p><p>57</p><p>Em O idiota de Dostoievski.</p><p>58</p><p>Gênese XXVIII, 17.</p><p>pelas riquezas, dos raciocínios vãos e das “palavras vãs”. E, sobretudo, da</p><p>maledicência, que tantas vezes os jejuadores de alimentos praticam de bom</p><p>grado.</p><p>Podemos dizer que hoje em dia o jejum se situa no inverso da publicidade,</p><p>que tende a investir (e portanto a ocultar) o desejo de infinito do homem na</p><p>multiplicação indefinida das necessidades. Também ao contrário da</p><p>fabricação do imaginário por simulacros, as imagens, os ruídos incessantes de</p><p>uma cultura midiática que povoa de sonhos pré-fabricados nosso</p><p>sonambulismo e jamais deixa lugar ao silêncio.</p><p>Ao jejum está ligada a castidade que é a unificação da alma e do corpo no</p><p>impulso de comunhão. As forças inicialmente caóticas e dispersantes da vida</p><p>são pacificadas e se integram numa relação fiel: ou bem segundo a verdade do</p><p>amor humano – pois não devemos imaginar que a via filocálica seja reservada</p><p>aos monges: Dumitru Staniloae, mestre de obra e testemunho (até a prisão) da</p><p>Filocalia romena, era casado; ou bem, e mais habitualmente, para o monge,</p><p>com a consumação do eros no agapè divino, de sorte que os outros, para ele,</p><p>não passem de rostos e que ele esteja “separado de todos e unido a todos”.</p><p>Jejum e castidade (que pode ser vista como um jejum no qual o desejo é</p><p>transfigurado) favorecem a vigília, a espera vigilante do Noivo que vem no</p><p>meio da noite, iluminando de um modo pascal as trevas, Logos que faz</p><p>flamejar como uma sarça ardente os logoi das coisas, suas essências</p><p>espirituais. Donde, entre os monges orientais, a prática do sono interrompido</p><p>e das vigílias noturnas (que também são parcialmente litúrgicas). A vigília,</p><p>que é vigilância, atenção, choque de maravilhamento fora de qualquer torpor,</p><p>é especialmente celebrada pela Filocalia, obra, como o sublinha o título,</p><p>elaborada pelos “Padres népticos”, do termo nèpsis que significa vigília.</p><p>Numa forma mais aguda de ascese, os “Padres népticos” praticam a “guarda</p><p>do coração”. Atravessando o terreno pantanoso da inconsciência, que o separa</p><p>daquele, o intelecto se separa do fluxo psíquico de pensamentos, imagens e</p><p>associações que o atravessam sem cessar. Logismoi que ele esmaga, como os</p><p>“filhos da Babilônia” do salmo, contra o rochedo do Nome de Jesus. Surgindo</p><p>do infraconsciente, os “pensamentos” devem ser perscrutados antes que se</p><p>consolidem e cancerizem: sua carga obsessiva é desintegrada pela invocação</p><p>acelerada do Nome de Jesus (ou simplesmente o apelo ao Kyrie eleison),</p><p>seu</p><p>nó psíquico oferecido como um jovem animal de sacrifício, como diz Marcos</p><p>o Asceta</p><p>59</p><p>. A um “pensamento” ambíguo santo Isaac o Sírio recomenda nem</p><p>expulsar nem aceitar, mas orar ardentemente até que Cristo “mostre de onde</p><p>ele vem</p><p>60</p><p>”. E se preciso for, refugiar-se em Deus, humildemente, pelo Nome</p><p>de Jesus</p><p>61</p><p>.</p><p>Quanto à percepção – respirar, comer, caminhar, ver um escorpião ou uma</p><p>serpente – ela deve ser desembaraçada de sua carga de temor ou de</p><p>concupiscência, de toda interpretação complexa, e reconduzida à simplicidade</p><p>imediata da sensação que o Nome reveste e abençoa. É preciso, com efeito,</p><p>“circunscrever o incorpóreo no corpóreo”, sempre com o mesmo objetivo de</p><p>uma consciência da consciência, à luz da ressurreição. E o corpo é a cela</p><p>estreita do hesiquiasta. Assim o coração-espírito decanta como uma água</p><p>calma. A alma se reveste de silêncio e “o amigo do silêncio se torna próximo</p><p>de Deus. Em segredo ele recebe a sua luz</p><p>62</p><p>”.