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1-INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA BIOGEOGRAFIA Adriano S. Figueiró 1.1- Como e Por Quê os organismos vivos se distribuem na superfície da Terra? Desde de que li o livro de Andreas Suchantke1, a provocação do autor, já expressa na capa do livro, tem me instigado a ir cada vez mais fundo na busca das respostas: “O que nós vemos quando olhamos uma paisagem” ? Um geógrafo jamais pode reduzir o seu campo de visão ao que os olhos estão enxergando. Há sempre uma “conexão” oculta por trás daquilo com que nos deparamos na natureza É preciso uma grande dose de “imaginação científica” orientada pela curiosidade, para que consigamos entender os processos que controlam as estruturas visíveis das paisagens terrestres. As paisagens que se apresentam aos nossos olhos não são, assim, apenas a soma de elementos vivos e não vivos que coabitam uma dada superfície da Terra, mas sim o arranjo com que estes elementos estão dispostos, uns em relação aos outros, o que lhes permite desencadear processos de diferentes naturezas e intensidades. A resposta, aparentemente óbvia, tem desdobramentos intermináveis para o campo da Geografia Física e, mais especificamente, para a Biogeografia. Por que as paisagens se diferenciam na superfície da Terra? Pela diferença de temperatura? Pela diferença de umidade? Pelo tipo de relevo e solo? Pela ação do homem? Figura 1- Uma floresta temperada (a esquerda) e uma floresta tropical (a direita) são duas paisagens com estruturas e processos completamente diferentes. Mesmo dentro de um mesmo bioma, a composição de espécies encontradas em uma floresta tropical no Congo é bastante diferente daquela encontrada em uma floresta tropical sul-americana. O porquê e o quanto são 2 diferentes cada uma destas paisagens, são algumas das questões que tem motivado a busca do conhecimento em Biogeografia2. Todos estes elementos interatuam ao longo da história evolutiva de cada espécie, o que nos fornece hoje um cenário altamente complexo e diversificado dos modelos espaciais de distribuição das milhões de espécies vivas que ocorrem no planeta, desde os desertos frios da Antártida até as selvas quentes e úmidas da região equatorial. Um observador mais atento (e mais curioso), certamente deve se perguntar questões do tipo: por que os animais de um mesmo taxon3 se diferenciam de uma região para outra? Por que certas espécies que ocorrem em determinado lugar não aparecem em outros lugares, mesmo com semelhantes condições climáticas, como é o caso do urso polar na Antártida? De onde surgiram e como lá chegaram os seres vivos que habitam as ilhas? Qual a origem das plantas e animais que consumimos e criamos? O que leva uma espécie a aparecer ou desaparecer? Estas e outras questões tem ocupado o debate biogeográfico a muitos séculos na busca de uma explicação racional para a distribuição espacial dos seres vivos. Figura 2- As mudanças na paisagem provocam diversificação na história evolutiva dos organismos. O gênero Equus, p.ex., só na África, apresenta oitos espécies diferentes, cada qual com características, hábitos e habitats bem diversificados: (1) Asno selvagem da Núbia – Equus africanus africanus; (2) Asno selvagem da Somália – Equus africanus somalicus; (3) Zebra de Grevy – Equus grevyi; (4) Zebra de Grant – Equus burchelli grant; (5) Zebra de selous – Equus burchelli selousi; (6) Zebra de Chapman – Equus burchelli chapmani; (7) Zebra de burchel – Equus burchelli burchelli; (8) Quagga – Equus burchelli quagga (atualmente extinta).4 3 A formação das paisagens contemporâneas está ligada a uma longa e complexa história evolutiva, tanto dos seres vivos que nelas habitam, como também dos elementos não vivos, como o clima, a hidrografia, o solo e o relevo, em diferentes escalas de tempo. Por meio de um processo combinado de mutação e seleção natural e artificial, os organismos vão se adaptando (ou sendo adaptados) às mudanças de alimento, ao aparecimento de predadores, às flutuações climáticas, às disponibilidades de água e nutrientes, etc. A história biogeográfica do planeta nos revela uma regra muito clara: quem não se adapta, desaparece! Registros fósseis comprovam de forma indiscutível esta regra, especialmente em determinados momentos da história geológica do planeta, ligados às mudanças climáticas (de aquecimento ou resfriamento), quando milhares de espécies encontraram o seu fim, cedendo lugar à espécies novas, mais bem adaptadas às novas condições. Uma das grandes certezas no estudo atual da Biogeografia é que os elementos bióticos e abióticos coevoluem no tempo e no espaço, produzindo padrões de distribuição particulares. A partir da sobrevivência de alguns traços comuns que ainda ligam estes padrões, a Biogeografia busca recontar a história destes organismos e destas paisagens ao longo do tempo. Assim, os biogeógrafos precisam contar com a análise da distribuição de organismos vivos e fósseis que, combinada com indícios da história evolutiva destes organismos e da história de modificação ambiental do planeta, nos permite recriar, ao menos em hipótese, a história da distribuição dos organismos vivos na superfície da Terra. Isso ajuda não apenas no processo de conservação futura destes organismos, como também no desenvolvimento de estratégias apropriadas de uso e conservação das paisagens onde eles vivem. Figura 3 – Modelos de distribuição como o da Anta (gênero Tapirus sp.), que ocorre de forma descontínua em áreas muito distantes (neste caso, na América do Sul e no sudeste asiático), só podem ser explicados a partir da migração de ancestrais, já extintos, e que, seja por mudanças ambientais no tempo geológico (neste caso, a diminuição das temperaturas no hemisfério norte), seja por variáveis ecológicas (como a ocorrência de doenças, competição ou predação), acabaram tendo a sua área de ocorrência reduzida exclusivamente às áreas remanescentes, sem nenhuma possibilidade de comunicação atual entre as espécies do gênero5. 4 Assim como algumas espécies conseguiram, no passado ou no tempo presente, uma grande disseminação pela superfície da Terra, outras não tiveram a mesma sorte, devido à impossibilidade de ultrapassar barreiras físicas ou ecológicas que lhes permitissem uma área de ocorrência mais ampla. Inclui-se aqui, por exemplo, o caso dos pingüins, que nunca conseguiram atingir o hemisfério norte devido, ao que tudo indica, à sua incapacidade de ultrapassar a nado (uma vez que são aves que não voam) a grande barreira tropical de águas quentes6. Semelhante sorte tiveram os elefantes africanos (Loxodonta sp.) que, devido à separação da Índia da África, perderam qualquer forma de contato atual com o elefante indiano (Elephas sp.), que é menor, sem presas e susceptível à doma (mas não à domesticação, como veremos adiante). A incapacidade dos organismos vencerem estas barreiras físicas e/ou ecológicas leva, por vezes, à formação de importantes endemismos (quando a espécie ocorre apenas em um único lugar da superfície da Terra), como aqueles encontrados por Darwin nas Ilhas Galápagos ou os atualmente encontrados no continente australiano. Figura 4- O isolamento dos organismos em áreas geográficas específicas, produzido pela sua incapacidade de vencer barreiras físicas ou ecológicas, tende a produzir um grande número de endemismos, ou seja, espécies raras que só ocorrem em um único lugar da superfície da Terra. Na foto, um exemplar de Tartaruga das Galápagos (Geochelone nigra), tal como encontrado por Charles Darwin, em 1832.7 Na maior parte das vezes, o processo de disseminação de uma espécie está relacionado com as características intrínsecas a esta espécie, no sentido de ser capaz de se reproduzir (em que quantidade?) e avançar (em que ritmo?) no território, conquistando novas áreas e fazendo frente aos agentes externos (relevo, clima, predadores,etc.), que tornam este avanço mais lento. Nos últimos séculos, todavia, uma gigantesca e poderosa força passou a atuar de forma decisiva na distribuição das espécies de organismos na superfície da Terra: o homem! Desde as bem sucedidas domesticações de animais e plantas, nos últimos oito mil anos, até as terrivelmente mal sucedidas introduções, nos últimos séculos, de organismos em ambientes onde eles nunca existiram antes, o homem se converteu no maior agente de disseminação de espécies deste planeta. 5 A introdução de espécies exóticas representa a principal causa de extinções históricas (1600-1980) de espécies animais no planeta, contribuindo com 38% das extinções8, contra 36% das extinções promovidas pela destruição de habitats e 23% produzidas por caça e coleta predatórias. Estas introduções demonstraram-se especialmente mais sérias em ambientes insulares, onde, por exemplo, grande parte das plantas acabou não desenvolvendo nenhum mecanismo de defesa contra os herbívoros, simplesmente porque eles não existiam originalmente nestas ilhas, ou existiam em uma densidade mais reduzida. A introdução, acidental ou programada, de novas espécies, “rompeu” com equilíbrios milenares de evolução, produzindo verdadeiras catástrofes nestes ambientes insulares. Como resultado desse processo, 33% das espécies de plantas ameaçadas de extinção, atualmente, são endêmicas de ilhas, embora apenas pouco mais de 15% das espécies de plantas do planeta seja efetivamente insular9. Desde muito tempo o homem vem exercendo a sua capacidade de produzir enormes mudanças na composição das comunidades animais e vegetais de amplos espaços geográficos, seja transladando espécies de uma região para outra (com diversas conseqüências ecológicas advindas desse processo), seja exercendo uma pressão predatória na caça e coleta, o que, invariavelmente, levou à extinção centenas de espécies animais e vegetais, mesmo antes do contato dos que se imaginava serem “os bons selvagens” com os exploradores europeus. Figura 5- O Kudzu (Pueraria lobata) é uma planta trepadeira importada do Japão pelo estado da Geórgia (U.S.A) no sec. XIX para o controle da erosão. Introduzido na ausência de predadores, o Kudzu cresce a uma taxa média de 30 cm ao dia e já representa hoje, uma praga incontrolável no sudeste dos Estados Unidos.10 Diversos estudos desenvolvidos no Havaí indicam que ao menos 50% das espécies de aves do arquipélago foram extintas pela população indígena bem antes da chegada dos europeus11. 