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Faculdade de Medicina da Universidade do Porto MEDICINA LEGAL - 2003/2004 NOÇÕES GERAIS SOBRE OUTRAS CIÊNCIAS FORENSES 1. Toxicologia Forense 2. Genética e Biologia Forense e Criminalística 3. Psiquiatria e Psicologia Forense 4. Antropologia e Odontologia Forense 5. Perícias em caso de responsabilidade médica Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses 1 TOXICOLOGIA FORENSE Rui Rangel a) INTRODUÇÃO Toxicologia representa a ciência cujo principal objectivo é a identificação e quantificação dos efeitos adversos associados com a exposição a determinados agentes. Esses agentes, que assumem a designação de tóxicos, são normalmente substâncias químicas de origem inorgânica ou orgânica, às quais, em sentido mais lato, se podem associar certos agentes físicos ou outras condições. A toxicologia compreende o estudo dos tóxicos e das intoxicações, de modo a estabelecer os limites de segurança com que os meios biológicos podem interagir com os tóxicos. Considera-se a toxicologia moderna constituída por quatro disciplinas principais: clínica, forense, reguladora e de investigação. Em função da área de actividade adoptam-se as seguintes sub- divisões: Ecotoxicologia, Toxicologia Alimentar, Toxicologia Clínica, Toxicologia Experimental, Toxicologia Forense, Toxicologia Industrial, Toxicologia dos Medicamentos, Toxicologia Ocupacional e Toxicologia Regulamentadora. A definição do conceito de tóxico é muito difícil, uma vez que qualquer substância, mesmo aquelas que fazem parte essencial dos organismos vivos, pode ser lesiva ou produzir transtornos no equilíbrio biológico. Nesta medida, todas as substâncias seriam tóxicas, incluindo aquelas que à partida, são habitualmente assumidas como alimentos ou medicamentos. São vários os critérios pelos quais os tóxicos podem ser classificados. Para melhor sistematização, em toxicologia analítica classificam-se os tóxicos de acordo com os métodos extractivos adequados ao isolamento do analito. Assim consideram-se sete grupos de tóxicos, a saber: gases; substâncias voláteis; substâncias orgânicas termolábeis; metais ou metalóides; pesticidas; aniões; outras substâncias mais específicas. A toxicologia forense insere-se no âmbito da toxicologia analítica tendo, por conseguinte, como principal objectivo a detecção e quantificação de substâncias tóxicas. Contudo, a actividade do toxicologista forense aplica-se a situações com questões judiciais subjacentes para as quais importa reconhecer, identificar e quantificar o risco relativo da exposição humana a agentes tóxicos. Como tal aproveita conhecimentos alcançados em praticamente todas as áreas da toxicologia moderna. Até ao século XX, a toxicologia forense limitava-se a estabelecer a origem tóxica de um determinado crime; o “toxicologista” actuava directamente no cadáver com a mera intenção da pesquisa e identificação do tóxico. Actualmente o campo de acção desta ciência é mais vasto, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense estendendo-se desde as perícias no vivo e no cadáver até circunstâncias de saúde pública, tais como aspectos da investigação a nível da actividade laboral ou do meio ambiente. No caso das pessoas vivas estes exames têm sobretudo a ver com perícias toxicológicas para rastreio e confirmação de drogas de abuso no âmbito dos exames periciais ou médicos para caracterização do estado de toxicodependência (Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01) e com o regime legal da fiscalização do uso de substâncias psicoactivas nos utilizadores da via pública (Decreto- Lei nº 265-A/2001, de 28/09; Decreto-Lei nº 2/98, de 3/01; Decreto Reg. nº 24/98, de 30/10; Portaria nº 1006/98, de 30/11). Neste último caso a participação do INML compreende, além dos procedimentos para garantia de cadeia de custódia de produtos e amostras, os exames de quantificação de álcool etílico no sangue, e o rastreio e confirmação da presença das substâncias legalmente consideradas estupefacientes e psicotrópicas na urina e no sangue, respectivamente. Os exames no vivo têm como objectivo a avaliação da intoxicação como circunstância qualificadora de delito, como causa de perigosidade ou de inimputabilidade. Em caso de morte por intoxicação que se enquadra no âmbito da morte violenta, existe obrigatoriedade de, nesta suspeita, se proceder à autópsia médico-legal (Decreto-Lei nº 96/01, de 26/03), e consequentemente, em geral, à requisição de perícia toxicológica. As intoxicações podem ser criminais, legais (pena de morte), acidentais (alimentares, mordedura de animais, absorção acidental, medicamentosas) ou voluntárias (lesões auto infligidas, toxicodependência, terapêutica). Distinguem-se três formas de intoxicação segundo a velocidade de desencadeamento de acções ou dos efeitos tóxicos: intoxicação aguda, sub-aguda e crónica. Os tóxicos podem actuar sobre a célula produzindo uma destruição global da mesma por processos de necrose, ou sobre o sistema enzimático ou partes selectivas da célula (membranas, estruturas endocelulares ou organelos celulares). As principais reacções adversas produzidas pelos tóxicos a nível do sistema enzimático evidenciam-se através da inibição irreversível (ex: insecticidas organofosforados orgânicos) ou reversível (ex: carbamatos) de certos complexos enzimáticos. Na interpretação dos resultados analíticos devem ser considerados factores como a dose e via de administração; produtos de “corte” consumidos (impurezas ou adulterantes); efeitos aditivos, antagonismo ou sinergismo devido a associação com outras substâncias; estados patológicos existentes; idiossincrasias. A resposta do organismo a um determinado tóxico depende, para além dos factores do “hospedeiro”, da sua concentração no orgão alvo (orgão mais acessível ou mais sensível aos efeitos após exposição) e do seu mecanismo de acção. Há portanto que determinar a relação entre exposição, dose e resposta. Como tal, é importante conhecer a cinética das substâncias no organismo. Os principais fases em toxicocinética são absorção, distribuição, metabolização e eliminação. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses Cada um destes passos pode influenciar a extensão da toxicidade produzida pelo agente tóxico, pelo que uma avaliação do ponto de vista da toxicocinética pode ser importante na apreciação dos dados analíticos obtidos. Em toxicologia, o processo de metabolização (ou biotransformação) assume especial interesse, dado que os tóxicos são geralmente agentes xenobióticos, portanto particularmente susceptíveis a sofrer alterações metabólicas no organismo, o que pode resultar na produção de novas substâncias designadas por metabolitos. Como factores do hospedeiro que afectam muitas das respostas a diversos tipos de agentes tóxicos podemos considerar as determinantes genéticas, idade, género, e outros tais como dieta ou coexistência de doença infecciosa. Estes factores podem afectar a exposição e a dose, através de alterações na absorção, distribuição ou metabolismo. A variabilidade nas populações humanas e no indivíduo deve ser considerada na avaliação de riscos da exposição a tóxicos e na ponderação de testes e estudos de investigação toxicológica em organismos não humanos. As diferentes intoxicações humanas apresentam geralmente um quadro sintomatológico comum, que por isso associa um conjunto de sintomas tóxicos inespecíficos. Os sintomas mais frequentes e de pior prognóstico para a recuperação do intoxicado são os seguintes: comas, síndromas hepatotóxicos,nefrotóxicos, cardiovasculares, respiratórios e hematológicos, neuropatias periféricas de origem tóxica e síndromes dermatológicos. Em toxicologia analítica, a investigação toxicológica é o conjunto de processos analíticos que têm por objectivo o reconhecimento, identificação e quantificação dos tóxicos para diagnóstico de intoxicação e esclarecimento dos factos. Em toxicologia forense executam-se perícias toxicológicas que implicam investigação toxicológica humana no vivo ou no cadáver, baseada em procedimentos de garantia de qualidade e de cadeia de custódia, com o objectivo do esclarecimento de questões de âmbito judicial supostamente relacionadas com intoxicações. Existe uma grande variedade de amostras que podem ser analisadas em toxicologia forense, tais como órgãos colhidos na autópsia, fluídos biológicos obtidos do cadáver ou do vivo, e produtos orgânicos e inorgânicos suspeitos (líquidos, sólidos, vegetais, etc.). Conforme a especificidade do caso e o tipo de análise pretendida, procede-se à selecção e colheita da amostra ou das amostras mais adequadas. A estas não pode ser adicionado qualquer preservante ou conservante, devendo o seu acondicionamento e remessa obedecer a critérios de garantia da cadeia de custódia, passos fundamentais à preservação da prova e correcta realização da perícia. Assim, na conservação das amostras deve ser eliminado todo e qualquer factor de contaminação, nomeadamente para o seu acondicionamento deve-se atender às condições de luz, humidade e calor - fontes prováveis de reacções de oxidação ou hidrólise que podem acelerar a decomposição dos produtos. O exame toxicológico deve ser capaz de detectar qualquer substância química exógena (xenobiótico) presente