</p><p>Para a Filocalia, herdeira sob este aspecto da antropologia bíblica, o coração</p><p>aparece como o centro propriamente pessoal do homem aonde todos os</p><p>sentidos e todas as faculdades deste se reúnem e se harmonizam abrindo-se</p><p>para a transcendência. O coração profundo, propriamente espiritual, do qual o</p><p>coração físico é como que um símbolo, é investido pela graça batismal. É um</p><p>abismo de luz, mas que permanece fechado a maior parte do tempo,</p><p>inconsciente, mais exatamente “supraconsciente” no sentido que a</p><p>“psicanálise da existência” dá ao termo. No entanto, algumas fulgurações lhe</p><p>escapam, em especial na infância, e, mais tarde, quando sua envoltória de</p><p>lama endurecida (o “coração de pedra”) racha sob certas situações-limite</p><p>ligadas ao amor, à morte ou à beleza. Parece que os ascetas chamam também</p><p>de “coração” ao abismo sombrio do infraconsciente, este inconsciente a um</p><p>tempo individual (no sentido freudiano), coletivo e pan-humano (no sentido</p><p>junguiano), até mesmo cósmico (no sentido que lhe atribui o filósofo romeno</p><p>Lucien Blaga). Daí as expressões que foram reprovadas nas Homílias</p><p>Macarianas, mas que reencontramos em Dostoievski, sobre o coração como</p><p>campo de batalha entre luz e trevas. Se chegarmos a entreabrir e depois abrir</p><p>59</p><p>Marcos o Monge, Tratados espirituais e teológicos, Do Batismo.</p><p>60</p><p>Obras espirituais, 34o. Tratado.</p><p>61</p><p>Ibidem, 33o. Tratado.</p><p>62</p><p>João Clímaco, A escada santa XI, 5.</p><p>o coração superior, a penetrar cada vez mais profundamente em suas</p><p>“moradas” (que sem dúvida correspondem às “estações” da mística sufi), de</p><p>um lado o intelecto se iluminará (“é do templo oculto do coração aonde habita</p><p>Cristo que o intelecto recebe os bons e belos impulsos que irão transformar</p><p>toda a nossa existência</p><p>63</p><p>”), de outro lado esta luz atingirá o abismo do</p><p>coração inferior, purificando-o, levando-o à consciência e, portanto, à</p><p>consciência do perdão, e a partir daí começará a transfigurar também tanto o</p><p>corpo como o ambiente social e cósmico.</p><p>A Filocalia é dominada pelo pensamento de Evagro o Pôntico</p><p>64</p><p>, que coloca a</p><p>ênfase no nous, quanto ao intelecto na sua dimensão espiritual. Mas ela</p><p>também é penetrada pela sensibilidade macariana</p><p>65</p><p>(através da versão de</p><p>Simeão Metafraste) que vê no coração o órgão último do conhecimento, um</p><p>conhecimento inseparável do amor. O acordo entre estas duas perspectivas se</p><p>faz pela descoberta de que a “essência” do conhecimento reside no coração,</p><p>enquanto que o nous é sua “energia”. Este recurso ao vocabulário aristotélico</p><p>não deve esconder a vitória da concepção bíblica sobre um certo</p><p>intelectualismo grego. No interior do “coração” iluminado pelo “raio” do Sol</p><p>divino, a racionalidade da cabeça, o ardor do peito e o desejo das entranhas se</p><p>equilibram e se transformam, abrindo-se para o infinito.