6 Em intervalos de apenas algumas centenas de anos, milhares de espécies foram extintas de ambientes insulares e continentais ao redor do mundo, fato esse que trataremos com maior profundidade mais adiante. Mais recentemente a ação humana passou a se estender para além do imperialismo ecológico12, que historicamente se baseou na captura e translado de espécies úteis e na disseminação de espécies nocivas que auxiliaram na conquista de territórios. Através da capacidade de produzir uma recombinação genética no DNA de um organismo, a ciência humana tem sido capaz de combinar o código genético de organismos que, de outra forma, jamais seriam capazes de estabelecer um cruzamento, como por exemplo, a combinação de genes de uma planta e um inseto, ou de uma planta com um vírus. A manipulação de genes em laboratório tem produzido novas combinações de material genético, estabelecendo-se, assim, um princípio de intervenção humana capaz de, pela substituição das fronteiras naturais entre variedades de espécies e, potencialmente entre as próprias espécies, estabelecer fronteiras tecnológicas tendentes mais à uniformidade do que à biodiversidade característica do planeta13. Exatamente por isso, Carvalho (2000) nos alerta para o fato de que, “(...) no mundo atual, seria irresponsável pensar a geografia da distribuição da vida, sem, ao mesmo tempo, pensarmos sobre os rumos e as interferências que as dimensões políticas e econômicas projetam para essa Biogeografia”14 A manipulação de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) abriu, assim, uma nova perspectiva para o debate da biodiversidade, submetendo-a completamente aos interesses industriais e comerciais do capital mundial. Passamos, portanto, a nos preocupar não apenas com a perda das espécies existentes15 mas, também, com a criação artificial de novas espécies que, seja pela intensidade da manipulação, seja pelo ritmo em que essa manipulação ocorre, pode ser bem mais impactante do que o processo anterior. Figura 6 – O uso da transgenia no mundo atual pode representar um enorme risco, não apenas à saúde humana, mas à sociedade como um todo, pelo grande monopólio biotecnológico que a produção de OGMs encerra. FONTE: www.tccgreenpece.blogspot.com 7 Neste sentido a Biogeografia, mais do que nunca, aproxima-se do debate político e econômico que ocorre na sociedade, incorporando às suas raízes naturalistas o olhar integrador do geógrafo, naquilo que se refere às formas de interação e apropriação da natureza pela sociedade. Assim, ao tentarmos responder à pergunta inicial deste capítulo, concluímos que a distribuição dos seres vivos na superfície da Terra está ligada a cinco fatores principais: • Às condições ambientais (luz, alimento, temperatura, água, etc.), que podem favorecer ou dificultar a ocorrência dos seres vivos. Essas condições ambientais variaram muito ao longo da história geológica da Terra, definindo, ao mesmo tempo, grandes variações na distribuição dos organismos, tal como ocorreu nos períodos de extinções em massa, na passagem do Paleozóico para o Mesozóico e na passagem deste para o Cenozóico. • Aos recursos disponíveis para garantir a sobrevivência do crescimento vegetativo das espécies. O esgotamento dos recursos ao longo da história definiu grandes processos migratórios dos seres vivos em direção a regiões de recursos mais abundantes. Entre outros movimentos, a entrada dos primeiros seres humanos no continente americano há aproximadamente 12.000 anos atrás, no final do último período glacial, teve esta motivação. • À capacidade de disseminação das espécies. Espécies mais prolíficas tendem a ter maior capacidade de ocupar novas áreas, uma vez que a produção de novos descendentes acaba produzindo um excedente populacional que impulsiona os indivíduos a buscarem melhores condições em espaços com recursos mais abundantes e menos concorridos. Espécies que possuem períodos reprodutivos muito longos e menor taxa de fertilidade tendem a ter menor capacidade de disseminação. • À capacidade evolutiva das espécies. Espécies que tenham ciclos de vida mais curtos tendem a produzir um maior número de gerações em pequena escala de tempo e, a cada geração, novas possibilidades evolutivas, por meio de mutações aleatórias, podem surgir para favorecer uma melhor adaptação daquela espécie às mudanças nas condições ambientais. Veja-se, por exemplo, a enorme capacidade de vírus e bactérias patogênicas de sobreviverem em diferentes espaços da Terra, resistindo por processos sucessivos de mutação, até mesmo à vacinas e antibióticos que são criados para eliminá-los. • À ação humana que, mais do que em qualquer outro momento da história, interfere diretamente na distribuição (extinguindo, introduzindo, adaptando, reproduzindo, conservando) e, até mesmo, na criação de novas espécies por meio da manipulação do código genético original. A partir da atuação destes diferentes fatores, podemos compreender que os seres vivos apresentam uma grande variação espacial (as espécies aparecem ou não aparecem, se desenvolvem ou não se desenvolvem em determinados locais em função das características que lhes são favoráveis ou, pelo contrário, as impedem de se desenvolverem) e temporal (as espécies que habitam determinado território em determinado tempo histórico ou geológico, podem não habitá-loem um momento seguinte, em função de terem se 8 extinguido, se transformado ou migrado, acompanhando as transformações que ocorrem no ambiente). Com isso, podemos afirmar que a estrutura e a composição da paisagem se transformam no tempo e no espaço, acompanhando as mudanças dos elementos naturais ou antropogênicos que controlam a distribuição dos seres vivos. Diante de todas as questões acima levantadas, a Biogeografia tem uma importante contribuição na elaboração das respostas a duas questões centrais no debate científico atual: • Os processos de degradação a que têm sido submetidos os ecossistemas e as espécies que neles vivem, são reversíveis? • É possível compatibilizar o modelo econômico urbano-industrial do mundo atual com a preservação da biodiversidade? Como? Embora não possamos reduzir a complexidade do mundo atual a respostas simplistas de “sim” ou “não”, o enorme conjunto de conhecimentos que as pesquisas na área de Ecologia, Biogeografia, Geoecologia, e Biologia da Conservação têm produzido nos últimos tempos, não nos permite ter uma visão otimista acerca do cenário futuro dos recursos naturais do Planeta. Há, por certo, uma esperança cada vez maior de que sejamos capazes de proceder a uma mudança ética na relação com os demais seres vivos, deixando de encará-los exclusivamente como “recursos” à serviço do homem e passando a compreender e respeitar a história evolutiva da Terra que se encerra nas mais diferentes particularidades de cada espécie viva. 1.2 Conceitos, objeto, métodos de abordagem e áreas de pesquisa em Biogeografia Diante do que vimos até aqui, podemos conceituar a Biogeografia como sendo a ciência que estuda a distribuição espacial dos seres vivos: seus condicionantes e relações, numa perspectiva temporo-espacial. Partindo-se desse conceito dois elementos tornam-se fundamentais à compreensão da Biogeografia. Em primeiro lugar, os condicionantes à distribuição dos seres vivos, o que envolve um amplo conhecimento dos fatores físicos e bióticos que favorecem ou que limitam a ocorrência de um determinado taxon numa área específica. Em segundo lugar, as relações no tempo e no espaço que se desenvolvem entre os seres vivos e o meio por eles habitado (alimentação, conforto, reprodução, predação, serviços ambientais, etc.). Todas estas relações se encontram estreitamente articuladas dentro de uma grande teia sistêmica dentro da paisagem; assim, na perspectiva do entendimento do processo de formação e transformação da paisagem, estas relações só podem ser efetivamente compreendidas em seu conjunto, tendo por base a resultante do conjunto de relações em termos de mudanças na estrutura e funcionalidade da paisagem ao longo do tempo. Isso abre caminho para a busca de metodologias que visem a compreensão integrada destas paisagens, o que pressupõe, ao mesmo tempo, um conhecimento aprofundado de cada um dos 9 processos em separado (análise), e uma compreensão integrada das interações entre estes diferentes processos (síntese). Assim, a ocorrência de uma dada Formação vegetal16 em uma determinada área não pode ser explicada unicamente pela abundância de umidade, mas por uma relação complexa que envolve processos relacionados às condições climáticas, edáficas, de relevo e tempo geológico, além daqueles fatores relacionados diretamente à forma de reprodução e disseminação de cada uma das espécies envolvidas. A fisionomia desta vegetação, por sua vez, estará relacionada com umidade relativa, distribuição da pluviosidade ao longo do ano, insolação, profundidade do solo, natureza da rocha matriz além de altitude e latitude. Tudo isso submetido ao interesse e ao ritmo da sociedade que, seja no uso ou na preservação, interfere de forma decisiva na dinâmica das Formações vegetais. O estudo integrado da paisagem deverá colocar em evidência os aspectos de estrutura, funcionamento e dinâmica da mesma, já que a solidariedade entre os diferentes elementos da paisagem cria determinadas condições