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CULTURA, EDUCOMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO INCLUSIVA: cenários e tendências E=mc² Gilma da Silva Pereira Rocha Heider Carlos Matos organizadores CULTURA, EDUCOMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO INCLUSIVA Cenários e Tendências AVALIAÇÃO, PARECER E REVISÃO POR PARES Os textos que compõem esta obra foram avaliados por pares e indicados para publicação. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129 C54 Cultura, educomunicação e educação inclusiva: cenários e tendências 1.ed. [livro eletrônico] / organizadores Gilma da Silva Pereira Rocha, Heider Carlos Matos. – 1.ed. Curitiba-PR, Editora Bagai, 2021. 238p. E-Book. Bibliografia. ISBN: 978-65-81368-29-6 1. Comunicação. 2. Cultura. 3. Educação inclusiva. I. Rocha, Gilma da Silva Pereira. II. Matos, Heider Carlos. 07-2021/102 CDD 379.26 Índice para catálogo sistemático: 1. Educação inclusiva: Cultura 379.26 https://doi.org/10.37008/978-65-81368-29-6.25.07.21R Este livro foi composto pela Editora Bagai. www.editorabagai.com.br /editorabagai /editorabagai contato@editorabagai.com.br ISBN 978-65-81368-29-6 9 786581 368296 > https://doi.org/10.37008/978-65-81368-29-6.25.07.21 https://editorabagai.com.br https://editorabagai.com.br https://www.instagram.com/editorabagai/?hl=pt-br https://www.instagram.com/editorabagai/?hl=pt-br https://www.facebook.com/editorabagai/ https://www.facebook.com/editorabagai/ malito:contato@editorabagai.com.br malito:contato@editorabagai.com.br Gilma da Silva Pereira Rocha Heider Carlos Matos organizadores CULTURA, EDUCOMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO INCLUSIVA: cenários e tendências 1.ª Edição - Copyright© 2021 dos autores Direitos de Edição Reservados à Editora Bagai. O conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) respectivo(s) autor(es). As normas ortográficas, questões gramaticais, sistema de citações e referencial bibliográfico são prerrogativas de cada autor(es). Editor-Chefe Cleber Bianchessi Revisão Os autores Projeto Gráfico Jhonny Alves dos Reis Conselho Editorial Dr. Adilson Tadeu Basquerote – UNIDAVI Dr. Ademir A Pinhelli Mendes – UNINTER Dr. Anderson Luiz Tedesco – UNOCHAPECÓ Dra. Andréa Cristina Marques de Araújo - CESUPA Dra. Andréia de Bem Machado – UFSC Dra. Andressa Graziele Brandt – IFC - UFSC Dr. Antonio Xavier Tomo - UPM - MOÇAMBIQUE Dra. Camila Cunico – UFPB Dr. Carlos Luís Pereira - UFES Dr. Cledione Jacinto de Freitas – UFMS Dra. Clélia Peretti - PUCPR Dra. Daniela Mendes V da Silva – SEEDUCRJ Dra. Denise Rocha – UFC Dra. Elnora Maria Gondim Machado Lima - UFPI Dra. Elisângela Rosemeri Martins – UESC Dr. Ernane Rosa Martins – IFG Dr. Everaldo dos Santos Mendes - PUC-Rio – ISTEIN - PUC Minas Dr. Helio Rosa Camilo – UFAC Dra. Helisamara Mota Guedes – UFVJM Dr. Humberto Costa - UFPR Dr. Juan Eligio López García – UCF-CUBA Dr. Juan Martín Ceballos Almeraya - CUIM-MÉXICO Dra. Karina de Araújo Dias – SME/PMF Dra. Larissa Warnavin – UNINTER Dr. Luciano Luz Gonzaga – SEEDUCRJ Dr. Luiz M B Rocha Menezes – IFTM Dr. Magno Alexon Bezerra Seabra - UFPB Dr. Marciel Lohmann – UEL Dr. Márcio de Oliveira – UFAM Dr. Marcos A. da Silveira – UFPR Dr. Marcos Pereira dos Santos - SITG/FAQ Dra. María Caridad Bestard González - UCF-CUBA Dra. Nadja Regina Sousa Magalhães – FOPPE-UFSC/UFPel Dra. Patricia de Oliveira - IF BAIANO Dr. Porfirio Pinto – CIDH - PORTUGAL Dr. Rogério Makino – UNEMAT Dr. Reginaldo Peixoto – UEMS Dr. Ricardo Cauica Ferreira - UNITEL - ANGOLA Dr. Ronaldo Ferreira Maganhotto – UNICENTRO Dra. Rozane Zaionz - SME/SEED Dra. Sueli da Silva Aquino - FIPAR Dr. Tiago Eurico de Lacerda – UTFPR Dr. Tiago Tendai Chingore - UNILICUNGO - MOÇAMBIQUE Dr. Willian Douglas Guilherme – UFT Dr. Yoisell López Bestard- SEDUCRS SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .............................................................................................. 7 PARTE I – INFÂNCIA, ESPAÇOS PEDAGÓGICOS E EDUCAÇÃO INCLUSIVA ......................................................................................... 9 A INFÂNCIA COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL E CULTURAL DO SUJEITO .10 Jonaso José dos Passos Dias | Marcelo Brandão Araújo ALIENAÇÃO PONTUAL EM BEBÊS E CRIANÇAS PEQUENAS COM SINAIS DE AUTISMO NA ESCOLA INFANTIL ......................................................... 19 Dorisnei Jornada da Rosa | Andrea Gabriela Ferrari A ASSESSORIA DE INCLUSÃO: UMA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO ESTRUTURANTE NA PREVENÇÃO DO AUTISMO .................................... 30 Dorisnei Jornada da Rosa | Andrea Gabriela Ferrari A ETNOMATEMÁTICA E O ALUNO COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA (TEA): O LÚDICO NA CONTRIBUIÇÃO DO CONHECIMENTO MATEMÁTICO ............................................................................................... 42 Aldeni Melo de Oliveira | Giovanne Tavares Ferreira | Alessandra Prado Vilhena | Ivone Jacarandá Braga Mendes | Andreia Aparecida Guimarães Strohschoen PARTE II – EDUCAÇÃO DE SURDOS ............................................54 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS INCLUSIVA PARA ALUNOS COM NECESSIDADES ESPECIAIS (CADEIRANTES): REALIDADE IMPRESCINDÍVEL NAS ESCOLAS ............................................................... 55 Maria da Conceição Moreira | Maria Izabel Nunes A PEDAGOGIA VISUAL NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DO ALUNO SURDO E O USO DE METODOLOGIAS DIFERENCIADAS ...........69 Vanessa Alves Pereira | Marcelo Máximo Purificação | Elisângela Maura Catarino | Jucineide Lima de Almeida Silva POSSIBILIDADES DIDÁTICO-METODOLÓGICAS NA EDUCAÇÃO DE SURDOS COM O USO DO WHATSAPP ......................................................... 77 Alexandre Moura Lima Neto | Alessandra Anchieta Moreira Lima de Aguiar EDUCAÇÃO INFANTIL BILÍNGUE: REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DO PROFESSOR SURDO NO DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM EM CRIANÇA SURDA ........................................................................................... 91 Adelaine Valéria Gomes Lima | Francisca Janaína de Araújo Sampaio O INTERESSE DA COMUNIDADE SURDA SOBRE VISITA NOS MUSEUS DA CIDADE DE RECIFE - PE....................................................................... 103 Darlene Seabra de Lira | Ednéa do Nascimento Carvalho | Luciana Gonçalves de Carvalho PARTE III – MÍDIA, EDUCAÇÃO E ESTUDOS CULTURAIS ....117 MÍDIA E EDUCAÇÃO: ANÁLISE DE UM EPISÓDIO DE VÍDEO EDUCATIVO DA MULTIRIO ....................................................................... 118 William Soares dos Santos | Natália Freitas de Mello Silva FAKE NEWS SOBRE OS CORPOS GORDOS À LUZ DA REGULAÇÃO, BIOPODER E BIOPOLÍTICA ...................................................................... 133 Carla Daniella Teixeira Girard | Annebelle Pena Lima Magalhães Cruz | Cristiane Marina Teixeira Girard | Edmary Teixeira Moreira | Rosiane do Socorro Gomes Fontoura | Heider Carlos Matos ENTRE ESTRATÉGIAS DE CONSUMO, JOGOS DE SABER-PODER E ESTATÍSTICAS: REFLEXÕES SOBRE (OS DISCURSOS DE) INCLUSÃO .................................................................................................... 146 Annebelle Pena Lima Magalhães Cruz | Anderson Lincoln Vital da Silva | Luiz Marcelo Magalhães Cruz | Heider Carlos Matos FUNDAMENTOS DA NARRATIVA TRANSMÍDIA: UM RIZOMA CONCEITUAL ............................................................................................... 158 João Pedro de Azevedo Machado Mota A CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA DA FELICIDADE ...................................... 172 Sheila Maria Pereira Fernandes A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA IDENTIDADE DO SUJEITO .................... 179 Sheila Maria Pereira Fernades IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DOCENTE NA PANDEMIA DO COVID-19: REFLEXÕES A PARTIR DOS ESTUDOS CULTURAIS ............. 190 Laíne Rocha Moreira | Larici Keli Rocha Moreira A ECOPEDAGOGIA SOBRE A ÓTICA DOS ESTUDOS CULTURAIS ....... 201 Carla Daniella Teixeira Girard | Gilma da Silva Pereira Rocha | Leina Ione Braga Corrêa | Sérgio Rodrigues de Santana | Rosiane do Socorro Gomesintervir com educadores e crianças com sinais de autismo, como se fosse um “fort’da”, entrelaçando a Psicanálise e a Pedagogia. 19 Estimulação Precoce: Conforme Coriat & Jerusalinsky (2001), o terapeuta em EP trata de crianças de 0-3 anos, onde a sessão se dá conjuntamente com os que cumprem as funções materna e paterna, sendo que o eixo fundamental é a reestruturação da função materna destes, abarcando os aspectos estruturais e instrumentais de uma criança pequena com transtorno em seu desenvolvimento. Estes autores ressaltam que antes dos 3 anos, a indiferenciação dos sistemas requer uma especialidade que se ocupe unificadamente dos dois aspectos. 34 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) assim, o que caracteriza cada discurso é aquilo que está no lugar do agente, no qual o semblante se faz presente e representa o papel de ordenar e determinar, pois ele transforma os outros elementos. Consideramos nesta pesquisa os quatro discursos – o do mestre, o do universitário, o da histérica e o do analista – de Lacan (1969-1970/1992) como uma forma de ler a interação entre sujeitos tomados nos campos do social, do familiar, do educativo e do analítico. O que nos pareceu importante foi ler que as crianças com sinais de autismo estão no discurso, pois são faladas pelo outro: pais, coleguinhas, educadores e Assessoria. Esses personagens realizam atos e produções com a criança com sinais de autismo, pois eles as supõem como sujeitos, ao estarem na escola infantil. A questão é que, para ser sujeito, não basta estar na educação infantil com esses personagens, mas sim ter alguém que realize a função materna ou desdobramento dela e os aliene ao seu desejo – Desejo do Outro –, para que se funde uma cadeia discursiva. Nesse sentido, o Discurso do Mestre (Lacan, 1969-1970/1992) nos parece inaugural na vida de uma criança pequena, posto que ali se inaugura a subjetividade de um sujeito. Esse discurso somente toma valor ao ser remetido ao campo do Outro (Linguagem e função paterna) quando a criança capta, entende e se sente parte desse campo e da mensagem que lhe enviam. Nesse rumo, o discurso do mestre parece essencial, visto que, a partir do momento em que alguém ocupa um lugar de mestria para o bebê e o enlaça em seu desejo, é possível que as produções instrumentais do bebê sejam colocadas em jogo na relação com o Outro e com os outros. Dito isso, é imprescindível considerar que – visto que as crianças ficam em escolas infantis o dia inteiro para seus pais trabalharem - não se trata de substituir quem cumpre a função materna para a criança, mas sim ampliar e desdobrar isso, ao pensar que os pais são transmissores de uma linhagem e filiação e os educadores participantes da geografia psíquica das crianças, mas transitórios nas suas vidas. De qualquer forma, pensamos que seja melhor que uma criança pequena ou um bebê com sinais de autismo tenha sido alienado pontualmente ao desejo de um Outro, do que não tenha sido: é melhor que haja o educador do que não haja ninguém. Dessa forma, o termo “posições discursivas de semblante” veio a traduzir o que acontece entre um bebê e a sua educadora, quando ela se coloca em determinado giro discursivo e demanda resposta à sua mensagem. Ao fazer demandas de amor e supor um sujeito na criança com sinais de autismo, a educadora nos pareceu produzir uma 35 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva marca em forma de Alienação Pontual20. Ressaltamos que, por mais que ela seja transitória na vida da criança, entendemos que essa marca – que a educadora produz – tem um valor imprescindível na vida da criança. Acrescentamos, entre- tanto, que se colocar na posição discursiva de semblante de uma função materna ou do Discurso do Mestre não é simples, pois o desejo da educadora não pode ser anônimo, visto que evidencia que determinada criança é a sua preferida entre as outras – sendo ela quem necessita de mais atenção e acolhimento. Passemos a outro giro e, para isso, lembremos o que Lacan (1972-1973/1985) aponta, em “O Seminário 20”, de que toda mudança de posição discursiva é um signo de amor. Relacionamos que, ao terem, as educadoras, seu saber pedagógico, rotinas e projetos que implicam atuar em uma escola, é tido como pressuposto que todas as crianças tenham que se adaptar e se integrar nesse espaço. Nesse sentido, o discurso universitário tem seu valor, pois isso propõe a configuração simbólica do trabalho de um educador, visto que deve ensinar regras, cores, formas, uso da tesoura, modo de tirar fraldas, comer sozinho, etc. aos seus aluninhos. Mesmo que não sejam conteúdos formais – tendo em vista que requerem certa flexibilidade no dia a dia da rotina –, esses atos pedagógicos implicam objetivos a serem alcançados com as turmas de berçário, maternal e jardim até o final de cada semestre. Dito isso, o outro giro – o discurso da histérica –, nos parece agir como um acionador para as mudanças e as flexibilidades que se fazem necessárias para uma educadora educar uma criança. Nesse passo, essa posição discursiva de semblante propõe que a educadora movimente sua função pedagógica e amplie seu campo educativo ao inventar, criar, escutar a Assessoria e ir ao campo da Psicanálise para, imaginaria- mente, conseguir respostas de como furar a barreira autista da criança com quem ela se encantou. Passemos ao outro giro, o discurso do analista, no qual supomos que, ao se ter um representante da Psicanálise nas escolas infantis, este produzirá movimentos no campo educativo ao escutar o que não se sabe e ao fazer perguntas às educadoras sobre suas relações com as crianças, sobre as rivalidades com os pais, sobre os papéis que ocupam, sobre o que esperam das crianças e sobre quais intervenções utilizam com elas. Nessa direção, Quinet (2015) aponta que nesse 20 Alienação Pontual é o termo criado pelas autoras para diferenciar a Alienação da criança ao desejo do Outro Primordial, responsável pela matriz simbólica e filiação desta. A Alienação Pontual é a referida pelas educadoras, ao realizarem o desdobramento da função materna e manifestarem seu Desejo pelas crianças da pesquisa de forma preferencial e não anônima. 36 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) discurso o analista não faz semblante, pois ele ocupa a posição de semblante e de objeto “a” (objeto perdido). Elucidando essa questão, salientamos que a assessora de EP/PI possuía formação Psicanalítica, além de ser especialista em Estimulação Precoce (Coriat & Jerusalinsky, 2001). Dessa maneira, a Assessoria de Inclusão (EP/PI) oferecia formações Psicanalíticas das quatro operações do sujeito (Kupfer et al., 2008) e das noções teóricas dos brinquedos estruturantes ( Jerusalinsky, 1999), além de fazer uma escuta para eles e suas equipes. Tempo 2 – As crianças em assessoria No tempo do berçário, Manu foi vista pela Assessoria de Inclusão. Ela estava com um ano e três meses, estava desconectada e tinha diagnóstico de distrofia muscular. A direção da escola ressaltou que ela tinha um olhar vago, colocava a mão nos ouvidos pelo barulho, não caminhava, não sentava e não brincava com os coleguinhas. No berçário uma cena foi observada em que a edu- cadora cantava para ela a música da Dona Aranha enquanto percorria seu corpo acompanhando o ritmo da música. A educadora modificou a letra da música: Dona aranha, subiu pela parede, veio a chuva forte e a derrubou, mas dona aranha é teimosa e desobediente: sobe, sobe, sobe, não ouve, não faz nada. Já acabou a chuva, e a dona aranha, continua a subir. Ela é teimosa e desobediente, sobe, sobe, não ouve, não faz nada (Cantiga cantada pela educadora para Manu, 2014). Essa música parecia evocar uma transferência de impossibilidade, por mais que o significante teimosa merecesse uma atenção especial. Se a educadora achava a criança teimosa, havia a suposição de um sujeito na bebê. Quando lhe fora per- guntado o porquê dessa música, a educadora disse que se tratavada não obediência da criança em atendê-la, mas que ela própria também era teimosa e iria esperar que a menina lhe atendesse, lhe escutasse e lhe ouvisse. A pergunta que evocava, era se este significante – teimosa – indicava a possibilidade de a teimosa Manu advir. O segundo bebê que preocupava a equipe diretiva era Leocádio. Tinha um ano e dois meses e apresentava epilepsia e diagnóstico de autismo. Sua mãe era considerada negligente e ele havia sido internado no hospital várias vezes, em razão de um excesso de vermes e prurido no ouvido. A educadora contou que o bebê Leocádio costumava ficar muito quietinho. A direção de intervenção com 37 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva os dois bebês foi trabalhada em formação continuada da educação estruturante (ROSA,2019) e intervenções em sala do berçário, brincadeiras estruturantes, orientações posturais, escuta a pais das crianças e seus educadores. Tempo 3 – A observação e a avaliação psicanalítica das crianças pela pesquisadora, no maternal Esta etapa consistiu na avaliação psicanalítica (Kupfer, et al, 2008) das crianças aos seus três anos de idade (AP3), quando estavam no maternal. A finalidade da avaliação era observar se Manu e Leocádio ainda apresentavam sinais de autismo. A avaliação permitiu constatar que essas crianças se posi- cionavam como sujeito e que pareciam ter saído do risco psíquico do autismo. Trazemos como exemplo uma cena observada em que Manu rivaliza o amor de sua professora do maternal, Mara, e se oferecia à mesma: Manu estava sentada na lateral, sua professora ficava na ponta da mesa e os colegas nas duas laterais da mesa. A educadora enchia a colher de comida, pegava sua mãozinha e ajudava a colher chegar à sua boquinha, já na segunda colherada a educadora a enchia de comida e logo pedia para ela mesma levantar a colher e levar à boca. Em meio às colheradas, chega e se mete no meio das duas, a menina Renata, e fala algo à educadora. Imediatamente, Manu faz um som de desagrado, empurra Renata, põe as mãos no rosto da professora e puxa o mesmo para ela lhe olhar. (2016). Foi uma linda cena, em que Manu parecia ter ciúme da educadora com a menininha Renata e disputou esse espaço, o que fez com que aparecesse rivalidade e disputa pelo amor da educadora. Outra cena que nos permitiu pensar no seu posicionamento subjetivo aconteceu quando a pesquisadora estava brincando com Manu na presença da educadora – a menina se dirigiu à professora pedindo água e não à pesquisadora. Nessa cena a pesquisadora parecia representar um terceiro entre as duas. O que nos pareceu importante foi observar que a educadora lhe supunha como sujeito de desejo e atendia seus pedidos. Jerusalinsky (2012) nos aponta que não basta escutar ou se escutar, é preciso querer ser escutado ou se fazer escutar pelo outro, em uma demanda ativa. Complementando isso, Wanderley (2013) enfatiza que não basta que a criança olhe objetos ou pessoas, ou que se olhe, mas que se faça olhar e que convoque o outro em uma função de reconhecimento. 38 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Em relação à AP3 (Kupfer, et al, 2008) de Leocádio, observamos que suas respostas verbais constituíram pistas importantes que denotaram a sua saída do risco psíquico do autismo. O menino, na sala da avaliação, brincou de casinha e escondeu os bonequinhos de super-heróis no roupeiro de brinquedo. Além disso, respondeu baixinho às perguntas da pesquisadora; dentre elas, quando lhe foi perguntado se morava em casa ou apartamento, ele respondeu: “Moro em um catamento” (a família morava em uma região de catadores de lixo). Elucidando essas questões, observamos que o menino respondia e entendia as perguntas propostas na avaliação, mas notamos também que Leocádio tinha dificuldades visuais e auditivas. Depois, quando fizemos uma entrevista com a educadora, ela falou que o conhecia pouco, mas se dizia muito preocupada com a negligência materna para com ele, visto que a sua mãe estava cuidando de seus filhos gêmeos, recém-nascidos e internados no hospital com risco de vida. Nesse sentido, o menino e seus irmãos preocupavam muito os educadores da escola infantil, pois, ao que lhes parecia, os três estavam passando por negligência, fome e miséria. A escola infantil encaminhou o caso ao Conselho Tutelar e à Assistência Social da região, que indicaram a ele e seus irmãos uma casa-abrigo. AS ENTREVISTAS AOS EDUCADORES Esta etapa ocorreu em 2017 e consistiu em entrevistar os educadores, a fim de compreender como e que laços discursivos estabelecidos com as crianças podem ter contribuído para a não fixação do autismo. Os operadores clínicos utilizados se constituíram a partir da transferência (Freud, 1912/1996), da memória e descrição das cenas dos educadores do berçário de 2014 – tempo 2 da pesquisa – e do maternal em 2016 – tempo 3 da pesquisa – e na relação com a assessoria denominada Educação Estruturante (ROSA, 2019). CONSIDERAÇÕES FINAIS – ALGUMAS SURPRESAS QUE O REENCONTRO ENTRE EDUCADORES, CRIANÇAS E ASSESSORIA PERMITIU Para tal, a direção desta pesquisa trouxe surpresas ao entendermos que a Assessoria de Inclusão, denominada Educação Estruturante, mostrou-se como movimentadora dos giros discursivos e do desejo dos educadores ao intervi- 39 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva rem e participarem da subjetividade das duas crianças pequenas com sinais de autismo. Dessa forma, fez-se uma leitura de que, na cena lúdica entre educador e criança, em que a criança nos apareceu como sendo sua predileta entre as outras, esses educadores se autorizaram a fazer posições discursivas de semblante das funções materna, paterna, pedagógica e terapêutica (em Estimulação Precoce), parecendo terem produzido uma marca subjetiva, como forma de uma Aliena- ção Pontual8. Essa produção parece ter enlaçado o registro do Imaginário da criança aos lugares discursivos que percorreram, entre os campos da Educação e da Psicanálise, em ¼ de giro nos quatro discursos de Lacan. Isso nos parece o que Bhabha (1998) enfatiza como transdiciplinaridade. Também não podemos deixar de destacar que os atos educativos dos educadores tomaram uma forma de um brincar compartilhado (Wanderley, 2013) e estruturante na abertura no campo da constituição do sujeito – o que parece ter ajudado as crianças na não fixação de um quadro estrutural do autismo. Isso se dá no caso a caso. Conforme dados da pesquisa, Manu e Leocádio tiveram essa possibilidade de caírem no amor e desejo de suas educadoras, as quais os ajudaram a advir como sujeitos através das posições discursivas de semblante que operavam no dia a dia da rotina da escola. Dessa forma, arriscamo-nos em dizer que – a partir do discurso proferido pelas educadoras, ao suporem as crianças como sujeito e a partir da transfe- rência com elas – foi criado, a posteriori, significantes para a produção das cadeias discursivas das próprias crianças. Após esses laços, as crianças, ao que parece, supuseram que eram parte do desejo do desejo do Outro – das educadoras – já que queriam contentá-las, seguiam-nas com os olhares e disputavam suas atenções. Enfim, por mais que o educador não substitua o Outro Primordial, no tocante à educação infantil, cabe às educadoras, no exercício de sua função, promover condições que possibilitem o desenvolvi- mento físico e psíquico das crianças. Dessa forma, ao falar que o educador pode fazer produções discursivas semblantes das funções materna, paterna, pedagógica e terapêutica e que, posteriormente, isso pode compor aberturas no campo de um sujeito que poderá advir, nos colocamos frente a um campo de complementaridade entre o tratar e o educar. Neste passo, a significação de algo que já se deu, a de uma palavra dita – como a teimosa do berçário, por exemplo – deslocou-se para a chiclezinho da educadora do maternal, 40 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) compondo um desenrolar da rede significante,em que o sujeito Manu se representou. No caso de Leocádio, percebemos que o fato de ele estar ao “Léo” (solto), produziu um “Catamento” no amor de suas educadoras e uma posterior abertura em um “por vir” de um sujeito. Lacan (1969-1970/1992) nos mostra como é impossível pensar o sujeito desarticulado de sua inscrição no discurso. Para ele, é impensável separar o sujeito do laço constituído ao objeto pelos significantes. Para tal, é muito importante atentar às experiências de satisfação em que a criança é constitutivamente submetida em seu ser e como ela é cuidada na escola infantil. Neste sentido, Manu e Leocádio encontraram respaldo nos seus educadores, no sentido de mobilizar uma leitura nos dois. Com esta referência de sujeito, os educadores tomaram as manifestações das crianças e as colocaram em um universo de comunicação em que a intervenção do outro se constitui como uma resposta a algo que foi, de antemão, suposto como uma demanda. As reflexões e associações que permearam esta pesquisa vieram das observações das cenas relatadas pelos educadores das crianças da pesquisa, os quais, consideramos que a assessoria teve papel muito importante, quando tomada pelas posições discursivas de semblante entre o tratar e o educar, o orientar e escutar. Isso parece ter autorizado os próprios educadores, ao se colocarem nas outras posições semblantes, que ampliavam seu campo pedagógico e propiciaram aberturas subjetivas para as duas crianças. Para tal, ao se detectar sinais de autismo em um bebê ou criança pequena, trata-se de uma urgência de intervenção, em que o campo educativo, psicanalítico ou da estimulação precoce se entrelaçam, a fim de produzir movimentos e aberturas psíquicas no encapsulamento psíquico em que a criança se encontra naquele momento de sua vida. Nesse sentido, “catar” e observar quem tem um certo encantamento, preferência e carinho, ou transferência com a dita criança nos põe no campo do movimento estrutural e da possibilidade de a criança se tomar pelo campo do Outro. Será isso a prevenção em Psicanálise? Ainda, como crianças pequenas que apresentam suas estruturas psíquicas indecididas (Bernardino, 2004), supomos que o laço educativo propõe formas de amor e de se filiar à aprendizagem e ao desejo, do Desejo do Outro, no caso, dos educadores citados na pesquisa. Nesse sentido, concordamos com Sônia Motta (2002, p.109) ao dizer: “Para que haja sujeito, tem que haver encantamento”. 41 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva REFERÊNCIAS BERNARDINO, L. M. F. A intervenção psicanalítica nas psicoses não decididas na infância. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DO LEPSI, 5. 2004, São Paulo. Anais ... São Paulo: LEPSI, 2004. BHABHA, H. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. CAMARGO, C. Semblante e Verdade. Revista Latusa Digital, v. 6, n. 35, 2009. CORIAT, L.; JERUSALINSKY, A. Escritos da Criança: nº 6. Porto Alegre: Centro Lydia Coriat, 2001. FREUD, S. A dinâmica da transferência [1912]. In. 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As operações básicas são utilizadas cons- tantemente, e os cálculos mais complexos são concluídos de forma prática e adequados de combinação com os princípios matemáticos postulados. Nesta pesquisa, foram investigados os saberes matemáticos presentes nos alunos com transtorno do espectro autista (tea) a partir de análises de constru- ção de casas, embarcações, peças artesanais e indígenas, assim, tais aplicações contribuíram para construção do conhecimento Matemático. Partindo-se da observação dos alunos com transtorno do espectro autista (tea), ao identificarem a transformação do conhecimento cotidiano ao conhe- cimento científico. Propondo enveredar pela Etnomatemática, analisando o aprendizado significativo dos envolvidos, apontando a teoria constituída por David Paul Ausubel (1980) que aborda uma linha psicoeducativa que elucida os mecanismos de aprendizagem escolar, assegurando-se no estudo de como os seres humanos percebem, processam, recuperam, codificam e empregam informações. 21 Doutor em Ensino (UNIVATES). CV: http://lattes.cnpq.br/0850235689773120 22 Acadêmico em Letras (UEAP). CV: http://lattes.cnpq.br/0208805025903622 23 Especialista em Docência do Ensino Superior (GEA). CV: http://lattes.cnpq.br/1091574500846042 24 Especialização Administração, orientação e supervisão escolar (GEA). CV: http://lattes.cnpq.br/5588742033873111 25 Doutora em Ciências (UNIVATES). CV: http://lattes.cnpq.br/7057275599591162 http://lattes.cnpq.br/5588742033873111 43 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva Assim, observa-se que a Matemática ainda é vista como uma disciplina bastante exata e como “decoreba”, com formas e fórmulas pontas e acabadas. Então, objetivou-se utilizar o lúdico através da Etnomatemática para propor- cionar a construção do conhecimento Matemático para inclusão do aluno com transtorno do espectro autista. Desta forma, esta pesquisa é justificada ao ponto de abordar o lúdico para inclusão do aluno com transtorno do espectro autista, direcionando para situações experimentais e jogos com aplicabilidades do cotidiano com problemas desafiadores de maneira que o aprendiz possa estruturar seu pensamento, per- mitindo a capacidade de estruturação cada vez mais complexa do pensamento geométrico, grandezas, formas, medidas, frente aos novos desafios existentes na construção do conhecimento Matemático. Neste sentido, a intuição do observar as casas, embarcações, peças artesa- nais e indígenas tem um papel fundamental nesta construção do conhecimento, pois esta prática está rodeada de formas, desenhos, estruturas e transformações. Notam-se as propriedades Etnomatemáticas cada vez mais acessíveis e presentes na vida cotidiana, cultural e tecnológica. Este conhecimento constitui a intuição da aprendizagem significativa, que deve ser o primeiro convite à Matemática. Ao relatar os caminhos percorrido para desenvolver esta pesquisa vin- culado à educação Matemática atentando para aspectos da inclusão do aluno autista, deparamo-nos com a necessidade debuscar estruturar em algo que pudéssemos contextualizar tal investigação. Logo, as ideias da teoria de Ausubel (1980) contribuíram para melhorar os processos de ensino e de aprendizagem escolar, pois sua teoria converge para pesquisas relacionadas ao contexto escolar. REFERENCIAL TEÓRICO CONTEXTUALIZAÇÃO A APLICABILIDADE DA ETNOMATEMÁTICA Reconhecer e legitimar o saber dos alunos validando-os em sala de aula é confiar trazer para as salas de aula a “matemática de cada dia”, um desafio ao professor desta área de ensino. Este desafio coloca-se frente aos profissionais que buscam dar visibilidade e valorizar os saberes dos aprendizes no ensino da Mate- mática. Nessa ótica: 44 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) [...] tendo por base algumas tendências contemporâneas, como a etnomatemática – enquanto proposta que procura dar vez e voz aos diferentes grupos sócio-culturais a partir da valorização dos conhecimentos que professores e alu- nos geram em seus fazeres cotidianos – e elaborar uma discussão reflexiva acerca desses cursos, para observar suas interrelações, intenções e significados enquanto espaço de troca de experiências entre diversos profissionais da área da educação (SOUZA, 2007, p. 5). Alguns pesquisadores conjecturam que o campo da Etnomatemática tem capacidade gerar uma teia de interrelações, permitindo que profissionais de matemática e de outras áreas da educação possam explorar a interdiscipli- naridade. Para Pereira (2012) esta teia de interrelações possibilita: [...] analisar as condições existentes para o desenvolvi- mento da Matemática Multicultural no Brasil, além de investigar a formação de professores ligados ao assunto, tendo em vista a sua inserção em práticas de ensino reparatórias, pautadas em ações que valorizariam a cultura de comunidade relegados a subalternidades. [...] Para tanto é necessário considerar uma nova pedago- gia nesta ciência, seguindo novos desígnios teóricos, como, por exemplo: Etnomatemática, Letramento e numeramento. Tais pressupostos, aliados a observação de tradições orais e hibridismos matemáticos, seriam alvo da pratica docente, guiados pela mudança que visam à formação e a identidade do professor, não só desta, mas, também, de outras disciplinas (PEREIRA, 2012, p. 5, grifos meus). Esta linha de pesquisa também faz parte de um sistema de pensamento Matemático sofisticado. Para Mafra (2006), não se limita ao desenvolvimento de habilidades matemáticas, mas o entendimento de como fazer Matemática e, para isso, é interessante conhecer diversos métodos de trabalho em sala de aula e estes contextualizados com o cotidiano. Tal proposta [referindo-se à sua investigação] está for- temente vinculada à necessidade de refletirmos sobre a natureza do conhecimento (etno) matemático produ- zido por populações específicas e sobre a forma como esse saber pode ser discutido, trabalhado e validado em ambientes de aprendizagem, independente dos níveis de 45 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva ensino e das limitações impostas por programas de gover- nos e instituições educacionais (MAFRA, 2006, p. 6). O excerto citado foi para iniciar a investigação tendo em vista que dire- cionamos a escrita pelo assim chamado “pai da Etnomatemática”, o professor Ubiratan D’ Ambrósio. Em meados da década de 1970, o autor cunhou o termo Etnomatemática para indicar a diversidade presente no meio social e cultural que abarca métodos diversificados de operar com a matemática visando aten- der as necessidades diárias da vida das pessoas. Ademais, ainda segundo ele, “o reconhecimento, tardio, de outras formas de pensar, inclusive matemático, encoraja reflexões mais amplas sobre a natureza do pensamento matemático, [...] esse é o objetivo do programa Etnomatemática” (D´AMBRÓSIO, 2019, p. 17). [...] Etnomatemática é a matemática praticada por grupos culturais, tais como comunidades urbanas e rurais, grupos de trabalhadores, classes profissionais, crianças de uma certa faixa etária, sociedades indígenas, e tantos outros grupos que se identificam por objetivos e tradições comuns aos grupos. Além desse caráter antropológico, a etnomatemática tem um indiscutível foco político. A etnomatemática é embebida de ética, focalizada na recuperação da dignidade cultural do ser humano (D´AMBRÓSIO, 2019, p. 9). Nesta pesquisa, a aplicabilidade da Etnomatemática convergiu com o aprendizado significativo alicerçado nas ideias da teoria de Ausubel (1980), mostrando que, para ocorrer a aprendizagem, é importante explorar aquilo que o aluno já sabe. Ausubel preconiza que devemos mencionar situações didáticas com o intuito de explorar esses conhecimentos, que foram designados por ele mesmo, como conhecimentos prévios. O ALUNO COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA, O LÚDICO E A APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA A pesquisa em sala de aula através da aplicação da Etnomatemática pode representar uma das maneiras de envolver o aluno Transtorno do Espectro Autista. Para conduzir esta investigação sobre o Transtorno do Espectro Autista sentiu-se a necessidade de citar neste aporte teórico a trajetória da educação especial, assim como a legislação da educação inclusiva. Que de acordo com Mazzotta (1992), afirma: 46 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) A finalidade da educação especial é oferecer atendimento especializado aos educandos portadores de deficiência, respeitando as necessidades e individualidades, visando propiciar o desenvolvimento geral desses alunos, em seus aspectos cognitivos, traços afetuosos, linguagem, psico- motricidade e relacionamento social, promovendo não apenas o reconhecimento de suas potencialidades como sua integração na sociedade. Mazzotta (1992, p. 102). O Transtorno do Espectro Autista é um distúrbio complexo, e as diferentes características existentes se qualificam em quatro áreas fundamentais: dificuldades de processamento sensorial, dificuldades na comunicação, problemas na interação social e as questões da criança como um todo/autoestima. Segundo Cunha (2012, p. 20), “o termo ‘autismo’ provém do grego ‘autos’, que significa ‘por si mesmo’ e, ‘ismo’, condição, tendência”. De acordo com as observações do autor, as crianças geral- mente apresentam as especialidades de isolamento, igualmente demonstrada pelos esquizofrênicos, dando a impressão de que eram presos em si mesmos. Entretanto, o diferencial era que no autismo esta condição já estava presente desde muito cedo. Desta forma, prosseguindo a discussão da temática, Santos (2008) afirma que já não é aceitável recorrer a um tratamento especifico para crianças autistas, de acordo com o autor, o autismo pode variar muito em algumas características, tais como: capacidade intelectual, apropriação e prática linguística, bem como na fases do seu desenvolvimento cognitivo e motor, nível de personalidade, grau de gravidade do distúrbio, clima e estrutura familiar, bem como outras noções de outras naturezas, para o pesquisador, é importante reforçar que alguns recursos empregado durante a vida da criança, pode ser eficaz para uma criança e nem tanto para outra. Nesse aspecto, Moyles (2002) afirma que o brincar no aspecto educacional propicia formas de aprendizagens, assim como consente que os adultos também sejam perceptivos e aprendam com as crianças e suas necessidades básicas. O que servirá sempre de termômetro no desenvolvimento da aprendizagem e os professores se reconstruam replanejando e promovendo novos olhares para o processo de ensino e de aprendizagens no contexto cognitivo e afetivo por meio de práticas eficazes. De acordo com Ausubel (2003) a construção do conhecimento é significativa por definição. Torna-se um produto significativo de um processo psicológico cog- nitivo (“saber”) que abrange a interação entre ideias “logicamente” (culturalmente) significativas, ideias anteriores (“ancoradas”) proeminentes da estrutura cognitiva 47 Cultura, Educomunicação e EducaçãoInclusiva reservada do aprendiz (ou estrutura dos conhecimentos deste) e o “mecanismo” mental do indivíduo para aprender ou para adquirir e deter conhecimentos. Bem como o conceito de Ausubel (2003), Moreira (2006, p. 13), assegura que uma das formas para que ocorra a aprendizagem significativa é a predis- posição do indivíduo para aprender, e existe entre a condição e a predisposição uma relação cíclica, pois a aprendizagem já ocorrida e internalizada causa um interesse em aprender ou uma predisposição que permite o surgimento de ati- tudes e pensamentos positivos que contribuem para aprendizagem do indivíduo. Ademais, pode-se perceber que através do lúdico a criança cria formas de imaginar e fantasiar seu contexto por meio do faz de conta situações de lembranças de sua vivência cotidiana, permitindo reelaborar e interpretar o mundo à sua volta, fator importantíssimo para o desenvolvimento infantil. Por isso, é necessário conhecer a construção do processo de desenvolvimento da criança a partir da contribuição de alguns autores da área (OLIVEIRA, 2011). METODOLOGIA PÚBLICO-ALVO O estudo foi realizado em uma escola particular no município de Santana-AP, com uma aluna/pesquisadora do 5º ano do Ensino Fundamental I, no período de 17 de junho de 2019 a 22 de janeiro de 2020. A mesma realizou intervenções com aplicação de questionário com professores de Matemática do ensino Fundamental II da rede pública e privada nos municípios de Santana e Macapá - AP no corrente ano, o nome dos indivíduos foi preservado por motivo de ética e sigilo. CARÁTER DA PESQUISA A investigação feita nesta pesquisa tem caráter exploratório ao considerar as contribuições sobre o objeto de estudo, o campo de estudo que foi mapeado e as condições de manifestação desse objeto estudado. Inclui uma pesquisa-ação no ponto de vista técnico-metodológico. (SEVERINO, 2007). Assim, o caráter desta pesquisa possui a finalidade básica de desenvol- ver, esclarecer e modificar ideias para formulação de abordagens posteriores ao analisar outras problemáticas e suas hipóteses. 48 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) INSTRUMENTO DE COLETA DE DADOS Realizou-se a construção dos jogos nos aspectos de ludicidade para inclusão do aluno autista. Logo, os desenhos e mapas conceituais no início, durante e ao final foram registrados em um diário de bordo, o que de acordo com Oliveira (2017), o diário e bordo é um instrumento metodológico de estudo que quando construído durante o desenvolvimento das atividades de aprendizagem dos estudantes pode ser utilizado com o intuito de melhor compreender a proposta apresentada. CONFECÇÃO DE JOGOS NO FORMATO DE PAINÉIS COM ASPECTOS DE LUDICIDADE As atividades realizadas com os jogos no formato de painéis visaram incluir um kit solar para proporcionar energia limpa e alternativa para ligar as lâmpadas de led quando a pergunta for respondida. Para cada atividade, foi elaborado um pequeno relatório que foi usado para ordenar o diário de bordo, permitindo a melhor análise durante a realização desta investigação. Portanto, a construção dos jogos contribuiu para o objetivo deste trabalho, que é mostrar aplicabilidade de forma divertida, sustentável e inclusiva. RESULTADOS E DISCUSSÕES ANÁLISE DE RESULTADOS COM QUESTIONÁRIOS APLICADOS COM PROFESSORES DE MATEMÁTICA Foi realizada a aplicação do questionário semiestruturado com 23 profes- sores de Matemática que lecionam para o Ensino Fundamental II em 9 escolas – em Santana/AP são de duas escolas estaduais e um particular em Macapá/AP são de quatro estaduais e duas particulares. O que proporcionou os seguintes resultados: A idade dos professores entrevistados variou entre 32 e 68 e deste total, 74% eram do sexo masculino e 26% feminino. Quando perguntados qual o entendimento que possuem sobre Etnoma- temática, obteve respostas diferenciadas, então, foi realizada uma amostragem de forma aleatória de 4 dos conceitos, entre eles: Entrevistado 1: “É a arte ou a técnica de explicar, de entender, de se desenhar no contexto cultural e deve estar a serviço da construção da responsabilidade social e do cidadão”. 49 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva Entrevistado 2: “Arte empírica da modelagem matemática na prática lúdica de consolidação da aprendizagem e socialização dos saberes”. Entrevistado 3: “Entendo que deve-se levar em consideração na hora do ensino a cultura, o ambiente e a realidade do aluno”. Entrevistado 4: “É uma área da Matemática que desenvolve conceitos e fundamentos a partir de situações empíricas, inerentes a uma determinada cultura”. Quando perguntado na segunda pergunta: qual o tipo de método/lúdico você usaria para ensinar Matemática para um aluno especial? As respostas foram: jogos, música, livros, material dourado, ábaco, programas educacionais, modelagem, recursos visuais, tabuleiros, bola ao cesto, imagens e brincadeiras. Notou-se que a maioria se enveredou pelos jogos, seja ele lúdico e/ou adaptado. A pergunta posterior foi se o entrevistado tem ou já teve um aluno autista e 78% afirma ter ou já ter tido e 22% afirmam que nunca tiveram. Na quarta pergunta foi questionado: de que forma o entrevistado envolve/ envolveria um aluno autista em suas aulas? Realizou-se novamente um recorte de 5 respostas escolhidas de maneira aleatória. Respostas: Entrevistado 1: “Procuro usar materiais concreto e do cotidiano, mas ainda possuo muita dificuldade em preparar as aulas para um aluno autista”. Entrevistado 2: “Associo o assunto a realidade quando possível e jogos para melhor compreensão do conteúdo”. Entrevistado 3: “Deixando-o livre para participar nas aulas, respeitando o tempo e o limite dele”. Entrevistado 4: “Através de jogos que pudessem despertar a sua atenção”. Foi finalizando a aplicação do questionário com os professores de Mate- mática indagando quanto tempo cada um possui como professor de Matemática, obteve as seguintes respostas: 65% afirmaram já ter mais de 16 anos como professor de Matemática, 22% afirmam ter entre 13 e 15 anos, 9% tem entre 1 e 3 anos, 4% garante ter entre 10 e 12 anos como professor de Matemática, não houve registro de professores com tempo de serviço de 4 a 6 e 7 a 9 anos. Tais resultados foram de grande valia para esta investigação, pois permitiu projetar a aplicabilidade da proposta ofertada neste projeto de pesquisa como 50 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) mais uma contribuição para os professores que estão atuantes como regentes em suas salas de aulas, as quais anualmente recebem alunos inclusos. Para Rosa e Arnoldi (2006) a entrevista é um dos métodos de coleta de dados considerada como sendo uma forma coesa de procedimento do pesquisador para realizar discussões sobre determinado assunto, estabelecida inicialmente para contribuir com potência em determinado conteúdo sistemático de conhecimentos. DESENHOS E CONFECÇÕES DE PROTÓTIPOS – PAINÉIS DOS JOGOS A aplicação com os experimentos foi realizada com 4 alunos com autismo – 3 do nível 1 (leve) e 1 do nível 2 (médio), de acordo com Omairi et al. (2014) a criança autista tem a necessidade de pouco apoio. Na comunicação social, se não existir apoio, os déficits podem ocasionar prejuízos. Apresentando dificuldades em iniciar interações sociais dando respostas atípicas ou sem sucesso, ou seja, possui interesse reduzido em interações sociais. Porém, pode ser capaz de sustentar uma conversa utilizando sentenças completas e se consente envolver na comunicação, mas em alguns momentos não conseguem manter a comunicação com os demais. O desenho registrado no diário de bordo pela aluna/pesquisadora que sustentaram a construção do protótipo (FIGURA 1) como base para as ativi- dades lúdicas desta pesquisa, aqui registrado e posteriormente confeccionado. Figura 1: Desenho e protótipo para atividade lúdica Fonte: Oliveira, 2019. Para esta intervenção, os quatro alunos do 7º e 8º ano responderam duas questões: a primeirasobre soma e subtração e a segunda de raciocínio lógico 51 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva que envolveu multiplicação e soma. O aluno lia a questão na carta, escolhia a resposta e se dirigia até o painel para anexar a opção que considerava correta, caso estivesse correto, uma luz acenderia. Após a intervenção com os respectivos alunos, as primeiras questões foram ligeiramente respondidas e acertadas por 100% dos alunos envolvidos e questão de raciocínio lógico foi a questão que teve maior tempo para resposta, onde 75% acertaram no primeiro momento e 25% acertaram no segundo momento. MAPA CONCEITUAL – ANTES, DURANTE E APÓS O PROCESSO Foi usado a proposta de Moreira (1987), que baseia-se na utilização de um mapa conceitual para abordar as constatações sobre o tema, diferenciando desta forma a análise da investigação e posteriormente sistematizar o processo de (re)construção do (re)conhecimento do envolvido, contribuindo assim para o aprendizado. O mapa conceitual foi realizado em três momentos de intervenções, conforme a figura 2: Figura 2: Mapa conceitual montado pelo aluno e organizado – programa CMap Tools Fonte: Oliveira, 2019. O mapa conceitual sobre o assunto explorado contribuiu para melhor inves- tigar a proposta, e esta foi registrada no diário de bordo. Portanto, considerando o objetivo deste capítulo, que é mostrar o lúdico como proposta para o aluno autista, tal proposta foi construída com visão sustentável e com objeto de aplicabilidade no contexto social do indivíduo. 