no material objecto da perícia. O facto de existirem um elevado número de Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense substâncias tóxicas constitui uma limitação importante na realização destas perícias, pelo que a maior parte dos laboratórios dirigem a sua investigação na procura daqueles que, segundo a casuística da respectiva área de actividade, estão implicados na maior parte dos casos. Para a selecção dos tóxicos a pesquisar é fundamental a informação sobre o evento (policial, clínico, familiar) e a descrição dos achados da autópsia, uma vez que cada caso tem as suas próprias particularidades. As metodologias de investigação passam por uma série de fases: rastreio, confirmação, quantificação e interpretação. Iniciam-se por um teste geral (que detecta um grande número de substâncias, permitindo fazer uma triagem de casos negativos) e, só numa fase posterior se recorre aos métodos de confirmação (que permitem confirmar a presença de substância suspeita, bem como identificá-la e/ou quantificá-la). As técnicas de análise toxicológica variam desde os clássicos métodos não instrumentais, tais como reacções volumétricas ou colorimétricas, até outros mais sofisticados para os quais se recorre a tecnologia apropriada, simples ou acoplada, como as técnicas espectrofotométricas (ex: espectofotometria de absorção molecular - UV-Vis, de infra-vermelhos - IR ou de absorção atómica - AAS), cromatográficas (ex: cromatografia gasosa – GC e cromatografia líquida - HPLC), imunoquímicas (ex: Elisa, imunoensaios com fluorescência polarizada – FPIA ou radioimunoensaio - RIA), e de espectrometria de massas - MS. O resultado destas perícias apresenta-se na forma de relatório onde devem constar, para além duma eventual interpretação dos resultados, os seguintes dados: identificação do processo e da entidade requisitante, método analítico utilizado e referências à técnica de isolamento utilizada, datas de recepção de amostras e de conclusão dos exames, amostras analisadas, especialista responsável pela execução das análises, níveis de detecção e de quantificação, estado das amostras analisadas, e outros que possam ser considerados relevantes para elaboração de conclusões. Geralmente, o relatório de perícia toxicológica é enviado ao perito médico que requisitou a perícia, sendo posteriormente remetido à entidade requisitante isoladamente ou em conjunto com o relatório de autópsia ou de clínica médico-legal. O “álcool” e as “drogas de abuso” são as substâncias que, na actualidade, fazem parte da maioria das requisições de exames toxicológicos. O consumo de bebidas alcoólicas pode ocasionar intoxicação acidental ou voluntária, ou mesmo profissional, sendo o agente tóxico responsável o álcool etílico (ou etanol). A intoxicação pode resultar da ingestão de bebidas alcoólicas em quantidade variável, de forma esporádica ou habitual, podendo dar origem a intoxicações agudas no primeiro caso ou crónicas no segundo. As intoxicações agudas apresentam formas leves (embriaguez), que pode ter elevado interesse médico-legal, pela sua influência na condução rodoviária, pelo seu importante efeito criminogéneo Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses e por várias outras questões de ordem legal que se podem colocar como, por exemplo, questões de responsabilidade penal. As formas graves desta intoxicação são esporádicas, podendo em alguns casos ser causa de morte. Nestes casos, em virtude dos sintomas, é por vezes difícil o diagnóstico diferencial com situações de traumatismo craniano. As intoxicações crónicas têm consequências importantes, por exemplo a nível clínico originando gastrites, dispepsia, miocardites ou cirroses, e em termos psiquiátricos levando a quadros patológicos como delirium tremens, alucinações ou demências. Consideram-se como “drogas de abuso” todas as substâncias químicas de origem diversa que apresentam a característica comum de serem substâncias psicoactivas, cujo consumo ilícito se processa de modo, mais ou menos, compulsivo. As “drogas de abuso” mais comuns inserem-se nos seguintes grupos de substâncias: opiáceos, cocaína, canabinóides, anfetaminas e outros produtos naturais ou de síntese laboratorial análogos a psicofármacos ou com efeito alucinogénico. Como se verifica face aos grupos enunciados, não se trata de um grupo homogéneo, pelo que implica uma classificação mista de modo a atender às características químicas, mecanismo de acção ou efeitos produzidos no organismo. No vivo, os estudos relacionados com “drogas de abuso” são feitos essencialmente para avaliação do estado de toxicodependência e em casos de condução sobre influência destas drogas. Nas situações de morte associada ao consumo de drogas, esta pode surgir por sobredosagem (overdose simples ou por associação de agentes potenciadores), ou por outras circunstâncias associadas ao consumo, como uma reacção anafilática à droga ou aos produtos de corte, doenças infecciosas (SIDA ou hepatite) ou outras complicações (acidentes, suicídio, homicídio, morte súbita, pneumonia, etc.). b) A AUTÓPSIA EM CASOS DE SUSPEITA DE INTOXICAÇÃO A autópsia em casos de suspeita de intoxicação pode ocorrer em dois tipos de situações distintas: 1) autópsia imediata - morte recente (cadáver não inumado) 2) autópsia tardia - morte há muito tempo (cadáver inumado) No caso de se tratar de uma autópsia imediata os procedimentos são semelhante às autópsias realizadas por outros motivos, excepto no que diz respeito à colheita de amostras (órgãos ou fluídos biológicos) para posterior exame toxicológico. - Convém, no entanto, relembrar que contrariamente à ideia generalizada de que nestes casos é só colher e enviar amostras para exame toxicológico, este tipo de autópsia implica uma atenção especial a todo um conjunto de elementos tão ou mais importantes quanto o resultadodo exame toxicológico. Esses elementos a ter em consideração vão desde o exame do local, à informação respeitante às circunstâncias que rodearam a morte, ao exame do hábito externo e do Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense hábito interno, ao resultado de outros exames complementares de diagnóstico que não os toxicológicos, por forma a ser possível estabelecer um diagnóstico diferencial. a) Exame do local em casos de suspeita de morte por intoxicação Nos casos de suspeita de morte por intoxicação, quem procede ao exame do local deve ter especial atenção à existência de: - restos de vómito - na vítima (corpo, roupa suja de vómito) - no local onde foi encontrada - cheiro ou odores no local (intoxicação por gases, fumos, etc.) - torneira do gás aberta / fechada - exaustão dos gases de combustão - presença de braseira ou qualquer outra fonte produtora de monóxido de carbono - janelas e portas abertas / fechadas - existência de dispositivos para recolher gases de combustão de motores (ex. mangueira ligada ao cano de escape) - presença de outros elementos indiciadores de morte por intoxicação - seringas/agulhas, algodão, limão - tampas de garrafas - colheres - “pratas” - “cachimbos” - embalagens de medicamentos - frascos ou contentores de tóxicos (pesticidas, outros produtos químicos) b) Informação em casos de suspeita de morte por intoxicação O perito médico antes de iniciar uma autópsia com suspeita de intoxicação deve dispor de toda a informação social colhida junto de familiares e/ou amigos ou vizinhos da vítima. Deve haver, sempre que possível, informação sobre: - fármacos habituais? quais? quantidades? desde quando? - consumo de drogas? tipo? vias? desde quando? - antecedentes patológicos (doença psiquiátrica) - tentativas de suicídio anteriores - método? quando? quantas vezes? - ideação suicida - carta ou bilhete de despedida Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses No caso de ter havido sobrevida com passagem e tratamento hospitalar não poderá o cadáver ser enviado para autópsia médico-legal sem os respectivos registos clínicos onde conste claramente: - tóxico suspeito/respectiva pesquisa e/ou doseamento pela toxicologia clínica - sobrevida (data e hora de entrada e da verificação de óbito) - a evolução clínica - sintomas apresentados - tratamentos efectuados - lavagem gástrica - administração de antídotos c) Aspectos relevantes no exame do hábito externo e interno em casos de suspeita de morte por intoxicação As substâncias tóxicas podem actuar sobre o corpo humano provocando lesões por acção local (ex. tóxicos caústicos e tóxicos irritantes) ou por acção sistémica. No caso das lesões por acção sistémica, esta pode manifestar-se sob a forma de acção tóxica directa ou indirecta. Conforme se trate de lesão por acção local ou sistémica do tóxico podemos ter aspectos lesionais macro e microscópicos completamente diferentes. Os aspectos lesionais que podem ser objectivados durante uma autópsia por suspeita de intoxicação, muitas vezes são inespecíficos e não permitem ao perito médico retirar conclusões definitivas sobre o tipo de substância(s) responsávei(s) por determinada morte. Muitas vezes os aspectos lesionais macro e microscópicos são meramente indicativos de determinado tipo de intoxicação e carecem de confirmação toxicológica. 