que são responsáveis pela regulação da ocorrência e distribuição dos organismos na superfície terrestre. Nesta perspectiva, é possível afirmar que as relações que se processam entre os elementos da paisagem podem ser tão ou mais importantes do que os próprios elementos. Da mesma forma que a função de um relógio (marcar as horas) só pode ser observada no momento em que as diferentes peças se estruturam de uma determinada maneira, interagindo entre si e colocando em funcionamento o mecanismo dos ponteiros, a função e a dinâmica da paisagem só podem ser observadas a partir do funcionamento do conjunto, e não a partir da análise de cada um dos elementos em separado. Sendo assim, longe de ser uma ciência unidirecional, a Biogeografia representa muito mais um campo do saber para onde convergem estudos setoriais de diferentes naturezas. Estudos de solo, de clima, de botânica, de zoologia e outros, assumem uma nova perspectiva quando são tratados de forma integrada numa dimensão espaço-temporal voltada à compreensão da paisagem. Mais recentemente a emergência de uma perspectiva sistêmica, interdisciplinar no tratamento da questão científica, tem colocado em evidência aquelas ciências denominadas por Bertrand (1972)17 de “diagonais”, ou seja, ciências que superando a perspectiva verticalizada das disciplinas tradicionais, tratam o objeto de estudo de uma forma integrada, “(...) tratando de descobrir as leis comuns a fenômenos de distintos gêneros e aparentemente sem relação” (p.128). É justamente neste contexto em que se situam as abordagens biogeográficas mais atuais. Ao buscar compreender a resultante da interação de processos e dinâmicas tão diversas, a Biogeografia se torna um campo do conhecimento que desafia o saber particularizado, fragmentado. A busca do entendimento das relações que condicionam a distribuição espacial dos seres vivos demanda uma compreensão extremamente ampla dos processos envolvidos, passando pela dinâmica climática, geológica-geomorfológica, pedológica, hidrológica e antrópica. As diferentes possibilidades de estudo no que se refere ao entendimento da distribuição dos seres vivos e sua resultante no conjunto da paisagem, permite que a Biogeografia lance mão de quatro diferentes formas de 10 abordagem, segundo as necessidades, a formação e o interesse do pesquisador: ABORDAGEM COROLÓGICA: representa o estudo (identificação e mapeamento) das áreas de distribuição geográfica dos diferentes taxa, bem como da origem e transformações sofridas por estas áreas ao longo da sua história evolutiva. Estudos desta natureza começaram a se desenvolver desde os gregos, quando se buscou inventariar as diferentes formas de vida presentes nas diversas regiões do globo. O enfoque, neste caso, centra-se exclusivamente na dimensão e representação espacial, buscando entender as flutuações sofridas pelas áreas de ocorrência de um dado taxon ao longo do tempo. O princípio da abordagem corológica se baseia no fato de que cada taxon animal ou vegetal ocupa uma área específica na superfície da Terra, com tamanho e forma próprios à história deste taxon, de tal modo que dois taxa jamais poderão apresentar a mesma área de distribuição, a menos que estejam ligados por uma relação de parasitismo ou simbiose. Esta abordagem é mais frequentemente utilizada por pesquisadores da área biológica, que buscam identificar e mapear em campo as áreas de ocorrência de determinadas espécies, alimentando os bancos de dados acerca do potencial de biodiversidade de determinadas áreas. ABORDAGEM BIOCENOLÓGICA : diferentemente da abordagem corológica, a abordagem biocenológica não está centrada no estudo de um determinado taxon, mas sim no estudo de uma determinada biocenose, ou seja, uma comunidade de espécies, animais e vegetais que, em dado lugar, compartilham as mesmas condições gerais de vida. Neste caso, passa a importar não apenas quem está presente, mas também quecaracterísticas assume o conjunto de quem está presente, e que interações as espécies presentes desenvolvem entre si. Se compararmos, por exemplo, a flora da América do Norte e da Europa, veremos que os dois continentes compartilham apenas 47%18 das famílias de plantas superiores; isso nos leva a concluir que estes dois continentes possuem mais divergência do que similaridade em termos de composição florística. Todavia, quando comparamos fisionomicamente uma floresta temperada na Europa com outra na América do Norte em semelhante condição de umidade, vamos nos deparar com uma estrutura florestal muito semelhante, mesmo que a composição florística seja bastante diferente. Isso ocorre porque em semelhantes condições ecológicas, diferentes espécies tendem a assumir estruturas e funcionalidades semelhantes. O estudo destas estruturas e funcionalidades, independente da sua composição florística/faunística, é o objeto de estudo da biocenologia (figura 7). ABORDAGEM ECOLÓGICA: independente de se ter como referência de estudo o taxon ou a comunidade, a abordagem ecológica se caracteriza pela busca do entendimento das relações que os seres vivos estabelecem com os demais elementos da paisagem onde vivem. Se o estudo está focado nas relações dos indivíduos de um determinado taxon com os demais elementos da paisagem (temperatura, umidade, solo, predadores, etc.), falamos de autoecologia. Já se o foco de análise está voltado para o entendimento das relações que uma determinada comunidade estabelece com os demais elementos do meio, falamos de sinecologia. 11 Figura 7- O estudo da área de ocorrência de um único taxon (mapa da direita19, com a distribuição da espécie Canis simenses ou de um conjunto de espécies que compartilham as mesmas condições ambientais (mapa da esquerda20, com a distribuição dos principais Biomas21 que ocorrem no território brasileiro), nos permite fazer a diferença entre a abordagem corológica, à direita, e a abordagem biocenológica, à esquerda. Assim, por exemplo, tanto pode-se fazer um estudo aprofundado sobre a autoecologia das saúvas (Atta spp.), buscando identificar os elementos ligados à sua distribuição e comportamento (reações às altas e baixas temperaturas, níveis de umidade, formas diferenciadas de alimento, etc.) quanto pode-se fazer um estudo sobre a sinecologia da Mata Atlântica, buscando identificar os processos que se desenvolvem naquela cadeia alimentar, as influências e limitações abióticas, a sucessão vegetal, etc. ABORDAGEM GEOECOLÓGICA: Com uma característica fortemente geográfica e integradora, esta abordagem visa compreender a inter-relação dos aspectos estrutural-espacial e dinâmico-funcional das paisagens, entendidas estas a partir de sua formação antropo-natural, ou seja, um sistema territorial composto por elementos naturais e antropotecnogênicos condicionados socialmente, que modificam as propriedades das paisagens naturais originais22. Diferentemente das abordagens anteriores, o foco de interesse neste caso não está nos condicionantes ou relações de uma espécie ou conjunto de espécies, mas sobre a resultante produzida pela interação entre os diferentes componentes da paisagem, onde os componentes bióticos desempenham um papel extremamente importante como indicadores do grau de equilíbrio do sistema23. As três primeiras formas de abordagem anteriormente descritas contam com três métodos distintos de estudo (não necessariamente excludentes): o método taxonômico, voltado para a identificação e classificação dos indivíduos dentro de um determinado taxon a que pertençam. Este método, pela sua natureza classificatória, é amplamente empregado dentro da abordagem corológica, resultando em mapas, esquemas ou bancos de dados que contém a informação sobre a distribuição e área de ocorrência dos diferentes taxa estudados (figura 8). Área de ocorrência do Lobo Etíope (Canis simensis) 12 Já o método fisionômico é utilizado para compreender a estrutura (fisionomia) de uma dada comunidade como resultante das condições ambientais passadas ou presentes, independente das espécies que componham esta comunidade. Assim, o foco de interesse não está mais centrado sobre a identificação das espécies que aparecem em uma determinada área, mas como que as espécies que ali aparecem estão estruturadas (altura, densidade, formas de associação, etc.), e quais as causas deste “arranjo” entre elas. A abordagem biocenológica é a que mais se utiliza dos métodos fisionômicos, pois vai buscar definir as semelhanças e diferenças estruturais entre determinadas formações vegetais submetidas a variações nos fatores ambientais (figura 9). Este é, todavia, um recorte meramente didático e simplificado, uma vez que a abordagem biocenológica também dificilmente consegue prescindir dos métodos taxonômicos, especialmente porque às descrições fisionômicas e estruturais de qualquer biocenose se costumam acrescentar as relações de flora e fauna presentes. Por fim, o método ecológico busca identificar e quantificar os ciclos de matéria e os fluxos de energia que circulam dentro de um ecossistema (natural ou antropo-natural), e que são responsáveis pela permanência de uma dada espécie ou comunidade com determinadas características dentro daquela área. Considerando que as dinâmicas de matéria (elementos químicos, água, sedimentos, etc.) e energia (fontes naturais e artificiais) são as responsáveis pelas mudanças na estrutura da paisagem ao longo do tempo, o método ecológico nos permite compreender o ritmo e a intensidade com que estas dinâmicas ocorrem nos diferentes geoecossistemas estudados (figura 10). Já a abordagem geoecológica, pela complexidade e diversidade dos processos envolvidos na transformação das diferentes paisagens, não se liga de forma exclusiva a um único método de pesquisa mas, ao contrário, vai lançar mão de uma grande diversidade de métodos e técnicas de pesquisa que são oriundos das diferentes