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Introdução �࢘bѴovoC- Irineu Letenski Soter Schiller PRESS Introdução �࢘bѴovoC- -1�Ѵ7-7;�"࢛o��-vझѴbo��-]mo R. Carmelo Rangel, 1200 ��ubঞ0-ņ�!�ѶƏĺƓƓƏŊƏƔƏ om;Ĺ�ŐƓƐő�ƒƑƓƒŊƖѶƏƏ ���ĺ=-v0-lĺ;7�ĺ0u 1ol�mb1-1-oŠ=-v0-lĺ;7�ĺ0u �omv;Ѵ_o��7b|oub-Ѵ uĺ��ubm;���;|;mvhb�Ő�u;vb7;m|;ő uĺ�$;o7ouo��-mb1� uĺ�!o]࣐ubo��bu-m7-�7;��Ѵl;b7- Dr. Germano Rigacci Júnior Editor-chefe Dr. Irineu Letenski �u;r-u-2࢛o "bvv����]࣑mb-��ubvঞm-�,-l0࢛o Revisão Me. Teresinha Teixeira Colleone �uof;|o�]u࢙C1oķ�7b-]u-l-2࢛o�;�1-r- �-u1o��m|ॖmbo��;mv-h �b0Ѵbo|;1࢙ub- "buѴ;m;��-ub-��-u1bm;h��-��u �!���!�ƏƏƐƖƒƕņƏ -7ov��m|;um-1bom-bv�7;��-|-Ѵo]-2࢛o�m-���0Ѵb1-2࢛o�Ő���ő -1�Ѵ7-7;�"࢛o��-vझѴbo��-]mo�Ő �"���ő Letenski, Irineu�ѵƓѵb �m|uo7�2࢛o࢘��CѴovoC-�ņ��ubm;���;|;mvhbķ�"o|;u�"1_bѴѴ;u C�ubঞ0-Ĺ� �"����!�""ķ�ƑƏƑƐĺ ������ƐѶѵ�rĺĸ�ƐƔ���ƑƐ�1lĺ �������"��Ĺ�ƖƕѶŊѵƔŊƖƖƒƏƓŊƐƓŊƖ �������"��� b]b|-ѴĹ�ƖƕѶŊѵƔŊƖƖƒƏƓŊƐƒŊƑ �����Ɛĺ� bѴovoC-�Ŋ��m|uo7�2࢛oĺ�Ƒĺ��ॕ]b1-ĺ�ƒĺ��;|-ࣱvb1-ĺ�Ɠĺ�"-0;7oub-�1ubv|࢛ĺ� Ɣĺ�"-0;7oub-�r-]࢛ĺ �ĺ�$झ|�Ѵoĺ CDD 101 ঞ1o࢙Ѵo]o�vbv|;l࢙|-m7b1;�r-u-�1߈ Ɛĺ� bѴovoC-�Ŋ�bm|uo7�2ॗ;v�Ŋ�ƐƏƐ Introdução �࢘bѴovoC- PRESS Irineu Letenski Soter Schiller APRESENTAÇÃO Este livro foi escrito objetivando oferecer uma introdução geral ao estudo da filosofia. O livro está dividido em cinco unidades, sendo que cada uma delas contempla um conjunto de temáticas e conceitos fundamentais, para que você possa iniciar a sua jornada filosófica de maneira autônoma e crítica. A primeira unidade da obra tem como título, Filosofia: construindo sua noção. Como o próprio título já indica, almejamos que o estudante, a partir dos conteúdos abordados, desenvolva sua própria noção de filosofia construindo os seus próprios caminhos. Para tal intento você terá a oportunidade de entrar em contato com os conceitos e as características fundamentais do ato de filosofar. Assim, trata-se de tomar consciência das questões humanas mais fundamentais, fazendo a distinção entre a filosofia da experiência vital (ou do senso comum) e filosofia por ofício. Tudo isso para que você possa buscar novos horizontes no seu modo de pensar. Nesta unidade você também estudará sobre a importância do estudo da filosofia no contexto dos estudos eclesiásticos. Filosofia e a sua origem histórica é o título da Unidade 2. Nesta unidade você terá a oportunidade de refletir sobre alguns motivos que propiciaram a origem da filosofia na Grécia Antiga e também algumas características da sociedade grega. Ora, o ser humano como ser racional além de produzir a filosofia, também reflete sobre a religiosidade, as ciências e dimensão artística, os chamados grandes ramos da cultura humana. Todas essas temáticas estão presentes nesta parte do livro. A partir da Unidade 3, intitulada, Filosofia e a sua problemática, você encontrará no livro uma divisão geral dos grandes assuntos da filosofia, o conhecimento, o ser e a ação. Tais assuntos abordados nas suas diversas perspectivas constituem-se nas disciplinas que fazem parte de um curso de filosofia. Deste modo, nesta unidade você já tomará conhecimento das questões fundamentais que são estudadas na lógica, na teoria do conhecimento, na filosofia da ciência, na filosofia da linguagem, na metafísica e na teodiceia. Trata-se de uma tomada de consciência do objeto de estudo, do conteúdo e dos elementos fundamentais tratados nestas grandes temáticas filosóficas. Dando continuidade aos aprofundamentos das tradicionais disciplinas de um curso de filosofia, na Unidade 4 será o momento de você entrar em contato com as questões fundamentais da antropologia filosófica, da cosmologia, da ética, da estética e da filosofia política. Assim, a partir dos conteúdos abordados nestas áreas do saber, você estará se familiarizando cada vez com a filosofia, desenvolvendo a sua consciência crítica na grande jornada filosófica guiada pela questão: afinal, o que é o homem? Finalizando o livro, a Unidade 5 é a parte na qual você estudará sobre a religião na história do pensamento. Nesta unidade você ainda encontrará um quadro cronológico da história da filosofia, as suas grandes divisões e alguns filósofos que compõem as chamadas idades: antiga, medieval, moderna e contemporânea. Ora, para estudar a filosofia é indispensável conhecer a história da filosofia, isto é, conhecer o desenvolvimento do pensamento humano no espaço e no tempo. Vamos trilhar juntos este caminho na busca de novos sentidos e significados para a sua vida? SUMÁRIO Filosofia: construindo sua noção ............................................................. 13 1.1 Filosofia: conceitos fundamentais ........................................................ 13 1.1.1 Filosofia: abertura de horizontes ................................................... 18 1.2 Filosofia: elaboração da consciência crítica ......................................... 19 1.2.1 Filosofia: fundamentação da prática humana .............................. 20 1.2.2 Filosofia: integração e fundamentação da cultura humana ........ 21 1.2.3 Filosofia no contexto dos estudos eclesiásticos .............................. 23 1.3 Filosofia: busca pela sabedoria ............................................................. 25 1.3.1 A sabedoria nas antigas culturas orientais .................................... 25 1.3.2 A sabedoria grega ............................................................................ 26 1.4 Filosofia: características fundamentais................................................. 27 1.5 A filosofia como ciência ....................................................................... 30 1.5.1 A filosofia é uma ciência dos fundamentos.................................... 32 1.5.2 A filosofia é uma ciência da universalidade .................................. 34 Filosofia e a sua origem histórica ............................................................ 39 2.1 A filosofia nasceu na grécia ................................................................. 39 2.1.1 Por que a filosofia nasceu na Grécia? ............................................ 41 2.1.2 Origem da filosofia a partir do mito .............................................. 42 2.1.3 Os alvores da filosofia ..................................................................... 44 2.2 Filosofia e a cultura humana................................................................. 47 2.2.1 Filosofia e ciências ........................................................................... 49 2.2.2 Filosofia e ciências na história ........................................................ 49 2.3 O conhecimento científico .................................................................... 54 2.3.1 O método experimental ................................................................... 56 2.3.2 Ciência e filosofia: distinção ........................................................... 57 2.3.3 Ciência e filosofia: relação .............................................................. 61 2.4 Filosofia e religião ................................................................................ 65 2.4.1 O fenômeno religioso ....................................................................... 65 2.4.2 Filosofia e religião: distinção .......................................................... 67 2.4.3 Filosofia e religião: relação ............................................................. 68 2.4.3.1 Filosofia e religião: relação de conflito .......................................... 69 2.4.3.2 A razão nega a fé ............................................................................ 69 2.4.3.3 A redução da religião pela razão .................................................... 69 2.4.3.4 A fé nega a razão ............................................................................É nas narrativas de deuses e heróis que o homem antigo expressava a sua compreensão das coisas, e dentro deles encontramos sempre um determinado núcleo, que podemos considerar como o “embrião” da filosofia. Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos tempos. Todos nós precisamos contar nossa história, compreender nossa história. Todos nós precisamos compreender a morte e enfrentar a morte, e todos nós precisamos de ajuda em nossa passagem do nascimento à vida e depois à morte. Precisamos que a vida tenha significação, precisamos tocar o eterno, compreender o misterioso, descobrir o que somos.31 O mito distingue-se justamente de outras narrativas, que não contêm esse núcleo explicativo, como a fábula e a lenda. A fábula é uma narrativa que pretende oferecer um ensinamento moral; a lenda é geralmente despretensiosa. Os mitos classificam-se em mitos teogônicos (origem dos princípios da realidade: deuses), mitos cosmogônicos (origem das coisas) e mitos antropológicos (refletem a condição humana). Na tentativa de explicar o natural, o terreno, a própria tragédia da vida humana com seus conflitos, surge a mitologia como aquela que entre ídolos, heróis, deuses e semideuses reflete em mitos e alegorias o próprio trágico da vida humana. Seus personagens desempenham papéis que no pano de fundo nada mais são do que as intrincadas emoções humanas, o conflito entre a autodeterminação, a possibilidade de escolha e a idéia de um destino que previamente tudo marcou, tudo decidiu. A fatalidade, o trágico da mitologia nada mais são do que o código encontrado pelo grego para expressar a nossa própria condição de ser humano. O sobrenatural é apenas o reflexo do 30 JAEGER, Werner. A formação do homem grego. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 76. 31 CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 2020, p. 16. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 44 natural. Os deuses, semideuses e heróis do Olimpo representam a força e ao mesmo tempo a impotência do homem na terra, quando, apesar de livres para decidir, são enredados pelo destino, se transformam em objetos da fatalidade. Do pensamento mítico (mitológico) para o filosófico foi para o grego um passo relativamente pequeno. A mola propulsora é a mesma: perguntar, tentar entender, explicar o grande mistério que é o universo, o cosmos (macro e micro). Apenas a resposta que mudou de plano: saiu do Olimpo e veio para a terra. A mitologia também foi uma tentativa de explicação do universo, também demonstra ‘atitude de espanto do homem’, só que ainda carece de espírito filosófico, pois desloca o homem de seu próprio eixo no momento em que busca respostas fora do espaço humano. Mas, foi um início, que tendo continuidade deflagrou no aparecimento da filosofia enquanto tal.32 Na civilização helênica ocorre a grande mudança cultural: a passagem do mito à razão. Na medida que os mitos foram se tornando reflexivos, em que o homem ia gradualmente substituindo a mitologia pela filosofia, das roupagens imaginativas do mito iam surgindo os elementos de cunho filosófico. É verdade que, nos inícios, nas próprias origens da filosofia grega, as reflexões sobre o universo cósmico se confundem ainda com a linguagem mítica, mas, aos poucos, a reflexão continuada atinge o amadurecimento, fazendo surgir a filosofia.33 Além da filosofia, também a ciência, pois na cultura grega ambos os elementos são indistintos e caminham juntos. 2.1.3 Os alvores da filosofia Vejamos como foi o desenvolvimento da filosofia e o surgimento dos primeiros filósofos. 32 SCHIRATO, Maria Aparecida. Iniciação à Filosofia. São Paulo: Editora Moraes, 1987, p. 54-55 33 Para o aprofundamento da questão sobre a continuidade ou ruptura da filosofia com o mito veja: ARANHA, Maria Luisa de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo, Moderna, 2003, p. 84 (Mito e filosofia: continuidade e ruptura). Leia também: ALMEIDA, Rogério Miranda de. Eros e tânatos: a vida, a morte e o desejo. São Paulo: Loyola, 2007, especialmente o tópico Ciência, mito e religião, p. 49-55. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 45 A partir do século VI a.C., os principais centros da cultura helênica eram, além da própria Grécia, as ilhas do mar Egeu, a Ásia Menor, a Sicília e a Itália Meridional. É nesta época que se inicia o pensamento filosófico propriamente dito, e quando surgem os primeiros filósofos que procurarão apresentar sistemas coerentes e completos para a explicação do universo. É quando o mito deixa de ser importante.34 A história da filosofia grega é geralmente dividida, tomando-se a figura de Sócrates como ponto de referência, em três períodos, ou épocas. O primeiro, pré-socrático, também chamado cosmológico, é o período de formação. O segundo, socrático ou antropológico, que coincide com o apogeu do poderio econômico e militar de Atenas, é o período da maturidade e do esplendor. O terceiro, finalmente, que corresponde à decadência da pólis, e à desintegração do império macedônico, é o de declínio, ao longo do qual o pensamento grego é incorporado à cultura romana e à apologética cristã.35 A primeira reflexão filosófica volta-se à natureza material, o “cosmos”: é uma “filosofia da natureza”. A preocupação dos primeiros filósofos, ditos “pré-socráticos”, era encontrar a substância ou o elemento básico que explicasse a composição de todas as coisas materiais. O chamado período pré-socrático ou cosmológico, compreende o século VI ao final do século V a.C., quando a filosofia se ocupa, sobretudo, com a origem do mundo e das causas das transformações da natureza. Nas primeiras páginas de Metafísica, resumindo as doutrinas dos pensadores gregos que o precederam, Aristóteles afirma que Tales e os seus discípulos de Mileto, Anaximandro e Anaxímenes, foram os primeiros filósofos, porque enfrentaram racionalmente – e, portanto, sem recorrer a uma explicação mítica – o problema primordial (arché, em grego), do qual tudo deriva. É evidente que tal progresso da espiritualidade humana não deve ter ocorrido de uma única vez.36 O ponto de partida da reflexão era a observação da pluralidade e da unidade no cosmos. Existe a enorme multiplicidade dos seres e objetos: não haveria algo que unisse esses seres entre si, que fizesse a unidade do mundo? 34 NETO, H. Nielsen. Filosofia Básica. São Paulo: Atual, 1986, p. 102. 35 CORBISIER, R. Introdução à Filosofia. Tomo II, Parte 1. São Paulo: Civilização Brasileira, 1983, p. 43. 36 UBALDO, Nicola. Antologia ilustrada de filosofia: das origens à idade moderna. São Paulo: Globo, 2005, p. 13. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 46 Isso porque as coisas se transformam, uma coisa se transforma em outra, às vezes a morte de um ser coincide com o nascimento de outro. Não haveria, então, um “estofo”, uma matéria elementar, da qual todas as coisas, sem exceção, fossem formadas? As respostas sobem do mais material (Tales - água; Anaxímenes - ar; Heráclito - fogo) ao menos material (ápeiron - indeterminado de Anaximandro; o átomo de Demócrito; o número de Pitágoras). São respostas ainda marcadas pela ingenuidade, mas estamos já diante de um modo de pensar abstrato, racional, bem diferente do pensar concreto do modelo mítico. Neste sentido, segundo Aristóteles: Os que por primeiro filosofaram, em sua maioria, pensaram que os princípios de todas as coisas fossem exclusivamente materiais. De fato, eles afirmaram que aquilo de que todos os seres são constituídos e aquilo de que originalmente derivam e aquilo em que por último se dissolvem é elemento e princípio dos seres, na medida em que é uma realidade que permanece idêntica mesmo na mudança de suas afecções. Por esta razão eles crêem que nada se gera e nada se destrua, já que tal realidade sempre se conserva.37 Essa filosofia, de teor cosmológico, se torna metafísica purana discussão entre Heráclito e Parmênides: para o primeiro, o ser e o nada se identificam, existe apenas a mudança pura (panta rei), sem nada que permaneça como ser; para o segundo, o que existe é o ser imóvel e idêntico a si, e a mudança é apenas aparente. No período imediatamente anterior ao clássico, o pensamento filosófico se volta mais ao problema ético, com os sofistas e Sócrates, para quem o verdadeiro filosofar é a procura do reto viver (“sábio” = bom). No s. IV a.C. a filosofia conquista as grandes cidades e se torna o elemento mais importante da civilização grega. É o seu apogeu, com Platão e Aristóteles, quando ela se torna realmente universal, a “ciência do todo”: a filosofia abrange e inclui em si a reflexão sobre todos os setores da realidade e se torna, por assim dizer, “completa”. Platão e Aristóteles forneceram as grandes linhas de pensamento para toda a Idade Média e, a própria Filosofia Moderna, apesar de criar metodologia própria, faz sempre reviver os grandes gênios da Antiguidade. 37 ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002, A 983b. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 47 Já no século IV, antes de Cristo, a filosofia grega, com Platão e Aristóteles, elabora as formas superiores da racionalidade, matrizes de todo o pensamento posterior. A partir dos gregos, a filosofia ocidental é um processo progressivo, que se prolonga, através de Roma e do Cristianismo, até o mundo moderno e contemporâneo. Heráclito, por exemplo, não é um pensador perdido no passado remoto, cujos aforismas teriam um interesse puramente histórico ou arqueológico. Na condição de precursor da dialética, está presente na filosofia moderna, e Hegel nos diz que não há um só de seus aforismas que ele não tenha recuperado na “Ciência da Lógica”. E, assim como está presente em toda a obra de Hegel, assim também está presente na obra de Marx, que nos diz não ter feito outra coisa senão prosseguir numa tarefa começada por Heráclito e Aristóteles.38 O autor está coberto de razão: estudamos Platão, Aristóteles e outros, não por interesse meramente histórico ou arqueológico, mas por que eles estão na base de todo o progresso do pensamento posterior e constituem as raízes da cultura atual. • Indicação de leitura: ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo, Moderna, 2003, p. 79-86 (Do mito à razão: o nascimento da filosofia). CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2006 (p. 25-45; cap. 1-3). 2.2 FILOSOFIA E A CULTURA HUMANA Ninguém coloca em dúvida que o homem é um ser muito complexo e radicalmente diferente de todos os outros seres no mundo, mesmo em relação aos mais superiores dos animais.39 38 CORBISIER, R. Introdução à Filosofia. Tomo II, Parte 1. São Paulo: Civilização Brasileira, 1983, p. 34. 39 Para aprofundar essa questão, veja o texto do Prof. Admardo Serafim de Oliveira - Como o homem difere do resto da natureza: OLIVEIRA, Admardo Serafim de et al. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo, Loyola, 2005, p. 124-127. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 48 Diferentemente dos animais, o homem não se encontra em situação de passividade e identidade na natureza. Pelo contrário, o homem se caracteriza por uma intensa e diversificada atividade. Ele age sobre o mundo em que vive, transforma o seu meio, cria objetos, relacionamentos, instituições: agricultura, medicina, leis, esportes, organizações sociais, políticas, escola, igreja, literatura, cinema, etc. Nada, nem um pouquinho parecido, existe no mundo animal. Parece que não existe nenhum limite para a ação humana: o homem está em contínuo desenvolvimento de si mesmo, dentro do tempo: a história (os animais não têm história, estão em permanente identidade consigo mesmos). Neste sentido, na perspectiva de Laraia: [...] A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações: um animal frágil, provido de insignificante força física dominou toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores. Sem asas, dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias, conquistou os mares. Tudo isso porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura.40 Ninguém discorda que esta capacidade de ação, transformação, autodesenvolvimento, fundamenta-se numa capacidade intrínseca humana: a faculdade de conhecimento, também está radicalmente diferente dos animais (linguagem, ciência). O homem tem uma capacidade extraordinária de ação e criação, porque tem uma faculdade extraordinária para conhecer, saber. Esta faculdade, os gregos chamavam de “intelecto” (nous, logos), os medievais de “alma”, os modernos de “razão”. Pelo seu espírito, enfim, o homem tem a faculdade de intervir no mundo em que vive e criar um mundo próprio, que se interliga com o mundo natural. É o mundo da cultura. O homem é um ser de cultura. Que é cultura? É bastante discutido o conceito de “cultura” (existe a “Antropologia Cultural, a Filosofia da Cultura). De uma forma geral, podemos dizer que: Cultura é a produção do espírito humano em qualquer dimensão (intelectual, emocional, prático). 40 LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p. 21 Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 49 A cultura é ampla: ciência, medicina, artes, esportes, escola, igreja, biblioteca, etc. Mas podemos identificar os seguintes ramos da cultura humana: — CIÊNCIA — ARTE — RELIGIÃO — FILOSOFIA A filosofia é, portanto, um dos ramos, entre outros, ou dimensões da cultura humana. O objetivo dos próximos tópicos é analisar a filosofia em relação às outras manifestações culturais humanas: ciência, religião e arte. 2.2.1 Filosofia e ciências Como a filosofia se distingue das ciências e que relação existe entre elas — é a questão que deve ser analisada neste ponto. Tendo em mente que a filosofia também se apresenta como “ciência”, então se trata de verificar que tipo de ciência é a filosofia em relação às ciências no sentido comum, isto é, ciências experimentais ou ciências “positivas” (É mais difícil distinguir a filosofia da ciência do que da religião ou arte, porque ambas são obras da razão). 2.2.2 Filosofia e ciências na história As ciências, no sentido próprio, vieram a surgir só na Era Moderna, isto é, a partir do s. XVI, como decorrência principalmente da elaboração do método experimental (Bacon, Newton). Na Antiguidade houve pesquisas científicas ou elementos de ciências, mas eles surgiam esporadicamente, mais como resultado da ação prática do homem sobre a natureza. Aliás, a ação prática do homem sobre a natureza é Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 50 o aspecto mais fundamental e universal da vida do homem no mundo. O homem é desafiado pela natureza e esse desafio converte-se no próprio motor do desenvolvimento intelectual humano, como com razão enfatiza Marx. Assim a ação humana em resposta aos desafios da natureza constitui a continuidade do processo civilizatório, feito de descobertas, “técnicas”, elementos científicos (a descoberta dos metais, invenção da roda, a arte da navegação, a medicina, etc.). Se a partir do século XVI ocorre a explosão das ciências, este fato é apenas a aceleração de um processo que é essencialmente humano. A aceleração desse processo, com o surto das ciências, como sabemos, ocorreu devido à formulação e o aperfeiçoamento dos procedimentos científicos (método) e à sistematização dos resultados obtidos. Para situarmos melhor a relação filosofia e ciências dentro do contexto histórico, voltemos aos gregos. Qual era o “espírito” da cultura grega? Platão afirmava que há dois tipos de conhecimento: a “doxa” (opinião) e a “episteme” (ciência, verdade). O primeiro é o conhecimento pelos sentidos, um conhecimento impreciso, particular, enganador, que não nos fornece certezae verdade. O segundo, a “episteme”, é o conhecimento pela razão. A razão nos fornece certezas inabaláveis, verdades eternas. No fundo do pensamento de Platão está a sua distinção entre o mundo sensível e o mundo espiritual (“Mundo das Ideias”). Platão representa todo o espírito da cultura grega: era uma cultura voltada não ao sensível, mas ao racional-espiritual. Mesmo quando afirmamos que a preocupação dos primeiros filósofos gregos era o “cosmos”, a “physis”, essa preocupação era no sentido de compreender o “lógos”, a “razão” das coisas, do mundo, aquilo que estava além da aparência sensível.41 41 Para o aprofundamento da questão sobre o conhecimento em Platão veja: 1. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda & MARTINS. Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo, Moderna, 2003, p. 121-123; 2. REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da filosofia: filosofia pagã antiga. Vol. 1. São Paulo: Paulus, 2003, p. 163-164; 3. UBALDO, Nicola. Antologia ilustrada de filosofia: das origens à idade moderna. São Paulo: Globo, 2005, p. 63-72. Obs. Embora a maioria dos livros tragam a expressão “mito da caverna”, a designação melhor desta passagem de Platão é “alegoria da caverna”. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 51 A cultura grega era intelectualista: o homem voltado ao cultivo do espírito, ao desenvolvimento espiritual. Era indigno ao homem a preocupação com o sensível (desvalorização do trabalho manual). O mesmo espírito manifesta-se também nas preocupações estéticas, onde a aparente preocupação pelo sensível (o cultivo do corpo, ginástica) estava em função do equilíbrio espiritual (“mens sana in corpore sano”). Em seu caráter de cultura intelectualista, a cultura grega estava voltada primordialmente à filosofia e às artes, que representavam o exercício do espírito. Era, pois, uma cultura basicamente desfavorável à pesquisa sobre o sensível, ao experimental (apesar de Arquimedes, Ptolomeu, Hipócrates e o próprio Aristóteles). Essa preocupação, fundamentalmente dirigida ao “espiritual”, perdura na Idade Média, quando a filosofia se soma à teologia. A Idade Média cristã assume a cultura grega e lhe soma um outro elemento, que passa a ser fundamental, a fé cristã. Com o início da Era Moderna (século XVI), o contexto cultural muda e com ele o próprio espírito da época: ocorre aí a volta à natureza, a preocupação pelo sensível, a valorização da experiência. Curiosamente, essa mudança cultural acontece como sendo uma volta aos gregos, à cultura grega (Humanismo, Renascimento), à racionalidade grega, mas num sentido diferente. É uma volta à cultura pré-platônica, aos filósofos da “physis” — à racionalidade aplicada à natureza. Ocorre então uma reação ao espírito medieval teocêntrico que se traduz numa paixão pelo natural, que se reflete até nas artes (arte renascentista). Circunstâncias que ajudam a explicar o momento: as descobertas geográficas (América; há no mundo mais segredos do que se poderia imaginar) e a ascensão da burguesia (o surgimento da cultura leiga autônoma). Ocorre, então aqui, a partir do início da Idade Moderna, dentro de circunstâncias favoráveis, o desenvolvimento do método científico (Francis Bacon, Isaac Newton) e o consequente desenvolvimento cada vez mais acelerado e extraordinário das ciências experimentais. Dentro desse interesse pela natureza – “physis”, a primeira ciência a afirmar-se é a física. Ela provém da antiga “Física” clássica, filosófica (da qual conserva o nome), mas muda o seu estatuto, as suas bases. Passa a ser Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 52 uma pesquisa e um saber experimental sobre a natureza (em vez do caráter reflexivo-fundamentador da antiga “física”). O estatuto da nova física fundamenta-se sobre duas cláusulas: a) matemática; b) experiência sensível. a) A ciência moderna escolhe a matemática como sua linguagem, a linguagem de suas representações, seus conceitos. Diz Galileu na obra O Ensaiador: A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é o universo) que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto.42 Em consequência disso, as representações científicas passam a ser consideradas como devendo ser predominantemente quantitativas. Ou seja, tudo devia ser expresso em termo de quantidades, relações numéricas (medida, peso, volume) e não qualidades. Por expressar aspectos quantitativos, a linguagem matemática é uma linguagem de precisão. b) O recurso e critério de verdade, de certeza objetiva, passa a ser a experiência sensível ou experiência corpórea. Foi preciso fazer uma seleção entre as representações possíveis do mundo, para considerar apenas as representações matematizáveis. Surge então a Matemática como a linguagem das representações científicas, como a forma de linguagem conceitual mais plenamente analítica. Neste sentido, a linguagem matemática é oposta à linguagem poética, onde cada expressão possui ao mesmo tempo múltiplos sentidos. A linguagem matemática, como sabemos, é a linguagem das relações quantificáveis entre grandezas, e cada uma de suas expressões possui um, e apenas um sentido. Para traduzir o mundo em linguagem matemática, o meio mais adequado é através de medidas. E só se pode medir aqueles aspectos da realidade que são quantificáveis, como, por exemplo, comprimento, largura, peso, etc. Aqueles outros aspectos, chamados de qualitativos, como cores, cheiros, gosto, sensações em geral, por pertencerem à esfera privada 42 GALILEU GALILEI. O Ensaiador. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Coleção Os pensadores), p. 119. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 53 de cada indivíduo, muito dificilmente podem ser atribuídos univocamente à realidade do mundo exterior. Os aspectos quantitativos, ao contrário, podem ser medidos, isto é, comparados com um padrão publicamente convencionado, por exemplo, um metro, um quilograma, etc. Nesse caso, torna-se necessária uma experiência corpórea com os objetos, para poder medi-los, descrevendo-os matematicamente”.43 Os pioneiros da Física Moderna, nos ss. XVI-XVII, foram: Copérnico, Galileu, Kepler, na área da Astronomia e Isaac Newton na área da Física Mecânica. No século XVIII desenvolveu-se a Física dos elementos, denominada Química (em contraposição à “Física dos corpos”). Boyle e Lavoisier foram seus principais propulsores. Na passagem do século XVIII ao século XIX afirmam-se as ciências biológicas (Bichat, Gall, Lineu, C. Bernard, Darwin). Como se situa a filosofia neste contexto da Idade Moderna? Em seus delineamentos mais fundamentais, a filosofia moderna acompanha e aprofunda uma temática que foi inspirada pela realidade das ciências: a afirmação da razão humana. Toda a filosofia moderna centra-se na análise dos poderes da razão humana, fazendo-o sob diversas perspectivas (Racionalismo, Empirismo, Iluminismo, Kant, Idealismo). No século XIX aparece no cenário um novo ramo de ciência: as chamadas “ciências humanas” (Psicologia, Sociologia, Pedagogia, etc.). São ciências que têm por objeto algum aspecto determinado da realidade humana. Nesta altura, parecia que a filosofia tinha se esvaziado por completo; parecia que seu campo fora totalmente tomado pelas ciências particulares. Antes pensava-se que o mundo físico pertencia às ciências, mas o mundo humano seria privativo da filosofia. Acreditava-se que a esfera da consciência pertencia ao domínio da filosofia, até que veio a Psicologia (Freud e outros) que invadiu o mundo da consciência (e até do inconsciente). No entanto, este esgotamento da filosofia é apenas ilusório. Naverdade, o domínio próprio da filosofia não foi e não pode ser tomado pelas ciências, mesmo as humanas. Porque todas as ciências, de qualquer caráter que sejam, estabelecem o seu campo exclusivo de pesquisa, no domínio do 43 CUNHA, José Auri. Filosofia: iniciação à investigação filosófica. São Paulo: Atual, 1992, p. 90. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 54 experimental, do fenomênico. Porém, existe muito o que questionar sobre a realidade, além da pesquisa sobre o experimentável. Vale recordar o dito de Wittgenstein: “mesmo se todos os problemas científicos estivessem solucionados, as questões verdadeiramente humanas não seriam sequer tocadas”.44 No entanto, é verdade que a filosofia contemporânea percebeu a necessidade de repensar a sua tarefa própria e ela se encontra, no século XX, numa situação de intensa interação com as ciências humanas. Ou: a filosofia contemporânea leva a marca das ciências humanas. 2.3 O CONHECIMENTO CIENTÍFICO Todo o homem no mundo é obrigado, para viver e sobreviver, a agir sobre o meio em que vive (trabalho). Essa ação não é uma ação puramente mecânica, mas dirigida e orientada pelo pensamento (conhecimento). A ação pressupõe então o conhecimento. O modo de conhecer e agir sobre o meio de forma espontânea e irreflexa chamamos de “senso comum” ou conhecimento pré-científico. O “senso comum” é justamente o conjunto de conhecimentos espontâneos, surgidos pela interação com o meio, adquiridos pela experiência de vida. São conhecimentos colhidos sem a preocupação de comprová-los, de forma ametódica e assistemática. Eles são muitas vezes subjetivos, fragmentados, às vezes certos, às vezes errados. Quando um conhecimento se torna mais cuidadoso, mais reflexivo — ele se torna científico. A ciência seria, então, o aperfeiçoamento do conhecimento comum. Acrescentar uma dose maior de inteligência no lugar da fantasia. Maior cuidado na observação, ceticismo diante das aparências, maior criatividade na procura das explicações: eis alguns procedimentos que transformaram o conhecimento comum em conhecimento científico. Existe uma discussão no meio acadêmico se o conhecimento científico seria de natureza diferente do conhecimento comum (“senso comum”). É mais razoável a opinião contrária. O conhecimento científico não é de 44 WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994, 6.52. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 55 natureza diferente, em relação ao comum. Não há dois gêneros de conhecimento humano: um dos cientistas, outro do homem comum (embora existam diferentes níveis de conhecimento). Todo homem conhece, formalmente, de maneira igual. Um homem comum pode tomar os mesmos procedimentos da ciência (embora de forma simplificada): observação, formulação de hipótese, verificação, etc. O conhecimento científico difere, então, do conhecimento comum no aspecto de aperfeiçoamento e complexidade, mas não é de outro gênero. A perfeição e a complexidade do conhecimento científico estão na questão do método. O desenvolvimento científico verificado a partir da Idade Moderna foi condicionado pelo desenvolvimento do método científico ou método experimental. Do ponto de vista lógico, a ciência pode ser assim definida: A ciência é um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos e sistematicamente organizados. Duas notas distintivas caracterizam, portanto, a ciência: o método e o sistema. • Método. Segundo a sua etimologia (grego “metá” = com; “hodos” = caminho), método significa “seguir um caminho” (para outros, significaria “seguir um caminho mais curto”, um “atalho”). Método existe quando o conhecimento segue uma marcha racional visando a atingir um determinado fim. Em outras palavras, isso significa que na investigação científica os conhecimentos não são recolhidos ao acaso, mas desenrolam-se segundo um plano consequente. Enfim, método é a soma de determinados procedimentos graduais, procurando um determinado resultado. • Sistema: é a ordenação dos conhecimentos num todo integrado. Os conhecimentos adquiridos são reunidos em torno de verdades centrais que chamamos “princípios”. O trabalho científico só se completa pela síntese, pela reunião de conhecimentos num todo unitário. Diz Poincaré: “fazemos a ciência com fatos, assim como fazemos uma casa com pedras; mas a acumulação de fatos não é ciência, assim como um monte de pedras não é uma casa”.45 Por esse motivo, não podemos isolar as coisas na ciência: por exemplo, para aprender uma coisa, precisamos aprender outras coisas, com 45 POINCARÉ, Henry. A ciência e a hipótese. Brasília: Editora UNB, 1984, p. 115. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 56 as quais ela está relacionada. Aprender uma ciência exige anos de estudo, justamente para poder abarcar todo o sistema, o conjunto de conhecimentos correlacionados entre si. 2.3.1 O método experimental O método científico é uma técnica ou modo de proceder pelo qual o cientista adquire, de maneira segura, certos tipos de conhecimento. É uma sucessão de passos ou operações que vão desde a formulação de um problema (hipótese) até a incorporação, no patrimônio científico, do novo conhecimento. Estes passos ou operações podem ser escalonados da seguinte maneira: 1. Observação rigorosa. 2. Hipótese ou formulação do problema. 3. Tentativa de obtenção de um modelo. 4. Planejamento da verificação. 5. Submissão do modelo ou da hipótese a testes críticos - experimentação. 6. Comprovação dos resultados obtidos. 7. Comunicação dos resultados obtidos (dá-se a passagem da atividade para uma linguagem.46 Essa “comunicação dos resultados obtidos” se dá, geralmente, sob a forma de leis, teorias ou hipóteses. A diferença entre as três está apenas na graduação de intensidade de asserção. A lei representa uma asserção quase absoluta: uma demonstração da relação necessária entre fenômenos e é reconhecida por todos (por exemplo, a lei da gravidade, da queda dos corpos, da expansão dos gases, as leis de Mendel). Dissemos “quase absoluta”, por que para a ciência nada há de absoluto: tudo, a princípio, é modificável e reformável. A teoria diferencia-se da lei por ser menos absoluta: é uma lei “por enquanto” (teoria de Darwin, teoria da Relatividade). 46 TELES, A. X. Introdução ao estudo da filosofia. São Paulo: Ática, 1985, p. 63. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 57 A hipótese é sempre relativa e representa um resultado ou explicação ainda provável. Inclui grande divergência de opiniões (por exemplo, as hipóteses sobre os OVNIs). Há de se acrescentar aqui que o método experimental, acima descrito, aplica-se de maneira cabal às ciências naturais; as ciências sociais, ciências humanas e históricas, têm sua metodologia própria. • Indicação de leitura: AMADO, João; GAMA, João; MORÃO, Artur. O Prazer de Pensar: 11º Ano de Filosofia. Lisboa: Edições 70, 1989, p. 74. 2.3.2 Ciência e filosofia: distinção No intuito de fazer uma síntese da diferenciação entre filosofia e ciências elaboramos o seguinte esquema de oposição de notas ou características de ambas: Ciência Filosofia campo experiência transcendência objeto fenômenos, fatos sentidos e valores método experimental analítico-fundamentador critério de verdade experimentação evidência da razão espírito matemático crítico-reflexivo apoio Matemática Lógica termo leis, teorias cosmovisão, sistema explicativo abrangência particularidade universalidade objetivo aplicabilidade (técnica) vivência Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 58 O esquema acima tem um valor limitado. As características aferidas precisam ser corretamente entendidas. Explicação do quadro: 1. Campo: — da ciência: a experiência. O campo da experiência se entende o campo dos fatos, dados, fenômenos: tudo aquilo que pode ser percebido pelos sentidos,direta ou indiretamente, ou por meio de instrumentos. — da filosofia: a transcendência. Entendemos por isso tudo aquilo que está além da percepção dos sentidos e que é perceptível pela inteligência. A ciência para na experiência, a Filosofia transcende a experiência. Um sinônimo de “transcendente” é = “metafísico”. Obs.: o termo “transcendência” também pode significar “o que está além do mundo” (Deus). 