52 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) CONSIDERAÇÕES Com o desenvolver desta proposta apresentada, o ensino da Etnomate- mática foi de grande valia para melhor compreender as matemáticas empregadas através da construção de jogos com painéis com perguntas e respostas com considerações ecológicas que proporcionou a ludicidade e inclusão do aluno com transtorno do espectro autista Além de explorar a construção de casas, embarcações, peças artesanais e indígenas de forma inclusiva do conhecimento no Ensino de Exatas, foi possível explorar o aprendizado significativo, pois acredita-se que é através da aprendizagem significativa que as novas ideias aprendidas ficarão por mais tempo disponíveis na estrutura cognitiva do aluno seja ele incluso ou não. Sem receio de ser excessivo, aprender a aprender de forma significativa nada mais é do que aprender a aprender com sentido, ou com significado, esse tipo de aprendizagem permite o ancoradouro do conceito aprendido quando eles se fizerem necessárias para o sujeito. Ademais, a realização deste estudo apresentou enfoque à materialização de ideais pedagógicas de forma lúdica, essencialmente transdisciplinares, sem desconsiderar a criação disciplinar, no caso, a construção matemática inclusiva foi de extrema importância para ações e reflexões sobre um ensino de matemática que seja atuante dentro do componente curricular e fora dele. Resultando assim em uma melhor qualidade de ensino e de aprendizagem. Por fim, cabe ressaltar que as intervenções abordadas e investigadas apontam as instituições de ensino como um ambiente com amplo potencial para o processo de desenvolvimento e inclusão do autista, pois o acolhimento é essencial para que a construção intelectual e social ocorra. REFERÊNCIAS AUSUBEL, David Paul, NOVAK, Joseph e HANESIAN, Helen. Psicologia educa- cional. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980. AUSUBEL, David. P. Aquisição e Retenção de Conhecimentos: Uma Perspectiva Cognitiva. Lisboa: Plátano, 2003. CUNHA, E. Autismo e inclusão: psicopedagogia e práticas educativas na escola e na família. 4 ed. Rio de Janeiro: Wak, 2012. 53 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva MAFRA, José Ricardo e S. Espaços Transversais em Educação Matemática: uma contribuição para a formação de professores na perspectiva Etnomatemática. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação, UFRN, Natal, 2006. Disponível em: . Acesso em: 10 de Abril 2014. MAZZOTTA, M. J. S. Fundamentos de educação especial. São Paulo: Cortez, 1992. MOREIRA, Marco; BUCHWEITZ, Bernardo. Mapas conceituais. São Paulo: Editora Moraes, 1987. MOREIRA, M. A. A teoria da aprendizagem significativa e sua implementação em sala de aula. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006. MOYLES, Janet R. Só brincar? O papel do brincar na educação infantil. Porto alegre: Artmed, 2002. OLIVEIRA, Zilma de M. R. de. Educação Infantil: fundamentos e métodos. 7 ed. São Paulo; Cortez, 2011. OLIVEIRA, A. M; GEREVINE, A. M; STROHSCHOEN, A. A. G. Diário de bordo: uma ferramenta metodológica para o desenvolvimento da alfabetização científica. Revista Tempos e Espaços em Educação, São Cristóvão, Sergipe, Brasil, v. 10, n. 22, p. 119-132, mai./ago. 2017. OMARI, Claudia; VALIATI, Macia Regina Machado Santos; WEHMUTH, Mariane; ANTONIUK, Sérgio Antônio. Autismo – Perspectiva no dia a dia. 1ª Edição. Editora: Íthalia. Ano 2014. PEREIRA, Roberto S. Reparações no âmbito do rizoma numérico. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação, UEB, Bahia, 2012. Disponível em: . Acesso em: 5 de abril de 2014. ROSA, Maria Virgínia de Figueiredo Pereira do Couto; ARNOLDI, Marlene Aparecida Gonzalez Colombo. A entrevista na pesquisa qualitativa: mecanismos para a validação dos resultados. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2006. SANTOS, A. M. T. Autismo: desafio na alfabetização e no convívio escolar. 36 f. 2008. Monografia (Especialização em Distúrbios da Aprendizagem) – Centro de Referência em Distúrbios de Aprendizagem, São Paulo, 2008. SEVERINO, A. J. Metodologia do Trabalho Científico. 23ª Ed, - São Paulo: Cortez, 2007. 134 p. SOUZA, Regis L. L. Formação continuada dos professores e professoras do município de Barueri: compreendendo para poder atuar. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. USP, 2007. Disponível em: . Acesso em: 5 de abril de 2014. PARTE II EDUCAÇÃO DE SURDOS 55 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS INCLUSIVA PARA ALUNOS COM NECESSIDADES ESPECIAIS (CADEIRANTES): REALIDADE IMPRESCINDÍVEL NAS ESCOLAS Maria da Conceição Moreira26 Maria Izabel Nunes27 INTRODUÇÃO A pesquisa síntese do Trabalho de Conclusão de Curso (Moreira, 2011) trata sobre a inclusão de alunos cadeirante nas escolas pública, no intuito de achar uma reflexão crítica e construtivista. É importante salientar a extensão dessa pesquisa em relação à acessibilidade em escolas e à relevância de se estabelecer o acesso não somente no interior da unidade, mas também de se adaptar promovendo condições adequadas e eliminando o máximo de barreiras que impeçam e dificultam a circulação dos alunos. É preciso criar possibilidades para que uma criança com necessidades especiais (cadeirante) se insira na sociedade e possa exercer sua cidadania. Partindo desse contexto, o estudo científico teve como objetivo apro- fundar os conhecimentos, sendo possível também contribuir na inclusão dos deficientes físicos no ensino regular. Assim, pautado em uma metodologia de caráter qualitativo embasado na pesquisa bibliográfica e de campo, foi possível tecer uma discussão acerca do currículo abrangente com acessibilidade, incluindo a relação com a família e com a comunidade, o material pedagógico, as políticas públicas que lutam contra uma educação discriminatória que separa alunos com necessidades especiais e os colocam em classes, as ditas “classes de apoio”. REPENSANDO AS CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA O conceito de inclusão tem sido apresentado de modo muito distorcido, devido aos desacordos tanto nas práticas como nas teorias apresentadas por diversos 26 Especialista em inclusão. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9620-9057 27 Mestranda em Educação e Aprendizagem (UCB/DF). Diretora Acadêmica (Faculdade e Colégio Cerrado). CV: http://lattes.cnpq.br/1327040344141732https://orcid.org/0000-0002-9620-9057 http://lattes.cnpq.br/1327040344141732 56 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) países ou até mesmo quando se trata do Brasil, que já luta pela transformação educacional. Etimologicamente, “inclusão” significa ação ou resultado de incluir, de integrar um elemento a um todo. (SENS 2009, p. 203). Assim, por “Educação Inclusiva” entende-se o processo de inclusão das chamadas “Pessoas com deficiência”. Mantoan (2005, p. 24), como uma das defensoras da educação inclusiva no Brasil, diz que Inclusão é: É a nossa capacidade de entender e reconhecer o outro e assim, ter o privilégio de conviver e compartilhar com pessoas diferentes de nós. A educação inclusiva acolhe todas as pessoas sem exceção. É para o estudante com deficiência física, para os que têm comprometimento mental, para os superdotados, para todas as minorias e para a criança que é discriminada por qualquer outro motivo. Costumo dizer que estar junto é se aglomerar no cinema, no ônibus e até mesmo na sala de aula com pessoas que não conhecemos. Já a inclusão é estar com, é interagir com o outro. Em outro momento diz que: “é preciso que tenhamos o direito de sermos diferen- tes quando a igualdade nos descaracteriza e o direito de sermos iguais quando a diferença nos inferioriza,” (MANTOAN, 2003, p. 34). Já no que diz respeito ao conceito de integração, segundo SENS (2009, p. 213) “refere-se à ação ou ao resultado de integrar”. Interação, segundo Ferreira (1999, sp.) o dicionário, significa “resultado de integrar pessoas na junção com os outros seres no mesmo ambiente”, isso quer dizer que o ser humano necessita de um envolvimento maior com os demais. O conceito de deficiente segundo SENS (2009, p. 113) é que a “defi- ciência é a pessoa portadora de deficiência física”. O que o autor quer com essa citação mostrar que as pessoas com deficiência físicas são aquelas que têm uma anomalia em seus movimentos, seja nos membros superiores ou inferiores, ou seja, é uma paralisia em seu corpo físico. É inquestionável que existe a exclusão de pessoas com deficiência, além de ser possível identificar a discriminação, dessa forma, seria correto dizer que essas duas ações partem da mesma raíz. Segundo Ferreira (1999, p. 690), “discriminar significa diferenciar, distinguir, discernir; estabelecer diferença”. 57 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva A discriminação proíbe pessoas de ter livre arbítrio, isso implica em uma redu- ção ou na eliminação de atuação no meio social em que o indivíduo habita. INCLUSÃO OU INTEGRAÇÃO – VALORIZANDO AS DIFERENÇAS A inclusão se diferencia da integração, pois deverá ter um currículo abrangente, no qual há uma preocupação em acolher os alunos com neces- sidades especiais, para que as crianças façam parte do todo. Uma educação aberta às diferenças, sem distinção de cor, raça, como garante a Constitui- ção 1988 no seu art. 3°, “o que vai de encontro com a exclusão”, (BRASIL, 1988, sp.). Contudo, na integração, a escola tem uma inquietação apenas para receber os alunos vindos das escolas especiais que não precisam mais ficar naquele local. A Inclusão do aluno com deficiência nas escolas regulares tem apresen- tado um grande desafio em inúmeros países. São gigantescas as dificuldades de atendimento educacional, principalemnte em casos relacionados às repre- sentações na socialização de crianças cadeirantes. Dessa forma, a presença de uma criança com deficiência em sala de aula, na maioria das vezes, gera atitudes de rejeição e de desconforto nas outras crianças e também nos pro- fessores que não estão preparados para lidar com essa situação. Pelo fato de não estarem preparados, o sentimento de incapacidade predomina, desde que enfrentam dificuldades para trabalhar com o grupo de crianças deficientes em situação de aula. Segundo o Ministério da Educação e do Desporto/ Mec (2007), A deficiência física de uma pessoa abrange vários tipos de limitações motoras, como por exemplo, paraplegia, tetraplegia, paralisia cerebral e amputação. A sociedade tem demonstrado que a grande dificuldade não é conhecer o sig- nificado ou o conceito em si das palavras “inclusão” ou “deficiente”, mas sim viver na prática o que seria a aceitação desse sujeito. Podendo mostrar no dia a dia uma prática pedagógica diversificada na convivência em sala de aula, que pode tornar possível que estes conceitos façam efeito e tragam resultados tanto positivos como negativos diante da maneira como eles serão compreendidos pela comunidade escolar. 58 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) AS CONTRIBUIÇÕES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E EDUCACIONAIS NO PROCESSO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Os aspectos históricos das políticas dentro desse âmbito se fizeram presente a partir da Constituição Federal de 1988, que trouxe como um dos seus objetivos fundamentais: Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discri- minação” (art.3º, inciso IV). Definindo, no artigo 205, a educação como um direito de todos, garantindo o pleno desenvolvimento da pessoa no exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. Em seu artigo 206, inciso I, estabelece a “igualdade de condições de acesso e permanência a escola”, de que “O ensino será minis- trado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”; como um dos princípios para o ensino e garante logo em seguida, como dever do Estado, a oferta do “atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino” (art. 208 e inc. III). (BRASIL, 1988). Com as políticas de educação inclusiva, foi possível colocar como foco vários grupos de sujeitos, reconhecendo-se que esses têm sido negados na pro- moção à educação. De outra forma, as propostas de políticas inclusivas trabalham com uma abordagem que não fragmenta a população em grupos específicos. As lutas são constantes para a proteção dos deficientes físicos, dessa forma, cada grupo é identificado de maneira isolada. A partir do ano de 1990, o discurso mundial referente à educação das pessoas com necessidades especiais é abrangente em seu empenho de querer dar um norte nesse fator dos direitos. No Brasil, podemos mostrar na Nova LDB (9.394/96, p 22), Capítulo V, que trata especificamente da Educação especial, expressamente no art. 58 e seus parágrafos que dispõe o seguinte: Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar, oferecida preferencial- mente na rede regular de ensino, para educandos portado- res de necessidades especiais § 1º Haverá, quando neces- sário, serviços de apoio especializado, na escola regular, 59 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva para atender às peculiaridades da clientela de educação especial. § 2º O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possí- vel a sua integração nas classes comuns de ensino regular. § 3º A oferta de educação especial, dever constitucional do Estado, tem início na faixa etária de zero a seis anos, durante a educação infantil, (BRASIL, 1996, sp.). A LDB busca, no entanto, fazer o seu papel e levantar a discussão acerca desse tema que é tão polêmico no intuito de chegar a uma devida condição digna de expor e capacitar essas crianças em condições humanísticas. Segundo o art 60 dessa mesma lei: “Os órgãos normativos dos sistemas de ensino estabele- cerão critérios de caracterização das instituições privadas sem fins lucrativos, especializadas e com atuação exclusiva em educação[...].” O que se quer mostrar é uma luta a caminho da inclusão para que a escola tenha papel fundamental no processo de inclusão do deficiente de acordo com suas necessidades no núcleo escolar e na sociedade, isto é, exercer um direito assegurado por lei combase em políticas educacionais que facilitem uma edu- cação para todos no ambiente escolar. O Estatuto Da Criança E Do Adolescente Lei (8.069 de 13 de julho de1990) foi um marco na história da inclusão, tendo em vista que, garantiu os direitos da criança e do adolescente, além de estar em consonância com a Constituição, na qual o seu contexto constitucional é visto muitas vezes como mera declaração de direitos, essa consignação em leis reforça ainda mais as exigências que diz respeito aos direitos expressos. Dessa forma, a sociedade consegue se movimentar mais acerca dos direitos oferecidos para essa clientela e tem assegurada, de forma expressa, a sua exigência junto ao poder judiciário. Vale lembrar que, quando o ECA foi promulgado, em 1990, o conceito de inclusão ainda não era discutido como é hoje e somente com a Declaração de Salamanca, a qual reuniu vários países, começou-se a ver essa questão como um fator de decisão. O Decreto nº 914 (BRASIL, 1993): Institui a incluir a pessoa portadora de deficiência, res- peitando, as suas peculiaridades, em todas as iniciativas governamentais relacionadas à educação, saúde, trabalho, 60 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) à edificação pública, seguridade social, transporte, habi- tação, cultura, esporte e lazer. A aceitação das crianças com deficiência física nas escolas não aconteceu de forma rápida, considerando que é um processo de pequeno, médio e longo prazo, ainda não foi concluído, haja vista ser um trabalho que vem se arras- tando há mais ou menos três séculos. Hoje, como chamamos “era dos direitos”, pensa-se diferente quando se trata de inclusão dos deficientes, tendo em vista a implantação de inclusão que vem sendo debatida em vários países a partir da Declaração de Salamanca. Inclusive, no Brasil, já há um posicionamento defi- nido acerca da inclusão dos alunos com deficiência, tirando todo o preconceito visto pela sociedade. Um momento marcante para essa aceitação foi o acontecimento em 1994, no qual cerca de 80 Países assinaram a Declaração em Salamanca na Espanha, em uma organização Internacional, que proclamou as escolas regulares inclusivas como o meio mais eficaz para combater a discriminação, entre sete e dez de junho de 1994, fazendo um compromisso com uma “Educação para Todos”, além de garantir a educação especial, recomendações governamentais e organizações, entre outras, com decisões em assembléia geral, temos como apoio ao Brasil, alguns dos responsáveis pela conferência: UNESCO, UNICEF, UNDP e o Banco Mundial e outros. A Declaração de Salamnca, Brasil (1994, p.1), ressalta alguns trechos que são os seguintes: Todas as crianças de ambos os sexos, tem direito funda- mental à educação, e que e a deve ser dada a oportunidade de obter e manter o nível aceitável de conhecimentos; cada criança tem características, interesses, capacidades e necessidades de aprendizagem que lhe são próprios; os sistemas educativos devem ser projetados e os programas aplicados de modo que tenha em vista toda a gama dessas diferentes características e necessidades; as pessoas com necessidades educativas especias devem ter acesso às escolas comuns que deverão integrá-las numa pedagogia de atender essas necessidades; e, as escolas comuns com essa orientação integradora, representam o meio mais eficazes de combater atitudes discriminatórias, de criar comunidades acolhedoras, e dar educação para todos; além disso, proporcionam uma efetiva à maioria das crianças e melhoram o sistema educativo. 61 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva A Declaração Mundial sobre Educação para Todos – em Jomtien, na Tailândia –, visando as necessidades básicas de aprendizagem das crianças e adolescentes, reafirma o direito de todos, dispondo que: “Não há modo mais significativo do que este para iniciar o Ano Internacional da Alfabetização e avançar rumo às metas da Década das Nações Unidas- ONU para os Portadores de Deficiências”. Nesse mesmo confronto sobre Necessidades Educacionais Especiais, foi proposta uma Educação inclusiva que, segundo estabelecido na Conferência de Salamanca, tem como princípio fundamental garantir que: Todos os alunos aprendam juntos, sempre que possível independente das suas dificuldades e das diferenças que apresentarem. Estas escolas devem reconhecer e satisfazer as necessidades diversas de seus estudantes, adaptando-se aos vários estilos e ritmos de aprendizagem, de modo a garantir um bom nível de educação para todos (as), por meio de currículos adequados, de boa organização escolar, de estratégias pedagógicas de utilização de recursos de cooperação com as respectivas comunidades (UNESCO, 1994, p. 11). Enfim, todos os documentos vêm tornar relevante o direito à educação da pessoa com deficiência, tornando-os cidadãos “normais”, cujos direitos são garantidos. Portanto, as inclusões vêm se agregando a uma educação para todos e com um ensino em atendimento igualitário para os alunos com deficiência, porém não existem políticas que funcionem sozinhas, é preciso que todos se unam nesse desafio, preferencialmente na rede regular de ensino. Nas Escolas Públicas, todo tipo de procedimento, pedagógico ou legal, que não estabeleça respeito à diferença e a valorização de todas as possibilidades da pessoa deficiente não é inclusivo. Freire (2002, p. 66) reforça dizendo: “o respeito, a autonomia e a dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder aos outros”. Diante das colocações, inclusão não é uma forma de pegar alunos como um número a mais, é um luta inerente à educação de crianças e adolescentes, uma proposta mundial não apenas na educação brasileira, precisa ser encarado com responsabilidade e compromisso escolar. Dessa forma, para que se construa, de fato, um sistema educacional bra- sileiro inclusivo, é preciso criar no País escolas brasileiras, propostas inclusivas, com positividade e decisão, porque o desejo de assumir uma prática educacional 62 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) inclusiva é o primeiro passo desse importante desafio, no mais, acredita-se que a inclusão vai de encontro à exclusão de alunos que buscam autonomia e desenvolvimento intelectual, moral e ético. Considerando que para que esses alunos alcacem esses objetivos, é preciso que todos busquem o mesmo ideal. AS CONTRIBUIÇÕES DA PRÁTICA PEDAGÓGICA NA INCLUSÃO DE CRIANÇAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS (CADEIRANTES) O estudo visou analisar os dados contidos por meio da pesquisa de campo realizada com a aplicação de dois questionários compostos de perguntas fechadas, sendo cinco perguntas para professores que trabalham com crianças com necessidades especiais (cadeirantes) e cinco para alunos (cadeirante). Os questionários foram aplicados em escolas da rede pública de ensino do Distrito Federal, sendo assim, o total de entrevistados, inclusos, foi de vinte para profes- sores e alunos. Podendo, assim, analisar como os professores se sentem frente ao processo de inclusão, se estão preparados e se as escolas oferecem subsídios para auxiliá-los, no intuito de oferecer um ensino de qualidade para todos os educandos, independentemente da condição que os mesmos apresentam. CONCEPÇÃO DE ESCOLA INCLUSIVA SOBRE A VISÃO DA PRÁTICA DOCENTE Em relação a concepção de escola inclusiva sobre a visão da prática docente a pesquisa registra que 30% dos educadores visualizam que a escola inclusiva é caracterizada por um currículo voltado para atender a todos. E 50%, em relação ao total, ressaltam que a unidade escolar deve contemplar um currículo adequado às necessidades da criança, proporcionando-lhe fácil acesso, de acordo com as suas potencialidades e suas limitações. A adequação desse currículo influência o processo de aprendizagem, sobretudo, a pesquisa aponta que apenas 20% dos profissionais da educação acreditam que toda a instituição de ensino deve atender o maior número possível de alunoscom deficiência. O currículo constitui hoje, alvo privilegiado da atenção de autoridades, políticos, professores e especialistas. Sua centralidade no panorama educacional brasileiro con- temporâneo pode ser atestada pelas constantes reformu- 63 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva lações dos currículos dos diversos graus de ensino, bem como pelo incremento da produção teórica do campo. (MOREIRA 1997, p. 7). O autor enfatiza a relevância do currículo escolar na educação inclusiva para que haja nesse ambiente um projeto abrangente que atenda aos critérios exigidos pela legislação do deficiente, permitindo a acessibilidade dessas crianças ao ensino, por meio da formação continuada dos professores e da organização da estrutura física da escola com rampas, banheiros, elevadores, entre outros, de modo a adequar às necessidades presentes na escola. RECONHECIMENTO DA INSTITUIÇÃO COMO UM ENSINO VOLTADO PARA A INCLUSÃO DE ALUNOS COM DEFICIÊNCIA FÍSICA A Instituição favorece um ensino voltado para a Inclusão de Alunos com Deficiência Física? A amostragem da pesquisa torna válido o estudo, devido à comprovação de que 100% dos educadores entrevistados compreendem que a Instituição de Ensino favorece uma educação para a Inclusão de Alunos com Deficiência Física (cadeirante). Os professores, na grande maioria, falam que em parte há inclusão sim, pois existem rampas banheiros adaptados, mais não acreditam que só isso é suficiente. Incluir não é só “colocar” o indivíduo na vida educa- cional, não é só construir rampas ou adaptar banheiros - isto é acesso -, é incluí-lo na vida social da escola e da comunidade, no seu contexto em que vive. Incluir não é apenas “estar no ensino regular”. É quando aquilo que restringe, deixa de ser apenas do indivíduo e passa a ser potencializado no coletivo. Inclusão e cidadania visam o bem comum, na diversidade e a vivência na partilha. Respeitar a diversidade de seres humanos, de seus modos de ser e maneiras de se expressar é, como diz Freire, sabedoria, tolerância, não uma ingenuidade, mas sim uma consciência social e política. (MENEZES, 2008, p. 4). Parte do pressuposto de que a unidade inclusiva é aquela que garante uma educação voltada para o atendimento de toda a comunidade escolar, com deficiência ou não, de modo que a escola não faça a segregação de alunos, pois 64 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) educar não é tirar a convivência da criança cadeirante do meio social, mas, sim, criar possibilidades e acesso para a sua inclusão. INCLUSÃO OU INTEGRAÇÃO: SUPERANDO E ENFRENTANDO AS BARREIRAS Ao ajudar os alunos com deficiência física a enfrentar barreiras a favor da inclusão e contra o preconceito, a escola encaixa-se na educação inclusiva e não integradora? A pesquisa destaca que 75% dos entrevistados acreditam que ao ajudar os alunos com deficiência física a enfrentar barreiras a favor da inclusão e contra o preconceito, a escola encaixa-se na educação inclusiva e não integradora, mas infelizmente 25% veem essa ação como algo que busca apenas integrar a criança especial no centro de ensino. “O paradigma a integração, tão defendida durante os últimos cinquenta anos, ocorria e ainda ocorre de três formas” (SASSAKI, 1997, p. 34). O autor enfatiza em sua citação que na maioria das vezes, no que se refere à integração de alunos, é simplesmente adequar as crianças ao meio social ou escolar, isto é, moldar as crianças de acordo com as escolas, e não a escola moldar-se tendo em vista as crianças etc. “Inclusão é trazer em si, compreender, abranger, tomar parte de algo, inserir, introduzir.” (FERREIRA, 2008, p. 469). Na medida em que foi aprofundando-se nos questionamentos, verificou-se que o alguns professores responderam que a integração tem que caminhar junto com a integração, pois o processo também precisa integrar alunos ao convívio social, na só à aprendizagem. Diz que a escola tem o papel dos dois, ou seja, inclusiva e integradora. Sabe-se que há um alargamento entre as duas vertentes: diferenciação entre a inclusão e a integração, como ressaltou o autor, portanto, torna-se importantíssimo, no âmbito da educação, a valorização da ação inclusiva e não integradora. A inclusão dá-se de forma que a instituição acolha o aluno de forma abrangente, ao contrário da integradora que visa apenas inserir a criança especial na rede de ensino regular. 65 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva PARCERIA FAMÍLIA X ESCOLA: O SENTIDO DE REGASTE DE VALORES PARA O PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM Ao implantar uma parceria com a família e a comunidade escolar no sentido de resgatar valores, inicia-se uma melhoria no processo de ensino- -aprendizagem? Felizmente, os resultados da pergunta comprovaram a presente pesquisa, com a estatística de 100% para a implantação da parceria com a família e a comunidade escolar no sentido de resgatar valores, iniciando assim, uma melhoria no processo de ensino e aprendizagem. Os educadores entrevistados acreditam que a família e a comunidade exercem um papel fundamental na educação de crianças com necessidades especiais (cadeirantes). Houve uma aproximação muito grande de forma positiva, na qual professores responderam que o papel da família e da sociedade, é de fundamental importância no sentido de resgatar valores, pois aproxima a vida escolar da realidade de cada aluno. A classe é um lugar onde se desfruta a diversidade, e a diversidade e a aprendizagem se convertem em uma atividade prazerosa. É uma atividade de contrastes, de apa- rências e contradições, onde a diversidade de alunos rompe o acordo preestabelecido entre aprendizagem “normal” e se buscam novos modelos de ensino- aprendizagem para restabelecer o equilíbrio educacional na aula. Nas classes heterogêneas as diferenças entre os alunos são tidas pelos professores, pelos companheiros, e também pelos pais como algo normal e como excepcional. (GAIO, 2004, p. 68). O autor enfatiza, em sua citação, que a garantia de uma educação inclusiva só acontece quando há o comprometimento da família e da sociedade na luta pelo progresso da criança tanto na parte educacional como da motivacional. DIFICULDADES NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM Quais as suas dificuldades apresentadas para o processo de aprendizagem na instituição? O estudo apresentou que as dificuldades encontradas na educação especial têm relação com o despreparo que o educador possui em sala de aula, com um índice de 10%, sendo que 10% dos alunos acreditam que isto ocorre pelo fato de se sentirem excluídos pelos outros alunos na escola. 66 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) As dificuldades apresentadas nos estudos estão ligadas à falta de recursos que a instituição de ensino apresenta, deixando a inclusão a desejar. O levanta- mento de dados trouxe que as crianças com necessidades especiais cadeirantes não tem nenhuma dificuldade de interação com os colegas com 80% dos dados levantados, logo a escola inclusiva proporciona a socialização na educação. A porcentagem de alunos que respondeu essa questão foi de 1%, afir- mando que não encontra nenhuma dificuldade de aprendizagem na instituição de ensino que frequenta. Garantir o acesso e a participação de todas as crianças em todas as possibilidades de oportunidades oferecidas pela escola e impedira a segregação e o isolamento. Essa política foi planejada para beneficiar todos os alunos, incluindo aqueles pertencentes a minoria lingüística e ética, aqueles com deficiência ou dificuldade de aprendizagem, aqueles que se ausentem constantemente das aulas e aqueles que estão em risco de exclusão. (MITTLER, 2003, p. 163). O autor destaca que as dificuldades apresentadas no ambiente escolar influenciam a aprendizagem da criança especial. Esses fatores não devem fazer parte de uma escola inclusiva, pois na inclusão os educadores trabalham para que o aluno cadeirante seja acolhido pelo grupo e a socialização seja sensibilizadae desenvolvida para o convívio afetivo e social de toda turma. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao iniciar a pesquisa em enfoque, acreditava-se que a realidade fosse diferente, haja vista que as políticas públicas estão dando suporte para um grande avanço no que diz respeito à inclusão de crianças e adolescentes, com ou sem deficiência, em todo o País. No entanto, no ambiente escolar a acessibilidade fica de certa forma prejudicada devido ao fato do currículo escolar não contemplar projetos inter- disciplinares que envolvam a inclusão dessas crianças nas atividades escolares, tal fator poderia ser diferente se houvesse intercambio entre as disciplinas, com o objetivo de adquirir do governo maiores verbas para viabilizar uma ação inclu- siva. A falta de comunicação entre as Secretarias de governo – que se reflete em perda de tempo, verba e qualidade em relação à implantação da acessibilidade – é 67 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva um problema. Não se pode considerar o projeto de determinada escola como inclusivo se a forma de se chegar a essa escola não acontece modo adequado. As escolas, no geral, não estão preparadas para incluir alunos. Classifica- -se como deficientes pessoas que apresentam comprometimento na parte física, transtonos, etc. De modo que faz-se necessário a escola viabilizar durante todo o processo, recursos e auxilio para o pleno desenvolvimento da aprendizagem relacionando a capacidade física e motora dessas crianças. Assim, cresce a ideia de um mundo melhor, sem a exclusão que embarga o ser humano de se igualar por inteiro. Os avanços contidos nos espaços físicos da área interna das instituições de ensino que são impostos pela sociedade contribuem para o processo de exclusão de alunos com necessidades especiais (cadeirantes). As crianças encontram barreiras fora do muro das escolas que acarretam no processo de ensino aprendizagem, alem do que, o quadro social visto atualmente caracteriza a falta de meios para que ocorra a verdadeira inclusão, lembrando que não é papel apenas da escola, mas da sociedade como um todo e sem esta parceria não é possível viabilizar o acesso do aluno a aprendizagem. REFERÊNCIAS BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência. . Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Imprensa Oficial, 1988. . Estatuto da Criança e do Adolescente. Ministério da Ação Social. Brasília, DF,1990 e suas alterações. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 23 dez. 1996, Seção I, p. 27-833. BRASIL. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA – A Natureza respeita as diferenças. Acessibilidade universal é direito de todos. 7ª Ed. – 2007, Senador Paulo Paim – Senado Federal. BRASIL. MEC - Declaração de Salamanca e Linha De Ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília CORD 1994. BRASIL. MEC. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Brasileira (Lei 9394 de 20 de dezembro de 1996). Ministério da Educação. Brasília, DF. 2001a. 68 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA - Diretrizes para criação de Conselhos Educacionais e Municipais dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência. Brasília: CONAD-2002. BRASIL. UNESCO - Declaração mundial de educação para todos e diretrizes de ação para o encontro das necessidades básicas de aprendizagem. Paris, 1994. BRASIL. UNESCO, Jomtiem/Tailândia, 1990. Distrito Federal. Fundação Educacional Do Distrito Federal. Departamento de Pedagogia. Divisão de Ensino Especial. Atendimento educacional ao aluno portador de deficiência física – Brasília: Orientação Pedagógica: FEDF, 1994. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: O Dicionário da Língua Portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa, 7ª Edição Curitiba – PR, Positivo, 2009. FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. Saberes Necessários à prática educativa. 24 edição. São Paulo: Paz e Terra, 2002. GAIO, Roberta; MENEGUETTI, Rosa G.Krob. Caminhos pedagógicos da educação especial. Petrópolis, RJ. Vozes. 2004. MANTOAN, Maria Tereza Eglêr. Inclusão escolar:o que é? por quê? Como fazer? São Paulo: Ed. Moderna, 2003. MANTOAN, Maria Teresa Eglér. A integração de pessoas com deficiência. Contri- buições para uma reflexão sobre o tema. São Paulo: Memnon, 2005. MITTLER, Peter – Educação Inclusiva: contextos sociais/ Peter Mittler; tradução Windys Brazão Ferreira. – Porto Alegre: Artmed, 2003. MOREIRA, Antônio F. B. (Org.) Currículo: Questões atuais. 3. ed. São Paulo: Papi- rus, 1997. SASSAKI, R. Entrevista especial à Revista Integração. Revista Integração. MEC: Brasília. 69 A PEDAGOGIA VISUAL NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DO ALUNO SURDO E O USO DE METODOLOGIAS DIFERENCIADAS Vanessa Alves Pereira28 Marcelo Máximo Purificação29 Elisângela Maura Catarino30 Jucineide Lima de Almeida Silva31 INTRODUÇÃO O presente capítulo discorre sobre a importância da pedagogia visual no processo de ensino-aprendizagem do aluno surdo, levando em consideração dois aspectos: a Língua Brasileira de Sinais- Libras e o uso das tecnologias dentro do ensino. A pedagogia visual é um campo que recentemente tem sido explorado de maneira mais ampla no âmbito educacional, ocorre que no que tange a educação dos surdos, experiências visuais são de ampla importância e quando alinhadas as tecnologias, podem corroborar para a aprendizagem do aluno surdo. A escolha da temática urge a partir da importância de pesquisar sobre como a pedagogia visual contribui para auxiliar na assimilação do conhecimento por parte do sujeito surdo? Bem como por perceber o escasso conhecimento do professor a respeito da comunidade surda, suas experiências visuais e sua cultura, além de outro agravante, o professor que não conhece Libras, assim não consegue estabelecer uma comunicação efetiva com seu aluno no processo de ensino. Para tanto, delimita-se como objetivo geral a necessidade de conhecer aspectos relacionados a pedagogia visual, como fator potencializador para o processo de ensino-aprendizagem de alunos com surdez. Como objetivos espe- 28 Mestranda em Educação (UEMS). CV: http://lattes.cnpq.br/9217284755467146 29 Pós-doutorado em Educação (FPCE/UC Portugal). Doutorado em Ciências da Religião (PUC-GO). CV: http://lattes.cnpq.br/5221482223498714 30 Pós-doutorado em Educação (ESEC/PT). Doutorado em Ciências da Religião (PUC-GO). CV: http://lattes.cnpq.br/7368643483268279 31 Especialista em Libras-Educação Especial (FAEL). CV: http://lattes.cnpq.br/0244769097442507 http://lattes.cnpq.br/9217284755467146 70 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) cíficos, tem-se: conhecer um breve histórico a respeito da história da educação dos surdos e a Libras; abordar a relação entre as tecnologias e a pedagogia visual, no que tange ao ensino; discorrer sobre metodologias inclusivas para o processo de ensino-aprendizagem de alunos surdos. A metodologia adotada no trabalho é de cunho qualitativo, embasada em Triviños (2008), buscando alcançar a subjetividade e particularidade dos aspectos pesquisados, no intuito de atender aos objetivos que foram propos- tos. Por meio da pesquisa bibliográfica, utilizou-se como principais bases de dados as plataformas: Scielo e Google Acadêmico, no intuito encontrar artigos científicos e autores para compor o referencial teórico, dos quais destaca-se Campello (2008), por tratar diretamente a respeito da pedagogia visual e o uso das tecnologias com alunos surdos. DESENVOLVIMENTO Inicialmente, para que se possa abordar sobre a pedagogia visual e o uso das tecnologias na educação de alunos surdos, é necessário comtemplar dois componentes importantes desse processo que é a Língua Brasileira de Sinais – Libras e a comunidade surda. Nesse contexto, é possível perceber, conformeFontoura | Jucimara Braga Alves O OLHAR SOBRE AS REPRESENTAÇÕES DE NEGRITUDE EM PEÇAS PUBLICITÁRIAS DA AVON, DOVE E NATURA .......................................... 214 Heider Carlos Matos | Gilma da Silva Pereira Rocha ESTUDOS CULTURAIS: UMA REVISÃO DE LITERATURA SOBRE AS REPRESENTAÇÕES DO SUJEITO SURDO ................................................. 227 Gilma da Silva Pereira Rocha | Heider Carlos Matos | Hector Renan da Silveira Calixto | Diomark Pereira de Araujo | Letícia Graciela dos Santos Lobato SOBRE OS ORGANIZADORES ................................................................... 237 ÍNDICE REMISSIVO .................................................................................... 238 7 APRESENTAÇÃO A organização desta obra vem da necessidade de partilharmos conheci- mentos acerca dos processos culturais, educomunicação e as vivências de inclusão no contexto educacional e social. O livro traz inquietações e reflexões sobre políticas, comunicação, formação, ensino-aprendizagem e práticas pedagógicas, a fim de ressignificar as nossas ações e construir novos saberes. O livro está organizado em três eixos temáticos: Infância, Espaços Pedagógicos e Educação Inclusiva; Educação de surdos; Mídia, Educação e Estudos Culturais. No primeiro eixo temos o capítulo de Jonaso José dos Passos Dias e Marcelo Brandão Araújo que nos proporcionam um olhar sobre A infância como construção social e cultural do sujeito. As autoras do capítulo 2 e 3, Dorisnei Jornada da Rosa e Andrea Gabriela Ferrari, no primeiro artigo fazem uma reflexão sobre as possibilidades dos atos educativos estruturantes de uma educadora de maternal com uma criança com problemas neurológicos e sinais de autismo. Já no capítulo A assessoria de inclusão: uma proposta de educação estruturante na prevenção do autismo, as duas autoras relatam experiências com a educação precoce em escolas municipais de educação infantil. O capítulo 4 A etnomatemática e o aluno com transtorno do espectro autista (tea): o lúdico na con- tribuição do conhecimento matemático apresentam possibilidades de aprendizado significativo na área da exatas para alunos inclusos no ensino regular. O capítulo 5 de autoria de Maria da Conceição Moreira e Maria Izabel Nunes encerram esse eixo tematizando sobre a inclusão de alunos cadeirante nas escolas pública, a fim de provocar uma reflexão crítica e construtivista dos processos de inclusão no contexto educacional. No eixo Educação de Surdos os capítulos abordam as especificidades neces- sárias para a aprendizagem do aluno com surdez. O capítulo A pedagogia visual no processo de ensino-aprendizagem do aluno surdo e o uso de metodologias diferenciadas tem como objetivo mostrar a relevância da pedagogia visual para a aprendizagem do aluno surdo, tendo como ponto de partida a Libras e o uso das tecnologias. Já Alexandre Moura Lima Neto e Alessandra Anchieta Moreira Lima de Aguiar abordam o processo de ensino-aprendizagem dos alunos surdos por meio de uma ferramenta tecnológica que é o WhatsApp. No capítulo de Adelaine Valéria 8 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Gomes Lima e Francisca Janaína de Araújo Sampaio tematizam a importância da atuação do professor surdo no contexto escolar na aquisição da Libras de crianças surdas. As autoras Darlene Seabra de Lira, Ednéa do Nascimento Carvalho e Luciana Gonçalves de Carvalho encerram esse eixo apresentando a necessidade de acessibilidade de comunicação nos Museus, pois são espaços que possibilitam informação e um conhecimento das diversidades históricas e culturais. Na composição do último eixo deste livro tem-se, primeiramente, uma análise de um episódio de vídeo da Multirio de autoria de William Soares dos Santos e Natália Freitas de Mello Silva que enfatizam a interdisciplinaridade entre a comunicação e educação. O segundo capítulo faz uma análise de Fake News sobre os corpos gordos à luz da regulação, biopoder e biopolítica trazendo à tona o preconceito revelado pelas mídias sociais acerca desses corpos. O texto de Annebelle Pena Lima Magalhães Cruz, Anderson Lincoln Vital da Silva, Luiz Marcelo Magalhães Cruz e Heider Carlos Matos apresentam uma análise do discurso de inclusão existentes em diversos espaços sociais. No quarto capítulo João Pedro de Azevedo Machado Mota aborda os Fundamento da narrativa transmídia: um rizoma conceitual, evidenciando uma correlação com a cultura da convergência, a inteligência coletiva e a cultura participativa. A autora Sheila Maria Pereira Fernandes traz reflexões pertinentes para esta contemporaneidade acerca da Construção midiática da felicidade e A influência da mídia na identidade do sujeito. Já as autoras Laíne Rocha Moreira e Larici Keli Rocha Moreira dis- cutem a identidade e representação do professor no contexto da Pandemia do Covid-19. O capítulo A Ecopedagogia sobre a ótica dos Estudos Culturais aborda a proposta de interdisciplinaridade entre as áreas ambientais e a pedagógica. Heider Carlos Matos e Gilma da Silva Pereira Rocha discorrem acerca das representações de negritudes a partir de análises de peças publicitárias. E por fim temos o estudo sobre Estudos Culturais: uma revisão de literatura sobre as representações do sujeito surdo. Portanto, esta obra nos proporciona um material multidisciplinar tendo como parâmetro a educação e a cultura. Heider Carlos Matos Gilma da Silva Pereira Rocha Organizadores PARTE I INFÂNCIA, ESPAÇOS PEDAGÓGICOS E EDUCAÇÃO INCLUSIVA 10 A INFÂNCIA COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL E CULTURAL DO SUJEITO Jonaso José dos Passos Dias1 Marcelo Brandão Araújo2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Conceber a infância como construção social denota problematizar as condições socioculturais que fizeram emergir as infâncias contemporâneas, pois as implicações teóricas e metodológicas a partir desses conceitos foram importantes para as investigações em educação, especificamente no que diz respeito às discussões sobre as variadas perspectivas que adotam os diversos espaços educativos em suas articulações com traços marcantes da cultura contemporânea, por meio das quais estas configurações identitárias reverberam sentidos às novas práticas educacionais. A ideia de infância é, de certa forma, um modo particular de pensar a criança, e se distancia muito do viés universal. Segundo Clarice Cohn (2005) o que entendemos sobre infância foi sendo elaborado ao longo dos tempos, com as modificações na composição familiar, no cotidiano da vida das crianças, com a institucionalização promovida pela educação desenvolvida em estabelecimentos de ensino e aprendizagem. Nas sociedades europeias, durante a época medieval, segundo Aríes (1981), não havia um sentimento ou consciência de “infância”. O que presentemente titulamos de infância estava limitado a esse período relativamente curto, mais frágil da vida, em que uma pessoa ainda não pode satisfazer por si mesma suas necessidades básicas, eram considerados adultos menores. Tão logo o pequeno se desenvolvesse fisicamente já passava a habitar o mesmo mundo que os adultos, uma infância frágil, em que a possibilidade de perda era muito grande. Posteriormente, a função das crianças na família apresenta novos preceitos para as relações entre pais e filhos, não se apegava as ingênuas questões de sorrisos e brincadeiras. A família, neste novo contexto, responsabilizava-se com os cuidados da saúde dos filhos. As regras éticas de cuidados se concentram na higiene, no ato 1 Doutorando (ULBRA).CV: http://lattes.cnpq.br/2891582673444698 2 Doutorando (ULBRA).CV: http://lattes.cnpq.br/7038962629772978 11 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva de amamentação pelas mães, na atenção com o vestuário, na condução à prática de exercícios físicos ao bom desenvolvimento do corpo, e a outros cuidados afe- tivos que estreitavam os laços entre pais e filhos. Surge, então, um outro vínculo conjugal que se arranja não só para unir dois adultos, mas também paraStrobel (2009), que a história da educação dos surdos é marcada por lutas, com uma longa trajetória até os dias atuais. No Brasil, a Libras só passou a ser reconhecida como língua em 2002, por meio da Lei nº 10.436/02. A partir disso, é necessário considerar que Libras e a Língua Portuguesa se constituem como duas línguas diferentes, onde Quadros (1997), pontua que a L1 (primeira língua do surdo) será Libras, considerada sua língua materna, dessa forma, a Língua Portuguesa se configura como sendo uma segunda língua, L2. É natural que os surdos venham a ter mais dificuldades no português escrito, pois, essa língua possui estrutura distinta da Libras, devido a diferença em suas modalidades, sendo o português: oral-auditivo, e a Libras: visual-gestual (ou espaço-visual), pois, a informação linguística é recebida pelos olhos e reproduzida pelas mãos. Quadros (1997) pontua diferenças entre as duas línguas e suas respectivas modalidades: São sistemas linguísticos independentes dos sistemas das línguas orais, desmistificando a concepção “e”. São línguas 71 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva naturais que se desenvolvem no meio em que vive a comu- nidade surda. As pessoas surdas de uma determinada região encontram-se e comunicam-se através de uma língua de sinais de forma análoga a qualquer outro grupo sociocultural que utiliza a língua falada. (QUADROS, 1997, p. 46-47). É válido ressaltar que, dentro da comunidade surda, existe uma pluralidade de indivíduos, cada qual com sua identidade própria, níveis de perda auditiva dife- rentes, podendo haver surdos oralizados ou não, com tipos de surdez diferentes, mas nesse estudo o foco está em discutir a respeito dos surdos que tem Libras como sua L1, ou seja, se comunicam predominantemente através da língua de sinais. Durante muitos anos os surdos foram impedidos de se comunicar através das línguas de sinais, o que acarretou diversos problemas a respeito da inclusão do surdo em sociedade. Esse aspecto não é diferente quando se trata da educação, pois, a imposição da oralidade para com os surdos e a não aceitação da língua de sinais, acarretou diversos prejuízos no que tange a educação desse público ao longo do tempo (STROBEL, 2009). Conforme afirma Cruz e Araújo (2016), afirmam: Na Antiguidade, os surdos eram considerados incapazes para desenvolverem qualquer tipo de atividade, eram proibidos de usar gestos naturais para se comunicarem e quando usavam tinham suas mãos amarradas e recebiam castigos, pois eram considerados débeis mentais, loucos, selvagens, seres sem alma, comparados até aos animais. Não tinham garantidos seus direitos legais, e, por não saberem ler e escrever, não podiam receber heranças (CRUZ e ARAÚJO, 2016, p. 375). Percebe-se, no que diz respeito a educação dos surdos, que esses eram impedidos de estarem no seio social, não sendo respeitada a integridade da pessoa humana. Conforme Strobel (2009), essa situação perdurou durante séculos, o que prejudicou o desenvolvimento social e intelectual dos surdos. Nesse sentido, levantam-se discussões referentes ao processo de ensino- -aprendizagem de alunos surdos dentro das escolas, onde é possível encontrar entraves. Conforme Miorando (2006), o professor não tem domínio da primeira língua dos surdos brasileiros, Libras, consequentemente, tem dificuldades em buscar metodologias adequadas para facilitar o processo de aprendizagem do 72 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) surdo, como por exemplo em utilizar as Tecnologias da Informação e Comu- nicação (TIC’s) em conjunto com a pedagogia visual. No que tange ao uso das tecnologias, essa temática tem sido muito debatida e suscitada nos últimos anos, com discussões acerca das tecnologias dentro da sala de aula. Nesse aspecto, o uso das TIC’s pode tornar o material mais atrativo para o aluno, além da possibilidade de versar sobre vários temas, com uso de linguagens diferentes, mídias, gráficos, vídeos, dentre outros (ROJO; MOURA, 2012). Quando se trata da educação de alunos surdos, a discussão não é somente essa, o uso de metodologias diferenciadas aliadas as tecnologias, deixa de ser apenas uma questão de atratividade, e, em conjunto com experiências visuais, torna-se essencial. Para tanto, a pedagogia visual traz grandes contributos nesse processo e é conceituada, conforme Campello (2008), como um novo campo de estudo, que desafia a educação formal a ressignificar seus conceitos métodos. Trata-se de uma área que irá envolver os aspectos visuais, como imagens, semiótica imagética, o uso da Libras em sua aquisição e assimilação por meio de imagens e sinais, conforme o exemplo: Figura 1: Fonte: Blogspot Libras: educação de surdos Todavia, discute-se que a pedagogia visual não deve ser restrita somente aos elementos citados, então tem-se o uso das TIC’s como ferramentas que irão potencializar esse processo. O professor, em seu papel de mediador, pode minimizar as dificuldades encontradas no processo de ensino, como o desco- nhecimento da língua, metodologias tradicionalistas que não utilizam imagens e vídeos, diversificando isso com apoio tecnológico. Destaca-se que isso não exclui a necessidade do professor em saber Libras, e sim, apenas auxilia no fortalecimento do processo de ensino-aprendizagem. 