áreas do conhecimento que compartilham este objeto de estudo, desde a Geoecologia, Ecogeografia, Ecologia da Paisagem, Ciência da Paisagem, entre outras. Tais métodos de estudo da paisagem, todavia, compartilham entre si o princípio sistêmico de interação entre os diferentes componentes, buscando compreender a paisagem como uma síntese de tais interações. A escala e o objetivo da pesquisa é que permitem ao biogeógrafo escolher a abordagem e o método de estudo mais adequados para o entendimento daquilo que se deseje dentro da paisagem. Tendo sua origem vinculada às ciências naturais, a construção do conhecimento em Biogeografia, desde os seus primóridos, teve o seu desenvolvimento dividido entre dois grandes campos de pesquisa: a Fitogeogeografia, que tem por objetivo estudar a estrutura e a dinâmica das áreas de distribuição das espécies vegetais na superfície da Terra, bem como os fatores que interferem nesta distribuição; e a Zoogeografia, que busca explicar os fatores que favorecem e/ou condicionam a distribuição dos animais na superfície terrestre, construindo hipóteses para o aparecimento, a disseminação e a extinção destas espécies. Diversas questões ligadas às características das plantas têm contribuído para um maior avanço da Fitogeografia sobre os estudos zoogeográficos. Dentre estas questões, podemos citar a maior facilidade de coleta e preservação de plantas (pelo seu caráter estático) do que de animais; o menor 13 número de espécies vegetais em relação às espécies animais (enquanto estima-se um total de 200.000 espécies de plantas superiores conhecidas, só os insetos ultrapassam um milhão de espécies diferentes); além da baixa capacidade de migração das espécies vegetais, o que faz com que sua forma e crescimento sejam mais fortemente condicionados pelas condições ecológicas, permitindo um estudo mais aprofundado dos processos de adaptações. Figura 8- Exemplo de estudo integrando os métodos taxonômico (identificaçãodas espécies presentes) e fisionômico (representação das estruturas)24 na realização de uma caracterização fitogeográfica de um fragmento residual de cerrado. A figura apresenta um perfil estrutural (A) e projeções das copas (B) de um estrato arbustivo-arbóreo em área de cerrado stricto sensu no município de Botucatú (SP), onde se identificam as seguintes espécies: 1. Erytroxylum suberosum; 2. Tibouchina stenocarpa; 3. Anadenanthera falcata; 4. Rapanea umbellata; 5. Morta; 6. Campomanesia pubescens; 7. Myrcea língua; 8. Ouratea spectabilis; 9. Dalbergia miscolobium; 10. Tabebuia ochracea; 11. Acosmium sublegans; 12. Eupathorium vauthierianum; 13. Myrcia guianensis; 14. Scheflera vinosa; 15. Guapira noxia; 16. Rapanea guiarensis; 17. Piptocarpha axillares. Figura 9- Exemplo de estudo empregando o método fisionômico de análise, com objetivo de comparar a variação estrutural entre duas áreas florestais desmatadas com tempos de regeneração diferenciados. A figura apresenta o perfil estrutural de duas áreas florestais em estágios diferentes de sucessão na região do médio vale do rio Doce (MG)25. Em (E) se observa uma área em estágio inicial de regeneração, com presença de cipós e uma altura média que não excede aos 10 metros; nota-se nesta área a inexistência de um estrato emergente. Em (F) se observa uma parcela em estágio médio de regeneração, com uma altura média entre 10 e 20 metros e o início da formação de um estrato emergente. 14 Figura 10: Exemplo de uma pesquisa que lança mão de uma abordagem ecológica para retratar as entradas e saídas de matéria (em ton) e energia (em kcal) em um ecossistema urbano, buscando compreender o equilíbrio dinâmico produzido a partir de diferentes processos ambientais em curso. A figura se refere à estrutura e metabolismo do ecossistema urbano da cidade de Bruxelas na metade da década de 7026. Ao longo do tempo a evolução e a especialização da ciência foi fazendo com que a produção científica nestes dois grandes campos de estudo da Biogeografia desse origem a, pelo menos, quatro grandes divisões: BIOGEOGRAFIA HISTÓRICA: Também chamada de Paleobiogeografia, este ramo da Biogeografia vai se preocupar principalmente em identificar, a partir dos registros fósseis, os processos de distribuição, adaptação, diferenciação e extinção de espécies ao longo da história geológica da Terra27, buscando responder a questões do tipo: como eram as paisagens terrestres sob condições climáticas diferentes das atuais? Como sobreviveram determinados taxa às mudanças climáticas? Porque certas regiões do planeta apresentam flora e fauna28 tão singulares? Como as mudanças geológicas do planeta influenciaram na distribuição das espécies ? A Biogeografia Histórica, desta forma, aborda questões que envolvem processos evolutivos ao longo de grandes períodos de tempo, refletindo a partir de grandes escalas espaciais e tendo por base, em sua maior parte, o registro de taxa extintas. BIOGEOGRAFIA ECOLÓGICA: Estuda a influência dos fatores ambientais atuais sobre os seres vivos e como estes seres respondem às variações nas 15 condições ecológicas. A partir disso, este ramo da Biogeografia vai buscar respostas para questões do tipo: que fatores impedem determinado taxon de se expandir para áreas onde ainda não ocorra? Quais são os mecanismos que controlam a diversidade de organismos em um determinado ecossistema e por que esta diversidade se altera tanto de um ecossistema para outro? Que mudanças as plantas e os animais precisam desenvolver para se adaptarem a temperaturas extremas ou à falta de umidade ou ao excesso de luz? A resposta a estas questões envolve mudanças processadas em períodos mais curtos de tempo, com taxa atuais e estudados a partir de uma escala espacial mais restrita, que permita a coleta de dados em campo e o monitoramento dos processos. Por todas estas características, a Biogeografia Ecológica abre grandes possibilidades de diálogo com os desafios ambientais da atualidade, tratando das causas de impactos ambientais, alterações na paisagem e buscando propor alternativas para a recuperação e conservação das espécies envolvidas. BIOGEOGRAFIA MÉDICA: Podemos considerar como um ramo derivado da Biogeografia Ecológica, que tem como objeto de pesquisa os fatores que condicionam a distribuição dos organismos vivos que atuam como vetores de transmissão de doenças. Associa as áreas de ocorrência destes vetores com as condições ecológicas em que se encontram, buscando entender os mecanismos que favorecem ou dificultam a sua disseminação29. Na medida em que se estão produzindo mudanças drásticas das condições ambientais do planeta e que um número cada vez maior de pessoas passam a ficar expostas a organismos transmissores de doenças30, mais aumenta a importância desta área de pesquisa. Para esta área confluem estudos de pesquisadores ligados à área da Ecologia Humana, saúde pública e Geografia da Saúde. BIOGEOGRAFIA CULTURAL: Proposto inicialmente por Simmons31, este ramo da Biogeografia representa uma síntese dos enfoques histórico e ecológico, focada na compreensão do papel do homem na modificação da biota terrestre, seja com a domesticação de plantas e animais, seja com a disseminação forçada de espécies invasoras, e chegando até os impactos produzidos pelos processos de alteração genética e criação artificial de novas espécies. Considerando que o homem tem o poder de alterar de forma significativa o quadro de distribuição dos seres vivos, tanto de forma direta (introdução de espécies), quanto de forma indireta (modificação dos ecossistemas), a Biogeografia Cultural oferece uma contribuição indispensável à discussão sobre conservação da biodiversidade, segurança alimentar, extinções modernas, saberes ambientais e biotecnologia. 1.3 Desenvolvimento histórico do conhecimento biogeográfico A história da Biogeografia pode ser dividida, grosso modo, em dois períodos distintos32. O primeiro período se estende desde o surgimento das primeiras idéias sobre a criação do universo até fins do século XVIII, podendo ser denominado de período pré-científico. Neste período a principal tarefa dos naturalistas, à parte de catalogar os espécimes que eram descobertos em diferentes regiões do mundo, resumia-se a comparar as biotas destas regiões 16 e estabelecer hipóteses para as similaridades e diferenças que eram observadas. O segundo período, denominado de período científico, inicia no século XIX, com o surgimento das idéias evolucionistas e se estende até os dias atuais. Esta é uma fase em que o conhecimento biogeográfico abandona o caráter meramente especulativo e parte para a formulação de teorias e hipóteses que se originam diretamente das pesquisas de campo e da ciência experimental. Cada uma destas fases está, por certo, repleta de momentos muitos diferenciados no direcionamento teórico e metodológico de produção do conhecimento, bem como na sua intensidade, como seria de esperar em uma ciência que dialoga com as questões do seu tempo. Todavia, como não é nosso interesse aprofundarmos as questões da historiografia do pensamento em Biogeografia, e sim estabelecermos os principais pressupostos a partir dos quais tal pensamento se constituiu, acreditamos que esta generalização em dois grandes períodos é bastante satisfatória para quem inicia na compreensão desta ciência 1.3.1- PERÍODO PRÉ-CIENTÍFICO Embora os filósofos gregos e, posterior a eles, a expansão do Império Romano ao longo do Mediterrâneo, tenha possibilitado o início das primeiras coleções de dados e associações entre características climáticas e aspectos de vegetação, a mais antiga teoria biogeográfica e que orientou todo o pensamento ocidental acerca da distribuição das espécies na superfície da Terra até o século XVIII, pode ser encontrada no Antigo Testamento, no Livro do Gênesis. A teoria traducianista33, segundo a qual todos os seres vivos teriam sido