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OAB – SÃO PAULO COMISSÃO: DIREITO DO TERCEIRO SETOR TERCEIRO SETOR E AS TRANSFORMAÇÕES DO ESTADO – DRA. MARIA NAZARÉ LINS BARBOSA 1. Introdução Nos últimos anos, a imprensa brasileira tem registrado uma recorrente associação entre “ONGs” e democracia, ora positivamente, ora negativamente. Assim, um editorial do jornal “O Estado de São Paulo” as qualificou de “inimigas da democracia” e vozes autorizadas já se levantaram para alertar contra a “dissolução democrática” promovida por determinadas ONGs[1]. Outros afirmam que o envolvimento político e a agenda dúbia acabarão por corroer o apoio que recebem[2]. Finalmente, outros associam positivamente ONGs e democracia: “as ONGs representam vários segmentos e são instrumentos de participação direta da população”[3]. O presente texto traz elementos para refletir sobre a relação entre as ONGs e a democracia no contexto brasileiro. Inicialmente, assinalamos em linhas gerais a fragilidade do nosso regime democrático, em função das limitações do modelo presidencialista e da fragmentação do nosso sistema partidário. A seguir, associamos ONGs e democracia, sugerindo como o terceiro setor pode contribuir para a consolidação do regime democrático. Para tanto, no caso brasileiro, apontamos como pré-condição distinguir “quem é quem” no universo do terceiro setor, pois muitos dos equívocos de análise partem dessa imprecisão. Na seqüência, consideramos aspectos do financiamento das ONGs pelo poder público, e suas implicações quanto às atividades políticas das ONGs. Feitos tais esclarecimentos, entendemos útil lançar uma base de diálogo entre as ONGs e o Estado pautada na transparência. A nosso ver, é possível e necessária uma conciliação entre as ONGs e o Estado, pois um terceiro setor fortalecido, vigoroso e independente é elemento útil para a consolidação do regime democrático. 2. Instituições democráticas e governabilidade As instituições democráticas emergiram no bojo da tradição liberal. Há desde logo uma tensão inerente à aposta democrática: pressupõe a aceitação da desigualdade no plano econômico; e propõe igualdade no plano político. Coerentemente, a realização da democracia tem encontrado obstáculos práticos e teóricos, entre os quais as limitações dos sistemas de representação, o perigo de ingovernabilidade ou as dificuldades trazidas com a burocratização. Em regimes democráticos espera-se ampla possibilidade de representação dos diversos interesses (mediante partidos) e governabilidade, isto é: o governo deve conseguirimplementação daquelas políticas cuja formulação se deu em um processo aberto à participação e à contestação. Assim, os perigos que rondam os regimes democráticos são o isolamento na formulação das políticas ou a paralisia em sua execução. Os dois sistemas de governo adotados por Constituições liberais - presidencialista ou parlamentarista - procuram contorná-los, privilegiando, em maior ou menor grau, conforme o caso, a representatividade ou a governabilidade. Não se trata de eleger qual dessas formas seja a “melhor”; o fundamental é que as instituições sejam adequadas às condições em que se inserem. No modelo de presidencialismo adotado no Brasil, o chefe de governo, legitimado em eleições, deve negociar com o Legislativo as políticas a serem implementadas, posto que as coalizões eleitorais não implicam coalizões governativas. O sistema entre nós é pluripartidário, porém a fragilidade das regras de acesso à representação acarreta uma fragmentação excessiva. A aprovação de qualquer projeto político importante exige negociações contínuas e específicas. O processo não flui, criando condições favoráveis ao clientelismo. O quadro se agrava ainda mais com a lentidão da máquina burocrática, pois é da essência da ordem democrática que as decisões tomadas sejam implementadas. Ao longo do século XX o fenômeno da burocratização alcançou uma extensão sem precedentes, e o Brasil não foi alheio a este processo. O Estado foi chamado a formular e a implementar políticas em âmbitos cada vez mais extensos e diversos. Com a mudança nas relações entre o Estado e a sociedade, o aparato executivo e o contingente de burocratas cresceram