73 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva Posto isso, a pedagogia visual se refere a uma prática que se utiliza dos elementos: Contação de história ou estória, jogos educativos, envol- vimento da cultura artística, cultura visual, desenvolvi- mento da criatividade plástica, visual e infantil das artes visuais, utilização da SignWriting (escrita de sinais) na informática, recursos visuais, sua pedagogia crítica e suas ferramentas e práticas, concepção do mundo através da subjetividade e objetividade com as “experiências visuais” (CAMPELLO, 2008, p. 129). Dentre as metodologias a serem utilizadas, conforme Campello (2008), destaca-se o uso de jogos interativos, softwares voltados para a educação e ensino e os dicionários digitais, ou seja, metodologias que irão potencializar a capacidade de comunicação visual com o aluno surdo, proporcionando agilidade e qualidade no ensino por meio dessas ferramentas interativas, conforme demonstrado abaixo, onde o aluno pode associar a imagem com o hábitat do animal, além de posteriormente poder ser trabalho os sinais em Libras: Figura 2 Fonte: Discovery Kids 74 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Atividades como essa descrita acima, irá trabalhar a memória visual do aluno, desenvolvendo outras habilidades e proporcionando a possibilidade de se trabalhar com uma interdisciplinaridade de conteúdos em uma mesma tarefa. Para além dessas questões, ainda se tem o ponto de atenção que os livros didáticos tradicionais, em sua grande maioria, se mostram inadequados para este público, pois dão ênfase apenas para a língua portuguesa, contendo poucos ou nenhum recurso visual, o que não atende a demanda para esse alunado em questão, os surdos. Quadros (2005) afirma sobre a importância de os alunos surdos terem condições de permanecia dentro das instituições de ensino. O que vem sendo debatido pela comunidade surda é que não basta apenas a oferta de matrícu- las nas redes regulares de ensino, é necessário haver recursos e atendimento adequado para esse público, sendo fundamental que se sintam como parte do processo educacional, neste mundo que é culturalmente visual, assim, a escola deve oferecer novas formas de trabalhar os conteúdos escolares. Conforme, Moura (et al. 2017): O ideal, para que uma escola funcione bem, é respeitar os direitos que o aluno surdo tem de aprender e rece- ber conhecimentos em sua própria língua, tendo como professor, um ser capacitado para estar em sala de aula atuando e lecionando seus conteúdos em LIBRAS, faci- litando assim a transmissão de conhecimentos, trazendo desenvolvimento e capacitações para o aluno surdo. É importantedar a eles a oportunidade de estruturar seus pensamentos, desenvolver suas habilidades linguísticas, dinamizar seus conhecimentos - e isso só acontecerá se considerarmos a sua língua como parte principal na educação (MOURA et al. 2017). Através da pesquisa, observa-se um número pequeno de produções teó- rico-metodológicas a respeito da pedagogia visual para surdos e o uso de novas tecnologias. Percebe-se a grande necessidade de o docente alinhar isso a sua prática pedagógica, o que novamente não exclui a necessidade de conhecimento da Libras. Diante disso, o principal resultado alcançado, embasado em Campello (2008), tange que o uso das novas tecnologias, alinhadas a pedagogia visual e a Libras, se dá como fundamental dentro das práticas educacionais na aprendi- zagem de alunos surdos, pautada na visualidade, para garantir construções de 75 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva sentidos e significados para esse público, o que se configura como um grande desafio na busca pela inserção desses elementos na prática pedagógica cotidiana. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, é notório que a pedagogia visual é um campo amplo que necessita de ser mais explorado, principalmente pelos docentes que trabalham com alunos surdos. Além disso, quando alinhada as tecnologias, a pedagogia visual é potencializada e permite que sejam trabalhados diferentes aspectos em um mesmo conteúdo. Todavia, a necessidade de o professor ter conhecimento da primeira língua dos surdos, Libras, continua sendo essencial, língua essa que fora proibida durante longos anos, o que acarretou sérios prejuízos para a educação dos surdos. Ocorre que, se o professor utilizar apenas metodologias tradicionalistas, esse processo de aprendizagem não será efetivo e acarretará ainda mais prejuízos para a comunidade surda. Como discutido no texto, a Libras enquanto L1 e a Língua Portuguesa como L2, traz a necessidade do uso de materiais dinâmicos e visuais. Se o material tiver foco apenas na Língua Portuguesa escrita, o surdo terá mais dificuldades, tendo em vista que a sua primeira língua é Libras. Utilizar apenas imagens e textos não traduz a pedagogia visual, as suges- tões pautam-se em experiências visuais com uso de softwares educativos, jogos interativos, dentre outros recursos. Para tanto, professor necessita de incorporar tais metodologias inclusivas em sua prática pedagógica, para que assim o surdo tenha suas necessidades educacionais atendidas em seu processo de aprendizagem. REFERÊNCIAS BRASIL, Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras providências. Brasília, 2002. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_ 03/Leis/2002/L10436.htm. Acesso em 12 mar. 2021. CAMPELLO, A. R. S. Pedagogia visual na educação dos surdos-mudos. Florianópolis: UFSC, 2008. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2008. Disponível em http:// www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp070893.pdf. Acesso em: 16 mar. 2021. 76 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) CRUZ, S.; ARAÚJO D. A. A história da educação de alunos com surdez: ampliação de possibilidades? Santa Maria: Revista educação especial, 2016. p.373-384. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3131/313146769010.pdf. Acesso em: 09 jun. 2021. MIORANDO, Tania Micheline. Formação de Professores Surdos: Mais Professores para a Escola Sonhada. Estudos surdos I / Ronice Müller de Quadros (org.). Petrópolis, RJ: Arara Azul, 2006. MOURA, Anaisa. et al. Escolas bilíngues para surdos no Brasil: uma luta a ser con- quistada. São Paulo, 2017. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/rpge/article/ view/10172/7030. Acesso em: 27 jun. 2021. QUADROS, R. M. A escola que os Surdos querem e a escola que o sistema “permite” criar: estudo de caso do Estado de Santa Catarina. Trabalho apresentado na 25ª Reu- nião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), Caxambu, 2005. Disponível em: http://28reuniao.anped.org.br/textos/gt15/gt151544int. pdf. Acesso em: 27 jun. 2021. ___________. Educação de Surdos – Aquisição da Linguagem. 1ª Edição. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. ROJO, R. H. R; MOURA, E. (Org.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. STROBEL, Karin. História Da Educação De Surdos. Florianópolis. 2009. p.1-49. Disponível em: http://www.libras.ufsc.br/colecaoLetrasLibras/eixoFor macaoEspecifica/ historiaDaEducacaoDeSurdos/assets/258/TextoBase_HistoriaEducacaoSurd os.pdf. Acesso em: 16 mar. 2021. TRIVIÑOS, A. N. da S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 2008. https://periodicos.fclar.unesp.br/rpge/article/view/10172/7030 https://periodicos.fclar.unesp.br/rpge/article/view/10172/7030 http://28reuniao.anped.org.br/textos/gt15/gt151544int.pdf http://28reuniao.anped.org.br/textos/gt15/gt151544int.pdf 77 POSSIBILIDADES DIDÁTICO- METODOLÓGICAS NA EDUCAÇÃO DE SURDOS COM O USO DO WHATSAPP Alexandre Moura Lima Neto32 Alessandra Anchieta Moreira Lima de Aguiar33 INTRODUÇÃO Pensar em tecnologia, nos dias atuais, de imediato remete a computador ou qualquer aparelho digital e as conexões em redes, mas a tecnologia é tão antiga quanto a espécie humana. Na época das cavernas, um simples galho de árvore transformado em lança, se apresentava como novidade evidenciando certo progresso diante da comunidade rupestre. O modo utilizado pelo homem primitivo na luta para manter-se vivo, assim como as técnicas e recursos criados com a transforma- ção de objetos ao seu redor aliados à capacidade de raciocínio, contribuíram para inovações significativas no que se refere à sua sobrevivência e bem-estar social. Na proporção da evolução social do homem as tecnologias também avançam de acordo com a época. Houve um tempo em que a grande novidade era o rádio, em outra época a televisão e hoje são inúmeras as criações, sendo possível em pequeno espaço de tempo substituir smartphones com novas funções, os quais séculos antes seriam inimagináveis. A escolha da temática que subjaz este trabalho objetivando discutir as tecnologias, especificamente virtuais e voltadas à educação de surdos, justifica-se pelo interesse que tais ferramentas têm despertado nas mais diversas classes e culturas; e no fato de que seu cres- cimento universal é imensurável e contínuo, refletindo substancialmente no progresso das atividades escolares. Considera-se, para tanto, o fato de que a era digital chegou à contemporaneidade e se fez tão necessária quanto o processo da alimentação, fazendo com que o homem deste momento passe a considerar a tecnologia enquanto aspecto intrínseco à vida humana, potencializando-se a partir do advento da internet. (LÉVY,1999). 32 Mestrando em Cultura e Sociedade (UFMA). Professor (UFMA/CNPq). CV: http://lattes.cnpq.br/1706282255569486 33 Mestra em Meio Ambiente (UniCeuma). Professora (UniCEUMA). CV: http://lattes.cnpq.br/6325229077291069 http://lattes.cnpq.br/1706282255569486 http://lattes.cnpq.br/6325229077291069 78 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Mesmo sendo relativamente nova, a tecnologia de comunicação envol- veu-se na vida das pessoas em uma proporção gigantesca. Vive-se assim, em um novo lugar, um ciberespaço, segundo destaca Lévy (1999), no qual novas possibilidades permitem novas culturas. Assim, quem poderia imaginar que a primeira ação ao acordar seria a de checar o celular a fim de verificar as notifica- ções das redes sociais virtuais? Isto se dá bem antes de cumprimentar qualquer familiar dentro da nossa casa, fazendo com que um “bom dia” seja enviado para milhares de outras pessoas conectadas às redes sociais. É neste contexto de transformações do modo de viver que se busca reflexões sobre o uso desse recurso na educação, reflexões estas que são compartilhadas neste trabalho cuja organizaçãoestruturou-se a partir de pesquisas bibliográficas baseadas nos estudos de Lévy (1999), Castells (2003), Kenski (2007), Araújo e Bottentuit Júnior (2015) e Lodi (2010). Para o seu complemento, realizou-se pesquisa de campo através da aplicação de questionários com perguntas fechadas a 20 estu- dantes surdos de diferentes instituições de ensino superior, residentes na cidade de São Luís, MA. Tratando-se, portanto, de pesquisa quantitativa e qualitativa. Os resultados obtidos apontaram para o uso do aplicativo WhatsApp como a principal escolha dos surdos universitários para desenvolver suas atividades aca- dêmicas, mostrando ainda que estes desconhecem outros aplicativos relacionados aos seus respectivos cursos de graduação, destacando-se que o site de busca Google é o principal e mais utilizado pela comunidade surda nas suas pesquisas acadêmicas. Vale ressaltar a importância de estudos sobre a temática proposta, uma vez que, os surdos estão presentes na comunidade universitária, mas suas dificuldades para manter-se nos cursos são proporcionalmente maiores que as dos indivíduos ouvintes. Faz-se necessário buscar metodologias para desenvolver os conhecimentos e o intelecto destes sujeitos a partir das tecnologias atuais, considerando-se que os surdos também precisam ser envolvidos nesse novo mundo virtual. EDUCAÇÃO E TECNOLOGIAS DIGITAIS A relação de tecnologia e educação pode ser vista a partir de um ângulo de socialização, inovação e dinamicidade, conforme aponta Kenski (2007), pois compreende-se que estes recursos, inseridos na sala de aula, nas últimas décadas, têm se constituído importantes ferramentas a otimizar e, ao mesmo tempo, 79 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva impingir significados ao processo de ensino e de aprendizagem, possibilitando a construção de conteúdos de diferentes áreas. No que tange ao surgimento da internet, elemento imprescindível aos dias atuais e em diversas esferas sociais, segundo Castells (2003), teve início com a ARPANET (Advanced Research Projects Network) do Departamento de Defesa dos Estados Unidos em 1969. O autor afirma que durante a guerra fria, um grupo de universitários elaborou um sistema para comunicação interna, voltado à comunidade acadêmica, mas que, posteriormente, foi utilizado como recurso bélico. O governo norte-americano percebeu nestas possibilidades para usos militares específicos; sendo este o ponto de partida do uso da internet, que mais tarde viria a se popularizar e ser utilizada por uma infinidade de usuários, em diferentes áreas, entre elas, a educação que possibilita a participação social dos sujeitos. Para Kenski (2007, p. 37) “a educação também é um mecanismo poderoso de articulação das relações entre poder, conhecimento e tecnologias”. Nesta acepção, o indivíduo que participou de qualquer sistema de ensino educacional é facilmente reconhecido pela forma de falar e comportar-se, e é nestas atitudes que as relações de poder se desenvolvem. Ao observarmos, uma conversa entre recentes conhecidos, em um bar ou restaurante, verificaremos que a linguagem se evidencia por ser um elemento demarcador de posições socioculturais dos diferentes sujeitos, participantes da conversa. Infere-se desse modo, que a pessoa que parte de um contexto acadêmico, ou que alcançou um nível maior de escolaridade poderá em um momento de discussão usa termos mais rebuscados, enquanto alguém com menor grau de instrução acadêmica faz uso de expressões comuns, sendo inclusive levado em certos momentos, a sentir-se intimidado por aquele que, pelo modo de falar, demonstra maior escolarização e, consequentemente, maior poder de conhecimento materializado a partir de um nível mais elevado de linguagem. (BAGNO, 1997). Nesse contexto, verifica-se que a escola se constitui para muitos em um que oportuniza a formação para a cidadania, possibilitando a participação social de cidadãos, os quais na maioria das vezes, serão respeitados e reconhecidos. Nessa acepção, mesmo em um contexto no qual algumas instituições mantêm a educação formal com uma visão e metodologia conservadoras e, muitas vezes, um tanto arcaicas, é possível identificar traços de uso das tecnologias, sobretudo 80 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) as virtuais; quer seja por meio de um simples aviso em rede social ou até o envio de livros, atividades, e conteúdos por correio eletrônico. São novas possibilidades de educar, contribuindo positivamente na construção de conhecimentos. Percebe-se assim, o quanto a educação na atualidade mudou. A antiga professora com uma palmatória na mão, deu lugar a um tutor a distância, cuja metodologia para trabalhar conteúdos se dá por meio da utilização da televisão ou da tela de um computador, enquanto recursos; o quase obsoleto quadro-negro e seu giz de gesso, perderam espaço para o quadro-branco e o pincel à tinta. A contemporaneidade acompanha então, a tendência virtual e deve ser usada a favor da educação. No tocante às tecnologias de informação e comunicação virtuais enquanto utilizadas nas salas de aula da atualidade Moran (2013, p. 104) pontua que: Os professores e os alunos podem utilizar as tecnologias da informação para estimular o acesso à informação e à pesquisa individual e coletiva, favorecendo processos para aumentar a interação entre eles. A rede informatizada cria a possibilidade de exposição e de disponibilização das pesquisas aos alunos, de maneira mais atrativa e produtiva, da demonstração e da vivência de simulação por textos e imagens, facilitando o discernimento e o envolvimento dos alunos com problemas reais da sociedade. Evidencia-se assim, o uso das tecnologias na escola como recurso a pos- sibilitar entre os sujeitos, a construção de conhecimentos, o acesso à pesquisa e a interação destes com o mundo, em uma velocidade praticamente imensurável que lhes faz simular o real para, a partir de sua compreensão encontrar possibilidades de solucionar problemas reais do cotidiano. É importante demarcar que para tanto, faz-se necessário a consecução de projetos educacionais e de propostas pedagógicas que envolvam a interação humana, pois como afirma Lévy (2011) “a técnica propõe, mas o homem dispõe”. Compreende-se então, que esse processo de uso das tecnologias na educação envolve sobretudo o professor, cujo papel de mediador se dá entre o sujeito aprendente e os objetos de aprendizagem. É este o responsável em usar de forma consciente e planejada, os recursos para tornar a aprendizagem não só dinâmica, mas exequível e, sobretudo significativa, tal como preconiza Moran (2013). Assim sendo, atividades como chats, fóruns, avisos, grupos de estudo, 81 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva atividades on-line, podem ser metodologias facilitadoras nesse processo, haja vista estas se fazerem crivadas de significados para os estudantes. A despeito de sua valorização e uso, na contemporaneidade, sob a ótica da sala de aula comum, as opções de uso pedagógicos das tecnologias não parecem difíceis, mas ainda assim, suscitam questionamentos tais como, especialmente quando trabalhadas com pessoas portadoras de deficiência, como por exemplo, as pessoas surdas, sujeitos da pesquisa ora apresentada. Desse modo, entre diferentes questões elencadas no âmbito da educação de surdos, destacam-se: [1] como trabalhar os conteúdos essenciais no contexto da educação de surdos, considerando suas limitações?; [2] de que modo agregar as novas tecnologias para uma minoria linguística que possui especificidades comunicacionais? É necessário pois, considerar que os surdos, embora não tenham limitações cognitivas, possuem muitos entraves que dificultam o acesso às informações e conhecimentos, materializando-se de acordo com Skliar (2016) em baixos índices de aprendizagem, ínfimo acesso ao ensino superior e mesmo inserção no mercado de trabalho cada vez mais competitivo. O USO DE TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO DE SURDOS As atuais políticasde inclusão têm inserido a pessoa surda na sala de aula, sem, contudo, efetivarem sua inclusão, haja vista o cenário educacional que se apresenta em relação à educação de surdos não dispor de um suporte necessário para que estes aprendam e que se desenvolvam enquanto pessoas e, principalmente cidadãos os quais participam de decisões buscando soluções para os problemas do dia a dia, segundo evidencia Sá (2016). No Brasil, é recomendado por documentos e legislações específicas, tais como a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), Lei n. 9.394/96, que a educação de surdos deve acontecer a partir de escolas de educação bilíngue e regulares, as quais recebem alunos ouvintes e surdos. A Lei nº 10.436/2002 (BRASIL, 2002) e o Decreto nº 5.626/2005 (BRASIL, 2005) reconhecem e legitimam a Língua Brasileira de Sinais (Libras), postulando acerca da obrigatoriedade de seu ensino como disciplina curricular nos cursos de magistério, educação especial, fonoaudiologia, pedagogia e licenciaturas. Determinam ainda, a 82 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) consecução de outras providências que dispõem acerca do atendimento e da promoção da acessibilidade linguística aos surdos, explanando também sobre a formação do professor bilíngue, instrutor surdo de Libras e do intérprete/ tradutor de Libras. Ressalta-se, entretanto, que mesmo nas escolas consideradas bilíngues, verifica-se a ausência de um currículo voltado para os surdos; notando-se pou- cos profissionais com formação adequada para atender às necessidades desses sujeitos. Tal afirmativa é ratificada pelo baixo desempenho destes, bem como por meio das notas no sistema de ensino regular, do baixo índice de alunos matriculados no ensino médio e do número inexpressivo de surdos no Ensino Superior, conforme aponta Falcão (2015). Poucos conseguem continuar a jornada acadêmica e de acordo com Albino e Silva (2013) apud Moura (2016, p. 50) inexiste por parte das insti- tuições, ações que potencializem o desenvolvimento de universitários surdos, visto que, entre outras dificuldades se deparam com uma rotina acadêmica que nem sempre conseguem acompanhar, principalmente em razão de pro- blemas que emergem no ambiente de uma Instituição de Ensino Superior (IES), tais como a obrigatoriedade de produzirem textos na modalidade escrita fazendo uso da Língua Portuguesa. Os autores evidenciam ainda, a evasão de estudantes surdos no ensino superior, cuja causa está também na pouca interação com o grupo de universitários ouvintes e a não adaptação à rotina acadêmica. Destarte, a partir da bibliografia utilizada como base para este estudo, foi possível compreender que as tecnologias podem ser importantes recursos no contexto da educação de surdos. Assim, na perspectiva de se verificar em que medida, no âmbito do Ensino Superior os aplicativos e/ou redes sociais virtuais, funcionam como instrumento de interação de turmas e organização de trabalho, buscou-se elencar quais aplicativos têm sido mais utilizados pelos surdos com fins pedagógicos, e com vistas a sanar dificuldades em relação às disciplinas do currículo; assim como identificar a escolha comunicacional desses sujeitos no universo digital pois este reproduz o ambiente real, onde predominam diferentes grupos sociais formados por ouvintes. 83 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva APLICATIVOS MAIS UTILIZADOS POR SURDOS, NO MEIO ACADÊMICO Com a finalidade de colher-se dados que respondessem às indagações que instigaram a realização deste trabalho, foi realizada pesquisa de campo, tendo como base um questionário fechado, aplicado a um grupo de surdos, sujeitos da pesquisa, de modo a utilizar como corpora as respostas colhidas, nos questionários. Optou-se por uma pesquisa de natureza quantitativa, que segundo Gil (2008) busca dados e verifica números; assim como qualitativa, que para Minayo (2001) é uma forma de aproximar-se dos sujeitos sociais para melhor entendê-los e discutir as questões a eles relacionados. Sendo assim, a pesquisa contou com a participação de 20 alunos surdos, graduandos de três Instituições de Ensino Superior na cidade São Luís, Maranhão, entre estas, a Universidade Federal do Maranhão (UFMA), o Centro Universitário Leonardo Da Vinci (Uniasselvi) e a Faculdade Pitágoras do Maranhão. Considerando-se a proporção com que o computador, smartphones e a Internet alcançaram, no que se refere às novas possibilidades de comunicação e informação no âmbito educacional e, a partir da constatação de que estas, ainda que utilizadas socialmente em rede, se constituem enquanto tecnologias acessíveis visualmente, solicitou-se aos participantes, que elencassem entre os aplicativos Facebook, Whatsapp, Instagram, ou outro, mencionando qual seria o mais utilizado para tratar e/ou discutir a respeito de algum trabalho da universidade. Os sujeitos da pesquisa apontaram o WhatsApp como o aplicativo mais utilizado para comunicação com outros colegas e professores, em um total de 90%. Foi evidenciada especialmente a comunicação por meio de textos escritos, ainda que o aplicativo seja bastante comum em seu uso no tocante a mensagens de voz e vídeo. Vale ressaltar que o aplicativo Instagram foi mencionado por dois surdos, correspondendo a 10% da pesquisa ao considerar este como o canal mais utilizado nas atividades acadêmicas. Nessa direção, Santos, Pereira e Mercado (2016) afirma que o WhatsApp é utilizado para interação e comunicação entre os participantes, possibilitando a conse- cução de um trabalho a partir da multimodalidade textual, haja vista este possibilitar o envio e recebimento de mensagens de textos em imagens, vídeos ou mesmo por áudios. Para Araújo e Bottentuit Júnior (2015, p.13) a “ideia de bate papo contínuo” 84 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) do uso do Whatsapp, possibilita o alcance dos objetivos propostos para a aula, assim como, comunicacional enquanto condição precípua para a interação entre surdos e ouvintes, sendo esta uma condição importante para a construção de saberes. As sociabilidades virtuais, indiscutivelmente, oportunizaram aos surdos e pessoas com deficiência física a assumirem papéis atuantes em atividades no mercado de trabalho assim como na esfera educacional e como apontam Miglioli e Souza (2015, p. 50) “para os surdos a web fornece protocolo de comunicação inerentemente acessível e uma interface pervasiva, possibilitando que eles, mesmo diante de diferenças, possam agir e interagir com a sociedade”. Nesta acepção, foi perguntado na pesquisa também sobre o uso de apli- cativos relacionados aos seus respectivos cursos, a fim de identificar se usavam ou conheciam algum. Dos 20 surdos entrevistados, 17 responderam que não usavam e nem conheciam aplicativos que o ajudassem e fossem próprios dos seus cursos de graduação; os três surdos que disseram conhecer aplicativos rela- cionados foram discentes do curso Letras-Libras, da Universidade Federal do Maranhão, referindo-se ao aplicativo Hand Talk34. Quando perguntados sobre o site de busca Google, 100% dos entrevistados responderam que o utilizam em suas atividades acadêmicas como principal fonte de pesquisa. DISCUSSÃO E ANÁLISE DE DADOS Para Volterra (1994) apud Lacerda e Polleti (2009, p. 159) a inclusão de alunos surdos no sistema regular de ensino necessita de alguns suportes que garan- tam resoluções de problemas relativos à comunicação, desse modo, um dos recursos mais comuns são os profissionais intérpretes/tradutores de Libras, incorporados à sala a partir de dispositivos legais (Decreto 5.626/2005) como intermediadores linguísticos. Entretanto faz-se necessário buscar alternativas dinâmicas a fim de instigar a participação desses sujeitos na interação em sala de aula, propiciando apoio para alcançar seus objetivos educacionais, assim, é imprescindível a oferta de recursos tecnológicos que assegurem o acesso ao conhecimento destes sujeitos. Nesta perspectiva, a partir dos dados coletadosna pesquisa, observando-se a escolha dos surdos nos cursos de graduação pelo WhatsApp, buscou-se relacio- 34 Aplicativo de tradução de Libras automática, recebe comandos de voz e texto. Escreve-se a palavra em português e o avatar do app (Hugo) realiza a sinalização em Libras. 85 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva nar as funções do referido aplicativo enquanto possíveis recursos pedagógicos. Assim, refletiu-se para a possibilidade do recurso “grupo”, a ser considerado como passo inicial nesta utilização do aplicativo com alunos surdos, tendo em vista que é um dos mais comuns canais de mensagens simultâneas entre contatos do aplicativo em questão, permitindo que os alunos tenham acesso ao conteúdo compartilhado neste canal, podendo estes ser dicas das aulas, dúvidas recor- rentes, e disponibilização de endereços eletrônicos com materiais importantes dos respectivos cursos. Outra função bem atual e bastante conhecida no Whatsapp é o status. Este permite que uma ou mais fotos e informações se mantenham durante 24 horas disponíveis aos contatos presentes no aplicativo, de modo que possam ser visualizadas várias vezes sem que haja contato direto por bate-papo, tornando-se assim, relevante para expor conteúdos que o surdo possa adquirir sem sentir-se intimidado, uma vez que as conversas em grupos do WhatsApp têm a partici- pação desses indivíduos em menor escala. Ratificando a colocação, Miglioli e Souza (2015) demarcam que os ambientes de interação virtual incentivam a autoconfiança dos surdos por propiciar situações de equidade. Outro fator, muito discutido na área da surdez e pouco resolvido pelas políticas públicas é a questão das dificuldades que estes sujeitos possuem em relação à língua portuguesa em sua modalidade escrita, como é discutido por Falcão (2015), Lodi (2010), e outros autores. Desta forma, usando o recurso status do WhatsApp, poderiam ser postadas diariamente dúvidas que fossem recorrentes destes estudantes, tais como os sinônimos de palavras usadas nas aulas, pois o vocabulário da Língua Portuguesa para o surdo não é tão amplo quanto para os ouvintes, como afirma Salles (2004). A percepção do professor enquanto agente principal no desenvolvimento das aulas poderia voltar-se a algumas questões que não ficaram esclarecidas a este aluno. A título de exemplo, entre os entrevistados, um surdo do curso de Design, hipoteticamente sentindo-se confuso com algum termo estrangeiro, poderá acessar o status no qual é possível dispor de breve explicação do sig- nificado, postagem de sinônimos e aplicação em frases como observa-se nas figuras 1 e 2 86 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Figura 1 – Significado de palavra Figura 2 – Sinônimo de palavra Fonte: Os autores Fonte: Os autores Estes mini ambientes virtuais de aprendizagem não precisam exigir que professor e aluno tenham uma relação de amizade ou de intimidade, podendo para isso, delimitar-se horários para envio de informações, e neste ponto os destaques de conteúdos em status independem de conversa, uma vez que, ficam disponibilizados durante 24h. Nesse presente estudo, os sujeitos da pesquisa, os surdos do Ensino Superior, estão rodeados de aparatos que contribuem para o seu desenvolvimento intelectual, pois o Whatsapp é composto por diversos recursos visuais como fotos, vídeos, imagens e textos que permitem o acesso e interação desses sujeitos em redes, como concorda Dudeney (2016). Os estudos atuais têm narrado acerca da experiência com alunos surdos em sala de aula, no que concerne as dificuldades destes sujeitos e muitas vezes da timidez em participar de discussões (FALCÃO, 2015; SÁ, 2016; SKLIAR, 2016) assim, os vídeos como recurso poderiam ser eficazes em situações nas quais houvessem dúvidas a serem sanadas, sobretudo no tocante às interações com intér- pretes. Nesta ótica, as perguntas respondidas através de vídeos são esclarecidas de forma mais eficiente do que via texto escrito. Deste modo, pensou-se em pequenos vídeos compartilhados no grupo com explicações de assuntos mais complexos. Vale ressaltar que as sugestões dispostas neste trabalho, embora pareçam metodologias a serem adotas em séries do nível médio e fundamental, tornam-se primordiais no ensino superior, pois segundo afirma Skliar (2016) a fragilidade do ensino de surdos é fenômeno presente nesta etapa de ensino também. Sendo 87 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva assim, de acordo com Miglioli e Souza (2015) é primordial que mais atenção no campo do uso de tecnologias sejam dadas aos alunos surdos. Seguindo esta perspectiva, como recursos de conversas coletivas, no momento de interação entre o grupo, poderiam ser adotadas estratégias de criação e reprodução de listas a partir de elementos relacionados à graduação. Assim, para um grupo do curso de Letras poderia ser solicitado que listassem gêneros textuais, instigando assim a pesquisa sobre o tema e a prática da lín- gua portuguesa em modalidade escrita. Para melhor visualizar as sugestões resumiu-se no quadro 1 as funções existentes no aplicativo; as dificuldades dos surdos; a forma como melhor utilizar as funções do WhatsApp e a contribuição da estratégia sugerida. Quadro 1 - sugestões de uso do whatsApp como recurso pedagógico RECURSO DO WHATSAPP DIFICULDADE DO SURDO COMO UTILIZAR CONTRI- BUIÇÃO AO ALUNO SURDO GRUPO Timidez na intera- ção em sala de aula; dificuldade com a modalidade escrita da língua portuguesa. Criar o grupo para que a sala possa ter acesso aos conteúdos de forma dinâmica. Maior contato com os outros e acesso de modo independente ao conteúdo. Prática da escrita. CONVERSA Língua Portuguesa em modal idade escrita Quiz com temática sobre as aulas; brin- cadeiras de pergun- tas e respostas. Enr iquecimento linguístico. REPRODUÇÃO DE LISTA Escrita e leitura Criação de listas de elementos das disciplinas. Desenvolvimento nas produções tex- tuais escritas. STATUS Sinônimos ou signi- ficados de palavras. Postar diariamente dicas ortográficas; Aumento do vocabulário. VÍDEOS Como uma das fun- ções do aplicativo não pode ser utili- zada (áudio) o vídeo pode substitui-lo. Em parceria com os intérpretes pode-se postar vídeos deta- lhando atividades ou revisão de conteúdo. Ass imi lação de forma eficaz de conteúdo. Fonte: Os autores 88 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) A partir do conteúdo exposto no quadro de sugestões, compreendeu-se a possibilidade de aprimoramento no que concerne ao ensino de conteúdos a sujeitos surdos utilizando o WhatsApp, que segundo a pesquisa, mostrou ser o meio comunicacional virtual mais utilizado por eles; e, mesmo com algumas limitações comunicacionais o referido aplicativo inclui os alunos surdos à sala de aula apesar destes se manterem longe dela. Sendo estas algumas inquietações elencadas inicialmente neste estudo, a partir de leituras e experiências com a pesquisa de campo, percebeu-se a eficiência no seu uso enquanto recurso pedagógico. Nessa acepção, segundo Dudeney (2016, p. 307) tais recursos de “grades de atividades digitais” podem ser muito úteis para os alunos desenvolverem habilidades em letramentos digitais, contribuindo, assim, para o desenvolvimento intelectual em sala e apresentando ainda benefícios permanentes que poderão ser utilizados em suas vidas profissional, social e pessoal. CONSIDERAÇÕES O mundo é inventado tanto no coletivo, quanto individualmente, ou seja, no âmbito do processo de interação, cada sujeito inventa a si mesmo a partir de sua interação com a realidade. No contexto comunicacional, cada sistema criado aproxima socialmente os sujeitos, e sendo assim, vive-se atualmente em espaços que se “metamorfoseiam e se bifurcam a nossos pés, forçando-nos à heterogênese” (LEVY, 2011, p. 23). Nesse desiderato, professores, futuros professores e profissionais da educação têm sentido, o efeito das tecnologias sobre o processode ensino e de aprendizagem de forma significativa e, tal fenômeno exige dos professores aquisição de novas habilidades, com vistas a terem acesso aos recursos que as tecnologias disponibilizam, segundo afirma Dudeney (2016). Assim, a partir do estudo ora apresentado, inferiu-se que as atuais polí- ticas de educação inclusiva também demandam dos professores novas formas de desenvolver seus trabalhos docentes, sendo estes possibilitados a partir do uso das tecnologias que podem se dar através de aplicativos usados diariamente, como o WhatsApp, repensado o seu uso enquanto recurso pedagógico dinâmico e eficaz para a construção intelectual de alunos surdos. 89 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva Durante o percurso do estudo foi possível verificar ainda que apesar de o WhatsApp ser um aplicativo fortemente marcado por envio de conteúdos de sons, os surdos, mesmo com a ausência de audição, o escolheram como canal mais importante para desenvolver suas atividades acadêmicas, e o site de busca Google foi destacado como o canal usado por 100% entre os parti- cipantes da pesquisa. Ainda há muito questionamento acerca da educação de surdos. As discussões são relativamente novas, entretanto a presença destes estudantes em todos os níveis de ensino, a partir dos dispositivos legais, demanda metodologias específicas para aquisição de novos conhecimentos. Nesse sentido, consideran- do-se a nova geração conectada, é relevante pensar nos sujeitos surdos incluídos em sala de aula, como um público a ser também envolvido nessa nova forma de educação inclusiva e virtual. REFERÊNCIAS ARAÚJO, P. C.; BOTTENTUIT JUNIOR, J. B. O aplicativo de Comunicação What- sapp como estratégia no ensino de Filosofia. Revista Temática, Paraíba, v. 11, n. 2, 2015. BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: edições Loyola, 2007. BRASIL. Decreto-Lei nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais. Brasília: Presidência da República, 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ Ato2004-2006/2005/Decreto/D5626.htm. 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Porto Alegre: Mediação, 2016. 