1) Lesões por acção local ( ex. tóxicos cáusticos) a) Ingestão - via mais frequentemente utilizada para intoxicação por cáusticos. O perito em tanatologia pode encontrar: - lesões cáusticas na boca, esófago e estômago - ácido sulfúrico – negras - ácido nítrico – amareladas - perfuração gástrica - conteúdo estomacal na cavidade peritoneal, derramando-se o cáustico pelas restantes vísceras abdominais - regurgitação - para árvore respiratória - necrose e inflamação da mucosa - para a boca (queimadura química muco-cutânea) Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense b) Queimaduras por arremesso de cáusticos - situações potencialmente mortais, pelas complicações que podem surgir, que também resultam da acção local de agentes cáusticos. O exemplo mais frequente é o arremesso à vítima de ácido sulfúrico (óleo de vitríolo – ác. sulfúrico), geralmente à face (para desfigurar) – vitriolagem. Outras regiões corporais podem ser afectadas, nomeadamente o pescoço, o tórax e os membros superiores. 2) Lesões por acção sistémica Podem ser directas resultantes da acção directa do tóxico a nível dos diversos órgãos e tecidos ou por acção indirecta resultantes da anóxia ou choque devidas à intoxicação. Tanto as lesões directas como as indirectas são inespecíficas. Raramente o estudo anatomopatológico macro e microscópico dá o diagnóstico de intoxicação ou identifica o tóxico. Dentro das lesões por acção tóxica indirecta é clássico descrever-se um conjunto de achados de autópsia inespecíficos, a saber: - congestão visceral generalizada - edema (cerebral, pulmonar) - hemorragias petequiais (epicárdio, pleuras) - sangue muito fluído e escuro Como já foi dito anteriormente, todos estes achados não são patognomónicos de uma situação de intoxicação. Apesar de muito inespecíficos, devem ser procurados e registados no relatório. 3) Exame do hábito externo – alguns aspectos que merecem especial atenção 3.1 – Livores Os livores cadavéricos nas situações de intoxicação são normalmente descritos como mais intensos, havendo nos autores clássicos referência a determinadas tonalidades dos livores que serão indicativas deste ou daquele tóxico. Na prática, excepto em casos de intoxicação por monóxido de carbono com elevadas percentagens de carboxihemoglobina, em que os livores são descritos como “carminados”, todas as outras situações são de difícil (para não dizer impossível), diagnóstico, com base exclusivamente na cor dos livores. 3.2 - sinais recentes ou antigos de punção venosa (em toxicodependentes) 3.3 – odor exalado pelo cadáver – (ex: a amêndoas amargas em casos de intoxicação por ácido cianídrico). 3.4 – queimaduras nos lábios e face – intoxicação por substâncias caústicas 3) Exame do hábito interno Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses Nunca será demais relembrar que na maior parte das intoxicações, o exame do hábito interno revela achados inespecíficos, na maioria das vezes. Estes achados são, por vezes, tão inespecíficos que podem aparecer em intoxicações por substâncias muito diversas e podem inclusivamente ser semelhantes a aspectos encontrados noutros tipos de mortes violentas, nomeadamente em situações de asfixia mecânica. Recomendações práticas para a realização de autópsia em que haja suspeita de intoxicação Em relação à realização da autópsia em casos de suspeita de intoxicação, sempre que possível, seria de tomar em consideração um conjunto de recomendações práticas que devem ser do conhecimento do perito médico: 1) evitar, se possível, outros odores na sala de autópsia 2) começar a autópsia pela cabeça para evitar os odores emanados da cavidade abdominal 3) retirar em bloco os órgãos do pescoço e as órgãos torácicos - facilita a técnica de colheita dos pulmões quando se trata de uma intoxicação por gases e facilita também a abordagem para confirmar ou não da existência de aspiração para árvore respiratória 4) evitar lavar os órgãos 5) evitar perdero conteúdo das vísceras ocas (estômago, intestino, bexiga) 6) em relação ao estômago sempre que o seu conteúdo seja importante para esclarecer a causa de morte deve-se: - laquear ao nível do cárdia e do piloro (dupla laqueação) - verter o conteúdo para recipiente apropriado para envio para análise toxicológica - cheirar e descrever o odor, a consistência e os constituintes do conteúdo e medir e registar o volume do conteúdo 7) em relação ao intestino sempre que o seu conteúdo seja importante para esclarecer a causa de morte deve-se: - laquear ao nível do piloro, do cego e do recto (dupla laqueação) - verter o conteúdo para recipiente apropriado para envio para análise toxicológica - cheirar e descrever o odor, a consistência e os constituintes do conteúdo nos diferentes segmentos intestinais 8) em relação à urina sempre que o seu conteúdo seja importante para esclarecer a causa de morte deve-se: - colher com seringa e agulha por punção depois de feita abertura da cavidade peritoneal - verter o conteúdo para recipiente apropriado para envio para análise toxicológica 9) em relação ao húmor vítreo sempre que a sua análise seja importante para esclarecer a causa de morte deve-se: Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense - colher em estados de putrefacção avançada para doseamento do álcool etílico; em casos de intoxicação por insulina, para doseamento da glicose - colher com seringa e agulha por punção que deve ser feita com cuidado para não perfurar o globo ocular - a punção deverá ser feita no plano equatorial do olho, com a agulha dirigida para o centro do globo ocular, sem penetrar profundamente. - verter o conteúdo para recipiente apropriado para envio para análise toxicológica 10) em relação aos restantes órgãos ou tecidos biológicos sempre que a sua análise seja importante para esclarecer a causa de morte deve-se: - colher evitando lavagem prévia - colocar em contentores apropriados, na quantidade indicada pelo laboratório 11) em relação ao envio ao laboratório das órgãos ou dos fluídos biológicos convém realçar que: - devem ser seguidas escrupulosamente todas as recomendações contidas nas requisições de exames toxicológicos - envio o mais rápido (para a respectiva delegação) - garantir a cadeia de custódia - sempre que seja conhecido, indicar que há risco de infecção - não misturar na mesma remessa amostras de processos diferentes - nunca misturar na mesma remessa amostras enviadas para laboratórios diferentes (ex. exames periciais de toxicologia, biologia ou de histologia) - proceder sempre à rotulagem das amostras com referência aos seguintes dados : - entidade requisitante - data da colheita - nº processo de autópsia - identificação do conteúdo - identificação do perito Passos fundamentais do exame toxicológico O contributo de um exame toxicológico pode dar-se a dois níveis principais, tendo como base, achados concretos ou opiniões. Deste modo, distinguem-se: ) exames toxicológicos baseados em achados – consideram dados obtidos no isolamento, identificação e doseamento de substâncias tóxicas. Neste passo, inserem-se também resultados de confirmação da ausência de outras substâncias químicas potencialmente relacionadas com a intoxicação e os procedimentos usados e respectiva qualidade. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses ) exames toxicológicos baseados em opiniões - podem ser, mais ou menos, fundamentados, de acordo com a informação que é recolhida, a interpretação dada a cada caso e a emissão de pareceres periciais. Na requisição de exames toxicológicos, a dúvida que, frequentemente, se coloca, é discernir acerca do real interesse em optar pela pesquisa toxicológica e, em caso afirmativo, qual o tipo de análise a requerer. A opção final pelo exame mais adequado deve ser conferido ao toxicologista, pois na qualidade de perito especialista desta área, pode basear a decisão na sua preparação técnica para integrar toda a informação relevante, e relacioná-la com o tipo e qualidade das amostras disponíveis. Contudo, não se coloca em causa a importância do conhecimento por parte das entidades requisitantes de alguns conceitos básicos na orientação da análise toxicológica, tais como os sugeridos no esquema seguinte: Provável substância implicada em caso de intoxicação SIM NÃO Porque se pede a análise? SIM SIM NÃO NÃO Investigar com método específico para a substância Existe alguma informação credível e orientadora? Pesquisar os tóxicos que melhor se enquadram na informação disponível despiste sistemático É conhecido, de forma verosímil, o agente tóxico? ? Proceder a um A selecção de amostras em toxicologia forense Consoante a especificidade do caso e o tipo de análise toxicológica pretendida procede-se à colheita das amostras mais adequadas. Desta forma, existem análises que requerem apenas um Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense tipo de amostra, enquanto outras ficarão incompletas se não forem enviadas diversos tipos de amostras. Por exemplo, as determinações de alcoolemia (etanol no sangue) ou de carboxihemoglobina (monóxido de carbono presente na hemoglobina sanguínea) exigem apenas um único substracto (sangue). Contudo, e em especial para o sangue, existem condições em que não é possível obter as amostras mais apropriadas de uma forma qualitativa e/ou quantitativa, particularmente em situações de putrefacção avançada, exumações ou de mortes