vertiginosamente (apontando para uma nova relação entre os poderes). A extensão na máquina favoreceu o corporativismo e o descontrole, de modo a dificultar a implementação de políticas dependentes da ação concreta de inúmeros funcionários. A par disso, os conhecimentos cada vez mais especializados requeridos para as tomadas de decisões em novos âmbitos demandam a presença dos burocratas neste espaço, e nos levam a indagar sobre os efeitos de tal ação para a ordem democrática. Em suma, no cotidiano do Estado, hoje, os burocratas participam do processo decisório em espaços de contornos indefinidos. Paralelamente, cresce a desconfiança em relação ao Estado e aos políticos, e o terceiro setor emerge como novo ator na arena política. 3. O terceiro setor e a democracia As ONGs têm crescido notavelmente nas três últimas décadas, constituindo o chamado "terceiro setor”. Trata-se - preliminarmente e de forma genérica - do espaço institucional das organizações privadas, sem fins lucrativos, voltadas para a produção de bens ou de serviços públicos. A expressão terceiro setor vem sendo utilizada em contraposição a um primeiro setor, identificado com o Estado, e a um segundo setor, referido à iniciativa privada e às atividades do mercado. Alguns associam o florescimento das ONGs ao declínio dos partidos políticos, temendo que elas ameacem o Estado de Direito e as instituições democráticas. Nessa linha de pensamento, as ONGs pretenderiam substituir os partidos políticos na apresentação de projetos de políticas públicas.[4] A democracia representativa seria a “partidocracia”, e conseqüentemente as ONGs seriam antidemocráticas. Carlos Estevam Martins, a propósito, chega a afirmar: “...os democratas mudaram de idéia. Convertidos em ex-democratas, abandonam os fundamentos do regime democrático: os valores (participação política) e as instituições (os partidos políticos, sua inserção nos processos decisórios, seus desdobramentos nas lutas ideológicas). Simultaneamente, o espaço da esfera pública que, por justiça, deve caber aos valores e as instituições típicas da democracia foi invadido e ocupado por valores e instituições absolutamente impróprios, essencialmente incapazes de assegurar o princípio da soberania popular (...) Todos nós , como cidadãos, somos vítimas dessa injustiça, mas nem sequer nos damos conta de que esse estado de coisas decorre, dentre outros fatores, do comportamento anti-ético dos meios de comunicação, das igrejas, dos sindicatos e das ONGs que se valem de recursos inerentes às suas respectivas esferas para invadir e colonizar o campo específico da política.”[5] Em suma, as ONGs são criticadas porque suas atividades não foram sancionadas por um processo democrático clássico; porque criticam ou se opõem às políticas de governos legitimados por este mesmo modelo clássico de democracia; e, ainda, porque gozam de privilégios fiscais (isenções, subsídios), impondo um custo ao Estado e à sociedade. Outros autores associam positivamente ONGs e democracia. Robert D. Putnam observa que o enfraquecimento das relações comunitárias repercute na fraqueza das instituições políticas. A queda do comparecimento às urnas, a alienação política e a crescente desconfiança em relação às instituições políticas é um fenômeno relacionado à desintegração dos laços sociais. Há evidências empíricas de que o “capital social” - cooperação voluntária, engajamento cívico manifestado em associação de moradores, clubes esportivos - influencia de modo incisivo a vida pública.[6] Tal constatação evoca a obra clássica de Tocqueville,descrevendo a Democracia na América: “Americanos de todas as idades, todas as posições sociais e todos os tipos de disposição estão sempre formando associações... Assim, o país mais democrático do mundo de hoje é aquele em que os homens levaram à mais alta perfeição de nosso tempo a arte de buscar em conjunto os objetos de desejos comuns.” A aguçada percepção de Tocqueville permitiu-lhe observar que na Europa, as idéias de liberdade não encontravam aquele conjunto de condições favoráveis existentes nos Estados Unidos da América. Na Europa, um passado histórico de instituições, crenças, costumes e opiniões constituiriam o