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Índice A força do silêncio Prefácio I. Silêncio diante do barulho do mundo II. Deus não fala, mas sua voz é clara III. Silêncio, mistério e o sagrado 4. O silêncio de Deus diante do flagelo do mal V. Como um grito no deserto O encontro na Grande Chartreuse Epílogo Bibliografia Cardeal Robert Sarah com Nicolas Diat A força do silêncio Enfrentando a ditadura do ruído Título original: La force du silêncio Por Cardeal Sarah com Nicolas Diat © Biblioteca Arthème Fayard, 2016 © Edições Palabra, SA 2017 Paseo de la Castellana, 210 - 28046 MADRID (Espanha) Tel.: (34) 91 350 77 20 - (34) 91 350 77 39 www.palabra.es palavra@word.es © Tradução: Gloria Esteban Villar Design da capa: Roxanne Mei Lum Foto da capa: O Panteão, Roma (© IStockphoto) Design do ePub: Rodrigo Pérez Fernández ISBN: 978-84-9061-533-1 Todos os direitos reservados. A reprodução total ou parcial deste livro, nem o seu processamento informático, nem a transmissão sob qualquer forma ou por qualquer meio, seja eletrónico, mecânico, fotocópia, gravação ou outros métodos, não é permitida sem autorização prévia por escrito dos titulares dos direitos de autor. http://www.palabra.es/ A Bento XVI, bom amigo de Deus, mestre do silêncio e da oração. Ao Bispo Raymond-Marie Tchidimbo, ex-arcebispo de Conacri, prisioneiro e vítima de uma ditadura sangrenta. A todos os cartuxos desconhecidos que há quase um milénio procuram Deus. Então, o que nos grita esta ganância e impotência, senão que outrora existiu no homem uma verdadeira felicidade, da qual agora só restam o sinal e o traço totalmente vazio, e que ele tenta em vão preencher com tudo o que pode? rodeia, buscando nas coisas ausentes a ajuda que não obtém das coisas presentes, ajuda da qual todos são incapazes, porque o abismo infinito só pode ser preenchido por um objeto infinito e imutável, isto é, pelo próprio Deus? Blaise Pascal, Pensamentos Ah, dialeto da minha aldeia interior, conversa doce dos meus campos imaginários, jargão ribeirinho do meu rio invisível, língua do meu país, da minha pátria espiritual! Oh, língua mais cara que o francês, oh, meu silêncio! Eu falo com você e recito para você. Canto para você mil vezes para deleite de minha alma e como órgãos triunfantes ouço você ressoar. Jean Mogin, Pâtures du silêncio PREFÁCIO Por que o Cardeal Sarah quis dedicar um livro ao silêncio? Conversamos sobre esse grande tema pela primeira vez em abril de 2015. Estávamos retornando a Roma depois de passar alguns dias na Abadia de Lagrasse. Neste magnífico mosteiro, entre Carcassonne e Narbonne, o cardeal visitou o seu amigo Irmão Vicente. Destruído pela esclerose múltipla, o jovem religioso sabia que estava chegando ao fim da vida. Imobilizado na juventude, pregado no leito da enfermaria, condenado a protocolos médicos implacáveis, até a respiração mais fraca exigia um esforço enorme. O Irmão Vicente Maria da Ressurreição já vivia nesta terra imerso no grande silêncio do Céu. O primeiro encontro aconteceu no dia 25 de outubro de 2014. Aquele dia marcou profundamente o Cardeal Sarah, que descobriu imediatamente uma alma ardente, uma santa escondida, uma boa amiga de Deus. É impossível esquecer a força espiritual do Irmão Vicente, o seu silêncio, a beleza do seu sorriso, a emoção do cardeal, as lágrimas, a modéstia, os sentimentos contraditórios... O Irmão Vicente não conseguiu pronunciar uma única frase, porque a doença acabou privando-o do uso da palavra. Ele só conseguia olhar para o cardeal. Só consegui olhar para ele atentamente, com doçura e amor. Os olhos roxos do irmão Vincent já eram da cor da eternidade. Naquele dia ensolarado de outono, saindo da pequena sala onde os cônegos e as enfermeiras se revezavam incansavelmente com extraordinária abnegação, o padre Emmanuel-Marie, abade de Lagrasse, levou-nos aos jardins do mosteiro, ao lado da igreja. Precisávamos recuperar o fôlego para aceitar a vontade silenciosa de Deus, aquele plano oculto que inexoravelmente levava um jovem e bom religioso, com corpo martirizado, a terras desconhecidas. O cardeal voltou várias vezes para rezar com seu amigo Ir. Vincent. O estado do paciente não parou de piorar, mas a qualidade do silêncio que selou o diálogo entre um ilustre prelado e um simples cônego cresceu de forma cada vez mais sobrenatural. Quando estava em Roma, o cardeal telefonava frequentemente ao irmão. Um falou docemente e o outro ficou em silêncio. Poucos dias antes de morrer, o Cardeal Sarah conversou novamente com o Irmão Vincent. Ele pôde ouvir sua respiração, rouca e discordante, o ataque da dor, os últimos esforços de seu coração, e dar-lhe sua bênção. No domingo, 10 de abril de 2016, quando o Cardeal Sarah assistiu ao encerramento da exposição do manto sagrado de Cristo em Argenteuil, o Irmão Vincent entregou a sua alma a Deus rodeado pelo Padre Emmanuel-Marie e pela sua família. Pode-se compreender o mistério do Irmão Vicente? Depois de tantas provações, o fim do caminho foi tranquilo. Os raios do paraíso passavam silenciosamente pelas janelas do seu quarto. Durante os últimos meses de vida, o jovem doente rezou muito pelo cardeal. Os cônegos que sempre cuidaram do irmão estão convencidos de que ele permaneceu vivo por mais alguns meses para cuidar melhor de Robert Sarah. O Irmão Vincent sabia que os lobos estavam à espreita, que o seu amigo precisava dele, que contava com ele. Esta amizade nasceu no silêncio, cresceu no silêncio e continua existindo no silêncio. Os encontros com o Irmão Vicente foram um toque de eternidade. Nunca duvidamos da importância de cada minuto que passamos com ele. O silêncio permitiu que qualquer sentimento fosse elevado ao seu estado mais perfeito. Quando tivemos que sair da abadia, sabíamos que o silêncio de Vicente nos tornaria mais fortes para enfrentar os ruídos do mundo. Naquele domingo de primavera, quando o Irmão Vicente encontrou os anjos do Céu, o cardeal quis ir a Lagrasse. Uma enorme quietude reinou em todo o mosteiro. O silêncio do irmão habitava os lugares que lhe eram familiares. Embora não tenha sido nada fácil passar pela enfermaria deserta... No coro da igreja onde o corpo do irmão descansou vários dias, soou a bela oração dos cónegos. Um cardeal africano acabava de chegar para enterrar um jovem religioso com quem nunca conseguia falar. O menino da savana guineense falou silenciosamente com um jovem santo francês: uma amizade única e inquebrável. Sem o Irmão Vincent, a Força do Silêncio nunca teria existido. Foi ele quem nos mostrou como o silêncio em que a doença o mergulhou nos permitiu penetrar ainda mais profundamente na verdade das coisas. As razões de Deus são muitas vezes misteriosas. Por que ele quis testar tão duramente um jovem feliz que não pedia nada? Por que uma doença tão cruel, violenta e dolorosa? Porquê este encontro sublime entre um cardeal que atingiu as alturas da Igreja e um doente trancado no seu quarto? O silêncio deu o toque final a esta história. O silêncio teve a última palavra. O silêncio foi o elevador para o céu. Quem estava procurando pelo irmão Vincent? Quem veio levá-lo embora sem uma palavra? Deus. Para o Irmão Vicente Maria da Ressurreição o programa era simples. Foi resumido em três palavras: Deus ou nada. Há outra etapa que marca esta amizade espiritual. Se não fosse o Irmão Vincent, se não fosse o Padre Emmanuel- Marie, nunca teríamos ido à Grande Cartuxa. Quando germinou a ideia de pedir ao Padre Geral da Ordem dos Cartuxos a participação neste livro, o projeto nos pareceu quase impossível. O cardeal não quis perturbar o silêncio da Grande Cartuxa e as palavras do padre geral são contadas. Mesmo assim, na quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016, ao início da tarde, o nosso comboio parou na estação de Chambéry… Um céu cinzento se agarrava às montanhas que cercavam a cidade. A tristeza do inverno parecia envolver a paisagem e os homens numa colasilêncio. Mais tarde, durante a sua vida pública, retirou-se para o deserto para ouvir o Pai e falar com Ele. O mundo tem uma necessidade vital de homens que se retirem para o deserto. Porque Deus fala em silêncio. 42. – Ficar em silêncio e controlar os lábios e a língua é uma tarefa difícil, ardente e árida. Mas devemos enterrar-nos cada vez mais nas realidades interiores capazes de efetivamente moldar o mundo. O homem deve apresentar-se silenciosamente diante de Deus e dizer: Meu Deus, já que me concedeste o conhecimento e o desejo de perfeição, guia-me sempre para o absoluto do Amor. Faz-me crescer no amor, porque Tu és o sábio artesão que Ele deixa. nenhuma obra inacabada, desde que o barro da criatura não oponha nenhum obstáculo, nenhuma rejeição. Eu me rendo sem palavras a Ti, Senhor. Quero ser dócil e maleável como o barro em suas mãos como um oleiro habilidoso e benevolente. —O que caracteriza o que poderíamos chamar de silêncio do olhar? 43. – Há alguns anos o homem sofre a agressão constante de imagens, luzes e cores que o cegam. As imagens prejudiciais e provocativas da pornografia, da violência brutal e de todas as obscenidades mundanas que atacam a pureza do coração, esgueirando-se pela porta do seu olhar, pavimentam o seu lar interior. 44. – O olhar que deveria ver e contemplar o essencial volta-se para o artificial. Nossos olhos confundem dia e noite, porque toda a nossa vida está imersa em uma luz permanente. Nas cidades, iluminadas por milhares de sinais luminosos, o olho deixou de distinguir as trevas que proporcionam descanso e as consciências já não conhecem o pecado. A humanidade há muito perdeu a consciência da gravidade do pecado e da desordem que a sua presença introduz na vida pessoal, eclesiástica e social. Já se passaram cinquenta anos desde que o Beato Paulo VI, na homilia de 20 de setembro de 1964, reconheceu este drama: «Não encontrareis mais na linguagem dos bons de hoje, nos livros, nas coisas que falam dos homens, o tremendo palavra que, por outro lado, é tão frequente no mundo religioso, no nosso, particularmente naquele que está próximo de Deus: a palavra pecado . Os homens, nos julgamentos de hoje, não são considerados pecadores. São classificados em saudáveis, doentes, maus, bons, fortes, fracos, ricos, pobres, sábios, ignorantes; mas a palavra pecado nunca é encontrada. E não volta porque, com o intelecto humano distanciado da sabedoria divina, o conceito de pecado se perdeu. Uma das palavras mais penetrantes e sérias do Sumo Pontífice Pio XII, de venerável memória, é esta: “O mundo moderno perdeu o sentido do pecado”; isto é, a ruptura do relacionamento com Deus, causada pelo pecado. Também São João Paulo II faz eco disso na sua exortação apostólica pós-sinodal Reconciliatio et paenitentia, de 2 de dezembro de 1984. 45. – Longe de Deus e das luzes que brotam da verdadeira Luz, o homem não é capaz de ver as estrelas, a tal ponto são as tochas incandescentes das cidades que queimam nossas pupilas. A vida moderna nos impede de dar descanso ao olhar. Um espetáculo permanente se impõe aos nossos olhos, com as pálpebras constantemente abertas. A ditadura da imagem que mergulha o nosso olhar num turbilhão contínuo abomina o silêncio. O homem é obrigado a procurar realidades sempre novas que aumentem o seu desejo de posse; mas seus olhos estão vermelhos, atordoados e doentes. Espetáculos artificiais e telas luminosas ininterruptas querem encantar a inteligência e a alma. Nas prisões luminosas do mundo moderno, o homem distancia-se de si mesmo e de Deus. Está ligado ao efêmero e cada vez mais distante do essencial. 46. - O silêncio do olhar consiste em saber fechar os olhos para contemplar Deus que está dentro de nós, nas regiões profundas e íntimas do nosso abismo pessoal. As imagens são uma droga da qual não podemos prescindir, porque estão presentes em todo o lado e em todos os momentos. Os olhos estão doentes, intoxicados e não conseguem mais fechar. Devemos também tapar os ouvidos, porque as imagens sonoras os atacam e ofendem, tanto a eles como à nossa inteligência e imaginação. É-nos difícil não ouvir este mundo numa gesticulação permanente que quer ensurdecer-nos e atordoar-nos para nos transformar em naufrágios abalados contra os recifes, detritos vulgares e inúteis arrastados para a costa. 47. – A tirania da imagem obriga o homem a renunciar ao silêncio dos olhos. A humanidade voltou à triste profecia de Isaías registrada por Jesus: “Vendo, não veem, e ouvindo, não ouvem nem entendem (...). Porque o coração deste povo se tornou embotado, endureceram os seus ouvidos e fecharam os seus olhos; para que não vejam com os olhos, e ouçam com os ouvidos, e entendam com o coração, e se convertam, e eu os cure” ( Mt 13, 13.15). —O silêncio do coração corre os mesmos perigos? 48. – O silêncio do coração é o mais misterioso: podemos decidir não falar e ficar calados, podemos fechar os olhos para não ver nada, mas sobre o coração o nosso controle é menor. Nele arde um fogo no qual as paixões, a raiva, o ressentimento e a violência são difíceis de controlar. É difícil ao amor humano configurar-se segundo o amor de Deus. Torrentes incontroláveis correm para o coração e é muito difícil ao homem recuperar o silêncio interior. Ele se deixa consumir com relutância pela sarça ardente que arde constantemente dentro dele, no fundo do seu coração, sem forçar a sua liberdade ou a sua conformidade. 49. – Se o homem conseguir “enxertar” o seu coração no coração de Deus, recebendo as forças divinas, caminhará para o silêncio. 50. – Como São João conseguiu vincular o seu coração ao de Jesus? Ele simplesmente se inclinou para Ele e deitou-se ao lado Dele, como um cão fiel se deita aos pés de seu dono. Esta abordagem física é muito mais do que física: é uma inserção espiritual e uma comunhão íntima que permite a São João experimentar os mesmos sentimentos de Jesus. Aquele a quem Cristo amou é o apóstolo que melhor descreveu as profundezas insondáveis do coração do Filho de Deus. 51. – O caminho que leva ao silêncio do coração também é percorrido no silêncio. Esse é o grande mistério: o silêncio se realiza no silêncio e cresce no silêncio. 52. – O silêncio do coração consiste em silenciar aos poucos os nossos miseráveis sentimentos humanos para nos tornar capazes de ter os mesmos sentimentos de Jesus. O silêncio do coração é o silêncio das paixões. É preciso morrer para si mesmo para se unir em silêncio ao Filho de Deus. Procurem, diz São Paulo, “não o seu próprio interesse, mas o dos outros. Tenham entre vocês os mesmos sentimentos que Cristo Jesus teve” ( Fp 2, 4-5). —Em O Maior Amor, Madre Teresa escreveu: “Jesus nos ensinou a orar e também nos disse para aprendermos com Ele a sermos mansos e humildes de coração. Mas não nos tornaremos nada disso a menos que saibamos o que é o silêncio. A humildade e a oração nascem de um ouvido, de uma mente e de uma língua que viveram em silêncio com Deus, porque é no silêncio do coração que Ele fala. Quando diferenciamos o silêncio exterior do interior, percebemos que, se o silêncio exterior fomenta o interior, o silêncio da palavra, do gesto ou da atividade assume todo o seu significado na busca de Deus. Esta busca só é possível dentro de um coração silencioso… 53. – Madre Teresa conhecia bem o silêncio. Como Santa Teresa de Jesus, São João da Cruz e Santa Teresa de Lisieux, ela viveu a dura experiência do silêncio de Deus. Ela era uma mulher de silêncio porque era uma mulher de oração e p q estava constantemente com Deus. Queria permanecer no silêncio de Deus. Esta freira, que pouco gostava de falar, fugia da tempestade de ruídos mundanos. Madre Teresa gozou de extraordinária estima em todo o mundo e preservou o espírito da infância. Ele imitou Cristo no seu silêncio, na sua humildade, na sua pobreza, na sua mansidão e na sua caridade. Gostava de passar horas inteiras diante de Jesus presentena Eucaristia. Para ela, rezar significava amar com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças; Significava entregar todo o seu ser e todo o seu tempo ao Senhor. A oferta mais bela que ela quis fazer de si mesma e de todas as suas atividades em favor dos pobres foi dedicar longos momentos do seu dia ao encontro de coração a coração com Deus, para que esses momentos de intimidade permitissem ao seu coração inflamai-vos de um amor sem reservas. Como Jesus, o seu coração sempre teve sede de Amor. Em todas as capelas das Irmãs Missionárias da Caridade está inscrito o grito de Jesus: Tenho sede . 54. – No que me diz respeito, sei que os momentos mais importantes do meu dia são aquelas horas incomparáveis que passo ajoelhado nas trevas diante do Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. É como se eu estivesse imerso em Deus e cercado por todos os lados pela Sua presença. Gostaria de pertencer somente a Ele e mergulhar na pureza do Seu Amor, mas percebo quão pobre sou, quão longe estou de amar o Senhor como Ele me amou, a ponto de se entregar por mim. 55. – Recordo-me as palavras firmes e emotivas que Madre Teresa dirigiu a um jovem sacerdote, Angelo Comastri, hoje Cardeal Arcipreste da Basílica de São Pedro de Roma, cujo livro Dio scrive dritto contém uma esplêndida mensagem. Esta é a história do seu comovente encontro com o santo, que transcrevo com intensa emoção. «Liguei por telefone para a casa geral das irmãs missionárias da caridade para me encontrar com Madre Teresa de Calcutá, mas a resposta foi contundente: Impossível ver a Madre: seus compromissos não permitem . De qualquer forma, eu apareci lá. A irmã que veio abrir a porta me perguntou gentilmente: O que você quer? Gostaria de ver Madre Teresa por um momento . Ela me respondeu surpresa: sinto muito! Não pode ser ... Não saí dali, dando-lhe a entender que não iria embora sem ter visto Madre Teresa. »A Irmã desapareceu por alguns momentos e voltou acompanhada pela Madre, que me convidou a sentar-me numa salinha perto da capela. Entretanto consegui recuperar um pouco e consegui dizer: Madre, sou um sacerdote muito jovem: estou a dar os primeiros passos! Vim pedir-lhe que me acompanhe com a sua oração . A Madre olhou-me com ternura e doçura e, sorrindo, disse- me: rezo sempre pelos sacerdotes. Também vou orar por você . Depois me entregou uma medalha de Maria Imaculada, colocou-a em minha mão e me perguntou: Quanto tempo você dedica à oração todos os dias? Fiquei surpreso e um tanto perplexo. Depois de lembrar, respondi: Madre, celebro missa todos os dias, todos os dias rezo o breviário. Como você bem sabe, em nossa época isso é heróico! [era 1969] . “Também rezo o Rosário todos os dias e faço-o com prazer, porque aprendi com a minha mãe”. Madre Teresa apertou com as mãos ásperas o rosário que sempre carregava consigo; Então ele fixou em mim aqueles olhos cheios de luz e amor e me disse: Isso não basta, meu filho. Isto não basta, porque o amor não pode ser reduzido ao mínimo essencial: o amor exige o máximo! Naquele momento não entendi as palavras de Madre Teresa e, quase me justificando, respondi: Madre, na verdade o que eu queria te perguntar era que atos de caridade você faz ? Imediatamente seu rosto tornou-se severo e a Mãe me disse com voz firme: Você acha que eu poderia viver a caridade se não pedisse todos os dias a Jesus que enchesse meu coração com seu amor? Você acha que eu poderia andar pelas ruas em busca dos pobres se Jesus não comunicasse à minha alma o fogo da caridade? Senti-me muito pequeno... Olhei para Madre Teresa com profunda admiração e o desejo sincero de penetrar no mistério da sua alma, tão cheia da presença de Deus. Ela, sublinhando cada uma das suas palavras, acrescentou: Leiam atentamente o Evangelho e verão como Jesus também, através da oração, sacrificou a caridade. E você sabe por quê? Para nos ensinar que sem Deus somos demasiado pobres para ajudar os pobres . Naquela época vimos muitos padres e religiosos abandonarem a oração para fazer uma imersão – assim chamavam – no campo social. As palavras de Madre Teresa foram para mim como um raio de sol; e no meu coração repeti lentamente: sem Deus somos demasiado pobres para ajudar os pobres. 56. – Dediquemos muito tempo a Deus, à oração e à adoração. Alimentemo-nos abundante e ininterruptamente da palavra de Deus. O nosso coração, cuja dureza conhecemos, precisa de muito tempo para ser domado, para se humilhar no contacto com a Hóstia e absorver o amor de Deus. 57. – Não há nada menor, mais doce e mais tranquilo do que Cristo presente na Hóstia. Aquele pedacinho de pão encarna a humildade e o silêncio perfeito de Deus, a sua ternura e o seu amor por nós. Se quisermos crescer e ser cheios do amor de Deus, temos que ancorar a nossa vida em três grandes realidades: a Cruz, a Hóstia e a Virgem – crux, hostia et virgo… São três mistérios que Deus deu ao mundo para construir, fecundar e santificar a nossa vida interior e nos conduzir a Jesus. Três mistérios que devem ser contemplados em silêncio. 58. – Existem circunstâncias externas que necessariamente encorajam o silêncio interno. Temos que proporcionar, tanto quanto possível, o melhor ambiente para encontrarmos dentro de nós o silêncio que nos permite a comunhão íntima com Deus. Cristo recomenda muito claramente esta procura de intimidade: «quando começares a rezar, entra no teu quarto e, com a porta fechada, reza ao teu Pai, que está em secreto; e vosso Pai, que vê em secreto, vos recompensará” ( Mt 6, 6). Nossa verdadeira câmara somos nós mesmos. Os homens são convidados a entrar em si mesmos para ficarem a sós com Deus. Jesus nunca deixa de nos dar um exemplo: “naqueles dias ele subiu ao monte para orar e passou a noite inteira orando a Deus” ( Lc 6,12). É assim que ele nos mostra as condições favoráveis para a oração silenciosa. Diante de Deus, em silêncio, tornamo-nos mansos e humildes de coração. A mansidão e a humildade de Deus penetram em nós e entramos num diálogo autêntico com Ele. A humildade é condição e consequência do silêncio. O silêncio exige mansidão e humildade e, ao mesmo tempo, abre-nos a estas duas qualidades. Deus é o ser mais humilde, manso e silencioso. O silêncio é a única maneira de entrar no grande mistério de Deus. Estou convencido de que o silêncio é uma libertação divina que unifica e coloca o homem no centro de si mesmo, nas profundezas dos mistérios de Deus. No silêncio o homem é absorvido pelo divino e os movimentos do mundo deixam de tomar posse da alma. No silêncio partimos de Deus e chegamos a Deus. —As condições externas que facilitam o silêncio dependem de cada pessoa e variam de acordo com as circunstâncias da vida. Ainda assim, o que devemos fazer para entrar em nós mesmos? 59. – Na vida de oração precisamos de apoio, porque corremos sempre o risco de nos distanciarmos de nós mesmos, saturados de ruídos, sonhos e lembranças. O melhor instrumento é a leitura silenciosa e assídua da Bíblia. Os evangelhos colocam o homem diante de Cristo, diante de sua vida e de seus sentimentos. Ajudam-nos a contemplar e meditar sobre a vida de Jesus, desde o seu nascimento no portal de Belém até à sua morte e ressurreição. Assim nos misturaremos com a sua vida. No silêncio que nos coloca diante da sua palavra, Deus está próximo de nós; Ele não deixa: nós olhamos para ele e ele olha para nós. Esse face a face nos inunda com sua luz e nos embebe em sua presença. Estamos frente a frente e nos acolhemos no silêncio interior. 60. – O Evangelho fala-nos da importância de desconfiar dos entusiasmos estéreis, das paixões vivas e dos clamores ideológicos ou políticos. No Domingo de Ramos, quando Jesus desce de Betânia para Jerusalém, recebe uma grande e solene recepção. O povo estendeu mantos e ramos aos seus pés, saudando o Filho de David. Todos gritam: “Hosana! Bendito aquele que vem em nome do Senhor, o Rei de Israel!( Jo 12, 13). Todos eles testemunham a ressurreição de Lázaro, sepultado no seu túmulo. É por isso que a multidão recebe a Cristo com grande pompa. Jerusalém fica chocada com o barulho daquela entrada triunfal, com aquela recepção excepcionalmente festiva. Todo mundo está se perguntando: “Quem é esse?” ( Mt 21, 10). Fiel ao seu costume, Jesus entra no Templo e cura os coxos e cegos que ali se encontram ( Mt 21, 14). Os seus milagres provocam a indignação dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas. Mas Jesus gosta de ouvir o clamor dos corações inocentes das crianças, pois está escrito que da sua boca sairão louvores a Deus ( Mt 21, 16). Terminadas as festividades, já é tarde e, por mais curioso que pareça, não vê ninguém lhe oferecendo hospitalidade ou alimentando-o. Jesus sai da cidade e retorna a Betânia para passar a noite com seus discípulos. O Filho de Deus, recebido triunfantemente, não encontrou um só homem que lhe abrisse a porta. Também hoje, nos nossos dias, quão superficiais, quão inconsistentes são o nosso acolhimento, o nosso amor e o nosso louvor, como se fossem um simples verniz religioso! Hoje contentamo-nos em realizar rituais sem qualquer impacto na nossa vida concreta, porque os vivemos sem meditação, sem interioridade e sem autenticidade. Os habitantes de Jerusalém não compreenderam a profundidade da visita do Filho de Deus: o povo, entregue às suas paixões e ambições políticas, comportou-se de forma ostensiva, superficial e barulhenta. Presos por tantas convulsões mundanas, não conseguiram compreender o mistério da visita do Rei Messias, do Rei que traz a paz às nações, como anunciou o profeta Zacarias: “Alegra-te, filha de Sião, grita de alegria, filha de Jerusalém." Olha, o teu rei vem em direção a ti, ele é justo e vitorioso, montado num jumento, num jumentinho, um jumentinho. Ele destruirá os carros de Efraim, os cavalos de Jerusalém; Os arcos da guerra serão quebrados, ele anunciará a paz às nações e o seu domínio se estenderá de mar a mar e desde o rio até aos confins da terra” ( Ze 9, 9-10). Os habitantes de Jerusalém querem um líder messiânico e não sabem perceber a grandeza silenciosa da mensagem de Jesus. O povo não acolhe Cristo na sua alma: entrega-se a uma mera demonstração de força excessiva carregada de ornamentos. O mais difícil é amar Jesus em espírito e em verdade para acolhê-lo no coração e no íntimo do ser. As boas-vindas autênticas são silenciosas. Não é diplomático, nem teatral, nem sentimental. 61. – Também hoje, quando aclamamos Cristo em importantes festas litúrgicas, devemos fazer todos os esforços para que a nossa alegria não seja fictícia. Muitas vezes os homens não oferecem ao Filho de Deus a possibilidade de habitar nos seus corações. Na Imitação de Cristo encontramos estas esplêndidas palavras: «Sê, portanto, uma alma fiel e prepara o teu coração para este Esposo, para que ele venha a ti e habite convosco; Pois ele diz assim: Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e viremos para ele e habitaremos nele . Portanto, abra espaço para Cristo e feche a entrada para todo o resto. Se você tem Cristo, você será rico e isso será suficiente para você. Ele será seu provedor e guardião fiel em tudo, então você não terá necessidade de esperar pelos homens (…). Coloque toda a sua esperança em Deus e deixe que ele seja o seu medo e o seu amor. Ele responderá por você e fará como melhor lhe convier (…). »Você nunca terá descanso até que esteja intimamente unido a Cristo. »No Altíssimo estejam os seus pensamentos; e deixe sua oração ser dirigida sem cessar a Cristo. Se você não sabe contemplar as coisas altas e celestiais, descanse em sua paixão e habite com muita alegria em suas chagas mais sagradas. Sofra com Cristo e por Cristo, se quiser reinar com Cristo. »Se uma vez você entrasse perfeitamente no interior de Jesus Cristo e provasse um pouco de seu amor ardente, então você não se importaria com seu próprio benefício ou dano, mas teria maior prazer nos insultos que lhe foram feitos; porque o amor de Jesus faz com que o homem se despreze. Porém, após os primeiros esforços, podemos perceber que não possuímos completamente o silêncio. Porque, uma vez transposta a porta da oração, os homens descobrem uma multidão agitada de pensamentos, sentimentos e aversões que lhes é difícil silenciar. Estas multidões barulhentas e insistentes agarram-se à nossa alma. Podemos decidir orar e perceber que é impossível nos concentrarmos em nossa vida interior. Existem mil coisas que nos perturbam e nos distraem. A comoção interior torna o silêncio impossível. Mesmo a menor paixão que mexeu com nossos corações antes de uma oração pode aniquilar aquele momento de silêncio. O barulho triunfa e o silêncio escapa… 62. – Como conseguiremos dominar o nosso próprio silêncio interior? A única resposta está no ascetismo, na abnegação e na humildade. Se o homem não se aniquila, se permanece como é, permanece fora de Deus. 63. – Quando querem contemplar Deus, os orientais ajoelham-se e prostram-se com o rosto no chão para demonstrar humilhação voluntária e reverência respeitosa. Sem um desejo intenso de despojar-se, de tornar-se pequeno diante do Pai Eterno, nenhum diálogo com Deus é possível. E, sem o domínio do nosso próprio silêncio, não podemos encontrar os outros. Se continuarmos sendo nós, ruídos, fantasias e acessos de raiva nos invadem. 64. – A leitura deve ajudar-nos a concentrar-nos na oração. Não esqueçamos aquela ligação decisiva entre a oração e a Palavra de Deus. Como representaremos o Senhor ao nosso lado se não O procurarmos onde Ele se manifesta? A oração consiste em imaginar silenciosamente a vida concreta e quotidiana de Jesus. Não se trata de recordar um acontecimento histórico, mas de fazer com que o Filho de Deus entre silenciosamente nos nossos corações. Por isso é fundamental permanecer na presença de Deus, para que Ele nos encontre disponíveis e nos introduza no grande silêncio interior que lhe permite encarnar em nós, transformar-nos Nele. E nesse silêncio que não é vazio, mas cheio do Espírito Santo, o homem poderá ouvir como do seu coração vem como um sussurro: Aba , Pai! ( Rm 8, 15). A oração consiste em silenciar, ouvir Deus e saber ouvir os gemidos inefáveis do Espírito Santo que vive em nós e clama em silêncio. 65. – Os nossos contemporâneos têm a impressão de que a oração consiste em dizer coisas a Deus, gritar e lutar diante Ele. Mas a oração é algo mais simples: consiste em ouvir Deus falar silenciosamente no nosso coração. Por que não olhamos como Jesus ora? Por que não lhe suplicamos como os apóstolos: «Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou aos seus discípulos» ( Lc 11,1)? Por que procuramos modelos e exemplos de oração no exterior, na tentativa de nos convencer de que a agitação, o barulho e a desordem são sinais do derramamento e da presença do Espírito de Jesus? Cristo é o único professor que pode nos ensinar a orar; e rezar é amar Jesus e habitar com Ele no silêncio e na solidão interior. 66. – Nos seus Discursos Ascéticos , Isaac de Nínive escreve: «Ele ama o silêncio acima de tudo. Porque permite que você dê frutos. A linguagem é incapaz de se explicar. Esforcemo-nos acima de tudo para permanecer em silêncio. Através do silêncio nascerá em nós o que nos levará a ele. Se você agir assim, não posso te dizer quanta luz será lançada sobre você (...). Grande é o homem que, com a paciência dos seus membros, se habituou a estar apenas dentro da sua alma. Se você colocar todas as obras da vida monástica de um lado da balança e o silêncio do outro, verá como pesa muito mais. No silêncio o homem só adquire a sua dignidade e grandeza se se ajoelhar para ouvir e adorar a Deus. No silêncio da humilhação e da autoaniquilação, silenciando o tumulto da carne, conseguindo domar as imagens barulhentas; conservar os sonhos, a imaginação e o ruído de um mundo que nunca para de girar como um redemoinhoà distância, para purificar-se de tudo o que arruína a alma e a distancia da contemplação: é assim que o homem se torna capaz de olhar e amar a Deus. Nas Enéadas , Plotino disse: «Para chegar a essa contemplação da alma universal, a alma deve ser digna dela devido à sua nobreza; Ela deve ter se emancipado do erro e fugido dos objetos que fascinam o olhar das almas vulgares: deve ter mergulhado numa meditação profunda e feito silêncio ao seu redor, não apenas a agitação do corpo que a rodeia e o tumulto das sensações. , mas também tudo o que o rodeia. Que tudo fique em silêncio, então: a terra, o mar, o ar, o próprio céu. 67. – Em Outra maneira de ver o homem, Maurice Zundel parece aprofundar a ideia de Plotino. «Toda a nossa existência está incluída nesta alternativa: ou estou em mim mesmo ou estou em Deus. Não há meio termo. Quando deixo de me encontrar é porque Deus está realmente presente em mim. Quando me perco de vista, é que olho para Ele. Quando não ouço mais, é que o escuto, e então o Bem, em todos os âmbitos, consiste precisamente em perder-me Nele. O programa é simples , mas sua concretização é difícil, porque não podemos decretar um encontro ou definir o momento em que o amor surgirá. Não existe caminho que leve infalivelmente à troca de intimidades. Não há nada mais gratuito, mais imprevisto ou mais gratuito. Tudo o que podemos fazer é remover os obstáculos que impossibilitam essa troca e que se resumem no barulho que fazemos conosco e ao nosso redor. A única possibilidade de sair de nós mesmos é neutralizar a nossa atenção, separar pacificamente os nossos ouvidos de toda aquela confusa mistura de apetites e exigências, desligar a corrente psíquica que alimenta este tumulto, através de uma meditação em que nos aprofundamos cada vez mais. ...o vazio que nos torna disponíveis. Quando se estabelece o silêncio total, já se anuncia a Presença que preenche o espaço gerado pelo afastamento de si. 68. – O silêncio é difícil, mas torna o homem capaz de ser guiado por Deus. O silêncio nasce do silêncio. Através do Deus silencioso podemos acessar o silêncio. E o homem nunca deixa de se surpreender com a luz que então brilha. O silêncio é mais importante do que qualquer outro trabalho humano. Porque manifesta Deus. A verdadeira revolução vem do silêncio: leva-nos a Deus e aos outros para nos colocarmos humilde e generosamente ao seu serviço. —Nos seus Écrits monastiques [Escritos Monásticos], o Padre Jérôme escreve: «O silêncio é como uma imensa onda do oceano que, depois de arrastar o barco para uma terra desconhecida, o deposita numa costa que sempre causa medo e na qual a única presença dos reinos infinitos. Como seria definido o silêncio contemplativo? 69. – Pode ser que o silêncio contemplativo nos assuste: é como uma onda imensa que nos arrasta sem afundar e nos faz encalhar em praias temíveis. E então o homem se vê diante da terrível imensidão do mistério. Acredito que é impossível aproximar-se da majestade de Deus sem tremer de medo e espanto. Nossos ancestrais costumavam sentir-se fisicamente perturbados por um medo intenso, expressão conjunta de admiração, respeito e pavor religioso diante da fornalha ardente da transcendência de Deus. 70. – O silêncio de Deus é marca de fogo ardente no homem que dele se aproxima. Através do silêncio divino, o homem torna-se, até certo ponto, um estranho neste mundo. Ele se distancia da terra e de si mesmo. O silêncio nos empurra para aquela terra desconhecida que é Deus. E essa terra se torna a nossa verdadeira pátria. Através do silêncio voltamos à nossa origem celestial, onde só reinam a calma, a paz, o descanso, a contemplação silenciosa e a adoração da face radiante de Deus. 71. – Todos os grandes santos viveram esta experiência incomparável. Quando a sua oração os conduz ao limiar do silêncio do Pai Eterno, descobrem quão próximo e imenso Deus se torna. Eles ficam em silêncio diante do Pai. Quanto mais se elevaram a Deus, mais silenciosos ficaram. São Filipe Néri ou Santa Teresa de Lisieux enfrentaram uma realidade que não eram capazes de alcançar, mas viram com os próprios olhos o Infinito e o esplendor do amor. Aquela imensidão arrastou-os para um grande silêncio de adoração e paz interior. 72. – O silêncio contemplativo é silêncio com Deus. Um silêncio que consiste em aderir a Ele, apresentar-se e mostrar-se diante dele, oferecer-se a Ele, tornar-se nada nele, adorá-lo, amá-lo, ouvi-lo, ouvi-lo e descansar Nele. Esse é o silêncio da eternidade. , a união da alma com Deus. 73. – Num dos seus sermões, o teólogo e místico Juan Taulero, discípulo do Mestre Eckhart, disse: «Maria isolou- se; A serva de Deus deve isolar-se se realmente quiser sentir dentro de si esse nascimento, abstendo-se não apenas de dispersões momentâneas que possam lhe causar algum dano, mas também das práticas meramente sensatas das virtudes. Deve haver silêncio e quietude nele, deve isolar-se, esconder-se no Espírito para escapar dos sentidos, escapar deles e tornar-se um lugar de silêncio e calma interior. O canto da Missa que começa: Dum medium Silentium ieront refere-se a esta paz de espírito . Em absoluto silêncio, estando tudo imerso no maior silêncio e a noite no meio do seu curso, então, ó Senhor, a palavra onipotente deixou seu trono para acampar em nossa tenda. No zênite do silêncio, todas as coisas estão submersas na calma; Só então a realidade desta Palavra se faz sentir. Porque, se você quer que Deus fale, você precisa ficar em silêncio." Cristo muitas vezes aconselha o isolamento se quisermos orar. Pode ser um lugar remoto, na solidão, para ficar sozinho com o Um. Mas a questão do enquadramento externo não pode evitar o problema da interioridade. É importante criar aquele espaço interior onde o homem se encontra com Deus face a face. Este trabalho espiritual exige um esforço de abstenção de toda dispersão, o que implica uma ascese interior. A busca pelo silêncio interior é uma melhoria que exige esforços repetidos. Dentro de nós há muitas vezes uma imaginação e uma agitação perigosas. É necessário esconder-se no Espírito para escapar dos sentidos e fugir deles. O Espírito Santo é a primeira condição do silêncio. 74. – O nosso mundo deixou de ouvir Deus, porque não para de falar em ritmo e velocidade letais para não dizer nada. A civilização moderna não sabe calar. Vive em monólogo permanente. A sociedade pós-moderna rejeita o passado e considera o presente um vil objeto de consumo: contempla o futuro entre os raios de um progresso quase obsessivo. Seu sonho, transformado em triste realidade, foi encerrar o silêncio em uma masmorra úmida e escura. A partir daí se instaurou uma ditadura da palavra, uma ditadura da ênfase verbal. Nesse cenário sombrio há apenas uma chaga purulenta de palavras mecânicas, sem alívio, sem verdade e sem fundamento. Muitas vezes a verdade nada mais é do que uma criação midiática enganosa consolidada por imagens e testemunhos inventados. Então a palavra de Deus desaparece, inacessível e inaudível. A pós-modernidade representa uma ofensa e uma agressão permanente contra o silêncio divino. Da noite para a manhã, da manhã para a noite, o silêncio perdeu qualquer direito: o barulho quer impedir que Deus fale. Nesse inferno de barulho, o homem se desintegra e se perde: fragmenta-se numa infinidade de preocupações, fantasmas e medos. Para sair daqueles túneis deprimentes ele depende desesperadamente de um barulho que lhe traga algum conforto. O ruído é um ansiolítico enganoso, falso e viciante. O drama do nosso mundo nunca é melhor compreendido do que na violência de um ruído vazio de sentido que odeia obstinadamente o silêncio. A nossa época abomina aquilo a que o silêncio nos leva: encontrar Deus, maravilhar-nos e ajoelhar-nos diante dele. 75. – Até nas escolas o silêncio desapareceu. Você pode estudar cercado de barulho? Pode-se ler, formar-se a inteligência, estruturar-se o pensamento e oscontornos do ser interior, rodeados de ruído? Como podemos abrir-nos ao mistério de Deus, aos valores espirituais e à nossa grandeza humana, se estamos rodeados de uma comoção constante? O silêncio contemplativo é uma chama pequena e frágil no meio de um oceano revolto. O fogo do silêncio é fraco porque é um incômodo para um mundo agitado. 76. – Hoje são poucos os cristãos dispostos a entrar em si mesmos para se olharem e deixarem-se olhar por Deus. Insisto: são poucos os que estão dispostos a apresentar-se diante de Deus em silêncio para acabarem queimando naquele rosto maravilhoso. Ao matar o silêncio, o homem mata Deus. O que pode ajudar um homem a ficar em silêncio? O celular toca constantemente; os dedos e o espírito estão sempre ocupados enviando mensagens... Talvez o gosto pela oração seja a principal luta do nosso tempo. Aquartelado em regimentos de ruídos absolutamente lamentáveis, estará o homem disposto a regressar ao silêncio? A morte do silêncio é aparente: Deus sempre nos ajudará a redescobri-lo. —No seu Cântico Espiritual, São João da Cruz fala- nos da música tranquila que o Amado compõe na alma que se une a Ele. Que proposta de definição poderíamos oferecer para o som do silêncio? 77. – Como a música silenciosa pode ser explicada em palavras ? Essa musicalidade é necessariamente um som humilde e fraco que só Deus ouve. São as notas que a harpa do nosso coração toca quando é consumida pelo amor. 78. – É importante deixar o Espírito Santo penetrar até o fundo das regiões mais profundas da alma. Nesse espaço secreto Deus vive e age; trabalhar para realizar a nossa união com Ele. Enquanto o homem não for capaz de reconhecer o grande silêncio de Deus no fundo do seu coração, enquanto não for capaz de compreender aquele espaço misterioso do Eterno na sua carne, ele não conseguirão aceder a uma autêntica transformação espiritual e humana. Este é o verdadeiro som do silêncio: não podemos ouvir a Palavra se não tivermos sido previamente transformados pelo silêncio de Deus. 79. – A alma deve ouvir a voz do silêncio. Ela tem que concordar em juntar-se ao silêncio para deixar Deus penetrá-la. Como podemos deixar Deus entrar em nós? Essa é a razão e a autêntica graça do silêncio. 80. – No silêncio há colaboração entre o homem e Deus. A casa de Deus é a parte mais profunda da alma humana. Podemos facilitar a ação de Deus mantendo o mais perfeito silêncio interior. E somos capazes de encontrar esse silêncio se estivermos atentos à voz do silêncio. Mesmo num ambiente hostil podemos encontrar Deus em nós se tentarmos ouvir o silêncio que Ele grava na nossa alma. 81. – Um coração silencioso é uma melodia para o coração de Deus. A lâmpada arde silenciosamente diante do sacrário e o incenso sobe silenciosamente ao trono de Deus: esse é o som do silêncio do amor. 82. – O som do silêncio em Deus nos permite aprender a primeira nota daquele canto que é o canto dos Céus. “A linguagem que Deus mais ouve sozinho é o amor tranquilo”, diz esplendidamente João da Cruz em seus Ditos de Luz e Amor . 83. – O amor silencioso que arde sem queimar e não diz nada é o maior amor. Quando nos afastamos do barulho para buscar a Deus, Ele se agrada em ouvir a nossa disponibilidade. Qual é o silêncio que Deus quer ouvir? Que voz e música você gosta? O amor silencioso que não diz nada e se deixa fazer. Como a oferenda e a fumaça dos perfumes que sobem à presença de Deus com as orações dos santos ( Ap 8, 1-4). 84. – A vida palpável dos monges é um amor silencioso, um amor de oblação, um amor consumado. Deus recebe esse holocausto silencioso. Holocaustos não fazem barulho. Eles ardem longa e silenciosamente diante da majestade divina, e seu perfume alegra o coração de Deus. Deus não ouve nada além deste amor silencioso, humilde e gentil. 85. – Na escola do Espírito Santo aprendemos a ouvir Deus no silêncio, que é a linguagem do amor autêntico e que só Ele pode ouvir. «Embora essa música seja tranquila no que diz respeito aos sentidos e às forças naturais, é uma solidão muito alta para as potências espirituais; porque, estando sozinhos e vazios de todas as formas e apreensões naturais, podem receber muito sonoramente o significado espiritual no espírito da excelência de Deus em si mesmo e nas suas criaturas”, escreve João da Cruz no seu Cântico . 86. – No seu sermão sobre o nascimento de São João Baptista, consagrado à voz e à Palavra, fazendo eco de uma atitude cheia de humildade e modéstia – “é preciso que Ele aumente e eu diminua” –, Santo Agostinho não hesita afirmar: “Todas as vozes devem ser diminuídas quando chegamos a ver Cristo. Quanto mais sabedoria nos é revelada, menos precisamos da voz: a voz aparece nos profetas, nos apóstolos, nos salmos e no evangelho. Vem a Palavra que estava no princípio, essa Palavra que era Deus! Assim, a voz cessa gradativamente, à medida que a alma avança em direção a Cristo (...). Pois Deus tem uma linguagem secreta, ele fala ao coração de muitos; e há um som poderoso no grande silêncio do coração: eu sou a tua salvação . 87. – Quanto mais o homem avança em direção ao mistério de Deus, mais fica sem palavras. O homem é envolvido por uma força de amor e fica em silêncio de estupor e espanto. Diante de Deus desaparecemos, presos no silêncio supremo. 88. – A sabedoria de Deus gerou em todos os homens um Amor imenso que alimenta o pequeno silêncio do coração humano. O estupor diante do silêncio divino fecha-nos a boca, como o oficiante quando, exercendo as suas funções sacerdotais diante de Deus, queima incenso na presença divina e adora sem palavras. Não há nada mais importante no mundo do que o silêncio de Deus. Nenhum ruído humano, nem mesmo aquele suave ruído do Evangelho, é capaz de exprimir o maravilhoso silêncio de Deus. 89. – Diante de Deus, diante do seu silêncio, tudo desaparece: nem os apóstolos, nem mesmo os evangelistas, não são nada comparados ao silêncio do Céu. Nesta terra, o barulho mais bonito é o Evangelho; mas, por mais sublime e essencial que seja, reduz-se a um simples som próximo ao grande silêncio do Eterno. 90. – Com a sua encarnação, Cristo assume os limites humanos. Diante do silêncio de Deus enfrentamos o amor absoluto. E esse grande silêncio explica também a liberdade concedida ao homem. O único poder de Deus é amar em silêncio. É incapaz de qualquer força opressiva. Porque Deus é Amor e o Amor não pode forçar, forçar ou pressionar para retribuir o amor. Santo Agostinho e São João da Cruz viveram a experiência do deserto, físico ou interior. Sentiram uma pequena parte do grande silêncio de Deus e ficaram como que absorvidos, imersos no silêncio divino e na fogueira do seu amor. 91. – Nos manuscritos de Santa Teresa do Menino Jesus encontramos esta reflexão: «Se o fogo e o ferro tivessem conhecimento, e este dissesse ao outro: atrai-me, não mostraria que deseja identificar-se com o fogo , de modo que o penetrasse e o embebesse com sua substância ígnea até que parecesse uma coisa com ele? Isto é o que acontece com aqueles que se aproximam do silêncio de Deus: eles próprios se tornam silêncio. 92. – Quem é mais espiritual costuma ficar calado e deixar os dias passarem em silêncio. Eles vivem dentro da manifestação do mistério. Vivem dentro daquilo que os tira de si mesmos para fazê-los penetrar no mistério de Deus. —Por outro lado, existe também o que poderíamos chamar de ascetismo do silêncio. No seu Discurso Ascético, Isaac de Nínive escreveu: «Com o tempo, da ascese do silêncio brota no coração uma complacência que obriga o corpo a permanecer pacientemente na hesíquia. E as lágrimas vêm abundantemente. Primeiro com tristeza, depois com êxtase, o coração percebe o que vislumbra nas profundezas da contemplação. Ele se purifica e se torna uma criança. E quando ele entra em oração, as lágrimas escorrem. 93. – A ascese do silêncio atinge o seu grau mais perfeito na vida de quem saboreou aquele encontro com Deusatravés da contemplação do seu rosto. É uma forma de p nudez e pobreza. Somente por esse preço você poderá acessar a verdadeira glória. A ascese do silêncio permite- nos, tornando-nos pequenos como crianças, entrar no mistério de Deus. No silêncio divino as únicas palavras que existem são as lágrimas, porque alcançamos a parte mais profunda da alma do homem, aquela região do ser onde Deus reside; O seu silêncio é uma imensidão que exige uma ascese inicialmente dolorosa e que carrega uma faceta pascal, uma faceta de Sexta-Feira Santa. Faz lágrimas escorrerem pelo nosso rosto. Contudo, logo experimentamos como a simplicidade da ascese engendra a pureza, o êxtase e a alegria da contemplação. 94. – O abandono do silêncio torna o homem semelhante a uma criança pura, mas frágil, inocente e necessitado. O silêncio nos molda da mesma forma que o ferreiro molda o metal. 95. – O silêncio, esforço humano, anda de mãos dadas com a esperança, virtude teologal. Na realidade, o poder divino da virtude teologal eleva e orienta o âmbito humano e ascético do silêncio. Surge então uma segunda virtude moral: a força. Sua missão é remover qualquer obstáculo que impeça a vontade de obedecer à razão. A fortaleza é ativa e ofensiva. Devemos nos esforçar para cultivar esta virtude que impede tudo o que pode impedir o homem de viver na dependência de Deus. O silêncio e a esperança são duas condições que permitem que a força encontre o seu alimento. Graças a esta ascese do silêncio é possível compreender e apreciar melhor as luzes destas palavras bíblicas: “no muito falar não falta culpa” ( Pr 10, 19); “Quem vigia a sua boca, guarda a sua vida, quem abre demais os lábios, fica chateado” ( Pr 13, 3); “quem é prolixo em palavras torna-se detestável” ( Si 20, 8); “Digo-vos que de cada palavra vã que os homens proferirem, darão conta no dia do Juízo” ( Mt 12, 36); «coloque portas e ferrolhos na boca. Faça da sua boca uma balança e apenas pesos. Tenha cuidado para não escorregar com a língua, para não cair diante dos inimigos que o perseguem” ( Si 28, 29-30). 