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SUMÁRIO O Coração Delator Os Fatos no Caso do Sr. Valdemar O Barril de Amontillado Biografia do Autor: Edgar Allan Poe O CORAÇÃO DELATOR Edgar Allan Poe, 1843 É verdade! Nervoso, muito e terrivelmente nervoso estive e estou, mas por que você diria que estou louco? A doença aguçou meus sentidos — não os destruiu, não os embotou. A audição aguçou-se acima de todos os outros. Eu ouvia todas as coisas no céu e na terra, e ainda muitas coisas no inferno. Como, então, estou louco? Preste atenção! E observe com que saúde, com que calma sou capaz de lhe contar a história completa. É impossível dizer como foi que a ideia chegou à minha mente, mas, uma vez concebida, assombrou-me dia e noite. Propósito, não havia. Paixão, tampouco. Eu amava o velho. Ele nunca havia me ofendido nem me fizera mal. Por seu ouro eu não tinha nenhuma cobiça. Acredito que foi o olho dele! Sim, foi isso! Um de seus olhos se assemelhava ao de um abutre — um olho azul-claro, coberto por uma película. Sempre que aquele olhar caía sobre mim, meu sangue gelava; e assim, aos poucos — muito aos poucos —, decidi tirar a vida do velho, e dessa forma livrar-me do olho para sempre. Agora, esta é a questão: você imagina que estou louco, mas os loucos nada sabem. Devia ter me visto. Devia ter visto com quanta sensatez procedi, com que cautela, com que prudência, com que dissimulação passei a trabalhar! Nunca fui mais gentil com o velho do que durante toda aquela semana antes de matá-lo. E todas as noites, por volta da meia-noite, virava o trinco de sua porta e a abria — ah, com muita delicadeza! Depois, quando já abrira o bastante para passar minha cabeça, enfiava por ela uma lanterna furta-fogo, fechada, toda fechada, para que nenhuma luz escapasse, e por fim passava a cabeça. Ah, você teria rido ao ver com que astúcia eu agia! Mexia a cabeça devagar — muito, muito devagar, para não perturbar o sono do velho. Demorava uma hora para passá- la inteira pela abertura até vê-lo deitado na cama. Ha! Um louco demonstraria tamanha sensatez? E depois, quando ela estava toda dentro do quarto, abria a lanterna com cuidado — ah, muitíssimo cuidado —, e com cuidado (pois as dobradiças rangiam) abria apenas o bastante para que um único raio fino de luz caísse sobre aquele olho de abutre. Fiz isso por sete longas noites — todas as noites, à meia- noite —, mas encontrei o olho sempre fechado, e por isso foi impossível fazer o serviço, pois não era o velho que me importunava, e sim seu mau-olhado. E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu entrava com coragem no quarto, e com coragem me dirigia a ele, chamando-o pelo nome num tom caloroso e perguntando se havia dormido bem. Então, você entende que ele precisaria ser, de fato, um velho muitíssimo perspicaz para desconfiar que, todas as noites, exatamente à zero hora, eu o espiava enquanto ele dormia. Na oitava noite, tomei um cuidado ainda maior ao abrir a porta. O ponteiro dos minutos de um relógio avançava mais depressa do que minhas mãos. Nunca, antes daquela noite, tinha percebido a extensão de meus próprios poderes — de minha sagacidade. Mal consegui conter minha sensação de triunfo. E pensar que lá estava eu, abrindo a porta, pouco a pouco, e ele nem mesmo sonhava com meus atos e pensamentos secretos. Ri um bocado ao pensar nisso, e talvez ele tenha me ouvido, pois de repente se mexeu na cama, como se assustado. Você pode imaginar que recuei — mas não. O quarto estava escuro como breu na noite espessa (pois as janelas estavam totalmente fechadas, por medo de ladrões); por isso, eu sabia que ele não conseguiria ver a abertura da porta, e continuei a empurrá- la — firme, sempre firme. Passei a cabeça para dentro e estava prestes a abrir a lanterna quando meu polegar escorregou no fecho de latão e o velho deu um pulo na cama, gritando: — Quem está aí? Fiquei imóvel e não disse nada. Passei uma hora inteira sem mexer um músculo e, nesse ínterim, não o ouvi deitar- se. Ele continuou sentado na cama, atento — tal como eu tinha feito, noite após noite, escutando os insetos que viviam dentro da parede1. Logo ouvi um leve gemido e entendi que era o som do terror mortal. Não foi um gemido de dor nem de tristeza — ah, não! Foi o lamento baixo e sufocado que emerge do fundo da alma quando tomada pelo espanto. Eu o conhecia muito bem. Em muitas noites, exatamente à meia-noite, quando todo o mundo dormia, aquele som aflorava do meu próprio âmago, aprofundando, com seu eco pavoroso, os terrores que me distraíam. Digo que o conhecia bem; assim, eu sabia o que o velho sentia e tive pena dele, embora, no íntimo, eu risse. Sabia que ele estivera acordado desde o primeiro leve barulho, quando tinha se virado na cama. Desde então, seus medos assomavam sobre ele. Havia tentado imaginá-los infundados, mas não conseguia. Dissera a si mesmo: “não é nada além do vento na chaminé”, “é só um rato correndo pelo chão” ou “é meramente um grilo que cricrilou uma única vez”. Sim, ele tentara se confortar com essas suposições, mas fora tudo em vão. Tudo em vão, porque a Morte, ao se aproximar, tinha avançado com sua sombra escura diante dele e envolvido a vítima. E foi a influência pesarosa da sombra despercebida que o levou a sentir — embora não tenha visto nem ouvido — a presença da minha cabeça dentro do quarto. Quando eu já tinha esperado um bom tempo, com toda a paciência, sem ouvi-lo se deitar, resolvi abrir uma pequena fresta — uma fresta muito, muito diminuta na lanterna. E assim a abri — você nem imagina com que furtividade, muito furtivo — até que, finalmente, um único raio, pálido e fino como a teia de uma aranha, saiu da fresta e caiu sobre aquele olho de abutre. Estava aberto — bem, bem arregalado — e fiquei furioso ao contemplá-lo. Eu o vi com nitidez absoluta — todo de um azul opaco, coberto por um véu hediondo que gelou a própria medula dos meus ossos. Mas não consegui ver nada mais do rosto nem da pessoa do velho, pois havia dirigido o raio, como que por instinto, precisamente sobre o maldito local. E então, já não lhe disse que o que confunde com loucura é apenas o aguçamento intenso dos sentidos? Naquela hora, estou dizendo, chegou aos meus ouvidos um som baixo, fraco e ligeiro, tal qual o que faz um relógio quando envolto em algodão. Aquele som eu também conhecia bem: era o coração do velho a bater. Isso aumentou minha fúria, tal como o bater de um tambor estimula a coragem do soldado. Mesmo assim, me contive e continuei imóvel; mal