</p><p>VIII</p><p>O “MÉTODO”</p><p>Os monges orientais estabeleceram um “método” para sustentar o intelecto</p><p>em seu esforço de interiorização e de despojamento. Este “método” utiliza</p><p>posições e ritmos do corpo, bem como uma breve invocação no mais das</p><p>63</p><p>Marcos o Monge, op. Cit., Do Batismo</p><p>64</p><p>Evagro o Pôntico (346-399), grande letrado que se retirou para o deserto do Egito,</p><p>conceituou a experiência monástica original, não sem influência de uma certa gnose</p><p>intelectualista.</p><p>65</p><p>O pseudo-Macário (ao redor do ano 400) é o autor das Homílias Espirituais</p><p>marcadas por um poderoso retorno às fontes na sensibilidade bíblica e evangélica, sobretudo</p><p>joanina.</p><p>vezes centrada no Nome de Jesus, e pretende responder à ordem escriturária</p><p>de “orar sem cessar”. Ela é flexível, aberta, mesmo quando tentada à</p><p>mecanização nos lugares em que se torna a única via de oração e mesmo</p><p>objeto de orgulho.</p><p>O corpo do homem está destinado, diz são Paulo, a se tornar “templo do</p><p>Espírito Santo”. Ao ritmo do coração deve se acomodar o da respiração, mais</p><p>fácil, senão de dominar (o que parece ser estranho ao espírito filocálico: não</p><p>se trata de um yoga), pelo menos de oferecer. Segundo o Gênese, vivamente</p><p>comentado sob este ponto por santo Irineu de Lyon, o homem é barro</p><p>cósmico manufaturado pelas mãos de Deus e animado por seu sopro:</p><p>“Quando o Senhor formou o homem do pó do chão e insuflou em suas</p><p>narinas um sopro de vida, o homem se tornou vivo</p><p>66</p><p>”. Quando utiliza sua</p><p>respiração para rezar, o homem reconhece que seu sopro lhe vem de Deus,</p><p>que ele é sustentado pelo Sopro divino. Ainda mais: por toda eternidade, no</p><p>mistério do Verbo trinitário, o Sopro do Pai carrega sua Palavra: “o espírito é</p><p>o anunciador do Verbo”, diz são João Damasceno</p><p>67</p><p>. Assim, quando o sopro</p><p>humano anuncia o Nome do Verbo encarnado, ele se une ao próprio Sopro de</p><p>Deus. E é este sopro humano penetrado pelo Espírito que irá abrir o</p><p>“coração” profundo. O ritmo de nossa respiração, que é o mesmo de nossa</p><p>caminhada, torna-se o de nossa peregrinação, exterior e sobretudo interior, em</p><p>direção ao “lugar do coração”, que é também o “lugar de Deus”.</p><p>O Nome, na Bíblia, não é subjugado por uma força, como é frequentemente o</p><p>caso nas magias arcaicas, mas revelação velada-desvelada do segredo da</p><p>pessoa, num caminho de comunhão. Não se segura, não se manipula o</p><p>Inacessível. Ninguém mais, de resto, sabe vocalizar o Tetragrama. Mas, para</p><p>os cristãos, e segundo uma expressão profunda do Padre André Scrima,</p><p>Ieoschouah é um nome-verbo que significa “Deus salva, liberta, afasta” - para</p><p>as lonjuras do Espírito. A Cruz pascal manifesta Deus como amor libertador,</p><p>como Comunhão – alteridade total ao mesmo tempo em que unidade total –</p><p>que se comunica a nós. Quando se diz: “Senhor Jesus, Filho de Deus”, é o</p><p>mistério trinitário que está sendo invocado por intermédio do mistério de</p><p>Cristo: a palavra “Senhor” atesta a divindade de Jesus, a palavra “Deus”,</p><p>como em todo o cristianismo original, designa o Pai, fonte da divindade, a</p><p>66</p><p>Gênese II, 7.</p><p>67</p><p>Da fé ortodoxa 8.</p><p>palavra “Cristo”, Messias, Ungido, se refere à unção do Espírito, ao Espírito</p><p>como unção. O Espírito repousa no Filho por toda eternidade e constitui a</p><p>unção messiânica de Jesus.