2. Objeto: — da ciência: o fenômeno. “Fenômeno”, do grego “phainesthai”, que quer dizer mostrar-se significa “o que aparece”, “o que tem aparência. Fenômeno é, pois, um fato de experiência, um dado. — da filosofia: sentidos e valores. A Filosofia não se detém somente nos fatos ou na relação entre os fatos, mas busca o sentido total e último da realidade ou de um setor da realidade (por exemplo o homem). Os sentidos são traduzidos em valores vitais. 3. Método (ou procedimento): — da ciência: experimental. Ou seja, a ciência segue um método basicamente fundamentado no modelo elaborado por Bacon e Newton, que consiste em determinados procedimentos, já consagrados: observação, hipótese, experimentação, verificação ou comprovação. — da filosofia: analítico-fundamentador. Isto significa que a filosofia utiliza-se da análise, que não tem passos rigidamente predeterminados, mas que se propõem a perscrutar a realidade de forma livre, sempre em busca dos fundamentos (ou causas) últimas da realidade. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 59 Podemos dizer ainda que o método da filosofia é o especulativo (questionar, esquadrinhar, analisar) a realidade em busca de questões implicadas. 4. Critério de verdade: — da ciência: a experimentação (ou evidência da experiência). Podemos dizer que “experimentação” é a reprodução de um fato, para constatar a sua regularidade. O que é que vai conferir se é válido ou não o enunciado “a água ferve a 100º C”? A repetição do fato ou observação repetida do fato. Então, verdade em ciência é aquilo que a experimentação confirma. — da filosofia: a evidência da razão. Isto significa que a verdade para a filosofia é aquilo que se apresenta como justificado perante o juízo da razão. Isto não é um critério subjetivo (“é verdade o que eu acho que é verdade”!): a filosofia sempre se refere à objetividade e procura ser maximamente objetiva. Mas mesmo na referência à objetividade, o critério último de aceitação de uma verdade é a evidência da razão. 5. “Espírito”: — da ciência: espírito matemático. Como já foi dito anteriormente, as ciências tendem o quanto mais a expressar ou traduzir suas proposições em números ou quantidades ou fórmulas matemáticas. — da filosofia: espírito crítico-reflexivo. A Filosofia tem um “espírito” fundamentalmente caracterizado pela livre reflexão, pela análise crítica, pela especulação que visa buscar a fundamentação total das coisas. Isto não significa que as ciências não usam da “reflexão”; entende- se “reflexão” na Filosofia num sentido especial. 6. Apoio: — da ciência: a Matemática. As ciências são tanto mais exatas quanto mais se apoiam na Matemática. A Matemática é a sustentação das ciências. — da filosofia: a Lógica. Ou seja, a Filosofia se apoia na lógica da razão. Já Aristóteles dizia que a Lógica não é propriamente Filosofia, mas o Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 60 instrumento da Filosofia. Em Filosofia, pois, é evidente, é verdadeiro o que é “lógico”, isto é, o que está de acordo com a estrutura e o procedimento da razão. 7. Termo (aonde chega, a meta ou ponto final) — da ciência: as leis dos fenômenos. A ciência se completa quando chega à formulação de leis dos fenômenos. A lei é a expressão da universalidade de resultados, isto é, que engloba todos os fenômenos ou um dado conjunto de fenômenos. (Exemplo a água ferve a 100º C). — da filosofia: sistema explicativo da realidade, uma cosmovisão. Também a filosofia quer chegar a uma universalidade, mas de outro tipo. O termo ao qual a filosofia quer chegar é elaborar um sistema de idéias, coerente e lógico, racionalmente justificado, para estabelecer um fundamento e significado abrangente da realidade. A filosofia tende, pois, a uma universalidade total dos conhecimentos, a uma visão totalizante e global da realidade (“cosmovisão”). 8. Abrangência: — da ciência: a particularidade. Toda a ciência é particular, isto é, se refere a um campo delimitado e restrito de fenômenos. As ciências são tematicamente reduzidas. — da filosofia: a universalidade. A filosofia não possui restrição de campo: pode tratar de tudo, onde esteja envolvida uma questão de fundo, de fundamento ou de sentido. A ciência, por si, trata de uma parte restrita da realidade; a filosofia, por si, trata de toda a realidade. 9. Objetivo: — da ciência: a aplicabilidade (técnica). O objetivo de toda a ciência é adquirir o domínio da realidade, dos fenômenos; enfim, um poder sobre a realidade. “Conhecer para prever, a fim de prover” – disse Comte. Por exemplo, conhecer as leis da eletricidade, para “dominar” a força da eletricidade e utilizar-se dela para a vida humana. Toda a ciência tende, pois, a ser utilitária. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 61 — da filosofia: a vivência. A filosofia não possui um fim utilitário: ela procura o saber que satisfaz o espírito - que é também uma necessidade humana. Mas esse saber é que imprime a grande e fundamental orientação à vida humana. A filosofia nos conduz à descoberta de sentidos e valores pelos quais orientamos a nossa vida e que se manifestam na ação. Em suma: • a Ciência é dirigida à prática utilitária ou laborial. • a Filosofia é dirigida à prática vivencial. Obs.: uma análise mais a fundo sobre a ciência, sua natureza, suas características, é desenvolvida nas discussões sobre a filosofia da ciência na teoria do conhecimento. 2.3.3 Ciência e filosofia: relação Há três modos de se fazer filosofia e, ao mesmo tempo, três modos de entender a relação entre filosofia e ciências: a) Desconsideração: Isto é, fazer filosofia ignorando as ciências, por se entender que a filosofia não tem preocupação imediata com o concreto. Às vezes se presume que o objetivo da filosofia é “formar o espírito”, cultivar o intelecto, dotar o ser humano de princípios metafísicos. Em suma, a filosofia seria a “ciência do espírito”, as ciências o “saber sobre a natureza”. Seria então um tipo de filosofia desencarnada, que ignora as questões científicas. b) Identidade: Essa posição é típica de alguns círculos ligados ao Positivismo (século XIX) e Neopositivismo (século XX). Nessa posição há uma identificação total entre filosofia e ciência (Filosofia = Ciência). Fundamenta-se essa posição positivista na afirmação de que o conhecimento científico é o único válido e legítimo. Todo outro assunto, fora o das ciências, é falso e vazio. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 62 Para Augusto Comte, a Filosofia não tem assuntos próprios, todos eles estão contidos nas ciências. A função da Filosofia é a da sistematização das ciências. O Neopositivismo (Carnap, Popper, Wittgenstein) mantém o princípio positivista de que o conhecimento científico é o único válido. A filosofia seria então a análise da linguagem científica. A única filosofia possível seria, portanto, a “Filosofia da Ciência”. c) Interrelação: Essa posição entende que a filosofia não se identifica com as ciências: ela tem conteúdos próprios que não são da competência das ciências. No entanto, a filosofia deve estar em estreita interrelação (ou diálogo) com as ciências (contra a 1ª posição). Existe na época contemporânea — época de extraordinário desenvolvimento científico — entrecruzamentos, interferências e implicações recíprocas entre a ciência e a filosofia. Tanto as ciências não podem substituir a filosofia, como a filosofia não pode dispensar as ciências. As ciênciasgeram questões filosóficas e a filosofia deve estar em referência contínua às ciências. Por exemplo, não é possível uma antropologia, uma filosofia do homem, sem levar em conta a Biologia (Darwin), a Psicologia, a Sociologia, as Neurociências, etc. Não é possível uma Cosmologia, uma filosofia da natureza, sem referência às teorias físicas sobre a matéria, o universo. Não é possível uma Ética, uma filosofia moral, sem referência à Psicologia, às Neurociências, à Psicanálise, à Sociologia e à Biologia (Bioética). Hoje, uma cosmovisão deve ser, ao mesmo tempo, científica e filosófica. Por um lado, uma cosmovisão só científica não se basta. A ciência gera questionamentos que não são científicos e que ela mesma não pode resolver. Principalmente porque o saber científico é um saber operativo, utilitário. As ciências e a tecnologia são um meio para os fins da humanidade. Mas estes fins a ciência não está capacitada a propor. Aqui se abre o campo da filosofia, cuja tarefa é a função fundamentadora e crítica das ciências. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 63 A filosofia tem de estar, pois, em referência às ciências. Hoje em dia, uma visão do mundo acientífica é um absurdo. Portanto: a filosofia e a ciência estão e devem estar face a face, em mútua correlação, numa via de mão dupla, como se diz. Os dois discursos são autônomos, têm método e campo próprio, mas nem por isso deixam de se exigir um ao outro. Insistindo: o saber humano é sempre unitário. Vejamos no texto abaixo, segundo Aranha e Martins, quais são as funções da filosofia: Uma das funções da filosofia é analisar os fundamentos da ciência. O próprio cientista já está na verdade colocando questões propriamente filosóficas quando se pergunta em que consiste o conhecimento científico, qual o seu alcance, qual a validade do método que utiliza e qual é sua responsabilidade no que se refere às consequências das descobertas. Por isso é importante que o cientista se disponha a filosofar, a fim de investigar os pressupostos e as implicações do seu saber. Além disso, a filosofia busca recuperar a visão da totalidade, perdida diante da multiplicação das ciências particulares e da valorização do mundo dos ‘especialistas’. É a filosofia que, diante do saber e do poder, avalia se estes estão a serviço do homem ou contra ele, isto é, se servem para seu crescimento espiritual ou se o degradam, se contribuem para a liberdade ou para a dominação. Assim, é preciso questionar a ideologia do progresso que justifica as ilusões e preconceitos do homem ‘civilizado’ por este se julgar superior a qualquer outro. Não é em nome do progresso que as tribos indígenas têm sido sistematicamente expulsas dos seus territórios? E não seria o caso de perguntar quais são os valores do homem ‘urbano e civilizado’ que é individualista, sofre de solidão e tem sido vítima dos descontroles do progresso, como a poluição ambiental? Diante de tais questões, não há como sustentar a neutralidade da ciência. A bomba atômica não pode ser considerada apenas como resultado do saber sobre a energia atômica, nem como simples técnica de produzir explosão. Trata-se de um saber e de uma técnica que dizem respeito à vida e à morte de seres humanos. Como tal, cabe ao cientista a responsabilidade social de indagar a respeito dos fins a que se destinam suas descobertas. E não é possível alegar isenção, uma vez que a produção científica não se realiza fora de um determinado contexto social e político, cujos objetivos a serem alcançados estão claramente definidos. As altas cifras necessárias ao encaminhamento das pesquisas supõem o apoio financeiro das Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 64 instituições públicas e privadas, que evidentemente subvencionam os trabalhos que mais lhes interessam. Pode-se falar que, por muito tempo, houve uma ‘indústria da guerra’, alimentando a ‘corrida armamentista’ e exigindo o constante desenvolvimento da ciência e tecnologia no campo militar. O papel da filosofia consiste, portanto, em analisar as condições em que se realizam as pesquisas científicas, investigar os fins e as prioridades a que a ciência se propõe, bem como avaliar as consequências das técnicas utilizadas. Resta lembrar que, no desempenho desse papel, o filósofo não tem respostas prontas, nem um saber acabado. Não caberia ao filósofo nortear, de forma onipotente, os rumos da ciência. A filosofia deve caminhar ao lado dos cientistas e técnicos a fim de que a abordagem específica que ela é capaz de fazer os auxilie a não perder de vista que a ciência e a técnica são apenas meios, e devem estar a serviço da humanidade”.47 • Indicação de leitura: AMADO, João; GAMA, João; MORÃO, Artur. O Prazer de Pensar - 11º Ano de Filosofia. Lisboa, Edições 70, 1988, p. 65-152. ANZENBACHER, Arno. Introducción a la Filosofia. Barcelona: Herder, 1983, p. 22-29. ARANHA, Maria Lúcia Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo, Moderna, 2003, p. 116-205. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo: Moderna, 1992, p. 89-103. BUZZI, Arcângelo. Introdução ao Pensar. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 101- 128. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 2006 (p. 247-286). CUNHA, José Auri. Iniciação à Investigação Filosófica. São Paulo: Atual, 1992, p. 50-116. GILES, Thomas Ransom. A Filosofia e as Ciências Exatas ou Naturais: Iniciação à Ciência Filosófica. São Paulo: EPU, 1995. 47 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo: Moderna, 1992, p. 101-102 Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 65 MARTINS, J. B. Questões fundamentais de filosofia. São Paulo: Fesan, 1983, p. 22-27. TELES, Antônio Xavier. Introdução ao Estudo da Filosofia. São Paulo: Ática, 1985. p. 60-64. 2.4 FILOSOFIA E RELIGIÃO Da mesma forma como foi tratado o assunto filosofia e ciências, o objetivo deste iteme é diferenciar a filosofia da religião, como também verificar a relação que existe entre ambas. 2.4.1 O fenômeno religioso A religião é um fenômeno humano e social (não estamos dizendo que a religião é uma criação humana simplesmente!) que, desde o século passado, vem sendo objeto de estudo científico. Esta ciência da religião recebeu o nome de “Fenomenologia da Religião”, que tem por objetivo descrever de forma acurada o fenômeno religioso e captar os elementos constituintes essenciais da religião. Os maiores nomes da Fenomenologia da Religião são Rudolf Otto e Mircea Eliade.48 De uma forma simples e concisa podemos descrever a religião da seguinte maneira: “Religião é a vinculação existencial do homem a um supremo sentido-fundamento (Deus, Absoluto, Santo)” (Karl Rahner). Ou ainda: Religião é a relação pessoal com o Mistério (Transcendente - Sobrenatural - Absoluto - Deus) que se revela. Ou seja, trata-se de uma atitude de reconhecimento e aceitação de um poder ou ser transcendente ao mundo, que se revela ao homem. Normalmente, a religião (pelo menos as grandes religiões históricas) inclui três elementos essenciais: 48 Para o aprofundamento dessa questão veja: OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. São Leopoldo RS: SINODAL, 2007; ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 66 a) Revelação: é o ponto de partida de toda a religião. Toda a religião se fundamenta numa revelação. Quer dizer: o fundamento da religião não é um princípio racional, uma doutrina filosófica, nem fundamentalmente uma doutrina elaborada por um grande mestre (se existe esse mestre, ele se apresenta falando em nome de Deus: Moisés, Maomé). Revelação significa a abertura de si mesmo do Transcendente ou Deus. O primeiro fundamento da religião não é o caminho dohomem a Deus, mas o caminho de Deus ao homem: Deus é que se faz conhecer ao homem, gratuitamente. Todas as religiões, de uma forma ou outra, pressupõem a Revelação, que é depois registrada nos livros sagrados (Bíblia, Corão). b) Fé: — é a contrapartida à Revelação. A revelação provoca no homem uma atitude de resposta, a fé. A fé é a atitude religiosa propriamente dita: o reconhecimento e a aceitação da Revelação ou de Deus que se revela. A fé é uma atitude humana “sui generis”. Ela não é de natureza racional; antes podemos defini-la como uma atitude existencial, que envolve a existência inteira ou todas as dimensões do homem: razão, vontade, emoção. c) Doutrina religiosa (ou ainda “estrutura religiosa”) — é o conteúdo objetivo da fé. O elemento conceptual ligado à fé. Aquilo que se diz no “quê creio”. Esse conteúdo objetivo, tanto procede da revelação, como é elaborado pelo homem. Envolve elementos teóricos e elementos práticos. — Elementos teóricos: concepção de Deus, do mundo, do homem e da história. É o “dogma” no qual um indivíduo é iniciado ou catequizado. Por exemplo, onde na religião católica, está recolhida essa doutrina? No “creio”. — Elementos práticos: Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 67 • Culto: sacramentos, oração, sacrifícios. • Moral: normas condutoras da vida. Religião é, então, precisamente o conjunto desses três elementos: - Revelação; - Fé; - Doutrina objetiva dessa fé. Assim, de acordo com Vanucchi, “subjetivamente, a religião é a atitude pela qual a criatura humana se orienta para o Outro divino; objetivamente, o conjunto de noções, normas e ritos pelos quais nos ligamos a esse Outro.49 2.4.2 Filosofia e religião: distinção Em princípio, não há maiores dificuldades em delimitar a distinção entre filosofia e religião: seus fundamentos são distintos. — O fundamento da filosofia é a razão. — O fundamento da religião é a fé na revelação, — A verdade religiosa é verdade porque revelada por Deus. — A verdade filosófica é uma conclusão da inteligência humana. — Na religião tem fundamental importância a autoridade (no caso, a divina). — A filosofia prescinde de toda a autoridade: a única autoridade na filosofia é a evidência da razão. As coisas, no entanto, são mais complexas quando da distinção passamos à relação entre filosofia e religião. Em primeiro lugar, há um elevado grau de parentesco entre filosofia e religião. Tanto que Hegel pôde dizer que ambas “possuem o mesmo conteúdo”. Sua semelhança está no fato de que ambas se referem às questões do absoluto. No §1 da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio de 1830, o filósofo afirma que: 49 VANUCCHI, Aldo. Filosofia e ciências humanas. São Paulo: Loyola, 1977, p. 32. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 68 [...] a filosofia tem, de fato, seus objetos em comum com a religião. As duas têm a verdade por seu objeto, decerto no sentido mais alto: no sentido de que Deus é a verdade, e só ele é a verdade. Além disso, ambas tratam do âmbito do finito, da natureza e do espírito humano; de sua relação recíproca, e da sua relação com Deus, enquanto sua verdade.50 Assim, ambas se referem ao fundamento da realidade, à causa última do ser, ao significado da vida do homem, seu fim e destino, e ambas pretendem estabelecer normas ao agir humano. Em outras palavras, a filosofia e a religião se ocupam das questões mais importantes ao homem, sobre o ser e o não ser, sobre o bem e o mal, sobre a vida e a morte. Nessa semelhança, os princípios são, no entanto, diferentes: a razão e a fé, respectivamente. Como foi dito, a filosofia se assenta sobre a razão, que é seu instrumento primeiro. Já a religião exige em princípio a submissão da razão. A religião pressupõe a humildade da razão, o calar-se humano perante o incompreensível, o mistério. Exatamente esse fato resultou num ponto de conflitos históricos na relação entre filosofia e religião (quem não tem fé, não pode aceitar o princípio da religião), conflitos esses que são nada mais que a expressão da crucial relação entre razão e fé. 2.4.3 Filosofia e religião: relação O conflito razão e fé irrompe de maneira acentuada nos tempos modernos. Até o final da Idade Média, toda a cultura ocidental era compactamente cristã: a Igreja dominava as artes, a educação e a própria Filosofia era eminentemente cristã, conduzida pelas Ordens religiosas. Ela era considerada como subsidiária da Teologia (“Philosophia ancilla Theologiae”). A partir do Renascimento ocorre o rompimento dessa unidade cultural: a cultura passa para as mãos dos leigos; o surgimento das ciências, novas filosofias. Começando com o humanismo, passando pelo Racionalismo, Iluminismo, Idealismo e outros movimentos filosóficos até os 50 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830). São Paulo: Loyola, 1995, p. 39. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 69 dias de hoje, desvela-se uma progressiva euforia pela razão, que é considerada como o único motor propulsivo do progresso, a realização do destino humano. Era inevitável, então, que a razão pusesse em julgamento a própria fé: todos os movimentos filosóficos modernos interessam-se pelo fato religioso e esse debate perpassa os séculos até os dias de hoje. 2.4.3.1 Filosofia e religião: relação de conflito Durante a história da filosofia, diversos foram os autores e correntes filosóficas que julgaram a religião como pré-científica, como projeção humana, como alienadora e mesmo como expressão de imaturidade psíquica. 2.4.3.2 A razão nega a fé Uma primeira atitude filosófica assume uma posição negativa perante a fé: esta é considerada como um elemento sem valor ou de valor inferior. • Positivismo: Augusto Comte julga a religião como uma atitude cultural pré-científica e anacrônica. A religião explica o mundo e os fatos por agentes sobrenaturais: espíritos, deuses, demônios. É necessária uma explicação real dos fatos (e não fantasiosa): um fato ou fenômeno se explica por outro fato; é a ciência. O Positivismo professa o cientismo: a ciência é a única atitude digna do homem. • Ludwig Feuerbach: a religião é a projeção das aspirações humanas. Deus é o que o homem quer ser. Deus é o homem idealizado. • Marxismo: a religião é uma forma de “alienação”. As mentes sofridas, os pobres criam um mundo fantasioso, belo e justo, como consolo ao mundo injusto atual. • Sigmund Freud: a religião é uma forma de infantilismo psicológico. A compensação pela falta de maturidade e segurança interior. 2.4.3.3 A redução da religião pela razão Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 70 Algumas correntes do século XVIII, principalmente o Iluminismo, propunham-se uma distinção entre “Religião natural” e “Religião positiva”. As religiões positivas são todas falsas, mas a “Religião natural” é uma exigência da natureza humana. Os iluministas consideravam os dogmas, os ritos, o culto, os mandamentos das religiões históricas como um conjunto de falsidades e superstições de que é preciso libertar-se para chegar a uma religião que só contenha o que é aceitável à razão. Essa é a posição de Voltaire, de Rousseau e de Kant, entre outros. Voltaire afirma que se pode demonstrar a existência de Deus e a imortalidade da alma, e deduzir daí certas consequências sobre o culto que se deve prestar a Deus e sobre a moral que um homem que raciocina deve observar. Para Rousseau, a Religião é o sentimento moral. Para Kant, a existência de Deus e a imortalidade da alma são postulados incluídos nas exigências da razão prática. A Religião é uma fé, mas uma fé racional, ligada à ação moral. 2.4.3.4 A fé nega a razão Em oposição ao acima exposto encontram-se as atitudes “filosóficas” que podem ser reunidas sob o nome de fideísmo. É a atribuição de valor exclusivo à fé, com a consequente negação da razão. A Filosofia é inútile incapaz de nos conduzir a qualquer verdade: a verdade provém unicamente da fé. Atitudes como essa já existiam desde a Antiguidade. Alguns Padres da Igreja (Taciano, Tertuliano) rejeitavam totalmente a filosofia. Para eles, toda a “filosofia” está contida no Evangelho. • Tradicionalismo: é uma corrente do século XIX (Joseph de Maistre, Louis de Bonnald, Robert de Lammenais) que, por reação ao Iluminismo e ao racionalismo, rejeita totalmente o valor da razão. O homem, por sua própria capacidade, não pode conhecer nenhuma verdade. Todas as verdades e, enfim, tudo o que é bom na humanidade, provém da revelação divina. Deus, quando criou o homem, lhe revelou e lhe deu a conhecer todas as verdades necessárias para viver. Essas verdades são transmitidas de geração a geração (daí “tradicionalismo”). • Søren Kierkegaard: filosófo dinamarquês do século XIX, “pai do existencialismo”. Também ele proclama a absoluta impotência da razão frente à realidade e à vida e a ineficácia de toda a filosofia. Só há um Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 71 caminho, o da fé, como a de Abraão: a fé como abandono da razão e “mergulho no escuro”. Perante a cruz, a sabedoria humana é insensatez.51 2.4.3.5 Filosofia e religião: relação de harmonia No entanto, a relação entre fé e razão na história não é apenas de conflito: numerosos filósofos souberam conciliar fé e razão, estabelecendo uma relação de harmonia entre Filosofia e Religião. O exemplo mais clássico é São Tomás de Aquino, que foi um dos maiores filósofos da história e ao mesmo tempo um santo. A posição de S. Tomás é resumida na sua própria expressão: “A fé não destrói a razão, mas a supera e lhe confere plenitude” (De Veritate, q.15, a.10, ad 9). A verdade conhecida pela revelação é superior porque fundamenta-se na autoridade divina. Mas a razão humana também tem valor, pelo simples fato de que também ela procede de Deus. A razão humana é, porém, imperfeita, pelo fato de que depende da sensibilidade: é uma razão encarnada. A razão, enfim, deve ser iluminada pela fé: este é o ideal humano de São Tomás. O tema razão e fé é, de maneira especial, analisado por Maurice Blondel (1861-1949) na sua obra A Ação. Desenvolvendo o seu tema filosófico peculiar da “ação”, Blondel pretende demonstrar que a vida humana é, na sua dimensão mais profunda, uma busca de Deus. O coroamento do filosofar é, portanto, a busca de Deus. Mas a Filosofia apenas entrevê Deus; o abismo entre o homem e Deus é coberto pela Religião que leva ao encontro de Deus.52 Eis por que a filosofia e a religião não podem ser dois compartimentos separados. A Filosofia não pode fechar-se em si mesma; o racionalismo autosuficiente é uma ilusão. A Filosofia é coroada pela Religião: a razão é elevada pela graça, o sobrenatural corresponde às mais profundas aspirações do coração humano. 51 Cf. KIERKEGAARD, Søren. Temor e tremor. São Paulo: Nova Cultural, 1979. (Os Pensadores). 52 Cf. SCANTIMBURGO, João de. Introdução à filosofia de Maurice Blondel. Rio de Janeiro: Faculdade da Cidade, 1997 Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 72 2.4.4 Filosofia e religião: apreciação crítica Apresentamos algumas posições típicas de como se apresentou a relação entre filosofia e religião, mais precisamente a relação razão-fé na história humana. Uma relação delicada e complexa, que se traduziu muitas vezes em confrontos de diversos tipos. O motivo dessa complexidade e dificuldade de relação, como vimos, é a coincidência de ambas no seu termo (ou conteúdo): ambas se referem às questões humanas mais fundamentais. E neste aspecto ambas pretendem ter o caráter de totalidade, isto é, pretendem oferecer respostas últimas. No entanto, analisando as coisas de forma mais acurada e objetiva, particularmente se nos concentrarmos no significado real de razão e fé, haveremos de concluir que há espaço na cultura humana para ambas, filosofia e religião, não precisamos eliminar uma ou outra, e que o conflito não é real. Se ele existe de fato, trata-se de uma visão das coisas a partir de uma perspectiva particular e pessoal. De um lado, a razão autêntica, e por conseguinte a filosofia autêntica, tem consciência de seus limites. Isto significa que por mais que a razão se empenhe em perscrutar e desvelar a realidade, jamais consegue desvendá-la e compreendê-la por completo. A filosofia busca as respostas últimas, mas não tem as respostas últimas. A realidade, o ser, conservam sempre um fundo de imperscrutabilidade, um fundo de mistério. A um dado momento, a própria razão se dá conta de que é impotente para ir adiante. Que precisa calar-se. É aí, justamente, que se abre o espaço para o mistério, para a revelação. A fé e a experiência religiosa, para a autêntica filosofia, se torna justamente o mistério que se revela para além das capacidades e possibilidades humanas. Para um autêntico filósofo, pois, a revelação não é trevas, o absurdo, mas luz, luz brilhante demais para a inteligência humana. A filosofia busca o fundamento de todo o ser — a experiência religiosa propicia a felicidade do encontro com o Outro, com o mistério que se revela ao homem. A filosofia, por definição, é um sistema totalitário: busca as razões últimas das coisas [...] A filosofia é totalitária, mas na ordem natural. Ela engloba, pois, o estudo da regra suprema da atividade humana natural. As razões que ela busca são, nesse domínio, últimas e absolutas. As conclusões certas da filosofia conservam sempre o seu valor, mesmo na hipótese da elevação do homem à vida da graça, Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 73 precisamente por não destruir a graça a natureza. Essas conclusões não são de maneira nenhuma provisórias: são verdadeiras e de uma verdade absoluta [...] Mas a atividade humana tem os seus limites. A filosofia não resolve todos os problemas; nem mesmo chega a formulá-los todos. Pode tomar consciência das suas fronteiras: embora atingindo de certo modo as razões supremas, pode procurar delimitar regiões misteriosas que escapam ao nosso conhecimento; e mesmo mais, que devem escapar-lhes por ser a natureza radicalmente incapaz de alcançá-las. [...] A filosofia, traçando os seus próprios limites, deixa lugar aberto a uma revelação superior.53 Por outro lado, a verdadeira fé não exige a negação da razão. A Religião entende a razão como a capacidade superior conferida por Deus ao homem, e que nesta capacidade está primariamente a sua dignidade. Não pode haver, de fato, conflito de verdades, entre uma verdade de fé e uma verdade de razão, entre uma verdade divina e uma verdade humana. Se este conflito existe, trata-se de um equívoco. A Igreja em diversas oportunidades condenou o “fideísmo”, a posição que nega a razão em favor da fé. A fé não é cega ou irracional, mas pressupõe capacidades e valores humanos naturais. É certo de que não se chega à fé por raciocínio nem se convence ninguém à fé por razões: a fé é antes de tudo um dom e uma graça de Deus, uma experiência de encontro com Deus vivo, onde Deus sempre tem a iniciativa. Mas a fé supõe uma pessoa humana, com o pleno exercício de suas capacidades e potencialidades. Há de se concluir, portanto, que a Filosofia e a Religião podem coexistir numa relação de plena harmonia. O conflito só ocorre, ou a partir de perspectivas particulares e pessoais, ou por equívoco: da falta de compreensão dos devidos limites. A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena 53 RAEYMAEKER, Luis de. Introdução à filosofia. 2. ed. São Paulo: Herder, 1973, p. 34-35. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 74 sobre si próprio (cf. Ex 33, 18; Sal 27/26,8-9; 63/62, 2-3; Jo 14, 8; 1 Jo 3, 2).54 Uma luz ilusória? E contudo, podemos ouvir a objecção que se levanta de muitos dos nossos contemporâneos, quando se lhes fala desta luz da fé. Nos tempos modernos, pensou-se que tal luz poderia ter sido suficiente para as sociedades antigas, mas não servia para os novos tempos, para o homem tornado adulto, orgulhoso da sua razão, desejoso de explorar de forma nova o futuro. Nesta perspectiva, a fé aparecia como uma luz ilusória, que impedia o homem de cultivar a ousadia do saber. O jovem Nietzsche convidava a irmã Elisabeth a arriscar, percorrendo vias novas (…), “na incerteza de proceder de forma autônoma”. E acrescentava: “Neste ponto, separam-se os caminhos da humanidade: se queres alcançar a paz da alma e a felicidade, contenta-te com a fé; mas, se queres ser uma discípula da verdade, então investiga”. O crer opor-se-ia ao indagar. Partindo daqui, Nietzsche desenvolverá a sua crítica ao cristianismo por ter diminuído o alcance da existência humana, espoliando a vida de novidade e aventura. Neste caso, a fé seria uma espécie de ilusão de luz, que impede o nosso caminho de homens livres rumo ao amanhã. Por este caminho, a fé acabou por ser associada com a escuridão. E, a fim de conviver com a luz da razão, pensou-se na possibilidade de a conservar, de lhe encontrar um espaço: o espaço para a fé abria-se onde a razão não podia iluminar, onde o homem já não podia ter certezas. Deste modo, a fé foi entendida como um salto no vazio, que fazemos por falta de luz e impelidos por um sentimento cego, ou como uma luz subjetiva, talvez capaz de aquecer o coração e consolar pessoalmente, mas impossível de ser proposta aos outros como luz objetiva e comum para iluminar o caminho. Entretanto, pouco a pouco, foi-se vendo que a luz da razão autônoma não consegue iluminar suficientemente o futuro; este, no fim de contas, permanece na sua obscuridade e deixa o homem no temor do desconhecido. E, assim, o homem renunciou à busca de uma luz grande, de uma verdade grande, para se contentar com pequenas luzes que iluminam por breves instantes, mas são incapazes de desvendar a estrada. Quando falta a luz, tudo se torna confuso: é impossível distinguir o bem do 54 JOÃO PAULO II. Carta encíclica Fides et Ratio: aos bispos da Igreja Católica sobre as relações entre fé e razão. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 5. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 75 mal, diferenciar a estrada que conduz à meta daquela que nos faz girar repetidamente em círculo, sem direção.55 • Indicação de leitura: GOURINAT, Michel. Introducción al pensamiento filosófico. Madrid: ISTMO, 1973, p. 119-187. JOÃO PAULO II. Carta encíclica Fides et Ratio: aos bispos da Igreja Católica sobre as relações entre fé e razão. São Paulo: Paulinas, 2008. RAEYMAEKER, Louis de. Introdução à filosofia. 2. ed. São Paulo: Herder, 1973, p. 30-35. SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. O Ensino da Filosofia nos Seminários. Roma: Typis Polyglottis Vaticanis, 1972. SCHIRATO, Maria Aparecida R. Iniciação à filosofia. São Paulo: Moraes, 1987, p. 45-49. VANCOURT, R. A estrutura da filosofia: as origens do homem. São Paulo: Duas Cidades, 1964, p. 116-170. 2.5 FILOSOFIA E ARTE Na sua situação vital no mundo, o homem não só conhece as coisas, as realidades, mas também as contempla. As coisas, os seres não são apenas objetos de seu conhecimento e de sua manipulação, mas também atingem a sua emoção, despertam sentimentos de uma variada gama. O mundo, a natureza, antes de ser objeto do conhecimento e da atividade prática, é objeto de percepção e de contemplação. O mundo, no conjunto de seus objetos e seres, tange uma vasta gama das emoções humanas: admiração, prazer, dor, alegria, temor, tristeza, perplexidade. Mais ainda: guiado pelas suas emoções, o homem modifica objetos e cria formas expressivas de seus sentimentos e de suas vivências internas. 55 FRANCISCO. Carta Encíclica Lumen Fidei aos presbíteros aos diáconos, às pessoas consagradas e a todos os fieis leigos. São Paulo: Loyola/Paulus, 2013, n. 2- 3. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 76 Desde os seus primórdios, o homem não apenas contemplou e encantou-se com a natureza, mas procurou expressar as suas emoções através de diversos meios, como também criar objetos que de certa forma reproduzissem e imitassem a beleza do mundo. É a criação artística, a arte, que é uma das dimensões culturais da humanidade desde sempre. Assim, para Chauí: A palavra arte vem do latim ars e corresponde ao termo grego techne, técnica, significando: o que é ordenado ou toda espécie de atividade humana submetida a regras. Em sentido lato, significa habilidade, destreza, agilidade. Em sentido estrito, instrumento, ofício, ciência. Seu campo semântico se define por oposição ao acaso, ao espontâneo e ao natural. Por isso, em seu sentido mais geral, arte é um conjunto de regras para dirigir uma atividade humana qualquer. Nessa perspectiva, falamos em arte médica, arte política, arte bélica, retórica, lógica, poética, dietética. Platão não a distinguia das ciências nem da Filosofia, uma vez que estas, como a arte, são atividades humanas ordenadas e regradas. A distinção platônica era feita entre dois tipos de artes ou técnicas: as judicativas, isto é, dedicadas apenas ao conhecimento, e as dispositivas ou imperativas, voltadas para a direção de uma atividade, com base no conhecimento de suas regras. Aristóteles, porém, estabeleceu duas distinções que perduraram por séculos na Cultura ocidental. Numa delas distingue ciência-Filosofia de arte ou técnica: a primeira refere-se ao necessário, isto é, ao que não pode ser diferente do que é, enquanto a segunda se refere ao contingente ou ao possível , portanto, ao que pode ser diferente do que é. Outra distinção é feita no campo do próprio possível, pela diferença entre ação e fabricação, isto é, entre praxis e poiesis. A política e a ética são ciências da ação. As artes ou técnicas são atividades de fabricação.56 Neste sentido, a civilização humana se expressou não só na ciência, na técnica, na filosofia, mas também na música, na poesia, na dança, na pintura, na escultura, na arquitetura; mais recentemente no cinema e também na arte digital.57 Desde sempre, a arte é um dos segmentos constantes da cultura e da civilização humana (ao lado da ciência, da filosofia e da religião). 56 CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1995, p. 317. 57 Para um aprofundamento das relações entre arte e tecnologia veja: BERNARDINO, Paulo. Arte e tecnologia: intersecções. ARS (São Paulo). São Paulo, v. 8, n. 16, p. 39-63, 2010. Disponível em: sobre a beleza, sobre as condições do belo (uma vez que o belo existe além das obras de arte, na natureza, por exemplo). x Estética – ciência da arte: na linguagem corrente, estética pode significar um estudo científico (histórico, sociológico, etc.) das manifestações artísticas. Crítica da arte: é a análise e o juízo das obras de arte a partir de princípios e padrões da própria arte, de seus setores específicos. Exemplo: crítica literária, crítica musical, crítica do cinema, entre outras. Ao abordarmos a questão estética, podemos fazê-la a partir de três vertentes: 1) fenomenologia das emoções estéticas (o que estrutura as emoções estéticas); 2) a metafísica do belo (o que caracteriza a beleza? Existe o belo universal?); 3) os sentidos e funções da arte. 53202010000200004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 31 Jan 2021. http://dx.doi.org/10.1590/S1678-53202010000200004. 58 CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2006, p. 281. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 78 Alguns consideram que a arte tem por função formar e cultivar o espírito humano. Para Platão, Agostinho e Tomás de Aquino, a arte tem uma finalidade eminentemente pedagógica; por isso, recomendam apenas as obras de arte que sirvam à educação e condenam as que favorecem a corrupção. Platão, em “A República”, condena a comédia e a tragédia principalmente por dois motivos. Primeiro, porque os cômicos e os trágicos representam os deuses e os heróis, atribuindo-lhes baixezas e paixões, próprias da natureza humana e desse modo desvirtuam o sentido religioso. Segundo, porque, compondo as suas obras, não se baseiam sobre a razão, mas sobre o sentimento e fantasia; ao invés de servirem de ajuda à razão, agitam as paixões, provocando o prazer e a dor. Segundo Platão, uma só arte merece ser cultivada assiduamente: a música. Esta educa o belo e forma a alma à harmonia interior.59 Para outros, a arte é uma forma de purificação do espírito, um instrumento de domínio da sensibilidade humana. “Para Aristóteles, Plotino e Schopenhauer, a arte possui um escopo essencialmente catártico; será cultivada enquanto ajuda a alma a libertar-se das paixões, a purificar-se, a elevar-se para contemplação”.60 Existe também é a função idealista/metafísica da arte. Para Hegel, a arte é expressão do Absoluto em forma sensível, paralela às outras duas: Religião – representação; Filosofia – conceito/pensamento; Arte – intuição. Junto com a religião e a filosofia, a arte é a forma mais elevada da realização humana como espírito e sua identificação com o Espírito Absoluto. Existem ainda aqueles que defendem a autonomia da arte. Hoje, essas finalidades secundárias da obra de arte (pedagógica, catártica, metafísica, metafísica) não despertam muitos consensos entre os filósofos. Geralmente, afirma-se, e a nosso ver de forma justa, que a arte possui uma função autônoma, que é fim a si mesma, como a ciência, a religião, a moral, a política, a economia [...] Produzindo a obra de arte, o artista supõe criar algo: quer nos colocar perante uma realidade nova. Sua criação, esta nova realidade, deve ser olhada frontalmente, por sua conta, sem a pretensão ou a preocupação de encontrar significados recônditos ou segundas intenções. Tudo o que 59 MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 1980, p. 167. 