respirava. Sustentei a lanterna sem o menor movimento e tentei com toda a firmeza possível manter o raio de luz sobre o olho. Enquanto isso, o rufar infernal do coração cresceu. Ficava mais e mais rápido, e mais e mais alto a cada instante. O terror do velho devia ser imenso! O som ficava mais alto, estou dizendo, mais alto a cada momento! Está prestando atenção? Eu disse que estou nervoso; de fato, estou. E àquela hora, na calada da noite, em meio ao silêncio medonho daquela casa velha, tal som tão estranho me lançou num terror incontrolável. Entretanto, por mais alguns minutos me contive e continuei imóvel. Mas as batidas ficavam mais e mais altas! Achei que o coração explodiria. Então, uma nova inquietação me arrebatou — algum vizinho ouviria aquele som! A hora do velho havia chegado. Com um grito ruidoso, abri toda a lanterna e pulei para dentro do quarto. Ele gritou uma vez — uma vez somente. Num instante, arrastei-o para o chão e puxei a cama pesada por cima dele. Depois, sorri alegremente ao ver meu feito se completar. Mas, por muitos minutos, o coração continuou a rufar com um som abafado. Isso, no entanto, não me importunou; ele não se faria ouvir através da parede. Por fim, cessou. O velho estava morto. Empurrei a cama e examinei o cadáver. Sim, estava feito pedra, morto. Pousei a mão sobre aquele coração e a mantive ali por muito tempo. Não havia pulsação; estava totalmente morto. Seu olho não meatormentaria mais. Se ainda acha que estou louco, não pensará mais assim depois que eu descrever as sábias precauções que tomei para ocultar o corpo. A noite minguou e trabalhei com pressa, mas em silêncio. Primeiramente, desmembrei o cadáver. Cortei a cabeça, os braços e as pernas. Depois, tirei três tábuas do piso do quarto e depositei tudo entre as vigas. Por fim, substituí as placas com tanta destreza e astúcia que nenhum olho humano — nem mesmo o dele — poderia identificar alguma coisa errada. Não havia nada para lavar — nenhuma mancha de tipo algum, nem mesmo uma gota de sangue, tamanha fora minha cautela. Uma tina coletara todo o sangue — ha, ha! Quando terminei essas tarefas, eram quatro da manhã — ainda estava tão escuro quanto à meia-noite. Quando o sino deu as horas, ouviu-se uma batida na porta da casa. Desci para abri-la de coração leve, pois o que tinha a temer então? Entraram três homens, que se apresentaram, com a mais absoluta serenidade, como oficiais da polícia. Durante a noite, um vizinho ouvira um grito e suspeitara de uma ilegalidade; informações foram apresentadas à polícia, e eles, os policiais, foram destacados para investigar a área. Eu sorri, pois o que tinha a temer? Dei as boas-vindas aos cavalheiros. O grito, expliquei, fora meu, enquanto sonhava. O velho, comentei, tinha ido para o campo. Conduzi meus visitantes por toda a casa. Pedi-lhes que investigassem — e investigassem muito bem. Levei-os, por fim, para o quarto dele, do velho. Mostrei-lhes seus tesouros, seguros, intocados. No entusiasmo da minha confiança, levei cadeiras para o quarto e as ofereci para que, ali mesmo, os policiais descansassem de sua fadiga, enquanto eu, na audácia desvairada de meu triunfo perfeito, punha minha própria cadeira sobre o mesmíssimo ponto debaixo do qual jazia o cadáver da vítima. Os oficiais ficaram satisfeitos. Meu comportamento os convencera; eu estava particularmente tranquilo. Sentaram-se e, enquanto eu respondia alegremente, conversaram sobre assuntos familiares. Contudo, dentro em pouco, senti que empalidecia e desejei que partissem. Minha cabeça doía, e eu imaginava um tinido nos ouvidos; mas os policiais não se levantaram nem deixaram de conversar. O tinido ficou mais distinto — continuou, e ficou mais distinto; falei com mais espontaneidade para me livrar da sensação, mas ela persistiu e ganhou um caráter definitivo — até que, finalmente, descobri que o barulho não estava dentro dos meus ouvidos. Sem dúvida, eu já estava muito pálido — mas falei com ainda mais fluência e a voz elevada. Contudo, o som aumentava — e o que eu haveria de fazer? Era um som baixo, fraco e ligeiro, tal qual o que faz um relógio quando envolto em algodão. Arfei, sem fôlego, e ainda assim os oficiais não o ouviram. Falei mais depressa, com mais veemência — mas o barulho continuava a aumentar. Levantei-me e discuti sobre futilidades, em tom estridente e com gestos violentos — mas o barulho continuava a aumentar. Por que não se retiravam? Eu andava de um lado para o outro com passos pesados, como se exaltado à fúria pelos comentários dos homens — mas o barulho continuava a aumentar. Ah, meu Deus! O que eu haveria de fazer? Espumei, vociferei, praguejei! Sacudi a cadeira na qual estivera sentado e a raspei sobre as tábuas, mas o barulho sobrepujava a tudo e insistia em aumentar. Ficou mais alto… mais alto… mais alto! E os homens não paravam de conversar, alegres, e sorrir. Seria possível que não o ouvissem? Deus Todo-Poderoso! Não, não! Eles ouviam… desconfiavam… sabiam! Zombavam do meu horror! Foi isso o que pensei, e é o que acho. Mas qualquer coisa era melhor do que aquela agonia! Qualquer coisa era mais tolerável do que aquele escárnio! Eu não podia mais suportar aqueles sorrisos hipócritas! Senti que, se não gritasse, morreria! E então… de novo! Escute! Mais alto! Mais alto! Mais alto! Mais alto! — Patifes! — berrei. — Parem de fingir! Admito o ato! Arranquem as tábuas! Aqui, aqui! São as batidas daquele horrendo coração! OS FATOS NO CASO DO SR. VALDEMAR Edgar Allan Poe, 1845 É claro que não fingirei crer que a discussão gerada pelo extraordinário caso do sr. Valdemar seja de se admirar. Teria sido um milagre se tal coisa não acontecesse — principalmente, dadas as circunstâncias. Em razão da vontade de todas as partes envolvidas de não revelar o assunto ao público, pelo menos por enquanto, ou até que tivéssemos mais oportunidades de investigar — por meio de nossos esforços para lograr tal feito —, um relato deturpado ou exagerado chegou à sociedade e se tornou fonte de muitas distorções desagradáveis e, muito naturalmente, de grande descrença. Agora, faz-se necessário que eu narre os fatos — até onde os compreendo. Eles são, em suma, estes: Minha atenção, durante os últimos três anos, fora atraída repetidas vezes ao assunto do mesmerismo2, e, cerca de nove meses atrás, ocorreu-me, muito de repente, que, na série de experimentos feitos até então, havia uma omissão das mais espantosas e inexplicáveis: ninguém ainda havia sido mesmerizado in articulo mortis3. Restava