96. – A ascese do silêncio é um remédio necessário: um remédio às vezes doloroso, mas eficaz. Através do silêncio rompemos com o mal para nos voltarmos para o bem. O ruído perde o controle, como um navio sem capitão em mar agitado; enquanto o silêncio é um paraíso, como um oceano sem limites. O silêncio é também um grande leme capaz de nos levar a um bom porto. Escolher o silêncio é escolher o melhor. O homem que ama o silêncio tem a possibilidade de conduzir a sua vida com sabedoria e eficácia. 97. – Em Silence cartusien [Silêncio Cartuxo], Dom Augustin Guillerand escreve: “O sofrimento do silêncio também pode ser o selo de Deus na alma”. O silêncio é uma doce e violenta conquista de Deus. Ausência de palavras, desapropriação, pobreza: esta é a ascese do silêncio, que nos devolve à pureza do justo. —O cartuxo Dom Jean-Baptiste Porion diz, em Amour et silêncio [Amor e Silêncio]: «Se a língua está silenciosa, se os sentidos estão calmos, se a imaginação, a memória, as criaturas estão silenciosas e procuram a solidão – se não ao redor deles, sim, pelo menos nas profundezas da alma – o coração fará apenas pouco barulho. Silêncio dos afetos, das antipatias; silêncio dos desejos naquilo que têm que é demasiado ardente; silêncio de fervor naquilo que é indiscrição; silêncio do entusiasmo pelo excesso; silêncio até nos suspiros (…). Silêncio do amor em sua exaltação. O silêncio do amor é o amor em silêncio (…). É silêncio diante de Deus, diante da beleza, da bondade, da perfeição! Um silêncio em que não há nada incômodo, forçado; Esse silêncio não prejudica a ternura, o vigor desse amor, assim como o reconhecimento dos pecados não prejudica o silêncio da humildade; assim como o bater das asas do anjo – como diz o profeta – prejudica o silêncio da sua obediência; que o que o decreto prejudica é o silêncio do Getsêmani; “Isso que o Eterno Sanctus prejudica o silêncio dos serafins.” Como definiríamos o silêncio do amor, então? 98. – O silêncio é condição do amor e conduz ao amor. O amor só se expressa plenamente renunciando às palavras, ao barulho, à agitação e à superexcitação. A sua expressão máxima ocorre numa morte silenciosa e totalmente dedicada, porque não há maior prova de amor do que dar a vida pelos amigos (cf. Jo 15,13). O silêncio do amor é o ápice e a meta de quem deu ao silêncio o primeiro lugar na sua vida. É uma recompensa maravilhosa quando o homem consegue silenciar as antipatias, as paixões e o frenesi do seu coração. 99. – O amor que nada diz e nada exige conduz ao amor supremo, ao amor silencioso de Deus. O silêncio do amor é o silêncio perfeito diante de Deus que reúne toda bondade, toda beleza e toda perfeição. 100. – O amor silencioso só pode crescer na humildade. Existe uma ligação essencial entre humildade e amor silencioso. Em Deus, esta coincidência torna-se convincente e visível. O Pai em quem acreditamos é infinitamente humilde, silencioso, desprovido de qualquer desejo de prestígio. Não escreve São Paulo aos Filipenses: “Tende entre vós os mesmos sentimentos que teve Cristo Jesus, que, sendo divino na forma, não considerou a igualdade com Deus uma presa desejável, mas esvaziou-se assumindo a forma de servo, feito à semelhança dos homens; e, mostrando-se igual aos outros homens, humilhou-se, tornando-se obediente até à morte, morte de cruz” ( Fp 2, 5- 8)? Deus estava na cruz “como uma ovelha muda diante dos seus tosquiadores; não abriu a boca” ( Is 53,7). O amor é sempre humilde, silencioso e contemplativo, e se ajoelha diante da pessoa amada. Jesus ilustra esta realidade quando na tarde da Quinta-feira Santa é visto de joelhos lavando os pés dos seus apóstolos. O lava-pés é uma revelação, uma manifestação do que Deus é. Deus é Amor: Amor humilde, sacerdotal e sacrificial; e a humildade de Deus é a profundidade de Deus. 101. – O silêncio do amor é semelhante ao barulho das asas dos anjos quando cumprem as ordens de Deus. Esse j q p silêncio é um amor obediente ao silêncio de Deus. O silêncio do amor coincide com um ápice: o encontro de dois silêncios, o silêncio humano e o silêncio de Deus, que caminham juntos. O Getsêmani e o Calvário representam em Cristo a união mais excelente destes dois silêncios. 102. – Eclesiastes contém alguns versículos esplêndidos: «Tudo tem o seu tempo e há um tempo para tudo debaixo do céu: um tempo de nascer e um tempo de morrer, um tempo de plantar e um tempo de arrancar o que está plantado, um tempo tempo de matar e tempo de curar, tempo de derrubar e tempo de construir, tempo de chorar e tempo de rir, tempo de lamentar e tempo de dançar, tempo de atirar pedras e tempo de escolher levantar pedras, tempo de abraçar e tempo de parar de abraçar, tempo de procurar e tempo de se perder, tempo de guardar e tempo de jogar fora, tempo de rasgar e tempo de costurar, tempo de ser tempo de silêncio e tempo de falar, tempo de amar e tempo de odiar, tempo de guerra e tempo de paz" ( Qo 3, 1-8). O silêncio do amor nasce de quem soube passar por todas essas etapas para vivenciar somente o silêncio de Deus. —Na carta ao amigo Raoul le Verd, decano do capítulo da catedral de Reims, São Bruno escreveu: «Quanta utilidade e alegria divina a solidão e o silêncio do deserto trazem consigo para quem os ama! “Só quem já passou por isso sabe disso.” Qual é a verdadeira ligação entre a solidão e o silêncio do deserto? 103. – A minha sede de ver Deus e de ouvi-lo muitas vezes me levou a experimentar a solidão e o silêncio do deserto. Quando era arcebispo de Conacri costumava isolar- me num lugar deserto, absorvendo a solidão e o silêncio. É verdade que estava rodeado de vegetação. Ouvi os pássaros cantando. Mas criou para mim um deserto interior, sem água nem comida. Não havia presença humana. Vivia em jejum e oração, alimentando-me apenas da Eucaristia e da Palavra de Deus. O deserto éo lugar da fome, da sede e da luta espiritual. É de vital importância recuar para o deserto para combater a ditadura de um mundo cheio de ídolos e devastado pela tecnologia e pelos bens materiais; um mundo controlado e manipulado pela mídia; um mundo que foge de Deus refugiando-se no barulho. Devemos ajudar este mundo moderno a passar pela experiência do deserto. Lá nos distanciamos dos acontecimentos cotidianos. Podemos escapar do ruído e da superficialidade. O deserto é o lugar do Absoluto, o lugar da liberdade. Não é por acaso que o monoteísmo nasceu no deserto. O deserto é monoteísta: protege-nos da multiplicidade de ídolos feitos pelos homens. Nesse sentido, o deserto é o território da graça. Nela, longe das suas preocupações, o homem encontra o seu criador e o seu Deus. 104. – As coisas importantes começam no deserto, no silêncio, na pobreza e no abandono. Veja Moisés, Elias, João Batista e o próprio Jesus. Deus nos conduz ao deserto para nos falar de coração a coração (cf. Os 2, 16-25). Mas o deserto não é apenas o lugar onde os homens podem experimentar a prova física da fome, da sede e da miséria total. É também a terra da tentação onde o poder de Satanás se manifesta. O diabo costuma nos levar até lá para fazer brilhar diante de nós todos os esplendores do mundo e para nos convencer de que seria errado renunciar a eles. Ao entrar no deserto, Jesus expõe-se e opõe-se firmemente ao poder de sedução de Satanás, prolongando assim o acontecimento do seu batismo e da sua encarnação. Ele não se contenta em descer às águas profundas do Jordão. Cristo também desce às profundezas da miséria humana; para o interior das regiões do amor despedaçado, das relações destruídas; ao interior das ditaduras carnais mais depravadas e às solidões de um mundo marcado pelo pecado. O deserto nos ensina a lutar contra o mal e contra todas as nossas inclinações tortuosas, para recuperar a nossa dignidade de filhos de Deus. É impossível entrar no mistério de Deus sem entrar na solidão e no silêncio do nosso deserto interior. 105. – Todos os profetas foram ao deserto em busca de Deus. A experiência de Deus é inseparável da experiência do deserto. 106. – São João Batista também viveu trinta anos no deserto: “Entretanto, o menino crescia e se fortalecia de espírito, e vivia no deserto até o momento em que devia dar- se a conhecer a Israel” ( Lucas 1, 80). ). João Batista construiu seu relacionamento com Deus no lugar de maior silêncio. O deserto leva ao silêncio e o silêncio arrasta à intimidade mais profunda de Deus. —É inevitável que o contemplativo que alcançou Deus naquela noite serena do deserto interior e exterior aspire não só aos claustros mais recônditos, mas aos eremitérios recônditos e austeros: são realidades sólidas baseadas em experiências cujo valor é inegável. Mas é absolutamente necessário viver no deserto ou em mosteiros para ser contemplativo? 107. – No coração do mundo e no meio da vida cotidiana, Deus abre a todos caminhos que conduzem a uma existência mais radical de contemplação e santidade. O Padre Marie- Eugène assim o disse em Je veux voir Dieu [Quero ver Deus]: «Há muitas pessoas espirituais para quem a vida na solidão só pode ser um sonho irrealizável. Quem é casado é responsável pela família, e os deveres que decorrem da sua situação impõem uma tarefa quotidiana muito absorvente no meio da agitação do mundo. Outros têm vocação de apostolado externo e estão ocupados em múltiplas obras que o seu zelo criou ou que, pelo menos, devem manter. Poderiam ter hesitado, em outra época, entre a vida solitária e a que é deles. Agora não é mais hora para isso. Por outro lado, definiram a sua escolha pela obediência à luz da sua vocação. Estão comprometidos com obrigações das quais, de fato, não podem escapar e que Deus lhes impõe, para que as cumpram fielmente. »Será que esta actividade apostólica, necessária à extensão do reino de Deus e ao cumprimento dos deveres familiares mais sagrados, será incompatível com as exigências da contemplação e de uma vida espiritual muito elevada? As almas que continuam ávidas de Deus e sentem que os seus desejos se tornam mais ardentes na actividade transbordante que lhes é imposta pelo mais autêntico dos seus deveres de Estado, estarão condenadas a nunca alcançar a plenitude divina a que aspiram, porque Deus os separou da solidão do deserto? Não podemos acreditar, porque é a mesma Sabedoria que chama todos às fontes de água viva e que lhes impõe esses deveres externos. A sabedoria é una e harmoniosa em seus chamados e em suas exigências. “Sopro do poder de Deus”, forte e gentil, alegra- se com os obstáculos para se derramar através dos tempos nas almas santas e torná-las amigas de Deus e dos profetas ( Sb 7, 25,27)». 108. – Se a solidão do deserto fosse absolutamente necessária para o desenvolvimento da contemplação, teríamos que concluir que todos aqueles que não conseguem acessá-la e aqueles que não conseguiram suportá-la são incapazes de alcançar a santidade, reservada a um privilegiado. alguns. Os exemplos de Santa Faustina Kowalska, São João Bosco, São Josemaría Escrivá de Balaguer, Santa Teresa de Calcutá e São João Paulo II demonstram que todos os homens são chamados à contemplação, ao amor perfeito e à santidade. Cabe a cada um de nós colocar-se ao alcance do Deus silencioso, que nos espera no profundo deserto do nosso coração, distanciando- nos do tumulto e da comoção. Nas suas Oeuvres spirituels [ Obras Espirituais ], o Padre Jérôme afirma: “Fazem muito bem aqueles que, com o peso do seu silêncio, funcionam como represas e quebra-mares, impedindo toda a comoção vinda de fora ou de dentro. Graças a eles, as águas permanecem sempre calmas, as amarras dos barcos não se rompem nem os seus cascos colidem. 109. – A escolha do silêncio é um presente para a humanidade. Homens e mulheres que entram no silêncio se entregam em holocausto pelos irmãos. O mundo exterior é como um rio que transborda, desce uma encosta e ameaça destruir tudo em seu caminho. Para controlar esta força é necessária a construção de diques. E o silêncio é aquela poderosa represa que domina as águas turbulentas do mundo, protegendo do ruído e de todo tipo de distração. O silêncio é uma barreira que devolve a dignidade ao homem. Os mosteiros e os grandes espirituais protegem a humanidade das ameaças que a ameaçam. Quantos homens deveriam imitá-los para fazer do silêncio uma barreira eficaz! 110. – As pessoas que vivem imersas no barulho são como partículas de poeira varridas pelo vento; escravos de um tumulto que destrói seu relacionamento com Deus. Pelo contrário, quem ama o silêncio e a solidão caminha passo a passo em direção a Deus: sabe quebrar as espirais infernais do barulho, assim como os domadores conseguem acalmar os leões que rugem. 111. – Escreve São Cipriano de Cartago na Epístola a Donato (3-4): «Quando se prostrou na escuridão da noite, quando virou no meio do mar tempestuoso deste mundo e caminhou hesitante pelo caminho do erro sem saber o que seria da minha vida, desviada da luz da verdade, imaginei que seria difícil e árduo, na minha situação, o que a misericórdia divina me prometeu: que alguém pudesse renascer e que - encorajado por uma nova vida no banho de água da salvação – deixou o que era e mudou o velho homem em espírito e mente, embora permanecesse no mesmo corpo humano. Como é possível tal transformação, disse a mim mesmo? Eu disse isso a mim mesmo mil vezes. Pois, ao me ver preso e enredado em tantos erros da minha vida anterior, dos quais não acreditava poder me livrar, eu mesmo condescendi com meus vícios inveterados e, desesperado em me corrigir, encorajei meus males como fatos naturais em meu. O homem deve escolher: Deus ou nada, silêncio ou barulho. 112. – Sem as amarras do silêncio, a vida é um movimento triste, um barco permanentemente fustigado pela violência das ondas. O silêncio é a parede exterior quedevemos construir para proteger um edifício interior. 113. – Na verdade, é Deus quem constrói a barreira que nos protege do tumulto, dos ataques externos e das tempestades deste mundo. É o que nos garante o profeta Isaías: «Naquele dia será cantado este cântico na terra de Judá: “Temos uma cidade fortificada. [O Senhor] levantou muros e baluartes como defesa” ( Is 26, 1). Sob o abrigo daquele muro vivemos no silêncio e no coração de Deus; e o nosso olhar está constantemente voltado para Ele, porque queremos vê-lo. Por que paredes e muralhas ? Porque o homem, no princípio, estava destinado a viver com Deus. Mas, ao ceder ao pecado, ele não foi apenas expulso do paraíso, mas de dentro de si mesmo, e foi exposto aos elementos e às trevas. Com a sua encarnação, Deus veio abolir as consequências do pecado original e devolver ao homem o seu destino e a sua primeira vocação. Ao encarnar-se e assumir a nossa condição humana, Jesus permitiu ao homem regressar ao caminho da interioridade. É Cristo quem, com a sua vinda à terra, devolve ao homem exilado as alegrias da contemplação, da luxúria interior . Cristo é, de certa forma, o muro que protege o edifício espiritual que é a Igreja. Mas é também a parede exterior que protege o nosso edifício interior. «Nota – comenta São Gregório – como esta parede do edifício espiritual é chamada de exterior. Na verdade, a parede construída para proteger um edifício geralmente não está localizada no interior, mas no exterior. Onde, então, há necessidade de dizer que é exterior, se normalmente este muro nunca é construído no interior? Porque é fundamental fazê-lo se se pretende que o muro construído por fora defenda o que está por dentro. Este termo não está se referindo à Encarnação do Senhor? Pois bem, se para nós Deus é uma parede interior, Deus feito homem é uma parede exterior. Por isso o profeta diz: “Saíste para salvar o teu povo, para salvar o teu Ungido” ( Ha 3,13). E, de facto, esse muro, isto é, o Senhor encarnado, não seria para nós um muro se não fosse exterior, pois não nos protegeria interiormente se não fosse exterior. 114. – Por sua vez, o Silence cartusien de Dom Augustin Guillerand contém estas palavras maravilhosas: «Entre nós, os cartuxos, as palavras que não pronunciamos tornam-se orações. É aí que reside a nossa força e só podemos fazer algum bem através desse grande instrumento que é o silêncio. Falamos com Deus sobre aqueles com quem não falamos. Ele continua: “Não devemos ter medo de nós mesmos ou dos outros. Você tem que olhar a vida real cara a cara. Esse olhar profundo e prolongado nos dará Deus: porque Deus está no fundo de tudo. Esse é o desejo (ou amor) que buscamos. É para lá que Deus nos chama. E só chegamos lá depois de um longo caminho que nos separa das criaturas e de nós mesmos (...). Neste mundo, o amor silencioso é a ciência e a luz supremas. E conclui: «No silêncio, a tristeza é olhar para si mesmo; Alegria é olhar para Deus. Por que o silêncio: é preciso sair de si mesmo, pensar em Deus e não em você mesmo. 115. – Não há dúvida de que o silêncio conduz a Deus, desde que o homem deixe de olhar para si mesmo. Porque a experiência do silêncio contém uma armadilha: o narcisismo e o egoísmo. 116. – O silêncio contemplativo é um silêncio de adoração e de escuta do homem que se apresenta diante de Deus. Apresentar-se em silêncio diante de Deus é orar. A oração exige que fiquemos em silêncio para ouvir e escutar a Deus. O silêncio exige total disponibilidade à vontade de Deus. O homem deve estar completamente voltado para Ele e para os seus irmãos. O silêncio é uma conquista e um dom: nele os olhos de Deus tornam-se nossos e o coração de Deus torna-se uma marca no nosso coração. Não podemos ficar diante do fogo do silêncio sem nos queimar. Os amigos de Deus e aqueles que O amam são irradiados por Ele. Quanto mais calam, mais amam a Deus. Quanto mais se esvaziam de si mesmos, mais se enchem de Deus. Quanto mais conversam com Deus, face a face, mais os seus rostos brilham com a luz e o esplendor de Deus, como Moisés saindo da tenda da reunião ( Ex 34, 29-35). 117. – Há almas que exigem a solidão para se encontrarem; e há almas que procuram doar-se a Deus e aos outros. 118. – No silêncio, a alegria de Deus torna-se a nossa alegria. Ficar em silêncio diante de Deus é quase assemelhar-se a Deus. 119. – «A vida – comenta Dom Guillerand enfaticamente – são alguns minutos que passamos juntos esperando o grande encontro definitivo na pátria onde só existe um minuto..., mas um minuto eterno. E, se nos exercitarmos um pouco, podemos começar a vivê-lo aqui através do silêncio e da solidão. O silêncio e a solidão são uma pequena antevisão daquela eternidade em que estaremos constantemente na presença de Deus, irradiados por Ele, os mais tranquilos porque Ele é o mais apaixonado. 120. – O silêncio e a solidão são coisas muito simples, assim como Deus é infinitamente simples. Em Amour et silêncio [Amor e Silêncio], Dom Jean-Baptiste Porion escreve: «É o próprio Senhor quem nos convida a isto: sede simples como as pombas ( Mt 10, 16). O homem é um ser complicado e, infelizmente, dá a impressão de insistir em se complicar ainda mais na sua relação com Deus. Deus, pelo contrário, é simplicidade absoluta. Quanto mais complicados nos tornamos, mais nos afastamos de Deus; Na medida em que nos tornamos simples, podemos nos aproximar Dele. O silêncio é um paraíso, mas o homem não o vê imediatamente. Está cheio de contradições. Diante de Deus devemos ser como crianças. E, no entanto, usamos uma infinidade de meios para tornar a nossa relação com Ele difícil, obscura e até mesmo inexistente. O homem perdeu a simplicidade da infância. É por isso que o silêncio é tão difícil para ele. E ele rejeita isso a tal ponto que quer se tornar Deus. No silêncio o homem não pode ser uma falsa divindade, mas limitar-se a permanecer num rosto luminoso com Deus. —Nas suas Confissões, Santo Agostinho nos confia a sua própria experiência com estas palavras maravilhosas: «Tarde te amei, beleza tão antiga e tão g nova, tarde te amei! E eis que tu estavas dentro de mim e eu fora, e fora te buscava. E deformado como estava, me joguei nessas coisas lindas que Tu criaste. Você estava comigo, mas eu não estava com você. Essas coisas me afastaram de você que, se não estivessem em você, não existiriam. Você chamou e chorou e quebrou minha surdez; Você brilhou e brilhou, e dissipou minha cegueira. Você exalou seu perfume e eu respirei, e suspiro por você. Eu provei você e sinto fome e sede. Você me tocou e eu me abracei para obter sua paz. Onde, em última análise, estão as moradas da solidão e do silêncio? 121. – É o próprio Jesus quem ensina aos homens quais são as autênticas moradas da solidão e do silêncio. Estas habitações são, antes de tudo, a intimidade do nosso quarto depois de fechar a porta para ficar a sós, no segredo de um diálogo íntimo com Deus. São a penumbra de uma capela, um lugar de solidão, silêncio e intimidade, onde nos espera a Presença de todas as presenças: Jesus-Eucaristia. E são também os templos, os lugares santos e os mosteiros criados para nos permitir consagrar alguns dias ao Senhor. Finalmente, são as casas de Deus, as nossas igrejas, quando os sacerdotes e os fiéis se esforçam por respeitar o seu carácter sagrado, para que não se tornem museus, salas de espetáculos ou de concertos, e continuem a ser lugares santos dedicados exclusivamente à oração e a Deus. 122. – Não hesitemos em dar um lugar privilegiado à nossa oração silenciosa diária na solidão do nosso quarto. Em perfeita simbiose com os claustros dos mosteiros, devemos viver uma relação íntima com Deus dentro do templo do nosso quarto; Devemos combater o bom combate da fé com oração e silêncio. Hoje, neste mundo pagão inchado de ídolos que se vangloria dos pecados mais abomináveis, é Deus quem, pela boca do profeta Isaías, nos pede para entrarno nosso quarto para nos protegermos de toda contaminação e de toda escravidão ao pecado; mas, sobretudo, rezar intensamente pela nossa conversão: “Vá, povo meu, entre em suas casas, feche as portas atrás de você; esconda-se por um momento. Porque o Senhor sai do seu assento para pedir contas do pecado daqueles que habitam a terra (...). A menos que ele se refugie na minha proteção, faça as pazes comigo, faça as pazes comigo” ( Is 26, 20-21; 27, 5). Podemos ser verdadeiros contemplativos, viveremos em paz com Deus, se fizermos dos nossos lares templos de Deus. 123. – O caminho que deve ser feito para chegar aos limites do nosso território interior é tão longo e tão íngreme que torna necessárias as paragens proporcionadas por aquelas casas cujas colunas intangíveis são o silêncio e a solidão. A intimidade sagrada de uma capela, de uma sala ou do claustro de um mosteiro é um símbolo da pureza do paraíso. Naquele lugar abençoado, a solidão e o silêncio alcançam uma forma de perfeição estética e espiritual. 124. – Se caminharmos em direção a Deus, chega um momento em que a palavra se torna inútil e perde o interesse, porque a única coisa que importa é a contemplação. É por isso que a vida monástica nos permite contemplar Deus melhor do que qualquer outra realidade. O silêncio dos mosteiros oferece o melhor caso deste mundo ao homem que quer ascender até Àquele que o espera. Em Amour et silêncio, Dom Jean-Baptiste Porion diz com grande sucesso: «Toda a vida é misteriosa no seu início e no seu processo. A vida contemplativa é a vida mais profunda e autêntica. É por isso que é também o mais oculto e o mais inexplicável. Demasiado simples e demasiado espiritual para que as palavras humanas possam exprimi-lo na sua totalidade (...). Entrar no claustro é converter-se, isto é, voltar-se: virar as costas ao mundo e voltar-se para Deus. Este é o princípio tanto da vida cartuxa como de toda a vida religiosa. Aqueles que são levados à solidão por um chamado divino ouviram a palavra evangélica: Poenitentiam agite. Vade, venda quod habes [Faça penitência. Vá e venda o que você tem]. E começaram fazendo um esforço para se separarem da criatura para quebrar as correntes da nossa servidão. Estes atos de desapego e submissão nunca deixarão de ser necessários. Teremos sempre que lutar contra a nossa natureza decaída. Militia est vita hominis super terram – A vida do homem na terra é uma luta. 125. – O claustro materializa a fuga mundi , a fuga do mundo para encontrar a solidão e o silêncio. Representa o fim do tumulto, da luz artificial, das tristes drogas que são barulho e da ganância de possuir cada vez mais bens, de olhar para o céu. O homem que entra num mosteiro procura o silêncio para encontrar Deus. Ele quer amar a Deus acima de tudo, como seu único bem e sua única riqueza: «Para poder amar muito a Deus no Céu – diz Santo Afonso Maria de Ligório em seu Discurso para a Novena de Natal – é necessário, antes de tudo , ame-o muito na terra. O grau do nosso amor por Deus, no final da nossa vida, será a medida do nosso amor por Deus durante a eternidade. Queremos ter a certeza de não nos separarmos deste Bem soberano na vida presente? Fortaleçamo-lo cada vez mais pelos laços do nosso amor, dizendo-lhe com a esposa do Cântico dos Cânticos: “Encontrei o amor da minha alma: abracei-o e não o deixei ir”. Como a esposa sagrada aprisionou seu amado? “É com o braço da caridade que Deus é capturado”, diz Santo Ambrósio. Bem-aventurado aquele que pode escrever com São Paulo: “Que os ricos possuam as suas riquezas, que os reis possuam os seus reinos: mas para nós, a nossa glória, a nossa riqueza e o nosso reino é Cristo!” E com Santo Inácio: “Dá-me apenas o teu amor e a tua graça, isso me basta”. Faça com que eu te ame e me faça ser amado por você; "Não desejo nem desejarei mais nada." No discurso proferido em 12 de setembro de 2008 no Colégio dos Bernardinos de Paris, Bento XVI expressou melhor do que qualquer outro papa o belo mistério da vida contemplativa: «Começamos por indicar que, na ruptura de antigas estruturas e segurança, A atitude subjacente dos monges era o quaerere Deum: a busca de Deus. Poderíamos dizer que esta é a atitude verdadeiramente filosófica: olhar além das penúltimas coisas e lançar-se na busca das últimas, das verdadeiras. 126. – O monge empreende um caminho íngreme e longo; Porém, ele já sabe qual é o seu destino: a palavra da Bíblia na qual ele escuta Deus. A partir daí, deve esforçar-se por compreendê-Lo para poder voltar-se para Ele. Desta forma, o caminho dos monges, por mais impossível que seja medir o seu progresso, realiza-se no coração da Palavra recebida e meditada através do liturgia. Nesta busca de Deus, o monge encontra-se firmemente preso ao silêncio de Cristo na sua Paixão: é Ele quem o arrasta. É claro que há uma parte da renúncia que consiste num despojamento de Deus, na predisposição à escuta silenciosa e à adoração. É um longo caminho rumo a Ele à luz da Palavra da Bíblia. O silêncio é sempre inimigo das visões superficiais, das mundanidades e dos artifícios. 127. – O mundo pode perseguir o homem a qualquer lugar onde ele se esconda, inclusive ao silêncio e à solidão de um claustro. O orgulho, as paixões e a hipocrisia procuram recuperar os seus direitos mais perversos sobre a alma. Portanto, agachar-nos no silêncio e no coração de Deus, com a Bíblia aberta sobre a cabeça – como as asas do Espírito Santo – é o melhor antídoto, o único necessário para expulsar do nosso território interior o inútil, o supérfluo, o mundano e até mesmo o nosso próprio eu. 128. – A tradição monástica chama maior silêncio ao clima noturno de paz que deve reinar, geralmente das completas à prima, tanto no espaço comunitário como em cada cela, para estar a sós consigo mesmo e com Deus. Mas qualquer pessoa deveria criar e construir o seu próprio claustro interior, um muro e uma muralha , um deserto privado onde encontrar Deus na solidão e no silêncio. 129. – Nos seus Écrits monastiques, o Padre Jérôme revela o que para ele é evidente: “Ter o direito – e um direito reconhecido como direito religioso – de refugiar-se no silêncio: que privilégio! Um direito, por outro lado, que só é um privilégio se se tiver a coragem de exercê-lo. O silêncio é privilégio dos corajosos. Eles podem cair e perder a esperança, mas o silêncio sempre será capaz de levantá- los novamente, pois carrega presença e origem divina. O silêncio é uma conversão que nunca se consegue facilmente. 130. – Dom Guillerand escreve no seu Silence cartusien: «Quero habituar-me a ver na escuridão onde a luz se torna mais fraca para me alcançar sem me ferir; ouvir aquele silêncio onde fala a voz que tudo diz sem palavras; amar aquele Amor que se doa, me iluminando e me falando daquele modo que está acima de mim, mais próximo da luz e da verdade. 131. – Fisicamente, os rostos dos homens do silêncio são diferentes daqueles desfigurados pelos ruídos do prazer e pelos artifícios de um mundo sem Deus. Seus traços, seus olhares e seus sorrisos são marcados pela força do silêncio. Os grandes monges estão acostumados a olhar na escuridão e sempre conseguem encontrar a luz que é Deus. Porque Deus está escondido, Deus absconditus , envolto num véu que só o silêncio é capaz de remover. A escuridão do silêncio permite ao homem fixar o olhar em Deus. O silêncio é mistério; e o maior mistério, Deus, permanece em silêncio. Gosto de recordar estas palavras do poeta Patrice de la Tour du Pin: «Em cada vida, o silêncio diz Deus. Tudo o que é treme para ser seu. Seja a voz do silêncio que trabalha, valorize a vida, é a vida que louva a Deus. 132. – A vida monástica, a vida dos homens de solidão e silêncio, é uma subida às alturas, não um descanso nas alturas. Os monges não param de subir cada vez mais alto, porque Deus é cada vez maior. Nunca poderemos alcançá-lo nesta terra. Mas nada melhor que a solidão e o silêncio paranos acompanhar no nosso caminho terreno rumo a Ele. 133. – Não é só nos claustros que se pode procurar Deus. Santo Agostinho foi brutalmente arrancado de seu mosteiro para ser consagrado bispo de Hipona. Oprimido por um desgastante fardo episcopal, oprimido pelas suas múltiplas obrigações pastorais, a sua atividade episcopal revelou-se mais de uma vez uma sarcina episcopalis . Este termo popular na linguagem militar designa a bagagem do soldado, a mochila . E a mochila que o Bispo de Hipona deve carregar todos os dias nas costas é especialmente pesada. Apesar de um ministério monopolizador e de tantas questões seculares para tratar, Agostinho encontrou tempo de silêncio e solidão para ler, estudar, meditar nas Sagradas p g Escrituras, rezar muito, escrever suas obras dogmáticas e se dedicar à catequese e ao ensino. O exemplo de Agostinho pertence à Igreja: não a uma Igreja abstrata ou ideal, mas à comunidade de Hipona, cujos rostos e rugas, cujas misérias e sofrimentos ele conhece bem. Com ela reza, jejua, sofre e caminha rumo àquela conversão diária, essencial para viver plenamente para Deus, com Deus e em Deus. Agostinho transfere a experiência desta comunidade nos seus comentários para os salmos, onde a encontramos em toda a sua essência: “Desde o momento em que o Corpo de Cristo começou a gemer na sua angústia, até ao fim do mundo, quando estas torturas passarão , este homem está gemendo e clamando a Deus. Aquele Deus que te deseja, aquele Deus presente nos teus irmãos, aquele Deus presente no mais íntimo da tua alma, é o mesmo que confias para abraçar – além de toda busca teológica – na oração silenciosa. Todo o seu ser tende para Ele, queimado de Amor. Quantas vezes você perscrutou o horizonte para vê-lo se aproximando, para descansar Nele e desfrutar de Sua Presença! Agostinho descreve-se como um homem na tenda de Deus, “levado pela alegria do som interior, levado pela sua doçura”, pelas notas divinas que silenciam os ruídos da carne e do sangue e o encaminham para a Casa de Deus. Mas ele sabe que o êxtase dura apenas um momento. E diariamente ele cai na miséria humana. Ele geme na fraqueza de sua carne. Porém, ele é arrastado por uma espera, motivo de sua viagem. “Cante e caminhe”, repete Agostinho: Deus está no fim do caminho e já sente a pressão da sua mão... —O silêncio é o exílio da palavra? Na sua vida pessoal, você já achou palavras muito irritantes, muito pesadas, muito altas? 134. – Todos precisamos cultivar o silêncio e cercá-lo de uma barreira interna. Na minha oração e na minha vida interior sempre senti a necessidade de um silêncio mais profundo e completo. Este segredo não se traduz em pensar em mim mesmo, mas sim em voltar o meu olhar, o meu ser e a minha alma para Deus. Os dias de solidão, silêncio e jejum absoluto têm sido um grande apoio. Uma graça incrível, uma purificação lenta e um encontro pessoal com um Deus que quis me arrastar aos poucos para uma vida interior mais densa para estabelecer uma relação íntima com Ele. Os dias de solidão, de silêncio e de jejum, alimentados apenas pela Palavra de Deus, permitem ao homem basear a sua vida no essencial. Ele sabia que assim poderia adquirir um vigor espiritual e um frescor semelhante ao da árvore plantada à beira da água, que estende suas raízes até o riacho. Aquela árvore não tem medo do calor que chega e suas folhas permanecem viçosas; Não se preocupa nos anos de seca nem deixa de dar frutos ( Jr 17, 7-8). O silêncio e o desenvolvimento da minha vida interior são uma necessidade absoluta: as almas consagradas e os sacerdotes nunca devem esquecê-lo. 135. – Em Um Ensaio para Contribuir para uma Gramática de Assentimento, o Beato John Henry Newman dirige aos sacerdotes censuras amargas como estas: «O silêncio preserva o calor interior do fervor religioso. Este calor manifesta a vida do Espírito Santo em nós. O silêncio permite-nos alimentar e manter o fogo divino aceso em nós (…). A vida do Espírito requer vigilância. Se quisermos testemunhar a presença do Espírito Santo no mundo, devemos sobretudo e com o maior cuidado alimentar o fogo interior. Não é de surpreender que muitos sacerdotes tenham se tornado conchas sem alma, homens que falam muito e partilham uma infinidade de experiências, mas nos quais o fogo do Espírito de Deus se extinguiu e expressam apenas ideias insignificantes ou sentimentos monótonos. Às vezes parece que não temos plena certeza de que o Espírito de Deus seja capaz de tocar o coração humano: acreditamos na obrigação de remediar esta deficiência e de convencer os outros do seu poder com abundância de palavras. Mas é justamente essa descrença charlatã que apaga o fogo (...). Para nós que fazemos apostolado, a maior tentação é o excesso de palavras, que enfraquecem a nossa fé e nos tornam mornos. O silêncio é uma disciplina sagrada, sentinela do Espírito Santo. São João é particularmente claro a este respeito: «Se me amais, guardareis os meus mandamentos; e eu rogarei ao Pai e ele vos dará outro Paráclito, para que esteja sempre convosco: o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber porque não o vê nem o conhece; Você o conhece porque ele permanece ao seu lado e está em você. Não vos deixarei órfãos, voltarei para vós” ( Jo 14, 15-18). Depois da sua Ascensão, Cristo não deixou os homens órfãos. Como no início da criação, como uma leve brisa, “o sopro de Deus pairava sobre as águas”; Assim o Filho de Deus colocou a humanidade nas mãos do Espírito Santo, que derrama o amor do Pai e distribui silenciosamente a sua luz e a sua sabedoria. É por isso que é absolutamente impossível deixar-nos guiar pelo Espírito Santo no meio do barulho e da agitação do mundo. Sem dúvida, Cristo fica angustiado ao ver e ouvir como alguns sacerdotes e bispos que deveriam garantir a integridade do ensino do Evangelho e da doutrina repetem palavras e escritos que diminuem o rigor do Evangelho com declarações deliberadamente ambíguas e confusas. A esos sacerdotes ya esos prelados que dan la impresión de llevar la contraria a la enseñanza tradicional de la Iglesia en materia de doctrina y moral no está de más recordarles las severas palabras de Cristo: «Os digo que todo pecado y blasfemia se les perdonará a os homens; mas a blasfêmia contra o Espírito Santo não será perdoada. Quem disser alguma palavra contra o Filho do Homem será perdoado; mas quem fala contra o Espírito Santo não será perdoado nem neste mundo nem no vindouro”; “Ele será culpado de um crime eterno”, acrescenta Marcos ( Mt 12, 31-32; Lc 12, 10; Mc 3, 29). É verdade que temos o dever de procurar novos caminhos pastorais. Mas no seu Comentário ao Evangelho de São João, São Tomás de Aquino adverte: «Se procuras, portanto, que caminho deves seguir, acolhe a Cristo em ti, porque Ele é o caminho: este é o caminho, anda nele. E Santo Agostinho diz: “Ande através do homem e chegará a Deus”. É melhor andar no caminho, mesmo mancando, do que sair rapidamente do caminho. Porque quem manca pelo caminho, embora faça pouco progresso, aproxima-se do fim; Mas quem sai do caminho, quanto mais corre, mais se afasta do limite. Se você busca aonde deve ir, adira-se a Cristo, pois Ele é a verdade a qual desejamos chegar. A afirmação de Newman sobre os sacerdotes que se apropriaram da palavra de Deus, dos sacramentos e da liturgia demonstra claramente que existe uma ligação estreita entre o silêncio e a fidelidade ao Espírito Santo. Sem a ascese do silêncio, os pastores tornam-se homens irrelevantes, prisioneiros de palavreado tedioso e patético. Sem a vida do Espírito Santo e sem silêncio, o ensinamento do sacerdote nada mais é do que uma conversa confusa, desprovida de consistência. A palavra do sacerdote deve ser expressão da alma e sinal da presença divina. A reflexão de Newman é válida para todos os homens. Quanto mais próximos estamos do Espírito Santo, mais tranquilos ficamos; e, quanto mais nos distanciamos Dele, maisviscosa. Uma tempestade de neve eclodiu perto do maciço Chartreuse, cobrindo o vale de um branco perfeito. Depois da porta Puente, na famosa estrada de São Bruno, o caminho torna-se difícil de percorrer. Junto aos altos muros do mosteiro encontrámos o mestre noviço, Padre Seraphico, e vários jovens monges que regressavam da espionagem. Ao passar o carro do cardeal, eles se viraram para cumprimentá-lo discretamente. Então o carro parou em frente a um edifício comprido, solene e austero: tínhamos chegado à Grande Cartuxa. Os flocos de neve giravam e o vento soprava entre os pinheiros, mas o silêncio já envolvia nossos corações. Atravessamos lentamente o pátio de honra para nos dirigirmos ao grande pavilhão dos priores, construído por Dom Innocent le Masson no século XVII , que se abre para o imponente claustro de serviços. O 74º Reverendo Padre Geral da Ordem dos Cartuxos, Dom Dysmas de Lassus, recebeu o cardeal com uma simplicidade especialmente comovente. No coração desta geografia mística, o sonho de solidão e silêncio de São Bruno tomou forma desde o ano de 1084. Em La Grande Chartreuse, au-delà du silêncio , Nathalie Nabert fala de uma liga sem paralelo: «A espiritualidade cartuxa nasce do encontro de uma alma e de um lugar, da coincidência entre um desejo de uma vida retirada em Deus e numa paisagem, Cartusie solitudeinem , como descrita em textos antigos, em que o isolamento e a beleza selvagem clamavam por uma solidão ainda maior, longe das “sombras fugitivas do século”, que permite passar “da tempestade deste mundo para o descanso seguro”. e a tranquilidade do porto”: é assim que Bruno de Colônia, no crepúsculo de sua vida, fala desse desejo imperioso na carta dirigida a seu amigo Raúl le Verd de chamá-lo ao deserto. Imediatamente, após uma conversa que não ultrapassou cinco minutos, chegamos às nossas celas. Da janela do quarto onde me instalei pude contemplar o mosteiro, coberto pelo seu manto branco, aninhado na imponente encosta do Grand Som, mais belo que todas as imagens que construíram o mito inalterável da Grande Cartuxa. A longa e solene sucessão de edifícios formava uma linha impecável; e depois, mais abaixo, as casas da obediência. Os portões da cidadela raramente podem ser cruzados. Neste lugar inspirador, cruzam-se a longa tradição das ordens eremíticas, as tragédias da história e a beleza da criação. Mas isto não é nada comparado com a profundidade das realidades espirituais: a Grande Cartuxa é um mundo onde as almas se abandonaram em Deus e por Deus. Às cinco e meia, as Vésperas reuniram os cartuxos na igreja conventual, íntima e sombria. Para chegar até lá era preciso passar por corredores intermináveis, frios e solenes, nos quais não conseguia deixar de pensar nas gerações de cartuxos que aceleraram o passo para assistir ao serviço religioso. A Grande Cartuxa é a casa dos séculos, a casa sem voz, a casa santa. Recordou também o turbulento e cheio de ódio despejo dos religiosos ocorrido em 29 de abril de 1903, após a aprovação da lei de Émile Combes relativa à expulsão das congregações religiosas, que reavivou as horas sombrias da Revolução e da saída forçada pelos cartuxos. em 1792. Vale a pena reflectir sobre esta profanação e sobre a entrada no antigo mosteiro – depois de arrombadas as pesadas portas de entrada – de um batalhão de infantaria, seguido por duas esquadras de dragões e centenas de sapadores. Magistrados e soldados entraram na igreja; Um por um, eles levantaram os pais das cadeiras do coral e os conduziram para fora dos muros. Os inimigos do silêncio de Deus triunfaram rodeados de vergonha. Por um lado, os defensores ferozes de um mundo libertado do seu Criador; de outro, os fiéis e pobres cartuxos cuja única riqueza era o belo silêncio do Céu. Naquela tarde de fevereiro de 2016, da arquibancada principal, contemplei as sombras brancas encapuzadas que ocupavam suas cadeiras. Os pais não demoraram a abrir os enormes antifonários que lhes permitem acompanhar as partituras dos textos vespertinos. A luz tornou-se cada vez mais fraca à medida que os salmos eram cantados; O cardeal, ao lado de Dom Dysmas, folheou cuidadosamente as páginas daqueles livros antigos para continuar a oração. Atrás dele, a tribuna que separava as cadeiras dos padres do coro das dos irmãos convertidos desenhou na escuridão uma grande cruz que parecia conferir dignidade ainda maior a uma escuridão avassaladora. O canto simples dos cartuxos imprime ao mesmo tempo uma pausa, uma profundidade, uma piedade doce e áspera. No final das Vésperas, os monges cantaram a esplêndida Salve Regina . Desde o século XII , os cartuxos cantam todos os dias esta antífona à Virgem. Hoje quase não existem mosteiros onde as suas notas continuem a ressoar. A noite caíra lá fora e as luzes fracas do mosteiro pararam o tempo. O silêncio só foi quebrado pelo rolar dos montes de neve que caíam dos telhados. Das profundezas do vale estreito o nevoeiro parecia subir e as encostas negras das montanhas formavam uma decoração grandiosa e triste. Os monges voltaram para suas celas. Depois de percorrer os imensos corredores do claustro do cemitério, cada um regressou ao cubículo onde passou parte tão importante da sua existência terrena. O silêncio da Grande Cartuxa recuperou os seus direitos imprescritíveis. Enquanto percorríamos a galeria de mapas, cujas paredes adornam as imagens das cartuxas de toda a Europa, foi fácil compreender até que ponto a Ordem de São Bruno soube dispersar-se para saciar a sede de tantos religiosos que quiseram encontre o Céu, longe dos ruídos do mundo. Enquanto a terra dorme ou se distrai, o escritório noturno é o coração ardente da vida cartuxa. Na primeira página do antifonário que Dom Dysmas preparou antes da minha chegada pude ler este preâmbulo: Antiphonarium nocturnum, ad usum sacri ordinis cartusiensis . Era meio- dia e quinze e os monges estavam apagando as poucas lâmpadas acesas da igreja. Uma escuridão perfeita cobriu o templo quando os cartuxos entoaram as primeiras orações. A noite permitiu-nos observar o ponto avermelhado da lâmpada do Santíssimo Sacramento com mais clareza do que nunca. O som da madeira das antigas cadeiras de nogueira parecia misturar-se com as vozes dos monges. Os salmos estavam ligados ao ritmo lento do canto gregoriano, cuja falta de pureza poderia ser censurada por quem frequenta as abadias beneditinas. Mas a oração noturna não se presta bem a considerações puramente estéticas. A liturgia se desenvolve numa escuridão que busca a Deus. Há vozes dos cartuxos e um silêncio perfeito. Por volta das duas e meia da manhã soaram os sinos do Angelus. Os monges deixaram a igreja um por um. O que é o escritório noturno: uma loucura ou uma maravilha? Em todos os mosteiros do mundo a noite prepara o dia e o dia prepara a noite. No olvidemos nunca las palabras de san Bruno, dulces y enérgicas, en su carta a Raúl le Verd: «Aquí, por el esfuerzo del combate, concede Dios a sus atletas la esperada recompensa: la paz que el mundo ignora y el gozo en el Espirito Santo". O prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos ficou profundamente comovido com os dois serviços noturnos que marcaram a sua estadia. O cardeal partilha com Isaac de Nínive este belo pensamento dos seus Discursos Ascéticos: «A oração feita durante a noite é muito poderosa, mais do que a oração diurna. Esta é a razão pela qual todos os justos oraram à noite, lutando contra o peso do corpo e a doçura do sono. Por esta razão, Satanás teme a obra da vigília e procura por todos os meios impedir os ascetas, como no caso de Antônio, o Grande, do bem-aventurado Paulo, de Arsênio e de outros pais do Egito. No entanto, os santos perseveraram obstinadamente na sua vigília e triunfaram sobre o diabo. Que homem solitário, dotado de outras virtudes, não teria sido considerado inepto se tivesse negligenciado as suas vigílias? Visto que a vigíliacharlatões. Cada sacerdote e cada bispo deveriam poder dizer com Santo Agostinho: Voce Ecclesiae loquor: a minha voz é a voz da Igreja ( Sermo 129, 4); e, portanto, a voz de Jesus Cristo. Assim, com delicadeza e eficácia, ele deve assumir toda a sua responsabilidade de pastor e guia. Nenhum sacerdote, nenhum bispo deve esquecer que no terrível dia do Juízo é ele quem deve responder diante de Deus pelos pecados daqueles que não soube curar por causa da sua negligência. Santo Agostinho escreve gravemente numa carta: «A honra deste século passa (...). [Honras] não servirão como defesa no tribunal de Cristo. Não pretendo passar estes tempos tempestuosos em honras eclesiásticas; Penso que devo prestar contas das ovelhas que me foram confiadas ao Príncipe de todos os pastores. É necessário, irmão, que você me perdoe em resposta a esse meu medo. Porque eu tenho muito medo. 136. – A falta de respeito e o silêncio é uma blasfêmia contra o Espírito Santo. Se praticar a disciplina do silêncio, o sacerdote sabe submeter-se ao Espírito Santo. Quando os porta-vozes de Deus não deixam o Espírito Santo falar neles, é inevitável que transformem a graça divina numa mera e detestável capacidade humana. 137. – O sacerdote é um homem silencioso. Você tem que estar sempre ouvindo a Deus. A verdadeira força pastoral e missionária só pode nascer da oração silenciosa. Sem silêncio o sacerdócio fica corrompido. O sacerdote tem que estar nas mãos do Espírito Santo. Se ele se distanciar do Espírito, será condenado a realizar trabalhos puramente humanos. 138. – Na verdade, o Espírito Santo continua a ser o Deus desconhecido, que dá título ao livro do padre jesuíta Victor Dillard, falecido em Dachau em 12 de janeiro de 1945. Em Au Dieu inconnu iniciou a sua reflexão com esta esplêndida oração, que é uma súplica, um grito dirigido ao Espírito Santo, pedindo-lhe que se dê a conhecer, que se deixe agarrar, tocar e revelar o seu rosto. Porque temos um desejo profundo de vê-lo: «Senhor, faze-me ver... nem sei como te chamar, como dizer: Espírito Santo ou Espírito Santo... Tento te pegar, isolar você dentro da divindade na qual estou imerso. Mas a mão estendida não agarra nada e, sem perceber, caio de joelhos diante do Pai, ou inclino-me para o meu Cristo interior, mais familiar. Meu corpo para. Os sentidos reivindicam sua ração de imagens para permitir que a alma voe até você. E você só dá a ele alimentos materiais estranhos: uma pomba, línguas de fogo, o vento. Não há nada nisso que permita a intimidade calorosa de uma oração entre dois, humanos, familiares. É que você está muito perto de mim. “Eu precisaria de um pouco de distância para te olhar, para te delimitar e para me delimitar diante de você, para satisfazer minha necessidade de contornos claros para entender nossa união.” A oração do Padre Dillard é um reflexo de quão difícil é para o crente imaginar a originalidade da pessoa divina do Espírito Santo. Contudo, no centro da celebração eucarística ele é repetidamente invocado para santificar o povo de Deus e todas as coisas, para vir converter ou realizar a transubstanciação, isto é, a transformação da substância do pão e do vindo na do pão. corpo e sangue de Jesus Cristo na Eucaristia. 139. – Cristo nos deu o grande silêncio do Espírito Santo. Como esquecê-lo? Se os homens se distanciam do fogo devorador do silêncio do Espírito, acabam sempre por adorar ídolos. Devemos alimentar o fogo silencioso do Pentecostes. Sem o silêncio do Espírito, os homens são pacotes vazios. 140. – O silêncio não é o exílio da palavra. É o amor da única Palavra. A abundância de palavras, ao contrário, é sintoma da dúvida. A descrença é sempre charlatã. 