60 MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 1980, p. 167. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 79 o artista quis dizer é o quanto ele conseguiu manifestar. E aquilo que ele de fato conseguiu manifestar está ali diante de nós.61 2.5.1 Filosofia e arte: diferenciação No que consiste a diferença fundamental da Filosofia em relação à Arte? — A Filosofia é obra da inteligência humana. — A Arte é obra da emoção humana. Portanto, ambas estão radicadas em faculdades humanas distintas. Na Filosofia se trata de raciocinar, pensar, conhecer. Na Arte se trata de perceber, sentir, criar. [...] A filosofia e a arte se diferem essencialmente pelo tipo de leitura que ambas fazem do universo. É evidente que ambas têm o mesmo objeto, se assim se pode dizer, em cima do qual produzem: a relação homem-mundo. O universo é, portanto, o mesmo. Entretanto, a forma de abordar este universo é diferente. Esta diferença se dá, portanto, a nível do sujeito e não do objeto. Vejamos: tanto o filósofo quanto o artista são os sujeitos agentes na forma de abordar o objeto, na leitura que dele fazem. É na expressão da palavra, o ato de invasão do sujeito na esfera do objeto que determina tanto a arte como a filosofia. Apenas a forma como esta invasão é feita (e daí a decorrente interpretação do objeto) que é diferente. O filósofo se atém ao objeto naquilo que ele tem de essencial, àquilo que ele tem de propriamente objetivo, que é a sua própria natureza. Utiliza para tanto a sua razão como meio de conhecimento e, da própria determinação do objeto mais a leitura que sua razão faz deste objeto, o filósofo procura entender e interpretar a realidade. Seu objetivo é, pois, a realidade objetiva. Seu trabalho é captar esta realidade, percebê-la como problemática e tentar explicá- la. Ao tentar explicar esta realidade o filósofo busca possíveis caminhos de solução e resposta para as questões que daí surgem. É o próprio trabalho de desvelamento, na linguagem de Heidegger. Seu 61 MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 1980, p. 168. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 80 esforço vai, portanto, na direção de decodificar o mais possível este complexo de objetos e símbolos que é a realidade. Para realizar este trabalho o filósofo utiliza sua razão. Na medida em que o filósofo se percebe diante da determinação da natureza do objeto e de seu próprio objetivo de explicar este objeto, de percebê-lo como problema, o percurso que ele fará é essencialmente racional, objetivo (no sentido de estar abordando a objetividade do real e pensando sobre ela). O instrumento de trabalho do filósofo é a razão, a via pela qual ele chega à objetividade do universo. Seu plano de abordagem é a realidade tal como ela é por sua própria natureza. Com o artista as coisas não são bem assim. O percurso que ele traça é o inverso ao do filósofo, embora o ponto de partida e o objetivo sejam quase os mesmos. O ponto de partida tal como para o filósofo é abordar a realidade, invadi-la. O objetivo é o mesmo: explicá-la. Como podem, então ser diferentes? A diferença está exatamente na forma com que isto acontece. O artista vai utilizar nesta abordagem do real a sua sensibilidade. Ou seja, o que ele sente diante do objeto. É a sua emoção que fala, é a percepção não como via para a razão, mas para a sensibilidade. O seu percurso é o inverso no momento em que sua sensibilidade ao se deparar diante do objeto real, ao invés de decodificá-lo como faz o filósofo, na tentativa de explicá-lo, ele o codifica segundo a intensidade de sua sensibilidade. Ou seja, o artista codifica a realidade através de sua própria sensibilidade, passando a ter, a partir daí, uma visão só sua, apenas sua, subjetiva do objeto. Cria, então, sobre a realidade a supra-realidade, que é a realidade subjetivada pela sua sensibilidade. De forma que, explicar a realidade para o artista, significa percebê-la e senti-la (não mais pensá-la) segundo seus (do artista) próprios códigos e símbolos. A problematicidade do real aparece para o artista como a via pela qual ele desperta a própria sensibilidade e cria em cima do real uma realidade maior, sua apenas sua”.62 Faça uma síntese comentada do texto, destacando os seguintes pontos: – No que a Filosofia e a Arte são semelhantes? – No que propriamente a Filosofia difere da Arte? 62 SCHIRATO, Maria Aparecida R. Iniciação à Filosofia. São Paulo: Moraes, 1987, p. 37-39.70 2.4.3.5 Filosofia e religião: relação de harmonia ....................................... 71 2.4.4 Filosofia e religião: apreciação crítica ........................................... 72 2.5 Filosofia e arte ...................................................................................... 75 2.5.1 Filosofia e arte: diferenciação......................................................... 79 2.5.2 Filosofia e arte: relação ................................................................... 81 Filosofia e a sua problemática ................................................................. 85 3.1 A temática filosófica............................................................................. 85 3.1.1 A divisão da filosofia ....................................................................... 87 3.1.2 Lógica................................................................................................ 89 3.1.3 Lógica uma ciência formal: objeto de estudo................................ 91 3.1.4 Lógica: uma ciência propedêutica e o seu conteúdo..................... 92 3.2 Teoria do conhecimento ....................................................................... 96 3.2.1 A problemática do conhecimento: um pequeno histórico............ 97 3.2.2 Teoria do conhecimento: objeto ..................................................... 99 3.2.3 Possibilidade do conhecimento ..................................................... 100 3.2.4 Essência ou natureza do conhecimento ....................................... 101 3.2.5 Origem ou fontes do conhecimento .............................................. 101 3.2.6 Espécies (ou formas) de conhecimento ........................................ 102 3.3 Filosofia da ciência (epistemologia) ................................................... 104 3.3.1 Filosofia da ciência: contexto histórico ........................................ 104 3.3.2 Filosofia da ciência: problemática ............................................... 105 3.3.3 Filosofia da linguagem .................................................................. 107 3.3.3.1 Filosofia da linguagem: contextualização .................................... 107 3.3.3.2 Os sentidos da filosofia da linguagem .......................................... 107 3.3.3.3 Filosofia da linguagem: conceitos ................................................ 108 3.3.3.4 Filosofia da linguagem: problemática ......................................... 108 3.4 Metafísica ........................................................................................... 109 3.4.1 Metafísica: origem do termo......................................................... 109 3.4.2 Metafísica: sentido do termo ........................................................ 110 3.4.3 A metafísica aristotélica: referencial da metafísica universal ... 110 3.4.4 Sistemas filosóficos metafísicos e anti-metafísicos ..................... 112 3.4.5 Metafísica: conteúdo básico .......................................................... 113 3.5 Teodiceia ............................................................................................ 114 3.5.1 Teodiceia: esclarecimento de terminologia ................................. 114 3.5.2 Teodiceia: coroamento da metafísica........................................... 116 3.5.3 Teodicéia: objeto ............................................................................ 117 3.5.4 Teodiceia clássica: conteúdo ......................................................... 118 3.5.5 Teodiceia: conteúdos hodiernos ................................................... 119 Antropologia ........................................................................................... 123 4.1 Antropologia filosófica ....................................................................... 123 4.1.1 Antropologias ................................................................................. 124 4.1.2 A psicologia racional ..................................................................... 124 4.1.3 Antropologia filosófica: origem, determinação e conteúdo ....... 125 4.2 Cosmologia ......................................................................................... 127 4.2.1 Cosmologia: esclarecimento de terminologia .............................. 127 4.2.2 Cosmologia: histórico .................................................................... 128 4.2.3 Cosmologia: tem sentido uma filosofia sobre o mundo material? .................................................................................................................. 129 4.2.4 Cosmologia: objeto e conteúdo ..................................................... 130 4.3 Ética .................................................................................................... 131 4.3.1 Ética: conceitos .............................................................................. 132 4.3.2 Ética: perspectiva histórica .......................................................... 132 4.3.3 Ética: conceituação e problemática ............................................. 135 4.3.4 Ética fundamental e ética especial ............................................... 137 4.4 Estética ............................................................................................... 139 4.4.1 Estética: elucidação de conceitos .................................................. 140 4.4.2 Estética filosófica: temática .......................................................... 141 4.5 Filosofia política ................................................................................. 144 4.5.1 O pensamento político: pequeno histórico .................................. 145 4.5.2 Filosofia Política: elementos ......................................................... 149 Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia .................. 153 5.1 A religião na história do pensamento ................................................. 153 5.1.1 Fenomenologia da religião: definição .......................................... 155 5.1.2 Filosofia da religião: objeto .......................................................... 156 5.2 História da filosofia ............................................................................ 157 5.2.1 História da filosofia: quadro cronológico .................................... 159 5.3 Idade antiga e medieval ...................................................................... 159 5.3.1 Período pré-socrático (700 a.C. - 470 a.C.).................................. 160 5.3.2 Período ático (470 - 300 a.C.) ........................................................ 160 5.3.3 Período helenístico (300 a.C. - 30 a.C.) ........................................ 161 5.3.4 Período romano ............................................................................. 162 5.3.5 Idade média .................................................................................... 163 5.3.6 Filosofia patrística (século III – século VII) ................................ 163 5.3.7 A pré-escolástica (alta idade média, século IX-X) ...................... 164 5.3.8 Alta escolástica (baixa idade média, século XI-XIII) ................. 165 5.3.9 Baixa escolástica (século XIV-XV) ............................................... 165 5.4 Idade moderna .................................................................................... 166 5.5 Período contemporâneo ...................................................................... 170 Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 13 UNIDADE 01 – FILOSOFIA: CONSTRUINDO SUA NOÇÃO Objetivo da unidade: conhecer as características fundamentais da filosofia e a sua importância na formação humana. Conteúdos da unidade: 1) Filosofia: conceitos fundamentais. 2) Filosofia: a elaboração consciência crítica. 3) Filosofia: a busca pela sabedoria. 4) Filosofia: características fundamentais.Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 81 – Qual o instrumento próprio da Filosofia e qual o instrumento da Arte? – Explique, de maneira especial, o que você entende disso que a filosofia “decodifica” a realidade, e a arte a “codifica”? 2.5.2 Filosofia e arte: relação Em alguns momentos muito especiais, a filosofia e a arte se confundem, ou melhor, se fundem numa só obra (artística e filosófica). Esta fusão não se dá só a nível do objeto (que, já dissemos, pode ser sempre o mesmo), mas a nível da leitura que ambas fazem do objeto. São produções riquíssimas em reflexão e sensibilidade, que comprovam uma comunhão profunda de arte e de filosofia. São momentos em que o filósofo se expressa pela arte, exterioriza sua filosofia, sua leitura da realidade e a reflexão que faz sobre ela, através dos canais que a arte lhe proporciona: música, poesia, pintura, romances, etc. E, momentos em que o artista, na expressão de sua sensibilidade, na abrangência de sua leitura do real, não simplesmente codifica a realidade segundo seu próprio caráter artístico, mas faz desta produção de arte também uma produção filosófica, ou seja, expressa pela sua sensibilidade questões objetivas, que podem ser avaliadas sob o ponto de vista filosófico, que servem de reflexão, de crítica ao social. Quando esta comunhão é profunda, fica difícil de se saber se é uma obra de arte filosófica ou uma filosofia artística. São momentos, como já disse, raros de comunhão, onde a produção humana vai além das fronteiras da razão e da sensibilidade simplesmente. Ou pela emergência do objeto, ou pela contundência do real, ou ainda, pela grandeza de percepção do artista ou do filósofo, o resultado da obra produzida é de um valor sem medida para o conhecimento e para a cultura. Ao mesmo tempo que contribui filosoficamente (com suas considerações e reflexões) agrada e dá prazer (pela sua arte) àqueles que entram em contato com ela. No decorrer da história, muitos filósofos se utilizaram da arte para expressar sua filosofia. Ou ainda, podemos dizer que muitos artistas produziram pela sua sensibilidade e reflexão belíssimas obras filosóficas: Platão elaborou mitos de uma criatividade riquíssima para explicar sua filosofia, sua visão do homem e do mundo ( mito da caverna, dos dois corcéis ); Santo Agostinho utilizava-se também da Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 82 literatura, até mesmo de forma romanceada para expressar a sua filosofia (Confissões); Sartre escreveu belíssimos romances e peças teatrais para discutir a questão existencial que tanto o afligiu em sua produção filosófica (A Náusea, A Idade da Razão, O Diabo e o Bom Deus, Entre Quatro Paredes, etc. ).63 – Faça um comentário sobre o texto, isto é, sobre a comunhão entre a Arte e a Filosofia. – Você já leu alguma obra literária (da literatura brasileira, por exemplo) que lhe tocou a razão e a emoção? – Você já viu algum filme que lhe agradou e fê-lo refletir? • Indicação de leitura: MANDRIONI. Introducción a la filosofia. Buenos Aires: Kapelusz, 1969, p. 287-299. SCHIRATO, Maria Aparecida R. Iniciação à Filosofia. São Paulo: Moraes, 1987, p. 37-45. 63 SCHIRATO, Maria Aparecida R. Iniciação à Filosofia. São Paulo: Moraes, 1987, 41-42. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 83 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Rogério Miranda de. Eros e tânatos: a vida, a morte e o desejo. São Paulo: Loyola, 2007. ANTISERI, Dario. História da filosofia: filosofia pagã antiga. Vol. 1. São Paulo: Paulus, 2003. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda & MARTINS. Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo, Moderna, 2003. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo: Moderna, 1992. ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002. BERNARDINO, Paulo. Arte e tecnologia: intersecções. ARS (São Paulo). São Paulo, v. 8, n. 16, p. 39-63, 2010. CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 2020. CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995. CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2006. CORBISIER, R. Introdução à Filosofia. Tomo II, Parte 1. São Paulo: Civilização Brasileira, 1983. CUNHA, José Auri. Filosofia: iniciação à investigação filosófica. São Paulo: Atual, 1992. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. GALILEU GALILEI. O Ensaiador. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Coleção Os pensadores). HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830). São Paulo: Loyola, 1995. JAEGER, Werner. A formação do homem grego. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. KIERKEGAARD, Søren. Temor e tremor. São Paulo: Nova Cultural, 1979. (Os Pensadores). LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986 Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 84 MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 1980. NETO, H. Nielsen. Filosofia básica. São Paulo: Atual, 1986. OLIVEIRA, Admardo Serafim de et al. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo, Loyola, 2005. OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. São Leopoldo RS: SINODAL, 2007. POINCARÉ, Henry. A ciência e a hipótese. Brasília: Editora UNB, 1984, p. 115. SCANTIMBURGO, João de. Introdução à filosofia de Maurice Blondel. Rio de Janeiro: Faculdade da Cidade, 1997. SCHIRATO, Maria Aparecida R. Iniciação à filosofia. São Paulo: Moraes, 1987. TELES, Antonio Xavier. Introdução ao estudo da filosofia. São Paulo: Ática, 1985. UBALDO, Nicola. Antologia ilustrada de filosofia: das origens à idade moderna. São Paulo: Globo, 2005. VANUCCHI, Aldo. Filosofia e ciências humanas. São Paulo: Loyola, 1977. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 85 UNIDADE 03 – FILOSOFIA E A SUA PROBLEMÁTICA Objetivo da unidade: compreender os grandes temas da filosofia, suas divisões e os conceitos fundamentais da lógica, da teoria do conhecimento, da filosofia da ciência, da metafísica e da teodiceia. Conteúdos da unidade: 1) A temática filosófica e a Lógica 2) Teoria do Conhecimento 3) Filosofia da Ciência e Filosofia da Linguagem 4) Metafísica 5) Teodiceia 3.1 A TEMÁTICA FILOSÓFICA Foi dito anteriormente que a filosofia é a ciência da universalidade: quer dizer, a sua temática é universal. A filosofia não tem um campo restrito e particular, como as outras ciências, mas é a ciência do todo: qualquer coisa que envolva um questionamento mais profundo, mais radical (que vai às raízes, às causas) é tema da filosofia. É claro que isto não nos satisfaz: fica bastante vago para nós. Queremos saber mais precisamente do que propriamente trata a filosofia, quais são os seus temas ou assuntos principais. Queremos ter uma ideia do seu conteúdo, como ela se ramifica ou qual a divisão dos seus assuntos. 03 Unidade 04 – Antropologia 86 Para formarmos uma ideia mais clara sobre a temática filosófica, vamos partir de um filósofo, o primeiro filósofo “universalista”, Aristóteles. Aristóteles delineou a filosofia no que se refere à sua temática – para todos os tempos. Aristóteles escreveu muito e das suas obras nós podemos tirar a ideia de quais são os assuntos filosóficos, qual o campo próprio da filosofia. As grandes obras de Aristóteles são assim classificadas: a) Organon — que é um conjunto de escritos reunindo “Analítica Primeira”, “Analítica Posterior” e “Tópicos”, e que trata sobre o pensamento e os conhecimentos humanos. b) Metafísica — que também é uma reunião de escritos menores e que trata sobre o ser em geral. Essa é uma parte de muita importância na filosofia de Aristóteles, que ele chama de“filosofia primeira”. c) Física - também um conjunto de escritos que trata do mundo material, físico, a natureza. d) Sobre a Alma — um livro que trata do homem, mais particularmente do que é considerada a própria essência do homem a alma. e) Ética a Nicômaco — trata sobre a ação humana (“filosófica prática”), no aspecto do bem e do mal. f) Política — reunindo 8 livros, trata da vida pública-social humana. g) Poética — trata da produção humana, sob o aspecto do belo (arte). Das obras aristotélicas podemos, portanto, divisar quais são os assuntos centrais da filosofia: o conhecimento humano, o ser, o ser físico- material, o ser humano, a vida pública-social, a ação humana, o bem o mal, o belo. Estes são, na verdade, os assuntos recorrentes da filosofia: eles são antigos e sempre novos; antigos, porque pertencem essencialmente ao homem, em qualquer tempo ou lugar, e sempre novos, porque reaparecem em novos contextos e novas situações. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 87 3.1.1 A divisão da filosofia A filosofia tem seus assuntos fundamentais já consagrados: eles refletem justamente as preocupações fundamentais da humanidade e sua necessidade de compreender mais profundamente a realidade (externa e interna). Esses assuntos, como já observamos, são fundamentalmente os mesmos. O que varia é a perspectiva, o enfoque, o modo de tratá-los e, mais especificamente, varia a denominação que se dá a uma determinada área filosófica (“Ética” - “Filosofia Moral”). Pode-se dividir a filosofia de diversas maneiras e toda a divisão é relativa, pois depende de uma época, das preocupações de um determinado tempo e até do alcance ou conceito que se dá à “filosofia” (cf. os manuais citados). Tendo em conta, pois, que toda a divisão ou classificação da filosofia é relativa, fixaremos uma divisão para nós, com o intuito de posteriormente fazermos uma breve introdução a cada uma das partes ou a cada um dos temas da filosofia. Toda a imensa área da filosofia pode ser dividida em 3 grandes campos: o conhecimento, o ser e a ação. Às partes que tratam destas questões denominaremos respectivamente de Gnosiologia (conhecimento), Metafísica (ser) e Axiologia (ação). • O conhecimento pode ser considerado sob diferentes aspectos: — o conhecimento em si, considerado internamente, antes como pensamento, sua estrutura, suas regras. É a temática da Lógica. — o conhecimento considerado externamente, isto é, em referência a um objeto: Teoria do Conhecimento. Há ainda considerações mais específicas sobre o conhecimento: — o conhecimento científico, seus fundamentos: Filosofia da Ciência. — o conhecimento comunicado, por meio, ou intermediação linguística: Filosofia da Linguagem. Unidade 04 – Antropologia 88 • O campo do ser abrange os seguintes aspectos: — o ser em si, ser em geral, sua estrutura e seus fundamentos: Metafísica Geral (Ontologia). — tratação de setores específicos do ser. É a Metafísica Especial, que se subdivide: — o ser absoluto: Teodicéia. — o ser homem: Antropologia Filosófica. — o ser físico-material: Cosmologia. • A ação ou produção humana no mundo é o terceiro campo da Filosofia: aquilo que o espírito humano produz no seu existir no mundo. São diversos aspectos: — princípios e regras de conduta, costumes e atitudes: a Ética. — produção da emotividade humana, criação artística: a Estética. — relações com o seu semelhante, vida comunitária: Filosofia Social (Política). — relações com a transcendência, a vida religiosa: Filosofia da Religião. — produção transformadora do meio, a cultura: Filosofia da Cultura. — desenvolvimento humano no espaço e no tempo, a história: Filosofia da História. De toda essa classificação formamos o seguinte quadro: 1. Gnosiologia Lógica, Teoria do Conhecimento, Filosofia da Ciência, Filosofia da Linguagem. 2. Metafísica Metafísica Geral (Ontologia) Metafísica Especial: Teodicéia, Antropologia Filosófica, Cosmologia. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 89 3. Axiologia Ética Estética Filosofia Social Filosofia da Religião Filosofia da Cultura Filosofia da História Além do esquema acima, que trata dos temas mais centrais da filosofia, há ramos mais específicos e especializados (como nas ciências): • Filosofia da Educação • Filosofia do Direito Ou muito específicos: Filosofia da Matemática. 3.1.2 Lógica O conhecimento humano pode ser considerado sob vários aspectos. Um primeiro aspecto do conhecimento é a sua forma interna. Melhor dizendo: é o conhecimento como pensamento, como uma operação estritamente mental. A ciência filosófica que tem por objeto o pensamento como uma operação mental simplesmente é a Lógica. No nosso linguajar cotidiano, usamos com muita frequência a palavra ‘lógica”. Assim dizemos: “mas é claro, é lógico” ou “que falta de lógica!”, “a tua conversa não tem lógica”. Quando estamos falando de “lógica”, estamos nos referindo a um pensamento correto, à coerência de raciocínio. É justamente disso que trata a Lógica, disciplina filosófica: do pensamento correto, da coerência de raciocínio. Note-se que a mente ou a inteligência humana é naturalmente lógica. A inteligência já é estruturada naturalmente para pensar de uma forma organizada, coerente. Então não é preciso estudar filosofia (Lógica) para pensar logicamente. O homem da roça pensa logicamente. Unidade 04 – Antropologia 90 A filosofia, no caso a disciplina filosófica chamada “Lógica”, tem por objetivo estudar de modo científico o funcionamento da inteligência, o modo de pensar, sua estrutura e expressão, enfim, o raciocínio. Normalmente, há falta de lógica em 3 situações: — por patologia mental. — por situações emocionais (quando temos fortes emoções, o nosso raciocínio não funciona; quando não gostamos de alguém costumamos faltar à lógica). — por falta de consciência e atenção (às vezes não nos damos conta de que não somos lógicos). Então, a Lógica como ciência filosófica refere-se à terceira situação, pode corrigir este aspecto. Segundo Sextus Empiricus, a palavra “Lógica” teria sido empregada, pela primeira vez, não por Aristóteles, mas pelo acadêmico Xenócrates. De acordo com D. Ross, Alexandre foi o primeiro escritor a empregar o termo ‘Logiké’, no sentido de lógica. O termo utilizado por Aristóteles, para designar o estudo do raciocínio, é ‘analítico’. O Estagirita, no entanto, embora possa não ter sido o primeiro a empregar o vocábulo, é unanimemente reconhecido como o fundador da Lógica, seu maior título de glória. No séc. II d.C., Alexandre de Afrodísia reuniu as obras lógicas de Aristóteles sob a designação geral de ‘Organon’, com a qual passaram a ser conhecidas. O Organon aristotélico inclui os seguintes tratados: Categorias, Da Interpretação, Primeiros Analíticos, Segundos Analíticos, Tópicos e Argumentos Sofísticos. A seqüência desses tratados corresponde à divisão do objeto da Lógica, que estuda as três operações da inteligência, o conceito, o juízo e o raciocínio.64 Percebe-se a importância da sistematização aristotélica para o estudo da estruturação do pensamento humano. “A Lógica de Aristóteles, aquela de suas obras que tem por título Organon, não só é a primeira sistematização na filosofia ocidental, como foi, durante muitos séculos, padrão, modelo e texto permanente”.65 64 CORBISIER, Roland. Enciclopédia filosófica. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 166. 65 ALMEIDA, Vieira de. Introdução à Filosofia. Coimbra: Almedina, 1981, p. 107. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 91 Para revisar: — quem usou pela primeira vez a palavra “lógica”? — quem é considerado o fundador da Lógica? — com que obras? Qual é o nome geral dessas obras? — que estuda a Lógica de Aristóteles (as 3 operações da inteligência)? — qual foi a importância da Lógica de Aristóteles? 3.1.3 Lógica uma ciência formal: objeto de estudo De acordocom São Tomás:“A Lógica é uma ciência racional, não só porque procede da razão, característica comum de todas as artes e de todas ciências, mas também porque tem o próprio ato da razão como matéria de seu estudo”.66 O objeto da Lógica é, pois, a razão, o estudo da razão, sua estrutura, seu funcionamento. Mais precisamente, diz São Tomás, que a matéria de estudo da Lógica é o “ato próprio da razão”. E qual é o “ato próprio da razão”? É o pensamento. A filosofia pergunta, pois, se o pensamento obedece ou não a regras, possui ou não normas, princípios e critérios para seu uso e funcionamento. Para Corbisier, a “lógica é a ciência ou propedêutica científica, que tem por objetivo o estudo da razão, entendida como pensamento e como palavra, e a determinação de suas formas e de suas leis”.67 A lógica é também definida como “a ciência do pensamento formal”. “Formal”, significa aqui o pensamento em si, independentemente de sua referência à realidade. “A Lógica formal distingue os raciocínios verdadeiros dos raciocínios falsos, independentemente do seu conteúdo. Não 66 TOMÁS DE AQUINO. Comentario de los Analíticos Posteriores de Aristóteles. Trad. de Ana Mallea e Marta Daneri-Rebok. Pamplona: EUNSA, 2002, 1. 67 CORBISIER, Roland. Enciclopédia filosófica. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 166. Unidade 04 – Antropologia 92 se preocupa com a matéria sobre a qual se apóia o raciocínio, mas apenas com a forma”.68 Trata-se das “formas” de pensar e não do conteúdo do pensar. A Lógica trata da correção do pensamento e não da sua verdade: se um pensamento é correto e não se é verdadeiro. Para entendermos melhor o que significa “formal”, vejamos um exemplo de dois silogismos: “Todos os homens são mortais. Pedro é homem. Logo, Pedro é mortal”. A Lógica é clara: se afirmamos um atributo de um todo e um indivíduo pertence a este todo, então necessariamente o indivíduo terá esse atributo. “Todos os alunos do 1º Ano são paranaenses. O Cícero é aluno do 1º Ano. Logo, Cícero é paranaense. O raciocínio acima sob o aspecto formal está correto; mas sob o aspecto material não. Se é verdadeiro é preciso verificar. 3.1.4 Lógica: uma ciência propedêutica e o seu conteúdo A Lógica não é considerada como propriamente uma parte da Filosofia, mas uma condição para a Filosofia. Assim era para Aristóteles e assim para S. Tomás. É uma condição não só da Filosofia, mas de toda e qualquer ciência. Todas as ciências pressupõem um bom uso do raciocínio, portanto, pressupõem a Lógica. 68 CHARBONEAU, Paul-Engene. Curso de Filosofia. Lógica e Metodologia. São Paulo: EPU, 1986, p. 19. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 93 Para Aristóteles, a Lógica não é propriamente uma ciência mas um instrumento, um organon, do qual todas as ciências se utilizam, uma propedêutica de qualquer ramo do conhecimento epistemológico. De fato, o conhecimento só é científico, ou epistemológico, quando, além de universal, é também metódico e sistemático, quer dizer, lógico. Distinguindo-se das demais ciências, a Lógica se apresenta não só como método, ou “caminho”, que as ciências trilham para encontrar e conhecer seu objeto, mas também como característica geral ou “forma” do conhecimento científico.69 “A Lógica, de certo modo, mais que ciência filosófica, é um instrumento introdutório e necessário para a filosofia e as ciências” (“non est tam scientia quam scientiae instrumentum”São Tomás: in Metaph. I, 1 [32]; I,3 [57]). Assim, Para Aristóteles, a lógica não era uma ciência teorética, nem prática ou produtiva, mas um instrumento para as ciências. Eis por que o conjunto das obras lógicas aristotélicas recebeu o nome de Órganon, palavra grega que significa instrumento. Um estudioso do Órganon verá que a lógica aristotélica possui as seguintes características: • instrumental: é o instrumento do pensamento e da linguagem para pensar e dizer corretamente a fim de verificar a correção do que está sendo pensado e dito; • formal: não se ocupa com os conteúdos pensados ou com os objetos referidos pelo pensamento, mas apenas com a forma pura e geral dos pensamentos, expressos por meio da linguagem; • propedêutica ou preliminar: é o que devemos conhecer antes de iniciar uma investigação científica ou filosófica, pois somente ela pode indicar os procedimentos (métodos, raciocínios, demonstrações) que devemos empregar para cada modalidade de conhecimento; • normativa: fornece princípios, leis, regras e normas que todo pensamento deve seguir se quiser ser verdadeiro; • doutrina da prova: estabelece as condições e os fundamentos necessários de todas as demonstrações. Dada uma hipótese, permite verificar as consequências necessárias que dela decorrem; dada uma conclusão, permite verificar se é verdadeira ou falsa; 69 CORBISIER, Roland. Enciclopédia filosófica. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 167. Unidade 04 – Antropologia 94 • geral e temporal: as formas do pensamento, seus princípios e suas leis não dependem do tempo e do lugar, nem das pessoas e circunstâncias, mas são universais, necessárias e imutáveis.70 Com relação ao conteúdo da lógica, podemos sintetizar nos seguintes pontos: a) elementos lógicos: conceito, juízo, raciocínio; — conceito: apreensão mental de um objeto (também nominado “simples apreensão”); — juízo: união de dois conceitos (os juízos podem ser afirmativos, negativos, contrários, contraditórios); — raciocínio: é a união de juízos. O raciocínio na Lógica chama-se ‘silogismo”. Há uma variedade de tipos de silogismos e suas regras. Exemplo: “Todos os homens são vertebrados. Ora, eu sou vertebrado, Logo, eu sou homem”. Aparentemente o silogismo está correto, mas formalmente está errado, segundo as regras do silogismo. Para conferir, vamos mudar um termo: “Todos os homens são vertebrados, Ora, o meu cão é vertebrado Logo, o meu cão é homem”. b) Processos lógicos: definição, classificação, indução, dedução, analogia.71 70 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2006, p. 183. 71 Ainda sobre a definição leia: GILES, Thomas Ransom. Curso de iniciação à filosofia: ramos fundamentais da filosofia: lógica, teoria do conhecimento, ética, política. São Paulo: EPU, 1995, p. 16-17. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 95 c) Princípios lógicos: princípio de contradição, princípio de identidade, princípio de exclusão do terceiro termo, princípio de razão suficiente. 3.1.5 Lógica Matemática: lógica Simbólica ou logística No final do século passado pretendeu-se construir um novo tipo de Lógica que deveria ser puramente científica, totalmente desvinculada da Filosofia: a Lógica simbólica (matemática), formulada por George Boole (Laws of Thought - 1854) e Gottlob Frege (1879), e que foi mais elaborada por Alfred North Whitehead, Bertrand Russel e muitos outros. A lógica simbólica tem por objetivo estudar os processos que se fazem em qualquer ciência, sobretudo os processos de indução e dedução, e que são expressos por intermédio de uma, forma, artificial, matemática linguagem. Pretende-se demonstrar que as operações mentais podem ser reduzidas a cálculos (por isso chama-se “matemática”), os quais podem ser caracterizados por intermédio de símbolos da linguagem (por isso chama-se “simbólica”). Faz das operações mentais como que operações algébricas. • Indicação de leitura: ANZENBACHER, Arno. Introducción a la Filosofia. Barcelona: Herder, 1983, p. 185-208. ARANHA, Maria Lúcia Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo, Moderna, 2003, p. 96-107. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 2006 , p. 179-205. CORBISIER, R. Enciclopédia Filosófica, p. 166-176. COTRIM, Gilberto. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 303-313. FERRATER MORA, J., Diccionário de Filosofia, vol. 3, 2002-2015. GILES, Thomas Ransom. Ramos Fundamentais da Filosofia:lógica, teoria do conhecimento, ética, política. São Paulo, EPU, 1995, p. 11-56. MORUJÃO, A. F. “Lógica”. In: Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 3. Lisboa: Editorial Verbo, 1992, col. 444-456. Unidade 04 – Antropologia 96 OLSCAMP, Paul, J. Introdução à Filosofia. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1980, p. 3-92. SOUZA ALVES, V. de. “Lógica Matemática”. In: Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 3. col. 459-473. TELES, Antônio Xavier. Introdução ao Estudo da Filosofia. São Paulo: Ática, 1985. p.153-157. TOBIAS, José Antonio. Iniciação à Filosofia. Presidente Prudente, Editora do Unoeste, 1986, p. 27-52. 3.2 TEORIA DO CONHECIMENTO O conhecimento — uma operação mental tão comum, tão usual, mas, olhando mais de perto, tão complexa, tão misteriosa! Que é conhecer? A princípio poderíamos dizer que conhecer é como tirar fotografias da realidade. Que é fotografia? É uma imagem, uma semelhança com a realidade, mas não é a realidade (você não pode conversar com a pessoa da foto, pode perfurar que não acontece nada). Assim é o conhecimento: tem a ver alguma coisa com a realidade, mas não é a própria realidade. Adiante: a fotografia é um processo químico. O conhecimento é um processo químico no cérebro? A princípio, as nossas sensações visuais são como uma máquina fotográfica (lente-cristalino, retina-filme). Mas é algo a mais: os nossos conhecimentos não são só imagens; são ideias, relações. Que significa conhecer, afinal? É evidente que no conhecimento, o eu — o “sujeito” — trava uma relação com uma realidade fora dele — o “objeto”. Mas qual é a natureza dessa relação? Parece que o sujeito “transporta” o objeto para dentro de si. Mas o que mesmo do objeto está em mim? É o objeto mesmo ou sua aparência apenas? O que a “ideia” tem do objeto? No fim do questionamento sobre o conhecimento está a pergunta sobre a verdade. O que é verdade? O homem é capaz de verdade? Eis a problemática do conhecimento que é tratada na disciplina Teoria do Conhecimento (ou ainda, “Crítica do Conhecimento” ou “Gnosiologia”). Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 97 TEORIA DO CONHECIMENTO DIFERENCIAÇÃO DA LÓGICA — A Lógica trata do conhecimento em si, internamente (melhor dizendo: do pensamento), sua estrutura, sua correção, sem considerar a sua referência a um objeto. — A Teoria do Conhecimento trata do conhecimento enquanto referido a um objeto. — A Lógica trata do conhecimento (pensamento) no aspecto formal (forma, estrutura), sem ater-se propriamente a seu conteúdo. — A Teoria do conhecimento trata do conhecimento no aspecto material, isto é, seu conteúdo. Mais simplesmente: — A Lógica trata do pensamento (pois, “pensamento” é sempre uma operação mental). — A Teoria do Conhecimento trata do conhecimento (pois o conhecimento é sempre objetivo, sempre o conhecimento de alguma coisa). 