91 EDUCAÇÃO INFANTIL BILÍNGUE: REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DO PROFESSOR SURDO NO DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM EM CRIANÇA SURDA Adelaine Valéria Gomes Lima35 Francisca Janaína de Araújo Sampaio36 INTRODUÇÃO A Educação Infantil representa a etapa escolar mais importante para processo de desenvolvimento da criança. É nesta fase que a criança inicia o seu processo de socialização e desenvolvimento linguístico. Por isso, é fundamental que o espaço escolar ofereça todas as condições para que esse processo ocorra respeitando todas as etapas de seu desenvolvimento. Tratando-se de crianças surdas, é possível constatar que as mesmas chegam à escola com atraso na linguagem, pois a grande maioria está inserida em lares ouvintes, em que a interação comunicativa é realizada oralmente. Considerando que a criança surda não utiliza o canal oral-auditivo, o contexto linguístico familiar tornar-se desfavorável à aprendizagem, uma vez que a aquisição da linguagem não ocorre no tempo adequado. Ademais, verifica-se que as escolas inclusivas, em geral, não ofertam a Língua de Sinais na grade curricular, o que reduz ainda mais a possibilidade de a criança desenvolver sua linguagem, embora a legislação assegure o direito ao ensino de Libras na Educação Infantil. Nessa perspectiva, busca-se na presente pesquisa demonstrar a importância da atuação do docente surdo no âmbito escolar, com o intuito de contribuir no pro- cesso de aquisição de Libras pelas crianças surdas. Para tanto, pretende-se apresentar caminhos que articulam concepções e organizações em relação ao ensino de Libras por professores surdos para crianças surdas. Este trabalho se organiza a partir de abordagens sobre o processo de aquisição da linguagem pela criança surda, por 35 Mestranda em Letras (UFT). Professora auxiliar efetiva (UFT). CV: http://lattes.cnpq.br/5108591950348565 36 Graduanda em Letras. CV: http://lattes.cnpq.br/7716811936270695 92 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) meio de postulados que tratam da Educação Infantil para alunos surdos, bem como refletir a respeito do papel do professor surdo na Educação Infantil para surdos. DESENVOLVIMENTO Com o intuito de conhecer o processo de aquisição da linguagem da criança surda, assim como, tecer considerações sobre a oferta da Educação Infantil para surdos em contextos inclusivos e inclusivos bilíngues, busca-se identificar o papel do professor surdo na Educação Infantil para o desenvolvimento da linguagem em criança surda. Para tanto, serão problematizadas as seguintes hipóteses: se é possível conjecturar que a criança surda estabelece uma interação mais produtiva com o professor surdo; se a aquisição de Libras é realizada de forma natural, tal como um adulto surdo e, por fim, quais as contribuições da presença do profes- sor surdo no ambiente escolar na constituição da subjetividade da criança surda. Os pressupostos teóricos que nortearão essa pesquisa são os apontamentos de Chomsk (1986),Quadros (1997), Quadros e Karnopp (2008), Fernandes (2003); Lodi (2012); Reis (2007), Morais (2015),Carrara (2004), entre outros estudiosos. De acordo com a abordagem gerativista de Noam Chomsk, os seres humanos são dotados de uma capacidade inata para a aquisição da linguagem, ou seja, o homem já nasce com a predisposição para adquirir uma língua, indepen- dente da sua condição sensorial. E como isso ocorre? Segundo Noam Chomsk (1986 apud QUADROS, 2017), existe um mecanismo interno ou dispositivo que acionado poderá permitir que o sujeito acesse a sua língua natural, pois toda a espécie humana possui uma Gramática Universal interna, que possui princípios gerais com abrangência à todas as línguas, sendo elas orais ou de sinais. Para os gerativistas, o ser humano possui uma capacidade criativa para a competência linguística. Isso significa dizer que, a partir de unidades limitadas, é possível se expressar e compreender sentenças de forma irrestrita (QUADROS, 2017). Nesse ínterim, linguagem e língua possuem diferenças conceituais. Chomsk (1986 apud QUADROS, 2017, p. 46) considera a linguagem um conjunto de representações mentais e a língua, como um conceito político. Desse modo, a linguagem possui um significado amplo, podendo abarcar distintas formas de comunicação, tais como: a linguagem dos animais, mímicas, música, cores. Já a língua possui um caráter restrito por ser considerada uma forma de linguagem, 93 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva mas de natureza humana, adquirida de forma natural, ou seja, por intermédio das interações humanas e sendo transmitida de geração em geração. A língua é, portanto, constituída como um sistema abstrato de regras gramaticais, e também, o objeto de estudo da linguística (FERNANDES, 2003). Considerando a perspectiva gerativista, pode-se inferir que todas as crian- ças possuem condições plenas para a aquisição de sua língua natural ou língua 1, pois, há uma condição biológica para que esse processo seja desencadeado (Cf. QUADROS, 2017). Segundo tais pressupostos teóricos, a base inata é de fundamental importância para explicar como ocorre o processo de aquisição da linguagem, a razão da existência de diferentes estruturas gramaticais, bem como enfatizar que o ser humano é o único ser capaz de acessar a linguagem no seu sentido stricto sensu, ou seja, a língua. A respeito da aquisição da língua de sinais, a teoria gerativista reconhece que são línguas naturais, semelhantemente às línguas orais. A existência de um mecanismo inato capaz de desencadear o processo de desenvolvimento da lin- guagem na criança, não será por si só suficiente para a aquisição da linguagem, é preciso que haja uma interação entre fatores biológicos e ambientais. Nesse sentido, Na perspectiva inatista, há um componente da faculdade da linguagem na mente/cérebro da criança. A interação entre fatores ambientais e biológicos explica o uso que a criança faz da linguagem, tanto com relação à sua compreensão como com a sua produção da linguagem. Assim, os fatores do ambiente interferem no uso da linguagem, possibilitando colocar em uso um sistema de conhecimento que identifica e extrai do ambiente informações relevantes para acessar recursos que estão biologicamente determinados (QUADROS, 2017, p. 52). Partindo da ótica inatista, a autora explica que é a partir da interação entre os fatores biológicos e ambientais que a criança fará uso da linguagem, tanto na dimensão expressiva quanto na compreensiva. Assim, os fatores ambientais deverão ser considerados no processo de aquisição da língua, pois é a partir deles que os recursos biológicos serão acessados. É interessante observar que o processo de aquisição da linguagem em crianças surdas é semelhante ao processo de aquisição nas crianças ouvintes (QUADROS, 1997). Logo, para estudiosos da teoria gerativista, as crianças surdas, 94 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) mesmo não expostas às línguas orais ou espaço-visuais, desenvolvem um tipo de linguagem para sua comunicação. Isso, por sua vez, reafirma o pressuposto da teoria chomskiana de que todos os seres humanos são dotados de uma capacidade inata para o desenvolvimento da linguagem, possuindo um conhecimento linguístico que é denominado de competência linguística. Sobre a existência da Gramática Universal no processo de desenvolvimento da criança surda, Fernandes afirma que Estudos realizados por Goldin-Meadow e Feldman, em 1977, e citados por Sacks (1990), mostram que, mesmo não sendo expostas a nenhum tipo de linguagem oral-au- ditiva ou espaço-visual, as crianças surdas desenvolvem espontaneamente um sistema de gesticulação manual, e que há semelhanças entre os sistemas envolvidos por crianças surdas que nunca tiveram contato entre si. Assim, pesquisadores concluem que é perigoso pressupor que a criança surda não desenvolva uma linguagem própria (na ausência de uma língua convencional), e não se utilize dela para a resolução, por exemplo, de testes cognitivos. É bastante convincente, portanto, pressupor como certa a hipótese de que a semelhança existente entre os sistemas desenvolvidos por essas crianças advém de universais linguísticos (FERNANDES, 2003, p. 30). Nesse prisma, a autora traz dados de pesquisas que demonstram que crianças surdas não-expostas à língua oral ou espaço-visual podem desenvolver um sistema gestual de comunicação, sendo que o processo decorre da Gramática Universal, desencadeadora da competência linguística. No que tange ao processo de aquisição da linguagem na criança surda, cabe ressaltar que ocorre de forma semelhante em vários aspectos com o pro- cesso de aquisição em crianças ouvintes, por meio de uma sequência crono- lógica caracterizada por etapas. Laura Petitto e Paula Marantette (1991 apud QUADROS, 1997, p. 70-75) pontuam que o primeiro estágio é denominado de Período pré-linguístico. Esse período inicia-se no nascimento e vai até 14 meses. De acordo com tais pressupostos, tanto o bebê surdo quanto o bebê ouvinte apresentam o fenômeno do balbucio, considerado capacidade inata do ser humano para a produção de sons e sinais. Tais estudos demonstraram que o bebê surdo realiza duas formas distintas de balbucio manual: o silábico e a gesticulação, sendo que no balbucio silábico verifica-se a presença de combina- 95 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva ções de elementos do sistema fonético da língua de sinais, o que não se verifica na gesticulação, na qual se produz uma forma de comunicação não organizada. A segunda etapa, denominada de Estágio de um sinal, estende-se dos 12 meses até aproximadamente os 2 anos de idade. No entanto, segundo Karnopp (1994 apud QUADROS, 1997, p. 71), alguns estudos indicam que esse estágio se inicia mais cedo, ou seja, por volta dos 6 meses. Nessa fase, o apontamento que no período pré-linguístico representava um meio para a criança indicar um objeto ou pessoa passa a ter um novo significado, ou seja, a apontação deixa de ser gestual e passa a funcionar como um elemento do sistema gramatical da língua de sinais (PETITTO, 1987 apud QUADROS, 1997, p. 71). A etapa seguinte é o Estágio das primeiras combinações, que surge nos 2 anos de idade. A esse respeito, há estudos que indicam que nesse período a ordem das palavras usadas pelas crianças é SV, VO, e em período posterior, SVO (FISCHER, 1973; HOFFMEISTER, 1978 apud QUADROS, 1997, p. 71). Nesse estágio, a criança começa a usar o sistema pronominal, mas de forma inconsistente (QUADROS, 1997, p. 72). O último estágio é o Estágio de múltiplas combinações, que aparece por volta dos dois anos e meio a três anos. É nessa etapa que as crianças surdas apresentam a chamada explosão de vocabulário, não utilizando os pronomes no espaço para identificar pessoas e coisas que não estejam presentes (BELLUGI; KLIMA, 1989 apud QUADROS, 1997, 74). Isto posto, pode-se constatar que nem sempre essas etapas ocorrem nessa sequência, pois a maioria das crianças surdas nasce em lares ouvintes, e muitas vezes, além do atraso na identificaçãoda surdez, nem sempre as famílias das crianças são orientadas sobre o seu processo de aquisição da linguagem de forma natural e espontânea, o que tende a se acentuar ao longo da formação escolar. Nesse sentido, a privação de um pleno desenvolvimento linguístico desencadeia sérios problemas nas áreas cognitiva, social e emocional. No que tange à base legal, cabe ressaltar que a Educação Infantil cor- responde a uma das modalidades de ensino que integram a Educação Básica, sendo assegurada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação nª 9394/1996, e será ofertada em diferentes etapas, de acordo com a idade da criança. A respeito da finalidade e etapas dessa modalidade, o artigo 29 da legislação da LDB ,que 96 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) orienta a Educação Infantil, ressalta que a finalidade dessa modalidade será o de garantir o desenvolvimento integral da criança. Essa premissa relaciona-se com a teoria da psicogenética de Henry Wallon que assinala que as práticas pedagógicas devem integrar os diferentes aspectos da criança, ou seja, intelectual, emocional, social, motor e cognitivo, o que exigirá da escola uma atuação para além do caráter instrucional (NASCIMENTO, 2004, p. 64). Essa etapa não pode ter abrangência ao aspecto lúdico, porém, aspectos como cognição, social, emocional e linguagem, deverão ser considerados, sobretudo porque trata-se da fase inicial em que o sujeito dará conta da sua singularidade a partir de sua integração num grupo. A base legal da educação bilíngue para surdos fundamenta-se no reco- nhecimento de que a primeira língua (L1) do surdo é a Libras e a sua segunda língua (L2) é a Língua Portuguesa. Portanto, uma proposta de educação bilíngue para surdos deverá ter como princípio o respeito à sua condição de sujeito de experiência visual. Conforme Thoma (2013), a proposta educacional bilíngue deve respeitar a experiên- cia visual e lingüística do aluno surdo durante o processo de ensino-aprendizagem, bem como reestruturar a ação pedagógica, valorizando e ressaltando as especificidades e subjetividade do sujeito. Pensar em uma educação para surdos implica considerar ‘suas características sociais, descartando a patologia e aproximação do surdo com o modelo ouvinte [...] (THOMA, 2013, p. 127). Ao tratar da proposta educacional para surdos, a autora chama a atenção para pontos essenciais para que uma proposta bilíngue seja bem-sucedida. A primeira condição é a de que é preciso enxergar o indivíduo surdo sob a ótica de um sujeito de experiência visual, substituindo, então, a visão patológica da surdez. A estudiosa defende, ainda, que diante da proposta bilíngue para surdos, é fundamental que a condição de experiência visual seja respeitada e valorizada. Isso deverá ser o ponto de partida para mudanças no currículo e no processo de ensino-aprendizagem. LODI, Ana Claudia Lodi (2009) e outros autores comungam da mesma ideia a respeito da educação bilíngue, visto que esta educação pressupõe o reconhecimento da língua de sinais do país como primeira língua (logo a língua usada nos processos educacionais), o desenvolvimento de práticas e implantação de um currículo escolar que considerem os 97 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva aspectos culturais determinados e determinantes desta língua e o ensino da linguagem escrita da língua majoritária como segunda língua (LODI et al, 2009, p. 2). De acordo com os autores, é preciso que a língua de sinais seja reconhecida e adotada como a língua de instrução na educação bilíngue para surdos, bem como considerar a relevância de temas caros à comunidade surda nas práticas educacionais e no currículo, assim como ensinar a cultura e a Língua Portuguesa na modalidade escrita. No Brasil, a Educação Bilíngue passou a ser prevista com o Decreto nº 5.626/2015, que regulamenta a Lei de Libras nº 10.436/2002. Sobre o direito ao acesso dos surdos à educação, o Capítulo IV, dentre várias garantias, estabelece em seu artigo 14 que As instituições federais de ensino devem garantir, obri- gatoriamente, às pessoas surdas acesso à comunicação, à informação e à educação nos processos seletivos, nas atividades e nos conteúdos curriculares desenvolvidos em todos os níveis, etapas e modalidades de educação, desde a educação infantil até à superior. § 1º Para garantir o atendimento educacional especiali- zado e o acesso previsto no caput, as instituições federais de ensino devem: I - promover cursos de formação de professores para: a) o ensino e uso da Libras; b) a tradução e interpretação de Libras - Língua Portuguesa; e c) o ensino da Língua Portuguesa, como segunda língua para pessoas surdas; II - ofertar, obrigatoriamente, desde a educação infantil, o ensino da Libras e também da Língua Portuguesa, como segunda língua para alunos surdos; III - prover as escolas com: a) professor de Libras ou instrutor de Libras; b) tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa; c) professor para o ensino de Língua Portuguesa como segunda língua para pessoas surdas; e d) professor regente de classe com conhecimento acerca da singularidade linguística manifestada pelos alunos surdos (BRASIL, 2005, grifos nossos). 98 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Conforme o decreto, a Educação Bilíngue deverá ser garantida por meio da expansão da Libras, nos cursos de formação de professores para o ensino da Libras e da Língua Portuguesa como L2, bem como nos cursos de formação de tradutores e intérpretes. No inciso II, consta que a oferta da Libras deverá ser obrigatória a partir da Educação Infantil, e as escolas deverão ser providas de profissionais fluentes na Libras, tal como o professor de Libras ou instrutor de Libras, que, nesse caso, refere-se ao sujeito surdo, usuário nativo dessa língua. O Plano Nacional da Educação - PNE (2014-2024) na sua estratégia 4.7, da meta 7, em consonância com o decreto nº 5.626/2005, promete em até 10 anos implementar a Educação Bilíngue dos Surdos em todos as modalidades da educação básica Garantir a oferta de educação bilíngue, em Língua Bra- sileira de Sinais - LIBRAS como primeira língua e na modalidade escrita da Língua Portuguesa como segunda língua, aos (às) alunos (as) surdos e com deficiência auditiva de 0 (zero) a 17 (dezessete) anos, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas (BRASIL, 2014). A partir de tais premissas, é necessário criar condições para que esse processo ocorra efetivamente e da melhor forma possível. Se a Língua de sinais é a L1 do surdo, é fundamental que seja garantido nesses espaços a presença de interlocutores nativos da língua de sinais, como os professores surdos. É somente em ambiente dialógico e enunciativo que ocorrerão as legítimas interações intersubjetivas. E isso só pode ser, de fato, assegurado à criança surda por meio de seu contato com um modelo linguístico autêntico, e nesse caso, trata-se do professor. Sob essa perspectiva, assegurar a educação bilíngue para surdos requer o res- peito a alguns princípios, sem os quais se incorre no risco de um processo que se mantém apenas no plano discursivo. O primeiro deles é a garantia de oportuni- dades para os alunos surdos desenvolverem linguagem/ apropriarem-se da Libras como primeira língua, por meio da interação com interlocutores usuários desta língua, membros da(s) comunidade(s) surda(s) brasileira(s), que devem assumir lugares sociais de pertinência nos espaços educacionais – professores surdos (LODI et al, 2009, p. 2). A partir de tais premissas, as grandes questões que se apresentam são: como implementar esse modelo de educação bilíngue num contexto em que a Língua 99 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva de Sinais nem sequer é reconhecida? Como reconfigurar esse espaço tendo como ponto de partida o reconhecimento do direito linguístico do surdo, por meio da sua língua de expressão e na interlocução com o outro igual a ele? Como garantir a presença do professorsurdo, no âmbito escolar, sendo ele o principal interlocutor da criança surda? A respeito desse último questionamento, Lodi et al (2009, p. 2) sustentam que os adultos surdos são os “interlocutores privilegiados para a imersão dos alunos na língua por possuírem domínio das diferentes linguagens constitutivas da Libras”. Além deles, é preciso garantir a presença de colegas surdos no mesmo espaço para que as crianças interajam e dialoguem através da Libras (GÓES;TARTUCI, 2002 apud LODI et al, 2009, p. 2). A Educação Infantil ofertada para crianças surdas em escolas inclusivas, sem a presença da Língua de Sinais nos processos interlocutórios e pedagógicos, tem sido objeto de muita crítica e discussão ao longo dessas últimas décadas. A ausência de um ambiente inclusivo bilíngue favorável à criança surda, por sua vez, tem provocado sérios prejuízos no seu processo de desenvolvimento da linguagem, desencadeando problemas em outras áreas. Estudos feitos por Stumpf (2008) revelaram que os estudantes surdos não têm tido boas oportunidades no ambiente escolar devido à ausência de acessibilidade ao conhecimento. A autora pontua, ainda, que esse quadro está ligado aos seguintes aspectos: a falta de professores surdos, o pouco domínio pelos professores ouvintes da Libras [...] o desconhecimento de toda a comunidade escolar das reais implicações da surdez e a dominância dos estereótipos da deficiência (STUMPF, 2008, p. 21). Desse modo, pode-se conjecturar que nesse cenário em que a criança surda está inserida, ou seja, em uma sala com alunos ouvintes, longe de seus pares surdos, com professores ouvintes não bilíngues e sem a presença do professor surdo, é muito pouco provável que ela tenha condições favoráveis para se desenvolver. Assim sendo, faz-se necessário garantir a Língua de Sinais no cotidiano da escola durante as interações e atividades pedagógicas, sem prescindir da presença do professor surdo. Sobre a importância da presença da Libras e o empoderamento na etapa da Educação Infantil junto aos alunos surdos, Martins et al (2015) dizem que mais importante que ter a circulação da Libras na escola é, de fato, possibilitar que essa língua seja empoderada 100 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) nos usos cotidianos, nas avaliações, nas salas de aulas, na relação com alunos ouvintes, tendo espaço de poder nas negociações escolares como a língua portuguesa. É ter a presença de educadores surdos que tragam para a cultura escolar aspectos culturais das pessoas surdas (MARTINS et al, 2015, p. 104). Isso significa que, mais do garantir essa língua no espaço da escola, a Libras deverá ser prestigiada nas diferentes situações do cotidiano escolar. Para isso, conforme aponta a estudiosa supracitada, a presença de educadores surdos nesse espaço institucional será de fundamental importância, pois são eles os utentes da língua pertencentes à cultura surda. Considerando que a maioria das crianças surdas nasce em lares ouvintes, deverá ser o espaço escolar o ambiente mais apropriado para o processo de aquisição da linguagem. Em caso de crianças surdas filhas de pais surdos que já fazem utilização da Língua de Sinais, serão igualmente favorecidas, pois o processo de desenvolvimento seguirá o seu curso natural, sem interrupções. Para tanto, é fundamental que a escola assegure à criança um ambiente com a presença de um adulto surdo, que será o principal o interlocutor dessa criança. Desse modo, a aquisição da linguagem em crianças surdas deve ser garantida através de uma língua visual-espacial, no caso do Brasil, através da LIBRAS. Se a criança chega na escola sem língua, é fundamental que o trabalho seja direcionado para a retomada do processo de aquisição da linguagem através de uma língua espaço-visual (QUA- DROS; KARNOPP, 2001, p. 214-230). Para além da Língua de Sinais, é preciso que a criança surda vivencie situações interativas com o adulto surdo, usuário da Língua de Sinais, imerso em cultura de experiência visual e, portanto, o modelo linguístico para a criança. De acordo com Vygostky (apud CARRARA, 2004, p. 142), as relações do indivíduo com a cultura constituem condição essencial para seu desenvolvimento, uma vez que acontece em situações de interação e troca de experiências com o adulto. E para que isso ocorra, é preciso que haja uma língua estabelecendo contato entre criança e adultos. Em se tratando de sujeito surdo, essa língua será a Língua de Sinais. Nesse prisma, cabe ressaltar que A presença do educador surdo propiciou isso e o contato com um igual, com um adulto fluente na língua que as 101 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva crianças precisavam adquirir. Observando o cotidiano da escola foi possível notar a disponibilidade e recepti- vidade desse educador, que proporcionou interações de qualidade, o que fez com que as crianças vivenciassem positivamente a surdez e tornou-se referência para a construção de sua identidade (TURETTA, 2006, p. 38-39). A respeito da importância da presença do professor surdo na escolarização do surdo, Reis (2007) esclarece que a Libras contribui para a constituição da subjetividade dos alunos surdos, sobretudo por determinar aspectos importantes das comunidades surdas. Assim, É esse profissional quem possibilita que alunos surdos, filhos de ouvintes, olhem a si próprios como surdos, apropriando-se de formas de se relacionar com o(s) outro(s) e com o mundo que difere daquela realizada por seus pais, professores e colegas ouvintes (REIS, 2007, p. 87). Segundo Lodi (2009, p. 2), a criança usuária de uma língua diferente, tal como a criança surda, tende a tornar-se excluída dos processos de socialização e de aprendizagem. Desse modo, é essencial que a Língua de Sinais assuma a sua posição de prestígio de L1 dos alunos surdos, sendo adotada como língua de instrução desse aprendiz. CONSIDERAÇÕES A partir das análises dos estudos bibliográficos, constatamos que a criança surda tem a Língua de Sinais como sua L1 e que, por essa razão, a interação da criança surda com o adulto surdo serão fundamentais para a aquisição de sua língua. Considerando que o professor-surdo é o principal interlocutor da criança surda, ela adquire a Libras de formas natural e espontânea, e quanto mais precoce o contato com o nativo da sua língua, mais efetiva será a aprendizagem, contribuindo, assim, para a formação de sua subjetividade. Assim, a presença do professor surdo na Educação Infantil é imprescin- dível e urgente, e, para que isso se concretize, de fato, é preciso que a legislação seja efetivamente cumprida. 102 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) REFERÊNCIAS BRASIL. Decreto n.5626 de 22 de dezembro de 2005. BRASIL. Ministério da Educação. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, 1996. BRASIL. Plano Nacional de Educação 2014-2024: Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) e dá outras providências. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2014. Fernandes, E. Problemas linguísticos e cognitivos do surdo. Rio de Janeiro: Agir, 2003. KARNOPP, Lodenir; QUADROS, Ronice Muller. Educação infantil para surdos. In: ROMAN, Eurilda Dias; STEYER, Vivian Edite (orgs.). A criança surda de 0 a 6 anos e a educação infantil: um retrato multifacetado. Canoas: 2001. p. 1-14. LODI, Ana Claudia Balieiro; ROSA, André Luís Matiolli; ALMEIDA, Elomena Bar- boza de. Apropriação da Libras e o constituir-se surdo: a relação professor surdo-alunos surdos em um contexto educacional bilíngue. ReVEL, v. 10, n. 19, 2012. MARTINS, Vanessa Regina; ALBRES, Neiva de Aquino; SOUSA, Wilma Pastor de Andrade. Contribuições da Educação Infantil e do brincar na aquisição de linguagem por crianças surdas. Revista Pro-Posições, v. 26, n. 3, p. 105. Campinas, 2015. NASCIMENTO, Maria Letícia B. P. A criança concreta, completa e contextualizada:a psicologia de Henri Wallon. In: CARRARA, Kester (org.). Introdução à psicologia da educação: seis abordagens. São Paulo: Avercamp, 2004. p. 64. QUADROS, Ronice Muller de. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artmed, 1997. p. 67-101. QUADROS, Ronice Muller. O paradigma gerativista e a aquisição da linguagem. In: QUADROS, Ronice Muller; FINGER, Ingrid (orgs). Teorias de aquisição da lingua- gem. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2017. p. 42-55. REIS, Flaviane. Professores surdos: identificação ou modelo? In: QUADROS, Ronice Muller; PERLIN, Gladis (orgs). Estudos Surdos II. Petrópolis: Arara Azul, 2007. p. 87-89. STUMPF, M. R. Mudanças estruturais para uma inclusão ética. In: QUADROS, R. M. de (org.). Estudos surdos III. Rio de Janeiro: Arara Azul, 2008. p. 21. THOMA, A. da. S. Surdos: esse “outro” de que fala a mídia. In: SKLIAR, C. (org.). A surdez: um olhar sobre as diferenças. 6. ed. Porto Alegre: Mediação, 2013. p. 121- 136. TURETTA, Beatriz Aparecida dos Reis. A criança surda e seus interlocutores num programa de escola inclusiva com abordagem bilíngue. 2006. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Metodista de Piracicaba, Faculdade de Ciências Humanas, 2006. 103 O INTERESSE DA COMUNIDADE SURDA SOBRE VISITA NOS MUSEUS DA CIDADE DE RECIFE - PE Darlene Seabra de Lira37 Ednéa do Nascimento Carvalho38 Luciana Gonçalves de Carvalho39 INTRODUÇÃO A sociedade reconhece que os museus são muito importantes para a história do Mundo e do Brasil. Todas as pessoas podem participar e visitar esses museus, no entanto, é necessário ter acessibilidade e estratégias de comu- nicação que facilitem o entendimento das pessoas surdas, isso é respeito as individualidades, se não tem, falta acessibilidade, o que acarreta preconceitos e discriminações com esse público. O museu deveria ser um espaço de comunicação aberto e plural. A comu- nicação por meio da Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS, seria uma forma de abranger ainda mais esse conhecimento para outras comunidades que, de igual modo, se expressam por ideias, discutem suas histórias nos diversos ambientes, mas percebe-se que ao se tratar de museus, as barreiras ainda existem. Nesse sentido, a sociedade precisa estar preparada para receber toda diversidade de pessoas, assim, promover a igualdade de condições nesses espaços. A Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009, que “institui o Estatuto dos Museus e dá outras providências”, em seu inciso V do artigo 2º declara “a universalidade do acesso, o respeito e a valorização à diversidade cultural”. Art. 29. Os museus deverão promover ações educativas, fundamentadas no respeito à diversidade cultural e na participação comunitária, contribuindo para ampliar o acesso da sociedade às manifestações culturais e ao patrimônio material e imaterial da Nação. [...]Art. 35. Os 37 Mestranda em Ciências da Sociedade (UFOPA). Professora de Libras (UFOPA). CV: http://lattes. cnpq.br/8783256913537160 38 Doutora em Geografia (UECE). Professora do Programa de Geografia da (UFOPA). CV: http://lattes. cnpq.br/7125890853681726 39 Doutora em Antropologia. Professora (UFOPA). CV: http://lattes.cnpq.br/9870905738650852 http://lattes. cnpq.br/8783256913537160 http://lattes. cnpq.br/7125890853681726 http://lattes.cnpq.br/9870905738650852 104 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) museus caracterizar-se-ão pela acessibilidade universal dos diferentes públicos, na forma da legislação vigente. (BRASIL, 2009). Nesse sentido, todos deveriam respeitar esse direito de acessibilidade da comunicação, que é relatada na legislação, dada a importância da informa- ção histórica e cultural nos museus. Infelizmente alguns museus não tem um Tradutor/Intérprete de Libras - TILS, sendo isso um problema muito grande de falta de comunicação entre o público Surdo e o museu. Esses espaços não compreendem que o Surdo tem vontade de saber o que acontece na história, e faz-se necessário um profissional para descrever acessibilidade de pessoas Surdas em museus através da comunicação da Libras. Esse capítulo busca pesquisar as questões de interação do indivíduo Surdo nas visitas ao museu, apontar críticas e fazer reflexões em busca de um museu de qualidade, acessível, de forma que mudanças possam acontecer de verdade. Algumas questões analisadas foram: Museu tem acessibilidade? Como você sendo Surdo visita o museu? Como os Surdos tem direito acessibilidade no museu? Essa é uma pesquisa de cunho qualitativo e bibliográfico. O museu analisado foi o “Museu de Paço do Frevo” em Recife - PE, com isso, buscamos facilitar o entendimento do Surdo ao que é apresentado/exposto nas visitas e ajudar na interação do mesmo, tornando possível o acesso à cultura. No primeiro capítulo, falaremos sobre o direito garantido pela legaliza- ção para todo cidadão, incluindo a pessoa Surda, de ter acesso ao museu com acessibilidade comunicacional, de forma que se garanta o respeito a todas as pessoas. Precisamos conscientizar a população que se faz necessário aceitar o “diferente”, assim acabam-se as barreiras. No segundo capítulo discutiremos sobre a Comunidade Surda e os direitos das Pessoas com Deficiência, além de colocar a participação da família na adaptação ao meio escolar e social da Pessoa Surda. MUSEU: LEGISLAÇÃO E RESPEITO À DIVERSIDADE A nossa sociedade possui uma diversidade de jeitos, costumes, práticas, vivencias e culturas, porém, somos iguais em direitos humanos, devemos ter as mesmas condições de acesso e ser aceitos, o respeito deve ser relevante em uma sociedade que preza pelos direitos individuais, sendo isso o que buscamos para 105 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva nossa sociedade, valores éticos e sócio-culturais preservados e acessível a todos que tenham interesse. O Ministério do Turismo, aponta que a capital pernambucana tem vários museus e espaços culturais relevantes na antropologia sócio-cultural do Brasil. A Ministra da Cultura, autora Ana de Hollanda, (2011, p. 9) define: “mais do que casas de memórias, museus são casas de vida de um país. Espaços que assumem cada vez mais sua função social junto à população, enquanto casa de conheci- mento, vivência e transformação”. Conforme observado pela autora, todos os espaços, entre eles, museus, de cultura e a própria sociedade, são importantes para o momento histórico. E a Ministra continua dizendo: O brasileiro precisa de museus que sejam verdadeiramente seus, capazes de relacionar uma nação consigo própria, cada pessoa com ela mesma, nosso passado e nosso futuro. O Ministério da Cultura tem trabalhado [...] para que, esses espaços sejam, de fato, do Brasil, apropriados por todos os brasileiros. (GUIA DOS MUSEUS BRASI- LEIROS, 2011, p. 9). Realmente, é importante que os bens culturais sejam apropriados por todos os brasileiros, o que infelizmente não tem acontecido. É difícil encontrar museus com acessibilidade, com o espaço cultural acessível, que preze pelas adaptações para garantir que as informações cheguem a todos de forma igualitária. Precisamos ter visão de mundo, ampliando seu entendimento de pluralidade. A Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009, Institui o Estatuto de Museus e dá outra providências: “Art. 46. O Plano Museológico do museu definirá sua missão básica e sua função específica na sociedade e poderá contemplar os seguintes itens, dentre outros: [...] IV – detalhamento dos Programas: [...] de acessibilidade a todas as pessoas.” Nesse sentido, a Lei é sempre bem escrita e fundamentada, porém, não é verdadeira na prática, não garante acessibilidade em qualquer lugar. Todos nós somos seres humanos e vivemos em sociedade, deveríamos ter nosso direito garantido. Rece- ber e atender bem o público com a comunicação adequada para cada público, se mostra uma necessidade urgente, quando isso não acontece, percebemos o quanto há de abandono dessa Lei de acessibilidade. O Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004, que regulamentaservir de protótipo a esse futuro adulto de que os pais passaram a cuidar (ARÍES, 1981). CONTEXTOS HISTÓRICOS E SOCIAIS DA INFÂNCIA O conceito de infância, entretanto, não é tão correspondente assim, mas provoca considerações profundas que implicam analisar o contexto histórico e cultural de cada realidade, pois crianças vivem sua infância não de forma homogênea, mas heterogênea em conformidade com suas identidades socio- culturais. Os diálogos que perpassaram sobre as questões de raça, de gênero, de classe, são especificidades marcantes para se compreender o ser criança na contemporaneidade, pois estes estão abertos à criatividade, à flexibilidade e ao entendimento de saberes que envolvem uma criança no núcleo familiar, no núcleo social, no núcleo geográfico, e considerar os limites sistemáticos determinado pela sociedade de acordo com a globalização dos fazeres. A infância como a concebemos atualmente, é fruto da história das civilizações, que ao longo dos tempos foi redefinindo-se. Cada época imprime uma concepção de infância diferente, gerada por características sociais, políticas, econômicas e culturais específicas. Segundo Cohn (2005), a década de 60 foi um marco, pois foi quando começou a se perceber na criança um sujeito social. Para que avanços acontecessem, houve a necessidade da sociedade organizar-se e reivindicar/buscar uma legislação que garantisse os direitos fundamentais para a criança. É importante destacar que só poderemos entender os códigos legais relativos à infância se nos referimos à concepção de infância que a baseia. As idades da vida, não consistem em acontecimentos essencialmente naturais, mas provém do contexto social e histórico, por isso, segundo Foucault (1979) a consciência da infância e da puberdade são inseparáveis da consciência da sexualidade infantil e juvenil, esta como desviante, e da constituição de um dispositivo científico do saber com pretensão em produzir efeitos de ordena- mento sobre os costumes e os comportamentos. 12 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Segundo Kohan (2008), os sentimentos de infância se exprimem de duas formas diferenciadas ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII. Uma que ressaltava Setor privado que apregoava os mimos, os lapsos, os momentos de entretenimento. Outra forma que retratava domínio público onde se difundia a deficiência, a imprudência, a fragilidade, um local onde crianças deveriam obedecer e serem corrigidas. Mas o Estado adequa o poder pastoral ao que lhe é de interesse e mantém o que lhe serve e muda o que não lhe resulta proveitoso. A partir do século XVII, se produz uma mudança considerável: começa a se desenvolver um sentimento novo com relação à “infância”. A criança passa a ser o centro das atenções dentro da instituição familiar. A família, gradualmente, vai organizando-se em torno das crianças, dando-lhes uma importância até então não lhes atribuídas. Por sua vez, o Estado mostra um interesse cada vez maior em formar o caráter das crianças. Surgem assim uma série de instituições com o objetivo de separar e isolar a criança do mundo adulto, entre elas, a escola. Em relação ao poder disciplinar que também é normalizador, no sentido de registrar as possíveis ações em um determinado campo ou espaço a partir de uma normatividade que difunde dualidades como o permitido e o proibido, o correto e o incorreto, o são e o insano e que configuram micro poderes, multidirecionais e heterogêneos, apresenta técnicas principais de dispositivos disciplinares que são considerados “instrumentos simples”, como a atenção hierárquica, a sanção normalizadora e o exame. Os mecanismos disciplinares formam crianças dóceis, ao mesmo tempo que vigiam os costumes e o modo de vida de suas famílias. Isso consiste na intervenção do estado na vida privada. A disciplinamento do Estado continuou com adoção do poder pasto- ral nas instituições educacionais, por meio da figura do professor-pastor que assume a responsabilidade pelas ações e o destino de sua turma e de cada um dos seus integrantes. Ele se encarrega de cuidar do bem e do mal que possam acontecer dentro da sala de aula (ARIÉS, 1981). A invenção do professor pastor foi considerada uma das estratégias do Estado em difundir a infância atrelada ao sentimento, ao saber e principalmente ao poder. Reconhece. Essa estratégia não é simplesmente instrumental, mas consiste em uma forma de racionalidade política, um modo de pensar e exercer relações de poder junto às famílias. 13 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva O pastor, como figura privilegiada perante a sociedade, exerce seu poder sobre um rebanho mais do que sobre um espaço territorial. Acrescenta e direciona o rebanho o qual lhe foi repassado a conduzir. Apresenta-se como uma figura religiosa que irá garantir a salvação no mundo social e no mundo espiritual dos membros do rebanho como um todo. As máximas cristãs asseguravam esse compromisso, pois além da necessidade de conhecer cada um dos membros, estabelecendo uma relação de dependência absoluta, aplicava técnicas que lhe davam garantia de realizar o exame, a confissão, a direção da consciência e a obe- diência, com o desígnio levar os membros do rebanho a seu “martírio” no mundo terreno: uma forma de renúncia constante a este mundo e às suas existências. ESPAÇOS EDUCATIVOS: perspectivas e estratégias No que tange a Escola, enquanto Instituição, esta surgiu com o objetivo de afastar a criança do contexto adulto, entretanto, produziu normas que, de certa forma, deram continuidade no sentido de formar maneiras disciplinares adultas na crianças, Dentre as formas, tem-se o poder disciplinar que a mesma estabeleceu para manter o controle das ações dos sujeitos crianças, que consistia numa série de dispositivos (um jogo de elementos heterogêneos e variáveis que ocupam, em um momento histórico determinado, uma posição estratégica dominante), que estruturam o que os outros podem fazer com a função principal de “dirigir condutas”( ARIÈS, 1981). As instituições disciplinares, entre elas a escola, passaram a desenvolver estratégias cada vez mais sofisticadas que buscavam formas eficientes de exercer o poder muito além dos seus próprios muros (ARIÈS, 1981), por isso, a infância, por meio da pedagogia moderna, passa a ser vista como uma forma de garantir a perpetuação da sociedade organizada. Neste sentido, os conceitos utilizados por Foucault, que foram muitos e complexos têm a ver com a infância nos tempos atuais e em que sentido as análises de Ariès e Foucault contribuíram no decorrer da história aos modos presentes de pensar as relações entre filosofia e educação e as atuais tentativas por educar a infância através da filosofia. É uma questão que perpassa pelo despertar de sentimentos em torno da infância, e neste prisma, a educação é direcionada ao Estado, pois não era concebido normal deixar a educação das crianças nas mãos da casualidade ou ao espaço reservado das famílias. Foucault (1979), diz que a criação da instituição 14 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) escolar caminha junto a intricados aparelhos disciplinares que gradativamente difundem o seu lado produtivo em todo contexto social. A invenção de uma instituição formadora tem a função não só de produzir conhecimentos, mas também de formar pessoas. Por meio de sua organização em espaço, tempo, lições, ordens, questionários, obediência, punição, recompensas, exames, a escola sujeita os indivíduos – professores, alunos, diretores, orienta- dores educacionais, pais, servidores – a esses mecanismos que ao mesmo tempo objetivam esses indivíduos e os subjetivam. Ela procura atingir a todas as crianças da mesma maneira e objetiva desenvolver cinco dimensões da experiência de si: a perceptiva - o que é possível perceber de si; a discursiva- o que é possível dizer de si; a moral – o que é possível julgar de si; a cognitiva – o que é possível pensar de si; e de governo – o quea Lei Nº 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às 106 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) pessoas que especifica, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências, Seção IV Da Acessibilidade aos Bens Culturais Imóveis: Art. 30. As soluções destinadas à eliminação, redução ou superação de barreiras na promoção da acessibilidade a todos os bens culturais imóveis devem estar de acordo com o que estabelece a Instrução Normativa no 1 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional- -IPHAN, de 25 de novembro de 2003. (BRASIL, 2004). A Lei diz que existem normativas com soluções para a eliminação, redução ou superação das barreiras, de modo a promover a acessibilidade. Os museus precisam se apropriar dessas adaptações para garantir a acessibilidade, entendendo que podem receber visitas de diferentes públicos, inclusive de pessoas com deficiências. [...] uma maior acessibilidade não é uma tarefa sim- ples, implicando tempo, conhecimento, criatividade e investimento. Por outro lado, é um grande desafio para as equipes, e cujo sucesso implica igualmente o envol- vimento de pessoas com deficiência, seja no papel de visitantes, seja como funcionários. (COHEN, DUARTE, BRASILEIRO, 2012, p. 2). A acessibilidade prevista em Lei, não é simples e fácil de se pôr em prática, mas é importante que a equipe que participa da organização dos museus e de seus eventos, possam estudar e conhecer mais sobre acessibilidade e também sobre as necessidades da Pessoa com deficiência, com atividades próprias e espaço equipado, além de promover o desenvolvimento de funcionários deficientes e daqueles que estejam visitando. Conforme Cohen, Duarte e Brasileiro (2012, p. 4): [...] importa integrar estas recomendações na estratégia dos museus ou outras instituições culturais e dar-lhe expressividade também em termos orçamentais. Acre- ditamos que somente a continuidade destas práticas, a par com uma mudança na postura dos profissionais, poderá trazer um maior sucesso na procura de soluções acessíveis a um maior espectro de públicos. Assim sendo, não basta um conjunto de intenções, mas também colocar em prática a reflexão já existente sobre esta temática, 107 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva testando e avaliando... Afinal, o acesso físico, intelectual e cultural é um direito fundamental de todos os cidadãos. A Lei garante a todos o direito à cultura e no museu temos o acesso ao conhecimento. No entanto, esse acesso não atende em sua maioria, às normativas de acessibilidade e inclusão da Pessoa com deficiência. Como podemos perceber, a reflexão sobre tais mudanças são necessárias para conseguirmos, na prática, um museu inclusivo. É relevante entender a construção de um modelo de museu que atenda a todos, inclusive as pessoas com deficiência, respeitando à diversidade. Respeitar as diferenças é o principal a ser feito. É valorizar a igualdade de oportunidades, receber a Pessoa Surda, a sua língua de Sinais de forma natural e que faça parte da construção do conhecimento dos atores envolvidos com o museu. A Libras para o Surdo é de grande importância comunicacional e precisa estar dentro desses espaços. Souza e Gediel (2017, p. 183) indicam que é um elemento identitário muito importante da cultura surda “[...] Pessoas Surdas como um importante elemento da cultura Surda local e entendermos os sinais próprios como um marcador identitário e cultural desses sujeitos, pois é a forma como eles se reconhecem e são reconhecidos pelos demais sinalizantes.” COMUNIDADE SURDA E O POVO SURDO Os povos surdos estão em constante movimento, lutando pelos seus direitos, reconhecimento de suas necessidades identitárias, comunidade e cultura própria. A Sociologia e antropologia buscam compreender melhor os povos Surdos. Nesse processo de descobertas, vale salientar que a comunidade dos Surdos não aceita determinadas nomenclaturas, como aponta Gesser (2009): A comunidade dos surdos não aceita os termos: deficiente auditivo e surdo-mudo. Quanto ao “deficiente auditivo” é um termo médico, isto é, clínico. O termo surdo-mudo é incorreto, pois a maioria, não tem problemas com o aparelho fonador, podendo ser oralizados, ainda que a língua materna seja a Libras. Esses termos carregam na historicidade dos surdos preconceitos, que os fizeram sofrer muito. Então, o termo aceito pela comunidade dos surdos, simplesmente é surdo. GESSER (2009, p. 2). A história dos Surdos é envolvida por muitos preconceitos, os Surdos historicamente sofreram e ainda sofrem muito. As pessoas precisam demonstrar 108 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) respeito e aceitar a comunidade dos Surdos, como uma comunidade inserida na sociedade e participante dela e não vista à parte. Os Surdos têm sentimentos como qualquer pessoa, e sonham com o dia que terão os mesmos direitos e não exista mais o sentimento negativo da sociedade. Quando eles discutem sua surdez, usam termos pro- fundamente relacionados com sua língua, seu passado e sua comunidade. Infelizmente, o povo surdo ainda é tratado com preconceitos, mas esse paradigma precisa ser quebrado, pois, os surdos tem os mesmos direitos, os mesmos sentimentos, os mesmos receios, os mesmos sonhos, como qualquer outro ser humano. GESSER (2009, p. 3). ACESSIBILIDADE PARA PESSOA SURDA: A IMPORTÂNCIA DA COMUNICAÇÃO EM LIBRAS O QUE É LIBRAS? A língua de sinais não é universal, cada país tem sua própria língua. A que é utilizada pelas pessoas Surdas no Brasil chama-se Língua Brasileira de Sinais – Libras. Atualmente, porém, estas discussões se fazem menos presentes, possivelmente devido ao reconhecimento e à oficialização da Língua de Sinais em vários países, bem como no Brasil com a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras – e dá outras providências. No seu art. 1º declara que: “É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais – Libras – e outros recursos de expressão a ela associados”. (NICOLOSO e SILVA, 2009, p. 90-91). As pessoas pensam que Libras é gestos e mímicas, todavia, não é. Quadros (2004, p. 19) afirma “A língua brasileira de sinais é uma língua visual-espacial articulada através das mãos, das expressões faciais e do corpo. É uma língua natural usada pela comunidade surda brasileira.” Quando a autora diz que a Libras é visual-espacial significa que para usá-la precisaremos visualizar a forma que o sinal é feito dentro de um espaço. Uma explicação simples e esclarecedora da autora GESSER (2009, p. 1). 109 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva A língua de sinais não é pantomima, datilologia, isto é, representações mímicas da realidade, o que tornaria muito difícil certos termos. Essa visão da língua de sinais como mímica, tem a ver com a forma que os ouvintes veem os surdos, tratando-os de forma exclusiva e pejorativa. É preciso entender que os surdos têm sua própria língua e que se comunicam como qualquer outro ser humano ouvinte, expressando até conceitos abstratos. Embora, a língua de sinais tenha sinais icônicos, não pode ser exclusivamente assim classificada como ícone. COMUNICAÇÃO EM LIBRAS A comunicação com o uso da língua de sinais é totalmente visual e não só isso, é preciso compreender a cultura da comunidade Surda. As pesquisas de Souza e Gediel (2017, p. 171) demonstram: Essa contribuição foi fundamental para a Antropologia e é utilizada por antropólogos linguistas que visam compreender a língua em seu contexto de produção. Como ressalta Duranti (1997, p. 96, tradução nossa): “antropólogos linguistas adotam o método etnográfico para concentrar os meios pelos quais a comunicação linguística é uma parte integral da cultura dos grupos estudadospor eles”). Apresentar a visão de mundo da Pessoa Surda é de extrema importância para a relação deles com sociedade. A língua da Pessoa Surda é viso-espacial, sendo uma parte integral da cultura, das modalidades, dos tipos de conhecimentos e adaptação social desses sujeitos. MOSCOVICI analisa a representação social como uma “formação de um outro tipo de conhecimento adaptado a outras necessidades, obedecendo a outros critérios, num contexto social preciso” (1978, p. 24). Para este autor, as “representações sociais” se formam principalmente quando as pessoas estão expostas às instituições, aos meios de comunicação de massa e à herança histórico-cultural da sociedade. (STROBEL, 2007, p. 24). Estes autores falam das representações sociais com propriedade. No entanto, a maioria das pessoas na nossa sociedade acham que é importante a comunicação oral para as Pessoas Surdas, sem entender a singularidade que a comunidade Surda tem. 110 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) O Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004 estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências a seguir “Art. 46. O Plano Museológico do museu definirá sua missão básica e sua função específica na sociedade [...]” . Esse decreto mostra que a comunicação e a acessibilidade devem ser garantidas a todos, para isso, quando se trata da Pessoa Surda, deveria entrar a garantia da Língua Brasileira de Sinais, conforme expresso na Lei nº 13.146, de 2015 a seguir “Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, o artigo assegura que: V - comunicação: forma de interação dos cidadãos que abrange, entre outras opções, as línguas, inclusive a Língua Brasileira de Sinais (Libras), [...] assim como a linguagem simples, escrita e oral, os sistemas auditivos e os meios de voz digitalizados e os modos, meios e formatos aumentati- vos e alternativos de comunicação, incluindo as tecnologias da informação e das comunicações; (BRASIL, 2015). Consoante Campello (2007, p. 128–129): A Língua de Sinais, com a real importância da imagem visual e suas implicações, tem levado ao reconhecimento do direito lingüístico dos surdos no acesso às diversas esferas federais, estaduais e municipais, na política (como na execução das leis do reconhecimento da língua de sinais), culturais (teatro), trabalho (presença dos intér- pretes e instrutores de Língua de Sinais) [...]