criadospor Deus e se disseminado a partir de um único ponto da superfície da Terra, tem o seu embasamento em duas grandes histórias presentes no Livro do Gênesis. Inicialmente a história da criação do Universo, criado por Deus em sete dias, chama a atenção para o fato de que todas as criaturas vivas foram colocadas no Jardim do Éden, daí disseminando-se por todas as partes habitáveis do planeta. Posterior a fase da criação, a história do dilúvio universal vem reforçar a idéia de que todos os seres vivos existentes no planeta se constituíram a partir dos espécimes preservados por Noé em sua arca (figura 11). Segundo a Bíblia, Noé carregou em sua arca, por ordem divina, sete casais de cada espécie de animais, a fim de salvá-los do dilúvio. Cessado o cataclismo e aberta a porta da arca, esses animais, obedecendo à ordem de Deus (“crescei e multiplicai-vos”), voltaram a povoar o mundo a partir do monte Ararat, onde supostamente teria Noé aportado com sua arca34. Semelhante forma de pensamento foi usado por Athanasius Kircher (1601-1680) para a explicação da dispersão humana sobre a Terra, a partir da destruição da Torre de Babel. Segundo o Antigo Testamento, a multiplicação das línguas foi um castigo de Deus à pretensão dos homens de construir uma torre cujo topo penetrasse no céu. A dispersão dos homens a partir de Babel teria permitido a ocupação de todas as áreas acessíveis por terra, sendo que, nesta interpretação, não se aceitava que nenhuma área além do oceano pudesse ser habitada. 17 Figura 11- Este quadro de 1588 pintado por Kaspar Memberger retrata a entrada dos animais na Arca de Noé35. Segundo o mito do dilúvio universal, Deus, arrependido de ter criado o homem devido à maldade que se espalhara na Terra, decide recomeçar a Criação a partir de Noé e seus descendentes, ordenando a este que colocasse em uma arca de madeira sete casais de cada um dos seres vivos existentes. Segundo a teoria traducianista, estes seriam os animais a partir dos quais se daria o repovoamento do planeta após o dilúvio. Durante a Idade Média estudiosos como Santo Agostinho (354-430 d.C), Pseudoaugustinus (Sec. IV), José de Acosta (1539-1600), entre outros, interpretavam os filósofos gregos à luz das Sagradas Escrituras, buscando contornar os abalos sofridos pelo paradigma traducianista na medida em que novas porções da superfície da Terra passavam a ser conhecidas. Seguro argumento para corroborar com esta teoria bíblica era encontrado em Aristóteles, especialmente em sua obra Meteorologica. Este filósofo grego do século IV a.C. já propunha a divisão da Terra em cinco zonas climáticas diferenciadas: duas zonas glaciais, duas temperadas e uma zona intermediária, tórrida e árida, onde nada poderia se desenvolver nem mesmo ultrapassá-la. Este fato apoiava a idéia de que o povoamento vegetal e animal só existiam mesmo junto à Eurásia, fruto da disseminação a partir do Monte Ararat, no leste da Turquia, onde Noé teria aportado com sua arca. Da mesma forma, jamais poderia ser admitida a existência de qualquer forma de povoamento humano ao sul da zona tórrida descrita por Aristóteles. Com o avanço do conhecimento, as explicações vão perdendo o seu conteúdo metafísico e fantasioso, com anjos e demônios espalhando os animais pela superfície da Terra, e vão ganhando em racionalidade, especialmente a partir das grandes navegações, dando origem a novas teorias 18 que, todavia, ainda buscavam confirmar os pressupostos das idéias traducianistas. Uma destas teorias foi proposta por um dos mais importantes naturalistas do século XVIII, o sueco Carolus Linnaeus (1707-1778). Em um clássico texto de 1744, intitulado “Discurso sobre o aumento da terra habitável”, o autor propôs uma teoria biogeográfica que corroborava com a perspectiva traducianista. Segundo Linnaeus, os animais e plantas que haviam sobrevivido ao dilúvio estavam distribuídos nas diferentes altitudes do monte Ararat, segundo as preferências ecológicas de cada espécie. Na medida em que as águas dos oceanos foram baixando, estas espécies foram se distribuindo pelas terras emersas, buscando condições ecológicas semelhantes às que ocupavam no Ararat. Disso decorre a conclusão de Linnaeus: “animais e plantas que habitam áreas de ecologia semelhante, em diferentes continentes, devem pertencer à mesma espécie”36. As idéias de Linnaeus foram duramente combatidas pelo seu contemporâneo francês Georges-Louis Leclerc, o Conde de Buffon (1707- 1788), um dos precursores das idéias transformistas de Lamarck37. Segundo Buffon, a teoria de Linnaeus tinha como pressuposto que, para chegarem a ambientes com condições ecológicas semelhantes às suas condições originais, as espécies precisariam atravessar outras regiões com condições muito diversas. Estas regiões teriam servido como barreiras ecológicas, impedindo o deslocamento destas espécies, uma vez que, tal como defendido pelos traducianistas, elas deveriam ser incapazes de se modificar para se adaptar às condições das áreas que precisavam ser atravessadas. A solução proposta por Buffon para este impasse era clara: ao contrário do que se pensava, a partir de uma área original de criação38, as espécies foram se modificando na medida em que passaram a ocupar novas áreas com condições ecológicas diferentes. Isso, para Buffon, justificaria a variação encontrada entre a Biota das diferentes regiões do planeta. Em 1761, ao publicar o volume IX da Histoire naturelle, Buffon salienta que a maior parte dos mamíferos presentes no Velho Mundo não se encontram representados na América, mesmo em áreas com condições ecológicas semelhantes. O princípio elaborado por Buffon (o de que regiões com condições ecológicas semelhantes separadas por grandes barreiras apresentam faunas distintas) contrariava frontalmente a teoria de Linnaeus e foi tão significativo para o conhecimento zoogeográfico da época, que acabou conhecido como “Lei de Buffon”. Posteriormente, Alexander Von Humboldt (1769-1859) ratificaria os princípios desta lei também para a flora, ao comparar a vegetação da América do Sul com a africana, confirmando as proposições de outros naturalistas do final do século XVIII, como inglês Sir Joseph Banks (1743-1820) e o alemão Johann Reinhold Forster (1729-1798), de que a Lei de Buffon poderia ser generalizada para outras famílias de seres vivos ao longo do planeta. Questões como essa deram passagem a novas idéias que, se por um lado, eram obrigadas a admitir a fragilidade da teoria traducianista39, por outro, buscavam ainda confirmar o poder divino sobre todas as criações. Abre-se caminho para a teoria Criacionista. A partir desta nova interpretação, admitia-se que Deus criara as espécies separada e simultaneamente, cada qual em sua própria região. Não 19 houvera um único centro de origem e dispersão no Jardim do Éden; não fora necessário levar todas as espécies dentro da arca de Noé. Em suma, Deus criara, desde o início, e simultaneamente, as regiões biogeográficas, cada qual com suas espécies próprias. Um dos grandes defensores desta teoria, foi o botânico alemão Karl Willdenow (1765-1812) que, em 1792, descreveu as províncias florísticas da Europa, defendendo a idéia de que a diversidade de espécies estava ligada à ocorrência de múltiplos centros de origem, localizados nas áreas mais altas das montanhas e livres do dilúvio. Na medida em que as águas foram baixando, dizia Wildenow, as espécies de cada montanha foram se dispersando, dando origem às diferentes regiões florísticas. Apesar do abandono da idéia de um único centro de origem e dispersão, o criacionismo mantinha os fundamentos mais importantes do pensamento cristão medieval, cujo princípio básico estava assentado na Teoria das criações independentes e na Teoria da constância das espécies, ou seja, cada espécie havia sido indiscutivelmente criada por Deus e havia permanecido exatamente igual desde então, idéias estas veemente defendidaspor outro importante cientista do século XVIII, o barão Georges Cuvier (1769-1832). Baseado nas suas pesquisas paleontológicas, Couvier propunha a idéia do catastrofismo para justificar a variabilidade de espécies de uma região para outra. Diante da impossibilidade das espécies se modificarem ao longo do tempo40, algumas desapareciam e outras novas eram criadas por Deus após cada episódio catastrófico da Terra. Segundo ele, “a vida na Terra foi, pois, frequentemente atormentada por acontecimentos medonhos. Um sem-número de seres vivos foram vítimas dessas catástrofes: uns, habitantes da terra seca, viram-se tragados por dilúvios; outros, que povoavam o interior das águas, foram levados para o seco, quando o fundo dos mares se levantou de súbito; até mesmo a raça desses seres acabou para sempre, não deixando no mundo senão uns poucos restos reconhecíveis, quando muito, pelos naturalistas.”41 Apesar disso, a partir da segunda metade do século XVIII o início dos primeiros pensamentos evolucionistas começou a desacomodar estas teorias cristãs de um mundo estático e imutável, especialmente pela compreensão de que na natureza havia uma clara luta pela existência, e que esta luta poderia de alguma forma, influenciar na variação entre as espécies. Importante contribuição neste sentido foi a do botânico suíço Augustin Pyrame De Candolle (1778-1841) a partir dos estudos de fisiologia vegetal, buscando demonstrar que os indivíduos não apenas são influenciados pelos fatores ecológicos (água, temperatura, luz), como também competem entre si por estes recursos. Ao mesmo tempo, ao analisar a distribuição das espécies vegetais na França, De Candolle concluiu que tal distribuição se justificava não apenas pela ação atual de fatores ecológicos mas, também, pela ação passada de fatores que já não mais atuavam. A contribuição de De Candolle, neste sentido, é o prenúncio de um novo período no conhecimento biogeográfico, que seria instalado a partir do século XIX, com o surgimento da Biogeografia Histórica e da Biogeografia Evolutiva. 