3.2.1 A problemática do conhecimento: um pequeno histórico O tema do conhecimento constante à História da Filosofia, desde o seu início, mas adquiriu enorme peso na época moderna, principalmente no Racionalismo, Empirismo e, especialmente, em Kant, que questionou a fundo o conhecer humano na sua obra Crítica da Razão Pura. Para Platão, o conhecimento sensível é apenas ocasião para a inteligência recordar os conhecimentos que já possuía, visto que a alma se origina do “Mundo das Ideias”, caindo depois num corpo material que a escraviza e obscurece. A filosofia aristotélica é mais realista: a inteligência é fundamentalmente uma “tabula rasa”, sem nenhum conteúdo, e todo o conhecimento é adquirido. Ele é adquirido através da experiência (nihil est in intellectu quod prius in sensibus non erat72). O conhecimento sensível fornece a imagem ao “intelecto ativo” que ilumina a imagem captando a sua “forma”, isto é, o essencial, formando assim o conceito abstrato. O conceito 72 Tradução: Nada está no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos. Unidade 04 – Antropologia 98 é diferente da imagem sensível: esta é material e sempre do singular, o conceito é abstrato e sempre universal. Através dos conceitos a inteligência faz a ciência (unindo-os em juízos e representados em proposições e raciocínios). A filosofia tomista segue o aristotelismo nesse ponto. No início da época moderna, Descartes (Racionalismo) desconfiou da experiência sensível: esta, por si só, não nos fornece nenhuma certeza confiável. Há em Descartes uma volta ao platonismo: nossa inteligência possui conteúdos próprios, independentes e anteriores à experiência (estas são: a existência do ego, a alma, Deus, o mundo, além das ideias matemáticas). Essas ideias próprias da inteligência são o fundamento de toda a certeza. Ao Racionalismo se opõe o Empirismo (Hobbes e sobretudo Hume). O Empirismo revaloriza o aristotelismo: a nossa mente é de fato uma “tabula rasa”, e todo o nosso conhecimento provém da experiência sensível. Mas, em diferença da filosofia clássica, o nosso conhecimento é só conhecimento sensível, empírico. No aristotelismo-tomismo o conhecimento sensível fornece o material para um conhecimento de nível diferente, o conhecimento intelectivo-espiritual. No Empirismo, a inteligência não é uma faculdade superior, mas é a memória que armazena e associa mecanicamente as imagens sensíveis. O conceito é apenas associação-reunião de diversas imagens. Immanuel Kant (século XVIII) faz uma síntese do Racionalismo e Empirismo: o nosso conhecimento tem elementos tanto a posteriori (isto é, tirados da experiência), como a priori (isto é, próprios da mente). Começando pelo conhecimento sensível: os sentidos fornecem-nos algo vago e indefinido, chamado ‘fenômeno”. A nossa sensibilidade tem duas “formas” a priori que enquadram esse material que vem dos sentidos: são o tempo e o espaço, duas formas em si só “vazias”, mas que servem para perceber o mundo externo, fornecido pelos sentidos. Daí o entendimento constitui e organiza o que nos é fornecido pelo conhecimento sensível. Mas de novo aqui existe um elemento a priori, isto é, as categorias do entendimento. São em número de doze: unidade, pluralidade, totalidade, realidade, negação, limitação, substancialidade, causalidade, reciprocidade, possibilidade, existência e necessidade ), que são em si só “vazias” e que adquirem conteúdo com o que vem de fora, isto é, do conhecimento sensível. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 99 Vemos, portanto, como Kant é uma síntese: o nosso conhecimento é ao mesmo tempo objetivo (porque seu conteúdo vem de fora) e subjetivo (porque a mente acrescenta algo de próprio ao que vem de fora). O nosso conhecimento é dos fenômenos, mas estes fenômenos são elaborados pelo entendimento. Outra coisa importante em Kant: o nosso conhecimento é só dos “fenômenos”, isto é, das aparências das coisas, como elas se manifestam ao cognoscente. Não conhecemos as coisas em si, “noumenon”. Muito menos conhecemos as coisas que não são fenomênicas, isto é, que não são colhidas pelos sentidos, p.ex., Deus, bem-mal, alma, etc. Após Kant, toda a filosofia é opção dessas posições que citamos, sendo que o Idealismo é o máximo do Racionalismo e o Materialismo o máximo do Empirismo. 3.2.2 Teoria do conhecimento: objeto O objeto geral da Teoria do conhecimento é a investigação do ato de conhecer humano, mas esta investigação envolve vários aspectos ou vários pontos. Esses aspectos são: — a possibilidade do conhecimento. — a essência ou natureza do conhecimento. — a origem do conhecimento — as fontes do conhecimento — as espécies de conhecimento, etc. Todos esses aspectos estão, no entanto, correlacionados, interdependentes entre si. Assim, segundo Teles:“Teoria do Conhecimento vem a ser o estudo reflexivo e crítico da origem, da natureza, dos limites e do valor do conhecimento”.73 A Gnosiologia (gr. “gnosis” = conhecimento + “logia” = ciência) estuda a essência do conhecimento,a possibilidade de conhecer a realidade, as origens ou fontes do conhecimento, as formas ou espécies em que se 73 TELES, A. X. Introdução ao estudo da filosofia. São Paulo: Ática, 1985, p. 66. Unidade 04 – Antropologia 100 reveste o conhecimento, bem como a validade do conhecimento em geral, isto é, o que é a verdade e qual o seu critério.74 3.2.3 Possibilidade do conhecimento A primeira questão, pois, em relação ao conhecimento é sobre a sua possibilidade. Podemos conhecer as coisas ou não? Conhecemos ou nos enganamos? A nossa mente é capaz de atingir as coisas ou atinge só a si mesma? As posições em torno da questão são muito variadas, conforme a intensidade do “não” ou do “sim”. — A posição filosófica que nega a possibilidade do conhecimento é chamada de ceticismo. O ceticismo absoluto é autocontraditório. — A posição positiva frente à capacidade de conhecer podemos chamá-la de realismo. É assim, por exemplo, a posição de Aristóteles ou de São Tomás e de muitos outros: a capacidade da nossa mente é positiva, podemos conhecer as coisas em si. Mas mesmo nessa posição, admite-se um trabalho da mente: no caso de Aristóteles e de São Tomás, esse trabalho é o de abstração. A mente conhece por abstração. Uma posição intermediária é a de Kant: O mundo fenomênico que conhecemos é um mundo formado pela nossa consciência. Nunca podemos conhecer como o mundo está constituído em si, pois logo que tratarmos de conhecer as coisas, introduzimo-las, por dizer, nas formas a priori da consciência. Desta maneira não temos perante nós a coisa em si, o númeno, mas a coisa como se nos apresenta ou seja, o fenômeno.75 Outra questão intimamente conexa com esta é a questão da essência ou natureza do conhecimento. 74 BAZARIAN, J. O Problema da Verdade. Teoria do Conhecimento. São Paulo: Alfa e Omega, 1985, p. 41. 75 BAZARIAN, J. O Problema da Verdade. Teoria do Conhecimento. São Paulo: Alfa e Omega, 1985, p. 79. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 101 3.2.4 Essência ou natureza do conhecimento No plano gnosiológico estuda-se a essência do conhecimento e da relação cognoscitiva do sujeito com o objeto, e indaga-se qual o fator primário e determinante no conhecimento humano: o objeto ou o sujeito? A realidade ou a consciência? É a consciência um reflexo e reprodução do objeto, ou, ao contrário, o objeto é um reflexo e uma reprodução de nossa consciência? É a consciência determinada pelos objetos e suas propriedades, ou estas são produzidas pela nossa consciência?76 As respostas a essas questões dividem duas posições filosóficas: o idealismo e o realismo, que encerram inúmeras variantes. Em suma, o idealismo afirma que a consciência cria o objeto, e o realismo afirma que a consciência reflete ou reproduz o objeto. Essa questão é, talvez, a mais fundamental em relação ao conhecimento. No que, de fato, consiste o conhecimento? É representação ou constituição da realidade? O objeto que está na nossa consciência reflete o objeto real, ou é ele inteiramente criado pela nossa mente? Somos neutros perante o objeto ou nós criamos o objeto? 3.2.5 Origem ou fontes do conhecimento O conhecimento tem sua origem na experiência ou no puro pensamento? Ou na combinação dos elementos de ambas as fontes: experiência sensível e razão? Eis as alternativas que colocam as principais teorias acerca da origem do conhecimento humano. Platão dizia que a alma possui em si todas as ideias. O Empirismo considera que a fonte única do conhecimento é a experiência sensível; adota ao pé da letra o ditado: “nihil est in intellectu quod prius in sensibus non erat”77. O Racionalismo e o Idealismo admitem que o verdadeiro conhecimento provém unicamente da razão. 76 BAZARIAN, J. O Problema da Verdade. Teoria do Conhecimento. São Paulo: Alfa e Omega, 1985, p. 53. 77 Tradução: Nada está no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos. Unidade 04 – Antropologia 102 O intelectualismo aristotélico-tomista faz uma síntese entre as duas coisas: a fonte primária do conhecimento é a sensação, mas a inteligência elabora a sensação, produzindo um conhecimento de nível essencialmente diferente, o conhecimento intelectual. O apriorismo kantiano faz igualmente uma síntese entre os dois elementos, embora sob uma perspectiva inteiramente diferente da filosofia aristotélico-tomista. 3.2.6 Espécies (ou formas) de conhecimento A filosofia clássica distinguia duas espécies de conhecimento: a) O conhecimento sensível (chamado às vezes de “intuição sensível”: é a percepção direta dos objetos através de imagens sensíveis; sempre concreto e individual. b) O conhecimento intelectual (ou intelectivo): é por abstração, sempre universal, mediado por conceitos. O conhecimento intelectual inicia- se com o conhecimento sensível, mas o supera por operações próprias da inteligência. É o que constitui a ciência (“a ciência é dos universais”). Algumas filosofias (Bergson, Scheler, Husserl e outros) propõem um terceiro modo de conhecer. Além dos sentidos e da inteligência, não haveria um modo de conhecer, de caráter espiritual, mas trans-intelectual (porém não sobrenatural), que permite ao homem colher a realidade em toda a sua riqueza? Teríamos então: c) O conhecimento intuitivo: imediato e unitário (que não fragmenta a realidade em conceitos). Mais do que “conhecer”, seria um “sentir” um objeto, “entrar dentro” dele (etimimologia “intra+ire”). Bergson o define assim: “chamamos de intuição a simpatia por meio da qual nos transportamos para o interior de um objeto a fim de coincidir com o que ele possui de único e, pois, de inexprimível”.78 O conhecimento intuitivo já era proposto na filosofia medieval: Santo Agostinho fala da illuminatio, conhecimento por iluminação. E muitos o seguem. 78 BAZARIAN, J. O Problema da Verdade. Teoria do Conhecimento. São Paulo: Alfa e Omega, 1985, p. 181. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 103 A filosofia aristotélico-tomista recusa, porém, a intuição: o conhecimento intuitivo simplesmente não existe: o nosso conhecer é sempre parcial, fragmentário, muito mais pobre que a realidade. São Tomás fala da “visão beatífica”, na outra vida, quando perceberíamos as coisas na sua totalidade, sem nenhum esforço. • A verdade Todos os problemas, até aqui examinados e relativos à origem, à possibilidade, ao alcance, às formas e à essência do conhecimento humano, objetivam, em última instância, o problema da verdade. Todo o esforço do pensamento humano se exerce no sentido de descobrir a verdade. Tanto no ato do próprio pensar, quanto no agir, tanto no conhecimento vulgar como na Ciência e na Filosofia. Mas aparece, como problema preliminar à própria verdade, o problema dos critérios que possam certificar a certeza e a verdade.79 • Indicação de leitura: AMADO, João - GAMA, João - MORÃO, Artur. O Prazer de Pensar - 11º Ano de Filosofia, p. 13- 64 (obs. há aqui bons textos para analisar!). ANZENBACHER, Arno. Introducción a la Filosofia. Barcelona: Herder, 1983, p. 144-175. ARANHA, Maria Lúcia Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo, Moderna, 2003, p. 165-184. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 1991, p. 47-88. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 2006, p. 109-178; 90-108. GILES, Thomas Ransom. Ramos Fundamentais da Filosofia. São Paulo: EPU, 1995, p. 57-62. LUCKESI, Cipriano Carlos - SILVA PASSOS, Elizete. Introdução à filosofia, p. 13-69. 79 MARTINS, J. Salgado. Preparação à filosofia. Porto Alegre: Globo, 1981, p. 68. Unidade 04 – Antropologia 104 MANDRIONI. Introducción a la filosofia. Buenos Aires: Kapelusz, 1969, p. 108-126. MARTINS, João Batista. Questões fundamentais da filosofia. São Paulo: Fesan, 1983, p. 67-83. MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras.São Paulo: Paulus, 1980, p. 19-34. RAIMUNDO DOS SANTOS, Antonio in aavv. Para Filosofar, São Paulo, Scipione, 1995, p. 22-40. REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. São Paulo, Saraiva, 1989, p. 65- 134. TELES, Antônio Xavier. Introdução ao Estudo da Filosofia. São Paulo: Ática, 1985. p.65-74. 3.3 FILOSOFIA DA CIÊNCIA (EPISTEMOLOGIA) Um ramo especializado da Gnosiologia é a Filosofia da Ciência, também chamada às vezes de Espistemologia. Como o nome indica, Filosofia da Ciência tem por objeto a ciência experimental e é uma reflexão crítica sobre os fundamentos do saber científico. 3.3.1 Filosofia da ciência: contexto histórico A Filosofia da Ciência veio a desenvolver-se a partir dos anos 20 do século XX, sobretudo no movimento chamado neopositivismo. O neopositivismo, representado principalmente pelo “Círculo de Viena” (Rudolf Carnap, Moritz Schlick, Hans Reichenbach), seguindo o positivismo clássico de Augusto Comte (século XIX), afirmava que o conhecimento científico, fundamentado sobre a experiência empírica, é o único conhecimento válido. O “princípio da verificação” é critério da significância, que delimita a esfera das “proposições sensatas” (científicas) e “proposições insensatas”, que são apenas expressões de nossas emoções. A única função da filosofia é, então, tratar das proposições sensatas, cuidar que Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 105 a ciência se estabeleça sobre bases rigorosas. A única filosofia possível é, então, a Filosofia da Ciência, com a sua “atividade clarificadora da linguagem (científica). Karl Popper (1902-1994) investe com veemência contra as teses do “Círculo de Viena”, sua concepção da ciência, sua negação da metafísica. Popper põe em cheque os princípios fundamentais da ciência, dizendo que “a indução não existe e a concepção oposta é grande erro”. Analisando os pressupostos da ciência, Popper faz ver que não há um conhecimento científico puro e que a nossa mente não é uma pura “tabula rasa”, mas em toda a experimentação existem preocupações, expectativas e ideias prévias. Popper também nega a tese de que só as proposições verificáveis (experimentais) são dotadas de sentido. Enfim, Popper defende que a ciência é importante, mas nunca pode ser dogmática e erigir-se a dona exclusiva da verdade; muito menos, a ciência pode atender a todas as necessidades humanas e não é a única possibilidade do homem. Após Popper, muitos outros filósofos dedicaram-se à investigação sobre os fundamentos da ciência e à relação entre as ciências e outras dimensões culturais humanas: por exemplo, Gaston Bachelard, Thomas Kuhn, Larry Laudan, Alexander Koyré e outros. 3.3.2 Filosofia da ciência: problemática A Gnosiologia é uma disciplina que se ocupa com o conhecimento humano em geral, enquanto Epistemologia deve ocupar-se só com o conhecimento científico e seu método. Foi na segunda parte do século XIX que a Epistemologia ganhou corpo como disciplina filosófica e é atualmente uma das disciplinas mais importantes, Epistemologia é a disciplina filosófica que se ocupa com a forma da ciência. Ela indaga sobre as afirmações científicas; por isto mesmo ela é uma reflexão crítica, de estilo filosófico, sobre tudo o que a ciência faz. Ela é, por conseguinte, uma Filosofia da Ciência. Ela indaga sobre os critérios de cientificidade e sobre o método científico. Delimitar o campo das ciências experimentais e das não-experimentais, avaliar criticamente a natureza e o valor do conhecimento científico, analisar e discutir seus princípios, bem como os elementos metodológicos Unidade 04 – Antropologia 106 usados na sua construção, discutir a linguagem usada na ciência, etc., estão entre as principais tarefas da Epistemologia.80 Enfim, os temas fundamentais da Filosofia da Ciência são os seguintes: — o método da pesquisa científica. — os elementos fundamentais da ciência, tais como: observação, hipótese, verificação, lei, teoria. — a natureza das teorias científicas e sua capacidade de explicar a realidade. — o papel cultural e social da ciência — ciência e ideologia. — ciência e outras dimensões da cultura humana: ciência e filosofia, ciência e arte, ciência e religião. • Indicação de leitura: AMADO, João; GAMA, João; MORÃO, Artur. O Prazer de Pensar - 11º Ano de Filosofia, p. 65-152; 283-326. ARANHA, Maria Lúcia Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo, Moderna, 2003, p. 116-205. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 2006, p. 247-286. COTRIM, Gilberto. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 193-209. CUNHA, José Auri. Iniciação à Investigação Filosófica. São Paulo: Atual, 1992, p. 86-99. GILES, Thomas Ransom. A filosofia e as ciência exatas ou naturais. São Paulo: EPU, 1995. MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 1980, p. 28-33. NIELSEN NETO, Henrique. Filosofia básica, p. 6-37. 80 OLIVEIRA, Admardo Serafim de. Introdução ao Pensamento Filosófico. São Paulo, Loyola, 1990, p. 195-966 Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 107 OLIVEIRA, Admardo Serafim de e o. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Loyola, 1990, 4ª ed., p. 189-201. OLSCAMP, Paul J. Introdução à Filosofia. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos, 1980, p. 415-459. 3.3.3 Filosofia da linguagem 3.3.3.1 Filosofia da linguagem: contextualização Da mesma forma que a Filosofia da Ciência, também a Filosofia da Linguagem é um ramo recente da Filosofia. Embora houvesse interesse pela linguagem humana em épocas anteriores (por exemplo, os gregos: o homem — “zoon logistikon”), foi na segunda metade deste século XIX que a investigação filosófica interessou-se mais de perto pelo fenômeno da linguagem, a tal ponto que certas correntes fizeram da linguagem o único prisma da filosofia (toda a filosofia é análise da linguagem). A Filosofia da linguagem veio a desenvolver-se após o amadurecimento da ciência linguística moderna sendo considerado como seu pioneiro o filósofo suiço Ferdinand de Saussure (1857 - 1913). A corrente que mais representa a Filosofia da Linguagem é a chamada “Filosofia Analítica” e seus vultos maiores são os filósofos: Ludwig Wittgenstein, Noam Chomsky, P. F. Strawson, J. L. Austin,Quine, G. Ryle e J. Derrida entre outros. 3.3.3.2 Os sentidos da filosofia da linguagem A Filosofia da linguagem desenvolveu-se em três sentidos: a) análise da linguagem formal: a Lógica moderna. b) análise da linguagem científica: a Filosofia da Ciência. c) análise da linguagem ordinária (ou geral). Esta última é propriamente a Filosofia da Linguagem. Unidade 04 – Antropologia 108 3.3.3.3 Filosofia da Linguagem: conceitos A linguagem comporta antes de tudo o esclarecimento de alguns conceitos:“É um sistema de signos que possa servir como meio de comunicação”.81Ou ainda: “Linguagem é um sistema de signos verbais ou palavras, de signos simbólicos e regras para o seu uso, implícita ou explicitamente formuladas”.82 • Linguística: é o estudo científico da estrutura dos signos verbais e gráficos. Abrange diversos aspectos. • Filosofia da linguagem: investigação filosófica sobre a natureza e a função da linguagem humana. 3.3.3.4 Filosofia da linguagem: problemática Vários assuntos referentes à linguagem são tratados na Filosofia da Linguagem: • Origem da linguagem: natural ou convencional? • Função da linguagem: função representativa (em relação ao objeto); função expressiva (em relação ao sujeito); função comunicativa (em relação ao outro). • Linguagem simbólica e linguagem conceitual. • Indicação de leitura: ARANHA, Maria Lúcia Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo, Moderna, 2003, p. 10-19. 81 LALANDE, A. Dicionário Técnico Crítico de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 627. 82 DIZIONARIO DELLEIDEE. Firenze: Sansoni Edit, 1977, p. 621. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 109 BUZZI, Arcângelo. Introdução ao Pensar. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 205- 226. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 2006, pp. 136-150. CUNHA, José Auri. Iniciação à Investigação Filosófica. São Paulo: Atual, 1992, p. 50-75. HUISMAN, Denis. Filosofia para principiantes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984, pp. 133-149. MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 1980, pp. 35-45. RENAUD, Michel. “Linguagem”. In: Logos. Enciclopédia Luso-brasileira de Filosofia, vol. 3, col. 399-410. 3.4 METAFÍSICA Após a questão do conhecimento, o segundo campo da filosofia é o campo do ser. O ser é precisamente o objeto do conhecimento. E que é o ser? É tudo o que existe e, mais do que isso, não só o que existe, mas também o que pode existir. Ao ser se opõe o nada. A noção do ser é a mais universal de todas. Então, tratar do ser em geral, é a filosofia mais geral possível (às vezes, no lugar de “Metafísica” se usa “Filosofia Geral”). 3.4.1 Metafísica: origem do termo A palavra ‘Metafísica’ deve a sua origem a uma denominação especial na classificação das obras de Aristóteles feita no século I por Andrônico de Rodes. Como os livros que tratam da filosofia primeira foram colocados na edição das obras do Estagirita a seguir aos livros da Física, chamou-se aos primeiros Metafísica, isto é, “aos que estão detrás da Física”. Esta designação, cujo sentido primitivo parece ser puramente classificador, teve posteriormente um significado mais profundo, pois, com os estudos que são objeto da filosofia primeira, Unidade 04 – Antropologia 110 se constitui um saber que pretende penetrar no que está situado para além ou detrás do ser físico enquanto tal.83 3.4.2 Metafísica: sentido do termo O termo “Metafisica” pode ter dois sentidos básicos (que são correlatos): a) Metafísica = realidade não-física. É o sentido apontado acima (Ferrater Mora): “metafísica” é uma realidade não-física, ou melhor, além- física, não fenomênica. Ainda: o que não pode ser atingido por nenhuma experiência ou conhecimento sensório; é apenas objeto do conhecimento intelectivo ou que é deduzido pela lógica racional, através do raciocínio discursivo. Assim, p.ex., “alma” ou “Deus” são realidades metafísicas. b) Metafísica = estudo do ser enquanto ser (Ontologia). É a disciplina filosófica — caracterizada a partir de Aristóteles — que trata sobre o ser em geral, suas propriedades e seus fundamentos. Neste sentido, a “Metafísica” também leva o nome de “Ontologia” (grego “ontos” = ser + “logia” = ciência), termo criado pelo filósofo alemão Jacob Thomasius, no século XVII. 3.4.3 A metafísica aristotélica: referencial da metafísica universal A preocupação para entender o ser ou a realidade em geral já existiu na antiga filosofia grega, a pré-socrática. No intuito de entender a racionalidade da natureza física, às vezes a filosofia transborda para questões mais gerais. Por exemplo, alguns filósofos se preocupavam com questão do uno e múltiplo. Há um só ser e a multiplicidade das coisas é só aparência, ou o ser é múltiplo, isto é, existem realidades diversificadas e não só uma realidade. Parmênides e Heráclito discutem sobre a questão da identidade e do devir. Parmênides dizia que o ser é, idêntico a si mesmo, e a mudança é 83 FERRATER MORA, J. Dicionário de Filosofia. Lisboa: Dom Quixote, 1991, p. 260. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 111 apenas aparente. Heráclito, por sua vez, tinha opinião contrária: não há o ser, só existe a mudança. Não há nada que permaneça, “tudo muda” (“panta rei”). Platão dividiu a realidade em dois mundos (dualidade platônica): a realidade sensível, a matéria, é o “mundo das sombras”, da aparência. O verdadeiro ser é ideal: o “Mundo das Ideias”. Daí a sua divisão do conhecimento entre “doxa” e “episteme”, correspondendo à sua metafísica dualista. Mas é Aristóteles que pode ser considerado o “pai da Metafísica” e o referencial para toda a especulação metafísica posterior, até os nossos dias.84 Na sua obra “Metafísica” (recordar: o termo não é dele, é posterior, ver acima), Aristóteles define esta parte da filosofia como: “uma ciência que estuda o ser enquanto ser”. Ela chama esta parte da filosofia de “filosofia primeira”. A denominação indica o lugar próprio dessa ciência no contexto de toda a filosofia. Ela é “filosofia primeira”, porque investiga os primeiros princípios e as primeiras causas (ou últimas) de tudo quanto existe, do ser; ocupa, pois, um lugar de preeminência na filosofia. Todos os demais setores da filosofia são “filosofia segunda”, dependentes da “filosofia primeira” e por ela determinados. Portanto, para Aristóteles, a Metafísica é o “coração” e a “alma” de toda a filosofia. Ocupando-se da noção mais universal - a do “ser” - a Metafísica constitui-se no fundamento de toda a filosofia: aqui é que se decide o tipo de filosofia e se plasma a visão geral da realidade. Desta visão geral do ser ou da realidade depende a visão dos seres em particular, do mundo, do homem, da vida, etc. “É preciso adquirir a ciência das causas primeiras. Com efeito, dizemos conhecer algo quando passamos a conhecer a causa primeira”.85 A parte culminante da Metafísica aristotélica e depois também a de São Tomás é a Teologia Natural: a causa primeira e última do ser, que é Deus. Conforme dissemos antes, a Metafísica aristotélica tornou-se o referencial para toda a filosofia posterior, até hoje. Os assuntos e a 84 Para o aprofundamento da questão veja: ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002, Livro A (primeiro). 85 ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002, A 982b. Unidade 04 – Antropologia 112 terminologia de Aristóteles (ato - potência, essência - existência, substância - acidente, as quatro causas) são usados e reelaborados por filósofos posteriores até os dias de hoje. 3.4.4 Sistemas filosóficos metafísicos e anti-metafísicos Levando em consideração toda a história da filosofia, podemos classificar todos os sistemas filosóficos em dois grupos: a) sistemas filosóficos metafísicos: os que admitem a capacidade da razão ir além dos fenômenos, do fato empírico. Por exemplo: Platão, Aristóteles, a Filosofia Medieval (Santo Agostinho, São Tomás), Racionalismo, Idealismo, Fenomenologia, Existencialismo. b) sistemas filosóficos anti-metafísicos: sistemas que negam a capacidade da razão humanas ir além do fenômeno, do dado empírico. Exemplo: Empirismo, Kant, Positivismo, Neopositivismo, todos os materialismos. Merece aqui menção especial Kant: dele se diz que “desferiu o golpe mortal à Metafísica”. Na sua obra Crítica da Razão Pura, Kant faz uma análise profunda das capacidades cognitivas humanas e conclui: “a metafísica como ciência é impossível; só há ciência dos fenômenos”.86 Kant, no entanto, reconstrói a Metafísica em outras bases na sua obra Crítica da Razão Prática: as exigências da Metafísica decorreriam dos “postulados práticos” da razão.87 Por exemplo, sobre Deus não é possível nenhuma ciência teórica, isto é, um saber seguro e fundamentado. No entanto, Deus é uma “necessidade prática”, ligando a questão de Deus à questão da moral: sem 86 Cf. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Martim Claret, 2009, p. 13-27 (introdução). 87 Cf. KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 3-23 (prefácio). Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 113 Deus, não caberia nenhuma moral e não haveria nenhum sentido para a vida humana. 3.4.5 Metafísica: conteúdo básico Existem várias perspectivas de se desenvolver a metafísica: a clássica, baseada na filosofia aristotélico-tomista, a existencialista, a fenomenológica, inspirada em Husserl, Heidegger, a personalista, etc. Um exemplode estrutura do conteúdo da Metafísica clássica:88 I. Estrutura metafísica do ente: – Substância e acidentes – Predicamentos – Ato e Potência – Essência e existência II. Os Transcendentais: – A unidade do ente – A verdade – O bem III. As causas – Causas material e formal – Causa eficiente - Causa final - Causalidade de Deus e das criaturas • Indicação de leitura: 88 Cf. Alvira, T. & Clavell, L. & Melendo, T. Metafísica. Firenze: Le Monnier, 1987. Unidade 04 – Antropologia 114 ARTIGAS, M. Introducción a la Filosofia, pp. 51-59. BUZZI, Arcângelo. Introdução ao Pensar. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 13- 62. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 2006, pp. 206-246. CORBISIER, Roland. Enciclopédia filosófica. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, pp. 197-205. MANDRIONI. Introducción a la filosofia. Buenos Aires: Kapelusz, 1969, pp. 159-171. MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 1980, p. 71-78. PIRES, Celestino. “Metafísica”. In: Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 3, col. 839-846. REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. São Paulo, Saraiva, 1989, p. 232- 252. TOBIAS, José Antonio. Iniciação à Filosofia. Presidente Prudente, Editora do Unoeste, 1986, p. 97-100. 3.5 TEODICEIA 3.5.1 Teodiceia: esclarecimento de terminologia Teodicéia (grego Theos + diké = “justificação de Deus): o termo foi criado por Leibniz como título de uma obra sua Ensaios de Teodiceia: sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal (1710). O assunto de Leibniz era restrito: tratava-se de como “justificar” a sabedoria e bondade de Deus perante a presença do mal no mundo.89 Posteriormente, o significado do termo foi ampliado para designar o tratado filosófico geral sobre Deus, tornando-se assim sinônimo de “Teologia Natural”. É o menos adequado dos termos, mas é hoje amplamente usado. 89 Cf. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Ensaios de Teodiceia: sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal. São Paulo: Estação liberdade, 2013. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 115 • Teologia Natural: o termo começou a ser usado, a partir do século XVII, para distinguir o tratado filosófico sobre Deus da Teologia cristã, que começara a ter grande sistematização nos tratados escolásticos. Provavelmente encontra-se pela primeira vez no De augmentis scientiarum de Francis Bacon (1623). Ele denomina “Teologia Natural” o conhecimento que se pode obter de Deus “por meio da luz natural da razão ou da contemplação das coisas criadas”; a “Teologia sagrada ou inspirada” é a que se fundamenta sobre princípios ou dados diretamente revelados por Deus. E no que se refere à Filosofia Divina ou Teologia Natural, diremos que é esse conhecimento ou rudimento de conhecimento acerca de Deus que se pode obter da contemplação de suas criaturas, conhecimento que, em verdade, se pode chamar divino em relação ao objeto e natural em relação à luz. Os limites deste conhecimento são suficientes para refutar o ateísmo, mas não para informar a religião. Assim, Deus jamais fez um milagre para converter um ateu, porque a luz da natureza teria bastado para fazê-lo confessar a existência de um Deus; mas foram feitos milagres para converter os idólatras e supersticiosos, porque nenhuma luz natural chega a manifestar a vontade e o culto verdadeiro de Deus. Pois, assim como toda obra reflete o poder e a habilidade do trabalhador, e não sua imagem, o mesmo ocorre nas obras de Deus que mostram a onipotência e a sabedoria do Fazedor, mas não sua imagem. E daí que nisso difira a opinião pagã da verdade sagrada, pois os pagãos acreditavam que o mundo fosse imagem de Deus, e o homem, um compêndio ou imagem condensada do mundo; mas as Escrituras nunca atribuem ao mundo essa honra de ser imagem de Deus, mas sim apenas obra de suas mãos (Sl 8,49; nem falam tampouco de nenhuma outra imagem de Deus, afora o homem. Por conseguinte, inferir da contemplação da natureza e confirmar a existência de Deus, e demonstrar seu poder, providência e bondade, é excelente argumentação, e tem sido excelentemente desenvolvida por várias pessoas. Mas, por outro lado, inferir da contemplação da natureza, ou sobre a base dos conhecimentos humanos, qualquer certeza ou convicção relativa às questões de fé não é, a meu juízo, seguro: Da fidei quae fidei sunt [Dá à fé o que é da fé]90. 90 FRANCIS BACON. O progresso do conhecimento. São Paulo: UNESP, 2007, p. 39-40. Unidade 04 – Antropologia 116 A denominação da disciplina filosófica sobre Deus é relativa: há quem prefira chamá-la simplesmente de “Questões Filosóficas sobre Deus”. 3.5.2 Teodiceia: coroamento da metafísica Vejamos a perspectiva de Jacques Maritain: Metafísica estuda o ser enquanto ser; mas por isso mesmo deve estudar a causa do ser: eis a razão por que a sua parte mais elevada, que é por assim dizer a sua coroa, tem por objeto Aquele que é o próprio Ser subsistente. Chamam a esta parte da Metafísica Teologia Natural”.91 Para o aprofundamento da questão, vejamos o que apresenta Brugger, no Dicionário de filosofia: De acordo com Aristóteles, vemos que o metafísico se apresenta em duas formas. Primeiramente, há alguma coisa que não pode ser objeto de experiência e que está entranhado no experimentável como seu âmago mais íntimo: o ser indeterminado ou geral que penetra ou domina todo ente. Existe, em seguida, um Inexperimentável que ultrapassa o empírico como sua origem primeira: o Ser infinito e divino, criador de todo o ente finito. Com isto se indicam os dois ramos da Metafísica. A doutrina do ser considera todo o ente desde o ponto de vista do ser, em geral, indagando-lhe a essência, propriedades e leis; dá-se-lhe ordinariamente o nome de Ontologia (Du Hamel, 1661, foi quem primeiro se serviu deste vocábulo). A doutrina de Deus considera todo o ente em relação ao Ser divino, do qual investiga a essência, existência e atividade; Aristóteles denominou-a Theologiké, e mais tarde recebeu o nome de “Teologia Natural” (em oposição à Teologia baseada na Revelação sobrenatural) e também (menos felizmente) de Teodicéia.92 De fato, na filosofia clássica, a Teodiceia (ou Teologia Natural) era a parte final da Metafísica, seu coroamento ou ponto mais alto. Nem Aristóteles nem São Tomás de Aquino têm um tratado especial sobre Deus: esta questão está incluída na Metafísica. Se a Metafísica busca a causa última 91 MARITAIN, Jacques. Introdução geral à filosofia: elementos de filosofia I. 10. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1972, p. 162. 92 BRUGGER, Walter. Diccionário de filosofia. Barcelona: Herder, 1983, p. 269. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 117 do ser, da realidade, então é natural que se passe à questão de Deus como causa última do ser. 3.5.3 Teodicéia: objeto Na Teodiceia trata-se, portanto, não do Deus especificamente da Religião – o Pai de Abraão e Jacó, o Pai de Jesus Cristo – mas unicamente como o ponto mais alto da Metafísica: o Deus como causa última do ser. “Teologia racional ou Natural é a ciência de Deus à luz natural da razão ou, mais explicitamente, a parte da metafísica que estuda a existência e os atributos de Deus na sua qualidade de ser Absoluto e Infinito”.93 Para Jacques Maritain, a “Teologia Natural é a ciência de Deus enquanto ele é acessível à razão natural, ou ainda enquanto é causa das coisas e autor da ordem natural”.94 Não se trata também do que sabemos de Deus pela fé e através da Revelação, mas “enquanto ele é acessível à razão natural”, instrumento de toda a Filosofia. A fé não é aqui negada, mas apenas dispensada. Igualmente importantes são os termos “enquanto é causa das coisas e autor da ordem natural”. Quer dizer, a Teodiceia, toda a ciência de Deus é indutiva: partimos do mundo para chegar a Deus, como sua causa. Não há conhecimento imediato de Deus: Ele é termo do raciocínio discursivo.Com efeito, a existência de Deus não é imediatamente, e antes de todo o movimento discursivo do espírito, evidente para nós, como acreditavam Malebranche e os Ontologistas; é em virtude da operação intelectual, que é a operação mais fundamentalmente própria do homem, é em virtude do raciocínio que ela se torna evidente para nós.95 93 COSTA FREITAS, Manuel. In: Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. vol. 5. Lisboa: Verbo, 1992, col. 104. 94 MARITAIN, Jacques. Introdução geral à filosofia: elementos de filosofia I. 10. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1972, p. 162. 95 MARITAIN, Jacques. Introdução geral à filosofia: elementos de filosofia I. 10. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1972, p. 162-163. Unidade 04 – Antropologia 118 3.5.4 Teodiceia clássica: conteúdo As Teodiceias clássicas, baseadas na filosofia tomista, tinham um esquema e uma estrutura definidas, constando de 3 partes bem nítidas: 1. Sobre a existência de Deus - como pelo raciocínio discursivo podemos chegar ao conhecimento de sua existência. Construída geralmente em torno das “cinco vias” de São Tomás, essa parte tinha por objetivo confrontar duas posições filosóficas: – o agnosticismo que nega a possibilidade do conhecimento de Deus. – o fideísmo, que nega a possibilidade do conhecimento natural ou racional de Deus (só se pode conhecê-lo pela fé). 2. A essência ou natureza de Deus: seus atributos ou perfeições. O atributo fundamental é a “asseidade” (“ser-por-si”): só Deus é ser por si, todos os demais seres têm o ser participado. Desse atributo se inferem outros: a unidade (só é concebível um Deus), a simplicidade (não se distinguem nele matéria e forma, essência e existência, substância e acidentes) e imutabilidade (não se distinguem nele ato e potência, ele é Ato Puro). Pretende-se confutar: – o deísmo, que admite a existência de Deus e só: nada mais podemos conhecer de Deus. 3. Relação Deus - mundo, incluindo dois itens principais: a) A possibilidade dessa relação contra: – o deísmo, que nega que Deus age no mundo. b) O modo dessa relação. Deus é transcendente ao mundo, contra: – o panteísmo, que identifica Deus e mundo. E Deus é Providência - direção causal e mantedora do mundo, contra: – o deísmo que nega a ação de Deus no mundo. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 119 Dentro dessa última parte eram incluídos dois assuntos que foram os específicos da Teodicéia de Leibniz: o problema da causalidade mantedora divina e a liberdade do homem, como age Deus e como age o homem, e o problema do mal em confronto com a perfeição divina. 