. É relevante compreender o direito linguístico dos Surdos, o profissional TILS favorece a comunicação em qualquer local com pessoas Surdas, promo- vendo a acessibilidade comunicacional. O TILS faz um trabalho mediador é de fundamental importância para a pessoa Surda porque eles estabelecem a relação do mundo, da cultura e identidade Surdas para a sociedade. A Libras é uma língua que tem uma profundidade linguística. O uso dela deve ser feito de forma consciente e responsável nas diferentes áreas de trabalho e setores do Brasil, não é qualquer pessoa que conhece a Libras que pode interpretar, precisa ter formação na área. Às vezes as pessoas são selecionadas para trabalhar, mas não estão capacitadas, desconhecendo a profundidade da Língua de Sinais. 111 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva A Lei 10.436/02 no parágrafo único assinala ser a Libras “[...] a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual- -motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil”. O artigo segundo, na Lei 10.436/02 assegura que: Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e empresas concessionárias de serviços públicos, formas insti- tucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais - Libras como meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil. As pesquisas linguísticas na área de Libras, o conhecimento da gramá- tica, a iconicidade dos sinais, os classificadores, tudo isso deve ser levado em consideração na hora de utilizar os sinais no espaço. A gramática das Línguas de Sinais emerge a partir da forma como os Surdos entendem o universo simbólico em que estão inseridos, significando-o de acordo com os códigos de uma Língua espacial visual. (SOUZA e GEDIEL 2017, p. 166). No ano de 2005 houve a promulgação do Decreto 5.626 que regulamenta a Lei 10.436/02 e o artigo 98 da Lei 10.098/2000. O artigo 26 discorre que: § 2º Para garantir o efetivo e amplo atendimento das pessoas surdas ou com deficiência auditiva, o Poder Público, as empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos e os órgãos da administração pública federal, direta e indireta, poderão utilizar intérpretes contratados especificamente para essa função ou central de intermediação de comunicação [..] (Redação dada pelo Decreto nº 9.656, de 2018). A garantia dos direitos da pessoa Surda perpassa pelo uso de sua língua entre seus pares e com outras pessoas não usuárias da língua, mas que tenham uma intermediação. A Lei 10.436/02 reconhece a Libras da pessoa Surda e dentro disso, regulamentou o trabalho do profissional TILS, que tem como intuito tornar acessível a comunicação das pessoas surdas com as pessoas ouvintes dentro da sociedade. A cada dia isso vem se tornado possível. Sobre isso: A participação de surdos nas discussões sociais representou e representa a chave para a profissionalização dos TILS http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Decreto/D9656.htm#art1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Decreto/D9656.htm#art1 112 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) (Tradutores/Intérpretes de Língua de Sinais). Outro ele- mento fundamental neste processo é o reconhecimento da língua de sinais em cada país. (QUADROS, 2004, p. 13). O PROFISSIONAL TRADUTOR/INTÉRPRETE DE LIBRAS – TILS O Profissional TILS no Brasil vem sendo alvo de diversos estudos e debates, tendo como foco também a formação e capacitação desses profissionais, além da importância do mesmo para o entendimento e interação do Surdo no meio social. De acordo com a Quadros, 2004, p. 94: É o profissional que domina a língua de sinais falada do país e que é qualificado para desempenhar a função de intérprete. [...] Além do domínio das línguas envolvidas no processo de tradução e interpretação, o profissional precisa ter qualificação específica para atuar como tal. O TILS é uma pessoa que interpreta para a Língua de Sinais, possuindo capacidade de traduzir/converter de forma simultânea ou consecutiva uma língua sinalizada para uma língua oral ou vice-versa. Ainda de acordo com Quadros (2004, p. 25), para a interpretação é preciso ter alguns preceitos éticos: a) confiabilidade; b) imparcialidade; c) discrição; d) distância profissional; e) fidelidade. Essas informações também esclarecem a pessoa Surda, sobre quais profissionais procurar, de forma que seus direitos não sejam velados, mas garantidos dentro da diversidade de sujeitos. A Lei 12.319/10 regulamenta a profissão do Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais e no artigo 6º são identificadas as atribuições deste profissional, quanto do exercício de suas competências, dos quais destacam-se neste texto dois descritos a seguir: I - efetuar comunicação entre surdos e ouvintes, surdos e surdos, surdos e surdos-cegos, surdos-cegos e ouvintes, por meio da Libras para a língua oral e vice-versa; IV - atuar no apoio à acessibilidade aos serviços e às ativida- des-fim das instituições de ensino e repartições públicas; A acessibilidade precisa ser garantida a todos. Na prática percebemos que é diferente, mas a luta precisa continuar, todos esses direitos precisam ser cobrados e reivindicados, por nós da comunidade Surda e por toda sociedade que compreende os nossos direitos. 113 Cultura, Educomunicação e EducaçãoInclusiva METODOLOGIA Este trabalho é um estudo sobre a inclusão das pessoas Surdas, no ambiente museológico. Nosso objetivo foi fazer um estudo quantitativo junto as pessoas Surdas em Recife no estado de Pernambuco. Foram enviadas 6 (seis) questões por WhatsApp no período de 31 de outubro de 2020 a 09 de novembro do corrente ano para 5 (cinco) Surdos, entre homens e mulheres, com faixa etária entre 25 a 50 anos, escritas em Libras. Não existiu uma interação presencial, mesmo assim, a pesquisa foi de forma qualitativa de caráter exploratório. As questões forneceram subsídios para analisar o sentimento do indivíduo Surdo, diante das necessidades encontradas quanto a acessibilidade de comunicação em Libras no museu. Para análise, observamos a opinião dos Surdos que viveram a experiên- cia de acessibilidade no Paço do Frevo – Praça do Arsenal da Marinha, S.n°. Bairro do Recife – PE. É necessário compreendermos os aspectos culturais dos Surdos, sua perspectiva do que é acessibilidade. De acordo com Souza e Gediel (2017, p. 169): Adotamos a etnografia como metodologia de pesquisa, pois, para fazermos o mapeamento das pessoas que nomeiam em Línguas de Sinais e a demarcação dos sinais próprios do contexto investigado, foi necessário compreendermos os aspectos culturais dos Surdos. [...] ANÁLISE DA PESQUISA REALIZADA COM OS SURDOS 1. Você foi visitar o museu Paço do Frevo? Todos os surdos responderam “sim”, percebe-se que eles foram visitar o museu, um marco para a história do Frevo em Pernambuco, principalmente pela cultura do carnaval onde o frevo é protagonista. 2. O museu Paço do Frevo tem um Intérprete de Libras? Os 3 (três) Surdos responderam “Não” e 1 (um) Surdo respondeu “apenas sabia um pouco de Libras, não é TILS”, e um Surdo respondeu 20% “Sim”. Nessa tabela ficou claro a dificuldade do Surdos. 114 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) 3. Se não tem Intérprete de Libras, como você entendeu a histó- ria do Frevo? A maioria disse que não compreendeu totalmente, passando a ler o português para tentar entender, mas a maioria das vezes não entende. Algumas palavras que eles não conhecem no português, precisam procurar na internet. No entanto, vale salientar que alguns Surdos não compreende o português, as vezes entendem um pouco. 4. Se lá tem informação no português, você leu e entendeu? Percebemos que maioria dos pesquisados disse não entender as palavras escritas, porque as mesmas estão em língua portuguesa, não sendo a língua dominada pelo surdo. 5. Você prefere ler Português ou com Intérprete de Libras? Mostrar na tabela, que os Surdos preferem TILS do que a leitura em Português, mas também, os mesmos dizem que é importante o português, porque precisam aprender mais vocabulário nessa língua também. 6. Conte o que você aprendeu, viu ou como se sentiu na visita ao museu? Observamos neste gráfico que a maioria dos Surdos sentiram falta da aces- sibilidade comunicacional. Ressaltam que a experiência poderia ter sido melhor se tivesse acessibilidade para Surdo. Nesse sentido, percebemos que não compreenderam a história do frevo em sua totalidade, apenas pelo o que viram nas imagens no Museu. CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa foi muito importante para nosso trabalho com os Surdos, vimos que a maioria prefere ir no Museu com Tradutores/Intérpretes de LIBRAS, esse acesso a sua língua, iria esclarecer a história do museu com mais detalhes que não puderam ser vistos. Acredito que a sociedade pensa que o fato de ter placas em português (legendas), os surdos compreendem e não precisam fazerem mais nada, as placas são relevantes, mas mesmo com elas, algumas palavras ou frases no português não são compreendidas. A sociedade ainda reluta em não colocar, no Museu um profissional TILS, mesmo sabendo do seu papel fundamental na relação Surdo x Socie- 115 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva dade. Se faz necessário diversos estudos e debates que coloquem como foco a formação e capacitação desses profissionais, além da importância do mesmo para o entendimento e interação do Surdo no meio social. Este trabalho mostra que o museu Paço do Frevo é muito valorizado e rico em cultura e história, no entanto, precisa melhorar nas atividades acessíveis para os surdos, para que haja troca de informações e de experiências através da sua dinamicidade, o que colabora para auxiliar no desenvolvimento do indivíduo crítico e de direitos que tem acesso comunicacional como qualquer pessoa. Percebemos também nessa pesquisa que os Surdos expressam que preferem ir a locais que tem TILS, por isso relatam que não gostaram muito da experiência de ir em um museu sem TILS, já que as informações ficaram pelo caminho. Em locais acessíveis, se sentem mais confortáveis. Ressaltamos a importância do por- tuguês como segunda língua, nela é possível aprender palavras novas, dessa forma fica claro a importância das placas sinalizadas no museu, mas junto com isso, é indispensável o profissional TILS no espaço para o Surdo, já que tanto ouvintes quanto surdos devem ter direito ao livre conhecimento ofertado de igual modo. Infelizmente os relatos de experiência pelas quais os surdos passaram ainda são negativas, pois os mesmos não tiveram a oportunidade de ir ao museu, e ter as cenas interpretadas em Libras. A acessibilidade permitida para os Surdos, com o profissional TILS no museu e em outros espaços, releva a importância não só desses profissionais, mas também de como a sociedade ver o Surdo. A adaptação faz com que os Surdos sejam incluídos de fato na sociedade, superando as difi- culdades e compreendendo a história em sua volta de forma contundente e real. REFERÊNCIAS BRASIL. Decreto n° 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm. Acesso em: 19 set. 2020. _______. Decreto nº 5.269, de 2 de dezembro de 2004. Dispõe sobre a Regulamenta as Leis nos 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e cri- térios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5296.htm Acesso em: 29 out. 2020. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5296.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5296.htm 116 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) _______. Lei n° 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/2002/L10436.htm. Acesso em: 19 set. 2020. _______. Lei n° 12.319, de 1 de setembro de 2010. Dispõe sobre a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS. Disponível em: . Acesso em: 22 out. 2020. _______. Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009. 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Consideramos a comunicação como uma área de conhecimento que abrange múltiplas linguagens e inclui situações nas quais um indivíduo influencia a conduta do outro (cf. Penna, 1976) e a educação como um meio de estabelecer relações entre o indivíduo e o mundo (cf. Freire, 1994). Assim, mídia-educação se refere a um campo de saber interdisciplinar que desenvolve conhecimentos sobre as diferentes formas de impacto das informações provenientes da mídia em relação com educação. Dessa maneira, utilizaremos o termo mídia-educação para nos referirmos à integração de recursos midiáticos (juntamente ao seu aparato técnico necessário) à educação. Um dos aspectos importantes do estudo de questões que envolvem a mídia e a educação é o da educação de crianças e adolescentes, isso porque, dentre outros motivos, elas são consideravelmente expostas a conteúdos tele- visivos, manchetes de jornais impressos e conteúdos da internet. Buckingham (2007:277) afirma que as crianças estão tendo acesso ao mundo através da mídia e precisamos prepará-las para lidar com ele, afinal não temos como mantê-las numa redoma, protegidas de todas as informações midiáticas. Crianças e adolescentes (público alvo do material analisado nesta pes- quisa) estão em processo de formação de suas identidades e a escola, bem como os matérias didáticos desenvolvidos para ela, trazem discursos que contribuem 40 Doutor em Estudos da Linguagem (PUC-Rio). Professor (UFRJ). CV: http://lattes.cnpq.br/6192261516741890 41 Pedagoga (UFRJ). Professora de educação infantil. CV: http://lattes.cnpq.br/7596382801697186 119 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva para a formação identitária das crianças, ou seja, para a formação de quem elas são e serão, por isso, como coloca Moita Lopes (2002:91), “(...) os discursos construídos na sala de aula sobre os tipos de pessoas que somos têm que ser cui- dadosamente examinados devido à sua relevância na definição de quem somos”. No Brasil, os estudos de mídia-educação não estão previstos no currículo escolar como disciplina, mas a Lei de Diretrizes e Bases contempla essa área nos Parâmetros Curriculares Nacionais, conforme o item 9 dos objetivos gerais para o Ensino Fundamental que diz “saber utilizar diferentes fontes de informação e recursos tecnológicos para adquirir e construir conhecimentos”. Uma das principais questões atuais envolvendo a mídia-educação é como iremos promover o conhecimento integrado com as mídias e quais práticas realizar na sala de aula. Como coloca Kenski (2007:41), “abrir-se para novas educações, resultantes de mudanças estruturais nas formas de ensinar e aprender possibili- tadas pela atualidade tecnológica é o desafio a ser assumido por toda sociedade”. A proposta desta pesquisa é a de analisar o conteúdo de um dos produtos de Língua Portuguesa do catálogo da empresa MULTIRIO, em confronto com dados teóricos e conceituais contemporâneos sobre mídia-educação. Dialo- garemos, também, com o PCN de Língua Portuguesa, por ser um parâmetro norteador das séries iniciais e do Ensino Fundamental. MÍDIA-EDUCAÇÃO Segundo Fantin (2006) a mídia-educação surge nas primeiras décadas do século XX, paralelamente ao desenvolvimento da indústria cultural de massas. Naquele contexto, a cultura popular era, geralmente, vista como algo menor, apenas a cultura erudita produzida pela elite possuía valor. Assim, elas eram ignoradas por grande parte dos educadores e as escolas resistiam em aceitá-las. Essa visão era balizada, entre outras, pela teoria da indústria cultural de Adorno (1978:81), que postulou que a cultura estava sendo transformada em mercadoria através da mídia. Nos anos 60, as formas populares de cultura, principalmente o cinema, passam a ter seu valor reconhecido nos meios acadêmicos. Nesse período, o discernimento e capacidade crítica são embasados, principalmente, por estudos da semiótica voltados para os sujeitos consumidores das mídias. Essa concepção, embora questionasse o valor dos produtos em termos de suas qualidades, ainda não 120 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) discutia os processos envolvidos, não havendo reflexão mais profunda a respeito de quem produziu ou com que intenção um dado produto midiático foi concebido. Em um determinado momento histórico, a mídia-educação também foi percebida como uma possibilidade de comunicação alternativa e instrumento de luta (cf. Fantin, 2006). Essa concepção surge nos 70 e 80, principalmente na América Latina no ambiente hostil das ditaduras, compreendendo a mídia-educação como opção de resistência nas lutas políticas e de comunicação alternativa nos movimentos populares que reivindicavam a abertura social e política, já que os meios de comuni- cação oficiais eram utilizados para promover e manter o poder ditatorial, que contava com a censura para impedir produções contrárias aos seus ideais. Após esse período, houve o desenvolvimento de uma concepção do estudo da mídia e da mídia-educação relacionada às ciências sociais. Martín-Barbero, por exemplo, considera as mídias como uma das instâncias da prática social que influencia na relação familiar, grupo de amigos, escola, igreja, entre outros. Para ele (2008:18), “vista a partir da institucionalidade, a comunicação se converte em questão de meios, isto é, de produção de discursos públicos cuja hegemonia se encontra hoje paradoxalmentedo lado dos interesses privados”. Buckingham (2007) divide os estudos sobre mídia-educação em duas ver- tentes que se opõem. Uma representa uma tese pessimista: diz que a mídia estaria acabando com a infância, tendo em vista que a mídia (principalmente TV e internet), tem poder de influenciar e explorar a vulnerabilidade das crianças, manipulando sua vontade. Contrapondo essa tese, há a visão de que as mídias são positivas para a infância, de que, por exemplo, as crianças, por nascerem em uma era digital possuem mais facilidade para utilizar essa tecnologia e elas não são passivas diante dessas mensagens, pelo contrário, as compreendem melhor que os adultos. Contudo, ambas as teses são radicais. A mídia não é responsável por destruir a infância, nem tão pouco as crianças são autossuficientes para compreender todas as informações a que são expostas, mesmo que elas utilizem as novas tecnologias com mais facilidade que um adulto. Buckingham (2007:87) pondera que “sim- plesmente culpar ou festejar as mídias é superestimar seu poder e subestimar as diversas maneiras como as crianças criam seus próprios significados e prazeres”. As mídias, atualmente, podem ser mediadoras culturais, elas estão cons- truindo significados e símbolos sobre o mundo a todo o momento, daí a neces- 121 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva sidade de uma perspectiva pedagógica, que auxilie as crianças a compreender o que assistem, ouvem e leem. Alinhando-se aos objetivos da educação para as mídias, que, para Fantin (2006:31), “dizem respeito à formação de um usuário ativo, crítico e criativo de todas as tecnologias de comunicação e informação”. Teóricos da educação como Freire (1994) e Freinet (2004) critica- ram os métodos engessados da pedagogia tradicional que podem podar a curiosidade infantil, com atividades esvaziadas de sentido prático e de viva- cidade, não relacionando os conteúdos com outras disciplinas e nem com a vida. Levando essa crítica em consideração, percebemos que hoje em dia, é indispensável incluir no trabalho educacional as mídias que fazem parte do mundo dos educandos. MÍDIA-EDUCAÇÃO NO BRASIL No Brasil, a mídia-educação não está prevista no currículo como dis- ciplina, mas a Lei de Diretrizes e Bases a contempla através dos Parâmetros Curriculares Nacionais com uma proposta que se refere à área de linguagens, códigos e suas tecnologias (cf. PCNs, 1997, p. 21). O domínio da língua e a capacidade de se comunicar de um indivíduo determina sua participação social. O texto dos PCNs pretende que todos tenham iguais condições de inserção na sociedade. Contudo, Foucault (1996:43) nos diz que: (...) a educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, é bem sabido que segue, em sua distribuição, no que per- mite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo. Ao incentivar atividades significativas como forma de trabalhar a lin- guagem oral, o PCN de língua portuguesa (cf. p. 40) está defendendo que a aprendizagem ocorra de forma prazerosa para facilitar ligações entre os conteúdos escolares e as situações do cotidiano das crianças, para que de fato, ocorra uma aprendizagem significativa, que provoque uma modificação no indivíduo e não apenas uma acumulação de fatos (cf. Rogers, 1980:258). 122 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) As crianças que frequentam as escolas não têm um mesmo capital cultural uma vez que, dependendo de sua origem, os conhecimentos trazidos serão dife- rentes, por isso, o ideal é que os (as) professor(as) conheçam seus alunos e tentem envolver a todos no planejamento. Carvalho (2008:67), por exemplo, afirma que “Não se ensina a gostar de ler por decreto (...). Para formar indivíduos letrados, a escola tem que desenvolver um trabalho gradual e contínuo”. E é essa escola transformadora, defendida por Freire (1994), a que todos devem ter direito. Vejamos um trecho dos PCNs que se refere às tecnologias utilizadas pelos meios de comunicação: (...) o gravador e o vídeo merecem destaque: além de possibilitarem o acesso a textos que combinam sistemas verbais e não-verbais de comunicação (o que é importante do ponto de vista comunicativo), possuem aplicações didáticas interessantes para a organização de situações de aprendizagem da língua. (PCNs, 1997, p. 61). Ao contemplar a linguagem verbal e não verbal, o PCN está nos indicando que a comunicação não se expressa apenas pela linguagem verbal, conforme Penna42. Ele indica os gêneros textuais adequados para o primeiro ciclo tais como: anúncios, slogans, cartazes e folheto. E propõe ao professor que trabalhe a identificação dos significados e intencionalidades das mensagens destes textos. Como vemos nos trechos a seguir: Gêneros adequados para o trabalho com a linguagem escrita no primeiro ciclo: anúncios, slogans, cartazes, folhe- tos” p. 72 “Encontram-se relacionados neste item os con- teúdos referentes a cada um dos blocos de conteúdos. São aqueles considerados imprescindíveis para que a conquista dos objetivos propostos seja possível ao aluno; Escuta ativa de diferentes textos produzidos na comunicação direta ou mediada por telefone, rádio ou televisão, atribuindo significado e identificando (com ajuda) a intencionalidade explícita do produtor (PCNs, 1997 p. 75). A partir da citação acima, podemos concluir que as mensagens midiáticas possuem formas específicas e uma intenção, e que é preciso fazer alguns questio- namentos antes de considerar as informações trazidas pela mídia como verdades absolutas. 42 PENNA, A. G. Comunicação e linguagem. Rio de Janeiro: Eldorado, 1976. 123 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva CONTEXTO E MOTIVAÇÃO DA PESQUISA Nosso interesse inicial foi despertado pela dicotomia presente no fato de que, em nossa experiência de educadores, por um lado, conhecemos algumas escolas no Rio de Janeiro equipadas com TV, DVD, som, projetor e instalação para conectar ao computador, conforme (foto abaixo) e, que, no entanto, são muito pouco utilizadas. Por outro lado, o município do Rio de Janeiro conta com uma empresa, a MULTIRIO, para elaboração de material didático para uso nas escolas e para transmissão em meios de comunicação como televisão e internet. Nesta pesquisa, nos concentramos apenas na análise de um material didático produzido pela MULTIRIO. fotografia do arquivo dos autores A MULTIRIO A MULTIRIO foi criada pela lei nº 2029 de 18 de outubro de 1993, como empresa pública municipal. De acordo com o site da instituição, ela “desenvolve ações educativo-culturais voltadas para a pesquisa de novas linguagens e a reali- zação de produtos em diferentes mídias, comprometidos com o projeto educativo da cidade do Rio de Janeiro.” Tais funções estão de acordo com o objetivo social da empresa previsto em lei no artigo segundo, seu parágrafo e incisos. A empresa oferece capacitação e materiais didáticos para professores, disponíveis em diferentes tecnologias. Em seu portal na internet, é possível ter acesso a produções de diferentes formatos, textos, vídeos e material interativo para uso em sala de aula. 124 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) ANÁLISE DO PRODUTO DA MULTIRIO Nesta pesquisa analisaremos o primeiro episódio da série “Turma da biblioteca”. Essa série é formada de dez programas que foram transmitidos pela televisão e, atualmente, podem ser acessados no site da MULTIRIO e em algumas plataformas de vídeo como a do Youtube. Ela é voltada para alunos do 3º ao 5º ano do Ensino Fundamental, e tem como objetivo provocar uma reflexão sobre as regras gramaticais e seus usos inseridos no dia a dia e em diferentes contextos. A perspectiva de análise é a análisede conteúdo (cf. Bauer, 2003:189) tendo por base uma perspectiva sociointeracional do discurso (cf. Bastos & Santos, 2006). Levamos em consideração que a produção de qualquer material didático lida com escolhas gramaticais, prosódicas e semânticas a fim de produzir um efeito determinado (cf. Bastos & Santos, 2009:147). Uma vez que o mate- rial analisado é um vídeo, e descrever tudo que está na tela é quase impossível, focaremos em alguns elementos do episódio, privilegiando a sua dimensão verbal, utilizando a parte visual quando considerarmos relevante, levando em consideração que, como colocam Bastos & Biar (2014:161), (...) parece que cada vez mais o sentido é tomado em sua complexidade, como algo que é constantemente atualizado e negociado situadamente para atender a contingências sócio-históricas e culturais, que extrapolam uma apreensão reducionista do uso da linguagem como atividade mera- mente comunicativa, baseada em troca de informações. Atentaremos ao que Silverstein (2003) chama de “índices linguísticos”, ou seja, marcas linguísticas que contribuem para as performances discursivas dos participantes. Similar perspectiva é adotada pelos pesquisadores Melo & Moita Lopes, para quem “os traços linguísticos (...) possibilitam estudar os enquadres, os alinhamentos, as ordens de indexicalidade mobilizados na interação” (2014:09). A análise do material se dá, também, levando em consideração o contexto macro da realidade das escolas municipais da cidade do Rio de Janeiro. RELATANDO O VÍDEO E DESCREVENDO PRIMEIRAS IMPRESSÕES O vídeo se inicia com uma apresentadora, que se dirige ao professor, falando sobre a importância de dominar a Língua materna, compreender e 125 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva reconhecer seus sinais. Após essa apresentação, dá-se a abertura do episódio. A história começa dentro de uma biblioteca quando um aluno cadeirante esbarra em uma estante e cai um baú na sua frente. O barulho chama a atenção de outros alunos. Após se distraírem com o ocorrido, percebem que ficaram presos na biblioteca, começam a conversar sobre o que acabou de acontecer, questionam de quem será o tal baú e se devem, ou não, ver o que está lá dentro. São quatro personagens, dois meninos e duas meninas. Todos brancos, e um cadeirante. Essa característica dos personagens chama atenção, pois sabemos que, na escola pública, por questões históricas e sociais, a maioria dos alunos é negra ou parda (nomenclatura utilizada pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). As quatro crianças aparentam ter idades próximas. Todos usam a mesma roupa, dando a entender que estão usando o uniforme do colégio. Vamos apresentá-los de acordo com a ordem de aparição no episódio. A primeira a falar é a Jessica, que inicia a conversa após ouvir o barulho do baú caindo. Ela demonstra curiosidade em saber o que tem dentro do baú, não se intimida pelo fato de não ter permissão para abri-lo e nem se preocupa por não saber a quem o baú pertence. Apesar de, no início da trama, falar sobre a dificul- dade para aprender a escrever em português, rejeitando até a ideia de aprender um novo idioma (o inglês), durante o diálogo com os colegas ela demonstra ser uma aluna atenta à professora, que utiliza o dicionário quando tem dúvidas e possui conhecimentos de elementos gramaticais, como sinônimo e estrangeirismo, dando a entender que gosta de estudar. A Jessica é irmã, por parte de mãe, da Geysa. Em seguida, conhecemos Emerson, o personagem cadeirante, que inicia a sua ação no vídeo ao esbarrar na estante da biblioteca da escola e, sem querer, derrubar um baú. Ele se mostra ponderado durante a conversa e, apesar de curioso e desejoso de abrir o baú, ouve os argumentos tanto daqueles que querem abri-lo como de quem não quer. Ele acaba decidindo a questão e lendo a carta encontrada no baú por Maiquel. Emerson é o único personagem que pertence a uma família tradicional com mãe e pai presentes em casa, e menciona o carinho da mãe ao citar o verso “tudo vale a pena se alma não é pequena”, do poema “Mar Português”, de Fernando Pessoa, que ela lhe ensinou como motivação para sua condição de cadeirante. Maiquel é um menino corpulento que, por diversas vezes no episódio, men- ciona estar com fome, e sua grande preocupação é com a hora do jantar. Defende 126 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) que eles devem abrir o baú e descobrir a quem este pertence, a ideia de criar o grupo denominado “Turma da Biblioteca” parte dele. Revela que não tem pai, mas durante a passagem da leitura da carta podemos deduzir que possui um avô presente. Geysa é a personagem que mais se preocupa com tudo que está aconte- cendo e, principalmente, em sair da biblioteca, pois precisa cuidar dos irmãos mais novos. Por diversas vezes, tenta cercear a atuação do grupo lembrando a todos que o baú tem um dono e, logo, não é correto revirá-lo apenas por curio- sidade. Assim como sua irmã Jéssica, Geysa demonstra alguns conhecimentos prévios da Língua Portuguesa e repreende a irmã em algumas situações dando a entender que é mais velha que esta. ANÁLISE E AVALIAÇÃO DAS PROPOSTAS DE COMO EXPLORAR O EPISÓDIO EM SALA DE AULA Na conversa, os personagens falam sobre algumas questões pessoais, e também sobre alguns de seus conhecimentos de língua portuguesa. Os conteúdos são ressaltados em esquemas coloridos e animados. Ao final, a apresentadora aparece novamente com ideias de como utilizar o material com a turma, possibi- lidades de questões para discussão e enumera os pontos gramaticais do episódio. O diálogo entre as crianças não parece natural, e a inserção dos pontos gramaticais é realizada artificialmente. Em um diálogo, como o do vídeo, não é comum pontuamos as estruturas gramaticais, falamos e fazemos uso dos recursos linguísticos que conhecemos sem precisar nomeá-los (cf. Bagno, 2013). Logo, para descrever e fixar regras gramaticais, é preciso de contextos mais amplos e diversos. As sugestões para trabalho didático são genéricas e baseadas em nomen- claturas gramaticais, como reescrever um texto usando dicionário de sinônimos e formular um exercício de caça palavras com estrangeirismos. Um aspecto positivo do episódio é a descrição das questões pessoais de cada personagem, Emerson é cadeirante, Geysa diz que cuida dos irmãos mais novos e o pai abandonou o lar quando era pequena, Maiquel também não tem pai. As últimas três situações citadas pelos personagens são comuns em famílias atuais e fazem parte da realidade escolar. Ao contemplá-las em seu material didático, a MULTIRIO leva a possibilidade de cada aluno refletir sobre suas individualidades, pois a representação de família na mídia, em geral, ainda é a 127 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva tradicional, influenciada por concepções de famílias de classes mais favorecidas, orientadas por uma perspectiva patriarcal (cf. Bordieu, 1999). A escola reflete as desigualdades entre dominantes e minorias que se evidenciam em outras dinâmicas sociais (cf. Silva, 1999). A igualdade de opor- tunidades também depende de uma escola que atenda e represente as diferenças sociais, que reflita como as relações de poder são formadas e não apenas reproduza as relações sociais existentes. Ao criar uma história com o intuito de inserir elementos gramaticais, o vídeo fica parecendo uma cartilha animada. O episódio apresenta diálogos que não se aproximam da realidade dos alunos. Qual criança de 8 a 10 anos, durante uma conversa com amigos, se preocuparia em nomear os recursos linguísticos que estão utilizando para expressar suas ideias e pensamentos? Bagno (2013) observa que qualquer falante de uma língua é capaz de usar as estruturas para se fazer entender, e que as normas gramaticais são sis- tematizações da língua para dar conta de uma tentativa de homogeneização. Ao optar por uma gramática animada, a MULTIRIO está reproduzindo a educação tradicional centrada nas regras gramaticaisem um novo formato, que são apresentadas sem uma reflexão do seu uso e significados na fala e na escrita, como na visão bancária que Freire (1994) tanto criticava. Durante o episódio, a fala das personagens nem sempre vai ao encontro do modo de falar das classes que representam. A forma de falar das classes menos favorecidas é diferente das classes mais abastadas, sendo constantemente alvo de piadas e preconceitos, como aponta Bagno (2013). A escola, ao considerar a fala de seus estudantes, não estará deixando de ensinar português, mas pode fazê-lo de forma mais eficiente estimulando a leitura e a escrita e a compreensão dos usos da língua no dia a dia. O português é visto no senso comum como uma língua difícil, no diálogo entre os personagens essa questão é colocada por Jessica, que diz que acha difícil aprender português, e complementa, “imagina outra língua”. Bagno (2013) chama essa afirmação, de que português é difícil, de mito e diz que o português ensinado nas escolas, o português das gramáticas, é considerado difícil porque, dentre outras razões, muitas vezes, não encontra paralelo com o uso que fazemos da língua no cotidiano. 128 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Freire (1994) atentava para o conhecimento prévio dos alunos, prin- cipalmente para a sua leitura de mundo, e que a escrita só faz sentido se for significativa para esse sujeito. Com as crianças do episódio não é diferente, cada uma possui seus conhecimentos anteriores à escola, que ocorrem na família, em diversos espaços de sua comunidade e, também, através das mídias. Maiquel reconhece que “réis” é nome da moeda em vigor em 1940 porque seu avô havia lhe contado, e Emerson reconhece o verso do poema “Mar Português”, de Fernando Pessoa que a sua mãe usou como meio de incentivá-lo a superar as dificuldades de cadeirante. A proposta pedagógica do episódio sugere a utilização dos novos recursos tecnológicos. No entanto, ao transformar o programa de TV em uma gramática animada, com direito a esquemas escritos na tela, acaba se alinhando à uma perspectiva instrumentalista de uso do material didático, indo de encontro ao que afirma Bergalla (2008:36) quando diz que (...) toda pedagogia deve ser adaptada às crianças e aos jovens que ela visa, mas nunca em detrimento do seu objeto. Se ela não respeita seu objeto, se ela o sim- plifica ou o caricatura em demasia, mesmo com as melhores intenções pedagógicas do mundo, ela faz um trabalho ruim. No episódio analisado, observamos falhas de roteiro, talvez em decor- rência do foco em conteúdo didático e de explorar superficialmente o aspecto narrativo (cf. Bruner, 2001). Ao final do episódio são apresentadas seis suges- tões de atividades com os alunos. A primeira consiste em um debate na turma sobre a cena que mais os marcou para, posteriormente, descrevê-la com todos os detalhes possíveis. A atividade seguinte trabalha com o conceito de sinônimo e propõe que o professor selecione um trecho de um livro que a turma já conheça, ou seja, esteja lendo, e peça para reescrevê-lo em grupos utilizando o máximo de sinônimos possíveis. A intencionalidade da atividade não é clara, reescrever um trecho inteiro de um texto com sinônimos pode não alterar sua mensagem principal. Compreendemos que as atividades na escola devem ajudar a emancipar os estudantes, dando autonomia para buscar o conhecimento e perceber-se como um ser inconcluso e em constante construção (cf. Freire, 1994). 129 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES A empresa MULTIRIO traz possibilidade de inovações no Ensino Público levando para sala de aula a tecnologia da comunicação e incentivando os professores a utilizarem essas ferramentas. Porém, as propostas apresentadas ainda são ancoradas em bases tradicionalistas, o material analisado assemelha-se a uma cartilha animada, uma nova forma de apresentar os conteúdos gramaticais sem exigir dos alunos uma análise dos usos da língua em diferentes contextos, em uma visão claramente instrumentalista. Adorno (1978) afirmou que, em seu tempo, a cultura estava sendo transformada em mercadoria através da mídia e, dessa forma, os trabalhado- res tinham uma forma de entretenimento que não os faziam pensar sobre as mazelas do capitalismo. Uma produção específica para ser utilizada na escola com instruções aos professores de como utilizá-las também pode ser uma forma de manipulação para evitar discussões críticas em sala de aula. E sem dialogar sobre temas sociais na escola, a maioria dos alunos irá apenas reproduzir os papéis aos quais foram escalados na sociedade que lhes foi apresentada (cf. Foucault, 1996:41). Em nossa breve análise de um dos episódios do programa da MULTI- RIO trazida aqui, priorizamos aspectos ligados às representações identitárias e aos aspectos linguísticos em jogo nessas representações presentes no vídeo. Entendemos que podemos avançar mais na análise, mas temos de respeitar a questão do espaço que nos é permitido neste livro. Tivemos de nos ater à relação entre a narrativa resultante da história contada pelo vídeo estudado. Sem deixar de lado questões que envolvem os objetivos da mídia-educação, como as que dizem respeito ao material, analisamos também alguns aspectos de como o ensino da Língua Portuguesa é desenvolvido no vídeo. Faltou uma análise de seus aspectos imagéticos, de como se configura o vídeo em si, a sua montagem e a colocação dos atores em relação ao espaço e em sua relação entre si, por exemplo. Seria também importante a análise das relações do uso das tecnologias e das práticas midiáticas na escola e fora dela, a fim de compreendermos melhor o uso desse produto em contextos específicos, sempre em relação ao seu propósito educativo. Essas análises, certamente, trariam mais evidências para fundamentar nossos resultados. 130 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Alinhando-nos à Kenski (2007) ao compreendermos que precisamos nos abrir mais às possibilidades da tecnologia atual, que tem nos permitido ensinar e aprender de formas diferentes, uma vez que, dentre outros aspectos, o professor não é mais o único detentor do saber, mas continua sendo um mediador do saber extremamente necessário. Esta pesquisa foi desenvolvida antes da pandemia de COVID-19, que obrigou o fechamento das escolas e nos catapultou de forma abrupta ao ensino por meio das diferentes plataformas de encontro ou de simulação de salas de aulas na internet. No cenário complexo de pandemia e pós-pandemia, o papel dos(as) pro- fessores(as) mediadores se mostra fundamental. Os(as) professores(as) que consigam fazer bom uso dos aparatos da mídia-educação na sala de aula (ou na plataforma na internet que utilizam para realizar as suas aulas), propiciando um ambiente de aprendizado, organizando as informações e transformando-as em conhecimento, respeitando as individualidades dos estudantes e provocando mudanças, estarão no caminho de construção de formas de educação transformadoras. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. Paz e terra, 1978. BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico. O que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 2013. BASTOS, Liliana Cabral & SANTOS, William Soares dos. “Caramba, e eu era assim, pelo amor de Deus” – a perspectiva do presente na reconstrução identitária em narrativas de conversão religiosa. In: MAGALHÃES, Izabel; GRIGOLETTO, Marisa; GRI- GOLETTO, Marisa; CORACINE, Maria José (orgs). (Org.). Práticas Identitárias. Língua e Discurso. São Carlos - SP: Claraluz, 2006, p. 223-234. 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A primeira delas é a Teoria Social da Mídia proposta por Thompson (1998) acerca dos meios de comunicação e suas diversas formas de interação com os sujeitos. As percepções de Monte (2014) que se referem as maneiras como o sujeito interpreta as formas simbólicas que são colocadas pelos meios de comunicação. A abordagem de Pérsigo e Fossá (2010), acerca das interações midiáticas. As discussões de Fausto Neto (2006, p. 23), cuja pesquisa se debruça sobre as estratégias que a mídia utiliza a respeito da dinâmica dos campos sociais. 