por choque traumático. Neste caso, há que recorrer a amostras alternativas ou complementares, que apenas nos permitem inferir acerca da concentração provável de tóxico presente no sangue. Na determinação de álcool etílico é possível efectuar essa pesquisa em diversos outros fluídos, tais como urina, humor vítreo, líquido sinovial, medula óssea ou saliva. Segundo directivas europeias, qualquer suspeita de intoxicação e/ou situação cujos achados de autópsia não revelaram causa de morte evidente, deve incluir a recolha das seguintes amostras básicas para exame toxicológico: sangue periférico; urina; conteúdo estomacal; bile; fígado e rim. No caso de existir suspeita específica, a recolha e envio de amostras deve ter em consideração o grupo de tóxicos a analisar, pelo que a anterior amostragem permite, igualmente, pesquisas de hipnótico-sedativos, substâncias psicoactivas, cardiotónicos, analgésicos e pesticidas. A pesquisa de drogas de abuso deve englobar, além das amostras já descritas, líquido céfaloraquidiano; encéfalo; local de picada de injectáveis e cabelos. A inclusão de sangue cardíaco da cavidade do ventrículo esquerdo, encéfalo, tecido gordo subcutâneo, pulmão e vestuário, deve complementar a amostragem básica quando interessa efectuar pesquisas de substâncias lipossolúveis voláteis, tais como combustíveis e solventes. As intoxicações alimentares implicam a suplementação do envio das amostras básicas com amostras de conteúdo intestinal colhido, se possível, em três locais diferentes. Já no caso de a intoxicação poder ter sido do tipo crónico, por acção entre outros, de metais pesados, certos medicamentos ou pesticidas, devem-se adicionar à recolha de amostras normal, cabelos, ossos, tecido adiposo e conteúdo intestinal. Uma análise toxicológica tem, muitas vezes, por limite a qualidade ou quantidade das amostras de que se dispõe, daí que, seja preferível o envio de amostras em excesso, apesar das dificuldades de conservação e transporte que se possam colocar,com a vantagem de poder diversificar as pesquisas, duplicar, garantir ou até contribuir para o sucesso analítico de uma determinada pesquisa. Conservação das amostras As amostras destinadas a exame toxicológico não devem ser adicionadas de qualquer preservante ou conservante, porque a detecção de qualquer substância, seja ela adicionada ou não, poderá ser relevante do ponto de vista toxicológico. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses Tal como em qualquer regra existe excepção no que se refere à amostra de sangue destinada a doseamentos de álcool, cocaína ou ácido cianídrico, à qual se adiciona fluoreto de sódio na concentração aproximada de 1% (peso por volume). Com esta atitude pretende-se impedir a proliferação microbiana, e assim prevenir a probabilidade de se induzirem alterações nas taxas sanguíneas dos referidos tóxicos. Técnicas adoptadas na pesquisa toxicológica A sequência de procedimentos empregues na pesquisa toxicológica, desde a requisição de autópsia ou exame clínico pelas autoridades judiciais, com o envio das amostras ao laboratório, até à elaboração do relatório toxicológico, assenta em alguns passos fundamentais, como a seguir se demonstram: HOSPITALAUTÓPSIA AUTORIDADE JUDICIAL Registo de amostrasRastreio Confirmação Quantificação Interpretação requisição colheita isolamento relatório Preparação da amostra A preparação da amostra é um procedimento chave das análises toxicológicas, pois é nesta fase que se procede ao isolamento do tóxico com a intenção de lhe serem aplicadas as técnicas de análise instrumental. Rastreio analítico Este rastreio ou "screnning" é realizado pela utilização de métodos de sensibilidade elevada e fraca especificidade. Os métodos, ainda, devem ser simples e pouco exigentes, em termos de ocupação de recursos humanos e de consumos de material. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense As técnicas de rastreio para tóxicos termolábeis poderão ser: imunoensaios, cromatografia em camada delgada e cromatografias gasosa ou líquida (quando equipadas com detectores universais). Identificação e Doseamento Os resultados fornecidos pelos testes de rastreio são muito limitados, pelo que, um resultado positivo só pode ser encarado como tal, se se confirmar através do recurso a testes de identificação e confirmação. Além do mais, tratando-se de provas periciais, a correcta identidade da substância detectada e a avaliação do seu teor quantitativo são, em certos casos, essenciais para a distinção de interferências de matriz e analíticas, que possam contribuir para a obtenção de falsos resultados positivos. A cromatografia gasosa ou a cromatografia líquida acoplada a detectores mais específicos tais como, a espectrometria de massas ou detectores de varrimento na zona dos ultravioletas ou infravermelhos, quando utilizados em condições adequadas permitem identificações com elevado grau de confiança. A técnica que tem vindo a ser utilizada na identificação no doseamento de substâncias elementares, em especial, as de carácter mineral, tem sido a espectrofotometria de absorção atómica (AAS), nas suas variantes com ou sem chama, adaptada com gerador de hidretos ou com câmara de grafite. Interpretação dos resultados analíticos À medida que as metodologias analíticas evoluem, a principal questão da toxicologia forense não é saber o que é, mas sim o que isso significa. Não basta, portanto, identificar a nível das amostras orgânicas uma substância com relevância toxicológica, mas para além disso, é essencial interpretar adequadamente os resultados obtidos face às variáveis envolvidas. Os factores que estão envolvidos numa pesquisa toxicológica são inúmeros. Por um lado, temos os que são relativos à análise em si, tais como: estado das amostras, técnica analítica empregue, analista operador, rendimento dos métodos, e um sem número de erros sistemáticos ou fortuitos passíveis de ocorrer em qualquer actividade de análise química. Por outro lado, temos aqueles factores, que sendo inerentes ao caso analisado, podem contribuir para que os resultados analíticos entrem em contradição com as hipóteses da investigação (como exemplos, podemos ter a via de absorção do tóxico, o tempo de sobrevida - tempo decorrido entre a ocorrência e a morte- ou o intervalo de tempo até colheita de amostras, medidas terapêuticas, de diagnóstico ou Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses de suporte administradas, sinergia de efeitos devida à associação de tóxicos, e muitas outras dependentes da circunstâncias de cada caso. Além destes aspectos, existem muitas outras condições em que se exige conhecimentos técnicos e periciais no sentido de elucidar certas circunstâncias, tais como a demonstração, do reduzido interesse analítico a atribuir à técnica de imunoensaios face à sua fraca especificidade, dos efeitos devidos à adsorção de substâncias nas paredes dos recipientes dos contentores de amostras, da degradação de substâncias em função do tempo e condições de conservação, da degradação metabólica das amostras, ou da degradação térmica que possa ocorrer em análises por cromatografia gasosa. Por outro lado, não existem dados objectivos que permitam estabelecer analogias concretas entre os resultados obtidos e as tabelas de níveis letais séricos ou tecidulares existentes. Para isso, o analista introduz no processo analítico meios de controlo que assentam na validação de métodos analíticos, uso de padrões internos ou externos certificados, recurso a normas de boas práticas laboratoriais, implementação de programas de controlo de qualidade intra e interlaboratoriais. Deste modo, pretende-se garantir a detecção da frequência com que ocorrem erros sistemáticos ou fortuitos, e formas de os solucionar, de modo a manter qualidade laboratorial. e) PROCEDIMENTOS RELATIVOS À DETECÇÃO DA INFLUÊNCIA DE SUBSTÂNCIAS PSICOACTIVAS NA CIRCULAÇÃO RODOVIÁRIA Relação Clínico - Toxicologista A legislação do Código da Estrada (Decreto-Lei nº 265-A/2001, de 28/09) na parte relativa à fiscalização da circulação na via pública sob efeito de álcool e das substâncias legalmente consideradas estupefacientes ou psicotrópicas pressupõe a participação, além das autoridades fiscalizadoras, dos serviços de urgência hospitalares e do Instituto Nacional de Medicina Legal. Aos primeiros compete executar os procedimentos de avaliação clínica e de colheita de amostras biológicas, realizar os exames de rastreio analítico a estupefacientes e psicotrópicos e, caso necessário, requisitar exames toxicológicos de quantificação de álcool no sangue ou de confirmação da presença de estupefacientes e psicotrópicos através da remessa de amostras adequadas em bolsas próprias à Delegação do INML da área respectiva. Aos Serviços de Toxicologia Forense do INML compete equipar e distribuir as bolsas destinadas à colheita de amostras biológicas, verificar o cumprimento dos procedimentos de cadeia de custódia, e executar as análises toxicológicas de quantificação de álcool no sangue ou de Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense confirmação da presença de estupefacientes e psicotrópicos por equipamentos e metodologias adequadas. Como tal a nível destas competências, os médicos dos serviços de urgência hospitalares