que Tocqueville denominou de “estado social aristocrático”. Assim, concluiu que, com exceção da Inglaterra, a democracia na Europa corria o risco de não se consolidar sobretudo em função do Estado. Essas considerações nos parecem úteis para contextualizar a ação das ONGs na formulação e controle da execução de políticas públicas, mediante lobbies específicos, disseminação de informações ou denúncias. Elas não substituem os partidos, mas surgem como atores que canalizam interesses dos diversos segmentos da sociedade civil não suficientemente representados ou defendidos no âmbito dos partidos. Tem-se criticado muito, entre nós, a postura crítica das ONGs em relação às políticas governamentais. Porém, seu discurso político deve ser contextualizado no âmbito de um sistema que reconhece a liberdade de expressão dos cidadãos também no âmbito coletivo, como valorização de pluralismo, e no qual a representatividade dos partidos e a governabilidade sofrem os sérios condicionamentos apontados. As ONGs e a democracia no Brasil No Brasil, o florescimento das organizações da sociedade civil é paralelo ao ressurgimento do regime democrático, o que sugere uma associação positiva entre ONGs e democracia. Porém, sob a denominação “ONGs” encontra-se um contingente por demais heterogêneo, o que exige, entre nós, para melhor clarificar as relações entre ONGs e democracia distinguir “quem é quem” neste universo. 4. Quem é quem no universo do terceiro setor O universo do chamado terceiro setor engloba entidades de formas e de fins muito diversos. O Banco Mundial, por exemplo, refere-se às ONGs para designar variadas organizações, algumas das quais estão constituídas formalmente e outras apenas de maneira informal, caracterizadas primordialmente por ter objetivos humanitários ou de cooperação, buscando geralmente aliviar o sofrimento, oferecer serviços sociais básicos, proteger o meio ambiente ou a defesa de direitos (“advocacy”). Nessa acepção, muitas entidades que compõem o setor sem fins lucrativos - tais como universidades privadas ou institutos de pesquisa - não seriam ONGs.[7] No Brasil, as entidades sem fins lucrativos revestem-se juridicamente da forma de associações ou fundações de direito privado. As associações sem fins lucrativos de caráter beneficente estão relacionadas com o apelo à caridade para socorrer os desvalidos: asilos, creches. No Brasil, mediante a obtenção de uma série de registros - utilidade pública, certificado de fins filantrópicos, - podem obter privilégios fiscais - imunidade e isenções diversas - e receber até mesmo subvenções oficiais. As fundações são pessoas jurídicas de direito privado, com patrimônio próprio, atividade altruística e fim não lucrativo, estando sujeitas à aprovação e fiscalização do Ministério Público, também podendo se habilitar ao gozo de benefícios fiscais. Mas, entre nós, clubes, hospitais, escolas e universidades privadas podem se revestir da forma de associações ou fundações sem fins de lucro. Em alguns casos, atendem um público majoritariamente de elite. No entanto – com amparo na Constituição de 1988- usufruem da isenção (ou imunidade) às contribuições para a seguridade social, em muitos casos sem contrapartida equivalente. Embora a fiscalização tenha sido incrementada nos últimos anos, permanece a dúvida quando à justiça do benefício. Na verdade, a renúncia fiscal – neste como em outros aspectos - recebe críticas reiteradas, seja em função da insuficiência de critérios para a concessão de benefícios, seja pela falta de controle. A “CPI do Orçamento”, há cerca de dez anos, revelou como subvenções oficiais podem ser permeadas de condições de favoritismo, evidenciando casos em que a “pilantropia” foi mais favorecida pelo Governo do que a filantropia. A desorientação em relação ao assunto induz a equívocos freqüentes, com soluções inadequadas e até contraditórias. O alcance e a extensão do fenômeno sugere a necessidade de que a legislação melhor contemple as especificidades de fins e formas associativas que persigam fins úteis à coletividade, e incentive as mesmas. Uma primeira distinção No universo formal das entidades sem fins lucrativos, no Brasil, não se distinguiam – até recentemente - entidades de fim público de organizações de benefício mútuo. A distinção é relevante para estabelecer critérios de gradação de incentivos fiscais. Organizações de benefício mútuo, são instituições que não perseguem fins de lucro, mas têm como objetivo a defesa ou promoção de interesse de seus membros ou instituidores. Anna Cynthia Oliveira as exemplifica entre aquelas cuja atuação se confunde com o interesse de um partido político ou de movimentos religiosos, as sociedades e associações de produtores, fornecedores, segmentos da agricultura, indústria ou de serviços, variados grupos de auto-ajuda, associação de moradores, de mutuários do SFH, inquilinos, grêmios literários ou culturais, clubes esportivos ou recreativos, federações e associações diversas, de caráter representativo de qualquer segmento da sociedade civil - inclusive de fundações ou de ONGs -, pois as entidades representativas atuam, em princípio, na defesa de seus interesses.[8] Organizações de fim público também não perseguem lucro, mas se distinguem porque beneficiam largo espectro da população, dedicam recursos e energias ao atendimento direto de necessidades ou à defesa de direitos de segmentos politicamente débeis ou marginalizados. Beneficiam populações-meta que estão além da própria instituição, perseguindo fins públicos ou interesses sociais difusos. Como anota a autora mencionada, não basta que os estatutos da associação ou da fundação estabeleçam fim público como missão para que se alcance este caráter. As atividades efetivamente desempenhadas devem tornar possível sua comprovação. Essa distinção consta do Manual de Práticas Construtivas em Matéria de Regime Legal aplicável às ONGs elaborado pelo Banco Mundial, e é importante para melhor delimitar a relação financeira entre as ONGs e o Estado. No Brasil, a Lei nº 9.790/99 introduziu a distinção, para efeito de qualificação de uma entidade como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público-OSCIP[9]. 5. Financiamento pelo poder público e atividades políticas das ONGs no Brasil No Brasil consta que o custo da fiscalização do segmento seria maior do que a arrecadação. Apenas recentemente – em importante estudo conduzido pelo IBGE com o apoio de entidades como o GIFE e a ABONG – houve a divulgação de dados elementares, como por exemplo, nº de entidades cadastradas no CNPJ em tal ou qual categoria. No entanto, não sabemos quantas, por categoria, gozam de imunidade; quantas declarações de imposto de renda encontram-se em atrasos significativos; quais os volumes globais de receita e despesa em cada categoria. Assim, este é um primeiro tópico a ser enfrentado para esclarecer a relação financeira entre as ONGs e o Estado. Atividade política das ONGs A atividade política das ONGs situa-se fora dos partidos. A matéria tem sido objeto de análise cuidadosa em diversos contextos. Neste tópicos, resumimos consideraçõesapresentadas por Anna Cynhthia Oliveira no estudo mencionado, pois nos parece uma pauta útil para reflexão. Nos países de tradição anglo-saxônica, há restrições às atividades políticas das ONGs de fim público. O apoio financeiro do Estado impede que as organizações beneficiadas apóiem candidato a cargo político ou algum partido político. No entanto, atividades políticas de caráter educativo são admitidas, desde que observem certas condições: devem concorrer para a consecução dos objetivos da entidade, divulgando informação comprovada e a opinião de especialistas, consistindo de iniciativa claramente destinada a capacitar o público e as autoridades governamentais para que compreendam e discirnam, com melhor juízo, sobre determinados assuntos. No Canadá, as infrações são punidas drasticamente com a perda de incentivos. Nos Estados Unidos, desde 1954 as ONGs que recebem privilégios fiscais são proibidas de participar de campanha política para o preenchimento de cargos públicos. A proibição justifica-se pela tese da “neutralidade”, a saber: o contribuinte do imposto não deve ser compelido a subsidiar, direta ou indiretamente, a ação política de grupos ou correntes com as quais não concorda. No Brasil, a questão deve ser ponderada tendo em conta as circunstâncias políticas peculiares. Como