141. – Tendemos a esquecer que Cristo gostava de ficar calado. Ele foi para o deserto não para se exilar, mas para encontrar Deus. E no momento mais crucial da sua vida, enquanto os gritos irrompiam por toda parte, cobrindo-o de mentiras e calúnias, quando o sumo sacerdote lhe perguntou: Não dizes nada?, Jesus escolheu o silêncio. Existe uma verdadeira amnésia que nos impede de saber que o silêncio é sagrado porque nele reside Deus. Como redescobrir o significado do silêncio como manifestação de Deus? É aí que reside o drama do mundo moderno: o homem distancia-se de Deus porque deixou de acreditar no valor do silêncio. 142. – Sem silêncio, Deus desaparece no meio do barulho. E esse ruído torna-se tanto mais obsessivo quanto mais ausente Deus está. O mundo estará perdido se não redescobrir o silêncio. Então a terra cai no nada. —Há silêncio de escuta? Pode ser paradoxal querer compreender os outros permanecendo em silêncio... 143. – Para ouvir é preciso ficar em silêncio. E não me refiro apenas a forçar-se a um silêncio físico que não interrompa a fala do outro, mas ao silêncio interno, ou seja, um silêncio que não tem como único objetivo acolher a palavra do outro; e também a um coração transbordante de amor humilde e rico em capacidade de atenção, de acolhimento amigável, de auto-absorção voluntária, reforçado pela consciência da nossa pobreza. O silêncio da escuta é atenção, é dom de si mesmo e sinal de elegância moral. Deve ser uma expressão da consciência da nossa humildade para aceitar receber dos outros um dom que Deus nos dá. Porque o outro é sempre uma riqueza e um dom precioso que Deus nos oferece para crescermos na humildade, na humanidade e na nobreza. Acredito que a relação humana mais imperfeita é justamente aquela em que falta o silêncio da atenção. 144. – Devemos impor o silêncio ao trabalho do pensamento, acalmar a agitação do coração, o tumulto das preocupações e eliminar todas as distrações artificiais. Não p p há nada que nos permita compreender melhor a escuta do que a relação entre silêncio e escuta, atenção e dom. São João escreve no seu prólogo: “E a luz brilha nas trevas, e as trevas não a receberam” ( Jo 1,5). O silêncio da escuta é um encontro silencioso de coração para coração. Como o coração pode acolher plenamente o outro senão em silêncio? Isto não encontra explicação na inteligência, mas na alma. 145. – Da mesma forma, a música é ouvida plenamente quando tudo está em silêncio ao nosso redor e dentro de nós, da forma mais absoluta, com os olhos fechados. Não consigo exprimir melhor esse silêncio da escuta do que evocando o encanto do órgão quando este enche a igreja com o seu canto. Depois ouvimos sem ver nada o que acontece no topo da tribuna onde se encontra: o seu som vem de uma escuridão materna e, sob as abóbadas inertes e sombrias, envolve-nos como uma mortalha. Não há dúvida de que o silêncio auditivo mais sublime ocorre quando a própria palavra, sem perder nada da sua vitalidade, se apresenta silenciosamente na leitura, aquele encontro entre uma palavra desprovida de som e um destinatário totalmente voltado para dentro de si mesmo numa solidão perfeita. de boas-vindas. —O que podemos dizer sobre o silêncio da memória? E não me refiro ao silêncio da doença, quando o homem perde suas memórias e suas referências. 146. – A memória é uma palavra fecundada pelo Espírito Santo. É um sepultamento, um solo arado onde o homem deposita a semente da palavra, que cria raízes e brota no silêncio, desenvolvendo uma vida nova, mais abundante e portadora de esperança. Morta no silêncio da escuta, a palavra volta a florescer sob o sol do Espírito Santo que a desperta para a vida. Assimilado e fecundado na oração, surge como um novo ser carregado de frutos copiosos: se o grão de trigo não morre, permanece infértil. A morte da semente é a vida da planta. E a planta, único ser da natureza silencioso e animado, surge diante de nós como a imagem mais perfeita do que acontece nos momentos que se seguem à escuta silenciosa. A tradição especulativa da lectio divina , que permeia o cristianismo desde as origens até os dias atuais, significa que a lectio é seguida pela meditatio , e a meditatio pela oratio . Reservada pela naturezaa um estado em que nos dirigimos a Deus, a lição da lectio divina é um reflexo perfeito das riquezas do silêncio. 147. – O silêncio da memória é a paz da alma e do coração. O silêncio da memória é um homem livre e íntegro. —No seu Diário de um Padre Rural, Georges Bernanos escreve: «Fique calado! Que palavras estranhas, quando é o silêncio que nos mantém! Como compreender esta manifestação da irracionalidade dos homens diante do silêncio? 148. – O Padre Jérôme tentou responder a esta questão. Nos seus Écrits monastiques escreve: «O silêncio é um mistério; ou, para ser mais preciso, a atitude das pessoas em relação ao silêncio acarreta um problema quase misterioso. Todas as pessoas sensatas admiram o silêncio; todos estão convencidos da sua utilidade; mas quase nunca querem dar outro passo. O monge trapista continua: “Para praticar a caridade: usar a violência, conter-se, não expor os outros a esses ruídos capazes de agitar os espíritos: porque esta agitação simplesmente distancia de Deus”. O barulho nos rodeia e nos assedia. O barulho das nossas cidades sempre ativas, barulho dos carros, aviões, máquinas fora e dentro de nossas casas. Junto com esse ruído que nos é imposto, estão os ruídos que produzimos ou escolhemos. Essa é a trilha sonora de nossas vidas comuns. Esse ruído costuma ter inconscientemente uma função que não ousamos confessar: mascarar e abafar aquele outro ruído que ocupa e invade a nossa interioridade. É impossível não nos surpreendermos com os esforços que dedicamos incansavelmente para abafar os silêncios de Deus. 149. – O ruído é um ataque à alma, a ruína silenciosa da interioridade. O homem sempre tende a ficar fora de si p mesmo. Ainda assim, devemos voltar sempre à cidadela interior. 150. – Descobrimos aquele barulho dolorosamente quando decidimos parar para orar. Muitas vezes nosso templo interior é invadido por uma imensa comoção. O mundo moderno multiplicou os ruídos mais tóxicos, tantos inimigos ferrenhos da paz de coração. Num mundo secularizado, materialista e hedonista, em que as guerras, as bombas e o estalar de metralhadoras, a violência e a barbárie são moeda comum; em que os ataques à dignidade da pessoa humana, da família e da vida atingem o próprio ser do homem, o respeito pelo silêncio tornou-se a menor preocupação da humanidade. E ainda assim, Deus se esconde em silêncio. 151. – Numa conferência dedicada ao silêncio, o irmão carmelita Philippe de Jésus-Marie disse eloquentemente: «Sentimos que a nossa alma é originariamente um espaço de silêncio, um lugar virgem, um templo onde Deus quer habitar em paz connosco . Mas, quando aparecemos no limiar daquele templo íntimo graças a um movimento de reflexão, descobrimos estranhas cacofonias que fazem deste templo de oração uma caixa de ressonância na qual todos os aspectos da nossa vida acabam por ter impacto, na qual se manifestam .todos os nossos medos e ansiedades, os nossos desejos e as nossas mais variadas emoções. “Então o fundamental não é mais sobretudo o ruído externo, mas o silêncio dos pensamentos.” Infelizmente, a experiência descrita pelo Irmão Philippe de Jésus-Marie é hoje uma realidade amplamente partilhada, especialmente no mundo ocidental, mas também fora dele. Algum dia, além do barulho invasivo que perversamente tece tantas vidas, o que importará é ouvir novamente “um sussurro de uma brisa suave”, a voz de Deus que mais uma vez nos dirá: “O que o traz aqui, Elias?” ( 1 Reis 19, 12-13). 152. – No Castelo Interior, Teresa de Ávila descreve esta experiência universal com notável precisão: «Só parece que nele [na cabeça] há muitos rios caudalosos e, por outro p lado, que estas águas caem de um penhasco; muitos passarinhos e assobios, e não nos ouvidos, mas no topo da cabeça, onde dizem que está a parte superior da alma. 153. – Escreve o irmão carmelita Philippe de Jésus-Marie: «Durante o tempo de oração, devemos renunciar completamente a pegar trens e barcos que passam. Para isso, é fundamental não nos identificarmos com esses pensamentos, mas ter consciência de que eles nos chegam, de que não somos nós, de que se desdobram no pano de fundo do nosso silêncio interior (...). Tudo o que nos é pedido diante Dele é que permaneçamos em silêncio: esse é o louvor mais bonito que podemos dar-Lhe. Todos nós embarcamos em “trens e navios que passam”. Muitas vezes entramos com eles em capelas e igrejas. Pode até ser que não tenhamos plena consciência do barulho que nos acompanha na casa de Deus. 154. – Sei que é muito difícil deixar de lado os mil problemas que podem nos atormentar e perturbar o nosso silêncio. Como vamos pedir a uma mãe com um filho gravemente doente que mantenha afastados os pensamentos dolorosos que a atacam? Como vamos pedir a um homem que acaba de perder a esposa após uma longa doença que remova o manto de tristeza que parte seu coração para recuperar algum nível de silêncio? Por mais difícil que seja a vida quotidiana, Deus não está menos presente em cada um de nós. É um Deus paciente, fiel e misericordioso, que não se cansa de esperar. Talvez o mais difícil seja entrar em nós mesmos, calar-nos, voltar-nos para o Pai, arrepender-nos e dizer: “Quantos empregados de meu pai têm pão em abundância enquanto eu aqui morro de fome! Levantar-me-ei e irei ter com meu pai e direi-lhe: “Pai, pequei contra o céu e contra ti; Não sou mais digno de ser chamado de seu filho; “Trate-me como um de seus empregados.” E ele se levantou e foi para a casa de seu pai” ( Lc 15, 17-20). O caminho para o Céu consiste em redescobrir a nossa interioridade silenciosa em que Deus vive e nos espera, perscrutando o horizonte. 155. – Numa palestra sobre O som do silêncio no deserto sagrado, o Irmão carmelita Jean-Gabriel de l'Enfant-Jésus disse: «Quando lemos os fundadores dos santos do deserto, podemos ser tentados a acreditar que a vida do O deserto está cheio de doces conversas com Deus, sem outra preocupação senão aquela santa ociosidade que, como diz São João da Cruz no seu Cântico Espiritual, caracteriza a contemplação amorosa (...). Porém, o mais comum é que o eremita enfrente as trevas de sua alma pecaminosa. O silêncio e a solidão são terreno de uma batalha espiritual contra os seus três inimigos: o mundo, o diabo e o velho (ou “a carne” no sentido paulino), o mais tenaz dos três, segundo São João da Cruz ". O silêncio deve ser protegido como um tesouro de todo ruído parasita. O barulho do nosso “eu”, que não para de exigir os seus direitos e nos imerge numa preocupação excessiva consigo mesmo. O ruído da nossa memória que nos arrasta para o passado, o das memórias e das falhas. O barulho das tentações ou da tibieza, do espírito de gula, luxúria, ganância, raiva, tristeza, vaidade, orgulho; de tudo o que é objeto do combate espiritual que o homem deve travar diariamente. Para silenciar esses ruídos parasitários, para consumir tudo no fogo da doce chama do Espírito Santo, o melhor antídoto é o silêncio. 156. – Existe uma forma de glória no silêncio. Santo Inácio de Loyola não hesita em escrever nos seus Exercícios Espirituais: “Quanto mais a nossa alma está só e separada, mais capaz se torna de aproximar-se e alcançar o seu Criador e Senhor”. 157. – O silêncio nunca faz exibição de pompa e pompa: é feito apenas à imagem de Deus. O silêncio nunca nos cega como aqueles ruídos de enfeites e enfeites, porque é um simples reflexo do amor divino. 158. – No seu livro Para um autoexame recomendado nesta época, o filósofo Soren Kierkegaard resume o problema de forma explícita e brilhante: «Se toda esta situação cristã atual pode ser considerada uma doença e eu p sou o médico Se alguém me perguntasse: “Na sua opinião, qual é o remédio?”, minha resposta seria: “O que é absolutamente essencial se chama silêncio . ” Silêncio, silêncio, dê-nos silêncio novamente. É assim que a Palavra de Deus é melhor ouvida. Bem, se deve ser proclamada em voz alta, então não é mais aPalavra de Deus. Portanto, silêncio! Ah, é tudo barulho. E assim como se diz de uma bebida excitante que mexe com o sangue, também em nossa época todo acontecimento, mesmo o mais banal, mesmo o grito mais bobo, só busca despertar os sentidos ou comover a multidão, o público, o barulho. E aquele ser irracional chamado “homem” passa as noites inventando novos meios para aumentar o barulho, para espalhar mais rapidamente a comoção e a estupidez. Sim, estamos prestes a conseguir a inversão completa: agora que os meios de comunicação quase atingiram o pico de velocidade e amplitude ilimitada, estamos ao mesmo tempo no ponto mais baixo de falta de significância das comunicações. Tão grande é a pressa atual em gritar tudo sobre todo mundo, tão grande é a extensão da fofoca. Ah, por favor: silêncio. 159. – O que é mais difícil para o homem é buscar a Deus em silêncio. Esta luz silenciosa não é uma palavra humana, mas uma luz humilde e pobre. II DEUS NÃO FALA, MAS SUA VOZ É CLARA Feliz e muito feliz é a alma que merece ser conduzida a Deus e por Deus, para que, pela unidade do Espírito em Deus, ame só a Deus e nenhum bem pessoal, e só ame a si mesma em Deus! (…) “Que sejam um como nós”! (Jo 17, 11). Tal é o fim, tal é a consumação, a perfeição, a paz, a alegria do Senhor, a alegria no Espírito Santo; tal é o silêncio no Céu (Ap 8, 1). Guilherme de Saint-Thierry, Carta aos irmãos do Mont Dei —Em O Sinal de Jonas, Thomas Merton afirma eloquentemente que “o problema da linguagem é o problema do pecado. O problema do silêncio é também um problema de amor. Como pode o homem saber se deve escrever ou não, se deve falar ou não, se as suas palavras e o seu silêncio são bons ou maus, se geram vida ou morte, se não compreender as duas divisões da linguagem: a divisão da linguagem? Babel onde, por causa do seu orgulho, os homens foram separados pela língua, e pela divisão das línguas de fogo do Pentecostes, quando o Espírito Santo concedeu aos que conheciam um dialeto falar todas as línguas da terra e restaurar a todos a unidade dos homens para que “todos sejam um, como tu, Pai, em mim e eu em ti” ( Jo 17, 21-22)? Aqueles homens tornaram-se, por obra do Espírito Santo, um fogo que queimou toda Jerusalém (cf. Jr 20, 9). E Deus se manifestou através deles. O Deus que habita silenciosamente em nós é a única razão que nos autoriza a falar, mas é também aquele que justifica uma palavra densa e divina, na medida em que nasce do silêncio e não demora a devolver o silêncio ao alma. . Como compreender o mistério do silêncio de Deus, tão difícil de ser acolhido por tantos homens de todos os tempos? 160. – Muitos dos nossos contemporâneos não conseguem aceitar o silêncio de Deus. Não admitem que a comunicação possa ser estabelecida se não for através de palavras, gestos ou ações concretas e visíveis. Contudo, Deus fala com o seu silêncio. O silêncio de Deus é uma palavra. Sua Palavra é solidão. A solidão de Deus não é uma ausência: é o seu próprio ser, a sua transcendência silenciosa. 161. – Thomas Merton pensa que “o silêncio de Deus deveria nos mostrar quando falar e quando calar. Mas a ideia do silêncio é-nos insuportável, tal é o nosso medo de perder a confiança e o respeito dos homens. Estamos ansiosos por dar uma resposta a tantas dificuldades, sofrimentos e desastres que se abatem sobre a humanidade. Esquecemos que a origem dos nossos males é a ilusão de sermos algo mais que pó. O homem que se diviniza não quer saber que é mortal. O Salmo 102 diz que Deus sabe “do que somos feitos, lembre-se que somos pó. O homem! Seus dias são como feno: ele floresce como uma flor silvestre; O vento passa sobre ela e ela não fica de pé, nem se reconhece mais o seu lugar” ( Sl 102, 14-16). Devemos reconhecer que Deus é a nossa alegria e que Nele o nosso pó pode tornar-se resplandecente. O Amor de Cristo transforma em alegria a imensa dor da humanidade; O segredo da felicidade é ver todo o nosso sofrimento à luz da vitória de Cristo sobre a morte. Qualquer sofrimento contribui de uma forma ou de outra para a nossa felicidade. 162. – A própria criação é palavra silenciosa de Deus. A beleza indescritível da natureza expõe diante dos nossos olhos as riquezas abundantes de um Pai que nunca deixa de estar presente entre os homens. A palavra divina não é perceptível aos ouvidos humanos: mas é a palavra mais profunda de todas. Aos nossos ouvidos, o sol, a lua e as estrelas são completamente silenciosos, mas são uma palavra e uma mensagem essencial na nossa existência terrena. Existe uma linguagem das estrelas que não conseguimos conhecer e compreender, mas que Deus entende perfeitamente. O Cântico dos Três Jovens, o Hino do Universo extraído do Livro de Daniel que cantamos todos os domingos na oração da manhã, testemunhamos que o sol e a lua, as noites e os dias, as estrelas, as montanhas e picos, as fontes, os mares e os rios, os animais do mar e os pássaros Eles abençoam o Senhor e proclame seus louvores: “Aquele que vem de Deus ouve as palavras de Deus”. Por que os homens não conseguem ouvir a voz de Deus quando ele fala através da criação? Acreditamos realmente que somos os únicos capazes de falar com ele e ouvi-lo? Em Leaving Before Dawn, Julien Green escreve: “Deus fala muito gentilmente com as crianças e o que ele tem a dizer geralmente é dito sem palavras. A criação fornece o vocabulário que você precisa: folhas, nuvens, água corrente, um ponto de luz. É a linguagem secreta que não se aprende nos livros e que as crianças conhecem bem (...). As crianças são como um povo numeroso que recebeu um segredo incomunicável que aos poucos vai sendo esquecido porque as nações supostamente civilizadas se apoderaram do seu destino (...). Quanto a mim, conheci o que as crianças sabem e nenhum raciocínio neste mundo foi capaz de extrair completamente de mim esse algo inefável. Palavras não podem descrevê-lo. Esconde-se sob o solo da linguagem e ali enterrado permanece mudo. 163. – Estou convencido de que Deus concede a cada homem de fé um coração capaz de ouvir a linguagem da criação. Como diz o sábio Ben Sirac, o Pai plantou o seu olho no coração do homem para que o crente veja Deus, o próximo e toda a criação com olhos divinos. Deus selou meu coração dentro do dele. Deus mora em meu coração. É por isso que entre o homem e Deus existe uma espécie de conluio, pois partilham o mesmo coração e os mesmos olhos: o que Deus vê e ouve também pode ser visto e ouvido pelo homem. Atrevo-me a garantir um amor como este. 164. – Na descida do Monte das Oliveiras, Cristo aproximava-se da multidão quando eles, cheios de alegria, começaram a louvar a Deus em voz alta pelos milagres que tinham visto: «Bendito o Rei que vem em nome do Senhor . Paz no céu e glória nas alturas”. Alguns fariseus da multidão lhe disseram: “Mestre, repreende os teus discípulos”. A resposta de Cristo aos fariseus é especialmente eloquente, pois confirma que a criação também é capaz de louvar a Deus: «Eu vos digo: se estes permanecerem calados, as pedras clamarão» ( Lc 19,40). Vimos como a Bíblia exorta toda a criação a louvar a Deus. Os rios, os pássaros, os répteis, o sol e a lua louvam ao Senhor. A linguagem de Deus, como a da natureza, não é imediatamente perceptível pela nossa inteligência, mas não deixa de ter uma força imensa que deseja comunicar-se aos homens. Por linguagem entendo todas as expressões meramente humanas que unem os homens entre si. Mas não posso esquecer a linguagem silenciosa da beleza, das montanhas, do mar, da pedra, do trovão, do fogo e de todas as criaturas que manifestam Deus e cantam os seus louvores. 165. – O silêncio de Deus compreende-se graças à fé, na meditação sobre a comunhão que pode existir entre Ele e os homens. O silêncio divino é uma revelação misteriosa. Deus não é insensível ao mal. À primeira vista, pode-se pensar que Deus permite que o mal destrua os homens. Mas, embora Deus permaneçaem silêncio, ele não sofre menos do que nós com este mal que dilacera e desfigura a terra. Se tentarmos estar com Ele em silêncio, compreenderemos Sua presença e Seu amor. 166. – O silêncio de Deus também pode ser uma censura. Quantas vezes parece que não queremos ouvir a sua língua! Contudo, se houver um terremoto ou um grande desastre natural que provoque inúmeros dramas humanos, reprovamos a Deus por estar em silêncio. O silêncio de Deus p p interroga a humanidade sobre a sua capacidade de entrar no mistério da vida e da esperança, no próprio coração do sofrimento e das provações. Quanto mais nos recusamos a compreender este silêncio, mais nos afastamos Dele. Estou convencido de que o problema do ateísmo contemporâneo consiste sobretudo numa interpretação errada do silêncio de Deus diante das catástrofes e dos sofrimentos dos homens. Se o homem só vê no silêncio divino uma manifestação do abandono, da indiferença ou da impotência de Deus, dificilmente lhe será possível entrar naquele mistério inefável e inacessível. Quanto mais o homem rejeita o silêncio de Deus, mais se rebela contra Ele. 167. – O silêncio de Deus é incompreensível e inacessível. Mas o homem que reza sabe que Ele o compreende, da mesma forma que compreendeu as últimas palavras de Cristo na Cruz. A humanidade fala e Deus responde com o seu silêncio. 168. – Como compreender os longos anos da Shoah e o seu abominável cortejo de campos de extermínio como Auschwitz-Birkenau, onde morreram tantos judeus inocentes? Como compreender o silêncio de Deus? Por que ele decidiu não intervir enquanto seu povo estava sendo massacrado? Um judeu e filósofo alemão, Hans Jonas, tentou responder a esta questão muito dolorosa no seu livro O Conceito de Deus depois de Auschwitz : "O que Auschwitz tem a acrescentar ao que sempre foi conhecido sobre os extremos da coisa horrível e assustadora que o ser humano seres podem infligir e sempre infligiram aos outros? Naturalmente, Hans Jonas questiona Deus: “Deus permitiu. Que tipo de Deus poderia permitir isso? Deus Todo-Poderoso não interveio para evitar o massacre selvagem de seu povo. E por que ele permitiu isso? Hans Jonas responde: “Para que o mundo exista, Deus renuncia ao seu próprio ser”. O que quer dizer com isso? «Para dar espaço ao mundo, o Infinito teve que se recolher em si mesmo e assim deixar nascer fora Dele o vazio, o nada, no qual e a partir do qual Ele poderia criar o mundo. Sem este recolhimento em si mesmo, nada mais poderia existir ao lado de Deus. A sua conclusão é fácil de adivinhar: «Ao fazer isto, Deus, desde o momento da criação, torna-se um Deus sofredor, porque terá que sofrer pelo homem e ser defraudado por ele. Ele também será um Deus preocupado, simplesmente porque confiou o mundo a outros agentes além dele, a agentes livres. Em suma, ele é um Deus em perigo, um Deus que corre o seu próprio perigo. Para que Deus não seja um Deus todo-poderoso. Para que a bondade de Deus seja compatível com a existência do mal, é necessário que ele não seja todo- poderoso. Mais precisamente: é necessário que este Deus tenha renunciado ao poder. No simples facto de admitir a liberdade humana reside uma renúncia ao poder. 169. – Porém, se Deus não é poderoso, então não é Deus. Deus é Todo-Poderoso e, ao mesmo tempo, quer permitir que o homem seja verdadeiramente livre. Porque a onipotência de Deus é a onipotência do Amor, e a onipotência do Amor é a morte. O infinito de Deus não é um infinito no espaço, um oceano sem fundo e sem margens: é um Amor que não tem limites. A criação é um ato de Amor infinito. Para Hans Jonas o ato da criação é uma espécie de “autolimitação” de Deus. Dessa forma, você pode começar a compreender o silêncio e o abandono deles. O sofrimento do homem torna-se misteriosamente o sofrimento de Deus. Na natureza divina, sofrimento não é sinônimo de imperfeição. Este problema traz à mente a carta de uma mãe movida pela ideia da vulnerabilidade de Deus: «Quando os meus filhos eram pequenos, quem pensava por eles e decidia por eles era eu. Tudo foi fácil: a única coisa que estava em jogo era a minha liberdade. Mas, a certa altura, quando percebi que o meu papel era habituá-los a escolher, senti – assim que assumi – que a ansiedade me invadiu. Ao deixar que os meus filhos tomassem decisões e, portanto, assumissem riscos, ao mesmo tempo corria também o risco de ver surgirem outras liberdades que não as minhas. Se muitas vezes continuei a escolher, devo confessar que foi para poupá-los do sofrimento derivado de uma escolha da qual mais tarde poderiam se arrepender; mas também, e na mesma medida – se não em maior medida – para não correr o risco de viver em desacordo entre a sua escolha e o que gostaria que fizessem. Faltou amor da minha parte, porque agindo assim o que eu queria acima de tudo era me proteger de um possível sofrimento: aquele que experimentei cada vez que meus filhos embarcaram em um caminho diferente daquele que considerei melhor para eles. Assim consegui vislumbrar como é possível que Deus “Pai” sofra. Nós somos seus filhos. Ele quer que sejamos livres para nos construirmos e a Infinitude do Seu Amor impede toda coerção. Amor perfeito, sem nenhum traço de cálculo, mas que implica a aceitação do sofrimento inerente a essa liberdade total que Ele deseja para nós. Acreditar num Deus silencioso que “sofre” é tornar o silêncio de Deus ainda mais misterioso, mas também mais luminoso; É eliminar uma falsa clareza para substituí-la pela “escuridão brilhante”. Porque não devemos esquecer as palavras do salmo: «Que as trevas pelo menos me cubram e a luz se torne noite ao meu redor! Nem para ti as trevas são escuras, porque a noite brilha como o dia, as trevas como a luz» ( Sl 139, 11-12). Este salmo pode dar força ao homem quando seus demônios mais sombrios o atacam e sempre que ele sente a tentação de se rebelar contra Deus. O silêncio de Deus é um convite a guardar o nosso próprio silêncio para aprofundar o grande mistério do homem e das suas alegrias, das suas tristezas, dos seus sofrimentos e da sua morte. —Que resposta dar a quem pensa mais ou menos: “Deus não se importa comigo: está sempre calado”? 170. – Não é fácil encontrar a linguagem adequada para falar de forma respeitosa e fecunda a quem se sente abandonado por Deus. Devemos munir-nos de compreensão fraterna e de uma pedagogia prudente e deixar-nos levar pela oração, obra do Espírito Santo que abre o coração à Palavra de Deus. Com simpatia e delicadeza, teremos que pedir-lhes que aceitem o mistério do silêncio divino, realizando um ato de abandono e de fé na dimensão salvífica do sofrimento. Quando o homem permanece ancorado em certezas materialistas e racionalistas, aposta sempre neste hipotético abandono de Deus. Pela sua própria natureza, o amor envolve um salto para o desconhecido. A modernidade gosta de ver no silêncio de Deus a prova fácil da sua inexistência: se o mal e o sofrimento existem, é impossível que Deus exista. 171. – Ainda ouço os soluços daquele menino muçulmano de sete anos que, com os olhos cheios de lágrimas, reclamava assim: «Alá existe? Por que você permitiu que meu pai fosse morto? Por que você não fez nada para evitar esse crime? No seu silêncio misterioso, Deus manifesta-se nas lágrimas derramadas pela criança sofredora, e não na ordem do mundo que justifica essas lágrimas. Deus tem a sua maneira misteriosa de estar perto de nós na provação. 172. – As manifestações externas nem sempre são a melhor prova de proximidade. Às vezes, nossos amigos mais próximos estão longe de nós e isso não os impede de nos amar do fundo do coração. Os pais não passam todas as horas da vida com os filhos e isso não significa que se importem menos com eles. 173. – Deus é um Pai que pode parecer distante. E, no entanto, ele é um Pai que se preocupa conosco como se estivesse o mais próximo possível de nossos corações. Às vezes Ele nos eleva ao topo da Cruze nos deixa crescer no sofrimento para testar a nossa maturidade e a nossa intimidade com Ele. Temos que aceitar o sofrimento como parte da nossa humanidade. Contemplar a Cruz nos ajuda a fazer isso. Teilhard de Chardin escreveu numa carta: «Tendo compreendido plenamente o significado da Cruz, não corremos mais o risco de a vida nos parecer triste ou feia. Ficamos ainda mais atentos à sua gravidade incompreensível. E no prólogo do livro que reúne as anotações da irmã, doente para o resto da vida, escreveu: «Margarita, minha irmã, enquanto eu, rendido às forças positivas do universo, viajava pelos continentes e pelos mares, você, imóvel , deitado, você se transformou em luz, no fundo de você, as piores sombras do mundo. Aos olhos do Criador, diga-me: qual dos dois terá obtido a melhor parte? Olhar para a Cruz suscita em nós uma oração semelhante à de Jesus: “Pai, nas tuas mãos confio o meu espírito!” 174. – Parece-me lógico que o homem que não reza nunca seja incapaz de compreender a palavra silenciosa de Deus. Quando estamos apaixonados, porém, percebemos até p p p o menor gesto da pessoa amada. O mesmo vale para a oração. Se tivermos o hábito de rezar frequentemente, poderemos compreender o significado dos silêncios de Deus. Há sinais que só o casal é capaz de compreender. Também o homem de oração é o único que capta os sinais silenciosos de carinho que recebe de Deus. 175. – Deus é um amigo discreto que vem compartilhar alegrias, tristezas e lágrimas sem esperar nada em troca. Você tem que crescer nessa amizade. —O Apocalipse de São João fala de forma particularmente poética do “silêncio no céu”. Qual é o significado daqueles versículos que deram origem a tantas interpretações? 176. – No Céu não há palavra. Lá em cima os bem- aventurados comunicam-se sem palavras. Reina um imenso silêncio de contemplação, comunhão e amor. 177. – Na pátria divina todas as almas estão unidas a Deus. Eles se alimentam dessa visão. As almas estão completamente possuídas pelo seu amor a Deus em absoluto êxtase. Há um silêncio imenso, porque para se unirem a Deus as almas não precisam de palavras. Angústias, paixões, medos, dores, invejas, ódios e inclinações desaparecem. Existe apenas aquele encontro de coração a coração com Deus. O abraço entre Deus e as almas é eterno. O céu é o coração de Deus. E esse coração sempre será silêncio. Deus é a ternura perfeita que não precisa de palavras para se espalhar. O Paraíso é como uma imensa lenha ardente que nunca se consome, tal é a força com que esse Amor ardente se espalha. Lá em cima, o Amor arde com uma chama inocente, com um desejo puro de amar infinitamente e de mergulhar na profundidade íntima da Trindade. 178. – Bento XVI expressa com impressionante clareza a importância do amor de Deus. Já nas primeiras linhas da sua encíclica Deus Caritas Est escreve: «Acreditámos no amor de Deus: é assim que o cristão pode exprimir a escolha fundamental da sua vida. Não se começa a ser cristão através de uma decisão ética ou de uma grande ideia, mas através do encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com ele, uma orientação decisiva. No seu evangelho, João expressou este acontecimento com as seguintes palavras: “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que todos os que nele crêem tenham a vida eterna” ( Jo 3,16). A fé cristã, colocando o amor no centro, assumiu o que era o cerne da fé de Israel, dando-lhe ao mesmo tempo uma nova profundidade e amplitude. Na verdade, o israelita crente reza todos os dias com as palavras do livro do Deuteronômio que, como ele bem sabe, resumem o cerne da sua existência: “Ouve, Israel: o Senhor nosso Deus é um só. Amarás o Senhor com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças” ( Dt 6, 4-5). Jesus, fazendo de ambos um único preceito, uniu este mandamento do amor a Deus com o do amor ao próximo, contido no livro do Levítico: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” ( Lv 19, 18; cf. Mc 12, 29-31). E, como foi Deus quem nos amou primeiro (cf. 1Jo 4, 10), agora o amor já não é apenas um mandamento , mas a resposta ao dom do amor, com o qual Ele vem ao nosso encontro. 179. – O Apocalipse de São João contém algumas descrições misteriosas. O silêncio do Céu é um silêncio de amor, de oração, de oferta e adoração: «E quando [o Cordeiro] abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu durante meia hora (...). Outro anjo veio e ficou junto ao altar com um incensário de ouro. Deram-lhe muitos perfumes para oferecer, com as orações dos santos (...). E a fumaça dos perfumes subiu, com as orações dos santos, da mão do anjo até a presença de Deus” ( Ap 8, 1.3-4). 180. – De particular beleza é a oração de Santo Agostinho pelos defuntos: «Se conhecesses o dom de Deus e o que é o Céu. Se você pudesse ouvir a canção dos anjos e me ver no meio deles. Se você pudesse ver os horizontes, os campos e os novos caminhos que atravesso se desdobrando diante de seus olhos... Se por um momento você pudesse contemplar, como eu, a beleza, diante da qual as belezas empalidecem. Você me amou no país das sombras e não se conforma em me ver no país das realidades imutáveis? Acredite em mim: quando a morte vier quebrar os laços como quebrou aqueles que me acorrentavam, quando chegar o dia que Deus estabeleceu e sabe, e sua alma vier a este Céu em que a minha o precedeu, nesse dia você retornará. Veja-me, você sentirá que ainda te amo, que te amei, encontrará meu coração com toda sua ternura purificada. Você me verá novamente em transfiguração, em êxtase, feliz! Não mais esperando a morte, mas seguindo em frente contigo, te levarei pela mão por novos caminhos de luz... e de vida... Enxugue suas lágrimas, não chore se você me ama. 181. – Falar de um “silêncio no Céu é uma aventura verdadeiramente ousada. Há viagens em que o sensato e prudente é deixar-se guiar pela experiência de quem conhece a realidade geográfica e o ambiente. Que aventura extraordinária querer refletir sobre o silêncio do Céu! Temos que nos conectar uns com os outros para empreender o caminho deste mistério. Sozinhos só podemos balbuciar... 182. – São muitas as reflexões dos Padres da Igreja sobre estes temas. Eles sabiam que o silêncio é a liberdade suprema do homem com Deus. São Gregório Magno tem algumas palavras extraordinariamente profundas sobre o silêncio. Na Regra Pastoral escreve: «Quando o espírito do homem vive recolhido, é como se as águas em repouso, que tendem para as alturas, subam até à região de onde desceram; enquanto, se você soltá-los, eles caem e se espalham inutilmente no chão (...). Não tendo o muro do silêncio como refúgio, a cidadela do espírito revela-se ao adversário. 183. – Penso muitas vezes no meu antecessor na Sé de Conacri, Monsenhor Raymond-Marie Tchidimbo, que esteve encerrado durante nove anos numa prisão sórdida. Eles o p proibiram de falar com qualquer pessoa. Naquele silêncio aparentemente terrível, durante aquele assédio hostil e deprimente, ele teve que recorrer a Deus para sobreviver. O silêncio imposto pelos seus algozes tornou-se a sua única expressão de amor, a sua única oferta a Deus, a sua única escada para subir ao Céu e falar com Ele, cara a cara, como os homens falam com o seu amigo. Misteriosamente, sua masmorra lhe permitiu compreender um pouco do imenso silêncio do Céu. Ele passou muitos meses esperando ser barbaramente assassinado, eletrocutado ou espancado até virar polpa. Pude compreender que o mistério do mal, o mistério do sofrimento e o mistério do silêncio estão intimamente ligados. Graças a esse encontro íntimo com Deus no silêncio, ele enfrentou com serenidade as provações diárias. Ele sabia que sua vida não terminaria em uma prisão miserável. Sabia que a sua prisão era como um campo arado onde todos os dias semeava a sua vida como se semeia o grão, consciente de que quem semeia com lágrimas colhe entre cantos. Ele sabiaque estava no limiar da verdadeira vida. Apesar da dor, apesar de tantas humilhações físicas e morais, o silêncio deu-lhe força, coragem, humildade e abnegação. 184. – Por mais paradoxal que possa parecer, o silêncio do condenado à morte traz consigo toda a esperança. O réprobo já vislumbra nesta terra o grande silêncio do Céu. O túnel do silêncio das abominações conduz à esperança do silêncio em Deus. Porque a única coisa que os piores criminosos precisam é empurrar a porta do verdadeiro silêncio e colocar as mãos nas mãos silenciosas de Deus: “Tal é o fim, tal é a consumação, a perfeição, a paz, a alegria do Senhor. " , alegria no Espírito Santo; tal é o silêncio no céu. O silêncio da oração é como um silêncio eucarístico, um silêncio de adoração, um silêncio em Deus. 185. – No dia 7 de junho de 2012, na homilia da Missa de Corpus Christi, Bento XVI afirmou: “Estar todos em silêncio prolongado diante do Senhor presente no seu Sacramento é uma das experiências mais autênticas do nosso ser Igreja, que é acompanhada de forma complementar pela celebração da Eucaristia, pela escuta da Palavra de Deus, pelo canto, pela aproximação conjunta à mesa do Pão da Vida. Comunhão e contemplação não podem ser separadas, caminham juntas. Para comungar verdadeiramente com outra pessoa é preciso conhecê-la, saber estar em silêncio perto dela, ouvi-la, olhá-la com amor. O verdadeiro amor e a verdadeira amizade vivem sempre desta reciprocidade de olhares, de silêncios intensos, eloquentes, cheios de respeito e veneração, para que o encontro seja vivido profundamente, de forma pessoal e não superficial. Esta é a verdadeira antecipação do silêncio de Deus que todos somos chamados a conhecer. 186. – Talvez basta olhar com simplicidade e admiração para os rostos dos monges mais velhos, enrugados e queimados pelo silêncio de Deus, para nos aproximarmos um pouco mais de tão belo mistério. Humanamente, os monges sofrem os maus tratos e o desprezo das crianças do mundo; e ainda assim são espiritualmente irradiados e marcados pela beleza de Cristo. 187. – O rosto de Madre Teresa foi queimado pelos silêncios de Deus, mas ela transmitiu e respirou amor. Ao passar muitas horas diante da chama acesa do Santíssimo Sacramento, o encontro diário com o Senhor bronzeou e transformou o seu rosto. 188. – A estética do silêncio não vem do humano: é divina. O silêncio de Deus é uma luz simples e sublime, pequena e grande. —Vista da terra, a eternidade pode parecer longa e silenciosa… 189. – O silêncio da eternidade é consequência do amor infinito de Deus. No Céu estaremos com Jesus, totalmente possuídos por Deus e sob a influência do Espírito Santo. O homem não conseguirá mais pronunciar uma única palavra. Nem mesmo a oração será possível: ela se tornará contemplação, olhar de amor e adoração. O Espírito Santo queimará as almas que vão para o Céu: elas serão totalmente entregues ao Espírito. 190. – Neste mundo é muito importante permanecer na escuta dos silêncios do Espírito Santo. São Paulo diz com convicção: «O Espírito vem em socorro da nossa fraqueza, porque não sabemos pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis» ( Rm 8,26). 191. – No Céu as almas unem-se aos anjos e aos santos por meio do Espírito. É por isso que a palavra não existe mais. É um silêncio sem fim, envolto no amor de Deus. A liturgia da eternidade é silenciosa; As almas não têm mais nada a fazer senão associar-se ao coro dos anjos. Eles são encontrados apenas na contemplação. Aqui na terra contemplar é já estar em silêncio. No Céu, na visão de Deus, esse silêncio torna-se um silêncio de plenitude. O silêncio da eternidade é um silêncio de espanto e admiração. «Depois que minha pele for destruída, da minha carne verei a Deus. Eu mesmo o verei, os meus olhos o contemplarão e nenhum outro” ( Jb 19, 26-27). Na verdade, o silêncio da eternidade está ligado à plenitude de Deus: é um silêncio trinitário. 192. – A Igreja sabe quão difícil é para o homem compreender o silêncio da eternidade. Poucas coisas na terra são capazes de nos fazer compreender a imensidão do amor divino. Na missa e na Eucaristia, a consagração e a elevação são uma pequena antevisão do silêncio eterno. Se esse silêncio atingir a verdadeira qualidade, poderemos vislumbrar o silêncio do Céu. A adoração do Santíssimo Sacramento é um momento em que a qualidade do silêncio interior pode permitir-nos entrar um pouco no silêncio de Deus. Adoração é uma pequena gota de eternidade. O silêncio da eternidade é um silêncio de amor. —Há uma oração de Kierkegaard que procura penetrar ainda mais no silêncio de Deus: «Não nos deixe esquecer: você fala mesmo quando está em silêncio. Dá-nos esta confiança: quando esperamos a tua vinda, Tu calas por amor e por amor falas. Isto é o que acontece no silêncio, isto é o que acontece na palavra: Tu és sempre o mesmo Pai, o mesmo coração paterno, e guia-nos com a tua voz e eleva-nos com o teu silêncio. Os silêncios de Cristo também podem ser difíceis de compreender... 193. – Jesus vem a este mundo durante uma noite serena e silenciosa, enquanto a humanidade dorme. Só os pastores estão acordados ( Lc 2, 8). Solidão e silêncio cercam seu nascimento. Trinta anos se passam sem que ninguém o ouça. Cristo vive em Nazaré rodeado de uma enorme simplicidade, escondido no silêncio e na humilde oficina de José, o carpinteiro ( Mt 13, 55). Sem dúvida vive na oração, na penitência e no recolhimento interior. Esta vida oculta de Jesus acontece à sombra silenciosa de Deus. O Filho de Maria vive constantemente na visão beatífica, em profunda comunhão com o Pai e inseparavelmente unido a Ele. 194. – O silêncio de Jesus é o silêncio de Deus Pai. Jesus não disse a Filipe: “Quem me vê, vê o Pai; Como se diz: mostra-nos o Pai ? Você não acredita que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? ( Jo 14, 9-10)? Nunca devemos deixar de repetir para nós mesmos esta frase de São João: significa que a unidade em Jesus de Deus e do homem manifesta no tempo a unidade eterna do Pai e do Filho no Espírito Santo. O silêncio do Pai é o silêncio do Filho, a voz do Filho é a voz do Pai. Ouvir Jesus é ouvir o Pai. 195. – Em Nazaré Deus estava com Deus constantemente e em silêncio. Deus falou com Deus em silêncio. Quando os homens se interrogam sobre este silêncio, penetram no mistério insondável e silencioso da Trindade. 196. – A vida pública de Cristo enraizou-se e fundou-se na oração silenciosa da sua vida escondida. O silêncio de Cristo, Deus presente num corpo humano, está escondido p p no silêncio de Deus. A sua palavra terrena é habitada pela palavra silenciosa de Deus. Toda a vida de Jesus está envolta em silêncio e mistério. Se o homem quiser imitar Cristo, basta-lhe observar os seus silêncios. O silêncio do portal, o silêncio de Nazaré, o silêncio da Cruz, o silêncio do túmulo selado são um silêncio único. Os silêncios de Jesus são silêncios de pobreza, de humildade, de abnegação e de humilhação: é o abismo sem fundo da sua kenosis , da sua aniquilação ( Fl 2, 7). 197. – É especialmente comovente o silêncio de Jesus no momento do sacrifício supremo. Ele fala apenas uma vez para responder a Pilatos quando este diz: «Você é rei? O que você fez?". “Meu reino não é deste mundo”, responde Jesus. Nesse reino inclui Abraão, Isaque, Jacó, João Batista, todos os santos do Céu, mas também a comunidade dos seus discípulos que formam a Igreja e, embora estejam no mundo, não são do mundo. Três vezes Jesus insiste diante de Pilatos que o seu Reino não é deste mundo ( Jo 18, 36), porque compreendeu que Pilatos deseja conhecer a verdade e defendê-la. Apesar de estar convencido da inocência de Jesus, Pilatos cede aos gritos de ódio e às acusações que ecoam. Ao saber que Jesus é galileu, decide entregá-lo a Herodes Antipas, tetrarca da província da Galiléia. Os principais sacerdotes e escribas presentes fizeram um esforço ainda maiorpara forçar Herodes a proferir a sentença. Sem qualquer fundamento, Jesus é acusado de todos os males. Entre as acusações está a afirmação sacrílega de Jesus de querer destruir o Templo e ser o Filho de Deus. Para incitar Herodes contra Jesus, eles continuam a gritar e a afirmar que Cristo e João Baptista conspiraram para difamá-lo por causa do seu adultério com Herodias, esposa do seu irmão Filipe. Na verdade, Herodes tomou como esposa a esposa de Filipe. Para piorar ainda mais a situação, recordam o louvor que Jesus fez a João Baptista e a sua defesa durante um discurso público ( Mc 11, 9-11). Além disso, Jesus não tinha respeito pelo tetrarca, a quem insultou chamando-o de “raposa” ( Lc 13,32). Há os principais sacerdotes e os escribas, que acusam Jesus de maldade e amargura ( Lc 23, 10). Herodes e seus cortesãos o tratam com desprezo e zombam dele ( Lucas 23:11). Mas “Jesus não lhe respondeu nada” ( Lc 23, 9). Jesus não quer responder a Herodes porque vê nele um homem perverso, dissoluto e cruel que tem horror à verdade, a ponto de ordenar a decapitação de João Batista, a voz de Jesus Cristo, por torná-la conhecida para ele. Como pode o Senhor não calar-se diante daquele que tirou a vida com a sua própria voz? Herodes devolve Jesus a Pilatos, que mais uma vez convoca os principais sacerdotes, os magistrados e o povo ( Lc 23,13), e lhes diz: «Apresentastes-me este homem como um desordeiro entre o povo. Veja: eu o interroguei diante de você e não encontrei neste homem nenhum dos crimes de que você o acusa; nem Herodes, porque ele nos devolveu; Portanto, ele não fez nada que merecesse a morte. Então, depois de castigá-lo, eu o libertarei” ( Lc 23, 14-16). Jesus não responde nada a nenhuma das falsas acusações dos principais sacerdotes e anciãos, apenas clamor, mera confusão e inveja, e ódio descontrolado ( Mt 27:14). Com o seu silêncio, Jesus quer mostrar o quanto despreza a mentira, Aquele que é a verdade, a luz e o único caminho que conduz à Vida. Sua causa não precisa de defesa. A verdade e a luz não se defendem: o seu brilho é a sua própria defesa. É por isso que Santo Ambrósio diz: «Acusam o Senhor e ele permanece calado. E fique quieto, porque você não precisa de defesa. Aqueles que temem ser derrotados desejam ser defendidos. “Com o seu silêncio, [Jesus] não confirma a acusação, mas antes, ao não a rejeitar, menospreza-a”. Pilatos, maravilhado com o silêncio e a serenidade de Jesus, diz-lhe: “Não ouves quantas coisas alegam contra ti?” Jesus permanece tão imperturbável, tão calmo e sereno que se poderia acreditar que não ouve os gritos da multidão, embriagada de ódio. Mas lembremo-nos de que está escrito: «Sou como um surdo, não quero ouvir; Como um mudo, não abro a boca; Sou como um homem que não ouve, nem tem resposta na boca. Em ti, Senhor, espero. Você me ouve, Senhor, meu Deus. É por isso que digo: “não se alegrem às minhas custas; “Não se gloriem quando meu pé vacila” ( Sl 37, 14-17). E Pilatos acrescenta: «Você não responde nada? Veja de quantas coisas te acusam” ( Mc 15, 4). O Senhor não responde, por isso o procurador fica cada vez mais surpreso ( Mt 27, 14). Ele não entende o motivo de tão estranho silêncio. No meio da gritaria dos homens, embriagados de ódio irracional, Pilatos enfrenta o silêncio de Deus. Pelo menos os sacerdotes tinham que lembrar o que escreveu o profeta Isaías: “Ele foi maltratado, e se deixou humilhar, e não abriu a boca; como um cordeiro levado ao matadouro, e, como uma ovelha muda diante de seus tosquiadores, ele não abriu a boca. Por prisão e julgamento, ele foi levado embora. Quem cuidará de sua linhagem? Pois ele foi arrancado da terra dos vivos e morto pelo pecado do meu povo. O seu túmulo foi colocado entre os ímpios, e a sua sepultura entre os ímpios, embora ele não tenha cometido violência nem houvesse mentira na sua boca” ( Is 53:7). Acabamos de acompanhar Jesus diante de Pilatos, de Herodes e da fúria dos principais sacerdotes, dos anciãos e da multidão. Um acontecimento que nos pode parecer surpreendente e escandaloso, mas que contém para nós uma doutrina e um ensinamento: na escola de Jesus, com o coração, a inteligência e a vontade bem abertos, deixemos que Deus nos introduza no seu silêncio e vamos aprenda a amar e viva sempre nesse silêncio. 198. – Hoje os silêncios dos mártires cristãos massacrados pelos inimigos de Cristo imitam e prolongam os silêncios do Filho de Deus. Todos os mártires dos primeiros séculos, bem como os desta nossa triste época, demonstraram essa mesma dignidade silenciosa. Assim o silêncio se torna a única palavra, o único testemunho, o testamento definitivo. O sangue dos mártires é semente, grito e oração silenciosa que sobe até Deus. —Cristo começou seu ministério público retirando- se para o deserto por quarenta dias… 199. – Já me referi anteriormente ao retiro de Jesus num deserto espiritual e místico: o dos primeiros trinta anos de vida em Nazaré. É aconselhável fazer uma pausa durante a sua estadia no deserto da Judéia durante os quarenta dias e quarenta noites anteriores à sua vida pública, para acumular reservas de silêncio em vista da grande missão que o levará a dar a vida . Os evangelhos explicam quantas vezes Jesus se retirou para o deserto em busca de solidão, calma e silêncio noturno. Naqueles momentos sentiu o dedo de Deus arrastando-o para as regiões onde Ele vive, onde se deixa ver e dialoga com o homem como falam os amigos. O homem que possui Deus no coração e no corpo anseia pelo silêncio. Devemos afastar-nos do mundo, da multidão e de todas as atividades, mesmo as de caridade, para passar muitos momentos na intimidade de Deus. 200. – Cristo sabe que Deus nunca está nos ruídos tumultuosos do mundo. Ele não ignora as terríveis dificuldades que nunca deixarão de dificultar o seu caminho. Para enfrentar a Cruz, ainda distante, o silêncio e a solidão são necessários. No Getsêmani, à medida que o fim se aproxima e os apóstolos dormem, incapazes de compreender plenamente o drama que se desenrola, ele passa a última noite em silêncio e oração. O silêncio da noite é companheiro de Jesus nos seus últimos momentos. Os fiéis devem habituar-se a rezar à noite, como Jesus. Deus realiza sua obra à noite. À noite tudo se move, tudo se transforma e cresce graças à força de Deus. 201. – A recordação silenciosa de Cristo é uma grande lição para a humanidade. Da manjedoura à Cruz, o silêncio está constantemente presente, porque a questão do silêncio é uma questão de amor. O amor não se expressa em palavras: encarna-se e torna-se um só e mesmo Ser com quem ama verdadeiramente. A sua força é tão grande que nos arrasta à entrega à morte, ao dom humilde, silencioso e puro da nossa vida. Se quisermos prolongar a obra de Cristo neste mundo, temos que amar o silêncio, a solidão e a oração. —A morte de Jesus é um grande silêncio? 