saber, primeiro, se, nessa condição, havia no paciente alguma suscetibilidade à influência magnética; e, segundo, se, caso existisse, a condição a diminuía ou ampliava; terceiro, em que grau, ou por quanto tempo, o processo poderia deter a ação da Morte. Havia outras questões a determinar, mas essas eram as que mais instigavam minha curiosidade — em especial, a última, pelo caráter imensamente importante de suas consequências. Ao procurar uma cobaia por meio da qual pudesse verificar tais pormenores, fui levado a pensar em meu amigo, sr. Ernest Valdemar, o célebre organizador da Bibliotheca Forensica e autor (sob o nom de plume de Issachar Marx) das versões polonesas de Wallenstein e Gargântua. O sr. Valdemar, que morou principalmente no Harlem, em Nova York, desde o ano de 1839, é (ou era) especialmente notável pela extrema magreza de sua pessoa, tendo os membros inferiores muito semelhantes aos de John Randolph, e também pela brancura de suas costeletas, em contraste violento com a escuridão do cabelo — este, por consequência, sendo amiúde confundido com uma peruca. Seu temperamento era notoriamente nervoso, tornando-o uma boa cobaia para experimentos mesméricos. Em duas ou três ocasiões eu o pusera para dormir sem dificuldade, mas fiquei decepcionado com outros resultados que sua constituição peculiar me levou a antecipar naturalmente. Sem sombra de dúvida, em nenhum momento sua vontade ficou completamente sob meu controle; e, em relação à clarividência, não obtive com ele nada de confiável. Sempre atribuí meu fracasso nesses aspectos ao seu estado de saúde perturbado. Durante alguns meses, antes de eu conhecê-lo, seus médicos o haviam diagnosticado com tísica crônica. Era costume dele, na verdade, falar calmamente de seu declínio vindouro como um assunto que não deveria ser evitado nem lamentado. Quando as ideias a que me referi me ocorreram pela primeira vez, é claro que foi muito natural para mim pensar no sr. Valdemar. Eu conhecia bem demais a filosofia firme do homem para recear quaisquer escrúpulos da parte dele, e o sr. Valdemar não tinha parentes no país que pudessem interferir. Falei com ele francamente sobre o assunto, e, para minha surpresa, seu interesse pareceu despertar vividamente. Digo para minha surpresa pois, embora ele sempre tenha cedido sua pessoa de bom grado aos meus experimentos, nunca me dera nenhum sinal de afinidade com o que eu fazia. A doença que o afligia era daquela natureza que admitia calcular com exatidão a época de seu término em morte. Desse modo, por fim, decidimos entre nós que ele mandaria me chamar cerca de vinte e quatro horas antes do período anunciado por seus médicos como o de seu falecimento. Passaram-se mais de sete meses desde que recebi do próprio sr. Valdemar o bilhete anexo: “MEU CARO P…, “Já pode vir agora mesmo.D… e F… acreditam que não hei de aguentar até amanhã à meia-noite, e creio que devem ter acertado o horário. “VALDEMAR.” Recebi o bilhete dentro de meia hora depois que foi escrito, e com mais quinze minutos já estava no quarto do moribundo. Eu não o via fazia dez dias e fiquei horrorizado com a transformação terrível que o breve intervalo havia operado nele. Seu rosto exibia um tom de chumbo, os olhos estavam completamente sem brilho e a emaciação era tão extrema que a pele fora rompida pelos ossos malares. A expectoração era excessiva. Mal se percebia o pulso. Ele preservava, no entanto, e de maneira extraordinária, tanto a capacidade mental quanto certo grau de força física. Falou com distinção, tomou alguns remédios paliativos sem precisar de ajuda e, quando entrei no quarto, estava ocupado esboçando memorandos a lápis num caderninho, sentado na cama, apoiado em travesseiros. Os médicos D… e F… estavam presentes. Depois de apertar a mão de Valdemar, puxei aqueles cavalheiros à parte e obtive deles um relato minucioso da condição do paciente. Havia dezoito meses que o pulmão esquerdo chegara a um estado semiossificado ou cartilaginoso e, é claro, tornara-se completamente inútil a todos os propósitos de vitalidade. O direito, na porção superior, também estava parcial, se não completamente, ossificado, enquanto a região inferior não passava de uma massa de tubérculos purulentos, esbarrando uns contra os outros. Havia várias perfurações extensas, e, num ponto, ocorrera adesão permanente às costelas. Aquelas aparições no lado direito eram de uma data mais recente. A ossificação havia prosseguido com uma rapidez muito incomum; um mês antes, não se descobrira nenhum sinal dela, e a adesão só fora identificada durante os três dias anteriores. Além da tísica, suspeitava-se que o paciente sofrera um aneurisma da aorta; mas, quanto a isso, os sintomas ósseos impossibilitavam um diagnóstico exato. Ambos os médicos acreditavam que o sr. Valdemar morreria em torno da meia-noite do dia seguinte (domingo). Eram, então, sete horas da noite de sábado. Ao deixar a cama do paciente para travar uma conversa comigo, os doutores D… e F… despediram-se dele pela última vez. Não tinham a intenção de voltar, mas, a meu pedido, concordaram em visitar o paciente por volta das dez horas da noite seguinte. Quando eles se foram, falei sem reservas com o sr. Valdemar sobre o assunto de seu falecimento vindouro, bem como, mais particularmente, do experimento proposto. Ele ainda se declarava disposto e até ansioso por isso e pediu que eu começasse o quanto antes. Havia uma enfermeira e um enfermeiro à disposição, mas eu não me sentia totalmente à vontade para realizar uma tarefa daquela natureza sem testemunhas mais confiáveis do que aquelas, em caso de acidente repentino, poderiam revelar que eram. Portanto, adiei os procedimentos até cerca de oito horas da noite seguinte, quando a chegada de um estudante de medicina que eu conhecia, o sr. Theodore L… l, aliviou-me de mais constrangimento. Meu plano original fora esperar pelos médicos, mas fui induzido a prosseguir, primeiro, pelas súplicas urgentes do sr. Valdemar e, segundo, por minha convicção de que não tinha um momento sequer a perder, pois era evidente que ele decaía a toda pressa. O sr. L…l fez a gentileza de aquiescer ao meu desejo e anotar tudo o que acontecesse, e é a partir de seus memorandos que aquilo que agora tenho a narrar será, na maior parte, condensado ou copiado verbatim. Faltavam cerca de cinco minutos para as oito quando, pegando a mão do paciente, pedi-lhe que declarasse ao sr. L…l, com as palavras mais nítidas possíveis, se ele, o sr. Valdemar, estava plenamente disposto