assinala a autora, trata-se de verificar a conveniência de disciplinar a ação das ONGs na arena política . Cabe indagar se seria razoável no Brasil impor às ONGs que têm acesso a fundos públicos restrições análogas àquelas vigentes no Canadá ou nos EUA. Nessa ótica, a proteção estatal compromete a imparcialidade. Porém, no Brasil, sabe- se que o Estado controla a contribuição obrigatória a sindicatos, federações e confederações como SESI, SENAC, SESC, SEBRAE. Seria contraditório reconhecer a representantes dessas entidades capacidade de participação política que se queira negar às ONGs. Por outro lado, as carências sociais são tamanhas que poderia ser contraproducente impor restrições ao exercício de papel importante desempenhado pelas ONGs que se ocupam de ações educativas baseadas na disseminação de informações. No Brasil, ressaltamos que a possibilidade de doações de parlamentares, a fundo perdido, no orçamento, beneficiando entidades de fachada, ainda repercute negativamente e prejudica a imagem do terceiro setor como um todo. Por isso, na agenda do debate, deve-se tender à extinção de tal tipo de subvenção. Paralelamente, admitimos que seja útil, também entre nós, a vedação de engajamento de ONGs beneficiadas com recursos públicos em campanhas eleitorais. 6. As ONGs e as Políticas Públicas Nos âmbitos de formulação e controle situam-se tópicos importantes da agenda, como a definição da atuação política das ONGs fora dos partidos e a transparência e accountability necessários no acesso a fundos públicos. Mas, além do papel de crítica e denúncia, cumpre reconhecer o papel político - não partidário - que as ONGs desempenham e podem desempenhar construtivamente no Brasil complementando ou executando políticas públicas, em especial nos âmbitos de assistência e educação. Este reconhecimento porém requer esclarecimentos e também passa por ajustes de ordem jurídico-fiscal. O papel das ONGs em atividades de interesse público pode ser reforçado pelo Estado mediante política fiscal de incentivos fiscais - isenções, imunidades – concedidos, porém de modo criterioso. Por outro lado, há interesses que apenas o Estado pode prover, e deve ser reconhecida a limitação do espaço de atuação das ONGs. No âmbito da complementaridade a relação entre o Estado e as ONGs revela-se mais promissora. O Estado pode disseminar parcerias com as ONGs financiando projetos específicos, mediante concurso ou licitação entre ONGs, segundo critérios preestabelecidos, que incluem qualidade do atendimento e prestação de contas. Mas, para tanto, será necessário lançar bases para o diálogo, reconhecendo, por uma lado, o papel desse novo ator e exigindo controle e responsabilidade em sua atuação. As bases para o diálogo No Brasil, o número de pessoas ocupadas no terceiro setor cresceu cerca de 30% entre 1991 e 1995, percentual muito superior à evolução de 2% do total de empregos no país no mesmo período. Estima-se que o terceiro setor envolva já 1,5 milhão de assalariados, cerca do triplo de servidores federais na ativa. O número de entidades também tem crescido. Em 1991 havia cerca de 200 mil entidades registradas como sem fins lucrativos na Secretaria da Receita Federal[10] . Estudo recente aponta em 2002 cerca de 275 mil[11]. Tais números manifestam a crescente importância das ONGs. De fato, o Governo tem manifestado atenção para o assunto. Em seu momento, o Conselho da Comunidade Solidária realizou rodadas de interlocução política sobre o “Marco Legal” das ONGs reunindo entidades representativas de ONGs e de fundações filantrópicas. A lei 9.608/98 (que regulamentou o trabalho voluntário) e a lei nº 9.790/99 (a lei das OSCIPs) são frutos desse esforço. No entanto, são ainda necessários ajustes jurídicos e fiscais aptos a estabelecer uma base de transparência nas relações entre as ONGs e o Estado. Como aspectos práticos, no âmbito da Secretaria da Receita Federal, conviria ampliar e aprimorar a divulgação dos dados que permitam uma aproximação mais informada sobre a extensão e a identidade do terceiro setor. No âmbito do Congresso, seria preciso suprir lacunas da legislação, sendo oportuno rever o incentivo às doações de pessoas físicas e jurídicas às