</p><p>A ordem de “orar sem cessar”, ordem de Jesus retomada por Paulo, supõe que</p><p>a prece representa o próprio ser do homem, a relação que o constitui, a</p><p>resposta ao apelo que o torna “imagem de Deus”. Com certeza isto vale</p><p>parcialmente também para o cosmo, mas este, como dizia Orígenes, é um</p><p>logos alogos, e é ao homem que cabe expressar sua celebração sussurrada.</p><p>O “método” remonta provavelmente ao monaquismo original, podemos dizer</p><p>aos primeiros tempos do cristianismo por ser muito antigo, sem duvida</p><p>evangélico, símbolo do peixe assim como as iniciais das palavras que o</p><p>compõem. Ichtus, peixe, sugere com efeito Iésous Christos Théou Uios Soter</p><p>ou Sôson, ou seja, “Jesus Cristo Filho de</p><p>Deus Salvador ou Salve (a nós)”.</p><p>Desde os primeiros tempos do monaquismo encontramos a repetição de</p><p>fórmulas curtas: “Senhor, como quiseres e como sabes: tem piedade”, “Glória</p><p>a ti, Senhor”, ou a frase de um salmo, como por exemplo o que recomenda</p><p>Cassiano: “Meu Deus, vem em meu auxílio, apressa-te em me socorrer</p><p>68</p><p>”.</p><p>Comum também é o Kyrie Eleison, “Senhor, tem piedade”, com a palavra</p><p>eleison evocando não a comiseração, mas presença, carinho, misericórdia.</p><p>Perguntaram ao abade Macário: como orar? Ele respondeu: “Primeiro, não há</p><p>necessidade de se perder em palavras. Basta estender os braços e dizer:</p><p>“Senhor, como queres e como sabes, tem piedade”. Se o combate os oprimir,</p><p>digam apenas: Socorro! Deus sabe o que lhes convém e terá piedade de</p><p>vocês</p><p>69</p><p>”.</p><p>A partir do século V com Diádoco de Foticéia, mais tarde no deserto de Gaza,</p><p>depois no mosteiro do Sinai, o Nome de Jesus se introduz na fórmula de</p><p>imploração até que se chegue, durante a Idade Média, em Athos, à formula</p><p>que se tornou clássica: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de</p><p>mim, pecador”, na qual estão amalgamados os apelos evangélicos do</p><p>publicano e do cego.</p><p>68</p><p>Salmo LXX, citado por João Cassiano em suas Conferências X, 8 e 10.</p><p>69</p><p>Sentenças dos Padres do deserto, Macário 19.</p><p>A utilização de uma fórmula breve para pacificar e concentrar o intelecto é</p><p>universal: encontramo-la por exemplo na Índia (o japa-yoga), no amidismo</p><p>japonês (o nembutsu), no dhikr dos sufis muçulmanos (que sem dúvida o</p><p>emprestaram dos monges do cristianismo oriental). É por isso que um</p><p>Augieras pode dizer que os monges athonitas não são propriamente cristãos</p><p>mas preservam um segredo imemorial</p><p>70</p><p>. Esta ilação não deixa de ser feita</p><p>dentro de uma perspectiva fundamentalmente cristã. A multiplicidade das</p><p>fórmulas empregadas originalmente e muitas vezes ainda hoje mostra que não</p><p>se trata de um mantra mas de uma relação, e que a prece não significa a</p><p>passagem do eu ao Si, mas antes uma comunhão do si “pecador” com o</p><p>Outro. Apelo ao socorro, celebração confiante, selo de bendição, a oração se</p><p>torna em nós um impulso do Espírito que nos faz dizer que Jesus é o Senhor</p><p>e, neste, com ele, ousar chamar o Pai, Abba, o Inacessível.</p><p>Os textos do monaquismo antigo já sugerem uma ligação da prece com a</p><p>respiração. “(Antônio) chamou seus companheiros e lhes disse: Respirem</p><p>sempre a Cristo</p><p>71</p><p>”. “Que a memória de Jesus se una inteiramente à sua</p><p>respiração e você conhecerá o significado do silêncio</p><p>72</p><p>”. Chamar a Jesus</p><p>equivale a tomar pouco a pouco consciência de sua presença nas “moradas”</p><p>do “coração”: “Mantenhamos sempre os olhos no fundo de nosso coração</p><p>com uma lembrança incessante de Deus”, escrevia no século V Diádoco de</p><p>Foticéia</p><p>73</p><p>.