3.5.5 Teodiceia: conteúdos hodiernos Os tratados tradicionais de Teodiceia têm um conteúdo geral válido, porque apoiado na Metafísica. No entanto, eles são estreitos demais para os tempos atuais e necessitam de incluir outros aspectos. Por exemplo: — como a filosofia atual aborda a questão de Deus (Filosofia da Linguagem, Hermenêutica). — o fenômeno dos ateísmos modernos. — Deus - fé - ciência, etc. • Indicação de leitura: ANZENBACHER, Arno. Introducción a la Filosofia. Barcelona: Herder, 1983, p. 324-359. COSTA FREITAS, Manuel da. “Teologia Natural”. In: Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 5, col. 104-107 (ver também o verbete “Teodiceia”, col. 99). MARITAIN, Jacques. Introdução Geral à Filosofia, p. 162-164. TOBIAS, José Antonio. Iniciação à Filosofia. Presidente Prudente, Editora do Unoeste, 1986, p. 129-146. Unidade 04 – Antropologia 120 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Vieira de. Introdução à Filosofia. Coimbra: Almedina, 1981. Alvira, T. & Clavell, L. & Melendo, T. Metafísica. Firenze: Le Monnier, 1987. ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002 BAZARIAN, J. O Problema da Verdade. Teoria do Conhecimento. São Paulo: Alfa e Omega, 1985. BRUGGER, Walter. Diccionário de filosofia. Barcelona: Herder, 1983 CHARBONEAU, Paul-Engene. Curso de Filosofia. Lógica e Metodologia. São Paulo: EPU, 1986. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2006 CORBISIER, Roland. Enciclopédia filosófica. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. COSTA FREITAS, Manuel. Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. vol. 5. Lisboa: Verbo, 1992 DIZIONARIO DELLE IDEE. Firenze: Sansoni Edit, 1977. FERRATER MORA, J. Dicionário de Filosofia. Lisboa: Dom Quixote, 1991. FRANCIS BACON. O progresso do conhecimento. São Paulo: UNESP, 2007 GILES, Thomas Ransom. Curso de iniciação à filosofia: ramos fundamentais da filosofia: lógica, teoria do conhecimento, ética, política. São Paulo: EPU, 1995. KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins Fontes, 2008 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Martim Claret, 2009. LALANDE, A. Dicionário Técnico Crítico de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1996. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Ensaios de Teodiceia: sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal. São Paulo: Estação liberdade, 2013. Unidade 03 – Filosofia e a sua problemática 121 MARITAIN, Jacques. Introdução geral à filosofia: elementos de filosofia I. 10. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1972. MARTINS, J. Salgado. Preparação à filosofia. Porto Alegre: Globo, 1981. OLIVEIRA, Admardo Serafim de. Introdução ao Pensamento Filosófico. São Paulo, Loyola, 1990 TELES, A. X. Introdução ao estudo da filosofia. São Paulo: Ática, 1985. TOMÁS DE AQUINO. Comentario de los Analíticos Posteriores de Aristóteles. Trad. de Ana Mallea e Marta Daneri-Rebok. Pamplona: EUNSA, 2002. Unidade 04 – Antropologia 123 UNIDADE 04 – ANTROPOLOGIA Objetivo da unidade: compreender os conceitos fundamentais da antropologia, da cosmologia, da ética, da estética e da filosofia política. Conteúdos da unidade: 1) Antropologia filosófica 2) Cosmologia 3) Ética 4) Estética 5) Filosofia política 4.1 ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA A questão do “que é o homem?” é uma interrogação profundamente natural e existencial, da qual se ocupa a religião, a ciência, a sabedoria popular, a literatura, a arte e particularmente a filosofia. O problema que a Antropologia Filosófica coloca é do próprio homem. O que é o homem, qual a sua origem, a sua essência, o seu destino? A questão não é nova, cada época tentou resolvê-la com os meios ao seu alcance, isto é, a partir do mito, na base da reflexão especulativa, no apoio dos conhecimentos científicos múltiplos, quer das ciências empíricas (fisiologia, bioquímica, etc.), quer das ciências humanas (psicologia, sociologia, antropologia cultural, etnologia). 04 Unidade 04 – Antropologia 124 Isso mostra-nos que o homem é para si próprio um problema ou, nos termos de Gabriel Marcel, um mistério”.96 4.1.1 Antropologias Existem diversas Antropologias: • Antropologia Física – é uma ciência que considera o homem sob o aspecto biológico: sua estrutura somática, relações com o ambiente, classificações étnicas e raciais, etc. Fazem parte da Antropologia Física, a Paleontologia e a Etnologia. • Antropologia Cultural – é igualmente uma ciência que estuda a cultura humana. Entende-se como “cultura” qualquer obra ou instituição humana no mundo. O campo dessa disciplina especial é vastíssimo, pois ela se propõe estudar a obra humana. Ora, essa obra que se denomina cultura é este conjunto complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, lei, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade.97 Muito específico da Antropologia Cultural é o estudo comparativo das instituições e criações culturais. • Antropologia Teológica – considera o homem a partir dos dados da Revelação. • Antropologia Filosófica – Metafísica do homem; considerações fundamentais sobre a estrutura essencial do ser humano. 4.1.2 A psicologia racional Como não poderia deixar de ser, o homem refletiu sobre si mesmo desde os primórdios da filosofia. A preocupação antropológica existe já nos 96 RENAUD,Michel. Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. vol. 1. Lisboa: Verbo, 1992, col. 311. 97 MELLO, Luiz Gonzaga de. Antropologia cultural: iniciação, teoria e temas. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 37. Unidade 04 – Antropologia 125 pré-socráticos, e Sócrates faz do lema “conhece-te a ti mesmo” o sumo da filosofia. Foi, porém, Aristóteles que completou um estudo mais amplo sobre o homem no seu tratado “Sobre a Alma”. É verdade que tudo aí está centrado na “alma”, pois a alma intelectiva é considerada como a “forma”, o essencial e o específico do ser humano. São Tomás assumiu a doutrina antropológica aristotélica, reelaborou- a em alguns pontos, e a retransmitiu a toda a tradição escolástica cristã. Os tratados antropológicos nos institutos católicos fundamentavam-se na doutrina aristotélico-tomista. Esses tratados levavam, desde o século XVIII, o nome de Psicologia Racional. O termo “Psicologia” provém de Melanchton (século XVI), mas foi Christian Wolff (século XVIII) que o divulgou, distinguindo uma Psicologia Racional – tratado filosófico sobre a alma – e uma Psicologia Experimental, que trata cientificamente dos fenômenos anímicos constatados empiricamente. Esta, porém, viria a ter seu grande florescimento só nos séculos XIX e XX. Os tratados escolásticos de Psicologia Racional tinham, tal como a Teodiceia, uma estrutura fixa, constituída das seguintes partes: – As faculdades da alma (sensitiva, intelectiva e volitiva). – A natureza da alma (simplicidade, espiritualidade, unidade). – Imortalidade da alma. – União psico-física (Unio substantialis): união da alma com o corpo. Estes tratados clássicos de Psicologia Racional tiveram uma longa tradição no ensino de Filosofia, principalmente nas instituições católicas. 4.1.3 Antropologia filosófica: origem, determinação e conteúdo A Antropologia Filosófica, como disciplina filosófica autônoma e sistemática, surgiu no nosso século. Trata-se de um movimento filosófico, surgido na década de 20, que a si mesmo deu o nome de “Antropologia Filosófica”. Os seus principais representantes são: Max Scheler (A posição do Homem no Cosmos - 1928), Helmuth Plessner Unidade 04 – Antropologia 126 (O Estofo do Orgânico e o Homem, 1928) e Arnold Gehlen (O Homem: sua Natureza e seu lugar no mundo, 1928 )”.98 A filosofia moderna e grande parte da filosofia contemporânea voltava-se ao homem só sob o aspecto da razão; é uma longa tradição, que vem desde o Racionalismo, que privilegia e quase absolutiza a razão. Na década de 20 do século anterior, surgiu, dentro da corrente fenomenológica principalmente, o movimento Antropologia Filosófica, que pretendia fundamentar um estudo mais global do homem, antes, buscar uma metafísica do homem. O termo Antropologia Filosófica foi popularizado a partir da obra de Erns Cassirer (Antropologia Filosófica, 1944) e este movimento teve muita influência; posteriormente surgiram muitas outras obras filosóficas que pretendiam fazer uma análise das estruturas essenciais do homem. A própria Psicologia Racional nos institutos católicos foi, aos poucos, sendo substituída pela Antropologia Filosófica, quer dizer: no lugar de uma consideração mais estreita do homem, restrita ao aspecto “alma”, desenvolveu-se uma consideração mais ampla, tomando o homem no seu todo, em suas diversas dimensões. Assim, segundo Jolif: “o fundamental da tarefa da Antropologia Filosófica é a apreeensão da estrutura essencial do homem”.99 Entende-se por Antropologia Filosófica a reflexão acerca do homem e de sua natureza. Assim, a tarefa da Antropologia Filosófica é o questionamento acerca do homem, do lugar que ele ocupa no Universo e de sua função como fazedor da história e criador de culturas. A Antropologia Filosófica levanta, dessa forma, as seguintes questões: O que é o homem? O que sou eu? Por que é o ser humano diferente do resto da natureza? O que significa dizer que todos os homens são irmãos e são iguais? Existe, na verdade, o que comumente se chama de ‘natureza humana’?100 O conteúdo da Antropologia Filosófica (ou qualquer outro nome que leve) pode ser muito diversificado (cf. manuais indicados). 98 RABUSKE, E. Antropologia Filosófica. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 14. 99 JOLIF, A. Compreender o Homem. São Paulo: Herder, 1975, p. 137. 100 OLIVEIRA, Admardo Serafim de. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Loyola, 2005, p. 119. Unidade 04 – Antropologia 127 No entanto, alguns pontos são essenciais para uma boa Antropologia Filosófica: • Origem do homem: considerações científico-filosóficas sobre a gênese humana. • Natureza do homem: questões sobre o corpo e alma, razão e liberdade (vontade). Aqui entrariam os aspectos válidos da “Psicologia Racional”. • Dimensões fundamentais do ser humano: linguagem, sociabilidade, historicidade, transcendência. • Morte e imortalidade: o destino humano. • Indicação de leitura: ANZENBACHER, Arno. Introducción a la Filosofia. Barcelona: Herder, 1983, p. 225-268. BUZZI, Arcângelo. Introdução ao Pensar. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 63- 82. MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 1980, p. 54-70. OLIVEIRA, Admardo Serafim de et al. Introdução ao pensamento filosófico, p. 119-157. RENAUD, Michel. “Antropologia”. In: Logos. Enciclopédia Luso- Brasileira de Filosofia, vol. 1, col. 311-318. 4.2 COSMOLOGIA 4.2.1 Cosmologia: esclarecimento de terminologia A disciplina filosófica que tem por objeto o mundo físico-material tem recebido diversas denominações: • Cosmologia (grego “kosmos” = mundo) - termo largamente usado nos tratados escolásticos clássicos. Unidade 04 – Antropologia 128 Nos dias de hoje, porém, o termo Cosmologia designa também uma ciência: ela tem por objeto elaborar teorias sobre o modelo do universo, sua origem, formação, etc. • Filosofia da Natureza - traduz a antiga denominação latina Philosophia Naturae ou Philosophia Naturalis. Ainda: • Filosofia do Mundo: termo utilizado também em alguns tratados atuais. 4.2.2 Cosmologia: histórico A especulação filosófica iniciou-se, como sabemos, com a preocupação de entender o mundo físico-material. O pensamento grego primitivo centrava-se, pois, no problema cosmológico: qual é o estofo primeiro de todas as coisas.101 No período clássico, a filosofia grega universalizou-se, mas o tema cosmológico manteve o seu lugar dentro das questões filosóficas. A ele Aristóteles, por exemplo, dedicou todo um conjunto de escritos, denominados globalmente de Física. A Física aristotélica tinha por objeto o “ente móvel”, entendendo por “móvel” o ser submetido à mudança, isto é, o ser material. Esse tratado incluía todo o saber sobre a natureza, inorgânica e viva, em primeiro lugar sob o ponto de vista metafísico. Mas incluía também aspectos que hoje poderíamos considerar como pertencentes à ciência, uma vez que não existiam então ciências autônomas: o saber era global. Há de se recordar que Aristóteles era um grande apaixonado pelas coisas da natureza: passava longo tempo a pesquisar o comportamento animal, o desenvolvimento das plantas e a meditar sobre o curso dos astros (verificar suas obras: História dos Animais, Sobre as Plantas, Sobre o Céu, Metereológica). A Física aristotélica inspirou os tratados sobre a natureza material durante toda a Idade Média e inícios da Idade Moderna. O próprio nome do tratado foi conservado: Física. 101 Para aprofundamento desta questão veja: ALMEIDA, Rogério Miranda de. História da filosofia antiga [recurso eletrônico]. Curitiba: FASBAMPRESS, 2021 (Unidade 02: Desenvolvimento da Filosofia Grega: os filósofos pré-socráticos). Unidade 04 – Antropologia 129 Nos séculos XVII e XVIII alguns sábios começaram a dar ao tratado de Física um conteúdo inteiramente diferente, baseado no método experimental e matemático: as investigações das leis mecânicas da natureza.5) Filosofia: como ciência. 1.1 FILOSOFIA: CONCEITOS FUNDAMENTAIS Ao iniciarmos a Introdução à filosofia, a sua própria denominação — “Introdução à filosofia” — nos dá uma ideia prévia do objetivo dessa disciplina: introduzir (= “conduzir para dentro”) na filosofia, conhecer o que é a filosofia e para que serve, ter ciência de seu caráter, de seus assuntos, sua problemática. Enfim, ter um panorama geral e completo do que é a ciência filosófica. E para começar o assunto, podemos colocar uma primeira pergunta que conduz a outras duas: Por que estudamos filosofia? Que é filosofia? Para que serve ela? 01 Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 14 Tomemos a primeira pergunta: Por que estudamos filosofia? As respostas podem ser variadas e diversas, tais como: quero conhecer melhor o mundo, ter consciência crítica, interpretar a realidade, conhecer o pensamento dos filósofos, etc. Por exemplo, se você está na caminhada rumo ao sacerdócio outras respostas até poderiam ser: “porque me mandaram” ou “foi determinado pelos superiores”. Mas podemos ir adiante: “Por que os superiores me mandaram estudar filosofia?” A razão principal do fato pelo qual os superiores mandaram estudar filosofia é porque é exigido pela legislação eclesiástica. A Igreja Católica exige daqueles que se preparam ao sacerdócio um curso de filosofia. Diz o Código de Direito Canônico: Cân. 250 – Os estudos filosóficos e teológicos, organizados no próprio seminário, podem ser feitos sucessiva e simultaneamente, de acordo com as Diretrizes básicas para a formação sacerdotal; compreendam, ao menos, seis anos completos, de tal modo que o tempo reservado às disciplinas filosóficas corresponda a dois anos completos, e o tempo reservado aos estudos teológicos, a quatro anos completos. Cân. 251 – A formação filosófica, que deve estar baseada no patrimônio filosófico perenemente válido e também levar em conta a investigação filosófica no progresso do tempo, seja ministrada de tal modo que complete a formação humana dos alunos, lhes aguce a mente e os torne mais aptos para fazerem os estudos teológicos.1 Assim, pode-se dizer que a razão principal do fato referido é porque isso é exigido pela legislação eclesiástica. A Igreja exige daqueles que se preparam ao sacerdócio um curso ou uma faculdade de Filosofia. Se a Igreja coloca como requisito à preparação ao sacerdócio um Curso de Filosofia é porque a Filosofia deve ser algo importante, é porque a Filosofia tem um valor. A Igreja, com a sua experiência de mais de dois mil anos, não podia indicar algo, isto é, passar três anos em média estudando filosofia, se não tivesse a devida importância ou valor. À essa questão – por que filosofia para um sacerdote – nós vamos voltar especificamente mais adiante. 1 IGREJA CATÓLICA. Código de Direito Canônico. Promulgado por João Paulo II, Papa. São Paulo: Loyola, 2008. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 15 Voltemos às perguntas gerais: — Qual é então a importância e o valor da filosofia? — Que é filosofia? — Para que serve a filosofia? Vamos partir da ideia mais simples possível de filosofia. A palavra filosofia significa “amor à sabedoria”. Filosofia é sabedoria, saber. Filosofar é pensar, refletir. Filósofo é o pensador. É claro que isso não nos diz muita coisa. É ainda muito vago. Pensar e refletir, de alguma forma, todo mundo pensa. Quando quebramos a cabeça com um problema matemático – estamos pensando, refletindo. Quando o carro enguiça – pensamos, refletimos, procurando onde está o defeito. Então, daí, a questão: Pensar, refletir, sobre o quê? Vocês já estão percebendo que “filosofia” não é um pensar, refletir no sentido comum, pois isso todo o mundo faz. É pensar, refletir num sentido especial. Como especial? Trata-se de assuntos especiais. Numa primeira noção mais simples de filosofia (vamos desenvolver melhor, com o decorrer das aulas, mais adiante), podemos dizer: • Filosofia é a análise das questões humanas mais fundamentais. Quais são essas questões? Foi dito que elas são “fundamentais”, isto é, questões de fundo, de profundidade, de muita importância para a vida do homem. São questões muito amplas, conforme estudaremos no decorrer do curso. A Filosofia, por sua própria natureza, almeja despertar em quem a ela se entrega, a disposição permanente, o hábito, como dizia Aristóteles, de analisar, mais ainda, de questionar radicalmente toda a realidade, de perguntar: o que é e por que é; de perguntar sem poder antecipar uma resposta definitiva: Quem sou eu? — Quem é o outro ‘eu’ e qual a sua relevância e incidência sobre mim e minha existência? — O que é que vem a ser o universo, o meio ambiente e qual o seu significado Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 16 para mim, para nós? Trata-se de um processo de questionamento que perpassa todas as gerações, todos os povos e épocas.2 • Filosofia da experiência vital e filosofia por ofício É preciso fazer aqui uma pequena distinção, existem dois níveis de filosofia: — a filosofia da experiência vital (ou do senso comum); — a filosofia por ofício (filosofia propriamente dita, filosofia ciência). • A filosofia da experiência vital (ou do senso comum) é como que universal; todo o homem tem, até certo ponto, uma filosofia, pelo simples fato de que ele é inteligente, um ser pensante. Que ele não só vegeta, vive e age, mas pensa sobre a sua vida, sua ação e se coloca perguntas mais profundas, e às vezes até respostas, sobre o seu viver, sobre o mundo, a realidade. Essa “filosofia da experiência vital” ou do “senso comum” é mais ou menos reflexa, às vezes não muito consciente, às vezes insensível às contradições. Mas, em geral, todo o homem possui uma “filosofia de vida”, forma-se para si mesmo uma visão geral da vida, do mundo, apoia-se em certos princípios, valores, que orientam a sua vida. Não importa de onde ele tira estes princípios e valores (da tradição, do meio social, da religião, etc.). • A filosofia por ofício é a filosofia propriamente dita, a que “está nos livros”. É, nada mais, que ir adiante nessa filosofia que todo homem já possui: desvendar os problemas, analisá-los, tratá-los de modo metódico e sistemático, fazer deles uma ciência. Assim podemos dizer: — Filosofia é a análise metódica e sistemática (científica) das questões humanas mais fundamentais. A filosofia tem por objeto de reflexão os sentidos, os significados e os valores que dimensionam e norteiam a vida e a prática histórica humana. Nenhum indivíduo, nenhum povo, nenhum momento 2 GILES, Thomas Ranson. Curso de iniciação à filosofia: origem, significado e panorama histórico. São Paulo: EPUC, 1985, p. 7. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 17 histórico vive e sobrevive sem um conjunto de valores que significam a sua forma de existência e sua ação. Não há como viver sem se perguntar pelo seu sentido; assim como não há como praticar qualquer ação, sem que se tenha que perguntar pelo seu sentido próprio, pela sua finalidade. É claro que alguém poderá viver pelo senso comum, entranhado em seu inconsciente, sem se perguntar conscientemente pelo seu efetivo significado. Já falamos nisso, porém essa não é uma conduta filosófica, como já temos reiterado anteriormente. A filosofia e o exercício do filosofar implicam uma pergunta explícita e consciente pelo sentido e significado das coisas, da vida e da prática humana.3 Vejamos mais algumas características do filosofar: Arcângelo Buzzi expressa, em seu livro Introdução ao Pensar, a universalidade de a filosofia ser necessária para a vida humana da seguinte forma: Consciente ou inconscientemente, explícita ou implicitamente, quem vive possui uma filosofia, uma concepção do mundo. Esta concepção pode não ser manifesta. Geralmente, ela se aninha nas estruturas inconscientes da mente. De lá, ela comanda a vida, dirige-lhe os passos, norteia a vida. AÉ o nascimento da Física moderna. Daí então, como as considerações científicas adquiriram sua plena independência, começou-se a diferenciar as denominações: Física Especulativa (filosófica) e Física Empírica (científica). Aos poucos, no entanto, a própria denominação “Física”, aplicada ao tratado filosófico, cai em desuso, sendo substituída por Philosophia Naturalis e também por Cosmologia. 4.2.3 Cosmologia: tem sentido uma filosofia sobre o mundo material? Durante um certo tempo a cosmologia filosófica esteve em descrédito. Acreditava-se que para entender o mundo físico e material bastavam as ciências naturais. Se as ciências alcançaram um nível de progresso e especialização tão elevados, haveria ainda no mundo segredos reservados para a filosofia? Hoje, todavia, verifica-se um renovado interesse pela reflexão filosófica nesse campo, surgido principalmente em decorrência exatamente da grande fragmentação e especialização das ciências. Faz-se necessário construir uma visão mais total e integradora do universo físico, uma “cosmovisão” unitária e fundamentada. Disse o grande filósofo Wittgenstein: “ainda que todas as questões científicas fossem resolvidas, nossos problemas vitais não seriam sequer tocados”.102 Os próprios físicos contemporâneos sentiram essa necessidade, e alguns deles até enveredaram pela reflexão filosófica. Assim, por exemplo, Einstein escreveu a obra Como vejo o universo, e Stephen Hawkins faz o mesmo na Breve História do Tempo. 102 WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994, 6.52. Unidade 04 – Antropologia 130 4.2.4 Cosmologia: objeto e conteúdo Fillipo Selvaggi diz que “na filosofia da natureza a Física oferece a matéria, a Metafísica a forma”103. Isto significa que os assuntos da Filosofia da Natureza são os mesmos das ciências naturais, mas o ponto de vista é propriamente o da reflexão metafísica. A Metafísica Natural procura alcançar uma compreensão filosófica dos conceitos básicos da ciência natural, como espaço, tempo, movimento, força, energia, matéria, vida orgânica, etc., estabelecer, na medida do possível, seus constitutivos essenciais, e, a partir deles, elaborar uma imagem filosófica do universo.104 O tratado de Filosofia da Natureza pode ser de grande diversidade no seu conteúdo. Mas, em geral, os seus assuntos mais específicos são os seguintes: – Extensão. O ser material é ser extenso. Em que esta consiste? Distingue-se ela da substância? – Quantidade-qualidade. A qualidade é reduzível ou não à quantidade? – Espaço. Limitado ou ilimitado? Real ou ideal? O vácuo. – Tempo. Correlativo ao espaço. Real ou ideal? – Movimento. Como interpetá-lo? Absolutamente ou relativamente? Movimento e ação à distância: causalidade física, o determinismo. – Categorias do ente físico. O inorgânico e o vivo. A vida é ontologicamente superior à matéria? A elaboração do tratado de Filosofia da Natureza resulta hoje em dia um tanto quanto difícil, pois exige pelo menos um certo conhecimento dos pressupostos da Física moderna, como as novas teorias sobre a matéria, a energia, o espaço, o movimento (teoria da relatividade de Albert Einstein, a teoria dos quanta de Max Planck, etc.), para integrá-las num juízo filosófico. Requer igualmente uma parte epistemológica ou de Filosofia da Ciência: consideração sobre os pressupostos das ciências naturais. 103 SELVAGGI, Filippo. Filosofia do mundo: cosmologia filosofica. São Paulo: Loyola, 1988, p. 162. 104 BRUGGER, Walter. Diccionário de filosofia. Barcelona: Herder, 1983, p. 194. Unidade 04 – Antropologia 131 • Indicação de leitura: ANZENBACHER, Arno. Introducción a la Filosofia. Barcelona: Herder, 1983, p. 122-143. CUNHA, José Auri. Iniciação à Investigação Filosófica. São Paulo: Atual, 1992, p. 102-116. MANDRIONI. Introducción a la filosofia. Buenos Aires: Kapelusz, 1969, p. 76-107. MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 1980, p. 46-53. RAEYMAEKER, Louis de. Introdução à filosofia. 2. ed. São Paulo: Herder, 1973, p. 53-61. TOBIAS, José Antonio. Iniciação à Filosofia. Presidente Prudente, Editora do Unoeste, 1986, p. 53-70. 4.3 ÉTICA A preocupação pelo sentido da ação humana é talvez a mais evidente daquelas questões humanas mais fundamentais. O fato de que a ação e o comportamento humano tem a ver com certas regras e normas é um fato de experiência. Os pais ensinam aos filhos determinadas normas de comportamento; assim faz a escola; nós julgamos certas ações dos outros como corretas ou erradas e nós mesmos nos consultamos às vezes perguntando: “o que eu devo fazer agora”? Como eu devo agir? O que é lícito e o que não é lícito fazer? O que é que constitui o bem e o que constitui o mal? A partir de que avaliar a ação humana? De que princípio, padrão ou modelo? Como se caracteriza uma vida “boa” e uma vida “imoral”? Obviamente que, de forma mais consciente ou menos consciente, essas questões existem e são prementes. Porque elas afetam toda uma vida humana. Ninguém pode dizer a si mesmo e ao outro: “faça o que quiser”, porque senão acaba a vida humana, acaba qualquer possibilidade de convivência e a própria existência humana perde todo o sentido. Unidade 04 – Antropologia 132 Todos percebem que para existir e coexistir é necessário respeitar e observar certas normas. Que normas e de onde elas procedem? Eis a questão filosófica da ética. Para que a vida humana tenha sentido é necessário buscar certos valores. Que valores e onde encontrá-los? Eis a questão da filosofia moral. É certo que as pessoas vivem e convivem respeitando os valores que elas recebem do seu meio social, da religião, etc. A função da filosofia é refletir sobre normas e valores e lhes proporcionar uma fundamentação. 4.3.1 Ética: conceitos • Ética: (do grego “ethos” - costume): filosofia dos costumes. Costume no sentido de práticas de vida habituais do homem. • Moral: (do latim “mos-moris” = costume): mesmo sentido; filosofia dos costumes. • Moral Religiosa — moral fundamentada nos dados da Revelação ou nos princípios religiosos. • Direito — ciência da legitimidade das ações e práticas humanas a partir de uma legislação estabelecida. Direito se refere sempre a um código escrito. Moral (ética) se refere a um código não escrito. 4.3.2 Ética: perspectiva histórica105 A questão sobre o sentido e o valor das ações humanas perpassa toda a história da filosofia e se concretiza em diversas perspectivas ou “filosofias morais”. • Ética clássica O pioneiro da sistematização e fundamentação da Ética é Aristóteles. Embora os assuntos éticos já estivessem presentes antes, em Sócrates 105 Cf. SENA, Gleison. Ética. Curitiba: FASBAMPRESS, 2021. Unidade 04 – Antropologia 133 (identificação: bom = sábio) e Platão, é Aristóteles que nas suas obras, principalmente na sua obra Ética a Nicômaco, empreende uma análise mais sistemática da ação humana: é a sua filosofia prática. A obra aristotélica influencia a filosofia medieval cristã, principalmente S. Tomás de Aquino, sua autoridade maior, e delineia o que chamamos de “Ética clássica ocidental”. Esta ética clássica possui as seguintes características: ela se liga à metafísica, mais propriamente à causalidade final. Todo o ser é bom na medida em que realiza a sua essência e sua finalidade. Assim também o homem. Qual é a essência do homem? Ela está na sua alma intelectual: guiar- se pela razão nos seus atos é fundamentalmente agir moralmente. Como concretamente? A vontade livre descobre na consciência uma lei natural que orienta os seus atos. O homem sobretudo descobre, por via racional, que Deus é o seu fim último, o “Sumo Bem”, a partir do qual todo outro bem adquire valor. “Toda a Ética de S. Tomás é deduzida do princípio “Deus é o último fim do homem” (S. Th. II, 2, q 1, 8), princípio de que se deduza doutrina da felicidade e da virtude”.106 Enfim, a ética clássica baseia-se numa ordem cósmica: Deus, o Criador, criou todas as coisas, colocando nelas essência e finalidades, inclusive no próprio homem; das finalidades naturais, nasce a lei natural; o homem pela sua razão pode descobrir as finalidades naturais das coisas, a sua finalidade própria e a dos seus atos. • Ética kantiana O filósofo alemão, Immanuel Kant (século XVIII) pretendeu mudar inteiramente a perspectiva ética. Ele afirmou que não se podia fundamentar a ética nem em algum fato da experiência, nem em algum bem objetivo (mesmo porque, negando a Metafísica, Kant nega a possibilidade de se conhecer algum bem ou valor em si). A fundamentação da ética é transferida, então, para o interior da própria razão. A razão contém em si um princípio ou um senso, que ele chama de “imperativo categórico a priori do dever”. Existe a percepção ou o 106 ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1982, p. 361. Unidade 04 – Antropologia 134 “senso do dever” na razão prática. Então, é moral o que é feito pela consciência e senso do dever. Kant foi criticado por apresentar uma ética excessivamente formal. Ele postulou algumas regras “práticas” para a sua filosofia moral, como, por exemplo: “age de forma que a tua ação possa se tornar uma máxima universal”. De qualquer forma, Kant operou também na Ética a “revolução copernicana”: mudou a ética da objetividade para a subjetividade. • Moral sensista É a moral derivada do empirismo e também do positivismo: a ética não pode fundamentar-se em princípios racionais, que não podem ser conhecidos, mas deve fundamentar-se na experiência. E a experiência nos ensina que a natureza humana procura o prazer e evita o desprazer, a dor. O prazer é então o fundamento da ética. Toda a ética (como filosofia) consiste em avaliar o prazer.107 É a ética do Utilitarismo: Jeremy Bentham, John Stuart Mill, William James. Trata-se aqui, de fundamentar o que se entende por prazer. • Ética como “ciência dos costumes” O Positivismo e a Escola Sociológica (Émile Durkheim, Lévy-Bruhl) reduzem a ética a um fato sociológico: é a sociedade que cria seus valores e seus costumes, para sobreviver e se defender. Eles são sempre produtos de um tempo e de um espaço. Não há valores, bens ou princípios universalmente válidos. Émile Durkheim, assim define o fato social: É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao 107 Essa perspectiva já existia na antiguidade, por exemplo, no pensamento de Epicuro de Samos. Unidade 04 – Antropologia 135 mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações individuais.108 A ética é então “ciência dos costumes”: deve considerar o fato moral à maneira de outros fatos sociais, descrever os costumes, os juízos e os sentimentos morais próprios às diferentes sociedades e determinar as leis de seu surgimento, desenvolvimento e evolução. É, portanto, um estudo científico do fato moral como um fato sociológico. • Ética dos Valores (Max Scheler) Max Scheler, escrevendo contra Kant quer recolocar a ética na objetividade, mas se opõe também à ética clássica. Existem valores objetivos, independentes da nossa consciência. Mas os valores não são racionais e sim de caráter emocional. Os valores são percebidos pela “intuição emotiva” e se impõem à nossa consciência.109 Pelas diversas perspectivas em ética, acima acenadas, podemos constatar que a questão mais importante na ética é a sua sustentação: sobre que bases fundamentar a ação humana? 4.3.3 Ética: conceituação e problemática A problemática da Ética é vasta, intrincada e complexa, envolvendo diversos aspectos e diversas questões. Envolve também questões metafísicas e antropológicas, das quais dependem essencialmente as colocações sobre a moral dos atos humanos. A ética ou moral é a ciência ou filosofia da ação humana. A Ética é normativa, porque se refere ao bom andamento da vida, ao reto orientamento da existência. É uma ciência prática, não só porque trata da práxis humana, mas porque pretende dirigi-la110 108 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 13 (itálicos do autor). 109 Para aprofundar está temática veja o artigo: SCHILLER, Soter. A questão “homem” como problema fundamental da filosofia na perspectiva de Max Scheler. Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 1, n. 2, p. 23-35, jul./jdez. 2019 110 FINANCE, Joseph. Etica Generale. Bari: Tipografica Meridionale, 1975, p. 10. Unidade 04 – Antropologia 136 Fundamentalmente na ética são discutidas em primeiro lugar as chamadas condições transcendentais do fato ético, que são três: • Liberdade: só são atos morais os atos livres do homem (não entram, portanto, os atos necessários: respirar, comer, defecar). Se o homem não é livre, não se pode absolutamente falar de moralidade.111 Que é liberdade? Que são “atos livres” (ausência de necessidade interior)? Em que medida? Entra aqui a questão da liberdade e do determinismo. • Consciência: é outra condição transcendental da moral. Ela decorre da anterior: para ser verdadeiramente livre, uma ação implica o conhecimento daquilo que se faz. • Norma ou referência. Se quanto às duas primeiras condições há muito consenso, aqui há muito dissenso. A norma é objetiva (isto é, independente de nós, da nossa vontade) ou subjetiva? Em que se fundamenta essa norma? Qual é a norma primeira, a norma das normas? Afora esses fundamentos, há ainda outros aspectos ou problemas que devem ser tratados na Ética fundamental. Por exemplo, a consciência e a lei, os valores, as virtudes, a sanção moral, a relacionabilidade da moral. Assim: A ética (do grego ethikos, ‘costumes, comportamento’) é uma parte da filosofia que busca refletir sobre o comportamento humano sob o ponto de vista das noções de bem e de mal, de justo e de injusto. A ética tem duplo objetivo: a. elaborar princípios de vida capazes de orientar o homem para uma ação moralmente correta; 111 Por exemplo, António Damásio na Introdução da sua obra, O erro de Descartes, escreve que “a razão pode não ser tão pura quanto a maioria de nós pensa que é ou desejaria que fosse, e que as emoções e os sentimentos podem não ser de todo uns intrusos no bastião da razão, podendo encontrar-se, enredados nas suas teias, para o melhor e para o pior” (DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2012). Unidade 04 – Antropologia 137 b. refletir sobre os sistemas morais elaborados pelos homens. Podemos dizer que pertencem ao vasto campo da ética a reflexão sobre perguntas fundamentais como: • O que devo fazer para ser justo? • Quais valores devo escolher para guiar minha vida? • Há uma hierarquia de valores que deve ser seguida? • Que tipo de ser humano devo ser nas minhas relações comigo mesmo, com meus semelhantes e com a natureza? • Que tipo de atitudes devo praticar como pessoa e como cidadão?112 4.3.4 Ética fundamental e ética especial Há de se observar que podemos dividir a ética em: • Ética Fundamental: que trata sobre a fundamentação do fato moral em geral. • Ética Especial: que trata de determinados setores da ética: ética política, ética sexual, ética ambiental etc. A temática da ética especial é hoje especialmente ampla e interessante, abrangendo situações concretas e pungentes da vida hodierna, tais como: — bioética e neuroética; — ética da afetividade e sexualidade (uma área especial de relação entre ética e psicologia); — o problema da violência; — ética política; — ética ambiental (a nossa responsabilidade perante o meio e perante as gerações futuras). A natureza como uma responsabilidade humanaé seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria ética deve ser pensada. Que tipo de deveres ela exigirá? Haverá algo mais do que o interesse utilitário? É simplesmente a prudência que recomenda que não se mate a galinha dos ovos de ouro, ou que não se serre o galho sobre o qual se está 112 COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia ser, saber e fazer: elementos da história do pensamento ocidental. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 212-213. Unidade 04 – Antropologia 138 sentado? Mas este que aqui se senta e que talvez caia no precipício quem é? E qual é o meu interesse no seu sentar ou cair?113 Tudo isso faz com que hoje em dia a ética seja uma das disciplinas filosóficas com diversas perspectivas e abordagens. • Indicação de leitura: ARANHA, Maria Lúcia Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo, Moderna, 2003, p. 300-334. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 1991, p. 116-137. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 2006, p. 334-366. JUSTINO, Maria José. “A admirável complexidade da arte”. In: CORDI, Cassiano e o. Para Filosofar, p. 41-53. COTRIM, Gilberto. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 212-227. CUNHA, José Auri. Iniciação à Investigação Filosófica. São Paulo: Atual, 1992, p. 279-315. FERRATER MORA, José. “Ética”. In: Diccionario de Filosofia. vol. 2, Alianza Editorial, Madrid, 1980, p. 1057-1062 (ótimo resumo da história da ética). GILES, Thomas Ransom. Ramos Fundamentais da Filosofia: lógica, teoria do conhecimento, ética, política. São Paulo, EPU, 1995, p. 66-86. HUISMAN, Denis. Filosofia para principiantes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984, p. 47-76. LUCKESI, Cipriano Carlos; PASSOS, Elizete Silva. Introdução à Filosofia, p. 171-188. MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 1980, p. 106-121. Morale” in: Dizionario delle Idee. Firenze: Sansoni, 1977, p. 722-738. 113 JONAS, Hans. Princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Puc Rio, 2006, p. 39-40. Unidade 04 – Antropologia 139 RENAUD, Michel. “Moral”. In: Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 3, col. 956-978. SEVERINO, Antonio Joaquim. Filosofia, p. 191-200. 