1.3.2- O início do período Científico É consenso entre a maioria dos historiadores da ciência que o período científico da Biogeografia teve início a partir da publicação, em 1805, do “Essai 20 sur la géographie des plants” (figura 12) de Alexander Von Humboldt. A referida obra originou-se a partir da viagem realizada por Humboldt ao continente americano em companhia do botânico francês Aimé Bonpland, entre 1799 e 1804. Nesta oportunidade, os naturalistas percorreram o norte da América do Sul, as Antilhas e o México, realizando observações sobre a flora e fauna da região. Uma das principais contribuições de Humboldt à fitogeografia adveio da excursão realizada pelo naturalista ao monte Chimborazo, um vulcão de 6.310 metros de altura, localizado no Equador (figura 13). A partir de suas observações, Humboldt pode demonstrar que a sucessão altitudinal da flora do Chimborazo correspondia, em linhas gerais, à sucessão latitudinal da flora na superfície terrestre42. Daí sua conclusão de que “As espécies vegetais que compõem uma família aumentam ou diminuem numericamente do Equador para os Pólos”. Os aspectos do quadro físico (pressão, temperatura, umidade...) e a flora encontrados por Humboldt apresentavam uma correlação tão forte para o naturalista, que a sua generalização para o conjunto da superfície terrestre apresentava-se como uma possibilidade bastante concreta. Dessa maneira, dizia Humboldt, seria possível inferir as características do ambiente a partir da análise da estrutura vegetal do local. A partir desta correlação, Humboldt propõe o conceito de Geobotânica, cujo objeto seria justamente compreender os mecanismos de interação entre as plantas e as características do meio. Tal fato abre a possibilidade para o mapeamento vegetal do globo. Além disso, Humboldt foi pioneiro na utilização de diversas técnicas amplamente empregadas em estudos fitogeográficos, como o uso do barômetro para determinação da altitude, a representação do relevo por meio de perfis e a criação de mapas de “isolinhas”43. Humboldt publica ainda, “Quadros da natureza” (1808) e “Cosmos” (1845), esta última considerada a obra de fundação da Geografia científica. 21 Figura 12 - Frontispício da obra que viria a representar o marco inicial da fitogeografia. A obra foi redigida em francês e concluída em 1803, quando Humboldt estava ainda em Guaiaquil, sendo publicada um ano após seu regresso á Europa, em 1805, pela editora de Schoell.44 Figura 13- Croqui do Chimborazo, tal como desenhado por Humboldt. Segundo o próprio autor: “Tentei reunir num só quadro o conjunto dos fenômenos físicos encontrados na regiões 22 equinoxiais, desde o nível do mar até o cume do mais alto pico dos Andes”45 . Este perfil corresponde a uma das principais contribuições do cientista na busca de uma compreensão unificadora da natureza. Estão contidas neste esboço todas as espécies de plantas catalogadas na região, além de uma preocupação em relacionar tais espécies com as variações altimétricas e de temperatura. Podemos dizer que Humboldt não inaugura apenas uma fase científica do conhecimento biogeográfico baseada em princípios matemático- mecanicistas, mas, sobretudo, oferece à Biogeografia (e, por conseqüência, à Geografia Física), um método de análise próprios46, baseado na busca da unidade da natureza por meio do estudo da paisagem, transitando entre o idealismo alemão e o enciclopedismo francês e integrando aspectos da arte e da ciência na explicação do real47. As diferentes formas de representação da paisagem empregadas por Humboldt, desde os perfis integrados, os mapas e as pinturas, representavam um reencontro da linguagem artística com a ciência mais objetiva e experimental48. Infelizmente tal proposição caminhava na contra-corrente do processo de especialização em que mergulhava a ciência do século XIX e os seguidores de Humboldt não conseguiram impedir que a Biogeografia passasse a assumir uma trajetória cada vez mais biológica e fragmentada, afastando-se da compreensão da paisagem e da própria ciência geográfica, até meados do século XX. Charles Darwin (1809-1882), inspirado nos resultados obtidos e publicados por Humboldt49, viaja em uma longa excursão a América do Sul entre os anos de 1831 e 1836 (figura 14). Como resultado das suas descobertas nesta viagem, e após muitos anos de relutância em propor uma teoria que afrontasse a idéia de uma origem divina para os seres vivos, publica, em 1859, “On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life” (Sobre a Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural ou a Preservação de Raças Favorecidas na Luta pela Vida), posteriormente abreviado para “A Origem das Espécies”, a partir da edição de 1872. Esta obra representa uma das maiores contribuições à ciência moderna, onde Darwin apresenta evidências abundantes da existência de um sentido geral de evolução da vida, mostrando que a diversificação das espécies é produzida a partir das diferentes formas de adaptação das mesmas às diferentes condições do meio ao longo de gerações sucessivas de indivíduos, fazendo com que as espécies se ramifiquem cada vez mais a partir de formas ancestrais50. Esta obra serviu como marco de referência para a zoogeografia ao introduzir o conceito de evolução no estudo da fauna, superando de uma vez por todas o pensamento medieval clássico da constância das espécies. Em outras palavras, Darwin lança a idéia de que a natureza está em constante desenvolvimento e cabe à ciência desvendar as diferentes etapas do dito desenvolvimento e determinar as suas leis. Ao propor a idéia de que as espécies se transformam ao longo do tempo devido à necessidade de adaptação promovida pela seleção natural, Darwin não só colocava em xeque as idéias dofixismo cristão, mas, também, colocava uma enorme quantidade de combustível no debate político que se instalava na Inglaterra de meados do sec. XIX acerca das necessidades de mudanças que pudessem levar a uma evolução social 51. 23 Figura 14- Roteiro da expedição do H.M.S. Beagle, sob o comando do capitão Robert FitzRoy, em que Charles Darwing teve a oportunidade de ocupar o posto de naturalista da expedição, pagando suas próprias despesas. O objetivo principal da expedição era o levantamento cartográfico das costas da parte sul da América do Sul, seguindo depois pelo Oceano Pacífico em direção ao continente australiano, a fim de checar coordenadas ainda imprecisas nos mapas europeus da época52. A obra de Darwin, todavia, talvez nunca tivesse vindo à tona se não fossem as descobertas de outro naturalista britânico, menos nobre, chamado Alfred Wallace. O texto abaixo, denominado de “Os esquecidos”, tem a autoria de Luisa Massarani53 e revela um pouco acerca das descobertas de Wallace: Imagine-se muito doente numa pequena cabana numa ilha na Malásia, com uma febre tão alta que as alucinações dançam em seu quarto. O que você faria? Em que você pensaria? Bem, foi isto que aconteceu com Alfred Wallace. Quando acordou, ele colocou em ordem algumas idéias que vinha tendo nos últimos anos e que se tornaram mais claras com as alucinações febris. E se sentou em sua escrivaninha para escrever uma carta a uma pessoa que você já ouviu falar ou pelo menos de quem você pode encontrar um livro em uma biblioteca: Charles Darwin. Era o ano de 1858. Ao receber a carta, em sua casa na Inglaterra, Darwin teve um choque! No papel que tinha entre seus dedos, estavam algumas das idéias que ele próprio vinha desenvolvendo nos últimos 20 anos para explicar a origem e a evolução das espécies animais. Segundo Wallace, existe um mecanismo de transmutação de uma espécie em outra. Esse mecanismo permite que algumas formas passem a ser mais favorecidas em relação às que existem em maior quantidade. Isto faz com que tais formas passem a existir em número maior e, com o passar do tempo, tornem-se predominantes na região. Mas, depois, elas acabam perdendo lugar para outras formas, em um processo interminável. Ao tentar entender que mecanismo regulador seria este, encontrou a resposta: são os indivíduos mais bem adaptados ao meio ambiente que sobrevivem. E, na luta pela existência, 24 sucumbem aqueles que são mais fracos e menos organizados. Nessa luta, entram fatores como, por exemplo, a quantidade limitada de alimentos: se a população crescer muito, não haverá comida para todos. Por isto, em geral a população de um determinado organismo se mantém com o mesmo tamanho. Não era a primeira vez que Darwin e Wallace trocavam cartas, mas esta carta trazia a chave para entender como as espécies se relacionam umas com as outras e como se originam, tal como o próprio Darwin havia concebido. "Devo dizer que fiquei sem palavras quando li o ensaio de Wallace; a coincidência nos conceitos e nas idéias apresentados por ele com o meu trabalho é assustadora, inclusive os termos que ambos usamos", disse Darwin a seus amigos. Enquanto Darwin era um membro da aristocracia e não tinha que trabalhar para viver, Wallace vinha da classe operária na Grã-Bretanha, onde nasceu em 1823. Sua viagem à floresta amazônica, no Brasil, entre 1848 e 1852, foi possível porque, com seu amigo Henry Bates, vendia animais, plantas e outros objetos de história natural que coletava ali para colecionadores na Europa. Em 1854, quando tinha pouco mais de 30 anos, ganhou uma passagem a bordo de um barco que ia para o Oriente. Assim, partiu para o arquipélago Malaio. Tinha na cabeça a pergunta para a qual não tinha encontrado resposta em sua viagem ao Brasil: Como as espécies de animais evoluem? Nos seis anos em que viveu ali, além de responder a essa questão ao formular o princípio da seleção natural, fez muitas descobertas fundamentais em biologia, geologia e geografia. Na Amazônia