</p><p>No entanto, o “método” não foi escrito – e sempre de um modo incompleto –</p><p>senão nas épocas mais perturbadas, quando a transmissão de mestre a</p><p>discípulo estava comprometida. Isto equivale aos séculos XIII e XIV, quando</p><p>da agonia do Império Bizantino, e ao final do século XVIII quando a</p><p>renovação filocálica encerrou um longo período de decadência.</p><p>Os textos de que dispomos</p><p>74</p><p>recomendam sentar-se num local afastado,</p><p>70</p><p>F. Augieras, Lettres du Mont Athos, ed. Fata Morgana, 1994, pg. 26.</p><p>71</p><p>São Atanásio de Alexandria, Vida de Antonio 91.</p><p>72</p><p>João Clímaco, A escada santa XXVII, 2a. Parte, 26.</p><p>73</p><p>Cem capítulos espirituais 56.</p><p>74</p><p>Essencialmente o Methodos (século XII?), o tratado Sobre a sobriedade, a vigilância</p><p>e a guarda do coração de Nicéfora o solitário (segunda metade do século XIII), as obras de</p><p>Gregório o Sinaíta e Gregório Palamas (primeira metade do século XIV), a Centúria de Calixto</p><p>e Inácio Xanthopouloi (segunda metade do século XIV) e o Enchiridion (Manual) de</p><p>calmo, silencioso (enquanto que os ofícios litúrgicos e a salmódia são rezados</p><p>em pé). A postura recomendada consiste numa inclinação da cabeça,</p><p>curvando as espáduas, com o olhar interior fixado no coração. Às vezes a</p><p>curvatura se acentua como a de Elias que, depois de ter confundido os</p><p>profetas de Baal e posto fim à seca, longe de se orgulhar, “subiu ao cume do</p><p>monte Carmelo e, inclinando-se para o chão, colocou seu rosto entre os</p><p>joelhos</p><p>75</p><p>”. Utilizando uma respiração lenta, pacificada, unimos a ela o</p><p>intelecto que, prolongando o movimento do ar, tenta penetrar “dentro do</p><p>coração”. Esta é a união do intelecto com o coração, tão importante na</p><p>tradição filocálica (mas que não implica forçosamente o uso destas técnicas</p><p>corporais). A invocação, primeiro alternada, docemente oral, docemente</p><p>mental, depois unicamente mental, se torna cada vez mais breve e silenciosa.</p><p>Segundo Calixto e Inácio Xanthopouloi, depois Nicodemo o Hagiorita, a</p><p>fórmula, a partir do momento em que nos persuadimos da presença e do amor</p><p>de Cristo, se desvencilha do “tem piedade de mim, pecador”, abrevia-se em</p><p>“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus” e finalmente em “Jesus, Jesus, meu</p><p>Deus amado” (Nicodemo), e depois de tudo apenas no Nome de Jesus. Ela se</p><p>torna então monológica, ou seja, constituída por uma única palavra.</p><p>Simultaneamente, instantes de silêncio, como uma espécie de “planar</p><p>interior</p><p>76</p><p>”, prolongam a invocação que acaba por fundir-se no silêncio para se</p><p>tornar como que sua pulsação.</p><p>No mais das vezes o coração espiritual é identificado ao coração físico, mas</p><p>encontramos, de um lado no século XII e de outro no final do século XVIII,</p><p>indicações um pouco diferentes, sem dúvida complementares. No Methodos</p><p>(“Método da santa prece e atenção”), texto que por muito tempo foi atribuído</p><p>a Simeão o Novo Teólogo, mas tardio ao que tudo indica, trata-se de</p><p>encontrar o “lugar do coração” no “interior das entranhas”: trata-se da</p><p>“onfaloscopia” que foi ridicularizada e acabou por desaparecer dos textos</p><p>mais tardios. No século XIV são Gregório Palamas explicou que se tratava de</p><p>dominar o desejo, de “remetê-lo à sua origem” a fim de que ele “se lançasse</p><p>para Deus”. Podemos também nos perguntar se esta indicação do Methodos</p><p>não está fundamentada numa antropologia e numa simbólica bíblicas, mais</p><p>Nicodemo o Hagiorita (fim do século XVIII).