a deixar que eu fizesse o experimento de mesmerizá-lo na condição em que se encontrava. Ele respondeu com voz fraca, mas muito audível: — Sim, quero ser mesmerizado. — Logo em seguida, acrescentou: — Receio que você tenha adiado demais o procedimento. Enquanto assim falava, comecei os passes que já havia descoberto serem mais eficazes em subjugá-lo. Ele foi obviamente influenciado pelo primeiro gesto lateral da minha mão diante de sua testa; mas, embora tenha empregado todos os meus poderes, não houve nenhum efeito perceptível até alguns minutos após as dez horas, quando os doutores D… e F… chegaram, atendendo ao compromisso. Expliquei-lhes em poucas palavras o que planejava e, como não fizeram nenhuma objeção, dizendo que o paciente já estava na agonia da morte, procedi sem hesitar — trocando, no entanto, os passes laterais pelos movimentos para baixo e dirigindo meu olhar inteiramente para o olho direito do sofredor. Àquela altura, seu pulso era imperceptível e sua respiração estertorosa, ocorrendo a intervalos de meio minuto. Essa condição permaneceu quase inalterada por um quarto de hora. No fim desse período, contudo, um suspiro natural, embora muito profundo, escapou do peito do moribundo, e a respiração estertorosa cessou — isto é, os estertores já não se faziam notar; os intervalos não diminuíram. As extremidades do paciente eram de uma frieza gélida. Aos cinco minutos antes das onze, percebi sinais inequívocos da influência mesmérica. O movimento vítreo do olho foi substituído por aquela expressão de investigação interna e inquieta que nunca se vê, a não ser em casos de sonambulismo, e que é quase inconfundível. Com alguns passes laterais rápidos, fiz as pálpebras estremecerem, como no sono incipiente, e com mais algumas as fechei por completo. No entanto, isso não me satisfez, e continuei as manipulações com vigor e o máximo empenho da vontade até haver enrijecido por completo os braços e pernas do adormecido, depois de deixá-los numa posição aparentemente fácil. As pernas estavam totalmente esticadas; os braços, quase da mesma forma, jaziam sobre a cama a uma distância moderada dos quadris. A cabeça estava levemente elevada. Quando cheguei a esse resultado, já era meia-noite, e pedi aos cavalheiros presentes que examinassem a condição do sr. Valdemar. Depois de algumas experiências, admitiram que ele entrara num estado excepcionalmente perfeito de transe mesmérico. A curiosidade dos médicos estava muito atiçada. Na mesma hora, o dr. D… decidiu ficar com o paciente a noite toda, enquanto o dr. F… se despediu com a promessa de voltar ao raiar do dia. O sr. L…l e os enfermeiros ficaram. Só perturbamos o sr. Valdemar por volta das três horas da manhã, quando me aproximei dele e o encontrei exatamente na mesma condição de quando o dr. F… partira — isto é, deitado na mesma posição; o pulso era imperceptível; a respiração, suave (quase não se notava, a menos que se aproximasse um espelho dos lábios); os olhos encontravam-se fechados, naturalmente; e os braços e pernas estavam rígidos e frios como mármore. Ainda assim, a aparência geral sem dúvida não era a da morte. Ao me aproximar do sr. Valdemar, fiz uma espécie de tentativa de influenciar seu braço direito a acompanhar o meu, enquanto o passava com delicadeza para lá e para cá por cima de sua pessoa. Em tais experimentos com aquele paciente, eu nunca tivera êxito perfeito e, com certeza, dessa vez, também não tinha grande esperança de sucesso; mas, para meu espanto, seu braço, embora fraco, acompanhou muito prontamente todas as direções que determinei com o meu. Decidi arriscar a troca de algumas palavras. — Sr. Valdemar — chamei —, está dormindo? Ele não respondeu, mas percebi um tremor nos lábios e, assim, fui incentivado a repetir a pergunta, de novo e de novo. Na terceira repetição, um levíssimo tremor agitou todo seu corpo, as pálpebras se abriram a ponto de exibir uma linha branca do globo ocular, os lábios se moveram vagarosos e, dentre eles, num sussurro quase inaudível, emitiram-se as palavras: — Sim… estou dormindo. Não me acorde! Deixe-me morrer assim! Apalpei os braços e as pernas dele e os encontrei mais rígidos do que nunca. O braço direito, como antes,obedeceu à direção da minha mão. Questionei o sonâmbulo uma vez mais: — Ainda sente dor no peito, sr. Valdemar? Dessa vez, a resposta foi imediata, mas ainda menos audível do que antes: — Não há dor… Estou morrendo. Não me pareceu oportuno perturbá-lo ainda mais por enquanto, e nada mais foi dito ou feito até a chegada do dr. F…, que chegou pouco antes do amanhecer e expressou espanto desmedido ao encontrar o paciente ainda vivo. Depois de sentir o pulso e aproximar um espelho dos lábios, ele pediu que eu voltasse a falar com o sonâmbulo. Foi o que fiz, dizendo: — Sr. Valdemar, ainda está dormindo? Tal como antes, alguns minutos se passaram antes que houvesse resposta; e, durante o intervalo, o moribundo pareceu estar reunindo forças para falar. À quarta repetição da pergunta, falou com uma voz muito fraca, quase inaudível: — Sim, ainda estou dormindo… morrendo. Nesse momento, os médicos consideraram, ou melhor, pediram que o sr. Valdemar fosse deixado em paz na sua condição aparentemente tranquila até que a morte sobreviesse — e a opinião geral era de que isso aconteceria dentro de alguns minutos. Decidi, contudo, falar com ele uma vez mais, e limitei-me a repetir a pergunta anterior. Enquanto eu falava, houve uma mudança notável no semblante do sonâmbulo. Os olhos se abriram devagar, com as pupilas reviradas para cima, desaparecendo; a pele adquiriu uma tonalidade cadavérica, parecendo não tanto um pergaminho, mas uma folha de papel branco; e as marcas circulares de rubor que, até então, eram muito visíveis no centro de cada bochecha, apagaram-se num instante. Uso essa expressão porque a rapidez do desaparecimento me fez pensar na chama de uma vela extinta por um sopro de ar. Ao mesmo tempo, o lábio superior se retorceu, revelando os dentes, que antes cobriam por completo, enquanto a mandíbula inferior caiu com um estalo audível, escancarando a boca e exibindo a todos a língua inchada e escurecida. Presumo que nenhuma das pessoas então presentes estivesse desacostumada aos horrores do leito de morte, mas tão horrenda e inconcebível era a aparência do sr. Valdemar naquele momento que houve um movimento geral de recuo da área da cama. Agora creio ter chegado a um ponto desta narrativa em que o choque lançará cada leitor na mais absoluta descrença. A mim