e no arquipélago Malaio, Wallace era um observador meticuloso do que se passava na natureza. Na primeira viagem, ele percebeu que certas espécies de animais em lados opostos de barreiras naturais – por exemplo, um rio – são muito parecidas, mas não idênticas. Para algumas pessoas da época, as diferenças se explicavam por causa da existência de um deus que criaria espécies distintas. Já Wallace acreditava que antigamente as espécies eram iguais; depois, teria surgido um obstáculo natural – neste caso hipotético, um rio –, e as espécies de cada margem teriam evoluído separadamente, tornando-se gradualmente diferentes, ainda que muitas vezes com apenas diferenças pequenas. Quando Wallace voltava do Brasil para sua terra natal, houve uma desgraça: o navio em que ele viajava pegou fogo! Ele sobreviveu, mas perdeu seu caderno de notas e uma grande quantidade de espécies de animais e vegetais, que ele tinha coletado durante quatro anos. Apesar disto, em 1853, ele publicou o livro Viagem pelos rios Amazonas e Negro, no qual ele relata seus dias no Brasil. Na segunda viagem, o naturalista conseguiu coletar cerca de 127 mil espécimes! Com seu livro O arquipélago Malaio, publicado em 1869, finalmente começou a ser mais conhecido em outros países. Wallace inaugurou o pensamento biogeográfico evolutivo através deste estudo realizado no Arquipélago Malaio. Neste trabalho Wallace percebeu que havia uma nítida separação entre as espécies que ocorriam na parte norte do arquipélago e aquelas que ocupavam a parte sul. Enquanto as espécies que ocupavam a parte norte do Arquipélago Malaio eram mais relacionadas com as espécies que ocorriam na Ásia, as espécies da parte sul eram mais próximas daquelas que habitavam a Austrália. Esta linha imaginária que separa as duas porções do arquipélago, e que hoje sabemos estar relacionada a uma profunda fossa oceânica ligada ao Cinturão de Fogo do Pacífico, foi batizada de Linha de Wallace. Coube a Wallace, também, redefinir as regiões zoogeográficas do planeta, que haviam sido propostas por Philip Lutley Sclater (1829-1913) em 185854, com base na coincidência espacial da ocorrência de espécies de aves. Wallace ampliou estas regiões, incluindo todos os grupos de animais. A segunda metade do século XIX foi ainda marcada pelo forte debate entre os “dispersionistas” que, como Darwin, acreditavam que a dinâmica de distribuição das espécies obedecia a uma dispersão a longa distância (ultrapassando grandes barreiras, como oceanos e desertos, a partir de mecanismos próprios, como o transporte de sementes por aves, por exemplo) 25 e os “extensionistas” que acreditavam que a dispersão a longas distâncias era bastante improvável, e que, portanto, a ocorrência de espécies disjuntivas (espécies com áreas de ocorrência separadas por grandes barreiras) só teria sentido a partir da ocorrência passada de grandes pontes continentais ou grandes arquipélagos atualmente desaparecidos, fazendo a ligação entre as áreas hoje separadas. Defensores desta teoria, como o geólogo Charles Lyell (1797-1875 ) ou o zoólogo Joseph Dalton Hooker (1817-1911) partiam de um pressuposto de que os continentes sempre estiveram na posição em que estão hoje e que, portanto, a distribuição da biota terrestre em um tempo passado havia contado com estas pontes terrestres hoje desaparecidas de ligação entre os continentes. Foi também em meados do século XIX que começou a se consolidar uma mudança metodológica profunda na Biogeografia, com a progressiva separação dos estudos de base ecológica em uma ciência à parte. Um dos seguidores de Darwin, o biólogo alemão Ernest Heinrich Haeckel (1834-1919), observou em suas pesquisas que a distribuição espacial das espécies estava diretamente ligada às variações das condições ambientais dos locais onde elas ocorriam55. Em sua clássica obra de 1866 (“Morfologia Geral dos Organismos”) Haeckel atribuiu a uma nova disciplinacientífica, denominada por ele de Ecologia, a tarefa de buscar compreender estas correlações. Haeckel propôs claramente em sua obra que a Biogeografia deveria tratar exclusivamente da distribuição espacial das espécies na superfície da Terra, enquanto que à Ecologia caberia o papel de estudar as relações entre as espécies e destas com os demais elementos do meio. A necessidade que a ciência proposta por Haeckel considerasse a importância e a variabilidade da dimensão espacial dos fenômenos fez com que a Ecologia incorporasse o conceito de paisagem logo nas primeiras décadas do século XX, a partir da proposta de Carl Troll (1899-1975) de criação de uma nova disciplina integradora, denominada por ele de Geoecologia. Estes novos caminhos para o estudo iniciado por Humboldt56 sobre a complexidade das dinâmicas envolvidas na paisagem, fez com que o acalorado debate de botânicos e zoólogos acerca dos mecanismos que regulam a modificação e a distribuição das espécies no planeta monopolizasse a Biogeografia do século XIX, dando-lhe uma direção cada vez mais especializada e biológica, e minimizando drasticamente o seu papel de compreensão da paisagem dentro da nascente Geografia Física57. 1.3.3- A Biogeografia moderna A definição das grandes zonas climáticas do planeta, em 1884, elaboradas pelo geógrafo russo Wladimir Peter Köppen (1846-1940) e que resultou na criação de um sistema universal de classificação climática publicado em 1900 (“Ensaio sobre uma classificação do clima, preferencialmente em relação com o mundo das plantas”) impulsionou a Biogeografia, pela possibilidade de se estabelecer uma compreensão universal acerca da variabilidade dos principais elementos do clima que condicionam a ocorrência e o comportamento da vegetação nas diferentes regiões do planeta. 26 Não menos importante para a Biogeografia histórica foi a sua publicação de 1924, em co-autoria com seu genro, o físico Alfred Wegener, intitulada “Os climas do passado geológico”58. Nesta obra os autores fazem um estudo das glaciações terrestres, apresentando uma proposta inicial sobre o movimento dos continentes, a qual, todavia, só seria reconhecida pela comunidade científica a partir da década de 60, com a contribuição de diversos outros autores, sob a denominação de teoria da Deriva Continental. Podemos dizer que a importância desta teoria foi tanta, que ela inaugurou uma nova fase da Biogeografia Histórica. A partir de então, os biogeógrafos passaram a dispor de mapas paleogeográficos mais confiáveis para construir as hipóteses sobre os padrões de mudança das biotas nos continentes que se movimentavam. Também data do início do século XX (1909) o “Tratado de Geografia Física” de Emmanuel De Martonne (1873-1955), cujo volume 3 é dedicado à Biogeografia, tendo sido uma obra largamente traduzida e utilizada nos meios acadêmicos durante muito tempo59, inclusive no Brasil. Além do “Tratado” de De Martonne, a partir da década de quarenta os geógrafos brasileiros passam a se inspirar na sua formação com as publicações do biogeógrafo canadense Pierre Dansereau (1911-2011), que esteve no Brasil entre os anos de 1945-46 a convite do Conselho Nacional de Geografia. Especialmente um dos seus artigos (“Introdução à Biogeografia”60), publicado na Revista Brasileira de Geografia em 1949, representou um ensaio à publicação de uma importante obra à Biogeografia do século XX (“Biogeografia, uma perspectiva ecológica”), publicada em 1957 e igualmente muito utilizada nas universidades brasileiras, nas décadas de sessenta e setenta. A partir de meados do século XX a produção do conhecimento em Biogeografia sofre um novo e importante impulso61, motivado por quatro recentes perspectivas teóricas: a teoria da Deriva Continental, o desenvolvimento de novos métodos filogenéticos, a teoria da Biogeografia de Ilhas e a teoria dos Geossistemas. Embora a teoria da Deriva Continental já tivesse sido proposta por Wegener desde princípios do século XX, foi somente com a comprovação da expansão do assoalho oceânico, na década de 60, que esta teoria passou a ser aceita entre os geólogos, a partir da proposição de um mecanismo de geração do movimento das placas tectônicas. Com isso se enfraquecem os argumentos “dispersionistas” na explicação das espécies disjuntivas e se inaugura um novo período na Biogeografia Histórica com o aparecimento de uma subárea a que hoje se denomina Biogeografia Vicariante, buscando compreender como a flutuação espacial de diferentes taxa acompanhou a movimentação nas massas continentais do planeta, especialmente nos últimos 200 milhões de anos. O botânico italiano Leon Croizat (1894-1982) é considerado como o pai da Biogeografia Vicariante. Ao buscar interligar as áreas de ocorrência de determinados taxa, Croizat levantou a hipótese de que muitas dessas áreas já estiveram conectadas no passado, tendo sofrido posteriormente uma interrupção que levou à disjunção e à ritmos diferentes de evolução em cada uma delas. A partir destas conclusões, ele foi um dos primeiros biogeógrafos a afirmar que “a vida e a Terra evoluem juntas”62. Esta perspectiva tem dado um grande estímulo à reflexão, à pesquisa e ao surgimento de novas idéias dentro da Biogeografia, partindo-se do princípio de que a história geológica pode 27 ajudar-nos a compreender a história dos organismos, assim como a história dos organismos pode ajudar-nos a entender a história de nosso planeta. Desde o século XVIII, a classificação universal adotada para seres vivos se baseava no agrupamento por critérios de semelhança fisionômica dos organismos. A partir da década de 50, com as publicações do biólogo alemão Emil Hans Willi Hennig (1913-1976), se desenvolve uma nova maneira de analisar o agrupamento dos seres vivos: a Cladística. Este método se baseia no princípio fundamental de que os organismos devem ser classificados de acordo com as suas relações evolutivas e que a forma de descobrir essas relações é analisando, a partir dos dados disponíveis (morfológicos, químicos ou genéticos), os “caracteres derivados” dos organismos, ou seja, aquelas características produzidas pelo processo evolutivo em um grupo de organismos e que os diferencia dos seus antepassados, com os quais compartilham apenas aquilo que se designa como caracteres ancestrais ("primitivos"). Como resultado desta análise, se produz uma árvore filogenética (figura 15), que nada mais é do que uma representação gráfica do processo evolutivo das unidades taxonômicas analisadas, demarcando a partir dos diferentes ramos os saltos evolutivos encontrados. Figura 15- Árvore filogenética do gênero Equus, e seus ancestrais. A partir da reconstrução paleontológica, foi possível estabelecer a filogenia deste gênero desde seus ancestrais mais primitivos, a pouco mais de 50 milhões a.a., no continente americano63. 