ONGs, a fim de favorecer esse importante mecanismo de estímulo ao segmento. Finalmente, como condição preliminar para maior transparência, seria útil a simplificação dos procedimentos vigentes para gozo de determinados benefícios. Hoje, por exemplo, a multiplicidade de normas nas três esferas de governo (utilidade pública federal, estadual em municipal, sem que o certificado em uma instância repercuta nas demais) impõe às entidades um sensível ônus burocrático e administrativo, que prejudica a realização de suas atividades-fim. As organizações de pequeno porte provavelmente não cumprem todas as normas que lhe são aplicáveis, o que as torna vulneráveis em suas relações jurídicas, e as condiciona a comportamentos defensivos e poucos transparentes.[12] 7. Conclusão O papel que as ONGs podem e devem desempenhar construtivamente no fortalecimento do regime democrático não se confunde com o papel dos partidos políticos. Para tornar mais claro este aspecto, impõem-se em outros países restrições às atividades políticas das ONGs financiadas pelo poder público. No Brasil, parece prematuro uma regulamentação estrita neste particular, embora seja desejável, desde logo, a proibição do engajamento de entidades beneficiadas com recursos públicos em campanhas eleitorais. Esta vedação inibiria distorções como as verificadas pela “CPI do Orçamento”, que abalam a confiança pública em relação ao terceiro setor como um todo. Contudo, é necessário, principalmente, estabelecer uma gradação clara de incentivos entre entidades sem fins lucrativos de fim público - que complementam a ação do Estado - de outras que beneficiam principalmente seus próprios membros ou instituidores. É preciso, pois, distinguir os desiguais no universo do terceiro setor, sob o enfoque- jurídico e fiscal. A nosso ver, trata-se de uma pré-condição para delimitar outras restrições às atividades políticas das ONGs. Sob normas claras de identidade e de acesso a fundos públicos, o terceiro setor será um parceiro ainda mais promissor na implementação de políticas públicas. O incentivo às ONGs - com sua variada gama de valores e interesses dos diversos segmentos da sociedade civil - poderá contribuir significativamente para ofortalecimento das instituições democráticas no Brasil. * Maria Nazaré Lins Barbosa é advogada formada pela USP, onde fez aperfeiçoamento em Direito Econômico e Tributário, Mestre e Doutoranda em Administração Pública e Governo pela FGV. Professora de Direito do Terceiro Setor na EDESP/FGV. Membro da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP. [1] Reale, Miguel “Dissolução democrática”, O Estado de São Paulo, 04-04-95, pg 2 [2] Goldemberg, José “O futuro das ONGs, “O Estado de São Paulo”, 05.11.96. pg.2 [3] Bicudo, Hélio, “As ONGs e a democracia”, Folha de São Paulo, 16.01.95 [4] Reale, Miguel “Dissolução democrática”, O Estado de São Paulo, 04-04-95, pg.2 [5] Martins, Carlos Estevam. “Da globalização da economia à falência da democracia”, 1996 (mimeo) [6] Putnam, Robert D “Capital social e democracia”. Braudel Papers nº 10, 1995 [7] Banco Mundial. Manual de prácticas constructivas en materia del régimen legal aplicable o las organizaciones no gubernamentales. Borrador para discusión. 1997. Endereço eletrônico: http://www.vita.org/techenet/ong [8] Oliveira, Anna Cynthia. “Construindo um Marco Regulatório para a Consolidação do Setor Privado não Lucrativo e de Fins Públicos no Brasil” - Estudo para o Conselho Comunidade Solidária, novembro de 1996 (mimeo) [9] Para uma breve análise sobre a qualificação de OSCIP remetemos o leitor a nosso artigo “OSCIP: avanços e perspectivas”, disponível na Revista Eletrônica Integração, da FGV (www.fgvsp/publicações). [10] Gazeta Mercantil, 14.10.97 “Terceiro setor já é maior que o governo” [11] As Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil, Estudos & Pesquisas, 2002, IBGE, IPEA, GIFE e ABONG, disponível em www.abong.org.br [12] Braga, Gustavo L. et alli .” Legislacion vigente para el sector privado e sin fines lucrativos en Brasil”, in “Marco regulador de las organizaciones de la Sociedad Civil en Sudamerica” Anna Cynthia Oliveira Ed., 1ª ed., 1997
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