43 Doutoranda em Educação (ULBRA). Bibliotecária-Documentalista (UFRA). CV: http://lattes.cnpq.br/4185308849454786 44 Doutoranda em Educação (ULBRA). Pesquisadora CAPES. CV: http://lattes.cnpq.br/6454625036720372 45 Mestra em letras (UNIR). Bibliotecária-Documentalista (UNIR). CV: http://lattes.cnpq.br/3038072804078428 46 Mestranda em Educação (ULBRA). CV: http://lattes.cnpq.br/0387809812397041 47 Mestranda em Educação (ULBRA/Canoas). Técnica em Laboratório – Geóloga (UFOPA). CV: http://lattes.cnpq.br/6397466354919347 48 Mestrando em Educação (ULBRA). Bolsista da Capes. CV: http://lattes.cnpq.br/8873996622321910 http://lattes.cnpq.br/4185308849454786 http://lattes.cnpq.br/3038072804078428 http://lattes.cnpq.br/8873996622321910 134 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Com relação a investigação discursiva sobre a fake news, traz-se os seguintes autores: Silva (2018) que pontua sobre a “moda” “curte e compartilha”, na qual não há filtro na veracidade das informações colocadas pelos sujeitos que se apropriam das notícias, além de traçar o panorama histórico das fake News. Abordando ainda, Rais (2018), Allcott e Gentzkow (2017), Castro (2018), European Comission (2018) e Marwick e Lewis (2017) que trazem as definições de fake News e seus elementos. Os autores Recuero e Gruzd (2019) que associam fake news a desinformação. E LLorente (2017) que expõe sobre as notícias falsas e a banalização da mentira. No correspondente a questão dos corpos, propriamente dos corpos gor- dos, traz-se na literatura de Prost (1987) a visualização dos corpos como marca pessoal e da vida cotidiana do ser humano. Enquanto em Butler (2002) verifica a percepção dos corpos além do que eles demonstram ser e a possibilidade de discorrer sobre quem eles são. Goellner (2012) traz o olhar do corpo como uma produção da cultura. Melo (2015) expõe a regulação dos corpos na sociedade contemporânea sobre os padrões dos corpos. E Rangel (2018) e Silva e Can- tisani (2018) levantam conceitos de gordofobia e os discursos de preconceito. Somam-se a estas concepções, Fonseca (2015) explana as perspectivas dos corpos sob a ótica de autores como, Michael Foucault, a qual analisa o biopoder/ biopolítica existente nestes; em Sant’Anna (2010) está a construção histórica das representações corporais; Gomes Junior (2020) traz a perspectiva do corpo na história, inserindo a noção dos discursos que são produzidos sobre os mesmos; Goiamérico, Aires e Hoff (2017) referem-se aos discursos midiáticos sobre acei- tação de estéticas corporais que fogem ao padrão vigente. E à luzdo conceito de regulação, Castells (2003) expõe sobre as concepções da cultura e Miyazaki (2020), Hall (2003), Hall (1997) que abordam o próprio conceito de regulação. DESENVOLVIMENTO Para a compreensão das interações midiáticas na sociedade, a partir dos contextos relacionados as fake news no cenário atual, é necessário apreender aspectos apresentado pelas mídias na sociedade, desde os meios de comunicação até as relações sociais estabelecidas na atualidade. Partindo deste pressuposto, inspirados na Teoria Social da Mídia de Thompson (1998), compreende-se que os meios de comunicação estabelecem relações íntimas com as proporções 135 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva simbólicas presentes na ação e interação dos sujeitos que colocam sentidos e os representam. Thompson (1998) mostra que os sujeitos sociais ao captarem esses produtos midiáticos não os conhecem simbolicamente, mas apropriam- -se de uma pequena parte deles, gerando a massiva apropriação ainda que timidamente dos símbolos produzidos por estas interações que podem ou não propagar artefatos culturais. O que possibilita compreender que “quem recebe produtos midiáticos é envolvido em um procedimento de interpretação no qual esses produtos adquirem sentido” (MONTE, 2014, p. 23). Deste modo, “nesse caminho, interpretar formas simbólicas mediadas pelos meios de comunicação significa passar por um processo de transformação provocado pelo próprio ato de receber, interpretar e reinterpretar o material” (MONTE, 2014, p. 23). Nesse sentido, Pérsigo e Fossá (2010) mostram que esse tipo de sociedade é vinculada aos meios de comunicação. Reafirmando esta acepção, Fausto Neto (2006, p. 23), que compreende que “na ‘sociedade midiática’ os meios se constituem em setores estratégicos, no âmago da vida e da dinâmica tensional dos campos sociais”. Após abranger este cenário da sociedade midiática faz-se pertinente, incorporar o panorama das denominadas fake news. Expressão que tem origem da língua inglesa, cuja significação está relacionada a notícia falsificada, capaz de proporção em conteúdos rápidos e práticos, nos quais as pessoas apenas visualizam as informações e automaticamente as propagam, vivendo a chamada era do “curte e compartilha” sem a veracidade da informação que foi vista e divulgada de maneira rápida (SILVA, 2018). O panorama histórico considera que as redes sociais contribuíram para o agravante das fake news, embora as mesmas já existam desde a antiguidade, apesar de não identificadas historicamente. Os primeiros vestígios dessas infor- mações falsas (desinformação) são percebidos desde os “tempos dos faraós (farsas faraônicas): [...] a suposta vitória das tropas de Ramsés II contra os hititas, na batalha de Qadesh, teria sido, na verdade, uma semiderrota. [...] a vitória teria sido propagandeada pelos escultores e escribas da época” (SILVA, 2018, p. 14). A partir da visão de Rais (2018), a formação de uma fake news comporta três elementos necessários: falsidade, dano e dolo. Outros estudiosos afirmam que as fakes ultrapassam esses três elementos pontuados pelo autor supracitado. Allcott e Gentzkow (2017), Castro (2018), European Comission (2018) e Marwick e Lewis 136 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) (2017) apontam que as expressões em inglês misinformation e desinformation estão relacionadas ao fake news, onde a primeira dispõe de informações que não tem uma intenção, já a segunda, existe a intencionalidade e a propagação delibe- rada para distorcer a informação ao usuário, multiplicando informação nas redes. Para autores como Recuero e Gruzd (2019, p. 32) o conceito relacionado a fake news atualmente é sinônimo de “desinformação, utilizado livremente pelos veículos noticiosos para indicar rumores e notícias falsas que circulam, principal- mente, na mídia social”. E no qual, a massiva gama de informações disseminadas permeiam o epicentro de sátiras, boatos e até mesmo notícias fabricadas. Assim, percebe-se a gradativa presença de regulações propostas por estas desinformações. Em relação aos corpos gordos, pode-se afirmar de acordo com Prost (1987), que o corpo passou a ser considerado um fator de identificação pessoal, já que o sujeito não poderia intimidar-se do seu corpo, pois isto lhe representa. O corpo é a marca em que a pessoa vivência sua cotidianidade. O que para Butler (2002, p. 11) gera a afirmação de que os corpos não mostram apenas “um mundo que está mais além deles mesmos; este movimento que supera os seus próprios limites, um movimento fronteiriço em si mesmo, parece imprescindível para estabelecer o que os corpos ‘são’”. E para Goellner (2012, p.28), estes são produzidos na e pela cultura, marcas de sua historicidade. Corpo materializado e considerado em uma produção do seu tempo, construído culturalmente sobre diferentes óticas provisórias. Os corpos gordos são estudados em diversas áreas do conhecimento, como saúde, economia, história, ciências sociais, educação, Estudos Culturais. Destacando-se a relação dos corpos com a medicina, já os discursos que envolvem os corpos gordos “traduzidos” enquanto não saudáveis são potentes. O que para Melo (2015) representa discursos produzidos pela mídia e pela sociedade como “facismo contemporâneo”, no qual se discorre, regula e controla os corpos a serem livres do “excesso de gordura, dos centímetros a mais e, portanto, ‘padronizados, ‘controlados’” (MELO, 2015, p. 23). Em contrapartida a esta tendência, existem pessoas que não seguem estes padrões sociais de consumo dos corpos, reafirmando-se como corpos gordos e lançando-se a diversos usos e que acabam por sofrer preconceitos, dentre os quais, pode-se destacar a gordofobia. Noção que pode ser associada aos con- ceitos de regulação, biopoder e biopolítica, posto que o preconceito embutido 137 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva na gordofobia configura-se em mecanismo de controle da sociedade por meio da não aceitação destes corpos. Rangel (2018, p. 19) compreende a terminologia gordofobia como “(...) o preconceito, estigmatização e aversão englobados por meio de uma opressão estrutural na sociedade que atinge as pessoas gordas”. Para Silva e Cantisani (2018, p. 372), ela reforça “estereótipos e impõem situações degradantes com fins segregacionistas; por isso, a gordofobia está presente não apenas nos tipos mais diretos de discriminação, mas também nos valores cotidianos das pessoas”. A mídia também vai dispor de mecanismos de regulação, biopoder e biopolítica para “burlar” este entendimento e controlar os indivíduos por discursos que expõe e manipula. Diante disto, associa-se tais perspectivas ao objeto fake news dos corpos gordos, trazendo um exemplo de desinformação ocorrido no dia 05 de agosto de 2020, ao anunciarem a morte por problemas de saúde, mais precisamente à obesidade, do criador de conteúdos, Caio Revela. Cenário criado a partir das mensagens trazidas sobre a sua morte, com local estabelecido (Hospital Israelita Alber Einsten), circulando nas redes sociais com o hastag #ripcaiorevela, e no twitter, onde os comentários foram intensos sobre o anúncio da morte. Figura 1 – Fake news sobre a morte de Caio Revela. Fonte: Catraca Livre (2020). 138 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) A partir da figura 1 percebe-se que o corpo gordo é entendido como sinal de adoecimento por estar associado a obesidade. É representado como fragilizado por estar fora do padrão social regulado pelas noções de biopoder e biopolítica inseridos nos discursos produzidos pela mídia. Situações reais e constantes, como a vivenciada por Caio Revela, produzidas de forma discrimi- natória e preconceituosa. Caio expõe os preconceitos que sofre e os nomeia de gordofobia, além de rebater a fake News exposta na Figura 1 em seu Instagram utilizando a expressão: “Corpo Livre”. O que remete a concepção de Gomes Junior (2020, p. 20) ao suscitar que “o corpo não é apenasa sua materialidade, mas igualmente tudo que isto implica em demonstrar o que Foucault (1979, p. 146) expõe sobre “o domínio, a consciência de seu próprio corpo [que] só puderam ser adquiridos pelo efeito do investimento do corpo pelo poder”. Em outra perspectiva, veri- fica-se que a aceitação do seu corpo gordo impera as concepções trazidas por Fonseca (2005, p. 20) ao discorrer que “o corpo não recebe o estatuto de um ‘próprio’, mas daquilo que é atuante pelas injunções que o colocam a falar, agir e se mover das maneiras específicas que o faz”. Na Figura 2 identifica-se outro discurso preconceituoso embutido, porém, há também uma confirmação da morte do influencer com seus familiares, só que agora devido a outros problemas de saúde, como a COVID-19. A notícia expõe que Caio é um grande ícone, mas desloca-se por outros discursos que ressaltam a gordofobia. O que ancorando-nos em Foucault (1987, p. 28), gera a compreensão de que “o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a ceri- mônias, exigem-lhe sinais”. 139 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva Figura 2 – Fake news sobre outro motivo da morte de Caio Fonte: Metrópoles (2020). Fonseca (2015) mostra que como no anuncio desta fake os discursos que envolvem as políticas referentes ao corpo manifestam a dualidade entre subjetividade/verdade e propagam como o corpo é visualizado. De tal modo, “sem os discursos que pretendem enunciar o corpo e sem as normas e práticas que o regulam, não parece haver lugar para o corpo” (FONSECA, 2015, p. 19). Notícias que expressam o tempo todo um corpo frágil, capaz de sucumbir a qualquer momento pelo fato de ser um corpo gordo. Já na Figura 3, identifica-se o convite com local para o velório de Caio Revela e logo abaixo uma mensagem de um perfil que informa que a notícia que está circulando é “um trol da madrugada”. Presente neste discurso do perfil que criou a fake, está a desinformação de que “vamos apagar os posts as 5hrs pra não deixar rastros, to amando isso kkkkk”. Evidenciando discursos produzidos de que as relações estabelecidas entre o saber, poder e corpo, mostram as diversas formações que são propagadas externas a ele. 140 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Figura 3 – Fake news anunciando o velório de Caio Revela. Fonte: Metrópoles (2020). A partir de uma análise mais ampla das Figuras 1, 2 e 3 observa-se que há estabelecidos ao corpo gordo por meio destes discursos, uma percepção de Foucault sobre a “dimensão biológica” em que o corpo assume na sociedade capitalista contemporânea, atrelada a um campo biopolítico ligado ao discurso da saúde, precisamente da medicina e da adesão das formas biopolíticas pelos corpos magros através da medicalização e dos padrões da normalidade social. Regra que o corpo gordo foge (GOIAMÉRICO; AIRES; HOFF, 2017). Portanto, de acordo com Pelbart (2011, p. 24) a biopolítica “designa, pois, essa entrada do corpo e da vida, bem como de seus mecanismos, no domínio dos cálculos explícitos do poder”. Na Figura 4, nota-se os discursos das pessoas que propagaram a fake que estão se divertindo pela madrugada. Explicitando que a notícia anunciada da morte de Caio Revela possui o objetivo de “bombar” no facebook e expandir a desinformação no twitter. 141 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva Figura 4 – anúncio da morte de Caio Revela produzidos na madrugada Fonte: Metrópoles (2020). Os comentários da Figura 4 emergem a compreensão de Foucault sob o viés do corpo que vai além de sua materialidade e que possui um efeito de poder, produtor de práticas por meio de signos construídos. O que para Fonseca (2015) gera bastante visibilidade dos corpos, que no caso de Caio ganha esta proporção a partir dos comentários. [...]podemos supor que o corpo é posto a falar, é preen- chido e composto por isso que lhe é estranho, mas que, em sua conjunção com o corpo, tanto as diferentes apreensões e dicções a seu respeito quanto sua própria manifestação formam as lentes da inteligibilidade de sua materialidade (FONSECA, 2015, p. 28). Na Figura 5, os discursos já são estabelecidos de forma preconceituosa, apresentando que o corpo gordo é produzido através da gordofobia, nos seguin- tes comentários: “sera que tem caixao desse tamanho??” e “vai ser jogado no lixão”. Observando-se discursos e significações que envolvem o biopoder e a biopolítica trabalhadas por Foucault a partir da segunda metade do século XIX, discorrendo que o primeiro está ligado as técnicas disciplinares proeminentes do homem-corpo. A segunda perspectiva liga-se a noção de regulação do homem- -vivo, assim, nesta fakenews impera de fato noções de biopoder e biopolítica. Nestes discursos sobre o corpo gordo de Caio Revela, observa-se que na há investimentos bem contundente sobre a biopolítica do corpo. E as mídias são 142 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) as grandes incentivadoras de tais aspectos, reforçando as estratégias biopolíticas para gerir o corpo e possibilitar dispositivos de controle. Figura 5 – Discursos produzidos sobre o preconceito do corpo gordo de Caio Revela. Fonte: Metrópoles (2020). Nota-se que a partir da mídia e propagação de inúmeras fake news veiculadas principalmente nas redes sociais, a representação da morte de Caio Revela está ligada a questões de saúde: obesidade e COVID-19. Relação direta com a proposta de que o corpo gordo por estar fora do padrão estabelecido socialmente merece esse tipo de análise social. O que mais uma vez, pode ser endossado pela ordem lógica da regulação, biopoder e biopolítica. Para Foucault (1987, p. 28) ao mostrar que “o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam [...]”. CONSIDERAÇÕES FINAIS É relevante compreender que estas fake news estão associadas aos arte- fatos culturais que são regulados por relações de poder. Portanto, o conceito de regulação se faz pertinente porque está atrelado a perspectiva de regramento. 143 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva Ou seja, “a regulação, portanto, é uma relação de poder que está relacionada com a noção de regra ou lei, normas ou convenções que padronizam, uniformizam ou formalizam as práticas sociais e o convívio em sociedade” (MIYAZAKI, 2020, p. 47). De acordo com Hall (2003), o mercado se “autorregula na medida em que ele aloca recursos, recompensa a eficiência e a inovação, pune a ineficiência e a falta de criatividade e, acima de tudo, [...], cria vencedores e perdedores próprio mercado e o regulam” (HALL, 2003, p. 16). Concepção que deixa evidente que a regulação dos artefatos culturais, como é o caso destas fake news dos corpos gordos, pode ser entendida também dentro da lógica de economia do mercado. Hall (1997, p. 27) questiona-se sobre dois pontos relevantes no âmbito da regulação: “como esfera cultural é controlada e regulada? Quais destas ques- tões de regulação cultural têm a possibilidade de se destacar como marcos de mudança, ruptura e debate no próximo século?” Na busca de respostas a estes questionamentos Hall (1997) observa que há uma existência grande entre cultura e poder. E que a centralidade da cultura ao se tornar maior também cria novas formas de como serão governadas, moldadas e reguladas. Os exemplos de fake news trazidos sobre Caio Revela, explicitam a presença da regulação, do biopoder e da biopolítica por meio dos discursos produzidos na sociedade contemporânea, da qual impera a constituição por meio do ordenamento de que o corpo gordo é sinal do não cuidado com a saúde e que a morte precoce de Caio Revela está associada com a negligencia perante seu corpo gordo. Fato constantemente explicitado nas fakes apresen- tadas. Concluindo-se aé possível fazer consigo mesmo. Segundo Cohn (2005), os espaços especializados de aprendizagem trans- mitem conhecimentos diversos em modalidades diversas. Por isso, deve-se enfocar a educação e os processos de aprendizagem através das modalidades, lugares e relações envolvidas nesse processo em que se insere a criança e como a criança está inserida nele. Assim, concepções do que é ser criança, do desenvolvimento e da capacidade de aprender devem ser entendidas de maneira interligada. Só assim se pode compreender o que significa para eles aprender e a aprendizagem, os processos pelos quais os realizam. Quando o Estado tomou pra si as dimensões da proteção do indivíduo, foi o momento em que a escola se tornou, no século XIX, obrigatória e universal. Nesse período, a cristalização social das idades da vida se aponta como elemento da consciência moderna. No entanto, esses processos de cristalização ocorreram de maneira múltipla e convergente, assim como várias transformações essenciais foram prudenciais tanto no âmbito familiar quanto no âmbito social no que diz respeito à projetos educativos individualizados, que buscavam qualificar uma determinada ocupação do futuro adulto na sociedade. Escolarização e sentimento familiar se desenvolvem como dimensões complementares ao novo cidadão. PRÁTICAS EDUCATIVAS E CONFIGURAÇÕES IDENTITÁRIAS SOCIOCULTURAIS A invenção da infância na modernidade conduziu também à invenção da pedagogia moderna, pois assim como a infância, não surge de um dia para outro 15 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva e, como sinalizou Narodowski (2013), na modernidade a pedagogia contribui para a construção da infância tanto quanto a infância para a construção da peda- gogia. A escola, por sua vez, quiçá, fora constituída no espaço institucional onde saberes e poderes se inscrevem de forma mais sistemática, constante e rigorosa no corpo das crianças e seus professores. Como diz Foucault (1979), a escola passou a representar o espaço de preparação da pedagogia. Um dos resultados desta elaboração é que, embora possam ser analiticamente diferenciados, a criança já não poderá ser pensada como separada do aluno. Uma das alternativas bem quistas nas práticas pedagógicas é o currículo narrativo que enfatiza a aprendizagem ligada à história de vida. Esta prática possibilita o entendimento interativo da criança, situando-a em um contexto que envolve histórias de indivíduos. O foco nas crianças e nas suas relações, articula-se com as produções culturais de conhecimentos plurais. Vislumbrar a aprendizagem como algo ligado à história de vida é entender que ela está situada em um contexto, e que também tem história –tanto em termos de histórias de vida dos indivíduos e histórias e trajetórias das instituições que oferecem oportunidades formais de aprendizagem, como de histórias de comunidades e situações em que a aprendizagem informal se desenvolve (GOODSON, 2008). A ideia de que cabe à criança brincar, se divertir e aprender foi cons- truída socialmente e historicamente. Brincar é uma atividade humana na qual as crianças são introduzidas, constituindo-se em um modo de assimilar e recriar a experiência sociocultural dos alunos. A criança desenvolve-se pela experiência social, nas interações que estabelece, desde cedo, com a experiência sócio histórica dos adultos e do mundo por ele criado, em suas relações. A criança, portanto, constitui um sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura. Atualmente, os meios midiáticos, como a televisão, revistas, jornais, outdoors e redes sociais, contribuem na produção e propagação de valores e modos de se constituir sujeito. Com a evolução de recursos técnicos e tecnológicos, esses meios se instrumentalizam e se põem, dentre outros, à serviço de chamar a atenção e estimular comportamentos de consumo. A mídia aponta o caminho a ser traçado e o consumo 16 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) é a falsa ilusão do alcance do objeto de desejo simbolicamente produzido (LOPES & MENDONÇA, 2016). Com base nesses aportes, entende-se que o estar em evidência, testemunhar o momento, o consumo e a idolatria são referências que, na maioria das vezes, são projetadas por meio de imagens, os modos de vida dos ricos, dos poderosos e dos famosos, um estilo que reflete um novo ideal de felicidade que é vida como artefato de entretenimento. É importante frisar que, por meio da mídia, a sociedade segue o espetáculo da vida do outro, dando ênfase em bens materiais, em corpos ditos perfeitos, como sinônimo de vida feliz e de sucesso. Para Goetz (2013), a construção da imagem corporal perdura nas diferen- tes etapas da vida, pois nosso corpo passa por alterações biológicas, hormonais e físicas. Por outro lado, relaciona-se, também as características sociais da cultura na qual interagimos, pois estas interferem na noção que temos do nosso corpo, assim como intervém com efeitos psicológicos e emocionais. Vale ressaltar, então que todos esses fatores mencionados estão imbricados no processo de consciência e construção da imagem corporal. Segundo Costa (2005) os indivíduos, além de ver o mundo com as lentes do espetáculo, também são motivados a se tornarem seus participantes e esse processo se construiria por meio da imitação do estilo de vida dos personagens da moda. Todavia, como esta prática não é oportuna a todos os indivíduos em ostentar riqueza e poder, resta aproximar-se do que se encontra mais acessível a qualquer um: a aparência corporal. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por fim, as questões atuais sobre educação das infâncias em diversi- ficados espaços educativos devem considerar os conceitos de infância como construções sociais, assim como discutir sobre as linhas teóricas atuais, levando em consideração as implicações metodológicas dos conceitos de infância nas pesquisas em educação. As questões específicas da educação das infâncias em escolas. Portanto, a pedagogia moderna contribuiu muito para a construção da infância tanto quanto a infância para a construção da pedagogia. A escola, por sua vez, busca a constituição de espaços institucionais onde saberes e poderes se inscrevem de forma mais sistemática, constante e rigorosa no corpo das crianças e seus professores. 17 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva A compreensão da infância como uma fase dotada de especificidade e esperada como etapa que insere proteção aos perigos e demandas do mundo é obra de uma realidade histórica e cultural que cronologicamente foi sendo construída em conformidade com as necessidades das épocas que perpassou. Assim também, têm-se a noção de escolarização e sua centralidade para a formação da criança, pois ambas consistem em invenções da modernidade. O conceito de infância e a configuração escolar compreendem o suporte da pedagogia e do discurso que a compõe. Por se caracterizar de forma prescritiva e programática, o discurso pedagógico implica uma noção de infância, que traduz uma representação dita ideal de formação do indivíduo (CUSTÓDIO, 2016). Todavia, a escola tem de se perguntar se ainda é válida uma proposta educativa de massas, homogeneizante, com tempos e espaços rígidos, numa lógica disciplinadora, em que a formação moral predomina sobre a formação ética, em um contexto dinâmico, marcado pela flexibilidade e fluidez, de individualização crescente e de identidades plurais? O que se testemunha, enquanto educado- res, é que os futuros adultos, nas formas em que vivem a experiência escolar, demonstram claramente que não querem tanto ser tratados como iguais, mas, sim, reconhecidos nas suas especificidades, o que implica serem reconhecidos como sujeitos, na sua diversidade, um momento privilegiado de construçãonitidez dos preconceitos ligados aos corpos gordos e aqueles que assumem tais corpos em uma sociedade que está ligada a padrões de beleza sobre o corpo magro, onde este sim, tem saúde, segundo as normas vigentes de governamento atual. REFERÊNCIAS ALLCOTT, Hunt; GENTZKOW, Matthew. Social Media and Fake News in the 2016 Election. Journal of Economic Perspectives, Cambridge, MA, v. 31, n. 2, p.211–236, 2017. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 15. ed. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. 144 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) CASTELLS, Manuel. 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Petrópolis, Rj: Vozes, 1998. 146 ENTRE ESTRATÉGIAS DE CONSUMO, JOGOS DE SABER-PODER E ESTATÍSTICAS: REFLEXÕES SOBRE (OS DISCURSOS DE) INCLUSÃO Annebelle Pena Lima Magalhães Cruz49 Anderson Lincoln Vital da Silva50 Luiz Marcelo Magalhães Cruz51 Heider Carlos Matos52 INTRODUÇÃO As discussões e interesses que se estabelecem acerca da inclusão ocorrem em vários espaços sociais, tais como escolas, igrejas, instituições de abrigo e acolhimento, dentre outros, constituindo-se algumas com temáticas relacionadas sobre os processos de in/exclusão. Este texto concentra sua discussão numa visita a história da inclusão no Brasil, trazendo ainda ao diálogo, alguns desdobramentos dos discursos de inclusão ao longo das décadas em que esta temática passou a ser cotidiana, principalmente nos espaços escolares formais. Trata-se de uma produção de caráter bibliográfico, percorrendo em textos, como uma tentativa de aprendizagem sobre os processos de inclusão que ocorrem sobretudo nos espaços escolares, tendo como base central autores e autoras que carregam consigo discussões sobre o tema inclusão, assunto que também permeia os mais diversos universos escolares em que transitamos enquanto profissionais da educação. 49 Doutoranda em Educação (ULBRA). Pesquisadora CAPES. CV: http://lattes.cnpq.br/6454625036720372 50 Mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia. Advogado. Professor (UFAM). CV: http://lattes.cnpq.br/5760086972865304 51 Especialista em Direito Trabalhista (Faculdade Dom Alberto/RS). CV: http://lattes.cnpq.br/2598461095749979 52 Mestrando em Educação (ULBRA). Bolsista da Capes. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8797-9797 https://orcid.org/0000-0002-8797-9797 147 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva Por fim, verifica-se uma forte presença das práticas de governamento53 que cotidianamente são ativadas nessa relação com a inclusão nas escolas, gerando modos de fabricação de subjetividades. DESENVOLVIMENTO Este texto vincula-se à perspectiva dos Estudos Culturais em Educação, propondo-se em problematizar e examinar a partir de diversas lentes teóricas os processos de in/exclusão prioritariamente nos espaços escolares. É notório que a vasta Legislação nacional e internacional assegura o reconhecimento do direito para as pessoas com deficiência (MATOS; LEMOS, 2020)., no entanto, para que ocorresse esse reconhecimentos, uma quantidade expressiva de sujeitos passaram a compor estatísticas, campos de lutas, visando uma produção de textos legislativos que assegurem a estes sujeitos o direito de aprender, com autonomia, independência e potenciali- dades valorizadas, lhes asseguram também os direitoseconômicos e sociais (MATOS; LEMOS, 2020). Kassar (2011), nos idos do artigo “Percursos da constituição de uma política brasileira de educação especial inclusiva”, relata que o Estado de São Paulo por meio do Decreto 5.884, quando normatiza a educação especializada, estabeleceu que a educação inclusiva era voltada para os “débeis físicos, débeis mentais, doentes contagiosos, cegos, surdos-mudos e os delinquentes” (p.43). Definição que cria um significado de normatização, posto que classifica o que era “normal” e o que era “anormal” à época. Assim, até meados da década de 1960, Kassar recorda que “a taxas de escolarização obrigatória brasileira estava longe da universalização” (2011, p. 43), apesar da mesma totalizar apenas 4 anos. Somente no ano seguinte, em 1961, a LDB reconhece a educação dos chamados “excepcionais” quando abre a possibilidade de matrícula na rede regular de ensino. Embora, desde 1960, a UNESCO já colocasse em convenção a utilização do termo “discriminação”. 53 Foucault (2008) chama de governamentalidade o conjunto de tecnologias que possibilitam exercer uma forma específica de poder centrada na população. que podem se articular e compor arranjos técnicos por conjuntos de forças, visando à administração, ao governo da população, tendo a criança como instrumento, intermediação ou condição para obtenção de intervenções, mas será no nível da população que essa governamentalidade se exercerá. 148 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Para Batista (2015) ressalta que as iniciativas de proteger os direitos que as pessoas com deficiência conquistaram, começaram a assumir um novo caráter no Brasil a partir dos anos 60 com o surgimento de movimentos em prol dos direitos deste segmento até então excluído e apartado das oportunidades de ser respeitado. Em 1963 o relatório produzido pela UNESCO afirmou que o Brasil não tinha capacidade plena para escolarizar as crianças do primário, enquanto os países Europeus provavam universalizar a expansão do ensino de nível médio. E em 1967 surge a primeira constituição que prevê a criação dos Planos Nacionais de Educação. E em 1969, o país estabelece a execução dos planos regionais e nacio- nais. Com a edição da Lei nº. 5.692 de 1971, passa a ser obrigatória prevendo uma escolarização de oito anos, criando-se para a implementação dessa ação, o Centro Nacional de Educação Especial (CENESP), que passa ser o responsável para “formular e impulsionar as ações de Educação Especial no Brasil’’. A criação deste órgão e a implantação de suas ações encontraram subsídio na perspectiva desenvolvimentista adotada pelo regime militar à época”. (KASSAR, 2011, p. 45). Em 1976, o II Plano Setorial compreendendo que a educação especial representava o resultado da ação conjugada dos poderes políticos, também a via como parte importante da iniciativa particular. Contudo, importa frisar que apesar de legislações e ações gradativamente criadas, até meados de 1980, os relatórios públicos traziam em suas referências apenas os alunos repetentes e diagnosticados com deficiências leves, ou mesmo, que faziam parte das chamadas classes especiais. A partir de 1988, com o advento da Constituição Federal, a educação passa a ser apresentada como um direito social, ocorrendo a universalização da educação e da saúde por meio da criação do SUS nos anos 90. Nesse contexto o enfoque passa a ser para a proposta de Educação Escolar Inclusiva. A educação inclusiva refere-se a pelo menos três aspectos: mudanças ocorridas pelo mundo; convenções internacionais que são aceitas e ratificadas pelo Brasil. A relação entre a política pública brasileira se dá especialmente após a reorganização do país e a reforma do Estado na década de 90 (KASSAR, 2011, p. 46-47). Em 1990 ocorre um marco. Trata-se da Conferência Mundial de Educação para todos, promovido pela em UNESCO e pelo banco mundial. É justamente nesse período que se inicia a disseminação do discurso sobre a educação inclusiva. Aqui vale situar Lopes (2007) que pontua que a inclusão ganha status de verdade 149 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva e de realidade somente quando se torna parte dos discursos educacionais, pois é nesse tempo que as “narrativas” são de fato produzidas. (...) quando começa a circular em diferentes grupos como bandeira de luta, quando começa a ganhar força de lei, a desenvolver diferentes mecanismos de vigilância e controle, enfim, quando começa a produzir dados para alimentar médias estatísticas e fazer probabilidades de gestão de risco [...]. (LOPES, 2007, p. 15-16). O país passa a adotar uma política de universalização de escolaridade do ensino fundamental. Enquanto agências internacionais difundem a mudanças relativas às matrículas de aluno com deficiências nas escolas comuns ocorridas nos diferentes países anteriores. E embora a Declaração de Salamanca em 1984, já trouxesse influencias gerando mudanças de discursos, é somente em 1994 que o termo inclusão passa a fazer do discurso educacional brasileiro com maior ênfase, reforçado por um documento elaborado no governo de Itamar Franco, denominado “Tendências e desafios da educação especial” (KASSAR, 2011, p. 51). Em 1996, no então governo de Fernando Henrique Cardoso, a nova LDB é aprovada, mudando os preceitos para as matrículas de alunos com deficiências nas escolas do Brasil. E a aprovação do decreto nº 3.956/01 promulga a convenção interamericana para eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência. Ainda em 1996, a resolução 02/2001 aprovou as diretrizes nacionais para educação especial na educação básica (KASSAR, 2011, p. 51). No governo Lula, observa-se o andamento aos princípios de inclusão, adotando os termos em seus planos plurianuais (Plano Brasil de Todos), a saber: participação e inclusão 2004/2007; Plano de desenvolvimento com inclusão social e educação de qualidades 2008/2011. Nessa época, a inclusão passa a ser apresentada como prioridade nacional, de modo que obrigatoriamente a educação no país seja a responsável em fornecer meios para a equidade, a valorização a diversidade e proporcionar a inclusão social (KASSAR, 2011, p. 52). A partir de então, os discursos de inclusão já são pauta obrigatória em todas as escolas do Brasil. Introdução de um tímido, mas importante avanço frente ao descaso e a valorização tardia dos processos de inclusão. Contudo, as ações vão se alargando e possibilitando novos olhares de maneira que se com- preenda que ao longo do tempo, embora a inclusão passe a ser realizada por 150 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) meio de políticas públicas, muitas práticas de governamento também utilizam intensivamente os discursos de inclusão. Nesse percurso, as práticas de governamento se tornam tão presentes e maciças, que Lockmann, Machado e Freitas (2017, p. 5-6), no artigo “A inclu- são, a escola e a subjetivação docente: analisando o município do Rio Grande”, trazem a discussão sobre a proliferação dos discursos de inclusão que ocorrem na escola a partir de uma vertente sempre colocada como ética e carregada de benevolência, mais parecendo favor e benfeitoria do que se estabelecendo como política pública efetiva. No entanto, o que as autoras revelam é o intrincado “jogo de saber-poder-verdade” que se estabelece nas relações dentro da escola, gerando “discursos de saber-verdade” capazes de constranger o sujeito à medida que se tornam instrumentos que os conduzem a viver de determinados modos. Modos de vida e de comportamentos geradores de subjetividades não só no tocante aos alunos, mas inclusive, aos docentes. Nesse sentido, o discurso de inclusão é uma espécie de instrumento apresen- tado como pertencente ao Estado e reforçado de maneira contínua, respaldado em legislações que parecem dar conta da problemática da inclusão seja ela em qualquer esfera. Desta feita, a inclusão é pauta constante. Muitas vezes é atémesmo “ordem do dia” (LOCKMANN; MACHADO; FREITAS, 2017, p. 01-03) e geralmente tem endereço certeiro: o espaço escolar. Essa repetição solidifica-se em um discurso capaz de gerar inúmeros efeitos sobre o sujeito. Inclusive, produzindo para as autoras, “formas específicas de ser professor” (LOCKMANN; MACHADO; FREITAS, 2017, p. 03). Desta feita, o objetivo principal do texto é problematizar como essa engenharia tão bem estruturada funciona e do quanto ela molda as ações e os discursos e como eles desembocam em um modelo ideal de ser professor ou de fazer inclusão. Cami- nhada textual que nos leva a perceber o modo como tais operacionalizações dos discursos de saber-verdade são postos e, como o Estado se vale então da prática de governamento das condutas dos sujeitos, utilizando-se da mídia, das propagandas assinadas pelo Ministério da Educação e de revistas que ajudam a influenciar condutas. Geralmente, discursos retroalimentados desde a década de 90. De maneira global, processos ininterruptos que vão desde a formação do professor até o pleno exercício de suas atividades nas práticas escolares cotidianas e 151 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva de tudo aquilo que lhes é ofertado e colocado como comportamento frente a modos de inclusão. Aqui faz-se um adendo com uma frase encontrada no documentário “Janela da Alma” (2004): “a maioria das imagens que vemos não tenta nos dizer algo, mas nos vende algo”. Assim, urge-nos a reflexão de que nem a escola – campo de idealização da transmissão da educação (formal) – escapa das relações postas entre mídia, imagem, consumo, fabricação de sujeitos e governamento. Nesse sentido pode-se dizer o quanto as políticas inclusivas estão arti- culadas a biopolítica54, que regulamenta e ao mesmo tempo regula as condutas da população, bem como as noções de governamentalidade, apontando quem está dentro da regra e quem precisa ser regrado. É preciso conhecer de perto como se dão as práticas de governamento, por qual motivo os discursos são tão semelhantes e como Estado, escolas e docentes utilizam-se de símbolos, imagens e discursos para gerar visibilidade e massificação de indivíduos. Além da necessidade de se pensar como os espaços educacionais utilizam as terminologias “educação especial” e “educação inclusiva”, oferecendo ao público consumidor uma imagem de escola altamente engajada frente a temática. E avançando a partir de Lockmann, Machado e Freitas (2017), de olhar não só para os discursos gerados entre os professores e professoras, mas como os pais, passam não só a consumir essa escola, mas acreditam em uma espécie de pedagogia do cuidado voltada para os filhos especiais. Ora, se existe essa lógica de inclusão como imperativo do Estado, existem ancoragens que são geradas e que tornam a escola um lócus potencial onde circula a produção dos discursos pedagógicos inclusivos. E como essa cultura inclusiva é criada, posta, apresentada, e porque não ousar dizer, fabricada e vendida? E qual é o lugar da cultura visual nas escolas acerca da educação especial? E não menos importante, qual a percepção e sentimentos dos pais a partir dessa vivência de seus filhos com a escola? É muito mais do que gerar estatísticas sobre atendimentos e “viabilização” de práticas inclusivas. É preciso compreender que a escola discursa sobre inclusão muitas vezes indiretamente ao vivenciar um estilo de ser e de viver a temática em seus espaços educacionais. 54 A biopolítica emerge como uma resposta econômica e política a esses fenômenos específicos e variáveis próprias da população, como, por exemplo, natalidade, morbidade, expectativa de vida, fecundidade, estado de saúde, incidência de doenças, formas de alimentação, condições de habitat, criminalidade, dentre outras. Essa tecnologia visa, assim, o equilíbrio global (LAMPRECTH, 2014). 152 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Estratégias são criadas para se dar a sensação de que tanto o Estado quanto a escola fazem parcerias perfeitas com a família e os alunos – mas talvez seja uma lógica muitas vezes perversa. Pois, as famílias anseiam por serem atendidas em suas necessidades sociais e emocionais. Desta forma, pode-se compreender que uma escola com discurso inclusivo vende bem, porque parece estar engajada na causa. E nessa lógica de uma educação comoditizada55, a escola desenvolve artefatos de mídia que geram efeitos, que multiplicam matrículas, que mobilizam identidades e oferecem proposta de consolo aos pais ausentes e aos professores aparentemente engajados. Todos elementos que entram na cena escolar, na sala de aula, nos conteúdos pedagógicos, nos discursos dos professores e professoras. A cultura escolar, agora, talvez mais corporativa mercantil e menos pedagógica, nem precisa vender espaços para marcas e outros artefatos a serem desejados pela comunidade escolar. Ela mesma se apresenta como objeto do desejo, posto que se apresenta como uma escola sensível à temática da inclusão. E o professor, transeunte desse percurso, é autorizado para certos discursos. Legitimado para certas verdades, “enquanto outras são interditadas” (LOCKMANN; MACHADO; FREITAS, 2017, p. 03). Sardagna (2007), em seu texto “Políticas de educação para todos: um imperativo nos sistemas de ensino”, contextualizando o que foi falado inicial- mente neste texto que aqui se descortina, traz algumas indagações sobre o Plano Nacional de Educação (PNE), sobre a Lei nº10,172/2001 e a própria LDBEN (nº 9394/1996) e o modo como as políticas podem produzir “sentidos diversos no campo educacional” e como tais discursos se tornam estratégias ou como sugere a autora, “metanarrativa inquestionável” (SARDAGNA, 2007, p. 173). Metarranativas inquestionáveis no sentido de práticas postas ao sujeito, mas não como fazeres espontâneos desse sujeito e sim, como regras as quais os sujeitos estão submetidos, devido a produção de discursos que instauram saberes e geram políticas, que ampliam-se para outras dimensões (SARDAGNA, 2007, p. 173). Discursos que organizam níveis e modalidades de educação ao longo dos anos, com metas, prazos, estatísticas e propostas. E embora as políticas sejam 55 Processo pelo qual os domínios e as instituições sociais, cujo propósito não seja produzir mer- cadorias (commodities) no sentido econômico restrito de artigos para venda, vêm não obstante a ser organizados e definidos em termos de produção, distribuição e consumo de mercadorias. No discurso educacional contemporâneo, a adoção de vocábulos vinculados à ideia de mercadorias ou produtos a serem vendidos (Fairclough; 2016). 153 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva importantes para o exercício dos direitos, há de se olhar com maior crítica ao imperativo “educação para todos” – e o quanto esse slogan é produtor de sentidos. A exemplo de programas criados para garantir o protocolo de intenções da Declaração Mundial sobre Educação para Todos, alguns programas foram implantados no país, a saber: “Acorda Brasil, tá na hora da escola”, “Aceleração da Aprendizagem, “Guia do livro Didático”, “Bolsa escola”, além de outros programas incorporados a Educação Infantil e a Educação Básica, bem como ao EJA e a Educação Indígena. Além dos sistemas de avaliação (Censo Escolar, SAEB, ENEM, Exame Nacional de Cursos). Existindo ainda, outros programas na área de gestão e de parcerias com a sociedade civil (SARDAGNA, 2007, p. 179). Mas a autora chama a atenção para as parcerias que são implementadas e que fazem um link entre as áreas de saúde, de assistência social, ONG’s e entidades civis. Chamamentos como aponta Sardagna (2007), que acabam por descentralizar a obrigação e responsabilização do Estado em relação a educação, gerando braços para a iniciativa privada. Lógica comum no discurso neoliberal. A autora não discorda dos benefícios de se promover o acesso à educação, o que ela faz é problematizar que a narrativa acaba por inventar realidades. E assim, na lógicade se combater a exclusão, “instala-se uma lógica de inclusão de todos”. Discursos permeados por “forças anônimas que operam, e os mercados financeiros globais impõem suas leis e preceitos ao mundo global, inclusive aos sistemas de ensino”. Ou seja, a escola não deixa de disciplinar e para a autora continua produzindo esse sujeito moderno. (SARDAGNA, 2009, p. 184). A partir de todas as discussões aqui elencadas, outro que assunto que pre- cisamos nos debruçar, é sobre a finalidade e eficácia das estatísticas educacionais voltadas para as práticas inclusivas. Para tanto, visitamos o texto “Estatísticas educacionais como um sistema de razão: relações entre governo da educação e inclusão e exclusão sociais”, de Popkewitz e Lindblad (2001, p. 111-148). Texto que se debruça a indagar sobre a fabricação de biografias, de ações individuais e da participação social da liberdade do indivíduo a partir do resultado de estatísticas. E onde os autores discutem as facetas de que ao mesmo tempo que as estatísticas buscam transformar “o mundo mais inteligível e calculável para intervenções políticas e sociais”, acaba por trazer outras consequências de ordem social, pois é capaz de alterar pessoas, alterar modos de viver e de ser. Inclusive, http://www.scielo.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=article%5Edlibrary&format=iso.pft&lang=i&nextAction=lnk&indexSearch=AU&exprSearch=POPKEWITZ,+TOM http://www.scielo.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=article%5Edlibrary&format=iso.pft&lang=i&nextAction=lnk&indexSearch=AU&exprSearch=POPKEWITZ,+TOM 154 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) a fabricação de estatísticas tanto nacionais quanto internacionais possuem o objetivo de estabelecer categorias de sujeitos, endossadas por um discurso de que gerar estatística é o princípio para se conhecer as realidades. E conhecer é necessário para se “construir” melhorias sociais. Popkewitz e Lindblad (200, p. 1141), fazem uma análise dos argumen- tos contemporâneos acerca da administração do Estado. O principal efeito é “produzir uma causalidade prática sobre a qual os especialistas possam agir: a construção de classes de pessoas e de biografias mediante práticas institucionais”. Tratando-se na realidade, de tecnologia de governança. Tecnologia de governança que precisamos desconfiar. Pois, é preciso que olhemos para o caráter ambíguo das políticas públicas e das relações que o Estado permeia através delas. Relações que são capazes de normatizar para dizer que incluem e só assim podem gerar acesso a direitos e assistência às pessoas com necessidades especiais, mas que em contrapartida, da maneira como são articuladas e polarizadas, funcionam em funções de poderes e interesses espe- cíficos que geram classificações e separações entre as pessoas. Ou mesmo, que servem de sustentáculo a certos interesses. São objetos de administração social. Nesse mesmo sentido, é importante entender como muitas vezes a própria autonomia do sujeito e o respeito a sua subjetividade é deslocada de um lugar de alteridade do próprio sujeito para dar vez ao sujeito da estatística e sobre o quanto as estatísticas são dispositivos para governar, para promover a gestão da população de um modo mais eficaz e econômico É preciso que discutamos esses aspectos para que saibamos problematizar, inclusive, as operações de inclusão como ativadoras do biopoder e potenciali- zadoras da burocracia do Estado e as suas correlações com as novas expertises da inclusão que surgiram a partir do século XVIII. E fazendo uma relação entre os autores e as discussões levantadas, de fato é preciso ir além de cenários específicos e de políticas públicas construídas a partir das realidades do chão da escola, pois passa-se a definir o que é normal e o que é anormal para poder definir propostas que se dizem inclusivas. E que na realidade, geram novas classes de pessoas, cada vez mais divididas e estig- matizadas. Nesse pensamento, estatísticas tem o poder de promover o exercício das tecnologias do eu. 155 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva Nessa mesma vertente, encontramos os textos de Traversini e Bello (2009, p. 135-152), em “O numerável, o mensurável e o auditável”, no qual a governa- mentalidade tem seu papel, pois “pode ser compreendida como uma forma de pensar, uma racionalidade, para produzir, conduzir e administrar os problemas que atingem a população e os indivíduos, traduzidos como obstáculos aos pro- jetos de desenvolvimento e de administração de uma nação” (TRAVERSINI; BELLO, 2009, p. 137). Se entendermos tecnologia como “aqueles meios a que, em determinada época, autoridades de tipo diverso dei- tam mão para moldar, instrumentalizar e normalizar a conduta de alguém” (Ramos do Ó, 2005, p.20) e conduzir também parcelas da população, então a estatística pode ser considerada uma tecnologia para governar. A estatística pode ser entendida como um meio, composto por saberes e por procedimentos técnicos específicos que é utilizada por governos das diferentes esferas públicas, para situar comunidades com altos índices de analfabetismo, por exemplo, como sendo de risco social. Analisar como se conduz a conduta desse conjunto de indivíduos para sair da condição de analfabetismo é tomar a prática da gestão do risco como uma forma de governar que necessita do saber estatístico para tomar decisões. A prática da gestão do risco, que se utiliza de programas executados em parcerias com empresas, que incita o indivíduo a autogerir sua vida e a manter sua comunidade auto-sustentável, emerge a partir da racionalidade polí- tica contemporânea, caracterizada como neoliberal. Tal racionalidade objetiva conduzir as condutas individuais e as coletivas, administrando-as de modo a responsabilizar cada um pelo seu destino e otimizar os índices de saúde, de educação e de desenvolvimento do país com vistas a diminuir a dependência do Estado e também figurar no topo dos rankings internacionais (TRAVERSINI; BELLO, 2009, p. 143). CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da perspectiva abordada seja em Popkewitz e Lindblad (2001) ou em Traversine e Bello (2009), Hattge (2007, p. 189-199), contribui com outros contornos sobre a gestão da inclusão na escola e sobre os reveses sociais 156 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) em uma estratégia de controle de risco da gestão social, a partir da análise de uma dicotômica relação entre a gestão educacional e a solução dos problemas educacionais, pode gerar. De maneira geral, a partir de Veiga-Neto (2001, p. 22-31), pode-se dizer que a bandeira de inclusão sofre muitos reveses, inclusive causados por educa- dores que nunca deixaram de ser conservadores, gerando diversos empecilhos que estão presentes não apenas nas dificuldades de realização do trabalho real do chão escolar, mas também de espaços sociais para além da escola, presos a fortes questões de “de ordem epistemológica”. E abrir esse olhar para as entrelinhas de uma inclusão que se diz fazer ou saber fazer na escola é parte crucial desse debate, uma vez que o território escolar é um lugar propício para o exercício das “tecnologias do eu” (VEIGA-NETO; CORCINI LOPES, 2011, p. 131) e para a reprodução muitas vezes de arranjos governamentais perversos que não produzem a inclusão em si, mas geram mais espaços excludentes e classificatórios. REFERÊNCIAS BATISTA, C. P. Política pública de inclusão: atendimento de educandos com deficiência visual no município de Manaus/AM. Dissertação de Mestrado em Educação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas/UFAM, Manaus, AM: 2015. FAIRCLOUGH, N.. Discurso e mudança social. Brasília: Editora da UNB, 2016, 2ª edição. FOUCAULT, M. Aula de 25 de janeiro de 1978. In.: FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 73-116. KASSAR, Mônica de Carvalho Magalhães. Percursos da constituiçãode uma política brasileira de educação especial inclusiva. Rev. Bras. Ed. Esp., Marília, v.17, p.41-58, Maio-Ago., 2011. LAMPRECHT, Cláudia Amaral dos Santos. Conselhos às Mães: Manuais se Pueri- cultura como estratégia biopolítica na constituição de infâncias saudáveis e normais. Textura Canoas n.32 p.210-225 set./dez. 2014. LOCKMANN, Kamila; MACHADO Roseli Belmonte; FREITAS, Débora Duarte. A inclusão, a escola e a subjetivação docente: analisando o contexto do município do Rio Grande. Educação em Revista. Belo Horizonte. n.33. p. 1-18, 2017. LOPES, M. (2007). Inclusão escolar: currículo, diferença e identidade. In: M. Lopes y M. Dal Igna. (Org.). In/exclusão nas tramas da escola (pp.11-34). Canoas: ULBRA. 