cabe, contudo, simplesmente prosseguir. Já não havia o menor sinal de vitalidade no sr. Valdemar; concluindo que estava morto, estávamos entregando-o aos cuidados dos enfermeiros quando se observou um forte movimento vibratório na língua. Tal ocorrência continuou por cerca de um minuto. Ao final desse período, ergueu-se das mandíbulas distendidas e inertes uma voz — e seria loucura da minha parte tentar descrevê-la. Há, na verdade, dois ou três epítetos que se poderia aplicar a ela, em parte; poderia-se dizer, por exemplo, que o som era rouco, irregular e oco, mas a totalidade hedionda é indescritível pela simples razão de que nenhum som semelhante jamais abalou os ouvidos da humanidade. Havia dois pormenores, no entanto, que considerei então, e ainda considero, que poderiam ser classificados como característicos da entonação — tão bem adaptados estavam para transmitir a ideia de sua peculiaridade sobrenatural. Em primeiro lugar, a voz parecia chegar aos nossos ouvidos — pelo menos aos meus — de uma vasta distância, ou de alguma caverna profunda no interior da terra. Em segundo lugar, impressionou-me (receio, na verdade, que será impossível fazer-me compreender) tal como a matéria gelatinosa ou pegajosa impressiona o sentido do tato. Falei tanto do “som” quanto da “voz”. Digo agora que a separação das sílabas era distinta — até mesmo maravilhosa e esplendidamente distinta. O sr. Valdemar falou, obviamente em resposta à pergunta que eu lhe havia feito alguns minutos antes. Eu perguntara, deve- se lembrar, se ele ainda dormia. E ele disse: — Sim… não… eu estava dormindo… e agora… agora… estou morto. Nenhuma pessoa presente sequer fingiu negar, nem tentou reprimir, o horror inexprimível e trêmulo que essas poucas palavras, assim proferidas, foram tão bem calculadas para comunicar. O sr. L…l (o estudante) desmaiou. Os enfermeiros saíram do quarto imediatamente, e foi impossível convencê-los a voltar. Não tenho a pretensão de tornar minhas próprias impressões inteligíveis para o leitor. Por quase uma hora, ocupamo-nos, em silêncio — sem pronunciar uma única palavra — em tentativas de reanimar o sr. L…l. Quando ele recobrou os sentidos, voltamos a investigar a condição do sr. Valdemar. Permanecia em todos os aspectos tal como a descrevi anteriormente, com a exceção de que o espelho não oferecia mais sinais de respiração. Uma tentativa de extrair sangue do braço fracassou. Devo dizer, também, que esse membro não estava mais sujeito à minha vontade. Esforcei- me em vão para fazê-lo seguir a direção da minha mão. Na verdade, naquela hora, a única indicação real da influência mesmérica se via no movimento vibratório da língua sempre que eu dirigia uma pergunta ao sr. Valdemar. Ele parecia estar se esforçando para responder, mas não lhe restava vontade suficiente. Às perguntas propostas por qualquer outra pessoa que não eu, ele parecia totalmente indiferente — ainda que eu tentasse colocar cada um dos presentes em sintonia mesmérica com ele. Acredito que agora narrei tudo o que é necessário à compreensão do estado do sonâmbulo naquele momento. Outros enfermeiros foram convocados, e às dez horas saí da casa em companhia dos dois médicos e do sr. L…l. À tarde, todos voltamos para ver o paciente. Sua condição permanecia exatamente igual à de antes. Tivemos então um debate sobre a justeza e a possibilidade de despertá-lo, mas não tivemos muita dificuldade em concordar que fazê-lo não serviria a nenhum propósito bom. Era óbvio que, até o momento, a morte (ou o que geralmente se chama de morte) fora detida pelo processo mesmérico. Parecia claro para todos nós que despertar o sr. Valdemar seria apenas garantir sua decomposição instantânea, ou, no mínimo, ligeira. Desse período até o final da semana passada — um intervalo de quase sete meses — continuamos a fazer visitas diárias à casa do sr. Valdemar, acompanhados, de vez em quando, de médicos e outros amigos. Por todo esse tempo, o adormecido-desperto permaneceu exatamente como já o descrevi. Os cuidados dos enfermeiros foram contínuos. Foi na sexta-feira passada que finalmente decidimos fazer o experimento de despertá-lo, ou de tentar despertá-lo; e foi o resultado (talvez) lamentável de tal experimento que gerou tanta discussão em círculos particulares — e tanto do que não posso deixar de ver como um sentimento popular injustificado. Na intenção de aliviar o sr. Valdemar do transe mesmérico, recorri aos passes habituais. Estes, por um tempo, não tiveram êxito. O primeiro sinal de reavivamento foi proporcionado pela descida parcial da íris. Observou-se como especialmente notável que tal movimento tenha sido acompanhado pelo derramamento profuso de um icor amarelado (de baixo das pálpebras) com um odor pungente e muitíssimo desagradável. Sugeriu-se então que eu deveria tentar influenciar o braço do paciente, como outrora. Tentei e fracassei. O dr. F… sugeriu que eu fizesse uma pergunta. Foi o que fiz, tal como segue: — Sr. Valdemar, pode nos explicar quais são seus sentimentos ou desejos neste momento? Na mesma hora, os círculos febris de rubor voltaram às bochechas; a língua estremeceu, ou melhor, sacudiu-se violentamente na boca (embora as mandíbulas e os lábios permanecessem rígidos como antes); e, por fim, a mesma voz hedionda que já descrevi de lá irrompeu: — Pelo amor de Deus!… Já!… Já!… Ponha-me para dormir… ou… Já!… Acorde-me!… Já!… Eu já lhe disse que estou morto! Fiquei absolutamente alarmado e, por um instante, não consegui decidir o que fazer. A princípio, fiz uma tentativa de tranquilizar o paciente, mas, falhando nisso por meio daevasão total da vontade, refiz meus passos e me dediquei com afinco a despertá-lo. Nessa tentativa, logo percebi que teria êxito — ou, pelo menos, logo imaginei que meu êxito seria total — e tenho certeza de que todos no quarto estavam preparados para ver o paciente despertar. Para o que de fato aconteceu, porém, é completamente impossível que qualquer ser humano pudesse estar preparado. Enquanto eu repetia rapidamente os passes mesméricos, em meio às exclamações de “Morto! Morto!” que vertiam copiosamente da língua e não dos lábios do sofredor, de uma só vez, todo o seu corpo — dentro de um único minuto, ou ainda menos — murchou, desmoronou e apodreceu por completo sob minhas mãos. Na cama, diante de toda aquela gente, jazia uma massa quase líquida de putrescência repugnante — e detestável. O BARRIL DE AMONTILLADO Edgar Allan Poe, 1846 As mil ofensas de Fortunato eu suportara da melhor maneira