4.4 ESTÉTICA A vida do ser humano não se restringe à prática utilitária ou apenas a agir e transformar a natureza. O mundo e a realidade tocam não somente a inteligência humana, mas também as emoções. O mundo, a natureza, antes de ser objeto do conhecimento e da atividade prática, é objeto da percepção e da contemplação. O mundo, no conjunto dos seus objetos e seres, tange uma vasta gama de emoções humanas: admiração, dor, felicidade, tristeza, raiva, medo, surpresa, etc. Desde os primórdios, o ser humano não apenas encantou-se com a natureza, mas procurou expressar as suas emoções através de diversos meios, como também criar objetos que de certa forma imitassem a beleza do mundo. É a criação artística: pintura, música, dança, etc. São expressões tão antigas quanto o próprio homem. Desde sempre, a arte é um dos segmentos constantes da cultura e da civilização humana, ao lado da religião, da filosofia e da ciência. Ora, a filosofia também inclui a vida emocional, a expressão artística, a dimensão estética como seu objeto de reflexão. Fazendo um levantamento do uso comum da palavra estética encontramos: Instituto de Estética e Cosmetologia, estética corporal, estética facial, etc. Essas expressões dizem respeito à beleza física e abrangem desde um bom corte de cabelo e maquilagem bem-feita a cuidados mais intensos como ginástica, tratamentos à base de creme, massagens, chegando às vezes à cirurgia plástica. Encontramos, ainda, expressões como: senso estético, arranjo de flores estético ou decoração estética. Nelas também está presente a relação com a beleza ou, pelo menos, com o agradável, mas aqui a palavra estética é usada como adjetivo, isto é, como qualidade. Se continuarmos a procurar, saindo agora do uso comum e entrando no campo das artes, encontramos expressões como: estética renascentista, estética realista, estética socialista, etc. Nesses casos, a palavra estética, usada como substantivo, designa um conjunto de Unidade 04 – Antropologia 140 características formais que a arte assume em determinado período e que poderia também ser chamado de estilo. Resta ainda outro significado, mais específico, usado no campo da filosofia. Sob o nome estética enquadramos um ramo da filosofia que estuda racionalmente o belo e o sentimento que suscita nos seres humanos. Tradicionalmente, portanto, mesmo em filosofia, a estética aparece ligada à noção de beleza. E é exatamente por causa desta ligação que a arte vai ocupar um lugar privilegiado na reflexão estética, pois, durante muito tempo, ela foi considerada como tendo por função primordial exprimir a beleza de modo sensível.114 4.4.1 Estética: elucidação de conceitos • Estética: etimologia = percepção sensível A palavra “estética” (grego “aisthesis” = sentido, percepção sensível), significaria então uma experiência ou percepção pelos sentidos. Neste sentido, a palavra é usada por Immanuel Kant. A estética em Kant é parte da gnosiologia (“Estética Transcendental”) que teoriza sobre a sensibilidade, a percepção sensível. • Estética - percepção do belo, teoria do belo Estética, no sentido atual, como “percepção do belo” ou “teoria do belo”, deve-se à obra do alemão Alexander Baumgarten: Estética (1750).115 Baumgarten reconheceu no seu campo semântico os seguintes aspectos: a presença de certos objetos melhor dotados, bem organizados nas suas formas, capazes de se dirigirem simultaneamente a todas as faculdades internas do homem, aos sentidos e ao espírito — objetos que correspondem à noção de beleza; a presença de uma experiência portadora de uma fruição 114 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Morderna, 2003, p. 369. 115 Cf. BAUMGARTEN, Alexander Gottlieb. Estética: a lógica da arte e do poema. Petrópolis: Vozes, 1993. Unidade 04 – Antropologia 141 desinteressada, prazer estético; a existência de uma atividade humana que tinha como finalidade a produção deste tipo de objetos belos e específicos da experiência estética — a arte.116 • Estética e Filosofia da Arte: sinônimos? Alguns identificam as duas coisas, outros distinguem: — “Filosofia da Arte”: seria a especulação metafísica especificamente sobre a criação artística. — “Estética”: um tratado mais amplo, sobre a beleza, sobre as condições do belo (uma vez que o belo existe além das obras de arte, na natureza, por exemplo). Para São Tomás, o belo é um dos atributos transcendentais do ser: “unum, verum, bonum et pulchrum” (indivisivo, verdadeiro, bom e belo). Há de se esclarecer ainda: • Estética: ciência da arte. Éstética”, na linguagem corrente, pode significar um estudo científico (histórico, sociológico) das manifestações artísticas. Há ainda: • Crítica da Arte: é a análise e o juízo das obras de arte a partir de princípios e padrões da própria arte, de seus setores específicos. Ex. crítica literária, crítica musical, crítica do cinema. Vamos, aqui, nos ater à estética como disciplina filosófica. 4.4.2 Estética filosófica: temática 116 MORAIS, Carlos B. “Estética”. In: Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 2, col. 270. Unidade 04 – Antropologia 142 Muitos são os aspectos que podem constituir a temática da Estética, como por exemplo: • Relação entre arte e natureza: São três os modos principais de conceber a arte em relação ao real, à natureza: — imitação (concepção mimética da arte): arte como representação da realidade. — criação: arte como exteriorização dos sentimentos interiores dogênio excepcional. A obra de arte exprime em formas externas, criadas, os sentimentos e emoções. — expressão e construção: o artista não imita, não cria, mas reconstrói a realidade. O artista não é um gênio solitário e excepcional, mas um ser social que busca exprimir seu modo de estar no mundo na companhia de outros seres humanos, num embate contínuo com a natureza, com a sociedade e consigo mesmo. É alguém que, além de voltar-se para si mesmo para compreender-se por meio da obra que exprime seu trabalho de compreensão, também reflete sobre a sociedade, e por meio da obra social volta-se para o social, seja para criticá-lo, seja para afirmá-lo, seja para superá-lo.117 • Sentido fundamental da arte: Há duas grandes concepções sobre a arte que percorrem a história, modificando-se às vezes, mas permanecendo fundamentalmente as mesmas: — a concepção platônica: arte como forma ou via de conhecimento, contemplação (atividade teórica); — a concepção aristotélica: arte como “poesis”, como atividade prática. • Finalidades ou funções da arte: Temos duas concepções que predominaram na história: 117 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2006, p. 322. Unidade 04 – Antropologia 143 — a função pedagógica: arte como modeladora do espírito; a “catarse” em Aristóteles, produção do sentimento do sublime em Kant, função crítica social e política. — a função expressiva: desvincula a arte de outras manifestações vitais a afirma a sua autonomia, como expressão autônoma de uma dimensão essencialmente humana. • Arte e moral: De certa forma se liga ao anterior: — uma corrente afirma a total autonomia da arte: não está submetida nem à filosofia, nem à ciência, nem à moral. Em si, a arte é amoral, isto é, aquém do bem e do mal. — outra corrente (ligada à função pedagógica) afirma que mesmo não estando sujeito à moral como artista, o artista está sujeito à moral como homem. Portanto, o artista não pode escapar aos valores humanos enquanto tal, e a arte, segundo Croce deve ser considerada como uma missão, exercida como um sacerdócio.118 • Indicação de leitura: ARANHA, Maria Lúcia Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo, Moderna, 2003, p. 374-418. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 1991, p. 186-224. COTRIM, Gilberto. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 292-302. CUNHA, José Auri. Iniciação à Investigação Filosófica. São Paulo: Atual, 1992, p. 239-278. FERRATER MORA, José: “Estética”. In: Diccionário de Filosofia, vol. 2, p. 1031-1033. HUISMAN, Denis. Filosofia para principiantes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984, p. 105-117. 118 Cf. CROCE, Benedetto. Breviário de estética. São Paulo: Ática, 1997. Unidade 04 – Antropologia 144 JUSTINO, Maria José. “A admirável complexidade da arte” in: CORDI, Cassiano e o. Para Filosofar, p. 191-219. MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 1980, p. 162-171. MORAIS, Carlos B. “Estética”. In: Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 2, col. 269-290. NIELSEN NETO, Henrique. Filosofia Básica, p. 279-308. REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. São Paulo, Saraiva, 1989, p. 219- 231. TELES, Antonio Xavier. Introdução ao estudo da filosofia, p. 89-96. TOBIAS, José Antonio. Iniciação à Filosofia. Presidente Prudente, Editora do Unoeste, 1986, p. 181-196. 4.5 FILOSOFIA POLÍTICA Desde os primórdios, o homem viveu em agrupamentos mais ou menos organizados, reunidos em clãs, tribos, grupos étnicos entre outros. Posteriormente, criou sociedades mais complexas, chamadas de Estados. O Estado assumiu, durante a história, diversas formas: pequenas cidades-Estados, Estados de grandes extensões territoriais, teocrático, absolutista, liberal, democrático, socialista etc. Assim, em toda a sua história o homem se preocupou em questionar e refletir sobre a organização social. O filósofo francês do século XVI, La Boétie, dizia que a história das associações políticas entres os homens é a história da própria servidão. E acrescentava que essa servidão é voluntária. Tal afirmação envolve várias questões sobre a condição humana. É o homem naturalmente sociável? Se não é, por que vive em sociedade? Se é sociável, por que tanta inimizade, tanta violência, tanta exploração? Como ocorreu a divisão da sociedade entre aqueles que mandam e aqueles que obedecem? Que motivos levam uma maioria a se entregar nas mãos de uns poucos para que estes conduzam as suas vidas? O que é, enfim, o poder político? Muitas das respostas dadas a essas interrogações apontaram para questões éticas, para a aspiração de um bem comum entre os homens. Talvez entrevendo a necessidade de uma relação íntima entre a ética Unidade 04 – Antropologia 145 — a busca da felicidade e justiça — e a política, em seu sentido superior”.119 4.5.1 O pensamento político: pequeno histórico A reflexão sobre a vida em comunidade, a vida organizada, está presente praticamente desde o início da filosofia. Aliás, como vimos, a organização mais complexa e sofisticada das polis gregas coincide com o nascimento da filosofia e é uma das condições de seu surgimento. O problema da cidade conduz à filosofia e a filosofia, por seu turno, conduz a reformas e à transformação da vida da cidade e dos seus fundamentos religiosos, éticos e sociais. A partir de vários pontos de vista e de várias maneiras, os filósofos tornaram-se assim os teóricos e críticos da polis.120 O pensamento sócio-político é um dos componentes mais importantes da tradição filosófica. Toda a filosofia socrática tem um fundo político: as virtudes humanas (prudência, sabedoria, honestidade, justiça) sobre as quais Sócrates discute são as virtudes necessárias para a convivência na polis. De forma mais caracterizada discorre Platão sobre a vida em sociedade em duas obras: República e Leis. Platão desenvolve uma concepção classista da sociedade — para ele um fato natural, decorrente da divisão das faculdades da alma. O governo pertence naturalmente à elite dos intelectuais. A cidade justa é governada pelos filósofos, administrada pelos cientistas (magistrados), protegida pelos guerreiros e mantida pelos produtores. Cada classe cumprirá sua função para o bem da polis, racionalmente dirigida pelos filósofos. Em contrapartida, a cidade injusta é aquela onde o governo está nas mãos dos proprietários — que não pensam no bem comum da polis e lutarão por interesses 119 COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia ser, saber e fazer: elementos da história do pensamento ocidental. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 228. 120 PACI. Enzo. Storia del pensiero presocratico. Turim: Eri, 1957 apud AMADO, João. O prazer de pensar: 10º ano de filosofia. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 80. Unidade 04 – Antropologia 146 econômicos particulares —, ou na dos militares — que mergulharão a cidade em guerras para satisfazer seus desejos particulares de honra e glória. Somente os filósofos têm como interesse o bem geral da polis e somente eles podem governá-la com justiça.121 Uma referência universal do pensamento social é a obra Política de Aristóteles. Aristóteles constata a radical naturalidade e consubstancialidade da sociabilidade humana: “o homem é um animal político” (anthropos zoon politikon). O homem é por natureza um ser político, porque não é auto- suficiente e necessita do seu semelhante para se desenvolver e para sobreviver. Ele se distingue dos demais animais pelo fato de que estes, embora vivam em associação permanente, só constituem agrupamentos em função dos instintos. O ser humano é o único animal que fundamenta sua convivência com base no conceito do bem e do mal, do justo e do injusto, valores que só se realizam pela presença do Estado. Essas considerações deixam claro que a cidade é uma criaçãonatural e que o homem é por natureza um animal social, e um homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma seria desprezível ou estaria acima da humanidade, e se poderia compará-lo a uma peça isolada do jogo de gamão. Agora é evidente que o homem, muito mais do que a abelha ou outro animal gregário, é um animal social. Como costumamos dizer, a natureza nada faz sem um propósito, e o homem é o único entre os animais que tem o dom da fala. Na verdade, a simples voz pode indicar a dor e o prazer, e outros animais a possuem (sua natureza foi desenvolvida até o ponto de ter sensações do que é doloroso ou agradável e externá-las entre si), mas a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo e, portanto, também o justo e o injusto; a característica específica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade (polis)”.122 Quanto às formas de governo, Aristóteles aponta três, sem preferência pessoal: monarquia, aristocracia e democracia, que no, entanto, podem degenerar em tirania, oligarquia e anarquia. 121 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2006, p. 382. 122 ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martins Fontes, 2006, Livro I, cap. 1. Unidade 04 – Antropologia 147 O pensamento político medieval tende a uma teocracia: a potestas não é conferida pelo povo, mas procede de Deus; o soberano é o braço temporal do poder espiritual (aliança trono-altar).123 Thomas Hobbes (século XVII) é o mentor do absolutismo. O homem, embora vivendo em sociedade, não possui o instinto natural da sociabilidade. Cada homem sempre encara seu semelhante como um concorrente que precisa ser dominado. No estado natural, portanto, o homem é um animal violento, e a única lei que prevalece é a lei do mais forte (homo homini lupus). Por conseguinte, para evitar a guerra de todos contra todos, o homem transfere os seus direitos ao soberano governante, como garantia de segurança. O poder tem de ser absoluto para conter a violência natural do homem e assegurar o bem comum. O Estado surge assim de um pacto de todos com todos: a transferência de direitos como condição para uma vida social segura. O desígnio dos homens, causa final ou fim último – que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros –, introduzindo restrições sobre si mesmos conforme os vemos viver no Estado, é o cuidado com a sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita.124 Concepção inteiramente oposta à de Hobbes é a de Jean-Jacques Rousseau (século XVIII). No estado natural o homem é livre, puro, igualitário e bom (le bon sauvage). “Tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera nas mãos dos homens”.125 Hobbes pretendia que o homem era naturalmente intrépido e não procurava senão atacar e combater. Um filósofo ilustre pensa o contrário, e Cumberland e Pufendorf asseguram também que nenhum 123 Para o aprofundamento dessa questão veja: ESTEVÃO, José Carlos. Da Antiguidade Tardia à Idade Média. In: MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto (Coord.). Curso de filosofia política: do nascimento da filosofia a Kant. São Paulo: Atlas, 2008, p. 185-222. 124 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 127. Para o aprofundamento dessa temática leia especialmente o capítulo XIII (Da condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria) e o capítulo XVII (Das causas, geração e definição de um Estado) do Leviatã. 125 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 7. Unidade 04 – Antropologia 148 ser é tão tímido quanto o homem em seu estado de natureza, sempre trêmulo e pronto para fugir ao menor ruído que o alcance, a qualquer movimento que perceba.126 O mal começa com a organização social, especialmente com a afirmação da propriedade privada. Na organização social há sempre opressão dos fortes sobre os fracos. Mas a organização social é inevitável e como concebê-la? Para Rousseau, o soberano é o povo e todo o poder procede dele. O governante deve ser, então, não o soberano, mas o representante da soberania popular. Ele deve representar e salvaguardar a “vontade geral”. Outro filósofo importante para pensarmos a origem do estado é John Locke. Locke possui tem uma posição moderada e equilibrada: o homem no estado natural não é pura maldade (Hobbes), nem pura bondade inocente (Rousseau). Locke parece não partilhar nenhuma destas duas teses extremas. É certo que no estado natural (no qual não existe organização política) os homens podem violar os direitos e liberdades dos demais (portanto, o homem não é necessariamente bom), mas também é certo que no estado natural os homens contam com uma lei natural, descoberta pela razão: a lei natural impõe limites à consciência e à conduta dos homens. Em conexão com o “estado de natureza”, Locke escreve sobre certos “direitos naturais” do homem (vida, saúde, liberdade, propriedade). Esses direitos decorrem da própria natureza humana. Eles são inalienáveis, isto é, ninguém pode ser desprovido desse direito, nada e ninguém pode negá-los ao homem, e é dever do Estado garanti-los – embora este possa regulamentá- los e determiná-los. Neste sentido, afirma-se nos séculos XVIII e XIX o liberalismo político (John Locke, Utilitarismo) e na sua esteira o capitalismo como teoria de economia política liberal (Adam Smith, Stuart Mill). O liberalismo afirma as liberdades individuais como condição de ser no corpo político. O poder existe somente em função da salvaguarda e garantia das liberdades individuais. O “bem comum” é apenas a soma das 126 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Brasília: Universidade de Brasília, 1985, p. 54. Obs. O filósofo ilustre, trata-se de Motesquieu, O espírito das Leis, I, cap. II; Cumberland (1631-1718), bispo anglicano, adversário de Hobbes, que opõe a lei da “benevolência universal” à “guerra de todos contra todos”. Unidade 04 – Antropologia 149 felicidades individuais. O ideal é então quanto menos governo e quanto mais liberdades individuais. Em conjunção com o liberalismo, afirma-se a ideologia do capitalismo, como rejeição da intervenção do Estado em assuntos econômicos, a liberdade de mercado, a livre concorrência. As teorias liberais defendem o Estado laico, recusando a intervenção da Igreja nas questões políticas. Defendem a economia de mercado, segundo a qual existe um equilíbrio natural decorrente da lei da oferta e da procura, o que reduz a necessidade de intervenções (teoria do Estado mínimo). A economia de mercado supõe ainda a defesa da propriedade privada dos bens de produção e a garantia de funcionamento da economia a partir do princípio do lucro e da livre iniciativa, o que valoriza o espírito empreendedor e competitivo.127 Em decorrência da injustiça social compreendida como consequência natural do capitalismo, surgem, no s. XIX, as ideias socialistas (socialismo francês, Karl Marx, Friedrich Engels). O socialismo pretende superar o capitalismo pela revolução sócio- econômica (cujo fulcro é a abolição da propriedade privada) e chegar a uma nova estruturação social: uma sociedade igualitária, sem classes, justa e feliz. O mundo conheceu políticas fundamentadas na força como solução aos diversos problemas sociais: nazismo, fascismo, comunismo, ditaduras militares. Do breve histórico acima, pudemos captar pelo menos algumas questões que tangem a realidade social e política do homem. Estas questões formalizadas formam justamente os elementos e a temática da Filosofia Política. 4.5.2 Filosofia política: elementos • Indicação de leitura: ANZENBACHER, Arno. Introducción a la Filosofia. Barcelona: Herder, ARANHA, Maria Lúcia Arruda; MARTINS,Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo, Moderna, 2003, p. 206-301. 127 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 1991, p. 157. Unidade 04 – Antropologia 150 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 1991, p. 136-186. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 2006, p. 367-437. JUSTINO, Maria José. “A admirável complexidade da arte” in: CORDI, Cassiano e o. Para Filosofar, p. 87-146. COTRIM, Gilberto. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 228-250. CUNHA, José Auri. Iniciação à Investigação Filosófica. São Paulo: Atual, 1992, p. 117-199. GILES, Thomas Ransom. Ramos Fundamentais da Filosofia: lógica, teoria do conhecimento, ética, política. São Paulo, EPU, 1995, p. 87-125. MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 1980, p. 114-138. NIELSEN NETO, Henrique. Filosofia básica, p. 216-279. REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. São Paulo, Saraiva, 1989, p. 205- 218. SEVERINO, Antonio Joaquim. Filosofia, p. 163-174; 191-200. Unidade 04 – Antropologia 151 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1982 ALMEIDA, Rogério Miranda de. História da filosofia antiga [recurso eletrônico]. Curitiba: FASBAMPRESS, 2021. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 1991 BAUMGARTEN, Alexander Gottlieb. Estética: a lógica da arte e do poema. Petrópolis: Vozes, 1993. BRUGGER, Walter. Diccionário de filosofia. Barcelona: Herder, 1983. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2006. COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia ser, saber e fazer: elementos da história do pensamento ocidental. São Paulo: Saraiva, 1993. CROCE, Benedetto. Breviário de estética. São Paulo: Ática, 1997. DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007. FINANCE, Joseph. Etica Generale. Bari: Tipografica Meridionale, 1975. HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2005. JOLIF, A. Compreender o Homem. São Paulo: Herder, 1975. JONAS, Hans. Princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Puc Rio, 2006. MELLO, Luiz Gonzaga de. Antropologia cultural: iniciação, teoria e temas. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. OLIVEIRA, Admardo Serafim de. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Loyola, 2005 PACI. Enzo. Storia del pensiero presocratico. Turim: Eri, 1957 apud AMADO, João. O prazer de pensar: 10º ano de filosofia. Lisboa: Edições 70. RABUSKE, E. Antropologia Filosófica. Petrópolis: Vozes, 1986 Unidade 04 – Antropologia 152 RENAUD, Michel. Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. vol. 1. Lisboa: Verbo, 1992. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Brasília: Universidade de Brasília, 1985. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. São Paulo: Martins Fontes, 1999. SELVAGGI, Filippo. Filosofia do mundo: cosmologia filosofica. São Paulo: Loyola, 1988. SENA, Gleison. Ética. Curitiba: FASBAMPRESS, 2021. WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 153 UNIDADE 05 – FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS PERÍODOS DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA Objetivo da unidade: estudar a religião como um dos componentes da cultura humana e familiarizar-se com os grandes períodos da história da filosofia. Conteúdos da unidade: 1) A religião na história do pensamento 2) História da filosofia 3) História da filosofia antiga e medieval 4) História da filosofia moderna 5) História da filosofia contemporânea 5.1 A RELIGIÃO NA HISTÓRIA DO PENSAMENTO A religião é um dos elementos fundamentais e constantes das civilizações humanas. Ora, para conhecer uma cultura e uma sociedade precisamos conhecer também a sua religião. Trata-se de uma manifestação que, por abarcar a humanidade inteira, tanto no espaço quanto no tempo (e não só este ou aquele grupo de uma época histórica particular), assume proporções notáveis. Os antropólogos nos informam que o homem desenvolveu uma atividade religiosa desde seu primeiro aparecimento no cenário da história e que 05 Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 154 todas as tribos e todas as populações, qualquer que seja o nível cultural, cultivaram alguma forma de religião.128 A Filosofia, como “ciência do todo”, haveria de interessar-se também pelo fenômeno religioso. Encontramos algo desse interesse já na própria filosofia grega. Assim, de acordo com Almeida: Para o estudioso britânico, Francis M. Cornford, no seu livro Da religião à filosofia, as categorias básicas da filosofia grega já se achavam implícitas na mitologia, e a teoria dos opostos teria como origem uma representação religiosa. Logo, não teria havido nenhuma descontinuidade entre uma e outra área do saber. É o que também pensa Werner Jaeger, na sua obra intitulada, A teologia dos primeiros filósofos gregos.129 Na Idade Média, a filosofia – quase exclusivamente cristã – aceita pacificamente a seu lado uma ciência autônoma da religião, a teologia; antes, considera-se como subsidiária daquela (philosophia ancilla theologiae). A partir da Idade Moderna ocorre um interesse mais positivo pelo fato religioso e não há praticamente filósofo algum que não aborde o assunto. No estudo da religião e do fenômeno religioso, os filósofos seguem procedimentos diferentes, segundo perspectivas variadas: seja respeitando e valorizando o fenômeno religioso, seja negando-o, aceitando-o parcialmente e interpretando-o de maneiras diversas. • As “ciências da religião” A partir do final do século XIX verificamos um fato novo. Começam a proliferar as chamadas “ciências da religião”. As ciências históricas, psicológicas e sócio-antropológicas centram seu interesse sobre o fenômeno religioso como um dos elementos capitais da história e da civilização humana. Vemos, então, aparecerem obras importantes, como a Mitologia Comparada de Max Müller (1856), a Cultura Primitiva de Edward Tylor 128 MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 2004, p. 79. 129 ALMEIDA, Rogério Miranda de. História da filosofia antiga [recurso eletrônico]. Curitiba: FASBAMPRESS, 2021, p. 24. Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 155 (1871), As formas elementares da vida religiosa de Émile Durkheim (1912), As origens da ideia de Deus de Wilhelm Schmidt (1912-1955). Essas ciências da religião carregam, no entanto, ainda muita influência do Positivismo evolucionístico e estão, em geral, seguem um método e um esquema interpretativo: a preocupação básica centra-se na questão da origem da religião e sua evolução na história. • A “Fenomenologia da Religião” A partir da metade do século passado aparecem as chamadas Fenomenologias da Religião. Situada ainda no nível científico, a fenomenologia pretende analisar e descrever mais objetivamente o fenômeno religioso, captar a sua estrutura e seus elementos – sem pretender uma interpretação ou reflexão global desses elementos (o que é objeto da Filosofia da Religião). Dentre os fenomenólogos podemos destacar os seguintes mais importantes: Joachim Wach (The Comparative Study of Religion - 1958), Gerard van der Leeuw (Fenomenologia da Religião - 1933), G. Mausching (A religião, formas de manifestação e estrutura - 1959), Friedrich Heiler (Formas e essência da Religião - 1961), e os grandes Mircea Eliade (O Sagrado e o Profano- Hamburgo 1957 ) e Rudolph Otto (O sagrado - Berlim 1967). A Fenomenologia fornece elementos para a filosofia da religião: antes de refletir sobre o fenômeno religioso é preciso conhecê-lo suficientemente. A fenomenologia da religião teve, efetivamente, um grande desenvolvimento nos últimos anos. 5.1.1 Fenomenologia da religião: definição Como podemos entender a fenomenologia no estudo da religião? Qual é a sua importância para o conhecimento religioso? A Fenomenologia da Religião é um estudo científico dos fatos religiosos e de suas manifestações, assim como se apresentam na história da humanidade. O material, do qual ela se serve, é colhido da observação e dos testemunhos da vida e do comportamento religioso Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 156 do homem, pois que este manifesta a sua atitude religiosa em atos como a oração, em ritos como o sacrifício e os sacramentos, os seus pensamentos e as suas aspirações religiosas enquanto expressas em mitos e símbolos, as suas crenças e as suas convicções acerca da realidade do sagrado e de Deus”.130 Na perspectiva de Caffarena podemos ler: La fenomenologia de la religión puede ser definida en una primera aproximación a su contenido como la compreensión del fenómeno religioso en su totalidad a partir de sus múltiples manifestaciones históricas.131 A fenomenologia da religião tem, portanto, um caráter descritivo: descrever o fenômeno religioso e seus diversos elementos componentes. O seu conteúdo desdobra-se, geralmente, nos seguintes pontos: a experiência religiosa, o sagrado e o profano, a atitude religiosa em seus diversos níveis (oração, sacrifício, culto), a configuração do divino e outros. 5.1.2 Filosofia da religião: objeto A filosofia da religião é o complemento e o termo da fenomenologia: é a reflexão crítica sobre o fenômeno religioso e seus elementos constitutivos. Trata-se da compreensão fundamental da religião no que ela possui de essencial, de sua estrutura como um fato humano. A filosofia da religião diferencia-se da teodiceia pelo objeto. O objeto da teodiceia é Deus ou o Absoluto como causa última do ser. O objeto da filosofia da religião é o fenômeno religioso como um fato humano, elemento fundamental da civilização humana na história. Filosofia da Religião é a investigação filosófica da religião como tal ou daquilo pelo qual as religiões históricas se distinguem, enquanto religião, dos restantes fenômenos culturais. Sua investigação primordial incide sobre a essência da religião, sobre o que esta é e deve ser na plenitude de seu conceito.132 130 CANTONE, Carlo. Le scienze della religione oggi. Roma: LAS, 1981, p. 12 (tradução nossa). 131 CAFFARENA, Jose Gomez. Filosofia de la religion. Madrid: Revista de Occidente, 1973, p. 18. 132 BRUGGER, Walter. Diccionário de filosofia. Barcelona: Herder, 1983, p. 358. Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 157 A filosofia da religião, no entanto, deve ser conduzida com especial cuidado: deve respeitar o fenômeno religioso como específico e autônomo, sem entrar em nenhuma espécie de redução, isto é, englobar o fenômeno religioso em outros fenômenos (sociais, psicológicos, filosóficos) e a partir disso interpretá-lo. O fenômeno religioso haverá, pois, de ser enfrentado como um fenômeno absolutamente singular e irredutível. • Indicação de leitura: BRUGGER, Walter. Diccionário de filosofia. Barcelona: Herder, 1983, p. 358. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 2006, p. 279-313. FERRATER MORA, J., Diccionário de Filosofia, vol. 3, 2002-2015, p. 2834-2836. 5.2 HISTÓRIA DA FILOSOFIA Para estudar a filosofia é indispensável conhecer a história da filosofia, isto é, conhecer o desenvolvimento do pensamento humano no espaço e no tempo. A filosofia desenvolveu-se devido aos gênios do pensamento que questionaram o mundo e o próprio homem e sua vida, e que contribuíram de maneira decisiva – ao lado da ciência, da técnica e da arte – para a evolução da consciência humana e da própria civilização. Conhecer estes personagens e seu pensamento é, portanto, indispensável num Curso de Filosofia. As relações da filosofia com sua história são análogas às relações do homem com seu próprio passado. O adulto não é a criança que foi, é a criança que deixou de ser criança e se tornou adulto. A infância, porém, não foi destruída, ou aniquilada nesse processo, no qual foi sucedida pela adolescência, pela mocidade e pela maturidade. A infância persiste, na forma de ter sido, enquanto presença do passado, contida e superada pelas idades posteriores. Somos e não somos o nosso passado, porque somos também o nosso futuro, que ainda não passou, embora esteja constantemente deixando de ser futuro, para converter-se, ao longo do presente, em passado. A filosofia não é a sua história – porque não é apenas o seu passado, mas também o seu presente e o seu futuro. E, no entanto, é a sua história porque, como diz Hegel, ‘o que somos, o somos também historicamente” e ‘o Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 158 tesouro da razão consciente dela mesma, que nos pertence, que pertence à época contemporânea, não saiu do solo do tempo presente mas (para esse tempo) é essencialmente uma herança, mais precisamente o resultado, do trabalho e, a bem dizer, do trabalho de todas as gerações anteriores do gênero humano’. O estudo da história da filosofia, acrescenta, ‘é o estudo da própria filosofia’. Não se trata, porém, de erudição e, muito menos, de arqueologia, porque essa tomada de consciência do passado filosófico, ou, para usar uma metáfora heraclítica, essa viagem às cabeceiras do rio, do rio do pensamento, não se empreende pelo simples prazer da viagem, mas, para que esse rio, que corre sem cessar, que jamais é o mesmo e é sempre o mesmo, nos reconduza ao presente, nos traga de volta à atualidade, ao momento do tempo em que nos encontramos. Não teria sentido permanecer indefinidamente nas cabeceiras do rio, em suas nascentes, fazendo a exegese dos pensadores e que se acham no começo da história da filosofia. Por mais importante e significativo que seja esse pensamento inicial, é apenas o ponto de partida, o primeiro momento, desse processo que, uma vez desencadeado, não mais se interrompe, prosseguindo até os nossos dias. O primeiro período da história da filosofia grega se prolonga no segundo que, por sua vez, se prolonga no terceiro. Já em Aristóteles, na Metafísica, encontramos a primeira história da filosofia, pois, nos primeiros livros desse tratado, o Estagirita faz um inventário crítico de todo o pensamento anterior ao seu. A filosofia grega se prolonga na teologia cristã, que é platônica e plotiniana até o século XIII, no qual se torna aristotélica. Os germens da filosofia renascentista e mesmo moderna, já se acham na filosofia medieval e, o que chamamos de filosofia contemporânea é um prolongamento imediato da filosofia moderna. A filosofia contemporânea é um resultado e, como resultado é inseparável de toda a filosofia anterior, que nela se acha implicitamente contida. ‘A filosofia moderna, escreve Marx, não fez senão continuar a tarefa já começada por Heráclito e Aristóteles’”.133 Por outro lado, estudar a história da filosofia não é só estudar a evolução das ideias filosóficas em si. Estudar a História da Filosofia é detectar a dimensão mais profunda da própria história, do processo civilizatório em si, entender os grandes temas intelectuais e culturais de uma época. 133 CORBISIER, R. Introdução à Filosofia. Tomo II, Parte 1. São Paulo: Civilização Brasileira, 1983, p. 241. Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 159 A filosofia pressupõe o filósofo que, por sua vez, pressupõe o lugar e o tempo, a cultura, a época e a fase, o momento histórico em que viveu e pensou. A filosofiaé a fronteira da consciência, o limite extremo alcançado pela consciência humana em determinado momento da história. Em suma, desenvolver a História da Filosofia é entender o homem, o tempo, a história e a cultura em suas dimensões mais profundas. 5.2.1 História da filosofia: quadro cronológico Agrupar filósofos em correntes de pensamento resulta um tanto quanto arbitrário, visto que cada filosofia pretende ser autônoma, um modo original de elaborar visões e interpretações da realidade. Quando se agrupa autores numa determinada corrente, há de se ter em mente, portanto, que o que os une não é uma identidade de pensamento, mas apenas algumas características que podem ser mais ou menos assemelhadoras. Igualmente convencional é dividir a História da Filosofia em idades e períodos, já que o que existe na realidade é a plena continuidade e evolução paulatina do pensamento. Convencionalmente, pois, e de acordo com o modelo da história política, divide-se a história da filosofia em quatro idades ou períodos: antiga, medieval, moderna e contemporânea. 5.3 IDADE ANTIGA E MEDIEVAL Estende-se do s. VII a.C. ao s. III d.C. (ou oficialmente até o s. VI d.C. fechamento da Academia de Atenas). É o período da filosofia grega (em pequena parte também romana). • Subdivisão: Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 160 5.3.1 Período pré-socrático (700 a.C. - 470 a.C.)134 Pensamento predominantemente cosmológico: a busca do estofo, a “physis” de todas as coisas. Torna-se mais puramente metafísico na discussão sobre o uno e o múltiplo, a identidade e a mudança (Heráclito e Parmênides). Tales, Anaximandro, Anaxímenes (“Milésios”) Heráclito de Éfeso Anaxágoras de Clazómenes Pitágoras, Filolau (“Pitagóricos”) Xenófanes, Parmênides, Zenon (“Eleatas”) Empédocles de Agrigento Leucipo, Demócrito (“Atomistas”) Sofistas 5.3.2 Período ático (470 - 300 a.C.) É o período clássico, do apogeu da filosofia grega, no brilhante século de Péricles. Atenas torna-se o grande centro cultural grego (Academia, Perípato). A filosofia se universaliza; o centro é a Ontologia, a doutrina do ser. Sócrates (469 - 399) Platão (427 - 347) Aristóteles (384 – 322) 134 Para o aprofundamento no estudo da História da Filosofia Antiga, veja a obra: ALMEIDA, Rogério Miranda de. História da filosofia antiga [recurso eletrônico]. Curitiba: FASBAMPRESS, 2021. Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 161 Platão e Aristóteles realizam num alto grau de perfeição dois tipos clássicos de pensamento. Criaram, um e outro, uma síntese filosófica, que não cessou de exercer poderosa atração sobre os espíritos. Platão tem a inteligência fina, servido por uma imaginação brilhante e inspirado por um profundo sentimento; temperamento poético e místico, deixa gostosamente o mundo das contingências para atingir a esfera serena do ideal e entregar-se a especulações elevadas e sutis. Seus “Diálogos” são obras clássicas da literatura universal. Aristóteles é um amante fervoroso das ciências naturais, observador paciente, que coleciona e classifica os fatos. Ambiciona construir suas teorias sobre larga base empírica. Espírito sistemático, de uma lógica rigorosa, organiza metodicamente os seus trabalhos e os distribui em ramos nitidamente definidos – lógica, física, filosofia primeira, moral, etc. – nunca perde de vista o alvo final, a elaboração de uma síntese universal, que forneça a explicação radical do conjunto das coisas. Seus “Tratados”, quase as únicas obras que nos foram conservadas, são escritos numa língua técnica, sóbria, clara e precisa.135 5.3.3 Período helenístico (300 a.C. - 30 a.C.) Período sob o Império Macedônico; a cultura grega sofre influências externas, sobretudo egípcias e indo-iranianas. • Estoicismo O estoicismo é uma filosofia moral: o ideal humano é o exercício da serenidade e da insensibilidade perante o prazer e a dor, porque o cosmos é regido pelo fatum, o destino inexorável. Zenon de Cítio (340 – 264 a. C.) Crísipo de Solis (279 – 206 a. C.) Sêneca (romano) (4 a. C. – 65 d.C.) Epíteto (romano) (50 – 138) 135 RAYMAEKER, L. Introdução à filosofia. São Paulo: EPU: 1973, p. 78. Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 162 • Epicurismo Igualmente uma filosofia moral, fundamentada no prazer. A vida é a procura de prazeres; mas para obter o bom prazer é necessária uma sábia moderação e buscar sobretudo os prazeres refinados do espírito, que são calmos e profundos. Epicuro de Samos (341 – 270 a. C.) Metrodoro de Lâmpsaco (331 – 277 a. C.) Apolodoro de Atenas (180 – 120 a. C.) Lucrécio Caro (romano) (94 – 50 a. C.) • Ceticismo (Academia) Pirro de Elis (360 – 270 a. C.) • Ecletismo (Perípato) Andrônico de Rodes (séc. I a.C) 5.3.4 Período romano Domínio militar romano, mas a cultura grega continua predominando. Filosofia em decadência. Uma única escola a se destacar: • Neo-platonismo Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 163 O neo-platonismo é renovação da filosofia de Platão, mas com influências da mística oriental, de onde decorre o seu desprezo pela matéria. Doutrina moral ascética, com muitas influências no Cristianismo. Plotino (204 - 270 d.C.) Amônio Sacas (175 – 242) Proclo (412 – 485) 5.3.5 Idade média Estende-se do século III d.C. — os primeiros filósofos cristãos — ao século XV (não é a Idade Média sócio-política no sentido rigoroso). É o período da filosofia cristã: a filosofia é cultivada exclusivamente pelos homens da Igreja. É uma filosofia elaborada sobre os moldes da filosofia grega: inicialmente predominou o platonismo, depois adveio o aristotelismo, trazido do Oriente pelos árabes. A filosofia antiga, porém, recebe as contribuições da fé cristã: trata-se agora de pensar em um mundo já configurado em função da fé e dos valores cristãos. Conjunturas culturais: a ciência suprema da Idade Média era a teologia. A filosofia era considerada como subsidiária da teologia: era natural entender o mundo pela fé; a razão criava as condições para a fé. Apesar disso, a filosofia medieval encerra dentro de si verdadeiras riquezas de pensamento. • Subdivisão: 5.3.6 Filosofia patrística (século III – século VII) Os filósofos da patrística são muito mais teólogos do que filósofos. São filósofos na medida em que assumem uma filosofia (a platônica e a neo- platônica) como fundo de seu pensamento teológico. Utilizam a filosofia grega para a elucidação do dogma na luta contra o paganismo e as heresias. O filósofo mais conhecido desse período é Santo Agostinho. Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 164 Do século VII ao século IX ocorre uma total paralização do pensamento filosófico: época da invasão bárbara. • Padres gregos: Justino Mártir (100 - 165) Clemente de Alexandria (150 - 215) Orígenes (185 – 254) Padres Capadócios: São Basílio Magno (330-379), São Gregório de Nissa (330-395), São Gregório de Nazianzo (329-389). • Padres latinos: Tertuliano (160-220) Boécio (480-524) Ambrósio de Milão (340-397) Santo Agostinho (354-430) 5.3.7 A pré-escolástica (alta idade média, século IX-X) É a etapa de formação do pensamento cristão propriamente dito: a influência predominante ainda é o platonismo e a autoridade de Santo Agostinho é incontestável. João Scoto Eriúgena (+ 877) Santo Anselmo (1033-1109) Pedro Abelardo (1079-1142) Escola de Chartres (Bernardo de Chartres, Teodorico de Chartres, Gilberto de Poitiers). Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 165 5.3.8 Alta escolástica (baixa idade média, século XI-XIII) A Alta escolástica é o apogeu do movimento escolástico; intenso dinamismo filosófico, devido à entrada noOcidente das obras de Aristóteles, o florescimento das Universidades e a atividade científica das grandes Ordens religiosas. Avicena, Averroes (árabes que introduziram Aristóteles no Ocidente) Escola de Oxford Roberto Grossteste (1175-1250) Rogério Bacon (1210-1292) Escola Franciscana (rival dos dominicanos, na linha platônico- agostiniana): Alexandre de Halles (1170-1245) São Boaventura (1221-1274) S. Alberto Magno (1193-1280) São Tomás de Aquino (1224-1274) — o maior filósofo medieval; o cristianismo em moldes aristotélicos. João Duns Scoto (1266-1308) Mestre Eckhart (1260-1327) 5.3.9 Baixa escolástica (século XIV-XV) Período de decadência da Escolástica: escolas que apenas repetiam e comentavam os mestres anteriores. Uma única corrente de destaque: Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 166 • Nominalismo O Nominalismo põe em questão a Metafísica escolástica: não existem as realidades das coisas abstratas e universais; são puros “nomes”. Guilherme de Ockam (1300-1349) Nicolau de Cusa (1401-1464) 5.4 IDADE MODERNA Estende-se do s. XVI (Renascimento) até o século XIX (Idealismo alemão). Contexto sócio-cultural: dissolução do feudalismo, emergência de nova classe (burguesia), descobertas geográficas e científicas, quebra da unidade do cristianismo, emergência da cultura leiga. Grande fator: a imigração de sábios e literatos bizantinos (que não tiveram uma Idade Média), que trouxeram obras literárias ainda desconhecidas ao Ocidente. Isto fez ressurgir o interesse pela Antiguidade clássica: é o Renascimento como retorno ao ideal humano clássico, a valorização dos poderes humanos. A razão, em vez de especular as coisas da fé, volta-se à natureza: ciência. Característica: a filosofia moderna desenvolve-se em torno da análise dos poderes da razão (mesmo no empirismo), seja para enaltecê-la, seja para questioná-la. A filosofia moderna é, antes de tudo, gnosiológica: tudo é tratado a partir dessa perspectiva. Período também de elaboração de ideias sociais e políticas. • Correntes principais: 1. Humanismo e Renascimento: O Humanismo renascentista é um movimento artístico e literário, com reflexos na filosofia: no lugar do teocentrismo medieval, a preocupação pelo Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 167 homem, a valorização da razão humana (não são, porém, ateus). Uma renovação intelectual, inspirada no retorno aos valores da civilização em que se julga que o homem tenha conseguido sua melhor realização, a civilização greco-romana. Ideais filosóficos da primeira filosofia grega: a volta à natureza - ciências. Erasmo de Rotterdam (1467-1536) Jacob Böhme (1575-1624) Maurício Ficino (1433-1499) Pico della Mirandola (1463-1494) Bruno Telésio (1509-1588) Giordano Bruno (1548-1600) Tomás Campanella (1568-1639) 2. Contra-Reforma: Tomás de Vio (1468-1534) Francisco Suarez (1548-1617) 3. Ceticismo: Michel de Montaigne (1533-1592) Pierre Charron (1541-1603) 4. Filosofia Política (Direito): Filósofos que procuraram pensar a nova necessidade gerada pelo novo momento (a queda do feudalismo, a ascensão da burguesia): fundamentar a teoria do Estado e das leis civis. Johannes Althusen (1557-1638) Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 168 Hugo Grotius (1541-1603) Nicolau Maquiavel (1469-1527) Jean Bodin (1530-1596) Tomas Morus (1480-1535) 5. Racionalismo: O Racionalismo — a primeira grande corrente da filosofia moderna — é antes de tudo gnoseológico: a posição segundo a qual só a razão é capaz de propiciar o conhecimento adequado do real e é a fonte primeira de todo o saber humano. René Descartes (1596-1650) Baruch Spinoza (1632-1677) Gotffried Whilhelm Leibniz (1646-1716) 5.1 Crítico do racionalismo Blaise Pascal (1623-1662) 6. Ocasionalismo: É uma ramificação do racionalismo, um racionalismo “pietista”: a fonte dos conhecimentos é a Razão Divina; a nossa razão intui as verdades na Razão Divina. Nicolas Malebranche (1638-1715) Arnold Geulincx (1624-1669) Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 169 7. Empirismo: Corrente contrária ao racionalismo: considera a experiência sensível como a única fonte do conhecimento. Mas é uma posição crítica frente ao próprio conhecimento empírico: dele não podemos desvendar as coisas em si. No fundo, o Empirismo é uma maneira diversa de conceber a razão. Francis Bacon (1561-1626) Thomas Hobbes (1588-1679) John Locke (1623-1704) George Berkeley (1685-1753) David Hume (1711-1776) 8. Iluminismo: O iluminismo não constitui uma corrente de grandes pensadores, mas de divulgadores de ideais como “ciência”, “progresso”, “liberdade”. Luta contra o obscurantismo do regime autoritário e contra a autoridade dogmática da Igreja, avessos que são à fé numa revelação sobrenatural (deísmo). a) Iluminismo francês: Voltaire (1694-1778) Jean le Rond D’Alembert (1717-1783) Denis Diderot (1713-1784) Claude Adrien Helvetius (1715-1771) Julien Offray de la Mettrie (1709-1751) T. D’Holbach (1723-1789) Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 170 b) Iluminismo alemão (Aufklärung): Christian Wolff (1679-1754) Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) 9. Criticismo Immanuel Kant (1724-1804) O pensamento de Kant questiona a fundo o pensamento racionalista e empirista, como também analisa o método das ciências físico-matemáticas, e se concentra na investigação da faculdade da razão ou do conhecimento, propondo um método crítico capaz de determinar o poder e o limite das faculdades de conhecimento e superar os dois sistemas mencionados. 5.5 PERÍODO CONTEMPORÂNEO • Inclui os séculos XIX, XX e XXI. • Filosofia muito diversificada e fragmentada. Difícil de ser sistematizada em correntes devido à sua proximidade a nós. • Filosofia às vezes em estreita conjunção com as ciências humanas: psicologia, psicanálise, antropologia, sociologia, entre outras • Temática específica (mais no século XX): ciência (filosofia da ciência), linguagem (filosofia da linguagem) e sociedade (filosofia social). a) Idealismo: Identifica ideia (pensamento) e ser: o ser na sua essência é ideal. Monismo. No idealismo alemão o racionalismo moderno atinge o ápice com a absolutização e divinização da razão. Filosofia que se caracteriza pela Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 171 elaboração de sistemas grandiosos, enciclopédicos, e que gerou profundas influências, diretas ou indiretas. Johan Gottlietb Fichte (1762-1814) Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) b) Anti-hegelianismo: Filósofos isolados que questionaram o sistema hegeliano sob diversos pontos de vista. Johann Friedrich Herbart (1776-1841) Arthur Schopenhauer (1778-1860) c) Esquerda hegeliana: Grupo de discípulos de Hegel que enveredaram para uma radical crítica religiosa e em direção de um materialismo cada vez mais manifesto. David Friedrich Strauss (1808-1874) Bruno Bauer (1809-1882) Ludwig Feuerbach (1804-1872) Arnolg Ruge (1802-1880) Max Stirner (1806-1856) d) Materialismo Dialético: Deriva da Esquerda hegeliana. De Hegel conserva apenas a Dialética. Filosofia de fundo materialista que faz a crítica social e se torna partido político. Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 172 Karl Marx (1818-1883) Friedrich Engels (1820-1895) Jacob Moleschott (1822-1893) Ludwig Büchner (1824-1899) e) Espiritualismo: Reação aos materialismos do século XIX:propõe a valorização da vida do espírito. Maine de Birain (1766-1824) Victor Cousin (1792-1867) Antônio Rosmini (1797-1855) Vincenzo Gioberti (1801-1852) f) Tradicionalismo: Uma ramificação do espiritualismo: anti-racionalista e fideísta. Joseph de Maistre (1753-1821) Louis de Bonnald (1754-1840) Robert de Lammenais (1782-1854) g) Positivismo: Sistema antimetafísico: valorização única do fato positivo. Cientismo: a fé absoluta na ciência como solução dos problemas humanos e sociais. Projeto de reorganização social fundamentado sobre o estudo positivo dos fatos humanos e sociais: Sociologia. Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 173 Manifestando-se de modo variado em diversos países ocidentais, a partir da segunda metade do s. XIX, o Positivismo reflete, no plano filosófico, o entusiasmo capitalista pelo desenvolvimento da sociedade industrial. Assim, verificamos que o Positivismo expressa um tom geral de confiança nos benefícios da industrialização, bem como um otimismo em relação ao progresso capitalista, gerado pela técnica e pela ciência.136 Augusto Comte (1798-1857) Hippolyte Taine (1828-1893) Ernest Renan (1823-1892) h) Escola Sociológica: Ligada imediatamente ao positivismo: erige o fato social-sociológico num princípio geral de explicação de todos os produtos do espírito humano. Émile Durkheim (1858-1917) Gabriel Tarde (1842-1904) Lucien Levi-Bruhl (1857-1939) i) Positivismo evolucionista: Agrega ao fundo positivista a visão evolucionista decorrente do darwinismo. Herbert Spencer (1820-1903) Ernst Haeckel (1831-1911) 136 COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 177. Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 174 j) Utilitarismo: Também chamado de “positivismo ético”, é essencialmente uma filosofia moral: propõe-se a desenvolver uma moral baseada unicamente nos fatos. O fato fundamental é o “prazer”. Jeremy Bentham (1748-1832) John Stuart Mill (1806-1873) William Hamilton (1788-1856) l) Pragmatismo: Semelhante ao utilitarismo, uma corrente americana. Todos os princípios e teorias devem ser medidos e avaliados pelo êxito prático. William James (1842-1910) Charels Sanders Pierce (1839-1914) John Dewey (1859-1952) m) Metafísica indutiva: Desenvolver a metafísica não aprioristicamente construída, mas a partir da ciência. Rudolf Herman Lotze (1817-1881) Friedrich Albert Lange (1828-1875) Gustav Fechner (1801-1887) Karl Robert Eduard von Hartmann (1842-1906) Johannes Volkelt (1848-1930) Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 175 n) Escola de Baden (Empiriocriticismo): É uma escola neo-kantiana, centrada antes na Crítica da Razão Prática: filosofia da cultura e dos valores. Wilhelm Windelband (1845-1915) Ernest Mach (1834-1916) Ernst Julius Wilhelm Schupper (1836-1913) Heinrich Rickert (1863-1936) o) Escola de Marburgo: A Escola de Marburgo é igualmente neo-kantiana: centra-se sobretudo na explicitação da ciência e da Lógica, a partir de elementos kantianos. Hermann Cohen (1842-1918) Paul Natorp (1854-1924) Ernst Cassirer (1874-1945) p) Filosofia da Vida: Filósofos que desenvolvem sua filosofia sobre uma certa noção de “vida”. Destaque a Friedrich Nietzsche, um dos pensadores mais radicais da história, violentamente anticristão, considera o cristianismo como o corruptor do Ocidente, apresenta a “morte de Deus”, a “transmutação de todos os valores” e o “super-homem”. Friedrich. Nietzsche (1844-1900) Henry Bergson (1859-1941) Maurice Blondel (1861-1949) Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 176 Wilhelm Dilthey (1833-1911) Oswald Spengler (1880-1936) q) Fenomenologia: É sobretudo um renovado método filosófico e exerceu influência em todas as ciências. É caracterizada pela busca de um método filosófico capaz de orientar a análise dentro dos padrões de rigor. Husserl estabelece como campo da análise filosófica certas realidades anteriores àquelas enfocadas pelas demais ciências: deve analisar tudo aquilo que se oferece como conteúdo da consciência. Em outras palavras, a Fenomenologia busca entender não propriamente o saber científico, mas os fundamentos de todo o saber.137 Edmund Husserl (1859-1938) Max Scheler (1874-1928) Adolf Reinach (1883-1917) Franz Brentano (1838-1917) s) Existencialismo: É uma corrente que atinge o grande público depois da II Guerra Mundial, sobretudo nos anos 1945-1960, e que, como tendência filosófica geral, sustenta a prioridade da existência sobre a essência. Insiste na autonomia do indivíduo em face da sociedade e do Estado. Questiona as estruturas dominantes e analisa o viver humano nas circunstâncias atuais. O existencialismo é, fundamentalmente, uma antropologia, quer dizer, uma reflexão filosófica sobre o homem, ou melhor, sobre o ser do homem enquanto existente. Na perspectiva antropológica, surgem os temas, ou os problemas, características do pensamento existencial. A finitude, a contingência 137 COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 213. Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 177 e a fragilidade da existência humana; a alienação, a solidão e a comunicação, o segredo, o nada, o tédio, a náusea, a angústia e o desespero; a preocupação e o projeto, o engajamento e o risco, são alguns dos temas principais de que se têm ocupado os representantes do existencialismo.138 Søren Kierkegaard (1813-1855) Martim Heidegger (1889-1976) Karl Jaspers (1883-1969) Gabriel Marcel (1889-1973) Jean Paul Sartre (1905-1980) Martim Buber (1878-1966) t) Neo-positivismo (Circulo de Viena): Filosofia centrada na análise da linguagem científica (Filosofia da Ciência). As proposições científicas (“verificáveis”) são as únicas com sentido. Radicalmente antimetafísico: as proposições não verificáveis não são nem verdadeiras nem falsas, mas “sem sentido”. Popper é crítico do Círculo de Viena. Moritz Schlick (1882-1936) Rudolf Carnap (1891-1970) Hans Reichenbach (1891-1953) Karl Popper (1902-1994) 138 CORBISIER, Roland. Enciclopédia Filosófica. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 86- 87. Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 178 s) Filosofia Analítica Às vezes englobada no neopositivismo. Filosofia centrada na análise da linguagem formal (Lógica Simbólica) ou da linguagem comum (Filosofia da Linguagem). • Escola de Cambridge: Ludwig Wittgenstein (1889-1951) Bertrand Russell (1872-1970) George Edward Moore (1873-1958) • Escola de Oxford: Gilbert Ryle (1900-1976) John Langshaw Austin (1911-1960) Peter Frederick Strawson (1919-2006) Alfred Jules Ayer (1910-1989) u) Estruturalismo: É antes um método ou processo de pesquisa que, em qualquer tempo, faça uso do conceito de “estrutura”. O termo nasceu na Psicologia da Gestalt e na linguística e foi aplicado às ciências humanas e à Filosofia. O princípio subjacente é que toda produção humana – toda obra de cultura – por mais criativa, genial, consciente e livre que seja, obedece a um código preexistente, nas profundezas do inconsciente natural. Desvendar essa estrutura e interpretá-la levaria à compreensão científica da cultura. O estudo do homem pode, finalmente, constituir-se em estudo científico, a par do estudo da natureza. Ferdinand de Saussure (1857-1913) Claude Levi-Strauss (1908-2009) Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 179 Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) Michel Foucault (1926-1984) Jean Piaget (1896-1980) Roland Barthes (1915-1980) Jacques Lacan (1901-1981) v) Epistemologia:vida concreta de todo o homem é, assim, filosofia. O campônio, o operário, o técnico, o artista, o jovem, o velho, vivem todos de uma concepção do mundo. Agem e se comportam de acordo com uma significação inconsciente que emprestam à vida. Neste sentido, pois, pode-se dizer que todo o homem é filósofo. Não podemos, porém, dizer que todo o homem é filósofo no sentido usual da expressão. De fato, todos vivem a partir de um direcionamento significativo do mundo e da vida, mas nem todos poderão ser chamados de filósofos; nem certa significação inconsciente que dá alguma direção ao agir cotidiano das pessoas pode ser chamada propriamente de filosofia. O que se pode dizer, com propriedade, é que todos vivem a partir de significações, seja de forma mais consciente, seja de forma menos consciente. Contudo, a filosofia propriamente dita, é tão-somente uma forma consciente e crítica de pensar e de agir. A última frase de Arcângelo Buzzi lembra bem esse fato; genericamente, todos são 3 LUCKESI, Cipriano Carlos; PASSOS, Elizete Silva. Introdução à Filosofia. São Paulo: Cortez, 1995, p. 87. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 18 filósofos porque vivem significações; especificamente, alguns são filósofos porque estudam, refletem e vivem significações.4 1.1.1 Filosofia: Abertura de horizontes Seguindo com os nossos estudos, é muito pertinente a concepção de Merleau-Ponty a respeito do filosofar: “A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo.5 Já para Descartes, “viver sem filosofar é como ter os olhos fechados sem jamais fazer um esforço por abri-los; e o prazer de ver todas as coisas que nossa vista descobre não é comparável à satisfação que dá o conhecimento daquelas que se encontram pela filosofia”.6 Ambas as citações nos oferecem mais uma ideia do valor da filosofia. Essa seria uma “expansão da visão”, um “ver” redimensionado. O filósofo é aquele que “vê mais” a realidade, em maior profundidade; ele “vê” o que os outros não percebem. Os gregos, criadores da Filosofia, tinham dela exatamente essa ideia. Eles estavam convencidos de que a verdadeira realidade não é a que os nossos olhos percebem. Que havia uma diferença entre aparência e realidade. O mundo, a realidade possuem uma outra dimensão, uma outra faixa que só a inteligência pode perceber. Para os gregos, o mundo possuía no seu âmago um “logos” (= razão), que só o “logos” humano, a inteligência pode captar. Isso era filosofia para os helênicos: uso da inteligência para perceber a inteligibilidade que está além das aparências. A filosofia, pois, num sentido ainda muito geral”, é uma abertura de horizontes, quando os nossos horizontes mentais se estendem para além dos limites da aparência, dos fenômenos, do corriqueiro. A filosofia nos faz perceber e viver em profundidade, ir às dimensões mais profundas da realidade e da vida, buscar o verdadeiro significado e valor das coisas. Assim, de acordo com o pensador Simon Sinek: 4 LUCKESI, Cipriano Carlos; PASSOS, Elizete Silva. Introdução à Filosofia. São Paulo: Cortez, 1995, p. 84-85. 5 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 19 (Prefácio). 6 DESCARTES. Princípios da filosofia. Lisboa: Guimarães, 1971, p. 31 (Carta prefácio). Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 19 POR QUÊ: muitas pessoas ou companhias conseguem articular com clareza POR QUE fazem O QUE fazem. Quando falo do PORQUÊ, não estou me referindo a ganhar dinheiro – isso é uma consequência. Com o PORQUÊ, refiro-me a qual é o seu propósito, sua causa ou sua crença. POR QUE sua companhia existe? POR QUE você sai da cama toda manhã? E POR QUE alguém deveria se importar?7 1.2 FILOSOFIA: ELABORAÇÃO DA CONSCIÊNCIA CRÍTICA Continuando as nossas reflexões, vejamos a citação de Morin:“Precisamos pensar-nos ao pensar, conhecer-nos ao conhecer. É essa existência reflexiva fundamental, que não é só a do filósofo profissional e não deve estender-se apenas ao homem da ciência, mas deve ser a de cada um e de todos”.8 Para Gusdorf: A aula de filosofia é o momento privilegiado em que se coloca a questão de todas as questões e em que cada existência se acha ela própria novamente colocada em questão. Ruptura das evidências e renovação das evidências. Acreditava-se que tudo era evidente, mas não é. O despertar da reflexão consagra o advento do homem para si mesmo. Ele descobre então sua mais alta liberdade, isto é, sua liberdade mais pessoal.9 O texto de Morin traduz o objetivo imediato da Filosofia na “existência reflexiva”. Em outras palavras, a filosofia conduz a uma plena consciência de si mesmo, à autoconsciência. Uma vida autoconsciente ou de existência reflexiva é aquela que tem consciência de seus atos, que se dá conta de tudo o que pensa, quer, fala e faz. Que se justifica, perante o tribunal de sua razão e da sua consciência, a sua vida e seus atos. O contrário é uma vida sem consciência, que não se dá conta de si mesma, um viver sem razões. É uma existência despersonalizada e massificada, um resultado das pressões sociais, do consumismo, da mídia publicitária e de outros fatores externos à pessoa. 7 SIMON, Sinek. Comece pelo porquê. Rio de Janeiro: Sextante, 2018, p. 51. 8 MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 111. 9 GUSDORF, Georges. Professores para quê? São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 210. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 20 Uma autêntica autoconsciência é também, e ao mesmo tempo, uma consciência crítica. Consciência crítica significa ter pensamento próprio formado e justificado e não ser guiado ou teleguiado por posições alheias. É ter posição própria e não ser simplesmente levado pela opinião pública. O espírito crítico fundamenta-se sobre princípios e valores descobertos pessoalmente e livremente aceitos. A consciência crítica propicia, então, a capacidade de discernimento e escolha. Ela nos faz descobrir, como diz Gusdorf, a nossa liberdade mais pessoal. Pois ser autenticamente livres é justamente isto: sermos guiados por nós mesmos. A consciência crítica nos faz, então, sermos sujeitos de nossa história e não objetos de uma história feita por outros. A atual cultura de massificação, de consumismo publicitário alienante e opressor às vezes, quando ao poder econômico e político interessa consciências adormecidas e passividade irrefletida dos cidadãos — precisa de consciência crítica, e essa é uma das funções principais da filosofia. 1.2.1 Filosofia: fundamentação da prática humana De acordo com o filósofo René Descartes, “o estudo da filosofia é mais necessário para regular nossos costumes e nos conduzir na vida que o uso de nossos olhos para guiar nossos passos”.10 A filosofia não é só teoria, mas se refere também à prática humana: ela tem o poder de “regular os costumes” e “conduzir na vida”. Em outras palavras, a filosofia não se refere só à inteligência (ciência), mas também à ação humana (práxis). A filosofia busca os sentidos e os valores, reflete sobre os fundamentos da vida humana, individual e social, e por isso incide sobre a ação humana. Os sentidos e valores chamam à ação. Kierkegaard ressalta que a filosofia, a ciência, o saber, só têm valor quando se traduzem em “vida espiritual”. É verdade que a filosofia não é a única fonte de valores; estes podem provir também da religião, da arte, do convívio social e da própria experiência vital. A filosofia, porém, tem a função de tornar estes sentidos e valores conscientes, refletidos, justificados, organizados, fundamentados. 10 DESCARTES. Princípios da filosofia. Lisboa: Guimarães, 1971, p. 31 (Carta prefácio). Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 21 A autêntica filosofia, por conseguinte, não se esgota em si mesma, em sistemas teóricos e rígidos, mas está em contínua referência à realidade humana, à vida pessoal, social, política, econômica, cultural do homem,Filósofos independentes que desenvolvem, sob diversos pontos de vista, uma “teoria da ciência”. Henri Poincaré (1854-1912) Gaston Bachelard (1884-1962) Thomas Kuhn (1922-1996) Imre Lakatos (1922-1974) Larry Laudan (1941) Paul Karl Feyerabend (1921-1994) x) Neomarxismo: Filósofos que repensam alguns pontos do marxismo. Contrapõe-se como “marxismo de rosto humano” ao marxismo “ortodoxo”. Destaca-se aqui a Escola de Frankfurt. • Escola de Frankfurt (Teoria Crítica”): Max Horkheimer (1895-1973) Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969) Herbert Marcuse (1898-1978) Georg Lukásc (1885-1971) Jürgen Habermas (1929) Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 180 Walter Benjamin (1902-1940) Erich Fromm (1900-1980) Outros: Ernst Bloch (1885-1977) Roger Garaudy (1913-2012) A. Gramsci (1891-1937) z) Neotomismo: Renascimento da filosofia de São Tomás que predominou nas escolas católicas desde o início do século até os anos 50, incentivado sobretudo por documentos papais (Leão XIII, Pio X, Benedito XV). Trata-se de expor as riquezas do pensamento de São Tomás de Aquino ao mundo moderno e modelar uma cultura propriamente católica. Foram fundados institutos (Louvain, Angelicum) e periódicos neotomistas. Entrou em declínio após a II Guerra. Désiré Mercier (1851-1926) Ambroise Gardeil (1859-1931) R. Garrigou-Lagrange (1877-1964) Jacques Maritain (1882-1973) Antonin-Gilbert Sertillanges (1863-1948) Étienne Henry Gilson (1884-1979) Régis Jolivet (1891-1980) Leonel Franca (1893-1948) Alceu Amoroso Lima (1893-1983) Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 181 aa) Personalismo Grupo de filósofos católicos, franceses, reunidos em torno da revista Esprit. Propõem a revalorização dos valores cristãos na cultura moderna, numa linha diferente do neotomismo. Criticam o capitalismo, inclinando-se pelo socialismo, rejeitando, porém, o ateísmo e o totalitarismo do marxismo. Assim, para Juan Manuel Burgos: O personalismo surgiu na Europa durante a primeira metade do século XX, como movimento de resposta coletiva a um conjunto complexo de questões sociais, culturais e filosóficas: o auge do individualismo e dos coletivismos, tanto de direita (fascismo e nazismo), como de esquerda (marxismo); a preponderância de um materialismo cientificista, que negava o valor da verdade a qualquer proposição não experimental; uma forte crise de valores, percebida por alguns como crise global da civilização ocidental.139 Deste modo, a partir de tais condicionamentos históricos, no personalismo destaca-se o a ideia de pessoa. A ideia central do pensamento personalista é a ideia de pessoa, na sua não-objetivação, inviolabilidade, liberdade, criatividade e responsabilidade; de pessoa encarnada em um corpo, situada na história e constitutivamente comunitária. Escreve um de seus expoentes mais representativos, Jean Lacroix: “O personalismo, de certa forma, gostaria de situar-se como sucessor das filosofias do eu para refutá-las no mundo físico e social”. E em nome da pessoa e sob o signo dessa ideia, o personalismo se apresenta como análise do mundo moderno, impõe-se (escreve Mounier) como protesto contra “seu estado de putrefação avançada” e, considerando “a derrocada de sua estruturação verminosa”, projeta uma saída para a crise através de uma “revolução personalista e comunitária”, fundamentada na fé cristã aceita para além de qualquer reserva e vivida sem compromissos.140 Vejamos a reflexão que faz Emmauel Mounier a respeito do niilismo europeu: 139 BURGOS, Juan Manuel. Introdução ao personalismo. São Paulo: Cultor de Livros, 2018, p. 11. 140 REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia, 6: de Nietzsche à Escola de Frankfurt. São Paulo: Paulus, 2006, p. 399. Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 182 A crise espiritual é a crise do homem clássico europeu, nascido do mundo burguês. Convenceu-se de que realizaria o animal racional, com a razão triunfante a domesticar definitivamente a animalidade, e a felicidade a neutralizar as paixões. Em cem anos foram dadas três machadadas nesta civilização demasiado convencida de seu equilíbrio: para lá das harmonias econômicas, Marx revela a luta sem tréguas de profundas forças sociais; para lá da harmonia psicológica, Freud descobriu o turbilhão dos instintos; finalmente Nietzsche anunciava o niilismo europeu antes de passar o facho a Dostoivsky. As duas guerras mundiais, o aparecimento dos estados policiais e do universo concentracionário, orquestraram depois, largamente, estes temas. Hoje, o niilismo europeu estendeu-se e organiza-se exatamente nos sítios em que se notam os maiores recuos das grandes crenças que mantinham nossos pais em pé: fé cristã, religião da ciência, da razão ou do dever [...].141 E, deste modo, Simone Weil se expressa a respeito da inteligência e da graça: Sabemos por meio da inteligência que aquilo que a inteligência não aprende é mais real que aquilo que ela aprende. A fé é a experiência de que a inteligência é iluminada pelo amor. Só que a inteligência deve reconhecer pelos meios que são próprios, isto é, a constatação e a demonstração, a preeminência do amor. Só deve submeter-se sabendo por quê, e de uma maneira perfeitamente precisa e clara. Sem isso, sua submissão é um erro, e aquilo a que se submete, não importa o rótulo que leve, é outra coisa que não o amor sobrenatural. É a influência do social, por exemplo. No domínio da inteligência, a virtude de humildade não é senão o poder de atenção. A humildade errada se leva a crer que se é nada enquanto si mesmo, enquanto determinado ser humano particular. A verdadeira humildade é o conhecimento de que se é nada enquanto ser humano e, de maneira mais geral, enquanto criatura. A inteligência tem grande participação nisso. É preciso conceber o universal.142 141 MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. São Paulo: Centauro, 2004. 142 WEIL, Simone. A gravidade e a graça. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 141- 142. Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 183 Emmauel Mounier (1905-1950) Simone Weil (1909-1943) Jean Lacroix (1900-1986) René La Senne (1882-1954) São João Paulo II (Karol Wojtyla) (1920-2005) ab) Filosofia da Mente: A Filosofia da Mente é um grande tema da filosofia contemporânea que surge em decorrência das neurociências. Tem implicações com a Ciência Computacional (“Inteligência Artificial”), com a Psicologia, Ciência da Cognição, Teoria da Linguagem, etc. A Filosofia da Mente se evidencia como um problema de fronteira: entre a ciência e a filosofia. Restaura, no fundo, a problemática cartesiana: relação entre mente e corpo. De acordo com Teixeira: [...] é no século XX que vai surgir a Filosofia da Mente propriamente dita. A Filosofia da mente é um novo esforço para retornar os principais temas clássicos que atravessam o pensamento na modernidade. Era preciso fazer uma nova tentativa no sentido de determinar a natureza última dos fenômenos mentais; uma tentativa que faria a reflexão filosófica mergulhar novamente em direção ao exame das grandes teorias metafísicas, mas que não poderia, dessa vez, ignorar os resultados das pesquisas sobre o cérebro humano. A questão das relações entre mente e cérebro passa a construir uma de suas preocupações fundamentais. Era preciso encontrar novas teorias que pudessem dar conta das relações entre fenômenos físicos e fenômenos mentais. Esboçar tais teorias era necessidade premente, sobretudo porque o século XX tinha se iniciado com uma forte tendência para a adoção do monismo materialista, resultante do grande entusiasmo pelas pesquisas neurofisiológicas que se avolumavam cada vez mais.143 143 TEIXEIRA, João de Fernandes. Filosofia da mente [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Fi, 2016, p. 23. Unidade 05 – Filosofiada religião e os períodos da história da filosofia 184 Podemos colocar algumas questões: Os nossos pensamentos, sentimentos, percepções, sensações e desejos ocorrem além do processo físico do nosso cérebro, ou eles são parte do processo físico? A sua mente é algo diferente do seu cérebro – ou a sua mente é o seu cérebro? O que acontece quando você morde uma barra de chocolate? O momento em que você sente o gosto do chocolate? O que é? É um evento físico? Analisando o seu cérebro, é possível capturar totalmente a sua experiência? Gilbert Ryle (1900-1976) John Eccles (1903-1997) Mario Bunge (1919-2020) Roger Penrose (1931) John Searle (1932) Daniel Dennett (1942) David Chalmers (1966) Paul Churchland (1942) António Damásio (1944) ac) Hermenêutica: ciência da interpretação dos textos. A hermenêutica compreende a preocupação com a interpretação, tradução e explicação dos textos da tradição. Aparece inicialmente ligada à interpretação dos textos sagrados (exegese) e depois, gradativamente se configura por uma filosofia propriamente hermenêutica. Também conhecida como hermenêutica filosófica. Principais representantes: Friedrich Schleiermacher (1768-1834) Wilhelm Dilthey (1833-1911) Martim Heidegger (1889-1976) Rudolf Bultmann (1884-1976) Hans-Georg Gadamer (1900-2002) Paul Ricoeur (1913-2005) Unidade 05 – Filosofia da religião e os períodos da história da filosofia 185 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Rogério Miranda de. História da filosofia antiga [recurso eletrônico]. Curitiba: FASBAMPRESS, 2021. BRUGGER, Walter. Diccionário de filosofia. Barcelona: Herder, 1983. BURGOS, Juan Manuel. Introdução ao personalismo. São Paulo: Cultor de Livros, 2018. CAFFARENA, Jose Gomez. Filosofia de la religion. Madrid: Revista de Occidente, 1973. CANTONE, Carlo. Le scienze della religione oggi. Roma: LAS, 1981. CORBISIER, R. Introdução à Filosofia. Tomo II, Parte 1. São Paulo: Civilização Brasileira, 1983. CORBISIER, Roland. Enciclopédia Filosófica. Petrópolis: Vozes, 1974 COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia. São Paulo: Saraiva, 1986. GRONDIN, Jean. Hermenêutica. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 2004. MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. São Paulo: Centauro, 2004. RAYMAEKER, L. Introdução à filosofia. São Paulo: EPU, 1973. REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia, 6: de Nietzsche à Escola de Frankfurt. São Paulo: Paulus, 2006 TEIXEIRA, João de Fernandes. Filosofia da mente [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Fi, 2016. WEIL, Simone. A gravidade e a graça. São Paulo: Martins Fontes, 1993. UNIDADE 01 – FILOSOFIA: CONSTRUINDO SUA NOÇÃO 1.1 FILOSOFIA: CONCEITOS FUNDAMENTAIS 1.1.1 Filosofia: Abertura de horizontes 1.2 FILOSOFIA: ELABORAÇÃO DA CONSCIÊNCIA CRÍTICA 1.2.1 Filosofia: fundamentação da prática humana 1.2.2 Filosofia: integração e fundamentação da cultura humana 1.2.3 Filosofia no contexto dos estudos eclesiásticos 1.3 FILOSOFIA: BUSCA PELA SABEDORIA 1.3.1 A sabedoria nas antigas culturas orientais 1.3.2 A sabedoria grega 1.4 FILOSOFIA: CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS 1.5 A FILOSOFIA COMO CIÊNCIA 1.5.1 A filosofia é uma ciência dos fundamentos 1.5.2 A filosofia é uma ciência da universalidade REFERÊNCIAS UNIDADE 02 – FILOSOFIA E A SUA ORIGEM HISTÓRICA 2.1 A FILOSOFIA NASCEU NA GRÉCIA 2.1.1 Por que a filosofia nasceu na Grécia? 2.1.2 Origem da filosofia a partir do mito 2.1.3 Os alvores da filosofia 2.2 FILOSOFIA E A CULTURA HUMANA 2.2.1 Filosofia e ciências 2.2.2 Filosofia e ciências na história 2.3 O CONHECIMENTO CIENTÍFICO 2.3.1 O método experimental 2.3.2 Ciência e filosofia: distinção 2.3.3 Ciência e filosofia: relação 2.4 FILOSOFIA E RELIGIÃO 2.4.1 O fenômeno religioso 2.4.2 Filosofia e religião: distinção 2.4.3 Filosofia e religião: relação 2.4.3.1 Filosofia e religião: relação de conflito 2.4.3.2 A razão nega a fé 2.4.3.3 A redução da religião pela razão 2.4.3.4 A fé nega a razão 2.4.3.5 Filosofia e religião: relação de harmonia 2.4.4 Filosofia e religião: apreciação crítica 2.5 FILOSOFIA E ARTE 2.5.1 Filosofia e arte: diferenciação 2.5.2 Filosofia e arte: relação REFERÊNCIAS UNIDADE 03 – FILOSOFIA E A SUA PROBLEMÁTICA 3.1 A TEMÁTICA FILOSÓFICA 3.1.1 A divisão da filosofia 3.1.2 Lógica 3.1.3 Lógica uma ciência formal: objeto de estudo 3.1.4 Lógica: uma ciência propedêutica e o seu conteúdo 3.2 TEORIA DO CONHECIMENTO 3.2.1 A problemática do conhecimento: um pequeno histórico 3.2.2 Teoria do conhecimento: objeto 3.2.3 Possibilidade do conhecimento 3.2.4 Essência ou natureza do conhecimento 3.2.5 Origem ou fontes do conhecimento 3.2.6 Espécies (ou formas) de conhecimento 3.3 FILOSOFIA DA CIÊNCIA (EPISTEMOLOGIA) 3.3.1 Filosofia da ciência: contexto histórico 3.3.2 Filosofia da ciência: problemática 3.3.3 Filosofia da linguagem 3.3.3.1 Filosofia da linguagem: contextualização 3.3.3.2 Os sentidos da filosofia da linguagem 3.3.3.3 Filosofia da Linguagem: conceitos 3.3.3.4 Filosofia da linguagem: problemática 3.4 METAFÍSICA 3.4.1 Metafísica: origem do termo 3.4.2 Metafísica: sentido do termo 3.4.3 A metafísica aristotélica: referencial da metafísica universal 3.4.4 Sistemas filosóficos metafísicos e anti-metafísicos 3.4.5 Metafísica: conteúdo básico 3.5 TEODICEIA 3.5.1 Teodiceia: esclarecimento de terminologia 3.5.2 Teodiceia: coroamento da metafísica 3.5.3 Teodicéia: objeto 3.5.4 Teodiceia clássica: conteúdo 3.5.5 Teodiceia: conteúdos hodiernos REFERÊNCIAS UNIDADE 04 – ANTROPOLOGIA 4.1 ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA 4.1.1 Antropologias 4.1.2 A psicologia racional 4.1.3 Antropologia filosófica: origem, determinação e conteúdo 4.2 COSMOLOGIA 4.2.1 Cosmologia: esclarecimento de terminologia 4.2.2 Cosmologia: histórico 4.2.3 Cosmologia: tem sentido uma filosofia sobre o mundo material? 