e os toxicologistas do INML beneficiam em adoptarem um relacionamento que se traduzaem colaboração institucional, de modo a assegurar com rigor e justiça, a execução dos procedimentos destinados a uma aplicação universal da lei vigente. Por outro lado, enquanto cidadãos com responsabilidades acrescidas, os médicos e paramédicos que, sem justa causa, se recusarem a proceder às diligências previstas na lei para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool e das substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas são punidos por desobediência. A realização de exames clínicos e de colheita de amostras biológicas para diagnóstico do estado de influenciado por substâncias aplica-se, quer em indivíduos admitidos no serviço de urgência na sequência de acidentes de viação, quer em indivíduos conduzidos ou notificados pelas autoridades fiscalizadoras para serem avaliados no serviço de urgência no âmbito de operações de fiscalização. Quando se suspeita que um indivíduo possa estar influenciado pelo álcool etílico, se tiver sido possível, antes da sua admissão hospitalar a autoridade fiscalizadora procedeu aos exames prévios de determinação da taxa de álcool no sangue (TAS) através de aparelhos de medição no ar expirado. Deste modo, interessa a realização de contraprova mediante análise de sangue, pelo que compete ao serviço hospitalar a colheita de amostra de sangue, preenchimento da requisição de exame de quantificação de TAS (modelo Anexo I à portaria nº 1006/98, de 30/11) e remessa da respectiva bolsa contendo requisição e amostra de sangue ao INML. Na impossibilidade da colheita de amostra de sangue, o médico deve proceder a exame clínico adequado conforme previsto na secção III do capítulo I da portaria nº 1006/98, de 30/11. No que se refere ao diagnóstico do estado de influenciado por substâncias legalmente consideradas estupefacientes ou psicotrópicas, em virtude das autoridades não disporem de métodos com vista à sua detecção, todos os indivíduos envolvidos em acidentes de viação dos quais resultem mortos ou feridos graves, bem como os conduzidos pelas autoridades ao serviço de urgência com esse objectivo devem ser avaliados por médico, seja por via de exame médico de rastreio de acordo com secção I do capítulo II da portaria nº 1006/98, de 30/11, seja através de exame analítico de rastreio na urina, por utilização de imunoensaios, efectuado a nível do serviço de patologia clínica do hospital. Os exames analíticos de rastreio a realizar no hospital destinam- se a despistar a presença de substância que integrem os seguintes grupos: metabolitos da marijuana, opiáceos, cocaína e metabolitos e anfetaminas e derivados. Somente em caso de algum dos exames analíticos de rastreio dar resultado positivo é que o médico responsável deve providenciar pela remessa ao INML de amostras de urina e de sangue colhidas ao examinando, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses acompanhadas de requisição de análise toxicológica de confirmação da presença de psicotrópicos (modelo anexo VI à portaria nº 1006/98, de 30/11). Os conjuntos de recolha de amostras, também designados como KIT’S, dos quais fazem parte as bolsas a enviar ao INML são fornecidos pela autoridade fiscalizadora (PSP ou GNR) devendo as mesmas estar seladas através de selo vermelho numerado (este número não é importante para o procedimento), que assegura a validade dos materiais de colheita nela incluídos. No interior do conjunto encontra-se um selo azul numerado (número muito importante para identificação do processo) destinado a ser usado para selagem da bolsa após introdução de amostras biológicas e do triplicado de requisição de análises. A identificação do processo de remessa de amostras ao INML não é nominal mas assente no número do selo azul, pelo que é imprescindível que no triplicado de requisição de análises conste o respectivo número de selo. Outros elementos como data/hora de colheita das amostras, resultados de exames prévios, tipo de amostras enviadas, terapêuticas efectuadas, e identidade do serviço hospitalar e do médico responsável são essenciais para evitar falhas de procedimento. Sempre que se verificam factos em desacordo com os procedimentos previstos, o Serviço de Toxicologia Forense elabora Autos de Ocorrência, através dos quais comunica e regista falhas de procedimento, bem como descreve o encaminhamento dado a cada caso. Os Serviços de Toxicologia Forense assumem o papel de entidade reguladora por garantir a segurança dos materiais incluídos nos KIT’s, pela execução de análises rigorosas com o intuito de confirmar a presença de psicotrópicos ou estabelecer a taxa de alcoolemia em amostras biológicas, e pelo controlo dos procedimentos relativos à cadeia de custódia de amostras. Sempre que ocorra violação das bolsas ou qualquer outra circunstância de não conformidade, devem as mesmas ser remetidas ao INML para que se proceda à sua verificação, re- equipamento, selagem e devolução à respectiva autoridade fiscalizadora. Nesta, tal como em outras áreas, pressupõe-se uma estreita colaboração Hospital/Instituto Nacional de Medicina Legal. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense 2 GENÉTICA E BIOLOGIA FORENSE, E CRIMINALÍSTICA Maria de Fátima Pinheiro Entre as múltiplas actividades de um laboratório de Genética e Biologia Forense constam a realização das perícias referentes aos casos de filiação, criminalística biológica e identificação individual (genética). A resolução destes casos, ou seja, a identificação genética pressupõe sempre o estabelecimento da individualidade biológica que cada ser humano representa e fundamenta-se na exclusividade do seu DNA e na igualdade e invariabilidade deste em todas as células do organismo ao longo da vida. Ou seja, o DNA é unico para cada ser humano e este fica perfeitamente identificado através do seu estudo em qualquer vestígio biológico que lhe pertença. Para a análise de DNA é necessário qualquer tipo de amostra ou produto que contenha material genético. Este material encontra-se em todas as células nucleadas do organismo. A identificação genética é, actualmente, de importância fundamental em Medicina Legal, tanto no que concerne à investigação biológica da paternidade como à identificação em criminalística ou de restos cadavéricos. a) INVESTIGAÇÃO BIOLÓGICA DE PATERNIDADE A investigação biológica da paternidade tem como objectivo, dado um trio filho, mãe e pretenso pai, determinar se este é ou não excluído da possibilidade de ser o pai biológico. As investigações de paternidade têm sido o tipo de exames mais frequentemente solicitados às Delegações (Porto, Coimbra e Lisboa) do Instituto Nacional de Medicina Legal, que realizam mais de 300 perícias, do género, por ano. Na do Porto verificou-se, um aumento considerável do número de exames, solicitados pelos tribunais, particularmente a partir da década de 80. O principal motivo do pedido de um tão elevado número de casos deve-se, sobretudo, à reforma do Código Civil Português, de 1977, nomeadamente ao artigo 1864º. Este obriga a que se proceda à averiguação oficiosa da paternidade nos casos em que o filho é registado apenas com o nome da mãe. Relativamente aos exames do âmbito da criminalística biológica, nos últimos anos, houve um Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses acréscimo notável do estudo de vestígios biológicos em casos relacionados com crimes. Este incremento deveu-se, fundamentalmente, ao melhor poder informativo proporcionado, uma vez quese dispõe, actualmente, de técnicas mais sensíveis. Estas perícias consistem no estudo dos vestígios e comparação das suas características genéticas com as da vítima e suspeito. A sua identificação e caracterização têm grande interesse, uma vez que, habitualmente, são transferidos fluídos orgânicos e secreções entre o criminoso e a vítima e o objectivo principal é identificar o autor do crime. Acresce ainda a sua importância na identificação individual (genética) a partir de restos cadavéricos, como ossos ou tecidos mumificados. A perícia médico-legal do âmbito da Biologia Forense, seja investigação de filiação, criminalística biológica ou identificação, desenrola-se em duas fases: análise laboratorial e valorização bioestatística dos resultados. As diferentes fases têm características comuns para os distintos tipos de perícias, pois em qualquer dos casos a prova é baseada na comparação de perfis genéticos. Perfil genético, do ponto de vista médico-legal, pode ser definido como sendo o conjunto de características hereditárias ou padrões fenotípicos que um indivíduo possui, para um determinado número de marcadores genéticos, detectável em qualquer amostra biológica que lhe pertença. Este perfil ficará definido mediante a análise laboratorial das referidas amostras. Antes de se fazer a valorização bioestatística ter-se-á que estudar os marcadores genéticos a usar, na população em causa, no nosso caso, na população do Norte de Portugal. Por outro lado, uma vez concluído o estudo laboratorial, importa fazer a avaliação dos resultados obtidos. Assim, nos casos de investigação de paternidade, que são quase exclusivamente os casos de filiação que nos são presentes, porquanto na casuísta do nosso serviço tem-se registado um número baixo de casos de investigação de maternidade, as conclusões possíveis, são: exclusão de paternidade e não exclusão de paternidade. Em princípio, conclui-se por exclusão de paternidade, quando houver exclusão, no mínimo, por dois marcadores genéticos e, preferentemente, se pelo menos uma das exclusões for de 1ª ordem, referindo-se no relatório quais os sistemas que proporcionam a exclusão. Todavia, os casos de exclusão de paternidade devem ser suficientemente ponderados antes da elaboração do relatório final, porquanto tem-se constatado que os STRs, polimorfismos do DNA actualmente muito usados na resolução dos casos, exibem uma taxa de mutação relativamente elevada. Por isso, em casos excepcionais pode-se verificar exclusão por mais de um marcador genético e na realidade não corresponder a exclusão de paternidade, mas a uma coincidência de mutações genéticas em mais de um sistema. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense Relativamente aos casos de não exclusão, exprime-se o resultado em probabilidade de paternidade, cujo cálculo se baseia no Teorema de Bayes. Em face do que foi anteriormente dito, hoje é mais difícil concluir uma situação de exclusão de paternidade do que de não exclusão. Em relação aos casos criminais há três conclusões possíveis: a) Os perfis de DNA do suspeito e dos vestígios (cujas características genéticas não são idênticas às da vítima e que há indícios de que possam pertencer ao suspeito) não são sobreponíveis; b) Há coincidência dos referidos perfis; c) O estudo não é conclusivo, ou porque o DNA disponível não é em quantidade suficiente e/ou porque há problemas laboratoriais na extracção, amplificação ou tipagem do DNA. Assim, à semelhança dos casos de investigação de paternidade, quando não houver coincidência entre as características genéticas do suspeito e dos vestígios, devem ser referidos no relatório os polimorfismos que proporcionam a referida exclusão. Relativamente ao caso dos perfis serem idênticos, o perito deve fazer a valorização da prova, que habitualmente é feita calculando a probabilidade de concordância ou o seu inverso, o “likelihood ratio” (razão bayesiana de probabilidades). Aspectos legais da aplicação da análise do DNA aos casos forenses. Legislação portuguesa (investigação de paternidade) A reforma do Código Civil Português ocorrida em 1977 contribuiu para o incremento do número de exames de investigação de paternidade realizados. Até àquela data foram efectuados, em média, dois exames por ano, enquanto que na década de 80, 621 , tendo vindo a aumentar progressivamente ao longo dos anos. Simultaneamente à entrada em vigor do “novo” Código Civil surgiram novas técnicas, designadamente a PCR e marcadores genéticos muito mais informativos, que contribuíram para a conclusão dos casos de uma forma mais consentânea com a realidade biológica. O artigo do “novo” Código Civil que contribui de uma forma decisiva para o aumento considerável do número de casos solicitados foi o 1864º. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses Artigo 1864º (Paternidade desconhecida) Sempre que seja lavrado registo de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida, deve o funcionário remeter ao tribunal certidão integral do registo, a fim de se averiguar oficiosamente a identidade do pai. Como foi atrás referido, esta norma é a responsável pelo incremento do elevado número de perícias de investigação biológica de paternidade solicitadas. No direito anterior supunha-se a perfilhação materna; agora não é possível a perfilhação pela mãe, pelo que nesta norma se utiliza a expressão “... apenas com a maternidade estabelecida...” Impõe-se agora ao tribunal que investigue a identidade do pai, quando apenas é conhecida a da mãe. O estabelecimento da averiguação oficiosa da paternidade apenas encontra eco nos ordenamentos jurídicos dos países escandinavos. “A sua justificação pode encontrar-se no desejo de satisfazer o direito à identidade e à integridade moral, de tutelar o interesse geral da melhor socialização e amparo económico do filho; e na consciência de que não vale grande coisa garantir a todos os filhos a igualdade de direitos se não se fizerem os esforços possíveis no sentido de constituir as relações de filiação” (Krause, cit, por Guilherme de Oliveira). Para além dos pedidos efectuados pelos tribunais as perícias também podem ser solicitadas por entidades privadas ou por particulares. Decreto-Lei nº 96/2001, de 26 de Março De acordo com o Decreto-Lei nº 96/01, relativo à Lei Orgânica do Instituto Nacional de Medicina Legal, concretamente o artigo 2º, uma das atribuições dos serviços médico-legais, segundo a alínea i) do mesmo artigo, é: “Prestar serviços a entidades públicas e privadas, bem como aos particulares, em domínios que envolvam a aplicação de conhecimentos médico-legais”. Esta disposição já se encontrava contemplada no Decreto-Lei nº11/98, revogado aquando da entrada em vigor deste decreto. Depois da publicação deste decreto, o Serviço de Genética e Biologia Forense tem sido contactado para a realização de exames solicitados por particulares, cuja concretização tem de ser previamente requerida pelos interessados sendo, o requerimento, apreciado antes de se proceder à marcação da colheita de amostras ou à sua recepção. Quando se trata de vestígios biológicos a analisar no âmbito da criminalística biológica, o exame só será efectuado se estiverem garantidos os direitos individuais e civis, designadamente o direito à privacidade individual ou familiar consignados na Constituição Portuguesa, na Declaração Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense Universal dos Direitos Humanos (artigo 12º) e na ConvençãoEuropeia dos Direitos Humanos (artigo 8º). Constituição Portuguesa A nossa Constituição, no capítulo relativo aos direitos, liberdades e garantias pessoais, Artigo 26º, refere-se aos direitos atrás citados. Artigo 26º (Outros direitos pessoais) 1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação. 2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a utilização abusiva, ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias. 3. A lei garantirá a dignidade pessoal e identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica. 4. A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos. Casos de filiação. Fundamento A grande maioria dos casos de filiação presentes são as investigações de paternidade. Por isso, abordar-se-á quase exclusivamente este tipo de perícias, todavia, os procedimentos a ter quando se trata de uma investigação de maternidade, são idênticos aos da paternidade. Actualmente, a grande maioria dos laboratórios utiliza, exclusivamente, polimorfismos do DNA. O fundamento biológico da resolução dos casos de filiação assenta no facto de cada indivíduo resultar da união de dois gâmetas, um materno (óvulo) e outro paterno (espermatozóide) que dão origem à formação de uma célula, o zigoto, a partir da qual se desenvolvem vários biliões de células que compõem o organismo humano. Cada um dos gâmetas possui um número haplóide de cromossomas (n), enquanto que as outras células do organismo, as células somáticas, têm um número diplóide de cromossomas (2n). Quando os dois gâmetas dos progenitores se unem, a descendência herda informação genética de ambos e cada uma das suas células possui essa informação. Por isso, a investigação biológica da paternidade consiste na análise do património genético que Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses um filho herdou da mãe e do pai. Uma vez apurada a parte genética herdada da mãe, é necessário verificar se o resto da informação é transmitida pelo pretenso pai. Se este possui as características hereditárias transmitidas à criança, não pode ser excluído da paternidade e o resultado é apresentado em probabilidade de paternidade. Se, pelo contrário, o indigitado não tem essas características, é afastado da possibilidade de paternidade. Exames laboratoriais Na generalidade dos casos o estudo é efectuado a partir do sangue e da zaragatoa bucal, colhidos a todos os intervenientes. Sob o ponto de vista médico-legal uma investigação de paternidade, pressupõe três fases: 1ª - Identificação e colheita de sangue 2ª - Caracterização dos marcadores genéticos 3ª - Elaboração do relatório Identificação e colheita de sangue A identificação deve ser pormenorizada, registando-se os dados pessoais dos intervenientes numa ficha própria, como sejam, nome completo, data de nascimento, naturalidade, estado civil, raça, números dos bilhetes de identidade ou cédulas pessoais. Devem ser tiradas fotocópias de todos os elementos de identificação, assim como devem ser colhidas as impressões digitais do dedo indicador direito. Também deve ser perguntado se lhes foi administrada transfusão de sangue ou transplante de orgãos, confirmando-se este dado com a respectiva assinatura. Como os documentos de identificação podem ser falsificados, considera-se obrigatória a presença simultânea dos intervenientes para se efectuar a colheita, isto é, não se realizam colheitas se todos os intervenientes não estiverem presentes, salvo indicação expressa do juiz. Caracterização dos marcadores genéticos Marcadores genéticos são características identificáveis, transmitidas de pais para filhos, rigorosamente controladas por genes situados num par de cromossomas homólogos Antes de 1985, tanto as investigações biológicas de paternidade como a análise de amostras biológicas com interesse criminal eram resolvidas mediante o estudo de marcadores genéticos convencionais ou tradicionais, a maioria dos quais, proteínas. Hoje, a utilidade dos marcadores genéticos convencionais tem um interesse limitado, por serem sistemas pouco polimórficos. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense Ácido desoxirribonucleico (DNA). Aplicação da análise do DNA à Medicina Legal A Medicina Legal dispõe, actualmente, de uma nova tecnologia que se baseia na variabilidade dos ácidos nucleicos das células, polimorfismos do DNA, cuja importância fundamental reside no facto de se estudar a individualidade biológica directamente do código genético, ao contrário das proteínas, cuja caracterização depende da sua expressão em tecidos e fluídos biológicos. É para notar que o DNA está presente em todas as células nucleadas do organismo humano (DNA nuclear) e que esse DNA é, basicamente, idêntico em todas as células do mesmo indivíduo. Têm sido desenvolvidos métodos de extracção do DNA que permitem, por exemplo, separar DNA de células espermáticas (suspeito) das células vaginais (vítima), em casos de agressão sexual, em que o perito dispõe do exsudato vaginal da vítima ou de manchas existentes em peças de vestuário. O estudo do DNA constitui hoje uma tecnologia que é admitida internacionalmente como prova pericial em tribunal, permitindo a resolução de casos de filiação complexos, como, por exemplo, casos de investigação de paternidade em que a mãe ou o pretenso pai faleceram, quando existe a possibilidade do estudo de familiares próximos; o estudo de restos cadavéricos e a comparação das suas características genéticas com as do sangue, também, de familiares próximos; e ainda casos de filiação em que se dispõe de restos fetais resultantes de aborto ou infanticídio, em que se pretende identificar o autor do crime. Tem sido especialmente na resolução de casos relativos à criminalística biológica que esta tecnologia tem demonstrado revestir uma importância fundamental, uma vez que na maioria dos casos relacionados com crimes o perito dispõe de uma quantidade exígua de DNA, apresentando- se muitas vezes degradado. A admissibilidade jurídica, a nível internacional, da utilização das técnicas de tipagem do DNA, foi, numa primeira fase, alvo de controvérsias nos Estados Unidos, relativamente à própria metodologia empregue, à interpretação dos resultados e aos métodos estatísticos utilizados, tais como, o equilíbrio de Hardy-Weinberg, a homogeneidade populacional e o equilíbrio de ligamento entre os loci. O primeiro passo para obviar os problemas atrás referidos foi o desenvolvimento de metodologias que não suscitassem problemas de interpretação e que permitissem uma classificação exacta dos alelos dos diferentes polimorfismos. Em seguida, surgiram inovações relativas aos métodos estatísticos utilizados na análise dos resultados, proporcionando conclusões mais aproximadas à realidade biológica. Esta evolução conjunta dos métodos laboratoriais e estatísticos empregues na resolução de perícias médico-legais permite, actualmente, a obtenção de resultados que eram impensáveis há ainda escassos anos. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forensesA análise do DNA com aplicação médico-legal foi usada pela primeira vez no Reino Unido, em 1985. Nos Estados Unidos a sua utilização iniciou-se em 1986, tendo sido aplicada pela primeira vez à resolução de casos criminais em 1987, num caso de agressão sexual. Análise do DNA O genoma humano é constituído por cerca de 3500 milhões de pares de bases (pb). A análise do DNA nuclear, permitiu definir que no genoma humano existem regiões que se podem classificar do seguinte modo: - DNA não repetitivo (polimorfismos de sequência) - DNA moderadamente repetitivo (regiões minisatélite) - DNA altamente repetitivo (regiões microsatélite) Algumas sequências não codificantes (DNA não expressivo, não codificante ou heterocromatina), cuja função biológica ainda não está perfeitamente estabelecida, encontram-se repetidas em "tandem", isto é, uma sequência de pares de bases (pb), seguida de outra sequência idêntica e assim sucessivamente. Estas regiões hipervariáveis, onde existem os loci VNTR (Variable Number of Tandem Repeats), são chamadas minisatélites se a sequência (core) é constituída por 10-70pb que se repete entre 20 e 60 vezes. Se as referidas sequências são constituídas apenas por 2-7 nucleótidos que se repetem, também, várias vezes, as regiões são denominadas microsatélites ou loci STR (Short Tandem Repeats). O DNA que forma as regiões hipervariáveis (HVR-Hipervariable Regions) do genoma, proporciona a existência de uma grande variação entre os indivíduos de uma população. Esta variação consiste no número de vezes que a sequência (core) se repete e é variável de indivíduo para indivíduo. Esta parte do genoma é a que tem maior interesse médico-legal. Polimorfismos do DNA Antes de se proceder à tipagem tem de se efectuar a extracção do DNA. Existem vários protocolos para se efectuar a extracção do DNA. Quando não é exigida a obtenção de DNA de alto peso molecular, utiliza-se o Chelex 100. Trata-se de uma técnica de extracção de DNA mais rápida, fácil de executar e eficiente. O Chelex é uma resina quelante (chelating resin) com grande afinidade para iões metálicos polivalentes, por isso previne a degradação do DNA em presença de iões metálicos a altas temperaturas e em condições de baixa força iónica. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense Quando é necessária a obtenção de DNA de alto peso molecular utiliza-se a extracção orgânica com fenol-clorofórmio ou com fenol-clorofórmio-álcool isoamílico, cujo protocolo é mais complexo e demorado. Nos casos de violação em que são presentes os exsudatos vaginais das vítimas e/ou as peças de vestuário que aquelas envergavam aquando da ocorrência do crime, é preferencialmente utilizado um método diferencial de lise celular que, para além do fenol-clorofórmio-álcool isoamílico usa o detergente (SDS) e uma proteinase (Proteinase K), cuja função consiste na libertação das células vaginais da vítima, enquanto as cabeças dos espermatozóides se mantêm intactas em virtude do seu revestimento proteico conter pontes dissulfito. As células seminais são posteriormente recuperadas por centrifugação e subsequentemente lisadas na presença de ditiotreitol (DTT). O uso desta metodologia tem demonstrado ser eficaz, pois verifica-se que mesmo nos casos em que a quantidade de espermatozóides (observação microscópica) é escassa, consegue-se efectuar a tipagem do DNA da fase espermática. Polymerase Chain Reaction (PCR) A técnica mais usada para o estudo do DNA é a PCR. Esta técnica foi descrita por Kary Mullis, em 1985 e baseia-se na amplificação enzimática in vitro de um fragmento de DNA de interesse (target) que é flanqueado por 2 "primers" que hibridam com as extremidades 3´ da dupla cadeia. Ciclos repetidos, consistindo na desnaturação do DNA, "annealing" dos "primers" e sua extensão, originam em cada ciclo a duplicação da sequência inicial, correspondendo a um crescimento exponencial da referida sequência. Isto é, decorridos 20 ciclos, o DNA em estudo, delimitado pelos "primers", cuja sequência de bases foi previamente seleccionada, estará amplificado cerca de 1 milhão de vezes. Cada um dos referidos ciclos inclui as seguintes fases: 1ª- Desnaturação da sequência de DNA que se pretende estudar (± 90ºC) 2ª- “Annealing” dos “primers” (± 60ºC) 3ª- Extensão dos “primers” (± 72ºC), graças à Taq polimerase e aos nucleótidos trifosfatados (DNTPs – dATP, dTTP, dGTP e dCTP). A automatização do processo, com a utilização dos termocicladores, proporcionou a simplificação de todo o procedimento, constituindo também uma importante inovação. O uso da técnica de PCR requer que, pelo menos, seja conhecida a sequência de DNA que rodeia a região de interesse, para ser possível a construção dos "primers" usados na amplificação. Conhecendo-se a referida sequência, é possível escolher os "primers" por forma a permitirem a delimitação directa do local polimórfico. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses Actualmente, são vários os polimorfismos de DNA com interesse médico-legal, que podem ser estudados por PCR, como polimorfismos de sequência, AMPFLPs e loci STR. No entanto, actualmente, só são usados estes últimos. Das vantagens desta técnica, destaca-se o facto da PCR possuir a capacidade para efectuar a análise de uma determinada sequência numa amostra exígua de DNA, qualquer que seja a sua quantidade e qualidade, desde que a amostra tenha, pelo menos, uma cadeia de DNA intacta, rodeando a região a ser amplificada. Esta sensibilidade, segundo vários autores, tem permitido a tipagem de diferentes polimorfismos de DNA de um único cabelo, de um espermatozóide e de células somáticas individuais. Outros autores referem ter efectuado reacções de amplificação em DNA degradado de tecidos guardados em arquivo e fixados em formol ou embebidos em parafina, ou ainda, extraídos de peças antigas existentes em museus ou achados arqueológicos. Por tudo o que foi anteriormente referido, poder-se-á afirmar que a técnica de PCR se tornou um meio precioso para a análise de regiões polimórficas, em amostras de DNA humano, particularmente em criminalística, nos quais raramente se dispõe de DNA de alto peso molecular em quantidades apreciáveis. Trata-se de uma metodologia muito usada na resolução de casos médico-legais, sendo também utilizada no diagnóstico clínico e noutros ramos da ciência. Sistemas AMPFLPs e STRs estudados por PCR Sistemas AMPFLPs (Amplified Fragment Length Polymorphisms) são os loci VNTR, cujos alelos possuem tamanhos moleculares, aproximadamente, de 100 a 2000 pb. Os dois grupos de sistemas, AMPFLPs e STRs, em virtude do curto tamanho dos seus alelos, são susceptíveis de amplificação por PCR e visualização directa dos produtos de amplificação, embora, actualmente, apenas se usem os últimos. Loci STR estudados por PCR Os loci microsatélite podem definir-se como pequenas sequências de DNA (com menos de 350 pb), dispersas pelo genoma, repetidas em tandem, de 2 a 7 pb de tamanho, pelo que também são conhecidos por loci STR (Short Tandem Repeats). Calculou-se que o genoma humano contém, aproximadamente, 500.000 STRs, dos quais 6.000 a 10.000 são tri ou tetraméricos. Um grande número destes loci apresenta um elevado grau de polimorfismo genético, cuja base molecular consiste na variação do número de unidades de repetição. Estes sistemas, devido à sua abundância no genoma humano, ao seu elevado grau de polimorfismo e à possibilidade de serem facilmente estudados mediante técnicas de PCR, converteram-se nos marcadoresde eleição em vários campos da ciência, designadamente na identificação genética humana. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense É para notar, que o estudo dos loci STR proporciona uma maior sensibilidade, devido ao pequeno tamanho dos produtos de amplificação permitindo, por conseguinte, uma amplificação mais eficaz em amostras degradadas. É possível, no caso dos STRs, proceder-se à amplificação simultânea de vários loci numa única mistura de reacção (PCR multiplex), podendo-se fazer a análise conjunta dos produtos amplificados. Tal facto, proporciona o aumento do poder de discriminação e a diminuição do tempo de análise, bem como das quantidades de DNA e de reagentes a usar. Os STRs são claramente identificáveis, permitindo a distinção de alelos que diferem apenas num nucleótido. Tal facto torna viável a comparação dos resultados obtidos por diferentes laboratórios. É aconselhável a estandardização das condições experimentais (composição do gel, electroforese) e o uso de padrões alélicos consenso adequados e de sequência conhecida, assim como a uniformidade na nomenclatura empregue na classificação dos alelos. Em casos pontuais e excepcionais em que exista dúvidas relativamente a estes aspectos, pode- se proceder à sequenciação dos alelos considerados duvidosos. Actualmente, estes problemas estão praticamente ultrapassados com o uso de kits comerciais, porquanto estes possuem os produtos e condições perfeitamente estandardizados para o estudo de uma grande gama de sistemas STR. Assim, por exemplo a Perkin-Elmer está a comercializar kits, como o Profiler Plus e o SGM Plus que permitem o estudo da amelogenina (gene homólogo do cromossoma X e Y) e de, respectivamente, os seguintes sistemas: D3S1358, VWA, FGA, D8S1179, D21S11, D18S51, D5S818, D13S317, D7S820 e D3S1358, VWA, D16S539, D2S1338, D8S1179, D21S11, D18S51, D19S433, TH01, FGA. Importa sublinhar que, após a reacção de PCR, os produtos de amplificação têm de ser analisados, usando-se para esse fim várias metodologias sendo, todavia, a mais divulgada e a que oferece resultados mais fiáveis a que utiliza sequenciadores automáticos, pelas razões adiante expostas. Uso dos sequenciadores automáticos para o estudo dos STRs A utilização de sequenciadores automáticos é hoje praticamente imprescindível como tecnologia associada à PCR, tanto na análise de loci STR, como no próprio estudo da sua sequência, nos casos em que, por exemplo, se torna necessário o esclarecimento da presença de uma mutação genética ou, ainda, na análise do DNA mitocondrial que pressupõe a sequenciação de duas regiões hipervariáveis (HVI e HVII). Estes permitem que a informação electroforética se vá armazenando à medida que decorre a migração, graças à utilização de um software apropriado, sendo os alelos detectados por laser, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Noções Gerais sobre outras ciências forenses pois os “primers” usados são marcados com fluorescência. Para além de que, paralelamente à migração das amostras de DNA em estudo, migram vários padrões externos (“sizer” externo) e padrões internos adicionados a todas as mostras a estudar (“sizers” internos). Os referidos padrões são reconhecidos pelo software e servem para construir curvas de calibração, eliminando as diferenças de mobilidades electroforéticas que podem existir em diferentes “lanes”. Deste modo, é possível eliminar automaticamente as variações da mobilidade electroforética, as quais podiam conduzir a uma tipagem errada dos alelos. Com um sequenciador é possível a tipagem simultânea de vários sistemas, pelo que é necessária uma quantidade inferior de DNA molde, o que constitui uma grande vantagem na resolução de casos com interesse forense em que se dispõe de pequenos vestígios, com quantidades exíguas de DNA. A Perkin-Elmer possui vários modelos de sequenciadores automáticos, dos quais podemos destacar o modelo ABI 310 e o ABI 3100 (electroforese capilar), que possuímos no nosso laboratório que, para além das vantagens atrás expostas, possibilitam o estudo de vários sistemas, designadamente loci STR, em que se verifique a sobreposição do tamanho dos alelos, porque os distintos primers, para amplificação de cada sistema, são marcados com diferentes fluorocromos, ou seja, com cores diferentes. Estes sequenciadores usam a electroforese capilar, em vez dos geis de poliacrilamida utilizados noutros modelos, obviando a preparação e manipulação do gel o que, muitas vezes, representava muito trabalho laboratorial, até porque nem sempre os geis tinham a qualidade requerida para que se obtivesse bons resultados. A electroforese capilar, entre outras vantagens, possui uma grande sensibilidade que é de grande interesse, especialmente quando a quantidade de produto amplificado é exígua. Por isso, de uma maneira geral, o uso dos sequenciadores apresenta muitas vantagens relativamente aos processos manuais, designadamente o facto de obviar a necessidade da manipulação do gel, após a electroforese, para a detecção dos produtos de PCR, ao contrário do que ocorre quando a técnica empregue não é automática, em que é necessária a exposição autorradiográfica do gel ou a coloração com nitrato de prata. Outra vantagem a registar é o facto da análise dos resultados ser também automatizada, através da utilização de software adequado, permitindo armazenar os dados em bases de dados, para posteriores análises estatísticas. Os sinais de fluorescência são conhecidos por serem lineares num maior grau de intensidades do que as autorradiografias convencionais. Por isso, estes sistemas de detecção são, provavelmente, mais úteis para a quantificação directa dos produtos de PCR. Este facto revela-se de especial interesse quando se possui mistura de amostras provenientes de mais de um indivíduo, pois o tamanho dos picos obtidos dá uma ideia do material celular existente de cada indivíduo, por exemplo, nos casos de violação. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Medicina Legal / Toxicologia Forense DNA Mitocondrial e Cromossoma Y A análise do DNA mitocondrial e do cromossoma Y, permite determinar relações familiares, quando existe um hiato de várias gerações entre um ancestral e descendentes vivos. No entanto, não possuem o poder de discriminação dos sistemas autossómicos, designadamente dos loci STR autossómicos do DNA nuclear, para além de que é necessária uma maior ponderação na elaboração das conclusões. Num futuro próximo, com a criação de um número suficiente de bases de dados, com o desenvolvimento de novas metodologias e, possivelmente, também de novas técnicas, bem como com um perfeito controlo das situações excepcionais, cuja conclusão pode levantar algumas dúvidas de interpretação, o estudo do cromossoma Y e do DNA mitocondrial pode constituir uma peça relevante na resolução de perícias médico-legais do âmbito da Biologia Forense. Conclusões Investigação da paternidade Prova positiva de paternidade Nos casos da prova positiva de paternidade, isto é, quando não se verificar a existência de exclusão de paternidade por nenhum dos sistemas estudados, calcula-se a probabilidade de paternidade, com base no Teorema de Bayes. Este teorema é usado para determinar a probabilidade final de um sucesso, deduzida a partir das probabilidades iniciais e certa informação ou informações adicionais. A fórmula que expressa a probabilidade (a posteriori) de paternidade contém um parâmetro para poder ser simplificada, que é a probabilidade a priori de paternidade. Assim, se se atribuir a este valor de
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