possível, mas, quando ele se aventurou a passar do limite, jurei vingança. Você, que conhece tão bem a natureza de minha alma, não vá supor, contudo, que dei voz a uma ameaça. No devido tempo, eu me vingaria; essa era uma questão consolidada em caráter definitivo — mas esse mesmo caráter anulava a ideia do risco. Eu não deveria somente punir, mas punir com impunidade. O mal não se repara se a reparação se voltar contra o reparador. Fica igualmente sem reparo quando o vingador não consegue mostrar-se como tal para aquele que o prejudicou. Deve-se entender que nem por palavra nem por gesto dei a Fortunato razão para duvidar de minha boa vontade. Continuei, como de hábito, a sorrir diante dele, e ele não percebeu que eu passara a sorrir por pensar na sua imolação. Ele tinha um ponto fraco, esse Fortunato, embora em outros aspectos fosse um homem a se respeitar e até a se temer: orgulhava-se de seu conhecimento de vinhos. Poucos italianos têm o verdadeiro espírito virtuoso. A maior parte adota o entusiasmo para se adequar ao momento e à ocasião, para exercer a impostura perante os milionários ingleses e austríacos. Na pintura e na joalheria, Fortunato, como seus conterrâneos, era um charlatão, mas, em se tratando de vinhos antigos, era genuíno. Nesse aspecto, não éramos muito diferentes um do outro; eu mesmo era um hábil conhecedor das safras italianas e adquiria muitos vinhos sempre que podia. Foi ao cair da noite, durante a loucura suprema da época de carnaval, que encontrei meu amigo. Ele me abordou com excessivo regalo, pois já bebera muito. Estava vestido de bufão: usava um traje listrado em algumas partes e ajustado ao corpo, e sua cabeça estava coberta com um gorro em formato de cone com guizos. Fiquei tão feliz em vê-lo que achei que nunca pararia de apertar sua mão, dizendo-lhe: — Meu caro Fortunato, que alegria encontrá-lo. Com que bela aparência está hoje! Mas recebi um barril de algo que se passa por amontillado e tenho cá minhas dúvidas. — Como é que é? — retrucou ele. — Amontillado? Um barril? Impossível! E bem no meio do carnaval! — Tenho cá minhas dúvidas — respondi — e fui tolo o bastante para pagar o preço total do amontillado sem consultá-lo a respeito. Não consegui encontrá-lo e tive medo de perder a pechincha. — Amontillado! — Tenho cá minhas dúvidas. — Amontillado! — E preciso dirimi-las. — Amontillado! — Como você tem um compromisso, vou procurar por Luchesi. Se alguém é capaz de perceber, é ele. Ele poderá me dizer… — Luchesi não consegue distinguir amontillado de xerez. — Ainda assim, certos tolos acreditam que o paladar dele é páreo para o seu. — Venha, vamos lá. — Aonde? — À sua adega. — Não, meu amigo; não vou me aproveitar de sua boa vontade. Estou vendo que tem um compromisso. Luchesi… — Não tenho compromisso nenhum. Vamos. — Não, meu amigo. Não é o compromisso, mas esse forte resfriado que percebi que o aflige. A adega é insuportavelmente úmida. Está incrustada de salitre. — Vamos mesmo assim. O resfriado não é nada. Amontillado! Eu é que vou me aproveitar de você. E, quanto a Luchesi, ele não consegue distinguir xerez de amontillado. Assim falando, Fortunato tomou posse do meu braço. Colocando uma máscara de seda preta e cobrindo-me com meu capote, deixei que ele me conduzisse depressa ao meu palazzo. Não havia nenhum empregado em casa; tinham escapulido para se divertir, fazendo jus à época. Eu lhes dissera que só voltaria na manhã do dia seguinte, deixando ordens explícitas para que não saíssem de casa. Essas ordens bastaram, como eu bem sabia, para garantir o desaparecimento imediato de todos assim que lhes dei as costas. Tirei dos suportes duas tochas e, entregando uma a Fortunato, fi-lo curvar-se para atravessar diversos cômodos até a arcada que levava à adega. Desci uma escada longa e sinuosa, pedindo-lhe que tomasse cuidado ao me seguir. Chegamos, finalmente, ao pé da escada, e pisamos juntos o chão úmido das catacumbas dos Montresor. O andar do meu amigo oscilava, e os guizos em seu gorro tilintavam enquanto caminhava. — E o barril? — quis saber. — Está mais adiante — respondi —, mas observe a teia branca a cintilar nessas paredes cavernosas. Ele se voltou para mim e fitou meus olhos com dois orbes turvos que destilavam a reuma da embriaguez. — É salitre? — perguntou, por fim. — Isso mesmo. Há quanto tempo você tem essa tosse? — Cof, cof, cof!… Cof, cof, cof!… Cof, cof, cof!… Cof, cof, cof!… Cof, cof, cof! Durante alguns minutos, meu pobre amigo foi incapaz de responder. — Não é nada —disse ele, finalmente. — Venha — chamei, decidido. — Vamos voltar; sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; é feliz, como já fui. Sentiriam sua falta. Quanto a mim, não há problema; vamos voltar, ou você ficará doente, e não quero ser responsável. Além disso, Luchesi pode… — Basta — insistiu ele. — A tosse não é nada; não vai me matar. Não morrerei de tosse. — Verdade… verdade — respondi. — E, além disso, eu não tinha intenção de alarmá-lo sem necessidade, mas você deveria tomar todo o cuidado possível. Um trago deste médoc nos protegerá da umidade. Nesse momento, abri o gargalo de uma garrafa que tirei de uma longa fileira de suas iguais, que jaziam sobre o mofo. — Beba — falei, oferecendo-lhe o vinho. Ele o ergueu aos lábios com um olhar de soslaio. Parou e abanou a cabeça para mim num gesto camarada, enquanto seus guizos tilintavam, dizendo: — Bebo aos que foram enterrados e repousam ao nosso redor. — E eu, à sua vida longa. Mais uma vez, ele pegou meu braço e prosseguimos. — Esta cripta é profunda — comentou ele. — Os Montresor foram uma família grande e numerosa — redargui. — Esqueci seu brasão. — Um enorme pé humano de ouro em um campo azul; o pé esmaga uma serpente feroz cujas presas estão cravadas no calcanhar. — E o lema? — Nemo me impune lacessit.4 — Ótimo! — disse ele. O vinho cintilava em seus olhos e os guizos tilintavam. O médoc também aqueceu minha imaginação. Havíamos passado por paredes de ossos empilhados, intercalados de tonéis e pipas, rumo aos recantos mais íntimos das catacumbas. Parei novamente e, dessa vez, atrevi-me a pegar Fortunato pelo braço, acima do cotovelo. — O salitre! — exclamei. — Veja, está cada vez mais abundante. Pende do teto feito musgo. Estamos abaixo do leito do rio. A umidade se infiltra por entre os ossos. Venha, vamos voltar antes que seja tarde demais. Sua tosse… — Não é nada — disse ele. Vamos em frente. Mas, primeiro, mais um trago do médoc. Abri e entreguei-lhe um frasco de vinho de Graves, que ele