4.2.4 Cosmologia: objeto e conteúdo 4.3 ÉTICA 4.3.1 Ética: conceitos 4.3.2 Ética: perspectiva histórica 4.3.3 Ética: conceituação e problemática 4.3.4 Ética fundamental e ética especial 4.4 ESTÉTICA 4.4.1 Estética: elucidação de conceitos 4.4.2 Estética filosófica: temática 4.5 FILOSOFIA POLÍTICA 4.5.1 O pensamento político: pequeno histórico 4.5.2 Filosofia política: elementos REFERÊNCIAS UNIDADE 05 – FILOSOFIA DA RELIGIÃO E OS PERÍODOS DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA 5.1 A RELIGIÃO NA HISTÓRIA DO PENSAMENTO 5.1.1 Fenomenologia da religião: definição 5.1.2 Filosofia da religião: objeto 5.2 HISTÓRIA DA FILOSOFIA 5.2.1 História da filosofia: quadro cronológico 5.3 IDADE ANTIGA E MEDIEVAL 5.3.1 Período pré-socrático (700 a.C. - 470 a.C.) 5.3.2 Período ático (470 - 300 a.C.) 5.3.3 Período helenístico (300 a.C. - 30 a.C.) 5.3.4 Período romano 5.3.5 Idade média 5.3.6 Filosofia patrística (século III – século VII) 5.3.7 A pré-escolástica (alta idade média, século IX-X) 5.3.8 Alta escolástica (baixa idade média, século XI-XIII) 5.3.9 Baixa escolástica (século XIV-XV) 5.4 IDADE MODERNA 5.5 PERÍODO CONTEMPORÂNEO REFERÊNCIASdentro da história concreta do ser humano no mundo. Neste aspecto, Marx teve razão em dizer que a função da filosofia não é só de “contemplar o mundo”, mas também de “transformar o mundo”. 1.2.2 Filosofia: integração e fundamentação da cultura humana Sem o conhecimento filosófico, através dos grandes princípios diretores do pensamento, não há verdadeiramente cultura humana, no melhor sentido humanista, senão simples acumulação de conhecimentos sobre determinado setor da realidade, sem o poder de sugerir uma visão total e integradora do mundo e da vida. Orientar-se no meio dos problemas universais, que dizem respeito à ciência e à ação humana, só é possível através da Filosofia, que realiza a síntese última e crítica de todos os conhecimentos, tanto os puramente especulativos, quanto os de endereço prático.11 O autor está com toda a razão quando afirma que sem filosofia não há uma autêntica cultura humana, mas apenas “acumulação de conhecimentos”. Há de se distinguir entre uma pessoa “erudita”, que tem muitos conhecimentos, no sentido enciclopédico, e uma pessoa realmente “sábia” e “culta”, que sabe organizar, unificar os conhecimentos e, principalmente, usar esses conhecimentos. Uma pessoa assim tem princípios, uma visão do mundo e da vida, em torno dos quais giram os conhecimentos e todo o seu saber. É essa a função da filosofia como “ciência dos fundamentos”: proporcionar princípios axiais e uma “visão total e integradora do mundo e da vida”. Neste sentido, a filosofia se faz necessária sobretudo no momento atual da história: os meios de comunicação, principalmente, despejam sobre as pessoas e sobre a sociedade de hoje uma avalanche de dados e informações que muito frequentemente não são digeridas e não assimiladas. As pessoas ficam incapacitadas para acomodar, integrar, unificar essas informações e 11 MARTINS, José Salgado. Preparação à filosofia. Porto Alegre: Globo, 1981, p. 15. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 22 dados e perdem a unidade do entendimento e da vida, o que frequentemente conduz a um desacerto, um desiquilíbrio geral. O mesmo ocorre com as ciências. As ciências, hoje tão especializadas e fragmentadas, fornecem um enorme acúmulo de dados e informações que frequentemente desconcertam, deixam as pessoas perdidas, sem saber se situar em meio a esta grande quantidade de conhecimentos, fatos, dados e informações. A filosofia tem, então, a função precípua de, através da crítica e reflexão, unificar, integrar e fundamentar os conhecimentos, tanto os de ordem teórica, como os de ordem prática, buscar princípios básicos e, principalmente, estabelecer uma visão total e integradora do mundo, do homem, e da vida. Além disso, a filosofia tem uma função humanizadora em relação à ciência e à técnica. Isto é, buscar fins humanos para a pesquisa científica e para a produção técnica, encontrando uma orientação para a autêntica vida humana. A ciência e a técnica, por si só, são neutras: podem ir a favor ou contra a pessoa humana. Cabe ao próprio homem imprimir um sentido e uma orientação à ciência e à técnica. E a filosofia tem uma função preponderante neste aspecto. • Indicação de leitura: ARANHA, Maria Lúcia Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo, Moderna, 2003, p. 87-92. (“A reflexão filosófica”). CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 2006 (p. 9-18). COTRIM, Gilberto. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Saraiva, 1993 (p. 44-55). HUISMAN, Denis. Filosofia para principiantes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984 (p. 13-27). LUCKESI, Cipriano Carlos; PASSOS, Elizete Silva. Introdução à Filosofia. São Paulo, Cortez, 1995 (p. 75-90). SHIRATO, Maria Aparecida Rhein. Iniciação à Filosofia: que viva a filosofia viva. São Paulo: Moraes, 1987 (p. 73-89). Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 23 TELES, Antonio Xavier. Introdução ao Estudo da Filosofia. São Paulo: Ática, 1985 (p. 6-10). 1.2.3 Filosofia no contexto dos estudos eclesiásticos Perguntamos: para que serve a filosofia para o seminarista, o sacerdote e o religioso? Como sabemos, a legislação eclesiástica exige como formação para o sacerdócio, para o presbiterato, os cursos de Filosofia e Teologia. Teologia é a formação religiosa, o estudo da história da salvação. Mas por que estudar Filosofia? Por que ela é importante, indicada e exigida como parte da formação? A filosofia possui um alto valor formativo: ela ajuda sobremaneira no amadurecimento intelectual e humano. Esse valor formativo que a filosofia possui e não encontramos em outras ciências. Já houve tentativas de substituir a filosofia por outras ciências, como por exemplo, a psicologia, a sociologia – como parte da formação eclesiástica. Mas logo voltou-se atrás. Nenhuma outra ciência contribui tanto para o amadurecimento intelectual e humano, como a filosofia pelos seguintes aspectos: 1. O sacerdote deve possuir uma cultura “humanista”, ele não é um profissional técnico que lida com máquinas, ele lida com pessoas e deve ter uma compreensão profunda das questões fundamentais do ser humano inserido no mundo e na história. As questões humanas e sociais, a promoção do ser humano, a defesa da vida e da dignidade humana, o conhecimento dos problemas reais e cruciais do ser humano devem ser a base da sua ação pastoral e a filosofia tem tudo a ver com isso. 2. O sacerdote deve ser um homem de posições definidas e opiniões formadas sobre as questões humanas e sociais. O sacerdote deve ter uma fé bem fundamentada, porém também uma “cabeça” esclarecida e firme. 3. A filosofia é, de certo modo, uma base humana para a fé. Não podemos ser “fideístas” ou “fundamentalistas”. A fé, a mensagem cristã, deve corresponder à realidade humana, a uma cultura. E para conhecer a realidade humana, a cultura, é importante a filosofia. 4. O sacerdote deve ser um homem capaz de dialogar e discutir os problemas fundamentais do homem e da humanidade com pessoas de outras Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 24 religiões e até não-crentes. Deve ser capaz de colaborar com os adeptos de outras religiões e até mesmo os não-crentes, para a construção de uma sociedade mais justa e um mundo melhor. Resumindo: - a filosofia tem um alto valor formativo: contribui sobremaneira ao amadurecimento intelectual e humano. - o sacerdote, deve possuir uma cultura “humanista”; - o sacerdote deve ser um homem de posições definidas e opiniões formadas sobre as questões humanas e sociais. - a filosofia é, de certo modo, uma base humana para a fé. - o sacerdote deve ser um homem capaz de dialogar e discutir os problemas fundamentais do homem e da humanidade com pessoas de outras formações e convicções, inclusive com não-crentes. As disciplinas filosóficas devem ser ensinadas de tal modo que os estudantes se sintam conduzidos a adquirir sobre tudo um conhecimento sólido e coerente do homem, do mundo e de Deus, apoiados no patrimônio filosófico perenemente válido. Tenha-se em conta também as investigações filosóficas dos tempos modernos, em especial as de maior influência na respectiva nação, bem como o mais recente progresso das ciências, para que os alunos conheçam de maneira exata a índole da época presente e se preparem convenientemente para o diálogo com os homens de seu tempo [...] Atenda-se diligentemente para a relação da filosofia com os verdadeiros problemas da vida e também com as questões que agitam a mente dos estudantes. Sejam eles ajudados em descobrir o nexo existente entre os argumentos filosóficos e os mistérios da salvação, que são estudados na teologia, à luz superior da fé.12 • Indicação de leitura: CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Orientações para os Estudos Filosóficos e Teológicos. São Paulo: Paulinas, 1987. (Estudos da CNBB, 51), p. 57-65. 12 CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Decreto Optatam Totius: sobre a formação sacerdotal.Brasília: Edições CNBB, 2018, 15. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 25 JOÃO PAULO II. Carta encíclica Fides et Ratio: aos bispos da Igreja Católica sobre as relações entre fé e razão. São Paulo: Paulinas, 1998. SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. O Ensino da Filosofia nos Seminários. Roma: Typis Polyglottis Vaticanis, 1972. 1.3 FILOSOFIA: BUSCA PELA SABEDORIA Um primeiro passo em direção ao esclarecimento da natureza e do objeto da Filosofia pode ser dado a partir de sua etimologia. “Filosofia” (do grego “filos” = amigo + “sofia” = sabedoria) significa literalmente “amor pela sabedoria”, “ser apaixonado pela sabedoria. Conta- se que o criador do termo foi Pitágoras que, achando que a sabedoria convém propriamente só a Deus, queria que o chamassem não de “sábio”, mas de “amigo da sabedoria”. O mesmo diz Sócrates, relatado por Platão: “o nome de sábio, Fedro, me parece demasiado grande e só aplicável à divindade. Mais adequado seria o de amigo da sabedoria”. Convém esclarecer aqui o sentido da palavra “sabedoria”. 1.3.1 A sabedoria nas antigas culturas orientais Nas antigas culturas do Oriente encontramos a figura do “sábio” e o elemento “sabedoria”: entre os egípcios, os mesopotâmicos e entre os próprios hebreus (livro da Sabedoria da Bíblia). O “sábio” aqui é o mestre educador que está presente geralmente nas cortes, ensinando a “sabedoria” aos jovens das classes de elite. “Sabedoria” significa neste contexto a “arte de viver” um conjunto de regras sobretudo morais e sociais que tinham por objetivo a formação do jovem para que alcançasse prestígio social e soubesse viver na comunidade (a educação nas virtudes, como educar os filhos, tratar os amigos, enfrentar a riqueza e a desgraça, etc.). O sábio transmitia a “sabedoria” geralmente em fórmulas fixas, para que fosse facilitada a sua memorização: sentenças, máximas, provérbios, comparações, etc. Nas culturas orientais e, portanto, anteriores à grega, sabedoria podia designar: Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 26 Arte de viver: conjunto de regras morais e sociais, com função didático-pedagógica. Sábio: mestre educador das cortes. Gênero sapiencial: sentenças, provérbios, máximas, comparações. Sabedoria: uma “filosofia” popular, de conotação religiosa. 1.3.2 A sabedoria grega Na cultura grega, no entanto, “sabedoria” adquire um outro significado. Podemos dizer, a princípio, que “sabedoria” entre os gregos significa “ciência”, “racionalidade”. Entender o mundo e o homem pela razão, inteligência. Os gregos foram os primeiros a pesquisar e a entender o mundo racionalmente, fazendo então uma passagem a partir das explicações mitológicas para uma reflexão propriamente racional, ou, como diz, à luz da razão natural (embora em outras culturas se desenvolvessem elementos de cálculo, a matemática e até noções de astronomia, medicina).13 Os gregos estavam convencidos de que a própria realidade escondia as suas causas e as suas explicações. Era necessário ir buscá-las e descobri- las. O homem, de sua parte, possui o instrumento adequado para descobrir a racionalidade e a lógica das coisas: a sua própria razão. Pelo seu “logos” o homem descobre o “logos” (razão) do mundo e das coisas. A cultura grega é a primeira cultura eminentemente intelectualista, que identifica a essência humana na razão. A ânsia de entender racionalmente as coisas criou a um só tempo a Filosofia e a Ciência. ‘É necessário, dizia Platão, ir até onde nos leva a razão e o espírito’ (Rep. III, 394). A razão levou os gregos a ver uma ordem, uma unidade, uma harmonia por detrás da multiplicidade caótica das coisas e dos acontecimentos. A realidade não era o que estava à nossa frente, mas sim, o que a razão iria encontrar e dizer. Daí a busca das causas e dos princípios. Há uma citação de Eurípides, repetida por Vergílio, que reflete esta motivação 13 Para um aprofundamento da questão das relações entre o mito e a filosofia veja: ALMEIDA, Rogério Miranda de. Eros e tânatos: a vida, a morte e o desejo. São Paulo: Loyola, 2007, especialmente o tópico Ciência, mito e religião, pp. 49-55. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 27 intelectual dos helênicos: ‘feliz aquele que aprendeu a pesquisar as causas’.14 A ciência – sabedoria grega adquire um caráter especial: ela desenvolveu-se no sentido que hoje dizemos “filosófico” e não científico- positivo. Os gregos não desenvolveram o método científico (apesar de Euclides, Ptolomeu, Hipócrates): não lhes interessava propriamente os fatos, os fenômenos, mas antes a razão, o princípio das coisas. A sabedoria grega não é um enciclopedismo, um conjunto muito vasto de conhecimentos, um saber tudo sobre todas as coisas. É mais, um conhecimento em profundidade do que em horizontalidade: significa não possuir um grande cabedal de conhecimentos, mas conhecimentos aprofundados, radicais, que penetram dentro das coisas, vencendo as aparências, para descobrir as suas causas ou razões. “A filosofia não é a ciência de tudo, mas a ciência do todo”, dizia Triboudet. Aqui então, diferenciamos na sabedoria, segundo os gregos, os seguintes termos: x Ciência: racionalidade; é compreender o mundo pela razão, pela inteligência (e isso em oposição à explicação mitológica da realidade) x Logos do mundo: o mundo possui uma “razão” dentro de si; as causas das coisas estão nas próprias coisas e não no determinismo que os mitos e a religião grega apresentavam. x Logos do homem: é o instrumento para captar e compreender o “logos do mundo”. 1.4 FILOSOFIA: CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS Definir a filosofia de forma exata e clara não é uma tarefa fácil. Uma definição, para ser boa, deve ser concisa, precisa e clara; deve oferecer-nos um conceito inicial e abrangente de um determinado objeto, a partir do qual entendem-se outras noções sobre esse objeto. As definições da filosofia podem ser variadas, dependendo do ponto de vista ou do enfoque que se a considera. Ademais, uma definição da 14 TELES, Antônio Xavier. Introdução ao Estudo da Filosofia. Ática, São Paulo, 1985, p. 22 Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 28 filosofia colocada no início é sempre problemática: é pouco compreensível aos não iniciados. Para uma melhor compreensão da filosofia, sua natureza e seu objeto, talvez o melhor procedimento a ser adotado seria o de iniciar- se gradualmente no mundo filosófico, adentrar na sua problemática, ter dela uma vivência gradativa e só então formular-se noções e definições. Apesar dessas ressalvas, tiraremos bom proveito analisando e comparando diversas definições, com o objetivo de, a partir delas, elaborarmos uma noção mais exata e mais clara da natureza da ciência filosófica. “A filosofia é a ciência da realidade inexperimentável. Ciência é o conjunto de conhecimentos metódicos e sistemáticos. Inexperimentável é tudo aquilo que não se percebe pelos sentidos, nem armados nem desarmados, mas percebe-se pela inteligência”.15 Uma definição razoável. O termo “inexperimentável” poderia, contudo, levar a um equívoco: o de entender a Filosofia como uma ciência que trata de coisas que não têm relação com a experiência humana, com a vida concreta do homem. Não é esse o caráter da filosofia, como já tivemos a oportunidade de observar. O autor, porém, fala que a filosofia trata de uma realidade que “percebe-se pela inteligência”. E isso é correto: o “trabalho” da filosofia é o trabalho da inteligência. A inteligência percebe além daquilo que os sentidos percebem. “A filosofia é um conjunto de conhecimentos naturais e metodicamente adquiridos e ordenados, que tende a fornecer a explicação fundamental de todas as coisas”.16 A primeira parte da definição é apenas uma explicitação do conceito de “ciência”. Filosofia é a “explicação fundamental de todas as coisas”; ela busca os fundamentos, a explicação última da realidade. Embora não fique muito claroaqui a distinção entre filosofia e ciência, porque a ciência é também, de certa forma, uma explicação fundamental das coisas, em contraposição a uma explicação superficial ou aparente. 15 DREHER, Edmund Que é filosofia? Curitiba: 1977, p. 48. 16 RAYMAEKER, Luis de. Introdução à filosofia. São Paulo: EPU, 1973, p. 36. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 29 Semelhante é a definição de São Tomás de Aquino: “Philosophia est cognitio rerum per primis et universalibus causis, sub lumine naturali rationis17”.18 Vejamos os elementos da definição tomista: — A filosofia é “conhecimento das coisas”; quer dizer, é uma ciência. — E seu instrumento é “a luz natural da razão”; em distinção da “luz da fé”, que caracteriza a religião. — Os termos mais importantes da definição são: “através das causas primeiras (ou últimas ) e universais”. Isto quer dizer que a filosofia busca a razão última sobre as coisas. “Universais” significa que busca respostas válidas para todos e para todo o tempo. Outra definição ainda: “A filosofia é aquele conhecimento especulativo ou analítico sobre a realidade como um todo ou a respeito de certos problemas que não caem sob a alçada das ciências, principalmente os do conhecimento e da ação”.19 Vejamos os termos dessa definição: — A filosofia é “conhecimento especulativo”. “Especular” significa “espiar”, “esquadrinhar”, quer dizer, nos dá a ideia que quer descobrir algo oculto. Vem com o sinônimo: “analítico”. “Análise” = decompor, destrinchar algo, para ver o seu interior, para ver a sua realidade interna. — “da realidade como um todo”, isto é, a filosofia não se interessa somente por algum aspecto da realidade, mas pela realidade em si, tomada como um todo. — Acrescenta-se algo: “certos problemas que não caem sob a alçada da ciência” são o tema da filosofia. Quer dizer que a filosofia vai adiante da ciência positiva, para tratar de certos assuntos que a ciência não pode resolver, que lhe escapam da alçada. — Esses problemas são principalmente os “do conhecimento e da ação”. “Conhecimento” é um importante assunto da filosofia: o que podemos 17 Tradução: A filosofia é conhecimento das coisas através das causas primeiras e universais, sob a luz natural da razão. 18 TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles. Campinas: Vide Editorial, 2020, I, 1.3. 19 TELES, Antonio Xavier. Introdução ao estudo da filosofia. São Paulo: Ática, 1985, p. 53. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 30 conhecer, o que é a verdade? “Ação”: qual o fundamento do agir humano; como o homem pode agir e como não pode? Mais uma definição: “A filosofia é uma forma crítica e coerente de pensar o mundo, produzindo um entendimento de seu significado e do seu sentido, formulando, dessa forma, uma concepção geral do mundo, uma cosmovisão da qual decorre uma forma de agir”20 Essa é uma definição mais descritiva da filosofia, que inclui: — o procedimento da filosofia: “uma forma crítica de pensar o mundo”. — o objetivo da filosofia: “um entendimento do significado, do sentido”. — o termo final (ou o resultado) da filosofia: “concepção geral do mundo, cosmovisão”. — a aplicação da filosofia: “da qual decorre uma forma de agir”, indicando a natureza também prática da Filosofia e não só teórica. Levando em consideração as definições acima, sem dúvida não podemos fazer uma síntese delas, mas também já estamos, com certeza, em condições de nos formular uma ideia melhor e mais precisa da filosofia.21 Apesar das várias e diferentes formulações das definições, podemos encontrar nelas muita coisa em comum, alguns elementos que praticamente aparecem em todas elas. 1.5 A FILOSOFIA COMO CIÊNCIA A Filosofia pretende ser e é realmente uma ciência, rigorosamente falando. Ela tem o seu lugar entre as ciências humanas, embora seu caráter seja diferente das demais ciências. Diversos filósofos, entre eles Descartes e Husserl, tiveram como grande preocupação a fundamentação da Filosofia como ciência verdadeira. 20 LUCKESI, Cipriano Carlos; PASSOS, Elizete Silva. Introdução à filosofia. Salvador: UFBA, 1992, p. 73. 21 Sugerimos que o estudante pesquise outras definições de filosofia e faça uma análise dos diversos elementos presentes. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 31 Portanto a Filosofia não é apenas uma discussão, uma conclusão definitiva, nem é uma retórica, uma habilidade de linguagem, ou arte de bem falar. Ela é verdadeiramente uma ciência: a) Pela sua racionalidade e criticidade. A Filosofia situa-se no nível da razão, é uma coisa racional, seu instrumento é a inteligência e seu critério último é a evidência da razão. A Filosofia utiliza-se de argumentação, demonstração, raciocínio lógico - este é o seu procedimento. Por isso, a Filosofia difere tanto da Arte, que se refere à emoção, como da Religião, que se fundamenta sobre a fé e a autoridade. A Filosofia, por seu caráter, prescinde da emoção, da fé e da autoridade. b) Por seus procedimentos metodológicos Toda a ciência se fundamenta sobre um método. Também a filosofia possui método próprio. Quer dizer, os conhecimentos na filosofia não são reunidos ao acaso, de forma caótica. Ela segue um procedimento próprio, um caminho metódico. Embora o método da filosofia seja diferente do das outras ciências naturais (ou positivas), seu o procedimento segue um método no sentido próprio. O aprofundamento do método filosófico será visto no decorrer do curso. c) Pela sua sistematicidade. Toda a ciência se completa também num “sistema”, quer dizer organização dos conhecimentos num todo coerente. Assim também é a filosofia: os conhecimentos não são simplesmente acumulados, mas organizados em torno de princípios centrais, formando uma interdependência das verdades, numa unidade coerente. Todo o pensamento filosófico tende a construir um sistema. As filosofias dos grandes filósofos são “sistemas filosóficos”. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 32 1.5.1 A filosofia é uma ciência dos fundamentos A Filosofia é uma ciência, mas uma ciência “sui generis”, uma ciência de caráter próprio. Não é uma ciência particular, ao lado de outras ciências, ditas “experimentais” ou “positivas”, mas é uma ciência “de fundo” - uma “ciência dos fundamentos”. Ela é uma “ciência dos fundamentos” em tríplice sentido: a) Porque busca a razão última, os primeiros princípios das coisas Isso vem expresso nas definições acima mencionadas com as palavras: “ciência do inexperimentável”, “a explicação fundamental de todas as coisas”, por meio das causas primeiras e universais”, etc. Na medida que vamos aprofundando a nossa experiência com a filosofia, aumentaremos o nosso entendimento do significado desses termos. Em geral, quer dizer que a filosofia não pára, não se limita diante de uma explicação, ela ainda precisa de outra explicação ou envolve ainda outras perguntas, outros questionamentos. Ela pretende “ir até o fim”, até a última evidência, o último significado ou valor das coisas. A Filosofia, com efeito, procura sempre resposta a perguntas sucessivas, objetivando atingir, por vias diversas, certas verdades gerais, que põem a necessidade de outras: daí o impulso inelutável e nunca plenamente satisfeito de penetrar, de camada em camada, na órbita da realidade, numa busca incessante de totalidade de sentido, na qual se situem o homem e o cosmos. Ora, quando atingimos uma verdade que nos dá a razão de ser de todo um sistema particular de conhecimento, e verificamos a impossibilidade de reduzir tal verdade a outras verdades mais simples e subordinantes, segundo certa perspectiva, dizemos que atingimos um princípio, ou um pressuposto.22 b) Porque tem por temática os problemas “de fundo” da humanidade A temática, o assunto da Filosofia são as questões fundamentais que, se pode dizer, são as mais importantes, que tocam a própria vida do homem, 22REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 4. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 33 são “existenciais” para cada homem que está no mundo e para a humanidade em geral. Esse questionamento, mais fundamental, cada homem pode fazê-lo e geralmente o faz, colhendo respostas de seu meio cultural, da religião no mais das vezes. A filosofia enfrenta essas questões de forma explícita e sistemática. São inúmeras essas questões. Por exemplo: — O que é o ser, a verdadeira realidade? A matéria, espírito, ambas as coisas? Ou a questão de Heidegger: “por que o ser e não o nada?” — O que é que explica tudo o que existe? Deus ou não é necessário Deus? — Quem é o homem, afinal de contas? Por que está ele aí? Qual o sentido da vida e da morte? Para onde caminha a humanidade? — O que é lícito e o que não é lícito ao homem fazer? O que é o bem e que é o mal? Por que o mal no mundo? — O homem deve ou não deve viver em comunidade, sociedade? Qual é a melhor maneira de viver em sociedade? Pode haver justiça e igualdade? Como atingir a justiça? c) Porque a filosofia se situa além das ciências positivas Isto está expresso na definição já vista de Xavier Teles: “A Filosofia é aquele conhecimento… de certos problemas que não caem sob a alçada das ciências”. Como foi falado “a filosofia começa onde a ciência pára”. E isso é verdade: o objeto das ciências são os fenômenos experimentais; elas buscam uma explicação suficiente para os fenômenos, a relação entre os fenômenos, suas leis e têm um objetivo utilitário, a aplicação. Ciência - técnica. Saber - fazer. As ciências não têm como objetivo, nem sequer o poder, de fazer um questionamento mais além do experimentável. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 34 Disse Wittgenstein: “se todos os problemas científicos estivessem resolvidos, as questões realmente humanas não seriam sequer tocadas”.23 Realmente, a realidade envolve questões que estão além da alçada das ciências. E esse é o campo próprio da filosofia. Muitas vezes, as próprias ciências “esbarram” em questões de fundo (por exemplo na Biologia: o que é a vida, afinal de contas?) e não raro os cientistas entram no campo além-científico (por exemplo Freud, Einstein). 1.5.2 A filosofia é uma ciência da universalidade A filosofia não só é uma ciência fundamentadora, mas também universalizante, totalizante. Isto está expresso em algumas definições acima: “per primis et universalibus causis” (São Tomás), “um conhecimento especulativo ou analítico sobre a realidade como um todo” (Xavier Teles), “formando uma concepção geral do mundo, uma cosmovisão” (Luckesi & Silva Passos). Que significa isso? A Filosofia é uma ciência da universalidade em dois sentidos: a) Porque seu campo é universal A Filosofia não trata de um assunto específico, ou de alguns assuntos específicos, mas pode tratar de qualquer assunto que envolva um questionamento racional. Nisto está a diferença da filosofia em relação às demais ciências: as ciências positivas ou experimentais têm todas um campo e um objeto particular, e não saem dele. A Filosofia tem um campo universal. A Filosofia pode se voltar para qualquer objeto. Pode pensar a ciência, seus valores, seus métodos, seus mitos; pode pensar a religião; pode pensar a arte; pode pensar o próprio homem em sua vida cotidiana. Uma história em quadrinhos ou uma canção popular podem ser objeto da reflexão filosófica. A Filosofia incomoda porque questiona o modo de ser das pessoas, do mundo. Questiona as práticas política, 23 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994, 6.52. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 35 científica, técnica, ética, econômica, cultural, artística. Não há nada onde ela não se meta, não indague, não perturbe.24 b) Porque a filosofia busca a integração e a totalidade dos conhecimentos A filosofia busca reunir, organizar e harmonizar todos os conhecimentos. Estes conhecimentos, todo o nosso saber são reunidos em torno de certos princípios ou verdades centrais, a partir dos quais adquirem significado todos os demais conhecimentos ou verdades. A filosofia visa, pois, formar uma visão totalizante ou global, ordenada e coerente da realidade, do mundo e do homem. Esta é também a função da filosofia em relação às demais ciências: globalizar, universalizar. Os conhecimentos científicos são parciais, fragmentários e necessitam ser globalizados numa visão abrangente do mundo e do universo. Quando se afirma que a Filosofia é a ciência dos primeiros princípios, o que se quer dizer é que a Filosofia pretende elaborar uma redução conceitual progressiva, até atingir juízos com os quais se possa legitimar uma série de outros juízos integrados em um sistema de compreensão total. Assim, o sentido de universalidade revela-se inseparável da Filosofia.25 • Indicação de leitura: CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 2006 (p. 19-24). CORBISIER, Roland. Introdução à Filosofia. Tomo I. São Paulo: Civilização Brasileira, 1983 (p. 51-124). REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. São Paulo, Saraiva, 1989 (p. 3-8). 24 ARANHA, M. L. A.; MARTINS, M. H. P. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 1991, p. 69. 25 REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 4. Unidade 01 – Filosofia: construindo sua noção 36 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Rogério Miranda de. Eros e tânatos: a vida, a morte e o desejo. São Paulo: Loyola, 2007. ARANHA, Maria Lúcia de; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo, Moderna, 2003. ARANHA, Maria Lúcia de; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 1991. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 2006. CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Decreto Optatam Totius: sobre a formação sacerdotal. Brasília: Edições CNBB, 2018. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Orientações para os Estudos Filosóficos e Teológicos. São Paulo: Paulinas, 1987. CORBISIER, Roland. Introdução à Filosofia. Tomo I. São Paulo: Civilização Brasileira, 1983. COTRIM, Gilberto. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Saraiva, 1993. DESCARTES. Princípios da filosofia. Lisboa: Guimarães, 1971 DREHER, Edmund. Que é filosofia? Curitiba: 1977. GILES, Thomas Ranson. Curso de iniciação à filosofia: origem, significado e panorama histórico. São Paulo: EPUC, 1985. GUSDORF, Georges. Professores para quê? São Paulo: Martins Fontes, 2003. HUISMAN, Denis. 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O Ensino da Filosofia nos Seminários. Roma: Typis Polyglottis Vaticanis, 1972. SHIRATO, Maria Aparecida Rhein. Iniciação à Filosofia: que viva a filosofia viva. São Paulo: Moraes, 1987. SIMON, Sinek. Comece pelo porquê. Rio de Janeiro: Sextante, 2018. TELES, Antonio Xavier. Introdução ao estudo da filosofia. São Paulo: Ática, 1985. TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles. Campinas:Vide Editorial, 2020. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 39 UNIDADE 02 – FILOSOFIA E A SUA ORIGEM HISTÓRICA Objetivo da unidade: Estudar a filosofia na Grécia e a sua relação com a cultura humana: ciência, religião e arte. Conteúdos da unidade: 1) A filosofia nasceu na Grécia. 2) Filosofia e a cultura humana. 3) O conhecimento científico. 4) Filosofia e religião. 5) Filosofia e arte. 2.1 A FILOSOFIA NASCEU NA GRÉCIA O berço da filosofia é a Grécia. Esta é uma afirmação tão comum quanto verdadeira. A filosofia propriamente dita germinou na cultura grega, alguns séculos antes de Cristo, não porém em Atenas, mas nas colônias gregas da Ásia Menor (atual Turquia) no século VI a.C. Entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico, demonstrativo e sistemático da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e de suas transformações, da origem e causas das ações humanas e do próprio pensamento, a filosofia é uma instituição cultural tipicamente grega que, por razões históricas e políticas, veio 02 Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 40 a tornar-se, no correr dos séculos, o modo de pensar e de se exprimir predominante da cultura europeia ocidental.26 Na verdade, não houve Filosofia, no pleno sentido da palavra, nem nas antigas civilizações orientais, nem na própria Grécia antes do s. VI a. C. Houve, sim, elementos filosóficos ou reflexões sobre o homem, a vida e o mundo desde as mais antigas culturas que se conhece, mas esses elementos ou reflexões estão envoltos em outros contextos, geralmente religiosos. Assim, por exemplo, a filosofia hindu ou a chinesa (Confúcio, Lao- Tse) estão em nítido contexto religioso. Os Upanishads são livros religiosos. Embora contenham profusas reflexões sobre o homem, a vida e a morte, o fundo é sempre religioso. No máximo podemos chamá-los de “sabedoria”, no sentido geral. Também em contexto religioso está a “filosofia” da sabedoria popular de Israel. O livro de Jó é um magnífico exemplar de reflexão poético- filosófico sobre o destino humano. Em outros livros do Antigo Testamento, como Provérbios, Sabedoria ou Sirach, essa sabedoria popular se expressa em provérbios, máximas, comparações, que contêm inúmeras reflexões sobre as diversas situações humanas. Mas o fundo continua sendo religioso: a “sabedoria” é antes de tudo um dom de Deus. O gênero sapiencial era também vastamente cultivado em outras culturas do Oriente, como no Egito (“Aicar”, “Amenemopet”), na Babilônia, entre os acádicos, cananeus, árabes. Mas, no todo, podemos rotular essa “filosofia” de “sabedoria popular”: é a experiência humana acumulada e transmitida através das gerações. Filosofia, porém, no sentido autêntico, como uma pesquisa racional, uma ciência, desvinculada da religião, encontramos pela primeira vez na cultura grega, seis séculos antes de Cristo. Foram só os gregos que desenvolveram, na Antiguidade, a filosofia no sentido de uma ciência verdadeira. Os chamados “pré-socráticos” são os primeiros verdadeiros filósofos da história. 26 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 26. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 41 2.1.1 Por que a filosofia nasceu na Grécia? Uma pergunta: por que razões a filosofia nasceu entre os gregos e não em outras culturas? Poderíamos perguntar: por que a filosofia não surgiu na cultura egípcia, que foi uma cultura poderosa e duradoura, mais antiga que a grega? É normalmente difícil encontrar razões para um fato histórico ou para fatos em geral. Como, por exemplo, por que eu nasci no Brasil e não em outro país? No entanto, podemos aduzir duas razões que, se não explicam totalmente o fato de a filosofia ter surgido na cultura grega, pelo menos ajudam a justificá-lo. As razões são complementares uma a outra, uma praticamente se deduz da outra. a) Os gregos não possuíam livros religiosos O elemento fundamental das grandes culturas da Antiguidade era a religião, cujas doutrinas e preceitos eram codificados em livros religiosos. A cultura hebraica possuía a Bíblia, os árabes o Corão, os hindus os Upanishads; também os egípcios possuíam seus livros religiosos. Esses livros traziam a solução religiosa para as grandes questões humanas. Por exemplo, a Bíblia: o que é o mundo? Uma criação de Deus. O que é o homem? Para que vive? O que o homem pode fazer e o que não pode fazer? Que é bem e que é mal? Temos os mandamentos no Decálogo. Os gregos jamais tiveram livros religiosos de importância global. Quase que naturalmente, então, eles tinham de buscar explicações racionais para as coisas e usar da razão para encontrar solução para as grandes questões humanas. É claro que os gregos possuíam uma mitologia muito desenvolvida, mas, como diz Aristóteles, foi o mito que conduziu à filosofia; o mito é o embrião da filosofia. “Aquele que ama o mito é, de certo modo, filósofo: o mito, com efeito, é constituído por um conjunto de coisas admiráveis”.27 27 ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002, A 982 b. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 42 b) A sociedade grega era fundamentalmente uma sociedade democrática. Outras culturas da Antiguidade eram basicamente teocráticas (hebraica, egípcia, babilônica, indiana, árabe). Isto significava que a vida da sociedade era predeterminada pela religião, de cima para baixo (por exemplo, os hebreus possuíam leis bem detalhadas sobre todos os setores da vida humana, individual, familiar, social, política). Neste tipo de sociedade tinha função especial a classe sacerdotal. Entre os gregos existia a classe sacerdotal, mas ela tinha pouca influência sobre a vida pública. Da mesma forma, a religião era um assunto quase privado. Os gregos na maior parte da sua história construíram regimes democráticos, onde o poder vinha de baixo, as leis eram codificadas por legisladores humanos, onde contava a opinião popular. Neste tipo de sociedade, os gregos tiveram de buscar soluções para as suas questões e seus problemas sozinhos. Como isso acontecia? Sabemos historicamente da importância das assembleias em praça pública (“ágora”), onde os cidadãos se reuniam para discutir seus problemas. O procedimento para chegar à verdade era o diálogo (“dialética”). Para os gregos, então, as soluções para as suas questões não vinham prontas, de cima para baixo, mas surgiam de baixo, da discussão, do debate. Um terreno propício, portanto, para o filosofar.28 2.1.2 Origem da filosofia a partir do mito “A filosofia originou-se do mito”, disse Aristóteles. Para o Estagirita, pois, a origem da Filosofia situa-se no desenvolvimento do mito. “Ora, quem experimenta uma sensação de dúvida e de admiração reconhece que não sabe; e é por isso que também aquele que ama o mito é, de certo modo, filósofo: o mito, com efeito, é constituído por um conjunto de coisas admiráveis”.29 28 Para aprofundar essa questão leia: CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 34-38 (Mito e filosofia; Condições históricas para o surgimento da filosofia). 29 ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002, A 982 b. Unidade 02 – Filosofia e a sua origem histórica 43 A cultura grega expressou primeiramente a sua “compreensão” do mundo e do homem no mito, e depois, aos poucos, traduziu essa compreensão na racionalidade filosófica. De acordo com Werner Jaeger: A obra de Homero é inspirada na sua totalidade, por um pensamento filosófico relativo à natureza humana e às leis eternas que governam o mundo. Não lhe escapa nada do essencial da vida humana. O poeta contempla todo o conhecimento particular à luz do seu conhecimento geral da essência das coisas.30 O mito é um elemento cultural de muita importância nas civilizações antigas.