202. – O triunfo das trevas sobre a luz mergulha a terra durante três dias num silêncio denso e numa angústia terrível. O Messias morreu e o silêncio do seu desaparecimento parece ter dito a última palavra. O próprio Deus está em silêncio. O seu Filho sente-se só, abandonado à angústia da Cruz: este é o momento mais terrível da sua vida terrena. Ele está à beira da morte. Jesus perdeu sua J p força e seu sangue. E, quando ele não passa de um homem exausto e moribundo, ele solta um grito alto. Jesus deixou o mundo e seu Pai não pronunciou uma única palavra de conforto. É verdade que a Virgem Maria, a sua mãe e São João estão aos pés da Cruz. Mas aquela doce presença não o impede de gritar com todas as forças que lhe restam: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” ( Mt 27, 46). Jesus sofre a aparente ausência de Deus; No entanto, a confiança que ele sempre teve no seu Pai não desaparece. Algumas frações de segundo depois daquele grito de dor, ele reza uma última vez ao Todo- Poderoso pelos seus algozes: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem oque fazem”. E expira dizendo: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” ( Lc 23, 34,46). 203. – Neste mundo o único silêncio que se deve procurar é aquele que pertence a Deus. Porque só o silêncio de Deus se eleva com a vitória. O pesado silêncio da morte de Cristo não durou muito e deu origem à vida. 204. – O silêncio da morte de Jesus transforma, purifica e dá paz ao homem. Permite estar em comunhão com os sofrimentos e a morte de Cristo, para entrar plenamente na vida divina. É o grande silêncio da transfiguração, porque, “se o grão de trigo não morre ao cair na terra, permanece infértil; mas se morrer, produz muito fruto. Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo odeia a sua vida, guardá-la-á para a vida eterna. Se alguém me serve, siga- me” ( Jo 12, 24-25). 205. – São João insiste na solidão e no isolamento moral de Cristo antes da sua Paixão. Ele está sozinho desde o início porque ele é Deus. Ele está sozinho porque ninguém pode entendê-lo. São João afirma que muitos discípulos o abandonaram, porque a sua doutrina sobre a Eucaristia e as exigências do Evangelho as excedem. Hoje alguns sacerdotes tratam a Eucaristia com absoluto desprezo. Eles vêem a missa como um banquete falador em que os cristãos fiéis ao ensinamento de Jesus, os divorciados recasados, os homens e as mulheres em situação de adultério e os turistas não batizados que participam nas celebrações eucarísticas de multidões anônimas, podem receber sem distinção o corpo. e sangue de Cristo. A Igreja deve estudar urgentemente a oportunidade eclesial e pastoral destas celebrações eucarísticas massivas com milhares de participantes. Há um imenso perigo de transformar a Eucaristia, o grande mistério da Fé , numa festa vulgar, e de profanar o corpo e o precioso sangue de Cristo. Os sacerdotes que distribuem as espécies sagradas sem conhecer ninguém e dão o Corpo de Jesus a ninguém, sem distinguir cristãos de não-cristãos, participam na profanação do Santo Sacrifício Eucarístico. Com uma certa cumplicidade voluntária, aqueles que exercem autoridade na Igreja tornam-se culpados ao permitir o sacrilégio e a profanação do corpo de Cristo naquelas gigantescas e ridículas autocelebrações, onde muito poucos percebem que "a morte do Senhor" é anunciada ... Senhor até que ele venha. Alguns sacerdotes infiéis à memória de Jesus insistem mais no aspecto festivo e na dimensão fraterna da missa do que no sacrifício sangrento de Cristo na Cruz. A importância das disposições interiores e a necessidade de nos reconciliarmos com Deus, aceitando deixar-nos purificar pelo sacramento da confissão, já não estão na moda. Escondemos cada vez mais a advertência de São Paulo aos Coríntios: «Toda vez que você come este pão e bebe este cálice, você anuncia a morte do Senhor até que ele venha. Portanto, quem comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será culpado do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se, pois, cada um a si mesmo, e então coma do pão e beba do cálice; pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe a sua própria condenação. É por isso que há entre vós muitos doentes e fracos, e tantos morrem” ( 1Co 11, 27-30). Como podemos reunir-nos em silêncio e adoração, tal como Maria aos pés da Cruz, diante do Deus que morre pelos nossos pecados em cada uma das nossas Eucaristias? Como podemos permanecer em silêncio e em ação de graças diante do Deus Todo-Poderoso que sofre a Paixão por causa das nossas rebeliões, da nossa indiferença e das nossas infidelidades? Muitas vezes vivemos tão superficialmente que não entendemos o que celebramos. A falta de fé na Eucaristia, presença real de Cristo, pode levar ao sacrilégio. Jesus está isolado pelo ódio crescente dos fariseus, que formam uma coalizão cada vez mais poderosa contra ele, forçando seus ouvintes a se separarem dele.Hoje há cristãos que unem forças para distanciar Deus e sua doutrina daqueles que buscam sinceramente a VERDADE. Ele fica cada vez mais sozinho no meio de homens que o odeiam ou não sabem amá-lo, porque são incapazes de conhecê-lo como ele é. Mas sempre haverá um pequeno rebanho ansioso por conhecê-lo e amá-lo. É necessário que os homens redescubram a Páscoa que celebramos em cada uma das nossas Eucaristias. A graça da Páscoa é um silêncio profundo, uma paz imensa e um sabor puro na alma. É o sabor do Céu, estranho a toda exaltação desordenada. A noção de Páscoa não é uma embriaguez do espírito: consiste na descoberta silenciosa de Deus. Se ao menos todas as manhãs a missa pudesse ser o que era no Gólgota e na manhã de Páscoa! Se ao menos a oração pudesse ter a mesma luz, se Cristo ressuscitado pudesse brilhar sempre em mim na sua simplicidade pascal... A Páscoa marca o triunfo da vida sobre a morte, a vitória do silêncio de Cristo sobre o grande fracasso do ódio e da mentira. Cristo entra no silêncio eterno. Agora a Igreja deve continuar a missão de Jesus através do sofrimento diário e da morte vivida em silêncio, oração, súplica e grande fidelidade. 206. – Num mundo em que gritos e agitações de todos os tipos continuam a expandir o seu império, teremos sempre uma necessidade crescente de contemplar e aprender a entrar no silêncio de Cristo. A rejeição do silêncio é uma rejeição do Amor e da vida que recebemos de Jesus. 207. – No dia 2 de maio de 2010, por ocasião da exposição do Santo Sudário, o Papa Bento XVI visitou a Catedral de Turim para venerar a relíquia. Ali proferiu uma meditação extraordinária sob o título O mistério do Sábado Santo , na qual associou o mistério do Sábado Santo ao mistério do silêncio: «Pode-se dizer que o Santo Sudário é o ícone deste mistério, o ícone do Santo Sábado. Na verdade, é um pano sepulcral, que envolveu o cadáver de um crucificado e que corresponde em tudo ao que nos contam os Evangelhos de Jesus, que, crucificado por volta do meio- dia, expirou por volta das três da tarde. Ao cair da noite, por ser Parasceve, ou seja, véspera do solene Sábado de Páscoa, José de Arimatéia, membro rico e respeitável do Sinédrio, corajosamente pediu a Pôncio Pilatos que lhe permitisse enterrar Jesus em seu novo túmulo, que ele havia ordenado escavar na rocha a uma curta distância do Gólgota. Obtida a permissão, comprou um lençol e, depois de tirar o corpo de Jesus da Cruz, envolveu-o naquele pano e colocou-o naquele túmulo. Isto é o que diz o Evangelho de São Marcos e os outros evangelistas concordam com isso. A partir desse momento, Jesus permaneceu no túmulo até à madrugada do dia seguinte ao sábado, e o Sudário de Turim oferece-nos a imagem de como era o seu corpo quando foi depositado no túmulo naquele tempo, que foi cronologicamente breve (cerca de um dia e meio), mas imenso, infinito em seu valor e significado. O Sábado Santo é o dia da ocultação de Deus, como se lê numa antiga homilia: “O que acontece hoje? Um grande silêncio envolve a terra; um grande silêncio e uma grande solidão, porque o Rei dorme (…). Deus morreu na carne e colocou o inferno em comoção” ( Homilia no Sábado Santo: PG 43, 439). No credo professamos que Jesus Cristo “sofreu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morreu e sepultado, desceu ao inferno e ao terceiro dia ressuscitou dos mortos”. »Queridos irmãos e irmãs, no nosso tempo, especialmente depois de atravessar o século passado, a humanidade tornou-se particularmente sensível ao mistério do Sábado Santo. A ocultação de Deus faz parte da espiritualidade do homem contemporâneo, de forma existencial, quase inconsciente, como um vazio no coração que vai crescendo cada vez mais. No final do século XIX , Nietzsche escreveu: “Deus está morto! E nós o matamos!". Esta famosa expressão, se analisada cuidadosamente, é retirada quase literalmente da tradição cristã; Muitas vezes repetimo-lo na Via Sacra, talvez sem perceber plenamente o que dizemos. Depois das duas guerras mundiais, dos lagers e dos gulags , de Hiroshima e de Nagasaki, o nosso tempo tornou-secada vez mais um Sábado Santo: a escuridão deste dia desafia todos aqueles que questionam a vida; e de modo especial desafia a nós, crentes. »Nós também temos que enfrentar esta escuridão. E, no entanto, a morte do Filho de Deus, de Jesus de Nazaré, tem um aspecto oposto, totalmente positivo, fonte de conforto e de esperança. E isto me faz pensar no fato de que o Sudário se comporta como um documento fotográfico , equipado com um positivo e um negativo . E, de facto, é precisamente assim: o mistério mais obscuro da fé é ao mesmo tempo o sinal mais luminoso de uma esperança que não tem limites. O Sábado Santo é a terra de ninguém entre a morte e a ressurreição, mas nesta “terra de ninguém” entrou Alguém, o Único que a caminhou com os sinais da sua Paixão pelo homem: a Passio Christi. Passio hominis . E o Sudário fala- nos exactamente desse momento, testemunha precisamente aquele intervalo único e irrepetível na história da humanidade e do universo, em que Deus, em Jesus Cristo, partilhou não só a nossa morte, mas também a nossa permanência no mundo. . A solidariedade mais radical. »Naquele tempo além do tempo , Jesus Cristo “desceu ao inferno”. O que essa expressão significa? Significa que Deus, feito homem, chegou a entrar na solidão máxima e absoluta do homem, onde nenhum raio de amor chega, onde reina o abandono total sem nenhuma palavra de consolação: o inferno . Jesus Cristo, permanecendo na morte, atravessou a porta desta solidão última para nos guiar também a atravessá-la com ele. Todos nós já experimentamos em algum momento uma terrível sensação de abandono, e o que mais nos assusta na morte é justamente isso, assim como quando crianças temos medo de ficar sozinhos no escuro e só a presença de uma pessoa que nos ama pode nos ajudar. . tranquilizar. Foi precisamente isto que aconteceu no Sábado Santo: no âmbito da morte ressoou a voz de Deus. O impensável aconteceu: ou seja, o Amor penetrou no inferno . Mesmo na escuridão máxima da mais absoluta solidão humana podemos ouvir uma voz que nos chama e encontrar uma mão que nos pega e nos leva para fora. O ser humano vive pelo fato de ser amado e poder amar; e, se o amor penetrou até mesmo no espaço da morte, então a vida chegou lá. Na hora de máxima solidão nunca estaremos sozinhos: Passio Christi. Passio hominis . Este é o mistério do Sábado Santo. »Precisamente daí, das trevas da morte do Filho de Deus, surgiu a luz de uma nova esperança: a luz da Ressurreição. Parece-me que ao contemplar esta tela sagrada com os olhos da fé se percebe algo desta luz. O Santo Sudário foi submerso naquelas trevas profundas, mas é ao mesmo tempo luminoso; e penso que, se milhares e milhares de pessoas chegam a venerá-lo, sem contar aqueles que o contemplam através das imagens, é porque nele não só vêem as trevas, mas também a luz; Mais do que a derrota da vida e do amor, eles veem a vitória, a vitória da vida sobre a morte, do amor sobre o ódio; Eles certamente veem a morte de Jesus, mas vislumbram a sua ressurreição; No seio da morte a vida agora pulsa, porque nela habita o amor. Este é o poder do Sudário: do rosto deste Homem das Dores , que carrega sobre si a paixão do homem de todos os tempos e lugares, incluindo as nossas paixões, os nossos sofrimentos, as nossas dificuldades, os nossos pecados – Passio Christi. Passio hominis – emana uma majestade solene, um senhorio paradoxal. »Este rosto, estas mãos e estes pés, este lado, todo este corpo fala, é em si uma palavra que podemos ouvir em silêncio. Como fala o Sudário? Fale com sangue, e sangue é vida. O Sudário é um ícone escrito com sangue; sangue de um homem açoitado, coroado de espinhos, crucificado e ferido no lado direito. A imagem impressa no Sudário é a de um morto, mas o sangue fala da sua vida. Cada vestígio de sangue fala de amor e de vida. Principalmente a grande mancha lateral, feita de sangue e água que jorrou copiosamente de um grande ferimento causado por um golpe de lança romana, esse sangue e água falam de vida. É como uma fonte que sussurra no silêncio e podemos ouvi-la, podemos ouvi-la no silêncio do Sábado Santo. 208. – É paradoxal que nos Evangelhos Cristo raramente ordene aos seus discípulos que permaneçam calados, exceto depois da profissão de fé de Pedro ( Mt 16, 20) e depois da transfiguração ( Mt 17, 1-13). Em vez disso, ele os conduz ao deserto para iniciá-los no silêncio e no diálogo com Deus. No entanto, ele ordena que as tempestades, os ventos e os demônios se calem. Jesus impõe e força o silêncio a tudo o que traz consigo o mal, o vício e a morte. 209. – Numa homilia proferida em Nazaré, no dia 5 de janeiro de 1964, Paulo VI afirmou: «Nazaré é a escola onde começa a ser compreendida a vida de Jesus, é a escola onde começa o conhecimento do seu Evangelho. Sua primeira lição é o silêncio. Como gostaríamos que se renovasse e se fortalecesse em nós o amor ao silêncio, esse hábito admirável e indispensável do espírito, tão necessário para nós, que ficamos atordoados com tanto barulho, tanto tumulto, tantas vozes de nossos ruidosos e extremamente vida moderna agitada. Silêncio de Nazaré, ensina-nos o recolhimento e a interioridade, ensina-nos a estar sempre prontos para ouvir as boas inspirações e a doutrina dos verdadeiros mestres. Ensina-nos a necessidade e o valor de uma formação adequada, do estudo, da meditação, de uma vida interior intensa, da oração pessoal que só Deus vê. 210. – Por que os homens são tão barulhentos durante as liturgias, quando a oração de Cristo era silenciosa? A palavra do Filho de Deus nasce do coração e o coração se cala. Por que não sabemos falar com o coração silencioso? O coração de Jesus não fala: irradia amor, porque a sua linguagem vem das profundezas divinas. —É possível falar dos silêncios do Espírito Santo? Com Deus ou nada você explicou que o Espírito geralmente é aquele que é muito mal compreendido. 211. – Ao Espírito Santo falta rosto e fala. É silencioso devido à sua natureza divina. Atua em silêncio desde toda a eternidade. Deus fala, Cristo fala, mas o Espírito Santo sempre se expressa através dos profetas, dos santos e dos homens de Deus. O Espírito Santo nunca faz barulho. Conduz à verdade, permanecendo ao mesmo tempo o grande intermediário. Silenciosamente, ele conduz a humanidade a Cristo, repetindo o seu ensinamento. Somente no Pentecostes o Espírito Santo veio com barulho para despertar a humanidade adormecida e arrancá-la do sono e do pecado: «Quando se cumpriu o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. E de repente veio do céu um barulho, como um vento impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam. Então apareceram-lhes línguas semelhantes a fogo, que se dividiram e pousaram sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito os fazia expressar” ( Atos 2:1-5). 212. – O Espírito vive no homem, regenerando-o sem ruídos evidentes. O Espírito é uma força silenciosa. Livre como o vento, sopra de forma imprevisível. Se não o expulsarmos, o seu fogo queimará o mundo. 213. – Santo Irineu escreveu em Contra os Hereges: «O Espírito Santo habita no coração dos crentes e no coração da Igreja. É nela que se depositou a comunhão com Cristo, isto é, com o Espírito Santo. O mundo hoje não presta atenção suficiente ao Espírito Santo. Se não dão ouvidos ao Espírito, os homens permanecem divididos: dispersam-se, odeiam-se e separam- se como em Babel. Então surgem as guerras e as seitas proliferam. Sem o Espírito, a incredulidade avança; Com o Espírito, Deus se torna próximo. Me entristece ver o quanto abusamos do Espírito Santo. Levados pelas suas fantasias e desafiando a vontade que nos escuta para sermos um, os homens, por iniciativa própria, criam as suas Igrejas particulares, as suas teologias particulares, as suas crenças particulares, que nada mais são do que opiniões subjetivas insignificantes. O EspíritoSanto não tem opinião. Basta repetir o que Cristo nos ensinou para alcançarmos a verdade plena. Digo-o com firmeza: a ausência do Espírito Santo na Igreja cria todas as divisões. Onde está a Igreja, aí está o Espírito Santo. Onde está o Espírito, aí está a Igreja. O Espírito Santo é o elo de comunhão entre o Pai e o Filho. É o sopro de vida que não conseguimos captar. É invisível, mas está totalmente presente. 214. – Quando somos dóceis ao Espírito Santo, temos a segurança de caminhar em direção à verdade, pois estamos totalmente submetidos às suas inspirações. Durante o primeiro concílio de Jerusalém, graças ao grande silêncio do Espírito, à oração e ao jejum, os apóstolos tiveram a audácia de afirmar a verdade de Deus e não a dos homens ( Atos 15). Todos os conselhos são colocados sob a proteção do p Espírito. Nos conclaves o Espírito indica aos cardeais qual é a escolha de Deus, e eles devem submeter-se à sua vontade e não às estratégias políticas humanas. Se contradizermos o Espírito Santo com os nossos pobres e miseráveis cálculos humanos, com entrevistas secretas e conspirações mediáticas, conduzimo-nos à tragédia e tornamo-nos coveiros da natureza divina da Igreja. 215. – Rejeitar o Espírito é uma blasfêmia e um pecado mortal, porque significa rejeitar a verdade. Sem o Espírito, a Igreja sofre a ameaça de se tornar uma nova torre de Babel. Línguas diferentes e marginais sepultam o testamento do Filho de Deus. Existem ideólogos pretensiosos e cínicos que ameaçam a verdade de Jesus. A confusão, o relativismo e o caos apontam para um horizonte desastroso. —Por que Maria é tão silenciosa nos evangelhos? 216. – Toda a vida da mãe de Jesus é banhada pelo silêncio. Dos quatro evangelistas, apenas Lucas e João fazem falar a Santíssima Virgem. São Lucas regista as palavras de Maria no seu relato da Anunciação: «No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem chamado José, da casa de David. A virgem se chamava Maria. Ele entrou onde ela estava e disse-lhe: “Salve, cheia de graça, o Senhor é contigo”. Ela ficou perturbada quando ouviu essas palavras e ponderou o que essa saudação poderia significar. E o anjo lhe disse: “Não tenha medo, Maria, porque você encontrou graça diante de Deus: você conceberá em seu ventre e dará à luz um filho, e você lhe dará o nome de Jesus. Ele será grande e chamado Filho do Altíssimo. O Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai, ele reinará eternamente sobre a casa de Jacó e seu Reino não terá fim”. Maria disse ao anjo: “Como se fará isso, visto que não conheço homem algum?” O anjo respondeu: “O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; Portanto, aquele que nascer Santo será chamado Filho de Deus. E aí está Isabel, sua parente, que na velhice também concebeu um filho, e aquela que era chamada de estéril já está no sexto mês, porque para Deus não há nada impossível. Então Maria disse: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra”. E o anjo partiu” ( Lc 1, 26-38). Em L'Humble Présence , Maurice Zundel afirma que “só o silêncio revela os abismos da vida”. As grandes obras de Deus são fruto do silêncio. Só Deus é testemunha para eles e, junto com Ele, aqueles que olham de dentro, aqueles que permanecem calados e vivem da presença do Verbo silencioso, como a Virgem Maria. Segundo Zundel, Maria torna-se discípula da Palavra: «Ela escuta, adere, doa-se e mergulha nos seus abismos. Cada fibra do seu ser ecoa este chamado: “Deixe-me ouvir a sua voz”. Maria transmite a mensagem da Palavra silenciosa. A sua carne é o berço do Verbo eterno (…). Nela todos os homens são chamados ao mesmo destino: tornar-se morada de Deus, do Verbo silencioso. Porque, se é verdade que Deus criou a natureza humana apenas para receber dela a Mãe de que necessita para nascer, todos os homens são chamados, através da recepção silenciosa da Palavra, a tornarem-se Templo da Palavra, basílica do silêncio . _ 217. – Com efeito, Maria está tão silenciosa que os evangelistas quase não falam da Mãe de Deus, inteiramente absorta na contemplação, na adoração e na oração. Maria esconde-se no seu Filho, ela só existe para o seu Filho. Ele desaparece em seu Filho. 218. – São Lucas volta para recolher algumas palavras de Maria quando ela perde o Menino Jesus e o encontra no Templo entre os doutores da lei: «Seus pais iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa. E quando ele completou doze anos, eles subiram para a festa, como era de costume. Depois daqueles dias, ao retornar, o menino Jesus ficou em Jerusalém sem que seus pais percebessem. Supondo que ele estivesse na caravana, viajaram um dia procurando-o entre parentes e conhecidos e, como não o encontraram, voltaram a Jerusalém em busca dele. E depois de três dias encontraram-no no Templo, sentado entre os doutores, ouvindo-os e perguntando-lhes. Todos os que o ouviam ficaram maravilhados com a sua sabedoria e as suas respostas. Ao vê-lo, ficaram maravilhados, e sua mãe lhe disse: “Filho, por que você fez isso conosco? Olha, seu pai e eu, perturbados, estávamos procurando por você.” E ele lhes disse: “Por que vocês estavam me procurando? Você não sabia que devo cuidar das coisas do meu Pai? Mas eles não entenderam o que ele lhes disse. Ele desceu com eles, veio para Nazaré e ficou sujeito a eles. E sua mãe guardava todas essas coisas em seu coração. E Jesus crescia em sabedoria, em idade e em graça diante de Deus e dos homens” ( Lc 2, 41-52). São João narra uma única conversa de Maria no episódio das bodas de Caná: «No terceiro dia, celebraram-se um casamento em Caná da Galileia, e ali estava a mãe de Jesus. Jesus e seus discípulos também foram convidados para o casamento. E, como não havia vinho, a mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm vinho”. Jesus respondeu-lhe: “Mulher, o que há entre mim e você? Minha hora ainda não chegou.” Sua mãe disse aos servos: “Façam o que ele mandar”. Eram seis jarros de pedra preparados para a purificação dos judeus, cada um com capacidade para cerca de dois ou três metros. Jesus lhes disse: “Encham as jarras com água”. E eles os encheram até o topo. Então ele lhes disse: “Tirem- nos agora e levem-nos ao mordomo”. Então eles fizeram isso. Quando o mordomo provou a água transformada em vinho, sem saber de onde vinha – embora os criados que tiravam a água soubessem – chamou o marido e disse-lhe: “Cada um serve primeiro o melhor vinho e, depois de ter bebido bem, o pior; Você, pelo contrário, reservou o bom vinho até agora.” Assim, em Caná da Galileia, Jesus realizou o primeiro dos sinais com os quais manifestou a sua glória, e os seus discípulos acreditaram nele. Depois disso desceu para Cafarnaum com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos; e ficaram ali alguns dias” ( Jo 2, 1-12). Os evangelhos de Marcos e Mateus não mencionam uma única palavra sobre Maria. No desígnio de Deus, a Virgem está inseparavelmente unida ao Verbo. A Palavra é Deus e a Palavra é silenciosa. Maria está inteiramente sob a influência do Espírito Santo, e o Espírito não fala. A sua atitude é de escuta: está totalmente voltada para a Palavra de Deus. Maria é aquiescência, Maria é obediência. Maria não fala. Ele só quer se submeter a Deus, como uma criança confiante. Seu decreto é pleno e alegre. Ele sabe que a vontade de Deus chega até ele através de Jesus. Aos pés do Menino recém-nascido, a mãe de Jesus vive o espanto e o silêncio da alegria. Ele vive na dor e na angústia quando Herodes ameaça o Menino Jesus e aos pés da Cruz. Viva no silêncio do consentimento, resumido nestas palavras extraordinárias: “Eis que sou a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” ( Lucas 1,38). 219. – Os Evangelhos não nos contam como se manifestou a dor de Maria aos pés da Cruz. A arte retrata a Mãe de Deus com o Stabat Mater Dolorosa, mas os evangelistas silenciam sobre oé a luz da consciência, ela exalta a mente e concentra o pensamento. Através dela, o intelecto voa e fixa o olhar nas realidades espirituais enquanto, rejuvenescido graças à oração, brilha com esplendor. Segundo o cardeal, a noite aquece com calor o coração do homem. Quem vigia à noite sai de si para melhor encontrar Deus. O silêncio da noite é a melhor forma de acabar com a ditadura do barulho. Quando as trevas descem sobre a terra, a ascese do silêncio pode assumir contornos mais claros. As palavras do salmista são conclusivas: «À noite (…) lembro-me de Deus e gemo; Eu medito e meu espírito falha. Você mantém as pálpebras dos meus olhos acordadas. Estou perturbado, não consigo falar. Penso nos tempos passados, lembro-me dos anos distantes. À noite repito o meu canto, medito nele no coração e o meu espírito maravilha-se” ( Sl 76, 3-7). Antes de partirmos, o cardeal quis retirar-se para o cemitério. Atravessamos o mosteiro, com as suas longas e magníficas galerias que parecem labirintos esculpidos pela oração. O claustro principal mede 216 metros de norte a sul e 23 de leste a oeste, ou seja, um quadrilátero de 478 metros. As fundações deste complexo gótico datam do século XII : desde então reinou um silêncio permanente. Nos desertos cartuxos o cemitério ocupa o centro do claustro. Nas sepulturas não havia nome, nem data, nem palavras de recordação. De um lado, as cruzes de pedra dos generais da Ordem; de outro, as cruzes de madeira para os pais e irmãos dos convertidos. Os cartuxos estão enterrados, sem caixão, sem lápide: não há nenhum sinal distintivo que nos lembre a sua própria existência. Perguntei a Dom Dysmas de Lassus onde estavam as cruzes dos monges com quem ele tinha vivido e que tinha visto morrer. Dom Dysmas já não sabia. “Os ventos e o musgo fizeram o seu trabalho”, declarou ele. Só conseguiu localizar o túmulo de Dom André Poisson, seu antecessor, falecido em abril de 2005. O velho general morreu à noite, sozinho, em sua cela: foi ao Céu para se juntar a todos os filhos de São Bruno e ao vasto coorte de eremitas. Desde 1084, os cartuxos não querem deixar vestígios. Só Deus importa. Stat Crux dum volvitur orbis: o mundo gira, a Cruz permanece. Antes de partir, sob um sol brilhante e um céu azul imaculado, o cardeal abençoou os túmulos. Momentos depois saímos da Grande Cartuxa. O monge beneditino que veio nos procurar nos disse: Vocês estão saindo do paraíso … “Quando os sábios ficam sem sabedoria, é aconselhável ouvir as crianças”, escreve George Bernanos no Diálogo dos Carmelitas. Os cartuxos são sábios e crianças. Ao longo deste ano de trabalho, a bússola confiável da nossa reflexão foram estas palavras do Diário de um Padre Rural de Bernanos: «O silêncio interior – aquele que Deus abençoa – nunca me isolou dos outros seres. Pelo contrário: parece-me que penetram no meu interior e recebo-os como se estivesse na soleira da minha casa (...). Infelizmente não me é possível oferecer mais do que um refúgio precário, mas imagino o silêncio de certas almas como imensos lugares de asilo. Os pobres pecadores, cansados e sem forças, entram às apalpadelas, adormecem e partem novamente, consolados, sem reter qualquer lembrança do grande templo invisível onde descarregaram por um momento o seu fardo. Em Le Silence comme introdução à la métaphysique, o filósofo Joseph Rassam afirma: «Em nós, o silêncio é aquela linguagem sem palavras do ser finito que, pelo seu próprio peso, atrai e arrasta o nosso movimento em direção ao Ser infinito. O pensamento não acessa a afirmação de Deus apenas pelo seu poder, mas pela sua docilidade à luz que vem do ser recebido e acolhido como dom. O ato de silêncio que define este acolhimento traz consigo a oração, ou seja, o movimento pelo qual a alma se eleva a Deus. Para Rassam, assim como para o cardeal Sarah, “embora a palavra caracterize o homem, o silêncio é o que o define, porque a palavra falada só adquire significado em virtude desse silêncio”. Esta é a bela e significativa mensagem de A Força do Silêncio. No dia 16 de abril de 2013, poucas semanas depois da sua eleição, o Papa Francisco recordou: «Perseguiram os profetas e, depois de os terem matado, construíram-lhes “um lindo túmulo” e só depois os veneraram (…). Também entre nós existe aquela resistência ao Espírito Santo. Neste mundo o homem que fala de silêncio pode conhecer as mesmas espirais. Admiração, rejeição, condenação são acorrentadas e desencadeadas. As palavras de quem permanece em silêncio são por vezes autênticas profecias, mas são também luzes que os homens tentam apagar. Com este livro, o Cardeal Robert Sarah não tem outro objetivo senão o que se resume neste pensamento: «O silêncio é difícil, mas torna o homem capaz de se deixar guiar por Deus. O silêncio nasce do silêncio. Através do Deus silencioso podemos acessar o silêncio. E o homem nunca deixa de se surpreender com a luz que então brilha. O silêncio é mais importante do que qualquer outro trabalho humano. Porque manifesta Deus. A verdadeira revolução vem do silêncio: leva-nos a Deus e aos outros para nos colocarmos humilde e generosamente ao seu serviço” (Pensamento 68, A Força do Silêncio ). Que virtude o Cardeal Sarah espera da leitura deste livro? A humildade. Nesta perspectiva, ele pode tornar seu o espírito do Cardeal Rafael Merry del Val: uma vez afastado dos negócios públicos da Igreja, o ex-secretário de Estado de São Pio X compôs uma bela Ladainha da Humildade que recitava todos os dias depois de celebrar massa: Ó Jesus, manso e humilde de coração, escuta-me: —do desejo de ser reconhecido, livra-me, Senhor —do desejo de ser estimado, livra-me, Senhor —do desejo de ser amado, livra-me, Senhor —do desejo de ser exaltado, livra-me, Senhor —de o desejo de ser louvado, livra-me, Senhor —do desejo de ser preferido, livra-me, Senhor —do desejo de ser consultado, livra-me, Senhor —do desejo de ser aprovado, livra-me, Senhor —do desejo de parecer bem, livra-me, Senhor —do desejo de receber honras, livra-me, Senhor —do medo de ser criticado, livra-me, Senhor —do medo de ser julgado, livra-me, Senhor —do medo de ser atacado, livra-me, Senhor —do medo de ser humilhado, livra-me, Senhor —do medo de ser desprezado, livra-me, Senhor —do medo de ser culpado, livra-me, Senhor —do medo de perder a fama, livra-me, Senhor —do medo de ser repreendido, livra-me, Senhor —do medo de ser caluniado, livra-me, Senhor —do medo de ser esquecido, livra-me, Senhor —do medo de ser ridicularizado, livra-me , Senhor —do medo da injustiça, livra-me, Senhor —do medo de ser suspeito, livra-me, Senhor. Jesus, concede-me a graça de desejar: — que outros sejam mais amados do que eu — que outros sejam mais estimados do que eu — que na opinião do mundo outros sejam exaltados e eu humilhado — que outros sejam preferidos e eu abandonado — que outros sejam elogiados e eu menosprezado — que outros possam seja escolhido em meu lugar em tudo - para que outros sejam mais santos do que eu, desde que eu me santifique devidamente. Se sou desconhecido e pobre, Senhor, ficarei feliz. Se eu estiver desprovido de perfeições naturais de corpo e espírito, Senhor, me regozijarei. Que ninguém pense em mim, Senhor, ficarei feliz. Se eu estiver empregado nos empregos mais inferiores, Senhor, ficarei feliz. Que eles nem se dignem a me usar, Senhor, ficarei feliz. Se minha opinião não for solicitada, Senhor, ficarei feliz. Que eu fique em último lugar, Senhor, ficarei feliz. Se você não me elogiar, Senhor, ficarei feliz. Se eles falharem comigo a tempo e fora de tempo, Senhor, ficarei feliz. Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. NICOLAS DIAT Roma, 2 de setembro de 2016 EU SILENCIO DIANTE DO BARULHO DO MUNDO No silêncio é onde acontecem os grandes acontecimentos. Não no tumultuoso desperdício dos acontecimentos externos,estado de sua alma. Contudo, Maria está plena e intrinsecamente associada ao mistério da Redenção através da Cruz. O Fiat de Maria é um silêncio ao qual a mãe de Cristo permanecerá eternamente fiel. Sem barulho, Maria oferece a sua vida e a do seu Filho ao Pai eterno. Sem barulho, ele pronuncia antecipadamente um decreto pela morte de Jesus. Como mãe, ela contempla a terrível agonia de Jesus e seu corpo coberto de feridas e hematomas. Ela está de pé, agarrada à Cruz, e o sangue do seu Filho escorre pelo seu rosto e pelos seus braços. Maria pode dizer com Jesus: “A minha vida (...) ninguém a tira de mim, mas eu a dou de graça” ( Jo 10, 17-18). A Virgem é crucificada e morre misticamente com seu Filho. Depois da morte de Cristo, Maria apoia os apóstolos com a sua oração: pede-lhes que recebam a força e a luz do Espírito. Com a sua presença material, orante e discreta, ela gera a Igreja e encoraja aqueles que acompanhavam o seu Filho. Quando os apóstolos se dispersam, Ele reconstrói a comunidade dos discípulos e constrói a Igreja no silêncio e na oração. Do cenáculo a Igreja tira o seu fôlego missionário da oração e do acolhimento do Espírito . À luz do Pentecostes, Maria é a primeira a compreender o mistério da Igreja. Se Cristo nasceu na pobreza, no silêncio da noite e graças à força do Espírito, a Igreja não pode nascer no meio das glórias e dos ruídos mundanos. A Esposa de Cristo vem do Espírito Santo que irrompe naquela sala do andar superior onde a comunidade reza com Maria. O fiat de Maria atinge a sua plenitude com o nascimento da primeira Igreja graças à força do Espírito. 220. – Na audiência geral de 22 de novembro de 1995, João Paulo II afirmou: «O exemplo de Maria permite à Igreja apreciar melhor o valor do silêncio. O silêncio de Maria não é apenas sobriedade no falar, mas sobretudo capacidade sapiencial de recordar e abranger com um olhar de fé o mistério do Verbo feito homem e os acontecimentos da sua existência terrena. Maria transmite ao povo crente este silêncio-acolhimento da palavra, esta capacidade de meditar no mistério de Cristo. Num mundo cheio de ruídos e mensagens de todos os tipos, o seu testemunho permite-nos apreciar um silêncio espiritualmente rico e promove o espírito contemplativo. 221. – «Ouçam esse ruído tênue e contínuo que é o silêncio. Ouça o que se ouve quando nada se ouve”, escreve Paul Valéry em Tel quel . Esse é o lema da Virgem Maria. Esse é o lema de uma mulher forte. Esse é o lema de uma mulher silenciosa. 222. – Nas suas OEuvres de piété [Obras de piedade], Pierre de Bérulle afirma com razão: «O silêncio da Virgem não é um silêncio de gagueira e de impotência, mas de luz e de êxtase; um silêncio mais eloqüente no louvor a Deus do que a própria eloqüência. É um desafio poderoso e divino na ordem da graça. No meu país, no final do terço do dia, costumamos cantar este canto a Maria: «Que a tua doce presença nos ilumine sempre, Virgem do silêncio. Dê-nos a sua imensa paz. A partir de então a Virgem passa a viver na casa de São João, cumprindo assim o desejo de Jesus na Cruz. É fácil supor que ela viveu imersa no silêncio e na paz profunda. Meditava muitas vezes sobre a paixão de Jesus, esplêndido ápice das missões partilhadas. Com o passar do tempo, foi crescendo no silêncio, na meditação e na contemplação. Ele orou e jejuou. Ele aceitou com alegria todos os sacrifícios para prolongar a paixão do seu filho pela salvação do mundo. Sua oração foi um silêncio perpétuo em Deus. III SILÊNCIO, MISTÉRIO E SAGRADO Temos que aprender que não damos nenhum nome a Deus de tal maneira que acreditaríamos que o louvamos e honramos conforme necessário; pois Deus está acima de todos os nomes e é inefável. Mestre Eckhart, Sermões —Que relação você vê entre o silêncio e o sagrado? 223. – No Ocidente a noção de sagrado sofre maus-tratos especiais. Nos países que se afirmam seculares e emancipados da religião e de Deus já não existe ligação com o sagrado. Existe uma certa mentalidade secular que tenta libertar-se disso. Alguns teólogos afirmam que, com a sua Encarnação, Cristo pôs fim à distinção entre o sagrado e o profano. Outros pensam que Deus se tornou tão próximo de nós que a categoria do sagrado foi superada. É por isso que há na Igreja quem não consegue distanciar-se completamente de uma pastoral totalmente horizontal, centrada no social e no político. Estas declarações e comportamentos contêm muita ingenuidade e talvez também muito orgulho. 224. – Em junho de 2012, na homilia da festa de Corpus Christi, Bento XVI afirmou solenemente: «Ele não aboliu o sagrado, mas levou-o a cumprimento, inaugurando um novo culto, que é plenamente espiritual, mas que, no entanto, , enquanto caminhamos no tempo, ainda utiliza signos e rituais (...). Graças a Cristo, a sacralidade é mais verdadeira, mais intensa e também mais exigente. Esta é uma questão muito séria, porque o que está em jogo é a nossa relação com Deus. Diante da sua grandeza, da sua majestade e da sua beleza, é impossível não se sentir possuído por um temor alegre e sagrado. Se a transcendência divina não nos faz tremer, é porque até a nossa natureza humana está danificada. A leveza, a fraqueza e a vaidade de todos aqueles discursos que tentam fugir ao sagrado causam-me verdadeiro espanto. Teólogos esclarecidos – por assim dizer – deveriam aprender na escola do povo de Deus. Até os crentes mais simples sabem que as realidades sagradas são um dos seus tesouros mais preciosos. Adivinham espontaneamente que só se pode entrar em comunhão com Deus com uma atitude interior e exterior impregnada de sacralidade. O povo tem razão: seria arrogância tentar aceder a Deus sem renunciar a uma atitude profana e a um paganismo irreligioso e hedonista. 225. – Em África, tanto para o povo cristão como para os crentes de qualquer religião, o sagrado é evidente. O desprezo por essa sacralidade, que tantos ocidentais consideram uma atitude infantil e supersticiosa, manifesta a presunção das crianças mimadas. Não me importo de afirmar que os homens da Igreja que querem distanciar-se do sagrado prejudicam a humanidade, privando-a da comunhão de amor com Deus. Deus quer comunicar-nos a sua amizade, a sua intimidade, mas só o pode fazer se nos abrirmos a ele com a atitude adequada e sincera. Diante desse Outro que é tudo, o homem deve reconhecer a sua pequenez, a sua miséria e o seu nada. Recordemos as palavras de Jesus a Santa Catarina de Sena: “Tu és o que não é, eu sou o que é”. 226. – Sem humildade radical, expressa em gestos de adoração e em ritos sagrados, não há amizade possível com Deus. O silêncio manifesta essa relação de forma óbvia. Para se tornar silêncio de comunhão, o verdadeiro silêncio cristão torna-se primeiro silêncio sagrado. 227. – Diante da majestade divina calamos. Quem se atreveria a falar diante do Todo-Poderoso? Quando Deus revela sua glória a Isaías, o profeta clama: “Santo, Santo, Santo!” Isaías usa a palavra hebraica quadosh , que significa santo e sagrado. Depois exclama: “Ai de mim, estou perdido!”, que também se traduz como “Estou condenado ao silêncio” ( Is 6,5). 228. – Os homens de todas as culturas e de todas as religiões sabem disso: diante de Deus estamos perdidos; e, diante de sua grandeza, nossas palavras deixam de fazer sentido. Eles não estão no auge do Infinito. Em África, depois dos cantos e das danças, o sacrifício à divindade é envolto num imponente silêncio sagrado. O silêncio sagrado dos cristãos vai ainda mais longe. Esta não é uma proibição que Deus impõe aos homens para preservarem zelosamente o seu poder; Pelo contrário: o verdadeiro Deus prescreve o silêncio sagrado da adoração para melhor comunicar connosco. “Silêncio diante do Senhor Deus!”, grita o profeta ( Ct 1:7). E Isaías acrescenta: “Escutai-me em silêncio!” ( É 41, 1). 229. – Na carta apostólica Orientale Lumen de 1995, São João Paulo II recorda: “Todos, crentes e não crentes,precisam aprender um silêncio que permita ao Outro falar, quando quiser e como quiser, e por nós. entender essa palavra (…). Nesta humilde aceitação do limite da criatura diante da transcendência infinita de um Deus que nunca deixa de se revelar como o Deus-Amor, vejo expressada a atitude de oração (...). Devemos confessar que todos necessitamos deste silêncio penetrado por uma presença adorada. 230. – Rejeitar aquele silêncio cheio de medo confiante e de adoração é negar a Deus a liberdade de nos possuir com o seu amor e a sua presença. O silêncio sagrado permite ao homem colocar-se voluntariamente à disposição de Deus. Permite-nos abandonar aquela atitude arrogante que considera Deus à mercê de qualquer capricho dos seus filhos. Existe alguma criatura capaz de se gabar de possuir o Criador? O silêncio sagrado, pelo contrário, oferece-nos a possibilidade de nos separarmos do mundo profano e do tumulto incessante das nossas imensas metrópoles para nos deixarmos possuir por Deus. O silêncio sagrado é o lugar onde podemos encontrar Deus, porque nos voltamos para Ele com a atitude de um homem que treme e mantém distância enquanto espera com confiança. 231. – O silêncio sagrado é a única reação verdadeiramente humana e cristã à irrupção de Deus em nossas vidas. O próprio Deus parece nos ensinar que espera de nós este culto de adoração silenciosa e sagrada: “Exaltai- o tanto quanto puderdes, porque sempre ficareis aquém, pois a sua majestade é admirável. Ao elogiá-lo, redobre as forças, não se canse, pois você nunca chegará ao fim. Quem o viu para poder contar? Quem pode proclamar a sua grandeza tal como Ele é?», pergunta o sábio Ben Sirac ( Si 43, 30-31). Quando Deus está presente, apenas o louvor deve fluir dos nossos corações. E vice-versa: qualquer forma de exposição com aparência de espetáculo deve desaparecer. Que razão há para manifestar uma ação profana e uma palavra mundana diante de sua infinita grandeza? “O Senhor está no seu Santo Templo: toda a terra está silenciosa diante dele” ( Ha 2, 20). Só nesse momento ele poderá tomar a iniciativa de vir ao nosso encontro. Porque Deus é sempre o primeiro a amar. O nosso silêncio sagrado torna-se um silêncio de alegria, de intimidade e de comunhão: “As palavras lentas dos sábios são melhor ouvidas” ( Qo 9, 17). 232. – O silêncio nos ensina uma regra essencial da vida espiritual: a familiaridade não favorece a intimidade; Pelo contrário: a distância adequada é condição para a comunhão. A humanidade caminha em direção ao amor através da adoração. O silêncio sagrado, carregado de presença adorada, abre-se para um silêncio místico cheio de intimidade amorosa. O jugo culpado da razão secular fez- nos esquecer que o sagrado e o culto são as únicas portas de entrada para a vida espiritual. 233. – O sagrado silêncio é lei fundamental de todas as celebrações litúrgicas. Em 1978, o teólogo Hans Urs von Balthasar escreveu num artigo publicado na Communio: «Não há liturgia de origem humana digna do objeto da sua homenagem, que é Deus, diante de cujo trono os coros celestes se prostram com rostos velados depois de depositarem coroas e ornamentos como sinal de adoração. Querer prestar a quem tudo criou – porque essa foi a sua vontade – a honra oferecida a cada criatura deve, a priori, fazer com que uma comunidade de pecadores se ajoelhe. Domine, non sum dignus! Se esta comunidade, reunida para louvor e adoração, tivesse outra intenção ingênua que não a adoração e a doação de si – o desenvolvimento pessoal, por exemplo, ou algum projeto que colocasse o indivíduo em pé de igualdade com aquele Senhor ao qual ele é obrigado a adoração – cometeria um erro. “Isso é algo que só pode ser abordado com medo e tremor.” 234. – Como não recordar a liturgia da Sexta-feira Santa, quando o celebrante entra no templo? Prostra-se no chão, diante do altar, e permanece assim durante muito tempo em silêncio: um gesto eloquente de silêncio. O homem reconhece o seu nada e fica literalmente sem palavras diante do mistério sagrado da Cruz. Na sua humildade ele só pode prostrar-se e adorar. Este culto não representa um peso, mas abre-nos a uma atitude de abandono e de confiança. 235. – Desde a reforma de Paulo VI e apesar da vontade deste grande Papa, instalou-se por vezes na liturgia um ar de familiaridade inadequada e barulhenta. Sob o pretexto de tentar tornar Deus fácil e acessível, houve quem quisesse que tudo na liturgia fosse perfeitamente inteligível. Esta intenção igualitária pode parecer louvável; Mas, ao reduzir g p p o mistério sagrado a bons sentimentos, impedimos que os fiéis se aproximem do Deus verdadeiro. Com a desculpa da pedagogia, alguns sacerdotes permitem-se comentários intermináveis, planos e horizontais. São pastores que temem que o silêncio diante do Todo-poderoso afaste os fiéis. Contudo, na Orientale Lumen João Paulo II nos adverte: «Os cristãos do Oriente dirigem-se a Deus como Pai, Filho e Espírito Santo, pessoas vivas, ternamente presentes, a quem expressam uma doxologia litúrgica solene e humilde, majestosa e simples. Contudo, percebem que nos aproximamos desta presença sobretudo deixando- nos educar num silêncio adorador, porque no ápice do conhecimento e da experiência de Deus está a sua transcendência absoluta. 236. – Como pretendemos aproximar-nos Daquele “que está acima de tudo”, adotando uma atitude negligente e despreocupada? Na sua bela homilia Sobre o Cemitério e a Cruz, São João Crisóstomo já exortava os seus fiéis a cuidarem da procissão da comunhão, pedindo-lhes que só se aproximassem dela com “temor, veneração e reverência” e expressando o seu espanto: “Não sabeis como estavam presentes os anjos no túmulo que não tinha mais corpo, no túmulo vazio? E nós, que não vamos ao sepulcro vazio, mas à mesma mesa onde está o Cordeiro, chegamos com gritos e desordem? O que diria hoje São João Crisóstomo ao ver as nossas procissões? Quantos sacerdotes se aproximam do altar do sacrifício conversando, conversando ou cumprimentando os presentes em vez de mergulharem num silêncio sagrado cheio de reverência... 237. – Como é possível que comecemos as nossas celebrações eucarísticas apagando Cristo carregando a sua Cruz e rastejando sob o peso dos nossos pecados em direção ao lugar do sacrifício? São muitos os sacerdotes que entram com ar triunfante e sobem ao altar, cumprimentando a torto e a direito para se tornarem amigos. Vejam o triste espetáculo de algumas celebrações eucarísticas. Qual a razão de tanta leveza e tanta mundanidade no momento do Santo Sacrifício; daquela atitude profana e superficial em relação à graça sacerdotal extraordinária que nos permite tornar presente a substância do corpo e do sangue de Cristo invocando o Espírito? Por que há quem se sinta obrigado a improvisar ou inventar orações eucarísticas que mascaram as palavras divinas sob um banho de insignificante fervor humano? Não são as palavras de Cristo suficientes para multiplicar palavras meramente humanas? Que necessidade há destes caprichos e originalidades subjetivas num sacrifício tão único e essencial? “Ao orar, não use muitas palavras como os gentios, que pensam que pela sua loquacidade serão ouvidos”, adverte Jesus ( Mt 6, 7). São muitos os cristãos fervorosos, movidos pela paixão e morte de Cristo na Cruz, que ficaram sem forças para reclamar ou gritar de dor aos padres e bispos que atuam como animadores de espetáculos e se estabelecem como protagonistas do Eucaristia. Contudo, aqueles fiéis dizem- nos: não queremos reunir-nos com outros homens à volta de um homem: queremos ver Jesus! Mostre-nos isso com o silêncio e a humildade da sua oração . O silêncio sagrado é um bem dos fiéis e o clero não deve privá-los dele. 238. – Em 2011, durante a vigília da Jornada Mundial da Juventude realizada em Madrid, o Papa Bento XVI iria dirigir-se aos jovens de todo o mundo. Ele estava prestes a falar quando surgiu um vento forte e umatempestade irrompeu. O papa e os jovens esperaram que a tempestade passasse. Quando o tempo finalmente ficou mais ameno, um mestre de cerimônias proferiu o discurso planejado ao Santo Padre. Contudo, o papa preferiu dedicar o tempo restante ao que era essencial. Em vez de falar, convidou os jovens a juntarem-se a ele num culto silencioso. Ajoelhando- se diante do Santíssimo Sacramento, Bento XVI rezou com o seu silêncio. Atrás dele estavam mais de um milhão de jovens encharcados e atolados na lama; Contudo, no meio desta imensa multidão reinava um impressionante silêncio sagrado, literalmente carregado de presença adoradora . É uma memória inesquecível, uma imagem da Igreja reunida em torno do Senhor no grande silêncio. —De outra perspectiva, qual é a ligação entre o silêncio e o mistério? 