esvaziou de uma vez só. Seus olhos irradiaram uma luz feroz. Ele riu e jogou a garrafa para cima com um gesto que não entendi. Encarei-o, surpreso. Ele repetiu o movimento — que era grotesco. — Não compreendeu? — perguntou. — Não — respondi. — Então você não é da irmandade. — Como assim? — Você não é maçom. — Sou, sim — afirmei. — Sou, sim. — Você? Impossível! Você, maçom? — Maçom, sim. — Então mostre um símbolo — disse ele. — Ei-lo— respondi, exibindo a colher de pedreiro que levava debaixo do meu capote. — Está brincando! — exclamou ele, recuando alguns passos. — Mas vamos atrás do amontillado. — Que assim seja — concordei, guardando a ferramenta outra vez e oferecendo-lhe o braço, no qual ele se apoiou pesadamente. Continuamos nossa rota em busca do amontillado. Passamos por uma série de arcos baixos, descemos, seguimos em frente e descemos outra vez, chegando a uma cripta profunda, na qual a impureza do ar fez com que nossas tochas apenas incandescessem, em vez de arder em chamas. No canto mais remoto da cripta havia outra menos espaçosa. As paredes estavam revestidas de restos humanos empilhados até a abóbada, à moda das grandes catacumbas de Paris. Três lados dessa cripta interior continuavam ornamentados dessa maneira. Do quarto, os ossos haviam sido arrancados e jaziam desordenados sobre a terra, formando um monte de tamanho considerável. Dentro da parede exposta pela retirada dos ossos divisamos outro nicho interno, com cerca de um metro e vinte de profundidade, quase um de largura e de altura mais ou menos dois metros. Parecia ter sido construído sem nenhum propósito em especial, formando apenas o intervalo entre dois dos colossais suportes do teto das catacumbas, e era apoiado por uma das paredes de granito sólido que o cercavam. Foi em vão que Fortunato, erguendo sua tocha quase apagada, esforçou-se para espiar as profundezas do nicho. A luz fraca não nos permitiu enxergar sua extremidade. — Prossiga — anunciei. — Aí está o amontillado. Quanto a Luchesi… — Ele é um ignorante — interrompeu-me o meu amigo, avançando e lá entrando sem firmeza nos passos, enquanto eu ia logo em seu encalço. Num instante, ele alcançou o limite do nicho e, vendo seu progresso detido pela parede de rocha, parou, estupidamente aturdido. Mais um momento e eu já o tinha agrilhoado ao granito. Na superfície da rocha havia duas argolas de ferro, distantes uma da outra cerca de meio metro, no sentido horizontal. De uma pendia uma corrente curta; da outra, um cadeado. Jogando os elos da corrente em torno da cintura dele, fechar o cadeado foi tarefa de meros segundos. Ele estava atônito demais para resistir. Retirando a chave, saí do nicho. — Passe a mão pela parede — falei. — É impossível não sentir o salitre. Na verdade, é muito úmido. Mais uma vez, deixe-me implorar para voltarmos. Não? Então, sem dúvida, vou deixá-lo. Mas, primeiro, devo prestar-lhe todos os pequenos cuidados que estiverem ao meu alcance. — O amontillado! — exclamou meu amigo, que ainda não se recuperara do assombro. — É verdade — respondi. — O amontillado. Ao dizer tais palavras, revolvi a pilha de ossos que mencionei antes. Jogando-os de lado, logo descobri certa quantidade de pedras para construção e argamassa. Com esses materiais e o auxílio da minha colher de pedreiro, comecei a cobrir vigorosamente a entrada do nicho. Mal completara a primeira camada de alvenaria quando descobri que a embriaguez de Fortunato havia, em grande parte, se dissipado. O primeiro sinal que tive disso foi um lamento baixo vindo das profundezas do nicho; não foi o lamento de um bêbado. Em seguida, sobreveio um silêncio longo e obstinado. Completei a segunda camada, a terceira e a quarta; então, ouvi a trepidação furiosa da corrente. O som durou vários minutos, durante os quais, para poder ouvi-lo com a máxima satisfação, cessei meu trabalho e sentei-me sobre os ossos. Quando, por fim, o barulho diminuiu, retomei a colher e concluí sem interrupção a quinta, a sexta e a sétima camadas. A parede já chegava quase à altura do meu peito. Mais uma vez, parei e, segurando a tocha acima da construção, lancei alguns raios fracos sobre a figura no interior dela. Uma sucessão de gritos ruidosos e estridentes, irrompendo, súbitos, da garganta da figura acorrentada, pareceu me empurrar violentamente para trás. Por um breve momento, hesitei; tremi. Desembainhando meu florete, comecei a tatear com ele o nicho, mas bastou pensar por um instante para me tranquilizar. Pousei a mão sobre a estrutura sólida das catacumbas e fiquei satisfeito. Mais uma vez, aproximei-me da parede. Respondi aos gritos daquele que clamava. Eu os reecoei, auxiliei-os, superei-os em volume e força. Fiz isso, e aquele que clamava silenciou. Era meia-noite e minha tarefa se aproximava do fim. Havia completado a oitava, a nona e a décima camada. Também terminara uma parte da última, a décima primeira; restava apenas uma única pedra para encaixar e fixar com reboco. Esforcei-me para erguer o peso e deixei-a parcialmente na posição destinada. Mas, então, veio do nicho uma risada baixa que arrepiou os cabelos da minha cabeça. Foi sucedida por uma voz triste, que tive dificuldade em reconhecer como a do nobre Fortunato. Disse a voz: — Ha, ha, ha!… He, he, he!… Ótima piada, sem dúvida… Excelente zombaria. Vamos rir à farta disso no palazzo… he, he, he!… Tomando vinho… he, he, he! — O amontillado! — falei. — He, he, he!… He, he, he!… Sim, o amontillado. Mas não está ficando tarde? Não devem estar nos esperando no palazzo… a sra. Fortunato e os outros? É hora de ir. — Sim — respondi. — É hora de ir. — Pelo amor de Deus, Montresor! — Sim — repeti. — Pelo amor de Deus! Mas a essas palavras esperei em vão por uma resposta. Perdi a paciência e gritei: — Fortunato! Respondeu-me o silêncio. Gritei mais uma vez: — Fortunato! Ainda, o silêncio. Passei a tocha pela abertura que restava e a deixei cair no interior do nicho. Veio em resposta apenas o tilintar dos guizos. Meu coração pesava — era por causa da umidade das catacumbas. Apressei-me a concluir minha obra e empurrei a última pedra para sua posição, fixando-a com reboco. De encontro à nova parede, reergui a antiga muralha de ossos. Durante meio século, nenhum mortal os perturbou. In pace requiescat! BIOGRAFIA DO AUTOR: EDGAR ALLAN POE Corvos, corações arrancados, assassinatos macabros. A literatura nunca mais foi a mesma depois que a caneta de Edgar Allan Poe tocou o papel. O mestre do terror nasceu em 19 de janeiro de 1809, em Boston, nos Estados