</p><p>75</p><p>I Reis XVIII, 42.</p><p>76</p><p>A expressão é de “um monge da Igreja do Oriente” em La Prière de Jésus, Livre de</p><p>Vie, 122.</p><p>tarde ocultadas, não sem temor. Sabemos que na Bíblia a misericórdia se</p><p>exprime, entre outras formas, pelo plural enfático de rehem, o útero.</p><p>Encontrar o coração nas entranhas, localização atestada também pelos</p><p>Salmos, equivale talvez a despertar o feminino interior da alma, uma</p><p>compaixão maternal, “uterina”, pelo próximo, uma oferenda marial ao</p><p>Espírito...</p><p>Na segunda metade do século XVIII, um estaroste ucraniano baseado na</p><p>Moldávia, Basílio de Poiana-Marului (da Clareira das Ameixeiras), situou o</p><p>“coração” espiritual um pouco acima e à direita do coração físico que para ele</p><p>era ligado ao thymos, ao ardor, sobre o qual deve reinar o coração espiritual.</p><p>Como Nicodemo o Hagiorita, Basílio colocava em relação com a Trindade a</p><p>reunião no “coração” das três “partes” da alma, mas também, e este é uma</p><p>característica sua, a comunhão do homem com seus irmãos, pois a prece</p><p>descobre, em Cristo, o Adão único e intercede por todos os homens.</p><p>Nenhum desses textos explica realmente como acertar a pronúncia das</p><p>palavras da prece, nem o ritmo da respiração. Gregório o Sinaíta aconselha,</p><p>para evitar uma certa mecanização, alternar entre “Senhor Jesus Cristo, tem</p><p>piedade de mim” e “Filho de Deus, tem piedade de mim”. Somente</p><p>Nicodemo o Hagiorita, em seu Enchiridion (Manual) propõe que se diga toda</p><p>a oração em uma longa inspiração seguida de uma certa retenção, rejeitando-</p><p>se a seguir o ar rapidamente,</p><p>pois a expiração, diz ele, dispersa a atenção.</p><p>Somente no século XIX, no célebre Relatos de um Peregrino Russo, escrito</p><p>entre 1855 e 1860 e que, sob sua aparente simplicidade, denota um marcante</p><p>conhecimento da via hesiquiasta, encontramos a indicação que todos, ou</p><p>quase todos, utilizam hoje em dia: dizer “Senhor Jesus Cristo” (ou “Senhor</p><p>Jesus Cristo, Filho de Deus”) na inspiração, e “tem piedade de mim</p><p>(pecador)” na expiração. O Peregrino recomenda também de sincronizar cada</p><p>sílaba com uma batida do coração...</p><p>***</p><p>Podemos agora antecipar algumas conclusões. O “método” corporal não é</p><p>absolutamente visto como necessário pelos mestres da tradição filocálica. As</p><p>diferenças e imprecisões que observamos relativizam estas práticas e lhes</p><p>retiram o caráter sistemático e detalhado que observamos no yoga e na</p><p>“meditação transcendental”. Trata-se de meios não mais do que auxiliares. E</p><p>nada seria pior o que os objetivar fora da relação que eles favorecem.