239. – Muitas vezes as palavras contêm uma ilusão de transparência, como se nos permitissem compreender tudo, dominar tudo, ordenar tudo. A modernidade é tagarela porque é orgulhosa, senão o contrário: talvez a nossa tagarelice incessante seja o que nos orgulha. Nunca o mundo falou tanto de Deus, de teologia, de oração e até de misticismo. Contudo, a nossa linguagem humana reduz tudo o que tentamos dizer sobre Deus a um nível lamentável. As palavras deslumbram o que as ultrapassa. E, no entanto, o mistério é, por definição, o que ultrapassa a razão humana. En su Teología mística dice Dionisio Areopagita que, frente a esa realidad que lo trasciende todo, frente al misterio, nos vemos conducidos a esas «tinieblas luminosas del silencio (…), que colma con esplendores más bellos que la belleza las inteligencias que saben cerrar olhos". 240. – Uma séria advertência deve ser dirigida à nossa civilização. Se a nossa inteligência já não souber fechar os olhos, se já não soubermos calar, privar-nos-emos do mistério, daquela luz que transcende as trevas, daquela beleza que transcende toda a beleza. Sem mistério ficamos reduzidos à banalidade das coisas terrenas. 241. – Às vezes pergunto-me se a tristeza das sociedades urbanas ocidentais, cheias de depressão, suicídio e sofrimento moral, não provém da perda do sentido do mistério. Ao perder a capacidade de silêncio diante do mistério, os homens distanciam-se das fontes da alegria. Eles se encontram sozinhos no mundo, sem nada para superá-los e sustentá-los. Não consigo pensar em nada mais assustador! É assim que se entende a reflexão de Blaise Pascal em seus Pensamentos: “Ao contemplar o universo mudo e o homem sem luz, abandonado a si mesmo e como que perdido neste canto do mundo, sem saber quem o colocou ali, o que veio fazer ou o que vai acontecer com ele quando morrer (...), estou tão assustado quanto o homem que foi levado dormindo para uma ilha deserta e acorda sem saber onde está e sem meios de escapar. Sem silêncio ficamos privados de mistério, condenados ao medo, à tristeza e à solidão. Chegou a hora de redescobrir esse silêncio! O mistério de Deus, a sua inatingibilidade, é fonte de alegria para qualquer cristão. Dia após dia sentimos a alegria de contemplar um Deus insondável cujo mistério nunca se esgotará. A própria eternidade do Céu será a alegria sempre nova de aprofundar ainda mais o mistério divino, sem nunca o esgotar. Só o silêncio é capaz de traduzir essa alegria: “Silenciamo-nos porque as palavras pelas quais as nossas almas desejam viver não se expressam com a linguagem da terra”, disse um cartuxo cujo nome nunca saberemos em Silence Cartusien . 242. – Para preservar o mistério é necessário protegê-lo da banalidade profana. Esse papel é desempenhado admiravelmente pelo silêncio. Os tesouros devem ser colocados fora do alcance de qualquer pessoa: o que é valioso está sempre escondido. Até cobrimos o nosso corpo com roupas, não porque sejam vergonhosas ou impuras, mas porque são sagradas e misteriosas. Na liturgia o cálice é velado, o cibório e o tabernáculo são cobertos por um véu enquanto contêm a Presença real. O silêncio é um véu sonoro que protege o mistério. Não é verdade que, quando queremos pronunciar as palavras mais importantes, as frases de amor, baixamos espontaneamente a voz? Certa vez, na liturgia latina, as misteriosas palavras do cânone e da consagração, pronunciadas submissa voce , com voz submissa, foram envoltas num véu de silêncio. 243. – A carta apostólica de São João Paulo II Orientale Lumen contém esta esplêndida frase: “Este mistério é continuamente velado, coberto de silêncio, para nos impedir de construir um ídolo no lugar de Deus”. Os cristãos correm sério risco de se tornarem idólatras se perderem o sentido do silêncio. Nossas palavras nos intoxicam, elas nos encerram naquilo que é criado. Fascinados pelo ruído dos discursos humanos e prisioneiros deles, corremos o risco de construir um culto à nossa altura, um deus à nossa imagem. As palavras carregam consigo a tentação do bezerro de ouro. Só o silêncio leva os homens além das palavras, ao mistério, à adoração em espírito e em verdade. O silêncio é uma mistagogia, faz-nos entrar no mistério sem deflorá-lo. Entendo por que Teresa de Lisieux escreveu em sua Carta a Céline em 14 de outubro de 1890: “A virgindade é um silêncio profundo”. Temos que redescobrir essa reserva, essa modéstia, esse sentido virginal, essa delicadeza silenciosa, para abordar os santos mistérios da liturgia, os grandes mistérios da teologia. Aprendamos a permanecer em silêncio mesmo nas profundezas do sofrimento. Hoje são muitos os que unem o seu uivo ao dos lobos para defender uma visão da liturgia da qual afirmam ser os únicos proprietários: estes ideólogos sacrificam ruidosamente no altar dos seus ídolos aqueles que consideram retrógrados. Se Deus assim o quer, que os seus ídolos respirem o bom aroma do sacrifício destes. Acredito que o silêncio não vela os mistérios para escondê-los, mas para revelá-los. Você só pode falar sobre o mistério em silêncio. É por isso que na liturgia a linguagem dos mistérios é silenciosa. —Assim, embora Deus fale, a sua palavra é também um mistério... 244. – No seu belo livro Uma Nova Canção ao Senhor, o Cardeal Joseph Ratzinger recordou: “Quando a palavra de Deus é traduzida em palavra humana, permanece um excedente não dito e inefável que nos incita a permanecer em silêncio”. Deus revela-se, mas as nossas palavras humanas não servem para falar da sua imensidão, da sua profundidade e do seu mistério: ele está sempre para além da nossa linguagem. Quão pequeno seria Deus se o entendêssemos! Entendo que os teólogos estudam este mistério e traduzem o fruto da sua busca em palavras humanas. Mas estas palavras só serão admissíveis se o seu estudo fincar raízes no silêncio e conduzir ao silêncio. Caso contrário, permanecerão conversa fiada. A teologia tem que encontrar novamente uma linguagem contemplativa. Exegetas e teólogos que estudam na escola das ciências seculares correm o risco de se distanciar do mistério da Palavra de Deus. «Teríamos que dizer muito e nunca terminaríamos; mas, para concluir: “Ele é tudo!”, diz a Escritura ( Si 43, 27). 245. – Para falar de Deus é preciso começar calando. Penso nos pregadores. Uma homilia não consiste numa soma de conhecimentos teológicos ou de interpretações exegéticas. Neles os sacerdotes, marcados pelo carácter do sacerdócio, actuam de algum modo como instrumentos misteriosos da Palavra de Deus. É por isso que a homilia é reservada exclusivamente aos homens que receberam a sagrada ordem de presbíteros e diáconos: não pode ser delegada a leigos, por mais competentes que sejam. Não se trata de uma mera competência académica ou de uma profissão: “Os lábios do sacerdote devem guardar o conhecimento para que na sua boca busquem a Lei” ( Ml 2, 7; Tt 1, 7-9; 1 Tim 3, 13) , diz a Escritura. Na homilia a palavra não é uma aula, mas o eco da palavra que o Mestre ensinou nos caminhos da Galileia. Os sacerdotes também devem preparar as homilias no silêncio da oração e da contemplação.246. – Numa entrevista sobre a liturgia, o Cardeal Ratzinger não hesitou em afirmar: «Se não compreendermos o lugar do silêncio, corremos o risco de deixar passar a Palavra de Deus. É por isso que precisamos entrar naquela profundidade de silêncio em que se comunica o mistério maior que qualquer palavra humana. Este processo é essencial (…). Deus está acima de tudo o grande silêncio. Devemos dispensar a multiplicidade de palavras para encontrar a Palavra. Se não há silêncio que nos permita entrar na sua profundidade, as palavras tornam-se incompreensíveis. E a liturgia, presença do grande mistério de Deus, deve ser também o lugar onde temos a possibilidade de entrar no mais profundo da nossa alma. A profundidade do mistério de Deus leva Santo Agostinho a falar, nas suas Confissões , da experiência dos “limites das palavras”. Então, em silêncio, ficamos cheios de alegria. Não podemos nomear o Deus inefável: «Se não o podes pronunciar, e não deves silenciá-lo, o que resta, mas que desabafas de alegria para que, sem palavras, o teu coração se alegre, e o imenso campo de alegrias "Don' Não ficar preso aos limites das sílabas?”, pergunta o santo doutor. 247. – Desta alegre experiência do mistério nasce o canto sagrado. O canto das liturgias cristãs deveria afastar-se de certos cantos loquazes para reencontrar a grandeza contemplativa do canto dos monges do Oriente e do Ocidente. O canto gregoriano não se opõe ao silêncio: dele nasce e a ele conduz. Diria mesmo que é como um tecido de silêncio. Que experiência avassaladora cantar com os monges da Grande Cartuxa, na escuridão da noite, a Salve Regina das Vésperas! As últimas notas acabam morrendo uma a uma no meio de um silêncio filial, envolvendo a nossa confiança na Virgem Maria. É uma experiência essencial para compreender a reflexão de Joseph Ratzinger no seu livro Um novo canto ao Senhor: « Um silêncio que finalmente transforma o inefável em santo, e pede também ajuda às vozes do cosmos para que o não dito se torne perceptível. Isto significa que a música da Igreja, que emana da palavra e do silêncio nela percebido, pressupõe uma escuta constante de toda a plenitude do Logos. —A reforma litúrgica de Paulo VI de 1969 levou à perda do silêncio na liturgia? 248. – Como destacou o cardeal Godfried Danneels na sua palestra Uma atitude de serviço e não de manipulação – título muito sugestivo – , “ a liturgia ocidental, tal como é vivida hoje, tem como principal defeito ser excessivamente loquaz”. Acho que temos que considerar a questão desde a raiz. Não se trata de nos limitarmos a acrescentar artificialmente um pouco mais de silêncio às liturgias da Igreja. Naturalmente, a liturgia prevê momentos de silêncio que devem ser respeitados antes de cada oração, antes do Confiteor , depois da leitura da Palavra de Deus e depois da comunhão. Esses momentos permitem que a alma respire. O ofertório também pode ser um momento de silêncio. 249. – Sei que há muitos jovens sacerdotes que se queixam porque gostariam que a oração do cânone fosse feita em profundo silêncio. A unidade de toda a assembleia em comunhão com palavras pronunciadas num murmúrio sagrado foi um sinal esplêndido de uma Igreja contemplativa reunida em torno do sacrifício do seu Salvador. Em O Espírito da Liturgia, o Cardeal Ratzinger escreveu: “Quem testemunhou pessoalmente esta unidade da Igreja no silêncio da oração eucarística experimentou o que é um silêncio cheio de conteúdo: um silêncio que mostra, ao mesmo tempo, uma forte e penetrante grito que se dirige a Deus, uma oração cheia de espírito. Aqui todos rezamos verdadeiramente o cânon juntos, ainda que através desta união com a tarefa particular do ofício sacerdotal. Aqui estamos todos unidos, assumidos por Cristo, guiados pelo Espírito Santo na oração comum diante do Pai, que é o verdadeiro sacrifício: o amor que reconcilia e une o mundo a Deus. Em suma, a intenção da reforma litúrgica era louvável: os padres conciliares pretendiam recuperar a função original da oração eucarística como grande oração do povo diante de Deus. Mas também vemos uma forte tentação de procurar variedade introduzindo improvisações no cânone. A partir daí, a liturgia corre o risco de banalizar as palavras da oração eucarística. Por isso creio que o Cardeal Ratzinger tinha razão quando disse que “para não perder a Palavra é necessário o silêncio do cânon”. Na altura propôs algumas soluções práticas e afirmou com convicção que a recitação em voz alta de toda a oração eucarística não era o único meio de obter a participação de todos naquele acto. Devemos trabalhar para encontrar uma solução mais equilibrada e abrir a possibilidade de espaços de silêncio nesta área. 250. – O silêncio é uma atitude da alma. Não é imposto, correndo o risco de parecer exagerado, vazio e artificial. Nas liturgias da Igreja, o silêncio não pode ser uma pausa entre dois ritos: é em si um rito, envolve tudo. O silêncio é a madeira na qual devem ser gravadas todas as nossas liturgias, na qual nada deve quebrar aquela atmosfera silenciosa que é o seu clima natural. Porém, as comemorações tornam-se cansativas porque acontecem com tagarelice barulhenta. A liturgia está doente. Talvez o sintoma mais evidente desta doença seja a onipresença do microfone, que se tornou tão indispensável que nos perguntamos como os padres poderiam ter celebrado antes de sua invenção... Às vezes tenho a impressão de que os celebrantes temem até mesmo esse aspecto do interior pessoal e livre oração dos fiéis que não param de falar desde o início da celebração até o seu final para não perder o controle. Acredito que atitudes como esta revelam um profundo mal-entendido sobre o espírito do Concílio Vaticano II. Agora, mais do que nunca, devemos guiar-nos pelo ensinamento conciliar sobre a liturgia contida na Sacrosanctum Concilium. Cinquenta anos após a sua promulgação, ainda não terminamos de explorar a sua substância. É hora de nos deixarmos ensinar pelo Concílio, em vez de usá-lo para justificar o nosso desejo de originalidade. 251. – A intenção da Sacrosanctum Concilium era a participação de todos no mistério que está presente na sagrada liturgia. Se quisermos compreender a sua finalidade, é fundamental lembrar que um dos meios propostos pelo Concílio para torná-lo realidade é o silêncio sagrado. Na verdade, trata-se de participar de um mistério sagrado que nos ultrapassa infinitamente: o mistério da morte de Jesus por amor do Pai e de nós. Os cristãos têm a obrigação imperativa de se abrirem àquele ato misterioso que nunca poderão realizar sozinhos: o sacrifício de Cristo. Na reflexão dos Padres Conciliares, a liturgia é uma ação divina, uma actio Christi , diante da qual se apodera de nós um silêncio de admiração e reverência. A qualidade do nosso silêncio é a medida da qualidade da nossa participação ativa. 252. – Em 1985, no seu famoso Relatório sobre a Fé com Vittorio Messori, o Cardeal Ratzinger sublinhou: «O proprium litúrgico foi disperso , o que não provém do que fazemos, mas do facto do que acontece aqui. Algo que todos nós juntos somos incapazes de fazer. 253. – O silêncio levanta a questão da essência da liturgia. E isso é místico. Os orientais falam com razão de divina liturgia e de santos mistérios . Enquanto o abordarmos com o coração aberto, a liturgia parecerá superficial e humana. O silêncio litúrgico é uma disposição p g p radical e essencial: é uma conversão. Etimologicamente, converter significa voltar-se: voltar-se para Deus. Na liturgia não há verdadeiro silêncio se no coração não nos voltamos para o Senhor. Mas o verdadeiro silêncio é o das nossas paixões, um coração purificado das inclinações carnais, limpo do ódio e do ressentimento, orientado para a santidade de Deus. Quanto mais a pureza brilha no sacerdote, mais ele se torna, através da sua união com Cristo, “Hóstia Pura, Hóstia Santa, Hóstia Imaculada”, e atrai todo o povo de Deus a“revestir-se do homem novo, que Ele foi criado segundo a Deus em verdadeira justiça e santidade” ( Ef 4:24). 254. – Não basta prescrever mais silêncio. Para compreender que a liturgia nos volta interiormente para o Senhor, seria oportuno que, durante as celebrações, todos juntos, sacerdotes e fiéis, nos voltássemos fisicamente para o Oriente, simbolizado na abside. Este costume permanece perfeitamente legítimo e coincide com a letra e o espírito do Concílio. Existem muitos testemunhos dos primeiros séculos da Igreja. “Quando nos levantamos para rezar, voltamo-nos para o Oriente”, diz Santo Agostinho, fazendo eco de uma tradição que, segundo São Basílio, remonta aos apóstolos. As igrejas foram criadas para a oração das primeiras comunidades cristãs e no século IV as Constituições Apostólicas recomendaram que fossem orientadas . E, quando o altar está voltado para o Ocidente, como o de São Pedro em Roma, o oficiante deve voltar-se para o Oriente e ficar de frente para o povo. Assim, “o interesse dos Padres não estava tanto centrado na celebração de frente ou de costas para o povo (...), mas sim voltado para o Oriente”, salienta judiciosamente Xavier Accart no seu maravilhoso livro Compreendendo e Vivendo a Liturgia . E acrescenta: «Esta orientação física da oração nada mais é do que o sinal de uma orientação interior . Orígenes não deixa claro nas suas Parábolas Evangélicas que esta opção é um símbolo da alma que olha para o alvorecer da verdadeira luz: “Do Oriente vem o favor recebido de Deus; porque daí vem o homem cujo “nome é Oriente” ( Ze 6, 12), constituído “mediador entre Deus e os homens” ( 1 Tm 2, 5)? É um convite a “olhar para o Oriente” ( Ba 4, 36), de onde nasce para você o “sol da justiça” ( Ml 3, 20), de onde nasce para você a luz, para que você não “andai nas trevas” ( Jo 12, 35) e no último dia “não deixeis que as trevas vos surpreendam”. O sacerdote não convida o povo de Deus a segui-lo quando diz no início da oração eucarística: “Elevemos os nossos corações”, ao que o povo responde: “Nós os elevamos ao Senhor”? Como prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, devo recordar mais uma vez que a celebração versus orientem está autorizada pelas rubricas do missal, porque é de tradição apostólica. Não é necessária autorização especial para celebrar com o povo e o sacerdote olhando para o Senhor. Se fisicamente não puder ser celebrado ad orientem , é imprescindível colocar no altar uma cruz bem visível que sirva de referência para todos nós. Cristo na Cruz é o Oriente cristão. 255. – A celebração voltada para o Oriente facilita o silêncio. Na verdade, para o celebrante a tentação de monopolizar a palavra é menor. Voltado para o Senhor, ele está menos exposto a se tornar um professor que passa a missa inteira dando aula, reduzindo o altar a uma plataforma cujo eixo não seria a cruz, mas o microfone. Contudo, voltado para o Oriente e para a cruz, o celebrante toma consciência de que é – como muitas vezes nos recorda o Papa Francisco – um pastor que caminha à frente das suas ovelhas. O sacerdote recorda que é um instrumento nas mãos de Cristo sacerdote, que deve calar-se para deixar penetrar a Palavra, que ao lado da única Palavra eterna as suas palavras humanas são risíveis. Estou convencido de que nós, sacerdotes, não usamos o mesmo tom de voz quando celebramos voltados para o Oriente. Sentimo-nos muito menos tentados a tornar-nos num espetáculo, a acreditar que somos atores!, como diz o Papa Francisco. Desta forma, é como se toda a assembleia fosse absorvida juntamente com o sacerdote pelo mistério silencioso da Cruz. Esta forma de celebrar deveria poder ser praticada regularmente nas paróquias. Recuperar a entrada no mistério permitir-nos-ia experimentar uma abordagem silenciosa e contemplativa da doutrina e da teologia, que não são o resultado do laborioso trabalho de uma comunidade encerrada em si num círculo fechado, mas antes da recepção no silêncio da palavra de Deus, Deus que nos precede e nos encontra. Como recordou o Papa na bula que convoca o Jubileu da Misericórdia, devemos “recuperar o valor do silêncio para meditar a palavra que nos é dirigida”. 256. – A celebração para o Oriente termina com o presencial, com o gregário, com as portas fechadas , e impede a transformação da liturgia na autocelebração de uma comunidade. Pelo contrário, voltando-nos para o Senhor, a liturgia permite-nos voltar-nos para o mundo com um novo impulso e uma autêntica força missionária, para lhe trazer não a nossa própria experiência vazia e barulhenta, mas a única Palavra ouvida no silêncio. 257. – Oponho-me a que nos dediquemos a colocar uma liturgia contra outra, ou o rito de São Pio V contra o do Beato Paulo VI. Trata-se de entrar no grande silêncio da liturgia: devemos aprender a deixar-nos enriquecer por todas as formas litúrgicas latinas ou orientais que privilegiam o silêncio. Sem este espírito contemplativo, a liturgia continuará a ser ocasião de rupturas ressentidas e confrontos ideológicos, e não um ponto de união e comunhão no Senhor. É urgente entrar naquele silêncio litúrgico voltado para o Senhor que o Concílio quis recuperar. O que vou dizer a seguir não contradiz a minha submissão e a minha obediência à autoridade suprema da Igreja. O meu desejo mais profundo e humilde é servir a Deus, à Igreja e ao Santo Padre com devoção, sinceridade e união filial. Mas tenho esta esperança: se Deus quiser, quando Ele quiser e como Ele quiser, ocorrerá uma reforma da reforma na liturgia. Isso será feito apesar do ranger de dentes, porque o que está em jogo é o futuro da Igreja. Maltratar a liturgia é maltratar a nossa relação com Deus e a expressão concreta da nossa fé cristã. A Palavra de Deus e o ensinamento doutrinário da Igreja continuam a ser ouvidos, mas as almas que desejam voltar-se para Deus, oferecer-lhe um verdadeiro sacrifício de louvor e adorá-lo, já não se sentem atraídas por liturgias demasiado horizontais, antropocêntricas e festivo, às vezes mais parecido com eventos culturais barulhentos e vulgares. A mídia permeou totalmente e transformou em espetáculo o santo sacrifício da missa, memorial da morte de Jesus na Cruz para a salvação de nossas almas. O sentido do mistério desaparece por trás das mudanças, das constantes adaptações decididas de forma autônoma e individual para seduzir as nossas mentes modernas e profanadoras, marcadas pelo pecado, pela secularização, pelo relativismo e pela rejeição de Deus. Em muitos países ocidentais vemos como os pobres abandonam a Igreja Católica, tomados de assalto por pessoas maliciosas que se consideram intelectuais e desprezam os simples e os pobres. Isto é o que o Santo Padre deve denunciar em alto e bom som. Porque uma Igreja sem pobres já não é uma Igreja, mas um simples clube . Quantos templos vazios existem hoje no Ocidente, fechados, destruídos ou transformados em edifícios profanos privados da sua sacralidade e do seu destino original! Mesmo assim, sei que muitos sacerdotes e muitos fiéis vivem a sua fé com extraordinário zelo e lutam todos os dias para preservar e enriquecer as casas de Deus. É urgente recuperar a beleza, a sacralidade e a origem divina da liturgia com a nossa firme fidelidade ao ensinamento do Catecismo da Igreja Católica . Numa conversa com o Padre Emonet, o Cardeal Charles Journet afirmou num tom fatídico: «Liturgia e catequese são as duas mandíbulas do vício com o qual o diabo quer arrancar a fé do povo cristão e tomar conta da Igreja para destruí-la e aniquilá-lo definitivamente. Ainda hoje o grande dragão está à espreita diante da Mulher, a Igreja, pronta para devorar o Menino. Sim, o diabo quer que nos confrontemos no próprio coração do sacramento da unidade e da comunhão fraterna. Satanás tenta destruir a terra inteira com sua cauda. Mas Jesus acalma-nos quando diz a Pedro: «Simão, Simão, vê que Satanás te reivindicou para te peneirarcomo o trigo. Mas eu orei por você para que sua fé não desfaleça; e você, quando se converter, confirme seus irmãos” ( Lc 22, 31-32). —O silêncio também é mencionado exaustivamente nas normas litúrgicas que muitos papas solicitaram... 258. – A oração é uma conversa, um diálogo com o Deus Uno e Trino: enquanto em alguns momentos nos dirigimos a Deus, noutros permanecemos em silêncio para ouvi-lo. É 259. – É verdade que os ritos orientais não prevêem momentos de silêncio durante a divina liturgia. Na verdade, quando não é o sacerdote quem canta – isto é, quando reza silenciosamente, especialmente na anáfora, a oração eucarística, exceto as palavras de consagração, que são cantadas em voz alta –, pode-se observar que é o diácono, os coros e também os fiéis que cantam ininterruptamente. Mesmo assim, têm plena consciência da dimensão apofática da oração que se expressa através de todo tipo de adjetivos e advérbios que qualificam o Dono e Soberano do Universo e Salvador de nossas almas. O prefácio do rito bizantino, por exemplo, diz: “Senhor, nosso Deus, cujo poder é incomparável e cuja glória é incompreensível, cuja misericórdia é imensurável e seu amor pelos homens inefável...”. Em essência, a divina liturgia é de alguma forma uma imersão no Mistério: é celebrada atrás da iconostase e o sacerdote, diante do altar do sacrifício, geralmente reza em silêncio. Para os orientais a iconostase é o véu do mistério. No caso dos latinos, o silêncio é como uma iconostase sonora. 260. – No Ocidente não existe nenhum rito – romano, moçárabe, cartuxo, dominicano, ambrosiano – em que a oração silenciosa do sacerdote seja sobreposta ininterruptamente pelos cantos do coro ou dos fiéis. A Missa em Latim sempre incluiu momentos de silêncio absoluto. Até à reforma do Beato Paulo VI, isto acontecia sobretudo durante o cânon, que o celebrante pronunciava silenciosamente, em segredo , salvo nos raros casos de concelebração sacramental. É verdade que em alguns locais quiseram preencher o vazio de alguns minutos de silêncio – na verdade, apenas aparentes – com o som do órgão ou de canções polifónicas, mas esta prática não se harmonizava com o espírito dos ritos . 261. – O Concílio Vaticano II previu a manutenção de um tempo de silêncio durante o sacrifício eucarístico. É por isso que a constituição Sacrosanctum Concilium decretou que “para promover a participação ativa, serão incentivadas as aclamações, respostas, salmodias, antífonas, cantos e também ações ou gestos e posturas corporais das pessoas. Um silêncio sagrado também deve ser mantido no devido tempo. A apresentação geral do Missal Romano do Beato Paulo VI, reeditado por São João Paulo II em 2002, apontou muitos momentos da missa onde tal silêncio deve ser observado. Em primeiro lugar, encontramos este lembrete genérico: «Um silêncio sagrado também deve ser mantido, no momento apropriado, como parte da celebração. Porém, a sua natureza depende do momento em que é observada em cada celebração. Pois no ato penitencial e depois do convite à oração, cada um se fecha em si mesmo; Mas, terminada a leitura ou a homilia, cada um medita brevemente sobre o que ouviu; e, depois da Comunhão, louvam a Deus em seus corações e oram. Já antes da celebração propriamente dita, é louvável que se mantenha silêncio na igreja, na sacristia, na secretaria e nos locais mais próximos, para que todos se possam preparar devota e devidamente para a ação sagrada. É triste, e quase um sacrilégio, ver como às vezes padres e bispos conversam sem parar na sacristia e até durante a procissão de entrada, em vez de se sentarem e contemplarem silenciosamente o mistério da morte de Cristo na Cruz que estão prontos para celebrar e isso deveria inspirá-los apenas com estupor e tremor. 262. – No Missal Romano de 1969, o silêncio é prescrito durante a preparação penitencial: “O sacerdote convida ao ato penitencial que, após uma breve pausa de silêncio, é realizado por toda a comunidade com a fórmula da confissão geral”. E, mais tarde, na coleção: «O padre convida o povo a rezar; e todos, juntamente com o sacerdote, ficam em silêncio por um momento para tomar consciência de estar na presença de Deus e formular internamente as suas súplicas. Também «a liturgia da palavra deve ser celebrada de uma forma que favoreça a meditação e, consequentemente, deve ser evitada qualquer forma de pressa que impeça o recolhimento. É oportuno que haja alguns breves momentos de silêncio, adaptados à assembleia, nos quais, com a graça do Espírito Santo, a palavra de Deus seja percebida no coração e a resposta seja preparada através da oração. Estes momentos de silêncio podem ser observados, por exemplo, antes do início da própria liturgia da palavra, depois da primeira e da segunda leitura e depois de concluída a homilia. Estas recomendações aplicam-se também à homilia, que deve ser acolhida e assimilada em clima de oração; e tornam-se uma prescrição dirigida aos fiéis para a oração eucarística, na qual “o povo se unirá ao sacerdote na fé e no silêncio”. Depois da comunhão ou para nos prepararmos para ouvir a oração pós-comunhão, encontramos mais uma vez a possibilidade de permanecer em silêncio. Na missa celebrada sem a participação do povo, recomenda-se ao celebrante um momento de silêncio: “Terminada a purificação do cálice, é oportuno que o sacerdote faça uma pausa de silêncio”. 263. – Portanto, o silêncio não está de modo algum ausente da forma ordinária do rito romano, pelo menos se as suas prescrições forem seguidas e os sacerdotes se inspirarem nas suas recomendações. Infelizmente, muitas vezes esquecemos que na actuosa participatio o conselho inclui também o silêncio, que facilita uma participação verdadeiramente intensa e pessoal e nos permite escutar internamente a palavra do Senhor. Porém, existem alguns ritos em que não encontramos sequer vestígio desse silêncio. Além da homilia, qualquer discurso ou apresentação de pessoas deverá ser dispensado durante a celebração da santa missa. 264. – Nos nossos dias tenho muitas vezes a impressão de que o culto católico passou da adoração a Deus à exibição do sacerdote, dos ministros e dos fiéis. A pena foi removida, incluindo seu nome. Foi suprimida por alguns liturgistas que, chamando-a de piedade, fizeram ao mesmo tempo sofrer o povo pelas suas experiências litúrgicas, rejeitando as diferentes expressões espontâneas de devoção e adoração. Conseguiram impor aplausos, mesmo nos funerais, para substituir o luto que normalmente se expressa com lágrimas: Cristo não chorou pela morte de Lázaro? Quando os aplausos irrompem na liturgia, é um sinal claro de que a Igreja perdeu a essência do sagrado. —Qual seria o seu desejo mais fervoroso em relação ao lugar do silêncio na liturgia? 265. – Apelo a uma verdadeira conversão. Procuremos com todas as nossas forças tornar-nos em cada uma das nossas celebrações eucarísticas uma “Hóstia pura, Hóstia Santa, Hóstia Imaculada”. Não tenhamos medo do silêncio litúrgico. Como gostaria que os pastores e os fiéis entrassem com alegria naquele silêncio completo de sagrada reverência e amor do Deus inefável! Como gostaria que as igrejas fossem casas onde reine o grande silêncio que anuncia e revela a presença adorada de Deus! Como gostaria que os cristãos pudessem experimentar o poder do silêncio durante a liturgia! Deve ser feito um esforço para compreender as motivações teológicas da disciplina litúrgica relativa ao silêncio. Creio que existem dois autores especialmente qualificados que podem ajudar-nos neste campo e convencer-nos de que, sem silêncio, a liturgia perde uma parte essencial e necessária. Quero mencionar, em primeiro lugar, Monsenhor Guido Marini, mestre das celebrações litúrgicas pontifícias. Em A Liturgia: Glória de Deus, Santificação dos Homens, ele se refere ao silêncio da seguinte forma: “Uma liturgia bem celebrada, nas suas diversas partes, proporciona uma alternância bemsucedida de silêncio e palavra, onde o silêncio encoraja a palavra, permite a voz ressoar com extraordinária profundidade, mantendo cada expressão oral na atmosfera apropriada de meditação (...). O silêncio exigido (...) não deve ser considerado como se fosse uma pausa entre um momento comemorativo e outro. Deve ser considerado antes como um verdadeiro momento ritual, complementar à palavra, à oração vocal, ao canto, ao gesto. Já em O Espírito da Liturgia, o Cardeal Joseph Ratzinger destacou: «O grande mistério que ultrapassa todas as palavras nos convida ao silêncio. E o silêncio, é evidente, também pertence à liturgia. Este silêncio deve ser completo e não simplesmente a ausência de palavra ou ação. O que esperamos da liturgia é que ela nos ofereça este silêncio substancial e positivo, no qual possamos nos encontrar. Um silêncio que não é uma pausa em que milhares de pensamentos e desejos nos assaltam, mas sim uma meditação que nos traz paz interior, que nos permite respirar e descobrir o que é essencial. É, portanto, um silêncio em que nos limitamos a olhar para Deus, a deixar que Ele nos olhe e nos envolva no mistério da sua majestade e do seu Amor. 266. – Perdemos o sentido mais profundo do ofertório: aquele momento em que, como o próprio nome indica, todo o povo cristão se oferece não juntamente com Cristo, mas n’Ele, através do seu sacrifício, que se realizará na consagração. . O Concílio Vaticano II destacou admiravelmente este aspecto ao insistir no sacerdócio baptismal dos leigos, que consiste essencialmente em oferecer-nos com Cristo em sacrifício ao Pai. Este ensinamento do Concílio foi magnificamente capturado nas antigas orações do ofertório. Já disse antes que seria conveniente ter a liberdade de utilizá-los novamente para entrar silenciosamente na oferta de Cristo. No século VII , o pseudo-alemão de Paris relata que a procissão de oferendas se abria com esta injunção: «Que cada um observe um silêncio espiritual, guardando as portas da sua alma. Traçando no rosto o sinal da cruz, que eles sejam protegidos do tumulto das palavras e dos vícios (...). "Que guardem os seus lábios de toda palavra vulgar, para que os seus corações se voltem apenas para Cristo." Se o ofertório for considerado apenas uma preparação dos dons, um gesto prático e prosaico, crescerá a tentação de acrescentar e inventar ritos para preencher o que é percebido como um vazio. Considero lamentáveis aquelas longas e barulhentas procissões de oferendas em alguns países africanos, acompanhadas de danças intermináveis. Os fiéis carregam todo tipo de produtos e objetos que nada têm a ver com o sacrifício eucarístico. Estas procissões assemelham-se mais a espetáculos folclóricos que distorcem o sacrifício sangrento de Cristo na Cruz e nos distanciam do mistério eucarístico; um mistério que deve ser celebrado com sobriedade e meditação, porque também nós mergulhamos na sua morte e na sua oferta ao Pai. Os bispos do meu continente deveriam tomar medidas para que a celebração da missa não se torne uma autocelebração cultural. A morte de Deus por amor a nós transcende toda cultura. Transborda toda a cultura. Por isso é importante insistir no silêncio dos leigos durante a oração eucarística, como explica Dom Guido Marini: “Este silêncio não significa inatividade ou ausência de participação. Este silêncio leva todos a entrar (...) no ato de amor com que Jesus se oferece ao Pai na Cruz para a salvação do mundo. Esse silêncio, verdadeiramente sagrado, é o espaço litúrgico no qual devemos dizer sim, com todas as forças do nosso ser, à ação de Cristo, para que ela se torne também a nossa ação na vida quotidiana. Segundo o Cardeal Ratzinger, por sua vez, “as orações que o sacerdote faz em silêncio convidam-no a personalizar a sua tarefa, a doar-se ao Senhor, também consigo mesmo”. Para todos, «o silêncio depois da comunhão é (...) o momento de um diálogo íntimo com o Senhor, que nos foi dado: para a comunicação necessária , para entrar no processo de comunicação sem o qual a comunhão externa se torna um puro rito e se torna algo estéril. Quando os fiéis terminarem de comungar o corpo de Cristo, o coro deve parar de cantar, para que cada um tenha tempo para uma conversa íntima com o Senhor, que acaba de entrar no templo do nosso corpo. Que maravilha receber o Senhor do Universo no fundo dos nossos corações! «Não sabeis que sois o Templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é santo” ( 1Co 3:16-17). Sim, Deus espera dos homens a santidade da sua vida, a virtude do silêncio, da humildade e da simplicidade. —Neste ponto da nossa reflexão, é possível falar do silêncio como um valor ascético cristão? 267. – No seu sentido negativo, o silêncio é a ausência de ruído. Pode ser exterior ou interior. O silêncio externo diz respeito ao silêncio das palavras e das ações, ou seja, à ausência do ruído das portas, dos veículos, das brocas, dos aviões, do ruidoso funcionamento das máquinas fotográficas, muitas vezes acompanhado do ofuscamento dos flashes , e também daquela assustadora selva de motivos aos quais continuamos apegados durante as nossas liturgias eucarísticas... O silêncio virtuoso ou místico deve obviamente distinguir-se do silêncio reprovador, da recusa de falar, do silêncio da omissão por covardia, egoísmo ou dureza de coração. 268. – O silêncio exterior é um exercício ascético de domínio do uso das palavras. Em primeiro lugar, talvez valha a pena recordar o que é ascetismo, aquela palavra que está longe de ocupar o topo da nossa sociedade de consumo e que – para ser sincero – assusta os nossos contemporâneos e, muitas vezes, os cristãos, vítimas da influência do espírito de o mundo. A ascese é um meio que nos ajuda a retirar da nossa vida aquilo que a sobrecarrega, ou seja, aquilo que dificulta a nossa vida espiritual e constitui um obstáculo à oração. Sim, é precisamente na oração que Deus nos comunica a sua Vida e manifesta a sua presença na nossa alma, regando-a com o fluxo do seu amor trinitário. E a oração é, em essência, silenciosa. A loquacidade, essa tendência de exteriorizar todos os tesouros da alma dando-lhes expressão, é extremamente prejudicial à vida espiritual. Atraído para fora pela necessidade de falar sobre tudo, o charlatão só pode estar longe de Deus, superficial e incapaz de qualquer atividade espiritual profunda. Os livros sapienciais do Antigo Testamento estão repletos de exortações destinadas a evitar os pecados da língua, especialmente a calúnia e a calúnia ( Pr 10, 8.11.13). Os livros proféticos, por sua vez, referem-se ao silêncio como expressão do silêncio reverente diante de Deus; Por isso é uma preparação para a teofania de Deus, isto é, a revelação da sua presença no nosso mundo ( Lm 3, 26; Ha 2, 20; Is 41, 1; Zé 2, 17). O Novo Testamento não fica muito atrás. Nela encontramos a carta de Santiago, que continua sendo um clássico sobre o domínio da língua. Além disso, sabemos que o próprio Jesus nos adverte contra os palavrões, a expressão de um coração impuro ( Mt 15, 19), e até contra as palavras vãs, pelas quais seremos chamados a prestar contas ( Mt 12, 19). Na realidade, o silêncio bom e autêntico é sempre típico de quem quer ceder o seu lugar aos outros e, sobretudo, ao Outro que é Tudo: Deus. O ruído externo, por sua vez, caracteriza o indivíduo que quer ocupar um lugar muito importante, que quer se exibir ou se exibir, ou preencher seu vazio interior, como acontece em tantos locais públicos onde reinam o barulho ensurdecedor e o orgulho. 269. – O silêncio interior, por sua vez, pode ser formado pela ausência de lembranças, de projetos, de palavras interiores, de desejos...; e o que é mais importante: graças a um ato de vontade, pode ser consequência da ausência de afetos desordenados e de desejos exacerbados. Os Padres da Igreja concedem aosilêncio um lugar eminente na vida ascética. Penso em Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Gregório Magno, sem falar da Regra de São Bento de Núrsia sobre a taciturnidade , nem das suas palavras dedicadas ao silêncio da noite em que se tornou discípulo de Cassiano. A partir destes professores, todos os fundadores das ordens religiosas medievais, seguidos pelos místicos da Reforma Católica, insistiram na importância do silêncio, mesmo para além da sua dimensão ascética e mística. —Então, o silêncio é uma condição essencial da oração contemplativa? 270. – O Evangelho diz que o Salvador rezava em silêncio, especialmente à noite, ou retirava-se para lugares desertos. O silêncio é característico da meditação da Palavra de Deus: encontramos-o explicitamente na atitude de Maria diante do mistério do seu Filho. A pessoa mais silenciosa do Evangelho é São José, de quem o Novo Testamento não registra uma única palavra. São Basílio considera o silêncio não apenas uma necessidade ascética da vida monástica, mas uma condição para o encontro com Deus. O silêncio precede e prepara aquele momento privilegiado em que acessamos a Deus, permitindo que Ele fale conosco face a face, como faríamos com um amigo. 271. – Acessamos o conhecimento de Deus pela causalidade, pela analogia, pela excelência, mas também pela negação: uma vez afirmados os atributos divinos conhecidos pela razão natural – a via catafática –, deve-se negar sua forma de realidade limitada que conhecemos neste mundo: o caminho apofático. O silêncio faz parte da forma apofática de acesso a Deus, tão apreciada pelos Padres da Igreja, especialmente pelos gregos, que os leva a exigir o silêncio do raciocínio diante do mistério de Deus. Penso em Clemente de Alexandria, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa. Não é menos verdade que o silêncio é sobretudo a atitude positiva de quem se prepara para acolher Deus na escuta. Sim, Deus trabalha em silêncio. Daí o famoso comentário daquele grande santo que é São João da Cruz: “Uma palavra falou o Pai, que era seu Filho, e esta palavra fala sempre no silêncio eterno, e no silêncio deve ser ouvida pela alma”. O Livro da Sabedoria (18, 14), referindo-se ao modo como Deus intervém para libertar o povo eleito do cativeiro no Egito, diz que este acontecimento memorável aconteceu à noite: "Quando um silêncio sereno envolveu tudo e a noite estava em no meio do seu curso, sua Palavra onipotente do Céu, dos tronos reais, foi lançada sobre aquela terra. Posteriormente este versículo será interpretado pela tradição litúrgica cristã como uma prefiguração da Encarnação silenciosa do Verbo Eterno no portal de Belém. Portanto, devemos ficar calados: e não se trata de lazer, mas de atividade. Se o nosso móbile interior sempre se comunica, porque estamos conversando com outras criaturas, como o Criador pode nos alcançar, como pode nos chamar ? Devemos purificar a nossa inteligência da sua curiosidade e do capricho dos seus planos para nos abrirmos completamente às graças de luz e força que Deus quer nos conceder abundantemente: “Pai, não se faça a minha vontade, mas a tua”. A indiferença inaciana é também uma forma de silêncio. IV O SILÊNCIO DE DEUS DIANTE DO FLAGELO DO MAL Para o homem de hoje, comparado com o tempo de Lutero e com a perspectiva clássica da fé cristã, as coisas, num certo sentido, viraram de cabeça para baixo; Isto é, não é mais o homem que acredita que precisa de justificação diante de Deus, mas antes ele pensa que é Deus quem deve justificar-se de todas as coisas horrendas presentes no mundo e da miséria dos seres humanos: todas as coisas que , em última análise, eles dependeriam dele. Bento XVI, Pela Fé. Doutrina da justificação e experiência de Deus na pregação da Igreja e nos Exercícios Espirituais. Entrevista inédita com Jacques Servais —Que relação existe entre o silêncio e o mal? Por que Deus é capaz de permanecer em silêncio diante de acontecimentos dolorosos? 272. – O mal coloca uma questão decisiva, um enigma impossível de resolver. Em nenhum momento da história houve alguém capaz de dar uma resposta satisfatória ao problema do mal. Em seu livro Acredite. Convite à fé católica para mulheres e homens do século XX , o teólogo Bernard Sesboüé escreve: «Quando nos perguntamos sobre o mal, não sabemos realmente o que nos perguntamos. Porque tentamos entender o que é incompreensível. O mal é o que é irracional por excelência, o que é irrecuperável, o que a razão não pode verdadeiramente explicar. A reflexão sobre o mal só pode ser modesta e nunca saciará completamente a nossa sede. O que podemos responder ao sofrimento e à morte de uma criança brutalmente arrancada do afeto dos pais? Porquê tantas vidas mutiladas nos gulags e campos de extermínio dos sistemas totalitários? Por que as crianças nascem com deficiências terríveis? Por que tantas doenças horríveis e tanto sofrimento injusto? Não há resposta para essas perguntas. Nunca poderemos afirmar: o véu foi levantado, a dor tem explicação. 273. – O homem é incapaz de esquadrinhar a imensidão do céu e as dezenas de milhões de galáxias. Mas pode descer às profundezas da dor mais inesperadas. Sua inteligência pode resolver problemas incríveis. As façanhas tecnológicas do nosso século parecem infinitas: o olho do homem acredita ter visto tudo. Ele esgotou as nascentes dos rios e “trouxe à luz as coisas mais escondidas” ( Jb 28, 11). Mas nunca iremos sondar e compreender o mistério do mal. A sabedoria pertence somente a Deus. A única certeza neste mundo está no silêncio interior, na piedade filial, confiante e abandonada. Muitas vezes enfrentamos o que poderíamos chamar de mal inocente, isto é, a realidade do mal inscrito na natureza das coisas, fora de qualquer responsabilidade humana. 274. – A terra que nos abriga e nos alimenta é uma força gigantesca em constante movimento. Muitas vezes ele mostra sinais de brutalidade cruel e implacável. Penso nas erupções vulcânicas que destruíram cidades inteiras. No ano 79 AC. C., uma poderosa erupção do Vesúvio enterrou completamente Pompéia sob um espesso manto de cinzas. E como deixar de mencionar os terramotos cujas consequências são ainda mais letais e devastadoras? Recordemos os terremotos de L'Aquila, na Itália, no dia 6 de abril de 2009; a do Haiti em 12 de janeiro de 2010; a do Nepal em 2015; os terríveis tsunamis na Indonésia e no Sri Lanka em 26 de dezembro de 2004, e no Japão em 11 de março de 2011, que engoliram edifícios e centenas de milhares de vidas humanas. Jamais esquecerei o tufão Haiyan (ou Yolanda), que devastou as Filipinas em novembro de 2013. Os homens são vítimas inocentes e indefesas destas forças cegas da natureza. A rebelião é ainda mais acentuada quando o sofrimento e as perdas humanas não são imputáveis a ninguém; A nossa lógica humana leva-nos imediatamente a questionar Deus. Por que ele permite tanta destruição e tanto sofrimento? 275. – Todos os dias o mal e o sofrimento nos atacam inesperadamente. Também sofremos os horrores do ódio e da violência selvagem tolerados, planeados e executados pela maldade dos homens e claramente instigados por Satanás. Diante do sofrimento, diante dos ataques do mal causados pela natureza ou pelo homem, só Deus pode nos ajudar a permanecer de pé. 276. – Os cristãos sabem que Deus não deseja o mal. E, se esse mal existe, Deus é a sua primeira vítima. O Mal existe porque o seu Amor não é recebido, um Amor ignorado, rejeitado e combatido. O mundo, com a sua harmonia e beleza, só pode ser fundado num diálogo de Amor em que Deus fala connosco e nós com Ele. Quando o mal fere a Deus, há uma ferida divina que devemos curar, uma ferida que Ele nunca cessa. apelar à nossa generosidade. Assim, todo o Cristianismo, todo o Apocalipse, desde o Gênesis, é o grito da inocência de Deus. Quanto mais monstruoso o mal, mais evidente se torna que Deus é, em nós, a primeira vítima. 277. – É difícil aohomem compreender o mal na medida em que não lhe atribui dimensões propriamente divinas. No seu livro Outra Visão do Homem, Maurice Zundel escreve: «E isso significa a Cruz: o mal pode ter proporções divinas. O mal é, em última análise, o sofrimento de Deus: no mal, Deus é quem sofre e por isso o mal é tão terrível; Mas, se Deus é quem sofre, no meio do mal encontra-se então o q amor que nunca deixará de nos acompanhar e de partilhar a nossa sorte, e que será ferido primeiro, dentro e por nós, como no Gólgota. É verdade que não é fácil imaginar como o nosso mal pode afetar Deus. O próprio Jó se perguntou: “Se pequei, o que faço contigo, guardião dos homens?” ( Jb 7, 20). Como o mal pode atingir Deus? Imagine uma mãe cujo filho está doente. Ele sofre por seu filho por amor e identificação. Uma mãe perfeitamente saudável pode experimentar a agonia do filho ainda mais dolorosamente do que ele, por causa dessa identificação de amor com a pessoa amada. Seu amor é capaz disso. Alguém pode pensar que o Amor de Deus é menos maternal que o amor de uma mãe, quando todo o amor de todas as mães, incluindo o da Santíssima Virgem, nada mais é do que uma gota no oceano da ternura materna de Deus? É por isso que nenhum homem recebe um golpe sem que Deus também o receba nele, antes dele e através dele. «Pode uma mulher esquecer o filho que amamenta, não ter pena do filho do seu ventre? Bem, mesmo que esqueçam, eu não esquecerei de você! Veja: gravei você nas palmas das minhas mãos, suas paredes estão sempre diante de mim. Os teus construtores apressam-se, os teus destruidores e saqueadores fogem de ti” ( Is 49, 15-17). 