Unidos, filho de dois atores, Eliza e David Poe. A matriarca precisou cuidar dos três filhos sozinha após David abandonar a família, e morreu cedo após contrair tuberculose. Edgar ficou sob os cuidados de John e Frances Allan, mas nunca foi oficialmente adotado, tendo conflitos constantes com o pai adotivo. Poe estudou na Escócia e na Inglaterra, onde recebeu uma educação clássica, e continuou seus estudos em Richmond, nos Estados Unidos. Ele frequentou a Universidade da Virgínia durante o ano de 1826, mas começou a enfrentar problemas financeiros ao se envolver com jogos de azar. Sua carreira literária começou com a publicação de uma coletânea de poemas intitulada “Tamerlane and Other Poems”, sob o pseudônimo “A Bostonian”, em 1827, mas o mundo precisaria esperar alguns poucos anos para conhecer o grande autor que ele viria a se tornar. Ainda novo, se juntou ao exército sob o nome de “Edgar Perry” e se saiu excepcionalmente bem, conseguindo se tornar sargento em apenas dois anos de serviço. Ele então foi para West Point, onde mais uma vez se saiu bem, agora academicamente, mas voltou a ter problemas financeiros. Ele então se mudou para Baltimore, onde ficou por quatro anos, vivendo com diversos familiares. Foi durante seu período na cidade que começou a escrever contos e a despertar o interesse de periódicos literários. O Southern Literary Messenger, que ficava em Richmond, foi o primeiro a contratá-lo e foi o veículo que publicou suas primeiras histórias de terror: “Metzengerstein” e “Berenice”. Essa última foi considerada tão gráfica e aterrorizante que a revista recebeu várias reclamações dos leitores. O editor do periódico ofereceu um emprego a Poe e ele retornou a Richmond. Poe convidou sua tia, Maria, e prima, Virginia, para morar com ele em Richmond e, um ano depois, Poe e Virginiase casaram. Ela tinha 13 anos, ele 27, e há muito debate a respeito da natureza do relacionamento deles. Poe muitas vezes se referia a Virginia como irmã e Maria como mãe. Segundo o The Poe Museum, “embora muitas pessoas, hoje, presumam que seu relacionamento era familiar, nunca saberemos o que aconteceu em seu casamento a portas fechadas”. Segundo relatos, acreditava- se que ele era mais responsável e mais feliz durante os anos em que ambas viviam com ele. O autor saiu do Southern Literary Messenger e se mudou para a Philadelphia, onde começou a se tornar o Edgar Allan Poe que conhecemos hoje. Foi a partir dali que histórias como “O Coração Delator” e “Os Assassinatos da Rua Morgue” foram escritas. Essa última é considerada a primeira história moderna de detetive, inspirando autores como Sir Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, que mudariam para sempre o gênero. Poe também abriu as portas para a ficção científica e a comédia, mas sua contribuição para a literatura de terror e horror era a que o tornaria mundialmente reconhecido. “O Corvo”, seu trabalho mais famoso, o tornou um sucesso incontestável. Mesmo tendo recebido pouco pela publicação em si, a fama abriu as portas para o autor e fez com que Poe se tornasse o primeiro escritor estadunidense a viver completamente de seus ganhos com a escrita. Edgar Allan Poe revolucionou as histórias macabras da literatura e é considerado um dos primeiros a trazer mais profundidade às narrativas do gênero e desenvolver um forte fator psicológico. Nas palavras do The Poe Museum, “ele muitas vezes escreveu histórias em que o verdadeiro monstro era a capacidade para o mal que está dentro de cada pessoa, e o que acontece quando esse mal é posto em prática”. Da mesma forma que perdeu a mãe, Poe perdeu a esposa para a tuberculose em 1847 e nunca mais se recuperou emocionalmente da perda. Após a morte da esposa, ele voltou para Richmond, onde se envolveu com Elmire Royster Shelton, um antigo romance. Entretanto, sua saúde estava fragilizada após um ataque de cólera e sua noiva insistiu que ele fosse até Baltimore para se consultar com um médico. Do dia 27 de setembro até o dia 3 de outubro não se tem registros de Poe, mas ele foi encontrado delirando em uma taverna, aparentemente bêbado e usando roupas de outra pessoa. Ele passou dias alternando em um estado de consciência e delírio até falecer no dia 7 de outubro de 1849. A causa da morte ainda é discutida e existem diversas teorias tão enigmáticas quanto os mistérios que Poe escreveu. Assim como suas histórias, sua vida continua sendo objeto de estudo e especulação e reforça a grandeza do legado deixado pelo autor. Edgar Allan Poe continua sendo lembrado como um dos maiores nomes da literatura e, de forma inegável, como o mestre da literatura fantástica. 1 No texto original em inglês, Poe se refere a esses insetos como “death watches in the wall”. Há discordância entre os estudiosos do autor quanto à identidade de tão intrigante insetinho: alguns acreditam que se trate do Xestobium rufovillosum, ou deathwatch beetle (algo como “besouro-relógio- da-morte” em tradução livre, uma vez que não tem nome comum no Brasil), um inseto que costuma ficar dentro das paredes mastigando madeira e produz um som agourento de tique-taque ao bater a cabeça na parede para chamar seus pares. É um inseto grande e produz um barulho que se assemelha ao tamborilar de um lápis em séries irregulares de seis a oito batidas; Poe, entretanto, descreve o som como “baixo, fraco e ligeiro”, numa alusão ao próprio bater de um coração, portanto alguns estudiosos consideram que se trate do Liposcelis divinatorius, conhecido no Brasil como piolho-de-livro, um inseto menor que produz um ruído semelhante ao descrito no conto. De qualquer forma, é um bichinho dos mais interessantes, afinal, foi o responsável por fomentar um debate entre a tradutora e a preparadora de quase meia hora, cujo resultado é esta nota. [N. T. e N. P.] 2 No final do século XVIII, o médico alemão Franz Anton Mesmer criou o conceito de “magnetismo animal” ou “mesmerismo”, que consiste na utilização da hipnose no tratamento e cura de doenças em seres humanos. Ele acreditava que todos os seres vivos possuíam uma espécie de campo magnético ou força natural invisível que poderia ter efeitos físicos, incluindo propriedades de cura, e que esta força poderia ser transmitida através das mãos pelo corpo. A prática é precursora do passe na doutrina espírita. [N. P.] 3 Na iminência ou na hora da morte. [N. T.] 4 Do latim: “ninguém me ataca impunemente”. [N. T.] O Coração Delator Os Fatos no Caso do Sr. Valdemar O Barril de Amontillado Biografia do Autor: Edgar Allan Poe