157 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva MATOS, Almerinda de Souza. LEMOS, Catia de. Políticas públicas de inclusão: a democracia como um desafio para as escolas públicas no cenário amazônico. Revista Textura. v. 22 n. 51 p. 219-240 jul/set 2020. 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Políticas de Educação para todos: um imperativo nos sistemas de ensino. In: LOPES, Maura Corcini; DAL’IGNA, Cláudia. In/Exclusão: nas tramas da escola. Canoas: ULBRA, 2007. p. 173-188. 158 FUNDAMENTOS DA NARRATIVA TRANSMÍDIA: UM RIZOMA CONCEITUAL João Pedro de Azevedo Machado Mota56 INTRODUÇÃO Este texto visa compreender a narrativa transmídia a partir da correlação entre três eixos conceituais que a fundamentariam: a cultura da convergência, a inteligência coletiva e a cultura participativa. Situando-se enquanto uma expressão narrativa contemporânea cujas histórias são contadas em diversos meios, linguagens e sistemas de significação, a narrativa transmídia é marcada por novas relações em rede, em novos tempos fragmentados, em um processo colaborativo que requer novas perspectivas rizomáticas de abordagens por lentes teóricas e epistemológicas inovadoras. Alavancadas pela popularização, democratização e tendência à ubiqui- dade das redes digitais em todas esferas do cotidiano, buscamos compreender o contexto em que estas narrativas se fundam. Apoiadas por experiências de trocas entre públicos heterogêneos imersos em ecossistemas midiáticos híbri- dos, visamos então compreender de que forma o surgimento, democratização e complexificação cada vez maior das ambiências reticulares digitais na con- temporaneidade têm colaborado para o surgimento de outras configurações de experiência narrativa possíveis. No contexto da cultura participativa (SHIRKY, 2011), por intermédio do exercício de caça e coleta realizada por uma inteligência coletiva (LÉVY, 2007, 2010), e em conjunção com a convergência de meios próprio da cultura da convergência ( JENKINS, 2009), cujo conjunto compõe o nosso arcabouço, observamos o quanto estas narratividades se manifestariam em seu caráter simultaneamente rizomático, fragmentado e coletivo. Assim, examinamo-las em conjunção ao conceito de rizoma (DELEUZE & GUATTARI, 2011), característico de um sistema de conhecimento aberto, heterogêneo e reticular. 56 Doutorando no PPG Interdisciplinar Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades (FFLCH/ USP). CV: http://lattes.cnpq.br/4956419069896673 159 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva O QUE É NARRATIVA TRANSMÍDIA A narrativa transmídia é um conceito complexo e em constante desen- volvimento. Distinguindo-se entre as noções de transmedia (transmídia) e storytelling (narrativa), ambos podem funcionar juntos, na forma do conceito aqui estudado: transmedia storytelling (narrativa transmídia). Ambas noções, contudo, também têm sentido isoladamente. O significado literal de storytelling é “história”, ou melhor, “contação de história”, habitualmente traduzido para o português como “narrativa”. A narra- tiva é uma prática social realizada pela humanidade há pelo menos 30 mil anos, segundo correntes da Antropologia Evolucionária, período que coincide com as estimativas médias dos primeiros registros de linguagem humana em arte pictográfica, encontradas nas cavernas de Chauvet, na França (BOYD, 2009). O conceito de transmedia, traduzido para o português como “transmídia”, contém em si uma definição embrionária trazida na década de 90 por Marsha Kinder (1991, p. 1), com base nos estudos sobre o conceito de intertextualité de Julia Kristeva (1980, pp. 65-66) desde a década de 1960, que por sua vez se relaciona às investigações sobre o conceito precursor de dialogismo de Mikhail Bakhtin (1990), conceituado pelo autor russo desde a década de 1920. De sua relação radical com a intertextualidade, o conceito de trans- mídia será revisto ao longo século XXI por diferentes autores, como Henry Jenkins, Carlos Alberto Scolari e Matthew Freeman. Assim, visamos revisitar este conceito a partir de definições apresentadas por diferentes autores, para então estendermos nossa compreensão ao contexto das redes digitais em que as narrativas transmídia se desenvolveriam de forma rizomática, hipoteticamente, na contemporaneidade. Primeiramente cunhado pelo teórico estadunidense, Henry Jenkins, sobre o termo transmedia storytelling, o conceito neste autor tem relação direta com o contexto da “cultura da convergência”, que origina seu livro homônimo, de 2006. Para Jenkins, o conceito refere-se “a uma nova estética que surgiu em resposta à convergência das mídias”, configurando-se enquanto uma “estética que faz novas exigências aos consumidores e depende da participação ativa de comunidades de conhecimento” (2009, p. 49). 160 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Marsha Kinder (1991, p. 1), por sua vez, investigava desde a década de 1990 o conceito transmedia intertextuality no ecossistema ficcional infantil das franquias de “super entretenimento”, cujo contexto apresenta um poderoso potencial de interação entre espectadores-jogadores, ao privilegiarem trocas de caráter mais afetivo sobre outras abordagens mais comerciais. Para Scolari (2009), estas narratividades possuem uma estrutura particular que se expande por diferentes linguagens, dentre a verbal, a icônica, etc., e por diferentes “mídias”, dentre o cinema, os quadrinhos, a televisão, os videogames, etc., não podendo serem entendidas como apenas uma adaptação do conteúdo de uma mídia simplesmente transplantada para outra. A história que os qua- drinhos contam não seriam, então, a mesma contada na televisão ou no cinema (SCOLARI, 2009, p. 587), de maneira que se as diferentes mídias e linguagens participam e contribuem para a construção do ecossistema narrativo transmídia, seria precisamente esta “dispersão textual” uma das mais importantes fontes de complexidade da cultura popular contemporânea. Com a potência de horizontalidade oferecida por novas narratividades, cada vez mais o público pode contribuir com a própria interpretação e co-criação de uma história ficcional, ao se inverter a lógica do paradigma midiático de uma indústria originalmente verticalizada. Este é o novo contexto em que se inserem as narrativas transmídia. E ele é coerentemente explicado por Henry Jenkins, em seuconceito da cultura da convergência. A CULTURA DA CONVERGÊNCIA Henry Jenkins explica que o conceito de convergência está relacionado “ao fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação” (2009, p. 29), de forma que o processo de inter- câmbio narrativo de conteúdos e informações por diversos sistemas midiáticos dependeria fortemente da participação ativa de seus públicos nesse processo. Num processo de busca de novas informações e criação de conexões entre os consumidores entre conteúdos de mídia dispersos em diferentes meios, o autor compreende esta nova abordagem como capaz de contrapor as “noções mais antigas sobre a passividade” dos espectadores da cultura de massa, de tal 161 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva forma que ao invés de diferenciarmos entre produtores e consumidores de mídia em diferentes papéis, “podemos agora considerá-los como participantes interagindo de acordo com um novo conjunto de regras, que nenhum de nós entende por completo” ( JENKINS, 2009, p. 30). Levando-se em conta a diversidade destes participantes no contexto das redes em que se inserem, para Jenkins a “convergência” não ocorreria, portanto, por meio de aparelhos, por mais desenvolvidas que estas tecnologias fossem, mas “dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros” (2009, p. 30). Portanto, ao reconhecer o fato da incapacidade solitária de somente um indivíduo não poder “saber de tudo”, haveria, contudo, oportunidade de juntar as peças, associar os recursos e habilidades disponíveis e compreender o todo narrativo de forma mais coesa, num processo de soma de inteligências ( JENKINS, 2009, p. 30). Ao popularizarem-se num contexto relativamente recente de desenvolvi- mento de novos meios midiáticos conectados nas redes, em contraste às narrativas transmídia, percebermos o quanto as mídias tradicionais como a televisão, o cinema e o rádio passaram a perder o seu antigo privilégio de destaque, por terem de conviver com novos concorrentes de audiência, se levarmos em conta o paradigma da “revolução digital” do início do século. O contexto se complexifica com a introdução de novos “atores” capazes de construir suas próprias narrativas de forma autônoma. No entanto, para o autor, da mesma maneira que as “palavras impressas não eliminaram as palavras faladas. O cinema não eliminou o teatro. A televisão não eliminou o rádio. Cada antigo meio foi forçado a conviver com os meios emergentes” ( JENKINS, 2009, p. 41), em nosso ver, é pouco provável que a Internet venha a substituir todos os meios anteriores, portanto. A convergência dos meios de comunicação então, para Jenkins, impactaria o modo como consumimos nos novos meios, de tal maneira que, segundo o exemplo oferecido pelo autor, os jovens possam fazer as lições de casa simulta- neamente com diversas janelas abertas no computador, tanto quanto os fãs de seriados populares de televisão podem “capturar amostras de diálogos no vídeo, resumir episódios, discutir sobre roteiros, criar fanfiction (ficção de fã), gravar suas próprias trilhas sonoras, fazer seus próprios filmes — e distribuir tudo isso ao mundo inteiro pela Internet” ( JENKINS, 2009, p. 44). 162 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Se por um lado, a fragmentação da vida social correspondente às narrativas da cultura de massa características do século XX representariam um afastamento da interação social, na cultura da convergência, contudo, acreditamos haver uma chance de retorno a comportamentos mais participativos. Estes comportamentos favoreceriam ao desenvolvimento de narrativas e relações sociotécnicas mais horizontais, especialmente alavancadas pelas trocas oferecidas nas redes da Internet. Este novo contexto se relaciona diretamente a outro conceito formulado por Clay Shirky, sobre o qual trataremos. A CULTURA PARTICIPATIVA O conceito de cultura participativa, desenvolvido por Clay Shirky (2011), deve muito à noção conceitual de um “excedente cognitivo”, pensado pelo autor, ao contrapor, logo em seu primeiro capítulo, uma diferenciação entre o tempo livre utilizado pelas pessoas durante a segunda metade do século XX, e, especialmente, a partir do século XXI. Referindo-se principalmente à sua própria cultura estadunidense, o autor reflete o quanto as pessoas, no passado, usavam seu tempo livre, essencialmente, para assistir televisão: um tempo, para o autor, “desperdiçado”. Hoje, inclusive, para atividades que direcionem tanto à autonomia pessoal, quanto ao empode- ramento social e mesmo ao sentimento de pertencimento coletivo criado pela colaboração ativa, em causas organizadas pelas redes. Hoje, no entanto, mesmo quando dedicados à televisão, muitos dos usuários da Internet continuam a interagir, trocar, compartilhar entre si, o que se correlaciona com comportamentos mais ativos. O autor cita uma série de fatos do mundo contemporâneo que podem ser considerados indícios pertinentes à proposição de uma mudança de postura que corrobore com seu conceito de cultura participativa, mas o mais relevante deles, em nosso ver, em todo livro, refere-se à criação de uma ferramenta digital chamada Ushahidi.com. Significando “testemunho” ou “testemunha” em língua suaíli, desenvol- vida por uma ativista política queniana chamada Ory Okolloh em 2008, esta ferramenta foi criada para rastrear casos de violência étnica cujas notícias foram proibidas pelo governo queniano recém-eleito, ao censurar politicamente a mídia televisiva convencional de publicar informações sobre o tema. 163 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva Da mesma maneira, podemos inserir neste contexto de ferramentas digitais para colaborar por mobilizações sociais relevantes em todo mundo: a. os protestos revolucionários ocorridos entre a África Setentrional e parte do Oriente Médio entre 2010 e 2012, a “Primavera Árabe”, catapultada pela ampla mobilização social de comunicação entre setores da sociedade civil por meio de redes sociais como Facebook, Twitter e Youtube; b. o advento de amplos movimentos contra corrupção e em favor da luta contra a desigualdade econômica e social, o Occupy Wall Street, iniciado em setembro de 2011, no distrito financeiro de Manhattan, em Nova Iorque (EUA), diretamente influenciados pelos movimentos árabes pela democracia; c. os eventos revolucionários surgidos no Brasil em meados de 2013, as “Jornadas de Junho”, em protesto contra o aumento das tarifas de ônibus, amplamente cobertas por mídias independentes e manifes- tantes cujos vídeos eram postados em blogs, canais ao vivo e em redes sociais, em contradição à narrativa jornalística mainstream forçada a mudar seu discurso parcial original. Para o autor, o fenômeno do Ushahidi.com é um exemplo excelente para compreender o uso da tecnologia em favor de cidadãos em situações difíceis, apesar de reconhecer que nem todos os novos mecanismos de comunicação são tão civi- camente engajados. Em nosso ver, ao percebermos que a ascensão das ferramentas tecnológicas digitais não são em si a salvação para os problemas do mundo, a verdadeira perspectiva de entendimento para o potencial dessas tecnologias reside em compreender como as relações, os desejos e os afetos humanos têm o potencial de construir, de forma coletivamente coordenada, um mundo potencialmente mais humano, mais justo e mais unido, pelo uso consciente das redes que os conectam. Shirky contrapõe a lógica da “economia Gutenberg” (2011, p. 44), dis- pendiosa, concentrada com os detentores dos meios de produção, de alto risco, com uma nova economia tecnológica mais barata, cujos meios de produção são popularmente acessíveis, e cujo “risco” é mínimo, nem sempre dentro da lógica do mercado tradicional. Se a “antiga” economia assumia todo o risco de um eventual fracasso da publicação de um livro impresso;a “nova” economia é hoje cada vez mais acessível e reproduzível em formato eletrônico por meios 164 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) próprios, e, portanto, teoricamente, mais diversa em possibilidades de criatividade na produção de conteúdos alternativos. Agora que temos os meios, as ferramentas e os recursos de nos comunicar e compartilhar com base em nossas motivações intrínsecas, ao empreendermos o uso de nosso “excedente cognitivo” para atividades voltadas ao âmbito coletivo, haveria outro aspecto essencial a se levar em conta, para o autor: o elemento “oportunidade”. Para ele, o “caráter humano é o componente essencial do nosso comportamento sociável e generoso, mesmo quando coordenado com ferramentas de alta tecnologia”, de maneira que se nossa interpretação para entender o com- portamento altruísta humano se restringe ao elemento “tecnologia”, geralmente erramos o alvo: “a tecnologia possibilita esses comportamentos, mas não pode causá-los.” (SHIRKY, 2011, p. 90). O fator “humano” seria então a variável mais importante dessa equação, dado que o uso heterogêneo que fazemos das novidades tecnológicas varia de diversas formas entre diferentes agentes humanos, em consonância à lógica do autor. Haveria então uma grande ironia na lógica verticalizada de Gutenberg que ainda impera nos grandes conglomerados de mídias globais em formato “arborescente”, quando a contrapomos às atividades colaborativas “rizomáticas” de lógica horizontal, em forte expansão nas redes digitais. Agora, com acessí- veis recursos tecnológicos massificados, grandes estratos da sociedade podem concorrer, parcialmente, em pequenos grupos, com o poderio destes impérios midiáticos: um exemplo é a proliferação de Youtubers, hoje em dia. Neste contexto, haveria uma mudança de paradigma quanto a ideia do “compartilhamento”, ação de grande importância na cultura participativa: [...] [Há] o compartilhamento pessoal, feito por indivíduos que de outra maneira não estariam coordenados [...] Outra, mais envolvente, é o compartilhamento comum, que acontece num grupo de colaboradores [...]. Há também o compartilhamento público, quando um grupo de cola- boradores deseja ativamente criar um recurso público [...]. Finalmente, o compartilhamento cívico existe quando um grupo está tentando transformar a sociedade [...] (SHIRKY, 2011, p. 154, itálicos nossos). Obviamente, a narrativa transmídia, em geral, não se situa como uma expressão relativa à compreensão de uma escala pública ou cívica, mas mais na 165 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva escala do compartilhamento comum, e mesmo do pessoal — o que, em si, não invalida, em absoluto, o seu potencial transformador, ao propor novas dinâmicas de relações reticulares horizontais entre seus públicos, no contato com estas narratividades contemporâneas. Ao colocar na balança a importância dos desejos, afinidades e afetos desses públicos, na construção de uma outra lógica de relações comunicativas que não se pautem puramente na lógica dominada unicamente pelo mercado, desequilibrando-o em favor da densidade de outros valores humanos, podemos dizer que o conceito proposto por Shirky vai ao encontro de um terceiro con- ceito bastante relevante ao contexto em que se inserem as narrativas transmídia, marcado pela ascensão da importância das novas relações desterritorializadas do ciberespaço, coordenadas entre diferentes atores, de forma engenhosamente articulada à esfera social: a inteligência coletiva. A INTELIGÊNCIA COLETIVA Este conceito desenvolvido pelo ciberteórico tunisiano, radicado francês no Canadá, Pierre Lévy (2007, 2010), é de fundamental importância à compreensão da formulação hipotética de uma outra experiência narrativa possível em um novo contexto midiático fragmentado e marcado por novas relações rizomáticas no cibe- respaço, em que as narrativas transmídia se desenvolvem e em que fazem sentido. Definida como “uma inteligência distribuída por toda parte, incessante- mente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências” (LÉVY, 2007, p. 28), o autor define as bases e objetivos do conceito de inteligência coletiva, ancorado sobre a articulação da seguinte tétrade epistemológica: [...] [a)] Uma inteligência distribuída por toda parte: tal é nosso axioma inicial. Ninguém sabe tudo, todos sabem alguma coisa, todo o saber está na humanidade. [...] [b)] Uma inteligência incessantemente valorizada. A inteligência é distribuída por toda parte, é um fato. [...] [c)] A coordenação das inteligências em tempo real provoca a intervenção de agenciamentos de comunicação que, além de certo limiar quantitativo, só podem basear-se nas tecnologias digitais da informação. 166 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) [...] [d)] Atingir uma mobilização efetiva das competências. Para mobilizar as competências é necessário identificá-las. E para apontá-las é preciso reconhecê-las em toda a sua diver- sidade. (LÉVY, 2007, pp. 29-30, colchetes alfabéticos nossos). Assim, ao definir os fundamentos de compreensão de sua arquitetura conceitual da inteligência coletiva sobre estas quatro colunas iniciais, retomando cada um dos tópicos, analisamos que, ao se referir a: a. à distribuição da inteligência ubiquamente: o autor propõe a extensão do olhar em busca das inteligências em lugares onde geralmente não as encontramos, ao propor uma crítica contra a estreiteza de percepção daqueles que só vêem ignorância; b. à valorização incessante da inteligência: o autor defende que estaríamos assistindo hoje “a uma verdadeira organização da ignorância sobre a inteligência das pessoas, um terrível pastiche de experiência, savoir- -faire e riqueza humana” (LÉVY, 2007, p. 29), cuja valorização da ignorância sobre as capacidades intelectivas do homem devem ser revistas, repensadas, invertidas, em favor da valorização abrangente das inteligências contidas na humanidade; c. à coordenação das inteligências em tempo real: ao invés de tentarmos modelar o mundo físico comum, deveríamos “permitir aos membros de coletivos mal-situados interagir em uma paisagem móvel de signi- ficações”, de maneira que estes coletivos estariam situados “nos mapas dinâmicos de um contexto comum e transformariam continuamente o universo virtual em que adquirem sentido” (LÉVY, 2007, p. 29), no ambiente desterritorializado do ciberespaço; d. por fim, aos ideais de atingir uma mobilização eficiente das competências: o autor propõe a compreensão de que na “era do conhecimento”, recusar a inteligência do outro seria “recusar-lhe sua verdadeira iden- tidade social, é alimentar seu ressentimento e sua hostilidade, sua humilhação, a frustração de onde surge a violência” (LÉVY, 2007, p. 30), sendo que, por outro lado, quando valorizamos o outro com base em sua diversidade de saberes contribuiríamos positivamente para “mobilizá-lo, para desenvolver nele sentimentos de reconhecimento” que favoreceria a propensão de identificações individuais em favor de projetos coletivos (LÉVY, 2007, p. 30). Seu conceito de inteligência coletiva, mediado pelas tecnologias da infor- mação no ciberespaço, tem grande correlação com outro conceito de cibercultura. 167 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva Entendido como um movimento social, sua emergência no contexto do ciberes- paço seria liderado pela “juventude metropolitana escolarizada” desde o final dos anos 80, cujas palavras de ordem, a “interconexão”, a “criação de comunidades virtuais”, e a própria “inteligência coletiva”, seriam suas verdadeiras motivações (LÉVY, 2010, p. 125). Coerentemente embasada, esta tríade se correlaciona às origens do ciberespaço enquanto um novo locus amplamente favorável às ações deste movimento cultural em ascensão. Ao estimular o uso das redes de computador a serviço da inteligência coletiva, guiada por um movimento social, o ciberespaço passou a ser compreen- dido como um“horizonte de mundo virtual vivo, heterogêneo e intotalizável no qual cada ser humano pode participar e contribuir” (LÉVY, 2010, p. 128), ao notarmos o quanto este novo meio se situa em afinidade à compreensão das novas configurações rizomáticas de distribuição de informação em que as narrativas transmídia são hoje construídas dispersamente nas redes, em oposição às formações arborescentes da cultura de massa. Ao pensarmos o surgimento do ciberespaço como novo palco de discussão, intercâmbio, compreensão, construção e reconstrução da realidade, tão latente no cotidiano do homem contemporâneo, percebemos o quanto este surgimento tem o potencial de promover reflexões, agitações, reordenamentos, transformações; enfim, um potencial de revolução das ideias e de novas expressões narrativas possíveis, frente às restrições impostas pelas instituições tradicionais. É neste contexto em que, segundo Lévy, as obras do cibercultura fariam referência aos conceitos de rizoma e de plano de imanência, compreendendo originalmente a “linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído” (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 25). Em relação às obras da cibercultura, para Lévy, estes conceitos descritos filosoficamente sobre um esquema abstrato compreenderiam: [...] — a proliferação, sem limites a priori, de cone- xões entre nós heterogêneos e a multiplicidade móvel dos centros em uma rede aberta; — o fervilhamento das hierarquias entrelaçadas, os efeitos holográficos de encobrimentos parciais e sempre diferentes de conjuntos sobre suas partes; — a dinâmica autopoietica e auto- -organizadora de populações mutantes que estendem, criam, transformam um espaço qualitativamente variado, 168 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) uma paisagem pontuada por singularidades (LÉVY, 2010, p. 151). Nesse contexto, para o autor, esse esquema seria “atualizado socialmente pela vida das comunidades virtuais, cognitivamente pelos processos de inteligên- cia coletiva, semioticamente na forma do grande hipertexto ou do metamundo virtual da Web” (LÉVY, 2010, p. 151). Dessa maneira, as obras da cibercultura que participam das formulações deleuzeguattarianas de rizoma e plano de imanência no ciberespaço se inseririam no contexto do “hipertexto global, o metamundo virtual em metamorfose perpétua”, em que cada um seria chamado a “tornar-se um operador singular, qualitativamente diferente, na transformação do hiperdocumento universal e intotalizável”, de maneira que cada ator social teria por responsabilidade “não reproduzir no ciberespaço a mortal dissimetria do sistema das mídias de massa”. (LÉVY, 2010, p. 151). Com estes argumentos e articulações, o conceito de inteligência coletiva, juntamente com os outros dois conceitos, fundamentariam então um arcabouço que favoreceria uma melhor compreensão de uma nova experiência rizomática, no contexto de desenvolvimento das narrativas transmídia, na ambiência das redes de Internet contemporâneas. NARRATIVAS TRANSMÍDIA: UM RIZOMA CONCEITUAL Para além das configurações verticais, características da cultura de massa tradicional, predominante no século XX, percebemos o quanto este novo contexto, especialmente desde o início do século XXI, é nivelado por uma mudança de perspectivas radical, em favor de trocas mais horizontais entre diferentes nichos de públicos, presentes em diversas partes do mundo, que agora podem consumir narrativas rizomaticamente: mas também produzi-las e mesmo compartilhá-las coletivamente, nas redes. Analisamos o quanto, hipoteticamente mais próximas à forma do rizoma, sob o sistema de uma rede, em que ramificam-se semioticamente, são construí- das de forma colaborativa e fazem-se compreender coletivamente nas redes do ciberespaço, desta maneira, as narrativas transmidiáticas se contraporiam às configurações de territorialidades radiculares, fixas e relativamente estáveis das 169 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva mass media predominantes no século XX. Quanto às últimas, suas estruturas arborescentes fortemente hierarquizadas verticalmente, no tradicional sentido emissor-meio-receptor, podem ser interpretadas pela forma de uma árvore, tendo pela raiz seu sistema base. Compreendemos o quanto estas novas expressões narrativas se inserem em um contexto marcado pela ascensão de uma cultura virtual participativa, fundamentalmente alavancada com a popularização das redes da Internet, espe- cialmente desde a década de 1990. Estas novas narratividades, compreendidas em um mesmo ecossistema diegético, dispersamente, em diferentes meios, tem se multiplicado ao seio da cultura da convergência, favorecidas que têm sido pela acelerada proliferação de ferramentas de produção midiática acessíveis em larga escala, agenciadas por uma inteligência coletiva comum, compartilhada por estes novos públicos de forma colaborativa. Articulamos o quanto as narrativas transmídia têm se consolidado como uma nova forma de contar histórias de forma participativa, marcada por novas relações entre diferentes nichos de públicos, virtualmente interco- nectados de forma desterritorializada nas redes da Internet. Do velho padrão midiático marcadamente unidirecional e arborescente, tenderíamos agora em favor de uma cultura em que mídias multidirecionais ofereceriam uma capacidade mais participativa de trocas, catapultada pelo desenvolvimento do ciberespaço. Assim notamos o quanto a construção destas novas narratividades dependeriam da participação ativa de diversos nichos de público e grupos de fãs, cujas trocas mediadas pelas redes têm sido fundamentais para a construção de novas relações sociotécnicas possíveis. Com a ascensão des- tas novas mídias, os públicos têm migrando cada vez mais em busca dos conteúdos em meios que mais interessam a cada um, numa multiplicação de nichos narrativos. Neste novo contexto midiático, tudo indica que os sistemas narrativos baseados em sistemas de “árvores” e “raízes” cada vez mais darão lugar a novos sistemas com base nas potências de “rizomas” e “redes”. Assim, torna-se cada vez mais acessível o contato com recursos que permitam criar, produzir, inventar, remixar e transmitir conteúdos narrativos rizomaticamente. 170 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) CONSIDERAÇÕES FINAIS Com a articulação do rizoma de arcabouço conceitual apresentado neste texto buscamos fundamentar as narrativas transmídia no contexto das territorialidades reticulares da Internet. Por um lado, percebemos o quanto as narrativas da cultura de massa predominantes no século XX se engendrariam sobre outros modelos verticais de produção, veiculação e consumo narrativo. Neste sistema, as narrativas de massa se erigiram fortemente sob o modelo simbólico da árvore, sendo a raiz o seu sistema de construção de sentido, mas sem haver um dialogismo contundente entre cada “tronco narrativo” no seu contexto histórico. Os sistemas arborescentes-radiculares que compunham as configurações narrativas predominantes no século XX estariam sofrendo então uma sensível modificação em suas topografias no século XXI. No contexto do rizoma conceitual apresentado, ainda que engendradas verticalmente sob um sistema socieconô- mico, político e cultural com interesses próprios, as narrativas transmídia em ascenção do século XXI favoreceriam a um novo conjunto de interações, cola- borações e trocas simbólicas potencializadas pelas novas ambiências das redes da internet, ao favorecerem a uma horizontalidade de relações heterogêneas: aqui, a forma do rizoma seria seu modelo simbólico e a rede o seu sistema de construção de sentido. Percebemos o quanto estes novos públicos, cujos diálogos se inter- seccionariam nas malhas das novas redes digitais, agora detém uma gama de ferramentas que os permitiriam não somente consumir estas novas expressões narrativas, mas também produzi-las ativamente e mesmo compartilhá-las entresi. Assim, no contexto da cultura da convergência, da inteligência coletiva e da cultura participativa, esta nova trama de histórias rizomáticas seria tecida com um sentido narrativo maior e mais amplo, de forma menos solitária, pela assimilação pessoal individualizada, e de forma cada vez mais solidária, pela ação coletiva colaborativa. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Dialogism: Bakhtin and his World. London: Routledge, 1990. BOYD, Brian. On the origin of stories. Cambridge: Harvard University, 2009. 171 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2. ed. Vol. 1. Tradução: Ana Lúcia de Oliveira et al. São Paulo: Ed. 34, 2011. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. 2. ed. Tradução: Susana Alexandria. São Paulo: Aleph, 2009. KINDER, Marsha. Playing with Power in Movies, Television, and Video Games: from Muppet Babies to Teenage Mutant Ninja Turtles. Berkeley: University of Cali- fornia Press, 1991. KRISTEVA, Julia. Word, Dialogue, and Novel. In: Desire in Language. Ed.: Leon S. Roudiez. Trad. Thomas Gora et al. New York: Columbia University, 1980. LÉVY, Pierre. Inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2007. SCOLARI, Carlos Alberto. Transmedia Storytelling: Implicit Consumers, Narrative Worlds, and Branding in Contemporary Media Production. International Journal of Communication. v. 3 [S.l.]: [s.n]: 2009 - pp. 586-606. SHIRKY, Clay. A cultura da participação: criatividade e generosidade no mundo conectado. Tradução: Celina Portocarrero. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. Nota: capítulo revisado a partir de publicação nos Anais do X Simpósio Nacional ABCiber (ECA/USP, São Paulo), com apresentação em 15/12/2017. 172 A CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA DA FELICIDADE Sheila Maria Pereira Fernandes57 INTRODUÇÃO Pensar em representação é pensar, antes de tudo, no sentindo e no sig- nificado que damos às coisas e ao outro. No centro dessa discussão, deparamo- -nos com a cultura marcada por crenças e valores, assim sendo, somos seres interpretativos, instituidores de sentido. Desse modo, toda e qualquer ação social apresenta um significado para aqueles que a praticam e para aqueles que a observam. Uma vez inseridos nessa sociedade, somos delimitados e descritos por aquilo que consumimos, mas, sobretudo, pela forma como apresentamos esse consumo aos outros. Isso faz com que nos tornemos cada mais dependentes de bens materiais que nos definem em um lugar social, que nos faz desejar sempre mais para que possamos ser reconhecidos e valorizados por aquilo que temos. Outro conceito importante, nesse contexto, é o da identidade, palavra marcada pela necessidade de pertencimento a determinados grupos, o que nos diferencia nos demais. Em outras palavras, Hall (2008) apresenta a seguinte descrição: Utilizo o termo “identidade” para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem sujeitos aos quais se pode “falar” (HALL, 2008, p. 111-12). De acordo com essa visão, a identidade engloba não só o que está inerente ao sujeito, bem como o discurso deste durante a vida social. A identidade deve ser vista não apenas como algo próprio do sujeito, mas também do coletivo e do cultural, sendo a cultura um dos fatores mais importantes da construção da identidade. Ainda, segundo o autor supracitado: 57 Doutoranda em Educação (ULBRA). CV: http://lattes.cnpq.br/9902562422228230 173 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva É precisamente porque as identidades são construí- das dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas especificas (HALL, 2008, p. 109). Por outro lado, é importante identificar o que pode influenciar o sujeito na construção da sua identidade ao longo da vida, questões como práticas sociais e consumo, devem ser consideradas na formação desse sujeito. A necessidade de aprovação do outro cria uma exigência e um dever de ser feliz como nunca existiu. Demonstrar essa felicidade, ainda que maquiada pelas redes sociais, tornou-se um valor primordial, o fracasso não pode ser admitido ou exposto. A mídia, por sua vez, a partir de sua programação, jornais e propagandas, dita receitas de felicidades. Dentre estas, algumas chamam a atenção por declararem que felicidade está na saúde perfeita, no corpo glorioso e no sexo sem limites, levando a uma busca desenfreada para evitar o sofrimento, associada a uma busca do prazer sem risco. Zizek (2003) destaca a necessidade do prazer que buscamos sem pagar pelo seu ônus. Visando a essa demanda, já são oferecidos o café sem cafeína, a cerveja sem álcool, o sexo virtual, o pão sem glúten, leite sem lactose, o creme sem gordura, o bolo sem farinha e o doce sem açúcar. Fazendo alusão a essa felicidade, a partir de 1900, a Psicanálise apresenta o conceito de uma forma totalmente diferente, uma vez que entende o psiquismo com o uso dos conceitos de consciente, inconsciente e repressão. Entende-se que a ilusão e a busca da felicidade sempre andaram lado a lado, fazendo parte da história da humanidade, sentimos hoje a obrigação de sermos felizes ou pelo menos demostrar, ainda que falseada, essa felicidade à sociedade atual. O conceito de felicidade, para Freud, não tem nenhuma ligação com a sorte, com deuses, ou com Deus, é tido como um objetivo humano irrealizável do ponto de vista do funcionamento psíquico e das exigências culturais. Ele afirma (1927/1987) que os homens se esforçam para alcançar e preservar um estado feliz, mas no máximo o que a sua constituição psíquica vai lhe permitir “corresponde à satisfação mais repentina de necessidade retidas [...] e somente é possível como um fenômeno episódico”. Para esse grande pensador, os homens “querem a ausência de dor e de desprazer [...], vivenciar intensos sentimentos de prazer”. Esse bem parece ser, mais do que nunca, a 174 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) forma de viver na atualidade, a busca incessante de ser feliz. (BRUCKNER, 2010, p. 101). Ainda de acordo com Bruckner (2010), mais do que dinheiro, as pessoas buscam pela felicidade, sendo ela a nova ostentação dos ricos exibindo nas mídias e, em especial, nas redes sociais, seus carros de luxo, seu sucesso financeiro e moral, destacando o quanto contribuem com instituições beneficentes. DESENVOLVIMENTO Diante desse panorama, perguntamo-nos: e a tristeza onde foi parar? Ao contrário do ocorrido entre os séculos XIX e XX, em que a tristeza e a melancolia tinham o seu charme principalmente entre os poetas, é como se esse sentimento não existisse mais. No entanto, percebo que vem se formando um paradoxo, a sociedade da felicidade, do espetáculo, está se tornando uma sociedade perseguida pelo medo da morte da doença e do envelhecimento. O fato de não admitirmos essas possibilidades gera um grande sofrimento que deve ser negado a qualquer custo. Segundo Bruckner (2010), sentar-se à mesa não é mais um lugar de convívio familiar, onde a comida era classificada em boa ou ruim e os aconte- cimentos diários compartilhados: A mesa não é mais somente o altar das suculências, um momento de partilhas e de trocas, mas também virou um balcão de farmácia onde se pesam, minuciosamente, gorduras e calorias, onde se mastigam com consciência alimentos que passaram a ser agora apenas remédios. É preciso beber vinho não por prazer, mas para reforçar a elasticidade das artérias, comer pão integral para acelerar o trânsito intestinal, etc. (BRUCKNER, 2010, p. 64-65). Em contrapartida, os avanços tecnológicos com o uso excessivo dos smartphones, bem comodas redes sociais, têm contribuído para minimizar o contato com a tristeza, frustração e solidão, que são causadoras de sofrimento por expor a vulnerabilidade humana. Essa realidade promove uma vida virtual, que proporciona um conforto, por permitir estar em contato com um monte de gente que, ao mesmo tempo, é mantida a distância. Essa exposição exagerada reduz a empatia dos usuários por eliminar o tempo de reflexão e autocrítica, concorrendo para que tenhamos uma sociedade 175 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva cada vez mais egoísta e menos capaz de manter e resolver os conflitos próprios de um relacionamento real. Turkle, 2015 ressalta que a tela do celular é usada para desfocar a atenção de si mesmo, porque ficar só se tornou um problema hoje em dia, no entanto sabemos que os momentos de solidão são importantes para entender nossos comportamentos, encontrando ações que devem ser modificadas nas diversas áreas, a saber, romântica, familiar, profissional ou de relacionamento com os amigos (BRUCKNER, 2010; TURKLE, 2015). Diante da nova conjuntura social, as pessoas não têm o direito de sofrer e muito menos o direito de mostrar esse sofrimento, pois correm o risco de serem vistas como perdedores ou fracassados. Exigir que as pessoas silenciem a sua dor é torná-la ainda maior. Todos nós temos momentos de tristeza, negar essa dor é iludir-se, visto que a tristeza e a frustração podem ser utilizadas como molas propulsoras para novas realizações, podendo assim trazer felicidade. Quando evitamos a dor psíquica, não pensamos sobre ela. Entendo que esse momento nos faz refletir sobre a obrigação de ser feliz e a necessidade de expor o sofrimento, visto que este é sinônimo de fracasso. Vivemos em uma prisão, na qual ser feliz tornou-se uma obrigação, onde tudo deve ser resolvido rapidamente. Decida agora, pense rápido, coma rápido. Diante dessa urgência, surgem artifícios para suplantar a tristeza e a ansiedade. Na era da comunicação e excesso das redes sociais, que nos permitem estabelecer comunicação com várias pessoas, nunca se sofreu tanto de solidão. Em meio a essa tristeza, busca-se sempre o melhor status que leva as pessoas a compararem o seu dia a dia com as manifestações exageradas de felicidade e beleza editadas com o auxílio do fotoshop. O feed de notícias lotado de viagens para lugares paradisíacos, a participação em baladas e a quantidade de likes levam a uma competividade por um bem-estar irreal e inalcançável e, consequentemente, à produção de uma população frustrada e descontente. Hoje, a sociedade do espetáculo invadiu nossa realidade cobrando objetivos muitas vezes inconcebíveis que podem levar a uma vida de mentiras, sem entrar em contato com as emoções, e de dor sufocada, negada. Alguém já disse que estamos convivendo com a “incrível geração de fotos 176 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) sorridentes e travesseiros encharcados” (BRUCKNER, 2010, p. 104-105). Acredito que, assim como ocorreu com os gregos e romanos na antigui- dade, o conceito de felicidade continua ligado, diretamente, a um corpo esbelto, autossuficiente e cheio de riquezas. A sociedade atual, no meu entender, está sendo regida pela constante negação da tristeza, o que compromete o autoconhecimento e crescimento psíquico. Nesse contexto, a mídia bem como as redes sociais podem ser entendidas como um instrumento pedagógico, por meio do qual os saberes são propagados levando, assim, a uma relação de poder que leva à medicalização. Vale ressaltar que esse processo de medicalização está presente em todos os aspectos da vida, provocando assim uma busca constante por respostas biológicas, fisiológicas e comportamentais, que possam atenuar os mais diversos tipos de sofri- mento, sejam esses físicos ou emocionais. A medicina e os medicamentos servem como recurso para dar sentido e funcionalidade à contemporaneidade, buscando a perfeição e a satisfação, somos evolvidos por uma série de recursos que nos garantem essa satisfação, procedimentos cirúrgicos e uso exagerado de medicamentos, bem como a automedicalização, são aspectos comuns no nosso dia a dia. CONCLUSÃO Vale ressaltar que esses comportamentos são altamente influenciados pela mídia, haja vista que a propaganda tem como função modificar as atitudes dos consumidores, induzindo-os à aquisição de diferentes produtos ou marcas. Considerando- se que a função da publicidade é lidar com os sonhos e fantasias desse sujeito, as propagandas fazem com que as pessoas sintam a necessidade de comprar e expor determinadas aquisições, o que lhe confere um sentimento de poder. Entendo que a propaganda retrata uma imagem ideal e nós buscamos cada vez mais nos assemelhar a ela, o mundo divulgado e exposto é totalmente diferente daquele em que vivemos, a mensagem publicitária e a exposição nas redes sociais exibem um mundo perfeito, ideal. Desse modo, a tecnologia integrou-se e a potencialidade de se comunicar/ relacionar por meios virtuais com todo o mundo e foi a grande descoberta compartilhada dentro e fora da família. Locais como salas de bate-papo e os sites de relacionamento tornaram-se uma extensão dos espaços 177 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva cotidianos do jovem, assim como o telefone celular passou a ser um aparelho acessível a maioria dos jovens. Frente a esse fenômeno, observa-se que as relações no campo virtual trazem na adolescência, possibilidades de refúgio estratégico, que corresponde a necessidades desse período do desenvolvimento (BRANCO; WAGNER, 2009). Do ponto de vista de Damasceno, Rampazo, Jacomini (2015), nas redes sociais, é possível verificar muitas divulgações do corpo. Em vista disso, surge uma preocupação, cada vez mais precoce, com essa atitude dos jovens, pois muitos não conhecem os perigos das redes sociais e não têm a maturidade necessária para lidar com o que aparece nesse ambiente virtual. Desse modo, na contemporaneidade, o corpo é cultuado como um objeto extremamente importante nas relações sociais, a busca de um corpo perfeito e ideal, cria uma demanda cada vez maior de locais, onde esse corpo pode ser trabalhado. O culto ao corpo transpõe todos os setores sociais, idades ou classes sociais, a mídia dita o que pode entrar ou sair desse corpo. Entendo que a busca por esse corpo perfeito acaba gerando sofrimento ao sujeito, que, não conseguindo atingir esse corpo ideal, acaba por desenvolver dificuldades na relação com o outro, por entender que não está dentro do padrão estético adequado, desenvolvendo dificuldade de manter uma vida social saudável. Essa cobrança exagerada da sociedade acaba por gerar uma exclusão preocupante. Na busca pela aceitação e para encontrar essa tal felicidade e bem-estar, procuramos adquirir produtos que nos trariam felicidade ilusoriamente e, por sua vez, acabam causando mais angústia e mal-estar. Dado o exposto, evidencia-se, portanto, que o corpo utilizado pela pro- paganda é um corpo de um sujeito perfeito e belo, para ser usado como objeto e mercadoria. Um corpo bonito e perfeito, seja ele homem ou mulher, é sinô- nimo de realização e felicidade e, desse modo, o marketing leva as pessoas a acreditarem que só poderão ser felizes ao adquirirem determinados produtos e ou aderirem à determinada moda. REFERÊNCIAS BRANCO, Bianca; WAGNER, Adriana Os adolescentes infratores e o empobreci- mento da rede social quando do retorno à comunidade. Ciência & Saúde Coletiva, v. 14, n. 2, abril, 2009. 