278. – Como o salmista, o homem de fé dirige-se a Deus para dizer: «Para ti, Senhor, meu Deus, os meus olhos olham, em ti procuro refúgio, não derrame a minha vida. Guarda-me da armadilha que me armaram, das armadilhas dos malfeitores” ( Sl 141, 8-9). Resisto porque Jesus Cristo, o Filho de Deus, «resplendor da glória e marca da sua substância, e sustentando todas as coisas com a sua palavra poderosa» ( Hb 1,3), precedeu-me nos sofrimentos mais atrozes. Jesus está unido aos homens porque é um deles e assumiu a sua condição, as suas provações, os seus sofrimentos. E ele está unido a Deus porque é seu Filho. Esta situação única de Jesus faz Dele o chefe da nova família humana, «primogênito entre muitos irmãos» ( Rm 8,29). Compartilhe nossas provações e suporte todos os sofrimentos. Desde a morte de Jesus na Cruz, o homem só pode colocar-se diante do mal ao Seu lado, apoiando-se firmemente Nele. Deve permanecer ao lado de Maria, a Virgem aos pés da Cruz, para completar-se na sua carne”. o que falta aos sofrimentos de Cristo em benefício do seu corpo, que é a Igreja” ( Cl 1,24). 279. – Os horrores dos homens e as obras do diabo são um mistério que a humanidade nunca poderá compreender plenamente. O mal físico ou moral é sempre injusto e infame. Ela degrada e destrói o homem. Mancha a imagem de Deus impressa no homem. 280. – O homem rebela-se contra o mal. Tente por todos os meios fazê-lo desaparecer. Diante do mal só há uma atitude: luta e resistência. É o que aconselha São Pedro: «Sede sóbrios e vigilantes, porque o vosso adversário, o diabo, como um leão que ruge, ronda à procura de alguém para devorar. Resisti-lhe, firmes na fé” ( 1Pd 5, 8-9). 281. – A oração deve ser uma forma de resistência para afastar as dificuldades. Permite que você vista a armadura de Deus. O homem humildemente recorre a Ele para intervir em seu favor. 282. – Como Cristo enfrentou o mal? Como Maria respondeu ao mal? Como reagiu a Virgem Maria ao contemplar o rosto desfigurado do seu Filho na Cruz? Diante de um flagelo tão brutal de ódio e violência, a Virgem fica sem energia. Ela está exausta, exausta, quebrada. Porém, María tem uma força interior imensa e permanece em pé e em silêncio. Refugia-se na oração, na oferta pessoal e na aceitação serena da misteriosa vontade de Deus em comunhão com o seu Filho. A mãe de Deus ama um Deus que não faz barulho e que consome a violência humana no fogo do seu Amor misericordioso. É então que ouve o Filho implorar a Deus: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” ( Lc 23, 34). A união do seu silêncio com as orações do Céu permite-lhe permanecer de pé junto à Cruz. María não se rebela, não grita. Assuma o sofrimento através da oração. Jesus não se preparou para viver a Paixão com uma noite de oração no jardim do Getsêmani e com muitas outras noites, na solidão da montanha ou isolado num lugar deserto? 283 – Só Cristo pode conceder ao homem forças para enfrentar e assumir o mal. Aparece diante dele como o único poder capaz de ajudá-lo a superar o sofrimento. “Sem mim nada podeis fazer” ( Jo 15, 5). Pela força da Cruz ele tem o poder de salvar o homem. O grito mais lindo que existe é um impulso de amor para com Deus. O sofrimento é muitas vezes a expressão de um amor imenso. É redentor. O sofrimento e a dor indicam que estamos vivos e orientam o médico com mais certeza para o diagnóstico. É preciso aceitar o sofrimento e acolhê-lo em silêncio. Não há injustiça no mundo que não encontre resposta orante em Deus. Sei que é difícil enfrentar o sofrimento e aceitá-lo. Eu sei que é difícil aceitarmos o sofrimento. Voltamo-nos para Deus e clamamos: Por que este cálice? Por que tantos horrores e tanta violência selvagem? 284. – Deus não quer o mal. Deus não quer guerra. Deus não quer morte ou sofrimento. Deus não quer injustiça. E ainda assim permite todos esses males da terra. Por que esse mistério? O Pai quer que assumamos a totalidade da nossa vida na terra. E o mal faz parte da condição humana. Ele queria que seu próprio filho sofresse a experiência do mal mais abjeto pela redenção e salvação do mundo. —Existe esta alternativa: a rebelião ou o silêncio da oração? 285. – Deus sempre cuida de nós. O homem pode viver as noites mais escuras, sofrer os piores ferimentos, enfrentar as situações mais trágicas: Deus está com ele. O homem muitas vezes esquece que Deus está presente. Se você não acredita, você pensa que Deus não existe. Se esta época e este ambiente secularizado enfraqueceram a sua fé, você se desespera pensando que Deus o abandonou. Mas o Pai permanece com ele apesar de toda rejeição possível. p p j p 286. – O homem prepara-se contra o mal reunindo todos os meios necessários para se defender. A sua forma de agir é justificada, mas por vezes causa danos maiores. A nossa verdadeira grandeza reside na humildade da fé: quanto mais pura a nossa fé, mais profunda ela é e mais nos aproxima de Deus, infinitamente grande. Quem está próximo de Deus torna-se forte: pode derrotar o mal que corrói o mundo e é até capaz de integrá-lo na sua oração intercessória. 287. – O silêncio e a oração não são uma deserção, mas as armas mais poderosas contra o mal. O homem quer fazer, quando antes de tudo deveria ser. Na oração silenciosa o homem é plenamente homem. É como se David enfrentasse Golias. Porque a oração é o ato mais nobre, mais sublime e mais sólido, e eleva o homem à altura de Deus. 288. – A oração é entregar-se a Deus como o aroma do incenso que sobe até o Trono de Deus para desaparecer Nele. E Deus se entrega a quem se entrega a Ele. Sei que, no mais tranquilo do meu coração, posso aproximar-me muito intimamente de Deus, quaisquer que sejam as circunstâncias e quaisquer sofrimentos que o mal me imponha. São João Maria Vianney, homem do silêncio, grande pastor das almas, inteiramente dedicado à Palavra de Deus e ao Mistério da Reconciliação, cujo rosto foi transfigurado pela Eucaristia, deixa-nos a mais sublime definição de oração: “Considerai-vos, filhos meus. : o tesouro do homem cristão não está na terra, mas no céu. Por esta razão, nossos pensamentos devem estar sempre orientados para onde está o nosso tesouro. O homem tem um lindo dever e obrigação: orar e amar. Se você orar e amar, terá encontrado a felicidade neste mundo. »Aoração nada mais é do que a união com Deus. Todo aquele que tem o coração puro e unido a Deus experimenta em si uma suavidade e uma doçura que intoxica, sente-se rodeado de uma luz admirável. Nesta união íntima, Deus e a alma são como dois pedaços de cera fundidos num só, que ninguém consegue separar. Esta união de Deus com a sua É pobre criatura é algo muito bonito; É uma felicidade que ultrapassa a nossa compreensão. »Tínhamo-nos tornado indignos de rezar, mas Deus, pela sua bondade, permitiu-nos falar com Ele. A nossa oração é o incenso que mais lhe agrada. »Meus filhos, o vosso coração é pequeno, mas a oração o expande e o torna capaz de amar a Deus. A oração é um gostinho antecipado do Céu, faz descer até nós uma parte do paraíso. Nunca nos deixa sem doçura; É como o mel que se derrama na alma e adoça tudo. Na oração feita corretamente, as tristezas derretem como a neve diante do sol. 289. – O silêncio não é uma forma de passividade. Ao permanecer em silêncio, o homem pode evitar um mal maior. Confiar no Céu não é abandonar a terra. -Claro que não. Mas como permanecer calado diante da injustiça? Como não gritar a nossa incapacidade de compreendê-lo e a nossa rebelião? 290. – Ao querer dominar tudo, ao colocar tudo sob o signo da rebelião, o homem corre o risco de não colocar nada nas mãos de Deus. Ele se vê sozinho diante de seus limites e de seu desamparo. Porém, o homem, sem Deus, está perdido. Sem uma fé vivida num silêncio confiante, afasta-se do seu Deus e do seu Redentor. 291. – Sem Deus é fácil ver o completo fracasso dos debates humanos e das soluções políticas para o mal… Qual é a pedagogia de Deus? Na parábola do trigo e do joio, Cristo nos convida a deixar crescer o trigo e o joio até o momento da colheita. Então chegará o momento em que o bem acabará com o mal. A paciência perseverante, sustentada pela Providência, é uma aliada em qualquer uma das nossas batalhas diárias. A luta contra o mal é travada com o tempo; Você tem que perseverar e não perder a esperança. Deus trabalha os corações e o mal nunca tem a última palavra. Na noite mais escura, Deus age em silêncio. Devemos entrar no tempo de Deus e naquele grande silêncio que é silêncio de Amor, de confiança e de abandono q ativo. Nunca esqueçamos que a oração silenciosa é o ato mais sólido e seguro na luta contra o mal. 292. – Na luta contra a injustiça, Deus deve ser incluído. Gosto de dizer que as nossas verdadeiras armas são o amor e a oração. O silêncio da oração é o melhor equipamento de combate. O silêncio da invocação, o silêncio da adoração, o silêncio da espera: estas são as armas mais eficazes. Só o Amor é capaz de apagar as chamas da injustiça, porque Deus é Amor. Amar a Deus é tudo. O resto não tem valor até que seja transformado e elevado pelo Amor de Cristo. A escolha é simples: Deus ou nada… 293. – O homem moderno pretende tornar-se senhor do seu tempo, único responsável pela sua existência, pelo seu futuro e pelo seu bem-estar. Você quer planejar sua vida e controlar seu destino. Está organizado como se Deus não existisse. Ele não precisa de Ele. Contudo, Deus convida à confiança, à paciência e a um caminho lento para a aniquilação do mal, o que exige uma longa e árdua batalha. Este combate exige quatro colunas estabelecidas em Deus na Fé: silêncio, oração, penitência e jejum. —A rebelião é uma armadilha que nos obriga a optar sempre pelo silêncio? Sem dúvida, a sua experiência contra o regime marxista violento e autoritário na Guiné alimenta a sua reflexão sobre este tema. Qual caminho você escolheu contra o ditador Seku Turé? 294. – O homem de Deus nunca aspira a cargos políticos. Não aspira a nenhuma transformação política nem incita à derrubada do poder estabelecido. A sua missão é essencialmente moral e espiritual, e procura a renovação interior do homem, o Amor a Deus e ao próximo. No entanto, dadas certas tendências ideológicas, não se pode permitir que o mal avance. Na Guiné pensei que era necessário chamar pelo nome os horrores e escândalos derivados da ditadura, mas não quis instigar a rebelião. A minha intenção era denunciar as injustiças do regime sanguinário de Seku Turé e apontar o dedo ao sofrimento do g p povo e, sobretudo, ao desastre económico e social. O país alcançou a sua independência, mas a população, encurralada e presa pelas cadeias do medo e da ignorância, foi privada da sua liberdade. Pedi uma mudança para o bem de todos, dos governantes e dos governados. Porque o meu país possui as riquezas humanas e naturais necessárias para fazer felizes as suas crianças e ajudá-las a viver com dignidade. Eu sabia que as minhas palavras teriam tanto mais força quanto mais estivessem alicerçadas numa vida intensa de penitência, oração e silêncio, enraizada e vivida em Deus. Às vezes, os ditadores estão sinceramente convencidos de que estão fazendo a coisa certa. Aleksandr Solzhenitsyn explica esplendidamente como os líderes soviéticos tinham a convicção de que conduziam o país para o paraíso terrestre. A má formação da sua consciência e uma orientação errada da sua inteligência fizeram Seku Turé acreditar que estava a trazer progresso e prosperidade à Guiné. 295. – A ajuda da oração silenciosa torna o homem capaz de descrever a realidade em toda a sua dureza. Devemos afirmar os princípios do Evangelho depois de termos encontrado Deus no silêncio. Só será legítimo ao homem de Deus falar em Seu nome depois de tê-lo encontrado no silêncio do deserto interior e conversado com Ele face a face, “como quem fala com um amigo” (Ex 33 , 11). Quando Deus foi verdadeiramente encontrado, é impossível comprometer o Evangelho e os preceitos da Revelação divina com as posições políticas e ideológicas de um mundo que se rebela contra as leis de Deus e da natureza. 296. – Longe do barulho e das distrações fáceis, na solidão e no silêncio, com o único desejo de transmitir a vontade divina, ser-nos-á concedido ver com os olhos de Deus e nomear a realidade tal como Ele a entende e a pronuncia. 297. – Não há ação verdadeira ou decisão importante que não seja precedida do silêncio da oração. j p 298. – O perigo actual reside no activismo desenfreado do mundo moderno. Somos constantemente chamados a lutar, a fazer campanha, a derrubar o adversário, a destruí- lo. Na verdade, o homem é encorajado a acrescentar mais mal ao mal, quando o joio e o trigo deveriam crescer. O silêncio nos dará paciência para esperar o momento em que o joio morra sozinho. Graças ao silêncio saberemos acompanhar o tempo e esperar com perseverança a hora de Deus para estabelecer uma aliança com Ele e agir sob a Sua liderança. 299. – Há tempo de lutar e tempo de calar. Se realmente dominássemos a pedagogia do silêncio que vem de Deus, teríamos algo da paciência do Céu. 300. – O diabo convida a humanidade à rebelião e à desordem. Com sua astúcia, ele semeia a discórdia e nos incita a derramar nosso ódio uns sobre os outros. A garra está sempre fazendo barulho e muito barulho para nos impedir de descansar em Deus. Dentro da fortaleza do silêncio o diabo não saberá como chegar até nós. Procuremos não multiplicar os erros satisfazendo as nossas pequenas paixões egoístas e rebeldes. 301. – Diante da injustiça da sua prisão, Cristo permanece em silêncio. Os apóstolos querem desembainhar a espada para defender o filho de Deus. Mas Jesus diz a Pedro: “Embainha a tua espada. Não vou beber o cálice que o Pai me deu? ( Jo 18, 11; Mt 26, 52). 302. – A Igreja não deve acreditar que a eficácia face à injustiça reside na acção militante, política e demagógica. As batalhas humanas só levam ao confronto, à destruição e à ruína. Eles não são nada comparados ao silêncio infinito do Pai. —Para enfrentar os males do mundo, o Papa Francisco convida a Igreja a ser um hospital de campanha. Como interpretar esta imagem na perspectiva da nossa reflexão sobre o silêncio? 303. – Seria necessário diferenciar a intuiçãomas na augusta clareza da visão interior, no movimento furtivo das decisões, no sacrifício oculto e na abnegação; isto é, quando o coração, tocado pelo amor, convoca a liberdade do espírito para entrar em ação, e seu ventre é fecundado para dar frutos. Os poderes silenciosos são os verdadeiramente criativos. Pois bem, para o mais silencioso dos acontecimentos, para o qual no mais profundo silêncio e longe de todo ruído vem de Deus, queremos agora dirigir o nosso olhar. ROMANO GUARDINI, O Senhor -Nicolas DIAT: Na Voix cartusienne [Voz Cartuxa], o cartuxo Dom Augustin Guillerand diz eloquentemente que “a solidão e o silêncio são hóspedes da alma. A alma que os possui os carrega consigo para todos os lugares. Quem não os possui não os encontrará em lugar nenhum. Para entrar no silêncio não basta parar o movimento dos lábios e o movimento dos pensamentos. Não se trata de ficar em silêncio. Estar em silêncio é uma condição do silêncio, mas não é silêncio. O silêncio é uma palavra, o silêncio é um pensamento. É uma palavra e é um pensamento que reúne todas as palavras e todos os pensamentos. Como devemos entender esta ideia esplêndida? CARDEAL ROBERT SARAH 1. – A questão fundamental é a seguinte: como pode o homem ser realmente imagem de Deus? O homem tem que entrar em silêncio. Envolvendo-se no silêncio tal como Deus, que habita num grande silêncio, o homem aproxima-se do Céu; ou melhor, deixe Deus se manifestar nele. Só encontramos Deus no silêncio eterno em que ele vive. Você já ouviu a voz de Deus da mesma forma que ouve a minha? A voz de Deus é silenciosa. Na verdade, o homem também deve tender ao silêncio. Referindo-se a Adão no paraíso, Santo Agostinho disse: “ Vivebat fruens Deo, ex quo bono erat bônus – Vivia desfrutando de Deus, com cujo bem era bom”. Vivendo com Deus e no Deus silencioso também nos calamos. No seu livro Quero Ver Deus, o Padre Marie- Eugène escreve: «Para o espiritual que provou Deus, o silêncio e Deus parecem identificar-se, porque Deus fala no silêncio, e só o silêncio parece poder exprimir Deus. Portanto, para encontrar Deus, aonde ir senão às profundezas mais tranquilas de si mesmo, àquelas regiões tão escondidas que nada pode perturbá-las? Quando os alcança, preserva, com zelo cuidado, aquele silêncio que Deus dá. “Defende-o contra toda agitação, até mesmo dos seus próprios poderes.” 2. – No coração do homem existe um silêncio inato, porque Deus vive no mais íntimo de cada pessoa. Deus é silêncio e esse silêncio divino vive no homem. Em Deus estamos inseparavelmente ligados ao silêncio. A Igreja pode afirmar que a humanidade é filha de um Deus silencioso, porque os homens são filhos do silêncio. 3. – Deus nos sustenta e, se permanecermos em silêncio, viveremos com Ele em todos os momentos. Nada nos permitirá descobrir melhor Deus do que o seu silêncio gravado no centro do nosso ser. Como encontraremos Deus se não cultivarmos esse silêncio? O homem gosta de viajar, de criar, de fazer grandes descobertas; e permanece fora de si mesmo, longe de Deus, que vive silenciosamente em sua alma. Quero lembrar a importância de cultivar o silêncio para estar verdadeiramente com Ele. Citando o livro do Deuteronômio, São Paulo explica que não encontraremos Deus cruzando os mares, porque Ele está em nossos corações: «Não diga em seu coração: quem vai até o mar? Querido? –isto é, descer a Cristo–; ou quem descerá ao abismo?, isto é, para ressuscitar Cristo dentre os mortos. O que diz, em vez disso? A palavra está perto de você, na sua boca e no seu coração. Refere-se à palavra de fé que pregamos. Porque se com a tua boca confessares: Jesus é Senhor , e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo” ( Rm 10, 6-9; Dt 30, 12-14. 16). 4. – As graças divinas são derramadas sobre o homem através da Sagrada Escritura ouvida e meditada em silêncio. É na fé, e não viajando para países distantes ou atravessando mares e continentes, que podemos encontrar e contemplar Deus. Na realidade, chegaremos a Deus examinando as Sagradas Escrituras durante horas e horas depois de termos resistido aos ataques do Príncipe deste mundo. Dom Augustin Guillerand não segue o caminho errado: o que os homens possuem dentro de si não encontram em lugar nenhum fora. Se o silêncio não habita no homem, se a solidão não é o estado em que esse silêncio se deixa forjar, a criatura fica privada de Deus. Não há outro lugar no mundo onde Ele esteja mais presente do que no coração humano. Esse coração é a verdadeira morada de Deus, o templo do silêncio. 5. – Nenhum profeta jamais encontrou Deus sem se refugiar na solidão e no silêncio. Moisés, Elias e João Batista encontraram Deus no silêncio do deserto. Também hoje os monges buscam a Deus na solidão e no silêncio. Não me refiro apenas a uma solidão ou a um movimento geográfico, mas a um estado interno. Também não é suficiente permanecer em silêncio. Você tem que ficar em silêncio. E Deus se encontra no homem antes no deserto, antes na solidão e no silêncio. O autêntico deserto está dentro de nós, na nossa alma. Se entendermos assim, podemos compreender que o silêncio é essencial para encontrar Deus. O Pai espera os seus filhos nos seus próprios corações. 6. – É preciso sair do tumulto interior para encontrar Deus. Apesar da turbulência, dos negócios, dos prazeres fáceis, Deus permanece silenciosamente presente. Está dentro de nós como pensamento, palavra e presença cujas fontes secretas estão escondidas Nele, inacessíveis ao olhar dos homens. A solidão é o melhor estado para ouvir o silêncio de Deus. Para quem quer encontrar o silêncio, a solidão é a montanha que deve ser escalada. Quando um homem se isola num mosteiro, o que procura acima de tudo é o silêncio. E ainda assim o objeto de sua busca está dentro dele. A presença silenciosa de Deus já vive em seu coração. O silêncio que buscamos de forma confusa é encontrado em nossos próprios corações e nos revela Deus. Infelizmente, as forças mundanas que procuram moldar o homem moderno eliminam metodicamente o silêncio. Não hesito em afirmar que os falsos sacerdotes da modernidade que travam uma certa forma de combate com o silêncio perderam a batalha. Porque se pode continuar em silêncio no meio das maiores desordens, da mais abjeta agitação; no meio da agitação e dos uivos dessas máquinas infernais que convidam ao funcionalismo e ao ativismo, arrancando-nos de toda dimensão transcendente e de toda vida interior. —Para muitos místicos, a fecundidade do silêncio e da solidão é semelhante à da palavra proferida na criação do mundo. Como você explica esse grande mistério? 7. – A palavra não é apenas um som: é uma pessoa e é uma presença. Deus é a palavra eterna, o logos . É o que afirma São João da Cruz nas suas Notificações Espirituais quando escreve: “O Pai falou uma palavra, que era seu Filho, e esta palavra fala sempre no silêncio eterno, e no silêncio deve ser ouvida pela alma”. O Livro da Sabedoria inicia esta mesma interpretação quando se refere ao modo como Deus intervém para libertar o povo eleito do cativeiro no Egito. Esta ação inesquecível ocorreu durante a noite: “Quando um silêncio sereno envolveu tudo e a noite estava no meio do seu curso, a tua Palavra onipotente foi libertada dos tronos reais” ( Sabedoria 18, 14-15). Mais tarde, a tradição litúrgica cristã compreenderá este versículo como uma prefiguração da Encarnação silenciosa do Verbo Eterno no portal de Belém. O hino da Apresentação do Senhor no templo também canta este Advento: “Isto que aqui começa sem barulho, a oferta de cereais em troca de frutos, qual de nós pode entender?” Nas suas Homilias sobre o Evangelho de São Mateus, São João Crisóstomo não hesita em recomendar fortemente: «Vemos que Jesus veio de nós e da nossa substância humana, e que nasceu de uma mãe virgem: mas não compreendemos como esse prodígio poderia ter sido realizado. Não nos cansemosgenuína do Papa Francisco, generosa e essencialmente pastoral, da hermenêutica secular e reducionista dos meios de comunicação. Infelizmente, esta oposição não é nova. Em relação ao Vaticano II, Bento XVI já denunciou o conflito entre a visão dos Padres Conciliares e a hermenêutica mediática relativista e falsamente progressista. No entanto, deve-se reconhecer que esta expressão é um hapax legomenon na história da eclesiologia e das imagens da Igreja. A Igreja é uma mãe amorosa e fiel. É uma mãe diante de uma estrutura hospitalar. É o Corpo de Cristo, a Noiva de Cristo. Representa o teto sob o qual a família de Deus se reúne. Educa, ensina e alimenta, desejoso da saúde física e moral dos fiéis: é isso que esconde sobretudo a imagem da Igreja como hospital de campanha. É o corpo místico de Cristo e a família de Deus na terra. Mater et Magistra: a Igreja ensina com total segurança as verdades divinas a um mundo que tem sede do Filho de Deus, caminho, verdade e vida, e redentor das nossas almas. É uma assembleia de oração, louvor e adoração, tal como no cenáculo: “Todos perseveraram unanimemente na oração, juntamente com algumas mulheres e com Maria, a mãe de Jesus, e seus irmãos” (Atos 1:14 ). Maria é, portanto, "um membro excelente e inteiramente único da Igreja e um tipo e exemplo mais completo da mesma na fé e na caridade" ( Lumen gentium, 53). Ela é, em suma, a mãe dos sacerdotes, que deve continuar a obra de Cristo pela salvação das almas. Este trabalho consiste essencialmente em santificar- se e ao povo de Deus, em rezar intensamente e sem desfalecer para conduzir os homens a Deus, para viver plena e diariamente Nele na Eucaristia. Sem a Eucaristia não podemos viver nem dar a Deus o primeiro lugar nas nossas vidas e nas nossas atividades. Ao silêncio da indiferença, os sacerdotes e os fiéis devem responder com o silêncio da oração. A doença do desinteresse cura-se com os sacramentos, com o ensino e com o testemunho dos santos. 304. – A missão social é fundamental, mas a salvação das almas é mais importante que qualquer outro esforço. Salvar não é apenas curar, mas trazer Deus, convertendo, para devolver os filhos pródigos à casa do Pai das misericórdias. O papel primário e fundamental da Igreja hoje continua a ser a salvação das almas. 305. – Num mundo secularizado e decadente, se a Igreja se deixa levar pelas sereias materialistas, mediáticas e relativistas, corre o risco de tornar inútil a morte de Cristo na Cruz para a salvação das almas. A missão da Igreja não é oferecer soluções para todos os problemas sociais do mundo: deve repetir incansavelmente as primeiras palavras de Jesus no início do seu ministério público na Galileia: «Chegou a hora e o Reino de Deus está próximo. mão; converta-se e creia no Evangelho” ( Marcos 1, 15). 306. – Penso que a Igreja não pode ignorar os assuntos que afetam a vida e a existência dos homens. Através das suas escolas e universidades, dos seus dispensários e hospitais, dos seus institutos de formação profissional, das suas numerosas obras de caridade, participa activamente na luta contra a pobreza. Ele trabalha para que “não seja um escândalo para a humanidade que alguns países, geralmente aqueles com uma população significativamente majoritária cristã, gozem de opulência, enquanto outros sejam privados das necessidades da vida e vivam atormentados pela fome, doenças e todos os tipos de misérias. O espírito de pobreza e de caridade são glória e testemunho da Igreja de Cristo” ( Gaudium et Spes, 88). 307 – A ausência de Deus nas sociedades modernas aprofundou o abismo das trevas e da injustiça. Tudo o que Deus espera de nós é o nosso consentimento, a nossa resposta amorosa ao seu Amor redentor. 308. – A indiferença para com Deus constitui a raiz de uma forma ruidosa de rebelião. Esta rebelião é uma ilusão que consiste em acreditar que podemos passar sem Ele para viver melhor neste mundo. A partir daí, o silêncio de Deus torna-se um aliado quase objetivo, uma prova tangível de uma humanidade sem Criador. Ao defender a sua autonomia face ao divino, o homem moderno acaba por não tolerar sequer o silêncio de Deus. Na rebelião não há lugar para o silêncio: temo que a interpretação mediática da visão do hospital de campanha participe nesta forma de rebelião. 309. – Antes de acusar os outros, é aconselhável olhar para si mesmo. Temos uma capacidade infinita de atirar uma pedra na cara do próximo. Faríamos melhor se assumissemos nossas próprias falhas. Na oração e no silêncio nosso coração brilha muito menos do que no frenesi cego e autista da rebelião. —Como não nos rebelarmos contra as guerras que mancham de sangue a humanidade? Por que Deus fica em silêncio diante de tantos crimes? Porquê este silêncio ensurdecedor enquanto tantas crianças são massacradas no meio de conflitos implacáveis? 310. – A guerra é sempre um empreendimento inaceitável de destruição, aniquilação e devastação. O outro deixa de ter valor: torna-se simples matéria condenada à morte. Quando um país, um governo ou uma coligação quer subjugar e eliminar homens e nações, a barbárie está sempre próxima. O ódio, os interesses invejosos, a bulimia das nações ricas e poderosas para monopolizar as riquezas naturais dos países fracos e pobres através da violência militar, o desejo de dominação e de vingança estão na origem de muitas guerras. O outro perde o direito de viver. Sim, a guerra é uma empresa maligna, porque o diabo, que odeia a misericórdia, tem o prazer de triunfar. É impossível não ficar chocado, não ficar horrorizado com o que os governos americano e ocidental estão a fazer no Iraque, na Líbia, no Afeganistão e na Síria. Países e populações destruídos, chefes de estado assassinados por interesses puramente económicos. Em nome da deusa Democracia, do desejo de hegemonia geopolítica ou militar, não hesitamos em iniciar uma guerra para desestruturar e gerar o caos, especialmente nas regiões mais fracas, enchendo as estradas com multidões intermináveis de refugiados sem recursos nem futuro. . Quantas famílias separadas, destruídas, reduzidas a uma pobreza desumana, forçadas ao exílio e ao desenraizamento cultural! Quanto sofrimento nessas vidas de constantes peregrinações e fugas, quantas mortes atrozes em nome daquela outra deusa do Ocidente, a Liberdade! Quanto sangue foi derramado por uma suposta libertação do povo das supostas cadeias que o mantêm sob o jugo da opressão! Quantas famílias dizimadas pela imposição de uma noção ocidental de sociedade! A Igreja não está livre destas antecâmaras de horror. É forçada a desaparecer ou a mudar a sua doutrina e ensino para facilitar o surgimento de uma religião sem fronteiras e de uma nova ética mundial que chamam de consensual, separada das referências sólidas da verdade revelada e, ao mesmo tempo, ambivalente e privada de contente. 311. – Por que Deus se cala diante de tantos sofrimentos desejados, planejados e postos em prática pelos próprios homens? Em África testemunhei as atrocidades mais indescritíveis. No meu arcebispado dei refúgio a missionários e religiosos que fugiam da Serra Leoa e da Libéria, países assolados por conflitos de violência sem precedentes. Chegaram aterrorizados ao ver mãos mutiladas, corpos destruídos pelas minas, rostos dilacerados por carrascos desprovidos de toda a humanidade. Durante vários meses recebi em minha residência o Arcebispo de Freetown, Monsenhor Joseph Ganda, o Núncio Apostólico Monsenhor Antonio Lucibello e seu secretário. Foram forçados a fugir de Freetown, capital da Serra Leoa, depois de abandonarem Monróvia. São memórias indeléveis. Mas nunca ocorreu a ninguém, nem por um momento, atribuir estes crimes a Deus, proclamar a inocência dos criminosos e acusar Deus de silêncio. 312. – Acredito que você deve sempre clamar a Deus. É oportuno pedir ajuda e socorro ao Céu e expressar a angústia, a dor e a tristeza que habitam os nossos corações. Os cristãosdevem saber que não há outro caminho para chegar a Deus. Quando visitei países imersos em crises profundas e violentas, vi quanto a oração pode ajudar aqueles que ficaram sem nada. O silêncio é a última trincheira que ninguém pode atravessar, o único espaço para encontrar a paz, o estado em que o sofrimento baixa os braços por um momento. O silêncio fortalece nossa fraqueza. O silêncio nos dá paciência. O silêncio em Deus restaura a coragem. Quando nos destroem, nos humilham, nos menosprezam, nos caluniam, fiquemos calados. Escondamo-nos no santo sepulcro de nosso Senhor Jesus Cristo, longe do mundo. Então o poder dos algozes perde importância. Embora os criminosos sejam capazes da destruição mais feroz, eles não podem forçar a entrada do silêncio, do coração e da consciência do homem. As batidas de um coração silencioso, a esperança, a fé e a confiança em Deus permanecem inabaláveis. Lá fora o mundo desmorona em ruínas, mas dentro da nossa alma Deus observa no maior silêncio. A guerra, a barbárie e o seu cortejo de horrores nunca derrotarão Deus, presente em nós. O veneno da guerra extingue-se no silêncio da oração, no silêncio da confiança, no silêncio da esperança. Devemos plantar o mistério da Cruz no coração de toda a barbárie. Penso também nas guerras travadas pela calúnia e pela difamação. A palavra pode matar, a linguagem pode matar, mas Deus nos educa no perdão. Ensina-nos a orar pelos nossos inimigos. Cerque nossos corações com uma cerca de ternura para evitar que o ressentimento os manche. E murmura incessantemente: «Os discípulos do meu Filho amado não têm inimigos. Nem seu coração deve ter inimigos. Falo por experiência própria. Vivi um doloroso assassinato pelas mãos da calúnia, da difamação e da humilhação pública, e aprendi que, quando uma pessoa decide destruir você, não precisa de palavras, nem de crueldade, nem de hipocrisia: a mentira tem um poder imenso na hora. • desenvolver argumentos, evidências e verdades falsas. Quando este comportamento parte de homens da Igreja e, especialmente, de bispos ambiciosos e falsos, a dor é ainda mais profunda. Mas os homens olham para as aparências e Deus olha para o coração ( 1Sm 16, 7). Tenhamos apenas em conta o seu olhar e permaneçamos calmos e silenciosos, pedindo a graça de não permitir que o ressentimento, o ódio e os sentimentos mesquinhos nos invadam. Permaneçamos firmes no amor de Deus e da sua Igreja, firmes na humildade. A chave do tesouro não é o tesouro. Mas, se entregarmos a chave, entregamos o tesouro. A Cruz é uma chave especialmente valiosa, mesmo quando parece uma loucura, motivo de ridículo, de escândalo: é repugnante à nossa mentalidade e à nossa busca de soluções fáceis. Gostaríamos de ser felizes e viver num mundo de paz sem pagar nenhum preço em troca. A Cruz é um mistério incrível. É o sinal do Amor infinito de Cristo por nós. Num sermão de São Leão Magno sobre a Paixão encontramos estas palavras extraordinárias: «Quando Cristo for elevado, caríssimos, na Cruz, não vos limiteis a ver Nele a única coisa que viram os ímpios, aqueles a quem Moisés se dirige quando diz: Sua vida estará como que suspensa diante de seus olhos e você temerá dia e noite e eles não acreditarão em sua vida. A nossa alma, iluminada pelo Espírito da verdade, recebe com liberdade e pureza de coração a glória que a Cruz irradia no Céu e na terra, e compreende com acuidade interior o que o Senhor disse ao falar da proximidade da sua paixão.: agora vem a condenação deste mundo; Agora o senhor deste mundo será expulso. E eu, quando for elevado acima da terra, atrairei todos para mim. Oh, admirável poder da Cruz! Oh, glória inefável da paixão! 313. – Na Cruz, Jesus nos reconciliou com Deus: destruiu a barreira que nos separava uns dos outros, superou os obstáculos que impediam a bem-aventurança eterna. Cristo sofreu por nós: deixa-nos o seu exemplo para que possamos seguir os seus passos. Contemplando a Cruz e fazendo nossa esta oração, seremos capazes de qualquer diálogo, de qualquer perdão, de qualquer reconciliação. A tradição do Islão místico partilha esta mesma convicção. Gostaria de lhes contar algo extraído da lenda dourada dos santos muçulmanos. Um dia, Suturá, uma boa mulher, foi visitar Tierno Bokar, o sábio de Bandiagara: esta aldeia do Mali está situada no planalto do mesmo nome, rodeada de altas falésias, ao pé das quais vivem os Dogon, um povo famoso por sua arte austera, sua cosmogonia complexa e seu profundo senso de transcendência. «Terno –disse-lhe Sutúrá–, estou muito irritado. Isso me incomoda, mesmo que minimamente. Gostaria de receber de você uma bênção ou uma oração que me torne doce, gentil e paciente. Ela ainda não havia terminado de falar quando seu filho, um menino de três anos que a esperava no quintal, pegou uma tábua e bateu em suas costas. Ela olhou para o menino, sorriu e, puxando-o para si, disse, dando-lhe um tapa carinhoso: “Que menino mau! Olha como ele trata a mãe..." “Se você está tão irritado, por que não fica bravo com seu filho?”, perguntou-lhe Tierno Bokar. “Se ele não for mais que uma criança”, respondeu Sutura. Ele não sabe o que está fazendo. “Com uma criança desta idade ninguém vai ficar bravo.” «Vá para casa, querido Suturá – disse-lhe Tierno – e, quando alguém te irritar, lembre-se da mesa e pense: “Não importa quantos anos ele tenha, essa pessoa está agindo como uma criança de três anos”. Seja misericordioso: você consegue, pois acabou de perdoar seu filho quando ele bateu em você daquele jeito. Faça isso e você nunca mais ficará com raiva. Você viverá feliz e se sentirá melhor. As bênçãos que virão sobre você serão muito maiores do que aquelas que você pode receber de mim: serão as bênçãos de Deus e do próprio Profeta. Quem suporta e perdoa uma ofensa – continuou – é como uma daquelas grandes ceibas que se sujam ao pousar nos galhos. A aparência nojenta da árvore dura apenas parte do ano. Todo inverno, Deus envia algumas chuvas que a limpam do topo às raízes e a cobrem com folhagem nova. Tente esbanjar o amor que você sente por seu filho em todas as criaturas de Deus. Porque Deus ama as suas criaturas como um pai ama os seus filhos. Então chegarás ao topo da escala, onde, graças ao amor e à caridade, a alma só vê e valoriza a ofensa para melhor perdoá-la. As palavras de Tierno significaram tanto para Suturá que, a partir daquele dia, ela considerou como seus filhos todos aqueles que a ofendiam e respondeu-lhes apenas com doçura, amor e paciência silenciosa e sorridente. Ele mudou tanto que, no final da vida, as pessoas diziam: “Paciente como Sutura”. Nunca houve nada capaz de irritá-la novamente. Quando ela morreu, ela era praticamente considerada uma santa. 314. – A Cruz é uma grande escola de contemplação, oração e perdão. Precisamos aprender a permanecer em silêncio aos pés da Cruz, contemplando o crucificado como a Virgem Maria. A Cruz é uma montanha que devemos escalar, no topo da qual podemos olhar os homens e o mundo com os olhos de Deus. Diante de ofensas graves que parecem imperdoáveis, o ato de fé leva o homem a contemplar o mistério do Calvário. Então ele consegue ver no fato da Paixão de Jesus a maior ofensa possível, mas também o lugar do maior perdão. No silêncio do coração, ele escuta a oração de Jesus, tão difícil de traduzir em obras concretas sem a ajuda da graça divina: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” ( Lc 23, 34). —Na Bíblia, e em particular no Antigo Testamento, abundam as guerras e os episódios fratricidas. O silêncio vai mal com esses interesses vingativos... 315. – O Antigo Testamento é a expressão mais realista, verdadeira e autêntica da verdade do coração humano. Enquanto o homem continuar a ser rude e indócil, enquanto continuar longe de um Deus de misericórdia e misericórdia, enquanto não for transformado, «gerado de novo, não de uma semente corruptível, mas incorruptível, através do Palavra viva e permanentede Deus." » ( 1 Ped 1, 23), ele se mostrará violento, bárbaro e implacável para com o inimigo. Existe alguém hoje que ousa dizer que ama o seu inimigo e age no seu interesse e para o seu bem? Ainda mantemos o espírito e a conduta dos homens do Antigo Testamento. E “não há nada de novo sob o sol”, diz Qoheleth em Eclesiastes (1, 9). Muitos cristãos e muitos homens pisoteados pela selvagem perseguição e violência dos ímpios vivem a experiência do Senhor Jesus «nos dias da sua vida na terra». O Salmo 22 que recitamos no serviço de leitura da Sexta-Feira Santa é expressão da nossa própria experiência diante da morte: Meu Deus, meu Deus, por que você me abandonou? Você está longe da minha salvação, das minhas palavras suplicantes. Meu Deus, eu te invoco de dia e você não me escuta; à noite, e não consigo descansar. Mas você é o Santo, sentado entre os louvores de Israel. Nossos pais depositaram sua esperança em Ti; Eles esperaram e você os libertou. Eles clamaram a Ti e foram salvos, Eles confiaram em Ti e não se envergonharam. Mas eu sou um verme, não um homem, a censura dos homens, o desprezo do povo. Quando me veem, todos zombam de mim, torcem os lábios, balançam a cabeça: “Ele confiou no Senhor: que Ele o salve, que o livre, se o ama”. Você me tirou do ventre, me confiou aos seios de minha mãe. Fui-te confiado desde o ventre de minha mãe; desde o ventre de minha mãe Tu és meu Deus. Não se afaste de mim, porque a angústia se aproxima e não há ninguém para me ajudar. Uma manada de touros me cerca, os touros de Basã me cercam; abram suas mandíbulas contra mim como um leão que chora e ruge. Derramo como água, todos os meus ossos se deslocam; Meu coração derrete como cera, dissolve-se em minhas entranhas. Minha garganta está seca como uma telha e minha língua está presa no céu da boca; Você me lançou no pó da morte. Uma matilha de cães me cerca, um bando de malfeitores me cerca. Eles perfuraram minhas mãos e meus pés. Posso contar todos os meus ossos. Eles olham, me observam, compartilham minhas roupas, e lançaram sortes sobre a minha túnica. Mas você, Senhor, não vá embora. Minha força, corra para me ajudar. Livra minha alma da espada, minha única vida das garras dos cães. Salve-me da boca do leão, minha pobre existência, dos chifres dos búfalos. Anunciarei o teu Nome aos meus irmãos, te louvarei no meio da assembleia. Vocês que temem ao Senhor, louvem-no; toda raça de Jacó, glorifiquem-no, temam-no, toda raça de Israel. 316. – As guerras, a violência e a barbárie estão presentes ao longo da história de Israel. Naquela época, para sobreviver era necessário lutar e destruir o inimigo. Era impossível reduzir a violência. A lei de retaliação não foi promulgada apenas pela legislação hebraica, mas por numerosos grupos étnicos na bacia do Mediterrâneo. Hamurabi, rei da Babilônia (1792-1750 aC), ordenou que um código compilado de jurisprudência fosse elaborado e gravado em uma estela de basalto descoberta em Susa. O Antigo Testamento contém muitos episódios violentos; e, ao mesmo tempo, é o livro que exalta o poder incomparável da oração. Ao sair do Egito, após cruzar o deserto, os hebreus encontram os amalequitas, poderosa tribo de nômades edomitas que ocupam o território correspondente ao sul da Judéia. Segundo a Bíblia, eles sempre foram inimigos ferrenhos dos hebreus. Durante o combate entre os dois povos, Moisés quer envolver Deus na batalha: ele é o seu aliado mais seguro. Junto com Aaron e Hur, ele sobe a montanha para orar ao céu. Enquanto ele ora em silêncio e seus dois companheiros seguram suas mãos, mantendo-as levantadas até o pôr do sol, os hebreus saem vitoriosos. Mas, assim que o cansaço faz com que Moisés baixe os braços, são os amalequitas que vencem ( Ex 17,8-16). Na parte oculta da oração, Deus dá a vitória ao seu povo. A força do homem só traz consigo triunfos efêmeros. A única pedra sólida é o silêncio do encontro sincero com Deus. Começando com David e Salomão, ocorreu uma grande mudança progressiva. David ainda tinha as mãos cobertas de sangue, mas era um homem de silêncio, oração e paz. Nele se concretizava a vinda do Messias. Seu coração cheio de misericórdia e respeito pela vida humana tornou-se evidente em três ocasiões de forma milagrosa. Quando as circunstâncias lhe permitiram matar Saul, ele poupou sua vida duas vezes ( 1 Samuel 24 e 26). Ele perdoou o marido de Abigail, que maltratou seus mensageiros ( 1Sm 25, 14- 38), e lamentou amargamente a morte de Saul e de seu filho Absalão, que se rebelaram contra ele. David tem um profundo sentimento de pecado e arrependimento: o seu coração é sincero e totalmente entregue a Deus. O Salmo 50 é um magnífico testemunho disso. No Novo Testamento, por sua vez, o evangelho de Mateus nos faz ouvir a voz de Raquel logo após o nascimento de Jesus. É a hora do massacre das crianças em Belém. Raquel chora em silêncio para receber esperança e ouvir o conforto que vem de Deus: “Ouviu-se uma voz em Ramá, choro e grande lamentação: é Raquel quem chora pelos seus filhos, e não admite consolo, porque já não existem” ( Mt 2, 18). Raquel não quer enxugar as lágrimas, porque não aceita bálsamos fáceis, palavras banais, e não quer fazer da morte uma questão de retórica ou uma realidade que as palavras lhe permitam assumir. As suas lágrimas são o anúncio das lágrimas das mulheres de Jerusalém que acompanham o crucificado, porque sabem que, com a sua morte na cruz, "Deus, habitando verdadeiramente entre elas, será o seu Deus e enxugará dos seus corações toda lágrima". olhos; e não haverá mais morte, nem choro, nem lamentação, nem dor, porque tudo o que veio antes já passou” ( Ap 21, 3-4). —Como presidente do Pontifício Conselho Cor unum, isto é, responsável pela caridade do Papa tanto para com Bento XVI como para com Francisco, o senhor enfrentou muitas catástrofes humanitárias. Como não nos rebelarmos diante de dramas como esse? 317. – Sempre pensei que existem dois tipos de horrores. Há, por um lado, a barbárie desejada pelos homens, como os campos de concentração, os gulags, as torturas, as decapitações: todas as crueldades de que, infelizmente, o homem é capaz. Se o homem tivesse consciência de que o ser humano é imagem de Deus, não poderia permitir-se chegar a tais extremos. Quem ousaria destruir a obra de Deus? O ódio do homem pelo homem é uma negação de Deus. Matar um ser humano ou um embrião humano de forma deliberada, voluntária e calculada é um crime imperdoável. Pois Deus disse: “Não matarás”. E essa lei é absoluta. Por outro lado, existem os flagelos da natureza: tufões, terramotos ou tsunamis que colocam o homem em situações de extrema miséria. Conheço pessoas que perderam os frutos do trabalho de uma vida inteira. Mas a experiência mostrou-me que os homens são sempre suficientemente fortes para recuperarem face a estas catástrofes. Espontaneamente, eles voltam seus corações para Deus e pedem-Lhe que repare o erro. O homem coloca-se nas mãos de Deus com ainda mais convicção porque a vida material foi reduzida a nada. Por que gritar, chorar ou gemer? O choro mais alto, as lágrimas que habitam o fundo da nossa dor, o gemido mais queixoso é o silêncio confiante e o suspiro leve que deixam tudo nas mãos de Deus. As palavras que o homem dirige a Deus nos salmos são esplêndidas: Estou exausto, completamente abatido; O tremor do meu coração é como um rugido. Meu Senhor, todos os meus anseios estão presentes para você, meu gemido não está escondido de você (...). Aqueles que atentam contra minha vida me armam armadilhas, aqueles que buscam meu mal predizem infortúnios para mim e o dia todo espalham calúnias. Mas sou como um surdo, não quero ouvir, como um mudo, não abro a boca; Sou como um homem que não ouve, nem tem resposta na boca. Meus inimigos estão vivos e fortes, há muitos que me odeiam sem razão; aqueles que pagamo bem com o mal e me acusam porque busco o bem. Não me abandone, Senhor, meu Deus, não me abandone. Apresse-se em me ajudar, Senhor, minha salvação ( Sal 38, 9-10; 13-15; 20-23). 318. – Quando o homem exerce violência contra o homem, a reconstrução é sempre difícil, longa e incerta. Quando se trata do mal, a humanidade é capaz de refinamento e imaginação incomparáveis. No entanto, o Padre Jacques Mourad, um padre sírio-católico que o Daesh manteve como refém na Síria durante cinco meses, pôde dizer ao sair daquele inferno: “Deus concedeu-me duas coisas: silêncio e bondade”. Estas palavras sóbrias e serenas me impressionaram muito. Sim, o silêncio é capaz de nos permitir sobreviver nas situações mais precárias. A tortura, os maus-tratos e os tormentos, por mais diabólicos que sejam, encontrarão um princípio de consolação no silêncio voltado para Deus. De uma forma misteriosa mas real, Ele nos sustenta sofrendo conosco. Está inseparavelmente unido ao homem em todas as suas tribulações; Rebelar-se contra Deus porque ele se cala, quando sofremos, é muito diferente de confiar-lhe silenciosamente o nosso sofrimento e oferecê-lo a Ele para que o transforme em instrumento de salvação, associando-o ao de Cristo. 319. – Diante do horror não há resposta mais decisiva do que a oração. O homem deve dirigir silenciosamente o seu olhar para Deus, que nunca deixa de se emocionar com as lágrimas. Para combater os poderes do mal, é necessária a luta humana. Mas o silêncio é um instrumento oculto misteriosamente eficaz. Por que caíram os gulags da União Soviética ? Graças à oração silenciosa de João Paulo II e de toda a Igreja apoiada pela Virgem de Fátima. Estratégias políticas sofisticadas não eram páreo para o comunismo marxista. A última palavra foi oração. O silêncio do rosário alcançou o impensável e o lado ocidental ficou atordoado... 320. – Há um tempo para a ação humana, tantas vezes incerta, e um tempo para o silêncio em Deus, sempre vitorioso. Não acredito em rebeliões ideológicas barulhentas e exigentes, mas na fecundidade do silêncio. A oração e o silêncio salvarão o mundo. —A pobreza não é uma situação em que é muito difícil permanecer calado? 321 – Jesus, Maria e José não eram pobres? E será que proclamaram a sua rebelião contra a pobreza? Não são tantos monges e freiras, Madre Teresa de Calcutá e suas irmãs missionárias, pobres – e ainda assim silenciosos –? E isso não acontece apenas com os consagrados. Na África, na Ásia e em outros lugares conheci pessoas pobres de imensa nobreza e dignidade incomparável. Embora vivam em extrema pobreza material, são homens que acreditam firmemente em Deus e irradiam alegria, paz e harmonia interior. A riqueza do homem é Deus. A pobreza mais terrível e desumana é a falta de Deus. 322. – A ausência ou rejeição de Deus constitui a mais extrema miséria humana. Não há ninguém neste mundo capaz de realizar o desejo do homem. Somente Deus satisfaz, e ele o faz infinitamente. Nas suas Confissões escreve Santo Agostinho: «Tu nos fizeste, Senhor, para ti e o nosso coração fica inquieto enquanto não repousa em ti (...). Como eu poderia descansar em você? Como poderia fazer com que você entrasse em meu coração e o intoxicasse para que eu esquecesse todos os meus males e abraçasse você, meu único Bem? O que você é para mim? Não se zangue e deixe-me falar: o que sou eu para você, para que me mande te amar e, se não o fizer, você fica enojado de mim e me ameaça com grandes infortúnios? Não é infortúnio suficiente não te amar? Ai de mim! Para o que você mais quiser, me diga: o que você é para mim? Diga à minha alma: “Eu sou a sua salvação”. Mas conte para que eu possa ouvir! Senhor, aí está, diante de você, os ouvidos do meu coração. Abra-os e diga à minha alma: “Eu sou a sua salvação”. Então correrei atrás daquela voz e alcançarei você. Não esconda seu rosto de mim! Deixe-me morrer para que minha alma não morra e para que eu possa te ver! 323. – Surpreende-me a forma como a pobreza é entendida pelo mundo de hoje, incluindo muitos membros da Igreja Católica. Na Bíblia, a pobreza é sempre uma condição que aproxima o homem de Deus. Os pobres de Yahweh povoam a Bíblia. O monasticismo é um impulso que conduz exclusivamente a Deus: o monge vive na pobreza, na castidade e na obediência absoluta, e vive pela sua Palavra em silêncio. O mundo moderno, contudo, estabeleceu o objectivo invulgar de erradicar a pobreza. Por outro lado, existe uma confusão perturbadora entre miséria e pobreza. Esta forma de abordar a realidade não se enquadra na linguagem da Revelação. A pobreza corresponde à ideia que Deus tem do homem. Deus é pobre e ama os pobres. Deus é pobre porque Deus é Amor, e o Amor é pobre. Quem ama só pode ser feliz se depender totalmente da pessoa que ama. Deus é pobreza absoluta: Nele não há vestígio de posse. 