</p><p>Entretanto, quando ensaiamos “agarrar” por um longo tempo a prece de Jesus</p><p>ou, pobre leigo atirado de um lado para outro pelo século, recorrer a ela de</p><p>tempos em tempos, constatamos que ela se liga naturalmente ao ritmo</p><p>respiratório. Ao contrário, a utilização sistemática, voluntária, dos batimentos</p><p>cardíacos é atualmente desaconselhado aos Ocidentais: a desaparição das</p><p>civilizações monástico-rurais, duras mas sempre penetradas de silêncio e</p><p>lentidão, o estado frequente de tensão e esgotamento nervoso, a exasperação</p><p>cerebral e sexual enquanto o coração profundo segue ignorado, tudo isto</p><p>explica que tal prática apresente o risco de perturbar definitivamente os</p><p>caminhos que conduzem ao “lugar do coração”. Devemos nos contentar,</p><p>portanto, como já aconselhava Nicéforo o Solitário, em rezar como</p><p>respiramos, ou seja, no ritmo da respiração. O braseiro batismal, se o Espírito</p><p>quiser soprar sobre ele, despertará o coração, o abraçará, o fará “balançar”.</p><p>Isto não quer dizer que se deva diminuir, ou mesmo esquecer as indicações</p><p>relativas ao método corporal. No entanto é o que tentaram fazer, no século</p><p>XIX, os mestres da Filocalia russa, Inácio Briantchaninov e Teófano o</p><p>Recluso, mas eles não obtiveram mais do que um afadigamento pietista. Vale</p><p>mais, me parece, para além de qualquer técnica, ajudar o homem moderno a</p><p>se religar ao mistério com os próprios ritmos de seu corpo. Na liturgia, uma</p><p>beleza luminosa pacifica, ilumina os sentidos e as faculdades e, por</p><p>intermédio deles, eventualmente desperta o coração. Na prece filocálica dá-se</p><p>o inverso: o despertar do coração comunica paz e luz às faculdades e aos</p><p>sentidos. Por estas duas aprendizagens complementares, o homem sente sua</p><p>respiração alargar-se, não apenas para conter os “espaços do mundo”, como</p><p>diz o poeta, mas, através deles, além, para penetrar no espaço infinito do</p><p>Espírito, aonde pode se desenvolver nossa liberdade criadora. Quanto aos</p><p>batimentos do coração, ao invés de serem sentidos na angústia de sua</p><p>precariedade, eles atestam a vida concedida e perdoada, eles nos permitem</p><p>“cantar com o tamborim e a harpa</p><p>77</p><p>”, tamborim do coração, vibração do</p><p>sangue, líquido como as águas primigênias, salgado como o oceano de onde</p><p>nasceram os “vivos”, vermelho como o fogo do Espírito abrasando a água nas</p><p>bodas de Caná!</p><p>77</p><p>Salmo CXLIX, 3.</p><p>IX</p><p>PRIMEIRAS CONTEMPLAÇÕES</p><p>Segundo são Máximo o Confessor, “se o homem pretende avançar sem erro</p><p>sobre a via direta que conduz a Deus, duas coisas lhe são indispensáveis: a</p><p>interpretação espiritual das Escrituras e a contemplação espiritual das coisas</p><p>da natureza</p><p>78</p><p>”. Sobre o monte da Transfiguração, a brancura resplendente das</p><p>vestes de Cristo designam a um tempo, diz ele, a Escritura e o cosmo, quando</p><p>estes se tornam transparentes à luz divina</p><p>79</p><p>. É que a Encarnação do Verbo,</p><p>que recapitula tudo, foi preparada, rascunhada por sua incorporação nas</p><p>essências espirituais das coisas e depois por sua incorporação na Torá.</p><p>Hoje em dia, como pressentir o mistério senão através da beleza do mundo! O</p><p>verdadeiro milagre, dizia Wittgenstein, é que as coisas sejam. Para a</p><p>Filocalia, já contemplamos a Deus por um certo olhar sobre o mundo: é a</p><p>theoria physikè, a “contemplação da natureza”. Esta, se a livrarmos das</p><p>ilusões que nossas paixões projetam sobre ela, é um caminho que conduz a</p><p>Deus e que devemos tomar. “Em seu caminho de união com Deus, escrevia</p><p>Vladimir Lossky, o homem não rejeita as criaturas, mas reúne em seu amor o</p><p>cosmos desconjuntado pelo pecado a fim de que ele seja finalmente</p><p>transfigurado pela graça</p><p>80</p><p>”. O homem tem uma missão em relação ao</p><p>universo. Ele deve manifestar, liberar seu secreto louvor, ao invés de se atirar</p><p>sobre ele como um predador. O olhar de Cézanne sobre a maçã não é o</p><p>mesmo do guloso que só pensa em se satisfazer.