28 A questão do povoamento biológico de ilhas sempre intrigou os naturalistas, desde o período pré-científico da Biogeografia. Desde que o alemão Johann Reinhold Forster (1729-1798) publicou, em 1778, o seu relatório de circunavegação do globo, já estavam lançadas as primeiras bases de compreensão da Biogeografia de ilhas. Foster observou em sua viagem que as ilhas possuíam menos espécies vegetais do que os continentes imediatamente próximos, e que o número de espécies nas ilhas aumentava de acordo com os recursos disponíveis em termos de variabilidade de habitat. Meio século mais tarde, ao estudar as Ilhas Galápagos, Darwin avançou no conhecimento sobre a dinâmica biológica insular, ao sugerir que o isolamento geográfico das ilhas facilita mudanças hereditárias nas populações. Apesar de todas estas contribuições, até a metade do século XX se acreditava que este padrão das biotas insulares refletia dinâmicas evolutivas de tempo longo. Os trabalhos de Robert Mac Arthur (1930-1972) e Edward Osborne Wilson (1929-) sobre a dinâmica de espécies em ilhas, mostrou que questões como competição e predação podem alterar a composição de espécies em uma ilha em um tempo muito mais rápido do que se imaginava. A teoria do equilíbrio insular64 (ou teoria da Biogeografia de ilhas) proposta pelos autores enfatizou a importância das dinâmicas ecológicas e estabeleceu um novo paradigma para o estudo de comunidades isoladas. A partir da década de setenta muitas pesquisas na área de conservação começaram a aplicar as idéias de McArthur e Wilson no planejamento de unidades de conservação, interpretadas como “ilhas continentais”. Nas décadas seguintes muitas críticas foram feitas à aplicação indiscriminada da teoria do equilíbrio insular a qualquer comunidade em isolamento, mas é inegável a sua contribuição para a revitalização desta nova fase da Biogeografia. Por fim, a retomada dos estudos biogeográficos a partir da década de 60 teve a imprescindível colaboração dos novos aportes metodológicos acerca do estudo integrado da paisagem, em especial com a proposição da teoria geossistêmica65 pelo geógrafo russo Viktor Borisovich Sochava (1905-1978) e sua maior divulgação nos países ocidentais a partir das idéias do geógrafo francês Georges Bertrand (1935-). A teoria geossistêmica representa a aplicação da Teoria geral de sistemas66 ao estudo das paisagens naturais, sejam elas modificadas ou não pela ação do homem. Esta teoria, forjada na tradição russa de uma Geografia Física Integrada (landschaftovedenie), buscava compreender os processos de transformação das paisagens a partir de uma dinâmica interatuante entre os seus diferentes elementos, que resulta em diferentes ritmos e direções de transformações estruturais (fisionômicas). No Brasil, diversos trabalhos de tentativa de aplicação desta teoria, entre as décadas de setenta e noventa, foram conduzidos por Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro67, Antônio Christofoletti68, Helmut Troppmair69 e Messias Modesto dos Passos. Se o aprofundamento biológico da Biogeografia levou a um distanciamento cada vez maior da Geografia, desde fins do século XIX, a emergência de uma verdadeira teoria da paisagem contida na proposta geossistêmica fez com que os geógrafos reencontrassem a Biogeografia a partir da tentativa de compreender os processos que regulam a dinâmica do funcionamento da relação solo-clima-relevo-biota em seu conjunto e as diferentes formas de apropriação e transformação desse sistema pela sociedade. A evolução das técnicas de teledetecção, o tratamento 29 computacional dos dados espaciais e a compreensão da importância do papel da sociedade na transformação da natureza, contribuiu para recolocar a Biogeografia no seu papel original de “ciência diagonal”, articulando o conhecimento produzido dentro das diferentes sub-áreas da Geografia Física na tentativa de explicação do complexo da paisagem. Ainda assim, em que pese toda esta retomada dos últimos quarenta anos, a Biogeografia ainda está muito longe de atingir o status epistemológico que alcançaram outras sub- áreas da Geografia Física. 1.4 – A elaboração de um paradigma para o estudo da paisagem Os estudos biogeográficos caracterizam-se, na maior parte das vezes, por buscarem uma compreensão da paisagem a partir de uma análise integrada dos seus elementos, além da preocupação com a representação espacial, seja de um determinado taxon, seja de um determinado ecossistema. Com isso, a pesquisa em Biogeografia assume uma feição particular em relação aos trabalhos desenvolvidos por outras disciplinas (ecologia, botânica, zoologia, etc.), uma vez que a Biogeografia busca o conhecimento verticalizado das outras ciências, para integrá-los na explicação da paisagem terrestre. Para tanto, tornou-se necessária a elaboração de um referencial metodológico próprio à Biogeografia, capaz de abarcar a complexidade e a totalidade dos processos envolvidos na estruturação da paisagem ou na distribuição de um determinado taxon na superfície da Terra. Tal ensejo só começou efetivamente a ser concretizado a partir da aplicação da teoria dos sistemas ao estudo da paisagem70, através do conceito de Geossistema. O Geossistema foi proposto inicialmente por Sotchava71 em 1963 e, logo em seguida, retrabalhado por Bertrand72, apresentando-o de uma forma metodologicamente mais clara. O geossistema, para Bertrand73, pode ser conceituado como sendo uma determinada porção da superfície terrestre caracterizada por uma relativa homogeneidade74 da sua estrutura, fluxos e relações, em comparação às áreas circundantes. Referindo-se à proposta geossistêmica, diz Bertrand75: “a interdisciplinaridade, o globalismo, o ambientalismo, a análise dialética da natureza e da sociedade não puderam se desenvolver senão num ambiente científico dominado pelo espírito de sistema”. Este geossistema, para Bertrand76, é constituído por três conjuntos diferentes (figura 16): o sistema geomorfogenético (potencial ecológico) representado pelos elementos abióticos, a dinâmica biológica (elementos de flora e fauna) e o sistema de exploração antrópica, representado fundamentalmente pelas ações ligadas às diferentes formas de uso, manejo e apropriação do solo. 30 É importante ressaltar que o geossistema não pode ser observado de fato no espaço; ele representa apenas uma abstração teórica, um modelo daquilo que existe concretamente na realidade, ou seja, a paisagem e as suas descontinuidades. Analisada dentro de uma visão sistêmica, a paisagem (ou o seu modelo teórico, o geossistema) apresenta quatro características principais de organização: 1ª)- CARÁTER MULTIVARIÁVEL: cada sistema é composto por um determinado número de variáveis, proporcionalmente ao nível de generalização adotado (a medida que se amplia a escala de análise, ou seja, de uma vertente para um vale, uma bacia, uma região, etc., amplia-se, proporcionalmente, o número de variáveis envolvidas). No caso do geossistema, que apresenta um número de variáveis dos mais elevados em função da complexidade do conteúdo paisagístico, há a necessidade de que se estabeleça uma seleção entre elas, seja em função da informação de que se dispõe, seja pela importância assumida por cada uma das variáveis na estruturação do sistema. Cada uma destas variáveis pode ser considerada, por sua vez, numa outra escala, também como um sistema, de tal forma que, como afirma Bertrand (1986), “o elemento não é mais elementar e ele possui sua própria complexidade”(p.285). Figura 17- A superfície da Terra representa diferentes escalas de paisagens contidas dentro de paisagens ainda maiores, até que cheguemos ao maior tamanho e nível de complexidade das paisagens, que é o próprio planeta. Quanto maior é a escala, maior o número de elementos e, consequentemente,de interações entre estes elementos (como no caso da paisagem da Potencial ecológico Exploração biológica Geossistema Ação antrópica geomorfologia +clima +hidrologia vegetação + solo +fauna Fig. 16- Esquema de representação do Geossistema segundo BERTRAND (1972) 31 esquerda, que representa uma grande Região Natural, alpina, formada por um número variado de Geossistemas). Já na paisagem da direita, a menor escala de abordagem reduz as interações e a complexidade, permitindo-nos evidenciar um dos Geossistemas que compõe a Região Natural mais ampla. 2ª)- CARÁTER GLOBAL DE TOTALIDADE: tal característica refere-se ao fato de que um sistema não é simplesmente a soma dos seus elementos, visto que, como afirma Branco77 “(...) o sistema é um todo não redutível a suas partes. O todo é mais que uma forma global: ele implica o aparecimento de qualidades emergentes as quais não existiam nas partes”(p.66). Em outras palavras, de acordo com a segunda lei da termodinâmica, o todo é maior do que a soma das partes, o que implica na geração de uma “estrutura”(efeito sinérgico) a partir da combinação dos elementos
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