178 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) BRUCKNER, P. A euforia perpétua: ensaio sobre o dever de felicidade. Tradutor R. Janowitzer. 3ª ed. Rio de Janeiro: Difel, 2010. COSTA, M. R. N. Philosophiae porus e arx philosophiae: apropriação e superação agostiniana da tradição filosófica greco-romana em relação à felicidade. Trans/Form/ Ação, v. 37. n. 3, p. 131-142, 2014. BÜKER, M. P. PEDAGOGIAS MIDIÁTICAS DA MEDICALIZAÇÃO DO CORPO NA REVISTA VEJA.de identidades, de projetos de vida, de experimentação e aprendizagem da autonomia. Enfim, o futuro adulto clama que a escola possibilite condições para que se tornem capazes de conduzir seu projeto de vida, considerando sua escolarização, sua cultura, sua religião, sua sexualidade e outros anseios a mais, com o objetivo de construção de si e de seu meio social. Considerando a necessidade de se consolidar uma política de educação infantil de qualidade que respeite os direitos fundamentais das crianças, com especificidades próprias à fase de desenvolvimento infantil, torna-se necessário o estabelecimento de um diálogo pedagógico a respeito dos elementos que compõem o currículo escolar, tendo em vista que as experiências lúdicas e interativas, de aprendizagens significativas, no brincar, no interagir, no rela- cionar-se com outras crianças, adultos, objetos do mundo físico, ambiental e social, precisam valorizar as práticas culturais constitutivas de suas identidades sociais e coletivas. 18 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) REFERÊNCIAS ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2 Edição. Rio de Janeiro: LTC, 1981. COHN, Clarice. A antropologia da infância. R.J.: Zahar, 2005. COSTA, J. F. O vestígio e a aura: o corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. CUSTÓDIO, Crislei de Oliveira. A infância no espelho da pedagogia: mundo infantil, regimes de temporalidade e individualização no discurso pedagógico. 2016. 272f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2016. DAYRELL, Juarez. A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educ. Soc., Campinas, v. 28, n. 100, p. 1105-1128, Oct. 2007. ________, Juarez. O jovem como sujeito social. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 24, p. 40-52, dez. 2003. FOUCAULT, M. Os Intelectuais e o poder. In: Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. 19. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979. GOETZ, E. R. Beleza e Plasticomania. Curitiba: Juruá, 2013. GOODSON, I. As políticas de currículo e de escolarização. Petrópolis: Vozes, 2008. KOHAN, Walter Omar. Infância e filosofia. SARMENTO, Manuel Jacinto e GOU- VEA, Maria Cristina Soares (Orgs.). Estudos da Infância: educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes, 2008. LOPES, Amliz Ferreira; MENDONCA, Érika de Sousa. Ser jovem, ser belo: a juven- tude sob holofotes na sociedade contemporânea. Rev. Subj., Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 20-33, ago. 2016. NARODOWSKI, Mariano. Hacia un mundo sin adultos. Infancias hiper y desrealizadas en la era dos derechos del niño. In: Actualidades Pedagógicas, Bogotá, n. 62, pp. 15-36, jul./dez., 2013. 19 ALIENAÇÃO PONTUAL EM BEBÊS E CRIANÇAS PEQUENAS COM SINAIS DE AUTISMO NA ESCOLA INFANTIL Dorisnei Jornada da Rosa3 Andrea Gabriela Ferrari4 INTRODUÇÃO Este capítulo5 do livro objetiva refletir sobre as possibilidades dos atos educativos estruturantes de uma educadora de maternal com uma criança com problemas neurológicos e sinais de autismo. A proposição é atentarmos para a importância dos educadores de escola infantil ao produzirem um tipo de alienação pontual nas crianças. Alienação Pontual foi um termo criado por nós, autoras do capítulo, para diferenciar a alienação da criança ao desejo do Outro Primordial, responsável pela matriz simbólica e filiação desta. Consideramos que Alienação Pontual são as marcas subjetivantes que podem ser produzidas pelas educadoras em seus atos educativos, no desdobramento da função materna e na manifestação do seu Desejo pelas crianças com sinais de Autismo, de forma preferencial e não anônima. A Alienação Pontual, nós supomos, poderá ser manifestada, como transmissão de marcas do educador conforme seu laço afetuoso e demanda em relação à criança que apresenta sinais de exclusão no campo do Outro ( JERUSALINSKY, 1999). Nós refletimos sobre esta questão a partir da leitura dos relatos e encontros de educadores do berçário e do maternal entre a época que uma bebê, Manoela, apresentou sinais de autismo depois aos seus três anos de idade. Estes relatos estão denominados em uma dissertação de Mestrado – nos quais educadores e 3 Mestrado em Psicanálise (UFRGS). Terapeuta em estimulação precoce e assessora de inclusão da Clínica Em Tempo/POA. CV: http://lattes.cnpq.br/8371243824624637 4 Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS). Professora (UFRGS). CV: http://lattes.cnpq.br/2433984194120349 5 Alguns destes textos foram publicados no livro “O Educador e a Asessoria EP/PI: uma intervenção psicanalítica com crianças pequenas com sinais de autismo” (ROSA, 2019) onde está referendado o histórico da pesquisa. 20 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Assessoria de EP/PI6 (ROSA, 2019) trabalharam em interdisciplinaridade para a não-fixação da estrutura psíquica do Autismo. A presente dissertação propõe pensar caminhos e segue a concepção de que educar é criar condições para um sujeito. Se o trabalho com a Educação Infantil, como diz Mariotto (2009), refe- re-se ao processo de constituição de um sujeito e da sua entrada em uma rede simbólica e discursiva, os atos educativos podem conferir às pequenas crianças com sinais de Autismo uma possibilidade de virem a ter uma condição de sujeito. A questão da Alienação Pontual não propõe um esquecimento da impor- tância da função do Outro Primordial no oferecimento do significante–mestre na operação de Alienação e Filiação de cada sujeito, mas sim, a ampliação desta questão. Consideramos como ponto fundamental a função do educador enquanto personagem que realiza também o desdobramento da função materna e paterna com a criança. A diferença reside no sentido do educador ter um papel transitório, com uma possibilidade de posterior transmissão de marcas e participação subjetiva na constituição psíquica da criança, enquanto os pais, ou os que cumprem as funções materna e paterna, são transmissores de uma linhagem e filiação. O ponto importante é que a entrada dos bebês na escola infantil é cada vez mais precoce, e isso quer dizer que a família não parece ser mais a única para a constituição psíquica dos bebês, pois os educadores podem também passar a ser personagens participantes da subjetivação psíquica das crianças e bebês. A ALIENAÇÃO PONTUAL E OS BEBÊS E CRIANÇAS PEQUENAS COM SINAIS DE AUTISMO A alienação é a operação fundante do sujeito. Lacan (1964/1985) entende que é constitutiva para a criança essa primeira alienação ao Outro primordial. Nessa operação, o pequeno sujeito não somente se aliena ao gozo do Outro, mas se deixa marcar com significantes primordiais por ele oferecidos, entrando, a partir disso, no campo da linguagem e do simbólico. O bebê surgirá desse banho de significantes, tempo necessário de alienação a esses saberes e um não 6 Educação Precoce (EP) é um atendimento a bebês com problemas de desenvolvimento de 0 a 3 anos, conjuntamente com os adultos que desempenham as funções materna e paterna para a criança através de um brincar ativo que considere os aspectos globais do desenvolvimento infantil. Esta nomenclatura e conceitualização é utilizada pela equipe de Educação Especial (ROSA, 2019). Psico- pedagogia Inicial (PI) é um atendimento instrumental crianças com problemas de desenvolvimento de 3-6 anos. Nomenclatura e conceitualização utilizada pelas equipes de EP/PI da (ROSA, 2019). 21 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva menos necessário tempo de separação dos mesmos. Bernardino (2004) ressalta que, no caso do Autismo, não há alienação; parece haver uma recusa da criança em se alienar ao campo dos significantes. A relação da quebra da relação entre bebê e quem realiza a função materna ocorre neste primeiro tempo de sua construção, quer dizer, no tempo dito da alienação. Laznik (2013) formula que é pelo remate do circuito pulsional que o sujeito vai atingir aquilo que é, propriamente falando, a dimensão do Outro. Isso quer dizerDissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade Universidade Luterana do Brasil - ULBRA, Canoas, RS, 2018. DAMASCENO, F. C. C.; RAMPAZO, L.F.; JACOMINI, R. L. Tema transversal orientação sexual: a exposição do corpo e os usos da tecnologia pelos adolescentes na escola estadual 19 de maio de Alta Floresta/MT. Revista Eletrônica De Alta Floresta, v.1, n.4, p.48-61, 2015. Disponível em: http://faflor.com.br/revistas/refaf/index.php/ article/view/188. Acesso em: 23 mar. 2020. HALL, Stuart; MELLINO, Miguel. La cultura y el poder: conversaciones sobre los cultural studies. Buenos Aires: Amorrortu, 2011. HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 8ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. TURKLE, S. Pesquisadora coloca em xeque os benefícios do desenvolvimento tecno- lógico. Ciência e Tecnologia, 2011. Disponível em: http://www.sintrafesc.org.br/pag/ viewnoticiaphp?id=264323#sthashso1IOpUv.dpufby. ZIZEK, S. O hedonismo envergonhado. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2003. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1910200303.htm. http://faflor.com.br/revistas/refaf/index.php/article/view/188 http://faflor.com.br/revistas/refaf/index.php/article/view/188 http://www.sintrafesc.org.br/pag/viewnoticiaphp?id=264323#sthashso1IOpUv.dpufby http://www.sintrafesc.org.br/pag/viewnoticiaphp?id=264323#sthashso1IOpUv.dpufby http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1910200303.htm 179 A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA IDENTIDADE DO SUJEITO Sheila Maria Pereira Fernades58 INTRODUÇÃO Hoje, quando abordamos o tema identidade, temos também que pensar em todo o processo de evolução que estamos sofrendo ao longo dos anos e o quanto a sociedade e a modernidade pode influenciá-lo. Um aspecto importante a ser considerado é a influência da mídia no processo de construção dessa iden- tidade, visto que somos bombardeados a todo o momento com propaganda e redes sociais, que divulgam os mais diferentes estilos de vida, criando em nós o desejo de pertencimento ou a necessidade de aquisição de algum produto para que possamos ser reconhecidos enquanto um sujeito social. Hall (1992) destaca que as velhas identidades estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentos de um indivíduo moderno. Nesse contexto, deparamo-nos com a tão conhecida “crise de identidade”, por se tratar de um pro- cesso em que abandonamos nossas crenças surgindo, assim, um novo estilo de vida. Com as mudanças ocorridas no final do século XX, houve uma fragmenta- ção das classes culturais, sexualidade, gênero, etnia, que, no passado, eram sólidas e bem definidas. De acordo com o autor supracitado, essas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós mesmos como sujeitos integrados. Essa perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Outro aspecto importante a ser ressaltado, nesse processo de transformação da identidade, é a globalização que trouxe um grande impacto sobre a identidade cultural. Desse modo, a sociedade moderna é aquela que permite mudanças rápidas, constantes e permanentes. Assim sendo, as práticas sociais são constantemente reformadas à luz de uma série de informações que são recebidas diariamente. Harvey (1989) afirma que a modernidade implica não apenas um rom- pimento com toda e qualquer condição procedente, podendo ser caracterizada 58 Doutoranda em Educação (ULBRA). CV: http://lattes.cnpq.br/9902562422228230 180 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) como um processo de fragmentação e rupturas internas no seu próprio interior. Em contrapartida, Laclau; Mouffe (1990), por sua vez, usa o conceito de “deslo- camento”, haja vista que, quando uma estrutura é deslocada, ela não é substituída por outra, mas por uma pluralidade de um centro de poder. DESENVOLVIMENTO A sociedade moderna se caracteriza pelas “diferenças”, uma vez que elas são permeadas por diferentes divisões e antagonismo sociais, produzindo, assim, uma variedade de diferentes “posições do sujeito”. Esse deslocamento permite desarti- cular as identidades estáveis do passado, abrindo novas possibilidades e articulações. Tentar mapear a história da noção de sujeito moderno é um exercício extremamente difícil. A ideia de que as identidades eram plenamente unificadas e coerentes e que agora se tornaram totalmente deslocadas é uma forma altamente simplista de contar a estória do sujeito moderno. Eu a adoto aqui como um dispositivo que tem o propósito exclusivo de uma exposição conveniente (HALL, 1992, p. 24). Podemos dizer que a época moderna fez surgir de maneira decisiva o individualismo, trazendo assim uma nova concepção do sujeito individual e sua identidade. A individualidade, no sentindo moderno, pode estar associada ao colapso da ordem social, econômica e religiosa medieval. No século XVIII, o indivíduo era o centro “Sujeito da razão”. No entanto, com a complexidade das sociedades modernas, elas adquiriram uma forma mais coletiva e social, emergindo, assim, uma concepção mais social do sujeito, pas- sando este a ser visto mais localizado e definido, essas mudanças se deram em decorrência de uma série de rupturas nos discursos do conhecimento moderno. Outro aspecto importante a ser destacado é a teoria Freudiana do século XX com a descoberta do inconsciente, Freud afirmava que as nossas identidades, nossas sexualidades são formadoras da base dos processos psíquicos simbólicos do incons- ciente, funcionando, assim, de acordo com uma “lógica”, portanto muito diferente do conceito do sujeito cognoscente e racional, de uma identidade fixa e unificada. A leitura que pensadores psicanalíticos, como Jacques Lacan, fazem de Freud é que a imagem do eu como inteiro e unificado é algo que a criança aprende apenas 181 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva gradualmente, parcialmente, e com grande dificuldade (HALL,1992, p. 37). Desse modo, a criança é formada a partir da relação com os outros, principalmente, nas negociações psíquicas do inconsciente, na primeira infância e nas fantasias que ela tem em relação às figuras paternas e maternas, o que Lacan chama de “fase do espelho”. Para Freud, a subjetividade é formada por meio dos processos psíquicos do inconsciente. A formação do eu no “olhar” do Outro, de acordo com Lacan, inicia a relação da criança com os sistemas simbólicos fora dela mesma e é, assim, o momento da sua entrada nos vários sistemas de representação simbólica - incluindo a língua, a cultura e a diferença sexual (HALL, 1992, p. 37-38). Assim sendo, a identidade é algo que vai se formando ao longo do tempo por intermédio dos processos inconscientes, não sendo, portanto, algo inato, permanecendo incompleta, estando sempre em processo, sendo formada. Outro olhar interessante é do filósofo Michel Foucault que destaca um novo tipo de poder, chamado por ele de “poder disciplinar”. O poder disciplinador tem como finalidade manter o controle disciplinar com base no poder dos regimes administrativos, dos conhecimentos especia- lizados, desse modo, controla a vida, as atividades, o trabalho, a felicidade e os prazeres do indivíduo, bem como sua saúde física e moral. Destaca-se, também, o impacto do feminismo, não só como um movi- mento social, mas também como uma crítica teórica. O feminismo faz parte de uma série de movimentos sociais que se destacaram nos anos 70, como as revoltas estudantis, os movimentos juvenis, contraculturais e antibelicista. Cada movimento apelava para a identidade social de seus sustentadores. Assim, o feminismo apelava às mulheres, a política sexual, aos gays e lésbicas, as lutas raciais aos negros, o movimento antibelicista aos pacifistas, e assim por diante. Isso constitui o nascimento histórico do que veio a ser conhecido como a política de identidade - uma identidade para cada movimento (HALL, 1992, p. 45). Desseque, no terceiro tempo do circuito pulsional, entrar-se-á na dimensão do Outro e se inaugurará um sujeito. A autora levanta a hipótese de haver um fracasso nas crianças com traços autistas, entre outros motivos – neurológicos e orgânicos –, pela impossibilidade ou recusa deste 3º tempo do percurso pulsional, o qual marca a passagem do circuito do corpo ao desejo. Essa é a quebra pulsional que se apresenta em crianças com sinais de autismo: não se oferecem ao outro, não se tomam pelo Outro – como seria próprio do período de alienação. O Outro é o lugar em que se situa a cadeia de significantes que comanda tudo que vai poder se presentificar no sujeito, o qual é encarnado por quem tem a função materna, seja homem ou mulher, pai ou mãe, irmão ou cuidadores. É aí que o sujeito deve aparecer. Neste caminho, Crespin (2006) considera as funções de Alienação e Separação como antagonistas, complementares e dialéticas às funções maternas e paternas, em que mãe e pai podem portar essas funções de modo igual ou invertido aos papéis de mulher e homem. Trata-se de encarnar a posição con- forme seus desejos inconscientes na parentalidade, revezando-se nas duas posições. Nas observações da assessoria em escolas infantis (ROSA, 2019), vimos muitas possibilidades constitutivas nos encontros entre pais, educadores e bebês. As produções e laços observados, especificamente entre os bebês e seu educador, nos assinalaram que neste cotidiano poderá surgir uma particular oferta da operação de alienação ao bebê, além da de seus pais ou cuidadores primordiais. O educador pode fazer esta operação como algo pontual, como um mestre não-todo, visto que tem um tempo cronológico, mas não lógico, para ficar na turma do berçário ou maternal com seus aluninhos. Geralmente o tempo é de um ano e, consequen- temente, no ano seguinte, a criança passará ao maternal e terá outra professora e equipe. Estes encontros se dão conforme a leitura e a organização da escola infantil referente ao caso e à necessidade de a criança passar mais um tempo com aquele 22 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) educador e, se esta necessidade se confirmar, ele pode acompanhar a criança e sua turma no ano seguinte. Como exemplo, o educador pode ir junto para o Maternal com a criança, para a turma posterior, de 2-3 anos. Neste cotidiano entre educa- dora e bebê com sinais de Autismo, apostamos que poderão ser deixadas marcas subjetivas importantes da Educadora no bebê, como forma de transmissão e de desdobramentos da função materna, ao esta lhe nanar, dar comida, dizer não, trocar suas fraldas e lhe cantar como forma de acolhimento e laço. Neste percurso, apontamos que nos anos de 2017-2018, importantes debates e polêmicas surgiram em torno da Lei nº 13.257 (BRASIL, 2016), onde Jerusalinsky (2018, p. 03) nos aponta que os profissionais que atuam com crianças na primeira infância “receberiam formação específica e permanente para a detecção de riscos psíquicos e o desenvolvimento psíquico, bem como para o acompanhamento psí- quico, que se fizer necessário” (BRASIL, 2016 apud JERUSALINSKY, 2018, p. 3). Isto nos causa estranheza, pois apesar das escolas infantis serem, na maioria dos casos, detectores de sinais de autismo ou de que algo não vai bem com as crianças, a educação infantil parece seguir sem muita formação e investimento específico para intervir e encaminhar estes casos à Estimulação Precoce e serviços afins. Atualmente, dá-se grande importância para formação do IRDI7 à pediatras, mas ainda temos muito pouco investimento nas escolas de educação infantil. Desta forma, alertamos para a importância e riqueza do espaço da edu- cação infantil no sentido de ser uma das importantes formas de prevenção e antecipação subjetiva para construção de um sujeito. Neste passo, apostamos que a intervenção de outros participantes da construção subjetiva de uma criança tem de ser considerada, para além de seus pais. As crianças precisam encontrar, no ambiente escolar, o campo da transmissão simbólica, em que os pais podem transferir cuidados e funções à instituição infantil e seus agentes. No caso de sinais de Autismo precoce, no qual se supõe não ter se dado a alienação, entendemos como função imprescindível na constituição do sujeito que a escola infantil 7 A Metodologia IRDI surgiu como desdobramento da pesquisa Multicêntrica com Indicadores Clínicos de risco para o Desenvolvimento Infantil (KUPFER, et. al, 2008). A fim de um esclareci- mento, essa pesquisa multicêntrica foi realizada no período 2000-2008, e desenvolveu-se, baseado nas teorias psicanalíticas de Freud, Winnicott e Lacan, um instrumento composto por 31 indica- dores clínicos de risco psíquico para o desenvolvimento infantil, de 0-18 meses de vida da criança: o IRDI. O estudo foi idealizado em consultas pediátricas e o objetivo principal foi o de verificar o poder desses indicadores para a detecção precoce de risco para o desenvolvimento e constituição psíquica na primeira infância. (KUPFER et al., 2008). 23 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva suponha esses dois tempos de alienação e separação. Ainda nesse caminho, em que o bebê que apresenta sinais de Autismo tem a impossibilidade ou a difi- culdade de se alienar aos significantes do Outro, Laznik (2002) complementa: “acredito que o que pode levar a um risco de autismo em um bebê é o fato de ele não se fazer o objeto do terceiro tempo do circuito pulsional, ou seja, não entrar no que nós lacanianos chamamos ‘alienação real’.” (LAZNIK, 2002, p. 233). A autora aponta que nada é mais alienante do que a mãe ensinar seu bebê a se exibir, e ele, normalmente, se fazer objeto do olhar do Outro, pois ao se exibir, a mãe se regozija e diz “muito bem, você é muito esperto!” (LAZNIK, 2002) e o bebê fica satisfeito. A mãe - ou quem estiver ocupando o lugar do Outro Primordial - o ensina a ser objeto do seu gozo e isso como alienação é perfeito. Ela reafirma com cuidado que, no autismo, o que fracassa é a Alienação, e cita seus três tipos. A primeira é a Alienação Imaginária: “É se acreditar ser aquele que o olhar do Outro constituiu. Quando alguém diz: ‘ah, olha eu aqui!’ este eu é do ego, instância imaginária. Na infância, eu acredito ser aquilo que a minha mãe quis que eu fosse, ou meu pai.” (LAZNIK, 2002, p. 234). Quando esta alienação não se constitui a pessoa fica como excluída do mundo real. Acrescentamos também que esta Alienação Imaginária, nos parece, se reporta a um momento mítico e Imaginário do primeiro tempo do complexo de Édipo, onde os bebês são o objeto fálico da sua mamãe. Continuando estas diferenciações da Alienação, Laznik (2002) refere uma segunda alienação: A Alienação Real. A Alienação Real é se fazer objeto da pulsão do Outro no real. Já a terceira é a Alienação Simbólica, que ocorre no decorrer do manhês e da proto-conversação, no lugar do outro. Esta é exemplificada pela autora ao a mãe de um bebê dizer “Eu tenho fome mãezinha” (LAZNIK, 2002, p. 234) no lugar do bebê, e completa que a mãe nem mesmo inverte a fala. Ela aponta que observou, em sua clínica, nos filmes familiares de bebês que se tornaram autistas, uma impermeabilidade absoluta deles a todas as formas de Alienação. Eles não são alienados, ficam imersos no mundo deles. O resultado disso vai em direção à impossibilidade da constituição do sujeito do inconsciente. Nesta direção, Campanário (2013, p. 34), em sua tese de doutorado, refere a distinção entre o que denomina de alienação real, alienação simbólica (submissão à linguagem) e alienação imaginária (estádio do espelho), e concorda com Laznik (2002), que considera que o autismo estaria circunscrito à alienação real. 24 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) Nessa direção, consideramos que a criança não nasce pronta para deman- dar ao Outro, isso se constrói progressivamente. Portanto, pensamos que isso se duplica no caso de sinais de Autismo: o educador precisa lidar comseu desejo de querer que aquela criança tenha um saber para lhe responder ou fazer o que ele lhe pede e continuar sua aposta ao esperar a resposta deste. Dessa forma, supõe-se que o bebê e a criança pequena com sinais de Autismo precoce, ao estarem muitas horas em uma escola infantil com seus educadores, por mais que tenham essa dificuldade ou impossibilidade, talvez possam receber dos educadores seus significantes de forma pontual e simbólica. Infelizmente, pode sempre haver o perigo de sucumbir e produzir a repetição materna de exclusão ou desistência do desejo em relação à criança. Nesses casos, a transferência e o desejo do educador são de extrema relevância para suportar o sentimento de exclusão e impossibilidade que a criança com sinais de Autismo nos passa. Ao supor um sujeito no bebê, sem nem mesmo ele ainda sê-lo, o educador pode emprestar o imaginário e seu tesouro de significantes, o que, pressupõe-se, pode se articular ao campo pulsional do bebê e se tornar o desejo do desejo do Outro. Lembremos que, no caso de bebês e crianças bem pequenas, se trata de uma estrutura psíquica indecidida (BERNARDINO, 2004), a partir da qual se supõe ainda não ter ocorrido o fechamento e fixação da estrutura psíquica denominada Autismo – a não ser em casos graves associados a patologias neurológicas e falta de investimento de um cuidador. Lembremos que só será possível averiguar, a posteriori, se houve a possibilidade de o educador fazer parte disso e se esta é uma forma não anônima dos educadores realizarem atos de desdobramento da função materna, desejo, demanda e transmissão de marcas subjetivantes nas crianças, conforme seus laços afetuosos com estas. Nesse rumo, o que será que o educador poderá propor com seu olhar? Será que ele tem alguma possibilidade constitutiva de interferir na estrutura psíquica da criança com traços ou sinais de Autismo, visto que está no campo do discurso? A fim de refletirmos sobre esta questão, apresentaremos alguns recortes da observação de uma menina e sua educadora em uma pesquisa8. 8 Trata-se de uma pesquisa que aconteceu nos períodos de 2014-2018 em uma escola infantil (ROSA, 2019). A pesquisadora era Assessora de EP/PI e observou a bebê Manoela durante um ano, que apresentou sinais de Autismo, distrofia muscular, crises convulsivas, olhar vago, falta de interação com seus educadores do berçário e com seus pais e colegas. Depois, a assessora retornou 25 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva Encontramos Manoela em seu grupo do maternal com a educadora Mara, seus colegas e dois estagiários homens de inclusão e pedagogia da Educação Infantil. A pesquisadora reconhecia ali a bebê com sinais de Autismo, que outrora estivera desconectada e com olhar vazio, no período que assessorou a escola infantil. Viu-se ali uma menininha com atraso de desenvolvimento, que ainda não falava, que estava sentada no tapete e direcionava muito seu olhar à professora. Isso nos pegou de sur- presa. Assim, a pesquisadora pensava: será que essa menina ainda tem traços autistas? Na sala de aula, foi notado que Manoela acompanhava os movimentos da educadora, seu levantar e sentar ao atender os outros alunos e, sobretudo, parecia que as duas se entendiam pelo olhar. Ainda, notamos que Manoela, fazia tenta- tivas de ter todo o amor de sua professora, fazendo sons de desagrado e gestos de posse, que pareciam lhe lançar ao campo do desejo e da rivalidade com seus pares. MANOELA E AS CONVOCAÇÕES DA EDUCADORA No momento do pátio, observou-se a menina Manoela, com 3 anos, utilizando uma goteira (suporte de acrílico utilizado como suporte para crian- ças com paralisia cerebral ou hipotonia em membros inferiores), caminhando com sua mãozinha “engatada” na roupa da educadora Mara, se locomovendo rapidamente pelo pátio, quase sempre com o suporte do corpo da educadora. Exemplificando melhor essas cenas, Mara primeiro alienou Manoela ao seu corpo e se ofereceu corporalmente a ela, depois aumentou o passo e Manoela teve que a acompanhar, com intervalos na marcha, pois cada uma tinha um ritmo e depois com alternância entre sua presença e ausência, deixou-a com seus coleguinhas no trepa-trepa do pátio da escola infantil. Tudo isso compõe o que parece ser a permeabilidade dos significantes que a educadora lançava e falava à Manoela, antecipando as próximas ações a serem realizadas: sair do pátio, voltar à sala, se apoiar nas paredes, fazer o trem e dar a mão à educadora, etc. Aos poucos, vimos que a educadora Mara lhe deixou apoiada nas barras de um brinquedo e os coleguinhas a chamavam. A menina caminhava ativamente, se apoiando nas barras, e ia em busca dos colegas João e Renata, mas sempre de olho na educadora. Neste momento, notamos que a educadora parecia utilizar as escola infantil – como pesquisadora – a fim de aplicar a Avaliação Psicanalítica (VAZ; BERNAR- DINO, 2010) adaptada à escola infantil por Ferrari e Silva (2016). 26 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) noções das quatro operações constituintes de um sujeito, ao supor Manoela como sujeito, estabelecer espaços entre seu corpo e o dela, depois deixando-a engatada a sua roupa e apressando o passo e, por fim, incluindo os colegas Renata e João, deixando-lhe no trepa-trepa com eles. Esta cena parecia uma bela operação de Alienação e Separação. Após, a educadora pareceu ter feito uma aposta simbólica e função paterna entre ambas, pois pediu à Manoela para vir andando sozinha, sem suporte, até ela. A menininha atendeu a demanda de sua professora e andou, deu passos grandes até esta, que nos contou que a menina havia começado a cami- nhar há dois dias. Essa aquisição instrumental parecia permeada por um retorno pulsional, em que Manoela queria agradar a educadora Mara e se fazer vista e reconhecida por ela em sua produção motora – eram cenas lindas de se observar. Ao realizar esses atos, ela parece ter produzido a operação de alienação a ela e ao seu desejo de que a menina andasse. Em contrapartida, a menina andou, mesmo com toda sua dificuldade motora, pois queria atender o pedido da edu- cadora. Dessa forma, podemos referenciar que a educadora pode ter realizado uma Alienação Pontual no desdobramento das funções materna e paterna com esta – pois ela parece ter ocupado um lugar de suposto saber para Manoela – e, em contrapartida, a menina se alienou ao desejo e demanda simbólica de sua professora. Neste rumo, a função da escola infantil também é inserir a criança na cultura, civilizar, mostrar limites e transmitir regras. No caso dessa criança, ela precisava de uma educadora que visse o belo e supusesse um sujeito nela, pois, como dizia a educadora, ela era um “chiclezinho” dela. Essa remontagem seria o primeiro passo da alienação/separação, visto que não se trata de uma educação ideal. Depois, a educadora envolveu os terceiros da instituição, enquanto Equipe ou educadores de outras áreas na escola infantil, ao promover confiança de não se intrometer na cena de Manoela com seus pares. Dessa forma, a educadora entendia ter que dar atenção às outras crianças enquanto sua equipe a ajudava a dar esses passos. Os dizeres da educadora elucidam essa questão e o seu dar-se conta da necessidade de um terceiro entre ela e a menina, visto que o apaixo- namento poderia levá-la a ficar grudada na sua educadora, o que também faria com que desaparecesse como sujeito e não crescesse. A educadora se defrontava com sua castração de não ser tudo para Manoela e precisava atender o que é o trabalho simbólico de ser educadora 27 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva em uma instituição infantil – atender às outras crianças e passar confiança e autorização para ela ir ao grupo e a outros educadores –, e traduziu isso falando: Notei que seria necessário [...] em função de eu precisar dar atenção para outras crianças também. Apesar que eu tinha um estagiário homem e ela tinha essa dificuldade com a figura masculina. [...] Ela eramuito apegada a mim. Só que eu precisava que ela fizesse esse caminho inverso. Eu precisava que ela fosse mais fosse mais independente, mais confiante, que ficasse mais com os colegas, que ela se soltasse de mim, que não fosse tão dependente, fui chamando ela para se aventurar no escorregador, ela tinha muito medo de se embalar, de se arriscar isto... Aos poucos a gente foi mostrando isso... Gradualmente fazendo isso, que ela fizesse isso, mostrando para ela que escorregava, que não ela não ia se machucar porque eu estava perto... Aos poucos fui passando para o outro colega. Também, fomos trabalhando em parceria e a rotina escolar e esta foi ficando como espaço de separa- ção entre nós. (Trechos de entrevista com educadora). CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerando que a operação de alienação e separação também pode ser realizada no espaço da educação infantil, salientamos a importância dos atos que uma educadora pode realizar, de forma estruturante, na rotina do cuidar e educar uma criança com sinais de autismo. Os efeitos destes atos no desdobramento das funções materna, paterna e educativa, tomadas nos efeitos formativos e terapêuticos do discurso da assessoria podem produzir muitos movimentos na subjetividade das crianças pequenas. Neste escrito, exemplificamos o trabalho da EP/PI realizado em Rosa (2019), no qual a assessoria EP/PI representou o discurso psicanalítico e, a posteriori, isto reverberou na educadora como autorização da promoção de Alienação Pontual na criança e possibilidade de saída do Autismo. Essas operações subjetivantes, nós supomos, podem reconstruir a alienação e separação de uma criança como marcas de transmissão simbólica, ao se deixarem alienar pelo Outro de uma educadora com desejo e demanda não anônima por esta, como no caso de Manoela. Desta forma, alertamos para a importância da formação dos educadores, em que a escuta e acompanhamento destes em Assessoria 28 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) ou em pesquisas intervenções, como é o caso do IRDI e AP3, podem auxiliar na movimentação estrutural dos bebês e crianças pequenas com sinais de autismo. A prevenção como forma de detecção e intervenção na escola infantil é possível, desde que Psicanálise e educação infantil se entrelacem. Um dos efeitos disto pode ser a operação simbólica de Alienação. Então, esta poderá ser uma operação possível – a da Alienação Pontual – com outras crianças e bebês com sinais de Autismo, ao suas educadoras serem assessoradas, escutadas e se encantarem, ao manifestarem seu desejo, de forma não-anônima? Neste sentido, concordamos com Sônia Motta (2002) de que só pode haver sujeito se houver encantamento. Acrescentamos que, além do encantamento como forma de Alienação Pontual, isto pode tomar um caminho de retorno pulsional e abertura na filiação, em que os pais possam reinvestir na abertura e respostas de seus filhos às suas demandas e desejos. REFERÊNCIAS BERNARDINO, L. M. F. A intervenção psicanalítica nas psicoses não decididas na infância. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DO LEPSI, 5. São Paulo. Anais ... São Paulo: LEPSI, 2004 BERNARDINO, L. M. F. 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AP3 adaptada para uso em ambiente de Edu- cação Infantil, 2010. (Instrumento não publicado). 30 A ASSESSORIA DE INCLUSÃO: UMA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO ESTRUTURANTE NA PREVENÇÃO DO AUTISMO Dorisnei Jornada da Rosa9 Andrea Gabriela Ferrari10 INTRODUÇÃO Este escrito11 é fruto de uma experiência que se iniciou na década de 1990 quando um grupo de profissionais começou a realizar atendimentos de Educação Precoce12 (EP) e Psicopedagogia Inicial13 (PI) e, posteriormente, implementaram uma Assessoria de Inclusão aos Educadores das Escolas Municipais de Educação Infantil através da Educação Estruturante (ROSA, 2019). A Educação Estru- turante é um paradigma que propõe ao educador dirigir seu olhar aos aspectos diacrônicos da criança – os do desenvolvimento como um todo –, bem como considerar o tempo sincrônico da criança – a sua estruturação psíquica, cognitiva, neurológica e a articulação com o desejo. Enfatiza a importância de atentar, nos planejamentos educativos, ao desenvolvimento e à singularidade de cada criança na relação com o grupo. Esse trabalho contribuiu para que, cada vez mais cedo, os bebês com sinais de autismo e transtornos no desenvolvimento chegassem às escolas infantis de Porto Alegre. Nesse rumo, as noções de detecção e inclusão foram lançadas pela assessoria como proposta de instrumentalizar, escutar e intervir nesse campo educacional, com a intenção de se detectar precocemente sinais de 9 Mestrado em Psicanálise (UFRGS). Terapeuta em estimulação precoce e assessora de inclusão da Clínica Em Tempo/POA. CV: http://lattes.cnpq.br/8371243824624637 10 Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS). Professora (UFRGS). CV: http://lattes.cnpq.br/2433984194120349 11 Algunsdestes textos foram publicados no livro “O Educador e a Asessoria EP/PI: uma intervenção psicanalítica com crianças pequenas com sinais de autismo” (ROSA, 2019) onde está referendado o histórico da pesquisa. 12 Educação Precoce (EP) é o atendimento a bebês com problemas de desenvolvimento de 0 a 3 anos, conjuntamente com os adultos que desempenham as funções materna e paterna para a criança através de um brincar ativo que considere todos aspectos do desenvolvimento infantil. Esta nomenclatura é utilizada pela equipe de educação especial da EP/PI/SMED. 13 Psicopedagogia Inicial (PI) é o atendimento instrumental crianças com problemas de desen- volvimento de 3-6 anos. Conceitualização utilizada pelas equipes de EP/PI na SMED/POA/RS. 31 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva autismo. A pesquisa14 que será apresentada neste escrito teve como objetivo refletir sobre as potencialidades constitutivas dos atos educativos de educadores de escola infantil com duas crianças pequenas que, quando bebês, apresentaram sinais de autismo. Esses educadores foram acompanhados pela Assessoria de Inclusão (EP/ PI)15 através da Educação Estruturante (ROSA, 2019) e depois entrevistados e observados, quando as crianças tinham seus três anos de idade. AS ETAPAS DA PESQUISA Esta pesquisa veio se delineando desde 1991, momento em que a primeira autora deste escrito assumiu o cargo de Pedagoga Especial para deficientes men- tais na Secretaria Municipal de Educação (ROSA, 2019). A partir do ingresso no município, foi sendo introduzido o trabalho de EP/PI e, em 2015, com o ingresso no mestrado, foi possível que a experiência de trabalho na Assessoria de Inclusão a educadores de escolas infantis – através da Educação Estruturante –, pudesse ser formalizada. Então, esta pesquisa participa de um ir e vir dos tempos cronológicos, mas também lógicos, em que os fios da experiência foram sendo tecidos em palavras. Assim, podemos falar em três momentos que este escrito se debruça. O tempo 1 foi o ingresso da primeira autora do texto no campo da Assessoria, ou seja, inicia na década de 1990. Nesse percorrido, a autora observou vários giros dos educadores em suas posições discursivas de semblante, visto que os educadores, ao serem escutados pela Assessoria, autorizavam-se a fazer funções diversas com as crianças em sofrimento psíquico e atrasos no desen- volvimento. O tempo 2 – berçário – foi considerado o momento em que dois bebês da escola João Alhures16 apresentaram sinais de autismo e o consequente trabalho de Assessoria aos educadores que cuidavam desses bebês. Transcorridos dois anos, chegamos ao tempo 3 – maternal –, tempo do ingresso no Mestrado 14 Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética (2018, UFRGS). 15 Assessoria de inclusão EP/PI é um serviço de assessoria dos educadores das quatro escolas especiais do município de (ROSA, 2019) aos educadores que acolhem em suas turmas crianças de 0-6anos com atrasos em seu desenvolvimento, deficiência, síndromes ou sofrimentos psíquicos. Esta é uma equipe de educadores especiais com formações em def. visual, auditiva, estimulação precoce, psicologia, psicopedagogia, intervenção hospitalar, psicanálise, etc. Eles são responsáveis por escolas infantis confirme divisão de zoneamento e região. 16 Nome fictício dado à escola municipal infantil em que foi realizada a pesquisa. 32 Gilma da Silva Pereira Rocha - Heider Carlos Matos (orgs.) da primeira autora, em que o desejo foi pensar no trabalho de Assessoria de Inclusão (EP/PI) e na potencialidade dos atos educativos para a constituição do sujeito. Para isso, no tempo 3, avaliaram-se as duas crianças que tinham sido acompanhadas, no berçário, em Assessoria, por terem apresentado sinais de risco de autismo. Então, o tempo 3 se desdobrou na observação e interação com as crianças nos diferentes ambientes da escola; avaliação das duas crianças que, quando bebês, apresentaram sinais de autismo; e entrevistas com as educadoras que acompanharam essas crianças no berçário e no maternal. As crianças foram avaliadas com a Avaliação Psicanalítica aos três anos (AP3) (Kupfer et al., 2008) a fim de observar se ainda apresentavam sinais de autismo. A entrevista com os educadores foi realizada a fim de compreender como e quais laços discursivos estabelecidos entre eles e os bebês poderiam ter contribuído para a não fixação dessa estrutura psíquica denominada autismo. Esse percorrido temporal tenta refletir a Assessoria de Inclusão aos educadores infantis que trabalham com bebês e crianças pequenas em sofrimento psíquico. A questão do trabalho foi: será que a posição discursiva de semblante do educador – enquanto desdobramento das funções materna, paterna, pedagógica e até, algumas vezes, terapêutica – poderia recobrir o Real das repetições e exclusões de crianças com sinais de autismo? A PESQUISA E SUA METODOLOGIA Tratou-se de uma pesquisa de caráter qualitativo e sustentada na Psicanálise. Nesse sentido, foi fundamental o debate da Psicanálise com outros campos de saber, como estratégia científica e política, ao se inserir na Educação Infantil, uma vez que se tomou aqui o contexto teórico-investigativo em uma leitura sobre as posições discursivas de semblante que os educadores ocuparam com as crianças na rotina da escola infantil. Considerando que a pesquisa foi realizada no a pos- teriori do tempo da criação da Assessoria de inclusão norteada pela Educação Estruturante, da detecção de risco de autismo em dois bebês, Manu e Leocádio17, do assessoramento às suas educadoras, da avaliação desses bebês quando com- pletaram três anos e da entrevista às educadoras que cuidaram dessas crianças, utilizamo-nos de um balizador de pesquisa: o entre. A relevância dada ao entre como tema do entre-lugares (Bhabha, 1998) se deu por esse ser considerado um 17 Nomes fictícios dados aos bebês observados na pesquisa. 33 Cultura, Educomunicação e Educação Inclusiva lugar de transdisciplinaridade18. Para tal, o significante entre foi pensado como se fosse um fort´da – um entrar e sair transitando em um discurso e outro, entre a criação do trabalho e seus efeitos de transmissão nos educadores. Tempo 1 – Início da assessoria de inclusão e observação nas escolas infantis da posição discursiva de semblante dos educadores e assessoria Desde a criação e implementação da Assessoria de Inclusão (EP/PI) aos educadores de educação infantil, em 1990, foram abertas várias vagas para receber bebês e crianças pequenas com atrasos de desenvolvimento e sofrimento psíquico. A Assessoria propunha: dispositivos clínicos de reunião com a direção para triar casos de inclusão; observação de bebês e crianças na sala de berçário, maternal e jardim; observações no pátio; entrevistas individuais com algum educador que tivesse laços com determinada criança; encaminhamentos a pais e entrevistas com eles; e formações continuadas com a escola infantil. Durante os anos de Assessoria, a pergunta era: o que eram aqueles atos estruturantes dos educadores, que quando se encantavam com as crianças de inclusão, faziam intervenções que lembravam posições discursivas de semblante? Dessa forma, associamos que o educador também pode ter suas posições discursivas de semblante, ao realizar ¼ de giro nelas e produzir atos estruturantes e de estimulação precoce19. Camargo (2009) historiciza que o conceito de semblante aparece em um momento já avançado da obra de Lacan, em que ele afirma que não há discurso que não seja semblante. Lacan (1969-1970/1992) nos transmite algo a esse respeito, ao dizer que o discurso é um dispositivo de linguagem que nos permite fazer laços sociais, estabelecendo vínculos entre as pessoas concernidas nesses e ao nível do semblante, e é isso que irá determinar o tipo de discurso. Sendo 18 Transdisciplinaridade é o campo similar ao que Bhabha (1998) definiu como entre-lugares. Foi considerado como um lugar de trânsito que permeou a assessora estar em uma escola infantil, assessorar e