</p><p>Tudo tem sua origem no Verbo</p><p>81</p><p>, tudo tende para a plenitude no Espírito</p><p>Santo. A encarnação do Verbo liberta sacramentalmente o mundo de sua</p><p>magia noturna, e nos ordena trabalhar nesta libertação. A árvore da Cruz,</p><p>tornada a nova e definitiva Árvore da Vida, redime com toda evidência a</p><p>sacralidade da matéria. No Cristo da Encarnação e da Ascensão, a “morada do</p><p>mundo” encontra sua integralidade pela união do sensível com o inteligível,</p><p>78</p><p>Ambigua, PG 91.1128C.</p><p>79</p><p>Ibidem, PG 1128AB, 1160CD.</p><p>80</p><p>Théologie mystique de l'Église d'Orient, Paris, 1944, pg. 100.</p><p>81</p><p>Colossenses I, 16.</p><p>do mundo material com os mundos angélicos. Podemos dizer que o Verbo se</p><p>encarna não apenas no humano mas no cósmico. Para o filósofo russo</p><p>Lossiev, cujo destino foi alterado pelo stalinismo, o universo é uma escada de</p><p>muitos degraus de “verbidade”: “O homem é uma palavra, o animal é uma</p><p>palavra, um objeto inanimado é uma palavra. Pois tudo isto é Sentido e sua</p><p>expressão</p><p>82</p><p>”. São Máximo o Confessor considera o mundo como uma</p><p>eucaristia: as essências das coisas visíveis são o “corpo” de Cristo e as dos</p><p>mundos espirituais são seu “sangue</p><p>83</p><p>”.</p><p>O Verbo, o Logos é o sujeito divino de todos os logoi, palavras essenciais que</p><p>as coisas carregam. O homem logikos, imagem pessoal do Logos, é chamado</p><p>a se tornar seu sujeito humano. Ele se torna plenamente isto em Cristo,</p><p>revelando em si suas essências, não para se apropriar delas mas para oferece-</p><p>las depois de as ter – pessoal e coletivamente – “nomeado”, ou seja, marcado</p><p>com seu gênio criador. “Tudo ora, tudo canta a glória de Deus”, escrevia o</p><p>Peregrino Russo; “assim eu aprendi o que a Filocalia denomina “o</p><p>conhecimento da linguagem da criação” e vi como é possível conversar com</p><p>as criaturas de Deus</p><p>84</p><p>”. O homem cuja força passional foi crucificada e</p><p>transfigurada irradia uma paz paradisíaca. Ao redor dele as feras se amansam</p><p>“pois elas sentem, vindo dele, o perfume que Adão exalava antes da queda</p><p>85</p><p>”.</p><p>A “contemplação da natureza” pode proporcionar, já, humildemente, um</p><p>sabor espiritual às nossas existências. Basta um pouco de atenção amorosa</p><p>para que a própria evidência das coisas revele seu segredo, ou melhor, para</p><p>que se segredo as torne evidentes.</p><p>Este conhecimento espiritual, que exige uma certa maturação ascética, pode</p><p>afinar e aprofundar o conhecimento racional do qual ele não se diferencia</p><p>senão por uma maior abundância de luz.</p><p>A escritura constitui outra incorporação do Verbo e seu sentido pleno não se</p><p>revela senão na Paixão e Ressurreição de Cristo, quando o Verbo, para</p><p>82</p><p>A-F Lossiev, Filosofia imeni, Moscou, 1927; N. Losski, Histoire de la philosophie</p><p>russe, Paris, 1954., pg.308.</p><p>83</p><p>Questões a Thalassius 35.</p><p>84</p><p>Relatos de um Peregrino Russo.</p><p>85</p><p>Issac o Sírio, 20o. Tratado.</p><p>usarmos um jogo de palavras, se livra do livro e a eucaristia nos permite</p><p>compreende-lo verdadeiramente.</p>