324. – No Deuteronômio encontramos estas palavras extraordinárias, que nos permitem compreender o pensamento e a vontade divina: «Deves lembrar-te de todo o caminho que o Senhor, teu Deus, te fez percorrer no deserto durante estes quarenta anos, para te fazer humilde, para testar você e saber o que está em seu coração, se você guarda ou não os seus mandamentos. Ele humilhou você e fez você morrer de fome. Depois alimentou-te com o maná, que tu e os teus pais não conheciam, para te ensinar que o homem não vive só de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor» ( Dt 8, 2-3). 325. – A pobreza é uma prova e uma desapropriação imposta por Deus a quem quer viver na sua companhia. Deus quer conhecer a verdade do seu coração e a sua fidelidade aos mandamentos. A pobreza é um sinal de amor. Liberta-nos de tudo o que nos pesa e impede o nosso progresso rumo ao essencial. Ajuda-nos na grande batalha contemporânea pela descoberta dos verdadeiros valores da vida. Nas batalhas importantes é preciso olhar para o jovem David, quando Golias desafia o exército de Israel. David confronta Golias, o filisteu, que está fortemente armado. Mede seis côvados e um palmo. Um capacete de bronze cobre sua cabeça. Ele usa um peitoral de balança pesando cinco mil siclos de bronze, perneiras e um dardo de bronze nas costas. Sua lança pesa seiscentos siclos de ferro e um escudeiro vai adiante dele. Saul quer vestir Davi com suas próprias roupas: ele coloca nele um capacete de bronze, coloca nele seu peitoral e cinge-o com sua espada. Mas David não consegue andar com tanto peso e diz: “Não consigo andar assim”. E ele tira tudo ( 1Sm 17). Se estivermos demasiado carregados de riquezas e de bens materiais, se não nos libertarmos das ambições e dos artifícios deste mundo, nunca poderemos caminhar em direção a Deus, ao essencial da nossa existência. Sem as virtudes da pobreza é impossível travar a batalha contra o Príncipe deste mundo. No caso da miséria, porém, a rebelião é uma reação perfeitamente justa. Não podemos tolerar a pobreza em que está imersa parte da humanidade. Quero deixar clara a diferença entre a pobreza, semelhança de Deus, glória da Igreja, e a miséria e a sua sucessão de infortúnios, que tornam necessária a rebelião. Na Gaudium et spes esta distinção é perfeitamente explicada: “Que os cristãos cooperem de boa vontade e de todo o coração na construção da ordem internacional com a autêntica observância das liberdades legítimas e da fraternidade amigável com todos, tanto mais que a maioria da humanidade sofre”. necessidades tão grandes, que se pode dizer com razão que é o próprio Cristo quem levanta a sua voz entre os pobres para despertar a caridade dos seus discípulos. Que não seja um escândalo para a humanidade que alguns países, geralmente aqueles com uma população significativamente maioritária cristã, gozem de opulência, enquanto outros sejam privados das necessidades da vida e vivam atormentados pela fome, pelas doenças e por todo o tipo de misérias. O espírito de pobreza e de caridade são glória e testemunho da Igreja de Cristo”(GS 88, 1). 326. – A pobreza implica o desapego e a separação de tudo o que é supérfluo e constitui um obstáculo ao crescimento da vida interior. Os monges são pobres e procuram livrar-se das armadilhas mundanas. Não há maior pobre do que Deus, que vive apenas no amor. Na pobreza somos totalmente dependentes uns dos outros. 327. – Se não tentarmos eliminar todos os aspectos superficiais da nossa vida, nunca estaremos unidos a Deus. Quando nos livramos de tudo o que é supérfluo, gradualmente entramos numa forma de silêncio. Madre Teresa sempre viveu buscando uma pobreza imensa para melhor encontrar Deus no silêncio. Sua única riqueza consistia em buscar a Deus em seu coração. Ele poderia passar horas diante do Santíssimo Sacramento sem dizer uma palavra. A freira tirou a sua pobreza do poço da humildade de Deus. O Padre não possui nada e Madre Teresa quis imitá-lo. Ele queria que suas irmãs estivessem absoluta e sinceramente desapegadas de quaisquer bens materiais. 328. – A Igreja também deve afastar-se das linguagens humanas e dos discursos convencionais para melhor encontrar Deus no silêncio. Em Nazaré Jesus cresceu na mais absoluta pobreza, mas já tinha a riqueza do silêncio em Deus. Se a Igreja fala demais, cai numa espécie de palavreado ideológico. —Como você definiria o supérfluo, aquilo que impede encontrar Deus no silêncio? 329. – Os homens devem procurar não se encher de bens desnecessários. O supérfluo é aquilo que o homem acumula desnecessariamente, apenas por ganância e avareza. O cristão é obrigado a imitar Cristo «que, sendo rico, se fez pobre por vós, para que enriquecêsseis por causa da sua pobreza» ( 2 Cor 8, 9). Os votos de pobreza dos sacerdotes e religiosos respondem a esta exigência. Não se trata de forma alguma de praticar uma forma de jansenismo que conduz ao ódio de si mesmo. “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus” ( Mt 5,3). Jesus se refere ao abandono de todas as riquezas supérfluas. «O Evangelho é anunciado aos pobres», proclama Cristo diante de João Baptista (Lc 7,22) para manifestar a plena abertura dos pobres ao Evangelho e a predileção de Deus por eles. Por outro lado, no Apocalipse escreve São João: «Dizes: “Sou rico, enriqueci-me e não preciso de nada”, e não sabes que és um miserável e miserável, pobre, cego e nu» ( Ap 3, 17) . Deus sempre resiste aos poderosos e concede a sua graça aos pobres. O núcleo da fé cristã consiste na pobreza de um Deus que dá tudo por amor, até a própria vida. Se conseguirmos permanecer com Deus em silêncio, possuímos o essencial. O homem não vive só de pão, mas da palavra que sai da boca de Deus. A civilização materialista que hoje domina o Ocidente privilegia o lucro imediato, o sucesso económico e as distrações banais. Neste continuum do rei-dinheiro, quem poderia estar interessado no silêncio de Deus? A Igreja cometeria um erro fatal se esgotasse as suas forças na configuração de uma face social para o mundo moderno enlouquecido pelo capitalismo de livre comércio. O bem do homem não é apenas material. 330. – A grande diferença entre Deus e o homem está na questão da posse. Se o ser humano não possui bens materiais, sente-se como se nada tivesse, perdido e fraco. A maior parte dos nossos problemas provém de uma certa transgressão da pobreza. O homem permite-se ser apanhado nas redes dos seus mais baixos instintos possessivos. Ele quer acumular bens materiais para satisfazer-se e desfrutá-los. Mas estes bens supérfluos cobrem os nossos olhos, fecham os nossos corações e minam a nossa energia espiritual. Ainda assim, existem muitos homens ricos que vivem uma vida espiritual excepcional com Deus e uma imensa generosidade para com os pobres. Sem dúvida, devemos recordar firmemente o direito legítimo das pessoas a terem os meios de subsistência material necessários para viver. Sei até que ponto aqueles que governam em África espezinham este princípio. Por isso é urgente evangelizar os corações, as inteligências e os comportamentos de todos os meus irmãos africanos. Na encíclica Caritas in veritate, Bento XVI escreve: «Paulo VI afirmou que o anúncio de Cristo é o primeiro e principal factor de desenvolvimento e deixou-nos o mandamento de percorrer o caminho do desenvolvimento com todo o coração e com todo o coração. nossa inteligência, isto é, com o ardor da caridade e a sabedoria da verdade. A verdade originária do amor de Deus (...) abre a nossa vida ao dom e torna possível esperar um “desenvolvimento do homem inteiro e de todos os homens”, na passagem de condições menos humanas para condições mais humanas , que se consegue superando as dificuldades que inevitavelmente se encontram ao longo do caminho. Só o Evangelho poderá curar as nossas relações humanas para estabelecer sociedades fraternas e solidárias. Deus está no coração de cada pessoa, no centro de todas as nossas atividades, e também no coração da nossa pobreza e da nossa miséria. 331. – Se quisermos entrar em Deus, temos que ser pobres. Porque o Pai não possui nada desde toda a eternidade. Por natureza, estamos longe da infinita simplicidade de Deus. A ambição humana abomina a pobreza. O homem carece de coerência. Ele prefere o barulho da matéria ao silêncio do amor. Nunca esqueçamos a bem-aventurança proclamada por Jesus: «Bem- aventurados os pobres, porque deles é o Reino de Deus» ( Lucas 6,20). —Diante da injustiça, Albert Camus não apelou ao silêncio, mas à rebelião: “Eu me revolto, logo existimos”, escreveu ele em O homem rebelde. E, ao mesmo tempo, disse: «O que é um homem rebelde? Uma pessoa que diz “não”. Mas, se ele negar, ele não renuncia. A princípio é difícil não concordar... A rebelião e o chamado à luta são mais importantes que o silêncio? 332. – No seu livro Outra maneira de ver o homem, Maurice Zundel diz: «Camus não sabia que, por trás daquele escândalo e da desgraça do homem entregue a um Universo capaz de esmagá-lo, havia um Amor infinito e eterno que não deixe de nos vigiar, de nos esperar e de nos chamar. Ora, esse Amor não pode fazer nada sem nós porque nada mais é do que Amor, e porque esse Amor é essencialmente liberdade, uma liberdade que se dirige à nossa liberdade e nada pode fazer sem ela, sem o seu consentimento. Camus não conseguiu resolver o problema do mal deste lado do véu, mas sentiu-o profundamente e expressou-o magnificamente. É É verdade que, diante do sofrimento desumano, pode ocorrer uma rebelião saudável e justa. Mas, se for uma rebelião consciente ou inconsciente contra Deus, a luta é inútil, ilusória e ridícula. Deus não é responsável pela miséria que os próprios homens geraram. 333. – A rebelião não é necessariamente a atitude mais justa. Na verdade, estou convencido de que nunca é uma resposta permanente. De certa forma, a rebelião é um ruído vazio, porque na verdade não contém nenhuma resposta ou esperança. O homem rebelde é obra de um ateu fechado em si mesmo, sem horizonte e, portanto, sem qualquer saída capaz de lhe dar acesso ao Invisível que dirige a sua vida. 334. – Muitas vezes me pergunto que paz pode habitar no coração do homem que rejeita a Deus. Nas Confissões , Santo Agostinho escreve: “Tu nos fizeste, Senhor, para ti, e os nossos corações estão inquietos até que descansem em ti”. Sem Deus o homem fica dilacerado, angustiado, inquieto, agitado e não consegue alcançar o descanso interior. A vida autêntica não consiste na rebelião, mas na adoração silenciosa. É verdade que não temos resposta para o problema do mal; Contudo, a nossa tarefa é torná-lo menos insuportável e remediá-lo sem orgulho, discretamente, na medida das nossas possibilidades, como fizeram Santa Teresa de Calcutá e tantos outros santos. 335. – A sociedade mediática passa da rebelião sentimental à rebelião moral, como um Sísifo desesperado que sobe incansavelmente a montanha. Ela reivindica a sua rebeldia, o seu ódio por aquilo que ela autodefine como injusto enão igualitário, orgulhosa dos seus bons sentimentos que, no entanto, são a coisa mais tola que existe. Cínica e desonesta, ela se refugia sorrateiramente em suas aversões. 336. – A existência moderna é uma vida sustentada e totalmente construída sobre o barulho, o artifício e a trágica rejeição de Deus. Passando das revoluções às conquistas, das ideologias aos combates políticos, do desejo g p j desenfreado de igualdade num culto obsessivo ao progresso, o silêncio é impossível. E o que é pior: as sociedades transparentes professam um ódio implacável ao silêncio, considerado uma derrota abjeta e retrógrada. 337. – O homem sem silêncio é um homem estranho a Deus, exilado num país distante, que permanece à superfície do mistério do homem e do mundo; mas Deus está profundamente dentro do homem, nas regiões silenciosas do seu ser. Em seu livro Saint Grégoire le Grand. Cultura e experiências cristãs, Monsenhor Dagens explica a antropologia do autor da Moralia. São Gregório dá um lugar importante às noções de interioridade e exterioridade para descrever o destino humano: «O homem – escreve – estava destinado a viver dentro do mundo divino: esse foi o seu lugar de origem. Quando cai em pecado, exclui-se desse lugar privilegiado. A partir desse momento, a exterioridade a que está exposto sob a forma de pecado, de cegueira e de exílio impede-o de alcançar a interioridade que almeja, isto é, a santidade, a luz, a alegria de estar na sua verdadeira pátria. Ao comprometer-se com o pecado, é como a areia do mar: «O movimento das ondas leva embora a areia do mar, porque com o seu pecado o homem, que consentiu voluntariamente nas ondas agitadas das tentações, separou- se dos seus a própria intimidade saindo de si mesmo” ( Moralia 7, 2.2 – PL, 75, 768C). —Como permanecer em silêncio diante da doença? 338. – Gosto especialmente destas palavras cheias de luz do Salmo 38, cujo título é Pequenez do homem diante de Deus: «Eu disse a mim mesmo: “Cuidarei dos meus caminhos para não pecar com a minha língua; Porei uma mordaça na minha boca enquanto o ímpio estiver diante de mim”. Fiquei em silêncio, fiquei em silêncio sem proveito; e minha dor piorou. Meu coração queimou dentro de mim; Na minha meditação o fogo foi aceso, até que soltei a língua: “Senhor, faze-me saber o meu fim, qual a medida dos meus dias; saber o quão fugaz sou. Você deu alguns momentos à minha vida, minha existência não é nada diante de você. Um sopro é cada homem em seu vigor. Como uma sombra o homem passa, trabalha em vão, acumula fortuna sem saber quem a colherá. Agora, Senhor, o que posso esperar? Minha esperança está em você. Livra-me de todos os meus crimes; não me exponha à zombaria do tolo. Fico em silêncio, não vou abrir a boca, porque é você quem faz as coisas. Afaste de mim seus golpes: estou exausto pela fúria de sua mão. Você pune o homem para corrigi-lo de sua culpa; você corroe, como uma mariposa, seus tesouros. Apenas uma respiração é todo homem. Ouve a minha oração, Senhor, dá ouvidos ao meu clamor, não seja surdo às minhas lágrimas, pois sou um estranho diante de Ti, um peregrino como todos os meus pais. Afaste seu olhar de mim para que eu possa respirar, antes de partir e deixar de existir. Pode ser que no sofrimento nos deixemos levar pela exasperação, mas é importante permanecer calados e diante de Deus. A doença, a deterioração física e psicológica, a fragilidade humana são grandes mistérios. O sofrimento do corpo é um momento privilegiado para contemplar o mistério da nossa breve vida, que caminha inexoravelmente para a morte. Devemos aprender a entregar a fragilidade da existência diante do poder de Deus. A doença é a oportunidade para Deus avaliar a realidade do homem. O ser humano é uma criatura fraca, mas seu criador zela por ele nos momentos mais difíceis. Existe uma falsa crença de que a dor física é um golpe perverso do destino. Por que o homem não consegue entender que Deus nunca quer o mal? Na doença o homem fica nu diante de Deus. «Para ser mais exato – escreve Monsenhor Claude Dagens no seu livro sobre São Gregório Magno –, o combate espiritual é caracterizado por um paradoxo surpreendente. Quanto mais provado um homem é na carne, mais sua alma é santificada, como se provações externas fossem necessárias para provocar progresso interno. O santo Jó não nos fornece um exemplo vivo desse paradoxo e dessa inter-relação? Derrubado externamente pelas feridas da carne, ele permanece de pé internamente graças ao muro de sua alma. Esta é a pedagogia de Deus: para levar os homens ao arrependimento e à conversão, o Senhor os testa. 339. – Muitas vezes o sofrimento físico é essencial para provocar a retificação espiritual e moral. O homem comprovado que se confia à Bondade divina demonstra uma fé imensa em Deus. Manifesta uma coragem silenciosa e perde-se numa oração fervorosa à espera da resposta do Todo-Poderoso. Sei que o vigor da oração é mais forte que o trovão e mais doce que a brisa da manhã. Sei que os raios da oração são capazes de abalar os alicerces do universo, de mover montanhas, de elevar o meu ser e o mundo até Deus para nos perdermos Nele. Na Bíblia a esplêndida figura de Jó é muito eloquente. Este homem santo, rico e rodeado de crianças, foi regado com todos os bens que o homem pode desejar. Mas a vida de Jó sofre uma reviravolta brutal. Vários grupos armados roubam as suas sete mil ovelhas, as suas quinhentas juntas de bois e os seus três mil camelos. Um vento forte sopra do deserto e a casa que abriga seus filhos desaba sobre eles, matando-os. Os caldeus se dividiram em três grupos e mataram seus servos à espada. E finalmente, Jó adoece. Apesar desta sucessão de infortúnios, o amor de Jó por Deus permanece inquebrantável. Jó proclama firmemente a sua inocência e professa uma fé sólida que sobreviveu aos séculos: “Se ao menos eu pudesse escrever as minhas palavras! Quem me daria a habilidade de gravá-los em bronze! E com um furador de ferro e chumbo esculpe-os na rocha para sempre! Bem sei que meu defensor vive e que Ele, o último, se levantará acima do pó. E depois que minha pele for destruída, da minha carne verei a Deus. Eu mesmo o verei, os meus olhos o contemplarão e nenhum outro” ( Jb 19, 23-27). 340. – A doença é uma realidade terrível e dolorosa. É uma expressão do mistério do homem, da sua fragilidade e, ao mesmo tempo, daquela energia interior que o ajuda a realizar-se, superando os obstáculos da vida. Se conseguirmos resistir, se mostrarmos generosidade e amor, a doença pode tornar-se um caminho para Deus, um caminho de maturidade e de edificação interior. Então a doença é uma oportunidade para formar em nós aquele homem perfeito e plenamente maduro que torna realidade a plenitude de Cristo. No silêncio o homem percebe que neste mundo os dias estão contados. Na doença podemos viver em quase perfeita harmonia com Deus. O exame silencioso de consciência, no coração da dor, permite ao homem contemplar o que fez da sua vida e o que lhe resta fazer. A doença é uma esperança sublime no grande silêncio de Deus. Se o homem se rebela contra a doença, cai gradualmente num desespero estéril, num beco sem saída, numa rejeição agressiva e angustiante. Rebelião não é o mesmo que resistência, o que implica um processo interno silencioso. 341. – Os grandes doentes tendem a ser homens que demonstram uma paz inquebrantável. Eles sabem que o grave declínio do corpo colocou o seu espírito em intimidade face a face com as realidades divinas. Eles tendem a ser pessoas felizes com sua sorte. Quando os mortais comuns imaginam uma vida triste e cansativa, os doentes conservam a serenidade absoluta. O silêncio do olhar de um homem prestes a partir já é habitado por Deus. Sim, a doença é uma manifestação sublime do silêncio misterioso de Deus, um silêncio amoroso próximo do sofrimento humano. A doença faz o homem galgar os diferentes graus do ser. Revela-lhe o seu própriomistério, ajudando-o a entrar em si mesmo para encontrar ali Deus, que está no mais íntimo da sua alma. Assim escreve João Evangelista: «Havia um doente chamado Lázaro, natural de Betânia, aldeia de Maria e de sua irmã Marta. Maria foi quem ungiu o Senhor com perfume e enxugou os pés dele com os cabelos; seu irmão Lázaro adoeceu. Então as irmãs lhe enviaram esta mensagem: “Senhor, veja, aquele que você ama está doente”. Quando Jesus ouviu isso, disse: “Esta doença não é para morte, mas para glória de Deus, para que por meio dela o Filho de Deus seja glorificado”. Jesus amava Marta, sua irmã e Lázaro. Mesmo quando soube que estava doente, ficou mais dois dias no mesmo lugar. Depois disso, ele disse aos seus discípulos: “Vamos novamente para a Judéia”. Os discípulos lhe disseram: “Rabi, recentemente os judeus estavam procurando por você para apedrejá-lo, e você vai voltar para lá?” “Não há doze horas no dia? –Jesus respondeu–. Se alguém caminha durante o dia, não tropeça porque vê a luz deste mundo; Mas se alguém caminha à noite, tropeça porque não tem luz.” Ele disse isso e acrescentou: “Lázaro, nosso amigo, está dormindo, mas vou acordá-lo”. Então seus discípulos lhe disseram: “Senhor, se ele dormir, será salvo”. Jesus havia falado de sua morte, mas eles pensaram que ele estava falando de sono natural. Então Jesus lhes disse claramente: “Lázaro morreu, e estou feliz por vocês que ele não estava lá, para que vocês possam acreditar; Mas vamos onde ele está." Tomé, chamado Dídimo, disse aos outros discípulos: “Vamos também nós e morramos com ele”. »Quando Jesus chegou, descobriu que já estava sepultado há quatro dias. Betânia ficava a cerca de quinze estádios de Jerusalém. Muitos judeus tinham vindo visitar Marta e Maria para consolá-las sobre o irmão. Assim que Marta ouviu que Jesus estava chegando, saiu ao seu encontro; Maria, por outro lado, ficou sentada em casa. Marta disse a Jesus: “Senhor, se você estivesse aqui, meu irmão não teria morrido, mas mesmo agora eu sei que tudo o que você pedir a Deus, Deus lhe dará”. “Seu irmão ressuscitará”, disse-lhe Jesus. Marta respondeu: “Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia.” “Eu sou a Ressurreição e a Vida”, disse-lhe Jesus. Quem acredita em mim, mesmo que tenha morrido, viverá, e todo aquele que vive e acredita em mim não morrerá para sempre. Você acredita nisso? “Sim, Senhor”, ele respondeu. Acredito que você é o Cristo, o Filho de Deus, que veio a este mundo”. Assim que disse isso, foi telefonar para sua irmã María, dizendo-lhe à parte: “O Mestre está aqui e te chama”. Assim que ouviu, ela imediatamente se levantou e foi em direção a ele. Jesus ainda não havia chegado à aldeia, mas ainda estava onde Marta veio encontrá-lo. “Os judeus que estavam com ela em casa e a confortavam, vendo que Maria se levantou de repente e saiu, seguiram-na, pensando que ela ia ao túmulo chorar ali. Então Maria chegou onde Jesus estava e, ao vê-lo, caiu aos seus pés e disse-lhe: “Senhor, se tu estivesses aqui, meu irmão não teria morrido”. Jesus, ao vê-la chorando e que os judeus que a acompanhavam também choravam, estremeceu por dentro, comoveu-se e disse: “Onde você o colocou?” Eles lhe responderam: “Senhor, vem vê-lo”. Jesus começou a chorar. Então os judeus disseram: “Vejam como ele o amava.” Mas alguns deles disseram: “Não poderia este homem que abriu os olhos do cego tê-lo impedido de morrer?” Jesus, novamente emocionado, dirigiu-se ao sepulcro. Era uma caverna coberta por uma pedra. Jesus disse: “Tire a pedra”. Marta, irmã do falecido, disse-lhe: “Senhor, já cheira muito mal, está aí há quatro dias”. Jesus lhe disse: “Eu não lhe disse que se você crer, verá a glória de Deus?” Eles então removeram a pedra. Jesus, levantando os olhos, disse: “Pai, agradeço-te porque me ouviste. “Eu sabia que você sempre me escuta, mas eu disse isso para a multidão que está ao redor, para que acreditem que você me enviou”. E depois disso ele gritou em alta voz: “Lázaro, sai!” E aquele que estava morto saiu com os pés e as mãos amarrados com bandagens, e com o rosto envolto numa mortalha. Jesus lhes disse: “Desamarre-o e deixe-o andar”. “Muitos judeus que foram à casa de Maria, vendo o que Jesus fez, acreditaram nele. Mas alguns deles foram ter com os fariseus e contaram-lhes o que Jesus tinha feito. Então os principais sacerdotes e os fariseus convocaram o Sinédrio: “O que faremos, visto que este homem realiza muitos sinais? -eles estavam dizendo-. Se o deixarmos assim, todos acreditarão nele; e os romanos virão e destruirão nosso lugar e nossa nação.” Um deles, Caifás, que era sumo sacerdote naquele ano, disse-lhes: “Vocês não entendem nada, nem percebem que é apropriado que um homem morra pelo povo e não que toda a nação pereça”, mas isso não era verdade ... Ele disse por si mesmo, mas, sendo sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus iria morrer pela nação; e não apenas para a nação, mas para reunir os filhos de Deus que estavam dispersos. Assim, a partir daquele dia decidiram matá-lo. Depois Jesus já não andava em público entre os judeus, mas partiu dali para uma região próxima do deserto, para a cidade chamada Efraim, onde permaneceu com os seus discípulos» ( Jo 11, 1-54). 342. – Deus costuma interessar-se mais pelo corpo do homem e respeitá-lo ainda mais do que o próprio homem. Como você pode viver em paz e alegria se seu corpo está constantemente sujeito a pressões de todos os tipos? 343. – A doença está intrinsecamente ligada à eternidade. Os verdadeiros homens de Deus não têm medo da morte porque esperam pelo Céu. É admirável o exemplo de um monge da Abadia de Sept-Fons, o Irmão Théophane, que foi levado por um tumor cerebral aos vinte e oito anos. Referindo-se à sua curta vida, escreveu esta comovente mensagem: “O que é a vida monástica? Quantos receberam esta chamada? Quantos se tornaram monges autênticos, amigos de Deus no final da vida? Quantas graças, quanta fidelidade, quanta perseverança e coragem serão necessárias para conseguir isso? E quanto daquela coisinha mais que nos torna amigos de Deus? Agora que estou no começo, qual será o meu futuro? Conto com a minha vocação, com a fé, com o exemplo de idosos como o Padre Jérôme e daquela dilacerante esperança de alcançá-la, tal como ele, um dia. Ser um monge, um verdadeiro monge. Quanto mais ele sofria, mais perto ele chegava dos picos espirituais. O Padre Samuel, monge trapista de Sept-Fons, escreveu Qui cherchait Théophane, um livro esplêndido sobre a sua curta vida, a sua doença cruel e a sua morte, do qual gosto de citar estas frases: "Sem a esperança cristã, ele certamente teria desesperado." ou se rebelou. E nós também. Todos fomos tentados por isso, dado o absurdo da situação: uma doença que ceifou uma vida tão jovem, que prometia tanta plenitude! Tentamos virar as costas à demissão. A doença do Irmão Théophane ensinou-o a ignorar as aparências de felicidade, a aceitar derrotas aparentes. Se ele tivesse sido curado, essa atitude teria iluminado toda a sua existência. Nesse sentido, o seu testemunho é precioso para outros pacientes que desejam curar-se e também para nós. Agora sabemos que este é o preço da felicidade. Refiro-me a uma felicidade sólida que nenhum incidente passageiro, por mais grave que seja, pode truncar. A doença do Irmão Théophane tornou-o um homem mais sólido e lançou-o, lançou-nos a todos, no coração de Deus. O que o irmão Théophane procurava? O Irmão Théophane não pedia nada a ninguém, nem mesmo a Deus, nem mesmo para ser amado: queria ser feliz. Padre Samuel conclui seu livro com esta citação do Gênesis: “Judá é um filhote de leão; Meu filho, você voltou com a presa! Ele se deita como leão e como leoa: quem o fará levantar? ( Gn 49, 9). 344. – Com o Irmão Vicente Maria da Ressurreição, membro da comunidade dos cónegos regulares de Lagrasse, vivi uma experiência muito enriquecedora. Vítima de esclerose múltipla fulminante,perdeu progressivamente a capacidade de se movimentar e falar. Apesar desta situação dolorosa, o Ir. Vicente manteve a serenidade, a alegria e a paciência. Todas as nossas reuniões ocorreram em silêncio e oração. Deus pediu-lhe que fosse holocausto permanente e oferta silenciosa para a salvação do mundo; Ao lado deste meu amigo tornei-me um aluno que aprendeu o mistério do sofrimento. Contemplar o Irmão Vicente costurado ao leito da sua doença revelou-me silenciosamente que a expressão mais sublime do Amor é o sofrimento. Na véspera do seu funeral, lendo o seu diário íntimo, descobri toda a energia espiritual que alimentava a sua vida interior. Naquelas páginas encontrei uma reflexão extremamente profunda: «Creio que Deus concedeu o sofrimento ao homem por um pensamento de amor e de misericórdia. Acredito que o sofrimento é para o homem o principal autor da redenção e da santificação. Sim, o sofrimento é um estado de felicidade e santificação. Ao ler o irmão, parecia ouvir as palavras de Santa Teresa do Menino Jesus: “Encontrei a felicidade e a alegria na terra, mas só as encontrei no sofrimento, porque sofri muito”. Para poder aceitar o sofrimento e nele encontrar alegria, o Irmão Vicente deixa-nos um último segredo que descobri no seu diário íntimo: “Todos os dias me tranco num castelo triplo – escreve ele –: o primeiro é o coração puríssimo de Maria (…), para me defender de qualquer ataque do Espírito Maligno; a segunda é o coração de Jesus para me defender de qualquer ataque da carne; O terceiro é o santo sepulcro, onde me escondo com Jesus para me defender do mundo. 345. – A linguagem do sofrimento e do silêncio é diferente da linguagem do mundo. Diante da dor vemos traçados dois caminhos diametralmente opostos: o nobre caminho do silêncio e o caminho pedregoso da rebelião, ou seja, o caminho do amor a Deus e do amor a si mesmo. 346. – O medo patológico do sofrimento e do silêncio é especialmente agudo no Ocidente. Pelo contrário, as culturas africanas e asiáticas demonstram uma aceitação extraordinária da dor, da doença e da morte, porque a perspectiva de uma vida melhor no além está intensamente presente nelas. —Qual é a atitude adequada diante de uma doença incurável? 347. – Quando a doença se torna incurável, a palavra já não significa muito. Devemos aprender a permanecer em silêncio, a acariciar afetuosamente o ser sofredor para transmitir a proximidade, o calor e a compaixão de Deus. Basta pegar a mão dele e olhar um para o outro sem dizer nada. A ternura de um olhar é capaz de trazer o conforto e o apoio de Deus. Diante de um doente que sofre, não há necessidade de falar. Devemos simpatizar, amar e orar silenciosamente, com a certeza de que a única linguagem que convém ao Amor é a oração e o silêncio. 348. – A própria condição do paciente o inicia no silêncio. Vai além do bem que o mistério do silêncio de Deus comporta. O homem sofredor espera sem palavras. Mas em seu coração pulsam a esperança e o abandono que o submergem em Deus. 349. – A doença é uma antevisão do silêncio da eternidade. —Diante da morte, o que é o verdadeiro silêncio? 350. – Quando Deus vem para levar um homem, estabelecem-se duas formas de silêncio: o dos vivos, petrificados pela ausência, e o silêncio dos que morreram, que nos introduz no mistério da esperança cristã e da vida real. Os primeiros são colocados diante do mistério de um silêncio incômodo, triste, doloroso e inconsolável. Esse silêncio imprime nos rostos angústia, tristeza e rejeição à morte, o que vem alterar uma calma indiferença. 351. – Hoje as sociedades ocidentais rejeitam a morte, traumatizadas pela dor e pela tristeza que a acompanham. O homem moderno gostaria de ser imortal. A negação do trânsito definitivo leva a uma cultura da morte que permeia todas as relações sociais. A civilização pós-moderna nega a morte, eleva-a e, paradoxalmente, nunca deixa de exaltá-la. O assassinato de Deus permite que a morte continue sempre a rondar, porque a esperança desapareceu do horizonte dos homens. 352. – Ignorar a morte implica o ódio ao seu silêncio. Os novos costumes fúnebres revelam uma falsa alegria e um luto adulterado que se recusam a ceder ao silêncio. A decadência ocidental atingiu um nível tal que já não é incomum ouvir aplausos e longos discursos durante os funerais. A dor se expressa com lágrimas e não com uma alegria artificial e desenraizada. Cristo não lamentou seu amigo Lázaro, morto e sepultado quatro dias antes? Não quero deixar de lembrar que a morte é um momento difícil que causa inquietação natural nos vivos. As lágrimas, por sua vez, são a manifestação do silêncio autêntico. Também sei como é difícil aceitar a brutalidade da separação. Às vezes, o que vai embora faz parte da nossa vida. A morte leva consigo pedaços da história daqueles que permanecem na terra. 353. – A grande questão da morte só pode ser verdadeiramente compreendida no silêncio da oração. Existe outra forma de compreender o silêncio da ausência que não seja com o silêncio dos nossos corações e dos nossos lábios? 354. – O silêncio da morte costuma ser precedido de doença e sofrimento. Só existe um caminho para meditar sobre o significado da ausência, um caminho que passa pelo silêncio interior. Na verdade, a continuidade da relação entre os mortos e os vivos só existe no silêncio. A inseparabilidade entre o mundo da vida e o da morte torna-se realidade no silêncio e numa relação que transcende os corpos. Apesar da ausência física do corpo, a relação com os nossos falecidos é indestrutível, real e tangível, porque o seu carinho está profundamente gravado nos nossos corações. 355. – A morte é o silêncio do mistério, o silêncio de Deus e o silêncio da vida. Como podem os cristãos alimentar o seu silêncio? A resposta definitiva é oferecida por Cristo na Cruz, onde encontram um Deus que sofre e morre. Mas a vitória de Cristo é fonte de esperança e de silêncio, tão imenso é o dom de Deus. 356. – O ensinamento da Igreja não consiste sobretudo em consolar ou tranquilizar com palavras doces: o que ela quer é falar, seguindo os passos de Cristo, da imortalidade da alma e da ressurreição do corpo. O primeiro prefácio do falecido contém esta afirmação: “A vida não acaba, mas se transforma, e, à medida que esta morada terrena se dissolve, uma mansão eterna no Céu se prepara”. Diante desta realidade, apenas o silêncio se impõe. 357. – Por que vamos nos levantar contra a morte? A rejeição da morte é um beco sem saída. Porque, acima da ausência e do sepultamento, a morte é um novo nascimento. Diante dela somos como recém-nascidos: não sabemos falar, mas a vida se desenvolve e cresce invisivelmente. 358. – A morte é compreensível se olharmos silenciosamente para Cristo com um olhar de fé: desde o Calvário, onde é derrubado um Deus ferido e destruído, até à sepultura, onde depois de três dias a morte é derrotada, os homens encontram Nele a essência e o aroma do silêncio divino. 359. – O cristianismo permite à humanidade ter uma visão mais simples, serena e silenciosa da morte, longe dos gritos, do choro e do desespero. 360. – A morte é uma porta que devemos aceitar atravessar sem barulho, porque se abre diante de nós para nos conduzir à vida. O Grim Reaper transporta os homens para a pátria divina. Essa é a esperança que toda a nossa oração exige! Devemos desejar atravessar essa porta com calma e fé. Infelizmente, para muitos, a morte parece uma noite sem fim e sem amanhã. Porém, a noite contém valores que o dia nem imagina. O homem sem fé cria luzes que lhe parecem sólidas e eternas. Mas quando pensamos no nosso futuro dizemos a nós mesmos: “Vou destruir os meus celeiros, e construirei outros maiores, e aí armazenarei todo o meu trigo e os meus bens. Então direi à minha alma: “Alma, você já tem muitos bens guardados há muitos anos. Descanse, coma, beba, divirta-se” ( Lc 12, 18-19), quando se trata de fazer perguntas e tomardecisões, Deus as extingue. Os telhados das nossas casas desabam sobre nós, as formigas minam as torres mais altas, as paredes racham e desabam, e os edifícios mais sagrados são reduzidos a cinzas enquanto quem observa desenvolve uma teoria de sustentabilidade. Não ignoro que esta linguagem é absolutamente incompreensível e ofensiva para quem não tem fé. O homem materialista quer fazer da vida uma grande festa, um momento para desfrutar de todos os prazeres, uma diversão compulsiva. Então, o mais tarde possível, a morte parece parar essa corrida e nos conduzir ao vazio. Não há mais nada. Estes homens movem-se como animais, sem alma e sem esperança. Ao fingir a morte como um momento indolor, quando chega o dia fatídico, um abismo se abre sob seus pés. Mesmo assim, quem sobrevive ainda é capaz de festa... A morte transforma-se num espetáculo barulhento e exibicionista, em câmaras mortuárias sem alma, em crematórios pagãos e em mórbidas urnas funerárias. Graças às novas técnicas, o corpo humano é profanado e desprezado até o liquefazer, como se quisesse negar o destino divino do homem. 361. – O homem de fé deve olhar para Cristo em silêncio. Os mártires concordam em morrer sem barulho porque sabem que a morte é uma porta. Esse trânsito é a porta da vida. Penso no Padre Maximiliano Kolbe, que deu a vida para salvar os seus companheiros e aceitou a morte com imensa simplicidade. Em 17 de fevereiro de 1941, após ser preso pela Gestapo, foi brutalmente espancado por não querer negar Jesus Cristo. Identificado com o número 16670, em 28 de maio foi transferido para o campo de Auschwitz. Na Polónia, durante os anos mais sombrios da invasão de Hitler, Maximilian Kolbe já tinha demonstrado toda a força da sua coragem e a profundidade da sua fé. Tornando-se próximo de todos, sentiu-se capaz de tudo por amor de Jesus que, pela mediação da Virgem Maria, não deixou de lhe comunicar a sua força. Maximilian Kolbe não era um homem de compromissos: pensava que a verdade não podia ser disfarçada e que “tudo o que podemos e devemos fazer é procurá-la; e, depois de encontrá-lo, sirva até o fim. Devemos servir a verdade até a morte. Em julho de 1941, um homem desapareceu do bloco 14, onde estava hospedado o Padre Kolbe. Em retaliação, os nazistas selecionaram dez prisioneiros e os condenaram à fome. Maximilian Kolbe se ofereceu para substituir um desses dez homens, um pai chamado Franciszek Gajowniczek. Os dez foram trancados em um bunker subterrâneo mal iluminado. Em poucos dias, a fome e a sede mergulharam os condenados no delírio, mas Maximiliano, graças à oração, conseguiu fazer com que a calma e a misericórdia reinassem entre os seus companheiros de tragédia. Depois de duas semanas sem comida, só restou vivo o Padre Kolbe, que ajudou e viu morrer todos os seus companheiros. Finalmente, em 14 de agosto, foi executado com injeção de fenol no braço. Em 15 de agosto de 1941, festa da Assunção da Virgem Maria, seu corpo foi cremado em forno crematório. —Como encontrar o silêncio diante do sofrimento da morte? Em Pensando sobre a Morte, o filósofo Vladimir Jankélévitch respondeu à pergunta: O momento da morte não é o único momento de verdadeiro silêncio na vida? «Sim, mas para quem observa os moribundos. A pessoa que vai morrer geralmente está em tal estado que as palavras silêncio ou solidão não têm mais sentido para ela. Quem o observa pode representar aquele momento como o momento de silêncio mais extremo, em oposição à existência que o rodeia. Se alguém pode ser protegido, confortado e ajudado durante toda a existência, a passagem da morte, o momento mortal, deve ser atravessada sozinho. 362. – Para responder a esta afirmação gostaria de citar novamente algumas linhas do Padre Samuel em Qui cherchait Théophane: «Nos últimos dias, o irmão Théophane mal conseguia falar. Resolvi recitar o Credo, abreviando-o em algumas perguntas: —Você acredita nisso? — Sim . — Você ama o Senhor? — Sim . — Você ama a Virgem? — Sim . — Você quer fazer a vontade de Deus? - Sim! Eram sim retumbantes e um tanto sibilantes, porque ele estava começando a ter dificuldade em pronunciá-los. Um dia, esses atos, tão simples, tão sólidos, tão sinceros, me emocionaram tanto e, ao mesmo tempo, me deixaram tão engraçado, que interrompi a oração para brincar: -Você é um santo! Ao que ele respondeu no mesmo tom: — Sim? Nos últimos dias tivemos a impressão de que a sua atenção não era constante e questionámo-nos onde estaria a fronteira entre a livre decisão e o mero automatismo. Na realidade, o Irmão Théophane navegou entre uma coisa e outra. O seu silêncio nasceu tanto das recentes dificuldades para falar como de um misto de contemplação e sonolência. Quando percebi isso, sempre perguntava a ele: -Está cansado? -Não. -Você quer continuar? -Sim. A sua adesão a Deus reduzia-se a um assentimento sincero repetido duas ou três vezes num contexto de costumes bem estabelecidos. Não é esse o barro humano de que são feitas todas as orações do homem? 363. – A agonia e a morte são sempre dores intensas e profundas. Mas a atitude silenciosa é a melhor forma cristã de receber a morte. A Virgem Maria permaneceu em pé, em silêncio, aos pés da Cruz do seu Filho. O momento que abre a porta a um encontro que nos permitirá ver Deus, como tão fortemente afirma o Testamento de Jó , é o mais belo silêncio da vida na terra. Mas não é nada próximo ao silêncio do Céu. 364. – Quando se separa do corpo que abandona, a alma ascende em meio a um silêncio incomparável. O grande silêncio da morte é o silêncio da alma que parte para outra pátria: a terra da vida eterna. A harmonia deve ser mantida com o silêncio da alma do falecido. As grandes obras de Deus sempre ocorrem em silêncio. O momento em que o corpo se une à alma e o momento em que essa alma se separa do seu envoltório carnal são momentos de silêncio, momentos eminentemente divinos. 365. – Nada do que é de Deus faz barulho. Nada é violento: tudo é delicadeza, pureza e silêncio. V COMO UM GRITO NO DESERTO O encontro na Grande Chartreuse Na reclusão dos mosteiros e na solidão das celas, com paciência e silêncio, os cartuxos tecem o vestido de noiva da Igreja. São João Paulo II, Carta aos Cartuxos por ocasião do IX Centenário da morte de São Bruno Nosso compromisso e propósito são principalmente fugir para o silêncio e a solidão da cela. Esta é, então, a terra santa e o lugar onde o Senhor e seu servo conversam frequentemente como se fossem amigos; onde a alma fiel se une frequentemente à Palavra de Deus e a esposa vive na companhia do Marido; onde o terreno e o celestial, o humano e o divino se unem . Mas é preciso percorrer um longo caminho por caminhos de aridez e secura antes de chegar às fontes de água e à terra prometida. Por isso é aconselhável que aquele que vive retirado em sua cela seja diligente e solícito para não procurar nem aceitar qualquer saída dela, fora daquelas geralmente estabelecidas; em vez disso , considere a cela necessária para sua saúde e vida, como a água para os peixes e o curral para as ovelhas. Se você se acostumar a abandoná-lo com frequência e por motivos leves, logo ele se tornará odioso; Pois bem, como diz Santo Agostinho: “Para os amigos deste mundo não há nada mais difícil do que não trabalhar”. Pelo contrário, quanto mais tempo permanecer na cela, mais confortável viverá nela, se souber ocupar-se de maneira ordenada e proveitosa na leitura, na escrita, no canto, na oração, na meditação, na contemplação e no trabalho. Enquanto isso, acostume-se a ouvir com calma o seu coração, permitindo que Deus entre por todas as suas portas e caminhos. Assim, com a ajuda divina, evitará os perigos que muitas vezes ameaçam o solitário: seguir o caminho mais fácil na cela e merecer ser contado entre os mornos. Os frutos do silêncio são conhecidos por quem o vivenciou. Embora no iníciopossa ser difícil permanecermos em silêncio, gradualmente, se formos fiéis, o nosso próprio silêncio criará em nós uma atração para um silêncio cada vez maior. Para isso, fica estabelecido que não nos falamos sem a autorização do Presidente. O primeiro ato de caridade para com os nossos irmãos é respeitar a sua solidão. Se nos for permitido discutir qualquer assunto, que a nossa conversa seja tão breve quanto possível. Aqueles que não são da nossa Ordem nem aspiram a ingressar nela, não permaneçam em nossas celas. Os monges do claustro dedicam oito dias por ano a uma maior salvaguarda da quietude da cela e do recolhimento. O que se costuma fazer normalmente por ocasião do aniversário da Profissão. Deus nos trouxe à solidão para falar ao nosso coração. Que o nosso coração seja, então, como um altar vivo, do qual sobe continuamente diante do Senhor uma oração pura, pela qual todas as nossas ações devem ser impregnadas. Estatutos da Ordem dos Cartuxos, Livro 1, cap. 4: A guarda da cela e o silêncio Deus conduziu seu servo à solidão para falar ao seu coração; mas só quem escuta em silêncio percebe o sussurro da brisa suave que manifesta o Senhor. Embora no início possa ser difícil permanecermos em silêncio, gradualmente, se formos fiéis, o nosso próprio silêncio criará em nós uma atração para um silêncio cada vez maior. Portanto, não é permitido aos irmãos falar indiscriminadamente o que quiserem, com quem quiserem ou por quanto tempo quiserem. Porém, podem falar sobre o que é útil para o seu trabalho, mas em poucas palavras e em voz baixa. Além do que corresponde à utilidade do trabalho, só podem falar com permissão, tanto com monges como com estranhos. Visto que manter o silêncio é de extrema importância na vida dos irmãos, é necessário que eles observem atentamente esta regra. Nos casos de dúvida não previstos em lei, fica a critério de cada um julgar se lhe é permitido falar e quanto, de acordo com sua consciência e necessidade. A devoção ao Espírito que habita em nós e a caridade fraterna pedem que os irmãos contem e meçam as suas palavras quando lhes é permitido falar. É de crer que uma conversa longa e inutilmente prolongada entristece mais o Espírito Santo e dissipa mais do que algumas palavras, mesmo ilícitas, mas imediatamente interrompidas. Freqüentemente, uma conversa que começa útil, logo degenera em inútil e acaba sendo repreensível. Nos domingos e solenidades, e também nos dias especialmente dedicados ao retiro, observam com mais atenção o silêncio e a cela. Todos os dias, desde o toque vespertino do Angelus até à Prima, deve reinar em toda a Casa um silêncio perfeito, que não podemos quebrar sem uma necessidade verdadeira e urgente. Porque esta hora da noite, segundo os exemplos da Escritura e os sentimentos dos antigos monges, favorece de forma especial a meditação e o encontro com Deus. Nem é permitido aos irmãos falar sem permissão aos leigos que chegam, nem conversar com eles; Só lhes é permitido retribuir os cumprimentos a quem passa ou que deles se aproxima, e responder brevemente ao que lhes é pedido, desculpando-se por não lhes ser permitido falar mais. Manter o silêncio e o recolhimento interior exige uma vigilância especial por parte dos irmãos, que têm tantas oportunidades de falar. Eles não podem ser perfeitos neste ponto se não procurarem cuidadosamente andar na presença de Deus. Estatutos da Ordem dos Cartuxos, Livro 2, cap. 14: O silêncio -Nicolas DIAT – Por que buscar o silêncio? Numa carta aos seus irmãos cartuxos, São Bruno escreve: «Alegrai-vos, então, meus caríssimos irmãos, pela vossa feliz sorte e pela abundância de graças que Deus vos concedeu. Alegre-se por ter escapado das águas tumultuadas do mundo e de todos os seus perigos e naufrágios. Alegrem-se por terem vindo a possuir paz e segurança, ancorando no porto mais abrigado. Há muitos que gostariam de alcançá-lo; muitos até se esforçam para alcançá-lo, sem conseguir; Muitos, em suma, depois de o terem conseguido, não são admitidos, porque o Céu não o concedeu a ninguém. O primeiro cartuxo convidava muitas vezes a “sair das sombras fugidias do mundo”, aqueles ruídos que já então dissipavam o espírito e o coração dos homens do século XI . Para começar esta entrevista inusitada que nos reuniu na Grande Chartreuse , podemos regressar às origens do desejo de silêncio? — CARDEAL ROBERT SARAH – A autêntica busca do silêncio consiste na busca de um Deus silencioso e na busca da interioridade. É a busca de um Deus que se revela no íntimo do nosso ser. Os monges estão bem conscientes desta realidade quando decidem separar-se do mundo e “desta geração má e adúltera” ( Lc 12, 29-32; Mt 12, 39). Ninguém melhor do que Santo Agostinho nos fez avançar no conhecimento da realidade mais essencial do homem. O olhar que lança sobre o seu próprio passado é uma clarividência admirável. Agostinho quer descobrir no mais íntimo do ser humano a ausência de Deus no pecado, a necessidade de Deus na inquietação, a vinda de Deus na salvação, a presença de Deus na vida da graça. Pense que o conhecimento do homem conduz ao Ser, a um Deus mais íntimo que o mais íntimo de si mesmo. O autor da famosa frase Noverim me, noverim te ( Solil 2, 1), afirma ao longo de toda a sua obra que o autoconhecimento e o conhecimento de Deus estão intimamente unidos. Ir em busca de Deus não consiste em sair de si mesmo para encontrar um objeto no mundo externo, mas sim separar-se desse mundo e recolher-se em si mesmo. «Você não quer derramar; entre em si mesmo, porque a verdade reside no homem interior” ( De vera Religione , 39, 72). «As pessoas viajam – dizia Santo Agostinho – para se maravilhar com as alturas das montanhas, as enormes ondas do mar, os longos cursos dos rios, a imensa vastidão do oceano, o movimento circular das estrelas; e ainda assim eles se contemplam sem demonstrar o menor espanto. Esta é também a doutrina espiritual de São Gregório Magno. «Penetre em você, cara; “sondar o mais íntimo do teu coração” ( Mor 19, 8), aconselha. Para acessar a Deus, o homem deve primeiro conhecer a si mesmo. Na Moralia São Gregório afirma que, para subir à visão de Deus, a alma deve primeiro concentrar-se, recolher-se, enrolar-se em si mesma. O homem não pode esperar conhecer a Deus sem ter se encontrado, isto é, sem ter confessado diante dos outros homens as suas boas e más ações para louvor de Deus. Quem não pode admirar a lucidez de Santo Agostinho? «Oh, Senhor, sinto que você estava antes de mim; Mas, como fugi de mim mesmo, não consegui me encontrar, como poderia te encontrar? O silêncio é um elemento extremamente necessário na vida de qualquer homem. Permite o recolhimento da alma. Protege a alma da perda de sua identidade. Alerta a alma contra a tentação de se afastar de si mesma para ocupar-se das coisas externas, longe de Deus. Se o ser humano quiser entrincheirar-se no fundo do seu coração, naquele belo templo interior, para se examinar e confirmar nele a presença de Deus, se quiser conhecer e compreender a sua identidade, precisa calar-se e conquistar. sua interioridade. Como é possível descobrir-se no meio do barulho? A clarividência e a lucidez de um homem em relação a si mesmo só podem surgir na solidão e no silêncio. O homem silencioso tem uma capacidade muito maior de ouvir e permanecer diante de Deus. O homem silencioso encontra Deus dentro dele. Em cada oração, em cada vida interior é necessário um silêncio, um enterro, uma discrição que convide a não pensar em si mesmo. Nos momentos importantes da vida, o silêncio torna-se uma necessidade essencial. Contudo, não procuramos o silêncio por si só, como se fosse o nosso fim: procuramos o silêncio porque procuramos Deus. E nós o encontraremos se permanecermos em silêncio no fundo dos nossos corações. — DOM DYSMAS DE LASSUS – Para os homens, o silêncio consistesimplesmente na ausência de ruídos e palavras; Mas a realidade é muito mais complexa. O silêncio de um casal que janta sozinho pode expressar a profundidade de uma comunhão que não precisa de palavras; Ou os dois podem não conseguir falar um com o outro. O primeiro silêncio é um silêncio de comunhão e o segundo é um silêncio de ruptura. Estas duas manifestações opostas contêm uma mensagem muito clara; A primeira diz: eu te amo; a segunda: nosso amor acabou. Como esta mensagem é transmitida? Através do olhar, dos gestos e do coração. No primeiro caso, um olhar de amor; no segundo, baixando o olhar. Expressa-se o desejo de um encontro mais profundo; o outro, o fracasso do relacionamento. É evidente que o que queremos falar neste livro é o silêncio da comunhão e a riqueza que ela comporta. Contudo, também dentro desse silêncio há uma grande diversidade. O homem pode calar-se para ouvir e receber tudo o que o silêncio do outro contém. Ele pode ficar em silêncio para expressar de outra forma o que não pertence à linguagem das palavras, ou porque a realidade que tem diante de si é grande demais para poder dizer alguma coisa. Não existe um diálogo silencioso entre uma mãe e o filho que ela carrega no ventre? Às vezes ela fala com ele, talvez já tenha dado um nome a ele, mas geralmente ela apenas sente. Lembro-me que durante a visita anual da minha família ao mosteiro, a minha irmã estava grávida; e de repente, no meio de uma conversa, ele sorriu abertamente. Como o contexto não o motivava, perguntei-lhe: “Por que você está sorrindo, Irene?” E ele respondeu: “Ele se move”. Não havia necessidade de perguntar quem estava se movendo. Gosto desta imagem da grávida porque expressa muito bem o tema da interioridade. Não há necessidade de palavras: quem está aí e pronto. Quando aquele que é Deus, a oração se aproxima, porque a adoração e o silêncio são irmãos. —CRS – Concordo totalmente. Além disso, como pode um padre viver fora do silêncio? O grande mistério da Eucaristia que ele celebra diariamente é motivo suficiente para que ele consagre boa parte da sua vida ao silêncio, de onde deve fluir o cânone carregado de poder e de significado. O cânone é o que há de mais sagrado e divino na missa, que deve ser cercada de dignidade, de silêncio, de sacralidade. O trabalho nos prepara para isso. Todas as criaturas ficam em silêncio, exceto o sacerdote, que tem o poder de falar por todos e em nome de todos diante da majestade divina. O sacerdote une os homens a Deus através de frases simples que são palavras divinas. Coloca a humanidade diante de Deus graças às palavras de consagração com que se pronuncia o Verbo do Pai: determina a presença do Verbo no tempo, em estado concreto, encarnado e sacrificado. O sacerdote tem que saber quando calar e quando falar. É importante orar sete vezes ao dia para louvar a Deus e confessá-lo diante dos homens na santa missa. A dignidade sacerdotal obriga-nos a prestar contas do significado das nossas palavras. Tudo nele, corpo e alma, deve proclamar a Glória de Deus. É por isso que a palavra é mais importante que a vida ou a morte: não precisa necessariamente soar alto neste mundo, desde que seja ouvida no Céu. E, para nutrir essa palavra, o mais importante é permanecer em silêncio. Quando? Quase todo o tempo restante. O narcisismo do excesso de palavras é uma tentação de Satanás. Implica uma forma de exterioridade detestável em que o homem se deita na superfície de si mesmo fazendo barulho para não ouvir Deus. É essencial que os sacerdotes aprendam a guardar para si as palavras e opiniões que não valem a pena meditar, interiorizar e registar no fundo do coração. Devemos pregar a Palavra de Deus, e não as nossas opiniões mesquinhas! Porque «se evangelizo, não é motivo de glória para mim, pois é um dever que recai sobre mim. “Ai de mim se eu não evangelizar!” ( 1Co 9, 16). Esta pregação exige silêncio. Caso contrário, é uma perda de tempo, mero palavreado de julgamento. O exibicionismo espiritual, que consiste em exteriorizar os tesouros da alma, expondo-os descaradamente, indica a trágica pobreza humana e a manifestação da nossa superficialidade. Muitas vezes falamos porque acreditamos que os outros esperam que o façamos. Não sabemos permanecer em silêncio porque a nossa represa interior está tão rachada que já não detém a maré das nossas palavras. O silêncio de Deus deveria nos ensinar que devemos ficar em silêncio com frequência. Quem busca verdadeiramente a Deus sempre atravessa as câmaras do silêncio para chegar aos territórios que nos aproximam das moradas divinas. A Grande Cartuxa é uma dessas câmaras. Esta noite, durante o serviço religioso realizado na igreja do mosteiro, fiquei muito comovido com o silêncio. Enquanto o coro estava totalmente imerso na escuridão e cantava sem luz alguma, pensei que a escuridão era uma invenção extraordinária de Deus. Simplifica e unifica tudo, disfarçando as diferenças, as distinções, as arestas, os detalhes que distinguem alguns monges de outros, submergindo qualquer distração na noite. Naquela escuridão onde brilhava apenas a luz filtrada do sacrário, símbolo da Presença real, fundi-me com os cartuxos: nada me distinguia deles. Só o olho de Deus percebeu uma mancha negra e indigna no meio daquelas almas puras vestidas de branco. Era como se estivéssemos na noite da Vigília Pascal. Todos os serviços não são uma autêntica vigília pascal? Ao longo de todo o serviço a noite envolve-nos, ouvindo- nos cantar os salmos e os cânticos dos três jovens: “Frio e geada, bendito seja o Senhor (...). Geada e neve, bendito seja o Senhor (…). Fontes, bendito seja o Senhor. Noites e dias, bendiga ao Senhor (…). Luz e trevas, bendito seja o Senhor (…). Montanhas e cumes, bendizei o Senhor” ( Dn 3, 69-75). Naquele silêncio sombrio cantamos o hino de agradecimento pela luz que vamos receber. E aqui está Cristo. Chegou. Viva entre nós. A sua Presença silenciosa brilha no fundo da igreja graças à lâmpada do sacrário, aquela sarça ardente que arde sem queimar por Amor por nós. Ele desce às profundezas da noite, reunindo à sua volta os pobres, os que procuram a Deus, e também os nossos Padres na fé: os patriarcas, os profetas, os anjos e "aqueles que vêm da grande tribulação, aqueles que lavaram os seus vestes e branqueou-as com o sangue do cordeiro (…) estar diante do trono de Deus e servi-lo dia e noite no seu templo” ( Ap 7, 14-15). A noite é materna, fascinante, purificadora. As trevas são como uma fonte da qual emergem os monges limpos e iluminados, já não separados, mas unidos em Cristo ressuscitado. —DDL – Você diz que a noite é purificadora: eu diria que também é reveladora. À noite temos plena consciência do ruído que vive em nós, dos pensamentos que nos escapam e nos arrastam um pouco por todo o lado. Durante o dia acontece a mesma coisa, mas vemos menos. Manter o silêncio dos lábios não é difícil: basta querer; mas o silêncio dos pensamentos é outra coisa. Gostamos de cantar à noite, mesmo correndo o risco de errar. Porque? Não é fácil explicar isso. Quando as luzes, os livros, os rostos se acendem, tudo se torna presente, próximo, como uma realidade imediatamente apreensível. Quando as luzes se apagam e só resta a do sacrário, aí estão as nossas vozes e Aquele a quem se dirigem, que permanece escondido. A noite revela o mistério. Noite e mistério são irmãos de sangue. Para nós, o mistério é uma realidade muito positiva. Somos como crianças que contemplam o mar pela primeira vez. Fascinados pelo que veem, ficam adivinhando que o que está além escapa aos seus olhos e até à sua imaginação. Podem dizer que viram o mar, que o conhecem e, ao mesmo tempo, que ainda têm tudo por descobrir sobre ele. Quando se trata do mar sem margens, do infinito de Deus, o mistério oferece uma abertura infinita para Aquele que nunca descobriremos plenamente. As palavras são insuficientes quando se trata de descrever uma realidadeacolhimento e morada da ternura silenciosa de Deus, da qual a actividade à qual se dedicava ruidosamente a tinha distanciado. Cada ação deve ser precedida de uma intensa vida de oração, de contemplação, de busca e de escuta da vontade de Deus. Na carta apostólica Novo Millennio Ineunte, João Paulo II escreve: «É importante que o que propomos, com a ajuda de Deus, se baseie na contemplação e na oração. A nossa época é de movimento contínuo, que muitas vezes leva ao ativismo, com o risco fácil de fazer por fazer . Temos que resistir a esta tentação, procurando ser antes de fazer . Esse é o desejo íntimo e inalterável do monge. Mas é também a aspiração mais profunda de cada pessoa que procura o Pai Eterno. Porque o homem só pode verdadeiramente encontrar Deus no silêncio e na solidão interior e exterior. 15. – Quanto mais nos revestimos de glórias e honras, maior é a nossa dignidade, mais investidos estamos de responsabilidades públicas, de prestígio e de encargos temporais como leigos, sacerdotes ou bispos, mais necessidade temos de avançar na humildade e de cultivar cuidadosamente a dimensão sagrada da nossa vida interior, procurando constantemente ver o rosto de Deus na oração, na meditação, na contemplação e na ascese. Pode acontecer que um sacerdote bom e piedoso, uma vez elevado à dignidade episcopal, caia imediatamente na mediocridade e no desejo de ter sucesso nos assuntos mundanos. Oprimido pelo peso das funções de que está investido, movido pelo desejo de ser visto, preocupado com seu poder, sua autoridade e as necessidades materiais de sua posição, ele gradualmente sufoca. Tanto ele como as suas obras expressam o desejo de ascensão, o desejo de prestígio e uma degradação espiritual. Causa grande dano a ele e ao rebanho do qual o Espírito Santo o constituiu guardião para alimentar a Igreja de Deus, se ele comprar Deus com o sangue de seu próprio Filho. Todos corremos o risco de nos deixarmos monopolizar pelos assuntos e cuidados mundanos se negligenciarmos a vida interior, a oração, a meditação, o face a face diário com Deus, a ascese que todo contemplativo e toda pessoa que deseja ver o Pai Eterno e morar com ele. 16. – Recordemos o que escreveu São Gregório Magno numa carta dirigida a Teoctista, irmã do imperador bizantino Flávio Maurício Tibério, que consta do Registrum Epistolarum . Vítima da tensão entre a vida monástica e o seu encargo pontifício, com tudo o que isso implicava de responsabilidades sociais e políticas, falou com amargura das suas dificuldades em harmonizar a contemplação e a ação: «Perdi as grandes alegrias da minha quietude e, quanto mais eu afundar internamente, mais alto pareço externamente. E sofro por me ver separado da face do meu Criador. Tenho me esforçado dia após dia para viver longe do mundo, longe da carne, para tirar todas as imagens corporais dos olhos da minha alma e contemplar as alegrias do Céu (...). Corri para sentar-me aos pés do Senhor ao lado de Maria, para captar as palavras da sua boca, e agora sou obrigado a cuidar das tarefas externas com Marta, a ir de tarefa em tarefa (...). “Tu os mataste quando eles se levantaram” ( Sl 72:18). Ele não disse: Tu os derrubaste depois que eles ressuscitaram , mas quando eles ressuscitaram , porque todos os ímpios caem interiormente quando, cheios de honras temporais, por fora parecem ascender. Sua ascensão é a causa de sua queda. Porém, há muitos homens que sabem dominar essas subidas externas sem causar-lhes nenhum colapso interno. Por isso escreve: “Deus não despreza os poderosos, porque Ele é poderoso” ( Jb 36, 5)». São Gregório sublinha a contradição que vive: deseja harmonizar a vida contemplativa e a vida ativa, simbolizadas em Marta e Maria. A forte tensão entre o silêncio, a paz monástica e os seus novos encargos temporais só pode ser resolvida intensificando a vida interior e a relação estreita com Deus. 17. – No mesmo sentido, comentando São Lucas, na carta que São Bruno escreve a Raúl le Verd diz-lhe com a delicadeza que o caracteriza: «Quanta utilidade e alegria divina a solidão e o silêncio do deserto trazem com eles! quem os ama! Só quem já experimentou sabe disso. Aqui os homens esforçados podem retirar-se para o seu interior tanto quanto quiserem, habitar dentro de si mesmos, cultivar incessantemente os germes da virtude e alimentar- se alegremente dos frutos do paraíso. Aqui se adquire aquele olho limpo, cujo olhar sereno fere de amor o Esposo e cuja pureza limpa permite ver Deus. Aqui você vive um lazer ativo, você descansa em uma atividade tranquila. Aqui Deus concede aos seus atletas, pelo esforço do combate, a tão esperada recompensa: a paz que o mundo ignora e a alegria no Espírito Santo. Esta é a melhor parte que Maria escolheu e nunca lhe será tirada. »Desejo, querido irmão, que você a ame acima de tudo e no calor de seus abraços você se inflame com o amor divino! Se sua chama se acendesse uma vez em sua alma, logo faria você desprezar a glória do mundo com toda a sua lisonjeira e falsa sedução. Você não sentiria nenhuma dificuldade em abandonar a riqueza, fonte de preocupação e um fardo pesado para a alma, mas sim experimentaria um verdadeiro aborrecimento com os prazeres, tão prejudiciais ao corpo quanto à alma. Que maior perversidade, aliás, o que é mais contrário à razão, à justiça e à própria natureza do que amar mais a criatura do que o Criador, correr atrás do perecível, esquecendo o que é eterno, e colocar os bens terrenos antes dos celestiais? Porque o que é tão justo e tão útil, o que é tão inato e conforme à natureza humana como amar o que é bom? E que bem maior do que Deus? Além disso, existe algum outro bem fora de Deus? Assim, a alma santa com alguma experiência da atratividade, do esplendor e da beleza incomparável de tal bem, arde na chama do amor e exclama: “Tenho sede do Deus forte e vivo, quando irei ver a face do Senhor ?" . É o desejo de ver Deus que nos leva a amar a solidão e o silêncio. Porque Deus habita o silêncio. Está envolto em silêncio. Esta experiência de vida interior e de amor vivido na intimidade com Deus continuou a ser essencial em qualquer época para encontrar a verdadeira felicidade. 18. – Para definir os contornos das nossas ações futuras, é aconselhável permanecer em silêncio diariamente. A vida contemplativa não é o único estado em que o homem deve esforçar-se para deixar o seu coração silencioso. Na vida quotidiana, seja ela profana, civil ou religiosa, o silêncio externo é necessário. Em O Sinal de Jonas, Thomas Merton escreveu: “A necessidade deles é especialmente evidente neste mundo tão cheio de barulho e palavras tolas. O silêncio é necessário para protestar e reparar a destruição e o caos causados pelo pecado do barulho. É verdade que o silêncio não é uma virtude, nem o ruído um pecado, mas o tumulto, a confusão e o ruído constantes da sociedade moderna ou de certas liturgias eucarísticas africanas são a expressão da atmosfera dos seus pecados mais graves, da sua impiedade, da sua desespero. Um mundo de propaganda, de debates intermináveis, de invectivas, de críticas ou de mera tagarelice, é um mundo em que a vida não vale a pena ser vivida. A missa torna-se um rebuliço confuso, as orações tornam-se um ruído externo ou interno: a repetição apressada e mecânica do rosário. »O ofício divino recitado sem recolhimento, sem entusiasmo ou fervor, ou de forma irregular e esporádica, aquece o coração e mata a virgindade do nosso amor a Deus. Pouco a pouco o nosso ministério sacerdotal pode tornar-se o trabalho de um escavador que escava poços de água morta. Vivendo num mundo de barulho e superficialidade decepcionamos a Deus e não conseguimos ouvir as tristezas e queixas do seu coração. Assim diz Yahweh: “Lembro-me de ti, do carinho da tua juventude, do amor do teu esposo, quando me seguiste pelo deserto, por terras não semeadas (…). O meu povo cometeu dois males: abandonou-me a mim, fonte de águasvivas, e cavou para si cisternas, cisternas rachadas que não retêm água” ( Jr 2, 2.13). »Embora seja verdade que devemos saber tolerar o ruído e proteger extraordinariamente a nossa vida interior no meio da turbulência – continua Thomas Merton – não é menos verdade que não é aconselhável resignar-nos a viver numa comunidade constantemente sobrecarregada pela actividade e inundada pelo ruído das máquinas, da publicidade, da rádio e da televisão, que não param de falar. O que há para fazer? Aqueles que amam a Deus devem procurar preservar ou criar uma atmosfera na qual possam encontrá-Lo. Deve haver paz nos lares dos cristãos, porque tanto os seus corpos como as suas casas são templos de Deus. Se necessário, elimine a televisão; não todos, mas aqueles que levam a sério este tipo de coisas (…). Que aqueles que querem o silêncio se juntem a outros que partilham os seus gostos e se ajudem para fazer reinar o silêncio e a paz. Acostume seus filhos a não gritar. As crianças são silenciosas por natureza, desde que sejam deixadas sozinhas, porque se ficarem nervosas desde o berço, tornar-se-ão cidadãs de um Estado onde todos gritam. Proporcionar às pessoas locais de retiro para a tranquilidade, para relaxar o espírito e o coração na presença de Deus: capelas no campo e na cidade, salas de leitura, ermidas. Casas onde possam fazer retiros sem um bombardeio constante de “exercícios” barulhentos: até rezamos em voz alta as orações da Via Sacra; Quando celebramos o mistério da morte de Cristo pelos nossos pecados, gritamos como a multidão perturbada e ímpia de Jerusalém envenenada pelos principais sacerdotes e pelos anciãos do povo. »Para muitos – conclui o trapista – abandonar essas fontes de ruído seria a manifestação de uma importante renúncia e de uma bela disciplina: entendem que precisam do silêncio, mas não se atrevem a mergulhar nele por medo dos que estão ao seu lado. . A sociedade moderna já não pode prescindir da ditadura do ruído, que nos embala, submerge-nos na ilusão de uma falsa democracia, ao mesmo tempo que nos arrebata a liberdade com a violência subtil do diabo, pai da mentira: "Se permaneceres na minha palavra, vós sois verdadeiramente, meus discípulos, conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” ( Jo 8,31-32). 19. – O silêncio interior põe fim aos julgamentos, às paixões e aos desejos. Uma vez que possuímos o silêncio interior, podemos levá-lo conosco para o mundo e orar em todos os lugares. Mas, assim como a ascese interior não pode ser alcançada sem mortificações concretas, é absurdo falar de silêncio interior sem silêncio exterior. No silêncio, cada um de nós encontra uma demanda. O homem domina o tempo da ação se souber entrar no silêncio. A vida de silêncio deve preceder a vida ativa. 20. – O silêncio da vida quotidiana é uma condição essencial para a convivência com os outros. Sem a capacidade de silêncio é impossível ao homem compreender o seu próprio ambiente, amá-lo e assumi-lo. A caridade nasce do silêncio. Nasce de um coração silencioso, capaz de ouvir, compreender e acolher. O silêncio é uma condição de alteridade e uma necessidade para se compreender. Sem silêncio não há descanso, nem serenidade, nem vida interior. O silêncio é amizade e é amor, é harmonia interior e paz. O silêncio e a paz batem com um só coração. O barulho do dia a dia sempre desperta uma certa agitação no homem. Nunca é sereno nem leva à compreensão do outro. Como tinha razão Pascal quando escreveu: “Toda a desgraça dos homens provém de uma única causa: eles não sabem ficar em repouso, num quarto”! No nível exclusivamente físico, o homem só encontra descanso no silêncio. As coisas mais bonitas da vida acontecem em silêncio. Somos capazes de ler ou escrever quando temos silêncio. É impossível imaginar por um momento uma vida de oração separada do silêncio. 21. – Como encontrar o silêncio hoje, num mundo agitado e ultratécnico? O barulho cansa e temos a sensação de que o silêncio se tornou um oásis inatingível. Quantos são forçados a trabalhar em meio a uma confusão de coisas que os afligem e os desumanizam? As cidades tornaram-se infernos barulhentos onde nem mesmo a noite é poupada dos ataques de ruído. Sem ruído, o homem pós-moderno cai numa inquietação monótona e dilacerante. Ele está acostumado a ruídos de fundo constantes que o atordoam e lhe proporcionam conforto. Sem barulho, o homem fica destemido, febril, perdido. O barulho, como uma droga da qual ele se tornou dependente, lhe dá segurança. Com seu aspecto festivo, é um turbilhão que impede que vocês se olhem. A agitação torna-se um tranquilizante, um sedativo, uma bomba de morfina, uma forma de sono, de sonho inconsistente. Esse barulho, porém, é um remédio perigoso e ilusório, uma mentira diabólica que impede o homem de enfrentar o seu vazio interior. O despertar por si só pode ser brutal. 22. – Em Je veux voir Dieu [Quero ver Deus] , o Padre Marie-Eugène escreve: «Vivemos na febre do movimento e da atividade. O mal não está apenas na organização da vida moderna, na pressa que esta vida impõe às nossas ações, na rapidez e facilidade que essa mesma vida garante aos nossos movimentos. Existe um mal mais profundo que se encontra na febre e no nervosismo de temperamento. Você não sabe mais esperar ou ficar em silêncio. E, no entanto, parece que se procura o silêncio e a solidão; O ambiente familiar é abandonado em busca de novos horizontes, outro ambiente. Muitas vezes nada mais é do que se divertir com novas impressões. Quaisquer que sejam as mudanças dos tempos, Deus permanece o mesmo: Tu autem idem Ipse é , e sempre em silêncio ele pronuncia a sua Palavra e a alma nele deve recebê-la. A lei do silêncio nos é imposta como foi imposta a Santa Teresa. A febre e o nervosismo do temperamento moderno tornam-no mais imperioso e obrigam-nos a fazer um esforço mais enérgico para respeitá-lo e submeter-nos a ele. Os sons e as paixões separam-nos de nós mesmos, enquanto o silêncio obriga sempre o homem a questionar a sua própria vida. 23. – A humanidade tem que adotar alguma medida de resistência. O que será do nosso mundo se ele não buscar espaços de silêncio? O descanso interior e a harmonia só podem vir do silêncio: sem ele não há vida. Os maiores mistérios do mundo nascem e crescem no silêncio. Como a natureza se desenvolve? No mais absoluto silêncio. Uma árvore cresce em silêncio e fontes de água fluem do silêncio da terra. O sol nascendo acima da terra, deslumbrante e grandioso, nos aquece em silêncio. O extraordinário é sempre silencioso. A criança cresce silenciosamente no ventre da mãe. Quando um recém-nascido dorme no berço, os pais gostam de mimá-lo com os olhos, sem dizer nada, para não acordá- lo: é um espetáculo que só pode ser contemplado em silêncio, maravilhando-se com o mistério do homem em sua origem. pureza. 24. – As maravilhas da criação são silenciosas e só podemos admirá-las em silêncio. A arte também é fruto do silêncio. Existe outra forma de contemplar uma pintura ou uma escultura, a beleza de uma cor ou a proporção de uma forma, que não seja em silêncio? Boa música é ouvida em silêncio. Espanto, admiração e silêncio estão ligados. Música vulgar e de mau gosto é executada em meio a rebuliço, gritos, alvoroço e agitação diabólica e desgastante. Não se ouve: ensurdece o homem, intoxica-o com o vazio, a confusão e a desesperança. Não experimentamos os mesmos sentimentos, a mesma pureza, a mesma elegância, a mesma elevação de espírito e de alma quando ouvimos em silêncio Mozart, Berlioz, Beethoven ou canto gregoriano. Então o homem entra numa dimensão sagrada e numa liturgia celeste, no limiar da própria pureza. Esta música, graças ao seu carácter expressivo, à sua capacidade de converter as almas, faz vibrar o coração do homem em uníssono com o de Deus. É uma música que recupera a sua sacralidade e a sua origem divina. Segundo Dom Mocquereau, monge beneditino da Abadia deSolesmes, «Platão deixou-nos uma definição admirável de música: é a arte que, ao ajustar a voz, se insere na alma e lhe inspira o gosto pela virtude. Para ele, a melodia mais bela é aquela que expressa com mais perfeição as boas qualidades da alma. As musas, acrescentou, deram-nos uma harmonia cujos movimentos não são semelhantes aos da nossa alma para servir prazeres frívolos, mas para nos ajudar a controlar os movimentos desordenados da nossa alma de acordo com ela; como também nos deram o ritmo para remodelar as formas desprovidas de medida e graça da maioria dos homens. Esta é a visão sublime que os gregos tinham da música. 25. – Os sentimentos que brotam de um coração silencioso se expressam em harmonia e silêncio. As coisas importantes da existência humana são vividas em silêncio, sob o olhar de Deus. O silêncio é a maior liberdade do homem. Nenhuma ditadura, nenhuma guerra, nenhuma barbárie poderá privar-nos deste tesouro divino. —Ouvindo-o compreende-se que, embora o silêncio possa consistir na ausência de palavras, é sobretudo a atitude de quem ouve. Escutar é acolher o outro no coração. Salomão não diz no primeiro livro dos Reis (3,5-15): “dá-me, Senhor, um coração que ouça”? Ele não pede riquezas, nem a vida dos seus inimigos, nem poder, mas um coração silencioso para ouvir a Deus. 26. – O rei Salomão pede a Deus que seja um homem silencioso, ou seja, um verdadeiro filho de Deus. Ele não quer riquezas, nem glória, nem vitória sobre o inimigo, mas um coração que ouve. O mundo moderno, num movimento inverso, transforma o ouvinte num ser inferior. Com fatídica arrogância, a modernidade exalta o homem embriagado de imagens e slogans estridentes, matando o homem interior. 27. – A regra do Carmelo ordena: «Cuidado para não falar muito; porque (…) em muita conversa não faltará pecado. De facto, o apóstolo Tiago ensina a importância da mortificação da língua: «Se alguém não pecar em palavras, é homem perfeito, capaz também de refrear o seu corpo. Se colocarmos um freio na boca dos cavalos para que nos obedeçam, direcionamos todo o seu corpo. Vejam também os navios: embora sejam tão grandes e movidos por ventos fortes, um pequeno leme os direciona para onde a vontade do piloto os quer. Da mesma forma, a língua é um membro pequeno, mas se orgulha de grandes coisas. Vejam como basta pouco fogo para queimar uma grande floresta! Assim também a língua é um fogo, um mundo de iniqüidade; É ela, entre os nossos membros, que contamina todo o corpo e, inflamada pelo inferno, inflama o curso da nossa vida desde o nascimento. Todos os tipos de animais selvagens, pássaros, répteis e animais marinhos podem ser domesticados e de fato foram domesticados pelo homem; Contudo, nenhum homem é capaz de domar a sua língua. É um mal sempre inquieto e cheio de veneno mortal. Com ela bendizemos Aquele que é Senhor e Pai, e com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. Da mesma boca vêm a bênção e a maldição. Isto, meus irmãos, não deveria ser assim” ( Tiago 3, 2-10). Santiago compara a língua ao leme de um navio. Um pedaço de madeira permite guiar todo o barco. O homem que controla a sua língua controla a sua vida, como o marinheiro controla o navio. E pelo contrário: quem fala demais é um navio bêbado. Sim: a verborragia, aquela tendência doentia de exteriorizar todos os tesouros da alma, exibindo-os às vezes e fora do tempo, causa muitos danos à vida espiritual. Seu movimento começa na direção oposta à da vida espiritual que é constantemente internalizada e aprofundada para se aproximar de Deus. Atraído para fora pela necessidade de contar tudo, o charlatão encontra-se longe de Deus e de qualquer atividade profunda. Toda a sua vida corre pelos seus lábios e se derrama em torrentes de palavras que trazem consigo os frutos cada vez mais pobres do seu pensamento e da sua alma. Ele não tem mais tempo para se recompor, para pensar, para viver em profundidade. Com a agitação que cria ao seu redor, ele impede que outros trabalhem e meditem frutuosamente. O charlatão, vaidoso e superficial, é um ser perigoso. O costume hoje difundido de testemunhar publicamente as graças divinas concedidas no mais íntimo do homem expõe-no à superficialidade, à autoviolação da sua amizade interior com Deus e à vaidade. 28. – Temos que aprender, diz Thomas Merton, que “a inviolabilidade do nosso santuário espiritual, do centro da nossa alma, depende da nossa discrição. A discrição é o complemento intelectual de uma intenção pura de manter tudo de bom em segredo, inclusive para si mesmo. Se quisermos encontrar Deus no fundo da nossa alma, devemos deixar de fora o mundo inteiro, incluindo nós mesmos. Se quisermos encontrar Deus em nossa alma e ficar ali com Ele, é desastroso tentar comunicá-Lo aos outros como O vemos. Poderemos fazê-lo mais tarde, com a graça que Ele nos concede no silêncio e com o brilho e a transparência da nossa vida. Damos o verdadeiro testemunho com o exemplo silencioso, puro e radiante da nossa vida. 29. – Hoje a palavra fácil e a imagem vulgar são donas de muitas vidas. Tenho a sensação de que o homem moderno não sabe como parar o fluxo ininterrupto de palavras de julgamento e falsamente morais, e o desejo bulímico de ícones adulterados. O silêncio dos lábios parece algo impossível para o homem do Ocidente. Os meios de comunicação social também tentam as sociedades africanas e asiáticas, levando-as a perderem-se numa selva superabundante de palavras, imagens e ruídos. Telas luminosas precisam de alimento gigantesco para distrair a humanidade e destruir consciências. O fato de permanecer em silêncio dá a impressão de fraqueza, ignorância ou falta de vontade. No regime moderno o homem silencioso passa a ser aquele que não sabe defender-se. Ele é um sub-homem. O homem que se diz forte é, pelo contrário, um ser de palavras. Ele devasta e afoga o outro na torrente do seu discurso. 30. – O homem silencioso já não é sinal de contradição: é apenas um homem supérfluo. Quem fala tem importância e valor, enquanto quem cala recebe pouca consideração. O homem silencioso é reduzido a nada. O simples ato de falar agrega valor. Essas palavras não fazem sentido? Não importa, o ruído adquiriu a nobreza que o silêncio outrora possuiu. O homem que fala é aplaudido; O silencioso é um pobre mendigo para quem nem vale a pena olhar. 31. – Nunca deixarei de agradecer aos bons e santos sacerdotes que generosamente dão a vida inteira pelo Reino de Deus. Mas denunciarei incansavelmente aqueles que são infiéis às promessas da sua ordenação. Para se darem a conhecer ou para imporem a sua própria visão, tanto a nível teológico como pastoral, falam e falam sem parar. São clérigos que repetem as mesmas banalidades. Eu não poderia garantir que Deus habita neles. Quem é capaz de descobrir no transbordamento da sua interioridade uma fonte nascida das profundezas divinas? Mas eles falam, e os meios de comunicação gostam de ouvi-los para fazerem eco da sua tolice, especialmente se falam a favor das novas ideologias pós-humanistas relativamente à sexualidade, à família e ao casamento. Para esses clérigos, a ideia de Deus sobre a vida de casado é um ideal evangélico . O casamento já não é uma exigência e um desejo de Deus, cujo modelo se expressa no vínculo nupcial entre Cristo e a Igreja. A presunção e a arrogância de alguns teólogos levam-nos até a expressar opiniões pessoais difíceis de conciliar com a Revelação, a tradição, o magistério multissecular da Igreja e o ensinamento de Cristo. E assim, fortemente apoiados pelo ruído mediático, chegam a questionar o pensamento de Deus. Paulo VI Segredo não se concretizaram ? «Há um grande descontentamento neste momento na Igreja e o que estão a questionar é a fé (...). O que me alarma quando reflito sobre o mundo católico é que dentro do catolicismo um tipo de pensamento não-católico às vezes parece dominar e pode acontecer que este pensamento não-católicodentro do catolicismo amanhã se torne o mais forte, mas nunca representará o pensamento de a Igreja. É necessário que um pequeno rebanho sobreviva, por menor que seja. É urgente ouvir novamente a voz de São Paulo na sua segunda carta aos Coríntios: «Porque não somos como tantos outros que adulteram a palavra de Deus, mas com sinceridade, como em nome de Deus e diante de Deus, falamos em Cristo" . “Portanto, tendo este ministério por causa da misericórdia que nos foi demonstrada, não desmaiamos (...), não procedendo com astúcia ou falsificando a palavra de Deus, mas recomendando-nos a toda consciência humana pela manifestação da verdade diante de Deus » ( 2 Cor 2, 17 e 4, 1-4). Santo Inácio de Antioquia pedia aos sacerdotes que exortassem os cristãos a caminharem “em sintonia com o pensamento e o sentimento de Deus, pois Jesus Cristo, a nossa vida da qual nada poderá nos separar, é o pensamento do Pai, da mesma forma que também os bispos, estabelecidos até aos confins da terra, estão no pensamento e no sentimento de Jesus Cristo. Todos os bispos têm a grave responsabilidade de ser e representar o pensamento de Cristo. Aqueles que desencaminham as ovelhas que Jesus lhes confiou serão impiedosamente e severamente julgados por Deus. 32. – Na sua carta aos Efésios, Santo Inácio fala muito severamente do silêncio e da fidelidade à doutrina. «É melhor calar e ser, do que falar e não ser. É bom ensinar, se o orador o praticar. Agora tem um professor que falou e o que ele disse aconteceu; sim, e até as coisas que ele fez em silêncio são dignas do Pai. Quem possui a palavra de Jesus é capaz de prestar atenção ao seu silêncio, para ser aperfeiçoado; para que através da sua palavra possa agir e através do seu silêncio possa ser conhecido. Não há nada escondido do Senhor, mas até os nossos segredos estão próximos a Ele. Façamos todas as coisas considerando que Ele vive em nós, para que sejamos Seus templos, e Ele mesmo esteja em nós como nosso Deus. Assim é, e isso se manifestará aos nossos olhos pelo amor que devidamente tivermos por Ele. Não nos enganemos, irmãos. Aqueles que corrompem as famílias não herdarão o reino de Deus. Portanto, se aqueles que fazem estas coisas segundo a carne são mortos, quanto mais se um homem, através de uma má doutrina, corromper a fé de Deus pela qual Jesus Cristo foi crucificado. Este homem, tendo-se corrompido, irá para o fogo que nunca se apaga; e o mesmo acontecerá com aqueles que o ouvem e prestam atenção nele. 33. – Hoje há muita gente embriagada de palavras, gente constantemente agitada, incapaz de ficar calada e de respeitar os outros. Eles perderam a paz e a dignidade. O sábio Ben Sirac recomenda frequentemente sobriedade, prudência e bons modos quando estamos em sociedade. Para não prejudicar a nossa alma nem a dos outros, para que o nosso comportamento ou as nossas palavras não nos levem a quedas graves, é necessária moderação e moderação. E ele está especialmente preocupado com a nossa atitude nas refeições. «A alegria do coração e a alegria e deleite da alma é o vinho bebido no tempo e na medida (...). Vinho bebido em excesso é amargura da alma, mas também provocação e ruína. A embriaguez aumenta a cólera do tolo até cair, diminui-lhe as forças e provoca feridas” ( Si 31, 36.39-40). A resposta de Santo Alberto de Jerusalém, autor da Regra do Carmelo, é clara. Para evitar a queda é necessário permanecer em silêncio e confiar na sabedoria, nas inspirações e na ação silenciosa de Deus. Não devemos “ultrajar o Espírito da graça”. A conquista do silêncio tem o sabor acre das batalhas ascéticas, mas Deus quis que este combate fosse acessível ao homem. 34. – Se o silêncio não a preceder, a palavra corre o sério risco de ser mais uma tagarelice inútil. “A tua força estará na serenidade e na confiança”, diz Isaías ( Is 30,15). O profeta censura o povo de Israel pelo seu activismo idólatra, pela sua paixão política efervescente, feita de alianças de interesses ou de estratégia militar, ora com o Egipto, ora com a Assíria. O povo de Israel não confia mais em Deus. Isaías apela à conversão, à calma e à serenidade. O silêncio atua em conluio com a fé em Deus. Devemos deixar de lado o nervosismo e as falsas desculpas e nos lançar silenciosamente nos braços de Deus. A esperança e a força do homem residem no seu compromisso silencioso com Deus. Mas os homens do passado não deram ouvidos a Isaías. Para fugir para o Egito, eles dependiam de carros, cavalos e do poderio militar egípcio. Foi uma loucura retumbante que levou ao caos. O povo eleito deveria ter colocado a sua vida exclusivamente nas mãos de Deus e permanecido em silêncio. O nosso futuro está nas mãos deles, e não na loucura barulhenta das negociações humanas, por mais úteis que possam parecer. Também hoje as nossas estratégias pastorais sem exigências, sem apelo à conversão, sem um regresso radical a Deus, são caminhos que não levam a nada; jogos políticos que não podem nos levar a Deus crucificado, nosso verdadeiro Libertador. O homem moderno é capaz de todo tipo de ruídos, guerras e falsas declarações solenes em meio ao caos infernal porque excluiu Deus de sua vida, de seus combates e de sua gigantesca ambição de transformar o mundo em seu próprio benefício egoísta. 35. – Aqueles que não se dão a conhecer e permanecem calados são homens verdadeiros. Estou convencido de que as grandes figuras raramente recorrem a palavras fáceis: traçam um caminho com a eloquência dos seus silêncios e com o rigor de uma vida inseparavelmente ligada ao pensamento de Jesus Cristo . E é maravilhoso que sejamos conhecidos pelo nosso silêncio. No alvorecer deste novo milénio, aqueles que permanecem calados são os mais úteis à sociedade: seres de silêncio e de interioridade, vivem a autêntica dimensão do homem. A alma humana não se expressa apenas em palavras. 36. – Nas nossas sociedades consumistas o homem nunca deixa de se exibir, mas negligencia a sua alma. Exibe as armaduras e roupas brilhantes que os mitos usam e são típicas deles. 37. – Na Igreja, sem subestimar o trabalho dos missionários e o mérito do seu sacrifício, os monges e as monjas representam a máxima força espiritual. Os contemplativos são a principal força evangelizadora e missionária, o órgão mais importante e valioso que transmite a vida e mantém a energia essencial de todo o corpo. Deus escolhe pessoas às quais confia a missão de consagrar a sua existência à oração, ao culto, à penitência, ao sofrimento e aos sacrifícios diários aceites em nome dos irmãos, para a glória de Deus, para completar na sua carne o que falta na sofrimentos de Cristo pelo bem do seu Corpo, que é a Igreja. Eles são seres do silêncio. Eles estão constantemente diante de Deus. Dia e noite cantam o louvor do seu nome em nome da Igreja e da humanidade. Não os ouvimos porque contemplam o Invisível e apoiam a obra de Deus. 38. – Os homens e mulheres que rezam em silêncio, à noite e na solidão, são as colunas que sustentam a Igreja de Cristo. Neste tempo de confusão, os contemplativos são consumidos pela oferta generosa de suas vidas por uma existência mais fiel às promessas do Filho de Deus. O verdadeiro missionário, disse São João Paulo II, é o contemplativo em ação. 39. – Desde a sua renúncia, Bento XVI, envolto no silêncio de um mosteiro nos jardins do Vaticano, é uma réplica dos monges. Como os contemplativos, ele serve a Igreja consagrando as suas últimas forças e o amor do seu coração à oração, à contemplação e ao culto a Deus. O papa emérito permanece diante do Senhor para a salvação das almas e para a glória exclusiva de Deus. 40. – Mesmo assim, passados dois milénios, que paradoxo surpreendente ver tantos teólogos charlatões, tantos papas barulhentos, tantos sucessores dos apóstolos pretensiosos e apaixonados pelos seus raciocínios! Contudo, a Igreja, fundada em Pedro e na rocha do Gólgota, é inquebrável. 41. – Cristo viveu trinta anos emsimplesmente na ausência de ruídos e palavras; Mas a realidade é muito mais complexa. O silêncio de um casal que janta sozinho pode expressar a profundidade de uma comunhão que não precisa de palavras; Ou os dois podem não conseguir falar um com o outro. O primeiro silêncio é um silêncio de comunhão e o segundo é um silêncio de ruptura. Estas duas manifestações opostas contêm uma mensagem muito clara; A primeira diz: eu te amo; a segunda: nosso amor acabou. Como esta mensagem é transmitida? Através do olhar, dos gestos e do coração. No primeiro caso, um olhar de amor; no segundo, baixando o olhar. Expressa-se o desejo de um encontro mais profundo; o outro, o fracasso do relacionamento. É evidente que o que queremos falar neste livro é o silêncio da comunhão e a riqueza que ela comporta. Contudo, também dentro desse silêncio há uma grande diversidade. O homem pode calar-se para ouvir e receber tudo o que o silêncio do outro contém. Ele pode ficar em silêncio para expressar de outra forma o que não pertence à linguagem das palavras, ou porque a realidade que tem diante de si é grande demais para poder dizer alguma coisa. Não existe um diálogo silencioso entre uma mãe e o filho que ela carrega no ventre? Às vezes ela fala com ele, talvez já tenha dado um nome a ele, mas geralmente ela apenas sente. Lembro-me que durante a visita anual da minha família ao mosteiro, a minha irmã estava grávida; e de repente, no meio de uma conversa, ele sorriu abertamente. Como o contexto não o motivava, perguntei-lhe: “Por que você está sorrindo, Irene?” E ele respondeu: “Ele se move”. Não havia necessidade de perguntar quem estava se movendo. Gosto desta imagem da grávida porque expressa muito bem o tema da interioridade. Não há necessidade de palavras: quem está aí e pronto. Quando aquele que é Deus, a oração se aproxima, porque a adoração e o silêncio são irmãos. —CRS – Concordo totalmente. Além disso, como pode um padre viver fora do silêncio? O grande mistério da Eucaristia que ele celebra diariamente é motivo suficiente para que ele consagre boa parte da sua vida ao silêncio, de onde deve fluir o cânone carregado de poder e de significado. O cânone é o que há de mais sagrado e divino na missa, que deve ser cercada de dignidade, de silêncio, de sacralidade. O trabalho nos prepara para isso. Todas as criaturas ficam em silêncio, exceto o sacerdote, que tem o poder de falar por todos e em nome de todos diante da majestade divina. O sacerdote une os homens a Deus através de frases simples que são palavras divinas. Coloca a humanidade diante de Deus graças às palavras de consagração com que se pronuncia o Verbo do Pai: determina a presença do Verbo no tempo, em estado concreto, encarnado e sacrificado. O sacerdote tem que saber quando calar e quando falar. É importante orar sete vezes ao dia para louvar a Deus e confessá-lo diante dos homens na santa missa. A dignidade sacerdotal obriga-nos a prestar contas do significado das nossas palavras. Tudo nele, corpo e alma, deve proclamar a Glória de Deus. É por isso que a palavra é mais importante que a vida ou a morte: não precisa necessariamente soar alto neste mundo, desde que seja ouvida no Céu. E, para nutrir essa palavra, o mais importante é permanecer em silêncio. Quando? Quase todo o tempo restante. O narcisismo do excesso de palavras é uma tentação de Satanás. Implica uma forma de exterioridade detestável em que o homem se deita na superfície de si mesmo fazendo barulho para não ouvir Deus. É essencial que os sacerdotes aprendam a guardar para si as palavras e opiniões que não valem a pena meditar, interiorizar e registar no fundo do coração. Devemos pregar a Palavra de Deus, e não as nossas opiniões mesquinhas! Porque «se evangelizo, não é motivo de glória para mim, pois é um dever que recai sobre mim. “Ai de mim se eu não evangelizar!” ( 1Co 9, 16). Esta pregação exige silêncio. Caso contrário, é uma perda de tempo, mero palavreado de julgamento. O exibicionismo espiritual, que consiste em exteriorizar os tesouros da alma, expondo-os descaradamente, indica a trágica pobreza humana e a manifestação da nossa superficialidade. Muitas vezes falamos porque acreditamos que os outros esperam que o façamos. Não sabemos permanecer em silêncio porque a nossa represa interior está tão rachada que já não detém a maré das nossas palavras. O silêncio de Deus deveria nos ensinar que devemos ficar em silêncio com frequência. Quem busca verdadeiramente a Deus sempre atravessa as câmaras do silêncio para chegar aos territórios que nos aproximam das moradas divinas. A Grande Cartuxa é uma dessas câmaras. Esta noite, durante o serviço religioso realizado na igreja do mosteiro, fiquei muito comovido com o silêncio. Enquanto o coro estava totalmente imerso na escuridão e cantava sem luz alguma, pensei que a escuridão era uma invenção extraordinária de Deus. Simplifica e unifica tudo, disfarçando as diferenças, as distinções, as arestas, os detalhes que distinguem alguns monges de outros, submergindo qualquer distração na noite. Naquela escuridão onde brilhava apenas a luz filtrada do sacrário, símbolo da Presença real, fundi-me com os cartuxos: nada me distinguia deles. Só o olho de Deus percebeu uma mancha negra e indigna no meio daquelas almas puras vestidas de branco. Era como se estivéssemos na noite da Vigília Pascal. Todos os serviços não são uma autêntica vigília pascal? Ao longo de todo o serviço a noite envolve-nos, ouvindo- nos cantar os salmos e os cânticos dos três jovens: “Frio e geada, bendito seja o Senhor (...). Geada e neve, bendito seja o Senhor (…). Fontes, bendito seja o Senhor. Noites e dias, bendiga ao Senhor (…). Luz e trevas, bendito seja o Senhor (…). Montanhas e cumes, bendizei o Senhor” ( Dn 3, 69-75). Naquele silêncio sombrio cantamos o hino de agradecimento pela luz que vamos receber. E aqui está Cristo. Chegou. Viva entre nós. A sua Presença silenciosa brilha no fundo da igreja graças à lâmpada do sacrário, aquela sarça ardente que arde sem queimar por Amor por nós. Ele desce às profundezas da noite, reunindo à sua volta os pobres, os que procuram a Deus, e também os nossos Padres na fé: os patriarcas, os profetas, os anjos e "aqueles que vêm da grande tribulação, aqueles que lavaram os seus vestes e branqueou-as com o sangue do cordeiro (…) estar diante do trono de Deus e servi-lo dia e noite no seu templo” ( Ap 7, 14-15). A noite é materna, fascinante, purificadora. As trevas são como uma fonte da qual emergem os monges limpos e iluminados, já não separados, mas unidos em Cristo ressuscitado. —DDL – Você diz que a noite é purificadora: eu diria que também é reveladora. À noite temos plena consciência do ruído que vive em nós, dos pensamentos que nos escapam e nos arrastam um pouco por todo o lado. Durante o dia acontece a mesma coisa, mas vemos menos. Manter o silêncio dos lábios não é difícil: basta querer; mas o silêncio dos pensamentos é outra coisa. Gostamos de cantar à noite, mesmo correndo o risco de errar. Porque? Não é fácil explicar isso. Quando as luzes, os livros, os rostos se acendem, tudo se torna presente, próximo, como uma realidade imediatamente apreensível. Quando as luzes se apagam e só resta a do sacrário, aí estão as nossas vozes e Aquele a quem se dirigem, que permanece escondido. A noite revela o mistério. Noite e mistério são irmãos de sangue. Para nós, o mistério é uma realidade muito positiva. Somos como crianças que contemplam o mar pela primeira vez. Fascinados pelo que veem, ficam adivinhando que o que está além escapa aos seus olhos e até à sua imaginação. Podem dizer que viram o mar, que o conhecem e, ao mesmo tempo, que ainda têm tudo por descobrir sobre ele. Quando se trata do mar sem margens, do infinito de Deus, o mistério oferece uma abertura infinita para Aquele que nunca descobriremos plenamente. As palavras são insuficientes quando se trata de descrever uma realidade